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Series & Trilogias Literarias
Um universo mágico, com toques de folclore, erotismo e aventura, dá o tom de Sedução profana de Laurell K. Hamilton. Ambientada em um mundo onde seres humanos, fadas, duendes e outras criaturas encantadas convivem em relativa harmonia, a trama é narrada por Meredith Gentry, que trabalha como investigadora em uma agência de detetives especializada em casos sobrenaturais ou que envolvam algum tipo de feitiço. Mas a jovem guarda um segredo: sua verdadeira identidade é Meredith NicEssus, uma princesa ameaçada de morte que se escondeu em Los Angeles.
Mesmo sendo uma encantada - criatura com poderes mágicos e características diferentes dos humanos, como pele e olhos brilhantes - Meredith é mortal. Parte fada da luz, parte fada da escuridão, ela foi criada entre pessoas comuns dos 6 aos 16 anos. Seu pai, o Príncipe Essus, a tirou da corte depois que ela quase morreu afogada pela tia, a Rainha do Ar e da Escuridão. Ao voltar para sua terra natal, uma década depois, a princesa percebeu que sua vida ainda corria perigo. Apesar de ter sangue nobre, Meredith não era respeitada como tal na Corte Profana e acabou vítima de uma série de atentados. Com medo de morrer durante alguma luta, ela preferiu fugir, ainda que isso significasse despertar a fúria de sua poderosa tia.
Depois de três anos escondida em Los Angeles, Meredith parece estar com a vida estabilizada. Além de um emprego, ela tem amigos em quem pode confiar e um namorado. Sua mágica, incapaz de protegê-la dos ataques de outros encantados, é perfeita para deixá-la com aspecto humano. Mas um caso aceito pela agência de detetives faz com que ela seja obrigada a deixar o disfarce de lado e encarar uma nova realidade: retornar à Corte Profana e descobrir por que a tia exige sua presença.
Aliados inesperados, inimigos à espreita e muitas surpresas aguardam Meredith em sua jornada. E a volta ao castelo da Rainha do Ar e da Escuridão é só o começo. Até a última página, os leitores são envolvidos em uma teia de mistério e intrigas, recheada com cenas de magia, batalhas violentas e uma boa dose de sexo. Conseguirá a princesa escapar com vida das armadilhas em seu caminho? Seu futuro é o trono ou a morte? Com uma narrativa ágil e detalhada, Sedução profana prende a atenção até o fim.
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Do VIGÉSIMO TERCEIRO ANDAR só conseguia ver o cinza da névoa pelas janelas. Podiam chamar de Cidade dos Anjos se quisessem, mas se havia anjos lá fora, deviam estar voando às cegas.
Los Angeles é um lugar para onde as pessoas, as que têm asas e as que não têm, vêm quando querem se esconder. Para se esconder das outras pessoas e delas mesmas. Eu tinha vindo para isso, para me esconder, e consegui, mas, espiando aquele ar pesado e sujo, tive vontade de ir para casa. A minha casa, onde o ar e o céu eram azuis a maior parte do tempo, e onde não se tinha de regar a terra para a grama crescer. Minha casa era Cahokia, Illinois, mas eu não podia voltar porque me matariam se fizesse isso, meus parentes e seus aliados. Todos querem ser uma princesa entre as fadas quando crescer. Mas podem acreditar. Estão supervalorizando.
Bateram na porta do escritório. E abriram antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. Meu chefe, Jeremy Grey, estava lá emoldurado pelo batente. Era um homem baixo e todo cinza, de um metro e meio, cinco centímetros mais baixo do que eu. Era cinza por causa do terno Armani, da camisa social e da gravata de seda. Só o sapato era preto e brilhante. Até a pele dele era uniformemente cinza claro. Não por doença ou pela idade. Não, ele estava muito próximo do auge da juventude, tinha pouco mais de quatrocentos anos. Poucas rugas em volta dos olhos e da boca de lábios finos davam uma aparência de maturidade, mas ele jamais seria velho. Sem a ajuda do sangue mortal e de um feitiço mais sério, Jeremy poderia viver para sempre. Teoricamente. Os cientistas dizem que dentro de uns cinco bilhões de anos o Sol vai se expandir e engolir
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a Terra. Os encantados não sobreviverão a isso. Vão morrer. Cinco bilhões de anos contam como uma eternidade? Acho que não. Mas é bem próximo e basta para deixar o resto de nós com inveja. Recostei-me na janela, contra a névoa grossa e imóvel. O dia estava cinza como meu chefe, mas a cor dele era um cinza fresco e limpo, lembrava nuvens antes de uma chuva de primavera. O que havia lá fora era pesado e espesso como alguma coisa que tentamos engolir e nunca conseguimos. Era um dia para engasgar, ou talvez fosse só meu estado de espírito.
- Você parece desanimada, Merry - disse Jeremy. - O que houve?
Ele fechou a porta com todo o cuidado. Privacidade, estava garantindo nossa privacidade. Talvez fosse por mim, mas não sei por quê, achava que não era. Havia uma tensão nos olhos dele, um prumo determinado nos ombros magros e bem costurados do paletó que diziam que eu não era a única de mau humor hoje. Podia ser o tempo, ou a falta dele. Uma boa chuvarada, até um bom vento, teria limpado a névoa poluída para deixar a cidade respirar de novo.
- Estou com saudade de casa - eu disse. - Qual é o problema, Jeremy?
Ele sorriu um pouco.
- Não consigo disfarçar com você, não é, Merry?
- É - respondi.
- Gostei da roupa - ele disse.
Sabia que estava muito atraente quando Jeremy elogiava minha roupa. Ele andava sempre impecável, até de calça jeans e camiseta, que só usava quando tinha de se disfarçar, se não pudesse evitar. Eu tinha visto Jeremy percorrendo quase dois quilômetros em três minutos de tênis Gucci uma vez, perseguindo um suspeito. É claro que ajudava muito o fato de a destreza e a velocidade dele Serem sobre-humanas. Quando eu achava que ia ter de perseguir alguém, ocasiões bem raras, pegava meus tênis de corrida e deixava os saltos altos em casa.
Jeremy tinha nos olhos aquele ar do homem que está gostando do que vê. Não era pessoal, mas entre os encantados é um insulto
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ignorar alguém que obviamente tenta ficar atraente, é um tapa na cara dizer que fracassaram. Mas ali parecia que eu não tinha fracassado mesmo. Naquela manhã acordei no nevoeiro e pus uma roupa mais colorida do que de costume, para me animar um pouco. Paletó azul real trespassado, com botões prateados, saia pregueada azul combinando, tão curta que só se via a bainha sobre minhas coxas embaixo do paletó. A roupa era mesmo tão curta que, se cruzasse as pernas sem jeito, mostraria até a barra da minha meia de seda preta. O sapato de couro salto cinco ajudava a exibir as pernas. Quando se é baixa como eu, temos de fazer alguma coisa para dar a impressão de que as pernas são mais compridas. Usava salto sete quase todos os dias.
Meu cabelo refletia ruivo profundo nos espelhos. Mais vermelho do que castanho, uma cor que tinha laivos pretos em vez do castanho comum da maioria das ruivas. Era como se alguém tivesse pegado rubis de um vermelho bem escuro e os salpicasse no cabelo. Este ano era a cor da moda. Na alta corte da realeza encantada era chamada de castanho sangue. Ruivo Encantado, Escarlate de Fada, se fosse a um bom salão. Era minha cor natural. Até entrar na moda este ano, e finalmente acertarem o tom nos cabeleireiros, eu tive de esconder essa cor verdadeira. Escolhi o preto, porque parecia mais natural do que o ruivo humano, com meu tom de pele. Muita gente que tingia o cabelo cometia o erro de pensar que Escarlate de Fada complementava o colorido de uma ruiva natural. Não complementa. É o único vermelho que conheço que combina com a pele branca como neve. É o tom de vermelho no cabelo para alguém que fica maravilhosa de roupa preta, vermelho vivo e azul real.
As únicas coisas que ainda precisava esconder eram o verde e o dourado vibrantes dos olhos e a luminosidade da minha pele. Usava lentes de contato castanhas nos olhos. A pele... essa eu tinha de desbotar usando glamour, mágica. Bastava uma concentração constante, como música no fundo do cérebro, para jamais abaixar a guarda e começar a brilhar. Os seres humanos não têm esse tipo de brilho, por mais luminosos que possam ser. Eu não podia cintilar, daí as lentes de contato cobrindo meus olhos. Também tecia
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um encantamento em volta de mim mesma como um casaco comprido e bem conhecido, uma ilusão de que eu era apenas um ser humano, com menos sangue de encantada na minha história, com algumas habilidades psíquicas e místicas que faziam de mim uma excelente detetive, mas nada muito especial.
Jeremy não sabia o que eu era. Ninguém da agência sabia. Eu era um dos membros mais fracos da corte real, mas ser encantada significa alguma coisa, mesmo no lado fraco da escala. Queria dizer que eu tinha conseguido esconder o que sou realmente, minhas habilidades, de um punhado dos melhores mágicos e psíquicos da cidade. Talvez do país. Não era pouca coisa, mas o melhor glamour de que eu fosse capaz não iria evitar que um punhal encontrasse minhas costas, ou que um feitiço esmagasse meu coração. Para isso eu precisava de qualidades que não tinha, e esse era um dos motivos pelos quais me escondia. Não podia lutar contra os encantados, não podia enfrentá-los e continuar viva. O melhor que podia fazer era me esconder. Confiava em Jeremy e nos outros. Eram meus amigos. Não confiava no que os encantados podiam fazer com eles se me descobrissem, e se meus parentes ficassem sabendo que meus amigos conheciam o meu segredo. Se eles ignorassem, então os encantados os deixariam em paz e machucariam só a mim. Ignorância era uma bênção nesse caso. Só que eu achava que alguns dos meus bons amigos iam considerar isso um tipo de traição. Mas se a opção era eles continuarem vivos, com todas as partes do corpo intactas, e com raiva de mim, ou torturados e mortos, sem estarem com raiva de mim, eu escolhia a raiva. Podia viver com a raiva deles. Não tinha certeza se podia viver com suas mortes.
Eu sei, eu sei. Por que não ir para o Bureau dos Assuntos Humanos e Encantados e pedir asilo? Meus parentes provavelmente me matariam quando me encontrassem, mas se eu fizesse uma declaração pública e lavasse a roupa suja diante da mídia mundial, eles definitivamente me matariam. E me matariam mais devagar. Por isso nada de polícia, nada de embaixadores, apenas a brincadeira básica de esconde-esconde.
Sorri para Jeremy e dei-lhe o que sabia que ele queria: um olhar que valorizava o potencial elegante do corpo dele com aquele
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terno perfeito. Para os humanos aquilo seria paquera, mas para as fadas, para qualquer um do mundo encantado, não chegaria nem perto de uma paquera.
Obrigada, Jeremy, mas você não veio aqui para elogiar minha roupa.
Ele se aproximou e passou os dedos manicurados na beirada da minha mesa.
Há duas mulheres na minha sala. Elas querem ser nossas clientes - ele disse.
- Querem? - eu disse.
Ele deu meia-volta, encostou na mesa e cruzou os braços sobre o peito. Imitou minha pose diante da janela, inconscientemente ou de propósito, mas eu não sabia por quê.
- Nós não costumamos cuidar de divórcio - disse Jeremy. Arregalei os olhos e me afastei da janela.
- Aula do primeiro dia, Jeremy: a Agência de Detetives Grey nunca, jamais, trata de divórcio.
- Eu sei, eu sei - ele disse.
Jeremy deu a volta na mesa e veio ficar ao meu lado, espiando o nevoeiro lá fora. Não parecia mais animado do que eu. Recostei-me no vidro para ver melhor o rosto dele.
- Por que está quebrando sua regra principal, Jeremy? Ele balançou a cabeça sem olhar para mim.
- Venha conhecê-las, Merry. Confio no seu julgamento. Se considerar que devemos ficar fora disso, ficaremos fora. Mas acho que vai sentir a mesma coisa que eu.
Toquei no ombro dele.
- E o que está sentindo, chefe, além de preocupação? Passei a mão no braço dele, e então ele olhou para mim. Os olhos de Jeremy estavam pretos como carvão, de raiva.
- Venha conhecê-las, Merry. Se ficar com raiva depois, como eu, nós vamos pegar esse cara.
Apertei o braço dele.
- Jeremy, calma. É só um caso de divórcio.
E se eu lhe disser que foi tentativa de assassinato? A voz dele transmitia calma. Por sinal, não combinava com a intensidade do olhar dele, nem com a tensão vibrante do braço.
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Cheguei para trás.
- Tentativa de assassinato? Do que está falando?
- O pior feitiço mortal que jamais entrou na minha sala.
- O marido está tentando matá-la? - perguntei.
- Alguém está, e a mulher diz que é o marido. A amante concorda com a mulher.
Pisquei sem entender.
- Está dizendo que a mulher e a amante estão na sua sala? Ele fez que sim com a cabeça e, apesar de toda a revolta que sentia, sorriu.
Sorri para ele também.
- Bem, isso deve ser inédito. Ele segurou minha mão.
- Deve ser inédito mesmo se trabalhássemos com divórcios ele disse.
Jeremy passou o polegar para lá e para cá nas articulações dos meus dedos. Ele estava nervoso, senão não tocaria em mim daquele jeito. Era uma maneira de se tranqüilizar, como uma pedra de toque. Puxou minha mão até seus lábios e beijou rapidamente meus dedos. Acho que notou o que estava fazendo, que não conseguia disfarçar o nervosismo. Deu um sorriso amarelo com as melhores jaquetas que o dinheiro pode comprar e virou para a porta.
- Responda a uma pergunta primeiro, Jeremy.
Ele arrumou o terno com movimentos imperceptíveis para pô-lo no lugar, como se precisasse.
- Atire.
- Por que está assustado com isso?
O sorriso se desfez, e ele adotou uma expressão solene.
- Tenho um mau pressentimento sobre isso, Merry. Profetizar não é um dos meus dons, mas esse caso cheira muito mal.
- Então deixe pra lá. Não somos a polícia. Fazemos isso por uma remuneração muito boa, não porque juramos servir e proteger, Jeremy.
- Se depois de conhecê-las você conseguir, sinceramente, deixar isso pra lá, faremos isso.
- Por que o meu voto passou a ser de repente um veto presidencial? O nome na porta é Grey, não Gentry.
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- Porque Teresa é tão sensível que não seria capaz de recusar ninguém. Roane é manteiga derretida demais para expulsar mulheres que choram.
Jeremy arrumou a gravata cinza claro, alisando o prendedor de diamantes.
- Os outros são bons para trabalho duro, mas não são tomadores de decisão. E sobra você.
Olhei bem nos olhos dele, procurando ver através da raiva, da preocupação, o que realmente se passava na cabeça dele.
- Você não é tão emocional, não é manteiga derretida e toma decisões acertadas, por que não poderia tomar essa sozinho?
- Porque se mandarmos as duas embora, elas não terão mais para onde ir. Se saírem desse escritório sem a nossa ajuda, as duas estarão mortas.
Fiquei olhando para ele e finalmente compreendi.
- Você sabe que devemos recusar, mas não consegue julgar isso. Não é capaz de condenar as duas à morte.
Ele meneou a cabeça.
- É isso.
- E por que acha que eu posso, se você não pode?
- Espero que um de nós tenha sanidade mental para não ser tão burro.
- Não vou matar vocês todos pelo bem de estranhas, Jeremy, por isso prepare-se para recusar esse caso.
Minha voz soou dura e fria, até para mim. Ele sorriu de novo.
- Essa é a minha megera fria e calculista. Balancei a cabeça e fui para a porta.
- Por isso, entre outras coisas, é que você me ama, Jeremy. Você aposta que não vou recuar.
Fui andando pelo corredor que ligava as duas salas, certa de que ia despachar aquelas mulheres. Certa de que eu seria o muro que nos mantinha a salvo das boas intenções de Jeremy. A Deusa sabe que já me enganei antes, mas raramente tanto como agora.
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Pensei que por algum motivo seria capaz de distinguir qual das duas mulheres era a esposa e qual era a amante, apenas olhando para as duas. Mas à primeira vista eram apenas duas mulheres atraentes, em trajes casuais, como amigas que tinham ido almoçar e fazer compras juntas. Uma era pequena, apesar de ser alguns centímetros mais alta do que eu e do que Jeremy. Cabelo louro cortado logo acima dos ombros, com um ondulado despojado que dizia ser natural, que não tinha feito nada com ele naquela manhã. Era bonita, do tipo moça-que-mora-ao-lado, tinha olhos extraordinariamente azuis que ocupavam a maior parte do rosto. As sobrancelhas arqueadas eram grossas e pretas e equilibravam uma renda de cílios escuros que emolduravam os olhos de forma dramática. Só que as sobrancelhas escuras me fizeram pensar se o cabelo louro era mesmo natural. Não usava maquiagem e mesmo assim conseguia ser muito bonita, de um jeito etéreo e muito natural. Com maquiagem e um certo esforço ficaria deslumbrante. Mas precisaria de mais do que maquiagem e roupas melhores.
Ela se acomodara na cadeira dos clientes, com os ombros curvados como se esperasse um golpe. Os olhos adoráveis piscaram para mim como os olhos de uma corça surpreendida por faróis, como se fosse impotente para interromper o que estava acontecendo, e o que estava acontecendo era ruim.
A outra mulher era alta, um metro e setenta e três ou mais, longilínea, de cabelo castanho-claro comprido que descia liso e brilhante até a cintura.
A primeira vista parecia ter vinte e poucos anos. Então vi os olhos dela, e havia uma intensidade nas profundezas castanhas que me fizeram adicionar uns dez anos. Simplesmente não se tinha aquele olhar muito antes dos trinta. A postura dela era mais segura do que a da loura, mas havia um quê de esquiva nos olhos, uma tensão nos ombros, como se alguma coisa lá no fundo estivesse doendo. Tinha também ossatura delicada, parecia que o que havia por baixo da pele era formado por algo mais refinado do que apenas
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ossos. Só uma coisa podia dar a uma pessoa alta e segura aquele ar de requinte: ela era parte fada. Ah, algumas gerações para trás, nada tão íntimo como meus laços com a corte, mas em algum ponto uma bisavó-algumas-vezes tinha se deitado com algo não humano e engravidado. Sangue encantado de qualquer tipo marca uma família, mas o sangue de fadas parece ficar nos genes para sempre; uma vez incluído na mistura, nunca mais sai.
Eu apostava que a loura era a esposa e a outra a amante. A loura parecia a mais sofrida das duas, que normalmente é o caso quando se trata de um homem violento. Eles podem abusar de todas as mulheres de suas vidas, mas em geral guardam o melhor ou o pior para a família. Meu avô sempre fez assim.
Entrei na sala sorrindo, com a mão estendida para cumprimentá-las, como se fossem qualquer outro cliente. Jeremy nos apresentou. A pequena loura era a esposa, Francês Norton. A mulher alta de cabelo castanho era a amante, Naomi Phelps.
O aperto de mão de Naomi foi firme, a mão dela era fria, com aqueles ossos extraordinários mexendo embaixo da pele. Segurei a mão dela um tempo a mais, curtindo a sensação daquele toque. Foi a coisa mais próxima que tive de outra fada nos últimos três anos. Nem o toque de algum outro encantado é a mesma coisa. Tem algo na linhagem real que funciona como uma droga. Depois que experimentamos, sentimos falta.
Ela olhou confusa para mim, e foi uma confusão muito humana. Larguei a mão e procurei fingir ser humana. Havia dias em que me saía melhor nisso. Outros dias era pior. Eu podia ter tentado avaliá-la fisicamente, para ver se tinha mais do que ossatura como característica especial, mas era falta de educação ler as habilidades mágicas de outra pessoa no primeiro encontro. Entre as fadas isso é considerado um desafio declarado, um insulto indicar que você não acredita que a outra pessoa é capaz de se defender da sua mágica mais trivial. Naomi provavelmente não ia considerar um insulto, mas a ignorância dela não era desculpa para eu ser grosseira.
Francês Norton estendeu a mão como se tivesse medo de ser tocada, com o braço meio dobrado para poder recuar assim que
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eu a soltasse. Dei-lhe o mesmo tratamento educado que tinha dado à outra mulher, mas só de aproximar meus dedos da pele dela já pude sentir o feitiço. Aquela pequena linha de energia que envolve todos nós, a aura, empurrava a minha pele como se quisesse me impedir de tocá-la. A mágica de outra pessoa era tão concreta no corpo de Francês que preenchia sua aura, água suja num copo limpo. De certa forma, a mulher não era mais ela mesma. Não era possessão, mas um primo próximo. Obviamente era a violação de algumas leis humanas, todas criminosas.
Forcei minha mão através daquele caldo de energia e agarrei a dela. O feitiço tentou invadir minha pele e subir pelo meu braço. Não se via nada com os olhos, mas eu senti uma espécie de escuridão querendo me invadir, do mesmo modo que vemos coisas nos sonhos. Contive aquilo logo abaixo do cotovelo e tive de me concentrar para tirá-lo do braço como se tira uma luva. O feitiço tinha rompido minha defesa, parecia que eu não tinha nenhuma. Poucas coisas são capazes de fazer isso. Nenhuma delas é humana.
Ela olhava para mim com os olhos grandes, arregalados.
- O que... o que está fazendo?
- Não estou fazendo nada com você, sra. Norton.
Minha voz parecia um pouco deslocada, distante, porque eu estava concentrada em arrancar aquele feitiço, de modo que quando largasse a mão dela não ficasse nem um pouco grudado em mim.
Ela tentou puxar a mão, e eu não deixei. Começou a balançar o braço, puxando sem força, mas frenética. A outra mulher falou:
- Largue a Francês, agora.
Eu estava quase livre, quase pronta para soltá-la, quando a outra mulher segurou meus ombros. Os pelos na minha nuca ficaram arrepiados, e perdi a concentração na minha mão, porque agora sentia Naomi Phelps. O feitiço cobriu minha mão de novo e já estava quase no ombro, antes de eu poder me concentrar novamente para impedir. Só consegui fazer com que parasse. Não pude fazê-lo recuar porque prestava atenção demais na outra mulher.
Nunca se deve tocar em alguém que está fazendo mágica, ou em transe psíquico, a menos que queira que alguma coisa aconteça. Assim fiquei sabendo que nenhuma das duas era praticante, ou
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psíquica ativa. Ninguém com um mínimo de preparo teria feito isso. Pude sentir os resquícios de algum ritual no corpo de Naomi. Uma coisa complexa. Egoísta. A idéia que surgiu espontânea na minha cabeça foi de gula. Alguma coisa estava se alimentando da energia dela e deixara um rastro de cicatrizes psíquicas.
Ela se afastou bruscamente de mim e protegeu a mão junto ao peito. Sentiu a minha energia, portanto, tinha talento. Nenhuma surpresa. O que me surpreendia era o fato de ela não ter desenvolvido isso, talvez fosse completamente destreinada. Hoje em dia eles vão aos jardins de infância e testam as crianças para ver se têm dons psíquicos, talento místico, mas na década de sessenta esse programa era novidade. Naomi conseguiu não ser descoberta e agora tinha mais de trinta anos, sem jamais ter encarado suas habilidades. A maioria dos psíquicos não desenvolvidos ficam loucos, viram criminosos ou suicidas quando chegam aos trinta anos. Ela devia ser uma pessoa muito forte para continuar equilibrada do jeito que parecia ser. Mas essa mulher muito forte olhou para mim, com lágrimas nos olhos.
- Não viemos até aqui para sermos atacadas.
Jeremy tinha se aproximado, mas tomava cuidado para não encostar em nenhuma de nós. Não era bobo.
- Ninguém está atacando vocês, sra. Phelps. O feitiço na sra. Norton ia... grudar na minha colega. A sra. Gentry estava apenas tentando afastar o feitiço dela quando a senhora encostou nela. Não se deve jamais encostar em alguém que está fazendo mágica, sra. Phelps. As conseqüências podem ser imprevisíveis.
A mulher olhou para nós dois, e sua expressão dizia que não acreditava em nada daquilo.
- Venha, Francês. Vamos dar o fora daqui.
- Não posso - disse Francês, com uma voz tímida e submissa. Ela olhava fixo para mim, com muito medo, só que era medo de mim. Ela sentiu a energia em volta das nossas mãos, grudando nós duas, mas pensou que era eu que estava fazendo aquilo.
- Eu juro, sra. Norton, que não estou fazendo isso. Seja qual for a mágica que usaram contra a senhora, ela acha que sou apetitosa. Preciso arrancá-la de mim e deixar que flua de volta para a senhora.
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- Eu quero me livrar disso - ela disse, num tom levemente histérico.
- Se não tirar de mim, quem fez isso com a senhora poderá me rastrear. Poderá me encontrar. Saberá que trabalho numa agência de detetives especializada em problemas sobrenaturais, soluções mágicas. - Era o nosso slogan. - Saberá que a senhora veio aqui pedir ajuda. Acho que não vai querer isso, sra. Norton.
Um pequeno tremor atacou as mãos dela, espalhou-se pelos braços, até ela tremer por inteiro, como se sentisse frio. Talvez sentisse mesmo, mas não era o tipo de frio que um bom suéter resolveria. Nenhuma camada extra de calor externo curaria aquele frio interno. Ela teria de ser aquecida a partir do centro danificado de sua alma, até as pontas dos dedos. Alguém teria de derramar poder dentro dela, magia, pouco a pouco, como quem derrete algum corpo antigo encontrado congelado. Se derreter rápido demais, provoca mais danos do que se não fizer nada. Esse uso delicado do poder estava além da minha capacidade. Tudo que eu podia fazer era acalmá-la um pouco, tirar um pouco do medo... mas quem tinha posto aquele feitiço nela ia sentir também. Não poderia me rastrear por isso, mas saberia que ela procurou um profissional, alguém que procurava ajudá-la no nível psíquico. Podia ser apenas um palpite, mas quem lançou o feitiço não ia gostar nada disso. Talvez reagisse fazendo algo drástico, como acelerar o processo. Senti a energia sugadora do feitiço tentando romper minhas defesas, alimentar-se de mim também. Parecia um câncer mágico, só que tão fácil de pegar como uma gripe. Quantas pessoas ela havia infectado? Quantas pessoas andavam por aí com esse feitiço sugando partes de suas energias? Alguém que fosse só um pouco psíquico saberia que alguma coisa aconteceu, mas não o quê. Evitaria Francês Norton porque o mal fora provocado por ela e, talvez, passaria semanas, meses sem entender que o cansaço, a vaga sensação de impotência, a depressão, tudo isso era causado por um feitiço.
Ia dizer a ela o que eu faria, mas quando olhei para aqueles olhos grandes, desisti. Ela ficaria mais tensa, mais apavorada. O melhor que eu podia fazer era tornar o processo invisível para
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ela. Garantir que não sentisse, quando o feitiço voltasse para ela, era o máximo que eu podia fazer.
O feitiço estava mais espesso, mais negro, mais concreto, só com aqueles segundos instalado na minha pele. Comecei a arrancálo do meu braço. Ele grudava como piche, e precisei de muito mais concentração para tirá-lo, enrolando-o como um tecido grosso. Cada centímetro da pele que eu libertava ficava mais leve, mais limpo. Nem conseguia imaginar como seria viver coberta com aquela coisa. Seria passar a vida com pouco oxigênio, enfiada num quarto escuro, onde a luz nunca entrava.
Liberei o braço, a mão e lentamente fui afastando os dedos da mão dela. Francês ficou perfeitamente imóvel encostada em mim, um coelho escondido no capim, torcendo desesperadamente para a raposa passar por ele se conseguisse ficar bem quietinho. Acho que Francês Norton não tinha percebido ainda que já estava no meio da goela da raposa, agitando as perninhas do lado de fora.
Quando recuei, o feitiço continuou agarrado aos meus dedos um tempo, depois voltou para o lugar em volta de Francês, com um ruído quase audível. Limpei a mão no meu paletó. Estava livre da praga, mas senti uma necessidade terrível de lavar minha mão com água bem quente e muito sabão. Água fria e sabonete comum não adiantariam nada, talvez um pouco de sal, ou água benta.
Ela despencou na cadeira, cobriu o rosto com as mãos, seus ombros tremiam. Primeiro pensei que estava chorando silenciosamente. Mas quando Naomi a abraçou, ela ergueu o rosto sem lágrimas. Francês tremia, apenas tremia, parecia que não conseguia mais chorar, não porque não quisesse, mas porque todas as lágrimas tinham secado. Ficou lá sentada enquanto a amante do marido a abraçava, acalentava-a, balançando-a de um lado para outro. Ela tremia tanto que começou a tiritar, mas não chorou.
Parecia muito pior porque ela não chorava.
- Com licença, senhoras. Estaremos aqui no corredor - eu disse.
Olhei para Jeremy e fui para a porta, sabendo que ele me seguiria. Fomos para o corredor, e ele fechou a porta da sala.
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- Sinto muito, Merry. Eu apertei a mão dela e nada aconteceu. O feitiço não veio para cima de mim.
Fiz que sim com a cabeça. Acreditei nele.
- Talvez eu seja mais apetitosa. Ele deu um sorriso largo.
- Bem, não sei por experiência própria, mas quase posso apostar nisso.
Eu sorri também.
- Fisicamente, pode ser, mas misticamente você é tão poderoso quanto eu, do seu jeito. Senhor e Senhora, você é melhor mágico do que jamais serei, no entanto, aquela coisa não reagiu a você.
Ele balançou a cabeça.
- É, não reagiu. Talvez você tenha razão, Merry. Talvez isso seja perigoso demais para você.
Franzi a testa.
- Agora ele parece cauteloso.
Jeremy olhou para mim e fez força para manter a expressão neutra.
- Por que tenho a sensação de que você não vai ser a megera fria e calculista que eu esperava?
Encostei na parede e olhei de cara feia para ele.
- Essa coisa é tão maligna que vamos conseguir ajuda da polícia.
- Incluir a polícia não vai salvá-las. Não temos o suficiente para provar que é o marido. Se não pudermos provar no tribunal, ele não irá preso, o que significa que ficará livre para fazer mais magia com elas. Precisamos dele trancafiado numa cela, de onde não possa prejudicá-las.
- Elas precisariam de uma proteção mágica até ele ir preso. Esse não é apenas um trabalho de detetive. É de babá.
- Uther e Ringo são grandes babás.
- É, acho que são.
- Ainda não está satisfeita. Por quê?
- Devemos recusar esse trabalho - eu disse.
- Mas você não consegue - ele disse. Jeremy estava sorrindo.
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- É, não posso fazer isso.
Havia muitas agências de detetives nos Estados Unidos que diziam se especializar em casos sobrenaturais. Era um grande negócio, o sobrenatural, mas a maioria das agências não correspondia à propaganda. Nós sim. Éramos uma de um pequeno punhado de agências que podia se vangloriar de uma equipe formada inteiramente por profissionais da magia e médiuns. Também éramos a única que podia alardear que quase todos os empregados, menos dois, eram encantados. Não há muitos encantados de sangue puro que suportem viver numa cidade grande, superlotada. Los Angeles era melhor do que Nova York ou Chicago, mas mesmo assim era exaustivo viver cercado de tanto metal, tanta tecnologia, tantos seres humanos. A mim não incomodava. Meu sangue humano facultava tolerância humana para prisões de aço e de vidro. Cultural e pessoalmente, eu preferia o campo, mas não precisava dele. Era gostoso, mas não ficava nauseada nem apagava sem ele. Acontecia com algumas fadas.
- Gostaria de poder mandá-las embora, Jeremy.
- Você tem um mau pressentimento sobre esse caso também, não tem?
Fiz que sim com a cabeça.
-É.
Mas se eu as mandasse embora, veria Francês tremendo e seu rosto sem lágrimas, em meus sonhos. Por experiência própria, sabia que elas podiam voltar para me assombrar depois que aquele que as estava matando terminasse o serviço. Elas podiam voltar como fantasmas justiceiros e reclamar que eu tinha tirado delas, conscientemente, sua última chance de sobreviver. A maioria acredita que fantasmas assombram as pessoas que os mataram, mas nem sempre é assim. Fantasmas têm um senso de justiça interessante, e eu teria sorte se eles ficassem só me seguindo até eu encontrar alguém em quem despejá-los. Se é que eles pudessem ser despejados. Às vezes os espíritos eram mais difíceis. E você pode acabar com um fantasma de família como os que anunciam as mortes iminentes, uivando cada vez que alguém morre. Duvidei Que qualquer das duas tivesse esse tipo de força de caráter, mas
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teria sido bem feito para mim se tivessem. Foi a sensação de culpa que me fez voltar para aquela sala, não o medo de represálias fantasmagóricas. Tem gente que diz que os encantados não têm alma, nem senso de responsabilidade individual. Para alguns isso é verdade, mas não era o caso de Jeremy, e não era o meu caso. Em alguns momentos isso é uma pena. Uma pena.
Naomi Phelps foi quem mais falou, Francês não dizia nada, só tremia. Nossa secretária levou café e um cobertor para ela. As mãos tremiam tanto que ela derramou café no cobertor, mas conseguiu beber um pouco. Não sei se foi o calor ou a cafeína, mas o fato é que ela pareceu melhorar um pouco.
Jeremy tinha chamado Teresa para ouvir a história das mulheres. Teresa era nossa médium residente. Teresa tinha um metro e setenta e cinco de altura, era magra, com maçãs do rosto salientes, cabelo preto comprido e sedoso e a pele da cor de café com leite. A primeira vez que a vi, soube que tinha sangue de fada, além de afro-americano, e algo de encantado que não era da alta corte. Essa última ascendência é que lhe dava as pontas discretas no topo das orelhas. Muitos que desejam ser fadas e duendes fazem implantes de cartilagem para tornar as orelhas pontudas. Deixam o cabelo crescer até os tornozelos e fingem ser encantados. Mas nenhum encantado puro sangue jamais teve orelhas pontudas. Essa é uma marca de mistura, do sangue que não é puro. Mas há histórias populares que são mais difíceis de desmascarar do que outras. Para a grande maioria das pessoas, se você é realmente uma fada, tem de ter orelhas pontudas.
Teresa tinha os mesmos ossos delicados de Naomi, mas nunca senti vontade de segurar a mão de Teresa. Ela era uma das mais poderosas clarividentes pelo toque que eu conhecia. Gastei uma quantidade boa de energia para garantir que ela não encostasse em mim, com medo de que ficasse sabendo dos meus segredos e
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pusesse todos nós em perigo. Ela sentou numa cadeira de um lado observando as duas mulheres com seus olhos escuros. Não estendeu a mão para cumprimentá-las. Na verdade, deu uma volta bem longe delas para não encostar acidentalmente em nenhuma. Sua expressão não revelava nada, mas ela sentiu o feitiço, o perigo, assim que entrou na sala.
- Não sei quantas amantes ele teve - dizia Naomi. - Uma dúzia, duas dúzias, centenas. - Ela deu de ombros. - A única coisa de que tenho certeza é que sou a última numa longa lista.
- Sra. Norton - disse Jeremy.
Francês olhou para ele assustada, como se não esperasse ser chamada para complementar a história.
- Tem alguma prova da existência de todas essas mulheres? Ela engoliu em seco e disse, com uma voz que era quase um sussurro:
- Fotos de polaroide, ele guarda fotos de polaroide. - Ela olhou para baixo e murmurou: - Ele chama de seus troféus.
Tive de perguntar:
- Ele mostrou essas fotos para a senhora, ou as encontrou? Ela olhou para mim e seu olhar era vazio, nenhuma raiva, nenhuma vergonha, vazio.
- Ele mostrou para mim. Ele gosta... ele gosta de me contar o que faz com elas. Qual é a especialidade de cada uma, o que faz melhor do que eu.
Abri a boca e fechei, porque não consegui pensar em nada de útil para dizer. Estava revoltada por ela, mas era Francês Norton que precisava sentir raiva por Francês Norton. A minha podia ajudar a resolver o problema imediato, mas não a faria forte de novo. Se pudéssemos tirar o marido do cenário, isso não serviria para curar todo o mal que ele provocou. Francês tinha muitos outros problemas além de apenas um feitiço.
Naomi tocou no braço dela, para consolá-la.
- Foi assim que ela me reconheceu. Viu a minha fotografia e um dia nós simplesmente nos encontramos por acaso. Eu a vi olhando fixo para mim num restaurante. Ele chegou em casa e acordou Francês para contar o que tinha feito comigo.
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Foi a vez de Naomi abaixar a cabeça e olhar para as mãos sobre as pernas, com as palmas viradas para cima, vazias.
- Dava para ver minhas manchas roxas e hematomas. - Ela olhou bem nos meus olhos. - Francês foi até a minha mesa. Enrolou as mangas da blusa e mostrou suas marcas. Depois disse simplesmente: "Sou a mulher dele." E foi assim que nos conhecemos.
Com a última frase ela deu um sorriso tímido, do tipo que damos quando explicamos como conhecemos nosso grande amor. Uma história de ternura para se associar a outras.
Olhei para ela com expressão neutra, mas imaginei se a ligação das duas era mais do que apenas a violência e o marido. Se eram amantes, o processo de cura seria outro. Muitas vezes temos de levar em conta as emoções nas coisas místicas. Porque amor e ódio possuem energias diferentes, trabalhamos com elas também de modo diverso. Tínhamos de saber exatamente qual era o tipo de ligação entre as duas mulheres antes de iniciar qualquer trabalho sério de cura, mas hoje não. Hoje íamos ouvir o que elas quisessem nos dizer.
- Sua atitude foi muito corajosa - disse Teresa.
A voz, como tudo em Teresa, era suave e feminina, com uma força por trás, como aço coberto de seda. Sempre pensei que Teresa poderia ser uma excelente beleza sulista, apesar de ela jamais ter viajado para o sul além do México.
Francês olhou rapidamente para ela, depois para o colo de novo, mais uma vez levantou a cabeça e moveu a boca. Foi quase um sorriso. Aquele pequeno movimento fez com que me sentisse melhor em relação a ela. Se conseguia esboçar um sorriso, sentir orgulho da força que tinha demonstrado, então talvez ficasse boa com o tempo.
Naomi apertou o braço dela e lhe deu um sorriso de admiração e afeto. Mais uma vez tive a impressão de que elas eram muito íntimas.
- Foi a minha salvação. Desde o momento em que conheci Francês, passei a tentar me afastar dele. Não sei como permiti que ele me machucasse. Não sou assim. Quero dizer, eu nunca, jamais, deixei qualquer homem ser violento comigo.
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A expressão dela exibia a vergonha que sentia, a idéia de que devia ter se salvado sozinha.
Francês pôs a mão sobre a mão da outra mulher, apoiando e também recebendo apoio.
Naomi sorriu para ela e depois olhou para nós, confusa.
- Ele é como uma droga. Depois que encosta em nós, não podemos mais viver sem esse toque. E não é só ele. É como se ele nos fizesse despertar sexualmente, até que nosso corpo anseie por ser tocado. - Ela abaixou a cabeça novamente. - Nunca tive uma consciência sexual das outras pessoas como tenho agora. No início foi embaraçoso e excitante ao mesmo tempo. Ele começou a me machucar. Primeiro pequenas coisas, ele me amarrava, e depois... me batia.
Ela se esforçou para levantar a cabeça e olhar nos nossos olhos. Era uma raiva, parecia que nos desafiava a pensar o pior dela. Havia muita força ali. Como aquele homem conseguiu domá-la?
- Ele fez da dor parte do prazer e passou a fazer coisas piores. Coisas que apenas doíam. Tentei fazer com que ele parasse com aquelas perversões, e foi aí que ele começou a me espancar de verdade, sem fingir que fazia parte do sexo. - Os lábios dela tremeram, e os olhos continuaram desafiadores. - Mas ele ficava excitado quando me espancava. O fato de isso não me excitar, de me deixar assustada, ele também gostava.
- Fantasias de estupro - eu disse.
Ela fez que sim, com os olhos arregalados, tentando evitar que as lágrimas cintilantes caíssem. Ficou totalmente imóvel para não deixar nada transparecer.
No fim não eram só fantasias.
Ele gosta de tomá-la à força - isso quem disse foi a esposa. Olhei para as duas e lutei contra a vontade de balançar a cabeça. Eu vivi dos dezesseis aos trinta anos na Corte Profana, os anos do meu despertar sexual, por isso conhecia essa combinação de prazer com dor. Mas a dor era compartilhada e jamais provocada contra a vontade de alguém. Se a outra pessoa não achava que a dor era prazerosa, não era sexo. Era tortura. Há uma enorme diferença entre tortura e sexo um pouco mais violento. Mas para os
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sádicos sexuais não existe diferença. Nas formas extremas eles são incapazes de fazer sexo sem violência, ou pelo menos o terror de suas vítimas. Mas a maioria dos sádicos pode ter sexo mais normal. Podem usar isso para enganar o parceiro, só que no fim não conseguem manter um relacionamento normal. No fim, o que eles realmente desejam deve aflorar, e eles precisam disso.
Como eu conhecia isso tão bem? Como já disse, passei meu despertar sexual na Corte Profana. Não me entenda mal. A Corte Profana tem suas formas próprias de atividades incomuns, mas aceita a visão predominante humana de dominação e submissão. A Corte Profana aceita muito melhor essas coisas, ou talvez apenas seja mais aberta para isso. Também pode ser porque a Rainha do Ar e da Escuridão, minha tia, a governadora geral da corte nesses últimos mil anos, um século a mais ou a menos, aprecie demais a dominação e viva na fronteira do sadismo sexual. Ela moldou a corte à sua imagem, assim como meu tio, o Rei da Luz e da Ilusão, da Corte Abençoada, moldou sua corte à imagem dele. O estranho é que se pode conspirar e mentir com maior facilidade na Corte Abençoada. Eles são adeptos da ilusão. Se tudo parece bom por fora, então deve ser bom mesmo. A Corte Profana é mais honesta, a maior parte do tempo.
- Naomi, esse foi o seu primeiro relacionamento violento? perguntou Teresa.
A mulher meneou a cabeça.
- Ainda não entendo como pude deixar a coisa chegar ao ponto que chegou.
Olhei para Teresa, e ela acenou discretamente com a cabeça. Queria dizer que tinha prestado atenção na mulher e que ela dizia a verdade. Como eu disse, Teresa é uma das médiuns mais poderosas do país. Não devemos ter cuidado apenas com as mãos dela. Quase o tempo todo ela consegue saber se você está mentindo ou não. Tive de ser muito cuidadosa quando estava perto dela nesses três anos em que trabalhamos juntas.
- Como foi que o conheceu? - perguntei.
Não usei o nome dele, nem disse sr. Norton, porque as duas mulheres fizeram questão de dizer apenas ele, dele, como se não
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existisse outro homem e todos soubessem de quem estavam falando. E sabíamos mesmo.
- Respondi a um anúncio pessoal.
- O que dizia o anúncio? - perguntei. Ela deu de ombros.
- O de sempre, só era diferente no final. Na última linha ele dizia que estava procurando um relacionamento mágico. Não sei o que havia naquele anúncio, só sei que depois que li, senti necessidade de conhecê-lo.
- Feitiço de compulsão - disse Jeremy. Ela olhou para ele.
- O quê?
- Com poder suficiente é possível pôr um feitiço num anúncio, de modo que o anúncio apresente seu verdadeiro desejo, não necessariamente o que as palavras do anúncio dizem que você deseja. Foi como fiz o anúncio que a sra. Gentry respondeu. Só as pessoas com habilidades mágicas teriam notado o encantamento no anúncio, e apenas pessoas com dons excepcionais poderiam entender o que realmente estava escrito por trás. A escrita verdadeira informava um número de telefone diferente do anúncio. Eu sabia que qualquer pessoa que ligasse para aquele número estaria capacitada para a função.
- Não sabia que se podia fazer isso com um jornal - disse Naomi. - Quero dizer, é impresso, e ele não poderia tocar em todos os jornais.
O simples fato de saber que não encostar fisicamente no jornal dificultava o feitiço significava que Naomi conhecia mais a teoria da mágica do que eu pensava. Mas tinha razão.
É preciso ter muito poder para que o anúncio, as palavras que se lêem nele, contenha o feitiço. É muito difícil, e se ele conseguiu isso, podemos ter uma idéia do tipo de habilidade que vamos enfrentar.
Então o anúncio me atraiu para ele? - ela perguntou.
- Talvez não especificamente você - disse Jeremy - mas algo que era exatamente o que ele queria, ou precisava.
A maioria das mulheres parece fadas - disse Francês.
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Todos nós olhamos para ela espantados. Ela piscou para nós, confusa.
- Orelhas pontudas. Uma mulher tinha olhos verdes de gata que pareciam brilhar na foto. Tons de pele que nenhum ser humano tem, verdes, azuis. Três delas tinham mais... partes do que os seres humanos têm, mas não parecia deformidade, apenas parte de sua aparência mesmo.
Fiquei impressionada. Com o fato de ela notar e reunir essas informações na cabeça. Se pudéssemos salvá-la, afastá-la dele, ela ia sobreviver.
- O que ele disse sobre Naomi?
- Que ela era parte encantada. Ele realmente ficava muito excitado com isso, quando as mulheres eram meio encantadas. Chamava-as de suas prostitutas reais.
- Por que mulheres fadas? - perguntou Jeremy.
- Ele nunca explicou - respondeu Francês.
- Acho que tinha alguma coisa a ver com o ritual - disse Naomi. Todos viramos para ela dessa vez. Jeremy e eu perguntamos em uníssono:
- Que ritual?
- Foi na primeira noite em que ele me levou para o apartamento que tinha alugado. As paredes do quarto eram cobertas de espelhos e tinha uma enorme cama redonda. O assoalho de madeira brilhante, muito bonito, com um tapete persa embaixo da cama. Tudo parecia brilhar. Quando subi na cama senti alguma coisa, como se tivesse passado por um fantasma. Não sabia o que era naquela primeira noite, mas uma ocasião depois disso escorreguei no tapete e vi que embaixo dele havia um círculo duplo marcado na madeira do piso, com símbolos numa faixa em volta do círculo. E a cama ficava bem no centro. Não reconheci os símbolos, mas tenho conhecimento suficiente para saber que era um círculo de poder, lugar para executar magia.
- Alguma vez ele fez alguma coisa na cama que parecia ritual de magia? - perguntei.
- Nada que eu tivesse notado. Apenas fazíamos sexo, muito sexo.
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- Alguma coisa era igual todas as vezes? - perguntou Jeremy. Ela balançou a cabeça.
- Não.
- O sexo era sempre nesse apartamento? - perguntou Jeremy. Ela balançou a cabeça.
- Não, às vezes nos encontrávamos num motel. Isso me surpreendeu.
- Há alguma coisa que ele faça no apartamento, dentro do círculo, que não faz em nenhum outro lugar?
Ela corou, ficou muito vermelha.
- É o único lugar para onde ele leva outros homens.
- Outros homens para fazer sexo com ele? - perguntei. Ela balançou a cabeça.
- Não, comigo.
Ela levantou a cabeça e olhou para nós, como se esperasse os protestos de horror, ou talvez ser acusada de meretriz. O que quer que tenha visto serviu para tranquilizá-la. Todos nós sabíamos como fazer uma boa cara de paisagem quando era preciso. Além do mais, sexo grupal com um pequeno número de pessoas parecia ameno depois de saber que ele mostrava fotos das amantes para a mulher, revelando detalhes. Isso era novidade. Já sexo grupal existia havia muito mais tempo do que fotos com polaroides.
- Eram sempre os mesmos homens? - perguntou Jeremy. Ela balançou a cabeça de novo.
- Não, mas eles se conheciam. Quero dizer, ele não levava estranhos que encontrava nas ruas.
Naomi parecia estar se defendendo, parecia indicar que isso seria muito pior, que não era tão ruim assim.
E algum foi mais de uma vez? - perguntou Jeremy.
- Houve três homens que eu vi mais de uma vez.
- Sabe os nomes deles?
Só os primeiros nomes. Liam, Donald e Brendam. Ela parecia muito segura dos nomes.
- Quantas vezes viu esses três homens?
Ela não olhou para nós.
Não sei. Muitas vezes.
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- Cinco vezes - perguntou Jeremy - seis, vinte e seis vezes? Ela fez cara de espanto.
- Vinte vezes, não. Não tantas assim.
- Então quantas? - ele perguntou.
- Talvez oito, talvez dez, não mais do que isso.
Parecia importante para ela não terem sido mais de dez vezes. Era esse o limite mágico? Mais de dez vezes era pior do que apenas oito?
- E o sexo grupal, quantas vezes aconteceu? Ela corou novamente.
- Por que precisa saber?
- Foi você que chamou de ritual, não fomos nós - disse Jeremy.
- Até agora não parece haver muito de ritual nisso, mas os números podem ter significado místico. O número de homens dentro do círculo. O número de vezes que você esteve dentro do círculo com mais de um homem. Acredite em mim, sra. Phelps, não sinto prazer nenhum com isso.
