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SEDUÇÃO CRIMINOSA - P.2 / Nelson Demille
SEDUÇÃO CRIMINOSA - P.2 / Nelson Demille

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

SEDUÇÃO CRIMINOSA

Segunda Parte

 

Primeiro, não conseguia adormecer. Como estava muito cansado, os músculos do corpo não descontraíam. Virou-se para todas as posições possíveis, mas não conseguia sentir nenhum conforto. Então, quando finalmente deslizou para a escuridão, foi atormentado por sonhos perturbadores. Os seus esforços para escapar àquelas imagens levaram-no à beira da insónia vezes sem fim, mas depois era novamente arrastado para aqueles sonhos perturbadores. Havia uma mulher de pernas esbeltas e seios elegantes cujos lábios se encrespavam, revelando dentes de vampiro. Havia uma mulher com uma máscara, vestida de renda preta transparente que abriu as pernas para ele e lhe espetou uma faca nas costas quando a penetrou. Houve uma mulher sinuosa de olhos sonolentos e com os bicos dos seios entumecidos jazendo numa poça de sangue. Ficava alternadamente acordado e aterrorizado durante horas.

 

Por fim deu consigo sentado, a olhar para imagens esbatidas na escuridão com o coração a bater. Os pormenores bem definidos dos sonhos perdiam-se rapidamente, mas a sua essência permanecia. E embora soubesse que estava acordado, o sentido acentuado e imaginário da realidade continuava. Deitou fora os cobertores, sentindo-se agitado. O seu sangue pulsava de calor. As pontas dos dedos e a cabeça e a zona genital pulsavam de calor.

 

Deitou-se em cima da almofada.

 

Lenore.

 

A respiração acelerou só de pensar nela.

 

Lenore.

 

Fechou os olhos e murmurou o nome dela.

 

Lenore.

 

Conseguia senti-la deitada ali perto na casa em silêncio. Respirando suavemente em silêncio. Com os seios e as ancas envolvidos em lençóis frios. Lenore. À espera na escuridão. À espera. Disponível e à espera.

 

Vestiu depressa as calças e a camisa e foi aos tropeções para o corredor escuro. O quarto dela não era longe da sala de estar com os vitrais. Conseguia encontrá-lo. Tinha de o encontrar. Andou às apalpadelas de um lado para o outro, no meio da escuridão. Finalmente chegou a uma porta aberta e entrou num quarto cheio de luar. A cama estava vazia. Intacta.

 

Subitamente, a agitação desapareceu. Estava descalço num pavimento frio de madeira, num quarto vazio. Sentindo-se tão vazio como o quarto. Atravessou o quarto em direcção à cama e sentou-se. Parecia virginal à luz da lua. Macia e firme e fria. Passou a mão por cima dela, depois tirou a almofada e encostou-a à cara. Não tinha o cheiro dela. Ela não existia. Tinha-a imaginado. Deixou cair a almofada e pôs as mãos na cara, receando pela sua sanidade mental. Pensando que talvez fosse possível ficar possesso e que o espírito de Serian tivesse entrado nele. Ou que Lenore o tivesse deixado possesso. Ou alguma coisa totalmente desconhecida e ainda mais terrível se tivesse apoderado dele.

 

Tentou acalmar-se com o pensamento de que ainda estava sob a influência dos sonhos. O que precisava era de voltar a dormir e sobreviver até de manhã, quando tudo voltaria ao normal. Saiu do quarto, mais cauteloso e inseguro quanto ao caminho, agora que tinha recuperado as suas capacidades mentais, e começou a seguir as paredes escuras, amaldiçoando em silêncio a casa e a mente maluca que a tinha concebido. Entrou em gabinetes que julgava fazerem ligação a outros corredores. Esbarrou com becos sem saída. Por fim decidiu instalar-se no primeiro sítio quente e confortável que encontrasse e dormir ali, fosse um sofá ou uma cama, e preocupar-se só de manhã em saber onde estava. Então viu um brilho trémulo.

 

Cheio de curiosidade, passou pela porta e entrou num pequeno quarto sem janelas que estava cheio de sombras dançantes. Em frente da lareira estava um sofá com as costas voltadas para ele e uma quantidade de pequenas mesas espalhadas pelo quarto. O brilho vinha dos restos de lenha a arder na lareira e das dúzias de velas acesas que enchiam os tampos das mesas.

 

Avançou um pouco, curioso por saber o que se passava, quando de repente uma figura humana, que tinha estado deitada no sofá, escondida da vista, apareceu de repente como se fosse um gato endemoninhado pronto a atacar. Ficou paralisado com o susto, como se estivesse a viver um pesadelo. Esta era a mulher dos seus sonhos, nua, sob uma cascata de cabelo negro, com os dentes a brilhar e olhos selvagens na penumbra. Com uma espingarda de dois canos apontada ao seu coração.

 

Na clareza de um instante soube que ela ia matá-lo. E no estranho mundo inferior do seu meio-sonho acreditava que merecia isso.

 

Ali estavam os dois. Cativos do pesadelo. Gradualmente, o pânico brutal nos olhos dela converteu-se em confusão.

 

Owen?

 

Ele teve medo de se mexer ou de falar.

 

Owen?

 

Ela baixou a arma e começou a tremer.

 

Ele avançou com cuidado, tirou-lhe a arma das mãos e pousou-a ali ao lado, depois envolveu-a nos cobertores.

 

Eu não... pensei... Voltou-se para ele de olhos assustados. - Podia tê-lo morto.

 

Dorme sempre com uma companhia tão perigosa?

 

Ela acenou com a cabeça. Desde que fiquei sozinha. Sim.

 

Mas tem os alarmes. Isso não a faz sentir-se segura?

 

Nada me faz sentir segura.

 

O cavaco que restava na lareira partiu-se, produzindo uma chuva de faiscas.

 

Por que se levantou? perguntou ela.

 

Maus sonhos, disse ele. E você? Por que não está na cama?

 

Eu durmo em lugares diferentes. Hoje apeteceu-me ficar aqui.

 

Ele olhou de relance para a sala e para as pequenas chamas. Não eram como as velas que já tinha visto. Cada uma estava dentro de um cilindro alto de vidro com legendas ou gravuras do lado de fora. Começou a fazer-lhe perguntas sobre aquelas velas, mas depois verificou que não queria saber.

 

Ela estava a observá-lo. Enroscada ali no sofá com os lençóis a fazer de capa a envolvê-la e a luz das velas a dançar-lhe na cara. Estava nua sob os cobertores. A observá-lo.

 

Boa noite... mais uma vez, disse ele, e saiu de repente do quarto sem esperar pela resposta dela.

 

Foi acordado por um ruído. Abriu os olhos e ficou completamente desorientado. Feixes de luz com a forma de traves lá em cima. Uma estranha luz amarela. Chiar de couro. Cheiro a café.

 

Levantou os pés para o lado do sofá e sentou-se. Estava na extravagante sala de estar de Bram Serian. Lenore estava sentada no sofá que se encontrava em frente. Havia um serviço de café numa mesa que estava entre eles. Era de manhã. Tinha tudo voltado ao normal.

 

Ela estava a observá-lo por cima da sua caneca de café. Tinha o cabelo preso com um gancho sobre a nuca e vestia uma blusa de tamanho exagerado e jeans desbotados.

 

Ela tinha estado nua num quarto cheio de velas a noite passada a apontar-lhe uma espingarda ou tinha sonhado tudo aquilo?

 

Bom dia, disse ele, servindo-se do café. A estranha luz sulfúrea vinha das janelas.

 

Parece que vai nevar, disse ela.

 

Parece que sim, concordou ele.

 

Quando chegou a tarde já eles tinham explorado e bisbilhotado e verificado cada centímetro da cave sem encontrarem o cofre. Por fim desistiram e, desanimados, voltaram para a cozinha para almoçar. Ele olhou pela janela para o ar denso e calmo enquanto comia. O vapor de água estava a acumular-se lá no alto, agitando-se nas nuvens de cor metalizada. A luz tinha mudado de amarela para prateada.

 

À esquerda via-se um local afastado, com os escombros do que tinha sido o estúdio de Bram. Em breve ia ficar coberto de neve. Toda aquela fealdade ia ficar escondida.


Lenore, disse ele, olhando para fora enquanto falava. Alguma vez esteve dentro do estúdio?

 

Não. E acho que nunca ninguém lá entrou, excepto o Al.

 

A polícia verificou o pavimento do estúdio... retirou os escombros e examinou de facto o chão em alguma das suas buscas?

 

Ela ficou imóvel e olhou para ele, acendendo-se-lhe uma centelha nos olhos.

 

Saíram passados poucos minutos, removendo as ruínas com as mãos nuas. Só depois de as suas mãos estarem cheias de feridas e frias e as roupas todas sujas da fuligem é que readquiriram o bom senso e voltaram para casa para se reorganizarem. Lenore encontrou uns jeans velhos e um casaco estofado já gasto para ele vestir. Da cave trouxeram luvas grossas de trabalho, botas grossas para a neve, pés-de-cabra e pás e lanternas de bolso. Preparados para o Árctico e armados de equipamento, aproximaram-se de novo da confusão enegrecida. Parecia ter aumentado tanto para cima como para o lado desde a sua primeira impressão.

 

Caminharam à sua volta, imaginando um mapa daquilo de acordo com os diagramas que Rossner tinha mostrado ao júri. Aqui era a porta. Deste lado era a zona de alojamento. Ao longo daquela parede era a plataforma de tijolo para o fogão. Dividiram-no em terços, fazendo cortes para marcar as secções.

 

Vamos fazer uma busca em grelha, disse ela com um sorriso irónico, surpreendendo-o com a referência humorística à investigação incompetente do Xerife Bello.

 

O trabalho era árduo. Removeram pedaços de barrotes enegrecidos e retiraram montes de lixo com a pá, numa acção repetitiva de apanhar e atirar, que fazia arder profundamente os músculos dos ombros de Owen e fazia-lhe crescer bolhas nas mãos, apesar de usar as luvas. Tinha o rosto enregelado, mas estava a suar-por dentro do casaco. Depois de terem limpado uma zona, levantavam as tábuas do chão para o cimento ficar exposto.

 

Pensou em Serian enquanto trabalhava. Como o homem tinha trabalhado neste edifício, derramando o betão sobre o chão imundo do antigo celeiro. Como tinha cortado e moldado a madeira. Criando a oficina dos seus sonhos, que mais tarde se transformou em pira fúnebre. Pensou no local onde tinha sido encontrado o corpo e onde era a esquina pontiaguda de tijolo. Pensou na cabeça do machado. Mas resolveu parar porque não podia mais enfrentar a possibilidade da culpa dela. Se ela fosse culpada... Mas não. Não podia pensar nisso.

 

Quando começaram a cair os primeiros flocos de neve, ambos se endireitaram e olharam para o céu.

 

Não temos muito tempo. Lenore esfregou o queixo com as costas da mão enluvada, deixando uma mancha de carvão. Pareceu-lhe que ela estava com medo que ele desistisse.

 

Podemos continuar a trabalhar por mais um bocado, disse ele.

 

Ela sorriu-lhe. Meiga e graciosa. Um sorriso comovente. Voltou ao trabalho com redobrada determinação, recusando-se a pensar se o sorriso tinha sido sincero ou não.

 

O céu escureceu e os flocos de neve caíam mais depressa e levantou-se o vento, picando asperamente a pele exposta. Acabaram o terço do meio, passando a marca que os punha na última secção. Tirou com a pá uma linha de tábuas carbonizadas do soalho e lá estava ela. Uma porta quadrada de aço, lisa e sólida, com um disco redondo no centro.

 

Precipitaram-se ambos para ela, puxando e espreitando e forçando. Mas o cofre tinha sido assentado no betão e nem se mexia. Passou as mãos pelo metal, sem conseguir ver como se abria. Tentou levantar a peça circular central com uma chave de fendas mas não aconteceu nada. Frustrado, bateu na frente lisa de metal com a extremidade mais grossa da chave de parafusos. Uma das pancadas bateu na parte circular do disco e este abriu-se revelando um buraco de fechadura lá dentro.

 

Chaves, disse ela, e correu para casa. Tinham as bocas demasiado frias para formar frases.

 

Ele protegeu-se do vento, baixando a cabeça sobre o peito e debruçando-se sobre o cofre exposto, para evitar que a neve se juntasse ali.

 

Lenore voltou com três argolas cheias de chaves. Cada um pegou numa e alternaram-se a experimentar as chaves. A neve ia-se juntando nos ombros e nas costas. Redemoinhava com o vento e amontoava-se junto dos pés.

 

A porta abriu-se em resposta a uma chave qualquer de latão, saltando por acção de uma mola logo que foi destrancada. Owen ficou tão surpreendido que caiu para trás. Lenore puxou-o pelo braço, para o ajudar a recuperar o equilíbrio e ambos ficaram a olhar para o mistério de Serian. O lugar secreto de Serian.

 

Ela tinha pensado no que podia resultar, quando foi buscar a chave e encheu os bolsos de sacos de plástico para o lixo. Agora tirou um e, lutando para evitar que o vento o levasse, segurou-o bem junto do cofre, de modo a poder enchê-lo com o conteúdo do cofre. As mãos dele estavam entorpecidas e desajeitadas com o frio. Estava preocupado que a neve pudesse arruinar as coisas ou que o vento pudesse levar alguma coisa. Havia algum dinheiro. Viu isso imediatamente. O resto eram coisas vagas.

 

Quando o cofre ficou vazio, fecharam-no. Ele obrigou os braços rígidos a cobri-lo com escombros e depois correram para casa com o seu tesouro.

 

Ela levou-o para um quarto acolhedor a sul da cozinha. Tinha uma lareira com cavacos já dispostos e ele acendeu o lume imediatamente. Sucumbiram no chão espessamente atapetado em frente da lareira e sentaram-se mesmo ali, esgotados e entorpecidos. Gradualmente, ele despiu as camadas de roupa exterior que estava encharcada. Todas as partes do corpo ardiam ou doíam. Os dedos ficaram avermelhados com o rápido aquecimento.

 

Ajudou-a a tirar o casaco e as luvas e esfregou-lhe as mãos desajeitadamente. Ela estava sem jeito. Por fim, fez um esforço para se levantar e foi-se embora. Quando voltou, vinha vestida com um roupão quente e trazia peças dobradas de roupa para homem. Silenciosamente, entregou-lhe a roupa seca e voltou a sair. Quando voltou com o chá quente, já ele se tinha mudado e agora tinha os velhos jeans e uma camisa de flanela macia.

 

Beberam o chá sentados um ao lado do outro em frente da lareira.

 

Por que voltou a tapar o cofre? perguntou ela por fim. Era a primeira vez que qualquer um dos dois falava desde que tinham voltado para dentro.

 

Não sei, disse ele. Por que se teria obrigado a escondê-lo novamente? Estaria apenas a protegê-lo da neve, ou queria escondê-lo de outras pessoas? Para evitar que se soubesse dos segredos de Serian, antes mesmo de ele saber o que eram?

 

Afastaram os móveis para terem mais espaço em frente da lareira e depois despejaram o conteúdo do saco para o chão.

 

A coisa mais evidente era o dinheiro. Maços e maços dele. Em notas de vinte. Cinquenta. Cem. A maior parte era em notas de cem. Eficientemente seguras com elásticos.

 

Isto é mesmo dele, disse ela, rindo-se com tristeza. O Bram detestava os bancos. E a chave... Deve ter teimado em adquirir um cofre com chave porque uma fechadura de segredo teria sido aborrecida para ele.

 

Há aqui muito dinheiro, disse Owen.

 

Ela afastou o dinheiro como se não tivesse qualquer valor para ela e pegou ansiosamente numa fotografia instantânea antiga, a preto-e-branco, de duas mulheres de avental. Do lado de trás estava escrito Camille e Celeste. Havia ainda outra fotografia a preto-e-branco de dois rapazinhos sorridentes, segurando um peixe-gato que tinham apanhado.

 

Estes podem ser o Bram e o Al, disse ela, passando a fotografia a Owen. Não havia nada escrito no verso.

 

Ela abriu uma caixa e destapou várias esculturas pequenas de madeira envolvidas num pano. Outra caixa continha algumas peças antigas de joalharia. Não era nada de extravagante, mas era o tipo de jóias que as pessoas normais usavam muitos anos atrás. E a terceira caixa continha uma delicada camisola de bebé em croché.

 

Havia uma pasta de couro com um retrato antigo de uma mulher segurando uma criança. A sua expressão era séria, quase de tristeza.

 

O resto eram papéis e cartas. Lenore juntou-os de qualquer maneira e deu-lhos. Leia-me tudo, Owen. Por favor.

 

Ele passou uma vista de olhos por uma folha. Isto é uma lista de todas as pessoas a quem o Bram deu presentes ao longo dos anos. Quer que lhe leia a lista?

 

Mais tarde, disse ela impacientemente. Que mais há?

 

Há três folhas que descrevem todas as peças de arte que vendeu. E há aqui uma quantidade de cartas de artistas importantes, nada de muito pessoal, sobretudo de felicitações. E esta... Owen desdobrou uma folha. Lenore! Está aqui uma carta do Al.

 

Leia-a, apressou-se ela a dizer. Leia-a!

 

Owen segurou no bocado de papel de rascunho manchado. Não havia saudação, começava simplesmente:

 

Por agora vou-me embora. Tirei algum dinheiro, mas é tanto meu como teu, portanto não estou a roubar. Estive a pensar muito mais claramente nos últimos meses e tenho deitado fora os meus comprimidos quando tu não estavas a olhar. Sinto-me bem sem eles, o que prova que estou quase a ficar bom.

 

Deixei de ter maus sonhos. Passo bem as noites e já consigo dormir às escuras. Sonhei que estava com a Tia Milly na Arcádia. Também lá estavas tu e o Luke e estávamos todos contentes e andávamos a caçar pirilampos como antigamente. Quando acordei soube que tinha de fazer alguma coisa. Não posso continuar a fazer o que tenho feito e espero que tudo volte a ficar bem um dia. Tenho de mudar de vida. E sei que tu nunca concordarias que estou preparado, por isso tive de ser eu a tomar a decisão.

 

Sei que te esforçaste muito a fazer aqui a Arcádia para nós, e também sei o quanto te devo. Agora que sei o que se passa, não gosto muito de algumas coisas, mas sei que o fardo tem sido pesado e que tu achavas que estavas a fazer o que devias, por isso não te censuro. Não me vou embora por estar zangado. Vou-me embora para tentar viver a minha vida.

 

Diz à Lenore que vou ter saudades dela. Logo que me sinta suficientemente forte, voltarei. É uma promessa.

 

Raios o partam! Raios o partam! disse ela a chorar com as lágrimas nos olhos. O Bram mentiu-me! Disse-me que o Al tinha desaparecido. Tirou a Owen a folha de papel e ficou a olhar para ela, como se conseguisse lê-la. Porquê? Por que me mentiu?

 

Apertou a carta ao peito. Estava tão preocupada. Não sabia que o Al estava melhor... Pensava... Tinha medo que tivesse perdido as estribeiras e tivesse fugido para o campo onde podia morrer de fome... ou podia magoar-se... a si ou a outras pessoas. Ele era... Ficou com a voz presa de comoção e respirou fundo e fechou momentaneamente os olhos para tentar controlar as lágrimas. Por que deixou o Bram que me preocupasse daquela maneira? Ele sabia como eu andava inquieta, a pensar no Al ali sozinho... nos perigos que corria e na incapacidade do Al. Não conseguia dormir. Não conseguia comer. Até implorei ao Bram que me deixasse ir com ele, quando ia à procura do Al. Eu...

 

A sua boca comprimiu-se numa linha direita e ela lutou contra a raiva, tentando recuperar o controle. Owen manteve-se em silêncio, pois sabia que ela tinha de resolver sozinha aquela questão.

 

Quando a tempestade de emoção tinha acalmado, ela suspirou irregularmente e devolveu a carta a Owen. A insistências dela, leu-a de novo em voz alta.

 

Talvez o Bram receasse que você pensasse mal dele, se soubesse o que o Al tinha dito como despedida, sugeriu ele.

 

Ele podia facilmente ter-me escondido os pormenores! Eu não podia ler as palavras que ele escreveu. Ele podia ter-me dito apenas o essencial... apenas que o Al tinha-se ido embora de livre vontade, e que parecia ter recuperado o equilíbrio e estar capaz de tomar conta de si próprio. Mas não! mentiu-me redondamente. Fingiu que o Al tinha desaparecido. E fingiu que sofria muito comigo por causa disso.

 

Owen começou a dizer que Serian podia ter ficado tão magoado e aborrecido pelo facto de o Al ter partido, que não tinha querido aceitar a carta, mas conteve-se. Tinha perdido a vontade de defender Bram Serian.

 

O cofre era a minha última esperança, disse ela. Não vamos encontrar nenhumas respostas.

 

Estamos a encontrar respostas, Lenore. Ou indícios de respostas. O que esperava? Pensava que Serian teria escrito uma explicação pormenorizada para ser revelada depois da sua morte, como aquelas cenas dramáticas nos filmes?

 

Sim. Pensava. Ela pôs-se a olhar para a lareira. Eu pensava... para além do amor ou pena ou culpa... que ele se sentiria obrigado a deixar-me a verdade.

 

Owen observou-a, sofrendo por ela, desejando poder confrontar-se com Bram Serian por ela e arrancar-lhe a verdade. Ela voltou-se e os seus olhos encontraram-se. Toda a minha vida com o Bram foi uma mentira. Agora é que vejo isso.

 

Às vezes as pessoas pensam que têm de mentir para proteger aqueles que amam, disse Owen, dizendo aquela banalidade numa tentativa inútil de minorar a sua dor.

 

A boca dela distorceu-se num amargo meio-sorriso. Oh, se me tivesse dito isso antes, ter-lhe-ia ficado tão grata... tão ansiosa por me agarrar a isso. Mas se o Bram estava a proteger alguém com as suas mentiras, não era a mim.

 

Tenho tido muito tempo desde que ele morreu. Tempo para pensar. E tenho aberto os olhos através da investigação de Rossner e de ouvir as testemunhas... e através de si. Agora sei a verdade. O Bram nunca me amou. Nunca. Nem como criança, nem como mulher. Quaisquer que fossem as razões que tivesse para me querer, não tinham nada a ver com o amor.

 

Owen sentiu o desejo de lhe tocar nas bochechas. De lhe acariciar a cara com as mãos e eliminar o seu sofrimento com a sua força de vontade. Em vez disso segurou na carta. Vamos esquecer Bram Serian e examinar isto como informação. Somos capazes de o vencer, Lenore. Vamos arrancar-lhe os segredos por mais fundo que ele os tenha enterrado.

 

Ela fez um aceno de cabeça com alguma hesitação e a sua expressão apreensiva de esperança e de confiança colidiram no peito dele como se fosse um soco e introduziu-se-lhe na garganta de tal maneira que ele teve de fazer esforço para saírem as palavras.

 

Matutaram sobre cada frase da carta. Primeiro havia a questão do dinheiro. Por que consideraria o Al que parte do dinheiro de Serian lhe pertencia? Mas Jonas Watkins tinha afirmado que Serian tinha um fundo de poupança... Se era um fundo de poupança familiar, então o Al podia achar que tinha direito a uma parte desse fundo.

 

Depois havia as referências à doença do Al, aos comprimidos e aos maus sonhos e ao facto de se sentir bem.

 

Não compreendo, disse Owen. Pensava que o Al tivesse alguma espécie de atraso mental ou deficiência cerebral. Não é uma coisa de que se possa recuperar. E esta carta... parece ter sido escrita por uma pessoa normal e bastante bem educada.

 

Lenore inclinou a cabeça. Deixei-o pensar assim, disse ela, porque foi assim que o Bram sempre quis que fosse. Ele não queria que as pessoas soubessem a verdade acerca do Al.

 

E qual era a verdade?

 

Ela hesitou. O Al teve um crescimento normal. Depois foi para a guerra no Vietname e transformou-se num... não sei como é o termo médico, mas era muito... imprevisível. E não confiava nas pessoas. Não confiava em mais ninguém que não fosse o Bram e eu. Todas as outras pessoas ou o assustavam ou o aborreciam. Às vezes imaginava que estava de novo na guerra e que as pessoas andavam atrás dele. E tinha um medo horrível do escuro.

 

A verdadeira razão por que o Bram construiu o estúdio sem janelas nas paredes e apenas com uma porta, era para o Al se sentir seguro ali. Era a fortaleza do Al. E embora o Bram fosse muito esquisito em relação ao trabalho que estava a fazer, impedindo que alguém o visse, o motivo por que nunca deixou entrar ninguém no estúdio era porque aquilo era a casa do Al e o Al teria ficado muito perturbado se alguém entrasse na sua casa, quer estivesse ele lá quer não estivesse.

 

Owen pensou nesta nova informação. Não lhe parece estranho, disse ele, que o Vietname esteja sempre a aparecer? O Bram fez o serviço militar no Vietname mesmo antes de vir para Nova Iorque. Disse a Jonas Watkins que tinha perdido o irmão no Vietname. Guardou um decalque do muro memorial do Vietname. O primo, Al, ficou emocionalmente afectado no Vietname.

 

E depois você... O seu pai foi militar no Vietname. Parece que você é do Vietname... só que na realidade é da Tailândia. Parece-me que todas estas coisas devem ajustar-se, só que não sei como.

 

Lenore franziu as sobrancelhas com ar triste. Não posso acreditar que o Bram nunca tivesse mencionado o facto de ter perdido um irmão. Nunca mencionou a família. Nem mesmo a mim.

 

Posso compreender que não quisesse falar do irmão, confessou Owen tranquilamente. Eu perdi um irmão e sei como é difícil para mim falar dele.

 

De repente a expressão dela tornou-se compassiva. Como morreu o seu irmão?

 

Conto-lhe noutra altura, mas não agora... está bem? Apressou-se a voltar de novo a atenção para a carta. Quase parece que o Al fugiu. Evadiu-se. O Bram estava a impedi-lo de ir embora ou a confiná-lo aqui?

 

Naquela altura não me pareceu que fosse assim, disse ela. Simplesmente parecia natural que o Bram quisesse vigiar cuidadosamente o Al e ter regras para ele e às vezes até fechá-lo para evitar que se metesse em sarilhos. Mas agora verifico que o Al estava aprisionado.

 

Por que mentiu o Bram sobre o estado do Al? Um trauma de guerra emocional e psicológico é um estado muito conhecido e muito bem aceite. Tenho a certeza de que as pessoas teriam compreendido.

 

Ela apertou as mãos uma à outra e segurou-as contra a boca como se tivesse medo de poder falar mais. Os seus olhos negros procuraram os de Owen com medo. Eu não devia ter-lhe falado do Al. Não pode escrever nada sobre ele no seu livro. Esteja ele onde estiver, faça o que fizer... escrever sobre ele podia fazer-lhe mal. Podia destrui-lo.

 

Lenore... ninguém vai condenar o Al ao ostracismo porque ele é...

 

Tem de me prometer que ele não entrará no seu livro.

 

Owen ainda pensou em argumentar que os vagos elementos de informação que tinha sobre o Al não podiam fazer mal a ninguém, mas notou nos olhos dela que a discussão podia ser perigosa.

 

Só mencionarei o Al em termos muito gerais e esclarecerei consigo qualquer dúvida antecipadamente. Prometo.

 

Então ela acalmou-se e continuaram com o exame minucioso da carta.

 

Nunca ouviu falar numa tia Milly? perguntou Owen.

 

Nunca.

 

Bem, parece que os dois primos tiveram uma Tia Milly nas suas vidas, quando eram rapazes. E alguém chamado Luke. Será que o Luke era o irmão do Bram? Com os diabos! Há tão poucos elementos para se poder continuar.

 

Owen passou os dedos pelo cabelo com a frustração e observou mais uma vez a carta.

 

Ouça isto, Lenore... “Estava com a Tia Milly na Arcádia... Sei que te esforçaste muito para fazer aqui a Arcádia para nós...” Não lhe parece que a Arcádia é mesmo um lugar? Outro lugar. Talvez um lugar de onde o Bram foi tirar o nome para dar a esta casa.

 

Lenore ficou de olhos arregalados. Outra casa grande, noutro sítio?

 

Ou mesmo uma cidade?

 

Ele pôs-se de pé e puxou Lenore consigo. Onde era a biblioteca que me mostrou?

 

Owen pensou que ia ter de procurar um estado após outro na enciclopédia, mas encontrou um atlas grande da América do Norte com uma lista das cidades que havia em cada estado. Califórnia, Florida, Indiana, Kansas, Louisiana, Ohio, Oklahoma e Wisconsin tinham todas Arcádias.

 

Portanto, disse Lenore, agora o que temos de fazer é encontrar uma mulher chamada Milly que vive em Arcádia, num dos oito estados.

 

Não, podemos fazer uma coisa melhor. Se a Tia Milly viver perto da região em que o Serian foi criado, nesse caso estamos à procura de uma região plana. Um território plano em que se cultiva o trigo. E... abanou a cabeça. Tenho o pressentimento de que é a Arcádia do Kansas que nós queremos.

 

Porquê?

 

Tem havido algumas pequenas alusões, e... pode parecer estranho, mas durante todo este tempo tenho sentido que existe uma ligação qualquer entre mim e o Bram e acho que é isso.

 

Kansas? perguntou ela.

 

Eu sei que parece estranho, mas...

 

A mim já nada me parece estranho.

 

Owen puxou uma almofada do sofá para o chão, esticou as pernas e deitou-se exposto ao calor da lareira, e deixou a sua mente vaguear pelas novas descobertas. E sem ter qualquer intenção, adormeceu profundamente.

 

Quando mais tarde acordou, a lareira estava reduzida a umas brasas sem chama e o quarto estava escuro. Esfregou a cara com as mãos e tentou acordar completamente. Lenore não estava ali. Nem o saco de plástico. Nem a carta. Nem o dinheiro.

 

Deu com uma casa de banho, lavou a cara com água e afastou o cabelo dos olhos. Depois procurou por toda a casa em silêncio, dizendo palavrões sempre que se enganava a virar no corredor, batia com as canelas às escuras, tentava apalpar os interruptores da luz onde não os havia. E se Lenore tivesse desaparecido? E se tivesse mentido quanto a saber conduzir e tivesse levado o dinheiro e desaparecido? E se houvesse alguma pista indefinida na carta e ela tivesse ido à procura dele? Ou se tivesse decidido não se arriscar a ser condenada por homicídio e tivesse partido em direcção à fronteira?

 

Abriu violentamente uma porta e quase caiu na cozinha. Lenore estava lá dentro, ali de pé, vestida com o roupão, a pôr travessas cheias de comida no microondas. Dirigiu-lhe um olhar divertido e atrevido e disse, Talvez devesse ter dormido mais algum tempo.

 

Sentindo-se apanhado, Owen murmurou uma resposta e dirigiu-se para a comprida mesa de jantar que ela tinha preparado para duas pessoas. Havia guardanapos de tecido e velas finas ainda por acender em castiçais de cerâmica. Ela levou a comida para a mesa, diminuiu as luzes de cima e acendeu as velas. Uma fogueira ardia fortemente na lareira de pedra da cozinha e as janelas abanavam com a violência da tempestade lá fora. Ela sorriu e serviu-o. Uma perfeita anfitriã. Como se tudo o que tinha a ver com as suas circunstâncias e aquilo que os rodeava fosse perfeitamente normal. Mas, no fim de contas, o que conhecia Lenore Serian de normal? Muito pouco, receava ele.

 

Normal. Que diabo, o que conhecia ele também de normal? Ser criado num rancho no meio do nada já não era uma infância normal. Quem era normal? Talvez Holly Danielson. A rapariga brilhante, cem por cento Americana, proveniente de uma família respeitável que vivia num bairro agradável. Ocorreu-lhe que o encanto da Holly residia em grande parte naquela promessa de bem estar, de normalidade.

 

Está a pensar em algum plano? perguntou Lenore.

 

Oh... não...

 

Ela observou-o atentamente. A luz da vela iluminava a sua pele com um tom dourado e ardia nos seus olhos. Ele teve de desviar o olhar.

 

Esta roupa fica-me muito bem, disse ele.

 

E do Al. Ele quase não levou nada consigo.

 

Há manchas de tinta nos jeans. O Al trabalhava realmente como assistente do Bram, ou isso era só para fazer parte da história?

 

Claro que eu não podia entrar lá para ver nada, mas sempre tive a impressão que ele ajudava muito o Bram. Às vezes as listas de abastecimento eram mesmo escritas pelo Al. Lembro-me disso porque o Stanley tinha dificuldade em ler a caligrafia do Al.

 

Listas de abastecimento?

 

O material habitual. Telas e molduras de suporte e imensas cores de tinta. O Bram pagava ao Stanley para ir de vez em quando a uma loja especial em Manhattan comprar-lhe materiais.

 

Sabe... O descanso de Owen tinha-lhe estimulado a memória, que estava a tomar novas direcções. Se alguém fizesse uma investigação séria do Al, a arte podia ser um elemento importante na sua descoberta.

 

O quê?

 

A arte. Se ele era um bom assistente e gostava do trabalho podia tentar arranjar emprego em algum lugar, a fazer uma coisa semelhante.

 

Lenore franziu as sobrancelhas.

 

O Bram alguma vez procurou realmente o Al? Contratando um detective ou coisa parecida?

 

Não. Por que está a perguntar-me nesse tom de voz? Até parece que suspeita de alguma coisa.

 

Há um pedaço de papel ali na caixa que tem dois anos, que tem escrito o nome e número de telefone de uma agência de detectives. E eu estava só a pensar...

 

E acha que o Bram contratou um detective para procurar o Al, disse ela, pensando em voz alta. Sim. Pode ter sido isso que aconteceu.

 

Talvez valesse a pena investigar isso. Com todo esse dinheiro que estava no cofre, podia contratar o mesmo detective e quem sabe onde isso poderia levar.

 

Ela franziu as sobrancelhas pensativamente. Para procurar o Al, quer você dizer.

 

Mais. Se o Bram estava a mandar um detective atrás do Al, tinha de dar informações ao indivíduo. Nomes de lugares para onde o Al pudesse ir. Pessoas com quem o Al pudesse estar.

 

Mas temos de ter muito cuidado, Owen. Se nos aproximarmos muito e assustarmos o Al, ele pode desaparecer definitivamente.

 

Teremos cuidado. Só acho que podíamos usar o Al para apanharmos uma pista que nos levasse ao passado. E quem sabe... se o Al agora estiver lúcido, até pode conseguir contar-nos a história da vida inteira do Bram. Não me parece que você tenha fotografias do Al.

 

Não, disse ela pesarosamente. O Bram nunca permitiu que houvesse nenhuma máquina fotográfica na Arcádia, excepto uma vez em que permitiu que uma revista de arte fotografasse a casa.

 

Comeram em silêncio durante alguns minutos. Owen estava consciente dos olhos dela a observá-lo. A expressão dela era de expectativa e de esperança.

 

Havemos de pensar em alguma coisa, afirmou ele. Havemos de pensar em alguma coisa.

 

O que pensou depois do jantar foi telefonar ao Alex. O amigo do Alex tinha conseguido alguma informação, e o Alex estava ansioso por partilhá-la.

 

Você não vai acreditar nisto, disse o Alex. O material que queria sobre Bram Serian no Vietname... não houve nenhum Bram Serian no Vietname. Nenhum Bram Serian no serviço militar durante o período de tempo que você mencionou. Nem quaisquer outros Serians nesse período de tempo. O Cliff verificou isso para o caso de o nome Bram ser um nickname.

 

Owen deu um suspiro e olhou para Lenore. De certa maneira isso não me surpreende. Já desconfiava que ele pudesse ter inventado esse nome quando veio para Nova Iorque. Parece-me que isso nos bloqueia completamente. Mas obrigado na mesma, e diga ao Cliff...

 

Espere! Tenho mais coisas. Queria saber dos nomes no muro. Não sabíamos bem o que pretendia, mas foram todos dados como mortos ou desaparecidos em 1966 e o Cliff conseguiu saber as suas cidades de origem.

 

Está bem. Owen mudou o telefone para o outro ombro de maneira a poder escrever.

 

Abcock é de Boise, Idaho. Bachman é de Hutzell, Kansas. Benedict é de Goteen, Mississipi. Gibney é de Lafayette, Louisiana, Hamid é de Brooklyn, Isaac é de San Francisco, Califórnia, Tsosie é de Shiprock, Novo México, Veranza é de El Paso, Texas. E Wilson é de Brielle, Nova Jersey. O Cliff disse que é capaz de conseguir mais, mas precisa de saber que tipo de informação pretende.

 

Obrigado, Alex. Ainda não sei bem o que preciso. Volto a falar consigo.

 

Há alguma coisa de útil no que lhe disse? perguntou o Alex cheio de esperança.

 

Provavelmente. Ainda não sei.

 

Logo que Owen desligou o telefone, disse a Lenore que o nome Serian era com certeza um nome fictício.

 

O que podemos fazer? perguntou ela desanimada. Agora já nem sequer temos um nome.

 

Também fiquei desapontado, confessou ele, mas se pensarmos bem, isto pode ser uma alternativa. Agora podemos deixar de procurar uma família inexistente e concentrar-nos a imaginar qual seria o nome verdadeiro do Bram.

 

Owen concentrou-se por instantes na nova informação, depois pegou no bloco em que tinha escrito. Estes são os nomes que estavam no decalque. Lembra-se que um deles era Luther Bachman? Bem, adivinhe donde era... de Hutzell, no Kansas. E se o nome da família do Bram fosse de facto Bachman? E lembra-se da referência a Luke na carta do Al? E se Luke fosse a abreviatura de Luther? E se Luther Bachman fosse o irmão que o Bram perdeu no Vietname?

 

Os olhos de Lenore brilharam de entusiasmo e ela pegou no telefone e empurrou-o para o lado de Owen. Depressa, disse ela. Telefone para Arcádia, no Kansas e pergunte por Bachman, para ver o que acontece.

 

O entusiasmo desapareceu quando souberam que não havia nenhum Bachman na lista telefónicadaquela localidade. A seguir perguntou por Bachmans em ou perto de Hutzell, no Kansas. Também não havia esse nome na lista daquela zona.

 

Owen recusou-se a desistir, mas não podia deixar de se preocupar com o facto de os segredos de Bram e as respostas de Lenore estarem fora do seu alcance. Também estava a começar a questionar a ideia de procurar o pai dela. Tratava-se de um homem que tinha abandonado a mãe e a criança. Encontrá-lo poderia ser uma experiência má e destrutiva. De certa maneira, Owen achava que ela podia ter sorte em nunca ter conhecido o homem, e deu consigo a imaginar como seria trocar de posição com ela e ser órfão de pai. Fazer desaparecer todos os vestígios do seu pai, apagando a marca indelével do carácter de Clancy que Owen temia e trazia consigo.

 

Lenore ficou a olhar para o telefone.

 

Ele tinha de pensar em alguma coisa. Não podia desiludi-la.

 

Sabe... há todas aquelas contas de telefone que o Serian guardou. Devíamos verificá-las. As chamadas de longa distância devem ter os nomes registados. Essa Tia Milly parece que era importante para eles. Talvez tivesse havido alguma chamada para ela ao longo dos anos. Ou outras chamadas para números no Kansas. Vale a pena tentar.

 

Lenore levantou-se para ir com ele para a sala de estar, onde tinham deixado os registos de Serian, mas o seu entusiasmo estava a dar lugar ao pessimismo. Ou talvez fatalismo.

 

Vinte e dois anos de contas de telefone de Bram Serian estavam amontoadas umas em cima das outras na ponta de um sofá gigante. Mecanicamente, Owen seleccionou as chamadas de longa distância ao longo dos anos, abordando a tarefa como se fosse um serviço enfadonho mas simples. Lenore acendeu a enorme lareira e ficou a olhar para ele. Ele sentia os olhos dela a observá-lo, e desejava poder penetrar na cabeça dela e ver o que ela pensava dele. Será que ele era para ela apenas um meio para atingir um fim?

 

Quando chegou à área com o código 316 no Kansas, não se permitiu ter quaisquer esperanças. Garland, KS lia-se no registo impresso. Abriu um atlas, mas não conseguiu encontrar nenhum Garland, no Kansas. Os olhos de Lenore continuaram negros e calmos. Que mal pode fazer? disse ele enquanto pegava no telefone.

 

Olá, respondeu uma voz masculina de uma pessoa idosa a muitos quilómetros de distância.

 

Olá, é da casa dos Bachmans?

 

O quê? Deve ter marcado um número errado.

 

Espere, por favor, a Milly está?

 

Seguiu-se um silêncio. Owen receou por instantes que tivesse sido desligado.

 

Milly? Não está a querer falar com Milly Corwin neste número, ou está?

 

Sim. O seu coração começou a bater fortemente, de tal modo que sentia palpitações nos ouvidos. Milly Corwin.

 

Tretas... há anos que ela se foi embora daqui. A companhia dos telefones atribuiu-nos o número dela depois de ela se ter mudado.

 

O senhor vive em Garland?

 

Estamos de certo modo entre Garland e Arcádia. Da mesma maneira que estava a Milly.

 

O olhar de Owen elevou-se para o rosto de Lenore, mas teve de baixar os olhos imediatamente. Era demasiado. A palpitação nos ouvidos e um súbito calor eléctrico nos olhos.

 

O senhor sabe dizer-me como posso contactar com a Milly?

 

Ora muito bem, a voz do velhote passou a ter um tom de desconfiança. Como é que eu sei que o senhor tem alguma coisa a tratar com a Milly?

 

Owen percebeu imediatamente que tinha de ser muito cauteloso. Este era um homem que era muito parecido com Clancy Byrne, e se desse minimamente a entender que estava a mentir, podia fazer com que o velhote pensasse que Owen pudesse ser alguém a querer recuperar o seu carro ou algum fiscal do IRS. No entanto, a verdade simples era demasiado complicada e inacreditável para ser contada.

 

Daqui fala Owen Byrne, disse ele. Dos Flint Hills.

 

Uhm. Parece-me que não conheço nenhuns Byrnes.

 

A minha mãe era da família dos Hadleys. De uma região próxima de Maynard. Produziam trigo.

 

Conheci alguns Hadleys. Creio que eram dos arredores de Chanute. Tinham algum parentesco consigo?

 

Não sei bem se os conheci.

 

O velhote hesitou. Então e o que pretende da Milly? perguntou ele. Owen ganhou força e arriscou. Bem, na verdade eu queria falar com Milly Corwin sobre aqueles sobrinhos dela.

 

Oh, sim... os rapazes que ela adorava. Bem, eu vou dizer-lhe, a mãezinha e a Milly até ao mesmo grupo da igreja pertenciam. Parece que ela não sabe o que é feito da Milly.

 

Posso falar com ela?

 

Com certeza. Ela hoje foi visitar um parente que está doente, mas pode voltar a ligar amanhã que ela deve estar por aqui.

 

Posso dar-lhe um número para onde ela pode ligar a cobrar no destinatário logo que chegue?

 

Uh uhhh, eu não quero que se façam chamadas de longa distância do meu telefone.

 

Mas... é a cobrar no destinatário... o senhor não paga nada.

 

Não, não! Telefone você amanhã. Por volta das onze é uma boa altura. Ela deve estar a cozinhar o almoço para mim.

 

Owen agradeceu-lhe e desligou o telefone. Lenore estava muito silenciosa. Owen teve a impressão que ela estava a reter a respiração.

 

Parece-me que apanhámos a pista da Tia Milly, disse-lhe ele. O nome dela é Milly Corwin. Fiquei de telefonar amanhã para me dar o número dela. Lá é uma hora mais cedo, portanto será meio-dia na nossa hora.

 

Lenore pareceu ficar tão pasmada que ele ficou preocupado. Então? Estendeu a mão para lhe tocar no braço e descobriu que ela estava a tremer. Sente-se bem?

 

Ela acenou que sim com a cabeça.

 

Eu vou buscar-lhe alguma coisa, disse ele, embora não soubesse o quê, até estar na cozinha e ver as saquetas de chá num frasco em cima do balcão. Aqueceu água e voltou para a sala com duas canecas cheias de chá aromático.

 

Obrigada, disse ela.

 

Ele desligou as lâmpadas ofuscantes do tecto e a sala ficou transformada instantaneamente, iluminada pela luz suave de uma pequena lâmpada com um quebra-luz e pela claridade do lume dançante e hipnotizante. Ela pôs as duas mãos em volta da caneca fumegante, deu um suspiro e sentou-se com as pernas enroscadas por baixo dela. Apesar dos progressos alcançados, ela parecia melancólica.

 

Acabaram o chá em silêncio; depois levantou-se e dirigiu-se aos zigue-zagues para uma das largas janelas que ladeavam a lareira. Owen não sabia se ela estava a olhar para fora, para a tempestade, ou para o seu próprio reflexo na vastidão de vidro negro.

 

Lamento que ainda não tenhamos encontrado nenhuns sinais do seu pai, disse-lhe ele. Talvez a Tia Milly saiba alguma coisa.

 

Ela continuou com os olhos fixos no vidro escuro. O seu rosto ali reflectido era uma máscara esquelética com os buracos dos olhos vazios. O rosto de um fantasma.

 

Amanhã recomeça o julgamento, Owen. O meu tempo está a esgotar-se.

 

Eu vou continuar a trabalhar nisto, prometeu ele. Não vou desistir.

 

Voltou a cabeça para olhar para ele por cima do ombro. Não vai conseguir encontrá-lo a tempo.

 

A tempo de quê?

 

Antes de eu ser condenada e deportada.

 

Lenore... protestou ele. Começou a dizer-lhe que não devia pensar daquela maneira, mas apercebeu-se que as palavras não faziam sentido. A mulher estava a ser julgada por homicídio. Tinha todo o direito a estar pessimista.

 

Ele levantou-se para pôr mais lenha na lareira. Era uma tarefa calmante e ele fê-la devagar, usando um dos pesados utensílios manufacturados para mudar os cavacos de posição e colocar os novos. Ela afastou-se da janela e foi colocar-se ao lado dele a observar. A proximidade dela era perturbadora. Ele deixou de usar o atiçador como desculpa para se afastar dela.

 

Depois explodiu uma chuva de faíscas, obrigando-os a dar um passo atrás e de algum modo ficarem mais próximos. Ela voltou-se para ele, apenas a alguns centímetros de distância e ele sentiu o perfume do seu cabelo e espreitou o decote vagamente envolvente do seu roupão. Parou tudo. Cada célula do seu corpo ficou à espera. Ele conseguia ouvir o som da respiração dela e ver a pulsação no seu esbelto pescoço. Sem um esforço consciente, ele levantou a mão para acariciar a cara dela. Era tão intensamente angulosa e no entanto tão suave e macia ao toque. Lentamente, ela levantou a mão para a cara dele em resposta, e o toque leve como uma pena dos seus dedos fez-lhe fervilhar o sangue.

 

Pegou na mão dela e levou-a aos lábios. Ela tinha um pulso tão fino. Roçou com a boca na delicada parte inferior da mão.

 

Tu és mesmo real? perguntou ele.

 

Não sei, murmurou ela.

 

Ele puxou-a mais para si, apertando-a toda. Suavemente, beijou-a na boca.

 

Queres-me, Owen?

 

Sim.

 

Então possui-me. Agora. Faz com que eu seja real.

 

Ele abriu-lhe o roupão. Por baixo estava nua. Uma pele dourada e seios pequenos perfeitos, com mamilos morenos. E um misterioso triângulo escuro. Queria devorar cada centímetro dela, mas foi cuidadoso. Moderado. Controlado. Cuidadoso para não ferir sensibilidades. Para não forçar.

 

Ela fechou os olhos, parecendo deleitar-se com as suas carícias suaves e os lábios dele na sua boca e no pescoço. A sua respiração acelerou. Ele roçou as palmas das mãos pelos mamilos entumecidos e pôs as mãos nos seios. Cuidadosamente. Suavemente. Com medo de a assustar a qualquer momento e que ela fugisse.

 

Começou a beijar-lhe o pescoço e desceu pelo corpo, excitando-a com a língua, até meter na boca o botão do seio. O seu leve gemido fê-lo estremecer.

 

Lentamente, desabotoou desajeitadamente os botões da camisa e ela surpreendeu-o ao abrir-lhe o fecho dos jeans. A mão dela fechou-se em volta da sua erecção, fazendo-o suspirar de prazer e de surpresa.

 


Quando já não aguentava mais, levantou-a nos braços e levou-a para um dos sofás gigantes, depois sentou-se com ela no colo e beijou-a até ficar tonto com o sabor da sua boca.

 

Deita-te, disse ela, afastando-se dele.

 

Ele deitou-se encostado às almofadas moles e olhou para ela, que deixou cair o roupão aberto com um encolher de ombros. Ele nunca tinha visto tanta beleza. Foi invadido por uma onda de reverência, seguida de espanto e admiração.

 

Lentamente, ela afastou as coxas e tocou-o. Ele observou-a a pôr a mão no seu pénis grosso e erecto. Observou os seios dela a oscilar à luz da lareira. Observou-a enquanto lhe punha o preservativo. Depois fechou os olhos e sentiu a língua dela a percorrer-lhe as pálpebras, a boca e o peito.

 

Olha para mím, Owen.

 

Ele obedeceu e os olhos negros dela apoderaram-se dele, absorveram-no e levaram-no para o meio da sua escuridão. Depois ela elevou-se e moveu-se para a frente de modo que ele a sentiu, húmida e quente de encontro à sua barriga.

 

Não feches os olhos, sussurrou ela. Olha para mim.

 

Ela deslizou para baixo, engolindo-o no seu calor de veludo. Engolindo-o com os seus olhos negros, negros. Envolvendo-o tão completamente que ele ia ter de nascer de novo ou morrer definitivamente.

 

Ela estava a dormir. Deitada ao seu lado sob um cobertor no sofá. Ele ficou muito quietinho e escutou o ritmo da sua respiração, deixando-a descansar o mais possível. A luz cinzenta da madrugada começava a entrar na sala quando ele finalmente mexeu o seu braço entorpecido e disse, Lenore...

 

Os olhos dela abriram-se em sobressalto.

 

Está descansada. É de manhã.

 

Ela ficou descansada e afastou o cabelo da cara. Estava a sonhar, disse ela. Eu era pequena e estava descalça, e ia a andar ao lado da minha mãe. De mão dada. Queria ver a cara dela, mas ela era muito mais alta do que eu e sempre que tentava olhar para cima o sol fazia-me doer os olhos. Então olhei para o saco que ela levava na outra mão. O saco mexia-se e inchava.

 

Descemos para o canal. Ela ajoelhou-se e abriu o saco que estava cheio de enguias retorcidas e molhadas. “Boa sorte,” disse ela, e despejou as enguias na água e eu sabia que era a mim que ela queria desejar sorte e que estava a tentar proteger-me. Depois voltou-se e eu ia finalmente ver-lhe a cara, só que as enguias transformaram-se numa serpente que saltou subitamente da água e a agarrou. E eu não consegui segurá-la. Não consegui salvá-la.

 

Owen abraçou-a ainda mais.

 

Acreditas no poder dos sonhos? perguntou ela.

 

Acredito que há poderes sobre os quais não sei nada, respondeu ele cautelosamente.

 

Ela acenou com a cabeça. Há muitos anos que penso no meu pai quase todos os dias. Raramente penso na minha mãe. Ela fez uma pausa. No entanto é só a minha mãe que aparece nos meus sonhos.

 


Talvez porque vives na América, sugeriu ele, e por isso sentes-te como se vivesses perto do teu pai americano, enquanto a tua mãe e o país da tua mãe é para ti um mistério. E os sonhos estão cheios de mistério.

 

Ou talvez seja porque ela está morta.

 

O quê?

 

Talvez ela apareça nos meus sonhos porque está morta. Porque é a única maneira de ela poder vir ter comigo.

 

Bem... disse Owen. Talvez. Inclinou-se para o lado direito para poder olhar pela janela. Vamos ter algumas dificuldades em sair daqui com toda esta neve.

 

Joe Volpe vem buscar-me todas as manhãs.

 

Será que vem num limpa-neves? Ainda é uma boa distância desde o portão de entrada até à estrada. Owen ficou subitamente aborrecido. Concentrou-se na questão da neve, mas tinha mais a ver com a ideia de o Volpe, de olhar penetrante e temperamental, levar sozinho no carro a Lenore para o tribunal todos os dias.

 

O que fazia o Serian quando vocês ficavam presos pela neve? perguntou ele.

 

Ia buscar o tractor. A neve era um pretexto para brincar com o tractor.

 

Queres dizer que há uma pá para o tractor?

 

Ela encolheu os ombros. Está tudo lá em baixo no barracão do equipamento. Nunca foi usado por mais ninguém a não ser pelo Bram.

 

Prepara-te e faz qualquer coisa para o pequeno almoço, anunciou ele, divertido com a ideia de ir trabalhar lá para fora. Vou lá abaixo dar uma vista de olhos.

 

Encontrou roupa isoladora de protecção e luvas e botas para a neve num quarto de arrumações, junto da porta das traseiras. Ficavam-lhe ligeiramente mais folgadas do que as roupas do Al, por isso suspeitou que estava a vestir coisas de Bram Serian. Recusou-se a pensar nisso, afastando-o dos seus pensamentos juntamente com os pensamentos sobre Mike Wheeler que tinham emergido desde que tinha acordado com Lenore nos braços.

 

O barracão do equipamento era afinal um edifício fechado bastante novo, não muito diferente de uma garagem de tamanho desproporcionado. Lá dentro estava um tractor John Deere lustroso, um daqueles modelos tradicionais todos descobertos. Observou a fila de instrumentos com agrado. Bram Serian não tinha economizado em nada. Tinha todas as novidades em dispositivos para adaptar ao tractor instrumentos que um autêntico agricultor teria considerado como luxos ou como brinquedos.

 

Owen pôs o tractor a funcionar, adaptou-lhe a pá para a neve à frente e meteu-se ao trabalho. A neve era profunda, mas Serian tinha delimitado a estrada com árvores e arbustos, de maneira que se tornava fácil manter-se na direcção certa. Quando estava quase a chegar ao portão, olhou para trás e sentiu uma onda de satisfação ao ver o caminho macio que tinha acabado de abrir.

 

Abriu o portão e deixou-o ficar aberto enquanto ele saía para fazer uma viragem na estrada. Depois decidiu que, uma vez que havia muito tempo, devia limpar a estrada que seguia para a cidade, para ter a certeza que ninguém

 

iria mais tarde ficar atolado. Limpou a estrada até chegar ao cercado do Delegado Havlik com os cães a ladrar, onde viu que o delegado já tinha saído com o seu tractor e a estrada estava limpa a partir dali.

 

Owen serviu-se da entrada de Havlik para dar a volta e enquanto estava a fazer as manobras com o tractor para fazer a viragem, passou um carro na estrada. Era ainda muito cedo para ser Volpe a ir buscar Lenore e o carro não parecia ser o que ele se lembrava de ter visto Volpe a conduzir, mas quem mais podia ser? Não havia mais casas naquela direcção. Pôs o tractor na velocidade máxima e deslocou-se ruidosamente a caminho da Arcádia.

 

Quando chegou à casa, viu que não estava lá o carro. Provavelmente o condutor tinha-se perdido e estava agora atolado algures na estrada que ainda não tinha sido limpa do lado de lá da Arcádia. Ia ter de levar o tractor até ao caminho sem saída e procurar o carro, que provavelmente estava preso num local com neve acumulada. Mas precisamente no momento em que Owen estava a virar a roda avistou uns rastos de pneus que davam a volta ao barracão do equipamento. Como achasse aquilo estranho, aproximou-se, desceu do tractor e caminhou até às traseiras do barracão. Estava lá um carro estacionado, longe da vista da casa e da estrada e até da frente do barracão.

 

Cautelosamente, Owen aproximou-se do carro, mas estava vazio. Pensou que talvez fosse o carro de Bram Serian, que alguém tivesse finalmente trazido do local em que tinha sido abandonado pelos frequentadores da festa que tinham fugido há muitos meses. Mas por que o teriam levado à volta do barracão?

 

Tentou abrir a porta, que não estava trancada, por isso abriu-a e espreitou lá para dentro. O carro estava limpo, exceptuando uma chávena de café em papel. Abriu o porta-luvas, mas não havia nada lá dentro. Ao endireitar-se, viu dois pequenos livros de bolso no banco de trás. Estendeu o braço para os alcançar e leu o título do que estava no cimo. As Confissões de Santo Agostinho: A Autobiografia Clássica do Homem Que Viajou das Trevas da Ambição Mundana para a Constante Luz da Graça. Por baixo estava o mesmo Kierkegaard que tinha visto no quarto de dormir de Bram Serian Medo e Tremor e A Doença Até à Morte.

 

Levou os livros consigo para casa, extremamente confuso, com medo de libertar a sua imaginação. Deu a volta e entrou por uma das portas traseiras e tirou a roupa de agricultor; depois dirigiu-se para a cozinha. E enquanto ia no corredor ouviu claramente a voz de Lenore a chamar, Jimmy?

 

Oh, disse ela, quando Owen entrou na cozinha.

 

Quem está aqui, Lenore? É o carro do Bram que está ali atrás do barracão?

 

Sim, é o carro do Bram. Emprestei-o a uma pessoa para o usar.

 

Mas por que está por detrás do barracão?

 

Anda cá, disse ela, dando-lhe um prato de bolachas torradas. Come depressa. Tens que ir embora daqui a pouco. Antes de Joe Volpe chegar aqui.

 

Mas a quem emprestaste o carro? Quem está aqui? De quem são estes livros? E colocou os livros em cima do balcão.

 

Ela relanceou um olhar nervoso para os livros e a seguir para a porta atrás de Owen. Estava vestida com um fato castanho deselegante, com o cabelo esticado e apanhado atrás da nuca e parecia quase uma desconhecida.

 

Também tenho amigos, Owen. E eles estacionam onde lhes apetece. Agora, tens de te despachar.

 

Mas o que se passa? perguntou Owen. Estás a esconder alguém de mim?

 

Ela fitou-o com um olhar cheio de raiva controlada. Tu não podes saber tudo, Owen.

 

Ontem à noite não te importaste que eu ficasse a saber quase tudo sobre ti, pois não?

 

Ela riu-se desdenhosamente. Vocês os homens são todos iguais. Achas que fazer sexo é o mesmo que conhecer uma pessoa.

 

A ferroada das suas palavras foi tão violenta que não conseguiu responder.

 

Põe-te daqui para fora, disse ela, mandando-o embora.

 

Não.

 

Ela avançou rapidamente para ele mas ele agarrou-lhe o braço e obrigou-a a rodar de maneira a ficarem frente a frente. Subitamente, ela parecia estar a olhar para ele de um lugar distante e intocável.

 

Eu não tenho tempo para jogos, Owen.

 

É o que é isto para ti, um jogo?

 

Não, disse ela calmamente. Isto é um julgamento por homicídio. O meu julgamento por homicídio.

 

Ele largou-a e deixou cair os braços para o lado, submisso. Desculpa.

 

Se dizes isso com sinceridade, então despacha-te, por favor.

 

Ela ficou à espera fora da porta da casa de banho, enquanto ele vestia a sua roupa limpa. Ela já tinha juntado as suas coisas, portanto ele não precisava de fazer mais nada a não ser ir-se embora.

 

Ainda vais fazer a chamada telefónica para a Milly? perguntou ela enquanto o acompanhava até à porta de entrada.

 

Sim. Ao meio-dia.

 

Ela acenou com a cabeça. Telefona do hotel. Eu digo-lhes na recepção e deixo lá a minha chave para ti. Depois... talvez tenhas a possibilidade de esperar no quarto e eu vou lá ter logo que seja suspensa a sessão no tribunal para o almoço. Assim a imprensa não nos verá juntos e podes contar-me o que descobriste sobre a Milly.

 

Certo, disse ele, reprimindo o impulso de responder com um sarcástico Sim, patroa, ao mesmo tempo que se sentia aliviado porque ia poder voltar a estar com ela.

 

Ela estendeu a mão para o puxador da porta, depois hesitou. Estou-te muito grata, Owen. Ninguém se teria esforçado tanto como tu.

 

Ainda não terminei, disse ele. Vou continuar a trabalhar nisso. Queria dar-lhe um beijo de despedida mas não o fez, porque esta não era a mesma mulher com quem tinha feito amor na noite passada. Esta era a mulher distante e protegida da sala de audiências do tribunal.

 

Afastou-se da Arcádia no carro, atormentado pelas dúvidas. Quem estava ela a esconder? Que segredos estava a guardar? E porquê?

 

O caminho da Arcádia para o tribunal demorou menos de trinta minutos. Ainda era muito cedo quando Owen chegou, por isso estacionou o carro e percorreu a pé os três quarteirões até ao café para tomar o pequeno almoço.

 

Sentia-se estranho. Como se tivesse aparecido, vindo de uma época tenebrosa, intemporal. Ou de um longo sonho surrealista. Também se sentia extremamente agitado, irritado e impotente. Tirou o bloco de notas e começou a escrever coisas. Transpondo o quebra-cabeças para o papel, onde era mais fácil de gerir.

 

A empregada de mesa apareceu para voltar a encher-lhe a chávena pela terceira vez, dizendo, Aqui vai, querido. Parece-me que era capaz de tomar mais disto.

 

Ele mal levantou os olhos para ela, antes de se debruçar sobre o bloco de notas, descrevendo ao pormenor o que achava que tinha acontecido, resumindo o que sabia e o que esperava descobrir. A escrita acalmou-o. Acalmou-o. Quando ficou satisfeito por ter escrito tudo, endireitou-se para acabar de beber o café. Indolentemente virou a folha para uma página em branco e começou a fazer desenhos. Círculos que enchia de pontos de interrogação. Pequenas linhas que evoluíram para um desenho do portão da Arcádia. Depois escreveu com letras maiúsculas...

 

JIMMY?

 

KIERKEGAARD? CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO?

 

QUEM É O JIMMY?

 

POR QUE ESTÁ ELA A ESCONDÊ-LO?

 

E ficou novamente irritado. Irritado e magoado pelos segredos dela e pela maneira como o tinha mandado embora.

 

Owen! O que o trouxe aqui tão cedo? Era a voz da Holly. Levantou os olhos e viu a Holly e a Marilyn. A Marilyn acenou-lhe com a mão e continuou a falar para a empregada de mesa, mas a Holly foi até à mesa dele e debruçou-se sobre o seu ombro.

 

O que está a fazer? perguntou ela num tom jovial. Tem algum título escaldante?

 

Fechou o bloco de notas e esboçou um sorriso forçado. Olá, Holly. Como vai o trabalho da informação?

 

Assim-assim. Ela sentou-se em frente dele. Para dixer a verdade foi assim um fim de semana desinteressante. Pôs-se a brincar com o doseador de açúcar. Encontrou o meu recado no sábado à noite?

 

Encontrei. Obrigado pelo convite, mas não foi possível.

 

Uhmm. Ela rasgou um canto de um guardanapo de papel e enrolou-o numa bolinha. Como vai o seu trabalho?

 

Vai bem.

 

Deve ser difícil, disse ela. Trabalhar tanto sem ter quaisquer garantias.

 

Tento não pensar nisso dessa maneira. Ele lançou um olhar para a Marilyn. Vocês as duas vão sentar-se para tomar o pequeno almoço?

 

Não. Só passámos por aqui para levantarmos o que encomendámos para o grupo. Fazemo-lo à nossa maneira no tribunal todas as manhãs, depois juntamo-nos para tomar o café com pãezinhos antes da hora do julgamento. Se soubesse que você ia chegar cedo, já lhe teria falado nisso.

 

Para a próxima vez já sei, disse ele.

 

Ela continuou a rasgar e a enrolar o guardanapo. Hoje a Marilyn propôs que fôssemos almoçar a um pequeno restaurante que faz uns preços muito bons e que fica a alguma distância da cidade. Vamos de carro pela auto-estrada e há três pessoas que levam o carro. Provavelmente vou com a Pat e se quiser pode vir connosco ou...

 

Hoje não... obrigado. Tenho de fazer uns telefonemas.

 

A decepção manifestou-se-lhe na cara. Ohhh... tem a certeza?

 

Sim. Tenho umas indicações importantes que preciso de seguir o mais rápido possível.

 

Então a Marilyn juntou-se-lhes. Ainda demora uns cinco minutos, anunciou ela. Alguém acabou o café e agora têm de fazer mais uma cafeteira dele. Olhou para o Owen franzindo as sobrancelhas. Está com muito mau aspecto. Teve uma má noite?

 

Trabalha demais, disse a Holly.

 

Sabem quem vai estar na barra das testemunhas esta manhã? perguntou Owen.

 

George Fugate. O dono do armazém de ferragens onde ela comprou o candeeiro.

 

Owen bateu distraidamente com a esferográfica na mão por momentos. O primeiro nome do miúdo vizinho é Tommy, certo? Não é Jimmy.

 

Certo, responderam ambas as mulheres.

 

Há algum Jimmy ligado a este caso?

 

As duas mulheres trocaram olhares e a Marilyn encolheu os ombros. Só se for James Collier. Parece-me que me lembro que às vezes dava pelo nome de Jimmy.

 

James Collier? O nome era muito familiar a Owen, mas não conseguia situá-lo.

 

O amante desaparecido, insistiu a Holly com um sorriso malicioso.

 

Ninguém tem a certeza disso, Holly. É isso que torna o mistério interessante.

 

Refresque-me a memória, disse Owen. Quais eram as particularidades de Collier?

 

A Marilyn inclinou-se para a frente, saboreando o seu papel de informadora. O que sabemos é que o Collier estava na Arcádia na noite do homicídio e havia rumores de que estava lá devido a uma relação romântica. A polícia tem procurado falar com ele e a acusação daria tudo por tê-lo na barra das testemunhas... mas o homem desapareceu. Puff! Sem deixar rasto.

 

O mais estranho de tudo isso, acrescentou a Holly, é que ele não era o tipo de homem que se esperasse que se envolvesse nesta... nem que desaparecesse. Ele era um irmão de uma congregação religiosa católica... não era bem um padre, mas quase... e ensinava numa escola de rapazes muito prestigiada.

 

Um cidadão proeminente, salientou a Marilyn. Escreveu artigos sobre a moralidade e serviu em dezenas de comissões para voltar a pôr Deus nas escolas e ensinar aos adolescentes a abstinência. Esse género de coisas.

 

Os factos penetraram em Owen como flechas de pontas ácidas. Jimmy... James. Seria natural que um homem religioso lesse Kierkgaard e Santo Agostinho.

 

A Holly riu-se com a expressão na cara de Owen. O enredo está a complicar-se, heim?

 

Você não estava cá nas primeiras sessões com o grande júri e nas audições que antecederam o julgamento, por isso perdeu de certo modo a agitação à volta do Collier, explicou a Marilyn. Em primeiro lugar, toda a gente queria saber o que é que um homem como o Irmão James estava a fazer na Arcádia. Havia rumores de que sofria por amor e estava obcecado. Um homem desfeito. Mas nunca ninguém teve a oportunidade de lhe perguntar porque é que, logo que o seu nome apareceu na investigação, James Collier desapareceu.

 

Permitam-me que apresente umas teorias acerca do que lhe aconteceu, sugeriu a Holly com ares de convencida. A Lenore seduziu-o para o ajudar a matar o Serian. Depois, quando a situação começou a complicar-se, matou também o Collier. Mas desta vez arranjou uma solução melhor para se desfazer do corpo.

 

A empregada chamou para lhes dizer que a encomenda estava pronta. A Marilyn foi à caixa registadora e começou a procurar na sua carteira.

 

Vem connosco? perguntou a Holly.

 

Ainda não, disse Owen, esforçando-se por parecer normal. Eu já lá vou ter dentro de alguns minutos.

 

A Holly não se mexeu para se juntar à Marilyn e ele pensou que ela ia oferecer-se para esperar por ele, por isso murmurou rapidamente qualquer coisa sobre ir à casa de banho e desapareceu. Demorou-se bastante tempo no pequeno cubículo, alternando entre a vontade de dar murros na parede e um desespero esgotante e degradante. Lenore estava a esconder James Collier na


Arcádia. O amante desaparecido. Qualquer explicação que pudesse encontrar para isso era repulsiva e sórdida. Por fim, quando tinha a certeza de que era seguro, saiu e voltou para a mesa.

 

O seu bloco de notas e a esferográfica estavam ainda em cima da mesa, mas o bloco estava aberto na primeira página em branco e tinha uma mensagem da Holly. SE NÃO ESTIVERMOS JUNTO DA SALA DE AUDIÊNCIAS, PODE ENCONTRAR-NOS EM BAIXO NO ÁTRIO, JUNTO DAS MÁQUINAS DE VENDA AUTOMÁTICA. Tinha assinado H & M... Holly e Marilyn.

 

Rasgou o recado, amarrotou-o e deixou-o no tabuleiro, depois saiu do café. Havia neve amontoada por todo o lado, não de forma natural, mas ao longo das bermas sujas onde tinha sido amontoada por limpa-neves e por pessoas particulares empunhando pás. Arqueou os ombros e caminhou lentamente, convencido de que o seu aspecto devia ter mudado, que devia estar com um ar tão tremendamente estúpido, tal como se sentia.

 

Avistou o tribunal. Ainda tinha uma tarefa a fazer. Um livro para escrever. Obrigações a cumprir. Dinheiro a ganhar.

 

Teve de se concentrar nisso e recompor-se.

 

Sentou-se no banco ao lado da Holly, apenas quando faltavam alguns minutos para começar a audiência. Tanto a acusação como a defesa já se encontravam sentadas à mesa. Evitou olhar na direcção de Lenore.

 

A Holly deu-lhe um cumprimento estranhamente discreto, sem olhar para ele, mas Pat Melville, que estava sentada do outro lado dela, inclinou-se para ele dizendo, É verdade? Não pode sentar-se aqui sem me contar.

 

Owen ficou a olhar para ela e a Pat riu-se. Não olhe para mim dessa maneira. Eu só quero saber se conseguiu mesmo ir ver a Arcádia.

 

Como é que você...? O seu desnorteamento era tal que não conseguiu terminar a pergunta.

 

Foi um erro fatal, meu querido. Você estava numa cabine telefónica aqui no tribunal e um repórter vigilante esteve a ouvir parte da sua conversa sem ser notado. Foi o principal motivo de conversa durante o café desta manhã.

 

Foi onde esteve durante este fim de semana, não foi? perguntou a Holly em tom acusador.

 

Sim, consegui ir ver a casa.

 

- Bemmm... insistiu a Pat. Conte-nos!

 

É quase indescritível, disse ele. Como se tivesse sido construída para ser uma casa assombrada.

 

- E como era ela! perguntou a Holly, num tom malicioso.

 

Não consigo descrevê-la, disse ele, procurando controlar a sua amargura. Não sei como é ela.

 

A Holly franziu as sobrancelhas. E os rumores de que ela e aquele detective com olhos de tubarão... como é que ele se chama...

 

Volpe, completou a Pat.

 

Sim. Que ela e o Volpe têm uma relação romântica... Notou algum sinal disso?

 

Ele leva-a de carro todas as manhãs, mas não me parece que isso prove alguma coisa.

 

A Pat estendeu o braço e deu-lhe uma palmadinha na mão. Está muito bem, disse ela. Nós compreendemos. Não pode contar-nos muita coisa porque isso ia dar cabo do sucesso do seu livro. Deu uma cotovelada na Holly. Mas não quer dizer que não possamos ficar verdes de inveja... não é verdade, Holly?

 

A Holly não reagiu. A sua atitude manteve-se incaracteristicamente discreta. Owen suspeitou que ela se sentiu ferida nos seus sentimentos, em parte pelo facto de ele ter desaparecido no café e em parte por ter descoberto que ele lhe tinha escondido a sua ida à Arcádia.

 

São horas de espectáculo, alguém disse atrás deles num sussurro alto e mais uma vez a pesada máquina do povo contra Lenore Serian se reanimou.

 

George Fugate era um homem de aspecto severo, vestido com um fato castanho com bastante uso, que tinha sem dúvida servido durante anos como vestuário para funerais e casamentos. Tinha o comportamento íntegro de uma pessoa que cumpre o seu dever.

 

Spencer Brown levou-o a contar uma breve história da sua loja de ferragens e novidades, demonstrando que o homem era um membro respeitado da comunidade, um bom comerciante e um observador perspicaz do comportamento humano. O diário do armazém de Fugate daquele dia foi apresentado como prova, assim como o recibo específico, escrito à mão, das compras de Lenore.

 

Agora, senhor Fugate, pode contar-nos o que aconteceu e o que lhe passou pela cabeça... quais foram os seus pensamentos... quando a senhora Serian entrou na sua loja?

 

Com certeza. Lembro-me muito bem. Ouvi a campainha que está por cima da porta e soube que alguém tinha entrado no meu estabelecimento, por isso dirigi-me para a entrada. Fiquei muito surpreendido ao ver que era a senhora Serian.

 

Por que ficou surpreendido?

 

Porque depois de tantos anos a viver ali, não tinha vindo à minha loja mais de uma dúzia de vezes. E nas outras vezes tinha vindo sempre acompanhada pelo marido.

 

O que aconteceu a seguir?

 

Cumprimentei-a como cumprimento todos os clientes, normalmente com um comentário sobre o tempo que está naquele dia.

 

E o que respondeu ela?

 

Ela disse olá, mas parecia estar muito nervosa. Muito... desconfiada. Olhando para trás por cima do ombro e para todos os lados como se estivesse preocupada que alguém a visse.

 

Ela deu uma olhada pela loja, como uma compradora normal?

 

Protesto, Meritíssimo! gritou Rossner sem se levantar do seu lugar.

 

Reformule a última pergunta, Dr. Brown, ordenou o juiz.

 

O que fez em seguida a senhora Serian?

 

Ela não olhou à volta nem perdeu um segundo. Limitou-se a entregar-me duas listas de compras.

 

É um procedimento normal na sua loja, que os clientes levem listas, mesmo quando estão lá pessoalmente e podiam dizer-lhe simplesmente o que queriam?

 

Sim. É de certo modo um retorno à maneira antiga de fazer as coisas e eu gosto de conservar os costumes antigos. Os clientes normalmente entram e dão uma vista de olhos durante algum tempo. Depois dão-me uma lista e conversamos um pouco e eles continuam a olhar à volta enquanto eu avio o seu pedido.

 

Nesse caso teria sido invulgar que a senhora Serian entrasse e lhe entregasse uma lista e depois lhe dissesse em voz alta que também queria um candeeiro e petróleo?

 

Sim. Isso teria sido estranho.

 

O senhor disse que havia dois papéis, senhor Fugate. Será que uma das listas era assim tão longa que enchia a página e tinha de ser continuada na outra folha?

 

Não, não era esse o caso de modo nenhum. O primeiro papel tinha uma lista de sete coisas que não enchia a página nem de perto nem de longe. Tinha sido escrita por Natalie Raven que era quem normalmente fazia as listas das compras para a casa e era quem habitualmente me entregava a lista pessoalmente e era costume dela...

 

Protesto, Meritíssimo, disse Rossner, abanando a cabeça em sinal de insatisfação. O senhor Fugate também é especialista em caligrafia para além de ser comerciante?

 

Seguiu-se uma breve conversa privada provocada por isto e em seguida Fugate voltou ao assunto, corrigindo as suas afirmações para dizer que se tinha familiarizado com as listas de Natalie Raven e a que lhe foi apresentada naquele dia parecia ser uma das listas dela.

 

Diga-nos, por favor, senhor Fugate, o que estava escrito no segundo papel que a senhora Serian lhe entregou naquele dia?

 

Era outra lista numa letra completamente diferente... Era uma lista que me pareceu ter sido feita por uma pessoa diferente de Natalie Raven, porque a menina Raven sempre fazia as suas listas com uma letra muito clara e aquela estava escrevinhada. Um candeeiro a petróleo e dois frascos grandes de petróleo, era tudo o que a lista continha.

 

Teria havido espaço suficiente na lista de Natalie Raven para o candeeiro e o petróleo serem acrescentados ao fundo?

 

Com certeza.

 

O senhor tirou algumas conclusões... perante isso? Brown fez uma pausa e verificou as notas. Notou algum motivo para haver duas listas?

 

Eu supus... O meu bom senso disse-me que a lista longa era a lista de Natalie Raven, das necessidades da casa e a outra... o candeeiro e o petróleo... tinham sido pedidos por outra pessoa e que ninguém tinha pedido a Natalie Raven que acrescentasse o candeeiro e o petróleo à sua lista maior.

 

Alguém que, por um motivo qualquer, não disse a Natalie Raven que acrescentasse o candeeiro e o petróleo à lista grande das coisas da casa?

 

Sim.

 

Em seguida, Brown levou Fugate a fazer uma descrição da factura e do acondicionamento das compras no carro, demorando-se na forma como Lenore tinha transportado o candeeiro e o petróleo e como os tinha colocado em primeiro lugar, apesar de ele estar mais preocupado com o facto de algum objecto se poder quebrar.

 

Owen não conseguia concentrar-se. E também não conseguia tomar notas porque a mão com que escrevia estava num punho cerrado. A insinuação era que Lenore tinha escrito a encomenda do candeeiro e do petróleo, e Owen sabia que isso era impossível. Não só ela não tinha escrito aquilo, como podia nem saber o que lá estava escrito. Por que não teria ela comunicado a Rossner uma coisa tão importante?

 

Lenore estava a proteger alguém. Era a única explicação lógica. Como é que ele não tinha visto isso antes? Todo o estranho comportamento dela, todos os segredos que escondia do seu próprio advogado... estava a proteger alguém. Estava disposta a sacrificar-se por essa pessoa. Era sem dúvida James Collier. Um amante que tinha renunciado à sua fé e à sua vocação por causa dela.

 

Teria sido James Collier que tinha escrito a encomenda do candeeiro a petróleo e dos dois frascos de petróleo? Teria sido James Collier que tinha traçado com ela um plano para se livrarem de Serian? Ou James Collier podia ter actuado sem o conhecimento dela tão desesperado por possuí-la que tinha de destruir o homem que se encontrava no seu caminho... contudo não tão desesperado que não tentasse fazer com que parecesse um acidente.

 

Ou teria Lenore usado James Collier para matar Bram, tal como estava a usar Owen para encontrar o pai? Teria ela usado Collier para planear um acidente e depois o acidente correu mal e agora estava a esconder Collier porque, com o seu testemunho, o estado teria a prova definitiva da sua culpa, enquanto que agora não tinham mais do que um caso circunstancial?

 

Brown deu por terminado o seu interrogatório à testemunha e Rossner lançou-se ao contra-interrogatório, atirando-se como uma seta e beliscando o testemunho de George Fugate, infligindo-lhe pequenas feridas.

 

E está então a dizer, senhor Fugate... Será correcto dizer, senhor Fugate... É verdade, senhor Fugate... O advogado ridicularizou o homem e a sua versão dos acontecimentos e a sua afirmação de conseguir reconhecer a caligrafia de todos os seus clientes. Por fim, até conseguiu descobrir um ressentimento inflamado por parte de Fugate. O homem tinha andado zangado durante quinze anos pelo facto de Serian comprar a maior parte das coisas que precisava a Stanley Cantor e não no armazém de ferragens e novidades de Fugate. No ponto de vista de George Fugate, os Serians mereciam tudo o que tinha acontecido.

 

Fugate abandonou o lugar da testemunha e Owen permitiu-se olhar pela primeira vez para Lenore. A vista das suas costas direitas e do seu pescoço elegante reflectiu-se-lhe no peito. Lenore. Lenore. Ainda sentia o perfume do corpo dela. Que parvo tinha sido em acreditar que ela era sua. Ou mesmo que houvesse alguma hipótese de que pudesse vir a ser sua. Ela tinha estado a usá-lo. Cada palavra e cada gesto e cada toque tinha sido uma mentira.

 

De repente foi dominado por uma onda de qualquer coisa intensa a que não conseguia dar um nome. Anseio? Desejo ardente? Desejo era demasiado simples e puramente físico. Contudo, era tão físico como emocional. Era fome, tanto do corpo como do espírito.

 

Pensava nela. Naquele corpo dourado e elegante. No negrume dos seus olhos. Na sensação erótica do seu cabelo espalhando-se-lhe no peito. Estava perdido. Sentia um vazio dentro de si, que só podia satisfazer se voltasse a possuí-la novamente.

 

Oh, Deus... seria culpada? Absolutamente culpada? Parcialmente culpada? Culpada de homicídio? Culpada por conspiração? Culpada por usá-lo e traí-lo? Que provas tinha ele? A conjectura não podia estabelecer culpa. Tinha de pôr de lado a sua raiva e os ciúmes... sim, ciúmes... aquele sentimento repulsivo que nunca acreditara ser capaz de ter... Tinha de o superar e voltar a pôr a sua capacidade racional a controlar. Não só por causa do seu trabalho, mas também por causa de Lenore. Não podia condená-la por tão pouco. Não enquanto houvesse alguma sombra de dúvida de que ela pudesse estar inocente.

 

E portanto, Dr. Oliver... estava Charlie Rossner a dizer, e Owen apercebeu-se que tinha perdido todo o interrogatório de Spencer Brown ao Dr. Samuel Oliver, o psiquiatra que a acusação tinha encontrado para apresentar opiniões de um especialista sobre a pirofobia, ou o medo do fogo.

 

... na sua experiência com pessoas que sofrem de pirofobia... alguma vez, Doutor, conheceu algum doente que fosse voluntariamente ao local onde tivesse havido um incêndio, como fez Bram Serian na sua busca de materiais artísticos?

 

Não. Mas há anomalias individuais em todas as situações.

 

E alguma vez conheceu alguém que sofresse de pirofobia e usasse um isqueiro a gás butano, com uma chama que aqui foi descrita como “uma chama enorme”?

 

Não. Mas, mais uma vez, há determinadas anomalias que temos de ter em consideração.

 

Mas uma pessoa que fosse voluntariamente a locais de incêndio e usasse um isqueiro a gás butano com uma chama excessivamente grande para acender os próprios cigarros não se encaixaria na sua definição. Rossner agitou uma revista médica que continha um artigo de Oliver de pirófobo ou uma pessoa que tivesse medo do fogo, pois não?

 

Não. Certamente que não.

 

E não é verdade, Doutor, que o senhor nunca conheceu Bram Serian e que não tem conhecimentos médicos sobre ele?

 

É verdade.

 

Não é verdade que em todos os registos que o senhor viu e em todas as opiniões que ouviu não há qualquer indicação de que Bram Serian tivesse alguma vez procurado ajuda psiquiátrica por causa de pirofobia ou de qualquer outro medo de alguma coisa?

 

É verdade.

 

Os ponteiros do relógio indicavam que eram doze horas. Owen fechou o seu bloco de notas e pegou no casaco e no saco. Tanto a Holly como a Pat olharam para ele com ar jocoso. Chamadas telefónicas, sussurrou ele para a Holly. Até depois do almoço.