Ela abaixou a cabeça de novo.
- Não quis dizer que...
- Quis sim - disse Jeremy - mas eu entendo por que suspeita de qualquer homem, humano ou não.
Vi a idéia pairando na expressão dele.
- Todos os homens eram humanos?
- Donald e Liam tinham orelhas pontudas, mas fora isso todos pareciam humanos.
- Donald e Liam eram circuncidados? - perguntei.
A voz dela soou apressada, aflita, e o rosto ficou vermelho 1 outra vez.
- Por que precisa saber disso?
- Porque um verdadeiro macho encantado teria centenas de anos de idade, e jamais soube de algum encantado judeu, por isso se eles eram encantados, não deviam ser circuncidados.
- Ah - ela disse, olhando nos meus olhos, e depois pensou na pergunta inicial - Liam era, mas Donald não.
- Como era esse Donald?
- Alto, musculoso, como um halterofilista, cabelo louro até a cintura.
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- Ele era bonito? - perguntei. Ela teve de pensar um pouco.
- Vistoso, bonito não, vistoso.
- E a cor dos olhos dele?
- Não lembro.
Se fosse um dos tons mais coloridos dos olhos que os encantados costumam ter, ela teria lembrado. E se não fossem as orelhas pontudas, ele poderia ser qualquer um da Corte Abençoada. Havia apenas três louros na Corte Profana, e nenhum dos meus três tios levantava pesos. Eles tinham de ser mais cuidadosos com as mãos, com medo de rasgar as luvas cirúrgicas que sempre usavam. As luvas impediam que o veneno produzido naturalmente por suas mãos encostassem nas pessoas. Nasceram com essa maldição.
- Reconheceria esse Donald se o visse de novo?
- Reconheceria.
- Havia alguma coisa igual em todos os homens? - perguntou Jeremy.
- Todos tinham cabelo comprido como o dele, até o ombro ou mais comprido.
Cabelo comprido, possibilidade de implantes de cartilagem nas orelhas, nomes celtas... estavam me parecendo pretensos elfos. Nunca ouvi falar de um culto sexual de falsos elfos, mas não se podia subestimar a capacidade das pessoas de corromper um ideal.
- Ótimo, sra. Phelps - disse Jeremy. - E o que me diz de tatuagens, símbolos escritos em seus corpos, alguma jóia que todos usavam?
- Nada disso.
- Vocês se encontravam apenas à noite?
- Não, às vezes à tarde, às vezes à noite.
-Nenhuma época especial do mês, perto de algum feriado? Perguntou Jeremy.
Ela franziu a testa.
Estávamos nos encontrando havia pouco mais de dois meses. Não houve nenhum feriado, mas também não nos vimos em nenhuma época especial.
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- Fazia sexo com ele, ou com outros, um certo número de vezes por semana?
Ela teve de pensar bem antes de responder, mas acabou balançando a cabeça.
- Variava.
- Eles usavam alguma cantilena, ou cantavam alguma coisa? - Jeremy perguntou.
- Não - disse Naomi.
Não achei que aquilo parecia um ritual.
- Por que usou o termo ritual, sra. Phelps? Por que não disse feitiço?
- Não sei.
- Sabe sim - eu disse. - Por não ser uma praticante, acho que não usaria a palavra ritual sem motivo. Pense um pouco. Por que essa palavra?
Ela pensou, olhando para o nada, sem ver, com pequenas rugas entre as sobrancelhas. Piscou os olhos e virou-se para mim.
- Uma noite ouvi quando ele falava ao telefone.
Naomi olhou para o chão, depois levantou a cabeça, desafiadora de novo, e eu percebi que ela não gostava do que ia dizer.
- Ele tinha me amarrado à cama, mas deixou a porta um pouco aberta. Pude ouvir a conversa dele. Ele disse: "O ritual será bom esta noite", depois abaixou a voz e não consegui ouvir. Então disse: "As destreinadas desistem com muita facilidade."
Ela olhou para mim.
- Eu não era virgem quando nos conhecemos. Tinha... experiência. Antes dele pensava que era boa na cama.
- E o que a faz pensar que não é? - perguntei.
- Ele me disse que eu não era boa no sexo comum para satisfazê-lo, que ele precisava da violência para apimentar a relação, para não ficar entediado.
Ela tentou manter a pose de desafio, mas não conseguiu. A mágoa transparecia nos seus olhos.
- Você o amava? - procurei fazer a pergunta gentilmente.
- Que diferença isso faz?
Francês pegou a mão dela e a segurou no colo.
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- Tudo bem, Naomi. Eles vão nos ajudar.
- Não entendo o que o amor tem a ver com tudo isso - ela disse.
- Se você o ama, será mais difícil de livrá-la da influência dele, é só isso - eu disse.
Ela não demonstrou ter percebido que eu troquei o tempo do passado para o presente, antes perguntando se ela o amava e agora dizendo "se você o ama".
- Eu pensava que amava - ela respondeu.
- E ainda o ama?
Odiei ter de perguntar isso, mas tínhamos de saber.
Ela agarrou a mão pequena da outra mulher com tanta força que as articulações ficaram brancas. E as lágrimas finalmente escorreram pelo rosto dela.
- Não o amo, mas... - ela teve de respirar fundo algumas vezes antes de poder terminar a frase - se o vir, e se ele pedir sexo, não consigo dizer não. Mesmo quando é horrível, mesmo quando ele me machuca, o sexo em si ainda é melhor do que qualquer coisa que já senti antes. Sou capaz de dizer não ao telefone, mas se ele aparece pessoalmente eu cedo... quero dizer, luto quando ele me espanca, mas se for durante o ato... fica tudo confuso.
Francês se levantou, foi para trás da cadeira da outra, cobriu as duas com o cobertor e abraçou Naomi por trás. Emitiu ruídos para acalmá-la, beijou o topo da cabeça dela, como se faz com uma criança.
- Esteve se escondendo dele? - perguntei. Ela fez que sim.
- Estive, mas Francês... ele sempre a encontra, não importa onde esteja.
- Ele segue o feitiço - eu disse.
As duas concordaram, balançando a cabeça como se já tivessem concluído isso por conta própria.
Mas eu me escondi dele. Saí do meu apartamento.
Estou surpresa de ele não a ter perseguido - eu disse.
- O prédio é protegido - ela disse.
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Fiquei espantada com isso. Proteger um prédio inteiro, não só um apartamento, mas todos, significava que a magia protetora tinha de ser feita nos alicerces da construção. Os escudos tinham de ser inseridos junto com o cimento, pregados junto com os vergalhões de aço. Era necessário uma assembléia inteira de bruxas, ou várias assembléias. Nenhum praticante solitário seria capaz disso. E não era um processo barato. Apenas os arranha-céus ou casas mais luxuosas podiam pagar por isso.
- O que faz para se manter, sra. Phelps? - perguntou Jeremy, porque acho que, como eu, ele não esperava que as duas mulheres pudessem pagar nossos honorários. Tínhamos dinheiro suficiente no banco, na conta da agência e nas nossas individuais para poder oferecer trabalhos de caridade de vez em quando. Não fazíamos disso um hábito, mas alguns casos não resolvíamos por dinheiro, agíamos assim simplesmente porque não podíamos recusar. Nós dois pensamos que esse seria um deles.
- Eu tenho um fundo de pensão que foi liberado no ano passado. Agora tenho acesso a tudo. Pode acreditar, sr. Grey, que tenho como pagar seus honorários.
- É muito bom saber, sra. Phelps, mas sinceramente não estava preocupado com isso. Não espalhe por aí, mas se alguém tem um problema muito sério, nós não recusamos porque não pode pagar nossos serviços.
Ela corou.
- Não quis dizer que vocês... sinto muito. - Ela mordeu o lábio.
- Naomi não teve intenção de insultá-los - disse Francês. - Ela sempre foi rica, a vida inteira, e muita gente tentou se aproveitar disso.
- Não foi insulto nenhum - disse Jeremy. Mas eu sabia que Jeremy devia ter se sentido ofendido, sim.
Só que ele era um homem de negócios com atitude de homem de negócios. Não dava para ficar com raiva do cliente se tinha resolvido aceitar o caso. Pelo menos não até o cliente fazer alguma coisa realmente horrível.
Teresa perguntou:
- Ele já tentou obter o seu dinheiro alguma vez?
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Naomi se virou para ela e deu para ver sua expressão de surpresa.
Não, não.
Ele sabe que você é rica? - perguntei.
- Sim, ele sabia, mas nunca deixou que eu pagasse nada. Dizia que era antiquado. Não ligava para dinheiro. Foi uma das coisas que gostei nele, no início.
Então ele não está atrás de dinheiro - eu disse.
- Ele não se interessa por dinheiro - disse Francês.
Olhei para aqueles grandes olhos azuis e agora não pareciam assustados. Ela continuava de pé atrás de Naomi, ainda a consolava e parecia ganhar força com isso.
Qual é o interesse dele? - perguntei.
- Poder - ela disse.
Fiz que sim com a cabeça. Francês tinha razão. O abuso, a violência, era sempre uma questão de poder, de uma forma ou de outra.
- Quando ele disse que as destreinadas desistiam com facilidade, acho que não se referia à sua habilidade sexual.
Naomi segurava as mãos de Francês, apertando-as contra os ombros.
- Então o que ele quis dizer?
- Você não desenvolveu as artes místicas. Ela franziu a testa, sem entender.
- Então do que eu desistia com facilidade, se não era sexo? Francês respondeu:
- Do poder.
- Sim, sra. Norton, do poder. Naomi olhou confusa para todos nós.
O que querem dizer com poder? Eu não tenho poder nenhum.
A sua mágica, sra. Phelps. Ele esteve sugando a sua mágica Ela ficou ainda mais atônita, um pouco boquiaberta, surpresa.
- Não conheço mágica nenhuma. Às vezes tenho sensações sobre as coisas, mas isso não é mágica.
É claro que foi por isso que ele conseguiu fazer o que fez. Fiquei imaginando se todas as mulheres eram místicas destreinadas.
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Se elas não tinham treino, teríamos dificuldade para nos infiltrar no mundinho dele. Mas se tudo que elas precisavam ser era parte fada e com talentos de magia... bem, eu já tinha feito trabalho infiltrado antes.
Três DIAS DEPOIS eu estava parada no meio da sala de Jeremy, usando apenas um sutiã de renda preta, calcinha combinando e meias também pretas. Um homem que jamais tinha visto enfiava a mão no meu sutiã. Normalmente eu teria de estar planejando ir para a cama com um homem antes de deixar que ele apalpasse meus seios, mas aquilo não era nada pessoal, apenas trabalho. Maury Klein era especialista em áudio e estava tentando prender um fio minúsculo, com um microfone minúsculo, sob meu seio direito, onde o ferro do sutiã impediria que Alistair Norton o sentisse se passasse a mão nas minhas costelas, ou no meu seio. Ele já estava manuseando o fio havia trinta minutos, quinze dos quais procurando o melhor lugar para esconder o microfone entre meus seios.
Ele estava ajoelhado na minha frente, concentrado, com a ponta da língua aparecendo entre os dentes, olhando fixo para as próprias mãos por trás dos óculos de armação de arame, uma delas quase toda enfiada na taça do sutiã, a outra afastando o tecido do sutiã do meu seio para poder trabalhar melhor. Ao puxar o sutiã, ele expôs meu mamilo e quase todo o seio direito para a sala inteira.
Se Maury não estivesse tão alheio ao meu charme e à platéia, eu o acusaria de demorar desse jeito porque estava curtindo, mas o olhar dele dizia que nem se dava conta do que fazia, só da parte do trabalho. E entendi por que ele recebeu reclamações de mulheres que participaram de operações infiltradas e disfarçadas antes. Elas reclamavam que não entendiam por que ele insistia em não fazer tudo aquilo privadamente. Maury queria testemunhas para provar que ele não saía da linha. Só que, francamente, se todas as testemunhas fossem humanas, talvez ficassem do meu lado mesmo.
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Ele cutucou, levantou e manuseou meus seios como se não estivessem grudados em ninguém. O que ele fazia era muito íntimo mas não era o que pretendia. Era o próprio nerd, ou talvez o professor distraído. Maury tinha uma única paixão, que eram seus microfones escondidos, suas câmeras ocultas. Em Los Angeles, quem queria o melhor procurava Maury Klein. Ele montava sistemas de segurança para astros de Hollywood, mas sua verdadeira paixão era o trabalho sob disfarce. Como obter um equipamento ainda menor, para ficar mais escondido.
Num certo ponto ele chegou a sugerir que o microfone ficaria melhor escondido dentro do meu corpo. Não sou envergonhada, mas vetei essa idéia. Maury então balançou a cabeça e resmungou que não sabia se a qualidade do som seria prejudicada, mas que desejava que alguém deixasse ele experimentar. Ele tinha um assistente, leia-se "zelador", que devia ser também um diplomata para as emergências.
Chris - se tinha um sobrenome, eu nunca soube - alertou Maury para não ser tão grosso, nem tão indelicado. Ele exibiu uma excitação educada na primeira vez que tirei o vestido e fiquei só de calcinha e sutiã, mas depois disso ficou apenas controlando o riso diante da total falta de interesse sexual de Maury Klein. Jeremy me cumprimentou pelo espantoso contraste entre a perfeita brancura da minha pele e o preto da lingerie. Sempre se deve dizer algo gentil quando se vê alguém despido.
Roane Finn estava sentado na quina da mesa de Jeremy, com os pés balançando num movimento suave e inconsciente, já que também gostava da exibição. Ele não precisava me elogiar. Tinha me visto nua na noite anterior e em muitas outras antes disso. A primeira coisa que se nota nele são os olhos, enormes, globos castanhos e líquidos que dominam seu rosto, como a lua domina o céu a noite. Depois varia o que notamos, fica entre o cabelo castanho-avermelhado, o jeito que cai dos lados do rosto, que desce pela nuca, ou então os lábios, carnudos, de um vermelho perfeito. Até dá para pensar que ele usa batom para obter esse tom, só que não usa. É tudo natural. A pele parece branca, mas na verdade não é, pelo menos não um branco puro. É como se alguém pegasse
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a minha pele muito clara e misturasse a ela uma gota do castanho avermelhado do cabelo dele. Quando usa roupa marrom ou outras cores de outono, parece que a pele dele escurece.
Ele tem exatamente a mesma altura que eu, e isso faz com que pareça delicado à primeira vista, mas o corpo por baixo da roupa preta que ele usava esta noite era firme e musculoso. Eu sabia que ele não era apenas forte. Era ágil. Também sabia que tinha marcas de queimadura nas costas e nos ombros, como calos brancos na pele sedosa. As cicatrizes tinham sido provocadas por um pescador que pôs fogo na pele de foca dele. Roane era um roane, do povo foca. Antigamente ele podia vestir sua pele de foca e tornar-se uma foca, depois tirar a pele e virar humano, ou melhor, adotar a forma humana. Então um pescador encontrou a pele dele e queimou-a. A pele não era apenas um artefato mágico para mudar de forma. Não era nem apenas uma parte de Roane. A pele era tanto ele quanto seus olhos, ou seu cabelo. Roane é a única pessoa foca que eu soube que sobreviveu à destruição do seu outro ser. Ele sobreviveu, mas nunca mais pôde trocar de forma. Foi condenado a ficar eternamente aterrado, impedido de viver a outra metade do seu mundo.
Às vezes eu descobria a cama vazia no meio da noite. Se estivéssemos no meu apartamento, ele ia para a janela e ficava olhando para o nada. Quando estávamos no apartamento dele, Roane ficava olhando para o mar ou desaparecia nas ondas enquanto eu o observava da varanda. Ele nunca me acordava, nem pedia para acompanhá-lo. Era sua dor particular, que não podia ser compartilhada. Acho que isso era justo porque nos dois anos em que éramos amantes, eu nunca deixei de usar minha magia. Ele jamais viu as cicatrizes dos embates. Esses ferimentos teriam me denunciado como alguém íntimo dos encantados. Meus feitiços de ataque podiam ser inúteis, mas havia poucos melhores do que eu em glamour pessoal em todas as cortes. Ajudava para me esconder, mas era praticamente só isso. Roane não conseguia romper minhas defesas, mas sabia que elas estavam lá. Sabia que, mesmo num momento de liberação, eu me defendia. Se ele fosse humano, teria perguntado por quê, mas não era e nunca perguntou, assim como eu jamais comentei com ele o chamado das ondas.
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Os humanos não resistiriam à intromissão, mas um amante humano também não agüentaria ficar ali sentado tranqüilamente enquanto outro homem apalpava meus seios. Não havia ciúme nenhum em Roane. Ele sabia que aquilo não significava nada para mim, por isso não significava nada para ele.
A única outra mulher que havia na sala era a detetive Lucinda podem me chamar de Lucy - Tate. Trabalhamos com ela em alguns casos em que o criminoso não era humano, e os policiais disfarçados estavam sendo enfeitiçados, desnorteados ou assassinados. Na verdade, ter Jeremy e o resto de nós temporariamente na polícia foi a primeira vez que a Lei de Isenção da Magia foi ampliada para incluir trabalho de polícia. Mas nós todos atendemos aos critérios de ter as habilidades mágicas, para sermos ideais para a função, de modo que eles puderam dispensar todo o treinamento que um tira não mágico ia precisar e simplesmente nos incluir imediatamente na missão. Mais ou menos como delegados de emergência. Foi através da Lei da Isenção da Magia que eu passei a detetive recém-chegada, por assim dizer, sem nenhuma das muitas horas de treinamento que normalmente são necessárias para obter a licença na Califórnia.
A detetive Tate se encostou na parede e balançou a cabeça.
- Meu Deus, Klein, não admira que você seja vítima de processos de assédio sexual.
Maury piscou como se tivesse de recuperar a atenção que estava muito distante. Era assim que ficavam as pessoas quando um poderoso feitiço terminava, como se acabassem de acordar e o sonho ainda não tivesse chegado ao fim. Não havia erro no poder de concentração de Maury. Ele se dirigiu à detetive, ainda com as mãos dentro do meu sutiã.
- Não sei do que está falando, detetive Tate.
Pisquei para ela por cima da cabeça de Maury, que continuava ajoelhado.
Ele não sabe mesmo - eu disse. Ela sorriu para mim.
Desculpe essa apalpação toda, Merry. Se ele não fosse o melhor no que faz, ninguém ia suportá-lo.
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- Não usamos muito equipamento de áudio e câmeras escondidas - disse Jeremy - mas quando usamos gosto de pagar o melhor.
Tate olhou para ele.
- O departamento de polícia certamente não teria como pagar o que Klein cobra.
Maury falou sem se distrair do meu peito.
- Já trabalhei de graça para a polícia no passado, detetive Tate.
- E nós realmente agradecemos muito, sr. Klein.
A expressão dela não combinava com as palavras. Havia um brilho malicioso no olhar e um ar de cinismo no rosto. Cinismo parecia ser ossos do ofício. O brilho malicioso era puro Lucy Tate. Ela sempre parecia rir baixinho de tudo. Eu tinha certeza de que era um mecanismo de defesa para manter a verdadeira Lucy escondida, mas ainda não tinha descoberto do que ela se escondia. Não era da minha conta, mas admito certa dose de curiosidade atípica para uma encantada sobre a detetive Lucy Tate. O que fazia com que eu quisesse romper aquela defesa era a perfeição da camuflagem dela, o fato de nunca conseguir ver através daquele escudo levemente debochado. O sofrimento de Roane eu via, por isso podia deixá-lo em paz. Mas não via nada em Lucy, e Teresa também não via, era óbvio que isso queria dizer que a detetive Tate era uma médium com poder considerável. Mas alguma coisa devia ter acontecido quando ela era criança para ter de esconder seus poderes tão profundamente, de modo que nem ela mesma soubesse que os tinha. Nenhum de nós tinha explicado isso para a detetive Tate. A vida dela parecia boa. Ela parecia satisfeita. Se abrisse a cicatriz que tinha sufocado seus poderes, tudo isso poderia mudar. Talvez fosse tão traumático que ela jamais se recuperaria. Por isso não interferíamos, mas nos preocupávamos e às vezes era mais difícil do que devia ser não recorrer a artifícios mágicos ou psíquicos com ela, só para ver o que aconteceria.
Maury inclinou o corpo para trás e finalmente tirou as mãos de mim.
- Pronto, eu acho que está bom. Vou pôr só mais um pedaço de fita adesiva para garantir que não vai sair do lugar, e você pode ir.
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Chris já tinha antecipado essa necessidade e deu para ele pedaços pequenos de fita adesiva. Maury pegou a fita sem dizer nada.
- Vocês viram o que eu tive de fazer para instalar o microfone. Bem esse cara vai ter de fazer a mesma coisa para encontrá-lo.
Ele fez com que eu afastasse o sutiã para poder grudar as fitas com as duas mãos. Foi a coisa mais gentil que ele fez nos últimos quarenta e cinco minutos.
Maury ficou de pé e se afastou um pouco.
- Arrume o sutiã do jeito que normalmente usa. Franzi a testa.
- É assim que eu uso normalmente.
Ele fez um movimento com as mãos na altura do peito.
- Você sabe, afofe aquele para ficar igual ao outro.
- Afofe - repeti, mas sorri porque afinal tinha entendido o que ele queria dizer.
Ele suspirou e se aproximou de mim.
- Deixe-me mostrar para você. Interrompi-o com a mão.
- Não preciso de ajuda.
Inclinei o corpo para baixo e arrumei o seio direito no sutiã. Tive de usar as duas mãos para pôr tudo no lugar. O sutiã levantava bastante, de modo que meus seios que já eram bonitos ficavam definitivamente obscenos, mas quando passei a mão na parte em que deveria sentir o microfone, só senti o arame de baixo e o tecido.
- Está perfeito - disse Maury. - Você pode se despir e ficar assim, é só não tirar o sutiã, e ele nunca perceberá nada. - Ele inclinou a cabeça para o lado, como se acabasse de lembrar alguma coisa. - Prendi o microfone no sutiã de um jeito que, se tiver de tira-lo, basta deixar perto, num raio de um metro e meio. Quanto mais perto melhor. Se eu fizesse o microfone mais sensível, ele ia captar os batimentos do seu coração e o farfalhar da roupa. Posso filtrar e tirar isso, mas é mais fácil fazer depois que a fita é gravada. Estou supondo que vocês vão querer escutar esta noite mesmo, caso esse cara escape ao controle.
Isso mesmo - disse Jeremy - será bom saber se Merry precisa de ajuda.
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O sarcasmo de Jeremy foi sutil demais para Maury.
- Podíamos ter prendido o microfone no elástico de cima da meia, mas eu não tinha certeza se a meia não ia enrolar para baixo e expor o microfone. Se tirar o sutiã, não se esqueça de dobrá-lo para o microfone não aparecer.
- Não pretendo tirá-lo. Maury deu de ombros.
- Só quis dar todas as opções que posso.
- Obrigada, Maury - eu disse.
Ele meneou a cabeça. Chris já estava recolhendo o que tinha ficado espalhado no chão.
Roane desceu da mesa de um pulo e pegou meu vestido que estava dobrado, em cima da mesa. Deu o quadrado de tecido preto para mim. Tive de comprar um vestido preto seguindo o conselho de que era mais fácil esconder coisas em preto do que nas cores mais claras. Nunca usava preto total quando podia evitar, embora fosse uma cor que ficasse bem em mim. Era a cor que mais usavam na Corte Profana porque era a preferida da rainha deles.
Roane deixou o vestido de seda se desdobrar, segurando pelos ombros, depois começou a enrolar o vestido bem devagar, observando o meu rosto o tempo todo. O vestido virou uma barra fina em suas mãos pequenas e fortes, então ele se ajoelhou e abriu o vestido para eu poder entrar nele.
Pus a mão no ombro de Roane para me equilibrar e entrei no círculo de tecido. Roane foi soltando o vestido e subindo as mãos ao mesmo tempo, de modo que ele caiu em volta de mim como a cortina de um teatro que se fechava. Esticou os braços o mais que pôde ainda ajoelhado, e o vestido estava na minha cintura. Ele se levantou e apoiou as mãos de leve no meu quadril. Com esse movimento ele ficou "beijantemente" perto. Seus olhos estavam exatamente na altura dos meus. Havia uma intimidade nessa troca de olhares que eu nunca tive com mais ninguém. Jamais namorei alguém baixo como eu antes. Isso tornava a posição papai-e-mamãe incrivelmente íntima.
Roane ergueu o vestido para eu poder enfiar os braços nas mangas e subiu mais, até os meus ombros, deu a volta e ficou atrás
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para ajeitar o resto da seda. Começou a fechar o zíper mas O vestido se ajustou, apertando minha cintura, minhas costelas e meus seios. O decote era um V muito ousado, outro motivo para o sutiã com arame. Foi o único que encontrei que podia usar sob aquele vestido, que não ficava aparecendo. O vestido era sem manga e parecia uma segunda pele brilhante, deixava minha pele muito branca em contraste com o tecido preto. Escolhi aquele, bem justo, de propósito. A parte de cima era como se não existisse sobrava apenas a visão dos seios, mas se alguém tentasse enfiar a mão por cima não ia conseguir sem se arriscar a rasgá-lo. Se Alistair Norton quisesse brincar com os meus seios, teria de se limitar à parte de cima deles que ficava exposta, a menos que resolvesse criar uma cena de estupro. Segundo Naomi, as fantasias de estupro só apareciam depois de dois meses ou mais. O primeiro mês foi um caso perfeito. Como aquele seria o primeiro encontro, Alistair provavelmente exibiria o melhor comportamento. Eu teria de despir o vestido para ele ter a chance de encontrar o microfone e não pretendia fazer isso.
Roane fechou o zíper e prendeu o pequeno colchete em cima. Passou os polegares na pele nua das minhas costas, com um movimento discretíssimo, depois se afastou. Na verdade ele passou os dedos nas cicatrizes que tenho nas costas, que ele não podia ver nem sentir. Eu tinha bastante segurança nas minhas habilidades, pois o vestido deixaria à mostra as cicatrizes, se não fosse a minha mágica para disfarçá-las. Eram como pequenas ondas na pele, congeladas ali para sempre. Outro encantado tinha tentado mudar a minha forma durante um duelo. Muitos duendes e fadas conseguem mudar de forma, mas apenas os encantados são capazes de mudar a forma dos outros, contra a vontade deles. Eu não posso mudar de forma, nem consigo mudar a de ninguém, o que é mais um ponto negativo que tenho nas cortes.
Como faz isso? - perguntou a detetive Tate.
Levei um susto com a pergunta e virei para ela.
Como faço o quê? - perguntei. Chris estava olhando para cima enquanto guardava o equipamento. Maury já estava mexendo com uma chave de fenda minúscula
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num transmissor de tamanho médio. O resto de nós podia muito bem não estar na sala.
- Você fica aí de pé quase uma hora só de calcinha e sutiã, com um homem apalpando seus seios, mas não é nada sexual. É como uma cena de uma comédia para maiores de catorze anos. Então Roane vai ajudá-la a se vestir, nem toca na sua pele, apenas fecha o zíper, e de repente a tensão sexual na sala fica tão espessa que dá até para andar em cima dela. Como é que você faz isso?
- Nós, isto é, Roane e eu, ou nós, isto é... - deixei a frase incompleta.
- Nós, os encantados - ela disse. - Eu vi Jeremy fazer isso com uma mulher humana. Vocês conseguem andar por aí completamente nus, e me deixam à vontade de estar no mesmo cômodo com vocês, depois completamente vestidos fazem algo bem discreto e de repente tenho a sensação de que devia sair da sala. Ela balançou a cabeça. - Como fazem isso?
Roane e eu nos entreolhamos, e vi nos olhos dele a mesma pergunta que sabia que havia nos meus. Como se explica o que é ser encantado para alguém que não é? A resposta, claro, é que não se explica. Podemos até tentar, mas quase nunca conseguimos.
Jeremy tentou. Afinal de contas, ele era o chefe.
- Isso é parte do que significa ser encantado, ser uma criatura dos sentidos.
Ele se levantou da cadeira e caminhou até ela, com postura e expressão neutras. Pegou a mão de Tate e levou-a aos lábios, deu um beijo de leve, casto, nas articulações.
- Ser encantado é a diferença entre aquilo e isto.
Ele pegou a mão dela de novo, ergueu muito mais devagar, fitou o rosto dela com os olhos cheios daquele tesão educado que qualquer macho encantado podia demonstrar para uma mulher alta e atraente. O simples olhar fez Lucy estremecer. Dessa vez ele beijou a mão dela para valer, uma lenta carícia com os lábios, o de cima prendeu-se um pouco na pele, e então se afastou. Tinha sido polido, sem abrir a boca, sem língua, nada grosseiro, mas ela ruborizou bastante, e do outro canto da sala percebi que a respiração dela ficou mais profunda, o coração acelerou.
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- Isso responde à sua pergunta, detetive? - ele perguntou. Ela deu uma risada trêmula, segurando a mão que tinha sido beijada contra o corpo.
Não, mas tenho até medo de perguntar de novo. Acho que não ia agüentar a resposta e depois ainda trabalhar esta noite.
Jeremy fez uma pequena mesura. Sabendo ou não, Tate tinha acabado de fazer um elogio bem encantado. Todos gostam de ser elogiados.
- Você aquece o fundo do coração deste velho. Ela então riu alto, com prazer.
- Você pode ser muitas coisas, Jeremy, mas jamais será velho. Ele fez mais uma mesura, e eu percebi uma coisa que nunca havia notado antes. Jeremy gostava da detetive Tate, gostava dela do jeito que um homem gosta de uma mulher. Nós todos tocamos mais nos humanos do que eles se tocam entre si, ou pelo menos mais do que a maioria dos humanos norte-americanos se toca. Mas ele podia ter escolhido outras maneiras de "explicar" para Tate. Preferiu tocar nela de um jeito que nunca havia tocado antes, teve uma liberdade com ela, porque ela lhe deu uma desculpa para fazer isso sem parecer intrometido. Era assim que os encantados flertavam quando convidados. Às vezes era apenas um olhar, mas os encantados não vão aonde não são chamados. Só que nossos homens às vezes cometem os mesmos erros que os humanos, confundem um flerte sem compromisso com sedução sexual, mas o estupro declarado é quase inexistente entre nós. Por outro lado, a nossa versão de estupro de programa é popular há séculos.
engraçado como a idéia de estupro de programa me trouxe de volta ao trabalho que tinha pela frente. Fui até a mesa onde tinha deixado meus sapatos, calcei e ganhei mais seis centímetros de altura.
- Pode dizer para o seu novo parceiro que ele pode entrar agora - eu disse para Lucy.
Era uma ofensa insistir em modéstia numa situação não sexual com a maioria de encantados, e certamente entre os elfos e as fadas. Daí a platéia. Mandá-los embora implicaria falta de confiança ou antipatia mesmo. Havia apenas duas exceções. A primeira
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era se a pessoa não soubesse se comportar de maneira civilizada. O detetive John Wilkes nunca trabalhou com não humanos antes. Ele nem piscou quando Maury pediu para eu me despir, mas quando tirei o vestido sem avisar, ou sem esvaziar a sala, o detetive derramou café quente na camisa. Quando Maury enfiou a mão no meu sutiã, Wilkes disse: "O que é que ele está fazendo?" Pedi para ele esperar lá fora. Lucy riu baixinho.
- Pobre menino. Acho que ele ficou com queimaduras de café, de segundo grau quando você tirou o vestido.
Sacudi os ombros.
- Não sou humilde. Só acho que me ver só de calcinha e sutiã basta para que o seu parceiro quase engula a própria língua, então ele não deve ter muita experiência.
Lucy olhou para Roane e para Jeremy.
- Ela não conhece a aparência que tem?
- Não - disse Roane.
- Eu só acho, não sei, mas a nossa Merry deve ter sido criada em algum lugar onde era considerada o patinho feio - disse Jeremy.
Olhei bem nos olhos dele, e meu coração pulsava no pescoço. Aquele comentário tinha chegado perto demais para o meu gosto.
- Não sei do que vocês estão falando.
- Eu sei que você não sabe - disse Jeremy.
Havia uma sabedoria naqueles olhos cinza-escuro, um palpite que estava muito próximo de uma certeza. Naquele momento eu soube que ele suspeitava de quem eu era, do que eu era. Mas jamais perguntaria. Ele ia esperar até eu estar preparada para falar, ou então essa questão seria um eterno silêncio entre nós.
Olhei para Roane. Ele era o único amante elfo que eu conhecia que não tinha ido para a minha cama com o objetivo de satisfazer suas ambições políticas. Para ele eu era apenas Merry Gentry, humana com ancestrais encantados, não a Princesa Meredith NicEssus. Olhei bem para aquele rosto tão conhecido e tentei entender a expressão dele. Seu sorriso não dizia nada. Talvez nunca tivesse imaginado que eu poderia ser a princesa fada desaparecida, ou então tinha adivinhado havia muito tempo, mas jamais
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Seria tão mal-educado a ponto de puxar o assunto. Ou será que Roane sabia desde o início? Será que foi por isso que ele se aproximou de mim? De repente toda a segurança que eu tinha desenvolvido com aquelas pessoas, meus amigos, começou a desmoronar à minha volta.
Um pouco deve ter transparecido no meu rosto, porque Roane tocou em mim. Eu me afastei dele. Ele se mostrou magoado, confuso. Ele não sabia. No mesmo instante eu o abracei, escondi o rosto dele, mas ainda podia ver Jeremy.
Assim como a expressão de Roane me tranqüilizou, a de Jeremy me assustou. Bastava que meu verdadeiro nome fosse pronunciado depois de escurecer, que iria de volta para a minha tia. Ela era a Rainha do Ar e da Escuridão, e isso significava que qualquer coisa dita no escuro ela acabaria ouvindo. O fato de muita gente que dizia ter visto a Princesa Americana das Fadas ter se tornado mais popular do que avistar Elvis ajudava. A mágica da rainha estava sempre perseguindo pistas falsas. Princesa Meredith esquiando em Utah. Princesa Meredith dançando em Paris. Princesa Meredith jogando em Las Vegas. Depois de três anos eu continuava matéria de primeira página para os tabloides, apesar de as últimas manchetes terem especulado que eu poderia estar morta, como o Rei do Rock and Roll.
Se Jeremy dissesse meu nome em voz alta para mim, as palavras iriam vibrar e, quando finalmente flutuassem até ela, ela saberia que eu estou viva e saberia que Jeremy tinha pronunciado o meu nome. Mesmo se eu fugisse, ele seria interrogado, e se métodos educados não funcionassem, ela usaria a tortura. Eu soube que ela é uma amante criativa. E sei que é uma torturadora com muita imaginação.
Separei-me de Roane e disse parte da verdade:
- Minha mãe era a bela da família.
Como sabe disso? - perguntou Jeremy.
Ela me disse.
Quer dizer que sua mãe disse que você não era bonita? Perguntou Lucy.
Tinha de ser humana para ser tão direta.
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Fiz que sim com a cabeça.
- Não me leve a mal, mas que megera! Quanto a isso havia apenas uma coisa a dizer:
- Eu concordo, agora vamos sair daqui.
- Não queremos deixar o sr. Norton esperando - disse Jeremy.
- Eu gostaria mais se estivéssemos atrás dele à procura de provas da tentativa de assassinato - disse Lucy.
- Não podemos garantir provas do feitiço de morte que terão validade no tribunal - eu disse.
- Mas talvez possamos provar esta noite - disse Jeremy - que ele está usando mágica para seduzir mulheres. Sedução com ajuda de magia é estupro pelas leis da Califórnia. Temos de pô-lo na cadeia, longe da mulher dele, e essa é a maneira mais segura de fazer isso. Ele não terá direito à fiança numa acusação de crime que inclui mágica.
Lucy meneou a cabeça.
- Concordo que o plano é ótimo para a sra. Norton, mas e quanto a Merry? E se esse cara usar o afrodisíaco mágico que usou com as outras amantes, as que nunca deixavam de desejá-lo, como Naomi Phelps?
- Estamos contando com isso - eu disse. Ela olhou espantada para mim.
- E se funcionar? E se você começar a arfar no microfone?
- Aí Roane arromba a porta fingindo ser o amante ciumento e me arrasta para fora.
- Se eu tiver problema para tirá-la de lá, Uther aparece como meu amigo e me ajuda a levar minha mulher de volta para casa.
Lucy rolou os olhos nas órbitas.
- Bem, o que Uther quer, Uther consegue.
Uther tinha quase quatro metros de altura, uma cabeça que mais parecia de um porco do que de humano e duas presas curvas nos cantos do focinho. Ele era um gigante bandoleiro, mas se chamava Uther Squarefoot. Não era muito bom para trabalho disfarçado, mas era supereficiente quando precisávamos de músculos.
Uther tinha pedido licença e saído da sala quando percebeu que eu ia tirar o vestido. Disse apenas: "Não é nada pessoal, Merry,
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- Não faça tempestade em copo d'água, mas ver qualquer fêmea atraente quase nua não é bom para um homem que não tem esperança de aliviar os pensamentos que despontam sem querer." Foi quando ele foi para a porta e encolheu os ombros enormes para conseguir passar que eu me dei conta de uma coisa que devia ter sabido antes. Uther tem quase quatro metros de altura, é do tamanho de um ogro grande, ou de um gigante bem pequeno, e não existem muitas fêmeas do tamanho dele na região de Los Angeles. E ele estava ali havia dez anos. Era muito tempo para ficar sem encostar em outro corpo nu. Que solidão terrível.
Se ninguém adivinhasse quem eu realmente era, e se eu não ficasse ensandecida com o feitiço de Alistair Norton, ia tratar de arrumar alguém para Uther. Uther não era o único encantado gigante que vagava fora das cortes, era apenas o único naquela área. Se não encontrássemos ninguém do tamanho dele, podíamos inventar outras soluções. Sexo não tem de significar penetração. Há mulheres nas ruas que fazem praticamente qualquer coisa por duas centenas de dólares, especialmente se costumam cobrar vinte. Se eu fosse completamente encantada, resolveria eu mesma o problema de Uther. Era isso que uma verdadeira amiga faria. Mas fui criada fora da corte, entre os humanos, dos seis aos dezesseis anos. Por isso não importava o quanto eu era encantada, algumas atitudes minhas eram humanas.
Não posso ser humana, porque não sou humana. Mas não posso ser completamente encantada porque também não sou isso.
Sou metade Corte Profana, mas não sou um deles. Sou parte Corte Abençoada, mas não pertenço ao povo que brilha. Sou parte fada da escuridão, parte da luz, no entanto, nenhum lado me aceita.
Sempre vivi à margem, observando os de dentro, com o nariz achatado no vidro da janela, mas nunca me convidaram para entrar. Eu conhecia o isolamento e a solidão. Por isso sofria por Uther. E lamentava não ter disposição para ajudá-lo com um pouco de sexo amigável e casual. Mas não tinha e não podia. Como sempre, eu era suficientemente encantada para ver o problema, mas humana demais para resolvê-lo. Claro que se fosse uma fada abençoada pura, não encostaria em Uther por preço nenhum. Ele
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não mereceria minha atenção. Os abençoados não transam com monstros. Quanto às fadas profanas... bem, defina monstro.
Uther não era um monstro pelos padrões profanos, mas Alistair Norton podia ser. Um monstro ou um espírito da escuridão muito parecido.
Alistair Norton não parecia um monstro. Eu esperava que ele fosse bonito, mas foi uma decepção. Há uma coisa em todos nós que acredita, lá no fundo, que o mal se manifesta na aparência, que devemos ser capazes de reconhecer as pessoas más só de olhar para elas, mas isso simplesmente não acontece. Passei bastante tempo nas duas cortes para saber que beleza e bondade não eram a mesma coisa. Eu, mais do que qualquer um, sabia que a beleza era a camuflagem perfeita para os corações mais sinistros e mesmo assim queria que o rosto de Alistair Norton mostrasse o que ele tinha por dentro. Queria alguma marca visível de Caim nele. Mas ele chegou sorrindo ao restaurante, alto, ombros largos, a cara cheia de ângulos perfeitos, tão masculino que era quase demais. Os lábios eram um pouco finos demais para o meu gosto, o rosto um pouco masculino demais, os olhos, um castanho muito comum. O cabelo estava preso num rabo de cavalo e tinha um tom estranho de castanho, nem claro, nem escuro. Mas eu tinha de procurar imperfeições porque simplesmente não havia nenhuma.
O sorriso dele era fácil e suavizava as feições, tornando-as mais convidativas, menos perfeitas, menos de modelo. A risada era profunda e charmosa. Suas mãos grandes exibiam um anel de prata com um brilhante do tamanho do meu polegar, mas nenhuma aliança. Não havia nem uma marca mais clara para denunciar que ele tinha tirado a aliança. A pele dele era bem morena e devia ter a marca branca do anel de casamento. Ele nunca usou aliança. Eu sempre achei que qualquer homem que se recusava a usar uma aliança de casamento devia estar planejando trair a mulher. Sempre há exceções, mas não muitas.
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Quanto a ele, pareceu satisfeito.
- Seus olhos brilham como jóias verdes.
Eu tinha deixado as lentes de contato castanhas no escritório. A cor natural dos meus olhos realmente cintilava. Agradeci o elogio, fingindo timidez, olhando para o meu copo. Não era timidez. Estava tentando evitar que ele visse o desprezo no meu olhar. Tanto a cultura dos encantados como a dos humanos abominam um adúltero. As fadas não se preocupam com a promiscuidade, mas depois que se casam e juram que serão fiéis, então têm de ser fiéis. Nenhum encantado tolera quem descumpre um juramento. Se a sua palavra não vale nada, você também não vale.
Ele tocou no meu ombro.
- Que pele, perfeitamente branca.
Como não impedi, ele se abaixou e deu um beijo suave no meu ombro. Acariciei o rosto dele quando se afastou, e isso deve ter sido um tipo de sinal para ele. Ele beijou o lado do meu pescoço e passou a mão no meu cabelo.
- Seu cabelo é como seda - ele bafejou na minha pele. - É sua cor natural?
Virei de frente para ele e respondi com a boca logo acima da dele:
- É.
Ele me beijou, um beijo suave, um bom primeiro beijo. Detestei pensar que ele parecia tão sincero. O que era realmente horrível era que podia mesmo estar sendo sincero, que no início da sedução ele talvez sentisse cada palavra. Conheci homens assim antes. Era como se acreditassem nas próprias mentiras, como se pensassem que dessa vez seria o verdadeiro amor. Mas isso nunca durava porque nenhuma mulher era perfeita para eles. Claro que não são as mulheres que não são perfeitas. É o homem. Ele procura preencher algum vazio dentro dele com mulheres, ou com sexo. Se o amor for verdadeiro, se o sexo for bom, então ele se sente completo. Dessa vez ele finalmente se completará. Mulherengos assim são como assassinos em série em um ponto. Os dois acreditam que na próxima vez será perfeito, que a próxima experiência vai completá-los e interromper aquela carência infinita. Mas isso nunca acontece.
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Ele sussurrou:
- Vamos sair daqui.
Fiz que sim com a cabeça, sem confiar na minha voz. Eu beijava sempre de olhos fechados porque às vezes conseguia mentir com os olhos, às vezes não. Já ia ser bastante difícil disfarçar a relutância do meu corpo quando ele encostava em mim. Esperar que meus olhos demonstrassem desejo e amor era pedir demais.
O carro combinava com ele, era caro, elegante e veloz. Um Jaguar preto com estofamento de couro preto, de modo que era como entrar num poço de escuridão. Pus meu cinto de segurança. Ele não. Ele dirigia em alta velocidade, costurando no meio do trânsito. Seria mais impressionante se eu não dirigisse em Los Angeles havia três anos. Todos dirigiam assim por pura defesa pessoal.
A casa era limpa e pequena, a menor da vizinhança, mas tinha o maior jardim. Tinha tanto terreno dos dois lados que até um cidadão típico do Meio Oeste diria que tinha um jardim de bom tamanho. A casa parecia um lugar para as crianças esperarem papai chegar, enquanto mamãe se apressava com sua roupa de supermãe para preparar o jantar depois de um dia de muito trabalho.
Por um momento imaginei se ele tinha me levado para a casa dele mesmo, a que dividia com Francês. Se fosse, estava fora do padrão dele, e eu não estava gostando disso. Por que mudaria sua rotina? Eu sabia que ele não tinha encontrado o microfone, e ele não tinha tocado na minha bolsa, por isso não sabia que havia uma câmera escondida nela. Eu só ia ligar quando chegássemos ao seu ninho de amor. Ele não podia saber.
Ringo montava guarda fora da casa dos Norton, vigiando a sra. Norton. Se Alistair ficasse violento demais antes de podermos prendê-lo, Ringo decidiria sozinho se devia interferir. Não olhei em volta procurando Ringo. Se ele estivesse ali, eu não queria chamar atenção para ele.
Alistair abriu a porta para mim e me ajudou a descer do carro. Deixei que fizesse isso porque estava tentando pensar. Finalmente experimentei ser sincera, mais ou menos sincera.
- Tem certeza de que não é casado?
- Por que pergunta?
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- Essa parece uma casa de família.
Ele deu risada e me puxou com um abraço.
- Nenhuma família. Só eu. Acabei de me mudar para cá.
Levantei o rosto para olhar para ele.
- Você resolveu comprá-la pensando no futuro? Filhos e aquela coisa de família?
Ele encostou minha mão nos seus lábios.
- Com a mulher certa qualquer coisa é possível.
Senhor e Senhora, ele sabia mesmo botar a isca diante da maioria das mulheres. Insinuar que você podia ser a mulher que ia domá-lo, que ia fazer com que ele se casasse. A maioria das mulheres adorava isso. Eu não me deixava enganar. Os homens não se estabelecem por causa da mulher certa. Eles se casam porque estão finalmente prontos para isso. Qualquer mulher com quem estejam saindo quando estão prontos é a que escolhem para casar, não necessariamente a melhor, ou a mais bonita, apenas aquela que estava à mão quando chegou a hora de endireitar. Sem nenhum romantismo, apenas a verdade.
Ele tinha se mudado do apartamento. Por quê? Será que tinha alguma coisa a ver com o súbito abandono de Naomi Phelps? Será que ele tinha ficado nervoso a ponto de se mudar? Ou estava planejando a mudança o tempo todo? Não tinha como saber se não perguntasse, mas eu não podia perguntar. Quando Alistair Norton me levou porta adentro eu lutei contra uma necessidade de olhar para trás, de procurar Jeremy e os outros. Sabia que a minha retaguarda estava lá. Sabia porque confiava neles. Alistair não tinha dirigido tão rápido assim para se perder dos dois veículos. A van com o sistema de som e para esconder Uther, e o carro dirigido por Jeremy, caso precisassem de mais agilidade para seguir o sr. Norton, ou apenas para trocar, de modo que ele não notasse o mesmo carro atrás dele por muito tempo. Eles estão lá a ouvindo o que dizemos. Eu sabia disso, mas mesmo assim gostaria de ter olhado para trás e visto algum deles. Pura insegurança da minha parte.
Senti o escudo de proteção antes de a porta abrir. Quando entrei, o poder me fez estremecer. Ele notou.
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- Você sabe o que está sentindo?
Eu podia ter mentido, mas não menti. Gostaria de poder dizer que tive um palpite de que Alistair ficaria satisfeito de saber que eu era uma mística treinada, mas não foi isso. Eu quis que ele soubesse que eu não era indefesa.
- Você protegeu a porta - eu disse.
O ar dentro da sala apertava a minha pele, era como se eu não pudesse respirar mais fundo, como se não houvesse bastante ar. Saí de cima da cerâmica do piso da entrada, esperando que a atmosfera fosse melhorar. Não melhorou. Aliás, ficou ainda mais pesada, era como caminhar em águas profundas. Água quente, parada e arrepiante.
Já sabia que ele era poderoso pelos feitiços que lançou na mulher e na amante. Mas a quantidade de poder que enchia aquela sala de estar vazia era mais do que humana. A única forma de um bruxo humano obter tanto poder era negociando com coisas que não eram humanas. Eu não tinha contado com isso. Nenhum de nós contou com isso.
Ele estava dizendo alguma coisa, mas não ouvi. Minha cabeça berrava "Saia! Saia agora!". Mas se saísse Alistair continuaria livre para matar sua mulher e torturar outras. Se saísse estaria a salvo, mas não ajudaria nossas clientes. Era um daqueles momentos em que eu tinha de tomar uma decisão, se ia merecer meu salário, ou não.
Só sabia de uma coisa. Os rapazes na van precisavam saber o que eu acabava de descobrir.
- O escudo não é para impedir que alguma coisa entre, não é, Alistair? Embora impeça que outros poderes entrem. Essa proteção é para impedir que qualquer pessoa sinta quanto poder você tem aqui dentro.
Minha voz soou ofegante, como se eu não conseguisse respirar.
Nessa hora ele olhou para mim e pela primeira vez vi uma coisa nos olhos dele que não era agradável, nem sorridente. Num segundo o monstro apareceu ali, naqueles olhos castanhos.
- Eu devia saber que você ia sentir - ele disse. - Minha pequena Merry com seus olhos, cabelo e pele de fada. Se fosse alta, elegante e graciosa, poderia se fazer passar por uma encantada.
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- Foi o que me disseram - respondi.
Ele estendeu a mão para mim. Estendi a minha para ele mas tive de vencer o poder naquela sala. Foi como empurrar a minha mão através de algo sólido e invisível, que fazia a pele formigar. Os dedos dele encostaram nos meus, e uma descarga elétrica, como estática faiscou entre nós. Ele deu risada e envolveu minha mão na dele. Fiz força para não tentar me libertar, mas não consegui sorrir. Já estava lutando muito para respirar no meio daquele poder. Eu tinha vivido em espaços tão cheios de poder que as paredes chegavam a resmungar, mas tinham deixado o poder que havia ali encher tudo, feito água, até não sobrar espaço nenhum para o ar. Alistair devia pensar que era um grande e poderoso bruxo, capaz de invocar tanto poder, só que era um bruxo bebê se não conseguia controlá-lo melhor do que isso. Muita gente é capaz de invocar poder. Invocação não é medida da força de alguém como praticante. O que conta é o que somos capazes de fazer com esse poder. Mas enquanto ele me puxava, gentilmente, através da barreira cerrada da energia que pairava no ar, eu fiquei imaginando o que ele fazia com toda aquela magia. Podia estar desperdiçando grande parte, pelo simples fato de deixar que ela rodopiasse por ali, mas não se reúne tanta energia daquele jeito sem se ter alguma idéia do que estamos fazendo, sem termos planejado o que fazer com ela.
Minha voz soou estranha até para mim, tensa e ofegante.
- A sala de estar está cheia de mágica, Alistair. O que você vai fazer com tudo isso?
Torci para todos na van ouvirem isso.
Vou te mostrar - ele disse.
estávamos diante da porta fechada na parede da esquerda.
- O que tem atrás dessa porta? - perguntei.
Era a única porta visível a partir da entrada. Havia um corredor que saía do fim da sala de estar, que ia para o resto da casa, e uma passagem aberta para a cozinha. Aquela era a única porta fechada, e se os rapazes tivessem de vir me salvar, não queria que perdessem tempo andando pela casa à minha procura.
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- Vamos parar de fingir, Merry. Sabemos por que você está aqui, por que estamos os dois aqui. É o quarto.
Ele abriu a porta e era o quarto mesmo. Todo vermelho, da cama de quatro colunas aos tecidos que cobriam todas as paredes, até o tapete. Era como entrar numa caixa de veludo vermelho. Havia espelhos no meio das tapeçarias pesadas, como pedras preciosas dispostas para enfeitiçar o olhar. Não tinha janelas. Era uma caixa fechada e o centro da mágica que tinha sido invocada para aquela casa.
O poder rolou sobre mim como uma pele felpuda e sufocante, quente, cerrado, asfixiante. Não conseguia respirar, nem falar. Meus pés pararam de funcionar, mas Alistair não deu mostras de ter notado. Ele continuou me levando, puxando para dentro do quarto, por isso, tropecei, e o que me impediu de cair no assoalho de madeira polida foram os braços dele. Ele tentou me pegar no colo, mas eu despenquei de vez até o chão, e ele não conseguiu me levantar. Eu não estava desmaiando. Simplesmente não queria ser carregada no colo porque sabia para onde ele ia me levar: para a cama. E se lá era o centro de todo aquele poder, eu não queria ir para lá, ainda.
- Espere - eu disse - espere. Dê à moça um segundo para recuperar o fôlego.
Havia uma cômoda pequena que chegava mais ou menos à altura da minha cintura, perto da porta. Usei a beirada dessa cômoda para ficar de pé, mas Alistair estava pronto para ajudar, muito solícito. Deixei a minha bolsa na beira da cômoda e apertei duas vezes na alça para ligar a câmera escondida. Se a câmera estivesse ligada, teria uma visão perfeita da cama.
Ele chegou por trás de mim, me abraçou e prendeu meus braços ao lado do corpo, sem força. Ele pretendia que fosse um abraço mesmo. O fato de eu ter entrado em pânico não tinha sido culpa dele. Tentei relaxar encostada em seu corpo, dentro dos seus braços, mas não pude. O poder era demais, e eu não conseguia ficar tranqüila. O melhor que pude fazer foi não me afastar.
Ele passou o nariz no meu rosto, moveu os lábios na minha pele.
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- Você não está usando base.
- Não preciso.
Virei um pouco a cabeça, só o suficiente para encorajá-lo a continuar beijando meu rosto, descendo para o pescoço. Isso bastou para ele ir até mais embaixo. Os lábios dele pararam no meu ombro mas as mãos deslizaram pelos meus braços e seguraram a minha cintura.
- Nossa, você é pequenininha. Seguro você toda só com as mãos.
Afastei-me dele com delicadeza e fui em direção à cama. Meus sentidos estavam se acostumando com a mágica. Eu tive anos de prática de ignorar quantidades espantosas de poder. Se você é sensível para esse tipo de coisa e não quer enlouquecer, tem de se adaptar. A mágica pode se transformar em ruído branco, como os sons da própria cidade, que só merecem a sua atenção quando você se concentra neles.
Parei no tapete persa que cercava a cama, exatamente como Naomi havia descrito. Mas não consegui dar aqueles poucos passos que faltavam até a cama porque senti o círculo embaixo do tapete, como uma mão enorme que me empurrava para longe. Era um círculo de poder, para você ficar no centro quando conjura, de modo que o que quer que esteja invocando não entre ali para devorá-lo, ou então para você chamar alguma coisa para o centro do círculo enquanto fica a salvo do lado de fora. Eu só saberia que tipo de círculo era quando visse as runas, se era um escudo protetor ou uma prisão. E mesmo vendo as runas e a construção do círculo eu poderia ficar sem saber. Conhecia as bruxarias dos encantados, mas havia outros tipos de poder, outras linguagens místicas para fazer mágica. Eu talvez não reconhecesse nada e aí teria apenas um jeito de saber o que era aquele círculo... entrando nele.
O maior problema era que alguns círculos são construídos para prender fadas e elfos, e depois que eu entrasse podia ter muita dificuldade para sair. Se eles eram realmente um bando de pretendentes a elfos, não deviam querer nos capturar, mas nunca se sabe. Se você ama muito alguma coisa, mas não consegue tocar, nem manter, o amor pode azedar e virar uma inveja e um ciúme mais destrutivos do que qualquer ódio.
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Alistair afrouxou a gravata e veio na minha direção, com um sorriso de antecipação curvando seus lábios. Ele era extremamente arrogante, seguro dele mesmo e de mim. A tentação de simplesmente ir embora era enorme, só para poder observar aquela arrogância toda se desfazer. Ele não tinha feito nada místico ainda, que dirá ilegal. Será que eu estava sendo fácil demais? Será que ele guardava os truques místicos só para as relutantes? Será que eu tinha de me fazer de difícil? Ou ser mais agressiva? Qual das duas atitudes levaria Alistair Norton a fazer alguma coisa ilegal para ser gravada? Eu ainda estava tentando raciocinar e resolver se seria a virgem que não consentia, ou a puta disposta, quando ele parou bem na minha frente, e meu tempo acabou.
Alistair se abaixou e me beijou, eu levantei a cabeça, fiquei na ponta dos pés para alcançá-lo, apoiando as mãos nos braços dele. Os bíceps dele enrijeceram sob minhas mãos, esticando o tecido do paletó. Acho que ele nem se deu conta disso, era apenas hábito. Ele me beijou como tudo que fazia, com a facilidade de quem tem muita prática, muita habilidade. Abraçou minha cintura e apertou meu corpo contra o dele, levantou-me do chão. Começou a me levar para trás, para o círculo. Interrompi o beijo só o bastante para dizer "Espere, espere". Mas o beijo continuou, fiquei sem ar um momento, e então estávamos do outro lado, dentro do círculo. Foi como chegar ao olho de um furacão. Dentro do círculo havia quietude, era o lugar mais tranqüilo de toda a casa. Uma pressão que eu não sabia que existia foi tirada dos meus ombros e das minhas costas.
Alistair levantou minhas pernas, me pôs no colo e fomos os dois para a cama, ele de joelhos. Quando chegamos perto do centro da cama ele me soltou e continuou de joelhos, olhando para mim, pairando sobre mim. Mas eu tinha trabalhado três anos ao lado de Uther. Um metro e oitenta e três não era nada para quem sempre almoçava com quase quatro metros.
Acho que não demonstrei estar bastante impressionada, porque ele tirou a gravata e jogou-a na cama, depois começou a desabotoar a camisa. Ele ia se despir primeiro. Fiquei surpresa. Um tarado por controle costuma querer que a vítima fique nua primeiro. Ele tirou o paletó e a camisa e já estava desafivelando o cinto
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Antes de eu pensar no que podia fazer. Desacelerá-lo pareceu boa coisa.
Sentei e toquei nas mãos dele.
Mais devagar. Deixe-me curtir a revelação. Você está correndo como se tivesse outro encontro marcado para esta noite. Fiquei segurando as mãos dele, alisando a pele, acariciando os braços. Concentrei-me na sensação dos pelos minúsculos do antebraço dele e como eram macios ao toque. Se me concentrasse apenas nas sensações físicas, uma de cada vez, seria capaz de mentir com os olhos, ou ao menos manifestar um interesse genuíno. O truque era não pensar muito em quem eu estava apalpando.
- Não há ninguém além de você esta noite, Merry.
Ele me puxou para eu ficar de joelhos também, passou as mãos no meu cabelo que deslizou entre seus dedos, de modo que acabou segurando meu rosto com as mãos grandes.
- Não haverá ninguém mais para nós dois depois desta noite, Merry.
Não gostei do que ouvi, mas foi a primeira coisa que ele disse que parecia meio psicótica, por isso concluí que devia estar fazendo a coisa certa.
- O que quer dizer, Alistair? Vamos fugir para Las Vegas? Ele sorriu, ainda segurando meu rosto, olhando fixo para os meus olhos como se estivesse memorizando o que via.
- Casamento é apenas uma cerimônia, mas esta noite vou mostrar para você o que é se unir de verdade a um homem.
Ergui uma sobrancelha. Não consegui evitar. E sabendo que minha expressão já demonstrava isso, eu disse:
- Nossa, você se dá muito valor mesmo.
- Não me vanglorio à toa, Merry.
Ele me beijou suavemente, então passou por mim engatinhando e foi para perto da cabeceira da cama. Apertou a madeira, e a portinha se abriu. Um compartimento secreto, que maravilha! Virou para mim com uma pequena garrafa de vidro na mão. Era uma daquelas garrafinhas de vidro cheias de curvas e enfeites, que deviam servir para guardar perfumes caros, só que ninguém fazia isso.
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- Tire o vestido - ele disse.
- Por quê?
- É óleo de massagem.
Ele levantou a garrafa para eu poder ver o óleo grosso dentro do vidro vermelho contra a luz.
Sorri para ele e tentei fazer desse sorriso tudo que ele queria: sensual, sedutor, um pouquinho cínico.
- As calças primeiro.
Ele deu um sorriso largo, evidentemente satisfeito.
- Achei que tinha dito que queria ir mais devagar.
- Se eu vou ficar nua, então você vai primeiro.
Ele virou para pôr o vidro dentro do compartimento outra vez.
- Eu seguro para você - eu disse.
Ele parou no meio do caminho e se virou para mim com tanto tesão no olhar que era quase palpável.
- Só se você puser um pouco nos seios enquanto tiro minha calça.
- Vai manchar meu vestido?
Ele pareceu pensativo, com uma expressão inteligente.
- Não tenho certeza, mas compro um novo para você se estragar esse.
- Os homens prometem qualquer coisa no calor do momento - eu disse.
- Quero ver o óleo escorrendo nessa sua pele tão branca. Faça com que eles brilhem para mim.
Alistair me deu o vidro e apertou minha mão contra ele. Beijou-me de novo, a boca encostada na minha um tempo, a língua explorando, abrindo meus lábios para o beijo ser mais intenso. Ele recuou lentamente.
- Por favor, Merry. Por favor.
Ele chegou para trás mas não muito, com as mãos no cinto de novo. Puxou a ponta bem devagar pela fivela de ouro, elaborando cada movimento enquanto me observava. Isso me fez sorrir, porque ele estava fazendo o que eu tinha pedido. Estava lentamente se revelando.
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O mínimo que eu podia fazer era atender ao pedido dele. O meu sutiã de arame deixava boa parte dos meus seios à mostra, de modo que não tive de puxar o vestido de cima. Abri a tampa do frasco. Tinha uma ponta comprida de vidro por dentro, para passar na pele. Cheirei o óleo. Tinha perfume de canela e de baunilha. Havia alguma coisa familiar naquele odor, mas não consegui lembrar o que era. O óleo era quase transparente.
- Não é preciso aquecer primeiro? - eu disse.
- Ele reage ao calor do seu corpo. - Alistair puxou o cinto do último prendedor e jogou-o na cama entre nós dois. - Agora é a sua vez.
Tirei a tampa do vidro. O óleo grudou nela, num fio pesado. Encostei a ponta do tubo de vidro na parte de cima de um seio. O óleo já estava quente, na temperatura do corpo. Passei o tubo nos dois seios, e fios bem pequenos de óleo formavam um rastro de lágrimas grossas na minha pele. O cheiro de canela e de baunilha encharcou minha pele como uma onda de calor.
Alistair desabotoou a calça e abriu o zíper devagar. Ele usava uma sunga vermelha, como se quisesse combinar com o quarto. O vermelho ficava muito forte contra a pele dele, grudava no seu corpo como uma segunda pele. Ele deitou na cama para tirar a calça olhando para mim, de modo que fiquei acima dele, já que estava ajoelhada, como ele tinha ficado acima de mim antes.
Ele estendeu a mão ainda deitado, passou as pontas dos dedos no óleo e espalhou na minha pele. Ficou de joelhos, passou as mãos na parte de cima dos meus seios, tentou enfiar os dedos dentro do vestido para apalpar mais, mas era muito apertado. Planejar com antecedência evita manipulações embaraçosas. Ele esfregou as mãos com óleo no próprio peito, depois pegou o frasco da minha mão e passou a ponta da tampa na minha boca, como se fosse brilho labial. Senti que era espesso e tinha um gosto doce. Ele me beijou ainda segurando o vidro com as duas mãos, de modo que foi apenas sua boca na minha. Parecia que ia comer o óleo nos meus lábios. Eu me derreti com o beijo, acariciei o peito dele com o óleo, senti os músculos da barriga dele mexendo. Deslizei a mão mais para baixo e senti que ele estava rijo e pronto. Aquela
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sensação percorreu meu corpo como um choque de energia. Foi então que percebi que estava gostando e que tinha esquecido o motivo de estar ali.
Interrompi o beijo e procurei me concentrar, tentei pensar. Mas eu não queria pensar. Queria tocar nele e queria que ele tocasse em mim. Meus seios pediam para serem acariciados. Minha boca quase ardia de desejo de acabar com a distância entre nós. Ele se inclinou para mais um beijo, e eu engatinhei para trás. Caí de costas na pressa de manter a distância entre nós.
Alistair veio para cima de mim de joelhos, apoiado numa mão só. A outra segurava o vidro. Ele montou em mim como uma égua sobre o potrinho. Meus olhos desciam sempre pelo corpo dele até seu pênis rígido. Não conseguia parar de olhar para o rosto dele. Era constrangedor e assustador.
- Burra - eu disse - muito burra. É o óleo. O feitiço está no óleo.
A voz dele foi quase um murmúrio rouco.
- O óleo é o feitiço.
Não entendi logo o que ele quis dizer, mas sabia que não queria mais daquilo em mim. Ele já ia abrindo o frasco, eu sentei, peguei as mãos dele e impedi que ele tirasse a tampa daquela coisa maldita. Assim que encostei nas mãos dele, me perdi. Estávamos nos beijando de novo, e eu não pretendia isso. Parecia que quanto mais nos beijávamos, mais eu queria ser beijada, como se o beijo se alimentasse dele mesmo.
Joguei-me de costas na cama e cobri o rosto com as mãos.
-Não!
Agora eu sabia o que era: Lágrimas de Branwyn, Êxtase de Aeval, Suor de Fergus. Aquilo era capaz de transformar um humano num amante encantado por uma noite. Podia transformar até um encantado num escravo sexual, se esse encantado não tivesse acesso a outro encantado. Nenhuma fada ou elfo, por mais que seja talentoso, poderoso, pode competir com o encantado, é isso que dizem. Você pode esquecer como é o toque. Pode lutar para não sonhar com pele brilhante e olhos como pedras preciosas derretidas, com o roçar do cabelo até os tornozelos no seu corpo.
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Mas o desejo estará sempre lá, logo abaixo da superfície, como o de um alcoólico que jamais pode tomar um drinque, com medo de que aquele drinque nunca baste para saciar aquela sede.
Gritei bem alto, sem dizer nada. Havia mais um efeito colateral das Lágrimas de Branwyn. Nenhum encantamento pode enfrentá-las. Porque a sua concentração não resiste. Senti meu poder se esvaindo, senti minha pele como se meu corpo inteiro respirasse fundo.
Abaixei as mãos lentamente e olhei para o espelho no teto. Meus olhos brilhavam como jóias tricolores. O círculo externo das íris era ouro derretido, dentro havia um círculo de verde jade e por último o fogo esmeralda em volta da pupila. Apenas uma encantada, ou uma gata, podia ter aqueles olhos. Minha boca era uma mistura de vermelhos, o resto do batom e o escarlate cintilante dos lábios. Minha pele era um branco tão puro que parecia translúcida, como a mais perfeita das pérolas. Mais uma vez minha pele emitia luz, como uma vela atrás de um véu. O preto avermelhado do cabelo emoldurava as cores brilhantes, qual sangue escuro derramado. Se meu cabelo fosse só preto, eu ia parecer a Branca de Neve esculpida em pedras preciosas.
Não era apenas eu sem meu disfarce mágico. Era eu quando meu poder estava em mim, quando havia mágica no ar.
- Meu Deus, você é encantada - ele sussurrou.
Virei para ele meus olhos brilhantes. Esperava ver medo nos olhos de Alistair, mas havia uma espécie de deslumbramento enternecido.
- Ele disse que você viria se fôssemos leais, se realmente acreditássemos, e você está aqui.
- Quem disse que eu viria?
- Uma princesa encantada para o nosso banquete.
O tom de voz dele era de veneração, mas ele enfiou a mão embaixo do meu vestido e agarrou a minha calcinha. Agarrei o Pulso dele e dei-lhe um tapa com a outra mão. Com força bastante Para deixar uma marca vermelha na face dele. Tínhamos todas as Provas de que precisávamos para pô-lo na cadeia. Eu não precisava mais fingir. É possível pegar a energia das Lágrimas de Branwyn e
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transformar a sensualidade em violência, pelo menos é o que dizem na Corte Profana. Eu ia tentar. Eu realmente ia tentar.
Se ele me batesse também, talvez tivesse funcionado, só que ele não bateu. Deixou o corpo cair em cima do meu e me prendeu na cama. Ele estava tão lá embaixo que seu rosto ficou na mesma altura do meu. Num momento olhei nos olhos dele e vi a mesma carência que sentia nos meus. As Lágrimas agiam nos dois sentidos. Não era possível usá-las para seduzir sem ser seduzido.
Alistair emitiu um ruído grave do fundo da garganta e me beijou. Devorei a boca dele e pus a mão no prendedor do rabo de cavalo dele. Arranquei o prendedor, e o cabelo que ia até os ombros me cobriu como uma cortina de seda. Enfiei as mãos nessa cortina, agarrei duas mechas com força e explorei a boca dele.
Com a mão livre ele tentou de novo apalpar meu seio por dentro do vestido, mas continuava apertado demais. Ele puxou o tecido com tanta força que meu corpo foi junto quando o vestido rasgou e a mão dele invadiu meu sutiã.
O toque da mão dele no meu seio fez com que eu jogasse a cabeça para trás e libertasse minha boca da boca de Alistair. De repente eu olhava para os espelhos atrás de nós, na parede em frente. Levei alguns segundos para entender que havia alguma coisa errada. Parte por distração. Alistair estava beijando o meu pescoço, passando os lábios na minha pele, cada vez mais baixo. Parte pela magia de alguém. Alguém poderoso não queria que eu soubesse que estavam assistindo. Mas os espelhos não refletiam nada, eram olhos de cegos. Olhei para o espelho que, do alto, refletia a cama e não tinha nada também, como se Alistair e eu não estivéssemos ali.
Então senti o feitiço como uma ferida grande que sugava meu poder para a superfície até que ele saía pelos poros e subia para aquele espelho no teto. O que quer que fosse aquilo, estava se alimentando do meu poder, uma sanguessuga psíquica. Puxava o poder bem devagar, parecia que chupava por um canudo. Fiz a única coisa em que consegui pensar. Joguei o poder na goela do feitiço, meu poder foi alimentação forçada para a mágica. Eles não esperavam isso, e a magia estremeceu. Havia uma figura no espelho, mas não era Alistair, nem eu. Era uma pessoa alta, elegante,
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coberta com uma capa cinza, com capuz, que escondia seu corpo inteiro. A capa era uma ilusão, uma ilusão para ocultar a bruxa ou bruxo que estava na outra ponta do feitiço. Toda ilusão pode ser desfeita.
Alistair mordeu meu seio de leve, e perdi a concentração. Olhei para ele quando pôs a boca no mamilo. Parecia que a boca dele chupava um fio quente que ia diretamente do meu seio para a minha vagina. Gemi e estremeci ao toque dele. Uma pequena parte de mim detestava o fato de que aquele homem conseguisse fazer meu corpo reagir assim, mas a maior parte de mim não era nada além de extremidades nervosas e carne intumescida. Eu estava afundando cada vez mais nas Lágrimas de Branwyn, eu me afogava nelas. Logo não haveria mais raciocínio, apenas sensações. Não conseguia pensar para reunir poder. Só sentia o cheiro e o gosto de canela, de baunilha e de sexo. Peguei aquele sexo, aquele desejo, compactei tudo na minha mente e lancei no feitiço. A capa tremulou e, por um segundo, quase vi o que havia embaixo dela, mas Alistair ficou de joelhos e bloqueou minha visão.
Ele abaixou a sunga até o meio das coxas e de repente eu estava olhando fixamente para aquele pênis rijo e lustroso. Fiquei sem ar, não porque ele era tão maravilhoso, e sim por puro desejo. Meu corpo estava vendo a cura para toda aquela carência, e a cura estava sobre a barriga de Alistair. Não sei se foi a visão dele nu, ou o poder que joguei no feitiço, mas comecei a sentir que era eu mesma de novo. Um eu latejante, ninfomaníaco, mas já era um avanço.
Sentei na cama. A parte da frente do vestido estava rasgada, o sutiã puxado para baixo, meus seios à mostra.
- Não, Alistair, não - eu disse. - Não vamos fazer isso.
Um formigamento de energia se espalhou na cama e percorreu meu corpo arrepiado. Alistair olhou para cima, vendo alguma coisa que eu não via, e disse:
- Mas você disse para usar só pequenas quantidades. Em excesso podia deixá-la louca.
E ele ficou escutando, com expressão concentrada. Eu não ouvi nada.
O que estava no espelho não se escondia de Alistair, só de mim.
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Alistair abriu o frasco. Tive tempo de dizer não. Estendi a mão para me defender de um golpe. Ele jogou o óleo em mim. Foi como ser tocada por uma grande mão líquida. Não pude me me xer, não podia fazer nada, só gritar. Ele derramou o óleo na frente do meu corpo. Encharcou o meu vestido e a pele por baixo. Alistair levantou a saia, e dessa vez não pude impedir. Eu estava paralisada, dominada. Ele derramou óleo no cetim da minha calcinha, e eu caí deitada na cama, minha coluna arqueou, minhas mãos tentavam agarrar o lençol. Minha pele parecia que estava inchando, se esticando com um desejo que estreitava o mundo à necessidade de ser tocada, abraçada, possuída. Não importava quem fosse. O feitiço não se importava, nem eu. Abri os braços para o homem nu ajoelhado em cima de mim. Ele caiu sobre mim. Senti seu peso e sua rigidez contra o cetim da calcinha. Até aquele pedaço fino de tecido era demais. Eu o queria dentro de mim, desejava mais isso do que tinha desejado alguém ou alguma coisa em toda a minha vida.
Então alguma coisa desceu flutuando do espelho. Era um pontinho preto muito pequeno, mas que chamou minha atenção, que me atraiu. Ele chegou mais perto, e vi que era uma aranha pendurada num fio sedoso. Vi a aranha descer até o ombro de Alistair. A aranha era pequena, preta e brilhante como couro envernizado. Meu corpo estava mais fresco, minha cabeça mais clara. Jeremy tinha conseguido passar alguma coisa para mim. Eu sabia agora que o mágico do outro lado do feitiço tinha conseguido manter todos eles presos fora da casa.
Senti a cabeça macia do pênis de Alistair deslizando por baixo da borda da calcinha, tocando minha vagina inchada e molhada. Gritei, mas ainda podia falar e pensar. Agora, se eu não conseguisse escapar, realmente seria um estupro.
- Pare, Alistair, pare!
Lutei para sair de baixo dele, mas ele era grande demais, pesado demais. Eu estava presa. Ele começou a forçar a entrada. Pus a mão entre o púbis dele e o meu. Ele podia ter continuado a penetração, mas parece que consegui distraí-lo. Tentou pegar a minha mão para tirá-la do caminho e poder terminar o serviço.
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Eu berrei.
Jeremy!
Alistair e eu brigávamos com as mãos, e eu vi o espelho de relance. Estava cheio de uma névoa cinza que rodava. Estremeceu, como pequenas ondas na água. Inchou feito uma bolha. Foi só então que eu soube que o mágico era encantado. Ele ou ela, se escondia de mim, mas os espelhos eram mágica encantada. Então Alistair ganhou a briga e enfiou a glande do pênis em mim. Eu gritei metade protesto, metade prazer. Minha cabeça não queria isso mas o óleo ainda cobria meu corpo. Gritei "Não!", mas meu quadril se moveu embaixo dele, para ajudá-lo a entrar em mim. Eu queria, eu precisava que ele penetrasse em mim, tinha de sentir seu corpo nu dentro do meu. Mesmo assim berrei.
- Não!
Alistair se encolheu e saiu de dentro de mim, ficou de joelhos e passou a mão nas costas. Ficou com uma pequena mancha de sangue nos dedos. Tinha esmagado a aranha. Outra aranha pequena desceu pelo braço dele. Ele a espanou para longe. Mais duas aranhas apareceram em seus ombros. Ele tentou pôr a mão no meio das costas e se virou como um cachorro perseguindo o rabo. Então eu vi as costas dele. A pele tinha rasgado e de dentro saía uma onda de aranhas pretas minúsculas. Elas o cobriam como água preta, uma segunda pele móvel, que picava. Ele berrou com a mão nas costas, esmagou algumas, mas apareciam sempre mais, até ele virar uma massa de aranhas em movimento. Elas entraram na boca aberta quando ele berrou, engasgou e continuou berrando.
Todos os espelhos pulsavam, respiravam, o vidro inchava e se retraía. Era algo elástico e vivo. Ouvi uma voz de homem falando dentro da minha cabeça:
Vá para baixo da cama, agora. Nem discuti. Rolei para fora da cama e me arrastei para baixo dela. Os lençóis vermelhos deslizaram pela borda e esconderam tudo exceto uma linha fina de luz.
Então ouvi o barulho de vidro quebrando, do vidro de mil janelas quebrando ao mesmo tempo. Os berros de Alistair desapareceram diante do estrondo do vidro caindo. Os estilhaços se
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espalharam pelo tapete feito granizo, com um ruído agudo, tilintando.
O silêncio foi ocupando o quarto aos poucos, quando o vidro cobriu tudo, Ouvi o som de madeira rachando. Não podia ver, mas achei que devia ser a porta.
- Merry! Merry! Era Jeremy. Roane berrou:
- Merry, meu Deus.
Eu me arrastei até a extremidade da cama e levantei a ponta do lençol para ver todo o chão prateado, brilhando.
- Estou aqui. Estou aqui - respondi.
Estendi a mão para fora da cama, acenei, mas não podia sair dali de baixo sem me cortar no vidro.
Uma mão agarrou a minha, e alguém estendeu um paletó sobre os cacos de vidro para Roane poder me puxar para fora dali. Foi só quando ele me aninhou em seus braços que percebi que ainda estava coberta de Lágrimas de Branwyn, e o que isso podia significar para nós dois. Mas eu tinha visto o que havia sobre a cama e não consegui dizer uma palavra. Acho que me esqueci de respirar um ou dois segundos.
Roane me carregou para a porta. Olhei de novo por cima do ombro dele para o que havia em cima da cama. Sabia que era um homem. Até sabia que era Alistair Norton, mas se não soubesse o que estava vendo, nem saberia se era humano. A massa era vermelha como os lençóis embaixo dela. O vidro o tinha transformado numa massa de carne viva. Não dava para ver as aranhas embaixo de todo aquele sangue. Eu sabia duas coisas, talvez três. Primeiro, que o mágico do outro lado do feitiço era encantado. Segundo, que ele ou ela tinha tentado me matar. Terceiro, que se não fosse Jeremy ter conseguido romper o escudo com um feitiço, eu seria apenas uma massa vermelha menor na cama encharcada de sangue. Devia um grande favor a Jeremy.
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A polícia NÃO permitiu que eu tomasse uma chuveirada. Não me deixaram nem lavar as mãos. Quatro horas depois de Roane me carregar para fora daquele quarto, eu ainda tentava explicar à polícia o que tinha acontecido exatamente com Alistair Norton. E não estava conseguindo. Ninguém acreditava na minha versão dos acontecimentos. Todos tinham assistido ao vídeo e mesmo assim não acreditavam em mim. Acho que só não fui acusada do assassinato de Alistair porque fui identificada como a Princesa Meredith NicEssus. Eles sabiam, e eu sabia, que tudo que eu precisava fazer era apelar para a imunidade diplomática e sair livre. Por isso demoravam tanto na análise das acusações.
O que eles não sabiam era que eu queria evitar, tanto quanto eles, apelar para os diplomatas. Assim que eu exigisse a imunidade diplomática, eles entrariam em contato com o Conselho de Relações Humanas e Encantadas. Iam falar com o embaixador das cortes encantadas. O embaixador ia falar com a Rainha do Ar e da Escuridão. Ele diria para ela exatamente onde eu estava. Conhecendo a minha tia, ela diria para me manterem em "segurança" até a guarda poder chegar para me levar de volta para casa. Eu ficaria presa como um coelho numa armadilha até chegar alguém para torcer o meu pescoço e levar-me para casa como um troféu.
Estava sentada diante de uma pequena mesa com um copo de água na minha frente. O cobertor que os paramédicos tinham me dado estava dobrado no encosto da cadeira. Serviu para me aquecer em caso de choque e para cobrir a frente arruinada do meu vestido. Passei parte das últimas horas sentindo frio e precisando do cobertor, mas o resto do tempo sentia que meu sangue estava muito quente. Tremia de frio ou quase chegava a transpirar de calor, uma combinação de choque e de Lágrimas de Branwyn. Essas oscilações de um extremo ao outro me causaram uma dor de cabeça tremenda. Ninguém me dava nada para passar a dor porque todos queriam me levar logo para o hospital - era sempre logo, nunca já.
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Eu ainda brilhava um pouco quando o primeiro reforço da polícia chegou. Não podia usar glamour enquanto o óleo estivesse no meu organismo. Por isso não podia me esconder. Alguns dos primeiros policiais me reconheceram.
- Você é a Princesa Meredith - disse um deles.
A suave noite californiana tinha uma brisa soprando em volta de nós, e eu sabia que era apenas uma questão de tempo para a Rainha do Ar e da Escuridão enviar alguém para investigar aquele sussurro mais recente. Eu tinha de sair da cidade antes disso. Tinha pelo menos mais uma noite, talvez duas, antes de a guarda da minha tia chegar. Tinha tempo para ficar ali sentada e responder às perguntas. Mas estava ficando cansada de responder sempre às mesmas perguntas.
Então por que eu continuava sentada na cadeira dura, olhando para um detetive do outro lado da mesa que eu nunca tinha visto antes? Para começar, mesmo que eu saísse dali sem ser acusada de nada, ou graças à imunidade diplomática, eles entrariam em contato com os políticos de qualquer jeito. Fariam isso para se defender, para cobrir sua retaguarda. Em segundo lugar, eu queria que o detetive Alvera acreditasse em mim quando me referia às Lágrimas de Branwyn e ao perigo que seria ter mais daquele óleo por aí. Devia ter sido um presente do encantado que montou o feitiço sanguessuga. Aquele frasco podia ser o único que alguém fora das cortes possuía. Esse era o cenário mais otimista. Mas se houvesse a mínima chance de que humanos, com ou sem ajuda de encantados, tivessem descoberto como fabricar as Lágrimas de Branwyn, e o produto estivesse no mercado, então isso tinha de ser eliminado.
É claro que havia outra possibilidade. O encantado que instrumentou Norton no seu pequeno golpe de estupro-mágico podia estar fornecendo Lágrimas de Branwyn para muitos outros. Essa era a situação mais provável dos dois cenários mais pessimistas, mas eu não podia contar para a polícia que outro encantado tinha se envolvido com Alistair Norton. Não se levam casos de encantados para a polícia dos humanos quando se deseja manter todas as partes do corpo unidas.
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A polícia é boa para farejar mentiras ou, quem sabe, só para economizar tempo, ela simplesmente parte do princípio de que todos estão mentindo. Mas qualquer que fosse o motivo, o detetive Alvera não tinha gostado da minha história. Ele estava diante de mim, alto, moreno, elegante, tinha mãos que pareciam grandes demais para seus ombros estreitos. Os olhos dele eram castanhos por igual, com uma moldura de cílios pretos que chamavam atenção, mas essa percepção podia se dever apenas ao meu estado naquela noite. Jeremy tinha armado um escudo em volta de mim para me ajudar a controlar as Lágrimas de Branwyn. Ele desenhou runas na minha testa com o dedo e o seu poder. Nada visível para a polícia, mas quando me concentrava podia sentir os símbolos como gelo seco. Sem a mágica de Jeremy, só a Deusa sabia o que eu podia ter feito. Algo embaraçoso e vulgar. Mesmo protegida pelas runas, eu tinha muita consciência de todos os homens naquela sala.
Alvera olhava para mim com olhos lindos e desconfiados. Eu observava como seus lábios se moviam formando as palavras, uma boca perigosa, uma boca muito "beijável".
- Ouviu o que eu acabei de dizer, sra. NicEssus? Pisquei confusa e percebi que não tinha ouvido nada.
- Desculpe, detetive. Pode repetir, por favor?
- Eu acho que esse interrogatório já terminou, detetive Alvera - disse minha advogada. - É óbvio que a minha cliente está muito cansada e em estado de choque.
Minha advogada era sócia da firma James, Browning e Galan. Ela era Galan. Normalmente quem cuidava das questões legais da Agência de Detetives Grey era Browning. Acho que Eileen Galan estava lá comigo porque Jeremy tinha mencionado a parte do estupro. Uma mulher simpatizaria mais com a vítima, pelo menos essa era a teoria.
Galan estava sentada ao meu lado, de saia e blazer escuros, de riscas finas, tão arrumada e bem passada que parecia que acabara de ser desembrulhada. O cabelo louro que começava a ficar grisalho estava perfeitamente penteado. A maquiagem era impecável e os sapatos pretos de salto alto brilhavam. Eram duas horas da
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madrugada, mas parecia que Eileen tinha acabado de tomar um café da manhã reforçado e que estava muito disposta a enfrentar o dia.
Alvera olhou bem para mim, do meu sutiã com arame, que elevava meus seios à plena vista, aos meus olhos.
- Não me parece que ela está em estado de choque, doutora
- Minha cliente foi estuprada, detetive Alvera. No entanto, não foi levada para um hospital, nem examinada por um médico. Eu só não exigi essas coisas porque minha cliente está decidida a responder às suas perguntas e ajudá-los em sua investigação. Para ser sincera, estou começando a achar que a minha cliente não está em condições de proteger os próprios interesses esta noite. Eu vi como foi violentada no vídeo. Devo interceder pelos direitos de Meredith, mesmo que ela não queira.
Alvera e eu nos entreolhamos. Então ele falou olhando diretamente para mim, encarando para valer:
- Eu também vi a fita, doutora. Parecia que sua cliente estava se divertindo a maior parte do tempo. Ela dizia não, mas seu corpo dizia sim.
Se Alvera pensava que eu ia ceder sob a pressão do seu olhar de aço e dos seus insultos, era porque não me conhecia. Mesmo normalmente isso não funcionaria, mas naquela noite eu estava entorpecida demais para reagir a uma isca tão insignificante.
- Isso é uma ofensa, não só à minha cliente, mas a todas as mulheres, detetive Alvera. Essa entrevista acabou. Espero que destaque uma escolta policial para irmos fazer os exames de corpo de delito no hospital.
Ele apenas olhou para ela com aqueles olhos bonitos sombreados pelos cílios espessos.
- A mulher pode ficar dizendo não, pare, mas quando está brincando com o pênis de um homem, não dá para condená-lo por confundir os sinais.
Eu sorri e balancei a cabeça.
-Acha isso engraçado, sra. NicEssus? O vídeo pode até servir para acusação de estupro, mas também mostra que a senhora transformou Alistair Norton em um monte de carne.
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- Vou dizer mais uma vez. Eu não matei Alistair Norton. Quanto ao estupro, o senhor deve estar sendo ofensivo de propósito, para provocar raiva e fazer com que eu cometa alguma indiscrição, ou então não passa de um babaca machista. Se a primeira hipótese for verdade, está desperdiçando seu tempo. Se a segunda estiver certa, está desperdiçando o meu.
- Sinto muito se responder perguntas sobre um homem que a senhora deixou sangrar até morrer na cama dele, em sua própria casa, seja um desperdício do seu tempo.
- Que tipo de homem tem uma casa sem que a mulher dele saiba? - perguntei.
- Ele traía a mulher, por isso merecia morrer, é isso? Eu sei que vocês encantados têm essa coisa com casamento e monogamia, mas execução parece um pouco exagerado.
- Minha cliente já disse inúmeras vezes que não criou o feitiço que fez quebrar os espelhos.
- Mas ela está viva, doutora. Se não criou o feitiço, como sabia que tinha de se proteger?
- Eu já disse que reconheci o feitiço, detetive Alvera.
- Por que o sr. Norton não reconheceu o feitiço? Ele tem reputação de ter sido um grande mágico. Também devia ter visto o que ia acontecer.
- Já expliquei que as Lágrimas de Branwyn afetam os humanos com muito mais força do que os encantados. Ele não estava prestando muita atenção no que acontecia em volta dele, como eu estava.
- De onde vieram as aranhas?
- Eu não sei.
Não ia contar para ele que Jeremy tinha criado as aranhas, Porque senão ia começar a acusá-lo de ter provocado a quebra dos espelhos, ou talvez acusar nós dois de conspiração.
Ele balançou a cabeça.
- Apenas reconheça que foi a senhora. Em defesa própria.
- A única razão de eu ainda estar sentada aqui é que quero que vocês, da polícia, entendam que esse óleo mágico é muito perigoso.
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Se houver mais Lágrimas de Branwyn por aí, vocês precisam encontrar e destruir.
- Feitiços afrodisíacos não funcionam, sra. NicEssus. Afrodisíacos simplesmente não funcionam. Poções mágicas que fazem a mulher tirar a calcinha para um homem que ela não deseja são besteira. Não existem.
- Se isso estiver acessível à população em geral, o senhor vai desejar mesmo que não exista. Pode ser que Norton tivesse o único frasco, mas para o caso de haver mais por aí, por favor, procure os amigos dele.
Ele folheou o bloco de notas que estava intocado na mesa havia muito tempo.
- É, Liam, Donald e Brendam, sem sobrenomes. Dois deles têm orelha de elfo, os três têm cabelo comprido. É, nós vamos encontrá-los com certeza. Mas claro que eles podem não ser tão prioritários, já que não são acusados de assassinato.
Eileen levantou-se de novo.
- Vamos, Meredith, essa entrevista acabou e estou falando sério.
Ela olhou para nós dois como se fôssemos alunos mal comportados da primeira série, e nenhum de nós ousou discutir com ela. Eu estava cansada, e a polícia não ia acreditar no que eu dizia sobre as Lágrimas de Branwyn. Fiquei de pé.
Alvera também se levantou.
- Sente-se, Meredith.
- Já estamos nos chamando pelo primeiro nome, Alvera? Não sei o seu.
- É Raimundo. Agora sente-se.
- Se eu apelar para a imunidade diplomática - eu disse - saio livre daqui e não importará mais quem está certo, ou quem está errado.
Olhei para ele e graças à proteção de Jeremy consegui encará-lo. Se me concentrasse, mal notaria o desenho do lábio superior dele.
Alvera olhou para mim um longo tempo antes de responder.
- O que a impede de apelar para a imunidade diplomática e sair por aquela porta, Princesa?
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- Você acreditar no que digo sobre o óleo afrodisíaco, Raimundo.
Ele sorriu.
- Certo, acredito em você. Balancei a cabeça.
- Sem brincadeira, detetive. Uma mentira não vai me manter nesta sala.
Eu estava blefando, de certa forma. E esperava que ele não pagasse para ver.
- O que vai, então?
Tive uma idéia. Precisava provar para a polícia que as Lágrimas de Branwyn podiam ser muito perigosas. Fazer sexo com um encantado assombraria um humano para sempre, mas um gostinho não provocaria danos permanentes. Só alguns sonhos, talvez, ou mais excitação na cama por algum tempo, mas nada tão ruim. Era necessário uma união carnal e mágica de forma extremamente íntima para passar do limite de segurança. Se todos experimentássemos apenas uma prova, todos sobreviveriam.
- E se eu puder provar que o óleo afrodisíaco funcionou? Ele cruzou os braços e conseguiu parecer ainda mais cínico, coisa que eu pensava não ser possível.
- Estou ouvindo.
- Você acredita que nenhum feitiço é capaz de provocar um tesão instantâneo por alguém desconhecido, certo?
Ele fez que sim com a cabeça.
- Isso mesmo.
- Permite que eu encoste em você, detetive?
Ele sorriu, e seus olhos passearam pela frente do meu vestido.
Torci para ele estar sendo cafajeste de propósito, porque do contrário não seria muito inteligente, e precisava que ele fosse bom no que fazia. Num caso politicamente sensível como aquele, Alvera era o melhor que tinham ou o pior. Eles deviam esperar que o superdetetive limpasse tudo, ou ele estava sendo oferecido como bode expiatório preventivo, para quando a merda atingisse o ventilador. Torci para ele ser o superdetetive, mas estava começando a achar que era o bode expiatório. É claro que, como eu estava
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mentindo sobre algumas coisas, talvez não quisesse que Alvera fosse bom na função dele. Só que eu não estava mentindo sobre o que ele achava que eu mentia. Sinceramente.
- Um minuto atrás eu era Raimundo. Agora você quer permissão para encostar em mim e voltei a ser detetive.
- É a chamada técnica de distanciamento, detetive Alvera eu disse.
- E eu que pensei que você queria ficar mais próxima, mais pessoal, não mais distante.
Ouvi Eileen Galan respirar para começar a falar e a impedi, sinalizando com a mão para ela.
- Tudo bem, Eileen, ele não pode ser tão burro e ter chegado a detetive, por isso deve estar me provocando. Não sei o que espera ganhar com isso.
O bom humor desapareceu dos olhos dele, substituído por frieza escura e indecifrável, feito pedra.
- A verdade seria muito bom.
- Você se comportou bem durante horas aqui. De repente, nos últimos trinta minutos, conseguiu me insultar sexualmente algumas vezes e não tira os olhos dos meus seios. Por que a mudança?
Os olhos frios examinaram meu rosto um segundo, ou dois.
- Ser sério e profissional não estava me levando a lugar nenhum.
- Sou citada como vítima de estupro nos primeiros relatórios, acredite você ou não. A sua conduta nessa última meia hora poderia pô-lo do lado errado de um processo por assédio sexual.
Ele desviou o olhar para minha advogada que continuava calada e depois de novo para mim.
- Já vi vítimas de estupro, Princesa. Já as levei para o hospital e segurei suas mãos enquanto choravam. Uma menina tinha apenas doze anos de idade. Ela estava tão traumatizada que não conseguia falar. Levei nove dias, trabalhando junto com uma terapeuta, para conseguir que ela desse os nomes dos seus agressores. Você não age como vítima de estupro.
Balancei a cabeça.
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Você é um... homem... muito arrogante. Fiz com que a palavra "homem" soasse como o pior dos insultos.
- Já foi estuprado alguma vez, Raimundo?
Ele piscou, mas continuou com a expressão neutra.
- Não.
- Então nem ouse pensar que pode me dizer como devo agir, o que devo sentir, ou qualquer merda dessas. Não estou muito abalada esta noite. Parte é o maldito feitiço, mas outra parte, detetive é que no que se refere a estupro, este não foi tão ruim. Eileen disse que eu fui violentada. Bem, ela é advogada. Posso perdoar a escolha de palavras, mas ela não sabe o que essa significa. Ela nunca viu o que um homem pode fazer com uma mulher se realmente quiser machucá-la. Já vi brutalidades, detetive, e o que aconteceu esta noite não foi brutal, mas o fato de não estar sangrando até morrer cheia de tubos, de meu rosto ainda poder ser reconhecido por baixo dos machucados, não significa que não foi estupro.
Alguma coisa passou nos olhos dele, algo que não consegui decifrar, depois voltaram a ficar impenetráveis.
- Essa não foi sua primeira vez, não é? - ele perguntou com voz suave, gentil.
Olhei para o chão, com medo de encará-lo.
- Eu não, detetive. Eu não.
- Uma amiga - disse ele, com a mesma voz suave.
A cara de compaixão dele quase me enganou, quase fez com que eu quisesse confiar nele. Quase. Lembrei-me do rosto de Keelin, uma máscara de sangue, com uma das cavidades oculares tão arrebentada que o olho dela tinha rolado para a maçã do rosto.
Se ela tivesse um nariz, estaria quebrado, mas a mãe dela era duende e nao tinha nariz humano. Três dos seus braços formavam ângulos impossíveis, como as pernas quebradas de uma aranha. Nenhum curandeiro encantado queria encostar as mãos nela porque estava tão perto da morte que eles não iam arriscar as próprias vidas por uma goblin-duende mestiça. Meu pai a carregou para um hospital de humanos e registrou o ataque junto às autoridades.
Meu pai era Príncipe da Chama e da Carne e era temido até pela
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irmã dele, a Rainha, de modo que não foi punido por recorrer aos humanos. Estava tudo registrado. Eu podia falar sobre isso sem ser punida. Era muito bom saber que havia alguma coisa verdadeira que eu podia contar sem omitir nada naquela noite.
- Pode contar - ele disse, com a voz ainda mais suave.
- Quando tínhamos 17 anos, minha melhor amiga Keelin Nic Brown foi estuprada. - Minha voz soava monótona e vazia, como os olhos de Alvera minutos antes. - Quebraram os ossos em volta de um dos olhos, e a órbita ocular ficou pendurada para fora, sobre o rosto dela, presa por filamentos.
Respirei fundo e afastei a lembrança, e só percebi que a afastara com as mãos, como se isso ajudasse, quando terminei de fazer o movimento.
-Já vi pessoas espancadas, mas não daquele jeito, nunca daquele jeito. Eles tentaram matá-la de pancada e quase conseguiram.
Eu me controlei novamente. Não ia chorar. Estava contente. Odiava chorar. Quando chorava, sempre me sentia fraca.
- Sinto muito - ele disse.
- Não sinta por mim, detetive Alvera. Ver Keelin sarar deume uma medida de violência. Se não era tão sério como o que aconteceu com Keelin, então não podia ser muito grave. Isso me ajudou a superar coisas muito duras sem ficar histérica.
- Como a desta noite - disse ele com aquele mesmo tom de convencer-o suicida-a-descer-do-parapeito.
Fiz que sim com a cabeça.
- É, como esta noite, só que vou admitir que o que aconteceu com Alistair Norton foi uma das piores coisas que eu vi, e olha que já vi coisas horríveis. Eu não o matei. Não estou dizendo que não podia tê-lo matado se ele completasse o estupro. Quando me recobrasse do feitiço afrodisíaco eu poderia ir atrás dele. Não sei. Mas alguém cuidou disso por mim.
- Quem? - ele perguntou. Respondi bem baixinho:
- Gostaria de saber, detetive. Eu realmente gostaria de saber.