 

Enquanto deslizava pelo banco, Lenore voltou-se e olhou para ele por cima do ombro. A súbita troca de olhares apanhou-o desprevenido e susteve a respiração. Esqueceu-se de continuar a deslizar. Quando se recompôs e se afastou, tinha a certeza que, tanto a Holly como a Pat tinham reparado. Provavelmente toda a assistência tinha reparado.

 

Agora estava paranóico quanto ao potencial de intriga que se ia gerar. Contornou o quarteirão, seguiu por uma viela e entrou no hotel pela porta de serviço. O recepcionista soube imediatamente quem era e deu-lhe a chave que Lenore lhe tinha deixado.

 

A chave abriu a porta do quarto onde tinha tido a entrevista com ela. Entrou no quarto em silêncio e sentou-se junto do telefone, depois marcou o número mecanicamente.

 

Estou, disse a voz de uma mulher após três toques.

 

Sim... eu telefonei ontem à noite por causa de Milly Corwin.

 

A mulher riu com um riso abafado. Não acha isto estranho? Estivemos a falar da Milly depois de sair da igreja a semana passada e agora aparece esta chamada para ela.

 

De facto é estranho, concordou ele.

 

A Milly tinha este número quando vivia aqui com o Lois. Fiquei surpreendida pelo facto de o meu marido perceber logo sobre quem o senhor estava a falar.

 

Eu soube imediatamente, Neddy! ouviu-se a voz de um homem vinda do fundo a falar alto.

 

A senhora sabe onde vive a Milly agora? perguntou Owen.

 

Parece-me que sim. A Milly escreve-nos regularmente daquele lugar. Chama-se Golden Age Village. E fica mesmo à saída de Wichita. Ela diz que é muito bonita apartamentos individuais e coisas assim mas sabe que não havia ninguém como a Milly para dizer coisas, e se quer que lhe diga, um lar de idosos é um lar de idosos, e é mais ou menos como pôr um vestido num porco para tentar transformá-lo noutra coisa qualquer.

 

Por acaso não tem aí a direcção dela ou o número de telefone?

 

Tenho-o mesmo aqui para lho dar. Falei com três senhoras do grupo da minha igreja para ter a certeza de que estava certo.

 

Leu-lhe a informação, depois ele agradeceu-lhe e finalmente convenceu-a de que tinha de desligar. Já estava a imaginar o burburinho que tinha provocado. As senhoras no grupo da igreja iam andar a falar durante semanas da pessoa que queria telefonar à Milly.

 

Ligou para o número de Wichita.

 

Daqui fala Milly Corwin, disse uma voz idosa com precisão.

 

Bom dia, Menina Corwin. Daqui fala Owen Byrne. Estive mesmo agora a falar com a Neddy em Arcádia. Na verdade marquei o número para tentar falar consigo e ela disse-me que a senhora estava agora a viver em Wichita.

 

E eu conheço-o, jovem?

 

Não. Não me conhece. É difícil explicar, mas se estiver disposta a aturar-me por alguns momentos.

 

Desde que não tenha despesa com isso, concordou ela cautelosamente.

 

Não sou nenhum vendedor, assegurou-lhe Owen. Depois hesitou, pondo-se a imaginar como havia de explicar quem ele era. O motivo por que lhe telefono são os seus sobrinhos.

 

E o que se passa com os meus sobrinhos?

 

O Bram e o Al, certo? E... o Luke?

 

O Bram e o Al e o Luke! Isto é alguma brincadeira?! Vou acusá-lo à polícia, jovem. Posso ser velha, mas não estou senil nem confusa, portanto pode arrumar o seu saco de truques e ir tentar enganar outra pessoa.

 

Não! por favor. Isto não é nenhuma brincadeira. É uma coisa muito séria e deu-me muito trabalho conseguir localizar a senhora. Eles podem ter mudado de nome. Verifico que posso não ter os nomes verdadeiros.

 

Estão mortos, não estão? disse ela delicadamente. Foi por isso que me telefonou, não foi? Eu sabia... parou subitamente. Bem, diga o que tem a dizer.

 

Desculpe. Um deles está morto. Lamento muito.

 

Oh meu Deus. Meu Deus... quem?

 

Era o Bram.

 

Bram? Como é que aquele rapaz pôde chamar-se Bram?

 

Serian, disse Owen. Bram Serian.

 

Valha-me Deus. A minha irmã deve estar a revolver-se no túmulo. Ficou em silêncio por instantes, assimilando a notícia. Mas o outro está vivo? O meu outro rapaz está bem? a sua voz subiu de tom, na expectativa.

 

Ninguém sabe onde está o Al, mas estava vivo e estava bem quando a cunhada o viu pela última vez.

 

Al... Não posso acreditar que os dois mudaram de nome. Espere, disse cunhada?

 

Sim. O Bram era casado. Estou a falar consigo em parte em nome da viúva. Alguém já devia ter contactado consigo há mais tempo, mas ninguém sabia da existência da senhora. Só recentemente descobrimos uma referência a si numa carta antiga.

 

Aqueles rapazes... suspirou com tristeza.

 

Preciso de estar com a senhora... de falar consigo sobre os seus sobrinhos... de descobrir factos. Se eu pudesse...

 

Agora espere um pouco, disse ela com determinação. Se os rapazes guardavam segredos, então eu tenho de respeitar isso e guardar silêncio.

 

Ansiosamente, Owen procurou uma maneira de argumentar, a fim de desviá-la dos seus propósitos. Estava tão próximo do passado de Serian. Não estava disposto a deixá-lo fugir.

 

A senhora estaria a ajudar a viúva do seu sobrinho. Todas as perguntas sem resposta sobre o marido dela vão pesar sobre ela para o resto da sua vida.

 

E estaria a ajudar o Al, porque, talvez se tivéssemos mais informações sobre ele, pudéssemos encontrá-lo e certificar-nos de que se encontra bem.

 

Por que não havia de estar bem?

 

Bem... o motivo por que vivia com o irmão é que ele tinha muitos problemas. Problemas emocionais. Problemas de relacionamento com as outras pessoas.

 

Quer dizer que não estava bom da cabeça?

 

Sim. E não sabemos se ele agora está a reagir bem ou não.

 

Ela soltou um suspiro. Eu sou a guarda da família, sabe. Quando eu deixar de existir deixará de haver família. Será enterrada comigo. Os rapazes não quiseram saber nada disso. Pensei que mudassem com a idade, mas havia demasiados ressentimentos.

 

Soltou mais um suspiro. Se a cabeça do Benjamim não está boa, parece-me que sou em parte culpada disso.

 

Então pode ajudar-nos? Pode responder-me a algumas perguntas?

 

Talvez umas poucas. Se você puder ajudar a encontrar o meu rapaz que está desaparecido.

 

Posso ir falar consigo amanhã?

 

Faça como quiser.

 

Vou apanhar um voo para Wichita logo que puder... hoje ou amanhã de manhã.

 

Ela estava a chorar. Muito suavemente. Procurando disfarçar.

 

Há alguém a quem eu possa telefonar? Uma amiga ou uma vizinha que possa ir aí ficar consigo por algum tempo?

 

Jovem, não há nada que você nem ninguém possam fazer por mim. Adeus.

 

As veias de Owen estavam cheias de adrenalina quando telefonou para a companhia aérea para fazer uma reserva no voo para Wichita naquela noite. Estava resolvido. Mais umas horas e ia estar na posse da verdade. Ia desvendar os mistérios e ”conhecer” Bram Serian. O seu livro ia fazer história. Talvez até conseguisse encontrar as respostas que Lenore queria tão desesperadamente. Talvez acabasse por ajudá-la apesar de tudo.

 

Procurou não pensar nas despesas. Depois de ter devolvido o carro alugado e de pagar a conta, a viagem para ir ter com Milly Corwin ia quase acabar com o que restava do seu dinheiro. Depois não fazia ideia de como ia conseguir comer e pagar as despesas de transporte. Mas não podia deixar que isso o impedisse. Era isso mesmo.

 

Ouviu-se ruído no átrio e Owen foi pela porta de ligação para a sala de guerra quando Paul Jacowitz entrou, seguido de Rossner e depois Riley, Lenore e Volpe. Rossner e Jacowitz estavam envolvidos numa discussão sobre o julgamento e mal notaram a presença de Owen. Volpe ajudou Lenore a tirar a capa. Ela tinha os olhos cheios de dúvidas. Owen recusou cruzar-se com eles ou dar-lhe alguma indicação do êxito da sua chamada.

 

Com licença, disse Lenore a Rossner. Preciso de falar com Owen em particular durante alguns minutos.

 

Rossner fez um gesto para que se retirassem e Owen seguiu-a para o quarto. Falaste com ela? perguntou-lhe Lenore logo que a porta se fechou.

 

Owen sentou-se, dizendo a si próprio que tudo o que queria fazer era manter um comportamento profissional, mas compreendendo que também tinha vontade de a torturar.

 

Referes-te à chamada telefónica? perguntou ele.

 

Claro que me refiro à chamada. Conseguiste contactar com a Tia Milly?

 

Sim. Consegui. Vive no Kansas. Hoje à noite parto no avião para Wichita e vou encontrar-me com ela amanhã de manhã.

 

Não podias perguntar-lhe tudo ao telefone?

 

Owen começou a explicar, mas parou. Não tinha que dar quaisquer explicações a Lenore.

 

Não. Não podia.

 

Ela cruzou os braços e caminhou lentamente pelo pequeno rectângulo de chão. Quem me dera poder ir contigo. Já falta pouco. Sinto-o. Todo o passado do Bram está a desvendar-se e o meu passado também lá está.

 

Mesmo assim, podes não encontrar nenhuma das respostas que queres, Lenore.

 

Encontro, encontro, disse ela com veemência. A Tia Milly há-de saber alguma coisa.

 

Owen observou os passos dela. O seu fato era tão pouco atraente que parecia quase ridículo. Estas são as roupas que usas para ir ao tribunal?

 

Ela parou e ficou a olhar para ele. Eu não tinha roupa apropriada para o julgamento. O Rossner disse-me que arranjasse coisas com laços e golas altas e blusas folgadas. Encomendei-as por catálogo.

 

Escolheste propositadamente coisas que parecessem... hesitou.

 

Ela esboçou um leve sorriso de escárnio. Não gostas do meu guarda-roupa de assassina?

 

A sua determinação de se comportar com profissionalismo desapareceu e saltou da cadeira e chegou quase a fazer o que lhe apetecia fazer desde aquela manhã, que era dar um murro na parede. Mas conteve-se. Controlou-se. Controlou a sua fúria e em vez disso transformou-a em palavras, dizendo, Eu sei quem estás a esconder. James Collier.

 

Ela endireitou-se sem nunca desviar os olhos dos dele e disse, E o que vais fazer com isso?

 

Então ele teve de se desviar dela, porque a sua fúria evaporou-se e sentiu-se pequeno e vazio.

 

Nada, disse ele.

 

Não é o que parece, Owen.

 

Contigo nunca é o que parece, não é verdade?

 

Ela ficou em silêncio por momentos. Depois, numa voz prudente, disse, Nada disso interessa. O que é importante é que eu continue a procurar o meu pai enquanto puder.

 

Ele voltou-se e enfrentou-a. Lenore...

 

Volpe abriu a porta e anunciou que eram horas de ir almoçar.

 

Vamos já, Joe, disse Lenore. Não resta muito tempo, Owen. Pus algum do dinheiro que encontrámos na tua mala. Usa-o conforme precisares.

 

Ele sentiu-se insultado. Estava indignado. Ela pensava que podia comprá-lo? Não quero o teu dinheiro, disse ele.

 

Deixa-te de nobrezas. Se fosses detective, ias cobrar-me por cada movimento que fizesses. E seja como for o dinheiro também não é meu. É do Bram. Além disso... se não fosses tu a encontrar o cofre, não haveria dinheiro nenhum.

 

Foram ter com os outros na sala principal da suite e comeram sanduíches. Havia alguma tensão no ar e Owen pensou primeiro que fosse ele o causador, mas depressa verificou que não tinha nada a ver com a sua presença. Era o julgamento. A defesa não estava satisfeita com o rumo que o jogo estava a tomar.

 

Por acaso não terá encontrado mais informações preciosas para nós? perguntou Rossner a Owen com um sorriso sardónico.

 

Não, confessou Owen.

 

Mas a Lenore disse que está a fazer progressos na investigação da vida do Serian.

 

Estou a tentar, disse ele.

 

Mas lembre-se que, se houver alguma fuga de informação prematura para a imprensa, se aparecer alguma peça de informação, pode provocar danos irreparáveis no caso de Lenore.

 

Eu estou consciente disso.

 

Óptimo.

 

Então mantenha-se atento, rapaz, disse Riley.

 

Volpe olhou para Owen com um olhar severo. Especialmente junto de cabras louras da informação, disse ele.

 

Você está fora do contexto, Owen avisou o homem, após o que Volpe inchou todo como um galo da índia, pronto para a luta.

 

Rapazes, rapazes... Frank Riley acalmou-os com um sorriso jovial. Agora estamos na mesma equipa, não estamos? Vamos poupar as nossas energias para enfrentar o inimigo.

 

Quando chegou a hora de voltar para o tribunal, ordenaram ao Owen que se demorasse cerca de quinze minutos, a fim de dar tempo à comunicação social para se afastar. Ele abriu-lhes a porta como se fosse um anfitrião que estava a terminar uma festa. Lenore foi a última a sair, intencionalmente, tinha ele a certeza, e parou para lhe pegar no pulso com os dedos como se fossem garras.

 

Telefona-me do Kansas logo que souberes alguma coisa, sussurrou-lhe ela. Para aqui ou para casa. Tens os dois números.

 

Ele acenou com a cabeça. Ela largou-lhe o pulso e desceu para o átrio, onde Volpe já estava à sua espera com a capa dela nas mãos. Como se fosse uma actriz a preparar-se para subir para o palco, pôs o enorme manto e assumiu a expressão fechada que era tão conhecida dos espectadores da sala de audiências. Depois saiu.

 

Owen entrou discretamente na sala de audiências precisamente no momento em que a primeira testemunha de Brown, depois do almoço, estava a prestar juramento. Dar Quintana, sussurrou a Holly. Um dos convidados na festa da Arcádia naquele fim de semana.

 

Com um aceno de cabeça, Owen preparou-se para tomar notas. Já sabia quem era Dar Quintana um jovem escultor do estado de Nevada que tinha idolatrado Bram Serian. Quintana e mais dois convidados da festa faziam parte da lista de testemunhas da acusação.

 

Dar Quintana descreveu Bram Serian como um artista brilhante e como o homem mais simpático que alguma vez tinha conhecido. Descreveu os seus fins-de-semana na Arcádia em termos de grande entusiasmo e calculou que tinha passado dois e às vezes três fins-de-semana por mês na Arcádia no ano anterior ao incêndio. Falou respeitosamente de Natalie Raven e até teve palavras de simpatia para com Tommy Kubiak, que esporadicamente tinha andado por ali a trabalhar no pátio.

 

Quando lhe fizeram perguntas sobre Lenore, Quintana mudou de atitude e a sua antipatia por ela era óbvia. Disse que tinha tido aquele sentimento e que outros tinham tido a sensação que ela detestava os amigos de Bram e só queria que desaparecessem. Disse que todos procuravam ser simpáticos com ela e em incluí-la nas actividades que faziam, mas ela tratava-os como lixo. E uma vez, depois de terem bebido umas cervejas e se sentirem animados, Quintana lembrava-se de lhe ter dito, “Hei, nós não somos assim tão maus, sabe. Por que não se junta a nós e se ri connosco? E afirmou que nunca esqueceria a resposta dela, porque foi muito estranha. Ela disse-lhe, “Não fui programada para rir.

 

Fiquei intrigado com aquilo, disse Quintana, mas ainda pensei que conseguia quebrar aquela sua concha e por isso disse, “Sabe, toda a gente gosta do Serian. Devia ficar contente pelo facto de o seu marido ter tantos amigos e deixar de ser tão presunçosa e fria e de tornar a vida difícil a toda a gente.

 

Dar Quintana relanceou um olhar para Lenore e alguma coisa tremeluziu momentaneamente nos seus olhos, o que fez Owen desconfiar que Quintana estava a ser muito mais desonesto e vingativo do que parecia.

 

E a Lenore... Ela riu-se para mim nessa altura, como se eu fosse um idiota, e disse-me, num tom mesmo sarcástico, “Oh... então o que está a dizer-me, Dar, é que eu devia estar agradecida pela oportunidade de partilhar o Bram, de dia e de noite, com multidões de sanguessugas estúpidas.”

 

Brown fingiu ficar chocado com isso, como se não tivesse já ouvido um depoimento desta testemunha e não estivesse precisamente à espera dessa revelação. Senhor Quintana, quando estava na Arcádia, notou alguma coisa que indicasse que a senhora Serian podia querer fazer mal ao marido?

 

Está a referir-se a quando lhe deu um tiro? perguntou Quintana, como se estivesse ansioso por ouvir Brown fazer uma pergunta bem ensaiada.

 

O senhor viu-a disparar contra ele? perguntou Brown sem entusiasmo, fingindo que isto era uma surpresa.

 

Sim, vi, respondeu Quintana. Estava um grupo de pessoas no pátio a fazer tiro ao alvo com espingardas BB, espingardas de pressão de ar de grande potência, sabe? Rossner começou a levantar-se da cadeira como se fosse protestar, mas depois voltou a baixar-se. E a Lenore apareceu furtivamente e houve alguém que lhe deu uma espingarda e lhe disse para dar um tiro e ela voltou-se e disparou contra as costas do Bram. Ficou bastante magoado.

 

Houve risadinhas por toda a sala de audiências e Owen notou que os jurados ficaram de olhos arregalados.

 

E o que aconteceu depois de ter disparado contra ele? perguntou Brown.

 

Nada. Ela foi-se embora e fingiu que nada tinha acontecido. Foi a Natalie que insistiu com ele para que levantasse a camisa para ver como estava e depois obrigou-o a deixá-la pôr-lhe gelo.

 

No fim de semana em que se deu o incêndio, senhor Quintana, quando chegou à Arcádia para a festa?

 

Eu fui na sexta-feira à noite, no dia cinco de Agosto, porque o Bram queria que o ajudasse a preparar as coisas. Ele estava mesmo a organizar uma grande festa com um porco assado inteiro no churrasco e tudo o mais.

 

Houve mais alguém que tivesse aparecido cedo?

 

Lance Zabel foi comigo. Fomos de comboio até Stoatsberg e depois a Natalie foi lá buscar-nos.

 

Além do senhor e do senhor Zabel, quem mais esteve naquela noite de Agosto na Arcádia?

 

O Bram, claro, a Natalie e a Lenore. Aquele miúdo, o Tommy, esteve lá durante algum tempo a ajudar-nos, mas depois foi para casa por volta das dez horas. Mais tarde, quando estávamos mesmo a dar por terminada a nossa tarefa daquela noite, apareceu um indivíduo que eu nunca tinha visto antes.

 

Os Serians tinham dado a entender que estavam à espera dele?

 

Não. Antes pelo contrário. Inquestionavelmente não estavam à espera dele. O Bram subiu aos arames e a Lenore apenas pareceu ficar surpreendida.

 

Este homem que chegou tarde foi-lhe apresentado?

 

Foi apresentado como o Jimmy. Sem nenhum apelido, apenas Jimmy. Owen sentiu os olhos da Marilyn a olhar para ele. Estava com certeza a imaginar como é que diabo ele podia ter aparecido com uma pergunta sobre Jimmy precisamente na manhã em que o nome do Jimmy foi mencionado pela primeira vez no tribunal. Que ficasse a imaginar, resolveu Owen, e fingiu que não tinha reparado no seu olhar inquiridor.

 

O que aconteceu então, depois da chegada desse estranho? perguntou Brown.

 

Toda a gente se despediu. Eu e o Lance começámos por ir para a cama, mas estava uma noite muito quente e mudámos de ideias e fomos dar um passeio. Quando voltámos para casa, deparámos com o Bram e a Lenore a discutir lá fora atrás do estúdio. Demos uma volta para nos desviarmos deles, mas não pudemos deixar de ouvir muita coisa, porque estava uma noite calma e no campo as vozes ouvem-se a uma grande distância.

 

E o que ouviu naquela noite do dia cinco de Agosto, senhor Quintana?

 

Ouvi o Bram dizer, “Como te atreves a convidá-lo para aqui? e depois a Lenore disse, “Ele queria vir. O que se passa, Bram? Não consegues enfrentar isso? É demais para ti? e o Bram disse, “Estás a pressionar-me demasiado, Lenore,” e ela disse, “Eu ainda nem comecei a pressionar-te, Bram.

 

O resto do testemunho de Quintana girou à volta do incêndio e como se tinha organizado com os outros numa brigada de baldes e como tinham estado na cozinha à espera, rezando e esperando que os seus piores receios se não verificassem e como tinham ficado arrasados quando foi descoberto o corpo do Bram e foi revelada a terrível realidade.

 

Brown agradeceu cerimoniosamente à testemunha e foi sentar-se.

 

Ficou claro no decurso do contra-interrogatório de Charlie Rossner que o advogado de defesa não tinha balas mágicas de prata para usar contra o Dar Quintana. Tudo o que conseguiu fazer foi desenvolver um dos argumentos que tinha usado com Natalie Raven, que seria natural que uma mulher ficasse aborrecida pelo facto de a sua casa não ser dela e o facto de o marido levar amigos constantemente.

 

Pareceu a Owen ter detectado resignação na postura de Rossner quando o advogado finalmente libertou Dar Quintana e voltou para junto de Lenore e se sentou ao seu lado, à mesa da defesa.

 

A testemunha seguinte foi Lance Zabel, o homem que tinha acompanhado Dar Quintana à Arcádia naquela sexta-feira, dia cinco de Agosto. Zabel era um homem grande, com barba, que declarou que exercia a profissão de pintor. Corroborou todo o depoimento de Dar Quintana, com a excepção do episódio da espingarda BB, a que ele não tinha assistido. Mas deu a sua contribuição com a sua própria história.

 

Zabel tinha acordado cedo na manhã de sábado e tinha saído de casa pensando que todos os outros estavam ainda na cama. Pegou numa cana de pesca e dirigiu-se para o lago. Quando lá chegou viu o convidado misterioso, o Jimmy e a Lenore. A Lenore estava a nadar nua no lago e o Jimmy estava sentado na margem a fazer-lhe companhia.

 

Owen não aguentou continuar a ouvir mais aquilo. Discretamente pegou nas suas coisas e preparou-se para sair.

 

Onde vai? sussurrou a Holly.

 

Para o aeroporto. Tenho de ir ao Kansas por um dia ou dois.

 

Problemas em casa?

 

Não propriamente.

 

Boa viagem. Ela sorriu com ar de gozo. Não se preocupe... eu não vou deixar que aconteça nada de bom enquanto estiver fora.

 

Ele fez um sorriso forçado e saiu do banco e da sala de audiências. Um vazio de enjoo instalou-se-lhe no interior do estômago, mas ele recusou-se a reconhecê-lo. Em vez disso, pensou que talvez fosse mais sensato ir cedo para o aeroporto, uma vez que ainda tinha de ir devolver o carro alugado e pagar o bilhete e...

 

Os seus pensamentos foram interrompidos pela percepção de que um dos fotógrafos estacionados mesmo à saída do posto de segurança no átrio tinha a câmara de vídeo apontada para ele.

 

O que está a fazer? perguntou ele.

 

Oh, hei... apenas a brincar pá... sabe.

 

Você não é o operador de câmara de Holly Danielson?

 

Sim... hei... tenha calma. Reconheceu-me, heim?

 

Por que me estava a filmar?

 

Tenha calma, pá. Eu sou apenas... sabe... a Holly disse que gostava de ter algumas imagens suas. Riu-se. Hei, deve ser porreiro ter um borracho daqueles caidinho por si, heim?

 

Pare de filmar, disse Owen. Percebeu?

 

Sim. No problema, amigo. Percebi muito bem.

 

Owen estava cheio de raiva enquanto ia no caminho para o aeroporto. Por causa da Holly. Por causa da Lenore. Furioso com todo o maldito mundo. Era bom estar furioso. Mantinha o medo à distância e fez com que embarcasse em segurança no voo para o Kansas.

 

Ao aterrar em Wichita, Owen apanhou o comboio de pequeno curso para um hotel perto do aeroporto. Ainda era noite e o hotel era genérico. Não tinha a sensação de estar de volta ao Kansas. De manhã alugou um carro, depois de saber que o lar de Milly Corwin ficava bastante afastado da cidade, sendo inacessível de táxi ou de transporte público. Depois entrou na estrada 235 e dirigiu-se para o norte. Estava ainda a tentar adaptar-se ao facto de estar mesmo no seu estado natal, quando viu a saída para a Golden Age Village, uma comunidade de reformados de primeira classe, conforme se lia no cartaz junto do portão de entrada. Bateu à porta da Milly.

 

A prontidão é uma virtude, disse ela quando abriu a porta. Fico satisfeita por ver que a tem, senhor Byrne.

 

Era uma mulher pequena e encurvada, mas os seus movimentos eram firmes e tinha uns olhos perspicazes por detrás de uns óculos de aros pesados. Tinha o cabelo tão sedoso e branco que parecia algodão-em-rama.

 

Sente-se. Essa cadeira cinzenta deve ser bastante confortável para um homem do seu tamanho.

 

Ele sentou-se no lugar indicado por ela, tendo o cuidado de não perturbar os paninhos de croché que estavam fixados em cada um dos braços. O quarto estava cheio de coisas feitas à mão. Naperons de mesa bordados e paninhos davam graça a todas as superfícies e nas paredes havia máximas bordadas em ponto de cruz.

 

Isto é muito bonito, disse ele, olhando à sua volta.

 

Estou muito feliz por estar aqui num lugar tão luxuoso, disse ela. Temos tudo serviços médicos e dentários, alimentação, salão de beleza, uma biblioteca... E o preço inclui assistência a tempo inteiro, quando uma pessoa já não puder cuidar de si própria. Ela deixou que o seu olhar contemplativo vagueasse carinhosamente à volta do quarto. O Benjamim arranjou-me este apartamento. É meu até morrer.

 

É uma boa casa, concordou ele, sem saber quem era o Benjamim.

 

Sim. É um sítio excelente, apesar de não ter companhia e de vez em quando me sentir só, como se fosse no fim do mundo. Mesmo assim, estou muito melhor do que estaria em Arcádia, se lá tivesse ficado. Sem perder o ritmo olhou para Owen e disse, Prefere tomar café ou chá?

 

O que a senhora tiver, obrigado.

 

Milly Corwin serviu o café com as suas mãos artríticas, a seguir conversou sobre o tempo e sobre o seu antigo grupo da igreja em Arcádia. Owen ouviu-a atentamente, esforçando-se por ser paciente.

 

Aquelas mulheres da minha terra têm inveja de mim, sabe, confidenciou ela. Sempre tiveram. Começou quando eu era nova. A Celeste e a Camille Corwin eram as raparigas mais populares da cidade. Éramos nós que usávamos vestidos que pareciam tirados das fotografias das revistas e os rapazes andavam atrás de nós como cachorrinhos. Éramos muito invejadas. Às vezes até odiadas.

 

Olhou para ele com ar desaprovador e levantou o dedo indicador retorcido. Aqueles sentimentos profundos da nossa juventude nunca desaparecem, senhor Byrne. Trazemo-los sempre connosco.

 

Eu sei o que a senhora quer dizer.

 

Talvez saiba e talvez não saiba. Talvez esteja apenas a tentar fazer a vontade a uma velhota para obter o que pretende.

 

Owen não pôde evitar um sorriso.

 

Ela insistiu. A seguir o senhor vai pôr-se com a conversa de que eu lhe faço lembrar a sua avó.

 

Não. Não cheguei a conhecer nenhuma das minhas avós.

 

Bem, quanto a isso também não tenho nem um bocadinho de pena de si, portanto também pode tirar o cavalinho da chuva.

 

Perante aquilo, toda a determinação frenética que tinha levado Owen a ir de Nova Iorque ao Kansas desapareceu como hélio a sair de um balão. O que estava ele a fazer na sala de estar desta velhota, a tentar arrancar-lhe os seus segredos? Owen sentiu-se subitamente cansado e aborrecido consigo próprio.

 

Causei-lhe um choque assim tão grande que o deixei mudo? perguntou Milly Corwin.

 

Não. Estava só a pensar.

 

A pensar na melhor maneira de me intrujar? Bem, escusa de pensar tanto porque eu já me decidi. O passado dos rapazes não diz respeito a mais ninguém senão a eles mesmos.

 

Owen fez um aceno com a cabeça. Eu nem sei por que vim a correr para aqui. Devia ter-lhe dito logo tudo ao telefone e dar-lhe tempo para pensar sobre o assunto. Mas envolvi-me tanto no meu trabalho que receio bem ter-me entusiasmado demais.

 

O que pretende dizer com o trabalho? O senhor é algum desses detectives que investigam a privacidade das pessoas? A isso é que chama trabalho?

 

Os pensamentos de Owen acumularam-se por momentos.

 

O senhor é um daqueles grandes pensadores, não é? perguntou a Milly. Não consegue responder a uma simples pergunta sem pensar nela até se fartar.

 

Não sou detective, confessou ele. Sou escritor.

 

Que espécie de escritor?

 

Escrevo livros.

 

Ela fez uma pausa para pensar por instantes. Isso altera completamente as coisas. Owen não percebeu pelo tom dela se era uma coisa boa ou má.

 

A sala estava quente e provocava claustrofobia. Owen olhou de relance para o relógio de parede e viu que eram quase onze e trinta. Esperava ter todas as respostas e estar de volta cerca das doze e trinta. Agora duvidava que conseguisse concretizar alguma coisa.

 

Será que a senhora estaria interessada em ir comigo almoçar fora? perguntou ele.

 

Oh meu... Passou as mãos artríticas pelo cabelo e depois alisou a frente do vestido. Já nem me lembro da última vez que fui almoçar fora. Isso é que seria uma surpresa agradável, senhor Byrne.

 

Por favor, trate-me por Owen.

 

Muito bem... Owen. Mas eu considero-me a menina Corwin. É que as pessoas são muito desrespeitadoras hoje em dia, se quer que lhe diga.

 

Ajudou-a a vestir o casaco, sentindo o cheiro a pó de talco e a eucalipto; depois ofereceu-lhe o braço. Ela aceitou-o e acompanhou-o cerimoniosamente até ao carro.

 

Owen nunca tinha tido nenhum interesse especial por Wichita. Parecia-lhe que era uma cidade meio rural, meio urbana, como um político bem falante que evita comprometer-se entre dois partidos. Por isso, em vez de voltar para o sul, para a confusão dos centros comerciais e das zonas residenciais, Owen dirigiu-se para o norte, em direcção a Newton, uma cidade que recordava com algum encanto.

 

A Milly parecia estar absorvida a olhar para a paisagem. Segurava nas mãos um lenço delicado, um quadrado passado a ferro com perfeição, com flores cor-de-rosa bordadas e uma orla feita de renda fina, e Owen perguntou-se se ela o levaria para se assoar ou para chorar, ou se ela o consideraria apenas um acessório próprio de senhoras. Perguntou-se se a sua avó Hadley teria usado algum daqueles lenços.

 

Eu não lhe contei toda a verdade acerca dos seus sobrinhos e da situação em Nova Iorque, disse ele.

 

Eu sei, replicou ela asperamente.

 

Quer que lhe conte agora?

 

Retorceu o lenço nos dedos, amassando o tecido fino. O que eu gostava, era que nunca me tivesse contado nada. Para pôr as coisas na minha cabeça tal como estavam, com os dois rapazes a estarem bem e a viverem bem em qualquer lugar. Mas isso agora já não é possível, não é verdade? Não posso voltar a não saber nada... por isso parece-me que será melhor saber também o resto. Continue. Conte-me.

 

Owen contou-lhe tudo. Com todos os pormenores. Quem era Bram Serian no mundo da arte e como o Al tinha andado perturbado e falou-lhe da casa grande e de o Bram ter casado com a Lenore. Falou-lhe do julgamento e sobre o facto de ele escrever e de como se tinha envolvido naquela história. E depois falou-lhe da Lenore, a mulher que tinha sido acusada de ter assassinado Bram Serian, e que andava obcecada por encontrar o pai, há muito tempo perdido.

 

Oh, meu Deus... meu Deus, meu Deus, meu Deus.

 

Milly torturou o lenço. A minha mãe era professora antes de se casar. E nunca perdeu o seu amor pelos livros. Quando a Celeste e eu éramos pequenas, ela costumava ler-nos os clássicos e passava horas a falar sobre o significado das histórias. Era considerada uma pessoa estranha e pretensiosa pelos nossos vizinhos.

 

Limpou os olhos e ajustou os óculos.

 

Aquelas histórias que a minha mãe nos lia pareciam sempre tão distantes e irreais, mas o que você acabou de me contar podia muito bem ter sido uma tragédia extraída de um daqueles livros. Só que o meu sangue está também aí misturado.

 

Chegaram aos subúrbios de Newton e Owen deixou que ela escolhesse o restaurante. Era um velho edifício, muito bem restaurado, cheio de luz e com muitas plantas. Ela pareceu ficar encantada, mas depois de pedir a ementa ela pôs-se a pensar e comprimiu a boca com os lábios cerrados e olhar furioso.

 

Por que teria o meu Abe voltado a adoptar o nome de Bram Serian? questionou-se ela. Tem a certeza de que não está enganado?

 

Absolutamente. Owen queria saber por que é que aquilo a perturbava, mas não se atreveu a perguntar. Não queria forçá-la. Se quisesse contar-lhe, havia de lhe contar. Se não... nesse caso havia de tentar encontrar as respostas de outra maneira.

 

Ela observou-o com um olhar perspicaz. Aqueles rapazes eram como se fossem meus filhos. As circunstâncias proporcionaram-me um noivo que era um cobarde. Declarou-se como objector de consciência em vez de ir lutar na grande guerra, como faziam todos os rapazes decentes. Por isso terminei o namoro com ele e não quis casar-me, quando todas as raparigas da minha idade se casaram. Depois, mais tarde, tive outro pretendente que também demonstrou que era cobarde, mas de uma espécie diferente. Nunca me casei. Nunca tive a minha própria família. Passei a minha vida como mulher solteira e tia solteirona.

 

Já ninguém usa esses termos, disse Owen delicadamente.

 

Mas usavam quando eu era nova e me preocupava com essas coisas. Chegou a comida. Ela inspeccionou ambos os pratos com grande interesse e Owen propôs-lhe que partilhassem a comida para ela poder provar de tudo. O que lhe agradou muito. E armou uma confusão na divisão e na troca, preocupando-se se ele tinha o suficiente para ficar satisfeito. Finalmente acalmaram e começaram a comer.

 

Ela concentrou-se na comida durante algum tempo, depois parou para perguntar, Donde é exactamente do Kansas e como é que ganhou coragem para ir para Nova Iorque?

 

Normalmente, Owen teria arranjado uma evasiva para não responder à pergunta, mas agora sentia-se responsável por ter agitado a vida despreocupada desta mulher idosa e por tê-la entristecido com uma tragédia, por isso sentiu-se na obrigação de responder a qualquer pergunta que ela fizesse.

 

Nasci em Maynard, uma de quatro crianças. A minha família cultivava trigo. Quando tinha cerca de nove anos, o meu pai mudou-nos para os Flint Hills... perto de Cyril... para se dedicar à criação de vacas e vitelos.

 

Continue, incitou ela.

 

O meu irmão mais velho morreu, por isso acabei por deixar a universidade para ir dirigir o rancho. É uma boa vida. Eu gosto de trabalhar com os animais.

 

Uhmm... O que aconteceu aos outros membros da sua família?

 

A minha mãe morreu. O meu pai e as minhas irmãs vivem no rancho.

 

Mas agora o rancho é seu?

 

Não. Na verdade trabalho para o meu pai.

 

Mas ele não lhe paga nada, pois não?

 

Bem...não. Eu não tenho dia de pagamento. Mas tenho quarto e comida e posso treinar cães e cavalos por minha conta e assim arranjo algum dinheiro. E administro um rancho que um dia há-de ser meu.

 

Um terço há-de ser seu, disse ela em poucas palavras. Depois de dividi-lo com as suas duas irmãs, calculo eu.

 

Mas com a participação da administração para mim, disse ele na defensiva. Foi assim que o meu pai estabeleceu. Para ter a certeza de que o rancho sobrevive e que eu vou continuar a administrá-lo.

 

Portanto nenhuma das suas irmãs pode exigir a sua parte em dinheiro e obrigar a fazer uma venda?

 

Sim. Mas também é a casa delas. Elas não iam querer vender.

 

Isso é o que dizem agora. Ela deu um suspiro. Oh, eu estou muito familiarizada com o que acontece quando alguém morre no campo. Demasiado familiarizada.

 

Ela observou-o com os seus olhos brilhantes semelhantes aos de um pássaro.

 

Mas ainda não explicou como é que passou da situação de tratar de vacas para a de escrever um livro em Nova Iorque, lembrou-lhe ela.

 

Ainda nem sei se eu próprio compreendo, disse ele. Eu não sou propriamente escritor. Oh, estou a tentar ser. Estou a tentar com grande esforço. E tenho algumas pessoas que acreditam em mim. Mas o que sei fazer de facto é criar animais.

 

Uhmm. E a sua família? Eles acham que você é mesmo escritor? Ele riu-se. Eles acham é que eu sou mesmo maluco.

 

Owen Byrne é o seu nome de nascimento, ou mudou de nome como os meus rapazes?

 

Owen teve de sorrir perante a sua teimosia de buldogue. É o meu nome de nascimento. O meu pai chama-se Clancy Terrence Byrne.

 

É irlandês?

 

Sim.

 

Não costumava encontrar muitos irlandeses. Não é católico, pois não?

 

É, sim senhora. Embora de uma maneira muito peculiar.

 

O Gus não suportava os católicos. Meu Deus, como ele costumava implicar com os católicos e os democratas e os japoneses e os índios das reservas e com os agricultores com terras de pousio. Eram tópicos que procurávamos manter afastados dele.

 

O Gus?

 

O pai dos rapazes. O marido da minha irmã.

 

Espere aí! Owen interrompeu-a. O Bram e o Al eram irmãos?

 

Claro que eram, porquê? Eram os filhos da minha irmã. O que é que você pensava?

 

Eles apresentavam-se como sendo primos.

 

Não. Eram irmãos. Se não eram por sangue eram por lei pelo menos. E nunca houve irmãos tão chegados.

 

Owen ficou a olhar para ela confuso. Então quem era o Luke?

 

Milly produziu um hum de desagrado no fundo da garganta. Presumo que você não vai desistir, pois não? perguntou ela. Vai continuar a investigar o passado dos meus sobrinhos, não vai? Se não for através de mim, você vai conseguir o que pretende de outra maneira.

 

Owen não queria dizer que sim, mas estaria a mentir se dissesse que não.

 

Com certeza que sim. Não precisa de negar. E se você desistir, então muito em breve vai aparecer outra pessoa a farejar. Cá para mim está tudo muito claro. Se o meu sobrinho era assim tão famoso como diz e se a mulher está tão determinada como diz, então vai ser apenas uma questão de tempo até que uma ou outra pessoa venha investigar tudo.

 

Sim, confessou ele. Desculpe.

 

Bem, não lhe retiro qualquer culpa, note bem, mas tenho estado a reflectir sobre tudo isto, e parece-me que prefiro que seja você o primeiro a saber os factos. Pelo menos consigo sei que não vai haver por aí anedotas nem coisas distorcidas.

 

Owen ficou tão surpreendido que não conseguiu responder.

 

E, além disso, você é escritor de livros e a minha mãe dava muito valor aos livros. Ela achava que podiam salvar o mundo. Estava enganada, mas isso não tem nada a ver com o caso. O facto é que ela acreditava e sei que havia de ficar orgulhosa por eu ajudar um escritor como o senhor.

 

Eu... estou surpreendido, conseguiu dizer Owen.

 

Ainda vai ficar muito mais surpreendido quando ouvir o que tenho para lhe contar.

 

Mas já não está preocupada com o Al? Ele anda por aí por algum sítio... E se ele não quiser que isto seja contado?

 

O rosto dela ficou muito calmo. Dobrou repetidamente o seu guardanapo de tecido até ficar um quadrado perfeito, colocou-o em cima da mesa e pressionou-o com os dedos até ficar liso.

 

Receio que ambos os rapazes estejam perdidos para mim, disse ela. Nunca passou tanto tempo sem eu receber um bilhete ou um postal.

 

A empregada de mesa chegou com uma cafeteira e Milly disse, Estou pronta para ir para casa e terminar lá a minha conversa, por isso Owen pediu a conta.

 

Owen não falou muito durante a viagem de volta para a Golden Age Village. A disposição era muito séria para ter uma conversa banal e ele queria dar-lhe tempo para pôr os pensamentos em ordem.

 

Engraçado, disse ela, quando iam quase a meio caminho de casa. Isto não faz nada parte da história. É apenas uma coisa que acho curiosa. A minha mãe, que Deus tenha a sua alma em descanso... não passei um único dia da minha vida sem sentir a falta daquela mulher... A minha mãe chamava-se Lenore. Os rapazes não tinham propriamente recordações dela porque morreu ainda antes de eles nascerem, mas sempre gostaram de me ouvir falar dela e ambos gostavam daquele nome. Disseram-me que tinham procurado a palavra na biblioteca e que significava “luz” em grego, ou coisa parecida.

 

A sua mãe chamava-se Lenore, repetiu Owen.

 

É uma grande coincidência, não é? Que um dos rapazes se tivesse casado com uma mulher que tinha o mesmo nome.

 

Sim, concordou Owen, pensando que era mais do que uma coincidência. Ainda não me disse quem era o Luke, lembrou-lhe ele.

 

Oh, era o melhor amigo dos rapazes quando andavam na escola secundária. Durante algum tempo foram os três mosqueteiros e ele ia para junto de nós a ouvir as minhas histórias e chamava-me também Tia Milly.

 

Não voltou a falar até terem chegado ao apartamento e terem tirado os casacos.

 

Prepare-se, avisou ela. Que vou desbobinar aqui tudo.

 

Importa-se que grave?

 

De maneira nenhuma. Até prefiro. Não conseguia falar se você estivesse a escrever... ficava ocupada a imaginar o que estaria a escrever.

 

Ligue-o, disse ela, olhando para o gravador. Ele premiu o botão. E ela não hesitou.

 

Já lhe contei como é que a minha mãe nos criou? Sim, acho que sim. Ensinou-nos a ter boas maneiras e a vestir-nos de maneira adequada e a falar como se tivéssemos andado na escola noutro sítio. Estava tudo muito bem porque éramos filhas do banqueiro e vivíamos numa casa muito boa, uma daquelas casas antigas e imponentes, com uma grande varanda e um torreão redondo. Mas quando ficámos mais velhas não conseguimos arranjar os rapazes que queríamos que namorassem connosco. Pareciam-nos todos tão vulgares e pouco prometedores. As outras raparigas casaram e tiveram bebés, mas ali estávamos nós, ainda à espera que aparecessem os cavalheiros.

 

Depois as coisas correram mal ao nosso pai, Albert. A nossa zona nunca foi rica, estando muito dependente das minas, e ele teve alguns revezes no banco. Depois teve um derrame cerebral e ficou confinado à cama, em casa.

 

Foi por essa altura que conheci o meu noivo, que se encontrava na região a fazer uma inspecção às estradas. De repente tinha um namorado. A Celeste, que tinha mais dois anos do que eu, chorou muito e andava sempre a dizer que a sua vida tinha acabado e que nunca ia arranjar marido, até que por fim a nossa mãe mandou-a para Kansas City para ficar em casa de um velho professor que era amigo da minha mãe. Mais cedo do que esperávamos, a Celeste escreveu para casa a dizer que tinha conhecido um homem, um indivíduo chamado Gus Hanselmann.

 

E foi assim que começou. Mesmo ali. Com a minha irmã que era sempre muito impulsiva e que estava desesperada por encontrar um marido. E com o Gus que ainda era imaturo e parecia bastante inofensivo.

 

O Gus tinha tido uma infância difícil. O seu pai era um homem violento e morreu violentamente. A mãe perdeu a quinta e acabaram todos por se mudar para casa de um tio celibatário que vivia nas traseiras de uma loja de que era dono. O Gus deu assistência à mãe até ela morrer, depois partiu para Kansas City para tentar a sua sorte.

 

Quando a Celeste conheceu o Gus na cidade, ele estava livre de cuidados e responsabilidades pela primeira vez na sua vida e andava a tentar as suas capacidades e a explorar. E claro que foi tudo o que a Celeste viu. Estava com demasiada pressa para esperar os anos que podem ser necessários para conhecer uma pessoa e ficou noiva do Gus dum momento para o outro.

 

Entretanto, o tio vendeu a loja na cidade, deu umas voltas e investiu o seu dinheiro numa fazenda de trigo. Escreveu ao Gus e pediu-lhe para voltar, prometendo-lhe que se o Gus voltasse para casa e o ajudasse a cultivar a fazenda, esta um dia seria dele.

 

O Gus e a Celeste casaram-se e foram viver com o tio na fazenda. Sem demora a Celeste começou a escrever-me dizendo que o Gus era muito diferente no campo do que era na cidade. Nada de muito acentuado, note bem, porque ela gostava de se sentir superior a mim, uma vez que o meu noivado tinha acabado e eu ainda estava solteira e ela terminava as cartas dizendo que a sua linda casa tornava tudo o resto insignificante.

 

O tio morreu e o Gus herdou a terra. A Celeste perdeu alguns bebés. Não conseguia ir além do quinto mês.

 

Depois morreu a nossa mãe. Depois de se ter resolvido a propriedade, não ficou quase nada e ali estava eu, uma senhora solteira sem uma casa e sem meios para me sustentar. Fiz a única coisa que uma mulher podia fazer naquela altura fui viver à mercê do marido da minha irmã.

 

Para lá chegar apanhei vários autocarros, depois o Gus veio ter comigo”? e levou-me no carro durante os últimos sessenta quilómetros sem dizer uma palavra para além de olá. O lugar ficava a oeste de Wichita. A cidade mais próxima era Ridley, onde o velho tio tinha tido a loja e ainda eram uns bons vinte minutos de viagem por estradas de campo de gravilha.

 

Oh, era uma região desagradável... tão plana como um tabuleiro de bolachas, com laranjeiras Osage nas linhas das vedações, mas sem quaisquer outras árvores no lugar. Nada decorativo nem agradável para os olhos.

 

E a casa não era nada mais do que uma barraca pintada, quando comparada com aquilo a que eu estava habituada. Uma barraca pobre e velha como casa, sem um arbusto, nem uma flor, nem uma sebe de um pequeno jardim, nem nada que fizesse daquilo um lar acolhedor.

 

A Celeste ficou novamente grávida, por isso passei a tomar conta da casa e ela ficou na cama por ordem do médico.

 

Ora, a minha mãe nunca nos tinha tratado com indulgência. Nós fazíamos sempre a nossa parte da limpeza e passagem de roupa a ferro e de costura enquanto éramos pequenas. Mas a vida naquela fazenda era dura. A única água que havia na casa vinha de uma bomba manual que estava na cozinha. Havia electricidade, um fio que vinha de um poste ao fundo do caminho, mas não passava por dentro das paredes. Não havia tomadas nas paredes nem candeeiros fixos nos tectos, apenas fios fixados nas paredes e pintados. E ainda usavam uma casa de banho exterior.

 

Primeiro fiquei muda de espanto... ao ver a minha irmã Celeste com todos aqueles seus ares a viver naquelas condições tão primitivas. Mas depressa aprendi a manter a boca calada. A Celeste era mesmo muito susceptível quanto à sua situação e lamentava que eu tivesse aparecido e visto a verdade da sua vida esplêndida e o Gus não admitia que uma mulher se queixasse.

 

Bem, a Celeste ficou de cama conforme mandou o médico e levou a gravidez até ao fim. Deu à luz um rapaz grande, com cinco quilos e meio e saudável como um cavalo, mas a Celeste teve dificuldade em dar à luz. Sofreu uma ruptura de qualquer coisa e o médico teve de lhe retirar as partes femininas. Tirou-lhe toda a parte interior como se estivesse a estripar um peixe.

 

Quando finalmente voltou para casa do hospital com aquele bonito rapaz, o Gus não cabia em si de contente. Foi comprar ao rapaz um tractor de brinquedo e contratou homens da cidade para virem construir uma fossa séptica e uma casa de banho interior decente. Puseram também um cano para o lava-loiça da cozinha, de modo que ficámos a ter mesmo uma torneira com água corrente em vez daquela velha e horrível bomba manual.

 

Contudo, a Celeste não gostou da nova casa de banho. Tal como não gostou daquele lindo bebé. Só pensava no que tinha perdido. Que já não era uma mulher e que não poderia ter mais bebés.

 

Foi o princípio do Benjamin. E era tanto meu como qualquer bebé que eu pudesse ter, porque a mãe dele estava demasiado mergulhada em sofrimento para o amar e o pai apenas amava a promessa de um filho grande e forte, e não a debilidade babada de um bebé.

 

Milly Corwin fez uma pausa e respirou fundo e Owen interrompeu-a, ansioso por saber, Esse é que era Bram Serian?

 

Espere só, ordenou-lhe a Milly. Já vai ver quem era Bram Serian e donde veio o nome daqui a pouco.

 

O Benjamin cresceu. A Celeste saiu da convalescença com uma resistência que até fez o Gus tomar precauções com ela. Enfrentava-o, discutindo sobre o estado da casa e sobre a maneira como o dinheiro era gasto. Acontecia que brigavam sempre que estavam juntos e, pouco a pouco, o Gus foi arranjando motivos para passar cada vez mais tempo fora de casa. Se não estava nos campos, então é porque andava a ajudar um vizinho ou estava sentado à lareira na cooperativa, ou então estava lá em baixo a falar de algum negócio de equipamento. E aquilo foi óptimo para a Celeste. Começou a fazer coisas naquela casa como ela queria. Revestiu as paredes com papel de parede e colou no chão retalhos de alcatifa.

 

Quando o Benjamin tinha cerca de cinco anos, era uma miniatura do pai. Era grande e robusto, com uma constituição de um touro de flâmula azul numa exposição de animais, o que fazia o Gus ficar cheio de orgulho. O lado triste era que, quanto mais o rapaz se parecia com o Gus e quanto mais o Gus se gabava do rapaz, menos interesse tinha a Celeste em cuidar dele. Não importava que a criança gostasse muito dela... para ela ele era o rapaz do Gus.

 

Quando o Benjamin tinha seis ou sete anos eu devia lembrar-me com exactidão, mas não me lembro a Celeste ouviu falar de um rapaz que estava no asilo do município.

 

Uma boa rapariga luterana da região tinha fugido para Chicago e tinha engravidado e casado com o homem errado. O homem foi assassinado e a rapariga voltou submissamente para casa, mas os pais já tinham morrido alguns anos antes, por isso teve de levar o rapazinho ao asilo municipal.

 

Verificou-se que ela estava a morrer e assinou um papel em que declarava que queria que o seu rapaz fosse adoptado por uma família da região e que fosse criado para ser um bom luterano depois de ela morrer.

 

Bem, a Celeste soube disto num domingo na igreja e, sem dizer nada a nenhum de nós, partiu para ir ter com aquela rapariga e o seu rapazinho. Naquela noite, ao jantar, começou a ser muito atenciosa para com o Gus, procurando apanhá-lo desprevenido. Disse que lamentava que nunca pudesse haver outro rapaz para o ajudar na fazenda e ser um irmão para o Benjamin. Logo imaginei o que estava a tramar, mas o Gus sempre foi de raciocínio lento. Só reparava que ia ser atingido por um comboio depois de o vagão ter passado.

 

Então um dia reunimo-nos todos em volta da mesa para almoçar e a Celeste disse, “Sabes, Gus, tens andado a falar... que tens muito trabalho e que é uma pena nunca poderes ter mais do que um filho para te ajudar... tenho-me sentido muito mal por causa disso, especialmente porque sou eu que não posso dar-te outro filho. Por isso estive a pensar numa maneira de poder remediar as coisas.

 

O Gus soltou um grunhido e continuou a atafulhar a boca de comida. Eu fiquei a observar os dois, pois sabia que a Celeste estava quase a fazer a sua jogada. Até o pequeno Benjamin estava atento, como se soubesse que estava a armar-se uma tempestade.

 

A Celeste tinha feito a tarte preferida do Gus e foi buscá-la para a mesa e colocou-a em frente dele. Depois disse, “Parece-me que a melhor maneira de eu remediar as coisas é fazer um sacrifício, por isso estou disposta a aceitar em casa um rapaz e a criá-lo como se fosse meu, para que tu possas ter outro filho para te ajudar no trabalho.

 

O Gus parou de comer e ficou a olhar para ela, como se ela tivesse falado chinês ou comunicado que ia viajar para a lua ou coisa parecida. “Que diabo estás tu para aí a palrear, mulher? A Celeste recuou um pouco perante aquilo, mas continuou a falar com a sua voz simpática. “Estou a falar em adoptar um rapaz com a idade do Benjamin para ele poder ter um irmão e tu poderes ter mais alguém a ajudar-te no campo.

 

O Gus começou a cortar uma fatia daquela tarte de groselha. “Quem é que te meteu na cabeça uma ideia tão estúpida?” perguntou ele.

 

“Foste tu,” disse ela. Tens andado a dizer que não está certo um homem ter só um filho para o ajudar.

 

“Pode ser que sim confessou ele, “mas nunca falei em fazer uma adopção.”

 

“Eu sei que a adopção implica uma decisão difícil de tomar, e ainda é mais difícil para uma mulher, porque equivale a admitir perante o mundo que não é uma mulher completa, mas eu soube de um rapaz órfão que pode ser adoptado sem provocar agitação e podia começar a fazer a sua parte nas tuas tarefas dentro de um mês.”

 

“Nunca admitirei que um bastardo de outro homem venha viver debaixo do meu tecto declarou o Gus, e a Celeste ficou irritada. “Não é nenhum bastardo. Nasceu como filho legítimo

 

“Oh! Isso é o que eles dizem sempre. Eu sei quem é o rapaz de que estás a falar. Aquele cuja mãe tem estado na quinta pobre. E aposto contigo em como aquela gaja era uma puta que não tinha marido quando o rapaz nasceu

 

“Estás enganado. O rapaz é tão decente como qualquer outro e merece um bom lar protestante. A verdade é que ele já é mais civilizado e esperto do que este rapaz que é teu filho

 

O Gus levantou-se da cadeira com um rugido e pôs-se a gritar que a Celeste era uma menina estouvada da cidade e a pior mulher que um homem podia ter, e a Celeste levantou-se de um salto e começou aos berros, dizendo que o Gus era um grande estúpido e idiota que tinha produzido um filho que era um grande estúpido que lhe tinha arrancado as entranhas, e eu peguei na mão do Benjamin e arrastei-o para fora e fugimos a correr. Ficámos escondidos durante horas atrás do barracão do equipamento onde não se ouvia nada a não ser o ruído do vento e dos corvos nas árvores e nos arbustos da sebe. E ele enterrou a cabeça nas minhas saias e pediu-me que lhe contasse uma história. Foi o princípio das minhas histórias da Arcádia. Está a ver, eu apenas comecei a falar-lhe de mim... de como tinha uma vida maravilhosa quando estava na Arcádia, na minha linda casa com o meu pai e a minha mãe que eram maravilhosos... a Lenore e o Albert, ou Al como as pessoas lhe chamavam.

 

Lembro-me muito bem. Como ele gostou daquela história e fez-me prolongá-la sem parar. Como aquela linda cara absorvia tudo como se fosse uma espécie de conto de fadas. Pôs-se a chorar quando lhe disse que tínhamos de voltar para casa. Perguntou-me se não podíamos antes fugir para a Arcádia.

 

Quando entrámos em casa pela porta das traseiras estava tudo muito silencioso. Fiquei assustada. A pensar que podiam ter-se matado um ao outro.

 

Havia pratos partidos no chão da cozinha e aquela tarte de groselha estava esparrinhada por todo o lado. Disse ao Benjamin que começasse a apanhar os bocados enquanto fui ver o resto da casa. O lavatório da casa de banho estava salpicado de sangue. E havia um pequeno rasto de gotas vermelhas no linóleo. Segui-as até à sala de estar. Havia dois buracos do tamanho de punhos na parede. Por baixo deles estava a Celeste apoiada no sofá, com o braço esquerdo numa posição estranha. A sua cara estava branca como a cal... exceptuando as partes que estavam vermelhas ou roxas.

 

Nunca fui muito para histerias e acho que não fiz mais nada senão ficar ali de pé a olhar.

 

“Ajuda-me, Sissy disse ela. “Preciso que me leves para o hospital

 

“Primeiro vou chamar a polícia, Celeste. Para que eles vejam tudo isto com os seus próprios olhos.

 

Não, Milly! Prometi-lhe que não contaria nada ao xerife nem a ninguém na igreja em troca de o Gus me assinar o papel.

 

Debrucei-me mais sobre ela para ver o que estava a segurar na mão e vi que eram os papéis da adopção que o Gus já tinha assinado. Tinha assinado mesmo por cima do nome dela. Mesmo no meio das pequenas manchas de sangue.

 

Saí de casa e fui tirar o carro do barracão e estacionei-o em frente da casa. Depois disse ao Benjamin que trouxesse um cobertor e uma almofada e ajudei-a a entrar no carro para o banco de trás e dirigimo-nos para o hospital, que ficava a uma boa distância dali. Quem era eu para me pôr a discutir? Ela tinha conseguido o que pretendia e não parecia achar que o preço tivesse sido muito elevado. Claro que ao fazer uma retrospectiva vejo as coisas de forma diferente. Vejo que naquela altura devia ter pegado no Benjamin e ter ido com ele para bem longe dali. Mas isso é agora, ao fazer uma retrospectiva. E tenho de aceitar que naquela altura não me passou essa ideia pela cabeça.

 

Quando chegámos ao hospital, contámos ao médico uma história qualquer, que ela tinha tropeçado e caído das rochas para o ribeiro. Não me parece que o médico tenha acreditado em nós, mas guardou as dúvidas para si próprio. O Benjamin assistiu a tudo. Suturaram-lhe o olho e enfiaram-lhe aquele bastonete na narina e colocaram-lhe o nariz no seu devido lugar. Depois puseram-lhe gesso no braço. E o Benjamin esteve sempre ali sentado, muito quietinho e nunca disse uma palavra. Será que ele já tinha sete anos naquela altura? Não tenho a certeza. Ainda não andava na escola... mas isso foi antes de haver jardim de infância em Ridley, portanto as crianças iam mais tarde para a escola.

 

As coisas ficaram muito calmas depois disso. Reparámos os buracos na parede e esfregámos as manchas de sangue do sofá. Levei a Celeste ao escritório do advogado para entregar os papéis e depois fomos falar com a mãe e com o rapaz. A Celeste disse ao Benjamin que ia ter um irmão e deixou-o escolher beliches e colchas à cowboy do catálogo Sears.

 

Até então, o Benjamin e eu tínhamos partilhado um quarto com uma velha cama dupla que a Celeste tinha comprado numa venda de garagem na cidade. Mas com a vinda do novo rapaz ela resolveu renovar o quarto para as crianças e mudar-me para o sótão.

 

O Gus andou muito bem disposto durante as primeiras semanas depois da briga e até ajudou a arranjar o sótão sem nunca se queixar, assentando tábuas de pinho no chão e fixando ladrilhos nas paredes e no tecto. Havia um recorte numa ponta da parede que estava tapado com uma pesada rede. Sabe, é que as casas costumavam ser construídas assim, para permitir o arejamento. Bem, o Gus mandou fazer uma janela para adaptar àquele buraco sem eu lhe pedir. A Celeste achava que bastava tapá-lo com tábuas, mas não... o Gus PUXOU da carteira e pagou para fazerem uma janela. Foi a coisa mais simpática que ele alguma vez fez por mim, tanto quanto sei.

 

Não conseguimos levar a cama de casal pelas escadas do sótão, por isso tive de encomendar uma cama nova pelo catálogo Sears. E quando tudo ficou pronto, eu até gostei do meu quarto com o tecto inclinado e aquela janela pequenina. Não me importei que o Gus nunca tivesse acabado a colocação dos ladrilhos nem tapado as fissuras. Não me importei que a Celeste se tivesse esquecido da promessa de me comprar papel de parede. Nem me importei que aquilo fosse gelado no inverno e quentíssimo no verão. Pela primeira vez em tantos anos tinha uma porta que podia fechar e um canto que era só meu.

 

Mas já estou a exceder-me.

 

Fomos buscar o rapaz um dia depois de a mãe morrer. A Celeste aliciou-o, falando com ele durante um bom bocado, dizendo-lhe que ia ser muito feliz e que ela ia ser uma boa mãe para ele. E ele observava-nos a todos com aqueles seus olhos.

 

A Celeste deixou que o Benjamim lhe mostrasse o quarto e o novo beliche; depois arrumámos os seus poucos haveres, a Celeste reuniu-nos a todos na sala de estar. “A partir de agora,” disse ela, “o teu nome é Hanselmann. Nunca mais vais usar o nome de Bram Serian.

 

O Benjamin perguntou qual ia ser o seu primeiro nome. E a Celeste disse que, uma vez que o seu primeiro nome era Abram, podiam chamar-lhe Abe. Isso agradaria ao Gus e permitia que o rapaz mantivesse um nome que já lhe era familiar.

 

E foi assim. Bram Serian desapareceu e Abe Hanselmann passou a fazer parte da família. Um irmão para o Benjamin. Um filho para a Celeste. E um bode expiatório para o Gus.

 

Milly Corwin afundou-se na cadeira como se tivesse ficado esgotada pela história que tinha contado.

 

Quer que lhe traga alguma coisa? perguntou Owen.

 

Isso seria muito simpático da sua parte. Há chá feito no frigorífico. Deite também um copo para si.

 

Quando Owen voltou com o chá já ela parecia de alguma maneira ter recuperado. Levantou-se da cadeira, atravessou a sala e foi ao armário do corredor. Dê-me aqui uma ajuda, disse ela, e Owen retirou duas caixas do cimo do armário e deu-lhas. Uma era uma velha caixa de um chapéu, toda decorada com flores, que era bastante leve. A outra era uma embalagem sólida que tinha originalmente contido botas de trabalho de tamanho quarenta e sete e era tão pesada que Owen ficou admirado como é que ela tinha conseguido metê-la no armário.

 

Ela levou a caixa do chapéu para a sua cadeira. Owen levou a pesada caixa das botas e colocou-a na mesinha de centro que se encontrava entre eles. Calculou que talvez contivesse fotografias e mal conseguia controlar o seu entusiasmo.

 

Continue, disse ela acenando para a caixa das botas. Abra-a.

 

A caixa estava atafulhada de fotografias soltas e álbuns de fotografias e álbuns antigos em pele. Owen estava fascinado. Pegou num retrato de um jovem casal em tom sépia e perguntou-lhe quem eram.

 

Os meus pais, disse ela. Albert e Lenore Corwin. O par mais encantador que alguma vez andou sobre a terra. Simpáticos e eruditos e tolerantes. Quem me dera tê-los estimado mais enquanto eram vivos.

 

Ele tirou cuidadosamente outra fotografia antiga, uma fotografia de duas meninas vestidas com roupa antiquada, sentadas nas selas de dois póneis um ao lado do outro.

 

A Milly apontou. Aquela é a Celeste e essa sou eu.

 

Deixou que Owen as examinasse cuidadosamente durante alguns minutos, depois disse, Pode levar tudo o que quiser para o seu livro.

 

Ele agradeceu-lhe, quase confundido com tamanha quantidade de material e com a emoção de saber que o seu livro estava a assumir novas dimensões.

 

Digo-lhe mais, disse ela. Deixo-o levar a caixa inteira por algum tempo. Mostre-as à viúva e escolha algumas para o seu livro. Depois devolva-mas mais tarde. Actualmente já não aprecio muito ver fotografias antigas. Fazem-me ficar muito triste.

 

Antes de terminarmos, importa-se que procure algumas fotografias dos seus sobrinhos? Quase não existem fotografias deles como adultos e...

 

Ela debruçou-se sobre a caixa e puxou pelo canto de um cartão que estava à vista. Olhe para ali, disse ela. Tire aquele para fora.

 

Ele puxou-o para fora da caixa. Era um porta fotografias de luxo, em cartão, com granulado de madeira e com uma borda dourada. Abriu-o cuidadosamente. Lá dentro havia dois retratos de tamanho cinco por sete, um em frente do outro, encaixados em recortes ovais.

 

Essas são as últimas fotografias que tenho dos rapazes, disse ela. Foram tiradas na escola secundária mesmo antes... antes de tudo mudar.

 

Owen observou os retratos. O rapaz da direita tinha um rosto redondo, cabelo ruivo aloirado e ondulado e com um sorriso sedutor que lhe fazia enrugar os cantos dos olhos. Esta era uma versão mais jovem sem barba do rosto que Owen tinha visto na fotografia que estava no escritório de Edie Norton. Um Bram Serian adolescente. A criança adoptada.

 

O rapaz que se encontrava no lado esquerdo tinha um olhar sério. Tinha cabelo castanho de tamanho médio que lhe caía despreocupadamente pela testa, uma boca delicada, com uma cara angulosa e olhos sérios. Este tinha de ser o Al, o irmão afectado pela guerra do Vietname que Bram Serian tinha aprisionado para o proteger. O Al, o filho biológico desventurado.

 

As diferenças entre os rapazes eram muito definidas. Muito claras. Owen compreendeu o motivo por que nunca ninguém suspeitou que pudessem ser mais do que primos afastados. Mas afinal era evidente que não havia qualquer relação sanguínea de parentesco entre eles.

 

Owen levantou os olhos para Milly. Nesta fotografia o Benjamin já tinha um ar... triste. Até perturbado. É fácil compreender por que é que o Vietname teve nele consequências tão demolidoras.

 

Milly Corwin torceu a cara e franziu as sobrancelhas. O que está você para aí a dizer? Tirou subitamente o porta fotografias das mãos de Owen e olhou para ele como que a verificar a sua sanidade mental.

 

Owen inclinou-se e deu um toque no cartão do lado da fotografia do rapaz de olhos sérios. Não acha que ele tem um ar um pouco triste?

 

Ela riu-se. Você está a confundir tudo. Esse não é o Benjamin. Esse é o rapaz adoptado. E apontou para o de cara sorridente. Este é que é o meu Benjamin.

 

Owen pegou novamente no porta fotografias e ficou a olhar para os dois jovens. Milly... Menina Corwin... começou ele calmamente. O homem que se chamava Bram Serian, o homem que se tornou famoso e que casou com Lenore e que morreu no passado mês de Agosto é o que está aqui a sorrir. E este apontou para o rapaz melancólico e de cabelo escuro este é o homem a quem chamavam Al e cujo paradeiro se desconhece.

 

Mas... Milly abanou a cabeça. Não compreendo.

 

O seu sobrinho Benjamin foi quem passou a usar o nome de Bram Serian. E o seu outro sobrinho... o seu sobrinho adoptado, passou a chamar-se Al.

 

Ela pôs a sua mão a tremer sobre a testa. O meu Benjamin adoptou o nome de nascimento do seu irmão adoptado?

 

Receio bem que tenha sido assim. E o Abe, o rapaz adoptado, ficou com o nome Al.

 

Então foi o meu Benjamin que morreu em Agosto. Apertou as mãos de encontro ao peito como que a tentar controlar a sua dor. O coração bem me dizia que algo de mal tinha acontecido àquele rapaz, logo que deixou de vir o correio. Mas ainda tinha esperanças...

 

Passou algum tempo antes de voltar a falar. Depois disse, Sim. Faz sentido que fosse o Benjamin a conseguir ter sucesso.

 

O Benjamin foi sempre aquele que queria fazer coisas. Aquele que tinha ambições. E faz sentido que procurasse tomar conta do irmão. Desde o princípio que se tornou o protector do irmão e o irmão sempre precisou da sua protecção.

 

E por que acha que o Benjamin teria mudado o nome para Bram Serian? perguntou Owen. Por que se teria livrado do seu próprio nome de família e quereria ser conhecido pelo nome de nascimento do irmão adoptado? Isso faz para si algum sentido?

 

Milly soltou um suspiro. Parece-me que sim, se quisermos enfrentar a realidade da sua vida. Parece-me que sim. Sente-se aí que eu conto-lhe o resto da história.

 

Milly Corwin ficou muito calada por instantes, como se estivesse a pensar como havia de começar.

 

A Celeste tinha andado muito preocupada que houvesse ciúmes ou brigas entre os rapazes, uma vez que foram de repente colocados juntos, sem terem tido qualquer oportunidade de se conhecer primeiro. Mas desde o primeiro momento aqueles rapazes ficaram muito chegados, como se fossem duas metades que estavam à espera de se unir para formar um todo. Era uma coisa que merecia ser vista. Às vezes até fazia impressão. Um deles olhava para o outro do outro lado da sala e a gente ficava com aquela impressão de pele de galinha que eles tinham acabado de falar um com o outro e tomado uma decisão sem dizer uma única palavra.

 

Quando foram os dois para a escola, dava gosto olhar para eles. O Benjamin com um aspecto muito saudável e sempre bem disposto e o Abe, muito franzino, com aquele cabelo castanho liso que nunca ficava penteado e aqueles olhos que absorviam tudo. A Celeste sempre disse que ele tinha o dom da vista, que ele via com mais perspicácia do que todos nós.

 

O facto de o Abe ter sido adoptado do asilo municipal era do conhecimento público e, embora os adultos comentassem que tinha sido um acto piedoso aceitar assim uma criança, a verdade é que eles consideravam o Abe inferior e transmitiam aos filhos essa maneira de ver. Na escola os outros miúdos intimidavam o Abe e o Benjamin estava sempre a meter-se em sarilhos ao tentar proteger o seu novo irmão. A Celeste e eu passámos semanas a remendar a roupa daqueles rapazes e a tirar manchas de sangue das suas camisas diariamente depois da escola. Depois as brigas acabaram. Mas os rapazes voltavam todos os dias tristes da escola e pediam para não ter de voltar para aquela escola. O que vim a saber mais tarde, depois de ter falado com o professor da escola na loja de ferragens em Ridley, foi que o Benjamin e o Abe tinham sido completamente postos de parte pelos outros rapazes. Como se fossem pequenos leprosos.

 

Ora isto não preocupava a Celeste nem o Gus. Os pais não se preocupavam com o facto de os filhos terem amigos ou de se divertirem naquela altura. Para dizer a verdade, o Gus e muitos outros homens como ele não acreditavam no divertimento entre as crianças. Achavam que o carácter de uma criança tinha de ser moldado com trabalho árduo e muita disciplina. Mas eu ficava preocupada ao pensar naqueles dois rapazinhos juntos num campo de recreio da escola cheio de inimigos, por isso procurei sempre ser para eles uma amiga especial para os compensar.

 

__ As coisas continuaram assim durante anos. O Gus tinha a sua agricultura. A Celeste e eu fazíamos a limpeza e cozinhávamos e fazíamos conservas e outras tarefas de casa. Costurávamos toda a roupa, com excepção da roupa de ganga calças e fatos-macacos e coisas do género. Fazíamos toalhas de chá dos sacos de farinha e colchas de pedaços de tecido especiais e mantas de trapos de retalhos. De vez em quando convencia-a a plantar lírios e lilases, embora compreendesse os seus motivos para não ter embelezado o exterior há mais tempo. Ela detestava mesmo aquela casa e estava determinada a fazer com que não tivesse o aspecto acolhedor quando vista do exterior, porque isso faria com que as outras pessoas ficassem com uma boa impressão do Gus. Os homens são sempre avaliados pelo exterior e as mulheres pelo interior e ela não queria que ninguém pensasse que o Gus tinha conseguido tornar a casa agradável.

 

- Quanto aos rapazes, eram puxados em duas direcções. O Gus queria ter o Benjamin junto dele a maior parte do tempo e a Celeste queria ter o Abe junto dela. O problema era que os rapazes queriam estar juntos. Por isso umas vezes iam com o Gus, o que fazia com que a Celeste ficasse amuada e barafustasse, dizendo que ninguém a estimava, outras vezes ficavam com a Celeste e comigo, o que levava o Gus a dizer todo o tipo de coisas desprezíveis, chamando-lhes mariquinhas e meninos da mamã e bebés.

 

Houve alguns ressentimentos e pequenas brigas entre a Celeste e o Gus naquela altura, mas não foi nada de especial. Pelo menos até ao verão em que os rapazes fizeram nove anos.

 

Nove anos é uma boa idade para uma criança, sabe. Uma criança de nove anos já sabe fazer muitas coisas. Sabe seguir instruções e segurar com firmeza uma lanterna eléctrica e entregar as ferramentas certas quando lhe são pedidas, e colocar o isco no próprio anzol. Sabe contar uma anedota depois de a ouvir e sabe como comportar-se na presença de outros adultos se a gente quiser levá-lo à cidade. Por isso, logo que os rapazes saíram da escola naquele verão, o seu nonO verão, as guerras começaram. A Celeste queria o Abe. O Gus queria o Benjamin. E nenhum deles queria que os dois rapazes gostassem de ficar juntos.

 

- A Celeste estava sempre zangada com o Benjamin, dizendo-lhe que estava sempre a criar problemas, dizendo-lhe que devia deixar o irmão em paz e ficar junto do pai que era da sua espécie. E o Gus mostrava cada vez mais má vontade em relação ao Abe, dizendo-lhe que ficasse em casa com o seu rabo de maricas e que deixasse o irmão ir trabalhar com os homens. Ambos os adultos culpavam a criança de que não gostavam, de os privar da companhia da criança que queriam que estivesse com eles. E os rapazes ficavam tristes, apanhados no meio, mas ainda mais tristes quando estavam separados. Acho que aqueles rapazes se aperceberam de que os adultos eram seus inimigos e que a sua única esperança estava em manter-se unidos.

 

Agora não fique com a ideia de que estes rapazes não tinham trabalho para fazer. Eles tinham um monte de tarefas. Mas durante o verão há tempo para fazer tarefas e para o divertimento.

 

A Celeste começou a oferecer mais viagens à cidade, para comer cones de gelado da Dairy Queen e comprar livros de banda desenhada na drogaria, como incentivos para se sentirem mais cativados por ela do que pelo pai. E o Gus aparecia com a pesca. Se fossem com ele, levava-os para o rio à pesca de linguados e gatos touros, logo que terminassem o trabalho da fazenda.

 

Os rapazes gostavam tanto de ir à cidade com a Celeste como de ir à pesca com o Gus, de modo que nenhum dos adultos ganhou essa contenda. E eu pensei que a questão se resolveria quando a Celeste e o Gus verificassem que estavam empatados e desistissem de tanto esforço. Mas nenhum deles queria ceder.

 

A Celeste acalmou em relação ao Benjamin e deixou de ser tão desagradável para com ele. Parece-me que se apercebeu de que o Abe estava dependente da proximidade do Benjamin e desistiu porque, acima de tudo, queria o que fosse melhor para o Abe. Mas o Gus nunca abrandou em nada na sua vida. E claro que não abrandou em relação ao Abe. Estava determinado a mostrar ressentimento contra o rapaz adoptado e encontrava imperfeições no Abe em tudo o que podia.

 

Quando eu vivia lá, mesmo no meio daquilo, não me apercebi de como aquelas crianças estavam a ter uma infância cruel. Naquela altura eu era o género de mulher submissa e tinha medo do Gus e medo de perder o meu lugar naquela casa. Mas agora quando faço a retrospectiva, até sinto o sangue a ferver ao pensar na maneira como aqueles rapazes foram tratados. A Celeste não era mãe para nenhum deles. Subornava-os para ter a atenção deles e chorava e amuava e fazia-os sentirem-se terrivelmente culpados quando não conseguia o que queria. Nunca os castigava nem lhes lembrava as suas tarefas; e depois, quando eles se esqueciam de fazer uma tarefa ou faziam mal alguma coisa, ficava sentada e esperava que o Gus explodisse com eles. Ficava satisfeita quando isso acontecia porque gostava de ser aquela que os confortava quando estavam em dificuldades.

 

E o Gus... andava pela cidade e participava nas ceias da igreja com aquela maneira própria, calado e calmo, a ouvir a conversa do vizinho sobre o tempo e o preço do trigo e por aí adiante, mas quase sempre sem falar muito de si próprio, e toda a gente pensava que ele era um tipo impecável. Um homem modesto, humilde e temente a Deus. Um agricultor inteligente, um bom marido e um pai excelente. Mas em casa ele mostrava a sua veia de mau génio. Fervilhava de raiva à mais pequena coisa e tratava aqueles rapazes como se fossem cães... para serem acariciados, chicoteados, fazê-los passar fome ou amaldiçoá-los conforme a sua disposição.

 

Claro que se os chicoteasse ou se implicasse com eles, era sempre o Abe o mais castigado. O Abe automaticamente apanhava mais pancadas com um pau ou mais chibatadas com um cinto ou maldições mais feias e aviltantes. O Gus chamava-lhe bastardo papista e bola de gordura gerada pelo diabo, por haver rumores de que o pai natural do Abe era de Portugal. Também lhe chamava outras coisas que não quero repetir. E não era só o facto de o Abe ter sido adoptado e indesejado que provocava tanto ódio no Gus. O Abe tinha a sua própria maneira de reagir que fazia o Gus transformar-se numa máquina furiosa, aquele modo de olhar directamente para o Gus sem se encolher de medo nem demonstrar o mínimo sentimento de culpa. E não chorava nem um bocadinho quando o Gus o chicoteava. Adquiria aquela palidez no rosto, como se o seu espírito se escondesse algures lá bem no fundo.

 

Bem, de um modo geral o estado das coisas era bastante mau, mas lá para o fim do verão começou mais qualquer coisa. Tanto a Celeste como eu apercebemo-nos daquilo ao mesmo tempo, que os rapazes ficavam mais calados e menos brincalhões quando estavam connosco, e que o Abe estava a ficar assustadiço, dando saltos quando ouvia pequenos ruídos como um potro meio domesticado. Tentámos questionar os rapazes, mas eles limitavam-se a olhar um para o outro e a encolher os ombros. Observámo-los quando estavam com o Gus, suspeitando naturalmente que era ele o causador, mas por estranho que nos parecesse, o Gus parecia ter criado alguma descontracção entre os rapazes.

 

Então um dia estávamos a lavar a roupa e a Celeste fez um comentário sobre o facto de parecer que as cuecas dos rapazes estavam a desaparecer. Não havia tantas como costumava haver. Eu ri-me daquele facto, mas quando acabámos de dobrar a roupa tornou-se evidente que o monte de roupa interior não estava tão grande como devia ter ficado.

 

Concordámos que era estranho. Tínhamos acabado de encomendar um grande fornecimento de roupa interior para eles do catálogo Sears, toda com o mesmo tamanho. Apesar de o Benjamin ter uma constituição mais forte do que o Abe, tinham a mesma altura e usavam os mesmos tamanhos. Por isso não sabíamos quem andava a perder as cuecas.

 

“Achas que algum dos rapazes andou porventura com diarreia e sujou as cuecas e teve vergonha de que pudéssemos vê-las?” perguntei eu.

 

A Celeste não me respondeu, mas percorreu aquele monte, peça por peça, verificando o interior da roupa.

 

“Há umas pequenas manchas em algumas destas peças,” disse ela. “Mas são de sangue e não de diarreia. Os seus olhos ficaram pequeninos como sempre ficavam nos momentos em que ela estava pronta para explodir. “Aquele maldito homem tem andado mais uma vez a bater demasiado nestes rapazes. Maldita seja a sua alma!

 

Naquela noite, depois do jantar, o Gus foi lá para fora sentar-se a aparar uma vara com a faca e a ouvir rádio como fazia habitualmente. Os rapazes começaram a segui-lo, mas a Celeste disse-lhes que ficassem ali quietos. Logo que o Gus se encontrou suficientemente longe para não poder ouvir, ordenou aos rapazes que fossem para o quarto.

 

“Algum de vós tem as nádegas inflamadas? perguntou ela. “Ou são os dois?

 

Aqueles rapazes olharam um para o outro como se tivesse acabado de passar um fantasma por cima das suas sepulturas.

 

“Eu estou bem disse o Benjamin.

 

E tu Abe?

 

“Acho que me magoei nalgum sítio confessou ele.

 

A Celeste mandou sair o Benjamin da frente e ordenou ao Abe que baixasse as calças e que se colocasse de cabeça para baixo na cama. “Traz-me alguma gaze e água oxigenada e tintura de iodo, Milly. E talvez também um pouco de pomada.

 

Corri para a casa de banho e voltei imediatamente. O Abe tinha as calças à altura das ancas e estava dobrado para baixo quando voltei. Mexia-se mesmo devagar como se tivesse alguma coisa magoada. Ainda tinha as cuecas vestidas.

 

Logo que se colocou na posição adequada, a Celeste puxou-lhe a roupa interior para baixo. Eu estava à espera de ver golpes profundos ou marcas de cinto nas suas pobres nádegas de criança, mas não havia nada disso. As nádegas estavam tão macias e limpas quanto era possível.

 

As suas nádegas estavam boas. Era o ânus que estava todo machucado. Avermelhado e com escaras e com aspecto inflamado.

 

“Meu Deus do céu, Abe, por que não me falaste nisto? disse a Celeste.

 

“O que é isso? Perguntei. “Alguma espécie de impigem ou infecção?”

 

“Não sei,” disse a Celeste, mas percebi que se passava alguma coisa na sua cabeça porque ela ficou com a cara pálida e com os lábios cerrados, e aquilo assustou-me porque pensei que o Abe pudesse ter alguma doença grave que eu não conhecia. Talvez alguma coisa provocada pelo facto de nadar nu naquele ribeiro sujo. A Celeste estava sempre a dar-lhes sermões sobre os germes e a limpeza, mas os rapazes nem sempre lhe prestavam atenção.

 

“Achas que devíamos chamar um médico imediatamente? perguntei-lhe.

 

“Não disse ela. “Acho que nós somos bem capazes de tomar conta disto.

 

Limpámo-lo o mais suavemente que pudemos e pusemos-lhe uma camada espessa de pomada e mandámos os rapazes embora. E eu sussurrei, “O que é aquilo, Celeste? Tens a certeza de que não era melhor levá-lo ao médico?”

 

E a minha irmã olhou para mim de uma maneira que me fez ficar com o corpo todo com pele de galinha. Estava com os olhos furiosos e assustadores, mas os seus lábios estavam sorridentes. “Vamos conseguir resolver esta situação, Milly. Não te preocupes. Agora vai ficar tudo bem.

 

Mas não me quis dizer mais nada.

 

Preparou as coisas de maneira que os rapazes saíssem com o Gus com toda a certeza na quinta-feira. E na quinta-feira de manhã ao pequeno almoço começou a provocar o Gus. A implicar com ele por causa de coisas sem importância e a elogiar a inteligência do Abe, dizendo que os rapazes inteligentes não eram criados para serem agricultores. O Gus estava com os maxilares fechados e a resmungar e os rapazes andavam de costas arqueadas como coelhos assustados na altura em que todos eles saíram do pátio.