- Precisa tocar em mim para provar que esse óleo afrodisíaco é verdadeiro?
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Fiz que sim com a cabeça.
Tem a minha permissão - disse Alvera.
- Se eu provar que o óleo funciona mesmo, você chama a narcóticos?
- Chamo.
- Jure - eu disse. - Dê sua palavra de honra.
Ele ficou sério. Parecia entender que a palavra dele significava algo para mim que podia não significar para os humanos. E finalmente assentiu.
- Está bem, dou-lhe a minha palavra.
Olhei para Eileen Galan e depois para o espelho de dupla face na parede ao fundo.
- Dada diante de testemunhas. Os próprios deuses saberão se você quebrar sua promessa.
Ele meneou a cabeça.
- Devo esperar um raio?
- Não, um raio não.
Ele ia sorrir, mas quando viu que eu não estava achando graça, desistiu.
- Manterei minha palavra, Princesa.
- Espero que sim, detetive, para o bem de todos nós. Eileen levou-me para um canto, a alguns passos de distância do detetive.
- O que está planejando fazer, Meredith?
- Você pratica alguma arte mística? - perguntei.
- Sou uma advogada, não uma bruxa.
- Então apenas observe. É meio autoexplicativo. Afastei-me dela educadamente e voltei para perto de Alvera.
Fiquei mais longe dele do que ficaria em uma situação normal, apenas perto o bastante para poder encostar nele. Um pouco do óleo nos meus dedos tinha saído. Eu queria que aquilo funcionasse, de modo que passei a mão nos seios onde o óleo ainda estava grosso e brilhando. Lágrimas de Branwyn tinham um longo prazo de validade. Estiquei o braço e tentei encostar a mão no rosto de Alvera.
Ele chegou para trás, ficou fora do meu alcance.
Olhei desconfiada para ele, com a mão no ar.
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- Você disse que eu podia tocar em você. Ele meneou a cabeça de novo.
- Desculpe, é a força do hábito.
Ele deu um passo para frente mas nos manobrou de forma que ficamos bem à vista da nossa platéia atrás do espelho de dupla face. Deu para ver que ele se preparou para não se esquivar de mim. Fiquei sem saber se ele não queria que eu encostasse nele porque eu era encantada ou porque ele achava que eu tinha assassinado alguém com magia, ou se era algum problema esotérico de policial.
Passei a ponta dos dedos na boca carnuda de Alvera até seus lábios brilharem. Ele arregalou os olhos e ficou atônito. Afasteime dele, ele estendeu a mão para me segurar e então parou. Cruzou os braços sobre o peito e tentou falar, mas balançou a cabeça.
Voltei para a minha cadeira e sentei. Cruzei as pernas, e a saia do vestido era tão curta que apareceu o elástico rendado da meia. Alvera notou. Ele observou cada movimento das minhas mãos enquanto eu alisava a saia e arrumava-a no lugar. Eu vi a artéria do pescoço dele latejando sob a pele. Os olhos arregalados, os lábios entreabertos, enquanto ele lutava para se controlar, eram muito intrigantes. Foi preciso muito mais do que autocontrole para não cobrir a distância que nos separava e tomar a iniciativa. Eu ainda estava segura atrás das runas de Jeremy, mas precisei de força de vontade para não ir até ele.
Eileen Galan olhava para um, para outro, com expressão confusa.
- Eu perdi alguma coisa?
Alvera só olhava para mim, de braços cruzados, como se tivesse medo de se mexer ou de falar, medo de que qualquer movimento fizesse com que ele mergulhasse de cabeça nos meus braços.
Respondi para Galan:
- Sim, você perdeu alguma coisa.
- O quê?
- As Lágrimas de Branwyn - eu disse em voz baixa. Alvera fechou os olhos, e seu corpo começou a balançar um pouco.
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- Está tudo bem, detetive? - Eileen disse.
Ele abriu os olhos e respondeu:
Está. eu... - ele olhou para mim - estou bem.
Mas quase não deu para ouvir. Havia uma espécie de pânico no rosto dele, parecia que não acreditava no que estava pensando.
Não sei quanto tempo ele poderia ficar lá parado, mas minha paciência tinha se esgotado aquela noite. Passei a ponta do dedo na pele branca e brilhante dos meus seios e foi o bastante.
Ele atravessou a sala com três passos largos, agarrou meus braços e me fez levantar. Ele era quase trinta centímetros mais alto do que eu e teve de se curvar num ângulo desconfortável, mas deu um jeito. Encostou aqueles lábios beijáveis nos meus, e aquela primeira prova destruiu o encantamento de Jeremy. De repente, virei uma coisa latejante e cheia de desejo. Meu corpo ainda queria terminar o que tinha sido negado mais cedo. Beijei-o como se me alimentasse dos seus lábios macios, minha língua procurou alguma coisa lá no fundo de sua boca. Acariciei o rosto dele com as mãos besuntadas de óleo. Quanto mais óleo encostava nele, mais forte o feitiço ficava. Ele me levantou pela cintura até eu ficar da altura dele para não ter de se curvar.
Prendi as pernas em volta da cintura dele e sentia tudo através das camadas de tecido que nos separavam. Meu corpo latejou com aquele contato, e eu interrompi o beijo, não para respirar, mas para gritar.
Ele me apertou contra o tampo da mesa e me esmagou com seu pênis enrijecido. Deitado na mesa ele ficava alto demais para continuar me beijando e manter a parte de baixo dos nossos corpos apertadas daquele jeito, por isso ele se ergueu apoiado nos tacos como se estivesse fazendo uma flexão e continuou apertando o corpo contra o meu.
observei o corpo dele todo, de baixo para cima, até chegar aos olhos. Tinham um tom escuro e misterioso que normalmente aParece mais tarde nos olhos de um homem, depois de os dois ficarem sem roupa e de não terem como voltar atrás. Agarrei a camisa dele com as duas mãos e puxei, os botões saíram voando e descobri a barriga e o peito dele. Ergui a parte de cima do corpo
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para poder lamber o peito de Alvera, passei as mãos na barriga musculosa. Tentei enfiar uma na calça, mas o cinto me derrotou.
De repente, a sala estava cheia de detetives de uniforme e à paisana. Eles arrancaram Alvera de cima de mim, e ele resistiu. Tiveram de derrubá-lo no chão e montar em cima dele. Ele só berrava, sem dizer nada.
Fiquei deitada na mesa, com a saia puxada até a cintura, com o corpo tão cheio de sangue e de desejo que não conseguia me mexer. Estava com raiva, com muita raiva, porque tinham interrompido. Sabia que isso era burrice. Sabia que não queria fazer sexo numa sala de interrogatório, na frente da delegacia de polícia inteira, mas mesmo assim... sentia raiva, continuava cheia de desejo.
Um policial jovem, de uniforme, estava ao lado da mesa. Ele se esforçava para não olhar, mas não resistia. Foi fácil agarrar a mão dele, passar as Lágrimas no pulso dele. O sangue do policial pulsou na minha mão, ele se inclinou sobre mim e me beijou antes de qualquer um perceber o que estava acontecendo.
- Meu Deus, Riley, não encoste nela! - alguém disse. Mãos agarraram Riley, arrancaram-no dos meus lábios, das minhas mãos. Tentei segurá-lo, sentei na mesa e gritei:
-Não!
Já ia descer da mesa para pegar um deles quando outro detetive segurou meus braços e me prendeu sentada na beira da mesa., Ele olhou para as próprias mãos como se as tivesse queimado ao encostar nos meus braços nus.
- Ah, meu Deus - ele disse baixinho.
Logo antes de se abaixar e me beijar ele berrou:
- Chamem policiais mulheres para cá.
Eu soube mais tarde que aquele homem que não era nem alto nem baixo, levemente calvo, com mãos fortes e corpo musculoso, era o tenente Peterson. Tiveram de algemá-lo para conseguirem carregá-lo para fora da sala.
Fui soterrada e imobilizada por um monte de policiais mulheres. Duas delas tiveram o mesmo problema dos homens, e pelo menos um dos homens não foi afetado quando me agarrou. Nada como sair do armário no ambiente de trabalho!
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Levaram Jeremy de volta para ele recompor o escudo. Acabei me acalmando, mas não estava mais em condições de conversar. Jeremy garantiu que ia falar por mim com o pessoal da narcóticos, embora tivesse certeza de que os homens que estiveram comigo naquela sala iam ser muito persuasivos quanto aos perigos das Lágrimas de Branwyn.
Roane estava me esperando com luvas cirúrgicas para poder encostar em mim, um paletó para jogar sobre a minha cabeça e evitar que as pessoas me reconhecessem. A polícia nos levou pela saída dos fundos. Até então parecia que a mídia não sabia que eu tinha finalmente aparecido e em que circunstâncias. Mas alguém na delegacia, ou na ambulância, ia acabar falando. Talvez dessem com a língua nos dentes por dinheiro, ou acidentalmente, mas a mídia ia descobrir. Era apenas uma questão de tempo. Uma corrida para ver quais cães me encontrariam primeiro: os dos tabloides ou os da guarda da Rainha. Se eu estivesse em forma, teria entrado no meu carro e saído do estado aquela noite mesmo, ou pegaria o primeiro avião para qualquer lugar. Mas Roane me levou para o apartamento dele porque ficava mais perto do que o meu. Não me importava para onde íamos, desde que tivesse um chuveiro. Se não livrasse meu corpo das Lágrimas ou não fizesse sexo logo, ia enlouquecer. Votei no chuveiro. O que não percebi até ser tarde demais foi que Roane tinha votado no sexo.
A parte DA frente do meu cérebro sabia que eu devia ter pedido Para Roane me levar para o meu carro. Havia um pacote pregado embaixo do banco do motorista com dinheiro, uma nova identidade completa, com carteira de motorista e cartões de crédito. Eu sempre planejei simplesmente sair da cidade de carro, ou ir para
o aeroporto e pegar o primeiro avião que me atraísse. Era um bom plano. A polícia já devia estar falando com a embaixada naquela altura e antes do amanhecer minha tia saberia onde eu estava, quem eu era e o que eu tinha feito naqueles últimos três anos.
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A parte mais primitiva do meu cérebro queria pular em cima de Roane enquanto ele dirigia a cento e trinta porhora na via expressa. Tinha a sensação de que minha pele estava esticada e inchada de desejo. Até sentei em cima das minhas mãos no carro para não poder tocar nele. A última coisa de que precisávamos era que eu o contaminasse com as Lágrimas. Pelo menos um de nós tinha de ter bom senso aquela noite, e até poder tomar um banho não seria eu.
Subi de braços cruzados a escada até o apartamento de Roane, enfiando com força os dedos nos braços, a ponto de deixar marcas com as unhas. Só assim pude evitar encostar em Roane enquanto ele subia na minha frente.
Ele deixou a porta aberta, e eu o segui. Roane parou no meio do grande espaço livre. Mesmo no escuro a sala era estranhamente clara, pois as paredes brancas refletiam a luz do luar. Roane era uma figura preta no meio de todo aquele brilho prateado. Ele olhava diretamente para o mar como sempre fazia quando entrava no apartamento. Ele parava e espiava pelo conjunto de janelas que formavam as paredes do oeste e do sul. O mar se estendia de uma extremidade à outra das janelas, quebrando em negro e prata cintilantes, com uma franja branca de espuma que parecia renda nas ondas que estouravam na praia.
Eu estaria sempre em segundo lugar no coração de Roane porque a atenção dele era para seu primeiro amor o mar. Ele ia lamentar a perda dele quando eu já fosse apenas pó num túmulo. Saber disso era uma espécie de solidão. A mesma solidão que eu sentia na corte, vendo os encantados discutir insultos que tinham acontecido cem anos antes de eu nascer e sabendo que os encantados ainda estariam brigando por isso cem anos depois da minha morte. Um pouco de amargura, mas o principal era a consciência de que eu era uma forasteira. Eu era encantada, por isso não podia ser humana, e era mortal, por isso não podia ser encantada. Nem peixe nem ave.
Mesmo me sentindo isolada, deixada de fora, olhei para a cama. Era um amontoado de lençóis brancos, almofadas e travesseiros espalhados. Roane tinha trocado a roupa de cama, mas não arrumou
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direito. Se os lençóis estavam limpos, ele não entendia por que devia desamassá-los. Vi de repente uma imagem dele nu, deitado naqueles lençóis brancos. A visão foi tão nítida que chegou a doer, provocou um aperto no estômago, remoeu mais para baixo e fiquei com dificuldade para respirar. Encostei na porta fechada até conseguir me mexer, depois endireitei o corpo. Não ia ser controlada por química nem por mágica. Eu era encantada, uma encantada fraca e menor, mas nada disso mudava o fato de estar à altura de tudo que nós e os homens chamávamos de mágico. Eu não era qualquer humano que teve a primeira prova de fadas e elfos. Eu era uma princesa dos encantados e, pela Deusa, ia agir como uma.
Tranquei a porta e nem o barulho do encaixe da fechadura fez Roane se virar. Ele ia comungar com aquela vista até estar preparado para mim. Mas naquela noite eu não tinha paciência para isso. Passei por ele no quarto escuro e fui ao banheiro. Acendi a luz e fiquei cega com a luminosidade. O banheiro era minúsculo, mal tinha espaço para a privada, uma pequena pia e a banheira, que devia ser a original do apartamento, pois era funda, tinha garras nos pés e parecia muito antiga. A cortina do chuveiro era presa num trilho sobre a banheira. Essa cortina tinha focas de todos os cantos do mundo, com seus nomes comuns impressos embaixo de cada imagem. Eu tinha encomendado de um daqueles catálogos que sempre recebemos se tivemos alguma associação com biologia no passado, encontrei no meio das camisetas com estampas de animais, velas com forma de animais, livros sobre viagens para o Círculo Ártico e verões observando lobos em lugares remotos. Roane adorou a cortina, e eu adorei dá-la para ele. Era uma delícia fazer sexo no chuveiro cercada pelo presente que lhe dei.
Vi de repente o corpo dele, nu e molhado, senti sua pele escorregadia de sabonete. Resmunguei baixinho e abri a cortina. Abri a torneira para a água esquentar. Precisava tirar as Lágrimas de mim antes de fazer algo de que ia acabar me arrependendo. Estaria em segurança esta noite. Ninguém ia aparecer na minha porta até amanhã. Eu podia ter Roane, encher as mãos com sua pele sedosa, cobrir meu corpo com a proximidade cheirosa do corpo dele. A Quem isso poderia fazer mal?
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Eram as Lágrimas que me faziam pensar assim, não era eu. Precisava desta noite para sair bem na frente, se ia deixar a cidade. A polícia não ia gostar de saber que eu tinha saído da cidade, mas os policiais não me matariam, e minha família sim. Inferno, a Califórnia nem tinha pena de morte.
O vestido estava todo rasgado, por isso tentei tirar as alças do ombro como uma blusa, mas o zíper não permitiu. A parte da frente estava encharcada de óleo. Nunca vi ninguém desperdiçar tanto uma coisa que até para os encantados era muito valiosa. Mas se eu tivesse morrido junto com Alistair Norton, talvez o bruxo encantado tivesse esperança de que ninguém saberia o que as Lágrimas de Branwyn eram. Os encantados eram muito esnobes quanto ao que os menos graduados faziam, e eles não tinham conhecimento. Ele, ela, ou eles, deviam ter pensado que, se eu morresse, estariam a salvo.
Os encantados, quem quer que fossem, tinham dado Lágrimas de Branwyn para um mortal, para serem usadas contra outros encantados. A punição para isso era tortura eterna. Há algumas desvantagens em ser imortal. Uma das maiores é que a punição pode durar muito, muito tempo.
Claro que o prazer também. Fechei os olhos para tentar afastar as imagens que voltaram todas aos borbotões. Eu não estava pensando em Roane. Pensava em Griffin. Fomos noivos sete anos. Se tivéssemos conseguido engravidar, seríamos marido e mulher. Mas não houve gravidez, e no fim foi só sofrimento. Ele me traía com outras mulheres encantadas, e quando tive a má idéia de protestar, ele disse que estava cansado de estar com uma meio-mortal. Ele queria a coisa de verdade, não uma imitação sem graça. Eu ainda ouvia aquelas palavras machucando meus ouvidos, mas foi a pele dourada que vi por trás das pálpebras fechadas, o cabelo cor de cobre sobre o meu corpo, a luz de velas cintilando o brilho dele. Não pensava em Griffin havia anos e agora sentia até o gosto dele nos lábios.
Por uma noite, enquanto durasse o efeito do óleo, os parcialmente encantados, ou os humanos, podiam ser encantados. Eles brilhariam com o nosso poder e dariam e receberiam prazeres
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como um de nós. Era uma grande dádiva, mas como a maioria dos presentes de encantados, tinha dois gumes. Porque o humano ou o encantado podia passar o resto da vida ansiando por aquele poder, aquele toque. Um humano podia definhar e morrer com a falta dele. Roane era um elfo sem sua mágica, sem sua pele de foca. Não tinha a própria magia para protegê-lo do que as Lágrimas fariam com ele.
Eu sabia que sentia falta do toque de outro encantado, mas até aquele momento não tinha idéia de quanto. Se Griffin estivesse ali na sala, eu teria ficado com ele. Talvez enfiasse uma faca no coração dele de manhã, mas naquela noite eu ficaria com ele.
Ouvi Roane chegando na porta do banheiro atrás de mim, mas não me virei. Não queria vê-lo ali parado. Não tinha certeza se minha força de vontade violentada agüentaria. A frente do vestido estava rasgada, arruinada, mas eu não conseguia abrir o zíper sozinha.
- Quer fazer o favor de abrir esse zíper?
Minha voz soou estrangulada, as palavras tinham de ser arrancadas de mim. Talvez porque o que eu realmente queria dizer era "Possua-me, animal tesudo", mas faltava a isso certa dignidade, e Roane merecia coisa melhor do que ficar desejando o que nunca mais teria de novo. Eu podia desfazer meu glamour e ir para a cama com ele depois dessa noite, mas toda vez que ele tocasse em mim, na minha verdadeira forma, só serviria para aumentar o vício.
Ele abriu o zíper e pôs as mãos nas alças para ajudar a tirar dos ombros. Afastei-me dele na mesma hora.
- Minha pele está encharcada com as Lágrimas. Não encoste em mim.
- Nem de luva? - ele perguntou.
Eu tinha me esquecido das luvas de cirurgia.
- Não, acho que com as luvas você estará seguro.
Ele tirou as alças dos meus ombros devagar, com cuidado, como se tivesse medo de tocar em mim. Passei os braços por elas, mas o tecido estava tão pegajoso de óleo que não saía. Grudou em mim como se fosse uma mão pesada, sugando a minha pele
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enquanto arrancava o vestido do corpo. Roane me ajudou a tirar o pano molhado dos quadris, ajoelhou-se para eu poder sair dele. Eu estava desequilibrada com o sapato de salto alto e xinguei baixinho por não tê-lo tirado antes. Fechei os olhos para não ver Roane quando ele me ajudava a tirar a roupa. Apoiei-me no seu ombro direito para me firmar no salto e quase caí porque encostei diretamente na pele dele.
Abri os olhos e o vi ajoelhado na minha frente, nu, a não ser pelas luvas. Cambaleei para trás com tanta violência que acabei caindo sentada na banheira, com uma mão estendida para cima para ele se afastar. Estava sentada em dois centímetros de água e tratei de fechar as torneiras atabalhoadamente. Só que seria melhor se as deixasse abertas e ficasse embaixo da água.
Roane deu risada.
- Pensei que ia abrir o zíper antes de você notar, mas não sabia que tinha fechado os olhos.
Ele tirou as luvas com os dentes e ainda segurava meu vestido nos braços. Passou as duas mãos no tecido encharcado de óleo e depois no peito.
Eu não parava de balançar a cabeça.
- Você não sabe o que está fazendo, Roane.
Ele olhou para mim por cima da borda da banheira e não havia nada de inocente em seus grandes olhos castanhos.
- Pelo menos esta noite posso ser encantado para você. Sentei direito na banheira como se fosse tomar uma chuveirada de calcinha e sutiã e procurei ser sensata. Tive a sensação de que todo o sangue tinha saído do meu cérebro e se juntado em outros lugares. Era difícil raciocinar.
- Não posso usar glamour esta noite, Roane.
- Não quero que você use glamour. Quero ficar com você, Merry. Sem máscaras. Sem ilusões.
- Sem a sua mágica, você será como um humano. Não poderá se proteger do feitiço. Será abatido como um elfo.
- Não vou definhar e morrer por querer um corpo encantado, Merry. Posso ter perdido a minha mágica, mas sou imortal.
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- Pode ser que não morra, Roane, mas para sempre é um bom tempo Para ficar desejando o que não pode ter.
Eu sei o que eu quero - ele disse.
Já ia abrir a boca para dizer a ele pelo menos parte da verdade, parte do motivo pelo qual eu tinha de me limpar e sair da cidade. Mas ele se levantou e minha voz morreu na garganta. Não conseguia respirar, menos ainda falar. A única coisa que fiz foi arregalar os olhos.
Ele torceu o vestido com tanta força que os músculos dos braços saltaram com o movimento. O óleo escorreu do tecido e cintilou em fios que desciam lentos pelo peito dele, pela barriga reta e lisa, e mais para baixo. Ele já estava pronto e rijo, mas quando o óleo o cobriu, Roane sibilou, num grito sufocado. Passou uma mão na barriga e espalhou o óleo na sua pele clara e perfeita. Eu devia ter dito para ele parar, devia ter gritado por socorro, mas apenas observei quando ele pôs a mão mais para baixo, segurou o pênis e continuou espalhando o óleo. Roane jogou a cabeça para trás, de olhos fechados, e exclamou quase sem ar:
- Oh, deuses!
Sabia que devia dizer ou fazer alguma coisa importante, mas juro pela minha vida que não conseguia lembrar o que era. Pensava em coisas, mas não em palavras. As palavras tinham me abandonado e sobravam apenas imagens: visão, tato, olfato e por último o paladar.
A pele de Roane tinha um gosto muito forte de canela e baunilha, mas embaixo disso havia algo verde, de ervas, um gosto leve e limpo que era como beber água de uma fonte que nascia no coração da Terra. Por trás de tudo havia o gosto da pele dele, doce, macia e levemente salgada de suor.
Acabamos na cama. Eu estava sem roupa, mas não me lembro de ter me despido. Nós dois nus, melados de óleo, nos lençóis brancos e limpos. A sensação do corpo dele deslizando sobre o meu fez com que eu arfasse por lábios entreabertos. Roane me beijou, eu me abri para ele, levantei na cama para que sua língua penetrasse mais fundo na minha boca. Movi o quadril junto com o beijo, ele considerou um convite e penetrou em mim lentamente, sentiu
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que eu estava molhada e pronta, então enfiou tudo, rápido e fundo, até onde podia. Eu gritei olhando fixo para ele, meu corpo se ergueu na cama e depois caiu de novo nos lençóis.
O rosto dele estava a poucos centímetros do meu, seus olhos tão próximos eram tudo o que eu via. Ele observava meu rosto enquanto se movia dentro de mim, meio apoiado nos braços para poder ver meu corpo se contorcer embaixo do dele. Eu não conseguia ficar parada. Tinha de me mexer, de levantar ao encontro dele, até criarmos um ritmo, forjado de carne batendo em carne, do trovejar dos nossos corações, dos líquidos melados dos nossos corpos e do latejar de cada nervo. Era como se um toque fosse muitas carícias, um beijo, mil beijos. Cada movimento do corpo dele parecia me encher como água quente se espalhando, encharcando minha pele, meus músculos, meu sangue, meus ossos, até tudo se converter em uma enxurrada de calor que aumentava e aumentava, era a luz invadindo tudo quando a noite termina. Meu corpo cantava junto. As pontas dos dedos formigavam, e quando pensei que não ia me segurar mais, o calor virou fervura e rugiu sobre mim, através de mim. Ao longe ouvi barulhos, gritos, que eram de Roane, eram meus.
Ele despencou em cima de mim, ficou mais pesado de repente, com o pescoço no meu rosto. Senti o pulsar das artérias dele como uma coisa que corria e pulava contra minha pele. Ficamos assim deitados e unidos com toda a intimidade que um homem pode ter com uma mulher, abraçados até nossos corações desacelerarem.
Roane levantou a cabeça primeiro, apoiado nos braços, para olhar para mim. A expressão era de deslumbramento, ele parecia uma criança que estava sendo apresentada a um prazer que não conhecia até o momento. Ele não disse nada, ficou apenas olhando para mim, sorrindo.
Eu também sorri, mas havia um traço de tristeza no meu sorriso. Lembrei-me então do que tinha esquecido. Eu devia ter tomado um banho e fugido da cidade. Nunca devia ter encostado em Roane com Lágrimas de Branwyn nos nossos corpos. Mas o mal já estava consumado.
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Minha voz saiu suave, estranha aos meus ouvidos, como se não falasse havia muito tempo.
- Olhe para a sua pele.
Roane olhou para o corpo dele e sibilou feito gato assustado. Rolou para o lado e sentou, olhou espantado para as mãos, os braços, tudo. Ele brilhava, com uma luz suave e quase cor de âmbar, igual ao reflexo de uma pedra dourada, e essa pedra era seu corpo.
- O que é isso? - ele perguntou em voz baixa, com medo.
- Você é um encantado esta noite.
- Não estou entendendo - ele disse. Suspirei.
- Eu sei.
Ele pôs a mão perto da minha pele. Brilhou como uma luz fria e branca, luar atrás de um vidro. O âmbar dele refletia no brilho branco e o transformava num amarelo claro enquanto ele movia a mão logo acima da minha pele.
- O que eu posso fazer com isso?
Observei Roane mover a mão brilhante sobre meu corpo, ainda com todo cuidado para não encostar em mim.
- Eu não sei. Cada encantado é diferente dos outros. Todos nós temos habilidades diversas. Variações sobre um mesmo tema.
Ele encostou a mão na cicatriz que tenho nas costelas, logo abaixo do seio esquerdo. Doeu como uma pontada de artrite em dias de frio, só que não fazia frio. Afastei a mão dele. Ficou a marca perfeita de uma mão, maior do que a mão de Roane, com dedos mais compridos, mais finos. Era marrom e em alto relevo. A cicatriz ficava negra quando minha pele brilhava, como se a luz não pudesse alcançá-la, um ponto ruim.
O que aconteceu? - ele perguntou.
- Foi num duelo.
Ele já ia encostar na cicatriz de novo, mas agarrei a mão dele, aPertei bem para forçar aquele brilho âmbar a entrar no meu branco. Foi como se nossas mãos se fundissem, a carne se abrindo, devorando. Ele puxou o braço rapidamente, esfregou a mão no peito, só que aí ficou cheia de óleo e isso não ajudava nada. Roane ainda
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não entendia que teve apenas a primeira prova do que signica ser encantado.
- Todo encantado tem algum poder. Alguns conseguem com um toque. Outros podem matar. A encantada com quem lutei encostou a mão nas minhas costelas, quebrou-as, rasgou meu músculo e tentou esmagar meu coração, tudo isso sem arranhar a pele.
- Você perdeu o duelo - ele disse.
- Perdi o duelo, mas sobrevivi e isso sempre foi uma vitória para mim.
Roane franziu a testa.
- Você parece triste. Eu sei que gostou. Por que essa tristeza toda?
Ele passou o dedo no meu rosto, e o brilho aumentou onde ele tocava. Virei de costas para ele.
- É tarde demais para salvá-lo, Roane, mas não é tarde demais para me salvar.
Senti que ele deitou ao meu lado e me movi só o bastante para impedir que o corpo dele encostasse no meu. Olhei para ele de uma certa distância.
- Salvá-la de quê, Merry?
- Não posso dizer por quê, mas preciso ir embora esta noite e não só deste apartamento, mas da cidade.
Ele ficou espantado.
- Por quê? Balancei a cabeça.
- Se eu contasse você correria um perigo ainda maior do que já corre.
Ele aceitou isso e não perguntou mais.
- Posso ajudar em alguma coisa? Sorri e depois dei risada.
- Não posso ir até o meu carro, menos ainda até o aeroporto brilhando como a luz nascente, e não posso usar o glamour até o óleo sair todo.
- Quanto tempo? - ele perguntou.
- Eu não sei.
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Olhei para o corpo dele inteiro e vi que ele estava relaxado, só que ele se cobriu rapidamente. Sempre fazia isso. Mas eu sabia de uma coisa que ele não sabia. Naquela noite, querendo ou não, eu era encantada.
- Qual é o seu poder? - ele perguntou, como se tivesse demorado muito tempo para perguntar.
Ele devia realmente querer saber, para perguntar o que não tinha sido dito. Sentei na cama.
- Não tenho nenhum. Ele estranhou.
- Você disse que todos os encantados têm um. Fiz que sim com a cabeça.
- Essa é uma das desculpas que os outros usam há anos para me excluir.
- Excluir de quê?
- De tudo.
Passei a mão logo acima do corpo dele, e a luz âmbar ficou mais forte, seguindo meu toque como fogo quando se assopra para avivar.
- Quando nossas mãos se fundiram, esse foi um dos efeitos colaterais do poder. Nosso corpo inteiro pode fazer a mesma coisa.
Ele ergueu as sobrancelhas.
Segurei o pênis dele, e ele reagiu, mas joguei poder e no mesmo instante ele enrijeceu, ficou pronto em um segundo. A barriga dele se contraiu, ele sentou e afastou minha mão.
- A sensação foi quase boa demais. Quase uma dor.
- É.
Ele deu uma risada nervosa.
- Pensei que você não tivesse poder nenhum.
- Não tenho, mas sou descendente de cinco divindades diferentes de fertilidade. Posso recuperar sua força a noite inteira, tão rápido e tantas vezes quantas eu quiser. - Cheguei o rosto perto do dele. - Você é como uma criança esta noite, Roane. Você não Pode controlar o poder, mas eu posso. Eu posso fazê-lo ereto muitas vezes, sem parar, até ficar em carne viva e pedir para eu Parar.
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Roane deitou na cama quando montei nele e olhava para mim com os olhos arregalados, o cabelo castanho avermelhado espalhado em volta do rosto. Aquela noite estava quase da cor do meu... quase. Ele falou com voz rouca e ofegante.
- Se fizer isso, você também ficará em carne viva.
- Pense só se eu não fosse a única encantada neste quarto, Roane. Pense no que poderíamos fazer com você, e você não poderia impedir.
Falei essa última frase encostando os lábios nos dele. Quando o beijei ele pulou como se estivesse machucado, mas eu sabia que não estava.
Afastei-me o bastante para ver o rosto dele.
- Você está com medo de mim. Ele engoliu em seco.
- Estou.
- Ótimo. Agora está começando a entender ao quê você deu vida neste quarto. O poder vem com um preço, Roane, e o prazer também. Você invocou as duas coisas, e se eu fosse uma encantada diferente, pagaria muito caro por elas.
Vi o medo cobrir o rosto dele, encher seus olhos. Gostei. Senti prazer com o tempero que o medo dava ao sexo. Não um medo muito grande, em que se arriscava sangrar, doer, mas apenas o que pudesse curar, nada que não se quisesse. Há uma enorme diferença entre uma fantasia e crueldade. Eu não gostava de crueldade.
Olhei bem para Roane, para aquela carne deliciosa, aqueles olhos adoráveis, e quis arranhar aquele corpo perfeito, enfiar os dentes na sua carne e tirar um pouquinho de sangue em muitos lugares diferentes. A idéia retesou meu corpo em lugares em que a maioria das pessoas não reagiria à violência, por mais branda que fosse. Fiação ruim, talvez, mas chega uma hora em que aceitamos quem e o que somos, ou então nos condenamos a sofrer a vida inteira. Outras pessoas vão querer fazer você sofrer. Não as ajude fazendo isso você mesmo. Eu queria dividir um pouco de dor, um pouco de sangue, um pouco de medo, mas Roane não gostava de nada disso. Machucá-lo não lhe daria prazer, e eu não
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Era chegada à tortura. Não era nenhuma sádica sexual, e Roane jamais saberia como tinha sorte de essa má fiação específica não ser uma das minhas taras. Claro que há sempre outras.
Eu o queria, queria tanto que não confiava em mim mesma para ser cuidadosa. Roane ia carregar o desejo dessa experiência até o túmulo, mas ele podia levar mais do que cicatrizes psicológicas daquela noite. Se eu não tomasse cuidado. Mesmo agora, mesmo ali, quando ele era encantado por uma noite, eu não podia perder o controle. Ainda teria de ficar no comando, resolver o que podíamos e o que não podíamos fazer. Eu é que tinha de dizer até onde iríamos. Estava muito cansada de ser a que estabelecia os limites. Não sentia falta só da mágica. Sentia falta de ter outra pessoa no comando ou, pelo menos, alguém igual. Não queria ter de me preocupar se ia machucar meu amante. Queria que meu amante fosse capaz de se proteger para eu poder realmente fazer o que eu queria, sem temer pela segurança dele. Será que isso era pedir demais?
Olhei de novo para Roane. Ele estava deitado de costas, com um braço por cima da cabeça, o outro sobre a barriga, uma perna dobrada de modo a exibi-lo por inteiro, em toda a sua glória. Não expressava mais medo nenhum, era só desejo. Ele não tinha idéia de como as coisas podiam ficar terríveis nas próximas horas se eu não tomasse muito cuidado.
Escondi o rosto com as mãos. Eu não queria tomar cuidado. Esta noite eu queria tudo que a mágica podia me dar, que se danassem as conseqüências. Quem sabe, se o machucasse bastante, Roane não lembraria disso como algo maravilhoso. Talvez não desejasse mais isso como um sonho dourado. Talvez passasse a temer o que seria um pesadelo. Uma vozinha na minha cabeça disse que a longo prazo isso seria mais generoso. Fazer com que ele nos temesse, que tivesse medo de encostar em nós, da nossa mágica, para nunca mais querer o toque de mãos de encantados em seu corpo. Um pouco de dor agora para salvá-lo de uma eternidade de sofrimento depois.
Eu sabia que tudo isso era mentira, mesmo assim não conseguia olhar para ele.
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Roane passou a ponta dos dedos nas minhas costas, e eu pulei como se ele tivesse me batido. Continuei com as mãos no rosto. Não estava preparada para espiar de novo.
- Essas cicatrizes nos ombros não são de queimadura, são? Abaixei as mãos, mas fiquei de olhos fechados.
-Não.
- O que são?
- Foi outro duelo. Ele usou mágica para tentar me forçar a mudar de forma no meio da luta.
Ouvi, senti Roane se mexer na cama, chegar mais perto de mim, mas não procurou encostar em mim de novo. Fiquei aliviada.
- Mas mudar de forma não dói. A sensação é maravilhosa.
- Para um roane pode ser, mas não para nós. Mudar de forma é doloroso, parece que todos os nossos ossos se quebram ao mesmo tempo. Eu não consigo mudar minha forma sozinha, de jeito nenhum, mas já vi acontecer em outros. Nos minutos que duram a transformação, ficam indefesos.
- O outro encantado estava tentando distraí-la.
- É.
Abri os olhos e olhei para a escuridão das janelas. Funcionavam como um espelho preto, refletiam Roane sentado atrás de mim, aparecia só a metade do corpo dele, brilhando como o sol atrás da lua que era o meu corpo. Os três anéis coloridos nos meus olhos emitiam tanto brilho que mesmo daquela distância dava para distinguir cada cor. Esmeralda, jade e ouro líquido. Os olhos de Roane também se acendiam em mel escuro, como bronze. A mágica encantada caía bem nele.
Ele estendeu a mão para mim, e eu fiquei tensa. Ele alisou a pele enrugada das cicatrizes.
- Como impediu que ele a transformasse em outra coisa?
- Eu o matei.
Vi no vidro da janela os olhos arregalados de Roane, senti o corpo dele retesado.
- Você matou um encantado real?
- Matei.
- Mas eles são imortais.
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Eu sou mortal, Roane. Qual é a única maneira de todos os encantados eternos morrerem?
Vi os pensamentos passando na expressão dele e finalmente a compreensão em seus olhos.
- Invocando o sangue mortal. O mortal compartilha a nossa imortalidade, e nós compartilhamos a mortalidade dele.
Exatamente.
Ele sentou perto de mim, sobre os joelhos dobrados, mas falou com a minha imagem refletida na janela, não diretamente para mim.
- Mas esse ritual é muito específico. Não se pode invocar mortalidade acidentalmente.
- O ritual de um duelo une os dois participantes em combate mortal. Entre os encantados profanos, eles costumam compartilhar o sangue antes da luta.
Ele arregalou os olhos ainda mais, até virarem dois poços enormes de escuridão.
- Quando beberam seu sangue, compartilharam sua mortalidade.
- Sim.
- Eles sabiam disso? Sorri. Não pude evitar.
- Só depois que Arzhul morreu com a minha adaga enfiada nele.
- Você deve ter lutado muito para ele querer mudar sua forma. É um feitiço importante para os encantados. Se ele não tinha medo de morrer, você deve tê-lo machucado muito.
Balancei a cabeça.
- Ele estava só se exibindo. Não bastava querer me matar. Ele queria me humilhar primeiro. Um encantado forçar a mudança de forma em outro é prova de que é um mágico mais poderoso.
- Então ele estava se exibindo - disse Roane.
Ele não ia passar daí para saber o que aconteceu depois.
- Eu o esfaqueei, esperando distraí-lo, mas meu pai sempre cismou que nunca devemos perder um golpe. Mesmo sabendo que estamos enfrentando um imortal, devemos atacá-lo como se ele pudesse morrer, porque golpes mortais doem mais, apesar de não matarem.
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- Você matou a que provocou essa cicatriz aqui? Ele passou a mão nas minhas costelas. Estremeci ao toque dele, e não foi por causa de dor.
- Não, Rozenwyn continua viva.
- Então por que ela não esmagou seu coração?
Ele deslizou as mãos pela minha cintura, segurou-me contra seu corpo e me embalou. Deixei-me ficar na curva dos braços, no calor sólido do corpo de Roane.
- O duelo com ela foi depois do duelo com Arzhul e, quando a esfaqueei, eu acho que ela entrou em pânico. Resolveu encerrar o duelo sem morte no final.
Ele encostou o rosto no meu, e ficamos observando nossas cores se misturando, pele com pele.
- Foi o último duelo, então - ele disse.
- Não.
Ele beijou meu rosto, bem de leve.
- Não.
- Não. Houve mais um.
Virei de frente para ele, e nossos lábios se tocaram, não foi exatamente um beijo.
- O que aconteceu? - ele perguntou com o hálito na minha boca.
- Bleddyn tinha sido da Corte Abençoada, antes de fazer uma coisa tão terrível que ninguém menciona, e então foi expulso. Mas ele era tão poderoso que a Corte Profana o recebeu. Seu verdadeiro nome se perdeu, e ele se tornou Bleddyn. Significa lobo ou fora da lei, ou significava isso muito tempo atrás. E queria dizer que ele era fora da lei mesmo na Corte Profana.
Roane beijou meu pescoço, a artéria latejante. Meu coração se acelerou com aquele leve toque. Ele levantou a cabeça e perguntou:
- De que maneira ele era fora da lei? Ele voltou a beijar meu pescoço.
- Ele era dado a fúrias horríveis sem nenhum motivo. Se não estivesse cercado de imortais, teria matado muita gente, inimigos e amigos.
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Roane beijou meu ombro, depois meu braço. Parou um pouco só para fazer outra pergunta.
- Apenas ataques de fúria?
Então ele abaixou a cabeça e foi beijando até encontrar a dobra do meu braço. Ergueu meu braço para poder encaixar a boca na pele frágil. Sugou de repente, com força, enfiando os dentes na pele até doer e me fazer engasgar. Roane não ligava para dor, mas era um amante consciencioso, que sabia do que eu gostava, como eu também sabia do que ele gostava. Só que de repente não pude mais me concentrar no que estava dizendo.
Ele afastou o rosto do meu braço e deixou uma marca redonda, quase perfeita, dos seus dentes pequenos e pontudos. Não tinha arranhado a pele. Nunca consegui convencê-lo a ir tão longe, mas gostei da marca na minha pele e me inclinei sobre ele.
Ele me impediu e perguntou:
- Eram apenas ataques de raiva, ou havia outras coisas que tornavam Bleddyn perigoso?
Levei um segundo para lembrar. Tive de me afastar de Roane.
- Se quer ouvir a história, precisa se comportar.
Ele deitou de lado, com a cabeça apoiada no braço dobrado. Esticou o corpo para eu poder observar o movimento dos músculos sob a pele cintilante.
- Achei que estava me comportando. Balancei a cabeça.
-Vai acabar fazendo com que eu me solte, Roane. Nada bom para você.
- Quero você esta noite, Merry. Quero você toda, sem glamour, sem se esconder, sem se controlar.
Ele sentou de repente, examinou meu rosto com tanta intensidade que tive de recuar, mas ele agarrou meu braço.
Quero ser o que você precisa esta noite, Merry.
Balancei a cabeça outra vez.
Você não entende o que está dizendo.
- É, não entendo, mas se você quer ter tudo uma vez, deve ser esta noite.
Ele agarrou meu outro braço, puxou-me, e ficamos os dois ajoelhados. Apertou-me com tanta força que eu soube que no dia
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seguinte teria manchas roxas. Aquele movimento violento fez meu coração bater mais rápido.
- Já vivi séculos, Merry. Se alguém aqui é criança, esse alguém é você, não eu.
A voz dele era firme, e eu nunca tinha visto Roane assim, tão determinado, tão exigente.
Eu podia ter reclamado "Você está me machucando, Roane" mas como gostei dessa parte, em vez disso eu disse:
- Não está parecendo você.
- Eu sabia que você mantinha seu glamour ativo mesmo quando estávamos na cama, mas nunca sonhei que pudesse esconder tanto. - Ele me sacudiu duas vezes, com tanta força que eu quase disse que estava me machucando. - Não se esconda, Merry.
Então ele me beijou, forçou os lábios contra os meus e se eu não cedesse e abrisse a boca teríamos ferido os lábios nos dentes. Roane forçou-me a deitar na cama, e eu não gostei. Gostava de dor, não de estupro.
Fiz Roane parar pondo a mão no peito dele, empurrando-o para longe. Ele continuou em cima de mim, com um olhar estranhamente concentrado, mas prestou atenção no que eu disse.
- O que está tentando fazer, Roane?
- O que aconteceu no seu último duelo?
A mudança de assunto foi rápida demais para mim.
- O quê?
- O seu último duelo. O que aconteceu?
A voz dele, a expressão, era tudo muito sério e enquanto isso Roane apertava o corpo contra o meu.
- Eu o matei.
- Como?
De alguma forma eu soube que ele não estava perguntando sobre a mecânica da morte.
- Ele me subestimou.
- Eu nunca subestimei você, Merry. Não faça isso comigo. Não me trate como se eu fosse menor só porque não sou encantado. Sou resultado de um elfo sem uma gota de sangue mortal nas veias. Não tenha medo por mim.
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A voz dele estava normal outra vez, mas ainda havia por trás uma aflição violenta.
Vi orgulho na expressão dele, não orgulho masculino, mas orgulho de elfos. Eu o estava tratando como menos do que um elfo e ele não merecia isso, mas... E se eu o machucar sem querer?
- Eu me curo - ele disse.
Eu sorri porque naquele momento amei Roane, não aquele amor que os bardos cantam, mas mesmo assim, amor.
- Está bem, mas vamos escolher uma posição em que você domine, não eu.
Um pensamento passou pelos olhos dele.
- Você não confia em você mesma.
- É, não confio - eu disse.
- Então confie em mim. Eu não quebro.
- Jura? - eu disse.
Ele sorriu, beijou minha testa, suavemente, como se beija uma criança.
- Juro.
Acreditei na palavra dele.
E acabei agarrada às barras frias de metal da cabeceira da cama. O corpo de Roane me prendia à cama, com o pênis aninhado nas minhas nádegas. Era uma posição que lhe dava bastante controle e que mantinha a maior parte do meu corpo de costas para ele. Não podia tocá-lo com as mãos. Não podia fazer muitas coisas naquela posição, por isso a escolhi. Para não ter de ser amarrada, aquilo foi a coisa mais segura que consegui pensar, e Roane não gostava de amarras. Além do mais, os verdadeiros perigos não tinham nada a ver com mãos ou dentes, ou qualquer coisa exclusivamente física. Amarras não teriam ajudado mesmo, só serviriam para me fazer lembrar que tinha de tomar cuidado. Tive muito medo de que em algum ponto da confusão de poder e de carne eu esquecesse tudo que não fosse prazer, e Roane sofresse por isso. E estou me referindo ao sofrimento bom.
Assim que ele me penetrou eu soube que estava encrencada. Ele era assustador, com o torso elevado apoiado nas mãos para
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poder entrar em mim com toda a força das costas e dos quadris. Tinha visto Roane socar a porta de um carro uma vez, para mostrar para um candidato a assaltante que nós não valíamos o esforço. Era como se ele quisesse se enfiar no meu corpo e sair do outro lado. E entendi uma coisa pela primeira vez. Roane pensava que eu era humana com sangue encantado, mas ainda assim humana. Ele era cuidadoso comigo como eu era com ele. A diferença era que eu temia que a minha mágica pudesse prejudicá-lo, e ele temia a própria força física. Esta noite ninguém ia se segurar, não haveria rede de segurança para nenhum dos dois. Pela primeira vez entendi que quem podia sair machucada era eu, não Roane. Sexo com gosto de perigo real, não existe nada igual. Acrescente mágica capaz de fundir a pele, e a noite prometia ser muito boa.
O corpo dele engatou em um ritmo, entrando e saindo. Toda vez que ele me penetrava ouvíamos o barulho de carne batendo em carne. Era isso, era isso que eu queria havia tanto tempo. Ele tomou meu corpo, e eu senti a primeira onda de prazer. De repente fiquei preocupada de Roane me fazer gozar antes de a mágica poder crescer.
Abri minha pele metafísica como abria minhas pernas, mas em vez de deixar que ele entrasse em mim, fui eu que entrei nele. Abri sua aura, sua mágica, como ele abrira o zíper do meu vestido mais cedo. O corpo dele começou a afundar no meu, não fisicamente, mas o efeito era espantosamente semelhante. Ele hesitou e parou com o corpo dentro do meu. Senti o coração dele acelerar, não pelo esforço físico, mas de medo. Ele saiu de mim completamente e por um segundo pensei que ia parar, que tudo ia parar. Então ele penetrou em mim outra vez e foi como se entregasse totalmente, a mim, a nós, à noite.
O brilho âmbar e de luar das nossas peles se expandiu, ficamos nos movendo dentro de um casulo de luz, de calor, de poder. Cada investida do corpo dele fazia aumentar o poder. Cada estremecimento do meu corpo embaixo dele atraía a mágica como um para-choque em volta de nós, hermético, sufocante. Eu sabia que estava tentando trazê-lo para dentro de mim, não o pênis, mas Roane inteiro, e minha mágica queria sorvê-lo. Apertei os dedos
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nas barras de metal da cama até doer e me fazer pensar novamente. Roane deixou o corpo cair em cima do meu, o peito e a barriga sobre as minhas costas, o pênis entre as coxas. Ele não podia receber muito poder naquela posição, mas a mágica explodiu entre nós ao toque de tanta pele. Nossos corpos se fundiram como tinha acontecido com nossas mãos antes, e senti Roane afundando nas minhas costas até nossos corações se encontrarem, adejando juntos numa dança mais íntima do que qualquer coisa que tivemos antes.
Nossos corações passaram a bater juntos, cada vez mais, até o ritmo ficar idêntico. Éramos um só coração, um só corpo, um único ser, e eu não sabia mais onde eu terminava e onde Roane começava. Foi naquele momento de união quase perfeita que ouvi o mar pela primeira vez. Um quebrar suave e murmurante das ondas na praia. Flutuei sem corpo, sem forma, num lugar brilhante e cheio de luz onde havia apenas o bater dos nossos corações unidos, para eu saber que ainda era de carne e osso e não pura mágica. E nesse lugar brilhante, sem forma, sem corpos para nos limitar, ouvi o barulho de água correndo, fluindo, derramando. O barulho do oceano seguia as batidas dos nossos corações, preenchia aquele lugar iluminado. As batidas dos nossos corações afundaram nas ondas. Fomos cada vez mais fundo, num círculo ofuscante de luz, embaixo d'água, e não existia medo. Tínhamos chegado em casa. Cercados pela água de todos os lados, eu sentia a pressão das profundezas apertando nossos corações, como se fosse nos esmagar, mas sabia que isso não aconteceria. Roane sabia que não aconteceria. O pensamento, pensamentos separados, nos fez subir, subir até a superfície do oceano invisível que nos embalava. Tive uma sensação de frio intenso e senti medo. Roane não. Ele estava em êxtase. Chegamos à superfície e, embora eu soubesse que continuava presa à cama no apartamento dele, senti o ar batendo no meu rosto. Respirei bem fundo e de repente percebi que o mar estava morno. A água estava bem morna, mais do que sangue, quase quente.