 

Sabíamos o que tencionavam fazer. O Gus ia a casa de um vizinho para o ajudar a reparar uma máquina. Iam ficar a almoçar em casa do vizinho; depois dirigiam-se para a estação de serviço na cidade onde iam buscar um pneu reparado para o camião. A seguir iriam para o Nowa Creek, onde iam pescar.

 

A Celeste insistiu que ambas nos vestíssemos de calças. Depois andou pela casa durante toda a manhã como um tigre enjaulado. Telefonou para os vizinhos para verificar se o Gus e os rapazes já tinham acabado de comer e se já tinham ido embora, dizendo que queria contactar com o Gus para lhe pedir que lhe trouxesse uma coisa da cidade. O vizinho disse-lhe que tinham saído cerca de trinta minutos antes. A seguir telefonou para a estação de serviço com a mesma desculpa. O empregado da estação disse que por cinco minutos não os tinha apanhado.

 

Nessa altura transformou-se numa mulher selvagem, agarrando a sua carteira e apressando-me para que entrasse no carro. Dirigimo-nos imediatamente para Nowa Creek, com a Celeste a conduzir com tanta velocidade que eu tive de fechar os olhos durante a maior parte do trajecto. A pick-up do Gus estava estacionada à entrada da pequena ponte, como já esperávamos.

 

Ela encostou o carro à berma da estrada sem fazer barulho e pôs o dedo nos lábios a avisar-me que ficasse caladinha. Depois ela fez uma coisa muito estranha. Tirou da carteira a máquina fotográfica. Era a que ela usava para tirar fotografias instantâneas da família, um aparelho muito simples com um buraco em cima para ligar um cubo de flashes, e já lá estava introduzido um cubo novo de flashes, pronto a funcionar. Entregou-me a máquina fotográfica. Em seguida debruçou-se sobre o assento de trás e levantou um cobertor que tinha colocado no chão e puxou por uma das espingardas do Gus.

 

Eu comecei a tartamudear e a gaguejar, mas ela disse-me que ficasse em silêncio e seguisse atrás dela.

 

O ribeiro Nowa Creek corre ao fundo de uma escarpa muito íngreme. Tivemos de escorregar e deslizar pelo declive para conseguir chegar ao leito do ribeiro. Aquilo lá em baixo era agradável e fresco, e reservado... completamente isolado do movimento que pudesse existir lá em cima. Ao contrário do que acontece no resto da propriedade, ali as árvores cresciam naturalmente. Choupos e salgueiros e nogueiras negras. Eu só queria parar para me sentar a apreciar aquela serenidade, mas a Celeste agarrou-me com força pelo braço e lançou-me um olhar que me fez pôr os pés a andar e a boca calada.

 

O ribeiro variava em profundidade, com partes em que tinha apenas cerca de meio metro, seguidas de locais em que era bastante mais profundo. Caminhámos ao longo da margem por cima das pedras e pequenos bocados de sedimentos arenosos. Eu perguntava-me se iríamos na direcção certa quando, ao contornarmos uma pequena mata de arbustos, avistámos a cabeça loura do Benjamin. Estava sentado em cima de um monte de pedras com a linha de pesca na água, mas de maneira nenhuma parecia um rapaz que estivesse a pescar por prazer. Tinha a cara toda contorcida, como se estivesse a conter-se para não chorar.

 

Quando nos viu, deixou cair a cana e veio na nossa direcção como um fantasma de maus presságios, com um ar ingénuo a esbracejar. “Não pode ir ali abaixo, mamã! O Abe arranjou problemas e o papá está a castigá-lo e disse-me que se fosse lá abaixo.

 

- A Celeste tinha a espingarda encaixada num braço e estendeu a outra e agarrou o Benjamin pelo pescoço e puxou-o para ela de tal maneira que ficou com a cara enterrada na sua roupa. “Caladinho, Benjamin. Vou resolver isto de uma vez por todas. Agora, para onde levou ele o teu irmão? Foram ali para baixo junto do ribeiro?

 

O Benjamin acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

 

“Muito bem, rapaz. Agora senta-te aí nas pedras e espera por mim.

 

Aproximámo-nos sorrateiramente, de costas arqueadas e em silêncio, embora o ruído natural da água e o vento a abanar os choupos encobrissem quaisquer sons que pudéssemos fazer. Eu estava extremamente assustada.

 

Tens a máquina fotográfica pronta? sussurrou-me a Celeste. “Quando lá chegarmos, tiras uma série de fotografias. Só tens que puxar o rolo e disparar, sem parar.

 

Ouvimos qualquer coisa e a Celeste parou junto a um salgueiro e caminhou pela água. Depois ouviu-se a voz do Gus a dizer em tom alto, “Este é o castigo de Deus para os pequenos bastardos papistas, traiçoeiros e mentirosos. Diz lá, rapaz, diz Obrigado meu Deus. A Celeste afastou os ramos do salgueiro de maneira a podermos ver o que se passava e então vimo-los. Estavam num recanto em que um bocado da margem do ribeiro tinha sido escavada pela força da água, de tal modo que se formou um pequeno local protegido. Naquele local alguém despejou uma máquina de lavar roupa. Ali estava ela de pé e ainda nem sequer tinha ferrugem. Ainda estava com uma cor branca brilhante. E de lado, em cima dela estava o meu sobrinho adoptado, Abe, deitado sobre o estômago, com a cabeça e os braços suspensos de um lado e o rabo colocado em cima na borda e com as pernas a balouçar do outro lado. Tinha a camisa vestida, mas as calças e a roupa interior estavam em cima de um arbusto.

 

Uma parte do meu cérebro disse que o rapaz estava assim para o Gus poder chicoteá-lo. O Gus sempre gostara de chicotear os rapazes sem roupa. Mas as próprias calças do Gus estavam parcialmente baixadas e o que estava a acontecer não tinha nada a ver com chicotear. Eu vi claro como a água e tenho fixada na cabeça aquela imagem que ainda aparece nos meus pesadelos, mas naquele preciso momento não consegui compreender o que estava a ver.

 

“As fotografias disse-me ela com uma voz sibilante. “Tira as fotografias! E eu pus aquela pequena máquina fotográfica nos olhos e disparei. Tudo parecia muito pequeno visto através da máquina fotográfica e aquilo não era assim tão feio. Nem sequer parecia verdadeiro.

 

O flash disparou duas vezes antes de o Gus reparar nele. Através daquela máquina fotográfica vi-o parar e voltar-se, expondo toda a maldade dos seus actos. Vi-o a puxar as calças para cima e a correr para nós como um touro determinado a matar.

 

“Eu já trato de ti, Celeste! berrou ele.

 

Então parei de tirar fotografias e preparei-me para fugir, mas a Celeste avançou naquele momento. Avançou pelo meio daquele salgueiro com a espingarda apontada para a barriga dele e obrigou-o a parar.

 

Tu não te atrevias a disparar sobre mim disse ele, mas a sua voz não parecia muito segura e não quis correr o risco.

 

“Abe chamou ela, “consegues descer daí e vestir as calças sozinho?

 

O Abe não respondeu, mas desceu para o chão, com ar de quem está com dores e começou a vestir as calças.

 

“Estás a ver aquela máquina fotográfica que a Milly tem nas mãos?” disse a Celeste ao Gus. Quantas fotografias tiraste, Milly?

 

A minha mão estava a tremer, mas levantei a máquina para ler o número. “Nove,” disse eu surpreendida, porque não me lembrava de ter disparado e passado o rolo tantas vezes.

 

“Sabes o que acontece a um homem que faz o que tu fizeste, Gus?

 

“Eu sou o chefe desta família e castigo os meus rapazes da maneira que eu achar mais apropriada.

 

“Isso não é castigo. Isso é um crime! Perante Deus e perante a lei!

 

“Deus não toma conta daquela criança bastarda que tu me enfiaste pela garganta dentro, mulher.

 

“Tu não podes saber isso, Gus Hanselmann, porque tu perdeste Deus. E agora acabaste de perder muito mais do que isso. Ela voltou a sorrir com aquele sorriso mesmo assustador. “Estas fotografias são a prova daquilo que tu és, e se não fizeres exactamente o que te vou dizer, vou levar aquele filme directamente para o gabinete do xerife e mando-te para a prisão que é onde devias estar.

 

“Abe, afasta-te dele. Não te aproximes da imundície. E vai ter com o teu irmão e vão os dois para o carro. Está estacionado junto à ponte.”

 

“O que estás tu a pensar fazer?” perguntou o Gus, e foi a primeira vez que alguma vez o ouvi falar cheio de medo.

 

“Vais caminhar à minha frente e vais meter-te na tua pick-up e vais seguir-nos para o escritório do advogado. Depois vamos entrar juntos, ambos com um ar simpático, com aquele filme guardado na carteira da Milly e vais dizer ao advogado que decidiste mudar o teu testamento de maneira que o Abe possa herdar a fazenda com os mesmos direitos do Benjamin. E vais dizer-lhe que queres isso numa espécie de crédito ou qualquer coisa que nunca possa ser alterada. Que decidiste que não era justo que um dos rapazes ficasse de fora, sem nada.”

 

A cara do Gus ficou vermelha escura e a sua respiração tornou-se estranha, de tal maneira que pensei que ele era capaz de cair para o lado e morrer ali mesmo.

 

“Depois aquele filme vai ficar bem guardado,” continuou a Celeste. “Vou metê-lo num envelope com uma carta sobre o que deve ser feito com ele no caso de alguma vez me acontecer algo de suspeito, ou no caso de tu quereres violar o testamento. E vou dizer nessa carta que a Milly ou o Abe podem ficar com esse filme e usá-lo contra ti no caso de eu morrer e tu começares a portar-te mal.

 

“Tu sempre disseste que eu era esperta, Gus. E eu pensei nisto com muito cuidado. Estás a ouvir o que estou a dizer? Compreendes que aqui este pequeno rolo de filme coloca as tuas partes privadas presas num torno e que posso esmagá-las até as transformar em polpa se não fizeres o que te digo a partir de agora. Estás em dívida para com o Abe e estás em dívida para comigo e está na hora de começares a pagar o que deves.”

 

O Gus estava um homem diferente na altura em que o pusemos a caminhar à nossa frente para a sua carrinha. Parecia dez anos mais velho e com uma atitude muito mais submissa do que antes.

 

Aquela foi a coisa mais feia e mais maldosa que eu tinha visto em toda a minha vida, e mais tarde, depois de o assunto da Celeste estar resolvido e de termos voltado para casa em segurança e deixado o Gus sentado na sua pick-up na cidade, eu só queria encostar aqueles rapazes ao meu peito e chorar, apenas chorar. Mas a Celeste não o permitiria.

 

“Não há tempo para choraminguices disse ela. Deixou que o Abe tomasse um banho e se deitasse, mas pôs-nos a trabalhar a mim e ao Benjamin. Tirámos tudo quanto era do Gus do quarto principal. Levámos todas as suas coisas para o sótão. E mudámos as minhas coisas do sótão para baixo, para eu passar a dormir com a Celeste.

 

“Aquele homem nunca mais volta a partilhar a cama comigo disse ela, e eu sabia que ela estava a falar a sério.

 

Durante alguns meses depois de aquilo acontecer, as coisas correram muito tranquilas. Os rapazes voltaram para a escola. O Gus manteve-se afastado, ficando lá fora ou no sótão ou saía simplesmente a maior parte do tempo. À hora das refeições ficava ali sentado como uma pedra enquanto a Celeste conversava sobre mexericos e sobre as colheitas e as actividades diárias. Os rapazes e eu nunca dizíamos uma palavra a não ser para pedir que passassem as batatas e coisas semelhantes.

 

Foi quando a Celeste começou a ficar muito obcecada com os germes. No princípio não parecia assim tão estranho. Ela sempre tinha sido daquelas que levam a peito os artigos das revistas, aqueles que falam da limpeza e das bactérias e das infecções e tudo isso, e quando começou a esfregar com escovas de dentes e a aspirar o chão com mais frequência e a limpar diariamente os lava-louças e a casa de banho e a banheira com lixívia, ninguém ligou muito àquilo. Mas depois começou a preocupar-se consigo própria, a lavar as mãos de quinze em quinze minutos e a tomar dois ou três banhos por dia e a pulverizar em seguida a pele com Lysol como se vaporiza água de colónia. Estava constantemente a insistir com os rapazes que andassem limpos e contava-lhes histórias sem fim sobre os horríveis germes que estavam escondidos nas cavidades dos seus corpos.

 

Proibiu-nos de usarmos sapatos dentro de casa e passámos a ser como aquelas famílias japonesas que deixam os sapatos em fila à entrada da porta e toda a gente anda pela casa em passos silenciosos, só com as meias calçadas.

 

Com tudo aquilo, o Gus começou a andar pela casa batendo os pés e a resmungar. Abusando da paciência dela em pequenas coisas. Sobretudo recusando-se a tirar os sapatos. Trazendo-os propositadamente cheios de lama e de estrume ou deixando marcas sujas das mãos por todo o lado. À medida que o tempo passava, ele foi ficando mais confiante e arranjou novas maneiras de se desforrar dela. Nunca voltou a dar uma ajuda a nenhum dos rapazes, mas dizia as coisas mais horríveis ao Abe sempre que a Celeste se encontrava fora do alcance da sua voz. E passou a ser rabugento também para o Benjamin, gritando com ele a toda a hora por ser tão desastrado e estúpido.

 

Foi mais ou menos por essa altura que Fred Kunstler entrou na minha vida. Eu já conhecia o homem desde há muitos anos, uma vez que ele era membro regular da nossa comunidade religiosa e tudo o mais, mas eu nunca lhe tinha dito mais do que o que habitualmente se passa entre um frequentador da igreja e outro, quando uma dessas pessoas é uma senhora solteira e a outra é um homem casado.

 

A mulher do Fred tinha estado muito doente durante algum tempo e tinha finalmente ido para o seu descanso final. Ele manteve-se afastado da vida social durante cerca de seis meses e depois voltou à sua vida normal, aparecendo nos serviços litúrgicos, mas sem participar nas reuniões sociais, nem nas ceias de farnel e recusando todas as ofertas de ajuda. Mas nós sabíamos que tinha quem cuidasse dele, pois ele tinha filhos casados espalhados pela região e eles apareciam com muita regularidade para o visitar.

 

Então um dia, inesperadamente, a Celeste e eu estávamos a limpar o frigorífico, quando apareceu Fred Kunstler no seu carro. A Celeste acenou-lhe da janela com a mão e gritou-lhe para que entrasse.

 

“O Gus não está cá,” disse ela logo que o Fred entrou na cozinha.

 

O Fred não disse nada. Ficou a olhar para nós por momentos, enquanto acabávamos de limpar o frigorífico e depois disse, “Não tem, por acaso, um copo de chá para uma pessoa que está cheia de sede?”

 

Fui buscar-lhe o chá e ele sentou-se à mesa e conversou sobre várias coisas, até que acabámos a nossa tarefa doméstica e nos sentámos com ele à mesa.

 

Ele começou a falar do tempo que já tinha passado desde a última vez que tinha ido ao cinema e a Celeste disse-lhe que o Gus achava que os filmes eram um desperdício de tempo e o Fred disse que um filme interessante era melhor do que beber uísque em demasia e nisso ela concordou com ele. Durante o tempo todo a Celeste não parou de me lançar olhares e pusemo-nos a imaginar o que diabo teria passado pela cabeça de Fred Kunstler, que não tinha estado dentro daquela casa mais do que uma ou duas vezes em todos aqueles anos desde que a Celeste ali vivia.

 

“E você, menina Milly?” perguntou ele. “Qual é a sua opinião sobre o cinema?”

 

“Eu gosto de ver um bom filme,” disse eu. “Se bem que já nem me lembro da última vez que fui ao cinema.”

 

“Importava-se de ir hoje ao cinema na minha companhia?”

 

Fiquei de boca aberta e podia ter sido derrubada da minha cadeira apenas com uma pena.

 

“Meu Deus” disse a Celeste. “Está a pedir à Milly para sair consigo, Fred Kunstler?”

 

“Parece-me que sim, Celeste.”

 

Pareceu-me que a Celeste estava quase a meter os pés pelas mãos, por isso disse, “Senhor Kunstler, ficaria muito satisfeita em ir consigo ao cinema hoje à noite.”

 

Se fizer uma retrospectiva, verifico que aquilo foi o começo da minha segunda oportunidade de ter uma vida de facto. O Fred e eu começámos por nos encontrar uma vez por semana. A Celeste gozava com isso e dizia-me que eu era doida se lhe permitisse que tomasse certas liberdades comigo. O Gus ficou furioso com tudo aquilo. Ficou desvairado e teve um acesso de raiva porque havia falatório por toda a cidade e porque eu era muito velha para me meter naquelas confusões. Mas ele nunca disse uma única palavra sobre isso ao Fred.

 

Por essa altura ficou pronto o quarto do Gus. A Celeste já estava farta de ele trazer porcaria para dentro de casa e de andar a subir e a descer as escadas para o sótão, por isso tinha usado as poupanças que tinha, em segredo, para contratar carpinteiros para lhe construírem um anexo à casa. Tinha uma porta de entrada do lado de trás e uma outra porta que dava para a cozinha. Tinha-o mandado construir com bastante espaço, para poder pôr lá a cadeira reclinável do Gus, assim como o seu armário cheio de papéis importantes e uma mesa com um candeeiro e um suporte para todas as suas armas. Quando terminou, não ficou um único vestígio do Gus no resto da casa.

 

O Gus pareceu ficar contente com o seu novo quarto. E eu tive de voltar a mudar-me para o meu sótão particular, por isso também fiquei contente. E todos nós respirámos de alívio com o Gus separado de todos nós. O Fred achava que a Celeste estava a agir mal, ao pôr o marido fora de casa daquela maneira. Ele ainda tinha o Gus em elevada consideração, tal como tinha toda a comunidade. Achavam que o Gus era um agricultor de primeira classe e um bom chefe de família e um membro de confiança da igreja.

 

Ainda me lembro do olhar de surpresa na cara do Fred, quando teve a primeira demonstração do Gus autêntico. Foi num sábado à noite. O Fred veio buscar-me depois do jantar, como de costume, íamos sair para ir comer uma fatia de tarte e tomar um café para lá das duas próximas cidades e para irmos ver um filme cómico que estávamos ambos ansiosos por ver.

 

Dei um beijo de despedida aos rapazes e o Fred brincou um pouco com eles. Depois saímos pelas traseiras e o Fred abriu a porta do carro para eu entrar. Subitamente, o Gus saiu pela porta fora como um louco a praguejar contra nós e a levantar o punho.

 

Eu sei bem o que vocês os dois andam a fazer!” gritava ele. “Eu sei bem as coisas indecentes que vocês vão fazer

O Fred apressou-me a entrar para o carro e partimos sem dizer uma palavra um ao outro. Por fim eu disse, “Agora já compreende por que é que a Celeste mandou construir um quarto só para ele.”

 

O Fred fez um aceno com a cabeça mas não quis adiantar mais conversa sobre o assunto.

 

Oh... Eu estava fascinada pelo Fred. Ele não me fazia ficar de olhos incrédulos como o meu noivo, quando era mais nova, mas era do género sensato. A sua companhia era agradável e era simpático para com os seus animais e os filhos. E podia dar-me o que eu nunca tinha tido antes... uma vida própria. Mesmo que fosse o que sobrara de outra mulher, como a Celeste estava sempre a lembrar-me. Eu sabia que o Fred ia acabar por me pedir em casamento desde que lhe desse tempo para isso, e o meu receio era que o Gus pudesse afastá-lo e dar cabo daquela minha oportunidade.

 

Comecei a pensar em fazer as coisas de maneira mais discreta. Procurando encontrar-me com o Fred ao fundo do caminho ou pedindo à Celeste para me levar no carro a algum sítio, para me encontrar com ele. Tudo o que me era possível para o manter afastado do Gus.

 

Mas o Gus sabia o que eu andava a fazer. Fazia comentários desagradáveis sobre as novas maneiras de eu arranjar o cabelo e sobre os novos vestidos que eu mandava fazer, para usar quando saía com o Fred. E todas as vezes que me apanhava a sair discretamente de casa, agarrava-me e esfregava as suas mãos sujas na minha cara e no meu vestido ou tirava-me os ganchos do cabelo... tudo o que podia, para fazer com que eu ficasse de mau aspecto para o meu encontro com o Fred.

 

Insisti com o Fred para que me deixasse ao fundo do nosso caminho quando voltávamos à noite. Dava-me um beijo com toda a dignidade, como se estivéssemos junto da caixa do correio, depois ficava a observar-me enquanto eu caminhava até à porta e só depois é que arrancava e ia embora. A porta da frente estava muito bem fechada para impedir as pessoas de passarem pela sala de estar, por isso tinha de dar a volta pelas traseiras e entrar pela cozinha. Eu entrava o mais silenciosamente que podia, mas o Gus habituou-se a ficar à minha escuta e no preciso momento em que ouvia as tábuas do chão a ranger, irrompia daquele quarto que era dele.

 

Aquele homem disse-me coisas horríveis. E dizia-as em voz alta, portanto sei que a Celeste e os rapazes também as ouviram, embora ninguém falasse nunca daquilo. Acusava-me de ser uma prostituta e de andar a desencaminhar o Fred para o pecado. Depois de conseguir escapar dele e de subir para o meu quarto, ficava a tremer que nem uma folha. Arrastava-me para debaixo dos cobertores e pedia a Deus de todo o coração que Fred Kunstler me propusesse casamento. E depois acalmava-me a imaginar como seria quando fosse senhora da minha própria casa.

 

O Fred esteve quase a propor-me casamento. Meu Deus, foi mesmo por um triz. Andou a rodear a questão durante semanas e eu sabia que estava quase para avançar. Fiquei tão nervosa que mal conseguia comer.

 

“O que se passa contigo, Milly?” perguntou-me a Celeste à mesa de jantar. “Não consegues comer? Estás com o nervosismo de quem sofre por amor?”

 

Eu detestava que ela dissesse aquilo em frente do Gus e dei-lhe um pontapé com força por baixo da mesa, mas em vez de se calar, ainda disse, “Uauuu, estás muito susceptível, heim? Ele deve estar quase a disparar a pergunta fatal.”

 

O Gus não disse nada, mas saiu sem acabar de comer a comida que tinha no prato.

 

Naquela noite, quando entrei silenciosamente em casa, a minha cabeça andava nas nuvens como um papagaio. O Fred tinha-me perguntado se podia ir a casa dele dentro de duas semanas, para um grande jantar de família. Todos os seus filhos e as famílias deles iam estar presentes. Eu sabia o que aquilo significava. O Fred estava a reunir a família para fazer uma declaração formal.

 

Consegui entrar pela cozinha sem que o Gus saltasse da porta do seu quarto, e eu tinha a impressão de estar a deslizar com a leveza de uma nuvem, enquanto subia as escadas estreitas de acesso ao sótão. A percepção de que o Gus estava mesmo atrás de mim e a pressão do seu braço no meu pescoço surgiu tão repentinamente que não tive tempo de fazer absolutamente nada. Ele levantou-me do chão e aquele braço comprimiu-me a garganta de tal maneira que não conseguia respirar e via tudo a girar à minha volta.

 

Imediatamente a seguir, senti que estava na minha cama com o vestido puxado para cima e ele estava a puxar as minhas cuecas. Eu ainda estava com tonturas mas tentei sentar-me. Ele deu-me um empurrão para baixo e pôs-me uma almofada na cara e carregou com força. Consegui virar a cabeça para o lado para poder respirar e então... Bem, não me apetece contar o resto. Eu tinha-me mantido casta até àquele momento da minha vida, mas a partir de então deixei de ser pura.

 

Depois de ele ter ido embora, fiquei quietinha durante muito tempo. Depois desci as escadas e vomitei. Lembro-me de estar ajoelhada em frente da sanita durante muito tempo, até que por fim comecei a perguntar-me o que estava a fazer ali. Então lembrei-me e fiquei outra vez enjoada.

 

Fiquei mesmo assustada ao pensar que havia apenas uma parede entre mim e ele e saber que ele podia voltar de novo atrás de mim. Os meus joelhos ficaram rígidos de estar tão comprimidos contra aquele chão de mosaicos e quando me levantei e tentei caminhar senti-me dolorida nas minhas partes íntimas.

 

Fui para o quarto da Celeste e sentei-me na cama dela e comecei a chorar. Ela estendeu a mão para acender a luz e eu disse-lhe que não o fizesse. Não queria que ela olhasse para mim. Ela ouviu o que o Gus me tinha feito, depois disse-me que me deitasse ao lado dela e começou a dar-me palmadinhas, como se faz a uma criança indisposta.

 

“Vamos dar-te um banho quente,” disse ela, “com lixívia. E podes usar o meu duche para te limpares por dentro. Depois tiramos os lençóis da tua cama e fervemo-los.”

 

“Mas o que é que eu hei-de fazer?” perguntei-lhe. “Achas que chame a polícia?”

 

“Se fizeres isso,” disse ela, “o mais provável é que ninguém acredite em ti. Pelo menos não vão acreditar que foi o Gus. E isso vai dar origem a um escândalo. E Fred Kunstler nunca vai casar contigo.”

 

Comecei de novo a chorar.

 

“Agora fica caladinha,” disse a Celeste. “Já acabou. Pagaste a tua quota parte, tal como todos nós, mas já acabou. Agora vamos proceder à tua limpeza. E tu hás-de casar com o Fred e vais ter uma casa só tua.”

 

Tomei o meu banho e passei ali o resto da noite, segura e limpa, ao lado da minha irmã.

 

Não se notou qualquer alteração no comportamento do Gus no dia seguinte e eu consegui ultrapassar aquela situação. Depois passou mais um dia. E mais outro. E aquela terrível noite foi ficando cada vez mais distante na minha mente, até eu ter a impressão que não passava de um sonho.

 

Correu a notícia na cidade que toda a família do Fred ia chegar dali a pouco. Na quinta-feira telefonou uma mulher a perguntar à Celeste se o Fred e eu íamos fazer uma declaração pública no fim de semana. E alguém deve ter dito ao Gus.

 

Porque quando ele subiu ao meu quarto a altas horas naquela noite, disse que ia arranjar as coisas de maneira que o Fred não quisesse apresentar-me à sua família no Sábado seguinte. Conseguiu o que pretendia de mim; em seguida bateu-me na cara mesmo com força. Eu fiquei ali de pé, até ter a certeza de que ele tinha voltado para o seu quarto e depois desci as escadas e fui direita ao telefone. Marquei o número do Fred e pus-me a chorar e a pedir-lhe que viesse buscar-me. Que me levasse de casa do Gus de uma vez por todas.

 

A Celeste ouviu-me ao telefone e saiu do quarto vestida de roupão, quando eu estava a pousar o telefone.

 

“O que é que tu fizeste?” perguntou ela.

 

“O que é que eu fiz?” naquele momento fiquei histérica e comecei a gritar que não tinha feito nada. E os rapazes vieram a espreitar à porta do quarto.

 

Tu estás maluca disse a Celeste; depois voltou-se e gritou para os rapazes para que fechassem a porta e voltassem para a cama. Apesar de todo aquele barulho, o Gus não apareceu. Ficou ali no seu quarto. Seguro e confortável.

 

O Fred não demorou a chegar com a camisa mal abotoada e com o cabelo levantado. Entrou por ali dentro sem bater à porta. Quando me viu parou abruptamente. Eu ainda não tinha olhado para o espelho, por isso não sabia quão horrível estava o meu aspecto.

 

“Por favor, Fred roguei-lhe. “Por favor, leva-me para a tua casa. Faço tudo o que quiseres. Vou ser para ti a melhor esposa que um homem pode ter, mas leva-me neste instante, por favor.”

 

A maçã de Adão do Fred mexeu-se várias vezes para cima e para baixo e depois disse, “Por que é que tu e o Gus estais a brigar?”

 

“Não estávamos a brigar! Ele atacou-me, Fred. Foi lá acima ao meu quarto enquanto estava a dormir e... atacou-me. Tens de me levar daqui para fora. Se te interessas mesmo por mim...

 

“Ele...” O Fred pôs a mão na boca como se quisesse evitar dizer as palavras. Depois tirou a mão e disse, “Tu e o Gus tiveram relações sexuais?”

 

Aquela pergunta acalmou imediatamente a minha histeria e fez-me ficar subitamente muito envergonhada. Não consegui voltar a olhar para o Fred. “Eu não chamaria àquilo relações disse eu; depois comecei a dizer que amava muito o Fred e que ia ser uma boa esposa para ele.

 

E ele disse jamais esquecerei o que ele disse Fred Kunstler olhou para mim e disse, “Eu pensava que esta era uma boa família, constituída por pessoas fortes e tementes a Deus. Pensava que tu eras uma mulher fantástica, mas agora... Bolas! Isto faz-me pensar, Milly” e saiu imediatamente daquela casa.

 

No dia seguinte a Celeste ouviu dizer que o Fred tinha subitamente fechado a casa e tinha ido fazer uma visita prolongada a um dos filhos.

 

O Gus não voltou a incomodar-me. Mas também não voltei a dar-lhe mais oportunidades. Com a ajuda dos rapazes, pus um ferrolho e um cadeado do lado de dentro da minha porta. A Celeste queixou-se, dizendo que se houvesse um fogo nunca conseguiriam tirar-me dali, mas isso não me preocupava. Comecei também a dormir com uma faca de carniceiro por baixo da almofada.

 

Pouco tempo depois, através da minha correspondência mensal com o meu antigo grupo da igreja de Arcádia, fiquei a saber que uma mulher inválida do grupo, a Lois, tinha ficado viúva e precisava de alguém para lhe fazer companhia. Escrevi-lhe uma carta e finalmente fui-me embora da casa de Gus Hanselmann. Jurei que nunca mais voltaria a pôr ali os pés.

 

Os rapazes ficaram inconsoláveis com a minha partida e eu estava com o coração despedaçado por ter de partir e de me separar deles. Mas tinha de ir. Mesmo apesar de ter pena deles, não podia continuar ali. Naquela altura eles já tinham treze anos e acho que compreenderam.

 

Escreviam-me regularmente. Todas as semanas recebia uma carta. Falavam-me da escola e dos seus passatempos mais recentes. Às vezes mencionavam a mãe, mas nunca escreveram uma única palavra sobre o pai. Algumas vezes, durante as férias do verão, foram de autocarro visitar-me.

 

A Celeste também me escrevia, se bem que não fosse com regularidade. Então, quando os rapazes tinham mais ou menos dezasseis anos, escreveu-me a dizer que tinha um grande caroço no seio e que o médico achava que era demasiado tarde para se poder salvar.

 

Então voltei. O que o Gus me tinha feito passar e o que eu tinha ficado a saber enquanto tomava conta da minha amiga inválida, tinha-me transformado completamente e não tinha medo de voltar lá. Estava disposta a enfrentar Gus Hanselmann e a meter-lhe uma bala no corpo se fosse necessário!” Portanto fiz os preparativos necessários para que alguém ficasse a tomar conta da minha amiga e parti no autocarro, para ir para junto da minha irmã. Cuidei dela durante os dois meses que levou a morrer.

 

Perguntei-lhe por que tinha deixado que aquele caroço ficasse tão grande e ela disse que não tinha reparado que o tinha. Que ela não era com certeza o tipo de pessoa que se tocasse sem uma toalha nas mãos. O seu sofrimento fez-me questionar um certo número de coisas... a minha fé, para começar. Como podia estar certo que uma mulher como a Celeste estivesse a ser castigada de uma forma tão horrível, enquanto que Gus Hanselmann era saudável como um cavalo?

 

Os rapazes ficaram contentes por me ver. Tinham crescido e tinham-se transformado em indivíduos grandes e robustos e o meu coração quase explodia quando os vi. O Benjamin era grande como um boi mas ainda tinha aquela cara redonda e meiga. O Abe era tão alto como o irmão, mas com uma constituição mais parecida com a de um cavalo de corrida, e tinha desenvolvido o tipo de rosto que despertava a atenção das raparigas.

 

Durante todo aquele tempo nunca falei com Gus Hanselmann, nem olhei para a sua cara. Ele comia a comida que eu lhe fazia, mas levava-a para o seu quarto para a comer e nunca passava da cozinha para o resto da casa.

 

Acho que ele se comportava daquela maneira porque sabia que ia ficar em apuros, se eu fizesse as minhas malas e deixasse a Celeste para ele cuidar dela. Aquele seu comportamento tão correcto nunca podia ter sido por pressão dos rapazes, porque eles ainda se sentiam intimidados por ele. Apesar de o Benjamin ser um grandalhão, o rapaz tremia dentro das botas quando o pai gritava qualquer coisa.

 

Não posso deixar de referir que aqueles dois meses foram um inferno. Mas também houve um lado bom. Os rapazes e eu tivemos a oportunidade de voltar a ser amigos íntimos. À noite, depois de ter dado os remédios à Celeste e de a ter posto a dormir, sentávamo-nos todos juntos na sala de estar. A Celeste tinha mandado pôr lá um fogão a lenha, depois de eu ter ido embora, o que tornava a sala muito mais confortável nas noites de inverno.

 

Sentávamo-nos e conversávamos enquanto observávamos o fogão a dar estalos, e foi ali que consegui ver os homens em que aqueles rapazes estavam a transformar-se. O Benjamin e o Abe. Meus pobres rapazinhos.

 

O Benjamin era calmo e forte. Forte nas suas opiniões e forte na sua lealdade. Podia ser irritadiço e ofender-se com facilidade, mas era a bondade em pessoa para com o irmão e comigo.

 

O Abe era tão afável, felizmente para ele. E tinha ficado tão bonito, felizmente para ele. Tinha passado de marginal para um rapaz muito pretendido pelas raparigas, e o problema dele era que não sabia o que fazer com isso. Ficava facilmente confuso e não tinha confiança em si próprio, por isso recorria ao irmão para o orientar em quase tudo.

 

Quanto a capacidades artísticas... Ambos os rapazes sabiam fazer coisas naquela altura. Pequenas esculturas e coisas assim. Mas era o Benja-min que tinha as ideias. Andava sempre a falar com o Abe de algum rapaz do campo que tinha sucesso como artista. O Abe seguia a proposta do Benjamin, fazendo escultura se o Benjamim lhe dissesse para esculpir, mas não tinha aquelas ideias que o Benjamin tinha. O mais engraçado, no entanto, era que o Benjamin era capaz de trabalhar e suar para conseguir fazer alguma estátua maluca com colagens ou coisas do género e depois o Abe punha-se a trabalhar, como que para se distrair, e fazia uma melhor em metade do tempo. Aquilo punha o Benjamin furioso.

 

E claro que era tudo em grande segredo. Os rapazes do campo tinham de ter muito cuidado com o seu interesse por uma coisa como a arte, se não queriam que toda a gente das redondezas se risse deles. Fazer desenhos em couro e recortá-los estava muito bem e soldar um portão com habilidade e fantasia era óptimo e fazer um desenho bonito a lápis da mula do vizinho era óptimo... mas a arte... a arte da grande cidade... isso era para os maricas e para os excêntricos. Eu era a única pessoa com quem eles partilhavam esse segredo.

 

Sepultámos a Celeste no cemitério da cidade de Ridley. Houve uma bonita cerimónia religiosa na igreja, outra no local da sepultura, e depois seguiu-se uma ceia de bufete na cave da igreja. Fred Kunstler não esteve lá. A julgar pela grande assistência e pelas condolências expressas ao Gus, o Fred nunca tinha contado a ninguém nada do que sabia sobre o Gus. Ou era isso ou então as pessoas achavam que o Gus era de qualquer maneira um príncipe. Tudo aquilo enojou-me, ao ver como toda a gente apaparicava o Gus como se fosse um pobre viúvo desolado, quando a verdade era que a única coisa de que ele ia sentir falta da minha irmã, eram as refeições quentes e a roupa lavada.

 

Fui-me embora um dia depois do funeral. Os rapazes foram comigo até à estação dos autocarros.

 

Recomeçámos a escrever cartas uns aos outros e as coisas estavam a correr bem aos rapazes. Pelo menos era o que transparecia do que escreviam nas suas cartas.

 

O Abe fez dezoito anos e o Benjamim estava quase a fazê-los. Mandei ao Abe um cartão de felicitações e um pequeno presente. E já tinha também um pronto para mandar ao Benjamin e até já tinha feito as compras para o dia da sua formatura na escola, que era dali a uns meses. Resolvi comprar-lhes umas malas. Umas malas bonitas com as suas iniciais nas pegas. E estava a pensar em pôr um bilhete em cada uma delas, com uma nota sobre como esperava que eles viessem a usá-las, para verem o mundo mais do que eu alguma vez tinha visto.

 

Quando inesperadamente um dia apareceu-me lá o Abe de carro. Foi no antigo carro da Celeste e estava mesmo muito pálido, mas com a cara cheia de manchas.

 

“Isso é sangue? Magoaste-te, filho?” perguntei-lhe eu.

 

“É por causa do Benjamin. Acho que o Gus é capaz de o ter morto, tia Milly.”

 

Bem, obriguei-o a sentar-se ao meu lado e arranquei-lhe toda a história e isto foi o que ele me contou. Disse que o Gus ficou muito assustado com a morte da Celeste, preocupado com o que poderia acontecer àquele rolo de filme e à carta que tinha o advogado. Por fim resolveu ir ao escritório do advogado e fazer-lhe algumas perguntas e quando voltou, vinha todo inchado e a gabar-se que agora sabia coisas que a Celeste nunca soubera e que já tinha uma maneira de se ver livre daquele filme para sempre e voltar a mudar o testamento a favor do Benjamin e deserdar o Abe.

 

O Abe não sabia qual era o grande plano, mas era qualquer coisa que implicava a colaboração do Benjamin para dar resultado. E o Benjamin não estava disposto a colaborar. O Benjamin continuava a dizer que o Abe era seu irmão e que em nome de Deus merecia metade daquela fazenda.

 

O Gus foi até onde podia, para o convencer a mudar o testamento. Para não falar do facto de o Abe ser um bastardo, de tal maneira que queria dar a ideia de que aquilo era uma espécie de guerra entre ele e a Celeste, que estava decidido finalmente a ganhar.

 

Tudo aquilo rebentou no dia em que eles saíram juntos de manhã cedo na pick-up do Gus e se dirigiram para o sector número quarenta, para ir verificar a vedação de arame, porque o gado do vizinho tinha dado cabo dela durante a noite. O Abe começou a caminhar ao longo da vedação e o Gus começou a meter-se com o Benjamim, dizendo-lhe que um dia tudo aquilo ia ser dele, se tivesse o bom senso de fazer o que estava certo e de ajudar o Gus a pôr o testamento como devia ser.

 

O Benjamin não ligou ao que o pai dizia e limitou-se a abrir a porta de trás da pick-up para tirar a mala da ferramenta e o Gus estava a ficar cada vez mais exaltado e começou a gritar com ele. E de repente o Benjamin respondeu-lhe também aos gritos. Virou-se para ele e disse-lhe, “Quem disse que eu queria a sua maldita fazenda?”

 

Aí o Gus explodiu. O Gus atirou-se contra o Benjamin. Deu-lhe murros | e pontapés e bateu com a cabeça do Benjamin na comporta de descarga. E o Benjamin nunca ripostou sequer. Procurou apenas proteger-se. E enquanto estava a ser espancado, o Benjamin gritava, “Foge Abe!” e o Abe fugiu. Correu durante todo o caminho até chegar a casa e chamou os agentes da lei. Disse-lhes que viessem depressa porque Benjamin Hanselmann estava a ser assassinado.

 

Depois pegou numa espingarda de casa e saltou para o carro velho e conduziu-o até se aproximar o mais que podia do lugar onde eles se encontravam. Conseguiu vê-los. O Benjamin jazendo no chão e o Gus de pé em cima dele, como se fosse uma estátua. Pegou na espingarda e correu pelo campo. O Benjamin estava num estado lastimável. Coberto de sangue e sem se mexer.

 

O Abe deixou cair a espingarda e ajoelhou-se ao lado do Benjamin, que estava a respirar com dificuldade e inconsciente, e o Abe pegou na cabeça do irmão e gritou para o Gus para que se fosse embora antes que o matasse. Naquele momento chegou o velho Vem. Era o representante da lei.

 

“Chame uma ambulância!” gritou o Abe e o Vem disse que já vinha uma ambulância a caminho e então o Vem perguntou o que se tinha passado ali e o Abe apontou para o Gus e disse, “Esse miserável filho da mãe tentou matar o próprio filho. Meta-o na prisão. Está mais louco do que um cão raivoso.”

 

E o Abe deu um salto e correu para o carro da Celeste. E percorreu todo o caminho para vir ter comigo a Arcádia, sem nunca parar a não ser para meter gasolina.

 

Acalmei-o o melhor que pude. Depois peguei no telefone e telefonei para o hospital, para onde calculei que tivessem levado o Benjamin. A mulher que me atendeu na sala de emergências disse-me que tinham uma pessoa chamada Benjamin Hanselmann na sala de operações.

 

Dei a notícia ao Abe e ele baixou a cabeça em cima da minha mesa e pôs-se a chorar como um bebé. Fui buscar-lhe um cobertor para o envolver e a minha amiga inválida veio na sua cadeira de rodas sentar-se ao pé dele enquanto lhe lavei a roupa e arranjei umas coisas para ele levar.

 

“É melhor ficares aqui,” disse-lhe eu, “enquanto vou ver como está o teu irmão e esclarecer o velho Vem sobre quem fez o quê e a quem.”

 

Telefonei a uma das senhoras da igreja para vir tomar conta das minhas tarefas domésticas, subi para o carro da Celeste e dirigimo-nos para oeste para a estrada número 54. Era a primeira vez que eu ia a conduzir sozinha uma distância tão grande, mas calculei que não haveria nenhum problema com isso.

 

Levei cinco horas. Mas o tempo passou depressa com toda aquela preocupação e esperança. Não parava de pensar que, se eu fosse a Celeste, teria matado o Gus Hanselmann pouco depois de o médico me ter dado a notícia de que ia morrer de cancro.

 

Eram cerca das oito horas da noite quando cheguei ao hospital. Encontrei o quarto do Benjamin. Dizia na porta que não eram permitidas visitas, mas mesmo assim entrei. Estava cheio de ligaduras e engessado e tinha a cabeça toda envolvida como se fosse uma múmia e com tubos por todo o lado.

 

Peguei-lhe na mão, que era a única parte do seu corpo que parecia não estar magoada e ele mexeu-se um bocadinho, por isso debrucei-me sobre ele e sussurrei-lhe que era eu e que o Abe estava em minha casa e que já me tinha contado toda a história. Disse-lhe que havia de ir vê-lo em breve, depois de ir falar com o Vem para esclarecer tudo. Aquilo pareceu fazê-lo soluçar um pouco e apertou-me a mão com uma força muito fraquinha e pareceu-me que ele queria dizer-me alguma coisa, por isso pus o meu ouvido mesmo junto da boca dele, mas não consegui ouvir nada.

 

“Não consigo ouvir-te, filho,” disse eu. “Por que não descansas enquanto eu fico aqui sentada ao pé de ti. Posso ficar aqui toda a noite, se quiseres.”

 

Mas ele parecia estar transtornado, mexendo um pouco a cabeça, como se estivesse a abaná-la, então pus novamente o meu ouvido junto da boca dele e disse-lhe que tentasse falar muito devagarinho. E ele disse, “Mantenha... o Abe... afastado. Em segurança.”

 

Falei com uma enfermeira. Fiquei a saber que o Benjamin tinha uma fractura no crânio e um maxilar partido e um braço partido e o baço rebentado... para além de um grande número de pontos. Ela disse que no princípio aquilo parecia muito grave, mas que os médicos estavam satisfeitos com a sua evolução e que ele ia conseguir safar-se desta.

 

Telefonei para casa e contei tudo ao Abe. Disse-lhe que o Benjamin queria que ele ficasse onde estava, onde o Gus não lhe pudesse chegar. Disse-lhe que o irmão ia levar muito tempo até ficar completamente curado.

 

Durante uma semana fiquei ali sentada ao lado do Benjamin todos os dias. O Gus passava por lá uma vez por dia. Quando ele entrava, eu saía do quarto sem lhe dizer nada. Falei com o velho Vem. Não acreditou em mim quando lhe disse que o culpado daquilo era o Gus. O nobre Gus. Disse que tinha de esperar até que o Benjamin pudesse contar o que se tinha passado.

 

Estavam sempre a chegar cartas do Abe. A maior parte delas eram para eu ler ao Benjamin. Mas eu não lhas lia porque receava que pudessem perturbar demasiado o Benjamim. Cada vez que a enfermeira me trazia uma, eu escondia-a ou fazia previamente uma leitura rápida e depois só lhe lia determinadas partes. Porque havia muita confusão no que ele escrevia. O Abe sentia-se horrivelmente culpado por não ter salvo o irmão do Gus e sentia-se culpado por não estar ali ao lado da cama do Benjamin. Eu respondia-lhe e procurava acalmá-lo, mas não me parece que aquilo desse grande resultado.

 

Finalmente, passadas cerca de duas semanas, quando o Benjamin já se sentia muito melhor, chegou uma carta a dizer que o Abe tinha ido para o serviço militar. Dizia que aquilo devia ser a melhor solução para todos, que ele se afastasse durante uns tempos, e achava que talvez o exército lhe instigasse alguma coragem. Disse que em breve voltaria a escrever.

 

O Benjamin ficou desolado quando soube o que se passava com o irmão, mas por outro lado sentiu-se aliviado por saber que o Gus agora não podia tocar-lhe. Disse-me que ele e o Abe já antes tinham falado em fugir e em ir para a tropa. Tal como tinha feito o seu amigo Luke. E não fiquei surpreendida ao saber que aquilo tinha sido em primeiro lugar ideia do Benjamin, porque não me parecia que o Abe pudesse ter feito alguma coisa sem que o irmão a tivesse pensado primeiro.

 

O Benjamin curou-se bastante depressa, se tivermos em consideração as coisas por que tinha passado. Quando o velho Vem veio falar com ele, estava muito pensativo. Perguntou ao velho Vem se podia contar que o Gus fosse metido na prisão no caso de apresentar queixa dele por agressão. O velho Vem disse que, uma vez que se tratava de uma primeira transgressão e tinha acontecido durante uma discussão familiar e o Gus era um excelente membro da comunidade e uma pessoa honesta, provavelmente não aconteceria nada ao Gus.

 

O Benjamin pensou naquilo e disse que não lhe parecia que uma briga doméstica devesse ser demasiado empolada. E que ele tinha tropeçado e tinha batido com a cabeça na comporta de descarga. E que a briga tinha de facto sido por culpa dele. O velho Vem fez um aceno com a cabeça e disse que por ele estava bem assim e toda aquela questão ficou em suspenso.

 

Fiquei furiosa como um moscardo, mas eu sabia por que o Benjamin tinha feito aquilo ainda antes de ele se justificar. Se ele pudesse ter posto o Gus completamente fora de jogo, isso seria uma coisa, mas falar contra o Gus e depois ele ficar em liberdade seria estúpido e perigoso.

 

O Benjamin voltou para casa do hospital com o maxilar todo ligado com arames e com o braço engessado e uma grande quantidade de novas cicatrizes. Pouco depois de ver que ele já conseguia desenrascar-se, fui-me embora. Mas primeiro fui ter com o Gus Hanselmann e disse-lhe que não queria saber do que o advogado o tinha levado a acreditar. Ainda sabia o que estava no envelope da Celeste. Sabia o que tinha visto e sabia o que conseguia provar quem ele era. E se voltasse a pôr a mão no Benjamin, então iria contar ao velho Vem e ao pastor tudo o que tinha acontecido e dava-lhes aquele filme.

 

Depois de me ter ido embora, o Benjamin escreveu-me cartas em que transparecia que o Gus estava a tratá-lo melhor do que nunca. Claro que o Gus tinha montes de razões para se sentir feliz. Finalmente tinha-se visto livre do Abe e tinha conseguido que o Benjamin lhe ficasse submisso.

 

O Benjamin disse que, apesar de tudo, o Gus tinha conseguido mudar o testamento, mas o Benjamin disse-me que não me preocupasse, porque logo que herdasse a propriedade, ia de qualquer modo dar metade ao Abe. A escola secundária permitiu que o Benjamin recebesse o diploma e eu mandei-lhe a sua mala. O Abe escreveu a dizer que o exército tinha arranjado maneira de ele obter o seu diploma, por isso mandei-lhe também a mala dele. Porém não tive qualquer alegria naquela oferta, apenas preocupação com aqueles dois rapazes.

 

O Abe escreveu-me a dizer que a vida militar era fabulosa. Disse que o trabalho não era nada que se parecesse com o que era viver com o Gus e com os seus abusos. Estava muito entusiasmado, ao pensar que se ia encontrar com o Luke e ansioso por que o mandassem para o Vietname, porque as cartas do Luke tinham feito o Vietname parecer-lhe muito exótico. E pareceu-me que o entusiasmo do Abe estava a influenciar o Benjamin, porque o Benjamin começou a escrever-me, dizendo que ia juntar-se com o irmão no exército logo que ficasse completamente curado.

 

Mas depois de ter ido para o Vietname, a disposição de Abe modificou-se. Passou a dizer que o Benjamin, se pudesse, não devia ir para o serviço militar. Que devia informar-se sobre os adiamentos por causa da agricultura ou outras formas, pois o Vietname era horrível. Disse que o Luke não tinha contado a verdade quando escrevia para casa. Depois mandou dizer que não podia continuar a escrever-nos mais cartas nem recebê-las, porque tinha sido escolhido para cumprir missões ultra-secretas e ia passar a agir como se fosse clandestino.

 

Não sabia o que iria acontecer a seguir. Parecia-me que tinha passado o meu tempo todo a preocupar-me que um dos rapazes fosse alvejado do outro lado do mundo e que o outro rapaz estivesse à mercê de um lunático mesmo ali em sua casa.

 

Então, um dia... num dia normal, sem qualquer aviso, nem pancadas arrepiantes que acontecessem repentinamente, nem nada que assinalasse alguma mudança, o telefone tocou. Eu estava a passar a ferro toalhas de chá e levantei o receptor como que casualmente, pensando que fosse uma vizinha. Era o Benjamin. Estava a telefonar do hospital onde tinham acabado de declarar Gus Hanselmann como morto. Assim, sem mais nem menos, estávamos livres. Ou pelo menos assim nos pareceu naquela altura.

 

Mais depressa do que alguém pudesse imaginar, o Gus tinha estado no barracão do equipamento, a arrastar qualquer coisa com uma corrente atrás do tractor. A corrente partiu-se e saltou, batendo no Gus e atirando-o para fora do assento. Depois o tractor descontrolado esmagou-o contra a parede do barracão. Na altura em que o Benjamin o encontrou já estava morto, devido a lesões internas.

 

Meti-me logo no autocarro e fui para junto do Benjamin o mais depressa possível. Fomos juntos escolher o caixão e fizemos todos os preparativos para o funeral.

 

Ele precisava de mim ao seu lado para ultrapassar aquela situação, porque eu era a única pessoa que compreendia que ele não estivesse de luto pelo falecimento do pai. Que não houvesse sofrimento.

 

Claro que logo que pudemos, telefonámos para o serviço militar, para que o Abe pudesse ser notificado. Até tínhamos esperança de que o Abe conseguisse vir a casa para assistir ao funeral. Dois dias depois soubemos que o Abe não pôde ser informado da morte do pai porque o Abe estava desaparecido.

 

O Benjamin então não aguentou mais. Ajoelhou-se e pôs-se a rezar. A pedir a Deus que lhe perdoasse e que não transferisse os seus pecados para o Abe. Suplicando para que o Abe estivesse bem.

 

E então confessou a verdade.

 

O acidente aconteceu de facto como ele me tinha dito. Só que ele tinha acabado de chegar ao pátio na pick-up e presenciou o acontecimento. Viu o Gus a ser atirado contra a parede. Correu para ir ajudá-lo, e o Gus, esmagado contra a parede como estava, gritou-lhe, “Mexe-me esse rabo e vem já aqui, rapaz!”

 

E o Benjamin disse que aquilo simplesmente o fez parar. Voltou as costas e meteu-se na pick-up e pensou em ir dar uma volta e foi isso que fez. Duas horas depois, quando voltou ao pátio, o pai já estava morto.

 

E agora estava com medo que Deus tivesse levado o Abe para o castigar.

 

E o que podia eu dizer-lhe perante aquilo? Que talvez o Gus tivesse morrido de qualquer maneira, mesmo que tivesse sido imediatamente transportado para o hospital. Mas naquela altura não pensava assim. Eu achava que tinha sido um homicídio. E sabia que o Benjamin estava convencido de que tinha cometido um homicídio.

 

Tens uma nódoa na tua alma que nunca vai desaparecer,” disse-lhe eu. Toda esta família ficou contaminada. O coração do teu pai era negro como breu e os seus pecados corromperam-nos a todos. A tua mãe passou a vida a tentar retirar a mancha, mas não conseguiu. E Deus levou-a e agora pode ter levado também o Abe.”

 

Está a ver que eu estava tão afundada na minha própria culpa e nos meus tormentos, que não vi o que as minhas palavras podiam fazer ao Benjamin. Devia ter tido mais cuidado com ele. Devia tê-lo protegido em vez de lhe esfregar sal nas feridas.

 

Ouvi-o durante toda a noite a andar pela casa, mas não saí para ir ter com ele. Achei que tinha tempo. Pensei que no dia seguinte começaríamos juntos a cuidar das feridas.

 

Quando me levantei na manhã seguinte, ele tinha saído com a pick-up. Fiz o pequeno almoço, pensando que ele podia chegar a qualquer momento. Depois, ao meio-dia, fiz o almoço, pensando que ele viria com certeza almoçar. Por volta das duas horas, recebi uma chamada do banqueiro na cidade. Disse que tinha uma carta para mim do Benjamin e que também queria explicar-me umas coisas.

 

Meti-me no carro da Celeste e fui ter com ele. O banqueiro disse-me que tinha estado toda a manhã reunido com ele e com o advogado por causa da propriedade. O Benjamin tinha preparado as coisas de maneira que, logo que ficasse resolvida a questão da propriedade, eu teria algum dinheiro para fazer o que me apetecesse. O banqueiro deu-me um cartão com o seu nome e o número de telefone. Depois entregou-me a carta do Benjamin.

 

Na primeira parte dava-me mais pormenores sobre o que o banqueiro já me tinha dito. O Benjamin ia vender a quinta, com tudo o que lá existia. Com a excepção da pick-up, que ficava para ele, e do carro, que era para mim. Quanto aos bens da casa, disse-me que me servisse do que quisesse e pediu-me, por favor, que levasse algumas coisas e as guardasse para o Abe... tudo o que eu achasse que ele devia gostar de ter. Disse-me que não fosse modesta a levar coisas, pois tudo o resto ia ser vendido em hasta pública e portanto esta era a minha única oportunidade; depois continuou a explicar como podia transportar as coisas ou armazená-las se eu quisesse.

 

Memorizei a segunda parte da carta. Li-a tantas vezes que conseguia recitá-la como se fosse um poema da escola primária.

 

“Pensei durante toda a noite no que me disseste, Tia Milly. Parece-me que é verdade que Deus agora olha para mim como se eu fosse um assassino. Sou pior do que o Gus alguma vez foi, pois agora tenho a mancha de sangue para sempre na minha alma. Só consigo ver duas alternativas, que são, apontar uma arma à cabeça, ou deixar de ser quem sou e passar a ser outra pessoa. Uma vez que é possível que o Abe ainda esteja vivo, vou continuar a viver e a acreditar que ainda me hei-de juntar a ele. Aconteça o que acontecer, hei-de lembrar-me sempre de ti com amor, mesmo que agora me vejas como o mesmo miserável que era o meu pai. Certificar-me-ei sempre de que alguém tome conta de ti e podes ter a certeza de que, se o Abe estiver vivo, hei-de encontrá-lo e hei-de também tomar conta dele.

“Adeus.

“Do teu querido sobrinho, “Benjamin.”

 

Milly Corwin fechou os olhos e ficou muito quieta durante algum tempo, de tal modo que Owen ficou preocupado que ela tivesse desmaiado.

 

Descanse um pouco, disse ele, sentindo-se ele próprio emocionalmente confrangido.

 

Não, disse ela resolutamente. Não quero parar enquanto não terminar. Quero que tudo isto fique definitivamente esclarecido.

 

Aclarou a garganta e recuperou o ânimo para continuar.

 

A quinta foi vendida com toda a maquinaria por uma pechincha. E verificou-se que o Gus também tinha uma conta poupança de que ninguém sabia. Mesmo depois de pagos os impostos e outras despesas, o Benjamin ficou bem provido e podia começar uma nova vida, como queria.

 

Todos os meses me mandava ordens de pagamento. Vinham dentro de simples envelopes e nunca traziam a direcção do remetente. A única coisa que eu sabia era que eram metidas no correio da cidade de Nova Iorque. E assim se passaram muitos anos. Então recebi finalmente uma carta do Benjamin, dizendo que o Abe estava em casa em segurança. Ao contrário do pobre Luke, que nunca mais voltou. Disse que ele e o Abe tinham recomeçado uma vida nova, que provavelmente me faria ficar de boca aberta e que esperava que eu agora pudesse de vez em quando lembrar-me dele. Se ao menos eu pudesse responder-lhe, ter-lhe-ia dito o quanto lamentava e como tinha saudades dele. Mas nunca me deu essa oportunidade.

 

As ordens de pagamento continuaram a chegar pontual e regularmente. Depois, um dia, sem mais nem menos, recebi uma chamada telefónica. Era o Abe. Estava a chorar e o que dizia não fazia muito sentido. A dizer coisas como Porquê, Tia Milly? repetidas vezes e a dizer que estava muito arrependido. Procurei levá-lo a dizer-me aonde queria chegar, mas ele respondeu-me que não sabia. Depois voltou a telefonar-me na semana seguinte e então já parecia perfeitamente normal. Disse-me que tinha sentido muito a minha falta e que ia falar com o Benjamin para nos encontrarmos todos. Disse-me que estava a pintar muitos quadros. Mas disse que não podia dar-me a sua direcção nem o número de telefone porque o Benjamin ia ficar furioso com ele se o fizesse. Supliquei-lhe que pedisse ao Benjamin para me telefonar.

 

Na terceira vez que me telefonou estava novamente a chorar e disse-me que tinha feito coisas horríveis. Disse-me que tinha visto coisas que fariam Gus Hanselmann parecer-se com um santo. Mas por fim acalmou-se e pareceu ficar quase satisfeito. Disse que tinha uma surpresa para mim.

 

E foi tudo quanto a chamadas. Nunca mais voltei a receber um telefonema dele, depois dessas três chamadas. Depois recebi uma das ordens de pagamento acompanhada de uma nota do Benjamin, pedindo desculpa pelos telefonemas do irmão. Dizia que esperava que o Abe não me tivesse aborrecido. Dizia que o Abe nem sempre era ele próprio, mas que não me preocupasse porque o Benjamin estava a tomar bem conta dele.

 

Os anos passaram. Durante o ano de 1985 a minha senhora inválida morreu e eu fiquei sem casa e sem emprego. Aluguei um quarto numa pensão e fui-me desenrascando. Então um dia chegaram uns papéis que diziam que Benjamin Hanselmann tinha comprado uma quota na Golden Age Village para mim. Para começar quando eu quisesse. Mudei-me para aqui e pouco depois recebi uma carta do Benjamin, dizendo que esperava que eu gostasse de Golden Age.

 

Dizia que eles viviam bem e eram felizes. E que ele tinha posto o passado para trás das costas, de tal maneira que já nem se lembrava de muitas coisas. Mas que havia de se lembrar sempre de mim. Terminou a carta com a expressão de sentimentos de muito afecto e fez-me sentir um grande sofrimento pela sua falta. Fiquei tão cheia de remorsos e senti-me tão culpada pelo que tinha acontecido no passado que não consegui levantar-me durante vários dias.

 

A partir de então, passou a escrever-me alguma coisa todos os meses, quando mandava a ordem de pagamento. Umas vezes dizia apenas Olá Tia Milly ou coisa parecida, outras vezes mandava um bilhete. Uma vez disse-me que detestava os bancos e que os bancos trabalhavam em colaboração com o governo para nos controlar. Disse que esperava que eu não guardasse o meu dinheiro num banco. Fiquei preocupada com isso porque já parecia o pai dele.

 

Houve ainda outras coisas que relacionei com o pai... coisas como... bem, um dia acautelou-me dos médicos e dos dentistas. Disse que eram todos uns vigaristas insaciáveis e que inventavam a maior parte das doenças que as pessoas tinham para terem um motivo para lhes sacar dinheiro. Sobretudo quando sabiam que as pessoas tinham dinheiro. Também me lembro de ele dizer que tinha chegado à conclusão de que a maior parte das pessoas só queria aproveitar-se dele, mas ele sabia como lidar com essas pessoas e sabia como proteger-se delas. Aquele tipo de conversa fazia-me abanar a cabeça e preocupar-me pelo facto de ele se ter transformado num homem parecido com o pai. Mas depois havia a sua bondade... Em que nunca havia hesitações. E pensei que, enquanto tivesse aquela bondade no coração, nunca se transformaria num Gus Hanselmann.

 

Porém, a sua bondade estava sujeita a estranhas alterações. Como aconteceu uma vez em que escreveu a dizer que estava satisfeito por saber que o meu pulso não se tinha partido. Ora aquilo fez-me sentir arrepios durante vários dias. Porque eu nunca conseguira escrever uma única palavra àquele rapaz; então como é que ele soube que eu tinha magoado o pulso e que era uma distensão muscular e que não estava partido? Comecei a fazer perguntas por aí e cheguei à conclusão de que o Benjamin tinha andado a telefonar aos médicos e ao director de Golden Age e a informar-se de mim desde que me tinha mudado para aqui. Fiquei que nem um moscardo com aquilo.

 

A Tia Milly fez uma pausa, absorta em pensamentos por instantes.

 

Mais ou menos há um ano recebi inesperadamente uma carta do Abe. Estava muito bem escrita, bem organizada e com a pontuação adequada e a ortografia e tudo o mais. Disse que se tinha separado temporariamente do irmão, mas que estava a ir bem e que estava a recomeçar a sua vida e que tencionava corrigir umas coisas com toda a gente, incluindo eu. E que prometia vir ver-me em breve e reunir-nos a todos. O carimbo era do Canadá.

 

Aquela carta encheu-me de esperança, mas os meses passaram sem que nada acontecesse. Depois deixaram de vir as ordens de pagamento do Benjamin. Sem mais nem menos deixaram de vir. E deixou de haver chamadas para Golden Age a pedir informações sobre mim. E eu disse para comigo, Milly Corwin, alguma coisa de terrível aconteceu.

 

Camille Corwin soltou um profundo suspiro e bebeu um longo gole de chá. Parece-me que no meu coração soube logo que eles estavam mortos. E foi assim que tudo aconteceu.

 

Ouvia-se o som forte do tique-taque do relógio na parede. Do lado de fora das janelas o vento implacável do Kansas fazia abanar as árvores de Golden Age.

 

Owen respirou fundo. Não sabemos nada do Al quero dizer, do Abe... o adoptado, recordou-lhe ele. Pode ser que se encontre bem noutro sítio qualquer, tal como disse na sua última carta.

 

É-me difícil agarrar-me a essa ideia, disse ela pesarosamente. Não me parece que o rapaz conseguisse desenrascar-se sozinho. Sem o irmão, ele ficava sem saber o que fazer.

 

Mas não sabemos, insistiu Owen. Pode ser que qualquer dia tenha notícias dele.

 

Gostava de acreditar nisso. A expressão dela mudou e podia ver-se-lhe nos olhos a dor que sentia. Se encontrar o Abe através de toda essa investigação... comunica-me, não comunica?

 

Pode ter a certeza. Imediatamente. E se eu não puder trazer o Abe até si, hei-de arranjar maneira de levar a senhora até ele. É uma promessa.

 

Ela estendeu o braço para dar uma palmadinha na mão de Owen. Depois aclarou a garganta e recuperou a sua atitude formal.

 

Muito bem, siga em frente, jovem. Faça o seu trabalho. Coloque-me perguntas.

 

Owen procurou ordenar as ideias. Ora vejamos... Está bem, quando recebeu o telefonema de um deles... disse que era do Abe... e que ele falou em estar a pintar. Por acaso não queria dizer que tinha sido o Benjamin que lhe tinha telefonado?

 

Não. Foi mesmo o Abe. E agora, depois do que você me disse, verifico que era o Abe que simulava estar a fazer o que o irmão fazia. Fingindo que estava a pintar quadros.

 

Aquele amigo deles, chamado Luke, que foi para o serviço militar, não seria Luther Bachman, ou seria?

 

A surpresa estampou-se-lhe na cara. Com certeza que era. Como é que soube?

 

Encontrei o nome dele no meio de algumas coisas do Bram... do Benjamin.

 

Continue. Pode chamar-lhe Bram. Parece que era assim que ele queria ser chamado.

 

Podia falar-me mais de Luke Bachman?

 

Oh, ele era um caso perdido. Um autêntico Dutchey dos lados de Hutzell. Um Menonista degenerado. Não se vêem muitos como ele. Estava a trabalhar em casa de um vizinho e os rapazes travaram conhecimento com ele. Aqueles três davam-se tão bem que os rapazes pediram ao Gus que deixasse o Luke ir para casa deles. Está a imaginar a reacção do Gus àquele pedido. Bem, aqueles três rapazes eram como unha com carne até um dia em que o vizinho acusou o Luke injustamente, como veio a verificar-se de roubar. Antes de poder ser absolvido, o Luke fugiu e foi para a tropa. Escrevia aos rapazes todas as semanas sem falta e eles respondiam-lhe. Mas foi morto no Vietname, pouco depois de o Abe se ter ido embora e de se oferecer para a tropa. Os rapazes ficaram mesmo muito desolados com a morte dele.

 

A senhora viu alguma das cartas do Luke?

 

Não. Não sei o que é feito delas.

 

Os pensamentos de Owen corriam aceleradamente. Luke Brachman era o pai de Lenore. Tinha a certeza disso. Ao tentar encontrar a Lenore, o Bram estava sem dúvida a cumprir uma promessa que fizera ao Luke, ou talvez tivesse simplesmente decidido procurá-la e tomar conta dela por respeito ao amigo morto. E a Lenore... o nome Lenore... o Luke tinha dado ao bebé o nome da avó dos seus amigos a mulher simpática e afável das histórias de Arcádia que Milly Corwin tinha contado. Era isso. A resposta tinha de ser aquela.

 

Owen só queria levantar-se num salto e telefonar imediatamente à Lenore, mas eram três horas locais, portanto seriam quatro horas em Nova Iorque. A Lenore devia estar ainda no tribunal.

 

Parece-me que o Benjamin detestava tanto o pai que assumiu o nome do irmão adoptado por ressentimento, disse Owen.

 

Sim, concordou a Milly pesarosamente. Abram Serian... Era o nome que aquela pobre criança órfã tinha quando veio viver connosco.

 

Owen abanou a cabeça. Portanto o Benjamin, ou Bram... desfez-se do nome do pai... renunciou a todo o parentesco Hanselmann, trocando-o pelo nome de alguém que o pai considerava um “Filho da mãe.” Aquilo só podia ser uma atitude de ódio extremo.

 

Milly acenou com a cabeça em sinal de concordância. Mas naquele caso podia haver mais qualquer coisa para além de ódio. Podia ser que aquele rapaz tivesse sempre desejado ter sido ele o adoptado aquele que a mãe amava e que não tinha o sangue de Gus Hanselmann a correr-lhe nas veias. Pode ser que ele sempre tivesse querido ser Bram Serian.

 

Mas o Abe, por que teria ele mudado também de nome? Por que não teria continuado a chamar-se Abe?

 

Não sei, disse a Milly. Mas o nome que ele escolheu para usar era o nome do meu pai... Al, ou Albert, era o nome do meu pai. Talvez ele tivesse mudado de nome para poder continuar a viver nos meus contos de fadas. Para poder esquecer-se que tinha crescido. Isto é demais para uma pessoa aguentar de uma só vez, não é?

 

Owen abanou a cabeça e deixou que os seus pensamentos andassem à deriva por momentos. Sabia que havia perguntas de que estava a esquecer-se de fazer, acerca de Bram-Benjamin ou de Al-Abe, mas agora não conseguia pensar nelas. Em vez disso, havia outras coisas que estavam a preocupá-lo.

 

Milly... peço desculpa, quero dizer menina Corwin... por que me contou tantas coisas? quero dizer, porquê exactamente?

 

Ela olhou para ele com uns olhos penetrantes, como os de uma ave. Isso é um assunto que só a mim diz respeito, não é verdade? O importante é que você conseguiu a sua história.

 

A senhora não está a tentar desforrar-se dos seus sobrinhos, pois não? A tentar castigá-los por a terem abandonado, contando todos os segredos que eles tinham guardado com tanto cuidado?

 

Eu jamais magoaria aqueles rapazes! Jamais! Eu quero é que se saiba a verdade sobre tudo isto e a verdade é que aqueles rapazes foram vítimas inocentes. Tal como a Celeste e eu fomos vítimas. Vítimas de um homem perverso. E até quando o Benjamin voltou as costas ao pai que estava a morrer, foi a maldade do pai que deu origem a isso.

 

Ela olhou para Owen de sobrancelhas franzidas. Depois baixou os olhos e observou as mãos nodosas cruzadas no seu regaço. A maior parte das pessoas que estão aqui são mulheres. Pelo menos as que se encontram suficientemente bem de saúde para poder conviver são mulheres. E reunimo-nos com bastante frequência. Conversamos muito. E tenho ouvido mulher após mulher contar como foi tratada quando era mais nova. Há uma que costumava comer o jantar no chão da cozinha, como se fosse um cão, sempre que o marido achava que a casa não estava suficientemente limpa. Outra tem queimaduras de cigarros nos braços de quando o marido julgava que andava a namoriscar na igreja. Tenho ouvido falar de violações e espancamentos e tenho ouvido falar de barrigas grávidas serem pontapeadas. Tenho ouvido falar de abusos dos pais e dos irmãos e de abortos em cima de mesas das cozinhas para desfazer provas. E isso é das mulheres que falam. Sabe Deus o que todas as que ficam em silêncio, como eu, guardam lá dentro.

 

E cheguei à conclusão, ao longo de todos estes anos, de que os homens não são naturalmente piores do que as mulheres. Mas é como em todas aquelas velhas histórias de reis e rainhas que a minha mãe costumava ler. Quando alguém tem demasiado poder sobre outras pessoas, surgem sempre problemas.

 

Tomemos um homem como Gus Hanselmann e coloquemo-lo ali no campo como chefe de uma família e ele torna-se o soberano do seu pequeno reino. O seu pequeno mundo em que sai todos os dias para as suas terras e volta para a sua casa à noite... e está numa posição em que pode descarregar toda a infelicidade e frustração que sente sobre aqueles que estão à sua mercê a mulher e os filhos. E tanto a lei como o pastor e até os vizinhos mais próximos consideram que o que se passa no seu reino só a ele diz respeito.

 

Agora estou diferente. Vejo as coisas de forma diferente. Tive todas essas mulheres aqui a abrirem-me os olhos e sei que o que nos aconteceu foi talvez mais terrível do que o que acontece na maior parte dos casos, mas não foi assim tão raro, de modo nenhum. Existe uma palavra para isso, para o facto de se ter demasiado poder e de se fazer dele uso indevido... tirania. Sabe o que isso quer dizer.

 

Ele acenou que sim com a cabeça.

 

Bem, hoje em dia ouço muitas coisas na televisão sobre direitos e coisas assim. Sobre como as mulheres se encontram agora muito melhor. Não sei até que ponto isso é verdade, porque também vejo programas sobre mulheres que ainda ficam com olhos negros em casa e crianças a quem ainda são feitas coisas indescritíveis.

 

Encolheu os ombros, subitamente indecisa e suplicante. Escute-me, por favor. Escute esta mulher velha e perturbada.

 

Acho que compreendo o que está a tentar dizer, menina Corwin. A senhora quer que as verdades ignóbeis sejam publicadas, para que as pessoas se defrontem com elas.

 

Sim, disse ela reconhecidamente. Quero que a gente saiba que isso acontece em muitas famílias que parecem excelentes, vistas do exterior. E talvez... talvez se houver bastantes histórias como esta a ser contadas, talvez as pessoas aprendam para o futuro.

 

Os seus olhos assumiram um ar distante. A minha mãe era uma grande apreciadora de história. Ela disse que a única coisa que tornava os humanos tão inteligentes era a capacidade de aprender com o passado e planear um futuro melhor. Bem, acho que chegou a altura de as pessoas começarem a perceber que a história é mais do que guerras e política e viagens espaciais. A história também é o Gus e o Abe e o Benjamin e a Celeste e eu. E toda esta conversa de vivermos num país livre não significa nada, quando se vive com a tirania dentro da própria casa.

 

Milly cruzou os braços e colocou a boca numa atitude de constrangimento. Tocou com a ponta dos pés na caixa florida de chapéus que estava no chão aos seus pés. Leve isto consigo. Contém as cartas que recebi dos rapazes. E leve aquela caixa de fotografias. E use as que precisar.

 

Leve tudo e escreva um livro que faça as pessoas compreender. Que ensine as pessoas.

 

Owen não sabia o que dizer.

 

Você estava destinado a fazer isto, filho. É a pessoa certa para fazer isto.

Compreende isso, não compreende?


Ele hesitou por instantes, depois acenou que sim com a cabeça. O silêncio instalou-se no meio deles.

 

Bem, vamos, disse ela. Leve tudo e vá trabalhar.

 

Estas coisas são provavelmente valiosas, advertiu-a ele.

 

Ela encolheu os ombros. Por direito, talvez devam pertencer a essa mulher viúva de que está sempre a falar.

 

A Lenore?

 

Exactamente.

 

Sim. Deve ser ela a ficar com elas.

 

Antes de se ir embora... fale-me da Lenore.

 

Oh... ela é... ela parece ser uma pessoa sofisticada e distante, mas depois de se conviver com ela durante algum tempo, verifica-se que é muito insegura. Muito preocupada. E muito só.

 

Continue. Conte-me mais. Como é o aspecto dela?

 

Ela é mais nova do que era o seu sobrinho. E é... impressionante. Exótica, parece-me que se pode dizer. Semi-asiática.

 

Por asiática quer dizer oriental? perguntou a Milly surpreendida.

 

Sim. Há pessoas que se referem a ela como amerasiática ou euro-asiática... ou seja lá o que for... ela teve um pai anglo-americano e uma mãe asiática.

 

Oh, meu Deus, a Milly riu-se delicadamente por entre dentes. Gus Hanselmann deve ter dado uma volta na sua sepultura... ter o filho casado com uma estrangeira de uma raça diferente da dele. Pergunto-me se isso não terá contribuído para se sentir atraído por ela.

 

Pode ter havido outros motivos mais importantes que contribuíram para que o Bram casasse com ela, disse-lhe Owen. Tanto quanto sei... estou convencido que o pai de Lenore era Luther Bachman.

 

Milly abriu a boca e soltou um Oh de espanto.

 

Penso que foi precisamente por isso que o Bram casou com ela. Porque ela era filha do amigo que tinha morrido.

 

Logo que Owen partiu de Golden Age Village, parou numa cabine telefónica de uma loja de conveniência. Primeiro ligou para o número do Alex, na esperança de contactar com o Cliff, para lhe encomendar mais trabalho no computador. Como não tivesse conseguido, deixou uma mensagem no gravador de chamadas, a explicar onde estava e por que ainda não tinha entregado a proposta de trabalho. Depois perguntou se o Cliff podia investigar os factos fundamentais do serviço militar de Abe ou Abram Hanselmann e de Benjamin Hanselmann, ambos de Ridley, Kansas. Depois, com um estímulo interior, ao pensar em ouvir a voz dela, telefonou para o Greystone Hotel em Stoatsberg. O telefone do quarto de Lenore tocou, mas ninguém atendeu. Desiludido, ligou para a recepção e identificou-se. O empregado disse-lhe que o grupo de Rossner ainda não tinha voltado desde o almoço.

 

Owen estava ansioso por contar à Lenore. Mas não queria deixar notícias tão importantes numa mensagem. Por isso disse ao empregado para lhe dizer que Owen Byrne tinha telefonado e que tentaria voltar a ligar mais tarde.

 

Tentou ligar para o escritório de Bernie e começou a falar para o atendedor de chamadas, mas a Bernie levantou o auscultador logo que ele se identificou.

 

Ainda aqui estou, Owen. Escondida atrás da minha máquina. Onde está você?

 

No Kansas.

 

Está a brincar comigo?

 

Não. Explicou-lhe como tinha feito aquela viagem para ir falar com Milly Corwin.

 

Bem, isto é quase uma coincidência fantástica, mas houve uma chamada de emergência da sua irmã Ellen apenas há umas horas atrás.

 

O ritmo do seu coração acelerou instantaneamente.

 

O que disse ela?

 

Disse só que telefonasse para casa imediatamente. Desculpe. Eu não estava cá e foi a recepcionista que tomou nota da mensagem.

 

Está bem, então é melhor eu desligar e...

 

Espere! Quando vai voltar?

 

Há um voo hoje à noite e acho que consigo ir nele. Se não for possível, então irei amanhã de manhã.

 

Nesse caso quero que me prometa que vai arranjar qualquer coisa à pressa, de maneira a termos essa proposta para levar a DeMille o mais depressa possível!

 

Prometo.

 

Óptimo. Bem, então telefone lá à sua irmã. E tome bem conta de si.

 

Owen desligou o telefone e marcou rapidamente o número de casa. O telefone tocou várias vezes. Esperou no carro de aluguer durante um quarto de hora e depois saiu para ir fazer uma nova tentativa. Continuou sem obter resposta. Como era possível que não houvesse ninguém em casa para atender o telefone? A Ellen estava sempre em casa àquela hora do dia.

 

Imaginou que Clancy tivesse tido outra trombose. Ou que a Meggie se tivesse envolvido num acidente de automóvel. Ou que Rusty Campbell tivesse morrido por ter caído da potra. Era a Ellen quem tinha feito o telefonema, portanto não podia ser a Ellen. Marcou novamente o número e escutou o toque surdo do telefone.

 

A última coisa que queria fazer era falar com Michelle Wheeler, mas o desespero levou-o a tentar o número dela.

 

Owen! Não era suposto gastares dinheiro em chamadas de longa distância, lembras-te?

 

O som da voz dela fê-lo sentir-se culpado e retrair-se.

 

Mike, recebi uma mensagem de emergência para telefonar para casa, mas agora ninguém atende o telefone. Tu não sabes por acaso o que se passa em minha casa?

 

Não... não ouvi absolutamente nada sobre o que se passa para os teus lados. Queres que eu dê um salto até lá?

 

Não. Se não atendem o telefone é porque não estão lá. Apenas pensei que talvez soubesses alguma coisa.

 

Desculpa. Hei, eu...

 

Tenho de desligar, Mike. Estou... estou muito preocupado e agora não posso falar.

 

Com certeza... está bem... adeus.

 

Ele pousou o telefone, fechou os olhos e pôs as mãos na testa. Sentiu-se uma pessoa desprezível, desagradável, estúpida. Sentiu-se como... Mas depois respirou fundo, irritado e procurou tirar da cabeça aquele sentimento de culpa, porque agora o que era importante era a sua família. Havia problemas lá em casa e estavam a precisar dele. Tentou telefonar mais uma vez; depois meteu-se no carro alugado e dirigiu-se para o Norte, pela estrada 135. Para além de Wichita e do aeroporto. Em direcção à auto-estrada 50 e para os Flint Hills. Em direcção a casa.

 

Owen lembrou-se da primeira vez que avistou os Flint Hills, quando tinha dez anos de idade. O Terry tinha ido a conduzir o carro, levando a mãe à frente no lugar do passageiro. Owen tinha ido no assento traseiro com a Meggie, que naquela altura tinha quatro anos e ia toda esticada no assento a dormir. Era um carro novo. Aquele que tinha ficado sem o assento traseiro aquando do negócio dos cães.

 

Iam a seguir o pai e a Ellen, que iam à frente, a alguma distância na pick-up. A pick-up não era propriamente visível por eles, devido ao reboque enorme com painéis laterais de ripas, em forma de pescoço de ganso, que estava atrelado à pick-up. O reboque de transporte do gado continha todos os seus haveres domésticos. O que não tinha cabido, não tinha feito a viagem.

 

Todos eles tinham guardado algum ressentimento quando fizeram aquela viagem, ao lembrarem-se das coisas de cada um que tinham ficado para trás, no pátio da casa velha. Owen tinha deixado uma estante cheia de livros e a cama. Da Ellen era uma mesa de toucador com um espelho. Do Terry tinham ficado as revistas de aviação que ele tinha coleccionado durante cinco anos e a sua cama. Da Meggie tinha ficado um cavalo de baloiço. Clancy tinha prometido que havia de voltar lá para ir buscar tudo aquilo, mas eles sabiam que ele nunca ia fazer tal coisa.

 

Nenhuma das coisas que tinham ficado no pátio tinham qualquer significado especial para a mãe, pois Clancy tinha carregado as coisas dela em primeiro lugar. No entanto ela deixava o mais importante para trás. Tinha nascido e crescido naquela quinta. A sua família tinha construído aquelas casas e plantado os jardins com as próprias mãos.

 

Owen tinha-a ouvido lá em cima a chorar na noite anterior, mas os seus olhos conservaram-se sem lágrimas durante toda aquela viagem para a nova casa da família. Ela ficou simplesmente sentada a olhar pela janela, calada e estóica. Era assim que ele se lembrava mais dela calada e estóica. Não propriamente triste mas com uma tendência para a tristeza, que de algum modo se reflectia na aparência exterior.

 

A paisagem à volta dos Flint Hills era completamente diferente daquilo que sempre tinham conhecido. Tão diferente que ficaram chocados ao vê-la naquele dia pela primeira vez.

 

O chão da quinta de onde eles vinham estava ancorado à civilização. Os seus rectângulos de terreno plano estavam divididos ao meio com barreiras de protecção para o vento, feitas pelo homem, sebes de arbustos e redes de estradas, e nunca deixava de se ver as casas da quinta e os anexos. O solo era constituído por uma terra argilosa rica e cor de café. Os campos eram extremamente verdes ou levemente dourados na época das colheitas. As casas eram brancas ou amarelas e os celeiros eram brancos ou daquele castanho avermelhado que as empresas de pintura chamavam vermelho dos celeiros. O silo temporário, uma torre alta, era de um cinzento metálico ou azul brilhante. Os traços gerais das máquinas eram de cores primárias brilhantes, em verde, azul ou vermelho. E no conjunto tudo combinava. Cada coisa complementava cada uma das outras coisas e contribuía para um todo agradável, como se fosse um livro ilustrado. Aquela era uma terra domesticada. Uma terra civilizada.

 

Mas o que Owen viu quando chegou com a mãe e o irmão aos Flint Hills, uma região de que tinham ouvido falar mas nunca tinham conhecido, foi uma vastidão deserta de ondas progressivas, um mar infinito de outeiros ondulados e verdejantes que se estendiam pelo horizonte e para além do que a vista conseguia alcançar. Sem uma única árvore ou um edifício à vista. Nada que demonstrasse que a civilização alguma vez tivesse ali existido.

 

Nenhum deles disse uma única palavra. Limitaram-se a seguir aquele reboque para o transporte de gado aos solavancos, arrastados pelas fantasias de Clancy Byrne.

 

Clancy Terrence Byrne tinha nascido no seio de uma família irlandesa que emigrou para Dodge City, no Kansas, onde o pai de Clancy pretendia tornar-se um barão do gado. O mais próximo que o homem esteve do negócio do gado foi o emprego que teve numa unidade de transformação de carne, mas contagiou o filho mais novo, Clancy, com o seu desejo ardente de ser vaqueiro.

 

Quando Clancy conheceu e se casou com Stella Hadley, transformou-se da noite para o dia, de um trabalhador itinerante, num proprietário de terras. Se os Byrnes mais velhos ainda fossem vivos, teriam certamente ficado extasiados perante a boa sorte do filho. Desembarcar de um navio e numa única geração tornar-se dono de uma quinta livre de hipotecas era a realização do sonho americano. Ou devia ter sido. Mas aquele não era o sonho de Clancy Byrne. Detestava que se referissem a ele como agricultor, dizendo que agricultores eram aqueles grandalhões alemães e suecos que não tinham inteligência suficiente para fazer outra coisa que não fosse cavar.

 

A zona preferida de Clancy na quinta dos Hadleys era o pequeno poço de petróleo. Aquilo, associado à parada de animais que ele arrastava para dentro e para fora, conferia-lhe o direito de se referir a si próprio como negociante de petróleo e criador de gado. E na verdade a sua actividade agrícola era tão esporádica e pouco recomendada que havia anos em que o pequeno rendimento proveniente da concessão do petróleo pagava a maior parte das despesas, e os animais que guardavam como reserva forneciam a maior parte da comida. Deviam ter sido prevenidos antecipadamente, mas nenhum deles, e muito menos a mãe, sabia o que ia acontecer.

 

Um dia, depois de ter partido para uma viagem durante uma semana, sem dar qualquer explicação, Clancy entrou em casa todo inchado e orgulhoso. Sabem uma coisa! comunicou ele.

 

Owen e Terry tinham acabado de chegar, depois de um longo dia de trabalho nos campos, a fazer uma tarefa de que o pai se tinha esquecido que era necessário fazer. A Ellen tinha passado a tarde inteira a empurrar o cortador de relva pelas zonas do pátio com erva alta, porque Clancy tinha vendido a lâmina de ceifar que se enganchava no tractor. A mãe tinha acabado de chegar, depois de ter andado na perseguição de uma cabra que tinha fugido, a cabra que Clancy tinha trazido algumas semanas antes, com a novidade de que se tratava de um macho de raça pura Toggen-burg e que provavelmente ia dedicar-se ao negócio da criação de cabras leiteiras. Não havia nenhum redil no lugar onde ia ficar a cabra, e de cada vez que se soltava, era devorado mais um dos canteiros de flores ou arbustos que a mãe tratava com tanto carinho. Por isso toda a família estava cansada, suja e furiosa quando apareceu Clancy e ninguém reagiu quando ele disse, Sabem uma coisa!

 

Finalmente, a pequena e querida Meggie disse, O quê, paizinho?

 

Fiz o negócio da minha vida. Olhou à sua volta, abstraído da exasperação do Terry, do olhar furioso da esposa e dos olhos da Ellen a revirarem-se. E que tal se arranjassem um copo de chá para o vosso velho papá! disse ele para ninguém em particular. Com ar de má vontade, a mãe deitou-lhe um copo de chá, mas não lhe pôs gelo, como forma de mostrar que estava aborrecida.

 

Clancy bebeu até esvaziar o copo, dizendo que estava cheio de sede e muito cansado. Todos, com excepção da Meggie, trocaram olhares de irritação.

 

Agora sou realmente um criador de gado, anunciou ele. Troquei esta quinta por um verdadeiro rancho de gado vivo, ali para os lados dos Flint Hills. Foi uma troca directa. Por quase três vezes mais terreno e algumas vacas como oferta. O que acham vocês disso?

 

Baloiçou-se para trás na sua cadeira, sorrindo de auto-satisfação, enquanto ficavam todos a olhar para ele num silêncio de mudos.

 

Fizeste o quê? perguntou finalmente a mãe.

 

Owen conduzia ao longo da auto-estrada 50 com o sol baixo a dar pelas costas. A Sul da auto-estrada corria o rio Cottonwood. O rio em que tinha pescado tantas vezes com o Terry. Passou por uma placa que indicava a distância para Strong City. Em breve ia sair da auto-estrada e seguir na direcção oposta do rio, para Noroeste, em direcção a Hymer e Diamond Springs; depois voltaria para Leste, em direcção a Cyril, penetrando nas sombras de azul e cor púrpura que matizavam os outeiros e entrando no reino de Clancy Byrne.

 

Procurou não pensar no que pudesse estar a correr mal. Não havia qualquer necessidade em deixar a imaginação arrastar-se pela emoção. Em vez disso, deixou que os seus pensamentos se orientassem noutras direcções.

 

Procurou desenredar o pai e Gus Hanselmann, que de algum modo tinham ficado entrelaçados na sua mente. O que não estava certo e era injusto porque Clancy Byrne nunca tinha sido tão perverso nem violento como Gus Hanselmann. Nunca nem por sombras. Mas tinha sido um tirano. E um espoliador, um destruidor. Ele tinha com certeza sido tudo isso. E o domínio dele sobre a família tinha sido sempre incontestável.

 

Já estava escuro quando Owen passou por Cyril. Vagas de nuvens passavam rápida e suavemente através do céu, quase escondendo da vista a lua e as estrelas. Tudo lhe parecia diferente. Era como se tivesse vivido longe dali durante muito tempo. Passou pelo pequeno armazém junto da estrada de que tinha gostado tanto quando era mais novo. Ali nas prateleiras havia comida e linha de pesca e óleo de motor e champô e chaves de tubos e agulhas hipodérmicas para bovinos.

 

Conseguia lembrar-se do prazer que sentia em ir ali com o irmão. O longo processo de selecção dos mantimentos, seguido de uma paragem no velho frigorífico horizontal da Coca-cola, com a sua ranhura para moedas de cinco cêntimos tapada com fita-cola, numa das extremidades. Os clientes pagavam ao balcão, depois abriam a pesada tampa e metiam a mão lá dentro para tirar uma garrafa de gasosa por baixo da água gelada. Não havia nenhuma bebida não-alcoólica que alguma vez se lhe comparasse em sabor, sofregamente engolida ainda gelada, enquanto ele e o Terry se sentavam na varanda empenada de madeira da loja.

 

Conseguia imaginar o Terry sentado na extremidade daquela varanda, com as pernas a pender e a balançar, botas de vaqueiro estafadas a balançar ligeiramente para a frente e para trás, enquanto dizia, Sabias, Owen, que se pode dissolver um dente num copo de Coca-cola? Depois piscava os olhos e sorria. O que dizes a isso, irmãozinho? Achas que também é capaz de dissolver dentaduras? Ou dentes de alce? Ou os dentes caninos da morsa? Ou teclas de piano?

 

Owen passou pela protecção do gado e pelo portão da entrada que o Terry tinha construído para fazer uma surpresa ao pai, dois grandes postes de creosote que se alongavam por seis metros de altura e encimados por uma sólida travessa decorada com a inscrição RANCHO BYRNE com desenhos de trevos. Clancy tinha moldado inicialmente o seu ”ferro” para marcar os animais com um trevo, mas havia demasiados pontos quentes, áreas onde as bordas do desenho do ”ferro” estavam tão próximas umas das outras que aqueciam mais a pele do que se pretendia e, em vez de um bonito contorno de um trevo, tinha vacas com manchas inflamadas sem pêlos. Voltou a fazer o molde, mas desta vez com um B, um B oscilante ou um B arredondado, mas a mulher que tratava dos papéis convenceu-o de que as secções fechadas do B podiam ser também problemáticas e foi assim que voltou para casa com um ”ferro” em forma de C. Simples e claro. Na verdade, era um C deitado de costas, a que chamavam um C preguiçoso e que Owen achou tão apropriado que se perguntou se a mulher que o ajudou teria conhecido Clancy pessoalmente.

 

Começaram a ver-se os edifícios do rancho. Os candeeiros do pátio em forma de cone eram brancos quando vistos por cima e as janelas da casa estavam iluminadas com uma luz amarela. Era como uma ilha de luz ali no meio dos montes escuros.

 

O carro da Meggie não estava lá. Estacionou entre a pick-up do pai e um carro que não lhe era familiar, mas que supôs ser de Rusty Campbell. Desligou o motor, desligando-se o rádio ao mesmo tempo e sentiu à sua volta o estranho lamento do vento. O nome Kansas vinha dos Kansa Sioux o Povo do Vento Sul. O Terry tinha-lhe dito isso há muito tempo.

 

Apressou-se a entrar em casa. Estava vazia. Apesar de haver muitas luzes acesas, estava completamente deserta. Não havia sinais de terem jantado ali, nem indícios de se encontrarem por perto. Foi até à antiga casa dos trabalhadores e verificou que também estava vazia.

 

Cheio de ansiedade, voltou para o carro e dirigiu-se para o Rancho Wheeler, pensando que a Mike pudesse ter descoberto alguma coisa desde que falara com ela algum tempo antes naquele mesmo dia.

 

A Mike saiu de casa a correr logo que ele abriu a porta do carro.

 

Owen! Depressa! gritou ela quase sem respirar, vamos para outro sítio, antes que o meu pai venha cá para fora e comece aos gritos.

 

Afastaram-se no carro até ficarem a alguma distância da casa.

 

Mas que grande surpresa, Owen! Estavas só a brincar comigo quando há bocado me telefonaste? A fazer-me pensar que ainda estavas em Nova Iorque? Como é que tu...

 

Mike, estou preocupado com a minha família. Descobriste alguma coisa? São horas de jantar e não está ninguém em casa.

 

Não. Tu disseste-me que não fosse lá, por isso não fui.

 

Está bem... bem, é melhor eu voltar para lá.

 

Owen! Há semanas que estou sem te ver! Pôs os braços em volta do pescoço dele e abraçou-o com força.

 

Ele não recusou o abraço, mas também não lhe correspondeu.

 

O que se passa contigo? perguntou ela de imediato.

 

Mike... eu... esta não é a altura certa. Desapareceu o sorriso dela e o medo começou a manifestar-se-lhe nos olhos. Owen odiou-se naquele momento. Sentiu aversão a si próprio. De boa vontade teria retirado dela todo o sofrimento e tê-lo-ia introduzido na sua cabeça, se pudesse.

 

A altura certa para quê? Para... uma conversa séria. Nesse caso o que tencionas fazer? Dizes-me apenas isso e depois vais simplesmente embora? Ele respirou fundo. Precisamos de ter tempo para conversar, Mik. Simplesmente não posso... Diz-me, Owen, precisamos de conversar sobre o quê? Vou ficar ainda pior se não me disseres neste momento, porque vou ficar a imaginar todo o tipo de coisas horríveis. Não posso casar contigo, Mike. Desculpa. Tu... não podes... casar... comigo? Desculpa.

 

Se é por causa de dinheiro, Owen... se é porque não te contrataram para escreveres o livro... isso não tem importância para mim.

 

Não tem nada a ver com o dinheiro. Hesitou. Não tinha a certeza do que devia dizer-lhe. Queria ser honesto, porém queria poupá-la o mais possível. O facto de estar longe... a trabalhar e a viver noutro lugar... fez-me chegar à conclusão de que não me conheço tão bem como julgava que me conhecia. Não sei realmente o que quero. Ou o que é importante para mim.

 

Tu já não me amas, não é isso?

 

Eu hei-de amar-te sempre, Mike. E provavelmente vou acabar por me arrepender disto.

 

Isso são tretas! Nova Iorque deu-te volta à cabeça! Ou se ama uma pessoa ou não se ama. Ou tu me amas, ou não me amas. E se ainda me amas, nesse caso devias continuar a querer casar-te comigo.

 

Peço desculpa.

 

Oh, está calado! Não quero ouvir nem mais uma palavra até teres recuperado o bom senso! Saiu do carro batendo com a porta e caminhou com ar arrogante pelo caminho abaixo em direcção a casa.

 

Owen ficou a observá-la por momentos, pondo-se a questão se deveria ir no carro atrás dela e levá-la a casa. Mas não era uma grande distância e ela trazia vestido um bom casaco. Decidiu que era melhor deixá-la ir.

 

Fez com que o pequeno percurso para a sua casa fosse ainda mais pequeno, mas a sua própria casa continuava vazia quando voltou. Andou de um lado para o outro na cozinha. Havia três hospitais possíveis nenhum deles ficava perto dali. Telefonou para um e falou com a enfermeira da sala de emergências. Estava precisamente a tentar telefonar para outro quando a sua família entrou de rompante pela porta das traseiras.

 

É o Owen! guinchou a Meggie, e começaram todos imediatamente a dizer ao mesmo tempo que tinham ficado surpreendidos ao verem no pátio um carro estranho e que não imaginavam quem pudesse ter vindo visitá-los.

 

A Meggie, o Rusty e mesmo o Clancy pareciam estar com uma disposição muito divertida, mas a Ellen parecia estar com um ar de quem estava muito aborrecida. Na sua família nunca tinha havido manifestações físicas de afecto, portanto não houve abraços nem beijos, mas Rusty Campbell apertou-lhe a mão entusiasticamente.

 

Onde estiveram? perguntou Owen. Meu Deus, eu estava mesmo preocupado. Recebi uma chamada de emergência e depois, quando chego a casa, encontro-a vazia! A última vez que esta casa esteve vazia à hora do jantar, foi quando tivemos de ir a correr para o hospital.

 

A Meggie parecia uma adolescente a rir-se e Owen reparou de repente que as suas bochechas estavam coradas de uma forma que não era natural e que estava de braço dado com o Rusty.

 

O Rusty levou-nos a todos a jantar fora, disse a Ellen a olhar ora para a Meggie, ora para o Owen. Não fez referência à chamada de longa distância para Nova Iorque.

 

Com os diabos, vamos mas é contar-lhe, desabafou Clancy.

 

Anunciámos o nosso noivado, disse a Meggie abruptamente, mostrando um sorriso aberto enquanto estendia a mão esquerda para exibir um anel.

 

Owen deixou-se cair numa cadeira com um suspiro de alívio frustrado. Era apenas isso que estava a passar-se? Olhou para a Ellen, que por sua vez desviou os olhos.

 

Bem, isso é óptimo para vocês os dois. Parabéns! Gostava de ter uma garrafa de vinho ou coisa parecida para poder fazer um brinde.

 

Ainda bem que não tens, disse Clancy, empurrando-os para se dirigir para a sua cadeira na sala de estar. Depois tínhamos de a beber toda e todos esses vinhos ditos de qualidade só me sabem a mijo de vaca.

 

Acenderam a lareira na sala de estar e sentaram-se todos. Owen observou Rusty Campbell. Sabia que o homem tinha menos de trinta anos, mas a sua pele marcada pela exposição às condições atmosféricas e os seus modos calmos faziam-no parecer mais velho. Era de altura e constituição médias, com as pernas levemente arqueadas e um antiquado bigode do tipo guiador. Cada centímetro dele parecia o autêntico vaqueiro que Clancy sempre quisera ser.

 

Owen ficou à espera que alguém lhe fizesse alguma pergunta sobre Nova Iorque ou sobre o livro. Ellen estava a olhar para a lareira. A Meggie estava a olhar para o Rusty. O Rusty estava a olhar para as biqueiras das botas.

 

Venho aqui a casa apenas por uma noite, disse Owen. Tive de ir a Wichita e depois recebi aquela mensagem da Ellen... Relanceou o olhar para a Ellen, que continuava sem querer enfrentar os olhos dele. Por isso resolvi vir até cá, mas tenho de ir embora amanhã de manhã.

 

Ninguém fez qualquer comentário. Só a Ellen parecia estar a ouvi-lo.

 

Vendi um daqueles cachorros que andavas a treinar, Owen, disse Clancy subitamente. Sim, foi um negócio dos diabos. Entrei com a carrinha para o parque de estacionamento para ir tomar um café e reparei naquele rapaz com a sela de pónei mais bonita que já vi na parte de trás de uma pick-up... como um cordoeiro em miniatura, com o chifre feito de corda e tudo... por isso, a modos que me encaminhei na direcção dele e comecei a meter conversa com ele. A falar-lhe dos óptimos cães de guardar o gado que tinha em casa. Ele ficou todo entusiasmado. Quando acabei de falar já tinha a sela e ele veio comigo até casa para levar o cão.

 

Owen conteve a sua raiva. Aqueles cães eram dele. Mas Clancy não pensava assim. Clancy sempre achara que tinha o direito de fazer o que quisesse. Owen lembrou-se de um dia em que chegou a casa da escola, quando tinha doze anos, e verificou que a sua vitela de exposição tinha desaparecido. Tinha andado a trabalhar com a bezerra durante vários meses a encabrestá-la e a domesticá-la para a dominar, a aparar-lhe o pelo e a escová-la e a dar-lhe banho todos os dias e Clancy, quando faltavam apenas umas semanas para a feira do estado e para o concurso tinha vendido a novilha. O rapaz cujo pai a comprou ganhou a flâmula azul que devia ter sido do Owen. Clancy nunca compreendera qual era o problema, uma vez que tinha recebido um bom preço pelo animal.

 

Mas você não tem nenhum pónei onde usar essa sela, Owen chamou-lhe a atenção. E aquele cão valia muito dinheiro.

 

Ahhhh, Clancy fez um gesto com a mão, como que a rejeitar as palavras de Owen. O que sabes tu disso? O que sabe o raio de um escritor de histórias sobre seja lá o que for?

 

Temos algumas vitelas novas, disse a Meggie rapidamente, num esforço de desviar a atenção das pessoas daquela situação de desentendimento.

 

E donde veio o dinheiro para as comprar? perguntou Owen.

 

A Meggie relanceou um olhar para o Rusty. Bem, ainda não foram propriamente compradas. O Rusty trouxe-as de casa da sua família e só as pagamos quando pudermos.

 

São muito bonitas, disse o Rusty. De boa origem. Filhas de mães de boa raça. Vão criar vitelos de qualidade especial.

 

É muita generosidade por parte da tua família, Rusty, comentou Owen. E a tua família sabe quanto tempo nos vai levar até conseguirmos pagá-las?

 

Eles não estão preocupados com isso, disse o Rusty.

 

Hei, já ouviram falar do Waldo Skiddy? perguntou Clancy. Foi atingido por um raio. Estava a falar ao telefone com uma mão estendida para o frigorífico e o choque eléctrico veio através do telefone, percorreu-lhe o corpo e passou para o frigorífico. Mostrou-me a marca negra onde passou da mão para o metal.

 

Todos se mostraram consternados.

 

Aposto que a cidade de Nova Iorque não te fez melhor jogador de dominó, disse Clancy a Owen. Aposto que ainda não consegues bater o teu velho pai!

 

Agora não... começou Owen a dizer, mas Clancy já estava a puxar pela velha caixa de charutos do armário. Traz para aqui a tua cadeira, ordenou-lhe ele. Meggie, empurra essa mesinha de centro para aqui, entre mim e ele.

 

Vamos jogar com três, sugeriu Owen. Mais alguém que venha para aqui jogar connosco.

 

Ninguém se mexeu.

 

Clancy despejou a caixa dos dominós. Eram peças bonitas, que já tinham sido brancas, com marcas negras gravadas. O tempo e a frequente utilização tinham-lhe dado o aspecto de marfim antigo. Owen pegou numa e friccionou a parte lisa de trás com o dedo polegar. A cor fez-lhe lembrar a pele de Lenore Serian.

 

Vamos lá! Deixa lá o chupa-chupa, rapaz e aproxima-te.

 

Owen escolheu as suas peças e avançou submissamente para o abate, sabendo que não tinha hipótese de ganhar. Sabendo que Clancy tinha tudo memorizado, todas as possíveis combinações de números, todas as estratégias possíveis. À medida que o jogo progredia, Clancy lembrava-se das peças que tinham sido usadas e sabia quais eram as que ainda estavam no monte.

 

A sala estava em silêncio. Não era permitido falar enquanto Clancy Byrne arrancava as calças a alguém ao dominó. Derrotou Owen num instante, depois procurou insistir para jogarem até chegar aos cem. Owen recusou.

 

Vamos, papá, implorou a Meggie. Owen quer conversar.

 

Mas quem és tu, uma pessoa que desiste facilmente? reclamou Clancy. Vais desistir só por perderes uma vez?

 

O pai ganhou, está bem? disse-lhe Owen. Estou aqui apenas por uma noite. Não quero desperdiçá-la a jogar dominó.

 

Aquilo fez Clancy ficar furioso. Atirou com as peças para dentro da caixa e meteu-a no armário. Owen voltou a arrastar a mobília para o devido lugar, imaginando o que o Rusty pensaria dos futuros cunhado e sogro.

 

Estou a começar a trabalhar a tempo inteiro, disse a Meggie. Para poder construir um pequeno ninho para mim e para o Rusty.

 

No meu tempo, uma mulher não trabalhava a não ser que estivesse casada com um homem inútil, resmungou Clancy. No meu tempo, uma mulher ficava em casa para pôr na mesa uma boa refeição.

 

Ainda não há muito tempo, disse o Rusty calmamente, uma pessoa conseguia vender vinte vitelos e ter dinheiro para comprar uma carrinha pick-up. Actualmente é preciso vender quarenta e cinco vitelos para pagar a mesma carrinha. E só Deus sabe quantos vitelos serão precisos para ir para o hospital a fim de ter um bebé. Os tempos mudaram muito, Clancy. Esse tempo de que está sempre a falar já vai longe.

 

Owen estava espantado por Clancy permitir que o Rusty lhe falasse daquela maneira. E não se limitava a permitir parecia de facto que estava a dar-lhe atenção. Clancy e o Rusty discutiram sobre questões do rancho durante alguns minutos; depois a conversa esmoreceu e toda a gente ficou a olhar para a lareira.

 

Então... Rusty e Meggie... quais são os vossos planos? perguntou Owen.

 

Seguiu-se uma troca de olhares.

 

Por que será que tenho a impressão de que fui posto de parte em relação a alguma coisa? disse Owen.

 

Bem... estamos decididos a casar rapidamente, disse a Meggie. No próximo mês. Mordeu nervosamente o lábio inferior e relanceou os olhos para Clancy. Não sabíamos que ias aparecer aqui desta maneira. Estávamos a guardar tudo para quando voltasses definitivamente, sabes... E com certeza que não é assunto para discutirmos enquanto estás aqui numa visita de apenas uma noite.

 

Oh diabo! disse Clancy. Vamos deixar de andar com rodeios e vamos contar tudo.

 

Eu não vou ficar a ouvir esses disparates! declarou a Ellen e abandonou a sala.

 

Mudei o meu testamento, disse Clancy. Logo que o Rusty e a Meggie se casem, são eles que ficam a ser responsáveis pelo rancho. Tu e a Ellen continuareis cada um com direito à terça parte, mas serão eles que tomarão conta da administração.

 

Owen ficou tão surpreendido que não conseguiu falar.

 

C”os diabos, filho, tu nunca quiseste saber de ser vaqueiro. Nunca seguiste os passos do Terry. A tua cabeça andou sempre distanciada, nas nuvens. O Rusty tem sangue de vaqueiro a correr-lhe nas veias. Ele vai voltar a fazer progredir este rancho para bem de todos nós.

 

Ninguém está a dizer-te que te vás embora, Owen, declarou a Meggie. Aquela casa do pessoal ali é tua até ao dia em que morreres. Não tenhas quaisquer dúvidas quanto a isso.

 

Owen levantou-se. Ficou a olhar para o pai. A olhar para o homem de forma tão penetrante que o corpo a envelhecer e o cabelo descolorido e os olhos esmorecidos pareciam-lhe exagerados. Esperava sentir qualquer coisa com grande amplitude uma explosão de fúria incontrolável ou de ódio intenso mas, pelo contrário, não sentiu nada. Absolutamente nada.

 

Então estou a ver como vai ser, disse ele. Onde é que devo dormir esta noite?

 

Deves ficar na casa do pessoal. Definitivamente, insistiu a Meggie.

 

Assim podes dormir na cama que te é familiar. O Rusty pode ficar no meu quarto e eu vou dormir na cama extra que está no quarto da Ellen.

 

Owen deixou-os e dirigiu-se para o lado de trás da casa, para o quarto da Ellen. Ela estava sentada na cama e pelos olhos pareceu-lhe que tinha estado a chorar.

 

Hei, disse ele, sentando-se na cama em frente dela. Sentes-te bem?

 

Não posso acreditar que te tenham feito uma coisa dessas, Owen. Só descobri esta manhã e tentei telefonar-te imediatamente.

 

Não te preocupes comigo, Ellen. Eu vou ficar bem.

 

É muito injusto. Tão traiçoeiro e mesquinho e ordinário! O pai teria perdido tudo umas cem vezes se não fosses tu. Esta casa nem existiria se não fosses hi! E todo esse disparate de que tu não tens estofo de vaqueiro... De que está o pai a falar? Acho que ele ficou maluco. E a Meggie... aquela cabra conivente!

 

O que se passa com esta família, Owen? Dedicaste-te de alma e coração a esta casa. Tu és este rancho. Como podem eles fazer-te uma coisa destas?

 

Mas a antiga casa do pessoal é minha até eu morrer, disse Owen, metendo-se com ela com um sarcasmo moderado. Posso tornar-me o velho excêntrico da cabana, como o Tio Kaye, se eu quiser.

 

Oh meu Deus... já parece o que eles me disseram. Disseram que o quarto extra seria sempre meu... independentemente do número de filhos que viessem a ter. deixou escapar umas lágrimas dos olhos e riu-se silenciosamente.

 

O que é que tu vais fazer? perguntou ele.

 

Vou para a escola, bolas! Não vou ficar aqui a fazer de Tia Ellen e a cozinhar e a fazer a limpeza da casa para toda a gente, para o resto de minha vida. Tretas! De qualquer maneira também sou uma péssima cozinheira.

 

Acho que gostava de ser alguma coisa que valesse a pena... como por exemplo, trabalhar com crianças. Não sei... ensinar ou trabalhar como assistente social.

 

Muito bem. Isso parece-me óptimo, Ellen. Sabes que eu vou fazer tudo para te poder ajudar.

 

Eu sei, disse ela e tapou a cara com as mãos a soluçar.

 

Mais tarde, quando Owen saiu do quarto da Ellen, a sala de estar estava vazia. Ouvia-se ressonar no quarto de Clancy. O quarto da Meggie estava escuro. Suspeitou que toda aquela conversa de a Meggie dormir no quarto da Ellen tinha sido por causa de Clancy e que ela e o Rusty dormiam juntos todas as noites.

 

Na lareira restavam apenas algumas brasas. Encostou-se à áspera pedra calcária da chaminé, a mesma pedra natural, cortada manualmente, com que toda a casa tinha sido construída e pensou em todos os anos durante os quais tinha imaginado aquela casa como a sua casa. Mesmo quando se mudou para a antiga casa dos trabalhadores. Esta tinha sido sempre a sua casa. E acreditara que este era o seu lugar e que um dia havia de criar a sua própria família nesta casa.

 

Ouviu um barulho e levantou os olhos e viu a Meggie a observá-lo na sua camisa de dormir de flanela branca, com um estofo gasto à volta dos ombros. Parecia um fantasma ali à meia luz.

 

Não vais levantar problemas por causa de tudo isto, pois não? perguntou ela na defensiva.

 

Ora, desde quando é que sou uma pessoa que levanta problemas, Meggie? Este rancho é do Clancy. Sempre foi o rancho do Clancy. Ele tem o direito de fazer com ele o que muito bem quiser.

 

Bem, fico contente por seres tão razoável em relação a tudo isto. Eu disse ao Rusty que tu sempre foste razoável. E que ias querer o que fosse melhor para todos.

 

O rádio CB crepitou com vida. Encontrei uma, Meggie. É melhor vires até cá.

 

A Meggie pegou no microfone. Estou a ouvir-te, Rusty. Onde estás?

 

Estou mesmo aqui a norte do furo de abastecimento de água. Tenho as luzes acesas. Vês-me logo.

 

Owen não precisou de perguntar o que se estava a passar. O Rusty tinha saído para ir inspeccionar as vacas, provavelmente preocupado que algumas daquelas novilhas novas de raça, que tinham vindo de casa da sua família, estivessem prestes a parir e estava com problemas.

 

Chama o veterinário, disse Owen. Eu vou até lá.

 

O doutor Miller teve um acidente com a pick-up a semana passada. Está em recuperação.

 

Owen suspirou profundamente. Então deixa que nós desenrascamo-nos sem ele.

 

Foi para a varanda e vestiu o velho fato-macaco impermeável com fecho de correr, depois pôs um boné de malha de lã e um casaco velho. Os bolsos do casaco estavam cheios de luvas quentes e lenços e uma navalha. Owen calçou as luvas. Saiu e a Meggie veio a correr atrás dele.

 

Por que não ficas aqui? disse ele, mas ela já estava a subir para o assento do passageiro da carrinha dele. Não lhe perguntou por que nunca tinha ido ajudá-lo a meio da noite.


O vento estava forte, com uma temperatura abaixo de zero e o céu estava completamente coberto por uma densa camada de nuvens que faziam com que fosse uma noite sem lua e sem estrelas. Depois de estar na cidade, era emocionante ver como a noite nos Flint Hills podia ser tão negra. Mais negra do que o coração de Satanás, costumava dizer Clancy. Foram aos solavancos através das pastagens pelo que parecia ser uma eternidade antes de verem as luzes da carrinha do Rusty.

 

A vaca estava deitada de lado, a respirar com dificuldade.

 

Tenho aqui o raio de um problema, disse o Rusty. Estava cheio de sangue e de estrume húmido e pela sua voz parecia estar perto da exaustão.

 

Owen ajoelhou-se ao lado da novilha, fazendo festas no pêlo ruivo e hirsuto do inverno, enquanto cantarolava em voz baixa, É uma boa mamã, num ritmo monótono que surgiu naturalmente.

 

Já a encontrei deitada no chão, disse-lhes o Rusty. Finalmente consegui meter o braço dentro dela, mas as pernas do bezerro estão enfiadas por baixo dele.

 

Oh não... lamentou-se a Meggie. O que vais dizer ao teu pai, Rusty, se perdermos uma destas novilhas?

 

O Rusty ignorou-a e ajoelhou-se ao lado de Owen. Receio que haja mais qualquer coisa a correr mal para além da posição do bezerro, disse ele. Ela tem estado a perder muito sangue.

 

Tens mais algumas luvas? perguntou Owen. Se fizermos turnos, talvez consigamos colocar aquelas patas na posição correcta.

 

Owen enfiou uma luva de plástico que lhe cobria o braço quase até ao sovaco, depois ajoelhou-se junto da vaca e meteu a mão dentro dela. Ela lutou contra ele, com os fortes músculos da vagina, comprimindo-lhe o braço e procurando expeli-lo, tal como teria expelido o bezerro se tal lhe fosse possível. Sentiu o nariz da cria no canal de nascimento e abriu caminho para além dele para chegar até às pernas. Deviam estar ambas direitas, apresentando-se juntamente com o nariz, para um parto normal.

 

Cá está... já tenho uma.

 

A Meggie e o Rusty encostaram-se ambos à vaca para o caso de ela resolver mexer-se e Owen foi ajudando lentamente, centímetro a centímetro, a endireitar a perna para a frente. Tinha a testa a escorrer suor, apesar de estar frio. Estava meio deitado, meio sentado atrás dela, fazendo pressão na traseira do animal, fazendo força e enfrentando aqueles músculos de contracção implacáveis. Quando finalmente conseguiu chegar ao pequeno casco rachado e o levou até ficar junto do nariz do bezerro, puxou para fora e caiu para trás, para o chão. Tinha o braço a tremer descontroladamente.

 

O Rusty imediatamente enfiou o braço para puxar a outra perna. Owen levantou-se e tirou a luva suja, depois foi fazer força no dorso da vaca, embora estivesse convencido que ela não ia tentar libertar-se. Ela tinha desistido. Owen já tinha visto antes aquele olhar nos olhos de um animal.

 

Observou o Rusty. O homem já estava cansado e gelado e tinha metido o braço na vaca antes de eles chegarem. Agora parecia que estava a usar as suas últimas reservas. Estou... quase... lá... disse ele respirando com dificuldade. Meg... pega... na... corrente.

 

A Meggie correu para a cabina da pick-up a buscar a corrente. Era uma ferramenta usada habitualmente pelos criadores de gado para ajudar a expelir a cria. Enlaçada à volta dos jarretes do vitelo, mesmo por cima dos cascos, a pequena corrente podia ser usada para puxar a cria para fora, quando a vaca não conseguia dar o último empurrão.

 

Subitamente, a respiração ofegante parou. Os flancos inchados ficaram estacionários e as narinas cor-de-rosa dilatadas baixaram com um suspiro final.

 

Owen levantou-se e bateu com os punhos no peito da novilha numa tentativa inútil da ressuscitação cardiopulmonar do bovino.

 

Não! Não! Não! gritou a Meggie. Voltou-se e atirou com a corrente para a pick-up, fazendo um barulho retumbante.

 

O Rusty puxou o braço para fora com uma expressão desorientada.

 

Owen não parou para pensar. Meteu a mão no bolso, abriu a lâmina da navalha e introduziu-a na barriga da vaca morta. O Rusty deu um salto para ir ajudar e em poucos segundos tinham conseguido retirar o bezerro. Estava a respirar. Limparam-lhe o nariz e esfregaram-no com sacos de rações, como teria feito a mãe com a língua, se fosse capaz, e com os seus esforços obtiveram um pequeno balido da cria.

 

A Meggie subiu para o lugar do passageiro da pick-up do Rusty, ligou o motor e o aquecimento e eles entregaram-lhe o vitelo. Ela aconchegou o animal no colo o melhor que pôde, com as pernas compridas e desajeitadas a espernear para todos os lados e Owen reparou que ela estava a chorar.

 

Graças a Deus que salvaste o vitelo, disse ela. Ainda ninguém sabe, mas todas estas novilhas de raça vão ser o nosso presente de casamento da família do Rusty. Para começarmos a nossa manada.

 

Owen fechou a porta e voltou-se para o Rusty.

 

Como tiveste a audácia de tentar esse estratagema? perguntou o Rusty.

 

Vi uma vez um veterinário abrir uma vaca para tirar o vitelo. Em circunstâncias idênticas. Owen encolheu os ombros. Calculei que não fazia mal nenhum tentar.

 

O Rusty abanou a cabeça e sorriu para o Owen.

 

Queres levá-lo agora para casa? perguntou Owen.

 

Não posso, companheiro. Esta é uma noite complicada. Encontrei outra do outro lado do monte. Estava a fazer um grande esforço quando a deixei.

 

Vai à frente, disse-lhe Owen. Eu vou logo atrás de ti.

 

Deixaram a pobre novilha abatida ali no chão e seguiram para a próxima vaca. Felizmente, esta estava em melhores condições. Quando chegaram junto dela, ela conseguiu pôr-se de pé de forma desajeitada e afastou-se dos faróis. Eram visíveis duas pequenas patas a espernear debaixo da cauda. Puseram-lhe uma corda à volta do pescoço e prenderam-na com firmeza a uma barra de ferro que Owen tinha soldado a um dos lados da sua pick-up.

 

Sem discussão, enlaçaram a corrente em volta dos pés do vitelo e ficaram a puxar por turnos. Isto não era nada comparado com o que tinham passado pouco antes, mas mesmo assim foi um trabalho difícil. O vitelo não estava a sair com facilidade e era difícil puxá-lo com tão pouca impulsão.

 

Finalmente o vitelo deslizou para a frente e caiu para o chão num corrimento líquido de fluidos do parto e do saco amniótico. A novilha soltou um longo gemido e sacudiu os flancos. Revirou os olhos e oscilou para trás e para a frente, puxando a corda com força. Agora que as suas dificuldades tinham terminado estava indignada e exasperada.

 

Como é isto? disse o Rusty. Vamos deixá-la limpar a cria e já vamos saber em breve; depois colocamos a cria na parte de trás da carrinha e seguramo-la com firmeza e levamo-la para o celeiro. Assim podemos tentar pôr o pequeno órfão também a mamar nela.

 

Sim... Owen hesitou. A sua filosofia tinha sido sempre a de tentar usar e respeitar a ordem natural das coisas. Por que não tiramos o órfão para fora da carrinha e o esfregamos nas secundinas? Talvez fique com um cheiro tão familiar que ela julgue que teve gémeos.

 

O Rusty sorriu e foi buscar o vitelo. Mantiveram a cabeça da mãe bem segura à pick-up de maneira que ela não podia chegar à sua cria nem mesmo vê-la e envolveram o órfão na imundície até ficar parecido com o primo novinho em folha, que estava ainda molhado e enroscado no chão. Então puseram os dois vitelos e desapertaram a corda para que a novilha lhes pudesse chegar.

 

Ela estava agora muito agitada, puxando a corda com força aos sacões, soltando guinchos agudos e mugindo. Quando se apercebeu que a corda estava frouxa, puxou bruscamente para trás e depois virou-se para farejar os vitelos. A sua língua enorme iniciou o seu trabalho no vitelo mais novo, o seu bebé natural e ficaram todos à espera.

 

Vamos lá, mãe, murmurou o Rusty.

 

Se a vaca não aceitasse o bebé, ia ser muito difícil salvá-lo. Os recém-nascidos órfãos que não recebiam aquele colostro na amamentação, era frequente morrerem, apesar dos mais diligentes cuidados e de alimentação por garrafa. Claro que ainda tinham o plano do Rusty como último recurso. Se não aceitasse aqui o vitelo, podiam ainda levar os três para o celeiro e tentar forçá-la a aceitá-lo. Mas levar uma novilha que teve a sua primeira cria a aceitar um vitelo órfão raramente dava resultado e se não o aceitasse aqui, depois de cheirar os seus próprios fluidos do parto, então Owen sabia que também não o aceitaria no celeiro.

 

Limpou rudimentarmente o bebé com a língua. Depois empurrou ligeiramente o órfão. As suas enormes narinas dilataram-se. Deu-lhe um empurrão com mais força. Era frequente uma vaca magoar seriamente ou até matar um órfão indesejado nos seus esforços para o afastar, por isso Owen estava atento a observar, pronto para socorrer o vitelo no caso de este correr perigo. Então lá veio aquela língua incrível, deslizando pela pele molhada do impostor e eles deram um suspiro colectivo de alívio e trocaram sorrisos.

 

Gémeos, disse o Rusty para a vaca, enquanto soltava a corda do pescoço. Não vais ter mãos a medir, mamã.

 

Como resposta, ela baixou a cabeça e fez uma investida contra ele, obrigando-o a correr para o refúgio da cabina da pick-up. Owen riu às gargalhadas, até que a Meggie gritou, Atenção! e também ele se precipitou para o refúgio.

 

Mais tarde, depois de terem voltado para casa, de se terem lavado e devorado sanduíches, o Rusty acompanhou Owen até junto da antiga casa dos trabalhadores.

 

Queria só agradecer-te mais uma vez, companheiro. O Rusty estendeu a mão. Vou ter orgulho em chamar-te cunhado.

 

Owen acenou com a cabeça e voltou-se para continuar.

 

Sabes... confessou o Rusty. Tu não és como a Meggie e o Clancy te descreveram. Estava à espera de um indivíduo completamente diferente do que, afinal, se verificou seres.

 

Owen encolheu os ombros e sorriu. Não queria chatices com Rusty Campbell.

 

Podes crer que espero que te decidas a ficar. Podíamos fazer uma parelha dos diabos.

 

Vamos dar tempo ao tempo, disse-lhe Owen. Veremos como correm as coisas.

 

Entrou para a antiga casa dos trabalhadores. A Ellen tinha ido lá e acendido o fogão e o candeeiro enquanto ele tinha estado fora, por isso o quarto estava quente e acolhedor. Uma casa aconchegada para um trabalhador contratado se refugiar ao fim do dia, pensou ele amargamente.

 

Ninguém sabia em que ano tinham sido despedidos os últimos verdadeiros trabalhadores do rancho. Quando o rancho passou para as mãos de Clancy, os beliches da camarata já tinham sido desmontados e o edifício era utilizado como local de armazenagem. Owen olhou à volta do quarto iluminado pelas chamas do lume. Aqueles trabalhadores do rancho de antigamente tinham sido importantes nas suas fantasias da infância. Queria ser como eles. Deu um riso abafado de ironia. O que estava ele para ali a dizer? Tem cuidado com o que desejas... Bem, ele tinha certamente realizado o seu desejo de criança.

 

Mas mais tarde também queria ser bombeiro. E médico veterinário. E explorador submarino. E um médico que encontra curas para doenças terríveis. E depois viu os Anjos Azuis a voar na feira do estado e queria ser piloto de jacto de precisão. Sorriu pesarosamente. Não só perante a lembrança de querer todas aquelas coisas, mas pela lembrança do tempo em que pensava que podia ser o que quisesse.

 

Imaginou o que seria se as coisas tivessem sido diferentes e se tivesse continuado na universidade. Pensando nisso, achava que não fazia ideia de qual seria a resposta. Era difícil estabelecer uma ligação entre as aulas que tinha frequentado e o resultado final de uma ocupação. Naquela altura, supunha que a universidade lhe tinha parecido um fim em si mesma.

 

Sentou-se numa cadeira para tirar as botas e veio-lhe à cabeça uma imagem da mãe a levar aquela cadeira pelo outeiro acima, a gritar alegremente, Olha o que encontrei para ti!

 

A sua mãe estava em todo o lado naquele quarto. Quando tinha voltado para o rancho depois do funeral do Terry, tinha sido a mãe que tinha compreendido por que não queria mais o seu antigo quarto na casa e tinha sido ela que o tinha ajudado a transformar a antiga casa dos trabalhadores no seu alojamento particular. Enquanto ele reparava o telhado e as janelas, ela trabalhava no interior, reparando e pintando as paredes cheias de marcas tão bem que era impossível dizer onde tinham estado fixados os antigos beliches. Costurou as cortinas de serapilheira que ainda estavam nas janelas. Limpou o velho fogão até ficar a brilhar como novo. Procurou mobília por todo o lado, frequentou leilões e vendas estatais.

 

Lembrou-se de como tinha ficado contente com o seu espaço privado, mas não conseguia lembrar-se do que estava a pensar para além disso. Como tinha imaginado que a sua vida ia prosseguir a partir de então? Quando tinha vinte anos e ficava deitado por baixo dos cobertores naquela cama de ferro, a olhar para o tecto depois de um longo dia de trabalho, alguma vez tinha questionado a sensatez das suas acções? Tinha tido pena de ter deixado a escola? Tinha-se imaginado a si próprio vinte anos mais tarde na mesma cama? Não conseguia lembrar-se. No entanto lembrava-se de que, sob a dor pelo seu irmão e o profundo sentimento de obrigação que sentia pela família, ele tinha ficado timidamente ansioso por ocupar o lugar de Terry como o filho preferido.

 

O que teria acontecido se tivesse verificado naquela altura que nunca poderia substituir o seu irmão? Que ele seria sempre um pobre substituto aos olhos do pai. A sua vida teria continuado de maneira diferente?

 

Owen subiu para a cama. Olhou para o tecto. Incapaz de imaginar muita coisa de quando tinha vinte anos, mas perfeitamente consciente de quem era aos trinta e dois anos. Sabia que, se conseguisse o contrato com DeMille, não voltaria para o rancho. Aqueles dois vitelos daquela noite seriam os últimos que ajudava a nascer.

 

No dia seguinte levantar-se-ia cedo e iria a cavalgar na égua nova pelos montes. Depois faria a mala. Faria uma selecção das suas coisas de maneira que fosse fácil para a Ellen mandar-lhe o resto dos seus haveres para Nova Iorque, no caso de ele precisar que ela fizesse tal coisa. Depois embarcaria no voo da uma da tarde e teria partido.

 

E em poucas horas estaria junto de Lenore. Tinha ficado demasiado tarde para lhe telefonar depois de ter terminado o trabalho com o nascimento dos vitelos. Embora se tivesse sentido tentado. Tinha desejado ouvir a sua voz fraca e sonolenta e saber que ficava excitada e nua por baixo dos cobertores, enquanto conversavam. Mas não queria assustá-la nem sobressaltá-la com uma chamada a altas horas da noite. Por isso resistiu.

 

Pensou que agora estava a perceber. Ela só o tinha afastado porque tinha receio. Receio de que ele estivesse a tornar-se demasiado possessivo, demasiado exigente. Receio de deslizar para algo perigoso.

 

Já não lhe parecia que fosse importante o facto de ela estar a esconder James Collier e a protegê-lo. Esconder James Collier não fazia dela culpada. E já não lhe parecia importante saber quais eram as relações entre ela e James Collier. Lenore era tudo o que lhe interessava.

 

Lenore.

 

Só o facto de pensar nela provocou uma onda de calor por todo o seu corpo e teve de fechar os olhos. Queria que a noite passasse. Que as horas passassem. Para poder voltar a vê-la.

 

Já passava das nove horas quando Owen passou pelo portão de ferro forjado. Não tinha conseguido falar com a Lenore pelo telefone, mas tinha deixado várias mensagens a dizer que estaria de volta naquela noite. Agora, depois de ter conduzido directamente do aeroporto para ali, ia surpreendê-la. Tinha ficado com a chave no dia em que tinha ido limpar a neve do caminho, por isso não precisava de usar o intercomunicador. Bastou-lhe rodar a chave e o portão abriu-se. Conduziu através das pequenas matas de árvores e pelos campos ondulados, depois viu as torres e os pináculos da Arcádia a cintilar à luz da lua cheia. Devia ter sido uma vista fantástica. Mas a criação grandiosa de Bram Serian tinha perdido todo o seu mistério para Owen e agora a grande criação de Serian despertava mais pena do que admiração.

 

Lenore abriu a porta da frente no momento em que ele parou. Tinha a espingarda encaixada no braço. Ele saiu rapidamente do carro para a tranquilizar.

 

Sou o Owen! gritou ele, tirando do banco de trás as gravações da entrevista com a Milly. Dois conjuntos, visto que as tinha duplicado tinha feito cópias para a Lenore. Podes guardar essa arma.

 

Ela não se mexeu.

 

Lenore? Começou a avançar. Lenore, o que se passa?

 

Fica aí quieto, ordenou ela, levantando o cano da espingarda para fazer pontaria. Na verdade não estava apontada para ele, mas era sem dúvida uma ameaça.

 

Lenore, eu não...

 

Não tentes enganar-me, Owen. Não mintas. Vieram hoje buscar o Jimmy e tu eras a única pessoa que sabia que ele estava aqui.

 

Vieram buscar o Collier? Mas... quem?

 

Não te armes em parvo, por favor. Estás a insultar-nos aos dois.

 

Lenore, eu não disse a ninguém que estive aqui. Juro que eu...

 

Acreditei em ti! A sua voz fraquejou e o cano da espingarda desceu um pouco.

 

Os olhos dele seguiram a espingarda. Será que ia disparar? Seria afinal capaz de matar?

 

Recuperou a espingarda e a compostura. Vai-te embora, disse ela friamente. Afasta-te de mim.

 

Lentamente, levantou um conjunto de cassetes. Eu vou, disse ele, demasiado chocado para discutir. Mas estão aqui as cassetes com a minha entrevista com Camille Corwin. Precisas de as ouvir... independentemente do que penses de mim. Elas contêm as tuas respostas, Lenore. Falam do teu pai.

 

Ela usou o cano da espingarda para lhe indicar um lugar à beira do terraço de pedra. Coloca-as ali, disse ela. Depois mete-te no carro e não voltes mais aqui.

 

Owen conduziu de forma imprevisível. Mais rápido do que devia. Mais devagar do que devia. Deixou passar as saídas da auto-estrada e teve de voltar para trás.

 

Foi tudo um erro. James Collier. Maldito James Collier. Tinha de fazer a Lenore ver. Tinha de a fazer compreender. Tinha de esclarecer as coisas.

 

Parou no apartamento para descarregar, depois voltou ao escritório de aluguer de automóveis na zona alta de Manhattan e meteu-se no metropolitano para voltar para a baixa. Já passava da meia-noite. No dia seguinte tinha de ir para o julgamento. Veria a Lenore. No dia seguinte ela estaria mais calma. Já teria ouvido as cassetes. No dia seguinte saberia que ele tinha encontrado as respostas que procurava. Tinha encontrado o seu pai.

 

Olhou de repente para cima e verificou que tinha deixado passar a sua paragem. Saltou rapidamente para fora do comboio. Sem saber onde estava. Que importava? Podia caminhar. A que distância podia estar? De qualquer modo, aqui nunca fazia exercício físico suficiente. Não tanto como estava habituado a fazer. Nada que se parecesse com cortar cavacos, ou perseguir animais teimosos, ou montar cavalos, ou construir vedações. Oh, meu Deus. Caiu numa descida de cimento. Sentia muito frio por baixo dos jeans. Onde é que diabo estava ele? O que andava ele a fazer?

 

As pessoas na rua passavam vagarosamente por ele. Uma mulher muito magra com um bebé na anca ofereceu-se para lhe fazer uma mamada por dez dólares.

 

Levantou-se e começou a andar. Passava de uma rua para a outra. Nada lhe parecia familiar, mas ele já não se importava. Queria perder-se de tal maneira que nada lhe fosse familiar dali em diante. Quando o céu começou a clarear, parou de caminhar. Desistiu. Porque a ilha de Manhattan não era suficientemente grande para o que ele precisava de perder.

 

De qualquer maneira voltou para o apartamento e preparou-se a tempo de apanhar o seu comboio habitual da manhã. Era quinta-feira. Décimo segundo dia do julgamento. Sabia isso porque guardava cuidadosamente os registos. Número de dias. Número de testemunhas. Número de objectos apresentados como provas. Mas não lhe parecia que tivessem passado apenas doze dias.

 

Parecia-lhe que tinha passado anos na sala de audiências número 6, a assistir ao julgamento de Lenore Serian.

 

Chegou cedo ao tribunal e foi à procura do grupo do café da manhã da Holly e da Marilyn, tão desejoso de saber notícias que não se importava de se encontrar com a Holly. Encontrou o grupo ao fundo das escadas, junto das máquinas automáticas de venda, mas a Holly não se encontrava entre eles. Ninguém sabia onde estava. A Marilyn, a Pat e o Ray relataram a Owen com toda a boa vontade os acontecimentos de terça e quarta-feira. Clay Southey, outro dos convidados na festa de Serian, tinha testemunhado, afirmando que tinha ouvido a mesma discussão a altas horas da noite entre o Bram e a Lenore de que Natalie Raven já tinha falado detalhadamente. Este era o convidado que tinha ajudado a acabar com a briga entre as duas mulheres e que tinha ajudado a tentar confortar Natalie Raven naquela noite.

 

Owen mal conseguia acompanhar a escrever o que os três repórteres iam dizendo à medida que consultavam as suas notas e falavam ao mesmo tempo, citando as afirmações das testemunhas e acrescentando comentários de opinião e bisbilhotice. Depois de Southey tinha havido um advogado da firma que administrava a propriedade de Bram Serian. Brown tinha-o usado para mostrar quanto a Lenore teria perdido num divórcio e quanto teria ganho se se tivesse concluído que a morte do marido tinha sido acidental.

 

Depois, na quarta-feira, o Dr. Gavril, o patologista que tinha feito a autópsia do corpo de Serian, finalmente tinha superado os seus problemas pessoais e foi trazido à barra das testemunhas. Gavril utilizou termos técnicos para descrever a intensidade de calor necessário para produzir toda a deterioração que o corpo de Serian sofreu. Afirmou com autoridade que tinha verificado a presença de acelerante na área do tronco mas não nos membros. Finalmente apresentou esclarecimentos sobre o tecido dos pulmões e como tinha concluído que o fumo não tinha sido inalado e portanto a morte tinha ocorrido antes do incêndio. Depois falou sobre o ferimento no crânio e de como estava de acordo com a forma e o tamanho da lâmina do machado.

 

O Ray relatou com algum agrado os pormenores sangrentos do testemunho de Gavril e as reacções do júri, quando foram distribuídas fotografias do corpo incinerado. O Ray descreveu entusiasmado os restos fundidos do relógio de Serian, dos anéis e da pesada bracelete indiana de prata, que tinham sido apresentados como provas. Depois ridicularizou as perguntas do contra-interrogatório de Rossner, dizendo que o advogado de defesa tinha sido demasiado estúpido para perceber sequer a maior parte do que Gavril estava a dizer.

 

Não fales demasiado cedo, advertiu a Marilyn. A continuação do contra-interrogatório da defesa é hoje.

 

E depois temos a testemunha importante... disse a Pat. Conhece a testemunha importante?

 

Qual testemunha importante? perguntou Owen, mas ele já sabia qual era a resposta.

 

James Collier! responderam todos ao mesmo tempo.

 

Oh meu Deus! Não sabe do grande furo da Holly? gritou a Pat.

 

Não lê o jornal? perguntou o Ray.

 

Ele tem estado no Kansas, disse a Marilyn friamente, como se o Kansas fosse semelhante aos lugares distantes dos Himalaias.

 

A nossa amiga Holly acertou em cheio, disse-lhe o Ray orgulhosamente.

 

Houve uma fonte que lhe deu a informação de que o delegado do ministério público tinha descoberto a testemunha desaparecida, esclareceu a Pat. E de alguma maneira ela convenceu o gabinete do delegado do ministério público a colaborar com ela e foi imediatamente com a sua equipa para a Arcádia a tempo de filmar o Collier a ser apanhado. Foi uma grande jogada da parte dela. Provavelmente está a receber alguma espécie de prémio ou promoção esta manhã.

 

Já se sabe se o Collier vai ser acusado? perguntou o Ray. Ouvi dizer que ele pode ser mesmo acusado por cumplicidade.

 

Não. A Marilyn abanou a cabeça. A acusação desistiu desse propósito. Não sei se vai ser acusado por se ter escondido ou não.

 

Ele vai ser uma testemunha pouco simpática, não vai? perguntou a Pat, e tanto a Marilyn com o Ray se riram e garantiram que ele ia ser o mais antipático possível.

 

Ouvi dizer que o Rossner tem tentado todos os truques que a lei permite para impedir que ele seja levado a testemunhar, disse o Ray.

 

A Marilyn baixou a voz com ar de cumplicidade. Nenhum dos truques deu resultado. Rossner ainda tentou ver se conseguia um adiamento. Tem protestado contra esta súbita testemunha surpresa, alegando que precisa de se preparar, etc., etc. o que é uma grande treta, porque o Rossner soube sempre que, se descobrissem o Collier, iam imediatamente colocá-lo na barra das testemunhas. Até agora o velho Pulaski não se mexeu um centímetro. Acho que o meritíssimo está ansioso por que tudo isto acabe e que a sua sala de audiências volte ao normal.

 

O que é que se tem passado? perguntou Owen. O que fizeram ao Collier?

 

Interrogatórios constantes. A Marilyn encolheu os ombros. Depoimentos por tudo e por nada. Que mais? As minhas fontes dizem que o Brown não sabe muito bem como lidar com ele na cadeira das testemunhas. É uma questão muito delicada. O júri vai estar perante um homem religioso a jurar sobre a Bíblia que vai dizer a verdade e, a não ser que o Brown consiga apanhá-lo numa mentira descarada, o júri provavelmente vai acreditar que o Collier está a dizer a verdade, independentemente do facto de o Brown o descrever como um ser desprezível. Por isso o Brown vai ter de pensar muito bem nas perguntas que lhe vai colocar.

 

Será que o Collier vai contar a verdade? perguntou Owen.

 

Quem sabe? a Marilyn esboçou por momentos um sorriso felino. Mas em breve vai poder julgar por si próprio porque, a não ser que o Rossner apareça com uma varinha mágica, James Collier vai estar na barra das testemunhas hoje ou amanhã. Logo a seguir ao Gavril. E depois o delegado do Ministério Público dará por terminada a acusação.

 

Owen teve de se afastar. Agradeceu-lhes, murmurou uma desculpa esfarrapada e subiu as escadas, para se sentar num banco no extremo oposto do edifício, o mais afastado possível da sala de audiências do Juiz Pulaski.

 

Sentia uma raiva que lhe fazia revolver as entranhas e lhe comprimia o peito. A Holly! A Holly tinha denunciado James Collier!

 

A Holly tinha-se debruçado sobre o seu ombro no café, enquanto o seu bloco de notas estava aberto e tinha visto alguma coisa. Depois, enquanto ele foi à casa de banho para se esconder dela, ela tinha aberto o bloco de notas e tinha escrito uma mensagem como desculpa... e tinha lido a página onde estava escrito, QUEM É O JIMMY? POR QUE ESTÁ ELA A ESCONDÊ-LO?, e tudo o mais que Owen tinha escrito. E como uma repórter sempre alerta que era, a Holly ficou imediatamente a saber que tinha tropeçado numa mina de ouro.

 

Questionou-se se a consciência dela a teria incomodado minimamente, enquanto fazia o seu ”arranjinho” com o gabinete do delegado do ministério público. Perguntou-se se ela teria sentido outra coisa que não fosse uma mera satisfação egoísta, quando apresentou directamente da Arcádia a apreensão de James Collier.

 

Oh, meu Deus! Pôs a mão na testa. Algumas semanas atrás, se alguém lhe tivesse apresentado isto como uma situação hipotética, uma vaga questão moral, ele teria dito que sim, absolutamente, que denunciar James Collier seria a coisa mais acertada. Mas agora... as atitudes da Holly pareciam-lhe um crime ainda maior do que o facto de James Collier se esconder da lei.

 

Quando faltavam dez minutos para as nove, desceu pelo corredor para a sala de audiências. A Lenore e os seus dois acompanhantes apareceram ao virar da esquina da direcção oposta, quando ele estava a aproximar-se das portas. Queria falar com ela. Mas não conseguiu encontrar as palavras e tudo o que conseguiu fazer foi ficar ali num silêncio de culpa. ““

 

Ela passou por ele como se ele fosse invisível. Volpe dirigiu-lhe um olhar assassino e Riley olhou para ele numa atitude que parecia ser de simpatia. Esperou vários minutos, depois passou pelas portas duplas. A Holly estava no seu lugar habitual da frente, com o espaço ao lado à sua espera. Ele deslizou para um banco três filas atrás, para junto de uns repórteres de cujos nomes já se tinha esquecido.

 

A Lenore estava sentada muito direita lá à frente, sem se voltar sequer para Rossner, quando o advogado falava para ela. Rossner estava esta manhã com o aspecto desgrenhado e inquieto, e Owen teve a impressão que ele estava a ser autêntico. O que queria aquilo dizer? Rossner não estava a perder, ou estava?

 

Gavril entrou e sentou-se na cadeira das testemunhas. Era um homem um pouco rechonchudo, de aspecto meigo, apesar do seu fato muito bem talhado. O seu porte sugeria uma grande confiança e logo que se sentou, cruzou as pernas e encostou-se para trás, sorrindo com o ar de profissional e de superioridade.

 

Rossner avançou. Dr. Gavril, eu sei que o senhor é um homem muito atarefado e vou tentar não o manter afastado dos seus importantes afazeres por muito tempo.

 

Gavril inclinou levemente a cabeça.

 

Ora, onde nós ficámos ontem, Doutor, foi com o senhor a explicar novamente como soube que havia vestígios de algum tipo de acelerante no tronco do corpo mas não nos membros. E o senhor conduziu-nos com toda a paciência através da análise dos tecidos e tudo isso e é espantoso como o senhor conseguiu contar-nos tanta coisa... por isso podia, por favor, dizer-nos se Bram Serian se cortou algures no meio de todo aquele vidro partido?

 

Não. Não tive maneira de verificar isso. Mesmo que não tivesse havido um nível muito elevado de destruição dos tecidos, as elevadas temperaturas fazem saltar a pele em numerosos lugares e essas lesões não se distinguiriam de cortes depois de um incêndio.

 

Rossner simulou uma expressão enlevada e, de certo modo, de espanto. Dá a sensação que o próprio fogo provoca feridas no corpo, não é verdade?

 

Inquestionavelmente. O fogo é extremamente destrutivo. Gavril sorriu com ar complacente. É por isso que existe a cremação. A uma temperatura suficientemente elevada, tudo é reduzido a cinzas.

 

Então o fogo pode mesmo danificar os ossos?

 

Com certeza. As várias fracturas presentes no defunto resultaram do fogo.

 

Rossner olhou para a testemunha absolutamente perplexo. Várias fracturas? O senhor quer dizer que Bram Serian tinha outros ossos partidos para além do crânio?

 

Não estavam “partidos” no mesmo sentido que o crânio estava danificado, mas sim, havia algumas fracturas. O que é comum em ossos que foram sujeitos a temperaturas elevadas.

 

O senhor pode dizer-nos se essas fracturas se deram antes do incêndio?

 

Não. No entanto isso seria altamente improvável.

 

E porquê?

 

Porque, como já afirmei, essas fracturas são comuns a elevadas temperaturas.

 

Portanto, no corpo de Bram Serian, pode dizer-nos a ordem pela qual se deram as fracturas?

 

Não. Como já disse, a única certeza é que ele não estava a respirar quando começou o fogo.

 

Essa é a única certeza?

 

Sim.

 

Então nesse caso não pode dizer-nos muita coisa sobre a fractura do crânio, pois não?

 

Pelo contrário, posso dizer muita coisa sobre a fractura do crânio.

 

O senhor observa com frequência este tipo de estragos... em que há bocados partidos que foram comprimidos para o interior?

 

Sim. Isso é compatível com uma grande variedade de circunstâncias.

 

Fale-nos de algumas das formas em que uma pessoa pode ficar sujeita a esse tipo de lesão.

 

Variados traumatismos na cabeça. Ser atingido com um objecto que tenha uma extremidade pontiaguda. Encolheu os ombros. Ficar sob os escombros de um edifício que se desmoronou.

 

E desse tipo de lesão resulta sempre a morte?

 

Eu não o caracterizaria como cem por cento fatal, mas as hipóteses de uma vítima sobreviver a uma lesão desse tipo são poucas.

 

Acidentes de automóveis? Pode-se ferir a cabeça desta maneira num acidente de automóvel?

 

Com certeza. Se fosse projectado e se a cabeça batesse na superfície apropriada.

 

Acidentes em casa... é possível que esse tipo de lesão aconteça na nossa própria casa?

 

Gavril deu um suspiro de impaciência. Sim. Uma queda pelas escadas abaixo... uma queda no chuveiro... escorregar no chão molhado da cozinha.

 

Mas não basta bater com a cabeça no chão?

 

Não. Teria de bater com a cabeça numa extremidade ou num objecto apropriado. Na esquina de um balcão, no ângulo de um degrau de madeira...

 

A esquina de um tijolo, talvez?

 

Sim. Esse tipo de coisas.

 

Portanto o ferimento do crânio de Bram Serian podia ter sido provocado por uma queda em que ele batesse com a cabeça na extremidade de um canto de tijolo do fogão no seu estúdio?

 

Não é essa a minha conclusão.

 

Mas o senhor não disse que esse ferimento podia ter sido provocado por uma queda desse tipo?

 

Sim.

 

E não disse anteriormente, ao Dr. Brown, que não havia maneira de determinar categoricamente que a cabeça do machado estivesse envolvida porque não havia vestígios de metal que tivessem sido retirados da área do ferimento?

 

Sim. Mas...

 

E não nos disse que nem sequer havia maneira de determinar se as fracturas tinham sido causadas pelo fogo ou se tinham acontecido antes ou depois da morte?

 

Eu estava a referir-me às fracturas noutros ossos da cabeça.

 

Então havia uma maneira de determinar que a fractura do crânio de Bram Serian aconteceu antes da sua morte?

 

Não. Contudo há conclusões lógicas a que se pode chegar. Ele foi morto por alguma coisa.

 

Oh. Ele foi morto por alguma coisa? O senhor quer dizer alguma coisa como algo desconhecido? Como chocar contra um cubo de gelo e depois imaginar qual seria a causa da morte, porque o cubo de gelo derrete-se e depois o que se tem?

 

Eu, como patologista especializado, estudei todos os indicadores físicos e concluí que a causa mais provável da morte foi a fractura do crânio.

 

A causa mais provável, heim?

 

Sim. A medicina é muitas vezes uma combinação entre a arte e a ciência.

 

Isso quer dizer que o senhor não pode afirmar, com toda a certeza e categoricamente, sem a mínima dúvida, se Bram Serian bateu com a cabeça e morreu ou se caiu já morto e bateu com a cabeça quando caiu?

 

Eu posso...

 

Doutor, tem a certeza absoluta se foi de uma ou de outra maneira?

 

Não.

 

O senhor pode afirmar, com toda a certeza, categoricamente, sem a mínima dúvida, qual foi exactamente o objecto ou superfície ou extremidade que deu origem à fractura no crânio de Bram Serian?

 

Não.

 

Nesse caso, podia perfeitamente ter sido a extremidade do tijolo, não podia?

 

Gavril deu um suspiro de desagrado. Sim.

 

Podia ter batido com a cabeça contra a extremidade do tijolo como consequência da queda, não é verdade?

 

Sim.

 

O senhor referiu anteriormente que escorregar num chão molhado podia ser a causa de uma queda... portanto ele podia ter partido o candeeiro, depois podia ter escorregado no charco de petróleo e batido com a cabeça nos tijolos... acha que isso era possível?

 

Vagamente possível.

 

Mas possível, correcto?

 

Correcto.

 

Owen esgueirou-se mesmo antes de o juiz anunciar o intervalo para o almoço e abandonou imediatamente o tribunal. Voltou para a baixa da cidade, para a estação dos comboios e foi a um bar por onde já tinha passado várias vezes. Parecia-lhe um lugar seguro onde podia comer sem dar de caras com ninguém conhecido.

 

O hambúrguer era gordurento e o ambiente era deprimente. Sentou-se sozinho ao fundo do bar, a pensar no que tinha acontecido e no papel que ele tinha desempenhado nos acontecimentos. Tinha traído a Lenore. Por falta de cuidado, se não houvesse outro motivo. Tinha andado tão ocupado a afundar-se na sua própria confusão que não tinha protegido suficientemente os segredos.

 

Havia uma cabine telefónica nas traseiras. Telefonou a Bernie. Tinha saído para ir almoçar, por isso transmitiu ao Alex o resumo da viagem a casa de Milly Corwin. E prometeu que a proposta estaria nas mãos da Bernie no dia seguinte, que a deixaria na caixa do correio da porta do escritório logo de manhã, antes de ir apanhar o comboio.

 

O Alex falou com grande entusiasmo do livro de Owen, que ia ser dinamite, depois comentou que ele parecia estar muito em baixo. Owen disse que estava apenas cansado.

 

Deve ser do mal de voo, riu-se o Alex. Ouvi dizer que esses voos para o Kansas podem ser perigosos.

 

Com certeza. Owen fez um riso forçado para ser agradável.

 

Oh... o Cliff recebeu a mensagem que deixou na nossa máquina na terça-feira e já está a trabalhar nisso. Está a ter dificuldades em conseguir informação militar sobre Abe Hanselmann. Não sei ao certo porquê. Andou a telefonar a alguns amigos piratas informáticos para tentar resolver o problema. Mas quanto ao outro nome Benjamin Hanselmann de Ridley, Kansas disse-me para lhe dizer que o gajo nunca esteve no exército. Em nenhum ramo das forças armadas. E não há quaisquer registos de ele ter estado a trabalhar no Vietname em alguma função autorizada de apoio civil ou competência médica.

 

Obrigado, disse Owen, questionando-se sobre o significado desta notícia. Será que toda a experiência de Bram Serian na guerra do Vietname era pura ficção?

 

Voltou a subir a rua em direcção ao tribunal. As suas emoções e os seus pensamentos estavam num tal estado de confusão que já não confiava em si próprio. Não sabia o que esperar. Não podia prever o que poderia fazer ou dizer a seguir.

 

Procurou ansiosamente pensar numa maneira de se redimir rapidamente com a Lenore. Se ao menos não lhe tivesse deixado as cassetes. Podia usá-las como motivo para se encontrar com ela. Mas agora o que precisava ela dele? Nada. Tinha de arranjar alguma nova informação para ela.

 

Ocorreu-lhe que havia uma pista bastante simples que ele ainda não tinha seguido o obituário que tinha encontrado entre os papéis de Serian. O falecido tinha passado a maior parte do tempo na Tailândia e Owen tinha de acreditar que a Tailândia era a ligação que o Serian tinha com o homem. Se a viúva ainda vivia em Connecticut, talvez ele pudesse seguir a pista dela. Talvez ela tivesse informações importantes. Era uma vaga possibilidade, mas valia a pena fazer uma tentativa. Qualquer coisa valia a pena tentar. Tudo.

 

O Povo chama James Collier!

 

James Collier dirigiu-se para a barra das testemunhas com um simples fato escuro, de tal modo que parecia uma pessoa que carrega o caixão num funeral. A sua pele rugosa e cheia de marcas estava pálida e os olhos estavam inchados e ensombrados. Com certeza que era devido aos constantes interrogatórios a que tinha sido submetido desde que o tinham capturado. Quando levantou as mãos para jurar sobre a Bíblia, tremia tanto que Owen se apercebeu dez filas atrás.

 

Senhor Collier, disse Brown, evidenciando uma animosidade sarcástica, ou devo chamar-lhe Irmão Collier?

 

Na verdade, as pessoas dirigem-se a mim como Irmão James.

 

Ah. Muito bem. Irmão James, então...

 

Brown fez perguntas ao homem sobre a sua vida como irmão Católico e sobre o seu trabalho a ensinar crianças, desacreditando-o em todas as oportunidades com insinuações, expressões faciais e ironias constantes.

 

Diga-nos, Irmão James, como se familiarizou com Lenore Serian?

 

Conheci-a através do seu marido, Bram Serian.

 

Como e quando conheceu Bram Serian?

 

Ele foi a uma angariação de fundos de caridade para a minha escola oito meses antes da sua morte.

 

E Lenore Serian acompanhava-o?

 

Não.

 

Quando conheceu Bram Serian, sentiu imediatamente alguma afinidade com ele ou alguma coisa em comum?

 

Sim.

 

E como passou desse encontro numa actividade pública para um nível mais pessoal de conhecimento?

 

Ele convidou-me para ir tomar uma bebida com ele e estivemos a conversar sobre arte. Eu andava preocupado com o facto de o programa de educação artística não ser adequado.

 

E depois?

 

O tempo passou. Ele pagou-me o jantar.

 

Então o homem estava a oferecer-lhe a sua amizade? Collier hesitou. Sim.

 

Quando se familiarizou com a esposa do seu novo amigo?

 

O Bram levou-me a jantar fora mais algumas vezes e foi à escola para dar aos nossos alunos uma conferência sobre arte. Eu já o conhecia havia quatro meses quando me convidou para ir a ver Arcádia pela primeira vez.

 

Foi a uma das suas festas?

 

Não. Foi num dia calmo, só com ele e Natalie Raven e a sua esposa.

 

Durante quanto tempo esteve na propriedade?

 

Fui para lá na sexta-feira de manhã, de comboio, passei lá a noite e voltei para Manhattan depois... depois do incêndio.

 

Lenore Serian foi simpática consigo?

 

Sim.

 

Passou algum tempo sozinho na companhia dela?

 

Houve um espaço de tempo durante o qual o Bram foi para o seu estúdio e a Natalie andava atarefada e durante esse tempo Lenore levou-me a dar um passeio a ver o lago.

 

Quem é que teve a ideia?

 

Na verdade foi ideia do Bram.

 

Qual foi o tema da sua conversa com esta mulher que tinha acabado de conhecer?

 

O bem e o mal. A Lenore estava muito interessada em saber qual era o meu ponto de vista pessoal sobre o assunto e também queria saber qual era o ponto de vista da igreja.

 

Ahhh. Brown acenou com a cabeça deliberadamente. E quanto tempo durou esse passeio e essa conversa filosófica?

 

Várias horas.

 

Estou a ver. E qual foi a ocasião seguinte em que contactou com Lenore Serian?

 

A vez seguinte em que fui convidado para a Arcádia. Duas semanas depois.

 

E estava a corresponder ao convite de quem?

 

Do Bram.

 

Voltou a ter oportunidade de estar sozinho com Lenore Serian?

 

Sim.

 

Durante quanto tempo?

 

Durante duas ou três horas.

 

E qual foi o tema de conversa enquanto esteve sozinho com Lenore Serian desta vez?

 

Falámos sobre o Bram e a sua arte.

 

Apreciou a companhia desta mulher?

 

Sim.

 

Quantas visitas mais houve à Arcádia anteriores à morte de Bram Serian?

 

Cinco. Incluindo o fim de semana em que... o fim de semana do incêndio.

 

E em cada uma dessas visitas passou várias horas sozinho na companhia de Lenore Serian?

 

Sim.

 

E não sentiu nenhum constrangimento?

 

Não. Lenore era muito simpática comigo.

 

Alguma vez contactou com Lenore Serian fora da Arcádia?

 

Não.

 

Alguma vez falou com ela sem o conhecimento do seu marido? James Collier respirou com ar de resignação. Sim. Ao telefone.

 

Com que frequência?

 

Variava.

 

Nas duas últimas semanas antes da morte do marido, com que frequência falou com Lenore Serian?

 

Todos os dias.

 

Quem é que começava essas chamadas, o senhor ou ela?

 

Sobretudo eu. Era eu que normalmente lhe telefonava. ”“

 

E sobre que falavam vocês os dois nessas conversas ao telefone, das quais o marido dela não tinha conhecimento?

 

Falávamos sobre o Bram e sobre quando é que eu ia voltar à Arcádia.

 

Ela alguma vez falou de como seriam as suas vidas se ela ficasse livre do marido?

 

Não. Não falou.

 

Brown afastou-se da testemunha por instantes, manifestando repugnância. Depois, com alguma relutância, voltou atrás.

 

Quem o convidou para a festa no fim-de-semana entre os dias cinco e sete de Agosto?

 

Foi a Lenore.

 

O senhor pediu-lhe que o convidasse?

 

Disse-lhe que gostava de ir.

 

Por que não telefonou ao seu amigo Bram Serian para lhe solicitar um convite?

 

Collier baixou os olhos. Ele não queria que eu fosse.

 

Oh? E ele deu-lhe algum motivo para não querer a sua companhia?

 

Ele não achava apropriado que alguém da igreja estivesse em nenhuma das suas festas.

 

E qual foi a sua resposta a essa preocupação dele?

 

Disse-lhe que estava confuso quanto à igreja. Que estava a ficar indeciso quanto ao cumprimento do meu compromisso para com a igreja.

 

E qual foi a reacção de Bram Serian a essa sua confissão?

 

Avisou-me que devia ter a certeza, antes de dar passos drásticos. Brown fez uma pausa para folhear as suas notas e depois mudou a sua atenção para o fim-de-semana em que se deu o incêndio. Levou Collier a descrever os acontecimentos da noite de sexta-feira: a sua chegada a Arcádia e a fúria de Bram Serian por ele ter aparecido.

 

A que atribuiu aquela fúria, Irmão James?

 

À minha desobediência relativamente aos seus desejos e ao facto de ter vindo à festa.

 

Ele disse-lhe alguma coisa em que manifestasse o seu aborrecimento com a sua relação íntima com a esposa dele?

 

Não. Não disse.

 

O que aconteceu depois?

 

Natalie Raven indicou-me um quarto e toda a gente foi dormir.

 

Teve mais algum contacto com a senhora Serian naquela noite?

 

Não.

 

Mas foi a primeira pessoa que viu na manhã seguinte, não foi?

 

Sim.

 

Conte-nos, por favor, como é que se encontrou com a senhora Serian na manhã seguinte.

 

Não dormi bem e logo que amanheceu, levantei-me para ir dar um passeio. Estava muito calor. Mesmo de manhã. Caminhei até ao lago e sentei-me na margem, pensando que estava sozinho. Depois vi que Lenore também estava lá. A nadar.

 

A nadar naquele tanque ao romper do dia?

 

Não era bem um tanque mas mais um lago em miniatura, alimentado por uma nascente, segundo me disseram, por isso a água era muito clara e agradável. Toda a gente nada nele. E quanto às horas... não me parece que seja assim tão extraordinário as pessoas levantarem-se por volta das sete e meia da manhã.

 

E então chamou a senhora Serian... deu-lhe a conhecer a sua presença?

 

Sim. E quando lhe dei um grito, percebi que ela estava a nadar nua e fiquei preocupado que ela ficasse embaraçada, por isso disse-lhe imediatamente que me ia embora.

 

E qual foi a reacção dela?

 

Ela deu também um grito e disse-me que não me fosse embora. Que eu estava muito bem ali. E depois nadou para longe da minha vista e cinco ou dez minutos mais tarde apareceu a caminhar pelo meio das árvores, toda vestida e com uma toalha à volta do cabelo.

 

E o que aconteceu a seguir?

 

Ficámos sentados a conversar.

 

A falar do que era habitual, suponho eu, disse Brown sarcasticamente.

 

Sim. Mais, ela disse-me que gostava de ir nadar de manhã cedo nas festas de fim-de-semana, pois assim tinha o lago só para ela.

 

Portanto aquilo era um costume dela? Ir nadar nua de manhã cedo?

 

Sim.

 

E o senhor já devia ter ouvido falar do costume dela... já sabia com antecedência que ela estava ali, não sabia?

 

Podia saber, mas não sabia.

 

Passaram quase duas horas, enquanto Brown obrigava James Collier a descrever todos os movimentos que tinha feito no sábado, durante a festa. Conseguiu levar Collier a confessar que não devia ter estado lá e que o Bram continuava aborrecido com ele e que não se adaptava bem no meio dos outros convidados, nem com as actividades. Mas fosse qual fosse a sua abordagem, não conseguiu que Collier admitisse qualquer relação física com a Lenore.

 

Para Owen, James Collier transformou-se num objecto de compaixão. O homem tinha andado preocupado com o seu compromisso religioso, extremamente infeliz e desconfortável na festa, perturbado com o aborrecimento de Bram Serian e aparentemente envolvido num romance frustrante e inconsumado com a Lenore.

 

Agora, Irmão James, onde estava o senhor na manhã do dia sete de Agosto, pouco antes de as festividades da noite se dispersarem?

 

Estavam todos juntos lá fora a beber e, de um modo geral, a divertir-se até ao excesso e eu afastei-me um bocado e sentei-me.

 

A divertir-se em excesso?

 

A beber muito e a tomar diversas drogas.

 

Oh! Mas o senhor não!

 

Não.

 

Havia alguém que se abstivesse desse comportamento? -^

 

Parece-me que a Lenore era a única pessoa que se abstinha totalmente.

 

Pode contar-nos o que aconteceu?

 

Houve algumas pequenas discussões e alguém ligou um rádio, o que desagradou ao Bram, mas havia tanto barulho... e algumas pessoas levantaram-se e começaram a dançar como loucas... e por isso ninguém reparou no aborrecimento do Bram por causa do rádio. Mas eu estava sóbrio e tinha estado a observá-lo, à procura do momento adequado para falar com ele em particular, por isso vi-o levantar-se. Primeiro pensei que se dirigisse para o rádio para o desligar, mas depois ele virou-se de repente e avançou para o meio da zona mais escura, para onde estavam as mesas com comida que tinham ficado depois do jantar. Esperei por momentos e depois segui-o. Era difícil ver naquele lugar, depois de ter estado à luz do candeeiro, por isso dirigi-me para ele antes de me aperceber que não estava sozinho.

 

O que fez então?

 

Logo que vi que ele estava a falar com alguém, voltei-me e comecei a afastar-me... e então vi a Lenore no meio das árvores... a observá-lo.

 

Dava a sensação de estar a espiá-lo?

 

Pela primeira vez, James Collier mostrou uma centelha de raiva. Não me parece. Acho que ela provavelmente tinha-o seguido... provavelmente queria estar com ele em particular... tal como eu, e estava à espera que o outro homem se fosse embora para poder aproximar-se dele.

 

E então o que fez?

 

Voltei para junto do grupo.

 

E viu também a senhora Serian a regressar?

 

Não.

 

Quando voltou a ver Bram Serian?

 

Ele voltou passados cerca de vinte minutos, estava sem fôlego, como se tivesse andado a correr e comunicou a toda a gente que ia deitar-se. E disselhes que eles também deviam ir. Depois dirigiu-se para o estúdio.

 

A senhora Serian estava à vista desta vez?

 

Comecei a dirigir-me para o Bram mais uma vez, na esperança de lhe dar uma palavra e vi a senhora Serian a sair das árvores e a segui-lo para o estúdio.

 

Ouviu alguma conversa que se passou entre Bram e Lenore Serian? Um olhar de profundo desgosto reflectiu-se nas feições de James Collier.

 

Sim, ouvi-a a chamá-lo. Ela disse, “Não vou deixar-te, Bram. Juro que vou impedir-te.”

 

Na sexta-feira de manhã havia uma multidão de gente a tentar passar a segurança do tribunal. Os constantes flashes informativos da Holly tinham reacendido um frenezim de entusiasmo e mais uma vez havia longas filas de ansiosos espectadores.

 

Owen esperou pela sua vez para passar pelos detectores de metais e seguiu o fluxo de pessoas que subiam as escadas. Ele também estava ansioso, mas por motivos completamente diferentes. Tinha falado na noite anterior com a viúva do homem do obituário, à procura da ligação com a Tailândia.

 

Tinha sido muito simples. A única coisa que teve de fazer foi ligar a pedir informações sobre a zona de Ridgefield, Connecticut, e em poucos segundos tinha-lhe sido dado o número de Françoise Newman. Depois marcou o número, introduziu as moedas e ouviu o telefone a tocar algures no Connecticut.

 

Estou. Era uma voz feminina com uma forte pronúncia francesa.

 

É a senhora Françoise Newman?

 

É a própria.

 

O meu nome é Owen Byrne. Ando à procura de informações sobre pessoas que tiveram alguma ligação com a Tailândia há alguns anos.

 

Oh? Diga-me outra vez o seu nome para eu poder tomar nota. Ele soletrou-lhe o nome.

 

Que espécie de informação procura, senhor Byrne? O meu marido já faleceu e lamento, mas ele é que era especialista sobre a Tailândia.

 

Mas eu não preciso de um especialista em questões tailandesas, declarou ele. Ando à procura de pessoas. A senhora conheceu um Luther Bachman um jovem americano que estava a cumprir o serviço militar?