De repente, tomei consciência do meu corpo de novo. Senti o corpo de Roane dentro de mim. Mas o turbilhão da correnteza
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do oceano morno fluía sobre nós. Meus olhos me diziam que ainda estava na cama, agarrada à cabeceira, mas eu sentia a água tépida em volta de nós. O mar invisível encheu a luz brilhante dos nossos corpos misturados como se fôssemos um aquário de peixes, o oceano contido em nosso poder que era o vidro metafísico. Nossos corpos eram como os pavios de velas que flutuavam, presos na água e no vidro, fogo, água e carne. Nossos corpos foram ficando mais concretos, mais sólidos. A sensação do mar invisível foi desaparecendo. A luz da nossa pele foi encolhendo de volta para o invólucro da nossa pele. Então o prazer nos dominou, e o calor que havia na água, na luz, despencou sobre nós. Nós dois gritamos. O calor virou febre, tomou tudo em mim, transbordou pela pele, pelas mãos. Ruídos escaparam da minha boca, primitivos demais para serem gritos. O corpo de Roane corcoveou contra o meu, e a mágica nos segurou, arrancou de mim o orgasmo até eu sentir o metal da cabeceira da cama começar a derreter nas mãos. Roane gritou, mas não foi um grito de prazer. Finalmente, enfim, estávamos livres. Ele rolou para o lado e ouvi quando caiu no chão. Virei-me, ainda de barriga para baixo.
Ele estava caído de lado, com uma mão estendida para cima, para mim. Vi rapidamente o rosto dele, olhos arregalados e apavorados, então uma pele lustrosa cobriu aquele rosto, e ele desmoronou numa agitação de pele lisa.
Sentei na cama e estendi a mão para ele, mas sabia que não podia fazer nada. Havia uma foca no chão do apartamento. Uma grande foca com pele avermelhada, olhando para mim com os olhos castanhos de Roane. A única coisa que fiz foi olhar para ele. Não havia palavras.
A foca moveu-se desajeitada para a cama, então uma dobra que não existia antes se abriu na barriga do animal, e Roane saiu engatinhando. Ele se levantou, com a nova pele nos braços. Olhou para mim com ar de deslumbramento. Ele estava chorando, mas acho que não sabia.
Fui até ele, toquei na pele, toquei nele, como se nenhum dos dois fosse real. Abracei Roane e senti com as mãos que as costas
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dele estavam inteiras, intocadas, a pele tão lisa e perfeita como todo o resto. As cicatrizes de queimadura tinham sumido.
Ele vestiu a pele de novo antes de eu poder dizer qualquer coisa. A foca olhou para mim e andou pelo quarto com movimentos lentos, quase como uma cobra. Roane saiu da pele outra vez. Virou para mim e começou a dar risada.
Ele me agarrou pelas coxas, levantou-me acima da cabeça e nos embrulhou com a pele. Dançou pelo quarto rindo, e as lágrimas ainda não tinham secado em seu rosto. Eu chorava, também, e ria.
Roane caiu na cama e me derrubou junto, deitado em cima da sua pele de foca. De repente senti um cansaço enorme, imenso. Precisava tomar um banho e partir. Eu não brilhava mais. Tinha quase certeza de que podia usar o glamour outra vez. Mas não conseguia manter os olhos abertos. Só tinha ficado bêbada uma vez na vida, e tinha desmaiado. Era isso que estava acontecendo. Eu já ia desmaiar de tantas Lágrimas de Branwyn, ou então de tanta mágica.
Adormecemos abraçados, com a pele em volta. A última coisa que pensei antes de cair no sono, mais profundo do que qualquer coisa natural, não foi na minha segurança. A pele era quente, tão quente quanto os braços de Roane em volta de mim, e eu sabia que a pele também era viva, uma parte dele. Mergulhei na escuridão encolhida sob pedaços do calor de Roane, da mágica de Roane, do amor de Roane.
Uma voz dizia baixinho: "Merry, Merry." Alguém acariciava meu rosto e alisava meu cabelo para trás. Virei, apoiei o rosto naquela mão e abri os olhos. Mas a luz do teto estava acesa e fiquei ofuscada um tempo. Levantei a mão para proteger os olhos e rolei de lado, com o rosto afundado no travesseiro. E consegui falar:
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- Apague a luz.
Senti a cama mexer, e um segundo depois a linha de luz por baixo do travesseiro sumiu. Levantei a cabeça e vi o quarto na mais perfeita escuridão. Era quase de manhã quando Roane e eu adormecemos. Devia ser dia claro lá fora. Sentei na cama, espiei a escuridão em volta. Não me surpreendi de ver Jeremy parado ao lado do interruptor. Nem me dei ao trabalho de procurar Roane. Sabia onde ele estava. Estava no mar com sua nova pele. Ele não me abandonou desprotegida, mas me abandonou. Isso talvez devesse me magoar, mas não magoou. Eu dera de volta a Roane seu primeiro amor, o mar.
Há um velho ditado que diz: nunca fique entre um encantado e sua mágica. Roane estava nos braços do seu amor, e não era eu. Podemos nunca mais nos ver, e ele nem se despediu. Mas eu sabia que se um dia precisasse dele, podia ir até o mar e chamá-lo, que ele viria. Ele só não podia me dar amor. Eu amava Roane, mas não estava apaixonada por ele. Sorte minha.
Ajoelhei, nua, nos lençóis amassados e olhei para as janelas negras.
- Quanto tempo nós dormimos?
- São oito horas da noite de sexta-feira. Desci da cama.
- Ai, meu Deus.
- Imagino que você ainda estar na cidade depois de escurecer não é bom.
Olhei para ele espantada.
- O que acha que vai acontecer?
Não consegui disfarçar a desconfiança na minha voz. Jeremy deu risada.
- Não se preocupe. Não fiz ligação nenhuma, mas tenho certeza de que a polícia fez, a essa altura. Eu não sei por que você andou se escondendo todo esse tempo, mas se está fugindo dos sluagh, dos Host, então está muito encrencada.
"Sluagh" era um palavrão que designava os encantados profanos mais baixos. Host era o nome educado. Grosseiro primeiro, a
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educação só foi lembrada depois. Ora... só outro profano podia dizer "sluagh" sem que fosse um insulto mortal.
- Eu sou uma princesa da Corte Profana. Por que estaria fugindo deles?
Ele encostou na parede.
- A questão é essa, não é?
Mesmo do outro lado do quarto, no escuro, eu sentia o peso do olhar dele, a intensidade. Era falta de educação um encantado fazer perguntas diretas para outro, mas ele queria perguntar. Dava para sentir as perguntas que não eram feitas como uma coisa palpável no espaço entre nós.
- Seja uma boa menina e vá para o chuveiro. - Ele pegou uma sacola no chão, perto dos seus pés. - Trouxe roupas para você. A van está lá embaixo, com Ringo e Uther. Vamos levá-la ao aeroporto.
- Pode ser muito perigoso me ajudar, Jeremy.
- Então se apresse.
- Não estou com o meu passaporte.
Ele jogou um pacote pequeno de papel sobre a cama. Era o pacote de documentos que ficava grudado embaixo do banco do meu carro. Ele levara minha nova identidade.
- Como soube?
- Você se escondeu das autoridades humanas, dos seus... parentes e dos capangas deles por três anos. Você não é burra. Sabia que seria encontrada, por isso tinha um plano de fuga. Devo dizer que da próxima vez é melhor esconder os documentos secretos em outro lugar. Foi um dos primeiros em que procurei.
Olhei para o pacote e depois para ele.
- Não era só isso que tinha embaixo do banco.
Ele abriu o paletó como um modelo na passarela exibindo a camisa e a gravata. Mas o que ele mostrava era a arma enfiada na cintura da calça. Era apenas uma forma mais escura contra a brancura da camisa dele, mas eu sabia que era uma LadySmith nove milímetros, porque era a minha arma. Ele tirou um pente extra de um bolso.
- A caixa com a munição está na sacola com as suas roupas.
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Jeremy pôs a pistola em cima do pacote de papel e recuou para o outro lado da cama, de modo que ela ficou entre nós.
- Você parece nervoso, Jeremy.
- E não devia estar?
- Nervoso por minha causa. Nunca pensei que ficaria impressionado com a realeza.
Observei a expressão dele, tentei ver o que havia por trás, mas não consegui. Ele estava escondendo alguma coisa. Jeremy levantou a mão.
- Vamos dizer que as Lágrimas de Branwyn têm um longo prazo de validade. Vá tomar seu banho.
- Não estou mais sentindo o poder do feitiço.
- Bom para você, mas confie em mim, vá tomar uma chuveirada.
- Você está perturbado de me ver nua. Ele fez que sim com a cabeça.
- Peço desculpas, mas é por isso que Ringo e Uther estão lá embaixo. Apenas por precaução.
Sorri para ele e senti vontade de chegar mais perto, diminuir um pouco aquela distância cautelosa. Eu não queria Jeremy daquele jeito, mas a vontade de saber que poder eu tinha sobre ele se impunha, como um pensamento sinistro. Não era do meu feitio perder a linha com um amigo. Com um inimigo, talvez, mas não com um amigo. Seria algum resíduo da noite anterior, ou de fato as Lágrimas estavam me afetando mais do que eu imaginava?
Parei de pensar nisso. Simplesmente dei meia-volta e fui para o banheiro. Uma chuveirada rápida e então, para o aeroporto.
Vinte minutos depois eu estava pronta, com o cabelo ainda molhado. Vesti uma calça azul-marinho, blusa de seda verde-esmeralda e um paletó azul-marinho que combinava com a calça. Jeremy também tinha selecionado para mim sapatos pretos de salto baixo e meias pretas compridas. Como não tenho nenhum outro tipo de meias, não me importei com isso. Mas quanto ao resto...
- Da próxima vez que pegar roupas para eu salvar a minha vida, inclua uns ténis de corrida. Sapatos de couro, por mais que o salto seja baixo, não são feitos para isso.
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- Eu nunca tenho problema com sapato social - ele disse.
Ele estava recostado em uma das cadeiras de espaldar reto da cozinha. Fazia com que a cadeira parecesse confortável e estava elegante sentado nela. Jeremy tinha um controle extraordinário, meio tenso e moderno, mas não podia ser comparado a um gato. Só que foi um gato que me veio à cabeça quando o vi enroscado na cadeira. Apesar de os gatos não fazerem pose, pois são assim naturalmente. Jeremy estava definitivamente fazendo pose, tentando parecer à vontade e não conseguindo.
- Sinto ter esquecido sua lente de contato castanha. Não que isso seja problema. Gosto desses olhos verde jade, atraentes. Combinam com a blusa mas são muito humanos. Eu teria deixado mais vermelho no cabelo, menos castanho-escuro.
- Cabelo vermelho se destaca muito, mesmo numa multidão. Glamour é para ajudar a esconder, não destacar.
- Conheço muitos encantados que usam glamour apenas para chamarem atenção, para ficarem mais bonitos, mais exóticos.
Dei de ombros.
- Isso é problema deles. Eu não preciso de propaganda. Jeremy se levantou.
- Depois de todo esse tempo, eu nunca imaginei que você fosse encantada. Pensei que era fada, autêntica, e que se escondia por algum motivo, mas jamais adivinhei a verdade.
Ele se afastou da mesa com as mãos dos lados do corpo. A tensão que havia nele desde a hora que me acordou vibrava no ar.
- Isso incomoda você, não é? Ele fez que sim.
- Eu sou o tal grande mágico. Devia ter visto através da ilusão. Ou será que isso é uma ilusão também? Você é melhor mágica do que eu, Merry? Escondeu sua magia também?
Pela primeira vez senti o poder crescendo em volta dele. Podia ser apenas um escudo protetor. Mas também podia ser o início de algo mais.
Encarei Jeremy com as mãos ao lado do corpo, pés separados, imitando a pose dele. Invoquei o meu poder lentamente, com muito cuidado. Se fôssemos pistoleiros, ele já teria sacado sua arma,
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mas não estaria apontando ainda. Eu procurava manter a minha no coldre. Depois daquele tempo todo, era de se imaginar que eu não confiaria em absolutamente ninguém, mas é que não podia acreditar que Jeremy era meu inimigo.
- Não temos tempo para isso, Jeremy.
- Pensei que poderia tratá-la como se nada tivesse mudado, mas não posso. Preciso saber.
- Saber o quê, Jeremy?
- Eu quero saber quanto dos últimos três anos foi uma mentira.
Senti o poder pulsando em volta dele, preenchendo aquele pequeno espaço que era sua aura pessoal. Ele bombeava muito poder em seu escudo protetor. Muito poder.
Meus escudos estão sempre a postos, fechados e carregados para me defender. Para mim isso era automático. Tão automático que a maioria das pessoas, mesmo as mais sensíveis, confundia a proteção com meu nível normal de poder. E isso queria dizer que eu enfrentava Jeremy com escudos na potência máxima. Não precisava fazer nada para aumentá-los. E o fato era que meu escudo de proteção era melhor do que o dele. Meus feitiços ofensivos, por outro lado, bem... eu tinha visto Jeremy fazer mágica. Ele nunca atravessou meus escudos, mas eu nunca consegui machucá-lo com mágica. Aquilo ia acabar em golpes ou armas. Eu esperava que não acabasse em nada.
- A carona até o aeroporto ainda está de pé, ou você mudou de ideia enquanto eu estava no chuveiro?
- A carona para o aeroporto continua de pé - ele disse. Quase todos os encantados conseguem ver mágica em cores ou formas, mas eu nunca fui capaz disso. Posso apenas sentir, e Jeremy estava entupindo o quarto com toda a energia que jogava em seus escudos.
- Então para que essa viagem de poder?
- Você é encantada. Você é da Corte Profana dos encantados. Isso é apenas um degrau acima de ser membro da sluagh.
O sotaque escocês de Jeremy permeou todas as frases. Eu nunca tinha ouvido ele perder o sotaque de americano-puro-do-meio-de-lugar-nenhum. Isso me deixou nervosa, porque muitos
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encantados se orgulhavam de manter seus sotaques originais, fossem quais fossem.
- E quer dizer o quê, com isso?
Mas eu tinha o pressentimento desanimador de que sabia aonde ele queria chegar. E quase preferi uma luta.
- Os profanos vivem de fraudes. Não se pode confiar neles.
- Não sou confiável, Jeremy? Três anos de amizade significam menos para você do que velhas histórias?
Algum pensamento amargo cruzou a expressão dele.
- Não são histórias - ele disse, e mais uma vez o sotaque ficou forte. - Eu fui expulso, quando era menino, das terras dos crentes. A Corte Abençoada não se dignava a notar um garoto crente, mas a Corte Profana aceita a todos.
Sorri, pois não tive tempo de me conter.
- A todos não.
Acho que Jeremy não entendeu o sarcasmo.
- É, a todos não.
Ele estava com tanta raiva que as mãos começaram a tremer de leve. E eu estava prestes a pagar a conta de um ressentimento de séculos. Não seria a primeira vez. Provavelmente não seria a última, mas mesmo assim fiquei furiosa. Não tínhamos tempo para aquele ataque de agressividade dele, que dirá um dos meus.
- Sinto muito que meus ancestrais tenham cometido essa violência contra você, Jeremy, mas foi antes do meu tempo. A Corte Profana tem o mesmo publicitário quase a minha vida inteira.
- Para espalhar mentiras - ele disse com sotaque tão carregado que saiu um som gutural.
- Você quer comparar cicatrizes?
Tirei a blusa de dentro da calça e deixei Jeremy ver a marca de mão nas minhas costelas.
- Ilusão - ele disse, mas parecia inseguro.
- Pode tocar nela, se quiser. Glamour engana a visão, mas não o tato, não para outro encantado.
Na melhor das hipóteses isso era meia verdade, porque eu Podia usar o glamour para enganar todos os sentidos, até para outro encantado, só que não era uma habilidade comum nem entre
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os encantados, e eu estava apostando que Jeremy ia acreditar em mim. As vezes uma mentira plausível é mais eficiente do que uma verdade indesejada.
Ele veio andando na minha direção bem devagar, com a desconfiança estampada no rosto. Meu peito ficou apertado ao ver aquele olhar de Jeremy. Ele espiou a cicatriz mas não se aproximou mais para poder tocar nela. Jeremy sabia que a mágica pessoal mais poderosa de um encantado era ativada pelo toque, então conhecia os encantados mais intimamente do que eu pensava.
Suspirei e cruzei os dedos sobre a cabeça. A blusa cobriu a cicatriz de novo, mas achei que Jeremy podia afastar o tecido. Ele ficou olhando para mim quando chegou mais perto. Tocou na seda verde mas olhou fixo nos meus olhos um longo tempo antes de levantar a blusa, como se quisesse ler meus pensamentos. Eu tinha adotado de novo aquela expressão normal, bem-educada, um pouco entediada e vazia que aperfeiçoara na corte. Podia observar um amigo sendo torturado, ou enfiar uma faca na barriga de alguém com aquela mesma expressão. Não há como sobreviver na corte se seu rosto trai suas emoções.
Jeremy levantou a blusa lentamente, sem tirar os olhos do meu rosto. Acabou tendo de olhar para baixo, e tomei todo o cuidado de não me mexer, nem o menor movimento, para não assustá-lo. Detestava ver que Jeremy Grey, meu amigo e chefe, me tratava como uma pessoa muito perigosa. Se ele soubesse como eu era inofensiva...
Ele passou a ponta dos dedos na pele enrugada e um pouco alta.
- Há mais cicatrizes nas minhas costas, mas acabei de me vestir; por isso, se não se importar, só vou mostrar essa.
- Por que não vi nada quando você estava nua, ou na minha sala arrumando o microfone?
- Eu não quis que vocês vissem, mas não faço nada para escondê-las quando estão cobertas pelas roupas.
- Jamais desperdice energia mágica - ele disse, como se falasse sozinho.
Jeremy balançou a cabeça, parecia que ouvia alguma coisa que eu não estava ouvindo. Ele olhou para mim intrigado.
- Nós não temos tempo para ficar aqui parados discutindo, temos?
- Eu não disse isso?
- Merda - ele disse. - É um feitiço de insatisfação, desconfiança, discórdia. Significa que eles estão chegando.
O rosto dele virou uma máscara de medo.
- Eles ainda podem estar muito longe, Jeremy.
- Ou podem estar aí na porta - ele disse.
Jeremy talvez tivesse razão. Se eles tivessem chegado, o melhor seria chamar a polícia e esperar a ajuda. Eu não diria que os bandidos profanos estavam escondidos de tocaia, mas tinha certeza de que se falasse com o detetive Alvera e dissesse que a Princesa Meredith estava prestes a ser assassinada no território dele, ele enviaria reforços.
Só que se fosse possível, eu preferia escapulir dali. Tinha de saber o que havia lá fora.
Jeremy olhava para mim com uma expressão estranha.
- Você pensou em alguma coisa. O que foi?
- A Hoste não é composta de encantados, exceto um ou dois enviados como mestres da caçada. Faz parte do horror de ser caçado por eles. Eu talvez não consiga encontrar os encantados se eles não quiserem ser encontrados, mas o resto da Hoste eu consigo.
Ele fez um movimento largo com as mãos.
- Então faça isso.
Jeremy não protestou. Não perguntou se eu podia fazer isso, nem se era seguro. Ele simplesmente aceitou. Não estava mais agindo como o meu chefe. Eu era a Princesa Meredith NicEssus e se dizia que podia vasculhar a noite à procura da Hoste, ele acreditava em mim. Jamais teria acreditado em Merry Gentry, não sem provas.
Eu me lancei, mantendo os escudos de proteção, jogando meu Poder num raio em volta. Era perigoso, porque se eles estivessem ali em cima de nós aquela abertura seria tudo de que iam precisar
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para me dominar, mas era a única maneira de saber se estavam por perto. Senti Uther e Ringo lá fora, senti os seres e a mágica dos dois. Havia a força do mar e uma vibração na terra, a magia de todas as coisas vivas, e nada mais. Ampliei o alcance mais e mais. Quilómetro após quilómetro não achei nada, então lá, quase no extremo do meu limite, alguma coisa pressionou o ar como uma tempestade abrindo caminho, mas não era uma tempestade, pelo menos não uma tempestade de vento e de chuva. Estava longe demais para eu sentir bem que criaturas vinham junto com os encantados, mas isso bastou. Ainda tínhamos algum tempo.
Voltei para dentro dos meus escudos e firmei-os no lugar novamente.
- Estão a quilómetros daqui.
- Então como foi que fizeram o feitiço da discórdia?
- Minha tia pode ter sussurrado no vento da noite, e o feitiço viria encontrar seu alvo.
- De Illinois?
- Pode levar um dia ou três, mas sim, de Illinois. Não fique tão preocupado. Ela jamais sujaria as próprias mãos com essas missões de busca e transporte. Ela pode me querer morta, mas não à distância. Vai querer fazer de mim um exemplo e, para isso, eles têm de me levar para casa.
- Quanto tempo nós temos? Balancei a cabeça.
- Uma hora, talvez duas.
- Então podemos levá-la até o aeroporto a tempo. Ajudá-la a sair da cidade é a única coisa que posso oferecer. Um mágico encantado, que não estava nem no lugar, me manteve fora da casa de Alistair Norton. Eu não posso quebrar a mágica encantada, por isso não vou poder ajudá-la nisso.
- Você enviou as aranhas através da proteção na casa de Norton. Você avisou para eu me esconder embaixo da cama. Você foi ótimo.
Ele olhou de lado para mim.
- Eu pensava que você tinha criado as aranhas. Ficamos um momento só olhando um para o outro.
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- Não fui eu - eu disse.
- Eu também não - ele disse baixinho.
- Eu sei que isso é um cliché, mas se não foi você, e se não fui eu... - não completei a frase.
- Uther é incapaz de fazer uma coisa dessas.
- Roane não faz mágica ativa - eu disse.
De repente senti frio e não tinha nada a ver com a temperatura. Um de nós tinha de dizer aquilo em voz alta:
- Então quem foi? Quem me salvou? Jeremy balançou a cabeça.
- Eu não sei. Os profanos às vezes podem ser seus amigos antes de destruí-lo.
- Não acredite em todas as histórias que ouve, Jeremy.
- Não é uma história.
A raiva fez essas palavras simples soarem inflamadas e desagradáveis. De repente, percebi que ele estava com muito medo. A raiva era disfarce do medo. Todas as reações dele tinham um gosto pessoal. Ele não tinha medo apenas de um modo geral. Era específico, baseado em algo além de histórias ou lendas.
-Você já esteve perto, algum contato pessoal com a Hoste?
Ele fez que sim com a cabeça e destrancou a porta.
- Podemos ter apenas uma hora. Vamos dar o fora daqui. Pus a mão na porta e impedi Jeremy de abri-la.
- Isso é importante, Jeremy. Se você já serviu a um deles, então esse encantado terá... poder sobre você. Preciso saber o que foi feito.
Jeremy fez uma coisa que eu não esperava. Começou a desabotoar a camisa.
Arqueei as sobrancelhas.
- Você não está sob efeito das Lágrimas de Branwyn até agora, está?
Ele sorriu, não seu sorriso habitual, mas mesmo assim um Progresso.
- Um membro da Hoste ficou meu amigo no passado uma vez. Ele deixou o colarinho abotoado mas desabotoou o resto, tirou o paletó, dobrou sobre um braço e virou de costas para mim.
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- Levante a camisa.
Eu não queria levantar a camisa. Já tinha visto o que os meus parentes podiam fazer quando usavam criatividade. Havia muitas possibilidades horríveis que eu não queria ver gravadas na carne de Jeremy. Mas levantei o tecido cinza e leve porque precisava saber. Não engasguei porque não estava preparada. E um grito seria exagero.
As costas dele estavam cobertas de cicatrizes de queimadura, como se alguém tivesse encostado um ferro em brasa várias vezes. Só que esse ferro tinha a forma de mão. Toquei nas cicatrizes, como Jeremy tinha feito com as minhas, de leve, desenhando com a ponta dos dedos. Ia pôr a mão sobre uma das marcas de mão, hesitei e avisei.
- Quero pôr a minha mão sobre uma das cicatrizes para ver o tamanho.
Ele fez que sim com a cabeça.
A mão era muito maior do que a minha, maior do que a marca no meu corpo também. Era a mão de um homem, com os dedos mais grossos do que os da maioria dos encantados.
- Você sabe o nome de quem fez isso?
- Tamlyn - ele disse.
Jeremy parecia constrangido e devia estar mesmo.
Tamlyn era o codinome mais comum dos apelidos dos magos. Tamlyn, junto com Robin Goodfellow e um punhado de outros, eram as identidades falsas preferidas quando tinham de esconder seus verdadeiros nomes.
- Você devia ser muito jovem para não suspeitar de nada quando ele deu esse nome - eu disse.
Ele fez que sim com a cabeça de novo.
- Eu era.
- Posso dar uma olhada na sua aura?
Ele virou a cabeça e sorriu para mim. O movimento enrugou a pele das costas e criou outras formas com as cicatrizes.
- Aura é uma palavra da Nova Era. Os encantados não costumam usar.
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- Poder pessoal, então - eu disse, mas estava hipnotizada com as costas dele.
Tirei a camisa de cima dos ombros.
- Você estava amarrado quando fizeram isso?
- Estava, por quê?
- Pode botar as mãos na posição em que ficaram quando estava amarrado?
Ele respirou como se fosse perguntar por quê, mas acabou apenas levantando as mãos acima da cabeça e foi para a porta, onde encostou o corpo todo. Levantou os braços até onde iam, ligeiramente inclinados para fora, formando um Y.
A camisa tinha voltado para o lugar e tive de levantá-la de novo. Quando fiz isso, vi o que pensava que ia ver. As queimaduras em forma de mão tinham formado uma imagem. Era a imagem de um dragão, ou talvez, mais especificamente, do dragão-serpente, comprido e sinuoso. Parecia vagamente oriental por causa da forma da mão, mas era certamente um dragão. As queimaduras só formavam aquele desenho porque Jeremy estava na posição exata de quando foi torturado. Ao abaixar os braços, ficavam apenas cicatrizes.
- Pode abaixar os braços - eu disse.
Ele abaixou e se virou para poder olhar para mim. Pôs a camisa para dentro da calça. Acho que nem percebeu o que estava fazendo.
- Você está muito séria. O que foi que viu nas queimaduras, que ninguém mais viu?
- Não ponha a camisa para dentro da calça ainda, Jeremy. Preciso botar uma proteção nas suas costas.
- O que você viu, Merry?
Ele parou de mexer na camisa, mas não a tirou de dentro da calça para mim.
Balancei a cabeça. Jeremy carregava aquelas cicatrizes havia séculos e nunca soube que o encantado tinha feito uma mágica na carne dele. Era tanto desprezo pela vítima, uma crueldade que era difícil de aceitar. Claro que podia ser muito prática, uma crueldade objetiva, por assim dizer. O encantado, quem quer que fosse, podia ter Posto um feitiço nas queimaduras. Talvez pudessem invocar
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um dragão da carne dele, ou fazê-lo mudar de forma e virar um. Não devia ser isso, mas era melhor não arriscar.
- Deixe-me por a proteção nas suas costas, depois eu conto, quando descermos para a van.
- E temos tempo? - ele perguntou.
- Claro. Afaste a camisa para desnudar as queimaduras. Parecia que ele não estava acreditando em mim, mas quando o fiz virar de frente para a porta, ele não protestou. Segurou a camisa de seda para eu poder trabalhar.
Espalhei poder nas mãos como calor entre as palmas em concha. Abri as mãos devagar, com as palmas viradas para as costas de Jeremy. Cheguei até bem perto da pele dele. Aquele calor tremulante acariciou as costas dele, e Jeremy estremeceu.
- Que runas você está usando? - ele perguntou, um pouco ofegante.
- Nenhuma - eu disse.
Espalhei o poder quente nas cicatrizes. Ele ia virar.
- Não se mexa.
- Como assim? Você não está usando runas? O que mais pode usar?
Tive de me ajoelhar para ter certeza de que o feitiço ia cobrir todas as cicatrizes. Quando me assegurei de que tudo estava coberto, selei a mágica, visualizando o poder como uma capa de luz amarela logo acima da pele. Fechei as extremidades desse brilho para grudar bem na pele dele como um escudo.
A respiração de Jeremy soou trémula e ofegante.
- O que está usando, Merry?
- Mágica - eu disse e me levantei.
- Posso abaixar a camisa?
- Pode.
A seda cinza voltou para o lugar, e a proteção estava tão sólida na minha visão mental que achei que o tecido ia enrugar em cima da mágica, só que não enrugou. A seda deslizou pelas costas dele como se eu não tivesse feito nada. Mas eu nunca duvidei de que tinha feito meu trabalho.
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Ele começou a pôr a camisa para dentro da calça antes de virar para mim.
- Você usou só a sua mágica pessoal para fazer isso?
- Usei.
- Por que não usou runas? Elas ajudam a incrementar o poder da sua mágica.
- Muitas runas são, na verdade, símbolos antigos de divindades ou criaturas esquecidas há muito tempo. Quem sabe? Posso estar invocando exatamente o encantado que feriu você. Não podia correr esse risco.
Ele vestiu o paletó e ajeitou a gravata.
- Agora me diga, o que a deixou assustada nas cicatrizes das minhas costas?
Abri a porta do apartamento.
- No caminho para a van.
Saí para o corredor antes de ele ter tempo de protestar. Gastamos muito tempo, mas não proteger as costas dele seria temerário demais.
Descemos ruidosamente as escadas com nossos sapatos sociais.
- O que é, Merry?
- Um dragão. Na verdade um dragão-serpente, já que não tem pernas.
- Você teve uma visão olhando para as cicatrizes?
Ele chegou à porta do prédio antes de mim e a abriu, um hábito antigo. Tirei a arma das minhas costas e destravei-a.
- Pensei que a Hoste estivesse a quilómetros daqui - disse Jeremy.
- Um encantado solitário poderia se esconder de mim. Segurei a arma ao lado do corpo para não ficar muito visível.
- Não vou ser pega de surpresa, Jeremy. Custe o que custar. Saí para a suave noite californiana antes de Jeremy poder dizer qualquer coisa. Muitas fadas e elfos, especialmente os encantados, consideravam as armas modernas uma traição. Não havia nenhuma lei escrita contra o uso de armas de fogo, mas ainda assim era mal visto, a não ser para algum membro da guarda de elite da Rainha ou do Príncipe. Eles precisam portar armas para proteger a realeza.
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Bem, eu fazia parte da realeza, era um membro insignificante e deserdado, mas mesmo assim realeza, gostassem ou não disso. Não tinha guarda para me proteger, por isso me defendia sozinha. Custasse o que custasse.
A noite nunca era completamente escura ali. Havia luzes demais, gente demais. Vasculhei aquela escuridão gentil à procura de uma figura solitária. Examinei com os olhos e com a energia, lançando um círculo crescente enquanto corríamos para a van. Havia gente nas outras casas. Eu sentia as pessoas se movendo, vibrando. Uma fila de gaivotas se agitou num dos telhados, meio sonolentas, em protesto, conscientes da minha mágica passando por elas. Havia uma festa na praia. Senti a energia aumentando, excitação, medo, mas medo normal. Devo ou não devo? É seguro? Não havia mais nada, sem contar a energia pulsante do mar que sempre nos acompanhava perto da praia. Tem de ser ruído branco, ignorado, como tanta gente apinhada, que estava sempre lá. Roane estava em algum lugar naquele poder das ondas. Torci para que ele estivesse se divertindo. Eu não estava, disso tinha certeza.
A porta de correr da van se abriu e vi de relance Uther de cócoras no escuro. Ele estendeu a mão para mim, segurou a minha esquerda e me puxou para dentro da van. Ele mesmo fechou a porta.
Ringo, que estava no banco do motorista, virou para trás e olhou para mim. Ele mal cabia no banco, com toda aquela musculatura, aqueles braços compridos demais para os padrões humanos, aquele peito imenso espremido num assento feito para humanos. Ele sorriu e revelou os dentes mais pontudos que eu tinha visto, sem contar os dos lobos. O rosto era um pouco alongado para acomodar os dentes e com isso o resto do rosto, que era mais humano, parecia desproporcional. Os dentes brilhavam em contraste com a pele negra. Ringo tinha sido no passado um humano completo que pertencia a uma gangue. Então um grupo de encantados chegados da Corte Profana se perdeu nas entranhas da Los Angeles mais misteriosa. Um grupo de membros da gangue os encontrou. Interação cultural em sua melhor forma. Os encantados levaram a pior na briga. Quem sabe como isso aconteceu? Talvez
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fossem arrogantes demais para lutar contra um bando de adolescentes da cidade. Talvez os adolescentes da cidade fossem apenas muito mais cruéis do que os forasteiros da realeza esperavam. Seja lá como foi, estavam perdendo. Mas um dos membros da gangue teve uma ideia brilhante. Trocou de lado com a condição de ter seu desejo realizado.
Os encantados concordaram, e Ringo matou seus companheiros de gangue a tiros. O desejo dele era ser mágico. Os encantados deram sua palavra de que realizariam esse desejo. Não podiam quebrar a palavra. Para transformar um humano completo em um meio encantado, é preciso usar magia violenta, poder puro nele, e é a vontade ou o desejo do humano que escolhe a forma dessa mágica. Ringo tinha acabado de entrar na adolescência quando isso aconteceu. Ele devia querer parecer muito forte, ameaçador, para ser o cara mais durão do bairro, por isso a mágica concedeu isso. Pelos padrões humanos ele era um monstro. E pelos padrões dos encantados também. Pelos padrões dos duendes ele era apenas mais um do bando.
Não sei por que Ringo abandonou as gangues. Talvez elas tenham se voltado contra ele. Talvez ele tenha amadurecido. Quando o conheci ele já era um cidadão íntegro havia anos. Estava casado com a namorada de infância e tinha três filhos. Ele se especializou como guarda-costas e trabalhou para muitas celebridades que apenas queriam alguém musculoso e exótico atrás delas por algum tempo. Trabalho fácil, sem perigo real, e assim ele passou a frequentar os astros. Nada mau para um garoto cuja mãe tinha sido uma viciada aos quinze anos, pai desconhecido. Ringo tem uma foto da mãe na mesa dele. Ela está com treze anos de idade, olhos brilhantes, bem arrumada, bonita, com o mundo à sua frente. No ano seguinte ela começou a se drogar. Morreu aos dezessete anos, de overdose. Não há fotos da mãe depois dos treze na sala da firma, nem na casa dele. Era como se para ele tudo que veio depois não fosse real, não fosse a mãe dele.
A filha mais velha, Arnira, é parecida demais com aquela imagem sorridente. Acho que ela não sobreviveria se ele descobrisse
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que usa drogas. Ringo diz que ser viciado é pior do que estar morto. Acho que ele acredita nisso.
Ninguém notou a arma quando a pus de volta nas costas, presa à cintura da calça. Deviam ter estado com Jeremy quando ele encontrou a arma e os documentos.
Jeremy sentou no banco do carona.
- Vamos para o aeroporto - foi tudo o que disse.
Ringo engrenou a marcha e lá fomos nós.
A parte de trás do furgão estava vazia, a não ser por um tapete e um cinto de segurança modificado que Jeremy mandou instalar de um lado. Era o banco de Uther. Engatinhei até os bancos do meio, mas Uther encostou no meu braço.
- Jeremy sugeriu que se você sentasse junto comigo a minha aura podia cobrir a sua, e assim confundir nossos perseguidores.
Ele pronunciou cada palavra com todo o cuidado, porque apesar de parecer que as presas saíam da pele em cima da boca, do rosto dele, na verdade elas eram dentes modificados, de dentro da boca. Se ele não prestasse atenção, a fala saía enrolada. Ele teve aulas com um dos principais fonoaudiólogos de Hollywood para aprender sua voz de professor do meio oeste. Não combinava com o rosto, que era mais de porco do que de humano, com dois pares de presas curvas. Uma cliente nossa desmaiou quando ele falou com ela a primeira vez. Era sempre divertido chocar os humanos.
Olhei para Jeremy, e ele fez que sim com a cabeça.
- Eu posso ser o melhor mágico, mas Uther tem essa energia, mais antiga do que Deus, rodopiando em volta dele. Acho que vai ajudar para eles não verem você.
Era uma ótima ideia e bastante simples.
- Puxa, Jeremy, eu sabia que havia um motivo para você ser o chefe.
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Ele sorriu de orelha a orelha para mim, depois se virou para Ringo.
- É uma linha reta pela Sepúlveda até o aeroporto.
- Pelo menos não vamos pegar a hora do rush - disse Ringo. Eu me instalei na parte de trás da van, ao lado de Uther. O furgão entrou na Sepúlveda meio rápido demais, e Uther me segurou antes de eu ter tempo de cair. Seus braços enormes me puxaram contra o corpo dele e me abraçaram no peito, que era quase tão grande quanto meu corpo inteiro. Mesmo com meus escudos a todo vapor ele era uma coisa grande, confortável e vibrante. Eu conhecera outros duendes que não tinham nenhuma mágica, apenas um glamour fraquinho, mas que eram tão velhos e viviam há tanto tempo perto de mágica que era como se absorvessem o poder pelos próprios poros. Nem os encantados me encontrariam enquanto eu estivesse nos braços de Uther. Eles poderiam senti-lo, mas não a mim. Talvez. Pelo menos no início.
Relaxei sobre o peito largo de Uther, no aconchego seguro dos braços dele. Não sei o que ele tinha, mas sempre fazia com que me sentisse segura. Não era apenas o tamanho enorme. Era Uther. Ele tinha um centro de calma que funcionava como uma fogueira em volta da qual você podia se aninhar no escuro.
Jeremy se virou para trás, até onde o cinto de segurança permitia, amassando todo o paletó, e isso queria dizer que o que ia falar era sério.
- Por que você protegeu minhas costas, Merry?
- O quê? - disse Uther.
Jeremy fez um gesto para desfazer a pergunta.
- Eu tinha uma velha cicatriz de encantado nas costas. Merry Pôs uma proteção nela. Quero saber por quê.
- Você é persistente - eu disse.
- Diga por quê.
Suspirei e puxei os braços de Uther em volta de mim como um cobertor.
- É possível que o encantado que o machucou invocasse o dragão das suas costas, ou forçasse você a trocar de forma e virar um. Jeremy arregalou os olhos.
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- Você consegue fazer isso?
- Eu não, mas não sou encantada puro sangue. Já vi fazerem coisas parecidas.
- A proteção vai aguentar?
Gostaria de responder simplesmente que sim, mas era quase uma mentira.
- Vai durar um tempo, mas se o encantado que criou o feitiço estiver aqui, ele talvez tenha poder suficiente para romper a minha mágica, ou então pode atacar seguidamente o escudo com o poder dele até desgastar toda a magia. A chance de esse mesmo encantado estar participando dessa caçada é mínima, Jeremy, mas eu não podia deixar que me ajudasse sem protegê-lo.
- Só por precaução - ele disse.
- Só por precaução - repeti.
- Eu era muito jovem quando fizeram isso, Merry. Agora posso me proteger.
- Você é um mágico poderoso, mas não é encantado.
- Faz tanta diferença assim? - perguntou ele.
- Pode fazer.
Jeremy ficou calado e se virou para frente para ajudar Ringo a encontrar o caminho mais rápido até o aeroporto.
- Você está tensa - disse Uther. Sorri para ele.
- E está surpreso com isso?
Ele sorriu com aquela boca tão humana por baixo do osso curvo das presas e do focinho de porco. Parecia que parte do rosto dele era uma máscara e que por baixo havia apenas um homem, grandão, mas apenas um homem.
Ele passou os dedos grossos no meu cabelo ainda molhado.
- Imagino que as Lágrimas de Branwyn ainda estavam agindo quando Jeremy subiu, não é?
Eu jamais gastaria meu tempo tomando um banho se não fosse por isso, e Uther sabia.
- Foi o que Jeremy me contou.
Eu sentei para não molhar mais a camisa dele com o cabelo.
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- Não queria te molhar todo. Esqueci, desculpe. Ele me puxou gentilmente de volta para o peito, com a mão do tamanho da minha cabeça.
- Não estava reclamando, só observei.
Ajeitei-me de novo encostada nele, com o rosto apoiado no braço de Uther.
- Roane saiu logo depois que nós chegamos. Ele foi procurar ajuda?
Expliquei o que tinha havido com Roane e sua nova pele.
- Você não sabia que podia curá-lo? - perguntou Uther.
- Não.
- Interessante - ele disse. - Muito interessante. Olhei bem para ele.
- Você sabe de alguma coisa que eu não sei, sobre o que aconteceu?
Ele abaixou a cabeça e olhou para mim, com os olhos pequenos quase perdidos no rosto.
- Eu sei que Roane é um tolo.
Olhei espantada para ele, vasculhei seu rosto tentando decifrar o que havia por trás daqueles olhos.
- Ele é um roane, e eu devolvi o mar para ele. É a vocação dele, o centro da sua vida.
- Não está zangada com ele?
Franzi a testa e sacudi os ombros meio sem jeito, nos braços dele.
- Roane é o que ele é. Não posso condená-lo por isso. Seria como vociferar contra a chuva porque ela é molhada. Simplesmente é.
- Então não te incomoda nem um pouco?
Dei de ombros mais uma vez, e ele encaixou os braços em volta de mim, embalou-me como se eu fosse um bebê, para eu poder olhar para ele com mais conforto.
- Admito que fiquei desapontada, mas surpresa não.
- Muito compreensiva.
- Tenho mesmo de ser compreensiva, Uther. Não posso mudar as coisas.
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Esfreguei o rosto no aconchego do braço dele e entendi o que Uther tinha de tão cativante. Ele era enorme, e eu muito miúda, então era como ser criança de novo. Aquela sensação de que, se alguém podia segurá-la nos braços e envolvê-la completamente, nada poderia atingi-la. Isso não foi verdade quando eu era pequena e certamente não era verdade agora, mas mesmo assim era gostoso. As vezes uma falsa sensação de segurança é melhor do que segurança nenhuma.
- Droga - disse Jeremy, elevando a voz para podermos ouvir na parte de trás da van. - Tem um acidente lá na frente. Parece que a Sepúlveda está interditada. Vamos ter de tentar escapar pelas ruas laterais.
Rolei a cabeça no braço de Uther para ver Jeremy.
- Deixa eu adivinhar. Todo mundo está tentando escapar por aqui também.
- É claro - ele disse. - Tratem de se acomodar. Vai demorar um pouco.
Olhei para cima, para Uther de novo.
- Ouviu alguma piada boa esses dias? Ele sorriu.
- Não, mas as minhas pernas vão ficar dormentes se tiver de ficar nessa posição por muito tempo.
- Desculpe.
Eu ia sair de perto para ele poder se ajeitar.
- Não precisa se mexer.
Uther me levantou no colo, com um braço embaixo das pernas e o outro nas minhas costas. Ele me segurou como um bebê, sem esforço algum, enquanto esticava as pernas para a frente. Apoiou-me no colo, continuou com um braço nas minhas costas e o outro por cima das minhas pernas e as dele.
Dei risada.
- As vezes fico pensando como é ser... grande.
- E eu imagino como é ser pequeno.
- Mas você foi criança um dia. Deve lembrar como era! Ele olhou para longe.
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- a minha infância foi há muito tempo, mas sim, eu lembro, mas não é desse tipo de pequenez que eu estou falando.
Ele olhou para mim, e havia uma coisa nos olhos dele, uma solidão, uma carência. Uma coisa que varava a calma dele, de que eu gostava tanto.
- O que foi, Uther?
Perguntei em voz baixa. Era uma situação muito íntima estarmos ali atrás sozinhos, sem ninguém nos bancos do meio.
A mão dele encostava de leve na minha coxa e finalmente entendi o olhar dele. Não era uma expressão que eu já tinha visto no rosto de Uther. Lembrei o comentário dele quando eu estava me aprontando com o microfone, que ele foi para outra sala porque fazia muito tempo que não via uma mulher nua.
A surpresa deve ter transparecido no meu rosto, porque ele olhou para o outro lado.
- Desculpe, Merry. Se isso for totalmente indesejado, é só dizer, que eu nunca mais direi nada.
Eu não sabia o que dizer, mas tentei.
- Não é isso, Uther. Daqui a pouco vou pegar um avião e ir para onde só a Deusa sabe. Podemos não nos ver mais.
Em parte isso era verdade. Quero dizer, eu ia sair da cidade. Não via nenhum jeito de terminar aquilo na curta distância até o aeroporto sem magoar os sentimentos dele, ou mentir para ele. Queria evitar as duas coisas.
Ele falou sem olhar para mim.
- Pensei que você era humana com algum sangue encantado. Jamais teria sugerido isso para alguém que fosse criado como humano. Mas a sua reação diante do abandono de Roane é prova de que você não pensa como humana.
Uther virou o rosto para mim, quase tímido. O olhar dele era tão aberto, tão confiante. Não que ele pensasse que eu ia dizer Sim. Isso ele não sabia, mas confiava que eu não teria uma reação negativa.
Na véspera mesmo eu tinha pensado que Uther devia levar uma vida muito solitária ali na costa. Quantas vezes eu me aninhara assim junto a ele, considerando que ele era uma espécie de irmão
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mais velho, substituindo o pai? Foram vezes demais. Era injusto, e ele sempre agiu como o perfeito cavalheiro porque pensava que eu era humana. Agora ele conhecia a verdade, e isso mudava as coisas. Mesmo se eu dissesse não, e ele aceitaria isso, eu jamais poderia tratá-lo com aquela intimidade outra vez. Nunca mais poderia me aninhar inocentemente nos seus grandes braços. Isso tinha acabado. Era lamentável, mas não havia como voltar atrás. A única coisa que eu podia fazer agora era evitar magoar Uther. O problema é que não sabia como fazer isso, porque não tinha a menor ideia do que dizer.
Esse meu raciocínio demorou demais. Ele fechou os olhos e tirou a mão da minha coxa.
- Desculpe, Merry.
Estendi a mão e toquei no queixo dele.
- Não, Uther, estou lisonjeada.
Ele abriu os olhos, olhou para mim, mas a mágoa estava lá, perfeitamente visível. Ele tinha posto seu coração numa bandeja, e eu enfiara um punhal nele. Droga, eu ia pegar um avião e nunca mais ver aquelas pessoas. Não queria deixá-lo daquele jeito. Ele era amigo demais para isso.
- Eu sou parte humana, Uther. Não posso... - Não havia forma gentil de descrever. - Não posso suportar o estrago que um encantado puro-sangue poderia.
- Estrago?
Era nisso que dava querer ser recatada.
- Você é grande demais para o meu corpo, Uther. Se fosse... menor, eu podia passar uma tarde fazendo sexo com você, mas não nos vejo namorando. Você é meu amigo.
Ele examinou meu rosto com atenção.
- Você seria mesmo capaz de ir para a cama comigo sem sentir aversão?
- Aversão? Uther, você passou tempo demais entre os humanos. Você é um gigante e tem a aparência exata que devia ter. Existem outros como você. Você não é uma aberração.
Ele balançou a cabeça.
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- Estou exilado, Merry. Nunca mais vou poder voltar para o meu mundo e aqui entre os humanos eu sou uma aberração, sim.
Senti um aperto no peito ao ouvir isso.
- Uther, não deixe a visão dos outros fazer com que você se odeie.
- Como? - ele perguntou.
Pus a mão no peito dele e senti as batidas fortes do coração.
- Aqui dentro existe Uther, meu amigo, e eu te amo como amiga.
- Vivo junto aos humanos tempo suficiente para saber o que significa esse discurso de amizade - ele disse.
Mais uma vez olhou para o outro lado, o corpo dele ficou tenso e desconfortável, como se não suportasse que eu tocasse nele.
Fiquei de joelhos. Diria que montei nas pernas dele, mas o máximo que consegui foi apoiar cada joelho em cada coxa dele. Passei as mãos no rosto dele, na testa, nas sobrancelhas grossas. Tive de abaixar os braços para acariciar o rosto. Passei o polegar nos lábios e encostei a mão no osso liso das presas.
- Você é um belo gigante. Essas presas duplas são muito cobiçadas. E a curva na ponta... os gigantes consideram sinal de virilidade.
- Como sabe disso?
A voz dele soou baixa, mero sussurro.
- Quando eu era adolescente, a rainha tinha como amante um gigante chamado Yannick. Depois de ir para a cama com ele, ela disse que nenhum encantado podia preenchê-la como seu Valete de Copas.
No fim ela o chamava de Bobo da Corte, e ele deixou de ser seu amante. Escapou com vida, o que era mais do que muitos amantes não encantados da rainha conseguiam. Os humanos costumavam cometer suicídio.