 

Desculpe, mas não.

 

Lá estava ele. Mais um beco sem saída. Tinha pensado que a chamada era muito fácil.

 

Sabe alguma coisa de Abe Hanselmann?

 

Não.

 

Sabe de alguém com o nome Hanselmann?

 

Não.

 

E de jovens em que o último nome fosse Serian?

 

Não. Receio bem que não.

 

A senhora conheceu alguns jovens militares americanos? Ela hesitou. Por que pergunta isso?

 

Eu devia ter-me explicado melhor. Estou a tentar obter informações sobre um jovem que foi pai de uma criança durante a guerra, senhora Newman. Estou convencido de que o nome desse homem era Luther Bachman, e tudo o que sabemos dele é que foi para o Vietname e nunca mais voltou, e que teve uma criança que parece ter vivido na Tailândia. Ela vive agora aqui nos Estados Unidos e está a tentar saber quem era o seu pai.

 

E por que me pergunta a mim? Por que não perguntar ao exército?

 

É uma longa história... Mas durante a minha investigação dei com uma referência ao seu marido, na realidade, ao seu obituário. E tive esperança de que houvesse alguma relação com a Tailândia.

 

Não consigo imaginar porquê.

 

Bem, estou a chegar à conclusão de que ando aqui à procura de sombras. Mas tenho de tentar todas as possibilidades.

 

Lamento não poder ajudar. Há ainda muitas tragédias a perseguir-nos a todos por causa daquela guerra.

 

Qualquer coisa no tom de voz dela estava a deixar Owen confuso. A senhora não pode ajudar ou não quer ajudar? perguntou-lhe ele. Ela ficou em silêncio por longos momentos de hesitação.

 

Por que está a telefonar para mim? perguntou ela. Quem é que o senhor representa realmente? Já lhe disse que o meu marido está morto! O que é que o senhor podia querer de mim?

 

Senhora Newman... Não sei o que está a perturbá-la assim tanto, mas existe uma mulher que tem estado a sofrer desde há muito, muito tempo, desesperada por saber quem são os pais dela. Quem é ela. E se a senhora pudesse dizer-lhe alguma coisa, estaria a demonstrar uma grande amabilidade.

 

Françoise Newman soltou um profundo suspiro. Conhecemos muitos soldados americanos durante a tragédia do Vietname. E é triste dizê-lo, houve provavelmente um grande número deles que deixaram mulheres tailandesas com bebés. Mas nenhum dos seus nomes me é conhecido, senhor Byrne. Juro que é verdade.

 

Pode dar-me algumas sugestões... outras pessoas com quem eu possa falar?

 

E a mãe dela? O que sabe acerca da mãe?

 

Ela não se lembra de nenhum facto relacionado com a mãe.

 

Que pena. Françoise Newman suspirou novamente. Mas realmente não posso ajudá-lo.

 

Bem, obrigado pelo seu tempo. Posso deixar-lhe o meu número para o caso de a senhora se lembrar de alguma coisa... qualquer coisa?

 

Com certeza. Françoise Newman tomou nota do número da agência de Bernie e voltou a lê-lo para ele, depois disse numa reflexão de simpatia, Talvez se ela se lembrasse de alguns nomes tailandeses. Ainda tenho lá muitos amigos. Os tailandeses são um povo maravilhoso e acolhedor e talvez o senhor devesse tentar procurar ajuda do lado tailandês.

 

Infelizmente ela nem sequer tem um nome tailandês. Ela acha que se chama “Lenore” desde que nasceu, se bem que ninguém seja...

 

O quê!

 

Desculpe?

 

O senhor disse “Lenore”?

 

Sim. O nome dela é Lenore. Porquê? Isso diz-lhe alguma coisa? Françoise Newman ficou calada por instantes.

 

O seu último nome não é Corwin, porventura? Perguntou ela por fim. Owen sentiu um ímpeto intenso de alívio e de júbilo que acompanha as grandes realizações. Era isso. O círculo tinha-se fechado. Luther Bachman não só tinha dado um nome à filha em honra da avó dos seus amigos a avó dos contos de fadas das histórias de Arcádia de Milly Corwin como também se tinha transformado num Corwin.

 

Tudo isso se ajusta, disse ele. O facto de ele usar o nome Corwin ajusta-se a um padrão. Sabe exactamente quem é ela, não sabe?

 

Seguiu-se mais um silêncio. Depois, numa voz adensada pela emoção, Françoise Newman disse, Lenore nasceu em minha casa. Na minha casa na Tailândia.

 

Owen teve de tapar a boca e cerrar as maxilas para evitar dar um grito.

 

Será que eu posso ir aí falar com a senhora? Por favor?

 

Sim. E eu quero vê-la, quero ver a Lenore. Ela pode vir?

 

Acho que sim. Mas tem de ser neste fim-de-semana. Amanhã ou no domingo.

 

Óptimo. Venham o mais depressa possível. Fico à espera.

 

Agora só tinha que dar a novidade à Lenore. À porta da sala de audiências número 6, perguntou ao oficial de diligências se a defesa já tinha chegado e ele respondeu-lhe que não. Ficou ali por instantes sem saber o que fazer, depois decidiu que, com o ambiente de recomeço da confusão, a sua melhor hipótese de falar com a Lenore era fora do tribunal. Rapidamente, precipitou-se para as escadas e tentou abrir caminho para descer por entre a multidão que ia a subir e apressou-se a ir para o hotel.

 

O empregado da recepção acenou um cumprimento quando entrou, mas ele sabia que era melhor não mandar anunciar-se formalmente. Com certeza que Lenore ia mandar descer Riley e Volpe para o porem fora se soubesse que estava ali. Por isso sentou-se a um canto e ficou à espera, gentle

 

Primeiro desceram Charlie Rossner e Paul Jacowitz. Vinham todos envolvidos na conversa e não o viram. Ele deixou-os passar sem chamar a atenção para ele. Vários minutos mais tarde ouviu passos nas escadas. Levantou-se e dirigiu-se para o centro do átrio.

 

Riley foi o primeiro a descer as escadas, viu Owen e franziu as sobrancelhas. Lenore e Volpe toparam-no ao mesmo tempo. Os olhos de Lenore incendiaram-se de fúria e Volpe irrompeu, precipitando-se na sua direcção a gritar, Você é um homem morto, seu malandro! e quase descarregando um soco na cara de Owen, se Riley não o tivesse agarrado por detrás, rodeando o peito de Volpe num abraço apertado que deixou o homem mais pequeno a mexer os braços furiosamente. Lenore caminhou rapidamente para a porta com a capa a esvoaçar à sua volta e Riley ordenou a Owen que se afastasse. Mas em vez disso, correu atrás de Lenore.

 

Espera! Lenore! É sobre a Tailândia! O teu pai... foi tudo o que conseguiu dizer antes de Volpe se libertar e de o atacar por detrás.

 

Owen sempre tivera aversão aos homens que resolviam os seus problemas com lutas, mas subitamente toda a raiva, frustração, culpa e ciúmes foram directamente canalizados para os seus punhos e enfrentou o ataque de Volpe com uma selvajaria insensata. Só gradualmente recuperou o seu bom senso. Reparou que a Lenore estava aos gritos e o empregado da recepção a berrar e que as mãos de Riley estavam a tentar afastá-lo de Volpe que ia atirar-se a ele.

 

Depois apercebeu-se que lhe doíam tanto as mãos como as articulações.

 

Surpreendido, estendeu as mãos e ficou a olhar para elas, sentindo-as como se lhe fossem estranhas como se não fizessem mais parte dele. Endireitou-se, cambaleou para trás e encostou-se a um pilar, enquanto Riley segurava Volpe ao lado dele.

 

Ahhh, olhem para vocês, rapazes, repreendeu-os Riley. Já para cima, Joseph, ordenou ele a Volpe. E espero que tenhas à mão uma camisa limpa.

 

Volpe lançou a Owen um olhar mortífero.

 

Enquanto segurava com mão firme o ombro de Volpe, Riley disse, Agora sou eu que trato das coisas, Joseph. Acabou a confusão. Arranja-te decentemente para podermos levar a senhora ao tribunal, pois é para isso que estamos a ser pagos.

 

Volpe libertou-se do controlo do parceiro, endireitou o seu casaco desportivo e afastou-se com ar arrogante.

 

Owen observou-o a subir as escadas. Tocou no canto da boca e reparou que tinha sangue nas pontas dos dedos. Baixou os olhos e olhou para a frente da camisa e viu manchas vermelhas.

 

Riley abanou a cabeça. Há aí alguma casa de banho que possa ser usada por este cavalheiro? disse ele em voz alta para o empregado da recepção.

 

Parece-me que sim, concordou o empregado de má vontade e puxou de uma chave com uma placa enorme presa a ela.

 

Espera, Owen.

 

Era a Lenore. A Lenore tinha dito o seu nome.

 

Ela atravessou o átrio para se ir colocar em frente dele, com a sua cara pálida coberta pelo capuz da capa e os olhos que pareciam buracos negros, levando-o até ao limite, puxando-o para o vazio.

 

O que sabes do meu pai e da Tailândia? perguntou ela num tom baixo e ameaçador.

 

Owen relanceou o olhar para Riley, perguntando-se se tudo o que sabia poderia ser dito em frente dele.

 

Frank, pode dar-nos alguma privacidade? disse ela.

 

Então espero junto às escadas, disse-lhe Riley. Mas não posso permitir que fiquem fora da minha vista, como sabe.

 

Logo que ficaram suficientemente afastados de Riley para ele não poder ouvi-los, Owen falou-lhe da sua chamada para Françoise Newman. A Lenore ficou muito calada por instantes. Os seus dedos apertaram as duas pontas da frente da capa com tanta força que ficaram brancos e lívidos com a pressão.

 

Ouviste as cassetes de Milly Corwin, não ouviste? perguntou-lhe Owen.

 

Sim.

 

Então já sabes de Luther Bachman. Penso que ele usava o nome Corwin quando Françoise Newman o conheceu. Quando tu nasceste.

 

Quero ir contigo, disse ela.

 

E quando é que podes ir?

 

Amanhã de manhã. O mais cedo possível.

 

Owen sentiu uma onda de vergonha. Podes trazer alguém contigo... Baixou os olhos para as suas mãos inchadas. Se não quiseres ficar sozinha comigo.

 

Não tenho ninguém que possa levar, replicou-lhe ela. Ninguém mais sabe disto para além de ti.

 

Não contaste ao Rossner nada do que soubemos?

 

Claro que não!

 

Mas ele podia utilizar alguma coisa disso na tua defesa, Lenore.

 

Tu não tens nada a ver com isso.

 

Volpe desceu as escadas vestindo uma camisa limpa e outro casaco desportivo. Vamos! gritou ele para a Lenore. Estamos atrasados!

 

Owen olhou para fora da janela a observá-la enquanto se apressava a caminho do tribunal, com a capa a esvoaçar como se fossem as asas de um pássaro enorme e escuro. Depois os fotógrafos amontoaram-se à sua volta e ela desapareceu.

 

James Collier estava ainda com pior aspecto do que no dia anterior. Podia ter estado gravemente doente e não parecer tão mal.

 

Rossner foi muito moderado com ele, mostrando-se preocupado, e o júri pareceu ficar satisfeito com a sua atitude. Os receios da acusação tinham sido bem fundados o júri era solidário com este homem de hábito, independentemente do facto de ele parecer que tinha caído em desgraça.

 

Rossner conduziu James Collier através da história da sua dedicação à igreja, salientando todas as palavras, pensamentos e actos de bondade associados ao Irmão James, transformando-o de um pecador num santo. Depois concentrou-se na relação de Collier com Bram Serian.

 

Nos oito meses em que conheceu Bram Serian, quantas vezes o levou a jantar em Manhattan?

 

Oh, numerosas vezes. Talvez uma dúzia.

 

Mesmo depois de começarem os convites para a Arcádia... os jantares na cidade continuaram?

 

Sim.

 

Portanto Bram Serian obviamente encontrava algum significado na sua amizade?

 

Gostava de acreditar que sim.

 

Ele era um homem perturbado?

 

Sim. Muito perturbado.

 

Ele confessou-lhe alguns pecados?

 

Brown saltou da cadeira. Protesto, Meritíssimo! Penitenciar é um privilégio do padre.

 

Deferido, respondeu Pulaski imediatamente.

 

As minhas desculpas, disse Rossner. O que discutia com ele, Irmão James?

 

As nossas discussões eram abstractas. Como irmão que sou, não posso ouvir confissões.

 

De um modo geral, fale-nos de alguns dos assuntos que ele discutia consigo.

 

Ele estava preocupado com a condenação eterna e com o facto de os pecados de uma alma não arrependida serem transferidos para outra.

 

Alguma vez falou consigo sobre a Lenore?

 

Eu não lhe chamaria uma conversa, mas de facto ele fazia referências a ela de vez em quando.

 

E de que maneira se referia a ela?

 

Ele estava... dizia coisas em que sugeria que ele estava enfeitiçado por ela.

 

Alguma vez lhe deu motivos que o levassem a pensar que não a amava?

 

Nunca.

 

Ou que estava disposto a divorciar-se dela?

 

De modo nenhum. Havia uma profunda relação entre eles. Algo muito forte. Podia sentir-se quando estavam os dois juntos.

 

Como é que Natalie Raven tratava o patrão nas ocasiões em que visitou a Arcádia?

 

Eu diria que ela estava apaixonada por ele.

 

Estava apaixonada?

 

Mostrava-se muito preocupada. Estava sempre a endireitar-lhe o colarinho, ou a escovar alguma coisa da manga dele, ou a levar-lhe alguma bebida fresca. Esse género de coisas.

 

E como reagia Bram Serian a todos esses cuidados?

 

Dava a impressão que não prestava atenção a essas coisas.

 

E como se comportava Natalie Raven para com a Lenore?

 

Era excessivamente amável com a Lenore, enquanto que ao mesmo tempo fazia tudo o que podia para fazer a Lenore sentir-se mal. Realçando erros que a Lenore tinha feito ou coisas de que a Lenore se tinha esquecido de fazer.

 

O senhor gostava da companhia de Lenore Serian?

 

Sim. Ela era muito simpática comigo. Muito compreensiva. Eu não sentia necessidade de parecer erudito quando falava com ela.

 

Alguma vez foi jantar sozinho com ela” da mesma maneira que foi tantas vezes jantar com o marido dela?

 

Não.

 

Alguma vez teve relações sexuais com ela?

 

Não!

 

O senhor tem outras amizades entre mulheres?

 

Sim. Tenho um grande número de amigas. Mulheres que trabalham comigo em algumas obras de caridade. Mães de alguns dos meus alunos.

 

Fala com elas ao telefone?

 

Às vezes. Sim.

 

Alguma vez quebrou os votos com uma mulher?

 

Não. Não quebrei.

 

Rossner levantou os olhos para o tecto e balançou-se nos calcanhares por instantes.

 

Muito bem, vamos voltar à festa. Bram Serian estava aborrecido consigo por ter aparecido, não é verdade? E aborrecido com a sua mulher por tê-lo convidado?

 

Sim. Ele pensou que eu estava a comprometer-me por ser visto nas suas festas. Mas eu queria ir e por isso pedi à Lenore e ela concordou, disse que o Bram não tinha evidentemente o direito de ditar o meu comportamento.

 

Portanto o aborrecimento de Bram Serian com o senhor não tinha nada a ver com a sua amizade com a Lenore?

 

Absolutamente nada.

 

Rossner afastou-se e matutou sobre isto por momentos. Tinha nas mãos alguns cartões mas tinha ainda de os consultar.

 

O senhor acha... começou Rossner cautelosamente, que Bram Serian tinha medo de alguma coisa naquelas últimas semanas da sua vida?

 

Medo não. Mas andava preocupado. Muito preocupado.

 

Acha que ele estava a sentir-se ameaçado de alguma maneira?

 

Tentei conversar com ele sobre isso, mas ele abanou os braços em sinal de rejeição. Disse-me que tinha todos os seus inimigos sob controlo.

 

Inimigos? Ele usou exactamente essa palavra?

 

Sim.

 

Ele alguma vez disse o nome de algum desses inimigos?

 

Não.

 

Rossner fez uma pausa para assimilar esta informação, o que na realidade foi uma pausa para o júri a assimilar. Depois perguntou, Quando estava a seguir Bram Serian, quando ele se afastou das outras pessoas e o viu a conversar na escuridão junto das mesas... pode dizer com quem estava?

 

Não.

 

Homem ou mulher?

 

Era inquestionavelmente um homem.

 

Mas ninguém que o senhor conseguisse reconhecer?

 

Eu... estava muito escuro e a minha atenção estava concentrada no Bram. A única coisa que posso dizer é que era um homem.

 

Novo ou velho?

 

Velho, não. Talvez de meia-idade.

 

De pele escura ou clara?

 

Não sei.

 

Baixo ou alto?

 

Mais ou menos como o Bram. Alto, parece-me.

 

Conseguiu ouvir o que estavam a dizer?

 

Não consegui ouvir nenhumas palavras específicas, mas a conversa parecia... acalorada.

 

Quando viu a Lenore a observá-lo... pode dizer se ela parecia estar preocupada com ele?

 

Ela parecia mesmo muito preocupada, sim.

 

Quando voltou para junto do grupo de pessoas, notou quem tinha desaparecido... quem podia eventualmente estar às escuras a ter uma conversa acalorada com Bram Serian apenas algumas horas antes da sua morte?

 

A cara de James Collier ficou como se alguma coisa importantíssima lhe tivesse vindo à cabeça.

 

Não notei nada. O que eu quero dizer é que havia muita gente e portanto teria sido difícil reparar se estavam todos no mesmo lugar que antes. Mas o homem que estava com o Bram não me pareceu minimamente familiar, uma vez que... naquela altura... eu já conhecia toda a gente...

 

Portanto o senhor acha que aquele grandalhão que estava a ter uma conversa acalorada com Bram Serian não era ninguém que tivesse estado na festa?

 

Exactamente.

 

E a seguir Bram Serian voltou e disse a toda a gente que ia para a cama?

 

Sim.

 

Mas o desconhecido, o homem que tinha aparecido no escuro, não voltou com ele?

 

Não. Não houve mais sinal dele.

 

E Bram Serian afastou-se naquela altura e dirigiu-se para o seu estúdio?

 

Sim.

 

Qual era o seu aspecto quando foi embora? Parecia estar com sono, vigilante, como...?

 

Parecia... um pouco ébrio. Caminhava de modo hesitante e articulava mal as palavras.

 

E a Lenore seguiu-o naquela altura?

 

Sim.

 

Como é que ela o seguiu? De forma dissimulada?

 

Não. De facto não. Se ela quisesse segui-lo dissimuladamente, podia ter seguido por um atalho pelo meio das árvores e apanhá-lo à entrada do estúdio.

 

Rossner reflectiu sobre isto por momentos, depois disse cerimoniosamente, Obrigado, Irmão James.

 

Brown disparou do seu lugar e atacou numa série explosiva de perguntas, mas não conseguiu recuperar a elevada projecção moral que mantivera antes. Passado algum tempo desistiu e deixou Collier ir embora.

 

Spencer Brown permaneceu de pé, enquanto James Collier abandonava a sala; depois anunciou num tom autoritário, O povo dá por finda a sua argumentação, Meritíssimo.

 

Começou um zumbido no meio dos bancos e o Juiz Pulaski bateu estridentemente com o martelo. A sessão fica suspensa por hoje e o Dr. Rossner pode começar a apresentar o seu caso na segunda-feira de manhã. A defesa vai estar pronta na segunda-feira de manhã, não vai, Dr. Rossner?

 

Sim, Meritíssimo.

 

A boca de Pulaski alongou-se num sorriso tenso. Nesse caso temos todos motivos para nos regozijarmos, porque estamos pelo menos a meio do processo para terminarmos.

 

Owen saiu junto com a multidão para evitar encontrar-se com Volpe. A Holly não estava à vista e ele pensou que tinha saído a correr para ir algures filmar mais um flash informativo, por isso ele baixou a sua guarda e caminhou com um passo sem pressa.

 

Parecia tão estranho que toda a questão de o Collier se esconder na Arcádia tivesse ficado ausente do interrogatório. Algum aspecto legal ou outra coisa tinham-no reduzido a um assunto tabu. Portanto, se os jurados tinham seguido as ordens do juiz e tinham evitado todo e qualquer contacto com todas as fontes informativas, não faziam a menor ideia do drama que estava por detrás do testemunho de James Collier.

 

Depois de sair pelas portas do tribunal, parou para apreciar o dia. O céu da tarde era de um azul turquesa brilhante e a temperatura tinha subido aos dez graus centígrados. Tinham desaparecido todos os vestígios de neve. O próprio inverno parecia ter recuado. Começou a descer os degraus de granito.

 

Owen?

 

Ficou imóvel. Ainda antes de se voltar já sabia que era a Holly e que tinha estado emboscada à espera dele atrás das plantas sempre-verdes que franqueavam o edifício.

 

Tenho estado à sua espera. Ela avançou hesitante na direcção dele. Por favor, por que não fala comigo?

 

Ele olhou para ela. O azul-cinzento do casaco dela evidenciava o azul dos seus olhos. A luz do sol transformava o seu cabelo em fios de ouro.

 

Não temos nada a dizer um ao outro, Holly.

 

O seu lábio inferior tremeu levemente e ela pestanejou várias vezes, tentando impedir as lágrimas iminentes. E ele apercebeu-se que a sua raiva tinha desaparecido. A amizade afectuosa que ela tinha instilado nele tinha desaparecido. Até a habitual benevolência que ele sentia em relação a pessoas completamente estranhas estava ausente quando olhou para Holly Danielson. E compreendeu que o contrário de amizade não era ódio. Era a total desconsideração.

 

O que aconteceu ao seu lábio? ela estendeu a mão para ele, mas ele recuou de maneira a ficar fora do seu alcance.

 

Podíamos ir para um lugar calmo a almoçar, sugeriu ela.

 

Não. Tenho de ir para casa.

 

Está mesmo muito zangado comigo, não está?

 

Estava.

 

A cara dela ficou mais animada. Já não está?

 

Não. Estou apenas aborrecido comigo mesmo pela minha falta de discernimento.

 

A Holly baixou os olhos e soltou um suspiro. Eu não devia ter-lhe deixado o recado. Só me apercebi mais tarde. Logo que visse que eu tinha aberto o seu bloco de notas, ia provavelmente calcular que eu tinha visto as coisas que lá tinha escrito.

 

Ele começou a perguntar-lhe se apenas lamentava ter-lhe deixado o recado, mas depois deixou de se preocupar em saber.

 

Nunca pensei que ficasse tão zangado comigo, disse ela com ar triste. Quero dizer, a questão de James Collier nem sequer tinha a ver com o seu livro nem nada. Mas parece-me que ela lhe atribuiu a responsabilidade de o Collier ser apanhado e agora você não vai conseguir voltar à Arcádia, nem vai conseguir ter mais entrevistas pessoais com ela.

 

Owen ficou a observá-la, imaginando...

 

Eu compreendo que tenha ficado furioso comigo por causa disso. Por deixar de ter acesso a toda essa informação. Mas a sua editora disse que você já tinha material suficiente para fazer um óptimo livro, por isso...

 

Você falou com a minha editora?

 

Bem, eu apenas... Sim. Sou uma jornalista, lembra-se? E apenas telefonei e perguntei se era verdade que DeMille tinha em preparação um livro sobre este caso.

 

Holly...

 

Está a ver! Eu estava a tentar protegê-lo. Certifiquei-me de que a sua editora pensava que você já tinha o suficiente, antes de informar o M.P. sobre o Collier.

 

Isso foi mais do que uma jogada desonesta para subir na sua carreira, não foi, Holly? Quis destruir a minha ligação com Lenore Serian.

 

Ela olhou para ele com olhos lacrimosos e assustados. Eu estava preocupada consigo, disse ela.

 

Oh! No fundo você fez isso no meu próprio interesse? Foi mesmo isso?

 

Eu estava a ver o que ia acontecer! Estava a ver aquela cabra perversa a lançar os seus anzóis para o apanhar e para o usar! Você não ia conseguir safar-se, por isso tive de o fazer.

 

Owen ficou a olhar para ela com um espanto desinteressado.

 

Você desejava-me naquela noite no seu apartamento, Owen. E ia continuar a desejar-me. Provavelmente teríamos um bom relacionamento... se ela não o tivesse enrolado.

 

Não era a si que eu desejava. Eu apenas queria sexo. Da mesma maneira que teria querido com qualquer mulher atraente e disponível que me oferecesse o seu corpo na privacidade do meu apartamento. Era tentador. Abanou a cabeça. Mas não era a si que eu queria, Holly. Era a mamada.

 

A cara dela retorceu-se numa careta. E aposto que ela é boa a chupar-lhe a pila, não é? Uma pessoa como ela, com toda a sua experiência... Owen voltou-se e afastou-se.

 

Ela estava a usá-lo, Owen! gritou a Holly atrás dele. Você não significa nada para ela!

 

Owen caminhou para a estação do comboio com passo rápido, procurando superar a sua raiva. Apagando Holly Danielson e todas as suas palavras maliciosas. Estava decidido a ir para o apartamento e a prosseguir com o seu trabalho. Havia as cassetes da Milly para transcrever e as suas notas do julgamento para passar. E depois tinha feito a promessa à Bernie. Tinha de entregar a proposta no dia seguinte de manhã, acontecesse o que acontecesse.

 

Entrou no edifício da estação e quase chocou com um homem vestido com um casaco comprido. Desculpe, murmurou ele, olhando para a cara do homem enquanto falava e verificando, num rápido instante, que era James Collier.

 

Olá, disse Collier.

 

Olá, respondeu Owen hesitante.

 

Calculei que pudesse apanhá-lo aqui, confessou Collier. Sei que vem apanhar aqui o comboio.

 

Eu? perguntou Owen. Deve ter-me confundido com outra pessoa.

 

Não. O senhor é Owen Byrne, não é?

 

Sim.

 

Vim aqui para que aqueles abutres à volta do tribunal não me espiassem a falar consigo e acabassem por escrever nos jornais que estávamos a planear assaltar um banco ou coisa parecida.

 

Owen acenou com a cabeça em sinal de compreensão. Mas o senhor não devia estar sob custódia ou coisa parecida?

 

Não. Eles já não querem mais nada de mim. Collier afastou-se da porta para olhar pela janela que dava para os carris. Owen seguiu-o, levado pela curiosidade. Vim falar consigo sobre a Lenore, disse Collier. oh?

 

Sim. Depois daquela manhã, quando cheguei tão inabilmente e ela mandou-o embora tão grosseiramente... ela falou-me de si.

 

Que conveniente, disse Owen. Espero que não lhe tenha dado pormenores errados a meu respeito.

 

Não foi nada disso. A Lenore e eu... eu não sou seu concorrente. A Lenore e eu não somos amantes. Nunca fomos amantes. A única coisa que tínhamos em comum era o Bram.

 

Então porquê todo aquele segredo? Porquê tanto mistério? Por que estava ela a protegê-lo?

 

A cara de Collier denunciou uma intensa luta emocional e Owen pensou que ele não ia responder, mas por fim disse, Eu estava sem energia e estava cheio de medo e ela ofereceu-me ajuda. Onde ia encontrar um lugar melhor para me esconder do que a Arcádia? Quem é que se lembraria de ir ali à minha procura?

 

Eu queria continuar com a minha vida como dantes e enganei-me a mim próprio ao acreditar que se me escondesse, tudo havia de passar e que assim podia ficar com a minha reputação intacta. Claro que era um sonho impossível, muito estúpido, porque mesmo que não me encontrassem e não se soubesse a verdade, os jornais publicaram coisas horríveis sobre mim. Eu estava destruído por falta de comparência.

 

Então continuei a esconder-me por vergonha. E ela encorajou-me a continuar escondido. Se tivesse pensado que podia ajudá-la no processo, apresentando-me como testemunha, teria sido diferente. Mas ela dizia que eu só ia prejudicar a sua situação. Ela não me queria ver na barra das testemunhas. Não queria que eu fosse testemunhar.

 

Espere um minuto, disse Owen. Se não havia nada entre vocês, se não estava apaixonado nem havia desejo sexual, por que é que era preciso proteger a sua reputação?

 

Mais uma vez se manifestou o esforço na sua cara. Oh, mas eu estava apaixonado, disse ele baixinho. Estava apaixonado pelo Bram.

 

Owen ficou demasiado aturdido para conseguir falar durante alguns instantes. Quando conseguiu falou sem pensar, Bram Serian era homossexual?

 

Não. Não era. E ele não correspondeu aos meus sentimentos. Collier riu com amargura. Está a ver, a minha tão discutida queda em desgraça nunca aconteceu. Eu ardi de desejo no meu coração como dizem, mas não na carne.

 

Não sei o que dizer, confessou Owen, sentindo uma profunda compaixão pelo homem.

 

Não há nada a dizer. Mas eu estava em dívida para com a Lenore por isto. Ela ajudou-me a sobreviver enquanto o Bram era vivo e depois de morrer. Agora ela precisa de ajuda. Ela queria tanto acreditar em si. Ela precisa de acreditar em alguém.

 

As palavras de Collier tocaram profundamente Owen. Eu não traí a sua confiança. Não fui eu quem o denunciou. Agora sei quem foi e sei que fui culpado por falta de cuidado mas não por traição.

 

Tem de a convencer disso, Owen Byrne. Tem de mostrar-lhe que ficou algo de bom, que ela estava certa ao confiar em si. Ela julgava que eu era bom no princípio, mas decepcionei-a. Toda a gente que fez parte da vida dela a tem decepcionado. Agora está quase a perder-se. Uma alma perdida.

 

O comboio chegou então à estação fazendo um grande barulho e guinchou ao parar. O senhor tem de ir, disse Collier.

 

Eu posso ficar por mais algum tempo, propôs Owen, não querendo romper esta ligação com a Lenore.

 

Não. Eu já disse tudo o que tinha a dizer. Vamos. Eu acompanho-o.

 

Saíram do edifício e foram para a plataforma juntando-se ao pequeno grupo de passageiros que estavam à espera para embarcar no comboio que fazia a ligação para Manhattan.

 

Owen agarrou a mão de Collier. Obrigado, disse ele. Obrigado. E apressou-se a entrar no comboio, animado pela esperança renovada, pela determinação renovada.

 

Só depois de entrar no longo caminho de acesso à Arcádia na manhã seguinte é que Owen se permitiu pensar no que ia dizer a Lenore. Embora não fosse propositado, a responsabilidade pela fuga de informação cabia a ele e não podia afirmar que estivesse completamente inocente. De certo modo tinha-a traído com a sua falta de cuidado e com a sua cegueira pela Holly.

 

A casa apareceu no horizonte e ele teve a sensação de deslizar para fora de si mesmo. Estava algures num plano superior, a olhar para baixo para si próprio, um homem inquieto e desesperado, curioso em saber o que o homem ia conseguir dizer.

 

A Lenore saiu pela porta de entrada logo que ele estacionou. Trazia vestido um casaco de pele por cima de uma saia preta e uma camisola vermelha. Tinha o cabelo apanhado com uma fita em rabo-de-cavalo, e o estilo salientava os ossos e os ângulos do seu rosto, dando-lhe uma aparência ferozmente exótica.

 

Sentiu uma dor no peito ao vê-la. Queria atirar-se aos seus pés e pedir-lhe que lhe perdoasse, mas em vez disso ouviu-se a si próprio dizer, Obrigado por ter deixado a sua espingarda em casa.

 

Ela relanceou-lhe um olhar de arrogância, depois sentou-se no assento do passageiro do carro alugado e ele pôs o carro a trabalhar e começaram a descer pelo caminho de acesso.

 

Françoise Newman é o nome dessa mulher e ela diz que tu nasceste em casa dela na Tailândia. As palavras saíram-lhe da boca. Contou toda a chamada telefónica para o Connecticut, sem conseguir parar. Sentia segurança a falar de Françoise Newman. Ele tinha medo da confrontação.

 

Lenore ouviu atentamente, depois ficou em silêncio. A tensão aumentou, enchendo o carro de tal maneira que parecia gás sufocante, venenoso.

 

Vamos estar juntos durante horas, Lenore. Não poderíamos fazer umas tréguas?

 

Ela olhou de lado para ele. Era um olhar duro e severo, mas havia um fundo de sofrimento que se repercutiu nele completamente. Encostou o carro à beira da estrada e voltou-se para ela.

 

Lenore, eu fui estúpido e estava cego e não te protegi como devia. Peço desculpa. Peço imensa desculpa. Se pudesse voltar atrás e fazer tudo de forma diferente, era o que faria.

 

O que é que o gabinete do ministério público te deu por teres denunciado o Jimmy?

 

Ele abanou a cabeça. Eu não o denunciei.

 

O olhar dela era penetrante e frio. Joe Volpe disse que tinhas de ser tu quem tinha feito isso. E depois telefonaste à tua namorada loira a dar-lhe a informação, para ela poder ter o seu furo jornalístico. O Joe disse que deves ter negociado com o M.P. para te dar uma entrevista exclusiva depois de terminar o julgamento.

 

Owen bateu com a palma da mão no volante. O Volpe pode ter pensado isso. Mas está enganado. A louraça, que não é minha namorada e agora nem sequer é amiga, lançou um olhar furtivo a algumas das minhas notas. Viu a referência ao nome do Jimmy e da Arcádia e relacionou um com o outro. Eu não soube nada disso até ter voltado do Kansas e...

 

Tu estiveste com ela à saída do tribunal hoje ao almoço. Eu vi-te através da janela do hotel.

 

Sim. Ela esteve a explicar-me que tinha feito tudo para o meu próprio bem e eu disse-lhe que não queria o seu tipo de amizade.

 

Lenore franziu as sobrancelhas. As pontas lisas das suas sobrancelhas quase se juntaram por cima da ponte do nariz. Como é que denunciar o Jimmy podia ser bom para Owen Byrne?

 

Porque ia pôr em causa a minha relação contigo. Ela queria que parecesse que eu tinha traído a tua confiança para reagires como de facto reagiste.

 

Começou a manifestar-se a compreensão nos olhos de Lenore.

 

Ele ficou a observar, com receio de esperar demasiado. A Holly considera que agarrou a oportunidade de se promover na sua carreira ao mesmo tempo que fazia uma boa acção libertar-me de ti.

 

Lenore ficou a olhar para ele. Através dele. Para dentro dele.

 

O Rossner acha que o testemunho de Collier provocou algum estrago? perguntou ele.

 

Estrago? Devias fazer essa pergunta ao Jimmy.

 

Lenore... o teu amigo Jimmy não está a ser julgado por homicídio. As suas indiscrições são da sua própria responsabilidade e ele nunca devia ter-te colocado nesta situação.

 

Ele estava a ajudar-me mantendo-se calado.

 

Ele estava a ajudar-se a si próprio. O que eu não compreendo é por que é que tu o encorajaste. Por que receavas tanto o testemunho dele?

 

A boca dela contraiu-se e ela voltou a cabeça para olhar de forma irritada para fora da janela.

 

Muito bem. Não te censuro mais por guardares segredos. Peço desculpa por ter perguntado. Mas devias saber que o Collier seguiu-me ontem até à estação dos comboios e explicou-me por que estava a esconder-se.

 

O Jimmy falou-te do... Bram?

 

Sim.

 

Ele foi usado pelo Bram, disse ela. O Bram brincou com ele.

 

Owen voltou-se novamente para a estrada Após mais dez minutos de silêncio desconfortável, disse, A caixa de fotografias de Milly Corwin está no assento de trás. Não tive a oportunidade de tas mostrar na outra noite, por isso pensei que quisesses dar-lhes hoje uma vista de olhos

 

Ela ficou completamente absorvida nas fotografias durante o resto da viagem e estavam a aproximar-se de Ridgefield sem que ele tivesse tido coragem de voltar a dirigir-lhe a palavra

 

O que achaste das cassetes de Milly Corwin? perguntou ele

 

Os meus pensamentos são exclusivamente pessoais, disse ela.

 

Muito bem. Está bem. Está mesmo muito bem.

 

Owen produziu um ritmo dando pancadinhas com os dedos no volante

 

Já estamos no estado de Connecticut? perguntou ela

 

Sim Estamos mesmo a chegar a Ridgefield

 

Nunca estive no Connecticut. Esperava que fosse diferente de Nova Iorque

 

Ridgefield fica mesmo do outro lado da fronteira do estado, disse ele. Como é que podia ser diferente?

 

Sim Sou mesmo estúpida, não sou?

 

Eu não disse que eras estúpida. Tu não és estúpida

 

Ela passou com os dedos pela manga do casaco num silêncio nervoso, depois disse numa voz tão baixa que era mais um sussurro, Por favor, não digas à senhora Newman que eu não sei ler Nem que estou ilegal Nem que estou a ser julgada por homicídio

 

Não precisas de me pedir isso Eu nunca mas não pôde acabar, porque ia dizer que nunca trairia a sua confiança

 

Ela olhou para ele, como se soubesse o que estava a pensar. Ele concentrou-se na estrada por algum tempo, depois disse, Há mais fotografias no meu saco. Seleccionei algumas que pudéssemos querer mostrar à senhora Newman

 

Ela acenou com a cabeça. Irradiava vagas de nervosismo. Ridgefield era uma região pitoresca e a casa junto da qual estacionaram era uma casa de campo agradável que ficava afastada da estrada no meio de uma extensão de jardim viçoso. Ele saiu, levando com ele o saco atafulhado. A Lenore não se mexeu. Ele deu a volta e foi abrir-lhe a porta. Continuou sem se mexer. Pareceu-lhe que ela estava aterrorizada

 

Não há nada de que ter medo, disse-lhe ele afavelmente. Vais finalmente obter todas as respostas

 

É disso que tenho medo, disse ela, fazendo um esforço para sair do carro

 

Owen tocou a campainha, que ressoou dentro de casa. Olhou à sua volta. O dia tinha ficado quente, ainda mais quente do que o dia anterior e ele quase conseguia sentir o jardim a vicejar. Em breve vai ser primavera, disse ele. Sente-se hoje, não sente?

 

Ela reagiu com um leve aceno de cabeça

 

Tu não tens de entrar, Lenore Podes ficar no carro e eu faço a gravação para depois poderes ouvir

 

Ela abanou a cabeça negativamente.

 

A porta abriu-se e eles saudaram uma mulher pesadona com um vestido cinzento que parecia um uniforme. Sem sequer lhes perguntar os nomes, acenou e sorriu-lhes. Sigam-me por favor, disse ela, num tom jovial característico dos russos.

 

A senhora Françoise Newman estava no solário, uma varanda maravilhosa, envidraçada, que vinha desde a parte de trás da casa. Era uma mulher de constituição atlética, com sessenta e tal anos, que aparentava vigor e saúde e uma vida inteira ao sol, tirando o facto de estar sentada numa cadeira de rodas com um cobertor a cobrir-lhe as pernas.

 

Logo que entraram, os olhos dela fixaram-se em Lenore. Por momentos, Owen pensou que ia haver lágrimas, mas ela rapidamente recuperou o controle. Ah sim, consigo ver em si feições do seu pai e da sua mãe.

 

Lenore afundou-se numa das grandes cadeiras de verga, como se já não se aguentasse nas pernas.

 

Peço desculpa, disse a senhora Newman. O seu sotaque francês parecia mais marcado do que ao telefone. Estou a esquecer-me das boas maneiras. Sente-se senhor Byrne, disse ela a sorrir. O que acham de eu trazer chá para todos?

 

Lenore não pareceu estar capaz de falar, por isso Owen aceitou em nome dos dois. Sem que lhe pedissem, a mulher de uniforme saiu para ir tratar de tudo. Passaram pelas formalidades da apresentação e concordaram em dirigir-se uns aos outros pelo primeiro nome. Chegou o chá. Havia um bule de prata e chávenas de porcelana e uma variedade de produtos de pastelaria e pãezinhos de pequeno-almoço.

 

Françoise Newman desviou a sua atenção de Lenore para se voltar com um sorriso para Owen. Obrigado por tê-la trazido. Depois voltou-se novamente para a Lenore. Minha querida, tem estado doente? Parece tão exausta.

 

Lenore lançou a Owen um olhar apavorado.

 

Ela tem andado sob uma grande tensão, disse Owen. Ficou viúva no passado mês de Agosto.

 

Françoise exprimiu a sua solidariedade.

 

Que nome usava o meu pai? disse Lenore abruptamente, cheia de impaciência.

 

O seu pai chamava-se Kit. Kit Corwin. Ou às vezes os amigos chamavam-lhe K.C. Era o alcunha dele. Disseram-me que se referia a Kit Carson, um famoso pioneiro americano e que era por causa dos notáveis talentos do seu pai, como batedor e atirador. Nunca ouvi o seu nome verdadeiro.

 

A senhora podia, começou Lenore delicadamente, podia falar-me, aclarou a garganta. Da minha mãe?

 

Françoise acenou com a cabeça. Tem muitas recordações da sua vida lá?

 

Quase nenhumas, disse Lenore. Às vezes tenho sonhos estranhos, que eu sei que são da minha infância e às vezes surge subitamente uma imagem na minha cabeça, como um clarão de memória, mas se tentar lembrar-me das imagens, fica tudo negro.

 

Já tentou estudar a Tailândia? perguntou Françoise. Tenho a certeza de que ler ia ajudar a estimular as suas lembranças.

 

Lenore relanceou um olhar assustado a Owen.

 

Isto pode parecer estranho, disse ele. Mas desde que a Lenore veio para os Estados Unidos, levaram-na a acreditar que tinha sido criada no Vietname. Só muito recentemente, por mero acaso, é que ficou a saber que tinha vivido na Tailândia.

 

A cara de Françoise adquiriu um ar severo de perplexidade.

 

Por que não continua a contar a história, Françoise? sugeriu Owen.

 

Sim, disse ela. É melhor do que andar aos saltos com todas essas perguntas. Apontou para a estante na sala de estar contígua. Lenore, há ali um livro grande vermelho sobre a Tailândia. Por que não vai buscá-lo e folheia as páginas enquanto eu falo? Talvez as gravuras tenham algum significado para si.

 

Com alguma relutância, Lenore foi buscar o livro. Owen esperou que não houvesse outros livros grandes vermelhos na estante a confundi-la.

 

Ele perguntou a Françoise se podia gravar a conversa, mas ela ignorou-o. A sua atenção estava concentrada na Lenore, que já tinha voltado e tinha-se sentado com o livro no regaço. Era um daqueles livros de tamanho enorme, cheios de fotografias brilhantes e Lenore ficou mais descontraída logo que verificou que tinha muito pouco texto.

 

Françoise ainda não tinha respondido ao pedido de Owen para gravar a conversa e ele tinha receio que recusasse, mas finalmente, depois de observar o interesse instantâneo de Lenore pelo livro, ela deu um suspiro e disse, Pode gravar, suponho. Já passaram tantos anos... e com o meu marido desaparecido... não me parece que nada disto possa causar quaisquer problemas agora.

 

Ele ligou imediatamente o gravador.

 

Owen...

 

A voz de Lenore pareceu estranha e quando ele olhou, ela tinha na cara uma expressão de espanto extasiado.

 

Owen, disse ela novamente, num tom de reverência e cheio de admiração, Eu sei ler este livro. Conheço a maior parte destas palavras.

 

Claro que sim, disse Françoise. Eu ensinei-a a ler em francês. Não se lembra do livro sobre o pequeno cão? Devemos tê-lo lido juntas mais de mil vezes.

 

Lenore olhou para ele. E ele percebeu que, naquele momento, a intensidade dos seus sentimentos era quase avassaladora.

 

Por favor, Françoise, disse ele, conte-nos tudo. Desde o princípio.

 

Conheci o meu marido em França, depois da Segunda Guerra Mundial. Ele levou-me para a Califórnia, onde acabou o seu curso e depois tornou-se professor na Universidade da Califórnia do Sul. Eu era feliz lá, mas ele era convictamente uma pessoa que gostava de andar de um lugar para o outro e tinha as suas próprias ideias de como as pessoas deviam viver. Interessou-se pelo negócio de importação/exportação. Vivemos em Londres durante um ano e depois na África do Sul. Nenhum lugar atraía o seu interesse. Soube de Jim Thompson, o homem da seda, através de um amigo mútuo e ficou fascinado com a ideia de ir viver para o Extremo Oriente, por isso contactou Thompson e lá fomos nós para Bangkok.

 

A Tailândia prendeu imediatamente o coração do Howard, mas eu tenho de confessar que não me submeti ao feitiço daquele país durante bastante tempo. Estava demasiado habituada aos confortos modernos e aos horários e à eficácia.

 

A nossa casa, que era bastante boa quando comparada com outras, tinha um sistema eléctrico que não era de confiança, não tinha protecção para as janelas e só havia água quente uma vez por outra. E não tinha cozinha. Pelo menos não era o que eu considero uma cozinha decente. Atrás da casa, junto do alojamento dos criados, havia um pequeno edifício baixo com uma torneira de água e baldes e um fogão embutido que funcionava a carvão, e aquilo era suposto ser a cozinha. Será desnecessário dizer que fiquei horrorizada. Não queria cozinhar naquela cozinha, mas também não gostava da ideia de contratar criados, sobretudo para um casal sem filhos. Como se veio a verificar, já havia um grupo de quatro que vieram com a casa, e como não suportava a ideia de ter de os despedir e de os pôr fora dos seus alojamentos, a questão ficou resolvida. Tínhamos uma cozinheira e um jardineiro e uma lavadeira e uma que era a chefe, quer quiséssemos criados quer não.

 

Tudo me perturbava. A maneira como os criados acenavam com a cabeça e como sorriam sem prestar atenção ao que eu queria. As comidas exóticas. A falta de pontualidade. A maquilhagem a derreter-se na cara com o calor. Os nomes impronunciáveis das coisas... Benchamabopit e Rajapardit e Yaoivaraj e Chitralada. A falta de instalações sanitárias.

 

Porquê? A primeira vez que fui de barco num klong... são os canais. Bangkok é chamada a Veneza do Oriente porque há imensos canais. Serpenteiam pela cidade como estradas e as casas são construídas ao longo deles, de tal maneira que se pode encostar o barco mesmo junto da varanda de alguém.

 

Canais. Muito bonitos nas gravuras, mas a realidade daquilo era repugnante. Naquela primeira viagem de barco vi esgotos a serem lançados na água e pessoas a darem banho aos cães e mulheres a lavarem a loiça e as crianças a molharem as escovas de dentes. Tudo isso na mesma água do canal! Não me importava o facto de eu não ter de viver naquelas condições, nem de os tailandeses instruídos não viverem daquela maneira. Só o facto de aquilo existir mesmo à frente do meu nariz era de causar arrepios.

 

E as regras de comportamento! A falta de educação é quase um pecado mortal naquele lugar, estão a ver. Por isso eu tinha de fazer tudo direitinho, porque não suportava o sentimento de me acharem uma espécie insensível, farang feio estrangeiro que não queria saber dos sentimentos deles. Tive de aprender a dobrar as pernas exactamente assim quando fosse visitar tailandeses, porque os pés são ofensivos e nunca devem estar dirigidos para outra pessoa. Tinha de me lembrar de nunca tocar na cabeça nem no cabelo de ninguém, nem estar de pé sobre a cabeça de ninguém, mesmo que estejam sentados, porque a cabeça é sagrada.

 

E depois há todas as regras wai... lembra-se de como se fazia wai, Lenore? Juntam-se as duas palmas das mãos juntamente com os dedos quase a tocar no nariz, assim, e essa é a maneira de saudar toda a gente. Só que, precisamente quando eu pensava que já dominava o gesto, soube que havia níveis diferentes de wai. Com os dedos quase a tocar no nariz era para os nossos pares e mais alto para entidades da autoridade e mais baixo para aqueles que estão abaixo de nós, incluindo os jovens. Oh, era tão complicado. E isso foi antes de começar com a língua e todas as subtilezas da linguagem da boa educação. Os tailandeses nunca recusam nem discordam de nada, por isso torna-se uma arte saber o que as pessoas de facto querem dizer quando nos respondem. Eles dizem sempre que sim, mas nós temos de descobrir que tipo de sim é... absolutamente sim, ou talvez sim, ou de-modo-nenhum sim.

 

E tive de me habituar aos conceitos Budistas, karma e merecimento e reencarnação e tudo o mais. E toda essa questão de viver e deixar viver... ratazanas na cozinha, cobras no telhado... passarinhos a voar para dentro e para fora das janelas... nada disso preocupava aquela gente. Por isso informei-me sobre o budismo, tomei conhecimento dele através da leitura de um livro e senti-me muito presunçosa, para afinal descobrir que o Budismo em Bangkok tem toda aquela confusão de outras coisas misturadas. Os deuses de antigamente ou de outras culturas. Cerimónias e rituais que vieram não se sabe donde.

 

O verdadeiro Budismo não reconhecia os relicários no pátio das traseiras para os espíritos domésticos, nem os símbolos fálicos gigantes, nem aquela coisa de quatro cabeças em ouro junto do hotel, que é suposto trazer boa sorte. Céus, havia dias em que não se podia ir de carro pela Estrada Rama Iff por causa dos cânticos e danças e festividades em volta daquela estátua de quatro cabeças. E como é que uma pessoa estranha havia de saber tudo aquilo? Não se encontrava em nenhum livro.

 

Lembra-se, Lenore, que a Chit costumava levá-la a rezar pela fertilidade? Em dias especiais ela levava-a de autocarro a um jardim onde havia um enorme santuário dedicado a Shiva. Eu fui uma vez com vocês e nem queria acreditar no que via... aquele lindo jardim luxuriante estava cheio de centenas de pénis esculpidos. Compridos, curtos, grandes, pequenos... todos eles muito rígidos, claro. Uma floresta de pénis aos quais se rezava por um bebé. Se bem que... como jovem esposa da década de cinquenta, achei aquilo chocante.

 

E as superstições... as histórias que eu podia contar sobre isso! Astrologia e adivinhação e oráculos e amuletos. Meu Deus... não sabia que um povo inteligente, desenvolvido, pudesse acreditar em fantasmas da maneira que os tailandeses acreditam.

 

Digo-lhes que aqueles primeiros anos em Bangkok foram para mim um pesadelo. O Howard tinha os seus colegas de negócios e amigos e um escritório com ar condicionado e era respeitado como professor naquela altura era professor a tempo parcial na Universidade de Chulalongkorn enquanto que eu não tinha absolutamente nada. Sentia que nunca ia sentir-me em casa enquanto vivesse ali, nem teria amigos, nem ia compreender aquela cultura. Tinha saudades da França e da América... e daquele sentimento de me dar bem com todas as outras pessoas. Supliquei ao Howard que fossemos embora dali, mas ele não quis. E pouco a pouco, com o passar dos anos, fui-me adaptando.

 

Aprendi a língua e assimilei a maneira de estar e comecei a ficar encantada com tudo aquilo. Quando chegavam novos estrangeiros, eu ficava a ouvir pacientemente as suas queixas e a encolher os ombros e a dizer-lhes mai pen rai, não pense mais nisso, como uma autêntica tailandesa. Deixei de me preocupar com a cintura, e com a maquilhagem e com a minha educação e tornei-me flexível. Aprendi a apreciar a procura do divertimento sanuk, como eles dizem na Tailândia e aprendi o significado da amabilidade. A verdadeira amabilidade.

 

Os meus amigos tailandeses tornaram-se mais importantes do que os meus amigos estrangeiros e os criados passaram a ser como se fizessem parte da minha família. Havia a Busaba, a cozinheira, cujo nome significava flor. Era velha, com a pele enrugada e verrugas e dentes estragados, mas quando sorria conseguia-se perceber que um dia tinha sido uma flor. E havia o Vichet, o rapaz jardineiro, que não era capaz de decidir se queria ser monge ou cantor de rock americano. Havia a Chit, a amah da lavagem, que tinha dezanove anos e andava constantemente a dar risadinhas com a cara tapada pelos dedos. E a Chinda, a chefe deles... tão pequenina e elegante, com uma cara com ar de chinesa e uma postura séria. Orientava a casa como se tivesse nascido para a realeza.

 

Eles também eram a sua família, Lenore. Você tratava-os todos por Tia e Tio. E eles apelidavam-na de Dang. Vermelho. E gostavam muito de si.

 

Mas já estou a adiantar-me. Estou a perder o fio de como tudo aconteceu.

 

Estávamos lá havia três anos, quando um dia apareceu uma rapariga à procura de emprego como empregada doméstica. Tinha acabado de chegar das montanhas e era encantadora. Tinha o aspecto de tailandesa genuína, de cabelo negro azeviche e olhos grandes e escuros e um corpo esbelto e gracioso, próprio de uma dançarina do palácio. Nós não precisávamos de mais ajudantes, e mesmo que precisássemos, eu teria achado aquela rapariga demasiado bonita para ser uma boa trabalhadora.

 

A Chinda levou-a para as instalações dos criados para lhe dar comida antes de continuar à procura de trabalho, mas no dia seguinte reparei que ela estava lá fora no pátio a ajudar a Chit a dependurar a roupa. Não era invulgar os criados terem hóspedes. Na verdade nunca sabíamos quem estava a viver ali, nem nunca nos importávamos com isso. Afinal aquela era também a casa deles, apesar de estar dentro do nosso complexo.

 

Mas passada uma semana a ver a rapariga a ajudar as outras em variadas tarefas, perguntei à Chita, “A rapariga continua a ir todos os dias à procura de trabalho?”

 

“Sim. Sim. Não se preocupar,” assegurou-me a Chinda, e por isso pensei que a rapariga continuava a sair todos os dias à procura de emprego.

 

Depois da terceira semana a vê-la a dependurar a roupa nas traseiras da minha casa, saí de casa e exigi firmemente que me dissessem se a rapariga ia mesmo à procura de trabalho. E a Chinda explicou-me com toda a paciência, “Não se preocupar, Madame, ela encontrar muito trabalho. Hoje dependurar a roupa lavada. Amanhã polir prata. Todos os dias ela procurar, ela encontrar.”

 

Perante aquilo a rapariga levantou a cabeça e dirigiu-me um sorriso tão encantador que tudo o que consegui fazer foi dizer que não se preocupasse e voltei para dentro de casa.

 

Quando contei ao Howard o que se passava, ele disse-me que deixasse aquilo por conta dele, e chamou a Chinda um dia à noite depois do jantar. Explicou-lhe com toda a firmeza que não precisávamos nem queríamos outra criada e que a rapariga não podia ficar mais ali. A Chinda concordou plenamente com ele. Depois começou a dizer que a rapariga era uma órfã que tinha vivido durante muitos anos em casa de um tio. Uma vez que já tinha passado a puberdade e não tinha perspectivas de casamento, o tio, que era pobre, resolveu que tinha de vendê-la da próxima vez que viesse da cidade um comprador de crianças. A rapariga, que segundo a Chinda salientou, nunca tinha sido bem tratada pela família do tio e portanto não lhes devia lealdade, fugiu para Bangkok. Como era muito nova e inexperiente, sem papéis nem referências, nenhuma casa a tinha querido.

 

Tanto o Howard como eu ficámos consternados com a barbaridade a que aquela rapariga tinha escapado. Quando as famílias pobres que viviam no campo tinham muitos filhos e não tinham comida suficiente, faziam o que as famílias daquela parte do mundo sempre fizeram ao longo dos séculos vendiam os que estavam a mais. Mas nunca tínhamos enfrentado tal coisa em primeira mão.

 

Eu era tão ingénua que queria ir participar o caso às autoridades, até que um amigo do Howard explicou como aquilo ia parecer ridículo. As autoridades não tinham qualquer controle nem interesse em questões como aquela. Porque, ainda hoje em dia, enquanto estamos aqui sentados, há crianças que continuam a ser vendidas para os bordéis em Bangkok. Os meus amigos na Tailândia têm-me escrito a dizer que a prática está a aumentar e as crianças são cada vez mais novas, com oito e nove anos de idade, porque os homens de negócios abastados que vão para lá de outros países à procura de sexo, têm medo da SIDA e pagam recompensas pelas pequenas que parecem estar limpas.

 

A Chinda terminou a história contando-nos que a rapariga não falava inglês e não tinha educação nem esperanças de vir a ser contratada em lado nenhum e teria de voltar para casa do tio ou ir directamente para um bordel em Bangkok. Depois a Chinda encolheu os ombros e disse-nos que a rapariga tinha um karma mau, mas talvez recolhesse méritos para a próxima vida.

 

Jamais esquecerei aquele momento. A Chinda saiu de casa, dizendo que ia imediatamente a dizer à rapariga para ir embora. O Howard e eu olhámos um para o outro e a seguir corremos atrás dela. A rapariga podia ficar, dissemos-lhe, mas só por algum tempo. Apenas para lhe darmos um primeiro emprego e arranjar-lhe algumas referências e depois ela teria de ir procurar outro emprego.

 

Foi assim que a sua mãe veio para nossa casa, Lenore. Chamava-se Kamsai, que quer dizer luminosa. E ela tornou-se a luz do sol da nossa casa.

 

Foi uma época feliz e emocionante. Fiz muitos amigos e tive aventuras maravilhosas. Quando o meu bebé nasceu prematuramente e morreu, tentei esquecer a dor, com a certeza de que a menina não estava destinada a viver, mas que haveria outros para tomar o seu lugar mais tarde. O Howard prosperou e era muito respeitado por tailandeses muito bem colocados. Depois começaram os ataques.

 

Sabem qual é a proximidade entre Bangkok e Saigão? Mais ou menos a mesma distância que há entre San Francisco e Los Angeles. Toda a monstruosa guerra do Vietname aconteceu mesmo ali à nossa porta.

 

Têm de compreender... têm de se imaginar naquele tempo. As coisas eram diferentes naquela altura. Tanto sangue inocente que foi derramado. E ali estávamos nós, suficientemente próximos para sabermos a verdade do que estava a acontecer, antes de o público americano ter acesso à informação.

 

O meu marido tinha servido o seu país na Segunda Guerra Mundial. Perdeu um olho a lutar, porém nunca teve nenhuma expressão de amargura por isso, nem deixou de ser patriota. O Vietname foi diferente. Não havia causa justa, não havia bondade subjacente.

 

O Howard associou-se a um grupo de oposição à guerra, iniciado por uns franceses. No princípio eram apenas cartas e petições e artigos para a imprensa, mas uma coisa levou a outra e foram apanhados naquela onda de maré que avançava cada vez mais depressa. Quem sabe no que todos eles se envolveram. Foi uma época terrível e nós as mulheres deles não devíamos ter conhecimento de nada... Se bem que, posso-lhes dizer, era difícil ignorar casos de fornecimentos de medicamentos na nossa sala de estar, ou homens armados a entrar na sala de trabalho do meu marido, ou refugiados vietnamitas a aparecerem subitamente à nossa porta a meio da noite.

 

Bangkok transformou-se numa cidade violenta, à medida que a guerra escalava. Era invadida por soldados que estavam de partida e vigaristas que andavam à procura do dinheiro dos soldados. Todas as noites abriam novos bordéis. A Chinda, a Kamsai, a Busaba, a Chit e eu permanecíamos mais no interior do complexo do que antes. Toda a gente estava preocupada porque havia rumores de bandos de soldados bêbados que molestavam as mulheres nas ruas.

 

O grupo de Howard fazia parte de uma rede clandestina de caminhos de ferro naquela altura. Escondiam os refugiados políticos e depois levavam-nos às escondidas para outros países. Havia noites em que tínhamos refugiados escondidos no quarto da lavandaria ou a dormir por baixo da mesa. E às vezes tínhamos soldados americanos. Apenas rapazes, a maior parte deles. Rapazes desorientados e cheios de saudades de casa.

 

A nós as esposas era-nos dito que aqueles eram rapazes que tinham sido dispensados, mas eles estavam tão desorientados com a guerra que não conseguiam ir para casa. Acho que era verdade para alguns deles. E sei que ainda há ex-soldados americanos que vivem em Lampang e Chiang Mai e Nakhon Ratchasima, portanto alguns nunca voltaram para casa. No entanto, cheguei à conclusão de que a maior parte dos rapazes-soldados americanos que passaram pela nossa casa não iam apenas à procura de uma ajuda tranquila, eles estavam a esconder-se. Alguns eram desertores. Alguns eram homens que estavam envolvidos nas suas guerras pessoais contra toda aquela máquina de guerra.

 

Um dia o Howard trouxe um jovem vestido com roupa camuflada e disse-me que ia ficar a dormir no chão da sala de trabalho durante algumas semanas. Era um jovem simpático, alto e elegante, mas quando olhei para a cara dele, soube que ele tinha visto o inferno. Os seus olhos estavam tão assombrados que deviam ter ficado apavorados, só que ele transparecia tanta suavidade.

 

“Como havemos de lhe chamar?” perguntei-lhe. Nunca eram revelados os nomes completos, mas uma vez que aquele homem ia ficar em minha casa durante várias semanas, precisava de me dirigir a ele de alguma maneira.

 

“Chame-me Kit,” disse ele. E foi assim que conheci o seu pai.

 

O Kit ficou bastante mais do que algumas semanas. Perguntei ao Howard o que se passava e foi-me dito que o Kit tinha resolvido trabalhar com o grupo deles em alguns projectos especiais.

 

Fomo-nos todos habituando a ter o Kit na nossa casa. Ele era engraçado naquela altura. Falávamos uma mistura de francês e tailandês com gíria americana pelo meio, e ele fazia-nos rir a todos, com as suas tentativas em participar e com a sua pronúncia esquisita. E quando estava em casa era muito atencioso e sempre pronto a ajudar toda a gente. Quando morreu o meu bebé com duas semanas, foi o Kit quem se sentou ao pé de mim e me pegou na mão nos momentos difíceis. O Howard andava tão ocupado, estão a ver, e a maneira de ele enfrentar a dor foi envolver-se em mais ocupações.

 

Não sei quando foi que a Kamsai e o Kit se apaixonaram. Subitamente o amor surgiu simplesmente ali, nos seus olhos. E cresceu e cresceu até que eles ficaram completamente absorvidos por ele. Eu achei bonito que um amor assim pudesse acontecer no meio de todo aquele horror e morticínio. A velha Busaba assegurava que eles tinham sido amantes numa outra vida e que já era um amor antigo. Destinado a ser.

 

A Kamsai ficou grávida da Lenore e fizemos o casamento em nossa casa. A Chinda preparou tudo. Com a ajuda de um astrólogo, escolheu-se um dia de sorte, depois o Vichet fez um arranjo no jardim. Vieram dois monges para entoar cânticos antes da cerimónia. O Howard tratou de arranjar muitos presentes para os monges... era a tradição... as famílias do casal deviam dar ofertas aos monges para obter boa sorte para o casamento, e nós considerávamos que éramos a família dela. Pensávamos que seria uma cerimónia simples, mas vieram os vizinhos e vieram alguns membros do grupo do Howard e o marido e a cunhada da Chit e as famílias da Busaba e da Chinda e as irmãs do Vichet e aquilo transformou-se numa multidão.

 

A Chinda tinha insistido que tanto o Kit como a Kamsai fossem vestidos de branco, uma coisa com que todos os homens americanos implicavam, e que a Kamsai usasse grinaldas com flores de jasmim no cabelo. Tirámos fotografias. Eu sei que tirámos. Mas simplesmente não sei o que lhes aconteceu. Não encontrei nenhumas fotografias da Tailândia.

 

O casamento tailandês não é realmente uma cerimónia religiosa. Muitos casais vão simplesmente entregar os papéis oficiais e fica tudo resolvido. Mas nós queríamos dar à Kamsai e ao Kit a percepção da família e o mais auspicioso começo de um com o outro, por isso fizemos uma bonita cerimónia tradicional a maneira antiga. O casal nupcial ajoelhou-se e o pai da Chinda procurou sinais de boa fortuna nas suas testas. Depois estenderam as mãos sobre um recipiente de ouro e todos nós, um de cada vez, derramámos água purificadora nas suas mãos unidas com uma concha de búzio. Depois fizemos uma festa.

 

Toda a gente que podia deu a sua contribuição para mandar o casal para o Erawan Hotel a passar a sua noite de núpcias. Eu estava preocupada com eles, com o seu futuro, mas convenci-me de que tudo havia de se resolver da melhor maneira.

 

E fosse o que fosse que o Kit andasse a fazer, estava a render-lhe bastante dinheiro, porque ele de repente disse à Kamsai que podia comprar-lhe uma pequena casa. Mas a Kamsai suplicou-lhe que a deixasse ficar connosco nas instalações dos empregados. Não queria estar sozinha com o bebé a chegar e ele não podia prometer-lhe que ficava em casa com ela. Ninguém lhe perguntou o que andava a fazer para ganhar dinheiro. Acho que tínhamos medo de saber.

 

O seu nascimento foi um dia de júbilo na nossa casa, Lenore. Toda a gente a enchia de afecto. Eu fiquei um pouco triste porque não tinha nenhum bebé meu para pegar nos braços, mas isso logo passou e dediquei a si todo o meu amor maternal. Você era uma bebé tão amorosa e tão bonita. Nunca chorava. E por que havia de chorar? Havia sempre alguém ansioso por pegar em si e para a embalar e para cantar para si.

 

O Kit deu-lhe o nome de Lenore porque dizia que esse nome tinha um grande significado para ele e era importante para as pessoas com quem ele se preocupava. A Kamsai tinha dificuldade em pronunciá-lo, porque os tailandeses não conseguem pronunciar bem o som r, e por isso às vezes chamavam-lhe Dang. Vermelha. Porque você gostava muito de coisas vermelhas.

 

Quando você ficou crescida e adquiriu as suas próprias feições, a Busaba e a Chit e a sua mãe costumavam ficar a observá-la, maravilhadas com a maneira como se parecia com elas e no entanto não era parecida com elas. Os tailandeses são muito conservadores no que diz respeito à aparência, e a Kamsai começou a ficar preocupada, com receio de que você não fosse bem aceite pelas outras crianças.

 

Apesar de eu não a querer perder, nem os seus pais, cheguei à conclusão de que só havia uma solução. O Kit devia voltar para os Estados Unidos e levar consigo a sua pequena família. Disse isso ao Kit e ele ficou muito zangado comigo. Apelei ao Howard, com a certeza de que o meu marido concordaria em ajudar-me a convencer o Kit. Foi quando o Howard me confessou que o Kit tinha muitos problemas e era considerado pelo exército como um criminoso.

 

Passei por um período de tempo pessoalmente difícil. Queria desesperadamente tentar ter outro filho, mas não queria que nascesse na Tailândia.

 

Queria ir para a França ou para os Estados Unidos, onde o meu bebé pudesse ter todas as vantagens dos cuidados médicos mais modernos, mas o Howard disse-me que ainda não estava preparado para deixar a Tailândia. Entrei numa depressão e a única coisa que me animava era você, Lenore.

 

Ignorei o que estava a acontecer com o seu pai. Disse à Kamsai que não se preocupasse com os seus silêncios prolongados, nem com os maus sonhos que ele tinha durante a noite, porque eu já estava saturada com o meu próprio desespero para suportar ver mais alguém desesperado.

 

Oh, mas você era uma alegria permanente para todos nós, Lenore. Os seus primeiros passos... as suas primeiras palavras... as suas risadas... faziam de cada dia um dia especial. E depois tivemos o casamento da Chit e a promessa de mais bebés. E a Chinda tornou-se avó.

 

Nunca esquecerei a noite que idade devia ter você? Talvez três ou quatro anos? Você falava tailandês e francês razoavelmente. Nunca me esquecerei... Levámo-la para a água, não para um klong mas para o Rio Chão Phia, ao festival das Luzes Flutuantes, e o Vichet tinha-lhe feito o seu pequeno krathong de bambu e papel colorido. E todos nós ajoelhámos e deixámos que fosse você a acender a vela e o incenso. Depois ajudei-a a lançar a sua honra aos espíritos do rio, e todos nos sentámos na margem a olhar para ela a ser arrastada pelo rio e a misturar-se com as outras luzes que flutuavam na água, e você levantou os olhos para mim com todas aquelas luzinhas a encher os seus olhos e disse “Mamã Fanny, esta foi a minha melhor noite de sempre.”

 

O comportamento do Kit tornou-se cada vez mais inconstante. Num dia podia estar entusiasmado em mandar a filha para uma escola em Paris, e logo no dia seguinte já se tinha esquecido disso e estava todo entusiasmado a dizer que a Tailândia era um óptimo lugar para criar um filho.

 

Depois o Kit foi-se embora e ficou fora durante muito tempo. Tanto tempo que estávamos todos já muito preocupados. Supliquei ao Howard que fizesse alguma coisa, que fosse pelos canais, que cobrasse favores, qualquer coisa para conseguir notícias do Kit. O Howard concordou que ia tentar. Mas disse que sabia que Kit Corwin nem sequer era o nome verdadeiro do homem.

 

O Howard nunca revelou o que sabia. Subitamente, um dia o Kit voltou para casa. O Howard chamou-o imediatamente à sua sala de trabalho, ainda antes de o Kit ter ido ver a mulher e a filha. Quando o encontro terminou, o Kit saiu e anunciou que ia levar a Kamsai para a sua própria casa.

 

Fiquei magoada com aquilo, claro, pois para mim a Kamsai nunca tinha sido uma empregada e não queria que nem ela nem a Lenore ficassem longe de mim. Supliquei ao Howard que intercedesse e mudasse o propósito do Kit, mas o Howard ficou insensível e disse que a separação era inevitável.

 

Todos chorámos quando ele as levou, a si e à sua mãe. Tinha encontrado uma casa sobre estacas, com dois quartos, ao longo de um dos klongs menos superlotados. Era o género normal de casa de klong, feita de madeira de teca, com um telhado de chapa de lata ondulada, mas estava construída no meio da sua própria pequena cortina de folhagem e havia nela uma tranquilidade exuberante.

 

A Kamsai tinha emoções muito confusas sobre a mudança de casa. Estava orgulhosa por ter uma casa própria, mas muito triste por deixar o complexo e ter de levar a Lenore para longe de nós. Quando se mudaram, o Kit ficou em casa durante alguns meses, mas depois passou a ficar fora mais do que nunca. O Howard disse que o Kit era uma pessoa que se devia evitar, mas não deu explicações, e eu não o pressionei para dar pormenores. Pareceu-me que ele e o Kit tinham tido um desentendimento.

 

A Chinda ensinou a Kamsai a viajar de autocarro, e logo que o Kit se ia embora, ela pegava na Lenore e vinha para junto de nós. Passava todo o dia connosco, depois fazia aquela longa viagem para ir dormir em casa, porque o Kit queria que a mulher e a filha dormissem à noite nas suas camas. O Kit era inflexível em relação a isso. A primeira vez que soube que a Kamsai e a Lenore tinham dormido no complexo ficou furioso.

 

A tensão entre o Howard e o Kit aumentou, até que o Howard se recusou a voltar a falar do Kit e proibiu que o Kit viesse a nossa casa. Foi horrível. O Kit retaliou, proibindo a Kamsai de ir visitar-nos, ao que o Howard respondeu que estava muito bem porque ele não queria nenhum deles por ali. Ainda não tinham passado duas semanas e já estávamos a transgredir aquela proibição. Não imaginam o que todos passámos, agindo disssimuladamente, escondendo-nos tanto do Howard como do Kit.

 

Você fez cinco anos, Lenore, e era muito, muito esperta. Sabia que nunca devia mencionar ao seu pai as visitas ao complexo, mesmo sem nós lhe explicarmos. Aprendia tão depressa... era como uma pequena esponja. Comecei a ensiná-la a ler em Francês e a sua mãe, que nem sequer sabia ler, estava a ficar toda entusiasmada por ter uma filha instruída.

 

Depois eu soube que estava grávida de novo. Não conseguia pensar em mais nada senão em ter um bebé saudável, por isso disse ao Howard que me ia embora para o ter, quer ele estivesse de acordo quer não. A irmã dele, que vivia no Connecticut, ofereceu-me a casa dela e eu disse ao meu marido que ia para lá e ele podia continuar na Tailândia se quisesse.

 

Fiquei muito magoada quando aceitou o acordo e me mandou sozinha para o Connecticut, mas eu depressa deixei de ligar a isso. O bebé era a única coisa importante para mim.

 

O Howard insistiu para que eu continuasse com ele na Tailândia o mais tempo possível, por isso estava no princípio do meu sétimo mês quando finalmente comprei o bilhete de avião para os Estados Unidos. A Kamsai, que também estava novamente grávida, desafiou o Kit e levou a Lenore à minha festa de despedida. Toda a gente em casa estava lavada em lágrimas, e você, Lenore, não parava de se agarrar a mim e de olhar para a minha cara, como se estivesse a procurar memorizar cada linha do meu rosto, mas eu prometi-lhe que voltaria logo que o bebé fosse grande e forte e achasse que não havia qualquer problema em fazer a viagem de volta.

 

As dores de parto começaram quando estava a quatro horas de Nova Iorque. Ao princípio tentei fingir que não era nada, mas o meu parto anterior tinha sido prematuro e, após uma hora de contracções regulares, tive de enfrentar o que estava a acontecer. Disse à hospedeira de bordo e toda a gente foi muito simpática. Desobstruíram uma área na parte de trás e um médico, um especialista dos olhos do Ohio, foi ficar ao pé de mim.

 

Dei à luz com facilidade. Um bebé de sete meses é muito pequenino, sabem. O médico foi maravilhoso no meio de tudo aquilo e a hospedeira de bordo estava sempre a vir a contar-me as novidades: primeiro, que o avião tinha o espaço livre para aterrar imediatamente, depois voltou novamente para me dizer que estava uma ambulância e um médico à minha espera para se dirigirem logo para o avião mal tocasse no solo. Eu segurei o meu filho pequenino bem junto a mim enquanto aterrávamos. Estava com dificuldades em respirar e não havia nada que o pobre médico dos olhos pudesse fazer.

 

Eu ainda estava consciente quando morreu. Depois perdi os sentidos. Recordo-me vagamente da sirene de uma ambulância. Quando recuperei os sentidos, estava metida numa cama de hospital, fora de perigo, com a irmã do Howard a chorar ao meu lado. Toda a gente dizia a mesma coisa, que logo havia outros bebés e que eu tinha sorte em ter conseguido sobreviver.

 

A partir dali foi um nevoeiro para mim. Depressão clínica é o termo. Foram dois anos. A minha querida cunhada tratou de tudo e certificou-se de que eu recebesse os devidos cuidados. O Howard voou para o Connecticut uma ou duas vezes, mas eu mal me lembro da sua presença.

 

Quando finalmente fiquei boa e forte, o Howard veio ver-me e contoume as novidades da Kamsai. Tinha evitado contar-me antes com medo que me pudesse fazer mal.

 

Disse que também não me tinha contado a verdade sobre o Kit. Quando eu lhe tinha pedido para se servir dos seus conhecimentos para encontrar Kit Corwin, ele tinha tomado conhecimento de coisas horríveis sobre aquele homem. O Kit tinha-se feito passar por desertor, mas na verdade Kit Corwin tinha estado sempre em missão militar. Pertencia a uma espécie qualquer de um ramo especial de homens altamente treinados que faziam missões secretas... assassínios e sabotagens na maior parte das vezes... e a sua missão militar tinha sido infiltrar-se no grupo do Howard e espiá-los.

 

O Howard confessou que não achava que o Kit lhes tivesse feito mal e que, na verdade, havia provas que demonstravam que o Kit os tinha, de certa forma, protegido, mas para o Howard o facto de o Kit ser espião era imperdoável. O Howard contou ao seu grupo o que se passava com o Kit. Aqueles homens contaram a outros, evidentemente. E de repente o Kit tinha inimigos por toda a parte. Estavam aniquiladas todas as suas missões secretas.

 

Eu soube tudo isso pelo Howard. Mas quanto ao resto da história... não vou contar a versão do Howard porque soube mais tarde que não era totalmente verdadeira. O Howard estava demasiado envergonhado para me contar a verdade. Portanto o resto da história é a versão da Chinda, que eu soube muito mais tarde.

 

A Chinda disse que o Kit foi lá a casa num estado de grande inquietação. Disse que estava em perigo e que os seus superiores lhe tinham ordenado que voltasse imediatamente para o seu quartel-general. Suplicou ao Howard que autorizasse a sua mulher e filha a irem ficar no complexo para estar em segurança, até que ele conseguisse organizar a sua saída do país.

 

Suplicou ao Howard que as protegesse. Mas o Howard recusou. O Howard disse ao Kit que devia ter pensado nas consequências antes de se envolver em esquemas tão sórdidos.

 

A Chinda ouviu tudo e ficou muito preocupada. Depois de o Kit se ir embora, perguntou ao Howard se podia ir ela buscar a Kamsai e a Lenore. O Howard disse que, se o Kit não organizasse as coisas para elas irem embora numa semana, então autorizaria a Chinda a ir buscá-las. Mas disse-lhe que considerava aquilo desnecessário, porque ninguém teria qualquer ressentimento contra uma mulher e uma criança inocentes. Era apenas o Kit que estava em perigo.

 

Passaram três dias e a Chinda não pôde esperar mais tempo e apanhou o autocarro para ir a casa da Kamsai. Entrou em casa e encontrou a Lenore no meio do chão, com as mãos na cabeça da mãe. Havia sangue nas paredes e no chão. Tanto a mãe como a criança estavam cobertas de sangue e havia moscas por toda a parte. A Lenore não se mexeu e, embora estivesse sentada, estava tão imóvel que a Chinda primeiro receou que estivessem mortas as duas.

 

Mas quando se deu banho à Lenore, não havia nela uma única marca ou ferida. As feridas estavam todas escondidas. Ela olhava fixamente como se fosse cega e não falava absolutamente nada. A polícia disse que a Kamsai tinha sido espancada até à morte durante a noite e dava a impressão que a Kamsai tinha ouvido os intrusos a entrar, a tempo de poder esconder a Lenore. Não havia maneira de saber se a criança estava num lugar onde se visse alguma coisa, mas era certo que tinha ouvido a mãe a ser torturada e assassinada.

 

A Chinda levou a criança para casa, para o complexo, e organizou o funeral da Kamsai. O Kit apareceu, mas a Chinda disse que ele estava demasiado desesperado para pensar com clareza sobre alguma coisa. Desapareceu sem fazer quaisquer preparativos para alguém cuidar da filha. A Chinda e a Chit tomaram conta de si no complexo, Lenore, e procuraram sarar o seu espírito com muito afecto.

 

Com o remorso, o Howard contratou médicos para a ajudarem, mas nenhum teve sucesso. O seu pai ia visitá-la. A Chinda disse que eram sempre surpresas breves durante a noite e que não lhe devem ter parecido mais do que sonhos. O Kit ficou completamente destroçado com a morte da Kamsai, sentindo-se responsável por ela e alternando entre a raiva e o silêncio estuporoso. Receava desesperadamente pela sua segurança, Lenore, mas era completamente irracional quanto a tomar providências. Com o passar dos meses tornou-se progressivamente imprevisível e perturbado de tal maneira que a Chinda e a Chit tinham medo dele e tinham medo de a deixar sozinha com ele. Depois deixou de aparecer.

 

A Chit e o marido tinham planeado mudarem-se para o campo para viver com familiares e acharam que o campo podia oferecer-lhe alguma paz, Lenore, por isso levaram-na com eles. O seu pai tinha deixado uma direcção em Saigão para ser usada em caso de emergência. A Chinda mandou uma mensagem para essa direcção, em que lhe comunicava para onde ia a filha dele. Nunca houve nenhuma resposta.

 

Depois, Saigão caiu e o exército americano meteu o rabo entre as pernas e voltou para casa, e o Howard ouviu dizer que o Kit tinha sido morto.

 

Françoise Newman inclinou-se para a Lenore e estendeu-lhe as mãos.

 

Oh Lenore, não consigo dizer-lhe como me senti quando soube de tudo isso. Perder a Kamsai de uma maneira tão insensível e brutal já era muito mau... mas pensar que a tinha desiludido daquela maneira. Você precisou de mim e eu não estava lá para a ajudar. Em vez disso, estava na cama, no Connecticut, a cuidar da minha própria estúpida dor.

 

Reservei imediatamente uma passagem aérea e enviei uma mensagem ao Howard dizendoque ia ter com ele a Bangkok. Eu sabia que ele ia ficar satisfeito e deixei-o ter a sua satisfação não lhe disse que você, Lenore, era o único motivo por que eu voltava. Estava decidida a procurá-la e a adoptá-la como minha filha.

 

Cinco dias depois da minha chegada a Bangkok, a Chinda e eu viajámos até aos campos de arroz para onde a Chit e o marido a tinham levado. Mas você tinha desaparecido! Tinham ido lá soldados americanos para a levar, disseram eles. A Chit ainda tentou fugir consigo para a floresta, mas os soldados perseguiram-na e apanharam-na. Um deles bateu-lhe na cabeça com a espingarda e ia continuar a bater-lhe, mas a Chit disse que você se transformou num tigre, mordendo-o e arranhando-o para salvar a Chit.

 

Juntas, a Chinda e eu investigámos e questionámos toda a gente e seguimos pistas na tentativa de a encontrar. Falámos com centenas de pessoas de organizações civis e militares. Visitámos com frequência campos de refugiados. Ninguém sabia de nada e o exército negou qualquer envolvimento. Mas eu continuei a procurar. Durante anos e anos.

 

O Howard resolveu reformar-se cedo e continuar os seus estudos sobre as borboletas, visto que tinha os meios para o fazer. Abandonámos o complexo em Bangkok. O Vichet fez-se monge e a Chinda foi viver com a filha. Convenci o Howard a comprar esta casa em Ridgefield porque eu gostava disto aqui.

 

E assim acaba a minha história... ou pelo menos assim me parecia, até receber o telefonema do Owen e ouvir o nome “Lenore.”

 

O sol ainda brilhava. Estavam ainda no Connecticut e era ainda sábado. O fim repentino da história de Françoise Newman fez Owen voltar ao presente com um baque.

 

Lançou um olhar para Lenore. Estava de olhos fixos e inexpressivos, ou profundamente arrebatados, ou num perfeito estado de choque.

 

É tudo quanto sei, disse Françoise suspirando, como se acabasse de se sentir aliviada de um pesado fardo.

 

Owen esperou pela reacção de Lenore. O que estaria ela a pensar? Depois de tantos anos de incerteza angustiante, como iria enfrentar aquela terrível verdade?

 

Uma única lágrima caiu-lhe do canto do olho. Por que é que eu não me lembro, Françoise? Por que tenho toda esta escuridão dentro de mim?

 

Fiz-lhe recordar alguma coisa? perguntou Françoise. Alguma coisa do que eu disse lhe tocou em alguma corda?

 

Sim. Nomes. Mamã Fanny. Tia Chit. Tia Chinda. E pequenas coisas... fragmentos. As luzes na água. Flores num altar com uma imagem de ouro de quatro cabeças. Sentir-me em segurança junto de alguém num autocarro cheio de gente. Mas não consigo obter imagens mentais estáveis.

 

E o livro... as fotografias foram de algum modo significativas?

 

Algumas... sim. Lenore abriu o livro. Esta fotografia dos vendedores nos pequenos barcos, a vender comida de porta em porta ao longo do canal. Lembro-me de ficar entusiasmada... a correr pelas escadas abaixo para a água, para escolher alguma coisa doce. Folheou as páginas até chegar a um templo magnífico e maravilhosamente decorado. Esta fotografia do Deus Lua no Templo da Aurora. Eu conheço-o. Fui lá muitas vezes com alguém e rimo-nos no caminho e levámos-lhe oferendas. Fechou o livro. E tenho sonhos, Françoise. Sonhos estranhos que me têm assustado, porque não consigo compreendê-los. Sempre tive alguns, mas desde que morreu o meu marido, o meu sono está cheio deles.

 

Fale-me deles, insistiu Françoise.

 

Geralmente incluem qualquer coisa de místico caras de deuses esculpidos que falam e adivinhadores que conseguem ver através de mim. E fantasmas. Muitos fantasmas.

 

Você é uma verdadeira tailandesa, Lenore. Françoise sorriu suavemente.

 

Sim. Agora percebo isso. E as pessoas que aparecem nos sonhos são as minhas tias ou as minhas mamãs. Sei sempre quem são, mas nunca consigo ver bem as suas caras. Ou porque sou muito pequena nos sonhos, ou a pessoa está nas zonas escuras.

 

Li muito sobre traumas infantis ao longo dos anos, disse Françoise. Estou convencida de que é frequente bloquearem recordações que são assustadoras ou perturbadoras. É um mecanismo de protecção das crianças. Observou Lenore com tristeza. Andei tão preocupada com o que lhe aconteceu e como foi a sua vida e se alguma vez voltaria a falar, e suponho que continuei a ler para tentar convencer-me de que as coisas podiam ter resultado bem para si.

 

Lenore lançou um olhar para Owen.

 

Queres que eu saia? perguntou ele, inclinando-se para a frente para desligar o gravador. É claro que não me importo de ir dar um passeio se vocês as duas quiserem ter uma conversa privada.

 

Françoise observou Lenore. Owen ficou à espera. Lenore baixou os olhos para o livro. Finalmente olhou para Owen e disse, Não. Fica.

 

Podíamos encontrar-nos noutra altura, sugeriu Françoise. Isto foi um grande choque... ouvir tudo assim de uma só vez. E Deus sabe como eu tenho tempo para receber visitas. Nestes dias não tenho feito outra coisa que não seja esperar que o meu joelho fique curado, depois da intervenção cirúrgica.

 

A cara de Owen deve ter manifestado surpresa porque ela riu-se. Julgava que eu era incapacitada? Eu não. Quando menos esperarem, vou estar de pé a fazer treino de corrida. Tenciono desfrutar ao máximo a minha viuvez. Parou e mordeu o lábio. Desculpe, Lenore. Fui tão insensível. Esqueci-me por momentos...

 

Não faz mal, Françoise. Não faz mal. Lenore fechou os olhos. Cada linha do seu corpo parecia fraquejar, e por momentos Owen receou que ela pudesse desmaiar.

 

Sente-se bem? perguntou Françoise; depois virou a cabeça para chamar, Vera! Vera!

 

A mulher apareceu quase instantaneamente.

 

Quer mais chá, Lenore? Ou café, ou gasosa? Ou talvez alguma coisa alcoólica? Inclinou-se para a frente para pegar nas mãos de Lenore. Parece estar exausta. Está com fome? Quer uma banana? Potássio e açúcar natural podem ajudar.

 

A Vera apressou-se a sair e voltou com um cesto de fruta, um prato de biscoitos de farinha de aveia, três garrafas de gasosa natural e palhinhas.

 

Obrigada... a todos, disse Lenore. Sorriu levemente, Não estou habituada a ser apaparicada desta maneira.

 

A Vera abriu a ponta de uma banana, descascou-a até ao meio e entregou-a a Lenore. Françoise abriu uma garrafa, introduziu uma palhinha e colocou-a na mesa que estava em frente de Lenore.

 

Lenore riu-se. Mas tinha os olhos cheios de lágrimas e os cantos da boca voltados para baixo. Deu algumas dentadas e bebeu um pouco, mais para lhes agradar do que para se servir; depois ficou tensa e respirou fundo.

 

Só me lembro de estar em cima do búfalo-de-água. Com pessoas à volta.

 

Chegaram os soldados americanos e perseguiram-me e ouvia-se muita gritaria e tive a certeza que me ia acontecer alguma coisa má, mas não aconteceu de facto. Fui simplesmente trazida para a América.

 

Françoise abanou a cabeça. Quem eram esses soldados?

 

Não sei realmente. Mas agora penso... É confuso, porque tenho de esquecer aquilo em que me ensinaram a acreditar. Sempre me disseram que eu estava em perigo por causa da guerra e que tinha sido salva, mas isso não era verdade, pois não? Estava em total segurança e era bem cuidada. Mais parece que fui raptada.

 

Mas quem teria feito uma coisa dessas? disse Françoise. O seu pai já estava morto e você não significava qualquer ameaça para ninguém.

 

Lenore olhou para Owen e ele vislumbrou reflexos de raiva nos olhos dela. Acho que agora consigo imaginar quem esteve por detrás do meu rapto... Mas isso já não é importante, pois não? As mãos de Lenore estavam tão apertadas uma na outra que os nós ficaram brancos. Só quero saber do meu pai e da minha mãe. Quero lembrar-me deles. Quero lembrar-me de todas aquelas pessoas que me amavam! Por que é que não consigo lembrar-me?

 

Quer ver algumas fotografias que trouxemos? perguntou Owen, esperando aliviar a tensão. Temos muitas fotografias, mas não sabemos se o pai da Lenore está em alguma delas.

 

Com certeza. Françoise meteu a mão no bolso do vestido e tirou um par de óculos elegantes para ler.

 

Owen mostrou-lhe todas as fotografias possíveis que tinha encontrado na caixa, fotografias em que se viam grupos de homens a trabalhar no campo. Uma fotografia instantânea de jovens num piquenique. Fotografias individuais de homens não identificados. Não havia assim tantas. A Tia Milly tinha dito que duvidava que houvesse alguma fotografia de Luther Bachman na caixa, e tinha razão.

 

Depois Owen entregou-lhe o desdobrável com as fotografias antigas do Bram e do Al. Eu estava a pensar se algum destes homens teria aparecido alguma vez à procura de Kit Corwin, ou se alguma vez os terá visto com o Kit.

 

Françoise abriu o desdobrável e de repente os olhos dela ficaram surpreendentemente dilatados.

 

Mas, ele está aqui. Kit Corwin está mesmo aqui.

 

Lenore saltou do seu assento para olhar por cima do ombro de Françoise e Owen aproximou-se mais.

 

Este é o seu pai, Lenore. Este aqui.

 

Estava a apontar exactamente para Abe Hanselmann... Al... o adoptado. O primo/irmão perturbado. O homem que tinha vivido como um eremita no estúdio de Bram Serian.

 

Não! gritou Lenore. Owen ia pegar-lhe no braço, mas ela sacudiu-o e fugiu.

 

Foi rápida e teve o elemento da surpresa a seu favor. Por fim, depois de atravessar o extenso relvado, ele apanhou-a. Ela bateu cegamente com as mãos fechadas e ele agarrou-a com força, envolvendo-a com os braços, até que ela deixou de lutar.

 

Posso largar-te? perguntou ele hesitante.

 

Sim, disse ela num som sibilante. Mas não posso voltar a vê-la. Agora não. Ainda não.

 

Está certo. A Françoise há-de compreender. Vai para o carro que eu vou lá a casa buscar as nossas coisas e despedir-me.

 

Françoise estava mesmo junto da porta de entrada, presa na sua cadeira, absolutamente perturbada. A Vera estava atrás dela retorcendo as mãos e murmurando em russo.

 

O que é que eu fiz, Owen? O que é que eu fiz?

 

Não se culpabilize, Françoise. Isto era uma coisa que ela queria saber e ia com certeza descobrir de uma maneira ou de outra. É apenas um choque. Eu... É uma história muito comprida e complicada para lhe contar, e não é minha. É da Lenore, e tenho a certeza que ela vai querer contar-lha no seu devido tempo. Dê-lhe tempo.

 

Ela sabia quem era ele, não sabia? O Kit está vivo?

 

Sim. Presumivelmente. E ela conheceu-o de facto, mas nunca suspeitando que era o pai dela. Acho... acho que o pior de tudo isto é que ela sempre imaginara o pai como alguém perfeito e maravilhoso que havia de protegê-la se pudesse encontrá-lo. E o homem naquela fotografia é incapaz de proteger seja quem for.

 

Françoise estendeu o braço para lhe agarrar a mão. Não quero voltar a perdê-la, Owen. Acha que tenho alguma hipótese? Será que ela consegue aceitar-me como amiga?

 

Françoise, a vida dela está muito complicada neste momento.

 

Sim. Eu sei.

 

Há mais coisas. Mais coisas para além de ter ficado viúva. Não depende dela.

 

Sim, Owen, disse ela firmemente. Eu sei. Ele ficou a olhar para ela.

 

Eu sei, insistiu ela. Percebi quem era ela. A fotografia do jornal. O nome Lenore. E você perguntou-me se conhecia alguém da família Serian. Logo que a vi, tudo se ajustou.

 

Ela não queria dizer-lhe. Está muito preocupada com o que você possa pensar dela.

 

Françoise suspirou. Para mim ela continua a ser a bebé da Kamsai.

 

Tenho a certeza de que ela vai querer voltar a vê-la em breve. Está muito sozinha.

 

Também eu, disse Françoise. Por favor, por favor, diga-lhe por mim ela é como se fosse minha filha. Hei-de sempre amá-la... aconteça o que acontecer.

 

Owen conduziu o carro pela cidade de Ridgefield sem destino, parou para meter gasolina e depois continuou a conduzir. Uma acumulação de nuvens assinalou uma escuridão adiantada. Ele continuou à espera de um sinal de Lenore, mas ela estava mergulhada num silêncio distanciado. Finalmente estacionou em frente de uma velha estalagem acolhedora.

 

Vamos jantar, anunciou ele.

 

Ela mexeu-se um pouco. Não tenho fome. Vai tu. Eu fico aqui.

 

São horas de jantar. Ambos precisamos de comer e a única alternativa é voltar directamente para a Arcádia e atirarmo-nos à comida congelada.

 

Mas eu não estou mesmo com fome. Pareceu tão categórica que ele quase desistiu, mas então ela mexeu o braço e ele reparou no seu pulso delgado.

 

Não quero saber se estás com fome. Bolas, Lenore! O que estás a tentar fazer? Queres morrer à fome? Achas que isso te vai ajudar em alguma coisa?

 

Eu como, disse ela teimosamente.

 

É óbvio que não o suficiente. Pareces um esqueleto.

 

Ela endireitou-se e olhou para ele com ar irritado. Pelo menos provou que ainda lhe restava algum ânimo.

 

Ele continuou a insistir com ela. É uma indelicadeza da tua parte esperar que uma pessoa tenha vindo a conduzir desde Manhattan e que tenha ido buscar-te a casa e te tenha trazido ao Connecticut e depois faça a viagem de volta sem tomar uma refeição decente em todo o dia.

 

O olhar furioso intensificou-se. Eu não sou indelicada.

 

Talvez não. Talvez penses apenas que não mereço a tua consideração. Ela abriu a porta com força e saiu do carro. Ele ficou impressionado com a sua elegância. Mesmo estando cheia de raiva, cada movimento do seu corpo tinha uma graciosidade fluida.

 

O restaurante era tão agradável do lado interior como prometia o exterior. Sentaram-se e Lenore recebeu a ementa com uma reserva glacial. O estalajadeiro fez uma vénia e ficou desajeitado, claramente intimidado por ela.

 

Ela olhou para a ementa como se conseguisse lê-la.

 

Eu vou ser um chauvinista e vou escolher o teu prato, disse Owen, tirando-lhe a ementa das mãos.

 

Eu não quero nada, obrigada.

 

Eles não permitem isso em lugares como este. Não podes ocupar uma mesa sem mandar vir comida.

 

Ela franziu levemente as sobrancelhas e os seus olhos dardejaram um olhar à volta da sala.

 

Ninguém sabe, Lenore. Ninguém aqui vai alguma vez adivinhar que não consegues ler a ementa.

 

Ela observou-o com os olhos ligeiramente diminuídos.

 

Então agora consegues ler os pensamentos das outras pessoas? Talvez sejas também um adivinho?

 

Ele abanou a cabeça e riu-se.

 

Depois de ele ter feito o pedido, ela olhou pela janela para as nuvens que estavam a ficar escuras.

 

Vem aí chuva, disse ele.

 

Ela acenou com a cabeça abstractamente. Custa tanto a aceitar isto. Ele nunca foi um pai para mim. Nunca. Quando eu era mais nova, assustava-me com ele. E mais tarde comecei a sentir mais compaixão do que afecto por ele.

 

Eu nunca teria adivinhado, disse Owen. O Bram era irmão dele... era adoptado, claro, mas era irmão dele. Como é que ele pôde... casar contigo?

 

Ela baixou os olhos. Eu ouvi por acaso uma discussão entre o Al e o Bram. A certa altura o Bram começou a gritar sobre tudo o que tinha feito pelo Al... tudo o que tinha sacrificado pelo Al. Não consegui ouvir a resposta do Al, mas depois o Bram disse, “Vai sempre tudo a dar à Lenore. Estou saturado de ouvir falar da preciosa Lenore.”

 

Ao ouvir aquilo, o meu coração parou. Por que teriam introduzido o meu nome na discussão? O que é que eu tinha a ver com o Al? Mas cá no fundo, receava saber.

 

Estavas ansiosa por que eu te provasse o contrário, não é verdade? perguntou Owen.

 

Ela hesitou. Sim. Eu recusava-me a acreditar. O que ouvi podia ter significado qualquer outra coisa, por isso queria convencer-me de que significava essa qualquer outra coisa. Estava decidida a encontrar o pai que eu desejava.

 

E desejavas que fosse Luther Bachman.

 

Ou outra pessoa qualquer, mas não o Al! Como podia querer que fosse aquela patética amostra de homem? E foi quando ainda pensava que ele era apenas primo do Bram. E já era bastante mau. Depois, quando soube que eram irmãos...

 

Ele era adoptado, acrescentou Owen imediatamente. Não havia qualquer relação de consanguinidade.

 

Mas não deixa de ser desprezível, mesmo assim. Tu mesmo o disseste momentos atrás... como pôde o Bram casar comigo?

 

E porquê, exactamente? perguntou Owen. Por que o teria feito? Lenore assumiu uma atitude rígida. Agora não quero falar mais nisso.

 

Está bem. Muito bem. Mas alguma vez vais ter de enfrentar isso. Talvez fosse melhor falar com um psicólogo.

 

Achas que estou doida?

 

Não. Apenas penso que é difícil lidar com tanta coisa sozinha. Seria para qualquer pessoa. Acho que o meu irmão ainda estaria aqui se tivesse ido pedir ajuda a alguém.

 

O teu irmão? Porquê? Ele...

 

Enforcou-se. Da única árvore que ali existia, capaz de suportar o corpo dele.

 

Então ela ficou calada, mas os seus olhos estavam cheios de compaixão.

 

Não costumo contar isto às pessoas. Peço desculpa se te deprimi com isso.

 

Fico contente por me teres contado. Fico contente por quereres contar-me.

 

Quero contar-te tudo o que quiseres saber sobre mim, Lenore.

 

Estás a brincar comigo? perguntou ela.

 

Não. Pareceu-te que estava?

 

Ela inclinou a cabeça, divertida, provocadora, misteriosa, com a mais leve sugestão de um sorriso a brincar-lhe nos lábios. O olhar provocou qualquer coisa dentro dele. Não propriamente um sobressalto... mais parecido com uma sensação de queda... uma queda livre. Cruzou os braços em frente do peito e engoliu com dificuldade.

 

Já alguma vez te disse, disse ela, que gosto da maneira como falas?

 

Não conseguiu pensar numa resposta.

 

Então chegou a salada e ele agradeceu ao empregado com um agradecimento tão sentido que o homem deu um passo atrás.

 

Foram cuidadosos um com o outro durante o resto do jantar, procedendo com delicadeza através dos diversos campos de minas verbais, evitando o passado e o julgamento e o futuro, optando por uma alternativa com comentários impessoais sobre a comida e o ambiente. E sobre a chuva, quando esta começou a cair.

 

Enquanto estava a pagar a conta, Owen não resistiu a contar-lhe a sua novidade. Lenore, falei com a minha agente ontem à noite. Consegui o contrato com DeMille. Eles querem o meu livro. Para te dizer verdade, estão agora a negociar o preço. A minha agente pensa que agora vale muito mais.

 

Agora que tens tantas revelações feias para incluir nele?

 

Eu não tencionava introduzir tudo. Tu sabes disso.

 

Sei?

 

Ela dirigiu-lhe um olhar severo por momentos, depois desviou os olhos e disse, Fico contente que o teu livro seja publicado. Tenho a certeza de que a tua família também vai ficar entusiasmada. Já lhes contaste?

 

Ainda não.

 

O que queres dizer com isso? Quando voltas para o Kansas? perguntou ela com indiferença.

 

Não sei. Tenho de ver como vai continuar o meu livro, respondeu ele cuidadosamente.

 

Foram a correr juntos do restaurante para o carro. A chuva miudinha transformou-se numa chuvada forte quando viraram para a auto-estrada, mantendo-os fechados no interior acolhedor do carro. Na escuridão, ele proferiu abruptamente a pergunta que não lhe saía da cabeça. Tu amava-lo?

 

Quem?

 

O teu marido.

 

Por que me perguntas isso?

 

Lenore, eu sei que só tinhas quinze anos quando casaste com ele. Como posso deixar de imaginar como te sentias?

 

Que diferença faz em ficares a saber como o amei ou quando o amei ou se alguma vez o amei? Agora está morto. É um fantasma.

 

Mas tu estás viva. Quero saber o que ele era para ti. Quero saber o que significou para ti a sua morte.

 

Ela ficou calada durante tanto tempo que ele pensou que não ia responder. Mas então a voz dela saiu da escuridão, calma mas intensa. O que tu queres de facto saber é se eu o matei.

 

Não, disse ele muito sério. Nunca te perguntaria tal coisa. Mas era verdade. Também aquela pergunta tinha andado a torturá-lo. Porque quanto mais Owen sabia, mais motivos via para ela ter morto Bram Serian. Não, Lenore. Diz-me só, casaste com ele por questões de segurança ou amava-lo realmente?

 

Eu amava-o, disse ela. Mas não da maneira que tu compreenderias.

 

Owen não conseguiu conter-se. Insistiu, embora soubesse que não era aconselhável. Nunca esclareceste. Como o conheceste? Onde vivia? Como é que ele se aproximou de ti?

 

Porquê? O que é que isso interessa? Acabou e ele está morto e eu estou aqui contigo. Isso não é suficiente para ti?

 

Sim, respondeu ele. Mas não era.

 

Durante todo o caminho para a Arcádia, ela não disse mais nada. Os pensamentos de Owen fragmentavam-se numa cacofonia silenciosa, e através das faíscas provocadas pela fricção ouviu uma voz a sussurrar-lhe que talvez devesse virar para o Norte e continuar a conduzir até ter passado Lenore Serian pela fronteira do Canadá e ficar em segurança com ele. Mas virou para a estrada de campo como era suposto e a seguir atravessou o portão da Arcádia e seguiu pelo caminho sinuoso e escuro que conduzia à casa. Parou mesmo em frente da porta da casa para a deixar sair, supondo que ela não ia convidá-lo a entrar. Havia algumas luzes exteriores que tinham acendido automaticamente ao anoitecer, mas a casa propriamente dita tinha as janelas desertas e escuras.

 

Ela ficou sentada no carro, olhando para a chuva através da janela, o que ele considerou ser por relutância.

 

Desligou o motor. Eu acompanho-te até lá dentro, se quiseres. Para te ligar algumas luzes...

 

Ela dirigiu-lhe um olhar insinuante de lado. Queres entrar?

 

Ele olhou para ela, sabendo exactamente o que estava a pedir.

 

Sim, disse ele em voz baixa.

 

Nenhum deles se mexeu. A chuva caía torrencialmente nas janelas e o carro balançou levemente com uma rabanada de vento.

 

Puxou-a avidamente para os seus braços e beijou-a na boca. Os dedos envolveram-lhe o pescoço delgado, tão frágil e indefeso; depois beijou-a na concavidade da base da garganta e deslizou as mãos para o calor debaixo do casaco. Explorou pelo tacto, observando-lhe a cara no escuro, enquanto procurava a curva dos seios e os mamilos entumecidos. As costas dela arquearam e ele sentiu o bater acelerado do seu coração.

 

Owen... murmurou ela, Owen... e o som do seu nome nos lábios dela agitou-o profundamente.

 

Correram à chuva, agarrados um ao outro, como se receassem perder o contacto. Ele tentou desajeitadamente abrir a porta enquanto ela tratou do alarme. Desfizeram-se dos sapatos molhados à entrada e deixaram cair os casacos no chão do átrio, beijando-se e tocando-se enquanto continuavam a andar.


Subitamente, ele tomou consciência de que ele próprio continha dois seres, o Owen sensato e racional que sempre tinha sido e um novo Owen, selvagem e incontrolável. O novo Owen rasgou a blusa de Lenore Serian e chupou-lhe os mamilos por baixo da renda do soutien. Ela gemeu e passou os dedos pelo cabelo dele e inclinou-se para trás contra a parede e o novo Owen deslizou as mãos pelas coxas acima, tão sedosamente quentes e nuas até sentir as cuecas húmidas e ouvi-la gemer novamente.

 

O novo Owen lambeu-lhe a boca e o pescoço enquanto deslocava os dedos por dentro das cuecas, acariciando e explorando o calor húmido dela até que a respiração acelerou e a boca dela ficou tão voraz como a dele. E o novo Owen puxou-lhe as cuecas para baixo e abriu o fecho das calças e levantou-a para ela o envolver com as pernas. E introduziu o seu pénis erecto dentro dela mesmo ali, de pé, com as costas dela encostadas à parede, a pensar minha minha minha e desejando poder empurrar suficientemente longe dentro da escuridão dela, para lhe tocar no coração.

 

Mais tarde, quando o velho Owen recuperou o controle, ficou espantado e confuso. Sentia-se como se a sua camada civilizada tivesse sido removida temporariamente, expondo uma essência primária que ele não sabia que existia. E oscilou entre a satisfação, o medo e o constrangimento.

 

Meu Deus, disse ele. Estava deitado com ela num sofá, para o qual não se lembrava de ter ido. Sentou-se. Desculpa.

 

Ela apoiou-se no cotovelo para olhar para ele.

 

Fui demasiado grosseiro? Eu... Pôs a mão na testa. Não sei o que dizer.

 

Pára, disse ela, tocando com um dedo nos lábios dele. Foste excelente. A boca dela curvou-se num lento sorriso sensual. Vem. Vem comigo.

 

Pegou-lhe na mão e conduziu-o pela casa, parando para ligar apenas o mínimo de luzes necessárias. Passaram pela sala de estar e andaram pelo labirinto até subirem as escadas que conduziam ao seu santuário de vidro e espelhos. O quarto era negro. Não conseguia ver nada, mas lembrava-se perfeitamente dele a parede espelhada, a mesa comprida, a cama estreita.

 

A chuva batia contra o vidro e o vento fazia tremer os painéis de vidro. Ela deixou cair a mão e afastou-se dele. Ele ouviu o assobio de um fósforo a acender, depois viu o perfil dela no brilho ténue da chama. Ela estava debruçada sobre uma mesa cheia de velas em cilindros de vidro altos, mas acendeu apenas três.

 

Voltou-se para ele. A luz das velas reflectiu-se nas janelas escuras e dançou no cabelo escuro dela e brilhou nos seus olhos negros. Lentamente, despiu-se. Observando a cara dele enquanto olhava para ela.

 

Nunca deixarei que me toquem nesta sala. Disse ela. Aqui pertenço só a ti.

 

Acordou com as costas quentes dela encostadas ao seu peito. Estavam ambos enroscados por baixo dos cobertores na cama estreita dela. Era domingo de manhã. Do lado de fora das janelas, a chuva caía suavemente através de um denso nevoeiro.

 

Naquela luz cinzenta ele pôde ver claramente a sua colecção de velas. Tinham todas o mesmo tamanho e estavam todas em cilindros de vidro, mas cada uma tinha qualquer coisa de diferente pintada no vidro. Havia signos do zodíaco, e símbolos de dólares, e cruzes, e pirâmides com olhos, e corações a pingar sangue, e símbolos familiares que ele não se atrevia a lançar-se a adivinhar. Também havia expressões. Que a Sorte Venha Depressa, Morte ao Inimigo, Sonho, Espírito Mágico, Boa Fortuna, Eliminador do Azar. Se não fossem tão perturbadores, alguns deles teriam sido de facto divertidos.

 

Moveu-se ligeiramente e ela acordou, sentando-se num sobressalto. Perscrutou a sala como se estivesse à procura de algum intruso.

 

Bom dia, disse ele, tocando-lhe no cabelo. Ela afastou-o, saiu debaixo do edredão e correu para a porta fechada e encostou o ouvido à escuta.

 

O que se passa, Lenore?

 

Ela abanou a cabeça; depois cingiu-se com os braços e estremeceu com arrepios.

 

Os olhos dele foram novamente atraídos pelas velas. Quais acendeste ontem à noite?

 

O olhar que ela lhe dirigiu fez-lhe eriçar o cabelo na nuca.

 

Ela abriu um armário e tirou dois roupões de tecido aveludado. Estás com frio, disse ela, dando-lhe um.

 

O distanciamento dela era desorientador. Tinha feito a noite passada parecer um sonho, irreal. Ela levou-o para uma casa de banho com escotilhas envidraçadas e uma cabina de chuveiro envidraçada completa com dois chuveiros e um banco embutido. Logo que a água ficou cheia de vapor dentro do cubículo, ela entrou nele, indicando-lhe com um gesto para a seguir e a área genital dele estimulou-se ainda antes de a mão ensaboada dela o alcançar.

 

A água quente correu sobre ele e ele encostou-se aos azulejos frios, embalado por ondas de sensação. Quando estava à beira da ruptura, reagiu e chegou-se a ela, desejoso de lhe tomar o sabor e de a sentir, querendo levá-la à mesma ruptura para poderem cair juntos.

 

Não! Ela fez um movimento para se libertar dele, com a pele escorregadia cheia de água. Não me toques, ordenou ela, e ele ficou magoado e perplexo, mas a mão escorregadia dela tinha-o encontrado de novo, deixando-o indefeso, prendendo-o na sua própria fraqueza.

 

Quando terminou e a água foi desligada, ele sentou-se no banco molhado e ficou a olhar para ela. De algum modo ela tinha usado o seu desejo para se separar dele. Para originar uma distância maior entre eles. Observou-a a inclinar-se para limpar o longo cabelo preto e compreendeu que ela era uma estranha para ele. Ele nunca a conheceria.

 

Ela endireitou-se e olhou-o. E ele queria deixar-se arrastar por aqueles olhos. Aqueles olhos escuros e imperscrutáveis. Queria desvendá-la toda e descobrir a verdade, depois gravar-se no seu cérebro e no coração e no centro quente e escuro dela, para que ela nunca mais pudesse desembaraçar-se, nunca mais distanciar-se, nunca mais ficar completamente separada dele.

 

Agora tens de ir, disse ela, apertando o robe e dirigindo-se para o corredor.

 

Porquê?

 

Porque tens de ir.

 

Ele agarrou-a pelo braço e fê-la rodopiar para o enfrentar. Por que estás a tentar afastar-me?

 

Ela levantou uma sobrancelha friamente. Por que estás a tentar ficar quando não és desejado?

 

Lenore... Eu sei que tu sentes alguma coisa por mim. Ontem à noite, quando fizemos amor...

 

Ela libertou o braço da mão dele. Foder não significa nada, sussurrou ela. Sabes com quantos homens já estive? Quantos caralhos já tive dentro de mim? Quantas vezes fingi que me vinha? enquanto falava, observando a cara dele, vendo os estragos que as suas palavras estavam a fazer, um brilho surgiu nos seus olhos e um sorriso triunfante brincava nos seus lábios.

 

Queres que te diga todos os nomes? Queres ouvir o que eles me imploraram ou o que gritaram quando se vieram dentro de mim?

 

Ele bateu-lhe. Deu-lhe uma bofetada com um movimento súbito e rápido que lhe fez virar a cabeça e o espantou. Sacudiu-o. Destruiu a última coisa do que ele tinha sido e em que tinha acreditado. Olhou para a mão. A mão ainda estava dolorida de ter batido na cara de um homem apenas alguns dias antes. E estava enojado. Envergonhado para além das palavras.

 

Ela voltou-se e foi embora.

 

Ele ficou ali durante muito tempo. Demasiado perdido para se mexer. Depois saiu para o corredor e voltou para o quarto dela. A cama estreita tinha sido feita de maneira que não havia qualquer vestígio do que tinha ali acontecido. Ele pegou na sua roupa do chão e vestiu-se. Enquanto estava a abotoar a camisa, notou que algumas das velas tinham pequenas chamas a crepitar. O pensamento de que ela o tinha deixado depois da cena na casa de banho e tinha ido para ali acender velas fê-lo ficar a ferver de raiva, e só lhe apetecia atirá-las para o chão e esmagá-las todas. Aproximou-se mais. As velas que estavam a arder estavam decoradas com vários símbolos pictóricos e com legendas Boa Fortuna, Muita Sabedoria e Amor Inseparável pela Morte.

 

Ficou a olhar para elas, comovido até às lágrimas, por emoções que não conseguia especificar nem explicar. Depois partiu à procura dela.

 

Ela estava vestida com uns jeans velhos e uma camisola de tamanho exagerado, ao fogão a fazer panquecas. Pus-lhes mirtilo congelado, disse ela, sem levantar os olhos.

 

A situação era tão natural que o fez questionar a sua própria sanidade mental.

 

Gostas de mirtilo, não gostas? perguntou-lhe ela.

 

Sim, respondeu ele.

 

Ele sentou-se com ar aborrecido e dobrou os braços em cima da mesa e inclinou-se para a frente para pousar a testa nos braços. Quando ela trouxe as panquecas para a mesa, endireitou-se.

 

O que significam as velas? perguntou ele.

 

Cada uma delas significa uma coisa diferente.

 

Acendeste o Amor Inseparável pela Morte para o Serian?

 

As minhas velas são pessoais, disse ela. Agora come as panquecas e diz-me o que achas.

 

Mecanicamente, ele começou a comer.

 

São boas? perguntou ela.

 

Sim.

 

Ela sorriu. Foi a Geneva que me ensinou a fazê-las, disse ela. São a única coisa que realmente sei cozinhar.

 

A Geneva? O nome deixou-o num estado entorpecido e exausto. Geneva Johnson... a amante do Serian... ensinou-te a fazer panquecas?

 

Instantaneamente, os olhos de Lenore ficaram ensombrados e ela recolheu os pratos e levou-os para o lava-loiça.

 

Tu e a Geneva Johnson foram amigas? Eu não... Estas peças não se encaixam, Lenore.

 

Ela ficou junto do lava-loiça com as costas voltadas para ele. Não quero mais perguntas, disse ela. O nosso caso terminou. Tens o que querias e eu tenho o meu passado. Agora estamos quites.

 

O que queres dizer com isso?

 

Ela voltou-se e dirigiu-lhe um olhar sério. Quer dizer adeus. Não te quero mais aqui. Podes encontrar o teu próprio caminho para a porta. Ele saiu.

 

Owen conduziu furiosamente, fazendo as curvas demasiado depressa, resmungando e desviando-se dos condutores mais lentos. Geneva Johnson. A modelo artístico tornara-se proprietária de uma loja. O amor de Bram Serian até ao casamento com a Lenore.

 

Como é que tudo aquilo se encaixava? Como tinha sido a relação entre a Geneva e a Lenore?

 

Tinha de encontrar Geneva Johnson. Tinha de a obrigar a falar com ele.

 

Owen localizou imediatamente Geneva Johnson no café. Estava novamente brilhantemente vestida, mas desta vez parecia uma cigana.

 

Olá, disse ele, sentando-se no assento em frente dela, à pequena mesa de canto.

 

O senhor não traz por acaso escondida uma daquelas coisas que gravam cassetes, colada aos tomates ou em qualquer outro sítio, pois não? perguntou ela sem mais preâmbulos.

 

Não. Eu... Ele debruçou-se para abrir o saco de transporte e mostrou-lhe o gravador que estava lá dentro. Só tenho este e, como pode ver, não está ligado.

 

Não o ligue, ordenou-lhe ela, e ele voltou a enfiar o gravador dentro do saco para demonstrar a sua concordância.

 

Ainda lhe custava acreditar que ela tivesse concordado encontrar-se com ele. Nem sequer tinha ficado surpreendida com o seu telefonema.

 

Como conseguiu o meu número que não vem na lista? perguntou ela.

 

Um pirata de computadores conseguiu-mo em cinco minutos.

 

Ela pareceu ficar aborrecida por instantes, mas depois encolheu os ombros. Eu ia telefonar-lhe de qualquer modo.

 

Ia?

 

Sim. Dirigiu-lhe um olhar hostil e muito determinado. Por causa da Lenore.

 

Owen olhou para ela e ficou à espera. Uma parte dele queria levantar-se e fugir porque tinha medo que aquela mulher fosse contar-lhe qualquer coisa de terrível, que fosse confirmar que a Lenore era de facto uma assassina, entre outras coisas. A outra parte estava ansiosa, à espera, a pensar que finalmente ia saber tudo.

 

Vai ter as suas histórias, escritor. Vai ter muitas. Mas agora vai deixá-la em paz. Está a entender-me? Deixe-a em paz.

 

Owen ficou estupefacto.

 

Geneva endireitou-se e levantou o queixo. Venho fazer-lhe uma proposta, Byrne. Você deixa a Lenore em paz e eu conto-lhe alguma coisa sobre os primeiros anos do Serian em Nova lorque.


Quem diabo pensa você que é? perguntou ele. O facto de eu me encontrar com a Lenore não é nada da sua conta.

 

Os olhos dela diminuíram e a sua boca esboçou um sorriso pouco agradável. Se não é nada da minha conta, então por que é que a Lenore me telefonou logo que você saiu da Arcádia esta manhã? Por que é que eu sei cada uma das palavras que você lhe disse?

 

Owen afundou-se na cadeira. Mais uma vez ficou estupefacto.

 

Geneva acenou com a cabeça. Logo que você partiu no carro, ela foi a correr a telefonar-me.

 

Não compreendo, disse ele.

 

Exactamente! Um pequeno vislumbre de triunfo brilhou nos olhos de Geneva. É isso que estou a tentar meter nessa sua cabeça dura de homem... você não compreende. Você não sabe o que está a fazer.

 

Tanto a Lenore como eu somos ambos adultos...

 

É aí que está redondamente enganado, Byrne.

 

O que está a tentar dizer-me?

 

Acho que é perfeitamente claro. Deixe a Lenore em paz e eu dou-lhe os primeiros anos do Bram.

 

Sim. Compreendo essa parte. Mas quem é você para a Lenore?

 

Sou amiga dela. Sou... A Lenore é como se fosse a minha irmã mais nova.

 

Isso custa-me muito a acreditar, disse ele. E de facto se Lenore não tivesse feito aquele comentário de a Geneva a ter ensinado a fazer panquecas, Owen ter-se-ia rido com a afirmação daquela mulher.

 

Pode acreditar, meu caro.

 

Digamos, por enquanto, que acredito. Por que acha que sou tão mau para a Lenore?

 

Ela deu uma risada breve e desagradável. Agora vamos ser realistas. Ambos sabemos o que você queria da Lenore... todos aqueles segredos interessantes... juntamente com algum prazer erótico para condimentar a sua investigação. Bem, não descobri a tempo de o impedir, portanto obteve tudo o que queria. Agora, estou a ordenar-lhe que se afaste. Pare de lhe foder o juízo. Ela não aguenta mais homens que só querem usá-la e aproveitar-se dela.

 

Mas eu não quero magoá-la.

 

Geneva riu-se novamente. Sim. Isso é o que todos dizem. Só que para si a ideia de não a magoar provavelmente é que está a ter sexo seguro e não lhe vai partir os dentes, mas para ela a ideia de ser magoada é: Será que ele me vai deixar? Ele estará a mentir-me? Ele é sério em tudo o que diz? Está a ver a diferença?

 

Owen ficou a olhar para ela. A sua cara orgulhosa e os olhos astuciosos eram tão severos, que lhe passou pela cabeça que a beleza impressionante daquela mulher não lhe deve ter trazido outra coisa que não fosse sofrimento.

 

Não sei o que a Lenore lhe contou nem sei qual é o tipo de relação que há entre vocês as duas. Mas você compreendeu-me mal. E fez-me pensar se isto não será para si um estratagema para uma espécie de vingança doentia. Que talvez queira afastar-me para a castigar porque foi com ela que o Serian casou em vez de casar consigo.


Geneva ficou a olhar por instantes para a chávena de café que estava à sua frente, depois levantou os olhos para se cruzar com os de Owen. Eu nunca quis castigar a Lenore. Toda a sua vida com aquele homem foi um castigo. Era ele que precisava de ser castigado. E haja alguém que me leve a melhor nisso.

 

Owen olhou para ela cheio de perplexidade. Não posso prometer-lhe que vou deixar a Lenore em paz, confessou ele calmamente. Não é uma promessa que eu possa fazer... ou queira fazer... por motivo nenhum.

 

Muito bem... Geneva suspirou profundamente. Talvez você não seja um tipo assim tão mau. A Lenore tem andado a querer convencer-se de que você não é má pessoa. Eu estou sempre a avisá-la, mas ela é... a mulher abanou a cabeça com ar triste. Vou contar-lhe umas coisas. Um pouco sobre o Bram e sobre mim. Um pouco sobre a Lenore. Para você perceber o que se passa aqui. Mas isto é absolutamente confidencial, Byrne, e a maior parte não pode ser provada e eu negarei ter dito uma única palavra sobre isso. Está a compreender?

 

Sim.

 

Era uma vez uma rapariga negra. Era uma parva. Deixou a sua mãezinha e a sua linda cidadezinha e partiu para a cidade de Nova Iorque para se tornar uma estrela. Ser modelo. Era o que ela queria ser. Tinha sido sempre muito grande e muito negra e muito magra e toda a gente tinha feito pouco dela quando era pequena, por isso ia-lhes fazer ver. Ia conseguir ter sucesso.

 

Estava cheia de ideias na cabeça. Donyale Luna tinha conseguido entrar numa revista nacional de moda e pensou, hei... a barreira da cor caiu e o momento é perfeito. Errado. Oh, era suficientemente alta e suficientemente magra, mas todas as agências lhe diziam que era muito negra.

 

Bem, ela nem sequer tinha um diploma do ensino secundário e não conseguia encontrar emprego que lhe desse para viver e sentia imensa vergonha de voltar de rastos para casa. E foi ficando cada vez mais desesperada e, mais depressa do que esperava, conheceu um homem mau. Só que ele era tão persuasivo e agradável que ela não sabia que era malvado. “O Smokey vai tomar conta de ti,” disse-lhe o homem, e ela era tão nova e estúpida que acreditou nele.

 

O Smokey prometeu que ia arranjar-lhe todo o tipo de empregos como modelo. E de facto arranjou. Oh, se fez de modelo! Todos os dias posava nua numa sala suja, onde todo o tipo de palermas pervertidos podiam entrar e tirar fotografias. “Volta-te para aquele lado, miúda. Põe ali a mão. Mostra-me mais um pouco disso.”

 

E às vezes um dos pervertidos ficava tão entusiasmado com as poses dela que estava disposto a pagar dinheiro extra para fazer mais do que apenas posar. Ela escondeu algum dinheiro e fugiu, mas o Smokey apanhou-a e fez uns pequenos desenhos nela com um cigarro aceso para a ensinar a nunca mais voltar a tentar fugir.

 

Aconteceu que estava uma noite com o Smokey num bar. Ele estava a falar com ela sobre o futuro e sobre os planos que tinha para ela ser uma estrela em espectáculos. Espectáculos particulares em que os homens pagavam para a ver a fazer coisas com outros homens e com mulheres e com qualquer criatura nesta terra de Deus que ficasse quieta. Coisas de que ela nunca tinha ouvido falar antes.

 

Ela não gostou dos planos do Smokey e ficou perturbada, por isso o Smokey deu-lhe umas bofetadas para a calar... como sempre fazia. Só que desta vez um indivíduo... completamente estranho... aproximou-se e disse ao Smokey, “Isso não são maneiras de tratar uma mulher.”

 

O Smokey achou que aquilo era mesmo esquisito. Aquele grandalhão branco a chegar ali como se fosse John Wayne e dizer uma coisa daquelas a um gajo mau como o Smokey. Tentou fazer daquilo uma piada. Mas o indivíduo branco estava mesmo muito sério. E o Smokey agarrou-me o braço e disse, “Eu já lhe mostro como se trata uma cabra destas. Olhe para isto!” e esmagou o cigarro aceso na minha pele e eu dei um grito.

 

Foi como se uma bomba tivesse rebentado ou coisa assim. O indivíduo branco, que era maior do que o Smokey, agarrou-o da cadeira do bar e atirouo ao chão... na verdade atirou-o para o meio de umas mesas, tal como se vê no cinema. O Smokey puxou da sua faca, mas o empregado de bar já tinha nas mãos um taco de basebol, por isso o Smokey teve de ficar quieto, enquanto aquele John Wayne me perguntava, “Queres ficar com ele?” e eu respondi, “Não.” E ele levou-me dali para fora e meteu-me num táxi com ele e o amigo dele, ignorando o Smokey, que ficou a gritar que havia de apanhá-lo e de matá-lo e a seguir havia de me matar a mim, e ignorando o amigo que estava a dizer-lhe, “Estás doido, Bram. Tens de te livrar desta mulher. Tu és maluco.”

 

Foi assim que Bram Serian e Gena Ray Johnson se conheceram.

 

Levou-me com ele para casa, para as suas águas-furtadas e deu-me um lugar para dormir. No dia seguinte comprou-me alguma roupa e deu-me comida. E começou a dizer que talvez conseguisse arranjar-me algum trabalho como modelo artístico.

 

Com certeza, pensei eu. Já ouvi essa conversa antes. Só que aquele tipo parecia ser diferente. Ainda não me tinha tocado. Não me tinha pedido nada.

 

O seu companheiro de quarto reclamava e queixava-se por eu estar ali, mas o Bram não lhe ligava. Passaram algumas semanas. Arranjou-me um pequeno trabalho. Eu só tinha de ficar sentada durante alguns dias, enquanto um indivíduo fazia desenhos do meu rosto. E pagavam-me para fazer aquilo.

 

Fiquei muito agradecida ao Bram. E fiquei... Parece-me que se pode dizer que tive subitamente uma grande paixão por ele. Agora acho muito engraçado, quando penso naquilo, porque finalmente eu tinha um indivíduo com quem queria fazer amor e ele agia como se eu fosse invisível ou coisa parecida.

 

Pensei em todo o tipo de coisas. Que talvez ele não me quisesse porque eu era negra, ou talvez não me quisesse porque sabia de todas as coisas horríveis que eu tinha feito com outros indivíduos. Cheguei a sentir-me mesmo frustrada, mesmo desapontada comigo própria, e ele encontrou-me a chorar, e acabei por ter com ele uma daquelas conversas em que revelamos tudo o que nos vai no íntimo. Verificou-se que ele era muito ingénuo e não suspeitava minimamente que eu tinha sido uma prostituta. Apenas pensava que o Smokey tinha sido um péssimo namorado.

 

Depois daquilo, tudo mudou. De repente ele ficou tão apaixonado por mim que mal conseguia manter as calças vestidas. Queria ouvir histórias de coisas que eu tinha feito antes... coisas que tinha sido obrigada a fazer... e ficava mesmo muito excitado com aquelas histórias.

 

Tinge dizia ele, “finge que eu sou um joãozinho e que estás furiosa comigo. Que estás a castigar-me enquanto o fazemos.”

 

De qualquer forma... está a ver o filme.

 

Ele apontou ao colega de quarto a porta de saída e eu fui para ficar. O Bram arranjou-me mais trabalho como modelo, e passado pouco tempo comecei a arranjar trabalho sozinha.

 

Vivemos juntos durante muito tempo. Esforcei-me muito por ser respeitável e quanto mais respeitável ficava menos ele se interessava por mim. Mas foi sempre bom para mim, sempre generoso. Como se sentisse que tinha a obrigação de tomar conta de mim, mesmo depois de ter perdido todo o desejo por mim.

 

Andava sempre envolvido com outras mulheres. Não era do tipo de se manter fiel. Nem sequer fingia que era. A maior parte das vezes era com prostitutas, ou com mulheres como aquela cabra agente, Edie Norton, que no íntimo eram prostitutas. Mas nunca me senti ameaçada. A única coisa de que alguma vez senti ciúmes, foi da sua arte.

 

Depois, de repente ficou muito estranho e reservado e foi comprar aquela quinta. Deu-me a conhecer aquilo repentinamente, como uma completa surpresa, quando um dia me disse simplesmente que ia passar a ficar muito tempo na sua quinta.

 

“Qual quinta?” perguntei-lhe.

 

“A casa que comprei no norte do estado disse ele. “Estou a transformar o celeiro num estúdio. Tenho lá o meu primo a ajudar-me.”

 

Caí completamente das nuvens, porque o Bram nunca tinha feito sequer menção de que gostava do campo. E nunca tinha dito nada sobre a sua família nem sobre ter um primo. Depois disso ficava fora muitas vezes e nunca me convidava para o acompanhar e comecei a ficar mesmo com ciúmes da quinta e também do primo.

 

Depois ficou famoso. Bingo. Tudo mudou. Não sei se ele tinha sempre sentido aquele temor ao longo do tempo, ou se o facto de ficar famoso provocou nele aquelas mudanças. Mas a verdade é que ele mudou completamente. Aquele seu pequeno sinal característico de paranóia ficou anormal e começou a desconfiar de toda a gente e de tudo. Pensava que o telefone estava sob escuta e achava que havia pessoas completamente estranhas que estavam a fazer insinuações sobre ele. Achava que estava constantemente a ser seguido. Imaginava que via agentes do FBI escondidos por todos os cantos.

 

Sempre que era obrigado a ir ao médico ou ao dentista, inventava um novo nome para usar e nunca ia ao mesmo mais do que umas poucas de vezes. E não era só a paranóia. Tornou-se muito manipulador. Eu era como um

jogo para ele.

 

Tivemos aquela explosão de uma discussão e eu disse-lhe que não entrava nos seus jogos, portanto era melhor ele não se meter comigo, e ele riu-se. Disse-me que achava fascinante tentar controlar as pessoas ou manipular o seu comportamento... sem elas se aperceberem do que estava a acontecer... porque o resultado era como a arte. Porque quando trabalhava com a mente das pessoas os resultados eram tão imprevisíveis e criativos e compensadores como a arte.

 

Para mim bastou. Comecei a ficar muito desgostosa com ele e estava disposta a terminar a nossa relação. Depois, de repente disse que precisava da minha ajuda.

 

Aquilo foi um choque. Bram Serian nunca precisou da ajuda de ninguém. Disse que eu era a única mulher em quem podia confiar. O que tornou aquilo um choque ainda maior... que ele confiava em mim. E fiquei muito sensibilizada e eu também estava muito em dívida para com ele, por isso disse-lhe que era evidente que ia ajudá-lo.

 

Ele ficou com um ar muito misterioso, mas disse-me que fizesse as malas para sair por uns dias, porque ia levar-me para a sua quinta.

 

Meu Deus... Ainda me lembro de ter saído do carro e de ver aquela pequenina coisa esquelética a espreitar-me por baixo da varanda de madeira, como se fosse um cão da rua ou coisa parecida. Dei um grito quando a vi e ela fugiu e o Bram ficou furioso comigo.

 

“Que espécie de mãe é que tu vais ser?” disse ele, e eu disse-lhe que não tencionava ser espécie nenhuma de mãe, a não ser que fosse do meu próprio bebé.

 

Então mandou-me sentar e disse-me que tinha andado a tratar de levar para casa uma órfã da Guerra do Vietname. Uma criança filha de um soldado morto. E tinha-a ali, onde tentava tomar conta dela, mas nada corria bem e precisava do toque de uma mulher.

 

Fiquei fula. Estava furiosa! Fiquei como se ele me tivesse enganado e não queria saber de cuidar maternalmente de uma pessoa perdida e disse-lhe isso mesmo. Mas ele estava determinado, por isso instalei-me ali para passar uns dias no campo. Algum tempo depois estava sentada lá fora na varanda e vi a miúda a sair sorrateiramente de casa e o Bram saiu a correr a apanhá-la. Era o que ele tinha de fazer... ir atrás dela e apanhá-la como se fosse um daqueles cães teimosos que fogem de casa cada vez que a porta se abre. Ela não resistiu nem barafustou ou coisa assim e ele não usou mais força do que a necessária para a segurar. Ela não parecia violenta... estava apenas descontrolada.

 

Ele trouxe-a de volta e deu-lhe umas palmadas mesmo à minha frente e foi muito desagradável. O cabelo dela estava todo desgrenhado e ela estava toda suja e as suas roupas eram autênticos trapos. Mal podia acreditar! Ela parecia uma figura como as que se vêem nos anúncios de apoio às crianças da índia ou do México ou de outro país qualquer.

 

Tu não podes ter uma criança nestas condições!” disse-lhe eu, mas ele disse que ela não sabia cuidar de si e ele não se sentia bem a tentar obrigar uma rapariguinha a despir-se e a tomar banho.

 

Bem, eu não podia ficar ali sentada, por isso concordei que ia tentar que ela ficasse asseada e metê-la no caminho certo... mas apenas por uns dias. Depois queria voltar para Manhattan. O Bram concordou. A miúda estava só a olhar para nós. Não disse uma palavra. Não se sabia ao certo quanto ela conseguia compreender ou se porventura era atrasada mental ou apenas atrasada no seu desenvolvimento. Ele disse-me que ela nunca tinha dito uma única palavra, mas tinha-a visto mesmo muito zangada e sabia que era capaz de fazer barulho.

 

A primeira coisa que fiz foi levá-la para a casa de banho e metê-la na banheira. Lavei-lhe a cabeça. O emaranhado do cabelo estava de tal maneira mau que tive de lho cortar curtinho. Ela não opôs resistência, mas pareceu-me que não estava a gostar do que eu lhe estava a fazer. Mostrei-lhe como tudo funcionava e procurei fazê-la compreender que ela devia tomar banho sozinha. Não me deu qualquer sinal de que estava a perceber.

 

Não havia roupa decente para ela, por isso vesti-lhe uma T-shirt das minhas. Uma T-shirt branca com uma gravura pintada na frente. Era bastante comprida, de maneira que lhe ficava como se fosse um vestido, e ela até ficou bonita ali de pé a admirar-se como se achasse que tinha um vestido de baile. Levei-a até ao espelho que estava no lado de trás da porta da casa de banho para ela se mirar. O que a ocupou durante uns bons quinze minutos. Mirou-se toda e observou o cabelo curto e passou com a mão para um lado e para o outro pela gravura pintada na T-shirt.

 

Disse ao Bram que ia levá-la à cidade comprar-lhe roupa e ele ficou em pânico. Primeiro tinha medo que ela pudesse fugir na cidade. Depois disse que Stoatsberg era uma cidade pequena e as pessoas eram mexeriqueiras e ela não estava legalmente no país e que tínhamos de ter muito cuidado, senão as autoridades levavam-na e deportavam-na de volta para o Vietname, onde seria torturada e executada.

 

Naquela altura já nada me chocava, por isso disse-lhe que estava bem. Que ia fazer o melhor que podia para a medir e depois iria sozinha comprar-lhe umas coisas.

 

Bem, mesmo assim ele ficou nervoso. Disse que eu ia dar nas vistas naquela cidade pequena e toda a gente ia ver-me a conduzir o carro dele e iam relacionar-me com ele e depois iam ver-me a comprar roupas de criança e iam andar a fazer perguntas e ele não queria dar azo a essas coisas. Acabei por ter de ir de carro até White Plains para fazer compras para ela, e mesmo assim o Bram continuou a chamar-me a atenção para que me certificasse que não era seguida no caminho de regresso.

 

Arranjei-lhe a cama e meti-lhe as roupas na cómoda. Queria mostrar-lhas, mas ela recusou-se a vê-las, e quando tentei tirar-lhe a minha T-shirt ela fugiu a esconder-se. E eu pensei, muito bem, e continuei o meu trabalho, a lavar os lençóis dela. Naquela noite encontrei-a a dormir em cima de um monte de toalhas na sala da lavandaria, peguei nela e levei-a de volta para o quarto e meti-a na cama. Ela acordou e ficou assustada e tive de a segurar na cama. Por fim ficou calma e eu fiquei ali sentada à beira da sua cama durante alguns minutos e veio-me à cabeça uma antiga canção de embalar, por isso cantei-lha, e sabe uma coisa... ela voltou a adormecer.

 

Cheguei à conclusão que afinal o Bram já tinha ali aquela criança havia seis meses! Tinha comprado roupas para ela quando a trouxe para ali e depois tinha ficado à espera que ela tratasse da sua própria vida e tomasse conta de si própria, como se fosse uma adulta em miniatura. E não conseguia compreender que ela não fizesse como ele esperava.

 

Dediquei-lhe muita atenção na manhã seguinte, mas parecia que aquilo só fazia piorar as suas atitudes. Ela desviava o olhar de mim quando eu estava a falar e mal eu voltava as costas ela fugia. Por isso resolvi ignorá-la. Descascava uma laranja e pousava-a em cima da mesa e afastava-me... coisas assim. Quando estava a fazer a limpeza, fingia que não reparava que ela estava a observar-me. Naquela noite tive de a levar novamente para a cama e ficar a guardá-la. Também voltei a cantar para ela, pensando que não podia fazer mal nenhum.

 

Na terceira manhã estava a preparar-me para me ir embora e estava decidida a recuperar a minha T-shirt e a vestir-lhe roupa própria para brincar. Depois de tomar o meu pequeno almoço e de ela ter comido a torrada e a maçã que lhe tinha preparado, levei-a para o quarto e tirei-lhe à força a minha T-- shirt. Foi como se lhe tivesse morto o seu animal de estimação preferido ou coisa parecida. Enroscou-se toda a um canto, com as mãos a segurar o estômago e a gemer. Foi a primeira vez que lhe ouvi um som.

 

Então fiquei furiosa e atirei-lhe a T-shirt. Disse-lhe que podia ficar com o raio daquela coisa, mas não podia usá-la todos os dias. Tinha de usar também as outras roupas. Para minha surpresa, ela agarrou naquela T-shirt, segurando-a mesmo junto a si, como se fosse alguma coisa preciosa e depois levantou-se do chão e aproximou-se de mim e deixou que a vestisse. Ela sabia o que eu estava a dizer! Ela compreendia.

 

Depois daquilo, ela tratava a minha T-shirt como se fosse um animal embalsamado, uma manta de bebé, levando-a para todo o lado e acariciando-a, dormindo com ela encostada à almofada.

 

Senti-me um pouco culpada quando me fui embora naquele dia, mas era evidente que não ia permitir que o Bram me convencesse a ficar a viver naquele chiqueiro e a fazer de educadora de infância para ele.

 

A partir de então ia lá com muita frequência, e passava lá vários dias por semana. Conheci o primo esquisito e comecei a pensar que o carácter cada vez mais estranho do Bram talvez fosse genético. O Bram andava envolvido naquela altura na construção do seu estúdio e tanto ele como o Al trabalhavam nele dia e noite.

 

O Bram e eu tínhamos terminado definitivamente como casal naquela altura. Eu ainda estava a viver nas águas-furtadas, mas era mais como modelo particular do que como uma antiga amante. Comecei a encontrar-me com outros homens. E apaixonei-me por um indivíduo. Mas continuei a ir lá para ver a Lenore. Não podia virar-lhe as costas sem mais nem menos.

 

Passei a agir mesmo muito dissimuladamente. O Bram saiu da cidade durante uma semana, e enquanto esteve fora, levei a Lenore a consultar um médico e ao dentista para lhe tratar dos dentes. Recomendei-lhe que nunca dissesse ao Bram, mas não havia grande perigo, pois ela ainda não falava.

 

Comunicava com as mãos e por meio de gestos, mas não falava. O médico a quem a levei disse que não havia nenhum problema físico e que ela devia ir a uma consulta de um psiquiatra infantil... Mas claro que aquilo estava fora de questão. O Bram nunca permitiria tal coisa.

 

O que não quer dizer que não se preocupasse com ela. Preocupava-se de uma maneira estranha. Estava muito interessado com a ideia de ela... quase espantado com ela.

 

Continuámos assim durante muito tempo. O estúdio ficou pronto e o Bram começou a tentar consertar a casa. Claro que a Lenore não podia ir à escola, porque então as pessoas iam descobrir tudo sobre ela, por isso tentei ensinar-lhe coisas. Ensinei-a a costurar e a dançar. E levei-lhe vídeos. Manifestações da natureza e filmes de história e de desenhos animados da Disney. O Bram detestava ver televisão, mas tinha um daqueles equipamentos com um gravador de vídeo ligado a um monitor. Era um brinquedo muito caro naquela altura, mas o Bram adorava brinquedos.

 

Agora sei que devia tê-la ensinado também a ler, mas naquela altura não me pareceu que fosse importante. Quero dizer, a pobre criança nem sequer conseguia falar. Nunca pensei que viesse a ser normal. E, tenho de admitir... eu própria não lia muito.

 

O meu caso amoroso intensificou-se e durante algum tempo vivi no meu pequeno mundo de fantasia, pensando que um dia havia de ir a caminhar pelo corredor central da igreja, vestida de branco e ir até ao fim. As minhas visitas à quinta foram sendo cada vez mais espaçadas. A Lenore estava a ficar crescida. Calculávamos que devia estar com quase doze anos ou coisa parecida. Eu tinha-me convencido de que ela já não precisava tanto de mim porque já era mais crescida e porque tinha ficado muito apegada ao Bram. Simplesmente adorava-o. Não importava que ele a ignorasse, ela ficava a olhar para ele como se fosse uma pequena boneca. Então um dia tocou o telefone e era o Bram e disse-me, “Acho que a miúda tem saudades tuas. Arrastou-me para o telefone e fez uma pequena charada para me convencer a telefonar-te. Queres dizer-lhe algumas palavras?”

 

Eu disse que sim, sentindo-me muito culpada por não ter ido vê-la durante muito tempo, e ouvi o ruído do telefone a ser passado para as mãos dela, à espera de começar a falar só quando soubesse que era ela quem estava ao auscultador. Então de repente aquela pequena voz disse com uma pronúncia engraçada, “Geneva, vem ver-me.”

 

A partir de então ela começou a falar. No princípio não falava muito bem. Mas esforçava-se. E ajudei-a a praticar a pronúncia. E ela praticava como se a sua vida dependesse disso, e quando eu não estava lá, ela telefonava-me para as águas-furtadas para praticar comigo ao telefone. Não tinha muitas oportunidades de ouvir as pessoas a falar. O Bram nunca tinha muitas coisas para lhe dizer e o primo débil mental não falava com ninguém, e como ela era um grande segredo, o Bram mantinha-a escondida sempre que tinha pessoas lá em casa. Tinha-a muito assustada, dizendo-lhe a toda a hora que os homens maus iam aparecer para a levar, se alguém descobrisse que estava ali. Naquela altura já ele tinha reservado uma pequena área só para ela, com um quarto e uma casa de banho, de maneira que ela podia fechar-se e ficar escondida sempre que ia lá o serviço de limpeza ou quando tinha visitas.

 

Eu achava que aquilo era um exagero, mas não estava em condições de poder fazer fosse o que fosse.

 

Cerca de um ano mais tarde, logo depois de a Lenore começar a ser menstruada e de eu lhe explicar os factos da vida, fiquei grávida. Pensei muito e por muito tempo e decidi que se queria mesmo ter um bebé na minha vida, então devia provavelmente tomar uma decisão e aceitar aquele. E decidi-me, o meu Senhor Maravilhoso fez as malas e pôs-se a andar. Disse que eu não era o tipo de mulher com quem ele queria assentar.

 

Bem, aquilo destruiu o mundo de fantasia em que eu vivia e compreendi que nunca ia usar o vestido branco, mas decidi que, graças a Deus, ia ter a minha criança e constituir a minha própria família. E ia criar aquela criança da maneira mais saudável possível.

 

Disse ao Bram que ia sair das águas-furtadas e que ia viver para os subúrbios, e expliquei-lhe porquê. Ele perguntou-me como pensava que ia sustentar a minha pequena família normal e eu confessei que não sabia bem como.

 

Em poucos dias ele tinha resolvido toda a minha vida. E até tinha feito tudo legalmente. Eu ia ter uma casa e um cheque dele todos os meses para o resto da minha vida, se concordasse em continuar a ir ver a Lenore periodicamente e nunca falar dele, nem da minha relação com ele, nem de nenhum dos seus segredos com ninguém.

 

Eu aceitei o acordo.

 

Enquanto a minha filha era ainda bebé, levava-a comigo sempre que fazia uma visita à Arcádia. A Lenore era louca por ela. Mas depois, quando ficou mais crescida, deixei de a levar porque não queria que ela tivesse nenhumas recordações daquela parte da minha vida. Queria que ela crescesse pensando que eu era uma mãe normal que sempre tinha vivido nos subúrbios.

 

A Lenore tinha saudades dela, mas eu tinha de fazer uma escolha. Tinha de colocar o bem-estar da minha filha à frente da Lenore. Naquela altura a Lenore já tinha quinze anos e compreendia tudo. Tinha aquela maneira de olhar directamente para as pessoas e de ver para além de todas as lérias que ouvisse.

 

O Bram tinha decidido deixá-la ficar fora do quarto quando iam pessoas lá a casa e divertia-se a inventar histórias à toa sobre quem ela era. A Lenore ficava confundida com tudo aquilo. Era muito curiosa em relação às outras pessoas, mas não sabia como devia agir na presença de pessoas desconhecidas. O Bram não se preocupava com isso, pois ficava entusiasmado com o efeito que produzia entre os seus amigos.

 

Tinha quinze anos, a caminho dos dezasseis, quando me telefonou num dia à noite e me disse que o Bram a tinha levado numa longa viagem e se tinham casado. Disse aquilo como se fosse a coisa mais natural do mundo e eu quase tive um ataque cardíaco. Deixei tudo e corri imediatamente para a Arcádia.

 

Quando lá cheguei e critiquei severamente o Bram, ele tratou-me como se eu estivesse maluca. Não parava de dizer que eu estava a reagir de forma anormal. Ficou zangado com a Lenore por me ter contado e ordenou-lhe que fosse para o quarto como castigo.

 

“O que é que tu estás a pensar, Bram?” gritei-lhe eu. “Tu não lhe tocaste, pois não? Eu mato-te se lhe tiveres tocado!”

 

“Tira daí essa ideia, Geneva. É evidente que não lhe toquei. Essa ideia é-me absolutamente repugnante.”

 

“Então por que fizeste uma coisa dessas?”

 

Se fores capaz de controlar a tua histeria, eu posso explicar-te. É muito simples. Precisava de ter uma relação legal com a Lenore. Uma maneira de explicar o motivo por que ela vive comigo. Não tinha possibilidade de a adoptar, por isso tive esta ideia do casamento. É realmente perfeita, porque também a vai proteger dos homens. Os homens já começam a lançar-lhe olhares furtivos, sabes.”

 

Tentei dizer-lhe que estava completamente errado e que aquilo era muito prejudicial para a Lenore. Recusou-se a ouvir tudo o que eu lhe dizia. Disse que ia tudo funcionar na perfeição e que um dia, quando a Lenore fosse mais velha e pudesse tomar conta de si própria, divorciavam-se e ele concedia-lhe uma boa pensão e então ela podia viver a sua vida.

 

Obrigou-me a partir sem ver a Lenore. Para a castigar. O que é que eu podia fazer? Fui para casa tratar da minha vida e da minha filha e agradeci a Deus por a minha filha não ter quaisquer ligações com Bram Serian. E acendi as minhas velas e rezei para que a Lenore de alguma maneira sobrevivesse.

 

Depois daquilo, a Lenore foi-se afastando gradualmente de mim. Tenho a certeza que em parte foi apenas pelo facto de ela ser uma adolescente. Mas havia outras coisas... coisas que não compreendi naquela altura, mas que acabei por compreender mais tarde. A Lenore estava a ficar uma mulher e as suas emoções estavam muito confusas. Ali estava aquele homem que ela tinha adorado durante muitos anos e agora, de repente estava casada com ele. Ele apresentava-a às outras pessoas como sendo a sua mulher.

 

Que Deus nos salve a todas as mulheres, porque bem o precisamos. E a Lenore não era excepção. Levei-lhe alguns vídeos e ela tinha a cabeça cheia de fantasias como A Bela Adormecida e A Cinderela e toda essa trampa dos contos de fadas, tal como muitas outras raparigas. E no meio de toda a sua confusão, transformou o Bram da imagem de pai no seu Príncipe Encantado.

 

Meu Deus, mas que confusão aquela. Ela tornou-se muito ciumenta e possessiva e eu era para ela uma ameaça, porque não concordava nada com todo aquele esquema. E sentiu-se frustrada, porque queria que o Bram começasse a tratá-la como se fosse a namorada dele e isso ele não queria de modo nenhum.

 

Passaram alguns anos e ela tornou-se uma mulher atraente para os homens. E o Bram apercebeu-se de repente que tinha nas mãos uma mulher realmente viva e telefonou-me em pânico, porque tinha acabado de lhe ocorrer que ela podia vir a ter uma paixão súbita por homens que ele lavava lá a casa e que podia começar a ter relações sexuais. Estava mesmo inquieto.

 

Eu disse-lhe que devia ter pensado antes nessa hipótese. E sugeri-lhe que fizesse agora o divórcio como tinha pensado e mandasse a Lenore viver comigo. Disse-me que ia pensar nisso. Mas passaram meses sem que ouvisse uma palavra dele.

 

Procurei falar com a Lenore ao telefone, mas ela era tão fixe comigo que não consegui dizer-lhe nada do que se estava a passar. Fui visitá-la mas também não fiquei a saber mais nada.

 

O Bram telefonou-me a dizer que eu estava a perturbar a Lenore e que já era tempo de nos desligarmos uma da outra. Fiquei magoada, mas concordei que me ia manter afastada. Alguns meses mais tarde, não pude aguentar mais e tentei telefonar à Lenore e soube que o número tinha sido alterado e não estava na lista.

 

Então virei as costas. Agradeci a Deus por ter uma vida normal e uma filha maravilhosa e desliguei-me de Bram Serian e do meu passado desagradável. E da Lenore também. Afastei a minha culpa e a minha cobardia, mas lembrava-me sempre da Lenore quando acendia as minhas velas e dizia as minhas orações.

 

E então um dia peguei no jornal e li sobre a morte do Bram e sobre o facto de a Lenore ser acusada de homicídio. E meti-me no carro e fui à Arcádia decidida a ficar à espera ao portão até conseguir vê-la.

 

E agora estou a tentar preparar as coisas para a deixar em paz, estou a tentar fazer com que ela não volte a ficar magoada.

 

As coisas que ela me contou dos anos que esteve com ele... e ainda pior... as coisas de que ela não foi capaz de falar, fazem-me ter pena de não ter sido eu própria a matar aquele homem.

 

E agora aqui tem, Senhor Escritor de Livros. E ela sabe que não pode confiar em si e sabe que não pode acreditar em si, mas você continua a importuná-la. E ela não aguenta mais que a magoem. Não é suficientemente forte para aguentar as situações por que você vai fazê-la passar. Por isso imploro-lhe. Se é realmente tão honesto como parece ser... então deixe-a em paz.

 

Owen andava desvairado pelo apartamento, atirando com as coisas para dentro de caixas. Juntando tudo o que era dele. A história de Geneva Johnson tinha respondido às perguntas que a Lenore nunca lhe ia responder. Agora sabia como Bram Serian tinha descido muito baixo e agora compreendia os demónios e os fantasmas que controlavam as mudanças repentinas de carácter da Lenore.

 

Meteu tudo no carro alugado, enchendo a mala e o banco traseiro com todo o papel que tinha amontoado e com os livros, assim como todos os seus bens pessoais. Depois saiu de Manhattan.

 

Já estava escuro quando parou junto do portão da Arcádia. Lenore tinha-o obrigado a devolver a chave, por isso não podia entrar, mas estava decidido a ficar a carregar naquele botão do intercomunicador até ela falar com ele.

 

Quem é? perguntou ela.

 

Sou o Owen. Trago tudo o que tenho no carro e gostava de ficar aqui. Se não me queres de outra maneira, então aceita-me como um amigo. Preciso de estar contigo, Lenore. E preciso de saber que não ficas aqui sozinha todas as noites durante o julgamento.

 

Não se ouviu qualquer resposta no intercomunicador. Por instantes pensou que ela ia simplesmente ignorá-lo. Depois, devagar, o portão abriu-se.

 

Segunda-feira Décimo quarto dia de O Povo contra Lenore Serian. Lenore pediu que Owen ficasse com a equipa da defesa no hotel e depois se sentasse com Jacowitz, Volpe e Riley no banco imediatamente atrás da mesa da defesa. A ideia desagradou a Rossner, mas acabou por concordar com ela.

 

Mas não lhe toca, Rossner advertiu Owen. Nem lhe fala ao ouvido. Nada de chamar a atenção quando estamos em público, e comporte-se como se fosse o raio de uma esfinge enquanto estivermos no tribunal. Comporte-se como um elemento da equipa. A última coisa que precisamos é que o júri chegue a pensar que ela tem um namorado a consolá-la.

 

Por isso Owen procurou apresentar um aspecto muito sério e profissional enquanto estava ali sentado à espera que o júri fosse chamado. Teve um vislumbre da cara da Holly e pensou para consigo com uma sensação de ironia sinistra, que a expressão dela parecia a de uma assassina. Que ela merecia ““ mais ser castigada do que a Lenore.

 

Queria levantar-se e contar ao júri toda a verdade nua e crua, para que eles compreendessem o que tinha sido a vida de Lenore e tivessem compaixão dela e demonstrassem clemência por ela. Para que a absolvessem e lhe dessem uma segunda oportunidade. Uma primeira oportunidade na realidade, pois ela ainda não tinha tido nenhuma.

 

No hotel, naquela manhã, tinha falado com Rossner em particular e tinhalhe dito que havia muito mais a dizer do que alguém sabia. Que o Serian tinha casado com ela quando tinha apenas quinze anos e a legalidade da união era duvidosa. E que o Serian nunca tivera a intenção de ser para ela um verdadeiro marido.

 

Rossner tinha levantado imediatamente a mão, detendo Owen antes que pudesse dizer mais alguma coisa sem pensar.

 

Para que está a contar-me esse tipo de coisas? tinha-lhe perguntado Rossner incrédulo. Já se apercebeu que isso a faz parecer muito mais culpada? Que isso lhe dá um motivo muito mais forte?

 

O oficial de diligências chamou a sala à ordem. O Povo contra Lenore Serian! gritou ele mais uma vez e Owen sentiu um nó apertado no estômago.

 

Com um ar solene de confiança, Rossner dirigiu-se para o lugar do juiz e apresentou ao juiz documentos em papel azul. Era uma moção de dissolução. O juiz examinou a moção, depois deu início a uma discussão que envolveu tanto Brown como Rossner. Owen ficou surpreendido que a discussão fosse conduzida abertamente e não em privado.

 

A discussão rapidamente se deteriorou num debate com Rossner indignado e Brown a repetir afirmações que conseguiam ser interpeladoras e justificativas ao mesmo tempo.

 

O Povo demonstrou claramente que se trata de um caso legalmente suficiente, Meritíssimo. Foram demonstrações de motivo, oportunidade...

 

Sim, Dr. Brown. Obrigado. O juiz chupou as bochechas e tirou os óculos para ler. A sua fisionomia estava oculta pelas pregas da toga. Moção rejeitada. O Povo apresentou um caso legalmente suficiente.

 

Owen apoiou-se contra o encosto do banco de madeira. Jacowitz tinha dito que a moção provavelmente não ia dar resultado, mas mesmo assim... Owen tinha tido esperanças.

 

Que entre o júri! disse alto um oficial de diligências. Era isso. O início da defesa de Rossner.

 

A primeira testemunha pareceu tão frustrantemente superficial a Owen que só lhe apetecia gritar, Vá em frente com isso! Mostre-lhes alguma coisa importante! Mas ele ficou ali sentado com todo um ar de profissional, tomando notas enquanto ouvia Charlie Rossner a fazer perguntas a um empregado de uma empresa de fechaduras sobre as diferenças subtis entre chaves feitas numa fábrica e cópias feitas numa loja de ferragens. Depois obrigou o homem a fazer um relatório longo e aborrecido sobre como tinha inspeccionado todas as chaves que estavam nas argolas dependuradas junto da porta das traseiras da casa dos Serians e verificara que havia pelo menos sete cópias da chave do estúdio de Serian dependuradas mesmo ao lado da porta das traseiras, às quais qualquer pessoa podia ter acesso.

 

Brown prescindiu do contra-interrogatório e Rossner chamou a sua próxima testemunha, um homem pequeno e engelhado chamado Frangos, que tinha uma daquelas lojas de esquina onde há de tudo, em Manhattan, perto das águas-furtadas de Serian.

 

O senhor Frangos contou que Bram Serian tinha sido um bom cliente durante quase vinte anos e que uma das coisas que ele fazia com frequência era mandar fazer cópias das suas chaves. Também contou que Serian lhe tinha dito que era perigoso mandar fazer chaves na pequena cidade perto da Arcádia, porque lá estava sempre a ser observado e porque o homem das ferragens de lá podia fazer cópias extra para os inimigos do Bram. Brown tentou fazer o contra-interrogatório àquela testemunha mas não conseguiu nada.

 

Em seguida Rossner chamou um especialista em acelerantes para falar sobre o perigo que havia em fumar junto de petróleo de candeeiro derramado ou de diluente de tinta. Brown fez um contra-interrogatório desinteressante e a seguir o Juiz Pulaski declarou que eram horas de ir almoçar.

 

Está um dia maravilhoso lá fora, disse ele ao júri. Eu sugeria-lhes que fossem dar um passeio ao sol depois de almoçarem. Todos os jurados acenaram com a cabeça e sorriram e Owen tinha vontade de gritar que aquilo não era um piquenique. Aquilo não era um jogo. Estava em causa a vida de uma mulher.

 

Foi entregue no hotel uma pizza para o almoço deles. Havia alguma tensão na disposição de todos eles, mas perfeitamente controlada. Lenore estava calada. Depois de acabarem de almoçar, Rossner levou Lenore para o quarto para uma conversa em privado. Owen andou de um lado para o outro com passos nervosos, perguntando-se qual seria o tema da conversa. Perguntando-se por que Rossner não estava a fazer mais. Por que é que as suas testemunhas eram tão desinteressantes.

 

Riley estava a tirar uma soneca num sofá. Volpe estava a fazer o jogo de paciências a um canto. Apenas Jacoowitz, que estava a trabalhar com um monte de folhas, parecia estar a fazer alguma coisa de produtivo.

 

É melhor você poupar-se, preveniu-o Jacowitz. Temos ainda pela frente alguns dias de julgamento e a seguir temos de passar por um sem fim de deliberações.

 

Owen parou de caminhar e olhou para ele. Alguns dias? Jacowitz puxou os seus óculos de aros metálicos para cima do nariz e encolheu os ombros. Mais coisa, menos coisa... sim.

 

Meu Deus, Paul, quer dizer que o Rossner não tem mais do que isso, testemunhas para apenas alguns dias? O Brown passou doze dias a fazer tudo para que ela parecesse ser culpada e agora o Rossner vai ter apenas uns dias para a defender?

 

Tenha calma, homem. Tudo isto é um procedimento normal num caso como este. A maior parte do trabalho da defesa já foi feito nos contra-interrogatórios às testemunhas de acusação. Agora estamos apenas a fazer o reforço do que já foi demonstrado. ^

 

Owen deixou-se cair na cadeira ao lado de Paul. Não há mais nada que possamos fazer? Qualquer coisa importante e conclusiva?

 

Jacowitz olhou para Owen com uma expressão que combinava compreensão e desapontamento. Isto não é o Perry Mason, Owen. Ninguém vai sucumbir na barra das testemunhas e confessar. Ninguém vai saltar da secção dos espectadores a gritar, Foi a governanta que o matou! Estamos no mundo real e no sistema legal autêntico, e o mais que podemos esperar é que consigamos introduzir tantas dúvidas nas mentes dos jurados que eles não consigam chegar a um consenso para a condenar.

 

Tome, Jacowitz entregou-lhe um monte de papéis. Ajude-me a examinar esta transcrição e procurar as declarações sobre o comportamento da Lenore na noite do incêndio. Sublinhe tudo o que encontrar com esse marcador verde. E escute... o melhor que pode fazer pela Lenore neste momento é ficar calmo. Ela já tem porcaria que chegue a cair-lhe em cima para agora ter ainda de se preocupar consigo a descontrolar-se.

 

Passaram vinte minutos e por fim Rossner saiu do quarto com um ar agitado. Não consigo nada dela, disse ele ao Owen. Vá lá você se quiser.

 

O que aconteceu? O que se passa? perguntou Owen imediatamente.

 

Não há nada de novo que esteja mal, disse Rossner. Ela está


simplesmente a ser tão inflexível e intratável como estava no princípio. É só isso.

 

Como?

 

Eu queria chamá-la a depor mas ela simplesmente recusa-se. Mas isso é uma prerrogativa a que ela tem direito. A lei diz que a arguida não é obrigada a prestar declarações. Mas eu acho que ela devia fazê-lo. Só que ela diz que não. Rossner levantou as mãos e fez uma careta de resignação. Desde o princípio que ela se recusa a cooperar. Depois fez aquela proeza para me impedir de fazer um interrogatório cerrado àquela mulher chamada Johnson quando esteve no lugar das testemunhas... sem nunca dar qualquer explicação. Mas, eh pá, ela é que manda.

 

Owen entrou no quarto e encontrou a Lenore toda enroscada na cama. Sentou-se à beira da cama e afagou-lhe o cabelo. O Rossner esteve a tornarte a vida difícil? perguntou ele docilmente.

 

Ela acenou com a cabeça.

 

Ele está apenas a tentar ganhar esta coisa para ti. Está a tentar libertar-te. Compreendo que não o tivesses deixado atirar-se à Geneva, mas isto é diferente. O Rossner acha que devias ir depor. E quem é que podia fazer-te mal por ires testemunhar?

 

Ela colocou-se na posição de sentada, de tal modo que os seus olhos ficaram à mesma altura dos dele. Não te atrevas, Owen. Tenho as minhas razões. Por favor, não me questiones.

 

Mas isto é de doidos, Lenore. Tens de falar com o Rossner e ser honesta com ele. Meu Deus, se pudesses dizer-lhe simplesmente que não sabes ler nem escrever... Ele podia fazer cair imediatamente o argumento do candeeiro na lista de compras! E se lhe contasses...

 

Owen... Trata-se da minha vida. Do meu julgamento. Por favor...

 

Ele envolveu-a nos braços e apertou-a contra o peito, apoiando o queixo no cabelo dela e rezou a todos os deuses que tomassem conta dela: aos deuses e fantasmas da Tailândia, ao deus das velas estranhas e ao Deus que o Irmão James Collier tinha perdido lá na Arcádia. Rezou para que fosse salva.

 

Depois do almoço Rossner chamou Stanley Cantor à barra das testemunhas. Stanley, o homem da distribuição que mantinha a Arcádia fornecida de tudo, desde morangos até produtos de limpeza da casa de banho e preservativos.

 

Stanley era um homem baixo e bem constituído, com o pouco cabelo que tinha penteado sobre a cabeça lustrosa. Tinha os olhos brilhantes e a rapidez de alguém que tinha nascido para um optimismo enérgico.

 

Rossner obrigou-o a explicar exactamente qual era o seu negócio e Stanley descreveu-se como sendo um fornecedor extraordinário, um abastecedor de coisas raras, um homem cujo lema de negócio era Deixem que o Stanley se preocupe com isso.

 

Durante quanto tempo fez entregas na Arcádia, senhor Cantor?

 

Comecei há doze anos e ainda continuo a fazer entregas de produtos.

 

Quantas vezes por semana ia à Arcádia enquanto o Bram estava vivo?

 

Geralmente uma vez, às vezes duas ou três, conforme eles tinham muitas visitas ou não.

 

Durante doze anos a fazer essas visitas frequentes, chegou a conhecer Bram e Lenore Serian?

 

Com certeza. Eu sou um tipo extrovertido. Gosto de travar conhecimento com os meus clientes. O que também é bom para o negócio, pois assim posso prever o que eles poderão querer e fazer-lhes surpresas.

 

Qual era a sua opinião sobre Bram e Lenore Serian?

 

Ele era fundamentalmente um osso duro de roer. Uma pessoa insistente ao pormenor e muito exigente. Agora ela tem sido sempre precisamente o oposto. Nunca me diz se levei alguma coisa que ela não queria, porque não quer criar-me problemas ou ferir os meus sentimentos. Estou sempre a dizer-Lhe que devia falar comigo no caso de eu lhe levar alguma coisa de que ela não gosta. Mas ela não faz nada disso.

 

Lenore Serian alguma vez foi antipática com o senhor ou o desconsiderou?

 

Está a brincar? Nunca. Ela é mesmo um tipo de pessoa muito discreta, sabe. Não é muito conversadora. Mas era ela que insistia sempre comigo para que tomasse uma bebida quente nos dias frios ou uma bebida fresca nos dias quentes. E era ela que me perguntava pela minha família. O Bram nunca podia ser incomodado com pequenas coisas como isso. E aquela Natalie, a governanta... não era simpática para ninguém quando eu estava lá, a não ser que fosse alguém com quem ela quisesse namoriscar.

 

Protesto, Meritíssimo, gritou Brown num tom arrogante.

 

Indeferido. Continue, Dr. Rossner.

 

Rossner aclarou a garganta e sorriu para Stanley Cantor. Para além dos produtos para a casa e bens alimentares e géneros diversos, o senhor também leva objectos pessoais às pessoas, não leva?

 

Com certeza. Você precisa, Stanley leva.

 

Alguma vez lhe levou uma boneca?

 

Sim, levei. Ela encomendou-me uma boneca negra especial. Queria-a para a filha de uma amiga.

 

Alguma vez lhe perguntou se a filha da amiga tinha gostado da boneca?

 

Perguntei. E ela disse que tinha acontecido qualquer coisa e não pôde dar a boneca à rapariga. Perguntei-lhe se queria devolvê-la porque era uma boneca cara. Ela disse que não, que já tinha feito qualquer coisa com ela.