Uther olhava fixo para mim. Como eu estava ajoelhada nas Pernas dele, nossos olhos ficaram quase na mesma altura.
- O que você achava de Yannick? - ele perguntou baixinho, e eu tive de chegar para a frente para ouvir direito.
- Eu achava que ele era um idiota.
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Inclinei-me para beijá-lo, e ele virou o rosto. Segurei o rosto dele com as mãos e virei-o de frente para mim.
- Mas eu achava que todos os amantes da rainha eram idiotas Tive de sentar no colo de Uther, com uma perna de cada lado da cintura dele para poder beijá-lo. As presas ficaram no caminho Mas se servisse para tirar aquela mágoa dos olhos dele, valeria o esforço.
Beijei-o como amiga. Beijei-o porque não o achava feio. Eu tinha crescido entre encantados que faziam Uther parecer capa de revista para gays pelos padrões humanos. Uma coisa que os profanos ensinam é amar todas as formas dos encantados. Existe beleza em todos nós. Feiura é simplesmente uma palavra que não se usa na Corte Profana. Na Corte Abençoada eu era considerada feia, muito baixa, meio gorda, e meu cabelo era o castanho avermelhado da Corte Profana, não o ruivo mais humano da Corte Abençoada. Entre os profanos eu também não tive muitos "namorados". E não foi porque não me achavam atraente, mas porque eu era mortal. Um encantado mortal era assustador para eles, eu acho. Tratavam como se isso fosse uma doença contagiosa. Só Griffin se dispôs a experimentar, e no fim eu também não fui suficientemente encantada para ele também.
Eu sabia o que era ser sempre a forasteira, a aberração. Pus tudo isso no beijo, fechei os olhos, segurei o queixo dele. Beijei com bastante força e pude sentir como os ossos do maxilar superior se alargavam antes de subir.
Uther beijava como falava, com cuidado, pensando bem em cada movimento, como fazia com cada sílaba. Ele massageou a parte de baixo das minhas costas, e senti a espantosa força daquelas mãos, o potencial do corpo dele para me quebrar em duas como uma frágil boneca. Só confiança poderia levar alguém para a cama dele e criar a esperança de sair de lá incólume. Mas eu confiava em Uther e queria que ele voltasse a acreditar em si mesmo.
- Detesto interromper - disse Jeremy - mas tem outro acidente mais à frente. Tem um em cada rua transversal que entramos.
Interrompi o beijo.
- O que você disse?
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- Dois acidentes em duas ruas que tentamos - disse Jeremy.
- É coincidência demais - disse Uther.
Ele beijou suavemente meu rosto e me soltou para eu poder sentar ao lado dele, ainda à sombra da sua energia. A mágoa tinha sumido dos olhos dele, e havia ali alguma coisa mais concreta, mais segura. O beijo valeu.
- Eles sabem que eu estava no apartamento de Roane, mas não sabem onde estou agora. Estão tentando cortar todas as rotas de fuga.
Jeremy concordou, balançou a cabeça.
- Por que você não pressentiu a presença deles?
- Porque ela estava muito ocupada - disse Ringo.
- Não - eu disse. - É que do mesmo modo que a aura de Uther impede que eles me encontrem, ela também interfere na minha capacidade de senti-los.
- Se você se afastar dele poderá senti-los - disse Jeremy.
- E eles a mim - eu disse.
- O que quer que eu faça? - perguntou Ringo.
- Parece que estamos presos no trânsito. Acho que não há nada que você possa fazer - eu disse.
- Eles bloquearam todas as ruas - disse Jeremy. - Agora vão começar a procurar em todos os carros. Vão acabar nos encontrando. Precisamos de um plano.
- Se Uther vier comigo, talvez meus olhos vejam alguma coisa que o resto de mim não consegue.
- Será um prazer - disse Uther, sorrindo.
Nós dois fomos sorrindo para os bancos da segunda fila. Uther ficou cobrindo o encosto dos bancos, com uma manopla no meu ombro. Havia carros parados em um lado da rua e duas faixas congestionadas no sinal. Ninguém andava porque tinha havido um engavetamento de três carros no cruzamento. Um carro estava de cabeça para baixo na rua. O segundo carro tinha batido nesse Primeiro e um terceiro nos dois, de modo que os três formavam uma pilha de metal retorcido e vidro quebrado. Consegui visualizar como o segundo e o terceiro carro tinham batido no primeiro. O que eu não estava entendendo era como o primeiro carro tinha
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capotado, bem no meio da rua. Nenhuma situação que eu pudesse imaginar teria virado o carro bem no meio da rua assim. De modo a formar a maior barreira possível, de lado para o tráfego. Apostava que alguém, ou alguma coisa, tinha virado o carro e deixado os outros baterem nele. Formavam uma represa de máquinas e de gente. Como podiam usar o glamour para se esconder e não levar a culpa, não davam a mínima para os feridos. Minha família... como os odiava, às vezes.
Havia grupos de pessoas nas calçadas, pessoas que saíam dos carros e ficavam paradas ao lado das portas abertas. Dois carros da polícia no meio do cruzamento interrompiam o trânsito dos que ainda tentavam passar. As luzes dos carros de polícia cortavam a noite com jatos coloridos, competindo com as placas e vitrines iluminadas dos bares e boates dos dois lados da rua. Ouvi uma sirene de ambulância se aproximando, a polícia devia estar abrindo passagem para ela.
Vasculhei a multidão e não vi nada de incomum. Usei meu outro sentido para pesquisar. Estava limitada com a energia de Uther em cima de mim, mas não completamente inutilizada. Talvez pudesse ver se eles estavam por perto antes de me revelar.
O ar tremulava sobre dois carros à nossa frente como ondas de calor, só que não era calor, e esse efeito nunca acontecia à noite. Alguma coisa grande estava se movendo entre os carros, e essa coisa não queria ser vista. Lancei mais longe minha energia e achei mais quatro pontos tremulantes.
- Quatro formas se movendo lá fora, todas maiores do que humanos. A que está mais perto já está a dois carros de nós.
- Você está vendo formas? - perguntou Jeremy.
- Não, só o ar tremido.
- Conseguir manter o glamour funcionando quando se está andando em cima dos carros é demais para a maioria dos encantados - Jeremy disse.
Nenhum de nós acreditava que o primeiro carro tinha capotado sozinho.
- A maioria dos encantados não conseguiria fazer isso, só alguns.
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- Então são quatro, maiores do que os humanos, e pelo menos um está bem perto - disse Uther.
-É.
- Qual é o plano? - quis saber Ringo.
Essa era uma boa pergunta. Infelizmente eu não tinha uma boa resposta para dar.
- Temos quatro policiais no cruzamento. Eles vão ajudar ou atrapalhar?
- Se pudéssemos romper o glamour deles, torná-los visíveis para a polícia, e se eles não soubessem imediatamente disso... - Jeremy disse.
- Se eles fizessem alguma coisa ilegal bem na frente dos policiais... - eu disse.
- Merry, minha menina, acho que você entendeu o meu plano. Ringo virou para trás e olhou para mim.
- Não sei muita coisa sobre a mágica dos encantados, mas se Merry não é uma puro-sangue, será que tem poder suficiente para quebrar o glamour deles?
Todos olharam para mim.
- E então? - disse Jeremy.
- Não precisamos acabar com o feitiço deles. Só temos de sobrecarregá-lo - eu disse.
- Explique - disse Jeremy.
- O primeiro carro eles viraram, mas os outros apenas bateram nele. Eles estão examinando dentro dos carros, à minha procura, sem encostar em ninguém. Se sairmos do carro e lutarmos com eles, os encantados não vão mais conseguir mantê-los invisíveis.
- Pensei que era melhor evitar uma luta direta, se fosse possível - disse Ringo.
O tremor no ar estava quase em cima deles.
- Se alguém tiver uma ideia melhor, temos cerca de sessenta segundos para resolver. Vamos ser revistados já, já.
- Esconder - disse Uther.
- O quê?
- Merry se esconde - ele disse.
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Era uma boa ideia. Fui para trás dos bancos do meio, e Uther se afastou da lateral da van para eu poder me enfiar atrás dele. Eu não achava que aquilo ia funcionar, mas era melhor do que nada. Podíamos lutar mais tarde se eles me encontrassem, mas se eu pudesse me esconder... colei no metal frio e nas costas de Uther e procurei não pensar muito. Alguns encantados conseguem ouvir nosso pensamento se estivermos mais agitados. Eu estava completamente fora da vista de qualquer um. Mesmo se eles abrissem a grande porta de correr, que acho que não iam arriscar, não me veriam. Mas eu não estava preocupada com os olhos deles. Existem encantados de todos os tipos, e nem todos apostam na visão como os humanos. E isso sem contar o encantado que operava o glamour. Se nós fôssemos o único carro com encantados dentro, eles viriam investigar antes de sair daquela área. Ele ou ela, teria de ver pessoalmente.
Eu queria muito ver o que estava tremulando no ar espiar por todas as janelas. Mas para isso teria de sair do esconderijo, então o que fiz foi me encolher atrás de Uther e tentar ficar completamente imóvel. Ouvi, senti alguma coisa raspar no metal da van nas minhas costas. E então ouvi, uma fungada ruidosa, como se fosse um gigantesco cão farejador.
Tive uma fração de segundo para pensar: "Isso está me cheirando", então alguma coisa colidiu com a lateral do carro a poucos centímetros de onde eu estava. Eu gritei, saí de trás de Uther tão rápido que só depois registrei o punho, do tamanho da minha cabeça, enfiado na lateral da van.
O barulho de vidro quebrando me fez virar. Um braço enorme, do tamanho de um tronco de árvore, e um torso mais largo do que a janela estavam grudados na janela do lado do motorista. Ringo bateu no braço, mas a coisa agarrou a frente da camisa dele e começou a puxá-lo para fora, pela janela quebrada.
Eu estava com a minha arma mas não dava para mirar. Jeremy se moveu entre os bancos, e vi o brilho de uma lâmina na mão dele.
Ouvimos a barulheira de metal torcido quando um punho gigantesco arrancou o lado da van, e uma cara enorme, com um sorriso
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malicioso, espiou pelo buraco. Ele olhou através de Uther, como se não houvesse ninguém ali além de mim, com olhos amarelos.
- Princesa - sibilou o ogro - estávamos à sua procura. Uther desferiu-lhe um soco na cara enorme. Espirrou sangue do nariz do ogro, que recuou pelo buraco. Gritaria lá fora, gritos humanos. O glamour tinha se desfeito com a violência. Os ogros ficaram visíveis para os humanos como num passe de mágica. Ouvi um homem berrando:
- Polícia! Pare aí!
A polícia estava vindo. Boa. Pus a pistola na cintura. Não queria ter de explicá-la.
Olhei para o banco da frente. Ringo continuava sentado lá. Jeremy estava inclinado sobre ele e tinha sangue nas mãos. Passei pelo meio dos bancos para ir até eles. Ia perguntar se Ringo estava ferido, mas assim que vi seu peito, nem precisei. A frente da camisa dele estava encharcada de sangue, com um pedaço de vidro largo como a minha mão espetado.
- Ringo - eu disse o nome dele baixinho.
- Sinto muito - ele disse. - Não vou poder ajudá-la muito. Ele tossiu e deu para ver que doía.
Toquei no rosto dele.
- Não fale.
Ouvi a polícia falando com os ogros, dizendo "Ponham as mãos na cabeça! De joelhos! Não se mexam!". Depois ouvi a voz de outro homem, uma voz suave e masculina, com um leve sotaque. Conhecia aquela voz.
Fui para a porta de correr, e Jeremy perguntou:
- O que foi? O que é?
- Sholto - eu disse.
Jeremy fez cara de quem não entendeu. O nome não significava nada para ele. Repeti.
- Sholto, Lorde Daquilo que Permeia, Lorde das Sombras, Rei do Sluagh.
Foi o último título que fez Jeremy arregalar os olhos e demonstrar muito medo.
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- Ai, meu Deus - ele disse.
- O filhote das sombras está aqui? - disse Uther.
- Nunca diga isso na frente dele - eu disse.
Ouvi claramente as vozes pela janela quebrada. Era como se eu estivesse me movendo em câmera lenta. A porta não queria abrir, ou então eu estava paralisada de medo.
A voz disse:
- Muito obrigado, oficial.
- Vamos esperar a viatura para os ogros - disse o policial.
A porta abriu e tive um segundo estático para ver tudo. Três ogros ajoelhados na calçada, com as mãos na cabeça. Dois policiais apontando suas armas para eles. Um estava na calçada, na frente dos ogros. O outro mais afastado, atrás de uma fila de carros. Uma figura alta, com estatura humana, estava ao lado desse último policial e dos carros. Usava um casaco militar de couro cinza, e o cabelo grisalho caía nas costas. A última vez que tinha visto Sholto, ele também usava um manto cinza, mas o efeito era muito parecido. Ele deu meia-volta, pressentindo que eu estava ali. Mesmo à distância de alguns metros na escuridão eletrificada pude ver que os olhos dele tinham três tons de dourado. Metálico em volta da pupila, depois âmbar e um último círculo amarelo como folhas de outono. Eu tinha medo de Sholto, sempre tive, mas quando vi aqueles olhos percebi que sentia muita saudade dos encantados, porque naquele segundo fiquei feliz de ver outra pessoa com íris tripla. Então aqueles olhos conhecidos provocaram um arrepio na nuca, e o momento de associação se desfez.
Ele se virou para o policial de novo, sorrindo.
- Eu cuido da princesa.
Sholto foi andando para a van, e os policiais não o impediram. Compreendi tudo quando ele chegou mais perto. Estava usando o emblema da rainha, um distintivo que a guarda dela usava, pendurado no pescoço. Era muito parecido com o distintivo da polícia e sabia-se que quem usava um emblema desses sem merecer era amaldiçoado. Uma maldição que nem um encantado arriscaria atrair sobre ele.
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Eu não sabia o que Sholto tinha dito para eles, mas dava para adivinhar. Ele tinha sido enviado para impedir o ataque a mim. Ele me levaria de volta para casa em segurança. Tudo muito plausível.
Sholto vinha ao meu encontro com passos elegantes, pernas compridas. Ele era bonito, não a beleza arrebatadora de alguns encantados, mas chamava atenção. Eu sabia que os humanos o observavam porque não conseguiam resistir. O casaco cinza esvoaçava aberto para trás e se via um pequeno volume na barriga dele. Sholto tinha cabelo, olhos, pele, rosto, ombros, tudo de encantado, só que do peito até a virilha tinha um ninho de tentáculos, coisas com bocas. A mãe dele era encantada, o pai não.
Alguma coisa tocou no meu ombro, e eu pulei, gritando. Era Jeremy.
- Feche a porta, Uther.
Uther puxou a porta no trilho, quase na cara de Sholto. Encostou nela de modo que não pudesse ser aberta por fora, só com algum esforço.
- Fuja - disse Uther.
- Corra - disse Jeremy.
Entendi. Fora de uma guerra, os sluagh caçavam uma presa de cada vez e só. Sholto não ia machucá-los se eu não estivesse ali. Escapuli pelo buraco de metal retorcido que os ogros tinham feito no outro lado da van e consegui sair sem me cortar. Ouvi Sholto batendo, muito educado, na grande porta da van.
- Princesa Meredith, eu vim para levá-la para casa. Abaixei e usei os carros estacionados e a multidão que tinha se juntado para ver a cena para me esconder. Joguei mais uma camada de glamour em mim. Cabelo castanho comum. Pele mais escura, bronzeada. Fui andando pelo meio das pessoas, mudando minha aparência aos poucos para que ninguém me apontasse e chamasse atenção. Quando cheguei ao outro lado e fui indo pela rua transversal, as únicas coisas que ainda pareciam as mesmas eram as minhas roupas. Tirei o blazer, empunhei a arma e pus o blazer Por cima da mão e da pistola. Sholto tinha visto uma mulher de cabelo castanho-avermelhado, pele muito clara e blazer azul-marinho. Agora eu era uma mulher de cabelo castanho-escuro, de pele
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morena, de blusa verde. Andei calmamente pela rua, mas um ponto nas costas, entre as omoplatas, coçava como se ele abrisse um buraco ali com os olhos.
Eu queria virar e olhar para trás, mas me forcei a continuar andando. Cheguei à esquina sem ninguém gritar "Lá está ela!". Parei um segundo. Minha Deusa, como queria olhar para trás. Lutei contra essa vontade e dobrei a esquina. Já fora de vista, em segurança, soltei um suspiro que nem sabia que estava segurando. Não estava fora de perigo enquanto Sholto estivesse naquela parte do país, mas já era um começo.
Escutei um barulho que vinha do alto. Um ruído forte, agudo, quase inaudível de tão agudo, que varou os ruídos normais da cidade como flecha que atravessa o coração. Examinei o céu noturno mas não tinha nada além do ronco distante de um avião que desaparecia na escuridão. O barulho soou novamente e tão alto que incomodava, como os gritos dos morcegos. Não havia nada lá.
Comecei a andar de costas, devagar, ainda examinando o céu, quando um movimento chamou minha atenção. Vi que era no topo do prédio mais próximo. Havia uma fila de formas pretas reunidas na beira da cobertura do prédio. Era uma fila de capuzes negros, do tamanho de homens pequenos. Um dos "capuzes" se agitou como um pássaro arrumando as penas. A figura negra levantou a cabeça, e o rosto plano e claro apareceu. Ele abriu a boca que era um risco e emitiu aquele ruído quase ultrassônico.
Eles podiam voar mais rápido do que eu corria. Eu sabia disso, mas virei e corri do mesmo jeito. Ouvi as asas deles se abrindo com um estalido sonoro, como lençóis pesados e limpos batendo ao vento. Corri. Os gritos agudos deles me perseguiram noite adentro. Corri mais ainda.
Vieram como ventania nas minhas costas, o barulho que faziam se misturava com rajadas de vento, tempestade avançando. Os humanos
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ouviriam isso. Vento, tempestade ou uma revoada de pássaros. Se houvesse humanos para ouvir alguma coisa. A rua estava deserta até o fim do quarteirão. Eram oito horas, sábado à noite, num bairro comercial de luxo, e não havia ninguém. Parecia um cenário preparado, e talvez fosse mesmo. Se eu pudesse escapar da área do feitiço, veria gente. O vento bateu nas minhas costas, eu me joguei na calçada, depois rolei de lado com o impacto. Continuei rolando, sem parar, vi de relance os voadores noturnos vindo para cima de mim, a menos de um metro da calçada, como um cardume de peixes voadores, avançando rápido demais para o líder conseguir mudar de direção.
Rolei para a porta mais próxima, coberta por um telhado e cercada de vidro em três lados. Os voadores só atacavam de cima. Não desceriam ao chão para me pegar. Fiquei ali deitada alguns segundos, escutando meu sangue pulsar nos ouvidos e então percebi que não estava sozinha.
Sentei encostada na vitrine cheia de livros e procurei pensar numa boa desculpa para explicar para um humano o que eu tinha acabado de fazer. O homem estava de costas para mim. Era baixo, quase da minha altura, usava uma camisa havaiana berrante e um boné de aba mole que cobria os olhos. Não era coisa que se via muito à noite.
Fiquei de pé, apoiada na vitrine. Por que ele usava o boné que protegia do sol à noite?
- Que ventania - ele disse.
Passei para o outro lado da vitrine, ainda embaixo do toldo da loja, com a arma na mão. O blazer estava pendurado, balançando como a capa de um toureiro, mas continuava escondendo a arma.
O homem virou de frente para mim, e a luz da loja iluminou seu rosto. A pele era preta, os olhos eram pedras escuras e brilhantes. Ele deu um largo sorriso e exibiu os dentes superafiados.
- Nosso mestre quer falar com você, Princesa.
Senti um movimento atrás de mim, virei a cabeça para ver, mas tive medo de me virar completamente e dar as costas para o homem sorridente. Três pessoas saíram da loja ao lado. Estava escuro,
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não precisavam se esconder de nenhuma luz. Esses eram mais altos do que eu, estavam de capa e capuz.
- Estávamos à sua espera, corr - disse um dos encapuzados. Era voz de mulher.
- Corr?
- Vadia - disse uma segunda voz de mulher.
- Isso é inveja? - perguntei.
Elas avançaram, joguei o blazer no chão e apontei a arma para elas com as duas mãos. Não deviam saber o que era uma pistola, ou então não se importaram. Atirei numa delas. Ela caiu enrolada na capa. As duas outras recuaram com as garras levantadas, como se quisessem aparar um golpe.
Encostei na vitrine, dei uma olhada para o homem sorridente atrás de mim, mas ele estava parado na frente da porta com as mãozinhas cruzadas sobre o boné. Continuei apontando e prestando atenção nas mulheres, que não eram mulheres. Eram bruxas. Eu não estava sendo cruel. Eram isso mesmo... bruxas da noite.
A que eu tinha alvejado esforçou-se para sentar, amparada pela outra.
- Você atirou nela!
- Ainda bem que notou - eu disse.
O capuz da que estava ferida tinha caído e revelado um grande nariz adunco, olhos pequenos e brilhantes e pele amarelada. O cabelo era um emaranhado seco como palha negra que chegava até os ombros. Ela sibilou quando a segunda bruxa afastou a capa para ver o ferimento. Era um buraco sangrento entre os seios caídos. A bruxa estava nua, usava apenas uma coleira dourada e pesada no pescoço e um cinto com pedras preciosas no quadril estreito. Vi de relance a adaga que pendia do cinto, amarrada à coxa com uma corrente de ouro.
Ela se contorceu sem poder respirar para me amaldiçoar. Eu tinha acertado seu coração e talvez um pulmão também. Não ia matá-la, mas doía muito.
A segunda bruxa levantou a cabeça contra a luz. A pele era cinza sujo com enormes marcas de varíola cobrindo o rosto todo
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e sobre o nariz pontudo como crateras. Os lábios eram finos demais e a boca cheia de dentes pontudos, carnívoros.
- Fico imaginando se ele ia querê-la se não tivesse essa pele branca e macia.
A terceira bruxa continuava parada, encapuzada, escondida. A voz dela era melhor do que a das outras, mais educada, de certa forma.
- Podíamos transformá-la em uma de nós, nossa irmã. Olhei para a cara da bruxa cinzenta.
- Se alguém começar a lançar uma maldição, atiro na cara.
- Não vai me matar - disse a Cinza.
- Não, mas também não vai melhorar sua aparência. Ela sibilou como um gato grande e disforme.
- Vaca.
- Igualmente - eu disse.
Eu estava preocupada com a terceira. Ela não se assustou nem se deixou levar pela raiva. Sugeriu usar mágica contra mim quando ainda estava escondida nas sombras, pela escuridão da noite. Mais inteligente, mais cautelosa, mais perigosa.
Não usei glamour para me esconder, de propósito. Estava diante de uma vitrine de livraria iluminada, com uma arma bem à vista, obviamente apontada para alguém. O tiro devia ter feito alguém correr para a porta, ou então chamar a polícia. Emiti um facho rápido de energia, vasculhando em volta, e encontrei as camadas grossas de glamour. Pesado e benfeito. Eu era boa com glamour, mas não daquele tipo. Sholto tinha coberto a rua inteira com ele, era um muro invisível. Os humanos na loja só queriam ficar lá dentro. Ninguém ia ver, nem ouvir, qualquer coisa que os assustasse. Suas mentes explicariam o disparo como algum barulho comum. Se eu pedisse socorro, seria o ruído do vento. Se não Jogasse alguém através da vitrine atrás de mim, para cair dentro da loja, ninguém ia ver nada.
Eu bem que queria jogar uma delas através do vidro da vitrine, mas não podia deixar que elas chegassem muito perto. As mãos que apertavam o ferimento tinham garras negras que pareciam os esporões de um grande pássaro. Os dentes que exibia quando
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silvava eram feitos para estraçalhar carne. Eu jamais venceria uma batalha mano a mano. Precisava manter distância delas, e a arma servia para isso, mas Sholto ia chegar, e eu tinha de fugir antes. Com ele ali eu ia perder. Pensando bem, eu já não estava me saindo muito bem. Elas não podiam me fazer mal, mas eu estava encurralada. Se saísse de baixo da marquise os voadores noturnos me pegariam, ou podiam me imobilizar, e aí as bruxas e o homem sorridente me prenderiam. Eu seria desarmada, ou coisa pior, antes de Sholto aparecer.
Não tinha nenhuma mágica ofensiva. A arma não servia para matar nenhum deles, só machucava e os tornava mais lentos. Precisava de uma ideia melhor e não conseguia pensar em nada. Tentei conversar. Em caso de dúvida, fale. Nunca se sabe o que o inimigo pode deixar escapar.
- Nerys Cinza, Segna Dourada e Agnes Negra, acertei?
- Quem é você? Stanley? - disse Nerys. Tive de sorrir.
- E dizem que vocês não têm senso de humor.
- Quem são eles? - ela perguntou.
- Encantados - eu disse.
- Você é encantada - disse Agnes Negra.
- Se eu fosse mesmo encantada, estaria aqui na costa do Mar Ocidental, escondendo-me da minha rainha?
- O fato de você e sua tia serem inimigas a torna uma idiota suicida, mas não faz de você nem um grama menos encantada.
Agnes estava empertigada e imponente, como uma coluna preta de tecido.
- É, mas o sangue de fada do lado da minha mãe faz. Acho que a rainha perdoaria a mácula humana, mas ela não esquece a outra.
- Você é mortal - disse Segna. - Esse é o pecado imperdoável para os encantados.
Já estava começando a ficar com cãimbra nas mãos. Logo meus braços iam começar a tremer. Eu tinha de atirar em alguma coisa ou abaixar a arma. Nem a mira com as duas mãos podia ser mantida indefinidamente.
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- Há outros pecados que minha tia acha imperdoáveis do mesmo jeito - eu disse.
Uma voz de homem retrucou:
- Como ter um ninho de tentáculos no meio de um perfeito corpo de encantado.
Virei a arma para o lado de onde vinha a voz e continuei vigiando as três bruxas. Em breve teria tantos alvos, em tantos pontos diferentes, que jamais conseguiria atirar em todos a tempo. Pelo menos o movimento e a nova onda de adrenalina tinham ajudado a acabar com a fadiga muscular. De repente, tive certeza de que podia ficar naquela posição para sempre.
Sholto estava lá parado na calçada, com as mãos ao lado do corpo. Acho que tentava parecer inofensivo. Mas não conseguiu.
- A rainha me disse uma vez que era uma pena eu ter esse ninho de tentáculos no meio de um dos corpos de encantado mais perfeitos que tinha visto.
- Maravilha. Minha tia é uma vaca. Todos nós sabemos disso. O que você quer, Sholto?
- Chame-o pelo nome completo - disse Agnes, com um tom de raiva na voz educada.
Nunca é demais ser cortês, por isso fiz o que ela pediu.
- O que você quer, Sholto, Lorde Daquilo que Permeia?
- Ele é Rei Sholto - Segna cuspiu as palavras em cima de mim, quase literalmente.
- Não é o meu rei - eu disse.
- Isso poderia mudar - disse Agnes, com a ameaça sutilmente embutida na entonação.
- Chega - disse Sholto. - A rainha quer vê-la morta, Meredith.
- Nós nunca fomos amigos, Lorde Sholto. Use o meu título também.
Era um insulto ele ter omitido meu título de nobreza depois que eu usei o dele. Também era uma ofensa alguém que era rei de outro povo insistir nisso. Mas Sholto sempre complicava sua vida Querendo bancar o lorde dos encantados e rei dos sluagh.
Um sentimento passou pelos ossos fortes do rosto dele. Raiva, eu acho, mas não o conhecia tão bem para ter certeza.
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- A rainha quer vê-la morta, Princesa Meredith, filha de Essus.
- E mandou você para levar-me para casa, para ser executada. Isso eu já sabia.
- Mas está completamente enganada - disse Agnes.
- Silêncio!
Sholto pôs a aspereza do comando naquela ordem. As bruxas encolheram, sem se curvar, mas pareceu que pensaram em fazer exatamente isso.
À minha direita, o homem sorridente se aproximou. Continuei mirando em Sholto, mas disse:
- Dê dois passos grandes para trás, senão atiro no seu rei. Não sei o que o homem teria feito, porque Sholto disse imediatamente:
- Gethin, faça o que ela diz.
Gethin não protestou, apenas recuou, mas notei com o canto do olho que estava com as mãos cruzadas sobre o peito. Tinha abandonado a pose com as mãos na cabeça. Tudo bem, desde que ficasse fora do alcance imediato. Todos estavam perto demais. Se avançassem ao mesmo tempo, eu estava acabada. Mas Sholto não queria me pressionar. Queria conversar. Por mim, tudo bem.
- Não quero que morra, Princesa Meredith - disse ele. Não consegui disfarçar a desconfiança.
- Você enfrentaria a rainha e todos os encantados dela para me salvar?
- Muita coisa aconteceu nesses últimos três anos, Princesa. A rainha tem contado cada vez mais com os sluagh para se manter. Acho que não ia iniciar uma guerra por você estar viva se estivesse a salvo, longe dos olhos dela.
- Não podia estar mais longe dos olhos dela, ainda em terra seca - eu disse.
- Ah, mas talvez haja outros na corte que cochichem no ouvido dela e a façam lembrar de você.
- Quem?
Ele sorriu, e o belo rosto ficou quase simpático.
- Temos muito que conversar, Princesa. Tenho um quarto num dos melhores hotéis daqui. Vamos para lá conversar sobre o futuro?
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Alguma coisa nas palavras que ele escolheu para dizer isso me incomodou, mas era a melhor oferta que eu ia receber aquela noite. Abaixei a arma.
-Jure pela sua honra e pela escuridão que devora tudo, que o que acaba de dizer é verdade.
- Juro pela minha honra e pela escuridão que devora tudo, que cada palavra que disse para você nesta rua é verdade.
Apertei a trava de segurança da pistola e enfiei-a no cinto, nas costas. Peguei meu blazer do chão, sacudi-o e vesti-o. Estava um pouco amassado, mas ia servir.
- Onde fica o seu hotel?
Dessa vez o sorriso cresceu, ele ficou menos perfeito, porém mais... humano. Mais real.
- Devia sorrir mais vezes, Lorde Sholto. Fica muito bem.
- Espero ter motivos para sorrir mais, no futuro próximo. Ele me ofereceu o braço, apesar de estar a alguns metros de distância. Fui para junto dele porque tinha feito o juramento mais solene dos profanos. Não podia descumprir sem se arriscar a ser amaldiçoado.
Apoiei a mão na dobra do cotovelo. Ele retesou os músculos ao toque da minha mão.
As vezes um macho é um macho e é um macho, não importa o sabor que tenha.
- Em que hotel está hospedado? - Sorri para ele.
Nunca é demais ser simpática. Podia ser bem antipática depois, se fosse preciso.
Ele respondeu. Era um hotel muito bom.
- Se quiser podemos pegar um táxi.
Estranhei aquilo, porque dentro de um carro, cercado de metal, ele não poderia fazer grandes mágicas. Muito metal refinado interferiria. Eu podia fazer grandes feitiços dentro de uma caixa de chumbo se precisasse. Meu sangue humano era bom para algumas coisas.
- Não ficará desconfortável? - perguntei.
- Não é tão longe assim, e estou pensando no nosso conforto mútuo.
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Outra vez senti que havia mais de um significado nas palavras dele, e que eu não estava entendendo.
- Um táxi seria ótimo. Agnes veio atrás de nós.
- O que vamos fazer com a Nerys?
Sholto olhou para trás, para as bruxas, e adotou novamente uma expressão fria, com aquela beleza esculpida que parecia distante.
- Voltem para seus quartos como puderem. Se Nerys não tivesse tentado atacar a princesa, não estaria baleada.
- Nós prestamos serviços há mais séculos do que esse pedaço de carne branca jamais verá, e esse é o tratamento que recebemos - disse Agnes.
- Vocês recebem o tratamento que merecem, Agnes. Lembre-se disso.
Ele deu meia-volta, um tapinha na minha mão em seu braço, sorrindo para mim, só que os olhos triplamente dourados ainda tinham aquela frieza.
Gethin apareceu ao lado de Sholto, com o boné nas mãos, e fez uma mesura que chegou quase até o chão. Ele tinha orelhas marcadamente compridas, pareciam as orelhas de um burro.
- O que deseja de mim, mestre?
- Ajude-as a levar Nerys para os quartos.
- Com prazer.
Gethin deu mais um sorriso cheio de dentes, com as orelhas abaixadas em volta do rosto como um cachorro, ou como um coelho de orelhas caídas. Virou e foi quase saltitando para perto das bruxas.
- Tenho a sensação de que perdi alguma coisa - eu disse. Ele pôs a mão sobre a minha, dedos quentes e fortes.
- Vou explicar tudo quando chegarmos ao hotel.
Aquele olhar eu já tinha visto em outros homens, mas não podia significar a mesma coisa. Sholto era da Guarda da Rainha, por isso não podia ir para a cama com qualquer encantada, só com ela. A rainha não compartilhava seus homens com ninguém. O castigo por quebrar esse tabu era morte por tortura. Mesmo se Sholto estivesse disposto a se arriscar dessa maneira, eu não estava.
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Minha tia podia me executar, mas seria uma morte rápida. Se eu quebrasse esse rígido tabu, ela ia me matar também, mas não seria uma morte rápida. Já tinha sido torturada antes. Era difícil evitar vivendo na Corte Profana. Mas nunca fui torturada pela própria rainha. Mas já tinha visto o trabalho dela. Era criativa, muito, muito criativa.
Prometi para mim mesma anos atrás que jamais daria a ela uma desculpa para ser criativa comigo.
- Já tenho uma sentença de morte, Sholto. Não vou arriscar ser torturada além disso.
- Se eu pudesse mantê-la viva e em segurança, qual seria o risco?
- Viva e em segurança? Como?
Ele apenas sorriu, levantou a mão e gritou:
- Táxi!
Três apareceram em poucos minutos na rua deserta. Sholto só pretendia chamar um táxi. Ele não sabia como era impressionante ser capaz de chamar três táxis em poucos minutos numa rua deserta de Los Angeles. Ele também era capaz de reanimar cadáveres que ainda não tinham esfriado, e isso era muito impressionante. Mas eu já vivia por três anos naquela cidade, e ter um táxi quando queremos é mais impressionante do que um morto ambulante. Afinal, eu tinha visto mortos ambulantes. Um táxi oportuno era um animal completamente novo.
Uma hora depois, Sholto e eu estávamos sentados em duas cadeiras lindas, mas desconfortáveis, a uma pequena mesa branca. O quarto era elegante, embora um pouco cor-de-rosa e dourado demais para o meu gosto. Havia vinho e uma bandeja com canapés nos aguardando sobre a mesa. O vinho era muito doce. Complementava o queijo na bandeja, mas batia de frente com o caviar. Mas é claro
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que nunca provei nada que tornasse caviar palatável. Por mais caro que fosse, continuava com gosto de ova de peixe. Sholto parece que gostou do vinho e do caviar.
- Champanhe seria mais apropriado, mas jamais gostei - ele disse.
- Estamos comemorando alguma coisa? - perguntei.
- Uma aliança, espero.
Bebi um gole diminuto daquele vinho doce e olhei para ele.
- Que tipo de aliança?
- Entre nós dois.
- Até aí eu adivinhei. Mas a questão, Sholto, é: por que quer fazer uma aliança comigo?
- Você é a terceira na fila da sucessão ao trono.
O rosto dele ficou impenetrável, muito cauteloso, de alguém que não queria que eu soubesse o que estava pensando.
- E daí? - disse eu.
Ele piscou aqueles olhos com três dourados para mim.
- Por que um encantado não ia querer se juntar à mulher que está a apenas dois passos do trono?
- Normalmente esse seria um raciocínio perfeito, só que você e eu sabemos que eu só continuo sendo a terceira na linha de sucessão, porque meu pai obteve o juramento da rainha antes de morrer. Ela teria me desqualificado apenas com o argumento da minha mortalidade, se não fosse por isso. Não tenho influência nenhuma na corte, Sholto. Sou a primeira princesa da linhagem que não tem magia.
Ele pôs a taça com cuidado na mesa.
- Você é uma das melhores entre nós todos com glamour pessoal - ele disse.
- É verdade, mas esse é o meu maior poder. Pelo amor da Deusa, continuo sendo NicEssus, filha de Essus. Um título que devia ter perdido quando passasse da infância para a posse do meu poder. Só que não recebi meu poder. E talvez nunca receba meu poder, Sholto. Isso basta para me tirar da linha de sucessão.
- Só que tem o juramento que a rainha fez para o seu pai - disse Sholto.
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- É.
- Eu sei o quanto sua tia a odeia, Meredith. Bem parecido com o que ela sente por mim.
Larguei a taça de vinho, cansada de fingir que estava gostando.
- Você tem mágica bastante para merecer um título na corte. Você não é mortal.
Ele ficou olhando para mim um tempo, um olhar duro, quase violento.
- Não seja ingénua, Meredith. Você sabe exatamente por que a rainha não suporta me ver.
Encarei aquele olhar duro, mas foi... desagradável. Eu realmente sabia, toda a corte sabia.
- Diga, Meredith. Diga em voz alta.
- A rainha desaprova seu sangue impuro. Ele fez que sim com a cabeça.
-É.
Sholto parecia quase aliviado. Foi desagradável ver aquela agressividade nos olhos dele, mas pelo menos era sincera. Até onde eu sabia, todo o resto era falso. Eu queria ver o que havia de fato por trás daquele belo rosto.
- Mas não é por isso, Sholto. Há mais mistura de sangue na realeza encantada agora do que puro-sangue.
- Certo - ele disse - ela desaprova a linhagem do meu pai.
- Não o fato de seu pai ser um voador noturno, Sholto. Ele franziu a testa.
- Se quer defender um argumento, então faça isso.
- Fora uma ou outra orelha pontuda, até você aparecer, a genética dos encantados superava qualquer miscigenação nossa.
- Genética - ele disse. - Esqueço que você é a nossa primeira formada numa faculdade moderna.
Sorri.
- Meu pai esperava que eu me tornasse médica.
- Você não cura com o toque, que tipo de médico é esse? Ele tomou um grande gole de vinho como se ainda estivesse agitado.
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- Um dia tenho de levá-lo para conhecer um hospital moderno - eu disse.
- Tudo que você quiser me mostrar será um prazer.
A emoção que quase transpareceu, qualquer que fosse, desapareceu numa onda de duplo sentido.
Ignorei esse duplo sentido e retomei minha investigação. Eu vi emoção real e queria ver mais. Se ia arriscar minha vida, precisava ver Sholto sem as máscaras que a corte nos ensinava a usar.
- Até você chegar, todos os encantados pareciam encantados, não importava com quem se misturavam. Eu acho que a rainha o vê como a prova de que o sangue dos encantados está ficando fraco, assim como a minha mortalidade mostra que está afinando.
Aquele rosto bonito cresceu de raiva.
- Os profanos pregam que todos os encantados são belos, mas alguns de nós são belos apenas por uma noite. Somos distrações, nada mais.
Vi a raiva corroer os ombros, descer pelos braços dele. Os músculos enrijeceram quando a raiva fluiu.
- Minha mãe - e ele cuspiu a palavra mãe - achou que teria uma noite de prazer e que não pagaria por isso.
Sholto mordia as palavras, a raiva se intensificava nos olhos, e os anéis coloridos neles ardiam feito chama amarela e ouro derretido.
Eu tinha rompido aquela imagem externa e atingido um nervo.
- Eu diria que foi você quem pagou esse preço, não sua mãe - eu disse. - Depois que você nasceu ela voltou para a corte, para a vida dela.
A raiva continuava evidente no rosto dele.
Falei com muito cuidado para toda aquela fúria, porque não queria que transbordasse em mim, mas gostei da raiva. Era real, não uma emoção calculada para obter alguma coisa. Ele não tinha planejado, ela apenas tomou conta dele. Gostei daquilo, gostei muito. Uma das coisas que amava em Roane era que as emoções dele ficavam muito perto da superfície. Ele jamais fingia algo que não sentia. Claro que essa característica era a mesma que tinha
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possibilitado a ida dele para o mar com sua nova pele de foca, sem nem se dar ao trabalho de se despedir. Ninguém é perfeito.
- E ela me abandonou com meu pai - disse Sholto.
Ele olhou para a mesa e depois lentamente olhou para mim com aqueles olhos extraordinários.
- Sabe quantos anos eu tinha quando voltei a ver um encantado? Balancei a cabeça.
- Eu tinha cinco anos. Cinco anos até ver alguém com a pele e os olhos iguais aos meus.
Sholto parou de falar e ficou imerso nas lembranças.
- Conte como foi - eu disse baixinho.
Com voz suave, parecia que ele falava sozinho.
- Agnes tinha me levado para brincar na floresta, numa noite escura e sem lua.
Eu queria perguntar se Agnes era a Agnes Negra que tinha conhecido aquela noite, mas deixei Sholto falar. Teria tempo para as perguntas quando o humor dele mudasse, e ele parasse de contar seus segredos. Tinha sido espantosamente fácil fazer com que se abrisse comigo. Em geral, quando é fácil assim romper a proteção de alguém, é porque a pessoa quer falar, precisa falar.
- Vi alguma coisa brilhando no meio das árvores, como uma lua na terra. Perguntei a Agnes o que era aquilo. Ela não quis dizer, apenas pegou minha mão e levou-me mais para perto da luz. Primeiro pensei que eles eram humanos, só que humanos não brilhavam com fogo por baixo da pele. Então a mulher virou de frente para nós e os olhos dela...
Havia uma mistura de deslumbramento e de dor nele, eu quase deixei por isso mesmo, mas resolvi insistir. Eu queria saber, se ele quisesse contar.
- Os olhos dela... - provoquei.
- Os olhos dela cintilavam, ardiam, azul, azul mais escuro e depois verde. Eu tinha cinco anos, portanto, não foi a nudez dela, nem o corpo dele sobre o dela, e sim o deslumbramento de ver aquela pele branca e aqueles olhos feito rodamoinho. Iguais aos meus, a pele igual à minha - Sholto olhava através de mim, como Se eu não estivesse lá - Agnes me arrastou para longe antes que
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os dois nos vissem. Eu fiz um monte de perguntas. Ela disse para perguntar a meu pai.
Ele piscou e respirou fundo, voltando de onde ele estava.
- Meu pai explicou o que eram os encantados e disse que eu era um deles. Meu pai me criou para acreditar que eu era encantado. Que não podia ser como ele. - Sholto deu uma risada áspera. - Chorei a primeira vez que entendi que jamais teria asas.
Olhou para mim desconfiado.
- Nunca contei isso para ninguém da corte. É algum tipo de mágica que fez comigo?
Ele não acreditava realmente que era um feitiço, senão estaria aborrecido, talvez até amedrontado.
- Quem mais na corte além de mim entenderia o que essa história significa? - perguntei.
Ele ficou olhando para mim, depois meneou a cabeça devagar.
- E, apesar de seu corpo não ser desfigurado como o meu, você também é uma marginal. Eles não deixam que participe.
Essa última frase foi dita por nós dois, eu acho.
Sholto apertava tanto a mesa com as mãos que elas estavam machucadas. Toquei nelas, e ele puxou para trás, como se eu o tivesse machucado. Ia retirar as mãos para eu não poder alcançá-las, mas parou no meio do movimento. Vi o esforço que fez para pôr as mãos de novo sobre a mesa. Sholto agia como alguém que espera ser agredido.
Cobri suas mãos grandes com a minha, ou quase. Ele sorriu e foi o primeiro sorriso verdadeiro que eu vi, porque esse era inseguro, sem saber se seria bem-vindo. Não sei o que ele viu no meu rosto, mas o que quer que tenha sido serviu para tranquilizá-lo, porque ele abriu as mãos, segurou a minha e levantou-a devagar até encostar nos seus lábios. Ele não chegou a beijar, apenas apertou minha mão na boca. Foi um gesto surpreendentemente terno. A solidão pode formar laços mais fortes do que todos os outros. Quem mais, em qualquer das duas cortes, entendia nossos corações melhor do que nós mesmos? Não era amor, não era amizade, mas mesmo assim era um laço.
Quando levantou a cabeça da minha mão, ele olhou nos meus olhos com uma expressão que raramente se via nos encantados,
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aberta, nua. Havia uma carência tão enorme naqueles olhos que era como olhar para um vazio infinito, um poço profundo de alguma coisa que faltava. Os olhos dele eram selvagens como os de alguma criatura, de uma criança criada entre animais. Algo indomado, mas terrivelmente ferido. Será que meus olhos ficavam assim? Eu esperava que não.
Sholto soltou minha mão sem querer, relutante.
- Nunca fiquei com outra encantada, Meredith. Você entende o que isso significa?
Eu entendia, talvez melhor do que ele, porque a única coisa pior era já ter tido e depois ser negado. Mas mantive minha voz neutra porque estava começando a temer para onde estávamos indo e, por mais simpatia que nutrisse por ele, não valia ser torturada até a morte.
- Você fica imaginando como seria. Ele fez que não com a cabeça.
- Não. Eu desejo a visão de carne branca embaixo de mim. Quero que o meu brilho seja alcançado por outra. Eu quero isso, Meredith, e você pode me dar isso.
Sholto estava chegando ao ponto que eu temia.
- Eu já disse a você, Sholto. Não vou arriscar ser torturada até a morte, por prazer nenhum. Ninguém, nada vale isso.
Eu estava sendo sincera.
- A rainha gosta de fazer seus guardas assistirem quando ela está com seus amantes. Alguns se recusam a olhar, mas a maioria de nós fica, pensando na possibilidade remota de ela talvez nos chamar para nos juntar a eles. "Vocês são meus guarda-costas. Não querem guardar minhas costas?" - ele fez uma boa imitação da voz dela. - Mesmo quando ela pretende ser cruel, o amor de dois encantados é uma coisa deslumbrante. Eu daria minha alma Por isso.
Fiz a minha melhor cara de paisagem.
- Eu não tenho o que fazer com a sua alma, Sholto. O que mais Pode me oferecer que valeria a pena arriscar a morte por tortura?
- Se for minha amante encantada, Meredith, a rainha saberá o que você significa para mim. Eu vou fazê-la entender que se alguma
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coisa acontecer com você ela perderá a lealdade dos sluagh. Ela não pode se dar a esse luxo agora.
- Por que não faz esse trato com outras mulheres encantadas mais poderosas?
- As mulheres da Guarda do Príncipe Cel têm a ele, para fazer sexo e, diferente da rainha, Cel as mantém ocupadas.
- Quando saí de lá algumas mulheres estavam começando a se recusar a ir para a cama de Cel.
Sholto sorriu alegremente.
- O movimento ficou bastante popular. Ergui as sobrancelhas.
- Está dizendo que o pequeno harém de Cel está virando as costas para ele?
- Cada vez mais. - Sholto continuava satisfeito.
- Então por que não faz esse convite para uma delas? Elas todas são mais poderosas do que eu.
- Talvez pelo que você disse antes, Meredith. Nenhuma delas me entenderia como você.
- Acho que as está subestimando. Mas o que será que Cel poderia estar fazendo para elas o abandonarem assim? A rainha é uma sádica, mas seus guardas andariam de quatro sobre cacos de vidro para ir para a cama com ela. O que Cel oferece que é pior do que isso?
Não esperava resposta, mas não conseguia imaginar nada pior. O sorriso sumiu do rosto de Sholto.
- A rainha fez isso uma vez - ele disse.
- O quê?
- Fez um de nós engatinhar sobre cacos de vidro. Se não demonstrasse dor, ela transaria com ele.
Quase não acreditei. Tinha ouvido falar de coisa pior. Ora, eu tinha visto coisa pior. Mas uma parte de mim queria saber quem era, por isso perguntei.
- Quem foi?
Ele balançou a cabeça.
- Nós juramos manter segredo das humilhações. Nosso orgulho, se não nossos corpos, sobrevivem melhor assim.
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O olhar de Sholto se perdeu novamente. De novo pensei o que Cel podia estar fazendo que era pior do que os joguinhos da rainha.
- Por que não faz essa oferta para uma mulher encantada mais poderosa que não seja membro da Guarda do Príncipe? - perguntei.
Ele deu um sorriso apagado.
- Há mulheres na corte que não são da Guarda do Príncipe, Meredith. Elas não encostavam em mim antes de eu pertencer à Guarda da Rainha. Temem trazer mais criaturas pervertidas para o mundo. - Ele deu risada, um som estranho, quase choro, que doía ouvir. - E disso que a rainha me chama, de sua "criatura pervertida", às vezes só de "criatura". Daqui a alguns séculos eu serei como Frost é para sua Darkness. Serei sua Criatura. - Ele deu aquela risada sofrida outra vez. - Sou capaz de arriscar muita coisa para evitar que isso aconteça.