 

Ela disse-lhe que a tinha queimado?

 

Não! Ela queimou aquela boneca caríssima?

 

O juiz conteve um sorriso. Por favor, deixe o advogado fazer as perguntas, senhor Cantor.

 

Com certeza, Meritíssimo... senhor doutor juiz.

 

Ela disse-lhe mais alguma coisa sobre a boneca?

 

Agora que menciona isso, ela ficou um bocado perturbada quando lhe perguntei pela boneca. E ela continuou a dizer que não tinha pensado bem e que lamentava não me ter dado a boneca para uma das minhas filhas.

 

Houve algo esquisito que a Lenore lhe tivesse pedido para lhe levar? Stanley Cantor deu um riso abafado. Vou falar-lhe de coisas esquisitas!

 

Uma vez levei uma zebra bebé a uma pessoa. Doutra vez alguém pediu-me se podia arranjar-lhe alguma roupa interior do General Patton. E doutra vez...

 

Obrigado, senhor Cantor, por essas revelações, disse o juiz, permitindo-se dar um pequeno sorriso. Mas temos de continuar.

 

Com certeza. Com certeza, senhor doutor juiz... Meritíssimo.

 

Alguns dos pedidos da Lenore eram esquisitos?

 

Não. Não me recordo de nenhum pedido esquisito.

 

E as velas? O senhor não levava a Lenore Serian velas voodoo? Houve um suspiro colectivo na sala de audiências e os olhos de Spencer

 

Brown dilataram-se. Parecia que Rossner estava a difamar a sua própria cliente.

 

Velas voodoo? perguntou Stanley com um sorriso de descrença.

 

Velas em vasos de vidro que têm coisas escritas como Boa Sorte para Todos os Amigos?

 

Oh, essas velas... Com certeza, levava-lhas a toda a hora.

 

O senhor não as considerava velas voodoo?

 

Com os diabos... quero dizer, bolas! Não. Essas coisas são inofensivas. Há imensa gente que gosta delas. São feitas mesmo em Brooklyn, numa pequena fábrica familiar e eu vou lá buscá-las. É o mesmo lugar onde se fazem as velas sabáticas que levo à minha mulher. Voltou-se para o juiz. São para o sábado judeu, Meritíssimo.

 

O juiz acenou com a cabeça e levantou uma sobrancelha, mas os seus olhos reflectiam a diversão constante com Stanley Cantor.

 

A Lenore disse-lhe alguma vez por que gostava das velas ou por que eram importantes para ela?

 

Disse umas coisas. Uma vez disse que se tinha habituado a usá-las com uma amiga cuja mãe era originária das Caraíbas. Acho que lá são muito populares. Doutra vez, quando estávamos a discutir as inscrições que estavam disponíveis, ela disse que as velas faziam-na sentir-se como se estivesse a concentrar todos os seus pensamentos e as suas boas energias na direcção certa. Porém os seus olhos estão mal, sabe, e parece-me que ela se envergonha de usar óculos, porque tenho de lhe ler sempre as máximas quando lhas levo.

 

Mesmo à sua frente, Owen viu Lenore baixar os olhos e viu um rubor de vergonha percorrer-lhe as faces. Teve de se controlar e ficar sentado e não tentar confortá-la.

 

Alguma vez considerou aquelas velas más ou prejudiciais, senhor Cantor?

 

Está a brincar? Não são piores do que uma ferradura numa porta ou uma pata de coelho num porta-chaves ou um daqueles calendários que nos dão um motivo de reflexão para cada dia.

 

Rossner agradeceu a Stanley Cantor e voltou para a mesa da defesa. Brown colocou-se em posição com uma expressão céptica na cara.

 

Senhor Cantor, está a dizer que pensa que o voodoo é inofensivo? Stanley Cantor puxou a orelha enquanto pensava. Para lhe dizer a verdade, senhor advogado, eu não sei nada de voodoo.

 

Não tem uma opinião baseada na percepção popular?

 

Bem, eu gosto de ver filmes de terror. Os zombies e os lobisomens também são voodoo, ou o voodoo é só aquela coisa em que espetam alfinetes em pequenas figuras?

 

Creio que os alfinetes espetados são voodoo e provavelmente os zombies são voodoo e parece-me que matar galinhas salta mesmo à vista... disse Brown com um ar absolutamente sério. E está a dizer que não vê nada ofensivo ou censurável em tudo isso?

 

Gosto de ver isso nos filmes.

 

Aqui não estamos a discutir filmes, senhor Cantor.

 

Então o que estamos a discutir exactamente?

 

Estou a chamar-lhe a atenção para as velas da senhora Serian e a perguntar-lhe se é capaz de dizer honestamente a este tribunal que não as acha bizarras, ofensivas e censuráveis.

 

Não, não acho. E sou um homem religioso. Diria que sim, se achasse que eram más. É possível que as levasse mesmo assim, mas pode ter a certeza que lhe diria o que pensava disso.

 

Brown sabia quando estava em desvantagem. Desistiu completamente das velas e fez-lhe perguntas sobre a Lenore, tentando obter qualquer coisa de negativo. Mas Stanley era muito esperto ou adorava francamente Lenore Serian. Por fim, Brown desistiu e foi sentar-se. E um Stanley Cantor sorridente apressou-se a sair da sala de audiências.

 

A seguir foi o Dr. Bertram Aldrich, o médico que tinha tratado das queimaduras da Lenore depois do incêndio. Apresentou as suas credenciais de médico, explicou que era ginecologista e que tinha ido à Arcádia uma vez por ano para examinar a Lenore e que tinha feito aquilo durante oito anos. Disse que a Lenore lhe tinha telefonado às oito horas da manhã do incêndio e lhe tinha pedido que fosse lá.

 

O que lhe pareceu, Doutor, quando viu Lenore Serian?

 

Achei que estava angustiada física e emocionalmente.

 

Podia fazer-nos uma descrição, Doutor?

 

Ela estava extremamente desesperada. Tinha uma queimadura do segundo grau por baixo do braço direito e queimaduras do segundo grau nos dedos e na palma da mão esquerda. Também tinha queimaduras superficiais nos braços e nas mãos.

 

Até que ponto é grave uma queimadura do segundo grau?

 

Requer tratamento, embora não destrua completamente as camadas de tecido, como acontece com as queimaduras do terceiro grau. E ao contrário de uma queimadura do terceiro grau, em que o tecido foi destruído e deixou de haver sensibilidade, a queimadura de segundo grau é mais dolorosa.

 

Esse é o tipo de queimadura que se tem quando uma pessoa toca acidentalmente na pega de uma panela quente?

 

Parece-me que o que o senhor está a referir é uma queimadura do primeiro grau, que é o tipo de queimadura vulgar que as próprias pessoas tratam em casa.

 

O género de coisa em que a minha avó costumava pôr manteiga? O médico sorriu. Não era um bom remédio, mas sim, é isso.


Então as queimaduras da Lenore eram mais graves do que isso?

 

Sim. Ela tinha queimaduras tanto do primeiro como do segundo grau.

 

A julgar pela localização das queimaduras dela, pode dizer-nos, com um grau razoável de certeza médica, em que posição poderiam estar as suas mãos e braços?

 

Acho que posso. O médico levantou o braço direito e flectiu-o com a palma da mão para fora, de tal modo que o seu antebraço estava a proteger o rosto. Depois estendeu o braço esquerdo como se pretendesse tocar em alguma coisa. Rossner pediu-lhe que descrevesse as posições para que tudo ficasse registado.

 

As queimaduras desse tipo podem provocar choque, Doutor?

 

Absolutamente. É muito perigoso. Até existe uma expressão para isso... choque de queimadura.

 

Existem níveis diferentes de choque?

 

Com certeza. Em que o pior deles é fatal.

 

Quais são os sintomas do choque?

 

Palidez, suor, sede, náuseas, inquietação, perturbação, inércia, desorientação, fraqueza, inconsciência.

 

Uma pessoa pode tê-los todos ou apenas alguns desses sintomas? Sim. Conforme a gravidade do choque, os sintomas mudam.

 

A Lenore estava em choque quando o senhor a viu?

 

Permita-me que corrija o conceito errado. O termo choque compreende numerosos sintomas e condições devido à deficiente circulação do sangue. O choque primário é tão simples como o desmaio. A hemorragia interna ou a perda de plasma devido a queimaduras graves pode criar uma situação em que o coração é incapaz de bombear sangue suficiente através do corpo e, se não for revertida, essa situação pode ser fatal.

 

Agora em medicina referimo-nos a um paciente como estando em choque, sempre que exista palidez e um padrão de comportamento suspeito, como por exemplo perturbação. Isso não indica necessariamente que a pessoa esteja tecnicamente “em choque” naquele momento, mas isso é se houver alguns sintomas que tratemos imediatamente para evitar o choque.

 

Está bem, então o que o senhor está a dizer é que uma pessoa pode ter sintomas e ter uma ameaça de choque, mas não necessariamente estar já “em choque”?

 

Basicamente. Sim.

 

Então, qual era a situação da Lenore?

 

Ela estava perigosamente a entrar em choque e transportei-a para o hospital para restituir os fluidos intravenosos e evitar o choque.

 

Teria de a levar para o hospital para lhe tratar as queimaduras se o choque não fosse um factor?

 

Não. Eu sabia que ela tinha queimaduras e tinha levado equipamento para poder tratá-las.

 

- O comportamento dela podia ter sido afectado por estar no que o senhor designou por quase em choque?

 

Absolutamente.

 

E quanto tempo pode durar essa situação de estar quase em choque, antes de entrar realmente em choque?

 

Pode durar horas.

 

A Lenore podia estar quase em choque, com a consequente perturbação e desorientação, pouco depois de ocorrerem as queimaduras?

 

Com certeza.

 

Nessa situação, ela podia ter ainda continuado a funcionar em alguns níveis, comunicando com as pessoas e parecendo quase normal?

 

Absolutamente. Um dos aspectos mais perigosos do choque é que ele pode surgir sem ser notado pelas outras pessoas e evidentemente também pelo paciente.

 

Na altura em que tratou a Lenore e ela se encontrava naquele estado de fraqueza, ela disse-lhe alguma coisa sobre como se tinha queimado?

 

Disse que tinha tentado entrar no estúdio porque o marido estava lá dentro a arder.

 

O senhor tinha algum motivo para não acreditar nela?

 

Absolutamente nenhum.

 

Obrigado, Doutor.

 

Rossner terminou e Spencer Brown dirigiu-se com ar arrogante para a sua posição. A primeira coisa que fez foi levar o médico de volta às suas credenciais.

 

Dr. Aldrich... corrija-me se estiver enganado, mas a especialidade de ginecologia não se limita ao tratamento do sistema reprodutivo feminino?

 

No sentido mais restrito, é essa a definição; porém, um ginecologista passa por uma formação médica geral, para além da formação na sua especialidade, e hoje em dia é vulgar uma mulher solicitar ao seu ginecologista a prestação de cuidados primários. ^

 

Quer dizer que uma mulher podia procurar os seus serviços para tratar uma dor de garganta?

 

Algumas das minhas pacientes fazem precisamente isso.

 

Uma mulher iria ter com o senhor para tratar um braço partido?

 

Normalmente não, porque quando há uma fractura, a pessoa ou a reconheceu como fractura e foi directamente a um ortopedista ou foi ao banco de urgências.

 

Então por que teria a senhora Serian, que deve ter tido consciência de que o seu problema era uma queimadura, chamado o senhor, em vez de ir ao banco de urgências?

 

Porque não sabia qual seria o tratamento para o caso dela e porque tinha confiança em mim.

 

Ahhh. Ela sabia que podia confiar no senhor?

 

Espero bem que sim.

 

Ela sabia que o senhor teria em consideração sobretudo os interesses dela?

 

Espero que também isso fosse verdade.

 

Por que é que o senhor não chamou outro médico mais qualificado para aquele caso, uma vez que a tinha no hospital?

 

Porque me considerei qualificado para cuidar dela.

 

Mesmo estando rodeado de especialistas?

 

Sim. Considerei que era capaz de tratar do tipo de queimaduras que ela tinha.

 

E de tratar a sua situação de choque que podia ameaçar a vida?

 

Com certeza. O choque pode ser provocado por muitas coisas. Até pelo parto. Todos os médicos têm de estar preparados para prevenir e tratar situações de choque.

 

Portanto o senhor era o único médico autorizado a tratar dela, ou a aproximar-se dela, ou a falar com ela durante o tempo em que esteve no hospital.

 

Eu era o seu médico acompanhante.

 

De acordo com os seus esclarecimentos relativamente ao tratamento médico necessário, o primeiro médico que foi chamado à Arcádia podia ter tratado as queimaduras dela, não podia?

 

Suponho que sim.

 

E se ela estivesse numa situação de pré-choque, ele podia ter diagnosticado esse estado e tratado dele... podia tê-la transportado para o hospital se considerasse que era necessário.

 

Espero bem que sim... se ele for de facto qualificado em medicina.

 

Então por que... se ela tinha tantas dores e estava angustiada, por que teria ela recusado os serviços daquele médico que já se encontrava no local do acontecimento, e teria esperado pela chegada do senhor?

 

Porque, como já referi, ela me conhecia.

 

Sabia que o senhor seria compreensivo com ela. Brown pronunciou a palavra compreensivo num tom desagradável.

 

Eu sou compreensivo com todos os meus pacientes.

 

Ela sabia que podia confiar no senhor. Brown fez com que a palavra confiar parecesse uma coisa má.

 

Sim, respondeu o médico, claramente desconcertado com a hostilidade e com a sugestão de conduta desonesta.

 

A Owen só apetecia atirar-se a Spencer Brown e agarrá-lo pela garganta por causa da maneira como insinuava e distorcia as coisas. E estava também furioso com Rossner e o juiz, por permitirem que ele fizesse aquilo impunemente. Será que não viam o que Brown estava a fazer?

 

Depois de mais algumas picadas, terminou o contra-interrogatório e o médico foi posto em liberdade.

 

Senhoras e senhores, disse o juiz ao júri, estão dispensados por hoje. Apreciem o vosso tempo em casa e comecem a fazer os vossos preparativos para as deliberações, quando ficarem isolados. Muito obrigado e tenham um bom dia.

 

Owen levou a Lenore de carro naquela noite, com grande descontentamento de Volpe e de Rossner. Só nos falta, Rossner tinha-os prevenido, que alguém dos meios de comunicação veja vocês os dois a irem juntos num carro. Porque não brinquem com vocês próprios. Se aparecer alguma coisa nas primeiras páginas dos jornais, alguns daqueles jurados vão ver e ouvir falar disso.

 

Por isso eles comportaram-se como se fossem personagens de um filme de espionagem. Volpe levou a Lenore no carro, como sempre, mas depois encontrou-se com Owen fora da cidade para ela poder mudar para o carro dele. Na manhã seguinte fariam o contrário.

 

Sinto-me tão impotente, disse-lhe Owen quando iam os dois no carro. Estou apenas ali parado e a ver tudo isto a acontecer.

 

E o que é que podias tu fazer? perguntou ela.

 

Podia arrancar a língua àquele delegado do ministério público desclassificado e sem princípios, para começar.

 

Ela riu-se. Não faças isso. O Paul diz que a língua de Spencer Brown está a prejudicar mais a acusação do que o Rossner.

 

- Olá - Bernie... sou eu, o Owen.

 

- Bom dia. Mas por que não está no julgamento?

 

- E estou. - Owen olhou à sua volta para se certificar de que não havia ninguém ali perto da cabine telefónica que estivesse ao alcance da sua voz. Tinha escolhido um telefone do piso inferior, mas mesmo assim tinha de ter cuidado. - Estou no tribunal. Houve um atraso. Uma senhora que faz parte do júri teve um problema com o carro esta manhã e estão à espera que ela chegue.

 

- Esperava ter novidades para lhe dar esta manhã, Owen, mas ainda não temos nenhuma resposta de DeMille. Vou telefonar para lá dentro de uma hora. É ridículo que se tenham comprometido a comprar o livro mas ainda não tenham chegado a um acordo quanto à quantia a pagar como adiantamento. Esta não é a forma normal de procedimento. - Riu-se. - Mas, bem vistas as coisas, todo este processo tem sido uma grande confusão desde o princípio, não é verdade?

 

- Por que é que eles estão a protelar, Bernie? Que mais querem de mim?

- Bem, não é a sua editora, posso garantir-lhe. A Arlene está ansiosa por chegar a uma conclusão. A demora vem mais de cima. A minha suposição é que isto já demorou tanto que agora estão à espera para ver como vai o julgamento. Se conseguissem atrasar até haver um veredicto, podiam recorrer a qualquer motivo para lhe pagar menos como adiantamento.

 

- Porquê?

 

- Porque se Lenore Serian for considerada inocente, o livro terá menos valor. Você ficaria com um crime por resolver, uma provável diminuição do interesse do público e, o que é ainda mais importante, as delicadas dificuldades legais do que se pode e não se pode dizer de uma pessoa inocente. Os criminosos condenados são jogo limpo, mas o mesmo já não é assim para quem fica absolvido. Vamos esperar que seja um veredicto de culpada.

 

- A Bernie quer que ela seja considerada culpada? - perguntou OWen incrédulo. - DeMille quer que ela seja considerada culpada? Para o livro ser mais fácil de publicar? Se as coisas são assim, Bernie, então pode dizer a DeMille para pegar no contrato e enfiá-lo pelo cu colectivo acima!
Owen bateu com o receptor ao colocá-lo no descanso. Encostou a testa à parede e respirou fundo várias vezes, depois subiu as escadas a correr e voltou para a sala de audiências número 6.

 

Foi chamada uma testemunha que já tinha ido a depor. O xerife adjunto Kenneth Havlik subiu para a barra das testemunhas, não menos nervoso do que da primeira vez que fora testemunhar. O que podia o Rossner querer de Havlik, interrogou-se Owen.

 

Delegado Havlik... Rossner sorriu. O senhor afirmou que tinha sido acordado pelos seus cães na noite... desculpe... na manhã do incêndio.

 

Sim, senhor.

 

Rossner levantou uma folha para ele poder ler nela. O que queria dizer quando afirmou que os seus cães tinham começado de novo a fazer barulho?

 

Que não era a primeira vez que os meus cães faziam barulho naquela noite.

 

Quantas mais vezes tinham ficado desassossegados?

 

Ao princípio da noite, tinham estado mesmo agitados e a ladrar durante cerca de uma hora.

 

Conseguiu saber qual era o motivo?

 

Sim, senhor. Foi quando alguns carros cheios de gente passaram por ali na direcção da casa dos Serians. Os meus cães estão presos mesmo junto à estrada e ficam muito agitados com o trânsito.

 

Então devem estar muitas vezes agitados.

 

Não. A nossa estrada raramente tem trânsito. Sobretudo à noite. Para além da minha casa, só há a Arcádia e depois a estrada acaba.

 

Então os seus cães estiveram agitados durante cerca de uma hora em que estiveram a chegar os convidados que iam atrasados para a festa?

 

Sim, senhor. Houve três carros diferentes.

 

Tem a certeza disso?

 

Sim, senhor. Não há nenhumas árvores entre a minha casa e a estrada. Mesmo que não veja o trânsito, consigo ouvi-lo. A não ser que esteja a tomar duche ou coisas assim.

 

Então os cães reagiram quando os três carros passaram a caminho da festa ainda cedo. E ficaram muito desassossegados com a passagem de todos os bombeiros e dos camiões que começaram por volta das quatro e meia da manhã.

 

Sim, senhor.

 

Houve mais alguma coisa que os incomodasse durante a noite?

 

Sim, senhor. Acordaram-me mais duas vezes.

 

E pode dizer porquê?

 

Pareceu-me ter ouvido um carro na estrada em ambas as vezes.

 

E a que horas foi isso?

 

A primeira vez foi às duas e qualquer coisa. Talvez duas e dez. Da segunda vez fiquei irritado porque tive a impressão de que tinha acabado de voltar a adormecer e por isso olhei para o relógio e eram três e cinquenta e sete.

 

- É capaz de dizer se o carro ia para a casa dos Serians ou se estava a voltar de lá?

 

- Não, senhor.

 

- Mas passou um carro na estrada por volta das duas e dez da madrugada e outro às três e cinquenta e sete daquela manhã?

 

- Sim, senhor.

 

Brown levantou-se de um salto ainda antes de Rossner ter voltado para o seu lugar. - Agora Kenneth... Delegado HavIik... viu de facto um veículo na estrada às três e cinquenta e sete da manhã do dia sete de Agosto?

 

- Não.

 

- Ouviu claramente algum carro a passar na estrada?

- Não. Mas ouvi os cães e...

 

- São cães de caça, não são?

 

- São.

 

- Cães que seguem trilhos... cães de perseguição, não é verdade?

- Uns são, outros não. São misturados.

 

- O que fariam aqueles cães se, por exemplo, um guaxinim andasse na estrada junto dos canis?

 

- Começariam a ladrar, com certeza. Provavelmente derrubariam o canil.

- Não é verdade que aqueles cães fazem barulho por outros motivos para além da passagem de veículos na estrada e que eles podiam estar a reagir a outros estímulos possíveis na manhã em questão?

 

HavIik franziu as sobrancelhas e coçou o pescoço.

- É possível, parece-me.

 

Rossner trouxe uma enfermeira de um banco de urgências à cadeira das testemunhas para verificar o estado de Lenore quando o Dr. Aldrich a levou para o hospital para ser tratada. Quando submetida ao contra-interrogatório de Brown, a enfermeira admitiu que não tinha passado muito tempo com a Lenore e que o Doutor Aldrich tinha andado à volta dela e tinha sido muito protector da sua paciente. Brown fez com que isso parecesse muito suspeito - que um médico fosse muito atencioso e solícito.

 

Owen teve dificuldade em concentrar-se no testemunho. Observou as pessoas, vendo os seus movimentos e tiques faciais e gestos nervosos em pormenor, mas as palavras que diziam pareciam-lhe tão sem sentido que ele podia muito bem ser surdo. Apercebeu-se de que conhecia de cor a parte de trás de todas aquelas cabeças. Spencer Brown tinha um corte de cabelo recente. A caspa de Dapolito era menos perceptível. Rossner tinha adquirido uma mancha negra vermelha atrás de uma orelha.

 

A enfermeira desapareceu e o Dr. Wallace TeIner, um psiquiatra e especialista em fobias, tomou o lugar dela na barra das testemunhas. Ridicularizou tudo o que o psiquiatra da acusação tinha dito sobre o facto de Bram Serian ser um pirófobo. Brown contrapôs, insinuando que o Dr. TeIner tinha menos experiência com pirófobos do que a testemunha anterior.

 

Brown sentou-se depois do contra-interrogatório. A testemunha saiu. Rossner levantou-se. - A defesa dá por terminada a sua argumentação, meritíssimo.


Era tudo. o fim. o julgamento tinha simplesmente perdido a força de impulsão e parado como um velho relógio de corda.

 

- Senhoras e senhores, - disse o juiz Pulaski, girando a sua cadeira na direcção da bancada do júri, - o Dr. Brown e o Dr. Rossner agora precisam de organizar a preparação das suas alegações finais e eu preciso de me reunir com ambos.

 

- Em breve irão começar as vossas deliberações e, como já antes os preveni, vocês têm de fazer os vossos preparativos pessoais. Têm de fazer os preparativos para os vossos animais de estimação, membros da família, plantas da casa, etc., partindo do princípio que vão ficar fora de casa por alguns dias. - o juiz sorriu com um ar paternalista.

 

- Uma vez que comece a deliberação, vão permanecer sempre juntos. Terão de deliberar na sala do júri e serão levados para um hotel todas as noites, onde jantarão às custas do estado e serão alojados em quartos de duas pessoas, também às custas do estado. Haverá um oficial de diligências em serviço durante toda a noite. De manhã tomarão o pequeno almoço no hotel e a seguir serão transportados pelos oficiais de diligências de volta para a sala do Juri.

 

- Amanhã ouvirão as alegações finais. Depois disso darei as minhas instruções e a seguir começarão as vossas deliberações.

 

- Devo preveni-los... não permitam qualquer exposição aos noticiários nem a opiniões de qualquer outra pessoa.

 

- A sessão está encerrada até às duas e meia.

 

Mandaram vir sanduíches de uma loja de pronto a comer para o almoço e comeram separadamente, espalhados pela sala. Rossner sentou-se a uma mesa e debruçou-se sobre blocos de notas do tribunal cheios de apontamentos enquanto comia. Volpe e Riley puxaram duas cadeiras para uma mesa de canto e puseram-se a jogar pôquer calmamente. Lenore enroscou-se numa cadeira, a olhar para fora da janela, a observar a praça do tribunal, sem tocar na sanduíche. Owen andava de um lado para o outro em desassossego, incapaz de ficar sentado por muito tempo no mesmo lugar. o seu almoço tinha desaparecido, mas não se lembrava de o ter comido.

 

- Vamos, - disse Jacowitz, caminhando para a porta. - Vista o casaco e venha comigo a buscar mantimentos.

 

Andaram um quarteirão e meio até uma pequena mercearia.

- Então e o que vai acontecer agora? - perguntou-lhe Owen.

 

- o juiz vai fazer a discussão das recomendações depois do almoço. Sabe alguma coisa sobre isso?

 

Owen abanou a cabeça.

 

- Fundamentalmente as instruções do júri, ou recomendações ao júri, são um conjunto de directrizes ou regras para a deliberação. Amanhã o juiz e as duas partes começarão a discutir sobre o que deverá fazer parte das recomendações
e sobre como serão redigidas. Em seguida, depois das alegações finais, o juiz vai ler as recomendações ao júri, uma sessão que é quase tão emocionante como observar a erva a crescer.

 

Owen abriu a porta para a pequena loja e segurou-a para o Jacowitz entrar.

 

- Se pensa que já tem o estômago a revirar-se, ainda não viu nada, Jacowitz preveniu-o enquanto entrava pela porta. - Espere só até estarmos todos sentados a imaginar o que estará a fazer aquele júri. Pode levar dias, sabe. Pode levar uma semana inteira, até aquelas doze pessoas concordarem com um veredicto.

 

Depois do almoço a atmosfera era completamente diferente do que costumava ser o julgamento a que Owen se tinha habituado. Só havia cinco pessoas na secção dos espectadores e Jacowitz disse que conseguia identificá-las todas como advogados ou estagiários de direito. Na secção da imprensa encontravam-se apenas a Holly, a Marílyn e a Pat. É claro que a bancada do júri estava vazia.

 

Rossner apresentou a sua proposta escrita para as instruções do júri, entregando uma cópia à defesa, assim como ao juiz. E a seguir Brown fez o mesmo, entregando a sua proposta ao juiz e uma cópia a Rossner. Os homens agiam informalmente uns com os outros e de vez em quando ouviam-se uns gracejos e havia um ar de camaradagem, de tal maneira que parecia a Owen que o debate se transformara numa espécie de uma reunião de um clube. Pulaski discutia os planos para as suas próximas férias com Brown e Dapolito, e Rossner dava sugestões de viagens.

 

A seguir os intervenientes sentaram-se a ler. As mesas e os bancos encheram-se de livros de direito abertos, papéis e copos de água. Os oficiais de diligências recostaram-se, meio a dormir, nas cadeiras laterais. Não se ouvia qualquer som para além do ruído dos papéis e de alguém a tossir ou a pigarrear de vez em quando.

 

Após trinta minutos a ler as propostas, todos concordaram que deviam ter mais trinta minutos para ler e rever os casos citados em cada proposta. Os minutos pareciam horas.

 

Finalmente, o juiz anunciou que deviam começar por rever a proposta do Dr. Brown ponto por ponto e começaram as argumentações verbais. Criou-se uma atmosfera de bom humor mas usavam tantos termos de gíria que Owen mal conseguia compreendê-los.

 

Lenore parecia estar imóvel no seu lugar. Owen tentou imaginar o que passaria pela cabeça dela. Será que se permitia ter medo? Teria algumas mágoas? Será que se sentia frustrada ou aborrecida por ter ficado reduzida a um objecto passivo, obrigada a assistir em silêncio, enquanto a sua vida pessoal era dissecada e o seu destino era arremessado para trás e para diante - o prémio neste torneio verboso?

 

Continuaram a discutir o que o juiz devia dizer ao júri sobre coisas específicas, como o acordo de imunidade feito com Natalie Raven e outras questões mais amplas: os dois elementos da intenção de matar e o assassinato, o fardo das provas, provas circunstanciais e deduções e gráficos de dedução e a presunção de inocência.

 

o juiz Pulaski fez uma pausa para beber um grande copo de água e depois disse, - Agora, meus senhores, chegamos ao terrível problema da certeza moral. Sempre considerei a certeza moral e a dúvida razoável como dois níveis diferentes. Mas agora o IPJ vem dizer-nos que as duas são idênticas. Eu não concordo.

 

- Nem eu, juiz, - disse Spencer Brown. - E o problema de usar a certeza moral nas recomendações ao júri é que, como leigos no assunto, eles simplesmente não conseguem compreender como é que estes dois conceitos de moral se associam. No seu limitado ponto de vista, eles vão pensar que sabem o que significa o termo moral e vão pensar o que significa o termo certeza, mas...

 

Owen inclinou-se para Jacowitz para lhe perguntar ao ouvido, - o que é o IPJ?

 

- Instruções Penais ao júri. É a biblia, - respondeu-lhe Jacowitz. Rossner entrou então na discussão. - A linguagem da certeza moral vem de um caso que é ainda uma boa lei e ainda está a ser utilizada. Não é com certeza mais contraditória do que a dúvida razoável, a qual é em si uma contradição mista, Meritíssimo.

 

- Mas eu sempre me senti à vontade com a dúvida razoável, como uma dúvida para a qual uma pessoa pode indicar uma razão, - contrapôs o juiz.

- Enquanto que a certeza moral implica a certeza absoluta, e quantas coisas neste mundo são absolutamente certas? Moral é uma palavra vaga e facilmente mal interpretada, enquanto razoável tem um significado imediato de racional.

 

- A decisão é sua, juiz, - disse Spencer Brown impacientemente, obviamente confiante de que Pulaski estava a inclinar-se na direcção que Brown pretendia que fosse. - Contudo, nós sentimos que a linguagem da certeza moral é de difícil compreensão para os júris e se fôssemos para a certeza moral, essa linguagem não seria uma forma correcta de apresentar as recomendações ao júri.

 

o juiz pareceu ficar a ruminar por momentos. - Meus senhores, esta é a questão legal mais importante neste caso. E o coração, por assim dizer. o IPS permite ambas as formas ao juiz do julgamento. Se não é requerida a certeza moral, então a acusação tem o direito de exigir que seja retirada.

 

- Meritíssimo, temos o Tribunal de Recurso a usar a certeza moral como norma, - disse Rossner.

 

- Sim, tenho consciência de que o Tribunal de Recurso poderia dizer, o que se passa com este juiz... ele sabia que nós usámos recentemente a linguagem da certeza moral.’ Mas um juiz tem de basear as decisões não só no que tem sido feito no passado mas no que os tribunais apelatórios vão fazer no futuro. E isso dá-nos muito que pensar.

 

- Dada a natureza circunstancial deste caso, meritíssimo, - argumentou Rossner, - a certeza moral proporciona uma via que nos conduz através das deduções. A certeza moral mantém o nível de pensamento dedutivo centrado no caso.

 

- Conclusão sobre conclusão, o que acham disso? - atirou-lhes o juiz. - E o que acham do IPJ? - era evidente que Pulaski tinha ouvido o suficiente sobre certeza moral para tomar a sua decisão, embora não fosse claro qual seria a decisão.

 

- Cada conclusão tem de ser fundamentada na evidência e em factos. Certas conclusões podem ser deduzidas da evidência mas não se pode usar a conjectura, - insistiu Brown. - Quase todo o raciocínio é baseado em factos deduzidos de outros factos.

 

- Vamos então riscar esta terceira frase no segundo parágrafo da primeira página do Dr. Brown, está bem? - sugeriu o juiz e Owen verificou que eles podiam até estar a falar uma língua estrangeira pois ele não fazia ideia do que tinha sido decidido, nem que parte favorecia. E desistiu de todo de procurar acompanhá-los.

 

- o Rossner disse como pensava que ia a discussão das recomendações? Ele está a marcar pontos? - perguntou Owen a Lenore quando iam a caminho da Arcádia naquela noite.

 

- Não quero falar sobre o julgamento, Owen.

 

- Como consegues não falar dele? Como consegues falar sobre qualquer outra coisa?

 

Desviou a cabeça dele para olhar pela janela.

 

- Muito bem, - suspirou ele. Após alguns minutos de silêncio disse, - E se não fôssemos já para a Arcádia? Vamos jantar fora.

 

- Estou muito cansada para fazer a viagem para Manhattan.

 

- Eu não estava a pensar em Manhattan. o oficial de justiça esteve a falar com o Rossner sobre um pequeno restaurante francês no campo. Vagamente iluminado e muito discreto, disse ele. Até há celebridades que vão lá.

 

- Onde é?

 

- Não tenho bem a certeza, mas sei o nome da cidade que fica perto. Podemos ir até lá e perguntar a direcção numa estação de serviço.

 

Ela sorriu com um ar triste. - Sempre tive muito medo de deixar a Arcádia. o Bram tinha-me muito assustada... convencida de que os oficiais da emigração iam logo agarrar-me se mostrasse a cara em algum sítio.

 

- É difícil habituar-me a ser livre. De certo modo sinto-me como se estivesse a fugir da prisão que o Bram criou para mim. E estivesse a dirigir-me para outra espécie de prisão.

 

- Não fales dessa maneira.

 

- Estou a ser realista. Eu sei que não tenho ar de inocente para aquelas pessoas do júri.

 

- Mesmo que isso fosse verdade, Lenore, não é importante. Toda aquela complicação de hoje era sobre os conceitos legais que fazem com que a sua opinião pessoal sobre ti seja irrelevante.
Ela deslizou a mão e tocou na coxa dele. - Estou contente por te ter conigo, - disse ela.

 

O toque dela enviou uma onda de calor que lhe percorreu todo o corpo, mas foi seguida imediatamente pela angústia, ao pensar que de facto a podia perder.

 

Mais tarde, depois de terem dançado e passado horas a explorar cada centímetro um do outro, levou-a para a cama, mas nenhum dos dois conseguia dormir.

 

- Owen, - disse ela no escuro, - quando te disse que tinha estado com outros homens... era só para te fazer ir embora... mas em parte era verdade. Estive com homens quando era mais nova. Homens diferentes. Homens que não tinham qualquer interesse para mim.

 

- Foi ideia do Serian? - perguntou ele, contendo a sua raiva contra o homem morto.

 

- Como é que sabias?

 

- Adivinhei. Através de coisas que soube sobre ele.

 

- Ele nunca me quis... fisicamente... como esposa... o que agora compreendo... mas quando tinha dezoito anos de idade e era supostamente uma mulher casada e ainda nem sequer tinha sido beijada, não compreendia nada.

 

- Tu és um milagre, Lenore. Como é que conseguiste sobreviver? É uma coisa que me ultrapassa.

 

A voz dela parecia mecânica no meio da escuridão. - Era ele que os escolhia. Os homens. E depois preparava tudo. Fazia a coreografia. Dizia-me o que devia fazer. Passado algum tempo, descobri que tinha preparado tudo de maneira a poder ficar a observar às escondidas.

 

- Aquilo funcionou durante dois anos. Sempre que acontecia, eu sentia-me cada vez mais perturbada e vazia. Mas continuei a fazê-lo para lhe agradar. Para fazer com que ele me amasse. Depois chegou um homem que vinha trabalhar no vidro.

 

- Guy Demaree? - perguntou Owen.

 

- Sim. Tornámo-nos amigos. E esteve lá tempo suficiente para se aperceber do que estava a acontecer. Na verdade, o Bram até me ofereceu a ele. Guy ficou muito zangado e aborrecido com o Bram e abriu-me os olhos... deu-me coragem para enfrentar o Bram e dizer não. Isso foi há oito anos. Eu tinha vinte anos naquela altura.

 

- Todos os amantes que tive desde então apenas foram nas minhas fantasias. Até tu apareceres.

 

- Lenore... - sussurrou ele, apertando-a contra si. Na escuridão não se viam as lágrimas que lhe corriam dos olhos.

 

À meia-noite tocou o telefone. Owen ouvia-o mas não conseguia encontrá-lo. Lenore alcançou-o primeiro e atendeu. Ele ficou a ouvir o que ela dizia.

- Olá Paul.


- Não, não vimos nada na televisão.

 

- O quê?

- Não!

 

Era evidente a raiva que ela sentia, enquanto estava a ouvir o resto do que Paul Jacowitz tinha para lhe dizer.

 

- Está bem, - disse ela laconicamente. - Então vou com o Joe amanhã de manhã.

 

- o que foi? - perguntou Owen logo que ela desligou.

 

- Era o Paul. Holly Danielson fez um exclusivo esta noite sobre o facto de eu ter seduzido um homem em pleno tribunal. Mostrou imagens de nós dois a beijarmo-nos no parque de estacionamento do restaurante antes do jantar. o Paul disse para contar com cabeçalhos desagradáveis nos jornais amanhã de manhã.

 

Owen deu um murro na cama. - Aquela cabra maldita. Não tem limites.

Na manhã seguinte os cabeçalhos dos jornais eram horríveis. Rossner e Jacowitz tinham comprado cópias de todas as publicações nos quiosques dos jornais em Manhattan e tinham-nas trazido para o hotel. Duas delas tinham artigos de primeira página com cabeçalhos em letras colossais. VIúVA NEGRA TECE TEIA NA SALA DE AUDIÊNCIAS e VIúVA SEDUZ ENQUANTO o JúRI DEDUZ.

 

Todos os artigos eram imitações da história da Holly, a qual, segundo a descrição pormenorizada de Jacowitz, parecia longa em sugestão e curta em factos. Mas a Holly tinha uma cassete do casal a abraçar-se no parque de estacionamento do restaurante Francês e combinava aquilo com imagens de Owen no átrio do tribunal e imagens de Lenore a sair do tribunal com a sua capa negra com capuz, de tal maneira que a peça conseguia parecer muito credível. A Holly, depois deve ter vendido imagens estáticas às publicações sensacionalistas, para que cada uma delas pudesse ter uma fotografia granulada a preto-e-branco do abraço no parque de estacionamento para publicar, juntamente com uma fotografia da cabeça de Owen, que também tinha de ser obra da Holly. Estas estavam misturadas com fotografias de Lenore com a capa e, claro, a fotografia original de Lenore a sair do carro, quando foi pela prímeira vez apelidada de Viúva Negra.

 

Owen explodiu. - Como podem fazer uma coisa destas? Como Podem ficar imunes!

 

Rossner riu-se. A sua raiva disciplinadamente controlada era disfarçada pelo sarcasmo. - o escritor não gosta de ver o seu nome nos jornais, heim? Sente-se como se tivesse sido violado--- talvez abusado? É esse o nome do jogo, Byrne. E não se esqueça, você também está a jogar. Ou não vai o seu livro incluir pessoas autênticas?

 

Owen separou-se voluntariamente da defesa, deixando-os ir à frente para o tribunal e depois saindo do hotel pela porta de serviço das traseiras para se dirigir para o tribunal. Quando chegou às escadas, os operadores de câmara descobríram-no e avançaram todos para ele. Ele passou a correr pelo meio
deles e refugiou-se na segurança do átrio do tribunal, desejando ter um disfarce para se esconder. Ou talvez a sua própria versão da capa negra.

 

Quando ia a meio das escadas ouviu uma voz feminina a chamá-lo e apressou o passo. Conseguia ouvir a sua perseguidora nas escadas atrás dele, por isso percorreu o resto do caminho a correr e voltou rapidamente para o corredor.

- Owen! Sou a Bernie!

 

Parou e voltou-se, depois esperou por uma Bernadette Goodson sem fôlego para o apanhar.

 

- Desculpe, Bernie. É que tive de abrir caminho pelo meio dos operadores de câmara à entrada e fiquei um pouco nervoso.

 

Ela encostou uma mão à parede e pousou a outra no peito enquanto recuperava a respiração. - Estou tão em baixo de forma, - disse ela. - Isto é embaraçoso.

 

Owen ficou à espera. Ele próprio a sofrer de constrangimento. o seu último contacto com a Bernie tinha sido quando lhe tinha desligado o telefone na cara no dia anterior.

 

- Esta manhã parei para comprar um jornal quando ia para o escritório e estava lá tudo. Fui imediatamente apanhar o comboio e vim para aqui. Deu um suspiro. - Há alguma verdade em tudo isto?

 

Owen olhou à sua volta para se certificar de que não havia por ali ninguém à escuta, mas não havia ninguém no corredor.

 

- Owen, você anda envolvido com essa mulher?

- Sim. E agora estou a viver com ela na Arcádia.

 

Berníe ficou a olhar para ele por instantes sem querer acreditar, depois desanuviou a mente e riu-se. - Parece-me que não precisava de me preocupar a arranjar uma casa para si em Nova lorque.

 

Owen esboçou um sorriso.

 

- Isto tem sido tudo muito difícil, não tem? - perguntou a Bernie numa atitude de compreensão.

 

- Você não sabe metade da história, Bernie.

 

- Agora compreendo por que ficou tão perturbado com a nossa conversa telefónica de ontem. É evidente que não quer ouvir o destino dessa mulher a ser discutido em termos tão insensíveis.

 

- Não devia ter feito essa viagem para vir aqui, Bernie. Eu sei como anda ocupada.

 

- Não conseguia encontrá-lo de outra maneira e queria esclarecer as coisas. Sei que você realmente não quer perder este contrato. Sei que o livro é importante para si. Não transmiti a sua mensagem a DeMille. Tanto quanto lhes diz respeito, você continua a ser o autor ansioso, à espera de saber os resultados das negociações.

 

Fez uma pausa e examinou a cara dele. - Ainda quer este contrato, não quer, Owen?

 

Ele inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos por instantes, depois tomou uma atitude e enfrentou os olhos perscrutadores dela. - Sim, - confessou. - Nem imagina como quero escrever este livro. Só que agora vai ser muito diferente do que o imaginava originalmente.

 

- Dadas as circunstâncias, acho que não se esperava outra coisa.

- Vai ficar aqui? Quer vir comigo assistir ao julgamento?

 

- Sim. Estava a pensar em voltar à hora do almoço. Tenho de admitir que ir assistir ao julgamento de um homicídio verídico deve ser emocionante. Owen retraiu-se com as palavras dela.

 

- Peço desculpa, - disse logo ela.

 

- Não. - Ele abanou a cabeça. - Não peça desculpa. o que está a dizer é simplesmente normal. Eu próprio pensava a mesma coisa quando aqui cheguei pela primeira vez.

 

Ela acenou com a cabeça e tirou um papel dobrado. - Isto é do Alex. Owen passou por ele uma vista de olhos.

 

o Cliff tinha descoberto que os registos militares de Abe Hanselmann estavam selados e não havia quaisquer indícios de que o Abe tivesse pertencido a uma das unidades secretas. No entanto, tinha conseguido descobrir que o Abe tinha desaparecido no princípio dos anos setenta e supostamente tinha desertado.

 

Owen dobrou a folha e guardou-a. Abe Hanselmann era um desertor. o homem não tinha apenas ficado transtornado. Tinha-se feito passar por primo de Bram Serian com o nome de AL e escondera-se naquele estúdio na Arcádia por muito boas razões.

 

Talvez fosse aquilo que o Bram sempre receara... que o seu irmão fosse apanhado. E talvez fosse em parte o motivo por que mantinha a Lenore isolada e assustada. Talvez pensasse que ela podia de alguma maneira levar as autoridades a perseguirem o seu irmão fugitivo.

 

Começaram a seguir juntos pelo corredor.

 

- Fiz DeMille prometer que concluiremos a discussão do preço ao fim da tarde, - disse-lhe ela.

 

- Como conseguiu?

 

- Ameaças. Insinuei que havia outro editor que estava interessado.

- É verdade?

 

Ela sorriu. - Digamos que há nisto um elemento de verdade. o facto é que, Owen - hesitou por instantes e relanceou o olhar para ele com alguma apreensão - esta questão da exposição, dolorosa e perversa como é, pode ter duplicado o seu valor da noite para o dia.

 

Owen conseguiu levar a Bernie com ele para a décima fila da secção da imprensa. As pessoas voltaram a cabeça para ele, mas ninguém se atreveu a incomodá-lo, porque o juiz estava a falar para o júri, a dizer-lhes que, depois das alegações finais, dar-lhes-ia as instruções do júri e falar-lhes-ia sobre o processo altamente disciplinado que um júri tem de usar para chegar a um veredicto.

 

o juiz Pulaski voltou então a cabeça para a frente e percorreu a sala de audiências com uma expressão carregada. - Vamos agora dar início às alegações finais. A porta será fechada e qualquer perturbação terá como resultado a imediata expulsão.
- Dr. Rossner, está pronto para começar as suas alegações finais? Rossner levantou-se e toda a sala de audiências susteve a respiração na expectativa.

 

- Senhoras e senhores do júri, esta é a minha última oportunidade de lhes falar em defesa de Lenore Serian. Espero que estas minhas últimas palavras façam justiça a esta mulher... tenham como resultado que seja feita justiça. É para isso que aqui estou. Para conseguir obter justiça para ela.

 

Rossner movimentava-se com à-vontade em frente do júri. Estava descontraído e simpático, era franco e sincero.

 

- Se ela pudesse falar por si própria, era o que faria. Mas não está habilitada a representar-se a si própria perante os senhores, tal como não está habílitada a fazer uma cirurgia ao coração nem a projectar uma ponte. o nosso sistema legal tornou-se demasiado complexo para uma pessoa sem formação ser capaz de avançar e fazer a auto-defesa.

 

- Não me interpretem mal! Não estou a criticar o nosso sistema legal, estou apenas a especificar os factos. o nosso sistema legal é o melhor do mundo. o melhor! E sabem qual o coração do nosso sistema... a presunção de ínocêncía. Lenore Serian é presumida inocente a não ser que o Dr. Brown consiga demonstrar o contrário.

 

- Neste grande país que são os Estados Unidos da América, todos nós somos considerados inocentes a não ser que haja provas de culpa. Não até mas a não ser que. Estão a ver a diferença? Até faz com que pareça que todos nós andemos com uma hora limite a fazer tique-taque e que só nos resta o tempo até que alguém nos declare culpados de alguma coisa. A não ser que, a expressão a não ser que... dá àquela grande frase o seu sentido verdadeiro e legal. Considerados inocentes a não ser que existam provas de culpa. o que garante que todos e cada um de nós está inocente segundo a lei, desde o dia em que nascemos até ao dia em que morremos, a não ser que alguém apresente um processo sólido que prove perante um júri que somos culpados para além de toda a dúvida razoável. Essa é a pedra angular na qual o nosso sistema se fundamenta. É esse o direito com que cada um de nós nasce nesta grande nação.

 

- Considerados inocentes a não ser que existam provas de culpa. Provas de culpa apresentadas por quem? - Rossner voltou-se e fez um aceno de cortesia para a mesa de Brown e Dapolito. - Os promotores de justiça. Ali o Dr. Brown e o Dr. Dapolito. É o trabalho deles. É para isso que todas as manhãs se levantam e vão trabalhar. Para tentar provar que as pessoas são culpadas de fazer coisas. Para tentar provar que Lenore Serian é culpada de ter morto o marido. Mas porque a Lenore, tal como cada um de nós, tem uma presunção básica de inocência, os promotores no nosso sistema têm aquilo a que se chama o ónus da prova.

 

- o ónus da prova.

 

- Colocado de forma simples, o que isso significa é que Lenore Serian não tem de levantar um único dedo para se defender. A lei diz que ela está inocente a não ser que o Dr. Brown e o Dr. Dapolito consigam provar, para além de toda a dúvida razoável, que ela é culpada.

Rossner voltou-se para lançar um olhar penetrante a Brown e Dapolito. - Mas a acusação tem procurado distorcer as coisas neste julgamento. Eles têm um caso tão circunstancial, um caso tão irracional, ilógico, cheio de buracos, que tiveram de usar de evasivas. Dizem que a Lenore comprou um candeeiro que podia provavelmente ter desempenhado um papel na morte de Bram Serian, e ela estava na Arcádia quando Bram Serian morreu, e foi ouvida a discutir com ele por várias vezes no decurso dos seus treze anos de casamento, portanto... a não ser que ela consiga provar que não o matou, então ela tem de ser culpada. Levantou as mãos.

 

- Alto, aí! Esperem um minuto. Não é assim que funciona no nosso país, minha gente. o acusado não tem o ónus da prova. É a acusação quem tem o ónus da prova. Eles não podem, assim sem mais nem menos, acusar as pessoas de crimes e depois dizerem, ’Está bem... agora procure provar que está inocente,’ como podem fazer as autoridades em alguns países. Não podem, sem mais nem menos, espezinhar os direitos da pessoa no nosso sistema. Se fazem uma acusação a um cidadão, então eles têm a responsabilidade de provar essa acusação. E não podem limitar-se a insinuar a culpa. Eles têm de provar-lhes que Lenore é culpada para além de toda a dúvida razoável.

 

Parou como que para reconsiderar a expressão.

 

- Agora há uma outra das nossas preciosidades legais. Dúvida razoável. o juiz Pulaski falou-lhes um pouco sobre a dúvida razoável no princípio deste julgamento, e vai falar-lhes novamente sobre isso mais tarde. Trata-se de um conceito muito importante. Especialmente num caso circunstancial como este. Para declararem a Lenore como culpada, vocês, o júri, têm de ficar absolutamente convencidos por parte da acusação, que não lhes resta na mente qualquer dúvida razoável. Nenhuma dúvida razoável. Nem uma única dúvida razoável que possa levá-los a discuti-la com outro membro do júri. Porque, estão a ver, neste grande país que é o nosso, damos ao arguido... damos a todo e qualquer cidadão... o benefício da dúvida.

 

Rossner foi ao pódio para beber um gole de água; depois deu um puxão à orelha por instantes, como se estivesse a reflectir nas coisas.

 

- Vamos olhar para as circunstâncias neste caso e ver como se ajustam estes excelentes conceitos legais. Primeiro, temos o candeeiro. Não há dúvida que Lenore Serian entrou no armazém de ferragens do senhor Fugate e entregou-lhe umas listas de compras, uma que incluía um candeeiro de vidro a petróleo, juntamente com um fornecimento de petróleo para candeeiros. Isso é um facto. A acusação fez o seu dever, assumiu o ónus da prova e provou esse facto... que nunca contestámos.

 

- Mas será que a acusação provou alguma coisa para além disso? Não. George Fugate acha que se lembra que a lista com o candeeiro não estava escrita com a letra de Natalie Raven. Uma vez que essa lista já não existe e ninguém a viu para além de George Fugate, nunca saberemos se ele é bom a identificar a caligrafia de um comprador ou até que ponto ele tem boa memória. Talvez não seja muito boa. Mas vamos, considerar, só para avançarmos, que George Fugate é um autêntico génio a fazer análise de caligrafias e tem uma memória de catorze quilates... o que é que ficou provado?
- E se foi a Lenore que escreveu a lista? Será que o facto de incluir um candeeiro numa lista de compras e de ir a um armazém de ferragens prova que ela queria matar o marido? Definitivamente não! É absurdo insinuar tal coisa.

 

- Que provas nos foram dadas de que a lista de compras não estava escrita com a caligrafia de Bram Serian? George Fugate não disse que o Serian costumava fazer as suas compras pessoalmente, sem usar nenhuma lista? E que o Serian nunca pagava com cheque nem teve a oportunidade de escrever ao senhor Fugate uma nota ou letra? Donde se conclui, nesse caso, que apesar dos grandes conhecimentos que o senhor Fugate tinha de caligrafias, isso não incluía qualquer familiarização com a caligrafia de Bram Serian. Portanto, se essa lista existiu, e se de facto não estava escrita com a letra de Natalie Raven, a acusação provou que a lista não tinha sido escrita pelo próprio Bram Serian? Não! Nem isso conseguiram provar! Não conseguiram provar que Bram Serian não entregou uma lista à sua mulher e lhe disse, vai buscar-me isto se fores à cidade, querida.

 

- E todas aquelas implicações sinistras... - Rossner fez uma careta de incredulidade indignante. - Todos esses disparates inventados que Natalie Raven engendrou- Vamos observar atentamente tudo isto. Natalie Raven queria fazer-nos acreditar que havia qualquer coisa de errado no facto de a Lenore comprar aquele candeeiro. Ela queria fazer-nos acreditar que havia alguma coisa de traiçoeiro naquilo. E como é que ela justificou a sua interpretação da compra do candeeiro? Porquê, o facto de ela conhecer Bram Serian melhor do que a própria esposa? Esperem um minuto!

 

- o que é que a acusação provou com o testemunho de Natalie Raven relativamente à compra do candeeiro? Nada! Excepto, talvez, que Natalie Raven era possessiva em relação a Bram Serian e tinha ciúmes da Lenore. Ah! Dirão vocês... parece que Natalie Raven tinha motivos para cometer um assassínio. - Levantou uma sobrancelha com ar pensativo e deixou que a insinuação fosse absorvida.

 

- Portanto o candeeiro chega a casa e fica na carrinha e Natalie Raven ordena a Tonny Kubiak que vá devolvê-lo, mas então simplesmente desaparece. Para onde foi levado? Alguém viu a Lenore com ele? Não. Natalie Raven viu a Lenore levá-lo para casa? Não. Bram Serian podia tê-lo levado para o seu estúdio? Absolutamente.

 

- E aqui mais uma vez, senhoras e senhores, aqui mais uma vez estamos numa situação em que podemos dizer... está bem... e depois? A Lenore não descarregou o candeeiro do carro, mas mesmo que o tivesse feito, e depois? Um candeeiro a petróleo não é uma arma perigosa. Um candeeiro a petróleo não é uma espingarda, nem uma faca de ponta e mola, nem uma bomba! Na verdade, um candeeiro a petróleo é uma coisa utilizada vulgarmente no campo e já havia uma quantidade de candeeiros a petróleo nas instalações da Arcádia. A própria Natalie Raven confessou que tinha comprado alguns. Algum testemunho da compra deste candeeiro provou uma parcela mínima de culpa? Não! Definitivamente não!

 

Rossner levantou as mãos como se sem saber o que fazer perante tamanha absurdidade.


- Como sabemos que Bram Serian não tinha uma colecção de candeeiros a petróleo naquele seu estúdio? Não sabemos, porque nunca ninguém viu o interior daquele estúdio. Temos apenas o testemunho de Natalie Raven, que afirmou que ela sabia tudo o que Bram Serian fazia e não fazia, e portanto se ela diz que ele não tinha lá um candeeiro a petróleo, então é suposto que todos nós tomemos isso como se fosse o evangelho. Bem, vou até à janela verificar se há sol, como me disse a Natalie Raven.

 

Rossner estava todo lançado no seu discurso e toda a sala de audiências estava fascinada, Passou de Natalie Raven e o candeeiro para o testemunho de Tonny Kubiak sobre Lenore a queimar coisas. Salientou que seria muito fácil para uma pessoa jovem e sem experiência como o Tommy interpretar mal as atitudes de outra pessoa. Depois lembrou o júri que Stanley Cantor tinha apresentado as histórias de voodoo e de queimar velas pelo que eram completos disparates de ignorância.

 

Em seguida Rossner deu ao júri uma mini-lição sobre religião oriental e falou sobre a tradição de queimar coisas que pertenciam a uma pessoa que morreu e sobre como essa tradição se tem modificado, de modo que agora as pessoas queimam representações em papel daqueles pertences. E falou sobre o facto de Lenore se lembrar evidentemente de ver aquelas tradições durante a infância, e sobre o facto de cada um reconstituir os rituais da infância de vez em quando por nostalgia.

 

A seguir Rossner dedicou a sua atenção às pretensões de Natalie Raven de o Bram querer um divórcio. Descreveu Raven como uma mulher frustrada e infeliz, que queria Bram Serian para si própria e não aceitava que o artista amasse a esposa. Rossner falou sobre as discussões que a mulher afirmava ter ouvido, salientando que apenas uma daquelas afirmações tinha sido corroborada. Depois examinou as discussões palavra por palavra, mostrando como podiam ser interpretadas de maneira diferente. Mostrando que o Bram e a Lenore podiam ter estado a discutir sobre uma quantidade de assuntos.

 

Sugeriu que se Bram Serian tinha importunado Natalie Raven com uma discussão sobre o divórcio, isso não queria dizer que o artista estivesse a considerar o divórcio ou que porventura tencionasse divorciar-se da esposa. E tornou claro que nenhuma outra testemunha podia corroborar a pretensão de Natalie Raven, de que Bram Serian queria o divórcio.

 

Owen procurou tentar esquecer tudo o que sabia e ouvir apenas o que o júri estava a ouvir. o que estariam aquelas doze pessoas a pensar? Estariam a compreender o Rossner? Estariam de acordo com ele? Os doze rostos estavam absolutamente impassíveis e tudo o que Owen podia ter por certo, era que eles estavam a ouvir com toda a atenção.

 

Rossner continuou dizendo que várias pessoas tinham procurado insinuar que a Lenore era estranha ou mesmo anti-social, e depois apresentou um argumento inflamado sobre a compreensão entre os diferentes povos do mundo, Lenore Serian foi criada numa cultura diferente, disse ele, criada com um conjunto diferente de regras sociais, por isso era evidente que ela devia parecer diferente às pessoas que tinham tido a sorte de ter sido criadas nos Estados Unidos, mas certamente, disse ele, certamente as pessoas com bom
senso e alguma sensibilidade teriam percebido qual era a origem da sua insegurança e dificuldades sociais. E pessoas como Stanley Cantor que tinham tido a preocupação de se aperceber das suas diferenças e da sua reserva inata, tinham achado que ela era uma pessoa bondosa e afectuosa.

 

- E há só mais uma coisa que gostava de apresentar antes de terminar, disse Rossner, - antes que os senhores, pessoas boas e pacientes, caiam para o lado por falta de almoço, e é o episódio desse James Collier.

 

- Acho-o chocante. Acho que é uma atitude pouco escrupulosa por parte da acusação, quando fez tantas insinuações indecorosas sobre a conduta de Lenore Serian com este homem do clero.

 

A seguir Rossner comentou a natureza platónica da relação entre Lenore e Collier. Lembrou os jurados que este homem de Deus tinha colocado a sua mão sobre a Bíblia e jurado que estava a dizer a verdade, tinha jurado que não teve relações físicas com a Lenore.

 

Owen susteve a respiração, perguntando-se até que ponto Rossner conhecia a verdade.

 

Depois de uma pausa dramática o advogado disse, - o Irmão James Collier era um homem que se tinha dedicado a uma vida religiosa e de ensino, uma vida calma e contemplativa. Portanto, quando James Collier conheceu Bram Serian, não estava apenas a conhecer um homem, mas um novo mundo deslumbrante e emocionante. E foi este mundo que seduziu o Irmão James. Foi o mundo de Bram Serian.

 

Rossner voltou-se para o juiz e acenou-lhe. Eram 12:45. o Juiz Pulaski ordenou uma interrupção de uma hora para o almoço, e toda a sala irrompeu num zumbido daquela massa de gente em movimento.

 

- Bemnmm... - A Bernie respirou fundo. - Não há dúvida que ele é muito bom. - Franziu as sobrancelhas, como se estivesse exasperada. - Todo aquele espalhafato sobre as velas é realmente absurdo. A minha recepcionista gosta daquelas mesmas velas e com certeza que não é uma má pessoa.

 

Owen sorriu. - Obrigado por ter vindo, Bernie. - Olhou à sua volta. Havia dezenas de rostos com os olhos fixos nele. - Provavelmente é melhor você levantar-se e sair sozinha. Eu posso ter de me esquivar a enfrentar algumas perguntas. Sabe o caminho para a estação dos comboios?

 

Ela acenou com a cabeça e deu-lhe um breve aperto da mão. - Desculpe ter de o deixar... Boa sorte... para vocês os dois. E telefone todos os dias. É uma ordem.

 

Owen conseguiu chegar ao hotel depois de uma elaborada série de estratagemas para despistar os jornalistas. Bateu à porta da sala principal e Riley deixou-o entrar e avisou-o que falasse em voz baixa. Rossner e Jacowitz estavam no quarto a rever o resto das alegações finais.

 

Owen sentou-se com a Lenore ao canto a comer o almoço.

- Achas que o júri acredita nele? - perguntou ela.

 

Ele pegou-lhe na mão. - Sim, - disse ele, procurando transparecer segurança na sua voz.


Depois do almoço Rossner foi directo à morte de Bram Serian. Imaginou cenários apoiados por citações de várias testemunhas, segundo as quais a morte de Serian podia ter sido completamente acidental. Andando aos tropeções a cair de bêbado, com um cigarro nas mãos, derrubando o candeeiro a petróleo, escorregando em seguida no petróleo derramado e batendo com a cabeça nos tijolos enquanto o cigarro aceso caía no meio do petróleo pegandolhe fogo. Ou caindo com o cigarro e derrubando o candeeiro enquanto caía. Ou ainda tentando trabalhar - bêbado e a fumar - derramando algum líquido volátil e íncendiando-o com o cigarro, depois tentando apagar o fogo com o machado, escorregando e batendo com a cabeça.

 

Ou, disse Rossner, o machado podia não ter absolutamente nada a ver com a morte. Podia simplesmente estar ali junto do fogão por qualquer motivo. Tendo em conta o costume de Serian de incluir objectos nas suas esculturas, o machado podia ter estado à mão para ser utilizado em alguma peça de arte. Ou podia ter sido um acessório, colocado ali junto do falso fogão a lenha, para dar a ilusão de a lenha ter sido cortada.

 

- Uma vez que o Xerife Bello apanhou a cabeça do machado, - Rossner disse ao júri, - e andou com ele por ali a mostrá-lo às pessoas, dizendo ’Parece que o gajo estava a tentar combater ele mesmo o incêndio’... uma vez que o bom do xerife perturbou a cena, sem respeitar quaisquer procedimentos formais de recolha de provas, não temos maneira de saber onde estava de facto o machado no edifício.

 

- Tal como não temos maneira de saber quem esteve no local quando chegou o xerife, porque ninguém fez uma lista, nem tentou contar sequer as pessoas presentes.

 

Rossner deteve-se. - Está bem, - disse ele, usando as mãos para fazer um sinal de concessão. - Para podermos continuar, vamos supor que a morte de Bram Serian não foi acidental. Não existem provas disso, mas vamos simular e continuar a partir daí. Vamos ver o que foi feito para apanhar o homicida.

 

- o Xerife Bello não suspeitava de crime, por isso não fez qualquer registo das chapas de matrícula dos veículos que foram retirados da lama. Não tomou nota das pessoas que se amontoaram no carro de Bram Serian e foram nele até à estação dos comboios para voltar para Manhattan. Nem sequer sabia que era o carro de Bram Serian. E, mais tarde, nem uma vez pensou em perguntar o que tinha acontecido ao carro de Bram Serian.

 

- o que fez o xerife? Em que consistiu a sua investigação do homicídio? Alguns dias mais tarde foi até lá à procura de rastos de pneus e beatas de cigarros. Rastos de pneus e beatas de cigarros! Numa área que tinha sido percorrida por camiões dos bombeiros, veículos da polícia e vizinhos curiosos... uma área que tinha sido transformada num mar de lama depois da morte de Serian, devido à água que tinha sido lançada para apagar o incêndio.

 

- o próprio delegado do xerife ouviu o tráfego na estrada às duas e dez e às três e cinquenta e sete, mas isso nunca foi investigado. Nem sequer foi tido em consideração.
Mandou um grupo de pessoas para fazer uma busca à Arcádia e recolher provas contra a Lenore, mas ninguém olhou para as argolas de chaves dependuradas bem à vista junto da porta das traseiras. Ninguém examinou aquelas chaves para ver se faltava alguma chave da porta do estúdio em alguma daquelas argolas e, caso isso acontecesse, verificar se naquela argola havia algumas impressões digitais.

 

E o que dizer da chave do estúdio? A chave que o Xerife Bello tirou da porta na manhã do incêndio. A chave que tinha uma enorme impressão do polegar do Xerife Bello. Alguma vez ele procurou indagar donde tinha vindo aquela chave e por que estava separada, quando Bram Serian guardava todas as suas chaves em conjuntos, e se era uma cópia feita numa loja de ferragens ou uma chave original da fechadura? Alguma vez procurou saber alguma coisa sobre a origem daquela chave? Não!

 

E por que é que Vincent Bello conduziu uma investigação de tão má qualidade? Será que ele é incompetente? Provavelmente. O xerife não se apercebeu de que tinha nas mãos uma morte problemática. Depois, quando tomou consciência do grave erro que tinha cometido, optou pelo caminho mais fácil. Foi à procura do possível suspeito que era mais fácil.

 

Não queria enfrentar toda a má publicidade de ter a morte de uma celebridade por resolver e ser questionada a qualidade do trabalho da sua polícia. E havia a governanta, Natalie Raven, aos berros, dizendo, que a viúva era quem tinha feito aquilo. A telefonar todos os dias para o seu escritório, a gritar que a viúva era quem tinha feito aquilo. E havia a viúva, uma escolha muito conveniente para uma suspeição de recurso, porque ela não tinha familiares nem amigos importantes que ficassem furiosos se ela fosse acusada, e ela era diferente... uma pessoa estranha... ela era o bode expiatório perfeito.

 

E a imprensa adorou! O Xerife Bello foi o herói dos meios de comunicação social por ter responsabilizado a Lenore pela morte do marido.

 

Rossner fez uma pausa.

 

Agora vamos olhar para o que o xerife teria visto se tivesse aberto os olhos e tivesse realmente investigado este caso. Vamos dar uma vista de olhos à festa daquela noite. Temos Natalie Raven, que era ciumenta e possessiva em relação ao seu patrão, que era obrigada a vê-lo feliz na companhia de pessoas que para ele eram muito mais importantes do que ela. Temos o Irmão James Collier, que sem dúvida se sentia humilhado com o seu próprio comportamento e possivelmente culpava o Serian por esse facto. E temos vários personagens como Lance Zabel, que gostava de seguir a Lenore Serian e espreitá-la, e Dar Quintana, que queria ser o amigo especial de Bram Serian. Depois temos um homem desconhecido a falar com Bram Serian às escuras, fora do círculo da festa, pouco tempo antes de o Serian ser morto.

 

Senhoras e senhores, pergunto-lhes. Mesmo uma pessoa que não tenha experiência na aplicação da lei pode ver as diferentes possibilidades. E isso sem ter em conta os carros a que reagiram os cães do Delegado Havlik na estrada às duas e dez e às três e cinquenta e sete. O que coloca a questão se o assassino podia ser alguém que nem sequer apareceu na festa. Ou algum convidado

 


da festa que partiu imediatamente a seguir ao homicídio, mas cuja ausência nem sequer foi notada, devido à falta de vigilância por parte do xerife. Rossner deu uma volta para ir beber um pouco de água e depois voltou para falar sobre as pinturas que foram encontradas lá fora e como aquilo podia indicar que o assassino tinha sido um ladrão que estava a tentar roubar obras de arte e foi apanhado em flagrante pelo Serian. Falou sobre as queimaduras de Lenore e de como estavam perfeitamente de acordo com a sua tentativa de entrar para ir ajudar o marido.

 

Charles Rossner fez uma pausa e baixou a voz para um tom mais solene, para se dirigir ao júri quanto ao dever que tinham à sua frente. Mais uma vez falou do ónus da prova e da presunção de inocência. Mas a sua ênfase era agora na dúvida razoável e mais uma vez esboçou todas as dúvidas razoáveis que o caso apresentava.

 

- Bram Serian está morto, - disse ele em conclusão. - Nada vai trazê-lo de volta. Certamente não o castigo de uma mulher inocente.

 

- Nós... e quero dizer todos nós... temos de ser capazes de dar um passo atrás e dizer: Não sabemos o que aconteceu. Talvez então o caso da morte de Bram Serian seja reaberto e as verdadeiras respostas sejam encontradas.

 

- A tarefa que os espera não é fácil, senhoras e senhores. É uma das mais difíceis que provavelmente alguma vez enfrentaram. Mas lembrem-se, enquanto estão a deliberar, que fazem parte de um grande sistema de justiça. E neste sistema não há vencedores nem vencidos. Isto não é um concurso da acusação contra a defesa. Quando prevalece a justiça somos todos vencedores.

- Obrigado.

 

Owen e Lenore ficaram sentados toda a noite a olhar para o fogo a arder na lareira numa das salas de estar. Nenhum deles falava. Estavam cheios de medo.

 

Para discutir as alegações finais de Rossner, teriam de reconhecer as inconsistências e as inverdades que continha. E fazer isso parecia um convite ao desastre. Por isso agarraram-se um ao outro, em silêncio, desesperadamente, e esperaram que amanhecesse.

 

Spencer Brown caminhou presunçosamente para o lugar no pódio na manhã seguinte, com uma mão cheia de folhas dactilografadas. Organizou as folhas e cumprimentou os jurados, agradecendo-lhes pelo seu tempo e paciência.

 

Disse-lhes quanto respeitava o seu sacrifício com o objectivo de servir no dever do júri e falou sobre como o julgamento por júri era o conceito legal mais importante na história da nação.

 

- o que têm perante vós, senhoras e senhores, são os depoimentos das testemunhas, que em conjunto formam uma descrição de um homicídio. Como jurados, os senhores vão pesar esses depoimentos. Vão considerar apenas as provas que provêm do testemunho naquela cadeira das testemunhas
e apenas os documentos oficiais que foram apresentados como provas. Vão analisar tudo isso através do uso de um processo sistemático, examinando as formas em que um elemento de prova complementa outro e conduz à conclusão final. E como vão chegar a essa conclusão final? Através do vosso bom senso, senhoras e senhores. Não existe nenhum mistério para chegar a um veredicto. Tudo o que é preciso é ter bom senso.

 

Em seguida Brown apresentou o caso, refutando os argumentos de Rossner. Apesar das frases complicadas de Spencer Brown, o quadro que ele pintou era simples e lógico.

 

Bram queria o divórcio. Lenore Serian era uma pessoa com agorafobia possessiva e anti-social, que não suportava ser expulsa do seu ninho confortável e ter de tratar da sua própria subsistência.

 

Ela comprou o candeeiro e o petróleo algumas semanas antes da festa, certa de que podia convencer o marido a colocá-lo no estúdio, para que depois pudesse ter uma forma segura de atear um fogo e fazer com que parecesse acidental. O fogo era um meio natural para ela, uma vez que tinha sido sempre fascinada pelo fogo e por queimar coisas.

 

Escolheu precisamente a festa, porque era caótica e havia menos hipóteses de alguém questionar o que tinha acontecido. Também porque tinha provavelmente contado com a demasiada complacência do marido, devido ao álcool tomado durante a festa, sabendo que seria mais fácil surpreendê-lo e bater-lhe na cabeça enquanto estava em tal estado. A festa era a sua camuflagem e a única ocasião em que sabia que a atenção de Natalie Raven estaria distraída.

 

Ela bateu na cabeça do marido com o machado, com a intenção de o deixar inconsciente, para que o incêndio o pudesse matar; depois partiu o candeeiro ao lado dele para fazer parecer tudo acidental. Provavelmente tencionava levar mais do que os três quadros que foram encontrados encostados à árvore, mas a rapidez e a força do fogo provocado pelo petróleo do candeeiro confundiu-a. Queimou-se e foi surpreendida pelo seu próprio trabalho artesanal. Foi nessa altura que Natalie Raven a avistou e lançou o alarme, interrompendo o plano de Lenore Serian.

 

Então a senhora Serian não teve tempo de fechar a porta e tirar a chave. Nem de esconder os quadros. Por isso ela ficou simplesmente ali e tentou apresentar-se como inocente.

 

Brown falou de como era fácil a um advogado de defesa de discurso fácil retirar um depoimento de uma testemunha, mas preveniu o júri que não se deixasse enganar com esse tipo de processos. Falou de como era fácil ridicularizar os factos do caso se os separasse e os examinasse individualmente, mas explicou que num caso como este os factos não deviam ser considerados separadamente. Deviam ser examinados como um todo.

 

Disse ao júri que um caso circunstancial era tão consistente, se não mais consistente, como um caso baseado inteiramente em provas concretas. Em seguida examinou passo a passo o relato dos acontecimentos na noite e na manhã da morte de Serian e defendeu os agentes da polícia envolvidos, dizendo que estavam a considerar as provas e as circunstâncias e estavam a usar o bom senso que Deus lhes deu. Ridicularizou muitas versões dos acontecimentos apresentadas por Rossner.

 

Às 13:45, quando toda a gente na sala já estava a ficar irrequieta, Brown disse, - Os senhores têm um conjunto de evidências para examinar, senhoras e senhores. Usem o vosso bom senso. Não se deixem influenciar por distracções e prestidigitação e conversa verbosa. A arguida não manifestou qualquer remorso nem arrependimento. Não permitam que ela saia impune deste julgamento. Em nome do povo do Estado de Nova lorque, peço-lhes que declarem o único veredicto justo e lógico que é possível... peço-lhes que declarem a arguida culpada,

 

Depois de um pequeno intervalo para o almoço, toda a gente voltou para os seus lugares, se bem que a secção da assistência tivesse diminuído consideravelmente, agora que o dramatismo das alegações finais tinha chegado ao fim.

 

o juiz Pulaski mandou entrar o júri.

 

- Senhoras e senhores, - disse-lhes ele, - estão a desempenhar uma função numa grande tradição legal honrosa. Felicito-os a todos. Respeito-os e admiro-os pelo vosso serviço paciente e cuidadoso e pelo vosso difícil trabalho. Porque servir num júri é um trabalho difícil. Requer dedicação, perseverança e extrema atenção aos pormenores e aos procedimentos.

 

-Agora vão retirar-se para a sala do júri para um último teste à vossa persistência - para decidir o destino da arguida. Pensem na tarefa que está à vossa frente! Pensem no que ela significa! Vocês os doze, desconhecidos antes de se sentarem nessa bancada, agora vão abordar as questões fundamentais.

 

- Vou agora fazer as recomendações ao júri... as vossas instruções... após o que Pulaski virou as páginas que estavam à sua frente, que eram o resultado da interminável discussão das recomendações ao júri dos dias anteriores, e começou a ler na entoação mais monótona que se possa imaginar.

- Um júri tem de seguir um procedimento altamente disciplinado...

 

E continuou naquele tom monocórdico. De vez em quando, uma ou outra frase chamava a atenção de Owen. Cada um dos senhores deve seguir o seu próprio caminho. Não têm de concordar em tudo, mas têm de concordar nos factos materiais. Usem o vosso bom senso. Todas as decisões tomadas devem ser conseguidas através de raciocínio lógico, embora possam tomar caminhos dedutivos diferentes. Não devem ter em consideração tudo o que foi eliminado dos registos ou que não foi aceite como prova.

 

Owen. observou o júri a esforçar-se por compreender, a esforçar-se por manter a atenção concentrada e finalmente, passada uma hora, a esforçar-se por manter os olhos abertos.

 

Por fim, o juiz deu-lhes algumas explicações sobre a dúvida razoável. - Para chegarem ao veredicto, devem empregar o conceito de dúvida razoável. Uma dúvida razoável é uma dúvida em que podem mencionar um motivo, tanto para vós próprios como para os vossos colegas jurados. Para pronunciarem a arguida culpada, cada um de vós tem de estar convencido da sua culpa, para além de qualquer dúvida razoável. Por outras palavras, não devem ficar com qualquer dúvida razoável na vossa mente.


Dúvida razoável. Rossner tinha aparentemente perdido na sua tentativa para conseguir a certeza moral. Owen observou os rostos dos jurados e rezou para que compreendessem o conceito. Rezou para que ficassem cheios de dúvidas.

 

Depois o júri desfilou para sair da sala e começar as deliberações, e a tensão abrandou na sala de audiências. Os espectadores que permaneciam na sala foram saindo pouco a pouco. Spencer Brown debruçou-se na balaustrada de madeira e disse a Holly Danielson qualquer coisa que a fez rir. Owen cerrou os dentes e tentou ignorá-los.

 

Lá na frente um oficial de justiça subiu os degraus até ao lugar do juiz e entregou-lhe uma tira de papel dobrado. Toda a gente prestou atenção.

 

Tenho aqui um bilhete do júri, anunciou o juiz. Solicitam uma cópia escrita das instruções do júri, ou a leitura de algumas partes das instruções.

 

Rossner reagiu imediatamente, dizendo, Acho que devíamos fornecer-lhes o documento, Meritíssimo.

 

Brown levantou-se para discordar, e deu-se início a uma argumentação em surdina. Owen tentou imaginar os jurados sentados à volta de uma mesa na limitada sala de deliberações, à espera de uma resposta imediata. Mal eles sabiam a discussão que o seu simples pedido tinha provocado.

 

Jacowitz tinha razão, a espera era a parte mais difícil. Toda a gente andava de um lado para o outro sem objectivo. Os repórteres entravam e saíam da sala, correndo pelas escadas abaixo para conversarem uns com os outros, ou para tomar café junto das máquinas automáticas de venda, depois subiam novamente a correr para ver como estavam as coisas. Tanto Rossner como Brown estavam descontraídos. O juiz desejou um feliz aniversário a um dos oficiais de diligências, depois começou novamente a falar sobre os planos para as suas férias. Apenas Lenore ficou quieta no seu lugar.

 

Vieram mais dois bilhetes do júri. Queriam ver os diagramas do projecto do soalho do estúdio. Foi-lhes mandado o póster com uma nota escrita do juiz a esclarecer que todos os documentos solicitados teriam de ser devolvidos à guarda do tribunal todas as noites quando suspendessem os trabalhos. O juiz leu a nota em voz alta antes de a enviar ao júri.

 

Owen estava com as costas arqueadas, mergulhado na sua angústia, quando se apercebeu de visitantes. Levantou os olhos e viu que a Marilyn e a Pat se tinham mudado para o banco atrás dele e estavam a debruçar-se para a frente para falar com ele.

 

Lamentamos deveras... começou a Pat a dizer. Não fazíamos a mínima ideia de que a Holly ia fazer uma coisa dessas.

 

Nós também ficámos chocadas, confirmou a Marilyn. Só queríamos que soubesse que não tivemos nada a ver com isso.

 

Eu sabia que ela era ambiciosa. A Pat abanou a cabeça. Mas nunca imaginei...

 

Aquilo não foi só por ambição, disse a Marilyn, com uma expressão de quem sabe de tudo, - o Owen provavelmente compreende melhor do que qualquer uma de nós, o que uma pessoa é capaz de fazer, não é verdade, Owen? Seja como for, apenas queríamos que soubesse... nós não somos o inimigo.

 

- Obrigado, - disse-lhes Owen.

 

A Marilyn riu-se com ar malicioso. - Não tem nenhuma declaração que gostasse de fazer à imprensa, pois não?

 

O segundo dia de deliberações foi ainda mais aborrecido do que o primeiro. De vez em quando os jurados solicitavam que lhes fosse lida uma pequena passagem de um depoimento, e havia então uma agitação de movimentos enquanto eram escoltados para voltarem para a bancada do júri e o escrivão lhes lia o excerto solicitado no seu tom monótono característico. A questão das instruções escritas tinha sido finalmente resolvida e tinha-lhes sido enviada uma cópia. Owen perguntou-se se estaria a ajudar ou a afectar as hipóteses de Lenore.

 

Jacowitz disse a Lenore que estava autorizada a esperar no quarto do hotel, mas ela recusou e permaneceu no seu lugar à mesa da defesa. Owen alternava períodos em que não podia estar parado com períodos de quase sonolência. Não havia um verdadeiro alívio. Não conseguia concentrar-se o suficiente para ler um livro e não estava interessado em ler os jornais. Riley deu-lhe umas palavras cruzadas para passar o tempo, mas ele não conseguia concentrar-se a procurar a palavra de duas letras para multidão. Por fim Jacowitz entregou-lhe uma pilha de transcrições dactilografadas do julgamento.

 

- Tome, - disse a Owen. - Leia isto. Tome notas para o seu livro ou o que quiser.

 

Owen tomou aquilo como uma brincadeira, mas passado pouco tempo estava completamente absorvido na leitura. Ao ler os depoimentos, era possível reparar em pequenas coisas que lhe tinham passado despercebidas no momento em que as testemunhas estavam a depor. Terminou a parte que dizia respeito a James Collier e verificou que os seus pensamentos estavam de novo mais concentrados no mistério do que na situação difícil de Lenore. Era possível que nunca se chegasse a saber toda a verdade, que nunca houvesse um esclarecimento nem a resolução daquilo que o preocupava.

 

Teria Bram Serian morrido por acidente? Não. Owen não podia aceitar que um homem tão vigoroso e carismático e cruel como era Bram Serian um homem que era amado e odiado até ao limite - pudesse ter uma morte tão simples, quase estúpida.

 

No seu íntimo tinha a certeza que Bram Serian tinha sido assassinado. Mas por quem? Podia ter sido o homem com que Bram Serian tinha estado a falar no escuro junto às mesas com comida? Seria o assassino que James Collier tinha visto com Bram naquela noite?

 

Owen sentiu um arrepio a percorrer-lhe a espinha dorsal. Se isso fosse verdade, então a Lenore também o tinha visto, porque a Lenore também tinha estado lá fora ao escuro naquela noite, a observar o Bram das árvores. De repente Owen endireitou-se no banco.

 

Lenore! Meu Deus! Como ele tinha estado cego. A Lenore tinha estado a proteger alguém! Já tinha sentido aquilo antes, mas tinha deixado de ligar quando teve conhecimento da verdade sobre o Collier. Agora sabia que era verdade. A Lenore tinha visto o Bram encontrar-se com o seu assassino. Até podia tê-lo voltado a ver quando seguiu o Bram para o estúdio. E a Lenore tinha estado a proteger aquele assassino de todos eles.

 

Naquela noite, na segurança da privacidade da Arcádia, Owen perguntou-lhe - Quem escreveu a lista de compras para o candeeiro, Lenore? Ela hesitou por instantes. - Foi o Bram que ma deu. Escreveu-a e pediu-me para a trazer porque, disse ele, não queria pedir à Natalie.

 

Owen pensou naquela informação. - Alguma vez pensaste em quem terá assassinado o Bram? No que se terá passado no estúdio naquela noite?

 

- Não, - respondeu ela rispidamente.

 

- Por que não? Estás assim tão convencida de que foi um acidente?

- Não quero falar sobre isso, Owen.

 

- Está bem, mas eu quero, Lenore. Acho que finalmente compreendi tudo isto.

 

Ela levantou-se de um salto e saiu da sala, mas ele agarrou-lhe o braço.

- Fala comigo, Lenore. Quem foi que viste com o Bram naquela noite? Quem estava lá fora no escuro à espera dele?

 

o rosto dela ficou impassível, desprovido de expressão, mas os seus olhos verteram lágrimas que correram pela cara. Ele sentiu um aperto no coração ao vê-la chorar, esta mulher que nunca se permitia derramar lágrimas. Que nunca se permitia ter fraquezas.

 

- Lenore... quem poderá ser tão importante para ti? Quem estás a querer proteger?

 

Mas naquele momento percebeu. E a última peça do quebra-cabeças encaixou-se suavemente no seu lugar.

 

- Foi o AL, não foi? o AL voltou naquela noite. E o que tu me disseste sobre teres ouvido por acaso uma discussão entre o Bram e o AL que te levou a desconfiar que o AL era o teu pai... foi quando os ouviste. Estou certo? Tu nunca os ouviste a falar de ti antes de o AL se ir embora. Naquela altura não desconfiavas que o AL era o teu pai. Tu nunca desconfiaste até àquela noite. Precisamente naquela noite.

 

- Estou certo, não estou?

 

o seu aceno de cabeça foi quase imperceptível.

 

- Defrontaste-te com o Bram quando o apanhaste no caminho para o estúdio? Foi essa a discussão que as pessoas ouviram?
Não. Não o enfrentei porque sabia que ele nunca me contaria a verdade. Ia esperar para perguntar ao Al.

 

Então qual foi o motivo da vossa discussão?

 

O Bram confessou-me que havia alguns meses tinha entrado em contacto com o Al e estava a tentar convencê-lo a voltar. O seu plano era voltar a fechar o Al dentro do estúdio e obrigá-lo à força a tomar os medicamentos. E queria que eu o ajudasse. Eu disse-lhe que não. E disse-lhe que não ia permitir que voltasse a manter ali o Al prisioneiro.

 

E depois, o que aconteceu?

 

Esperava-se que o Al se encontrasse com o Bram no estúdio, mas ele não apareceu. O Bram disse que provavelmente eu o tinha afugentado. Que ele devia estar a observar algures no meio das árvores e que eu devia ir para dentro de casa e que podia ver o Al no dia seguinte, depois de toda a gente se ter ido embora.

 

Então pensei em gritar. Em correr pelo meio das árvores a gritar para o Al se afastar, para que o Bram não o apanhasse. Mas tinha medo que, se fizesse isso, o Al fugisse novamente e desaparecesse, e nesse caso nunca teria oportunidade de lhe perguntar se era o meu pai.

 

Viste o Al a entrar no estúdio?

 

Não. Para persuadir o Al a sair das árvores, o Bram entrou no estúdio e desligou todas as lâmpadas do pátio, tornando impossível ver da casa a porta do estúdio. Eu estava na cozinha, à espera. Tinha dito ao Bram que ia para a cama, mas não fui. Estava determinada a voltar lá, logo que tivesse a certeza de que o Al estava lá dentro. Esperei durante muito tempo sem conseguir ver nada. Depois devo ter dormitado durante algum tempo, porque de repente sentei-me e consegui ver que a porta do estúdio estava aberta. E havia luminosidade a sair do estúdio.

 

Corri para fora. E foi quando vi que havia um incêndio.

 

E o Al já tinha desaparecido? Ela acenou com a cabeça.

 

Owen respirou fundo e examinou os olhos dela. Portanto havia mais motivos para não conseguires aceitar a ideia de que o Al era o teu pai... mais do que o facto de ele ser um homem perturbado que nunca tinha demonstrado amor por ti em todos os anos que viveste com ele na Arcádia. Havia mais motivos para a tua rejeição... não havia? Estavas desesperada por acreditar que o teu pai era outra pessoa, porque se fosse o Al, isso significava que ele tinha voltado a abandonar-te, ao deixar-te enfrentar o julgamento no lugar dele, por homicídio.

 

Ela debruçou-se então, e teria caído ao chão se Owen não a tivesse segurado. Abraçou-a com força, desejando isolá-la de tudo o resto. A necessidade que sentia em protegê-la era tão grande que o encheu de ferocidade primária.

 

Porquê? Por que te mantiveste calada? Achas que ele merecia que a tua vida fosse destruída?

 

Eu não podia denunciá-lo, murmurou ela. Mesmo sabendo que havia uma hipótese muito remota... E agora tenho a certeza... como posso destruir o homem que a minha mãe amou?
Owen abraçou-a ainda com mais força. - Se fores condenada, não vou ficar calado, - preveníu-a. - Não posso ficar calado. Vou contar-lhes a verdade.

 

Sábado foi o terceiro dia de deliberações. A atmosfera conseguia ser ao mesmo tempo de indolência e de tensão. Ambos os advogados conversavam muito um com o outro, discutindo o caso e contando histórias divertidas de casos anteriores. o juiz estava no seu lugar a trabalhar a um computador portátil. Por todo o tribunal as pessoas andavam sem fazer nada, ou liam, jogavam cartas, tricotavam, desenhavam, escreviam cartas. Qualquer coisa para passar o tempo. Owen confinou-se ao segundo andar, para estar junto de Lenore, que persistia em ficar sentada à mesa da defesa, e também para evitar a Holly, que estava na conversa ao fundo das escadas, junto das máquinas de venda automática.

 

Às 11.20, o júri emitiu a nota número 17, pedindo para ouvir novamente o depoimento do Xerife Bello.

 

Dapolito lamentou-se em voz alta. - o que se passa, Tony? - perguntou-lhe Spencer Brown.

 

- Estava com esperança que houvesse um veredicto antes do intervalo do almoço. Estou farto de comer pizza.

 

Os intervalos para o almoço eram tão curtos que toda a gente encomendava pizzas. Ao meio-dia todo o tribunal cheirava a comida como se fosse um restaurante italiano.

 

o júri entrou na sala para a leitura do depoimento de Bello. Alguns repórteres mais activos vieram observar os jurados enquanto ouviam a leitura do depoimento, procurando descobrir pelas suas expressões para que lado estavam inclinados.

 

Às 11:48 foi emitida mais uma nota e Dapolito lamentou-se mais uma vez.

- o que foi agora? - perguntaram várias pessoas a rir.

 

- Agora vão pedir uma leitura completa, o que vai atrasar a minha pizza, - queixou-se Dapolito.

 

o juiz leu o bilhete, endireitou-se e fechou o computador portátil. Imediatamente toda a gente na sala de audiências ficou em tensão. Alguma coisa estava a acontecer.

 

- Temos um veredicto, - disse o juiz Pulaski formalmente.

 

As pessoas apressaram-se a ir para os seus lugares. Owen hesitou, sem saber ao certo qual era o seu lugar, depois dirigiu-se para a frente ao lado de Jacowitz e atrás de Lenore. Tocou-lhe no ombro e ela vírou-se e olhou para ele. Notava-se nos olhos que estava cheia de medo.

 

No espaço de cinco minutos, toda a gente no tribunal, incluindo os funcionários do tribunal que estavam no intervalo do almoço, tinham acorrido à sala de audiências número 6 para ouvir o veredicto final. Os jurados entraram em fila e ocuparam os seus lugares, olhando nervosamente à sua volta.

 

Rossner e Lenore levantaram-se enquanto o júri estava a entrar, por isso não foi necessário o juiz pedir à arguida que se levantasse. Owen viu Rossner fechar a mão por baixo do cotovelo dela. Lembre-se, sussurrou Rossner, se acontecer o pior... ainda podemos apelar... há outras coisas que podemos fazer.

 

O oficial de justiça fez o registo oficial, tomando nota da presença de todos os jurados.

 

Chegaram a um veredicto? perguntou solenemente o Juiz Pulaski.

 

O presidente do júri, um homem velho e magro, levantou-se e disse. Chegámos, Meritríssimo. Inclinou-se para a frente enquanto falava, para se agarrar ao corrimão que estava à volta da bancada do júri, como se tivesse medo de cair.

 

E como declaram a arguida?

 

Meritríssimo, declaramos a arguida Livre de Culpa.

 

Fez-se um silêncio absoluto por instantes. Depois a sala encheu-se de ruído. Lenore ficou como uma estátua. Rossner deu-lhe um abraço. Jacowitz debruçou-se do corrimão e deu-lhe um abraço. Volpe e Riley abraçaram-na.

 

Estou livre? perguntou ela a murmurar estonteada, e toda a gente se riu. Apenas Owen compreendeu.

 

Mais tarde depois de o juiz e os dois advogados terem feito discursos de agradecimento ao júri, depois de a Lenore se ter recusado a participar na conferência de imprensa em que iam falar Brown, Rossner e todos os jurados, depois de terem passado pelo meio dos repórteres para sair do edifício, parando apenas o tempo necessário para Owen privilegiar a Marilyn e a Pat com uma declaração em nome da Lenore, Isto tem sido um pesadelo, mas a verdade saiu vitoriosa, e depois de Lenore ter dito a Joe Volpe que podia deitar fora a capa definitivamente foram directamente para a Arcádia. Naquela noite estava previsto um jantar comemorativo em Manhattan com Rossner e a esposa, Jacowitz, Volpe, Riley e a esposa de Riley.

 

Cautelosamente, Owen introduziu a ideia de ficarem em Manhattan depois do jantar. Lenore olhou para ele de sobrancelhas carregadas, como se tivesse feito uma sugestão irresponsável.

 

Por que não, Lenore? O que te faz permanecer na Arcádia agora? Por que não atiramos com o meu trabalho e algumas peças da tua roupa para dentro do carro e ficamos em Manhattan o tempo que nos apetecer? Considera isso como umas férias.

 

Ela continuou a olhar para ele, mas ele conseguiu perceber que a ideia estava a apoderar-se da sua mente. Achas que devo?

 

Podes ter a certeza que sim. Vamos comer boa comida e ver algumas coisas dignas de se ver. E tu podes saborear o que é ser uma mulher independente da cidade.

 

Ela riu-se, mas ele ficou com a impressão de que ela estava apreensiva. Sabes, Owen, o Bram nunca me levou a Manhattan. Ninguém me levou. Aquela noite contigo foi a única vez que estive lá.

 

Hei, achas que sou um nativo? Se eu sou capaz de lidar com a cidade, qualquer pessoa também é capaz.

 

- Mas ficar... - PÔS a mão na boca e olhou para ele com nervosismo. Nunca passei uma noite fora da Arcádia. Nunca, desde que fui levada para lá.

 

- Está então resolvido. o apartamento em Manhattan não é propriamente como se fosse Arcádia na cidade, mas é onde vais dormir comigo esta noite. E não há mais discussão.

 

Lenore telefonou a Geneva Johnson, Françoise Newman e James Collier a dar-lhes a notícia, para o caso de ainda não terem ouvido as notícias. No dia seguinte Geneva Johnson foi bater à porta do apartamento.

 

Lenore estava a dormir, por isso Owen deixou entrar a Geneva e falaram baixinho. - Venho cá para levá-la a almoçar fora. Para comemorar, - explicou a Geneva. - já comemorámos durante toda a noite, - disse-lhe Owen. - É por isso que ela ainda está a dormir.

 

A Geneva puxou uma cadeira e sentou-se à mesa. - Mas o que julga que está a fazer, Owen? Como imagina que isto vai acabar?

 

Ele olhou para a Lenore. Estava deitada de lado, com o cabelo ondulando nas costas dela numa longa trança. o seu rosto estava tranquilo. A bela adormecida. Como aquele nome se lhe ajustava perfeitamente. Aprisionada num castelo sombrio até agora.

 

- Geneva, ela gosta muito de si. E eu sei que você gosta muito dela. Não estou a querer depreciar isso de modo algum. Mas você pode não saber o que é conveniente para ela.

 

As narinas da Geneva dilataram-se com a raiva. - Essa rapariga tem sido tão lixada... ela precisa de uma equipa de terapeutas e de dez anos a viver no mundo real, antes de provavelmente ter força suficiente para ter uma relação com um homem. Não consegue ver isso?

 

- Comigo ela não precisa de ser forte. Eu posso protegê-la, guiá-la, ajudála a aprender. Quem mais consegue fazer isso por ela? Em quem mais pode ela confiar tão totalmente como pode confiar em mim?

 

- Aí é que está o problema. Você vai tornar-se tudo para ela. Professor, amigo, amante. E depois o que acontece quando quiser deixá-la? Pensa que nessa altura ela já será uma rapariga moderna e que não vai dar grande ímportância a isso? Não! É melhor dizer que vai ser uma desgraça. Vai destruí-la completamente. E a única maneira de impedir isso é libertá-la agora antes de você a afundar mais.

 

- E até que ponto acha que eu estou afundado? o que é que eu faço?

 

Naquela tarde Owen ficou sozinho no apartamento. A Geneva tinha levado a Lenore a almoçar fora e a fazer o que a Geneva chamou de - uma vista de olhos feminina à cidade. - Owen mergulhou no trabalho, organizando o enorme volume de material que tinha e tentando ver de que maneira podia transformá-lo num livro. As horas passaram. Era domingo, por isso não podia telefonar à Bernie. Mas sentiu necessidade de telefonar a alguém.


Foi a Ellen que atendeu o telefone.

 

Olá, irmã. Como vão as coisas por aí?

 

Está tudo bem. Foi toda a gente ver os pais do Rusty, portanto tenho toda a casa por minha conta.

 

Viste alguma coisa no noticiário sobre o veredicto?

 

Qual veredicto?

 

No julgamento do homicídio em que tenho estado a trabalhar.

 

Oh... não. Porquê, já terminou?

 

Ontem. Declararam-na inocente.

 

Oh. Isso é bom ou mau para o teu livro?

 

É bom para ela e é só isso que me interessa.

 

Ummm. Diz-me lá, por que é que não me disseste que tinhas acabado com a Mike? Não posso acreditar que não tenhas dito uma única palavra. Ficou completamente desfeita.

 

Sinto muito saber disso.

 

Eu sabia que ias ter pena dela. Conhecendo-te como te conheço, vais ter calma e fazer as pazes com ela logo que voltes para casa.

 

Ele ficou a olhar para o telefone de moedas de aspecto maltratado. Eu não vou voltar para casa, Ellen. Pelo menos nos tempos mais próximos. E quando for, será apenas de visita.

 

Ela ficou em silêncio por momentos. Bem, espero que saibas bem o que estás a fazer, Owen.

 

Acho que sei.

 

Ela começou a chorar. Pára com isso, disse-lhe ele afavelmente. Tu disseste que também ias embora e que ias refazer a tua vida, lembras-te?

 

Eu sei. Mas é uma tristeza. Nunca mais será a mesma coisa. Nunca mais voltaremos a ser uma família.

 

Penso que deixámos de ser uma família quando a mãe morreu, Ellen. Era ela que fazia de nós uma família.

 

Queres que diga ao pai que não vais voltar?

 

Com certeza. Podes dizer. Duvido que ele diga alguma coisa.

 

Ele não devia ter feito o que te fez, Owen.

 

Talvez. Mas estou a começar a pensar que me fez um raio de um grande favor. Fui salvo, Ellen. Nunca me vou transformar no Clancy. Nem no Gus. Nunca vou ser o rei, e diabos me levem se não estou contente por isso.

 

O quê?

 

Não penses mais nisso. Não é importante. Tenho umas coisas dentro de caixas na antiga casa dos trabalhadores. Importas-te de mas enviar quando eu estiver instalado?

 

Claro que não.

 

Quando o dinheiro do meu livro chegar, vou ter dinheiro para poderes estudar, Ellen. E un bilhete para vires para Nova Iorque.

 

O quê?

 

Vens visitar-me. Tens uma cidade fabulosa para conhecer. E também uma pessoa.

 

o quê?

 

É tudo o que posso dizer-te por enquanto. Gosto muito de ti, minha irmã. Aguenta-te por aí.

 

Voltou para cima para começar a trabalhar e ficou tão absorvido que não se apercebeu das horas. Fora da janela a luz começava a ficar fraca e a seguir caiu na cidade a semi-escuridão. Esticou os músculos das costas aqueceu café e andou pelo quarto.

 

Pegou na almofada em que a Lenore tinha dormido. Tinha um leve cheiro a jasmim. Enterrou a cabeça nela e respirou fundo.

 

Tinha lido uma vez que o cérebro e possivelmente até os cromossomas se alteravam por cada competência dominada. Que o tecido do cérebro, depois de aprender a língua era fisiologicamente diferente do que era antes de falar e que o mesmo era verdade para gatinhar e andar e ler e andar de bicicleta. Cada novo passo ficava gravado para sempre dentro de nós. Seria o mesmo verdade para o amor?

 

Baixou-se para abrir a mala da Lenore. Sentiu mais uma vez a fragrância subtil de jasmim e mais alguma coisa mais exótica. Reconheceu algumas das peças de roupa como coisas que ela tinha usado na Arcádia e perguntou-se se eram das suas preferidas. Havia tantas coisas que não sabia sobre ela. Tantos pormenores por completar. Fechou a mala e abriu o pequeno saco. Continha champô e loção, escova de cabelo e escova de dentes. o aroma de jasmim era excitante. Sentou-se ali no chão, a beber o seu café e a tocar nas coisas dela e a inalar o aroma de jasmim.

 

Onde o levaria ela agora, perguntou-se. Iriam à procura do pai dela que estava perdido? Seria ela capaz de deitar tudo para trás das costas?

 

- o que está a fazer? - perguntou a Geneva quando entrou pela porta. Trazia um enorme saco de compras.

 

- Onde está a Lenore? - perguntou ele, pondo-se de pé num salto.

- Tenha calma. Ela tem uma surpresa para si. Está preparado?

 

- Com certeza.

 

A Geneva afastou-se da porta, estendeu o braço e disse, - Ta-da! - e a Lenore entrou, segura de si, mas com um sorriso nervoso. o seu cabelo de cor obsidiana estava cortado pelo queixo.

 

Owen ficou de boca aberta. - o teu cabelo! Como pudeste fazer uma coisa dessas?

 

A Lenore não resistiu e correu para a casa de banho. A Geneva bateu a porta com força e bateu com a mão no peito de Owen.

 

- Essa foi sensacional, - disse ela. - Um óptimo começo para o seu programa de recuperação.

 

- Bolas! - murmurou Owen, - fiquei surpreendido. julgava que o cabelo era importante para ela.

 

- Não, não era. o Serian nunca permitiu que ela o cortasse. Gostava que ela parecesse uma ’indígena.’ o facto de o cortar foi a sua grande afirmação de independência.
Oh, meu Deus...

 

Houve um ruído de vidro a partir-se e Owen precipitou-se para a casa de banho com a Geneva atrás dele. A maçaneta da fechadura não funcionava bem e Owen deitou a porta abaixo com um empurrão do ombro.

 

Lenore!

 

Ela estava ajoelhada no chão a varrer os fragmentos do espelho partido com as mãos desprotegidas. O sangue que lhe corria dos dedos manchou os ladrilhos brancos. Desculpa, disse ela, deixando cair uma mão cheia de vidros no cesto do lixo, esquecendo-se do mal que estava a fazer a si própria.

 

Owen levantou-a e a Geneva abriu a torneira da água fria do lavatório e ele segurou-lhe ambas as mãos na água a correr.

 

Owen enxugou-lhe as mãos o mais suavemente que pôde e envolveu-lhas em toalhas limpas. A Geneva saiu para ir comprar ligaduras e desinfectante e Owen levou a Lenore para o sofá, mantendo-a bem apertada contra ele, com medo de que acontecesse mais alguma coisa. Mas ela ficou dócil e sentou-se quietinha com as mãos envolvidas pela toalha no colo.

 

Preciso de ir para casa, disse ela.

 

Para casa?

 

Ela fez um breve movimento com a cabeça e os seus olhos ficaram reduzidos a pequenas fendas. Sim. Ainda tenho uma casa.

 

Lenore, disse ele, envolvendo-a nos braços, ignorando a sua teimosia. Encostou a sua cara à têmpora dela. Lenore... temos tanto para aprender um sobre o outro e ambos vamos cometer erros. Eu não tinha intenção de te magoar. Até podes rapar o cabelo se quiseres. Apenas fiquei surpreendido, foi apenas isso.

 

Pouco a pouco, ele sentiu que a tensão dela estava a aliviar.

 

Não tinha intenção de te partir o espelho, disse ela. Só que vi a minha cara reflectida nele e não suportei olhar para mim própria e de repente reparei que... estava despedaçado.

 

Porquê? Por que não suportaste olhar para ti própria?

 

Porque... a minha cara ainda tem fantasmas. Estar aqui contigo... estar em liberdade em Manhattan... cortar o cabelo, que o Serian não permitia... nada faz desaparecer os fantasmas.

 

Durante três dias após o incidente com o espelho, a Lenore não quis ver outras pessoas, por isso ficaram no apartamento, encomendando comida feita e fazendo amor. Owen tinha uma percepção dela tão intensa que era quase dolorosa. Não se cansava de olhar para ela e tinha a sensação de que era capaz de ver através da sua pele, de observar-lhe o coração e os ossos e as correntes sanguíneas. E mesmo assim, ela continuava a ser para ele um mistério. Continuava a ser surpreendente.

 

Às vezes sentia que ela estava por sua vez a olhar para ele. A observá-lo. Uma vez ouviu a sua respiração parar, depois recomeçar, depois parar novamente. - o que foi? - perguntou ele, e ela franziu um pouco as sobrancelhas. - Estou a tentar respirar contigo.

 

Passados três dias, ele disse-lhe que tinha de sair e persuadiu-a a descer as escadas para apreciar um dia primaveril maravilhoso. Caminharam durante horas, da East Village até à West Village e depois foram até aos Twenties, para almoçar comida das Caraibas no Vernon’s jerk Paradise. Nunca a comida tinha sido tão saborosa. Nunca o tempo tinha estado tão agradável. o roxo e o amarelo dos açafrões nunca tinham sido tão maravilhosos.

 

Foram de metropolitano até às Quinquagésima Nona e Quinta Avenidas, onde o Plaza Hotel estava esplendoroso, com a fonte de repuxo restaurada e as bandeiras hasteadas. Carruagens puxadas por cavalos estavam alinhadas na estrada para o Central Park e os artistas de animação de rua faziam representações para grupos de turistas ao sol. A Lenore interessava-se por tudo, fazendo perguntas, mergulhando na cidade como se estivesse sequiosa por absorver cada pormenor.

 

Atravessaram para a Grand Army Plaza e ela ficou a olhar para a estátua dourada. Owen leu-lhe o nome do escultor.

 

- Saint-Gaudens, - murmurou ela respeitosamente. - já vi fotografias dos seus trabalhos nos livros de arte do Bram. Gostava de saber mais sobre ele.

 

- Logo que domines a leitura, até podes querer assistir a algumas aulas,

- sugeriu Owen. - Li algures que dão aulas muito boas nos museus. Ou podias tirar um curso numa das escolas superiores que aqui há.


Posso fazer isso sem ter uma certidão de nascimento?

 

Tenho a certeza que sim. Mas essas questões legais têm de ser resolvidas de uma vez por todas, Lenore. Tens de falar com os advogados sobre essas tuas preocupações. Com o número de anos que já viveste aqui na América e o facto de seres legalmente casada com um americano, tenho a certeza de que vai ser bastante fácil demonstrar a tua cidadania.

 

Ela hesitou. Esses advogados... trabalharam por causa do Bram e agora trabalham por causa da herança. Não me parece que gostem de mim.

 

Mas eles não têm nada que gostar de ti.

 

Não. Quero dizer... acho que o Bram deixou as coisas de maneira a funcionarem contra mim. O seu testamento pressupunha que o Al estivesse presente como herdeiro, sabes.

 

Lenore, eu não sei nada sobre como funciona a lei das sucessões. Mas sei isto. Precisas de alguém do teu lado. Telefona a Charles Rossner e pede-lhe que te recomende alguém em quem possas confiar.

 

Ainda tenho muito dinheiro do que estava no cofre.

 

Sim, disse Owen, e ainda sobrou algum do monte de notas que me deste.

 

Não preciso que mo devolvas.

 

Não é essa a questão. É teu, não é meu.

 

Todo esse dinheiro... não achas que já me chega? Por que hei-de precisar mais da herança?

 

Não estou a perceber-te.

 

Por que hei-de passar por tudo isso com os advogados e os contabilistas? Por que não posso dizer-lhes simplesmente que não quero nada e que me deixem em paz?

 

Lenore... Eu não pretendo envolver-me nisso, mas só quero que me prometas que não vais fazer nada... mesmo nada... até falares com o teu próprio advogado e ouvires os seus conselhos. Prometes?

 

Prometo. Mas não quero a Arcádia e não quero as coisas do Bram.

 

Muito bem. Então faz uma doação de tudo a uma fundação de arte.

 

E posso fazer uma coisa desse género?

 

Para te dizer a verdade, não sei. A solução é arranjares um advogado para saberes isso.

 

A questão das finanças da Lenore preocupava Owen, porque sabia que ela não estava preparada para lidar com o sistema, mas ele estava decidido a não se envolver. Queria que os problemas da Lenore fossem resolvidos por ela mesma.

 

Foram na direcção do parque, passaram pela casa de arrumação dos barcos e pararam a olhar para as crianças a subir para a estátua de bronze da Alice no País das Maravilhas. A Lenore pegou-lhe no braço e encostou a cara ao ombro dele, e ele sentiu-se a ser arrastado por uma onda de emoção. Sentiu-se ao mesmo tempo carinhoso e selvagem, fraco e forte, protector e destruidor mais e menos do que alguma vez tinha sentido.

 

Chegaram ao Passeio dos Poetas e ele apercebeu-se de que tinham passado quase uma hora em silêncio. Subitamente, ficou preocupado com os pensamentos dela.

 

- Estás preocupada por causa do encontro com a Bernie e o Alex? - perguntou ele. Algum tempo antes tinha-a convencido a deixá-lo aceitar um convite da Bernie para jantar naquela noite.

 

- Sim, - confessou ela. - Mas não é nisso que estou a pensar.

- Em que estás a pensar? - perguntou ele.

 

Ela tinha estado a observar os bustos dos poetas e voltou-se para olhar para ele. o cabelo oscilava-lhe à volta da cara como se fosse seda preta transparente, pendendo ligeiramente de lado sobre um olho. E quando se voltou, sorriu-lhe, deixando-o surpreendido.

 

- Tu contas-me todos os teus pensamentos? - perguntou ela apenas por perguntar,

 

- Bem...

 

- Os pensamentos não interessam, - disse ela. - Só é importante o que fazemos.

 

- Sabedoria do pátio da escola? - disse ele para a provocar.

 

o sorriso desvaneceu-se e ela ficou com ar triste. - Esqueces-te que eu nunca estive num pátio da escola. Não, é uma lição que aprendi de Bram Serian. Sabes, ele tinha pensamentos de muita generosidade. Pensamentos muito decentes. Era muito dedicado ao irmão e estava decidido a proporcionar-me uma vida agradável e amava a Geneva e o que mais queria era que o deixassem em paz para produzir a sua arte e criar a sua Arcádia. Mas magoou-nos a todos repetidas vezes. As suas intenções não interessavam. Não interessava quais eram os seus pensamentos.

 

- Talvez os seus pensamentos não fossem assim tão generosos, - fez notar Owen.

 

Ela franziu a zona escura de uma sobrancelha com ar interrogador.

 

- Não tenho assim tanta certeza das suas boas intenções, - insistiu Owen. - Acho que ele manteve o AL fechado como numa prisão, em parte porque não suportava o pensamento de o irmão o deixar. Acho que casou contigo para ficar contigo e desse modo controlar o irmão. Acho que foi generoso com a Geneva simplesmente para a controlar. E acho que se fez amigo de James Colher e o induziu em erro, com a intenção de fazer um teste à fé do homem... como se fosse um jogo.

 

Ela ficou em silêncio.

 

- Desculpa. Não tinha intenção de ser tão deprimente. Ela pegou-lhe na mão. - Vamos falar de outras coisas.

 

- Está bem... vamos voltar a discutir os maus pensamentos, - sugeriu ele em tom provocador.

 

- Tu tens maus pensamentos? - perguntou ela.

 

- Umm, estou agora mesmo a sentir que está um a chegar.

 

Os lábios dela curvaram-se num sorriso lento e sensual. - óptimo, - disse ela. - Vamos para casa.

 

Na manhã seguinte, quando Owen acordou, sentiu necessidade de voltar ao trabalho. Durante o jantar na noite anterior, a Bernie tinha manifestado um grande entusiasmo pelo livro e tinha-o contagiado. DeMille tinha finalmente concordado em pagar-lhe uma grande quantia antecipadamente e tinha aprovado a sua visão do livro como o mistério e a tragédia da vida de Bram Serian, em vez de apenas o fim sensacionalista que teve.

 

Owen esteve preocupado durante o pequeno almoço a tentar arranjar uma estratégia diplomática para explicar a Lenore.

 

O que se passa? perguntou ela por fim. Já te cansaste de estar comigo?

 

Não! Evidentemente que não. Simplesmente tenho de voltar ao trabalho.

 

Ela soltou um suspiro e apoiou o queixo na palma da mão. Quem me dera ter alguma coisa que tivesse tanto significado para mim como a tua escrita tem para ti.

 

Oh, Lenore, tens tanta coisa à tua frente. Vais ficar toda entusiasmada. Tantas coisas novas para fazeres e para veres... todos os livros que não leste e os lugares em que não estiveste... Meu Deus! Que fantástica aventura tens à tua frente. Só espero que não me deixes para trás.

 

Ela riu-se.

 

Está bem, disse ele. Vamos fazer assim. Eu vou trabalhar até ao meio-dia. Tu vais até lá abaixo a fazer sozinha um pouco de exploração. Não, não fiques com esse ar horrorizado. Tu consegues fazer isso. Vais apenas conhecendo um quarteirão de cada vez. Depois eu faço uma interrupção e vamos almoçar e a seguir vamos a uma livraria que tenha uma boa secção de livros para crianças. Porque vais aprender a ler. Na verdade, o nosso objectivo é que, quando eu tiver acabado de escrever o livro, tu sejas capaz de o ler e de ajudar-me a editá-lo.

 

Um sorriso sombrio fez-lhe curvar os cantos da boca. Sim, disse ela com ar pensativo. O facto de cortar o cabelo não deu resultado, mas talvez aprender a ler resulte.

 

Owen não teve de lhe perguntar o que queria dizer. Ele sabia. Ela ainda estava a tentar afastar o fantasma de Bram Serian. Mesmo ali naquele apartamento estranho ficava à escuta da voz de Serian e dos seus passos e às vezes jurava que os ouvia.

 

Habituaram-se a uma rotina em que Owen fazia o pequeno almoço e comiam juntos; depois ele trabalhava no seu livro, enquanto ela passava a manhã com os auscultadores, cassetes e um livro de exercícios, praticando o alfabeto e os sons dos conjuntos de letras. Ela tratava do almoço, descendo para ir a uma loja que vendia comida de pronto-a-comer. Depois, à tarde, Owen debruçava-se sobre o seu trabalho e a Lenore, a insistências de Owen, saía sozinha para ir explorar a cidade, alargando diariamente a confiança em si própria de quarteirão em quarteirão.

 

Às cinco, por mais absorvido que estivesse no seu trabalho, punha-o de parte. Cada noite era uma aventura. Exploraram restaurantes. Passearam pela Ponte de Brooklyn. Foram ao teatro. Foram a livrarias para ela poder exibir-se e ler-lhe os títulos. E depois voltavam para o apartamento para se explorarem um ao outro.

 

Houve ainda momentos em que ela ficava calma de repente, ou dizia qualquer coisa enigmática, ou mergulhava num dos seus misteriosos transes interiores e as pequeninas flechas da incerteza atingiam Owen. Mas ele guardava-as para si próprio.

 

Passou um mês. Charlie Rossner deu a Lenore o contacto de um advogado e Owen convenceu-a finalmente a ir consultá-lo. Quando voltou à tarde, ela parecia estar inquieta mas satisfeita.

 

- Como é que correu? - perguntou Owen.

 

Ela lançou-lhe um olhar malicioso. - o advogado disse-me que não devia confiar muito em ti e devia fazer um acordo escrito contigo sobre o que podes usar no teu livro.

 

- Muito bem. Disseste-lhe que fui eu que insisti para o contratares?

- oh, - disse ela. - o meu novo advogado é uma ela. Claudia Lai.

- Uma mulher asiática?

 

- Sim. E muito inteligente.

 

Owen sorriu, a pensar que Charlie Rossner era de facto um génio. Sabia exactamente o que a Lenore precisava - uma pessoa que fosse um modelo forte. - Ela pode ser muito inteligente quanto a tudo o resto, - disse ele, mas não sabe absolutamente nada sobre mim.

 

A Lenore sorriu com um dos seus sorrisos misteriosos, desviou-se dele e começou a meter coisas na mala.

 

- o que estás a fazer? - perguntou ele, com o coração subitamente na garganta,

 

- Não te preocupes. A Claudia quer que vá para a Arcádia durante alguns dias e faça um inventário. Quer que eu compre uma daquelas máquinas fotográficas instantâneas e um rolo de películas e fotografe os quartos e as obras de arte. - Atravessou o quarto para ir ao armário buscar mais coisas dela. - Não quero que pares de trabalhar. A Claudia deu-me um número de telefone de uma praça de táxis para me levarem.

 

Estava a levar demasiadas coisas. Muito mais do que precisava para passar alguns dias. Sobretudo se considerasse que ia voltar para a sua própria casa, onde ainda estavam todas as suas coisas.

 

- Não há problema, - disse ele, pegando no telefone. - o meu trabalho é transportável. Alugamos um carro e vamos juntos.

 

Não conseguiu ver a cara dela porque estava voltada para o outro lado, mas viu-a hesitar, notou que ela ficou calada por instantes.

 

- A mudança de ambiente vai fazer-me bem, - apressou-se ele a dizer.

- E onde é que existe um lugar melhor do que a Arcádía para escrever sobre Bram Serian?

 

Atenderam da agência de aluguer de automóveis e ele começou a fazer os preparativos. Ela voltou a cabeça para olhar para ele mas ele não conseguiu ver a expressão do seu rosto, mas sentiu um arrepio.


Era tarde quando chegaram à Arcádia. Ela ajudou-o a arranjar espaço numa sala agradável, com uma janela e uma pequena lareira, e ele passou o resto da noite a organizar os livros e as caixas de pastas de arquivo. Quando acabou, vagueou pela casa e encontrou-a na sala de estar principal. Estava a olhar para uma lareira a arder intensamente.

 

Já está a terminar a época em que se acende a lareira, disse ele à entrada da sala.

 

Ela deu um salto. Oh, Owen... não dei conta de chegares.

 

Desculpa. Atravessou o espaço amplo e sentou-se ao lado dela. Junto dos seus pés viu a coronha da espingarda que estava por baixo do sofá. Parece que hoje estás nervosa, heim?

 

Esteve aqui alguém enquanto estive fora, limitou-se ela a dizer.

 

Como é possível? disse ele no seu tom mais calmo e razoável possível. Esta casa tem um sistema de alarme mais complexo do que a Casa Branca. Ninguém conseguia entrar aqui sem ser detectado.

 

Ela envolveu-se nos próprios braços e concentrou-se no fogo.

 

Está bem... talvez fossem os advogados do Bram. Ou alguém da empresa de alarmes.

 

Ela abanou a cabeça em sinal negativo. Eu telefonei-lhes. Ninguém veio cá.

 

Ele olhou à volta da sala. Desapareceu alguma coisa?

 

É difícil explicar, mas sabes que, quando se vive sozinho, tem-se um sentido exacto das coisas. Como ficaram os pratos arrumados e como se deixaram os estores e de que tamanho era a barra de sabão que estava ao lado do lava-loiça. Bem... as coisas estão diferentes.

 

Ele pôs o braço em volta dos ombros dela. Tinhas acabado de passar por uma horrível experiência na última vez que aqui estiveste. E eu estava contigo. Podia ter mudado algumas coisas sem que tu te apercebesses e agora que voltas calma, estás a ver as coisas de maneira diferente.

 

Ela deu um suspiro e encostou a cabeça a ele. Tenho mais que fazer aqui para além de tirar fotografias. A Claudia descobriu muitas coisas para mim. Está tudo muito intrincado e ela diz que com o património que está envolvido e com o Al desaparecido, isto pode arrastar-se indefinidamente. O testamento do Bram tinha o Al como herdeiro principal.

 

Eu disse à Claudia que não posso mais viver aqui, por isso ela está a tomar providências para eu mudar para as águas-furtadas do Bram durante algum tempo. Eu nunca estive numas águas-furtadas, e tu já estiveste? Inclinou a cabeça para olhar para ele.

 

Não. Nunca estive numas águas-furtadas. Sentiu o medo a crescer-lhe na barriga e queria-lhe perguntar o que significava tudo aquilo. O facto de se mudar para as águas-furtadas era a sua maneira de o deixar? Mas não conseguiu perguntar. Tinha medo das respostas. E receava que, ao exprimir os seus medos por palavras, pudesse fazer com que se realizassem.

 

Portanto, disse ela, tenho também de seleccionar umas coisas e decidir o que hei-de levar comigo e o que hei-de deixar para trás.

 

Eu posso ajudar-te, ofereceu-se ele de imediato.

 

- Não. Tu tens de trabalhar. E eu tenho de fazer isto sozinha.

 

- Está bem. Nesse caso eu fico no meu pequeno quarto e tu vais fazer o que tens a fazer. A não ser que... queres que eu me vá embora? Sentes-te sufocada por mim?

 

Ela segurou-lhe na camisa, retorcendo o tecido na mão. - Eu não queria que viesses, - disse ela. - Queria fazer isto sozinha. Para provar a mim própría que sou capaz. Mas agora que estás aqui, estou contente.

 

Ele abraçou-a com força, deu-lhe um beijo no pescoço e na orelha e nas pálpebras fechadas e sentiu a reacção do seu corpo excitado. Mas bruscamente ela afastou-se para trás.

 

- Não, - murmurou ela. - Aqui não. - E conduziu-o para um quarto de dormir estreito e sem janelas na ala sul.

 

- Este quarto foi feito para um artista famoso com um grave problema de cocaína, - explicou ela. - A droga tornou-o paranóico, por isso o Bram arranjou isto para ele, com uma porta de aço e uma fechadura com ferrolho.

 

Owen olhou para dentro da casa de banho contígua e viu que também não tinha janelas.

 

- o Bram chamava-lhe a cave abrigo, porque dizia que lhe fazia lembrar um abrigo para tomados.

 

Owen riu-se e falou-lhe da cave abrigo da sua própria experiência, mas ele estava mais do que um pouco desconcertado pelo medo dela de poder ser observada. Deslizou o ferrolho para trancar a porta.

 

- Parece-me que viemos para aqui para passar a noite, - disse ele.

 

- Vou fazer com que nunca queiras ir embora, - prometeu ela, desabotoando a blusa com um leve sorriso.

 

Não havia relógio no quarto, por isso não sabia que horas eram quando a Lenore deu um grito. Sentou-se direito naquela escuridão cerrada, estendendo as mãos para ela com o coração a bater contra as costelas.

 

Ela estava confundida e a tremer.

 

- Ouviste? Ouviste-o a tentar entrar pela porta? Oh não... não... não trouxe a espingarda. Não tenho a espingarda.

 

- Foi apenas um sonho mau, - sussurrou Owen, puxando-a para os seus braços.

 

Acariciou-lhe as costas suavemente e ouviu-a a respirar lentamente, até que finalmente pensou que tinha voltado a adormecer.

 

Subitamente ela sussurrou no escuro, - É o fantasma do Bram. Ele sabe que estou a fazer as malas para ir embora.

 

- Não foi nada, - disse Owen com firmeza. - Estavas a ter um pesadelo. Agora eu estou aqui e tu estás segura e nem mesmo um fantasma consegue entrar por aquela porta, portanto tenta voltar a adormecer.

 

Na manhã seguinte ela parecia estar óptima. Fizeram o pequeno almoço juntos e Owen retirou-se para o seu espaço de trabalho. Por volta da uma e meia sentiu fome e saiu e reparou que ela tinha tirado os quadros da parede por toda a casa e tinha-os alinhado em frente da parede.

 

Estás a tentar fotografá-los por conjuntos? perguntou ele.

 

Não. Estava... Voltou-se para trás, para a fila de quadros. Olha para estes e diz-me o que te parece.

 

Ele observou as telas. São do Serian. Representativos de diversos estilos.

 

Sim. Ela sorriu. Estás a aprender. A Claudia disse-me para os fotografar individualmente e depois agrupá-los de acordo com o seu valor. Mas eu não sei qual é o valor deles. E comecei a perguntar-me que fotografias poderias querer para o teu livro. Queres que também tire fotografias para ti?

 

Não me parece que as fotografias Polaroid possam servir para serem reproduzidas, disse-lhe ele. Mas se tirasses um conjunto delas para mim, podia usá-las mais tarde no decurso da selecção.

 

Agradou-lhe a ideia de poder ajudá-lo e ao almoço parecia estar muito animada. Os fantasmas tinham sido afastados.

 

Saíram pela porta da frente para ir dar um passeio à luz do sol de um dia fresco de Março. As árvores já estavam a brotar e havia pequenos rebentos verdes a aparecer por entre o denso tapete de folhas mortas.

 

A primavera é tão bonita aqui, disse a Lenore. Os bosques estão cheios de cornizos e à volta da casa há forsítia e íris e narcisos. O Bram deixava-me encomendar tudo o que quisesse dos catálogos de jardim todos os anos.

 

Não vais ter saudades disto?

 

Sim.

 

Parece-me que, de muitas maneiras, ir embora daqui será como quebrar a ligação com a casa da tua infância.

 

Ela acenou que sim com a cabeça. Aqui foi onde enterrei o meu cão. Logo ali mais à frente está a casa de brincar que o Al fez para mim. Este espaço aberto é um campo de basebol quando a relva está cortada. E aquela árvore grande ali à esquina da casa é onde costumava estar o meu baloiço.

 

Ela fez perguntas a Owen sobre a sua infância e ele falou-lhe da quinta e sobre a mudança para os Flint Hills.

 

Olha para isto, disse ela, parando de repente para olhar para um monte de terra fresca. Alguém esteve a cavar aqui.

 

Ou algum animal. Talvez cães ou coiotes. Ajoelhou-se para examinar a pequena cova que tinha sido feita. Fosse o que fosse, foi feito propositadamente. Este chão ainda está bastante gelado.

 

Ela abraçou-se com força e espreitou para a mata.

 

Onde nos encontramos em relação à casa? perguntou ele, ainda demasiado um rapaz do Kansas para manter o sentido de direcção no meio de tantas árvores.

 

Estamos exactamente por detrás do estúdio, ou onde costumava ser o estúdio, e se não fosse aquele conjunto de cedros, conseguiríamos ver as ruínas e o acesso à casa.

 

Queres marcar o lugar para podermos vir verificar de novo dentro de alguns dias?

 

Não preciso de o marcar, disse ela. Olha à tua volta. É uma clareira natural. É fácil de lembrar.

 

Subitamente ela voltou-se e correu para casa.

 

- Lenore! - chamou ele, mas depois desistiu e correu atrás dela.

 

Ela não parou até estarem os dois no átrio da entrada, iluminado pela luz aquática.

 

- o que é que se passa?

 

Ela pôs o dedo nos lábios. - Fala baixinho, - disse ela.

- o quê?

 

- Não sentes? Estamos a ser observados. Estamos a ser ouvidos.

- Preciso de te tirar desta casa. Quanto falta fotografar?

 

- Vou mostrar-te o que fiz até agora, - disse ela e pegou-lhe na mão.

 

As caixas de fotografias estavam em cima da mesa comprida da cozinha. Owen passou uma vista de olhos pelo conjunto, mas não ficou com nenhuma ideia de quanto faltava fazer.

 

- Eu ajudo-te. Vamos acabar isto o mais depressa possível.

 

Ela acenou que sim com a cabeça. Os seus olhos viravam-se para um lado e para o outro, a verificar as diferentes entradas.

 

- Vamos. Vamos trabalhar.

 

Ela pegou na máquina fotográfica e começou a andar em volta da mesa, depois parou e voltou para trás. - o que fizeste com as nossas fotografias?

- Hummm? - disse ele, pegando na embalagem do filme não utilizado.

- As fotografias que tirámos um ao outro quando estivemos aqui pela primeira vez.

 

- Eu não as tenho.

 

Ela inclinou-se para olhar por baixo da mesa. Ele examinou o resto do chão da cozinha e os tampos dos balcões. Ela pegou em cada uma das caixas e olhou por baixo delas. Folheou as cópias fotográficas, com os movimentos a tornarem-se cada vez mais agitados à medida que avançava. Quando acabou, endireitou-se e disse muito alto, - Oh, provavelmente ficaram misturadas com algumas destas aqui.

 

Owen olhou para o tecto como se conseguisse ver qualquer pessoa que ela imaginasse estar a escutar.

 

- Pega no filme, - disse ela, apesar de ele já o ter na mão. - Vamos acabar a ala norte.

 

Levou-o para um pequeno corredor e sussurrou, - Podemos falar aqui.

- Achas que as fotografias desapareceram realmente? - perguntou ele, procurando não manifestar descrença na sua voz.

 

- Eu deixei-as mesmo na ponta daquela mesa.

 

- Pelo menos sabes que não é um fantasma, - disse ele com pouca convicção, sem saber como acalmar os medos dela. - Os fantasmas não roubam fotografias nem cavam buracos.

 

- Como sabes o que fazem os fantasmas? - perguntou ela.

 

- Lenore... - Tentou envolvê-la nos braços mas ela deu um passo atrás. o seu rosto ficou reduzido a uma máscara com buracos incandescentes em lugar dos olhos. - Tu não podes proteger-me de coisas que não conheces, Owen.

 

- Vamos mas é fazer este inventário e sair daqui, - disse ele. - Por favor.

 

Trabalharam sem dizer quase nada um ao outro, andando de uns quartos para os outros. Fazia-se click, o flash acendia, seguido de um ruído semelhante a um zumbido, e saltava outra fotografia. Fotografias de salas inteiras. Fotografias de pequenos objectos de arte. Fotografias de janelas com vitrais. O monte foi crescendo e deixaram para trás um rasto de caixas de filmes vazias.

 

Quando chegou a hora de jantar ele não queria parar, mas ela insistiu, por isso puseram comida congelada no micro-ondas. Ela foi buscar velas, bases individuais de mesa em pano de linho e guardanapos a condizer, preparando a extremidade da mesa de jantar como se fosse uma ocasião cerimoniosa.

 

Esta pode ser a última refeição que tomo aqui, disse ela.

 

Ele tinha muita dificuldade em descontrair-se mas tentou. Não eram os fantasmas que o preocupavam mas sim o estado mental dela.

 

O que achas de acabarmos por esta noite e voltarmos para Manhattan? Depois podíamos voltar amanhã e acabar de arrumar as coisas durante o dia.

 

Então tu também estás com medo?

 

Apenas receio por ti.

 

Ela arrastava a comida de um lado para o outro no prato, absorta em pensamentos sobre alguma coisa. Nunca me disseste como morreu o teu irmão, disse ela.

 

Terry? Sim, eu contei-te. Suicidou-se.

 

Isso sei eu. Mas como fez ele isso exactamente?

 

Owen parou de comer. Também te contei isso. Conduziu o carro até uma árvore isolada no meio da pastagem. E depois enforcou-se.

 

Mas o que eu quero saber é, como fez ele isso? Deixou algum bilhete?

 

Não.

 

Tiveste algum aviso? Quando olhas para trás, consegues ver alguma coisa que devia ter-te avisado?

 

Eu próprio me coloquei essa mesma questão uma centena de vezes. Eu estava fora na universidade naquela altura... mesmo no fim do meu segundo ano. A Ellen estava casada e a viver no Texas. Por isso nenhum de nós o tinha visto durante algum tempo.

 

Eu estava a viver num apartamento com mais três indivíduos e um dia recebi uma encomenda. Duas caixas de papel higiénico. Eram caixas enormes que tiveram de ser transportadas num carrinho. Pensei que houvesse algum engano, mas o homem que fez a entrega mostrou-me a folha e eram para mim, do Terry. Um dos meus companheiros de quarto lembrou-me que estávamos sem papel higiénico quando o Terry nos tinha visitado e tínhamos discutido sobre quem devia ir comprá-lo. Eu tinha-me esquecido completamente.

 

Tudo aquilo pareceu-me tão invulgar e esquisito que telefonei à Ellen a perguntar-lhe o que achava e ela disse que também tinha recebido um presente do Terry. Uma caixa de sacos de plástico para o lixo. Rimo-nos daquilo e concordámos que, uma vez que eu não tinha fundos para fazer chamadas interurbanas, ela telefonaria para casa naquela noite para saber qual era o motivo para aqueles presentes. Depois telefonava-me para me dizer.

 

Quando finalmente obteve uma resposta de casa naquela noite, já tinham encontrado o corpo dele.

 

Lenore apoiou o queixo na palma da mão e olhou para ele com uma expressão de intensa compaixão. - Não podias ter sabido, - disse ela.

 

- É o que tento dizer a mim próprio.

 

- A morte da tua mãe deve tê-lo afectado muito.

- Afectou-nos muito a todos.

 

- Mas ele é que foi esquecido, não foi?

- Sim.

 

- Mas não estava zangado contigo.

 

- Queres dizer... que lá porque nos mandou presentes achas que isso mostra que não estava zangado?

 

- Não. Porque ele não te assombrou. É quando isso acontece, sabes. Quando morrem zangados.

 

Owen bateu com os punhos na mesa, fazendo tremer tudo o que estava em cima. - Isso é tudo uma treta própria da ignorância!

 

Ela levantou-se, com uma atitude de indiferença e movimentos mecânicos e começou a limpar a mesa.

 

- Está bem, - disse ele desesperado, - se o Serian queria aterrorizar-te... por que esperou tanto tempo para começar? Por que não começou logo?

- Estava à espera de saber o que acontecia com o julgamento.

 

- Estás a brincar? Os fantasmas não se importam com a justiça dos mortais, eles têm o seu próprio código de vingança. E onde esteve ele durante todo este tempo? Achas que os fantasmas podem simplesmente vaguear para dentro e para fora da condição de fantasmas?

 

Ela fixou os olhos nele com um franzir de sobrancelhas directo e pensativo e Owen continuou a falar sem parar, utilizando a sua imaginação de escritor de ficção nos seus raciocínios.

 

- Que tipo de pessoa era o Serian, afinal? Controlador, impetuoso e muito criativo, não é verdade? Achas que uma alma assim ia andar a brincar, a esconder fotografias e a abrir estores das janelas e a cavar buracos no chão? Raios, não! Se ele quisesse assustar-te, havia de fazer tremer toda esta casa com a sua raiva e havia de usar imensos efeitos especiais.

 

Ela não respondeu por instantes; depois disse, - Se não é o fantasma do Serian, que fantasma é então?

 

- Não é nenhum fantasma. É um bando de miúdos a pregar partidas ou mais repórteres de meia tigela à procura de uma história. Ou... talvez não seja nada. Talvez estejamos ambos muito nervosos e a imaginar coisas.

 

Ela aceitou tudo até à última linha. Depois reagiu com firmeza. - Eu não estou a imaginar coisas. Os estores estavam diferentes. Os quadros desapareceram. E aquele buraco, o que achas daquele buraco? Tu também o viste.

 

- Está bem, com os diabos. Vamos lá fora e vamos ver aquele buraco outra vez.

 

-Agora? Há horas que está escuro.

 

- Temos lanternas eléctricas, não temos? Vamos lá fora e damos outra vista de olhos àquele buraco. Aposto que, se verificarmos mais atentamente, havemos de ver marcas das garras de algum animal. Os animais fazem coisas malucas quando lhes dá a febre da primavera.
A Lenore ficou relutante, mas Owen obrigou-a a vestir um casaco e saíram por uma das portas traseiras. As obras do terraço nunca tinham sido completadas daquele lado e havia um bloco de cimento partido a fazer de degrau e depois uma extensão de terra que tinha sido marcada para construção.

 

Havia lua cheia no céu e andaram o caminho sem ligar as lanternas eléctricas, guardando alguma distância entre eles e o rectângulo negro das ruínas do estúdio. Estavam a aproximar-se da zona das árvores, medonha e cerrada à luz da lua, e ocorreu a Owen que, se existiam espíritos, por certo viviam ali. Onde ele tinha sido criado, em campo aberto, a noite era quase tão natural como o dia, e ele nunca tinha conhecido o poder misterioso que vinha com a escuridão na floresta. Era uma coisa primária. Original. Primitiva. Perversa. As associações estavam ali nos seus pensamentos, embora não admitisse tal coisa perante a Lenore.

 

Ligaram as lanternas eléctricas e ela conduziu-o para o meio das árvores. As folhas secas estalavam ao serem pisadas e uma brisa fez abanar os ramos das árvores. Ele sentiu um desejo repentino de se deslocar furtivamente de árvore em árvore, mas manteve o foco de luz com firmeza à sua frente e caminhou com segurança, segurando a mão de Lenore de maneira que ela seguia o rasto dele. Mesmo no escuro, ele reconheceu a clareira quando lá chegaram.

 

Agora, disse ele, vamos só dar uma vista de olhos com mais atenção a esta coisa e aposto que vamos encontrar provas de que foi feita por algum animal, ou pelo menos que já foi feito há vários meses. E depois podemos ambos...

 

Parou tão abruptamente que a Lenore chocou contra ele e deixou cair a lanterna eléctrica. Numa reacção reflexiva, ela baixou-se para a apanhar, mas ficou imóvel ao olhar para a frente.

 

O buraco estava mesmo ali, iluminado pela luz da lanterna de Owen. Só que já não era apenas uma mera tentativa de fazer um buraco. Agora tinha quase um metro de profundidade, com uma forma semelhante a uma sepultura tosca, e havia uma picareta, uma pá e uma escavadeira de fazer buracos no chão ali ao lado. Ele virou a lanterna para cima e procurou fazer um arco em volta deles; depois prevaleceu o seu bom senso e desligou a luz da lanterna.

 

O que é que estás a fazer? perguntou a Lenore.

 

Shhh. Se ele ainda estiver aqui, não quero que consiga ver-nos.

 

Ela recuperou a sua lanterna do chão, desligando-a quando a apanhou, e ficaram ambos quietos por instantes, enquanto os seus olhos se adaptavam à escuridão.

 

Vamos voltar para casa e chamar a polícia, sussurrou ele.

 

Ela ignorou-o e avançou lentamente para a clareira. Meio-cego, ele seguiu atrás dela aos tropeções. Lenore... não...

 

Ela ajoelhou-se à beira do buraco e debruçou-se sobre ele. Há aqui qualquer coisa enterrada, disse ela. E de metal... como uma tampa.

 

Ele segurou o braço dela com a mão e puxou-a para cima. Instintivamente, agachou-se, sentindo um formigueiro na pele como pressentimento de qualquer coisa que estava escondida nas sombras e arrastou-a com ele através das árvores e em volta das ruínas do estúdio e através do espaço aberto, ganhando velocidade à medida que se aproximavam de casa. Abriu rapidamente a porta e a seguir fechou-a com força e trancou-a.

 

- Temos de chamar a polícia. Meu Deus! Onde está aquela espingarda? Lenore... vamos!

 

A expressão dela mudou de medo para perplexidade, para manifestação de espanto.

 

- Lenore!

 

- É o AL, - disse ela. - Não o sentes, Owen? o meu pai voltou!

 

Ela destrancou a porta das traseiras, abriu-a e olhou para fora, para o meio da noite. - Achas que ele ainda está ali ou achas que voltou para casa? Sem esperar pela resposta, ela voltou-se e dírígiu-se para o corredor. Owen seguíu atrás dela sem saber o que fazer. o que ela dizia tinha lógica. Quem mais podia conhecer as sequências do sistema de alarme e ter as chaves de casa? Quem mais é que conhecia a casa tão bem, que conseguia manter-se perfeitamente escondido? Quem mais podia ter enterrado aqui alguma coisa?

 

Ela parou na cozinha. - Se ele não quer ser visto, duvido que consigamos encontrá-lo, - disse ela.

 

- Temos de sair daqui, Lenore, Ele pode ser perigoso. Já matou uma vez.

- Ele não é perigoso! Fez mal ao Bram apenas para se proteger a si próprio, e eu sei que não tinha intenção de matar. Estava apenas a tentar afastar-se.

 

- Lenore...

 

- Não! o meu pai voltou. Não vou perder outra vez a minha oportunidade com ele. - Subitamente ela tinha tomado uma atitude decidida. Determinada. - É de ti que ele está a esconder-se, Owen. Para ele tu és um estranho. Tens de ir embora.

 

- Não vou deixar-te sozinha!

 

- Vais, sim senhor. Esta casa é minha e eu quero estar com o meu pai. Tens de ir embora. É a única maneira.

 

Pegou nas duas mãos dele, apertou-as com força, depois inclinou a cabeça para lhe dar um sorriso amável e carinhoso. - Por favor, - disse ela. - Há tantas coisas que preciso de lhe perguntar. É o meu pai, Owen. Não corro nenhum perigo. Por favor, não me obrigues a zangar-me contigo. Não me obrigues a pôr-te fora daqui... porque é isso que vou fazer, se for preciso. Não posso voltar a perder o meu pai.

 

Ele não se mexeu, mas ela deve ter lido os pensamentos conflituosos nos olhos dele.

 

- Prometo-te que não corro qualquer perigo do AL. Se isso te faz sentir melhor, vou ficar com a espingarda junto de mim durante toda a noite.

 

Ela dirigiu-se para o armário estreito ao lado do frigorífico e tirou a espingarda. Depois voltou-se para Owen com a arma encaixada no braço. Assumiu um olhar duro,

 

- De que tens medo? Que goste mais dele do que de ti? Que não precise mais de ti?

 

Compreendeu que era inútil discutir. - Eu saio pela frente, - disse ele com relutância.

 

Ela acompanhou-o, com a espingarda suspensa ao seu lado. Quando chegaram à porta, ele parou para enfiar rapidamente o casaco. Então ela olhou para ele e os seus olhos brilharam com uma incandescência intensa que lhe fez sentir dores no seu íntimo.

 

Tu amas-me, não amas? perguntou-lhe ela.

 

Sempre te amei, disse ele. Sempre.

 

Ela pousou levemente uma mão no ombro dele e elevou-se para lhe dar um beijo na boca. Depois ele voltou atrás e saiu. Chegou ao carro, entrou e ligou o motor sem se permitir pensar. Depois esfregou a cara com as mãos e fez um grande esforço para decidir o que fazer a seguir.

 

O carro levou um minuto a aquecer e ele acelerou o motor constantemente. Queria que ninguém ficasse com dúvidas de que ia embora. Ao longo de todo o caminho de gravilha, a sua mente não parou de pensar concentradamente. O Al era pai dela. Mas o Al tinha perturbações mentais. O Al tinha sido perigoso no Vietname. O Al tinha morto o Bram.

 

O portão já estava aberto quando chegou junto dele. Passou o portão, activando o interruptor electrónico. Acelerou o carro pela estrada e desviou-o para a valeta, travou a fundo, desligou o motor e retirou a chave e correu, conseguindo voltar a entrar mesmo quando o portão estava a acabar de se fechar.

 

Caminhou a passos rápidos. Se alguém verificasse a luz do portão, ficaria convencido de que ele tinha passado com o carro. Isso era o que ele tinha planeado. Mas ficara-se por ali. Ainda não sabia o que faria quando voltasse a aproximar-se da casa.

 

À sua frente, o caminho de gravilha serpenteava como uma fita prateada através das pastagens escuras e das árvores ainda mais escuras. Manteve os olhos fixos no caminho um pouco à frente dos pés e concentrou-se a caminhar. Não devia ter levado mais de vinte minutos a percorrer a distância, mas pareceram-lhe horas até chegar ao cimo da elevação e olhar para baixo para a Arcádia de Bram Serian. Nada parecia estar diferente. Estavam acesas as mesmas luzes na casa que estavam quando tinha saído. Aproximou-se da beira do pátio, depois desviou-se para trás de uma fila de cedros e ficou a observar. Não havia nada para ver, mas mesmo assim ficou a observar. A lua movia-se no céu e os seus pés ficaram entorpecidos com o frio, mas continuou a observar.

 

O que estava ele a fazer ali? Escondido da mulher ali fora da casa, quando ela lhe tinha ordenado para se ir embora?

 

Respirou fundo e atravessou o pátio para a sombra das paredes da Arcádia. E agora? Ia espreitar pelas janelas? Movendo-se sorrateiramente até àquela porta das traseiras que não estava trancada para a espiar?

 

Baixou-se gradualmente e sentou-se nos calcanhares, com as costas encostadas à pedra tosca e perguntou-se mais uma vez, o que havia de fazer a seguir? Tocar a campainha? Perguntar por favor se agora podia conhecer o seu pai? Oh, Deus... o que havia de fazer? O que devia ter feito seria talvez esperar junto do portão durante algum tempo e depois ligar pelo intercomunicador e falar com ela. Talvez ela não ficasse muito zangada e talvez o deixasse voltar para a casa.

 

o plano definiu-se na sua mente e ele apoiou-se na parede para se levantar. o intercomunicador era a melhor ideia. Não ia conseguir nada ali agachado junto à parede. Bateu levemente com os pés, silenciosamente, para fazer activar a circulação do sangue. Só que não era silencioso, houve um barulho e por momentos pareceu-lhe que tínha sido provocado pelos seus pés. Depois correu. Antes de ter tempo para pensar, correu. o barulho tinha sido de um tiro de espingarda.

 

Precipitou-se pela porta destrancada das traseiras e entrou na cozinha. A casa estava num silêncio de morte. - Lenore? - chamou ele baixinho, rezando em silêncio... por favor, por favor, por favor...

 

Correu pelo corredor e entrou na sala de estar colossal. Havia uma lareira a arder. Os cavacos verdes davam estouros e a luz do fogo reflectia-se nas paredes. - Lenore? - chamou ele suavemente. - Sou o Owen.

 

Ela estava sentada perto do lume, a olhar para ele. No chão ao lado dela estava a espingarda. A alguma distância um corpo ensanguentado de um homem estava esparramado sobre uma carpete Navajo.

 

- Lenore?

 

o tempo parou e ele estava a mover-se sem se mover. Estava a ver-se a si próprio a caminhar para ela.

 

- Lenore?

 

Lentamente, como se se tivesse transformado em vidro, ela levantou os olhos para ele. Ele ajoelhou-se em frente dela. Tinha a cara lisa e as mãos compridas e graciosas e a saia de seda branca salpicadas de sangue.

 

A sua expressão foi primeiro confusa, depois vagamente perplexa, depois disse subitamente, - Tu amas-me, não amas?

 

Owen acenou que sim com a cabeça e a cara dela ficou desfocada até que ele pestanejou várias vezes para a recuperar.

 

- Eu disse-lhe que tu me amavas, mas ele riu-se.

 

Owen fez um esforço para caminhar para a carpete Navajo. Agachou-se, desviando os olhos e pressionou com os dedos o pescoço para verificar a pulsação. Não havia pulsação. Não havia vida no corpo destroçado. Owen conteve a náusea e a repugnância que o ameaçavam. Endireitou-se, pensando que devia ir buscar um cobertor para tapar aquele rosto morto sem vista e só então se revelou na sua mente entorpecida.

 

- Lenore... - voltou-se para ela chocado e incrédulo, depois voltou-se para trás a olhar para o homem morto. Mesmo sem a marca do bigode e barba, percebeu que aquele era o corpo de Bram Serian que estava deitado no chão.

 

Então ela falou num tom surdo e distante.

 

- Durante todo este tempo pensei que estava livre, mas não estava. Agora... estou livre.

 

Owen sentou-se à janela do seu apartamento a olhar para o pequeno jardim rectangular rodeado de muros. Tinha colocado lá um comedouro quando chegou o tempo frio, por isso o lugar estava sempre cheio de aves e esquilos. Sempre que o comedouro estava vazio ele voltava a enchê-lo, sentindo ao mesmo tempo prazer e tristeza, vendo naquela ocupação a sua tarefa de tratar do gado.

 

o sol subiu suficientemente alto para a sua luz passar entre os edifícios e chegar ao jardim coberto de neve, fazendo-o ficar vesgo perante tanta luminosidade. Mais um dia. Acabou de beber a chávena de café e pensou em levantar-se para fazer mais. Mas não tinha pressa. Tinha muitas horas pela frente. Horas sem fim. E não queria apressá-las. Queria prolongá-las o mais possível e retardar a investida da noite. Porque as noites eram as mais difíceis.

 

À noite era quando sentia mais a falta da Lenore. Quando ansiava pelo calor dela na cama junto de si, o aroma do seu cabelo e o ritmo suave da sua respiração.

 

Lenore. Bastava o nome dela, murmurado silenciosamente nos seus pensamentos, para despertar nele um profundo anseio em que se sentia apanhado, encurralado, momentaneamente enrolado.

 

o seu sono estava cheio de sonhos com ela, mas mesmo nos seus sonhos ela estava perdida para ele, por isso as suas noites eram, na melhor das hipóteses, agridoces. E na pior das hipóteses... na pior das hipóteses as suas noites traziam visões horríveis que lhe faziam bater o coração. Acordava com frequência e não apenas antes de amanhecer, a tremer e a suar e a fechar desesperadamente os olhos perante as imagens do sonho que ficavam suspensas na escuridão, tentando sair a todo o custo dos pesadelos com Serian.

 

Naquela manhã ele tinha tido um sonho em que a Lenore estava aos gritos e ele estava preso por baixo do cadáver de Bram Serian, sufocando no derramamento de sangue daquelas feridas horríveis. Tinha-se sentado e olhado para o mostrador iluminado do relógio para escapar ao domínio arrepiante daquela visão. Eram quatro horas da manhã, mas mesmo assim levantou-se e vestiu-se. Depois de um daqueles pesadelos, raramente conseguia voltar a dormir, por isso tinha desistido de tentar.

 

Olhou para o relógio de pulso. Embora tivesse estado a olhar para o jardim durante quase cinco horas, ainda era cedo. Demasiado cedo para a Bernie ou a sua editora estarem no escritório. Demasiado cedo para o telefone tocar. Eventualmente poderia chegar uma chamada e ele ouviria qualquer coisa emocionante sobre o seu livro. Bram Serian: a Lenda e o Míto tinha acabado de ser publicado, e todos os dias a Arlene ou a Bernie lhe telefonavam com uma crítica positiva ou um pedido para a sua comparência em alguma actividade. o livro era a sua tábua de salvação. Tinha-o levado a continuar... tinha-o ajudado a sobreviver.

 

lá devia ter começado de novo a trabalhar em alguma coisa, mas não tinha conseguido. Com base no seu sucesso, a Berrúe tinha vendido os seus velhos manuscritos e ele tinha pensado racionalmente, dizendo a si próprio que andava muito ocupado com negociações contratuais e revisões para pensar em alguma coisa nova. A verdade subjacente a toda a racionalização era que não tinha sido capaz de esquecer o livro sobre Serian. Ainda preenchia os seus pensamentos. Absorvia as suas energias. De tal maneira que nada mais conseguia ganhar raízes e crescer.

 

A tragédia de Serian... o mistério de Serian... os fantasmas de Serian... estavam ainda todos com ele, ulcerando-lhe o cérebro. E não podia tentar expiar-se escrevendo sobre eles porque tudo o que faltava contar eram as partes que não podia nem queria contar de forma alguma. Que não se atrevia a transpor para a escrita.

 

Um cardeal vermelho vivo apareceu a roubar sementes do comedouro. Atrás dele veio a sua companheira, de um vermelho menos vivo mas mesmo assim bonita no meio da neve. Como sangue no meio da neve.

 

Sangue. Encostou-se para trás na cadeira e fechou os olhos. E lá estava, pronto para se revelar pela centésima vez. Os olhos fixos da Lenore como buracos negros no seu rosto muito pálido e o corpo ensanguentado e inanimado de Bram Serian.

 

Jamais esqueceria o peso daquele corpo ao arrastá-lo para fora da casa na carpete Navajo. o seu torpor. A maneira como os braços pendiam e batiam na mobília. E o cheiro dele. Aquela mistura de sangue e intestinos desfeitos e fezes de cheiro acre, que provocavam vómitos e sufocavam.

 

Depois ele tinha atado a carpete, tentando embrulhar o conteúdo e neutralizá-lo. De tal modo que já não era um cadáver quando o arrastou para a floresta com o tractor. De maneira que não era um cadáver quando o empurrou para o buraco de onde ele e a Lenore tinham tirado a enorme caixa de metal.

 

Não era um cadáver, mas ele teve de afastar-se dele mesmo assim. Tinha caminhado para o meio das árvores para descansar um minuto. Para ficar afastado daquela coisa que não era um cadáver. Para descansar só um minuto antes de pegar na pá e encher o buraco de terra. o buraco que o próprio Bram Serian tinha estado a cavar apenas algumas horas antes.

 

Quando se voltou para trás, viu fogo no meio das árvores e correu para a Lenore que estava de pé por cima da sepultura. Sentiu-se sufocado por um intenso cheiro pestilento, enquanto as chamas devoravam a carpete, fazendo arder completamente a lã com motivos decorativos, de tal modo que o rosto ficou visível. O rosto de Serian. O rosto do fantasma.

 

O que estás tu a fazer? gritou-lhe ele.

 

Ela já tinha deixado cair a lata de fluido para isqueiros e a caixa de fósforos e estava a olhar fixamente. A observar o fogo.

 

Foi isto que ele fez ao meu pai, disse ela.

 

Foi quando Owen ficou a saber com toda a certeza que tinha sido o Al quem tinha morrido no estúdio. Bram Serian tinha morto o irmão e pegado fogo ao estúdio para encobrir o crime. Bram Serian tinha fugido e deixado a Lenore a enfrentar a acusação de assassínio. A Lenore não tinha sido culpada de nada.

 

Até puxar o gatilho da espingarda e matar o seu fantasma. O seu traidor. O seu atormentador.

 

Owen pegou na pá e deitou terra para cima do fogo e da carpete e do rosto a desfazer-se. Encheu tudo de terra. Enterrando a verdade por ela. Cobrindo-a com terra e folhas e galhos secos, de maneira que não ficasse nada que evidenciasse o local. De maneira que Bram Serian tinha desaparecido novamente, para sempre desta vez. E a Lenore ficava a salvo do Xerife Bello e de Spencer Brown e de Holly Danielson e de Natalie Raven e de todos os outros que teriam vindo atrás dela e a destruiriam.

 

A Lenore estava a salvo. E estava certo. Tinha mais justiça e moralidade do que todas as leis e a justiça dos tribunais que ele tinha visto.

 

Owen levantou-se da cadeira de repente, assustando as aves de cor vermelho vivo que fugiram, afastando as recordações. E ele foi para a cozinha fazer mais café. Era uma cozinha bonita. Uma pequenina jóia de cozinha. Tinham escolhido tudo e organizado as coisas juntos. Tinham aprendido juntos a cozinhar nela.

 

Havia recordações dela por toda a cozinha. Havia recordações por todo o lado. O fantasma de Serian esperava que ele adormecesse, mas a Lenore estava sempre com ele.

 

Às vezes parecia a Owen que ele era agora tão assombrado como ela tinha sido. E viu naquilo um humor negro quando pensava que impressão daria aos outros, vivendo com os seus fantasmas, parando às vezes para escutar, convencido de ter ouvido os passos dela fora da sua porta. E que dizer das velas que acendia? A vela Amor Inseparável pela morte e a vela Coração Seguro, Garantiam Manter a Pessoa Amada em Segurança para Além de Qualquer Distância. Tinha encontrado uma pequena taberna onde se vendiam e comprava velas novas todas as semanas para queimar por ela.

 

Com a chávena cheia de café, voltou a sentar-se junto da janela. Uma pequena ave rechonchuda, com um peito amarelo pálido e uma cabeça negra com uma crista, desceu a voar para o comedouro. Um destes dias havia de ir a uma livraria para comprar um guia de aves. Um destes dias, quando lhe apetecesse fazer isso.

 

Lenore. Lenore. Lenore.

 

Ela tinha gostado muito do jardim e dos passarinhos. Quando se mudaram para lá, ela tinha querido tomar o pequeno almoço lá fora todas as manhãs.

 

Ela ainda tinha uma atitude apática e silenciosa na altura em que ele encontrou o apartamento e se mudou com ela para lá. Depois a apatia evoluiu para a melancolia e finalmente o silêncio foi quebrado. Foi no jardim que ela finalmente lhe disse que tinha disparado sobre o Bram.

 

Contou-lhe que tinha percorrido a casa a chamar pelo AL, para que aparecesse. Como depois tinha esperado, tinha acendido a lareira e tinha esperado pelo pai na sala de estar. Como tinha ficado a olhar para o lume, a pensar em todas as coisas que finalmente ia conseguir dizer. Todas as coisas que finalmente ia conseguir perguntar.

 

Ouviu um ruído e voltou-se. Mas não era o seu pai que estava ali. Era Bram Serian.

 

- Tu estás vivo? - Perguntou ela. Ele riu-se. o fantasma riu-se.

 

- Não há nada que me possa matar, Lenore. Foi o AL que morreu no estúdio.

- o AL? Oh meu Deus... Oh meu Deus... Tu mataste o AL? Tu mataste o teu irmão? Tu mataste o meu pai?

 

Bram suspirou. - Eu não tinha intenção de o matar. Estava a tentar fazê-lo compreender como tinham de ser as coisas. Que ele tinha de ficar comigo e começar a pintar de novo.

 

- A pintar?

 

- Ele ajudava-me a pintar, Lenore. Ele dava-me assistência.

- Ele ajudava-te a pintar ou ele pintava?

 

- É a mesma coisa. Era a mim que as pessoas queriam. Eu dei vida às obras do AL. Orientei-o e ensínei-o. Eu críei-o!

 

- Eu salvei-o do seu purgatório naquele lugar infernal e salvei a sua pequena filha, uma fedelha, e recuperei-o e transmiti-lhe dignidade. E como é que ele me retribuiu? Fugindo! Tentando roubar o talento que eu tinha desenvolvido nele.

 

- Levou quase dois anos ao meu detective a seguir a sua pista e depois eu levei meses a fazer-lhe ver que tinha de voltar. Ele prometeu que ia voltar para casa. Prometeu trazer novos quadros quando voltasse.

 

- Mas depois, quando apareceu naquela noite, ele tinha percebido tudo mal. Pensava que de repente podia ser ele a ganhar prestígio. Que a arte podia ser dele. Ele não compreendia. As pinturas só eram importantes para as pessoas, desde que fossem minhas.

 

A Lenore abanou a cabeça de incredulidade. - Foi tudo uma mentira? Tudo aquilo em que eu acreditava foi uma mentira?

 

- Ainda andas à procura da verdade, heim, Lenore? Bem, é um conceito relativo, sabes. Um conceito que pode ser moldado e definido. Como uma obra de arte.

 

- Não, Bram. já não. Descobri todos os teus segredos. Agora conheço a verdade autêntica. Sei o que fizeste ao teu pai. Sei que me afastaste da minha vida na Tailândia. Sei como me perverteste e me defraudaste e me enganaste. E agora sei como intrujaste e usaste o teu irmão. E como o mataste.

 

- Estou a ver. Isso altera de algum modo as coisas. Mas não muito. Porque tu és fraca, Lenore. Tal como o AL. Sem mim tu não és nada. Sem mim a tua vida é pequena e inconsequente. Mas agora estou de volta e vou tomar conta de ti.

 

Tenho planos para me fazer ressuscitar. Estás a ver, quando tudo isso aconteceu eu fiquei em pânico. Pensei que tinha a minha vida desfeita. O Al estava morto e as pessoas iam querer entrar no estúdio para investigar e iam ver que não havia lá obras de arte prontas para uma grande exposição. Eu não tinha lá nada. Nem sequer obras de escultura ou talha. Desde que o Al se foi embora que fiquei bloqueado. Não saiu nada das minhas mãos. O Al trouxe consigo algumas pinturas para me mostrar, mas não eram suficientes para fazer uma exposição.

 

As pinturas que o Al trouxe... eram as que foram deixadas encostadas à árvore?

 

Sim! Muito bem, Lenore. Tencionava levá-las comigo. Levei-as para fora e coloquei-as junto do carro do Al, mas depois, quando fui embora, estava com tanta pressa que me esqueci delas.

 

Estás a ver, provoquei o incêndio para ocultar o crime. Tive de destruir o estúdio para que ninguém descobrisse que estava vazio. E estava tão apavorado que pensei que tinha de desaparecer. Antes que alguém pudesse humilhar-me e fazer-me perguntas. Coloquei as minhas peças de joalharia no Al e derramei todo aquele petróleo na cara dele, na esperança de que as pessoas pensassem que era eu. E deu resultado!

 

Pegaste no carro em que o Al veio e fugiste.

 

Isso devia ser óbvio, Lenore. O problema foi eu não ter planeado antecipadamente. É evidente que me livrei de mim próprio, mas agora quem é que devo ser? Só agora estou a tomar consciência de como hei-de ser.

 

Entretanto veio-me uma ideia à cabeça. Tenho muito dinheiro guardado... vou mandar fazer uma intervenção cirúrgica ao meu rosto, pintar o cabelo de cor castanha e depois volto para a Arcádia como sendo o Al. Quem vai desconfiar? Não há por aí nenhumas fotografias dele e ele já se foi embora daqui há mais de dois anos. Quem é que se vai lembrar exactamente de como era ele?

 

E vou ter-te a ti para confirmar a minha identidade, não é verdade? Vai ser perfeito. Como Al vou herdar a Arcádia. Como Al vou desenvolver um talento pela arte.

 

Sorriu e estendeu as mãos para mostrar como era tudo muito simples.

 

Vou livrar-me desse indivíduo que tu trouxeste para aqui e depois vamos ter novamente a casa só para nós.

 

Deixa o Owen fora disto!

 

Oh, por favor, Lenore... não me digas que pensas que ele te ama. Tu não és digna de ser amada, Lenore. Tu és uma bruxa. A única coisa que ele quer é o meu dinheiro e a minha casa.

 

Eu odeio-te, Bram. Desprezo-te. Eu nunca, nunca mais vou voltar a viver contigo, nem fazer parte das tuas mentiras.

 

Mas vais mudar de opinião. Nós somos uma família, Lenore. Eu sou toda a tua família.

 

Eu vou-me embora com o Owen. E espero que apodreças nesta casa. Melhor ainda, espero que ardas nela.

 

- Ir embora com o Owen? Deves estar a brincar. Achas que vou alguma vez, deixar-te sair daqui? - Riu-se de novo. - E com tudo o que esse teu amante sabe... achas que vou deixá-lo ir, para ele poder denunciar-me?

 

- Não, Lenore. Tu és mais esperta do que isso. Tu sabes bem o que tenho de fazer. o que nós temos de fazer. Tu vais voltar a atrair aqui o teu amante e depois encarregar-nos-emos de resolver o problema. Podemos usar aquele lindo buraco que estive a cavar para o fazermos desaparecer de uma vez por todas.

 

o Bram sorriu e começou a caminhar na direcção dela. Ela levantou a espingarda que estava ao seu lado no sofá. Levantou-a. E ele sorriu como se ela estivesse a ser estúpida. E estendeu as mãos para ela, a sorrir, tão absolutamente confiante em si próprio e nela... estendeu as mãos para lhe tirar a espingarda. E ela disparou.

 

Owen verificou novamente o relógio de pulso - nove horas da manhã em Nova Iorque significavam oito horas da tarde na Tailândia. o que estaria a Lenore a fazer? Com quem estaria ela? Estaria a pensar nele, a desejar que estivesse na sua cama, a sentir a falta do seu sorriso ou dos seus braços a abraçá-la? Ou para ela ele faria já parte do passado, alguém que ela recordava apenas com um carinho distante?

 

Tinha tido notícias dela apenas uma vez nos três meses que tinham passado desde que tinha ido embora, Não pelo telefone, em que teria a oportunidade de conversar com ela ou implorar-lhe, ou mesmo dizer-lhe que a amava, mas através de uma carta que ela tinha escrito com dificuldade na sua caligrafia infantil.

 

Meu querido Owen,

Lamento que tenhas ficado tão perturbado com a minha partida. Eu sabia que ias sofrer e foi por isso que esperei até ao último minuto para te dizer que tinha de ir embora. Queria que o tempo que nos restava juntos fosse de felicidade.

A Tailândia para mim é como entrar num sonho. Onde quer que vá, existem cheiros e vistas e sons que me provocam um sentimento de dêjá vu, mas eu sei que são recordados por alguma parte de mim lá bem no fundo. Encontrei a Chinda e ela está a ajudar-me a procurar a Chit. A Chinda conseguiu contar-me tantas coisas sobre a minha mãe. Tantas pequenas coisas que para mim trazem a Kansai de novo à vida. E ela tem uma fotografia da minha mãe, assim tenho finalmente um rosto para conservar na memória.

Ela diz que os familiares da minha mãe eram Chao Bom, que é uma tribo antiga e que vivem nos arredores de Chaiyahum. (Estou a contar-te isto porque sei como tu gostas de procurar coisas nos teus livros). Embora a minha mãe tivesse ficado órfã muito nova e as minhas hipóteses
de encontrar alguma família directa são provavelmente diminutas, estou mesmo assim a planear viajar para Chaiyahum e passar lá algum tempo.

Eu sei que tu não compreendeste a minha partida, ou a minha recusa em deixar-te vir comigo, mas espero que agora já compreendas melhor, depois de teres todo este tempo sem mim para reflectires. Somos duas pessoas de mundos diferentes, Owen. O facto de estarmos juntos não nos liberta do nosso passado nem o apaga.

Esta viagem é minha. Tu não podes fazer parte dela e não podes ajudar-me nem proteger-me. Não sei o que vou descobrir nem quem vou encontrar. E tinhas razão em desconfiar que eu podia não voltar para ti. Eu não queria admitir isso a mim própria nem a ti enquanto te olhava nos olhos, mas é verdade.

Se eu não regressar, é porque é melhor assim. Tens de acreditar nisso. Significará que eu falhei e que não tenho nada para levar e para te dar. Nesse caso tens de esquecer-me definitivamente.

Mas esse não é o resultado que eu desejo. Espero enterrar os meus fantasmas e encontrar a paz. A Chinda diz que eu ando à procura da criança que deixei aqui. Talvez seja verdade. Não sei. Mas se eu puder recuperar a calma, se puder encontrar a paz, se puder encontrar alguma parte de mim própria que valha a pena dar, então eu vou regressar e vou dar-ta. O teu amor é o mais profundo e mais verdadeiro que eu alguma vez conheci. Vou guardar-te para sempre no meu coração.

Lenore

 

E por isso ele ficou à espera. Ficou à escuta dos passos dela, do som da sua chave na fechadura. Observou o seu jardim pequenino, tomou o seu café, acendeu as suas velas e pensou no passado imutável. Pensou na sua vida. E esperou.

 

Mas ao olhar para trás, reparou que tinha estado sempre à espera dela. À espera de ser abraçado. De ser absorvido pela escuridão dos seus olhos.

 

Ela trazia a queda febril, o ímpeto intenso que eliminava tudo o que ele tinha sido e o deixava a saborear a cinza. Mas agora sabia, ao olhar para trás, que sempre quisera isso.

 

Que sempre estivera à espera.

 

                                                                                Nelson Demille  

 

                      

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