- Ela realmente precisa tanto assim do apoio dos sluagh, tanto que desistiria de me matar, desistiria de castigá-lo por ir contra seu tabu mais rígido? - Balancei a cabeça. - Não, Sholto, ela não pode deixar isso acontecer. Se nós descobrirmos uma maneira de dar a volta no tabu de celibato dela, outros vão tentar também. Será como a primeira rachadura numa represa. Vai acabar estourando.
- Ela está perdendo o controle, Meredith, perdendo o domínio da corte. Esses três anos não foram bons para ela. A corte está se fragmentando sob o peso do comportamento errático dela, e o Príncipe Cel está crescendo... - Sholto parecia não encontrar as palavras, depois continuou: - Quando assumir o poder, Cel vai fazer Andais parecer normal. Será como Calígula depois de Tibério.
- Está dizendo que se achamos que a coisa está feia agora, é porque ainda não vimos nada?
Tentei fazer Sholto sorrir, mas falhei. O olhar dele parecia obcecado.
- A rainha não pode perder o apoio dos sluagh. Pode acreditar em mim, Meredith, não tenho vontade nenhuma de acabar à mercê da rainha, como você também não.
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"À mercê da rainha" tinha virado uma expressão muito usada entre nós. Quando tínhamos medo de alguma coisa, dizíamos: "Prefiro ficar à mercê da rainha a fazer isso." Queria dizer que nada era mais assustador.
- O que quer de mim, Sholto?
- Quero você - ele disse, olhando diretamente para mim. Tive de sorrir.
- Você não me quer, quer uma encantada na sua cama. Lembre que Griffin me rejeitou porque eu não era bastante encantada para ele.
- Griffin era um idiota.
Sorri de novo e pensei nas palavras de Uther mais cedo naquela noite, quando disse que Roane era um idiota. Se todos eram idiotas porque me abandonavam, por que continuavam fazendo isso? Olhei para ele e procurei ser direta também.
- Eu nunca fui para a cama com um voador noturno.
- É considerado perversão pelos que não consideram nada perversão - disse Sholto, com voz amarga. - Eu não esperava mesmo que você tivesse tido alguma experiência conosco.
Conosco. Pronome interessante. Se me perguntassem o que eu era, diria que era encantada, não humana e não fada. Eu era encantada e se me pressionasse, era profana, para o bem ou para o mal, embora pudesse assumir o sangue das duas cortes. Mas jamais diria "nós", ou "conosco", quando falasse de qualquer coisa além dos encantados profanos.
- Depois que minha tia, nossa amada rainha, tentou me afogar quando eu tinha seis anos, meu pai providenciou guarda-costas encantados para mim. Um deles era um voador noturno aleijado, Bhatar.
Sholto meneou a cabeça.
- Ele perdeu uma asa na última batalha real da qual participou em solo americano. Quase todas as partes do nosso corpo crescem de novo, por isso esse ferimento dele foi considerado muito grave.
- Bhatar ficava no meu quarto à noite. Nunca saía do meu lado quando eu era criança. Papai me ensinou a jogar xadrez, mas Bhatar me ensinou a derrotar meu pai.
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Eu sorri ao lembrar.
- Ele ainda fala bem de você - disse Sholto. Eu ia perguntar, mas balancei a cabeça.
- Não, ele jamais diria para você fazer isso. Jamais arriscaria a minha segurança, nem a sua. Sabe, ele também falou bem de você, Rei Sholto. O melhor rei que os sluagh tiveram em duzentos anos, era isso que ele costumava dizer.
- Estou lisonjeado.
- Você sabe o que o seu povo pensa de você.
Tentei traduzir a expressão dele. A carência estava lá, mas carência podia mascarar muitas coisas.
- E as bruxas, seu pequeno harém?
- O que têm elas? - ele perguntou, mas com um olhar que indicava que aquelas palavras casuais eram mentira.
- Elas queriam me machucar para me afastar de você. O que acha que elas vão fazer se realmente me levar para a cama?
- Sou o rei delas. Elas me obedecem.
Então eu ri, mas não com amargura, apenas ironia.
- Você é rei de um povo encantado, Sholto, eles nunca fazem exatamente o que você diz, nem exatamente o que pensa que farão. Dos encantados às fadinhas, todos são livres. Conte com a obediência deles e estará se expondo ao perigo.
- Como a rainha fez por um milênio?
Ele fez soar como meio pergunta e meio afirmação. Sorri e confirmei balançando a cabeça.
- Como o rei da Corte Abençoada fez por mais tempo ainda.
- Sou um rei novo comparado a eles e não tão arrogante.
- Então diga sinceramente o que suas amantes bruxas farão se abandoná-las para ficar comigo?
Ele pensou um minuto e ficou sério quando disse:
- Eu não sei. Quase dei risada.
- Você é novo nessa coisa de rei. Nunca ouvi nenhum admitir ignorância antes.
- Não saber uma coisa não é ignorância. Fingir conhecimento que não tem pode ser - ele disse.
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- Sábio, além de modesto. Isso é mesmo inédito para a realeza encantada.
Lembrei uma coisa que queria perguntar.
- A Agnes que o levou para a floresta quando menino, sua babá, era a Agnes Negra?
- Era - ele disse. Procurei não franzir a testa.
- Sua ex-babá agora é sua amante?
- Ela não envelheceu - disse ele - e agora eu já estou crescido.
- Ser criado por seres imortais é bastante confuso, eu admito, mas ainda há encantados que ajudaram a me criar que não considero dessa maneira.
- Como há entre os sluagh para mim, mas Agnes não é um deles.
Eu queria perguntar por quê, mas não perguntei. Em primeiro lugar, porque não era da minha conta. Segundo, porque eu podia não entender a resposta mesmo se ele a desse.
- Como sabe que a rainha pretende me executar com certeza? Voltamos ao assunto importante.
- Fui enviado a Los Angeles para matá-la.
Ele disse isso como se não significasse nada, sem emoção, sem arrependimento, apenas relatando um fato.
Meu coração se acelerou um pouco, parei de respirar. Tive de me concentrar para soltar o ar sem dar na vista.
- Se eu não concordar em ir para a cama com você, você executará a sentença?
- Eu jurei que não lhe faria mal. Falei sério.
- Você desobedeceria a rainha por mim?
- A mesma lógica que nos mantém a salvo se formos para a cama me mantém em segurança se eu deixá-la viva. Ela precisa mais dos meus sluagh do que da vingança.
Ele parecia muito seguro dessa lógica. Certeza do que ele tinha certeza, incerteza sobre todo o resto... como a maioria de nós, se somos sinceros. Examinei aquele rosto forte, os maxilares um pouco largos demais para o meu gosto, os ossos da face um pouco esculpidos demais. Eu gostava de uma aparência mais suave nos
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meus homens, mas ele era indiscutivelmente belo. O cabelo era perfeitamente branco, grosso e liso, preso num rabo de cavalo, chegava até os joelhos como o dos encantados mais velhos, apesar de Sholto ter apenas uns duzentos anos. Os ombros eram largos, o peito parecia forte por baixo da camisa social branca. A camisa parecia totalmente lisa, e fiquei imaginando se ele não estava usando algum glamour para provocar esse efeito, porque sabia que o que havia por baixo não era nada liso.
- Essa oferta foi muito inesperada, Sholto. Preciso de um tempo para pensar nisso.
- Até amanhã à noite - ele disse.
Fiquei de pé. Ele também se levantou. Olhei para o peito e para a barriga dele, querendo ver aquele movimento que tinha notado quando estávamos na rua. Não vi nada, ele usava muito glamour para disfarçar.
- Não sei se posso fazer isso - eu disse.
- O quê? - ele perguntou. Apontei para a barriga dele.
- Vi você um dia sem camisa, quando eu era bem mais jovem. Aquela visão... nunca mais esqueci.
Sholto ficou pálido, e o olhar endureceu. Estava refazendo os muros em volta dele.
- Eu compreendo. A ideia de tocar em mim a assusta. Eu compreendo, Meredith. - Ele deu um longo suspiro. - Foi bom enquanto durou.
Sholto deu as costas para mim e pegou o casaco militar comprido das costas da cadeira. O rabo de cavalo comprido parecia uma faixa branca ao longo do corpo dele.
- Sholto.
Ele não se virou, apenas jogou o cabelo sobre um ombro enquanto vestia o casaco.
- Eu não disse que não, Sholto.
Então ele deu meia-volta. Com a expressão fria, calculada, todas as emoções que eu fiz aflorar com tanto esforço enterradas de novo.
- E o que está dizendo?
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- Estou dizendo que não haverá sexo esta noite, mas que não posso dizer que sim, farei sexo com você, até poder pensar em tudo.
- Tudo?
- Agora quem está sendo ingênuo? - eu disse.
Vi a ideia se formar no rosto dele, nos olhos. Um sorriso estranho brincou nos lábios dele.
- Está pedindo para me ver sem roupa?
- Tudo não. - Tive de sorrir com a cara que ele fez. - Até as coxas sim, por favor. Tenho de ver como me sinto com os seus... extras.
Ele sorriu, um sorriso simpático com um toque de insegurança. Era o sorriso sincero, aquela mistura de charme e de medo.
- Essa foi a definição mais bondosa que já ouvi.
- Se eu não puder estar com você feliz, com prazer compartilhado, então seu sonho de combinar seu brilho com outro desmorona. Um encantado não brilha por coisas que são obrigação e não prazer.
Ele fez que sim com a cabeça.
- Eu entendo.
- Espero que sim, porque é mais do que vê-lo nu. Preciso tocar e ser tocada para saber se... - Abri as mãos e os braços. - Se posso fazer isso.
- Mas nada de sexo esta noite?
A voz dele ficou mais amigável do que nunca.
- Você sonha ter essa relação que nunca teve com uma encantada. Eu já tive e por três, quase quatro anos, passei sem ela. Sinto saudade de casa, Sholto. Por mais estranho e perverso que pareça, sinto muita saudade. Se concordar com isso, terei um amante encantado e poderei ir para casa. Sem falar que vou escapar de uma sentença de morte. Você não é um destino pior do que a morte, Sholto.
- Alguns pensaram assim em todos esses anos.
Ele tentou imprimir um tom jocoso, mas seus olhos o traíram.
- Por isso preciso ver no que estou me metendo.
- Eu suscito a questão do amor, ou será que isso é ingênuo demais para um rei e uma princesa? - ele perguntou.
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Eu sorri, mas, dessa vez, foi um sorriso triste.
- Experimentei o amor uma vez e fui traída por ele.
- Griffin não vale nada, Meredith, não vale essa emoção profunda e certamente não é capaz de corresponder.
- Eu acabei descobrindo isso - eu disse. - O amor é maravilhoso enquanto dura, Sholto, só que não dura.
Nós nos entreolhamos. Imaginei se meu olhar estava tão cansado e cheio de arrependimento como o dele.
- Devo argumentar e dizer que alguns amores duram, sim? - perguntou Sholto.
- Vai fazer isso?
Ele sorriu e balançou a cabeça.
- Não.
Estendi a mão para ele.
- Nada de mentiras, Sholto, nem as socialmente aceitáveis. A mão dele estava quente.
- Vou levá-lo para a cama para ver o que está em jogo para mim.
Ele deixou que eu o levasse para a cama.
- E eu vou ver o que está em jogo para mim? Puxei-o para a cama para poder ver o rosto dele.
- Se quiser.
O que passou nos olhos dele não foi encantado, nem humano, nem sluagh, foi simplesmente masculino.
- Eu quero - ele disse.
Soltei a mão dele para subir na cama, ainda de costas, olhando para ele. Tirei a arma da cintura e enfiei-a embaixo de um travesseiro, deitei no meio da cama, apoiada nos cotovelos. Sholto ficou de Pé ao lado da cama, olhando para mim. Deu um estranho meio sorriso. Os olhos pareciam inseguros, não tristes, apenas inseguros. - Você parece muito segura e satisfeita - ele disse.
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- Nunca é ruim ver um belo homem nu pela primeira vez. O sorriso dele desapareceu.
- Belo? Ninguém que sabia o que havia embaixo da minha camisa me chamou de belo antes.
Deixei que meu olhar falasse por mim, no rosto dele, nos olhos, no nariz forte e quase perfeito, na boca fina e larga. O resto do corpo parecia maravilhoso, mas eu sabia que pelo menos parte do que estava vendo era redesenhado pela magia. Só não sabia quanto. Mas continuei olhando para as partes que tinha certeza de que eram reais, a estreiteza dos quadris, as pernas compridas e fortes. Só depois de vê-lo sem calça saberia o que era aquele volume, por isso passei por ele na minha cabeça e com os olhos. A rainha tinha razão, era uma pena. Ele era magnífico, sem dúvida.
- Eu fantasiei uma mulher encantada olhando para mim desse jeito. - Ele ainda parecia solene demais.
- De que jeito?
Fiz a pergunta em voz baixa, sensual, provocante. Ele sorriu.
- Como se eu fosse um petisco.
Sorri também e fiz tudo que ele queria, tudo de que ele precisava.
- Petisco, hein? Abra o casaco e a camisa e quem sabe a gente chega lá.
- Mas lembre que é sem sexo esta noite - ele disse.
- Que tal apenas sem orgasmo?
Ele jogou a cabeça para trás e deu risada, uma risada ruidosa e alegre. Olhou para mim com olhos brilhantes e não era mágica que os fazia brilhar, apenas o riso. Parecia mais jovem, mais à vontade. Notei que com aquela pele e cabelo brancos, com aqueles olhos dourados, ele seria bem-vindo na Corte Abençoada. Se não tirasse a camisa eles jamais suspeitariam.
O riso perdeu um pouco o brilho.
- Agora é você que parece séria - ele disse.
- Estava pensando que você parece mais Corte Abençoada do que eu.
Ele franziu o cenho.
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- Está se referindo ao cabelo castanho avermelhado?
- E a minha pouca altura, aos seios um pouco volumosos demais para o estilo encantado.
Sholto sorriu de repente, um sorriso largo e aberto.
- Só podem ser as outras mulheres que estão reclamando dos seios. Nenhum homem imaginaria isso.
Achei graça.
- Tem razão. Minha mãe, minha tia, minhas primas.
- Estão apenas com inveja - ele disse.
- É bom pensar assim - eu disse.
Ele deixou o casaco cinza cair no chão, desabotoou um punho. Observou meu rosto enquanto fazia isso. Soltou o outro punho e passou para o primeiro botão da camisa, para o segundo, e afastou o tecido para expor um triângulo de pele branca e cintilante. Foi para o terceiro botão e revelou os peitorais saltados. Segurou o quarto botão, mas não o desabotoou.
- Quero pedir um beijo agora, antes de você ver.
Eu teria perguntado por quê, mas achei que já sabia. Ele estava com medo de que depois de eu vê-lo todo não houvesse beijo.
Engatinhei na cama para perto dele. Sholto pôs as mãos na cama e se ajoelhou. Abaixou-se até o queixo quase encostar na cama, com as mãos espalmadas na colcha.
Fiquei de quatro acima dele. Ele olhou para mim, abaixei a cabeça em posição parecida com a de flexão. Dei-lhe o beijo, um toque suave de lábios, e Sholto já ia se afastando. Toquei no rosto dele.
- Ainda não - eu disse.
Sholto tinha razão. Quando eu visse todos os seus "extras", ele talvez não ganhasse outro beijo. Se aquele era o único toque de mãos encantadas que ele teria, eu queria que fosse memorável. Um beijo não podia compensar o fato de nunca ter sentido o toque da Pele de uma encantada, mas era tudo que eu podia oferecer. Do jeito dele, Sholto era tão solitário como Uther.
Ele encostou o queixo de novo na cama e olhou para mim. Esperou pacientemente, passivo, aguardando o que eu ia fazer. Naquele instante tive a resposta de outra pergunta. Se eu ia comprometer minha vida inteira a outra pessoa, tínhamos de ter mais em
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comum do que apenas o sangue encantado. Ele teria de compartilhar o meu gosto pela dor.
Deitei na cama, com o rosto na altura do rosto dele.
- Abra a boca, só um pouco - eu disse.
Ele obedeceu, sem questionar. Gostei disso. Beijei de leve suavemente, o lábio superior. Usei a língua para abrir mais sua boca, depois a explorei com meus lábios e língua. No início ele estava totalmente passivo, permitiu que eu explorasse sua boca, depois retribuiu o beijo. Sholto beijou-me lentamente, com certa hesitação, como se fosse sua primeira vez, e eu sabia que não era. Então apertou a boca na minha com mais força, mais desejo.
Mordi o lábio inferior ainda de leve, mas com firmeza. Ele gemeu baixinho e se ergueu nos joelhos, puxou-me com ele, segurou meus braços. Amassou meus lábios com o beijo. Um beijo tão forte que chegou a doer, e tive de abrir mais a boca para deixar seus lábios, sua língua, sua boca entrar na minha completamente, tão profundo quanto ele queria lamber e chupar, para não me machucar.
Ele me empurrou para trás, eu deixei, mas notei que mantinha o corpo afastado do meu, usando as mãos como apoio para só encostar sua boca na minha. Virei um pouco a cabeça para ver todo ele. Sentia o corpo de Sholto sobre o meu como uma linha trêmula de energia. Era como se o peso dele já estivesse em cima de mim, como se já pudesse sentir a pressão. A aura dele, a mágica, eram concretas como um segundo corpo que saía dele. Essa pressão de poder me deixou sem ar e fez meu coração acelerar. A mágica dele puxava o sangue no meu corpo como um ímã atrai o metal.
Mesmo quando Roane estava coberto de Lágrimas de Branwyn não foi assim. Foi maravilhoso, mas não assim. E era aquilo que eu queria, precisava, ansiava. Sholto olhou para mim com carinho, um certo deslumbramento.
- O que é isso?
Vi que ele sentia meu poder, como eu sentia o dele. Eu podia simplesmente dizer: "É mágica", mas a última vez que estive com outro encantado, era Griffin, e ele explicou que meu poder emitia um brilho menor, mais apagado. Naquela época acreditei nele.
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não acreditava mais. Tive de perguntar, porque talvez não estivesse nunca mais com outro encantado. Não poderia aplacar dúvidas que Griffin tinha plantado na minha cabeça.
- O que está sentindo? - perguntei.
- Um calor que parece sair do seu corpo, que pressiona minha pele.
Ele se equilibrou num braço e usou a mão livre para indicar o ar entre nós, como se acariciasse algo concreto. A sensação da mão dele alisando minha aura fez com que eu fechasse os olhos, e meu corpo se contorceu sob aquele não toque.
Ele fez força contra a energia, e mesmo de olhos fechados eu sabia onde estava a mão dele.
- Isso se prende à minha mão, é como se fosse um pote cheio de alguma coisa que suga minha pele - disse Sholto, ofegante, deslumbrado.
Senti a mão dele forçando passagem na energia, era meu corpo debaixo d'água e sua mão trazendo ar frio. Ele não só encostou no lado do meu corpo, ele rompeu meus escudos, forçou sua mágica para dentro de mim. Arregalei os olhos, parei de respirar. Tive de soltar o meu poder, cobri-lo como quem põe a mão sobre uma ferida.
Ele estremeceu todo ao toque da minha mágica. Olhou para mim com a boca entreaberta, o coração latejando prisioneiro na pele frágil de sua garganta.
- Eu não tinha ideia do que estava perdendo. Concordei com ele ali deitada, sentindo a mão dele pesar nas costelas.
- Isso é só o começo - eu disse com a voz rouca, quase um sussurro.
Não estava tentando ser sexy, era a voz que restava com a Pressão do corpo dele sobre o meu. Naquele momento não consegui pensar em nenhuma deformidade que me impedisse de dizer sim.
Pus as mãos na camisa dele. Sholto tirou a mão de mim para Poder apoiar o peso com as duas mãos, e eu alcançar os botões da camisa. Desabotoei um. Nada apareceu. Desabotoei outro. O poder tremulava como calor subindo do asfalto.
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- Desfaça a ilusão, Sholto. Deixe-me ver.
- Estou com medo - ele disse sussurrando.
- Você acha mesmo que eu ia querer perder essa chance? Quero acabar com esse exílio, Sholto. Estou cansada de fingir, de me acomodar. Quero tudo de volta.
Acariciei o pescoço dele, e a combinação do nosso poder fluiu nas costas da minha mão como um véu invisível.
- Carne de encantado, prazer igual ao meu, caminhar nas colinas sagradas e ser bem-vinda. Eu quero ir para casa, Sholto. Ponha de lado o seu glamour e deixe-me ver como você é.
Ele fez o que eu pedi. Os tentáculos se derramaram da camisa, e vieram à minha mente analogias como ninho de serpentes ou intestinos à mostra quando se abre a barriga de alguém. Fiquei paralisada e, dessa vez, quando parei de respirar, não foi pela paixão.
Sholto começou a se afastar imediatamente, levantou-se e virou para eu não poder ver. Tive de agarrar o braço dele para impedi-lo de fazer isso. Minha reação bloqueou a mágica entre nós, ou melhor, foi a reação dele diante da minha. O braço dele era apenas um braço, quente e vivo, nada mais.
Agarrei com força, com as duas mãos. Tentei virá-lo de novo, de frente para mim, mas ele resistiu. Fiquei de joelhos, ainda segurando o braço dele, mas estendi uma mão pela frente do corpo dele para pegar a ponta da camisa do outro lado. Nada encostou em mim quando fiz isso, e meu braço devia ter encostado em muitas coisas. Ele tinha posto o glamour para funcionar outra vez. Eu não estava sentindo o que havia lá.
Puxei-o de frente para mim. A camisa estava aberta até o meio da barriga. Peito e barriga muito claros, musculosos, lisos, perfeitos. Desabotoei mais um botão, e a barriga que apareceu era de pedra, como um anúncio de antes e depois de uma academia de musculação. Sholto deixou que eu desabotoasse tudo e tirasse a camisa dos ombros de modo que ficasse exposto até o cinto de couro, mas não olhava para mim.
- Acho que se vai se esconder atrás do glamour, pode muito bem ficar assim, lindo.
Nessa hora ele olhou para mim e parecia zangado.
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- Se essa fosse minha verdadeira aparência, você não me rejeitaria.
- Se essa fosse sua aparência verdadeira, você jamais se tornaria rei da Hoste.
Alguma coisa passou nos olhos dele, não consegui decifrar, mas qualquer coisa era melhor do que a raiva eivada de amargura.
- Eu seria um nobre da Corte Encantada - ele disse.
- Um lorde, nada mais que isso. A linhagem da sua mãe não merece título maior.
- Eu sou um lorde - ele disse.
- É, pelo seu poder, por mérito próprio. A rainha não podia deixar tal poder sair da nossa corte sem um título.
Ele sorriu, mas foi um sorriso amargo, e a raiva voltou aos seus olhos.
- Está dizendo que é melhor governar no inferno do que servir no céu?
Balancei a cabeça.
- Nunca, mas estou dizendo que você já tem tudo que o sangue da sua mãe poderia dar e que é um rei.
O rosto dele assumiu a máscara da arrogância de novo. A que vi tantas vezes na corte.
- O sangue da minha mãe poderia ter me dado você.
- Eu não o rejeitei - eu disse.
- Vi a cara que fez, senti a relutância do seu corpo. Você não precisa dizer em voz alta para ser verdade.
Comecei a puxar a camisa dele da calça. Ele segurou minhas mãos.
- Não faça isso.
- Se você desistir agora, está tudo acabado. Desfaça as ilusões, Sholto, deixe-me ver.
- Já fiz isso.
Ele arrancou a camisa das minhas mãos com tanta força que quase me arrastou para fora da cama quando se afastou.
- Seria bom se eu pudesse abraçá-lo sem me assustar. Sinto não ter podido fazer isso, mas dê uma chance para esta garota. A primeira visão é forte.
170 LAUREU K HAMILTON
Ele balançou a cabeça.
- Você tem razão, sou rei dos sluagh. Não serei humilhado. Sentei na beirada da cama e olhei para ele. Ele parecia perfeito, apesar de um pouco mal-humorado. Mas não era real, e eu tinha passado os últimos anos me escondendo, fingindo. O disfarce, por mais lindo que seja, envelhece. Apesar de rejeitado, ninguém simbolizava melhor a Corte Profana do que Sholto. Combinação de beleza inacreditável e horror, não só lado a lado, mas fundidos. Um não podia existir sem o outro. Assim, Sholto era o casamento perfeito de tudo que a corte defendia, e o rejeitavam porque temiam que ele fosse de fato a síntese do encantado profano. Duvidei que pensassem com essa clareza toda, não chegariam a essa descrição dele, mas era isso que temiam em Sholto, não o fato de ele ser alienígena, e sim o fato de ele não ser.
- Não posso dar minha palavra de que não vou ficar chocada na segunda vez, mas posso dar minha palavra de que vou tentar.
No olhar dele, a arrogância funcionava como um escudo.
- Isso não basta.
- É o melhor que tenho para oferecer. O medo da rejeição realmente vale perder seu primeiro contato com uma encantada assim tão depressa?
Ele ficou em dúvida.
- Se você não tiver... estômago para isso - ele achou graça na frase mas não com alegria - eu posso usar o glamour e...
Terminei a frase quando ele parou de falar.
- Sim, podemos.
- Isso foi o mais próximo que cheguei de implorar. Dei risada.
- Sorte sua.
Ele ficou confuso, e foi quase um alívio ver o verdadeiro Sholto espiando de trás daquela cautelosa máscara.
- Não entendi.
- Sua mágica deve ser bastante poderosa para você não entender mesmo.
Agora era a minha vez de falar com amargura. Descartei isso balançando a cabeça e fazendo meu cabelo esvoaçar em volta do rosto. Estendi as mãos para ele.
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- Venha aqui.
Ele ficou muito desconfiado. Não podia culpá-lo disso, mas já estava ficando cansada de segurar sua mão emocional. Não queria magoá-lo, só que não sabia ao certo se queria me prender a ele para sempre. Não eram os tentáculos, eram as emoções pesadas que mudavam com tanta rapidez. Ele ia ser um parceiro com manutenção cara no que dizia respeito aos sentimentos. Homens assim são tão exaustivos que costumo evitá-los, mas Sholto oferecia coisas que os outros não tinham. Ele podia me dar de volta o meu lar e por isso eu era capaz de superar a merda emocional, por um tempo. Mas aquilo era quase uma marca maior contra ele do que seus extras.
- Largue essa camisa e venha para cá ou não venha. A escolha é sua.
- Você parece impaciente - ele disse. Dei de ombros.
- É, um pouco.
Fiz sinal para ele se aproximar.
Sholto tirou a camisa dos ombros e deixou-a cair no chão. Um emaranhado de emoções tomou conta do rosto dele. Ele acabou escolhendo o desafio. Por mim, tudo bem, porque sabia que o que transparecia no rosto dele não era o que ele realmente sentia. Sholto usaria uma máscara até ter certeza de que era aceito.
Ele desfez o glamour.
Procurei observar tudo nele quando Sholto se aproximou, mas acabei desistindo e só consegui olhar fixo para a barriga. Os tentáculos eram brancos, cintilantes, como todo o resto. Havia um efeito marmorizado muito sutil nos tentáculos mais grossos, e Bhatar tinha me contado que esses eram os braços musculosos, os tentáculos que faziam o trabalho pesado. Havia tentáculos mais compridos e finos reunidos em torno das costelas e na parte de cima da barriga.
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Esses eram os dedos, só que cem vezes mais sensíveis do que os dedos de um encantado. Logo acima do umbigo havia uma faixa de tentáculos mais curtos, com as pontas um pouco mais escuras. A existência desses me fez pensar ainda mais se o que havia dentro da calça era encantado ou não.
Sentei na cama e continuei olhando fixo, até ele parar na minha frente. Ele não olhava para mim, estava com as mãos para trás, parecia que não queria me ver, nem tocar em mim. Toquei em um daqueles tentáculos lisos e musculosos. O tentáculo recuou imediatamente quando encostei nele. Então eu o acariciei e senti que Sholto olhava para mim.
Alisei de novo a pele do tentáculo.
- Esses são para trabalho pesado, levantar peso, capturar a presa, ou prisioneiros.
Passei o dedo na parte de baixo do tentáculo e senti a textura um pouco diferente. Não era desagradável, mas mais grossa do que a pele humana, quase emborrachada, como a pele de um golfinho.
- Imagino que Bhatar contou isso para você.
- Foi.
Segurei a base do tentáculo, onde se juntava ao corpo dele. Puxei suavemente, mas com firmeza, deslizando minha mão até a ponta. A coisa se enrolou na minha mão e afastou-se de Sholto.
- Não faça isso - ele disse.
- Foi gostoso, não foi? - perguntei.
Ele olhou para mim com muita raiva, muito assustado.
- Como sabe o que é gostoso para um voador noturno?
- Eu perguntei, não afirmei.
Sholto se espantou, e eu consegui livrar minha mão. Toquei num grupo de tentáculos mais finos. Eles encolheram como as gorgônias, quando um mergulhador encosta nelas num mar de coral.
- Bhatar conseguia fazer os bordados mais intrincados com esses dedos.
Abaixei a mão mas não cheguei a tocar na última linha visível de tentáculos.
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- Esses são muito sensíveis, podem ser usados para as tarefas táteis mais sofisticadas, só que na verdade são órgãos sexuais secundários.
Sholto ficou chocado.
- Não costumamos revelar isso para estranhos.
- Eu sei - respondi sorrindo. - Bhatar acariciava as damas que iam nos visitar com eles. Elas em geral tinham medo de pedir para ele se afastar porque não queriam ofendê-lo e assim ofender meu pai. Quando finalmente voltei para a corte, notei que a Hoste muitas vezes esfregava esses tentáculos nos não sluagh. É uma espécie de brincadeira que vocês fazem conosco. Encostam o que, afinal, é o torso, e não sabemos de nada.
- Mas você sabe - ele disse.
- Gosto de uma boa piada quando não sou a vítima dela. Passei a mão num movimento longo por cima daquela última fila de órgãos.
Ele soltou o ar com um suspiro. Manteve a expressão desafiadora, defensiva. Nem condenei Sholto por isso. Eu tinha muita mistura genética em meus ancestrais e não me dava esse direito.
Toquei neles suavemente, e os tentáculos começaram a se entrelaçar com meus dedos. As pontas eram levemente preênseis, não tanto como os de cima, mas havia uma pequena depressão no lado de cada um dos tentáculos. Passei o dedo em uma dessas depressões. Sholto estremeceu.
- Suponho que essa seja uma carícia específica quando está com uma voadora noturna, não é?
Ele fez que sim com a cabeça, não disse nada.
- O que eles podem fazer por mim?
Fiz essa pergunta por diversos motivos. Primeiro, por curiosidade. Segundo, porque eu tinha de saber se ia deixar que ele tocasse intimamente em mim com os tentáculos. Eu estava encostando neles de modo quase distante, científico. Você faz X, acontece Y. O distanciamento podia permitir que eu tocasse nele, mas não ia valer como sexo para mim.
Ele abaixou as mãos, só que isso pôs os tentáculos mais grossos todo juntos no meu rosto. Dei um pulo para trás. Sholto se
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endireitou imediatamente. Ele talvez tivesse se afastado de novo nesse momento, mas eu agarrei um punhado dos tentáculos de baixo. Ele ficou imóvel e engasgou. A reação me fez lembrar o que acontece quando tocamos no pênis de um homem quando ele não está esperando.
Sholto puxou minha blusa para fora da calça. O movimento fez com que os membros grossos e musculosos encostassem novamente no meu rosto. Dessa vez não recuei, mas tive de fazer um esforço para ficar firme.
Ele puxou a blusa sobre minha cabeça e deixou-a cair no chão. O ar desafiador tinha algo a mais, algo mais misterioso e mais real. Sholto usou dois tentáculos grossos para afastar minhas mãos dos órgãos mais sensíveis. Então os mais finos se alongaram, ficaram mais compridos e mais finos ainda, como massinha de modelar. As pontas acariciaram meus seios com movimentos rápidos e excitantes. Dei um grito sufocado de espanto.
As pontas entraram no meu sutiã e foi como uma cobra rastejando na minha pele. Já ia dizer para ele parar, que eu não podia fazer aquilo, quando aquelas pontas avermelhadas encontraram meus mamilos, e eu descobri para que serviam as depressões. Elas sugavam, e o toque era de especialista. Os mamilos enrijeceram com a sucção e a pressão.
Um segundo órgão brincava no meu ventre, acariciando a pele logo acima da calça. Sholto pedia sem pedir. Empurrei-o gentilmente.
- Chega, por favor.
Ele se afastou de mim, mas dessa vez não ficou magoado. Estava com um ar quase, quase triunfante.
- A sua expressão agora, só isso já vale muito para mim. Respirei fundo, meio trêmula, e procurei pensar.
- Bom saber, mas tem mais uma coisa que preciso verificar antes de ter certeza.
Sholto ficou olhando para mim.
- Desafivele o cinto, por favor - eu disse.
Não tive de pedir duas vezes. Ele tirou o cinto mas deixou a calça abotoada. Gostei de ele ter feito exatamente o que pedi, nada mais e nada menos.
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Abri a calça dele e deixei à mostra a cintura da sunga. O volume dentro delas era reto e firme, parecia muito... humano. Mas depois do que eu tinha acabado de ver, precisava ter certeza. Puxei a sunga com cuidado e vi Sholto nu pela primeira vez.
Ele era perfeito como a aparência prometia, como uma escultura de alabastro. Segurei-o, e Sholto gritou.
Eu não estava provocando, procurava uma coisa. Bhatar tinha uma espinha dentro do pênis, quase tão comprida quanto a minha mão. Nenhuma mulher humana sobreviveria a isso. Só a realeza da espécie dele tinha isso, e significava que eram machos férteis. Sem essa espinha as fêmeas não ovulavam quando faziam sexo.
Sholto me observava, aflito.
- O controle de um homem só vai até certo ponto.
- Por isso vou ficar de calça.
Ele parecia veludo grosso e musculoso nas minhas mãos, mas não havia nada ali além de carne, nenhuma surpresa ruim.
- Seu pai não era da realeza?
- Você está procurando a espinha - ele disse com a voz baixa e rouca.
- Estou.
- Meu pai não era um dos zangões da realeza.
Sholto sussurrou essas palavras racionais, com uma voz que ficava menos racional a cada toque.
- Então como pode virar rei?
Minha voz estava calma. Não continuei excitada depois que os tentáculos pararam de me acariciar. Não durou porque eu não sentia tesão olhando para ele. Senhor e Senhora, perdoem-me, mas eu via os extras como uma deformidade.
- Rei dos sluagh não é um título herdado. É conquistado.
- Conquistado - eu disse. - Conquistado como? Ele balançou a cabeça.
- Estou com dificuldade para pensar.
- Por que será?
Soou provocante, mas não era minha intenção. Gostaria que fosse. Eu poderia aceitá-lo por partes, uma de cada vez. Se ele tivesse apenas um, ou dois tentáculos... mas tinha mais de uma dúzia.
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A ideia de pressionar meu corpo nu contra o dele, de ser abraçada pelo ninho de tentáculos... essa imagem provocava calafrios.
Sholto confundiu minha reação, e um dos tentáculos musculosos alisou meu cabelo como outro homem faria com a mão. Fechei os olhos, levantei o rosto ao toque, tentei gostar da carícia, mas não consegui. Uma noite, talvez, mas não noite após noite. Eu simplesmente não conseguia.
Abaixei a cabeça, e o tentáculo se afastou. Segurei o pênis com as duas mãos, com a mesma disposição e amor que tive com todos os homens da minha vida e, graças ao que se contorcia logo acima, não pude sentir o prazer que devia.
Sholto me observava animado, como se eu já tivesse dito sim. O mais lógico seria eu me levantar, beijá-lo e pedir licença, mas, se o beijasse, aquela massa de tentáculos ia se enrolar em mim e Sholto saberia o que eu realmente sinto. Não queria que ele me visse recuando horrorizada. O que eu queria era que a última sensação dele com uma encantada fosse agradável, não humilhante. Se eu não podia ficar de pé para chegar à parte de cima do corpo dele, bem, então só havia um caminho: para baixo.
Deslizei para fora da cama e fiquei ajoelhada na frente dele. Sholto teve de recuar um passo quando eu fiz isso, e meu rosto ficou na altura daquele membro sólido e sedoso. Ele respirou e ia dizer qualquer coisa, mas se calou quando o abocanhei. Passei as mãos na parte de trás das coxas para agarrar suas nádegas e enterrei as unhas na carne dele.
Ele gritou e chegou o corpo um pouco para a frente. Eu costumo gostar de apreciar a parte de cima do corpo de um homem para ver a reação dele, mas não dessa vez. Eu não queria ver. Eu chupei usando a língua, a boca, os lábios e, suavemente, os dentes.
A respiração dele ficou acelerada, ofegante, naquele ritmo que indicava que eu teria de parar logo, ou quebrar o tabu da rainha. O poder também voltou, como um zumbido concreto de energia contra o meu corpo, e onde eu tocava, a energia latejava. Dentro da minha boca era como se ele vibrasse, e tive uma súbita visão do que seria ter aquela coisa quente e poderosa entre as pernas. A imagem foi tão forte que tive de recuar. Abri os olhos e vi a pele dele branca, quase transparente, cheia de poder.
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Levantei a cabeça devagar, olhei para ele e cada centímetro brilhava, faiscava. As pontas dos tentáculos menores pulsavam como brasas vermelhas, e os tentáculos mais altos exibiam um colorido marmorizado que pareciam relâmpagos por baixo da pele. Era lindo o jogo de vermelho claro, violeta suave e faixas douradas como a cor dos olhos dele pulsando contra a luz branca da pele.
Olhei para Sholto e naquele momento só vi beleza. Ele estava como devia ser, era uma coisa feita de luz, cheio de cor e de magia. Aquele poder saía dele numa onda que acariciava a pele e fazia o corpo vibrar e me abraçava como um cobertor prateado, vivo, invisível e sedoso. Quis entrar nele, sentir quando me cobrisse.
- Solte o cabelo.
Minha voz estava estranha, parecia de outra pessoa.
Sholto soltou o cabelo e balançou a cabeça. O cabelo caiu até depois dos joelhos dele como neve cintilante. Agarrei duas mechas e puxei. Fazia muito tempo que não tinha cabelo cascateando sobre o meu corpo daquele jeito. Era como segurar um cetim pesado e vivo. Puxei as taças do sutiã para baixo para poder passar o cabelo nos seios. Esse simples toque me fez estremecer e dessa vez foi de paixão.
Olhei para ele, ainda ajoelhada.
- Acha que podemos nos comportar se você passar todo esse cabelo maravilhoso no meu corpo nu?
Todas as cores das íris dele brilhavam. Os anéis pareciam estar rodando, como o olho de um furacão. O tesão no rosto dele se transformou em riso.
- Devo mentir e dizer que sim?
Levantei a mão que brilhava, quase transparente, para alisar o corpo dele.
- Sim, minta para mim, porque não quero parar.
- Essa conversa é perigosa - ele disse baixinho.
- Os tempos são perigosos - eu disse e então o lambi, o corpo dele reagiu das pernas até os ombros, a cabeça caiu para trás, e a respiração virou um suspiro entrecortado.
- Meredith - ele disse, num tom que os homens guardam só Para os momentos mais íntimos.
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E esse tom de voz fez meu corpo enrijecer em lugares que ele não tinha visto, muito menos tocado.
A porta abriu com estrondo, e ouvi o barulho de madeira rachando. Uma onda de poder nos atingiu em cheio, como uma gigantesca mão. Sholto cambaleou, mas continuou de pé. Eu acabei sentada no chão, espiando pelo meio das pernas dele. Vi uma imagem embaçada de uma figura negra, e então Sholto não estava mais lá, tinha caído no chão passando por cima da cama.
Nerys Cinza apareceu um segundo na porta e então ela veio para cima de mim como uma lufada de névoa. Fui para a cama tentar pegar a arma embaixo do travesseiro mas sabia que nunca chegaria a tempo.
Tive de dar as costas para a bruxa para ter alguma chance de pegar a arma. Virei de frente para a cama, minha mão já estava embaixo do travesseiro, quando garras rasgaram minhas costas nuas. Berrei e continuei tentando pegar a arma. As mãos com as garras seguraram meus braços e me jogaram no chão. Caí pesado, sem a arma, e Nerys estava em cima de mim antes de eu poder recuperar o fôlego.
Comecei a chutar, ela golpeou minhas pernas, rasgou minha calça. Continuei dando pontapés e tentei me levantar, mas ela não me deu oportunidade. Nerys atacou, cortando o ar, rasgou minha calça, a carne por baixo, fui engatinhando até a parede e ali não tinha mais para onde fugir.
Ela berrava:
- Ele é nosso! Nosso! Nosso!
Cada palavra era enfatizada por um golpe. Levantei os braços para me proteger mas ela ia arrancar a carne deles, não ia adiantar.
Eu esperava que o brilho tivesse sumido numa onda de terror e de dor, mas continuava brilhando. O sangue escorria dos meus braços vermelho cintilante, como se também brilhasse. Senti o
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poder crescendo dentro de mim, era um punho cerrado e quente que se expandia, só que não parecia nenhuma mágica que eu conhecesse. Esse poder foi um clarão em mim, e meu corpo brilhou tanto que a bruxa hesitou. Então ela berrou:
- Vou comer sua pele, menina, e você vai parar de brilhar. Ela rasgou meus braços, eu gritei de dor e vi aquela mão negra cheia de garras atacando meu rosto, meus olhos.
Enfiei o punho fechado no peito magro, entre os seios dela, e o poder se derramou no meu braço, na minha mão. Senti que golpeava a bruxa. Ela parou de me golpear, apenas se ajoelhou, imóvel, na minha frente. O poder que fluía em mim provocava dor, todas as fibras do meu corpo ardiam ao mesmo tempo. Berrei e tentei parar, mas a dor aumentou, e eu via Nerys através de um véu cinza, cheio de pontos pretos. Estava prestes a desmaiar de dor e, se desmaiasse, Nerys ia me matar.
Era como se estivessem rasgando meu corpo com facas em brasa. Finalmente recuperei a voz, berrei de novo, e Nerys berrou junto comigo. Ela se afastou de mim, foi rastejando até o lado da cama. Arregalou os olhos para mim, com uma expressão de incredulidade no rosto contorcido. A pele dela começou a... escorrer. Foi a única palavra que encontrei para descrever o que acontecia. A pele dela começou a escorrer como líquido oleoso e cobriu sua mão feito luva.
Nerys berrava:
- Não! Não!
O corpo dela começou a implodir, os ossos saíram do lugar, os músculos afloravam para a superfície como toras boiando na água. Sangue espirrou no tapete, depois fluidos mais espessos e escuros jorraram, com cheiro acre, de dentro dela. Vi seu coração sair do corpo e atrair o resto dos órgãos como uma fieira de peixes. Ela berrou muito tempo e, mesmo quando ficou reduzida a uma bola de carne, ainda se ouviam seus gritos, abafados, distantes, mas vivos. Nerys era imortal. Ser virada do avesso não mudava isso.
Minha dor estava diminuindo, era como um membro amputado que ainda se sente. Eu tinha visto meu pai fazer coisas parecidas.
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Era uma de suas mãos de poder, a que o fez merecer o título de Príncipe da Carne.
Fui engatinhando para a porta, observando aquela coisa pulsante e movente que eu tinha criado. Quando passei pela cama, pude ver Agnes Negra montada em Sholto. Tinha dentro de seu corpo negro o membro brilhante dele. Ele se debatia, mas ela o segurava pelos braços, mantinha-o deitado, enquanto o cavalgava. Há coisas entre os duendes que são fisicamente mais fortes que os encantados. As bruxas eram uma delas.
Fui para a porta arrebentada e ouvi a voz de Agnes atrás de mim, no corredor.
- Nerys, mate aquela bruxa branca. A última coisa que ouvi foi em tom de tristeza.
- Nerys?
Já estava no elevador quando a leva seguinte de gritos começou. Se Agnes Negra me queria morta antes, o que eu tinha feito com a irmã dela não faria com que mudasse de ideia. Pareceu uma eternidade a descida até o saguão. Eu estava tremendo e com frio. Ergui os braços na frente do rosto. Os dois estavam ensanguentados, a dor era aguda, típica daquele tipo de ferimentos, mas o esquerdo estava pior. Dava para ver o osso no corte do lado do antebraço. O sangue saía dele e formava um fluxo constante rubro do cotovelo até o chão do elevador. Minha calça estava encharcada e quase roxa de tanto sangue.
Eu estava ferida a ponto de entrar em choque, mas acho que não era isso. Era a mágica. Eu tinha feito o que só podia ser uma mão de poder. Fiz uma coisa que meu pai poderia ter feito. Era seu poder mais terrível. Que até ele usava a contragosto, porque eles não morrem. Nerys não ia morrer. Ficaria presa para sempre na prisão da própria carne e fluidos. Cega, incapaz de se alimentar ou de respirar, mas sem morrer jamais. Morrer, jamais.
Um grito se formou no fundo da minha garganta e sabia que se saísse eu continuaria gritando até Agnes me encontrar e arrancar meus olhos. Tinha deixado minha blusa, o paletó e a arma no quarto. Não tinha com que cobrir meus ferimentos. Arrumei meu sutiã para tapar meus seios.
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A porta do elevador se abriu, e um casal quase entrou, então os dois me viram. Demonstraram choque e medo e deixaram a porta se fechar. Eu tinha esquecido o meu glamour. Não podia passar pelo saguão daquele jeito.
Glamour pessoal é meu melhor feitiço, mas mesmo assim me atrapalhei, fiz um esforço enorme para jogar o véu sobre mim. O melhor que pude fazer foi que as pessoas não me vissem ferida e não notassem que eu não usava nada além de um sutiã acima da calça. Não consegui me concentrar para mudar minha aparência. Precisava do glamour para me esconder dos sluagh e não era capaz de me imaginar. Não conseguia visualizar e sem isso não podia fazer o glamour funcionar.
A porta do elevador se abriu no saguão, e eu saí. Ninguém gritou ou apontou, então o glamour estava funcionando. Estava tudo certo. Eu ia ficar bem. Então vi Segna Dourada sentada no luxuoso sofá oval no centro do saguão. Ela me observava com olhos amarelos semicerrados.
Dei meia-volta e fui para a outra entrada e vi Gethin com sua camisa havaiana e boné de beisebol a poucos metros, na frente das portas dos fundos. Examinei aquele saguão bem iluminado, movimentado, todas as pessoas sorridentes, a fila para se registrar e para sair do hotel, e soube que eles podiam me matar ali naquele tapete florido, e ninguém ia saber, só quando meu corpo caísse no chão, e o assassino escapasse.
Dava para ver o toalete feminino de onde eu estava. Nem pensei duas vezes, simplesmente fui andando calmamente até lá. Entrei e, quando a porta se fechou sem ruído atrás de mim, virei-me e desenhei os símbolos de proteção e de força nela. Era tanto sangue saindo do meu corpo que podia ter escrito uma carta. Pressionei as mãos na porta e invoquei poder. Devia temer fazer isso tão pouco tempo depois do que tinha feito acidentalmente no quarto, mas não tive escolha. Derramei meu poder naquela Porta, as runas, e tive certeza de que ninguém do meu sangue poderia passar. Sabia disso porque foi o que desejei, e eu era encantada, e tinha protegido a porta com meu próprio sangue. Ninguém Usa sangue, é poderoso demais para se desperdiçar com pequenas
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coisas, sem falar de insanidade, mas certo exagero não faria mal naquela noite. Eu precisava de tempo para pensar.
Atravessei a pequena área de estar com um sofá e uma fileira de espelhos e fui para o toalete propriamente dito, que ficava depois. O que vi na parede em frente me fez entender que não precisava de tempo para pensar: eu ia sair dali. Havia uma janela bem alta na parede. Eu só precisava chegar até ela.
Peguei um punhado de toalhas de papel para cobrir os piores cortes do braço enquanto procurava alguma coisa em que pudesse subir. Lá fora eu teria de procurar socorro médico. Mas primeiro tinha de sobreviver, senão o único médico que teria seria o legista.
A voz de Gethin, supus que fosse a dele, já que não era bruxa, dizia:
- Pequena encantada, pequena encantada, deixe-me entrar.
Eu não disse o verso seguinte. Se ele queria citar histórias infantis, tudo bem. Eu ia dar o fora dali. Acabei arrastando uma das cadeiras com encosto curvo da antessala do banheiro para o cubículo mais perto da janela. Tive de pular para agarrar a barra de metal de cima da divisória, e com isso a cadeira caiu. Fiquei lá pendurada um segundo, depois comecei a usar os pés para escalar a parede e erguer o corpo até onde estavam minhas mãos. Os ferimentos, que já estavam sangrando menos, voltaram a sangrar muito. Escorreguei duas vezes no meu sangue antes de me encarapitar na divisória e poder espiar pela pequena janela. Era muito pequena mesmo, e aquele foi um dos poucos momentos em que fiquei contente por ser baixa.
Estava equilibrada entre a divisória do cubículo e o parapeito, quando alguma coisa bateu na janela. Tive uma visão rápida de tentáculos e de uma boca fina estalando no vidro e então caí no chão. Tive de escalar tudo de novo, não para escapar pela janela, mas para protegê-la. Eles não podiam entrar, mas agora eu também não podia sair.
Estava encurralada, perdendo mais sangue do que meu corpo podia aguentar e sem ideias. Se não pudesse fazer mais nada tentaria pelo menos diminuir o sangramento nos braços. Peguei uma pilha de toalhas de papel e fui para a pia. O que eu precisava mesmo
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era de um pedaço de pano, ou de um fio grosso, para amarrar o papel no lugar. Examinava no espelho a profundidade do corte no braço esquerdo quando notei uma coisa pequena e escura se movendo bem lá embaixo, no fundo da imagem refletida.
Dei meia-volta apertando as toalhas de papel no ferimento, para ver o que era. Os cubículos eram cor-de-rosa claro e lisos, as paredes também. Até os poucos canos que saíam das paredes e do teto eram pintados de rosa para combinar. Não havia nada preto no banheiro, a não ser minha calça e sutiã, e não era isso que eu tinha visto.
Virei de novo para o espelho, e a coisa estava lá. Parecia uma figura escura que andava num corredor de cristal, cada vez mais perto, crescendo, aumentando de tamanho. Não pensei logo que era o encantado que tentou me matar na casa de Alistair Norton, porque muitos encantados fazem mágica com espelhos. Pelo que eu sabia deviam ser os sluagh chegando pelo espelho para cair em cima de mim. Eu não podia proteger o espelho, não era uma porta ou uma janela, não como eu definira. Chegar pelo espelho significava que eles tinham mágica melhor do que a minha, e eu não podia fazer nada para detê-los.
Abriram a porta, e meu coração quase parou de bater, mas eram apenas duas mulheres. Duas mulheres humanas, comuns, que não deviam ser nem um pouco sensíveis, senão jamais iam querer passar por aquela porta. Elas entraram rindo, olharam meio ressabiadas em volta, mas entraram em cubículos contíguos e continuaram a rir e conversar. Elas me viram vestida e sem sangrar, porque essa foi a imagem que eu projetei. Era bom saber que alguma coisa funcionava.
Eu não sabia o que fazer. Então notei uma coisa nova no espelho. Havia uma aranha minúscula andando nele. Não, não em cima dele, mas dentro dele. A aranha estava dentro do espelho, do outro lado do vidro. Era exatamente igual às aranhas que tinham me ajudado na casa de Norton. Era o encantado que tinha me salvado. Ele, ou ela, já me salvara uma vez. E se eu precisava ser salva de novo, era agora mesmo.
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Rasguei um pedaço de papel toalha e escrevi com sangue: AJUDE-ME. Esperei até o sangue secar um pouco e amassei o papel formando uma bola dura e compacta. Ouvi a descarga em um dos cubículos. Eu estava ficando sem tempo.
Passei a ponta dos dedos sobre a superfície do espelho, com cuidado para não encostar nele. Não queria tocar no espelho enquanto não soubesse qual era aquele feitiço. Senti a linha trêmula de poder, no ponto em que a mágica puxava, como um fio que desafiava a solidez do vidro. A mágica era como um ponto fraco, uma rachadura metafísica. Eu não sabia se o mágico tinha encontrado e explorado uma fraqueza do espelho, ou se tinha criado aquele ponto fraco. Apertei os dedos no vidro frio e pensei no calor que tinha formado o espelho. Abri bem os dedos, e o vidro se desfez como algodão-doce num dia de verão. Um buraco se abriu no espelho, e uma linha de luz branca e ofuscante saiu dele como um faiscar de diamantes ao longe.
Joguei a bola de papel naquele buraco derretido. Alisei o espelho para ele voltar ao normal, como se faz com massa de modelar. A porta atrás de mim abriu. Eu não tinha mais tempo. Havia um calombo no vidro, não ficou perfeito. Inclinei-me sobre o espelho e fingi examinar o batom inexistente, bloqueando a visão do defeito.
A primeira mulher abriu uma bolsa minúscula e reforçou o batom que usava.
Mas eu não olhava para os meus lábios. Estava observando aquela figura escura bem embaixo do espelho. Vi braços pequenos se movendo, desamassando a minha mensagem. Ouvi uma voz de homem soar como sino no banheiro.
- Pronto.
A mulher ficou paralisada diante do espelho.
- Ouviu isso? - ela perguntou.
- O quê? - perguntei.
- Julie, você ouviu?
A outra mulher ainda estava no cubículo.
- Ouvi o quê?
Julie apertou a descarga e juntou-se à amiga na frente da pia-
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Para o meu horror a figura escura foi ficando maior. Ele ia sair do espelho. Ele ia brotar da droga do espelho. Eu não tinha glamour suficiente para esconder isso. Droga.
Tentei pensar em alguma forma de distrair as mulheres, mas então descobri exatamente o que tinha de fazer. Fui até o interruptor do outro lado e apaguei a luz. Quando a escuridão caiu sobre nós como um muro negro, senti a pressão do ar mudar. Sabia que alguém estava saindo do espelho, como se abrisse uma grossa cortina cristalina. Engoli para destampar os ouvidos e fiquei sem saber o que fazer com as duas mulheres que berravam.
No escuro eu senti que alguém, alguma coisa, estava se movendo, e sabia que não eram as mulheres, nem eu.
- O que está acontecendo? - disse uma mulher.
- Que estranho - disse a outra. - Vamos dar o fora daqui, Julie. Ouvi as duas indo para a porta aos tropeços, no escuro. Elas saíram no corredor, e houve um clarão de luz na escuridão de breu, antes de a porta fechar.
Uma chama trêmula amarelo esverdeada despontou. E formou sombras móveis num rosto preto, preto.
A pele de Doyle não era marrom. Era preta. Parecia que ele tinha sido esculpido em ébano. As maçãs do rosto eram altas e pronunciadas, o queixo um pouco fino demais para o meu gosto. Ele era todo ângulos e negrume. Os ângulos davam uma impressão equivocada de delicadeza e eram como o esqueleto de um pássaro, mas eu o tinha visto uma vez levar um golpe em cheio no rosto, de uma maça de guerra. Ele sangrou mas não quebrou nada.
Assim que o vi, o medo me dominou numa onda de frio que deixou meus dedos dormentes. Se ele não tivesse salvado minha vida uma vez, eu teria certeza de que estava ali para me matar. Ele era o braço direito da rainha. Ela dizia: "Onde está minha Escuridão? Tragam minha Escuridão." E alguém morria ou sangrava,
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ou as duas coisas. Era Doyle que devia se incumbir da minha morte, e não Sholto. Será que tinha me salvado antes para me matar agora?
- Não vou lhe fazer nenhum mal, Princesa Meredith. Assim que ele disse isso em voz alta, eu respirei de novo.
Doyle não fazia jogo de palavras. Falava o que pensava e pensava o que falava. O problema é que quase o tempo todo dizia coisas como: "Vim para matar você." Só que dessa vez ele não ia me fazer mal. Por quê? Ou melhor, por que não?
Eu estava presa num toalete feminino com proteções que não iam durar na janela e na porta. Dali a um tempo os sluagh conseguiriam entrar, e eu não confiava em Sholto para me livrar deles. Se fosse quase qualquer um no lugar de Doyle eu teria caído nos seus braços aliviada, ou apenas desmaiaria por causa da perda de sangue, em choque. Mas era Doyle, e ele não era uma pessoa nos braços de quem a gente caía, não sem verificar se tinha facas.
- O que você quer, Doyle?
As palavras soaram mais ásperas do que eu pretendia, com raiva, mas não as retirei nem me desculpei. Eu estava batalhando para não tremer visivelmente e estava perdendo a batalha. Continuava sangrando de meia dúzia de ferimentos nos braços, o sangue escorria dentro da calça como um verme quente na pele. Precisava ser socorrida e não podia esconder isso dele. A minha posição de barganha era muito fraca. Quando se encarava a rainha, esse lugar era dos piores para se estar. E não se enganem, pois lidando com Doyle se está lidando com a rainha, a não ser que as coisas tivessem mudado drasticamente na Corte naqueles míseros três anos.
- Obedecerei minha rainha em tudo.
A voz dele era como sua pele, escura. Fazia lembrar melado e outras coisas espessas e doces. Uma voz tão profunda, que atingia notas tão graves, dava um calafrio na espinha.
- Isso não é resposta - eu disse.
O cabelo dele parecia muito curto e cortado rente à cabeça, preto, mas não tão preto como a pele dele. Eu sabia que não era curto, era comprido. Ele mantinha sempre o cabelo preso em uma trança apertada nas costas. Não podia ver dali, mas sabia que a trança
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chegava até os tornozelos. O cabelo preso deixava as pontas das orelhas dele à mostra, bem visíveis.
A chama verde fazia cintilar os brincos naquelas orelhas fantásticas. Dois diamantes enfeitavam cada lóbulo negro e duas pedras quase da cor da pele dele ao lado dos diamantes como estrelas escuras. Pequenos anéis de prata subiam pela cartilagem das duas orelhas até a extremidade da orelha que terminava em ponta carnuda e macia.
As orelhas indicavam que ele não era completamente da alta corte, mas sim um mestiço bastardo como eu. Só as orelhas o traíam, e ele podia escondê-las embaixo do cabelo, só que quase nunca fazia isso.
Olhei para o pequeno colar de prata que era a única outra joia que ele usava. Uma aranhinha de prata com o corpo gordo na forma de uma pedra preta se aninhava no fundo negro que era o peito dele.
- Eu devia ter lembrado que sua farda é uma aranha.
Ele deu um sorriso bem pequeno, e para Doyle isso era uma expressividade ultrajante.
- Normalmente eu teria lhe dado tempo para se adaptar à minha presença, ao nosso constrangimento, mas suas proteções não vão durar para sempre. Precisamos agir depressa se quiser se salvar.
- Lorde Sholto veio para cá a mando da rainha para me matar. Por que enviá-lo para me salvar? Nem para ela isso faz sentido.
- A rainha não enviou Sholto.
Olhei espantada para ele. Será que devia acreditar? Raramente mentíamos abertamente um para o outro. Mas alguém estava mentindo para mim, porque os dois não podiam estar dizendo a verdade.
- Sholto disse que eu estava sob as ordens de execução da rainha.
- Pense, Princesa. Se a Rainha Andais realmente desejasse a sua execução, ela a arrastaria para casa para a corte ver o que acontece com encantados que fogem da corte desobedecendo às ordens reais. Ela faria de você um exemplo.
Doyle apontou para o banheiro, espalhando chamas com as mãos quando se mexia, como imagens persistentes.
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- Ela não ia querer matá-la num esconderijo, onde ninguém poderia ver.
A chama virou uma só de novo, feito gotas de água deslizando num prato, mas ficou dançando sobre os dedos dele.
Pus a mão na beira da pia. Se aquela conversa não acabasse logo, eu ia cair de joelhos, porque ficar de pé não dava mais. Quanto sangue eu tinha perdido? Quanto ainda estava perdendo?
- Quer dizer que a rainha ia querer me ver morrer - eu disse.
- Sim - ele disse.
Alguma coisa bateu na janela com tanta força que deu a impressão de que o banheiro estremeceu. Doyle se virou para o barulho, sacou uma longa faca, ou pequena espada, das costas. As chamas esverdeadas ficaram pairando no ar sobre um ombro dele, como um animalzinho obediente.
A luz brincava na lâmina e no cabo de osso esculpido. Era um trio de corvos, com os peitos encostados, as asas entrelaçadas, os bicos abertos segurando pedras preciosas que formavam o pomo da espada curta.
Despenquei no chão, com uma mão na pia. Era "Pavor Mortal", uma das armas particulares da rainha. Nunca soube que ela emprestasse para alguém, por motivo algum.
Doyle virou lentamente depois de ver a janela vazia. A espada curta captou a luz tremulante.
- Agora você acredita que a rainha me mandou para cá para salvá-la?
- É isso, ou então você a matou para ficar com a espada - eu disse.
A expressão dele quando olhou para mim dizia que não via graça nenhuma no que eu tinha dito. Ótimo, porque eu não estava querendo fazer graça. Pavor Mortal era um dos tesouros da Corte Profana. A espada tinha sangue mortal ligado à forja da lâmina, e isso significava que um ferimento fatal com Pavor Mortal era realmente um ferimento fatal para qualquer duende ou fada, até para um encantado. Eu teria dito que a única maneira de conseguir a espada era arrancá-la das mãos frias e mortas da minha tia.
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Alguma coisa grande batia na janela sem parar. Torci para que estivessem tentando quebrar a proteção com mágica, pois isso levaria algum tempo, mas iam simplesmente destruir o que eu tinha protegido. Se a janela não estivesse mais lá, o escudo não ia mais funcionar. Força bruta contra magia. As vezes funcionava, às vezes não. Naquela noite ia funcionar. Ouvi um barulho forte quando o vidro rachou através do aramado que tinha por dentro. Sem essa rede de arame o vidro já teria quebrado.
Doyle se ajoelhou ao meu lado com a ponta da espada para baixo, como se faz com uma arma carregada por motivo de segurança.
- Nosso tempo acabou, Princesa. Fiz que sim com a cabeça.
- Estou ouvindo.
Ele estendeu a mão para mim, eu me encolhi e caí para trás, sentada no chão.
- Preciso encostar em você, Princesa.
- Por quê?
O vidro tinha rachado tanto que deixava o vento entrar no banheiro. Ouvi alguma coisa grande se esfregando na parede, e os gritos modulados e agudos dos voadores noturnos incitando o irmão corpulento.
- Posso matar alguns deles, minha princesa, mas não todos. Arriscarei minha vida por você, mas isso não bastará, não contra o poder de quase todos os sluagh.
Ele chegou tão perto que eu tinha de deixar que encostasse em mim, ou então deitar no chão e começar a me arrastar feito caranguejo para trás e para longe dele.
Pus a mão nele, no couro do casaco. Ele continuou avançando, e minha mão escorregou para a camiseta preta que ele usava por baixo. Senti algo molhado. Puxei o braço para a frente e vi na penumbra sinistra que minha mão estava toda preta.
- Você está sangrando - eu disse.
- Os sluagh foram muito persistentes para eu não poder encontrá-la esta noite.
Tive de pôr uma mão atrás de mim para não cair, porque ele estava perto demais. Perto demais para beijar, ou para matar.
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- O que você quer, Doyle?
O vidro se espatifou e cobriu o chão com um chuveiro tilintante de estilhaços que pareciam chuva forte.
- Peço perdão, mas não temos tempo para formalidades. Ele deixou a espada cair e agarrou meus braços. Puxou-me para ele, e eu tive um segundo para entender que pretendia me beijar.
Se ele tentasse me esfaquear, eu estaria preparada, pelo menos, não seria surpresa, mas um beijo... fiquei perdida. A pele dele cheirava a algum tempero exótico. Os lábios eram macios, e o beijo, suave. Fiquei paralisada nos braços dele, chocada demais para saber o que fazer, como se ele tivesse me enfeitiçado. E Doyle sussurrou na minha boca.
- Ela disse que deve ser dado para você, como foi dado para mim.
Havia uma ponta de raiva nessas palavras sussurradas.
Escutei alguma coisa caindo pela janela, um baque pesado. Doyle me soltou tão de repente que caí de costas no chão. Com um movimento fluido ele pegou a espada, virou-se e andou com passos que eram como uma dança, ainda de joelhos. Enfiou a espada em um tentáculo preto do tamanho dele que tinha entrado pela rachadura da janela. Alguma coisa berrou lá fora. Doyle puxou a espada do tentáculo, que começou a se retrair pela janela. Doyle ficou de pé e ficou logo à frente desse movimento. Ergueu a espada acima da cabeça e golpeou para baixo com tanta força que a lâmina virou um risco embaçado e brilhante. O tentáculo caiu em pedaços espirrando sangue como água preta à luz verde amarelada.
O resto do tentáculo encolheu pela janela, na direção de um som que parecia o vento uivando. Doyle se virou para mim.
- Isso vai retardá-los, mas não muito.
Ele veio com passos largos na minha direção, a espada ensanguentada na mão. Tudo tinha acontecido em poucos segundos. Ele tinha até conseguido desviar para um lado para não ser atingido pelo sangue, como se soubesse onde devia ficar, ou como o sangue se comportaria.
Quando vi que ele se aproximava, não consegui ficar ali no chão. Doyle estava ali para me manter viva, mas quando chegou
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mais perto, todos os meus instintos disseram que eu devia fugir. Ele era uma coisa primitiva, feita de escuridão e alguma luz, armado com uma espada mortal e vindo para cima de mim como a encarnação da morte. Naquele instante eu entendi por que os humanos tinham caído e nos adorado.
Usei as pias para me apoiar e me pôr de pé, já que não podia enfrentá-lo encolhida no chão como caça. Tinha de ficar de pé diante daquela beleza negra, ou me curvar diante dela como uma adoradora humana. Quando levantei, o banheiro rodou em linhas de cor e de escuridão. Estava tão tonta que tive medo de cair, mas continuei de pé, agarrada com toda a força nas pias. Quando a visão clareou, ainda estava ereta, e Doyle tão perto que dava para ver as chamas verdes refletidas nos espelhos negros dos olhos dele.
De repente ele me segurou muito perto, e o sangue da camiseta grudou frio na minha pele. As mãos dele eram muito fortes, subiram pelas minhas costas e apertaram meu corpo contra o dele.
- A rainha pôs sua marca dentro de mim, para que eu a dê a você. Quando a tiver, todos saberão que se fizerem qualquer coisa contra você correrão o risco de perder a misericórdia da rainha.
- O beijo - eu disse. Ele fez que sim.
- Ela disse que devo dar a você, do jeito que ela me deu. Perdoe-me.
E Doyle me beijou antes de eu poder perguntar do que ele pedia perdão.
Ele me beijou como se quisesse entrar em mim pela boca. Não estava preparada para isso e não tinha dado permissão. Tentei me afastar, mas ele apertou o braço nas minhas costas e pressionou o casaco de couro na minha pele. Sua outra mão segurava meu rosto, com os dedos enterrados no queixo. Eu não podia impedir o beijo, não podia me afastar dele.
Lutar não me levava a lugar nenhum, por isso parei de me debater e abri a boca para ele, retribuí o beijo. Uma tensão escapou do corpo de Doyle, ele deve ter sentido que eu estava permitindo. Mas não estava. Agarrei a camiseta preta e comecei a tirá-la de dentro da calça. Estava tão molhada de sangue que grudava na pele
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dele, mas consegui tirá-la. Passei as mãos na barriga reta e subi para o volume liso do peito dele.
Ele se derreteu encostado em mim e acariciou as minhas costas.
Apalpei o ferimento no alto do peito dele. Era largo, um corte profundo. Três coisas aconteceram ao mesmo tempo. Enfiei os dedos na ferida, o corpo dele enrijeceu, e senti que ele reagia à dor. Acho que ele teria me soltado nessa hora, mas então a segunda coisa aconteceu ao mesmo tempo que ele sentia a dor, com meus dedos enfiados no ferimento. A marca da rainha ocupou a boca dele e deslizou para a minha.
Uma doce onda de poder encheu minha boca, jorrando do corpo de Doyle para o meu e derretendo quente em nossos lábios, como se ambos chupássemos a mesma bala. O poder inchou dentro de nós e se fundiu entre nós, em doces laivos. Transbordamos de calor, era como vinho quente derramado em taças gêmeas, até que o poder percorreu nossos corpos, através deles, e finalmente se derramou em líquido quente sobre a nossa pele.
Doyle interrompeu o beijo e se afastou de mim. Eu deslizei para o chão e, dessa vez, não foi por causa da perda de sangue, mas porque meus joelhos ficaram bambos.
Não conseguia me concentrar em nada, via o mundo através de um nevoeiro. Doyle apoiou as duas mãos nas pias, abaixou a cabeça e também parecia meio zonzo. Ouvi quando ele disse:
- Consorte, salve-me.
Não sei qual seria minha resposta desaforada, porque então a porta se arrebentou com estrondo e bateu nos cubículos. Vi a silhueta de Sholto na porta. Ele tinha jogado o sobretudo cinza sobre o peito nu, mas o ninho de tentáculos se agitava como um monstro tentando se libertar.
Senti movimento atrás de mim, virei e vi Doyle pegar a espada que tinha deixado na pia. Senti o poder de Sholto crescer como vento na porta iluminada. Entendi de repente que ambos pensavam que o outro estava lá para me matar.
Tive tempo de berrar.
-Não!
A chama de Doyle desapareceu, engolida pela escuridão que era aveludada e perfeita, cheia de sons e de corpos se movendo.
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Eu berrei.
-Não, Sholto, Doyle, não se machuquem!
Ouvi pancadas, passos deslizando quando alguém se movimentou no escuro, alguém deu um longo suspiro, depois ruídos baixos.
- Droga, prestem atenção. Nenhum dos dois está aqui para me fazer mal. Vocês dois querem me manter viva.
Não sei se não ouviram, ou se não deram importância. Havia pelo menos uma espada sendo usada no escuro, por isso não fui até o interruptor andando, fui rastejando. Dei a direita para o apoio das pias e tateei a escuridão à frente com a mão esquerda.
A luta prosseguia em silêncio quase completo. Dava para ouvir o esforço de um contra o outro. Alguém gritou, e eu rezei baixinho para ninguém ter morrido. Quase dei de cara na parede, encostei a mão nela no último segundo. Fui subindo até encontrar o interruptor. Acendi a luz, e o banheiro todo se iluminou. Fiquei ofuscada com a súbita claridade.
Os dois encantados estavam agarrados, tensos com a força que faziam um contra o outro. Doyle de joelhos, com um tentáculo enrolado no pescoço. Sholto estava coberto de sangue, vi que um dos tentáculos tinha sido cortado e jazia se contorcendo ao lado do joelho de Doyle. Doyle ainda empunhava a espada, mas Sholto a mantinha afastada com uma das mãos e dois tentáculos. A outra mão estava agarrada à de Doyle, como numa queda de braço. Só que aquilo não era um jogo. Fiquei surpresa ao ver que Sholto se mantinha firme. Doyle era o campeão da Corte Profana. Pouquíssimos conseguiam enfrentá-lo, e quase ninguém ganhava dele. Sholto não estava nessa lista curta, pelo menos eu achava que não. Então vi uma coisa com o canto do olho, um brilho pequeno. Olhei diretamente para o ponto e não havia nada. A mágica é assim às vezes. Só é visível com a visão periférica. Alguma coisa brilhava na mão de Sholto. Era um anel.
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A espada escapou da mão de Doyle, e ele ficou inerte sob o controle de Sholto. Sholto segurou a espada com a mão antes de cair no chão. Os tentáculos continuaram enrolados no braço de Doyle. Eu fui me aproximando sem pensar no que ia fazer quando chegasse perto dos dois.
Sholto sustentou o corpo de Doyle com os tentáculos e levantou a espada com as duas mãos, a ponta para baixo, apontada para o peito do adversário. Eu estava atrás de Doyle quando a espada desceu. Cobri o corpo dele com o meu, levantei a mão e olhei fixo para a lâmina cintilante. Tive apenas uma fração de segundo para imaginar se Sholto pararia a tempo, então ele recuou e apontou a espada para o teto.
- O que está fazendo, Meredith?
- Ele veio me salvar, não me matar.
- Ele é a Escuridão da rainha. Se ela deseja a sua morte, ele será instrumento dela.
- Mas ele está com o Pavor Mortal, uma das armas pessoais da rainha. Ele trouxe a marca da rainha em seu corpo para me dar. Se você se acalmar um pouco para ver não só com os olhos, vai saber.
Sholto piscou e franziu a testa.
- Então por que ela teria me enviado para matar você? Nem para Andais isso faz sentido.
- Se você parar de me estrangular, podemos descobrir isso juntos.
Sholto olhou para o corpo inerte de Doyle, ainda pendurado nos tentáculos.
- Ah - disse ele, como se tivesse esquecido que continuava espremendo o outro.
Tecnicamente não era possível matar um encantado por estrangulamento, mas eu jamais me senti à vontade para testar os limites da imortalidade. Nunca se sabe quando haverá um defeito suficientemente grande na armadura, que provoque a morte.
Sholto desenrolou os tentáculos que prendiam Doyle. Doyle caiu nos meus braços, e o peso dele fez com que eu caísse de joelhos. Não estava perdendo tanto sangue para justificar aquela fraqueza.
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Devia ser o choque, ou tinha a ver com o uso da mão de poder pela primeira vez. O que quer que fosse aquilo, eu só tinha vontade de fechar os olhos e descansar, mas isso não ia acontecer.
Sentei no chão com a cabeça de Doyle no colo. A pulsação no pescoço dele era forte e constante, mas ele não tinha acordado. Respirou rapidamente duas vezes, depois jogou a cabeça para trás com os olhos arregalados e engoliu uma grande quantidade de ar. Sentou tossindo. Vi que estava tenso, e Sholto deve ter notado também, porque de repente apontou a espada para o rosto de Doyle.
Doyle ficou imóvel e olhou para cima, para Sholto.
- Acabe logo com isso.
- Ninguém vai acabar nada - eu disse.
Nenhum dos dois olhou para mim. Não vi a expressão de Doyle, mas não gostei do que vi na de Sholto. Raiva, satisfação... ele queria matar Doyle, isso estava bem claro no rosto dele.
- Doyle me salvou, Sholto. Ele me salvou dos seus sluagh.
- Se você não tivesse protegido a porta, eu podia ter chegado aqui a tempo - disse Sholto.
- Se eu não tivesse protegido a porta você teria chegado a tempo de lamentar a minha morte, mas não a tempo de me salvar.
Nem assim Sholto parava de olhar para Doyle.
- Como foi que ele entrou, se eu não consegui?
- Eu sou encantado - disse Doyle.
- Eu também sou - disse Sholto, e a raiva aumentou um pouco na expressão dele.
Dei um tapa no ombro de Doyle, com força bastante para arder. Ele não virou para mim, mas fez uma careta.
- Não o provoque, Doyle.
- Não estava provocando, apenas constatando um fato. Essa briga toda estava começando a parecer pessoal demais, os dois deviam ter assuntos pendentes que não tinham nada a ver comigo.
- Olhem aqui, eu não sei o que vocês têm um contra o outro, e podem me chamar de egoísta, mas não me importa. Quero sair desse maldito banheiro viva, e isso é prioritário, está acima de qualquer rixa pessoal entre vocês. Por isso parem de agir como
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menininhos e comecem a se comportar como membros da guarda pessoal real. Levem-me para fora daqui inteira.
- Ela tem razão - disse Doyle baixinho.
- O grande Escuridão se retira de uma luta? Inconcebível. Ou será que é porque agora a espada está comigo?
Sholto moveu a espada um pouco para frente e encostou a ponta na depressão sobre o lábio superior de Doyle.
- Uma espada capaz de matar qualquer um, até um nobre encantado. Ah, estou esquecendo. Você não tem medo de nada.
Havia uma amargura, um tom zombeteiro na voz de Sholto que dizia, sem dúvida, que eu tinha me metido numa antiga rixa.
- Tenho medo de muitas coisas - disse Doyle, com a voz calma e neutra. - A morte não é uma delas. Mas o anel no seu dedo é algo que temo. Como conseguiu o Beathalachd? Não vejo ninguém usando-o há séculos.
Sholto levantou a mão de modo que o bronze escuro do anel faiscou sutilmente com a luz. Era uma joia pesada, e eu teria notado na mão dele se estivesse lá antes.
- Foi presente da rainha para demonstrar sua bênção a esta caçada.
- A rainha não deu o Beathalachd para você, não pessoalmente. - Doyle parecia muito convencido disso.
- O que é Beathalachd? - perguntei.
- Vitalidade - disse Doyle. - Ele rouba a própria vida e as habilidades do seu adversário, e é o único meio de me superar numa luta.
Sholto enrubesceu. Precisar de mais mágica do que tinha no corpo para derrotar outro encantado era considerado sinal de fraqueza. Em suma, o que Doyle tinha dito era que Sholto não venceria uma luta justa, por isso teve de jogar sujo. Mas não era jogo sujo, apenas menos cavalheiresco. Que se dane o cavalheirismo, apenas volte vivo. Era isso que eu dizia para todos os homens que amei, inclusive meu pai, antes de cada duelo.
- O anel prova que fui favorecido pela rainha - disse Sholto, com o rosto ainda vermelho de raiva.
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- O anel não veio da mão da rainha para a sua - disse Doyle - assim como a ordem de matar a princesa não partiu da boca da rainha.
- Eu sei quem fala em nome da rainha e quem não fala - disse Sholto, e foi a vez de ele soar convicto.
- É mesmo? - disse Doyle. - E se eu tivesse dado para você as ordens da rainha, você teria acreditado em mim?
Sholto fez uma careta, mas meneou a cabeça.
- Você é a Escuridão da rainha. Quando sua boca se move, as palavras dela são ouvidas.
- Então ouça estas palavras: a rainha quer a Princesa Meredith viva e que volte para casa.
Não consegui traduzir todos os pensamentos que passaram pelo rosto de Sholto, só sei que foram muitos. Procurei fazer a pergunta que ele não responderia para Doyle.
- Foi a rainha que disse a você pessoalmente para vir a Los Angeles me matar?
Sholto olhou para mim. Foi um olhar demorado e pensativo, mas ele acabou balançando a cabeça.
- Não - ele respondeu.
- Quem disse para você vir a Los Angeles e matar a princesa? - perguntou Doyle.
Sholto abriu a boca para responder, mas fechou-a sem dizer nada. A tensão fluía dele, ele se afastou de Doyle e abaixou a espada ao lado do corpo.
- Não. Por enquanto vou manter o nome do traidor em segredo.
- Por quê? - perguntei.
- Porque a presença de Doyle aqui só pode significar uma coisa. A rainha quer que você volte para a corte. - Ele olhou para Doyle. - É isso, não é?
- É - disse Doyle.
- Ela quer que eu volte para a corte?
Doyle mudou de lugar para poder ver nós dois, Sholto e eu, e deu as costas para os cubículos vazios do banheiro.
- Sim, Princesa.
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Balancei a cabeça.
- Eu saí de lá porque estavam tentando me matar, Doyle. E a rainha não os impedia.
- Eram duelos legais - disse Doyle.
- Eram tentativas de assassinato sancionadas pela corte - disse.
- Eu mencionei isso para ela - disse Doyle.
- E ela disse o quê?
- Ela me deu sua marca para eu dar a você. Se alguém a matar agora, mesmo em um duelo, terá de enfrentar a vingança da rainha. Pode acreditar nisso, Princesa. Mesmo os que querem muito a sua morte não vão querer pagar um preço tão alto por isso.
Olhei para Sholto, e o movimento me deixou um pouco tonta. Choque, era definitivamente choque.
- Muito bem, vou voltar para a corte, se a rainha garante a minha segurança. O que isso tem a ver com você não revelar o nome do traidor? Quem usou o nome da rainha para enviá-lo para me matar, se a rainha não me quer morta?
- Não vou revelar isso por enquanto - repetiu Sholto.
O rosto dele era aquela máscara arrogante que costumava usar com frequência na corte.
- Por quê? - eu quis saber.
- Porque se a rainha permitir que você volte para a corte, não precisará negociar comigo. Poderá voltar para o mundo encantado, para a Corte Profana, e eu apostaria meu reino que ela vai encontrar outro amante encantado para você. Como vê, Meredith, não precisará de mim. Terá tudo que eu ofereci e não terá de se amarrar pelo resto da vida a um monstro deformado.
- Você não é deformado, Sholto. Se suas bruxas não tivessem interrompido, eu teria provado isso para você.
Alguma coisa iluminou o rosto dele e abalou a superfície da sua aparência arrogante.
- Sim, as minhas bruxas. - Ele olhou para mim com seus olhos triamarelos. - Pensei que não tivesse a mão de poder, Meredit
- Não tenho mesmo - eu disse.
- Acho que Nerys não ia concordar com você.
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- Eu não sabia, Sholto, não pretendia...
Eu não tinha palavras para o que fizera com Nerys.
- O que aconteceu? - perguntou Doyle.
- Agnes Negra mentiu para os sluagh. Ela disse que se eu copulasse com Meredith, eu me tornaria um encantado puro e não seria mais o rei deles. Ela os convenceu de que estavam me protegendo de mim mesmo, dos artifícios da bruxa encantada.
Ergui as sobrancelhas. Ele olhou para mim.
- Mas persuadi Agnes e os outros de que você não representa perigo para eles.
Olhei nos olhos dele.
- Eu vi seu método de persuasão antes de escapar. Ele fez que sim com a cabeça.
- Agnes pediu para agradecer a você. Ela nunca teve tanto prazer comigo antes. Acha que tem a ver com a sua mágica.
- Ela não está furiosa por causa da Nerys? - perguntei.
- Ela quer que você morra, sim, mas agora tem medo de você, Meredith. A mão da carne, igual à do seu pai... quem poderia imaginar isso?
Havia alguma coisa nos olhos dele, além da arrogância ensaiada. Descobri assustada que era medo. O medo espiava através da máscara dele. Não era só Agnes Negra que estava com medo do que eu fiz naquele quarto.
- Mão da carne - repetiu Doyle. - O que está dizendo, Sholto? Sholto estendeu a espada para Doyle, com o cabo para frente.
- Pegue isso, venha até o meu quarto e veja o que a nossa princesinha fez. Nerys não pode ser curada, por isso peço que conceda a ela a verdadeira morte antes de escoltar Meredith para casa. Vou levá-los em segurança para um táxi, por precaução, caso meus sluagh não sejam... perfeitamente obedientes.
As palavras dele e a linguagem corporal diziam que ele não estava satisfeito com Doyle.
Doyle abaixou a cabeça um pouco e pegou a espada.
- Se o que precisa é de um favor, terei prazer de realizá-lo em troca do nome do traidor que o fez vir para Los Angeles falsamente em nome da rainha.
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Sholto balançou a cabeça.
- Não vou revelar o nome, não agora. Manterei segredo enquanto for útil para mim, ou até eu resolver cuidar pessoalmente do traidor.
- Se nos dissesse o nome desse traidor, seria uma grande ajuda para manter a princesa em segurança na corte.
Então Sholto deu risada, aquele som estranho e amargo que era a risada normal para ele.
- Não vou dizer quem me mandou para cá, mas posso adivinhar quem queria que esse recado fosse passado, e você também pode. Meredith fugiu da corte porque os apoiadores do Príncipe Cel não paravam de desafiá-la para duelos. Se houvesse alguma outra pessoa por trás dos atentados contra a vida de Meredith, a rainha teria se metido e impedido. Tal insulto contra a família real não seria permitido, nem mesmo para uma mortal mestiça sem mágica. Mas era seu precioso filhinho que estava por trás disso, e todos nós sabíamos. Então Meredith fugiu e se escondeu, porque não confiava que a rainha a mantivesse viva enquanto Cel queria vê-la morta.
Doyle encarou com tranquilidade aqueles olhos acusadores.
- Acho que você vai descobrir que a nossa rainha não está mais tão tolerante diante das... excentricidades do príncipe.
Sholto deu risada de novo, dessa vez um som sofrido.
- Quando deixei a corte poucos dias atrás, eu diria que ela ainda tolerava bastante as... excentricidades de Cel.
A expressão de Doyle continuou calma, como se nada que o outro homem dissesse pudesse perturbá-lo. Acho que isso incomodou Sholto muito mais do que qualquer outra reação que Doyle podia ter. E Doyle sabia disso.
- Um problema de cada vez, Sholto. Por enquanto tenho a promessa da rainha e sua mágica, para garantir que a princesa não será prejudicada na corte.
- É o que você deseja acreditar, Doyle, mas por enquanto peço que me ajude a matar alguém que valorizo.
Doyle se levantou com facilidade, nem parecia que tinha sido quase estrangulado minutos antes. Eu não sabia se podia me levantar.
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Faltam-me muito mais coisas além da imortalidade, devido ao meu sangue humano.
Os dois estenderam as mãos para mim ao mesmo tempo, e segurei as duas. Eles quase me tiraram do chão para me pôr de pé.
- Calma aí, rapazes. Só preciso de ajuda para me levantar, não voar.
- Você está pálida. Está muito ferida? - disse Doyle. Balancei a cabeça e soltei os dois.
- Não muito. É mais choque pela perda de sangue e... doeu quando eu... fiz aquilo com Nerys.
- O que você fez? - ele perguntou.
- Venha ver - disse Sholto. - Vale uma olhada, ou três. - Ele olhou para mim. - A notícia do que você fez chegará à corte antes de você, Meredith. Meredith, Princesa da Carne, não mais apenas filha de Essus.
- É muito raro o filho receber os mesmos dons dos pais - disse Doyle.
Sholto caminhou até a porta e se cobriu com o casaco no caminho. O tecido ficou encharcado de sangue no lugar em que estava o tentáculo cortado.
- Venha, Doyle, Portador da Chama Dolorosa, Barão Língua Doce, venha ver o que acha dos dons de Meredith.
Eu conhecia o primeiro título, mas não o segundo.
- Barão Língua Doce... nunca ouvi chamarem você assim - eu disse.
- É um apelido muito antigo - ele disse.
- Ora, Doyle, você está sendo modesto. Já foi o nome íntimo que a rainha deu para ele um dia.
Os dois se entreolharam, e mais uma vez senti o peso de uma velha rixa no ar.
- Esse nome não se refere ao que você está supondo, Sholto - disse Doyle.
- Eu não estou supondo nada, mas acho que ele fala por si. Você não acha, Meredith?
- Barão Língua Doce cria uma certa atmosfera - eu disse.
- Não é o que está pensando - repetiu Doyle.
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- Bem - disse Sholto - certamente não é pelas suas baboseiras meladas.
Isso era verdade. Doyle não era chegado a longos discursos e não era bom com lisonjas.
- Se disser que não é sexual, acredito em você - eu disse. Doyle fez uma pequena mesura para mim.
- Obrigado.
- A rainha não dá apelidos íntimos sem relação com sexo - disse Sholto.
- Dá sim - eu disse.
- Quando, e por quê?
- Quando ela acha que o apelido vai incomodar a pessoa e porque tem prazer de ser irritante.
- Bem, essa última coisa realmente é verdade - disse Sholto. Ele estava com a mão na maçaneta da porta.
- Estou surpresa de ver que ninguém invadiu esse banheiro - eu disse.
- Pus um pequeno feitiço de aversão na porta. Nenhum mortal ia querer passar por ela, e poucos encantados menores.
Sholto já ia abrir a porta.
- Você não vai querer seu... membro? Talvez possam implantá-lo.
- Crescerá de novo - ele disse.
Eu devo ter feito cara de incrédula, como estava me sentindo, porque ele sorriu de um jeito meio contrito, meio superior.
- Há alguns benefícios no fato de ser metade voador noturno... não muitos, mas alguns. Posso regenerar qualquer parte perdida do corpo. - Ele"pensou um segundo e acrescentou: - Até agora, pelo menos.
Não sabia o que dizer, por isso nem tentei.
- Acho que a princesa precisa descansar, por isso se pudermos ir ver nossa amiga... - disse Doyle.
- Claro. - Sholto segurou a porta para nós.
- E essa bagunça toda? - perguntei. - Vamos simplesmente sair e deixar pedaços de tentáculo e sangue cobrindo tudo?
- O barão fez a sujeira, ele que limpe - disse Sholto.
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- Nem as partes do corpo nem o sangue pertencem a mim - disse Doyle. - Se quer ver o banheiro limpo, sugiro que faça você mesmo. Quem sabe os danos que uma bruxa talentosa pode provocar com um pedaço do corpo assim dando sopa?
Sholto reclamou mas acabou enfiando o tentáculo decepado no bolso do casaco. Deixaram o maior onde estava. Se eu fosse Sholto teria dado uma gorjeta generosa para a equipe da faxina, só para compensar quem tivesse de limpar aquele banheiro.
Subimos de elevador, e no quarto Doyle se ajoelhou no chão para ver o que restava de Nerys Cinza. Ela era uma bola de carne mais ou menos do tamanho de um galão de trinta e cinco litros. Nervos, tendões, músculos, órgãos internos, tudo brilhava molhado do lado de fora dessa bola. E parecia que tudo funcionava normalmente. Aquele monte de carne chegava até a subir e descer com cada respiração. O barulho que fazia era o pior de tudo. Um grito agudo, abafado, porque a boca estava do lado de dentro do corpo, mas mesmo assim ela gritava. Ela berrava. A tremedeira que estava diminuindo voltou a aumentar. De repente fiquei com frio, ali parada só de calça e sutiã.
Peguei minha blusa do chão e vesti-a, mas sabia que qualquer tecido não ia resolver aquele tipo de frio. Era mais uma tremedeira da alma do que do corpo. Podia me enfiar embaixo de uma pilha de cobertores que não ia melhorar.
Ajoelhado ao lado daquela bola pulsante que berrava, Doyle olhou para mim.
- Impressionante. O próprio Príncipe Essus não faria melhor. As palavras dele eram um cumprimento, mas a expressão era tão vazia que fiquei sem saber se ele estava gostando ou não.
Eu pensava que era uma das coisas mais horríveis que tinha visto, mas certamente não ia dizer isso para ninguém. Era uma arma poderosa, a mão da carne. Se as pessoas acreditassem que eu usaria sempre isso, com essa facilidade, serviria para desencorajá-las. Se achassem que eu tinha medo disso, a ameaça seria menor.
- Não sei, Doyle. Vi meu pai virar um gigante do avesso uma vez. Acha que posso fazer isso com alguém maior?
Minha voz era seca, interessada, mas acadêmica. Era a voz que eu tinha cultivado na corte. A voz que usava quando não
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queria ficar histérica, ou sair correndo e gritando de algum lugar. Tinha aprendido a ver as coisas mais medonhas e fazer comentários secos, corteses.
Doyle entendeu a pergunta literalmente.
- Não sei, Princesa, mas será interessante descobrir os limites lo seu poder.
Discordei disso, mas deixei para lá, porque não consegui pensar em nada seco e cortês para comentar a situação. Os berros abafados continuaram com a velocidade que a bola conseguia respirar. Nerys era imortal. Meu pai tinha feito isso uma vez com um inimigo da rainha. Andais guardou a bola de carne num baú, no quarto dela. De vez em quando era vista em algum lugar do quarto. Até onde eu sei, ninguém nunca perguntou o que estava fazendo fora do baú. As pessoas simplesmente pegavam a bola, punham de volta no baú e procuravam evitar as imagens recorrentes de quando a viam sentada na cama da rainha.
- Sholto pediu para você conceder a morte para Nerys. Faça isso, para podermos sair daqui.
Minha voz parecia desinteressada, quase entediada. Pensei que se tivesse de ficar ali ouvindo aquela coisa berrando muito tempo, ia acabar querendo me juntar a ela.
Ainda ajoelhado, Doyle levantou a espada com o cabo virado para mim, segurando pela lâmina.
- A mágica é sua... o golpe final deve ser seu.
Fiquei olhando atônita para o cabo de osso, para os três corvos com seus olhos de pedras brilhantes. Eu não queria fazer aquilo. Olhei para a lâmina talvez mais de um minuto, procurando pensar de que modo sair dessa sem parecer fraca. Não tive ideia nenhuma. Se demonstrasse alguma hesitação agora, então o tormento de Nerys não tinha sentido. Eu ganharia um novo título, mas não a reputação que vinha junto com ele.
Peguei a espada e odiei Doyle por tê-la oferecido para mim. Devia ser fácil. O coração dela estava preso e batendo num lado da bola. Enfiei a lâmina nele. Espirrou sangue, e o coração parou de bater, mas os gritos não pararam.
Olhei para os dois.
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- Por que ela não morreu?
- É mais difícil matar um sluagh do que um encantado - disse Sholto.
- Mais difícil como? Ele deu de ombros.
- - O abate é seu.
Naquele instante odiei os dois, porque finalmente entendi que aquilo era uma prova. Se eu recusasse, talvez a deixassem viva. Isso não era aceitável. Não podia deixá-la daquele jeito, sabendo que ela jamais envelheceria, nunca se curaria, nem morreria. Ela apenas duraria. A morte era uma bênção. Qualquer outra coisa era loucura, dela e minha.
Enfiei a espada em todos os órgãos vitais que encontrei. Eles sangraram, murcharam, pararam de funcionar, mas mesmo assim os berros continuaram. Por fim levantei a espada com as duas mãos, acima da cabeça, com a ponta para baixo, e comecei a furar tudo. No início parava entre uma estocada e a próxima, entre um corte e outro, mas todas as vezes os berros não silenciavam, presos dentro daquela bola de carne. No décimo golpe, ou no décimo quinto, já não parava mais, não escutava mais, apenas cortava e furava.
Tinha de calar aqueles gritos. Tinha de fazê-la morrer. O mundo se resumiu aos golpes da espada na carne farta. Meus braços subiam e desciam, subiam e desciam. A lâmina entrava na carne, o sangue espirrava no meu rosto, na minha blusa. Acabei de joelhos ao lado de uma coisa que não era mais redonda, nem inteira. Tinha estraçalhado a coisa, feito-a em pedaços, pedaços irreconhecíveis. Os berros tinham parado.
Minhas mãos estavam encharcadas de sangue, vermelhas até os cotovelos. A lâmina da espada também, escarlate, o cabo de osso era sangue coagulado e mesmo assim se encaixava na minha mão muito bem, não estava nem um pouco escorregadio. A blusa de seda verde estava preta de tanto sangue. Minha calça tinha passado de roxo para preto violeta. Alguém respirava rápido demais, ofegante, e descobri que era eu. Em algum ponto da carnificina houve uma satisfação feroz, quase um prazer naquela destruição total.
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Agora eu olhava para o que tinha feito e não sentia nada. Não sobrava muito de mim para sentir qualquer coisa, por isso não sentia nada. Estava entorpecida, dormente, e não era um estado ruim.
Fiquei de pé apoiada na beira da cama. A cama já estava suja de sangue... o que significava mais uma marca de mão? Meus braços doíam, os músculos tremiam de tanto esforço. Dei a espada para Doyle do jeito que ele dera para mim.
- Ótima espada, o cabo não ficou escorregadio.
Minha voz parecia tão vazia de emoção quanto eu mesma. Fiquei imaginando se enlouquecer era isso. Se era, não era tão ruim.
Doyle pegou a espada e caiu de joelhos, com a cabeça abaixada. Sholto fez a mesma coisa, ajoelhou-se, abaixou a cabeça. Doyle me saudou com a espada ensanguentada e disse:
- Meredith, Princesa da Carne, realeza verdadeira do sangue, bem-vinda ao círculo interno dos encantados.
Olhei espantada para os dois, ainda entorpecida. Se havia alguma frase ritualística para responder, eu não lembrava. Nunca soube, ou então simplesmente não conseguia fazer minha cabeça funcionar naquele momento. Só consegui pensar em uma coisa.
- Posso usar seu chuveiro?
- A vontade - disse Sholto.
O tapete esguichou sob meus pés e quando saí daquela parte dele senti pegadas de sangue atrás de mim. Tirei a roupa e tomei uma ducha com a água mais quente que podia suportar. O sangue não estava mais vermelho quando desceu pelo ralo. Estava cor-de-rosa. Enquanto eu via aquela água rosa rodopiar no ralo entendi duas coisas. A primeira, que eu estava contente de ter tido coragem para acabar com Nerys em vez de deixá-la naquele horror. A segunda, que uma parte de mim gostou de matá-la. Gostaria de poder pensar que a parte que gostou da matança era motivada pela misericórdia da primeira ideia, mas não podia ser tão generosa assim comigo mesma. Tinha de pensar se a parte que tinha gostado de enfiar a lâmina na carne era a mesma parte que fazia com que Andais guardasse seu pedaço de carne trancado num baú no quarto dela. O instante em que paramos de nos questionar é o instante em que nos tornamos um monstro.
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Cheguei ao meu apartamento com o cabelo ainda molhado do chuveiro do hotel. Doyle insistiu em destrancar a porta para mim, para o caso de ter sido transformada numa armadilha mágica. Ele levava sua função de guarda-costas a sério, mas vindo de Doyle eu não podia esperar menos do que isso. Quando ele declarou que estava tudo limpo, eu pisei descalça no tapete cinza. Estava usando uma blusa havaiana e um short largo de homem, roupas que Sholto pegou emprestadas de Gethin. A única coisa que não pude usar do homem foram os sapatos. Minhas roupas ainda estavam no quarto do hotel, tão encharcadas de sangue que até a lingerie ficara imprestável. Um pouco do sangue era de Nerys, um pouco meu.
Acendi a luz do teto no interruptor perto da porta. Paguei mais para poder pintar o apartamento de outra cor que não fosse branco. As paredes da sala eram rosa claro. O sofá era goiaba, roxo e rosa. A poltrona acolchoada no canto era cor-de-rosa. A cortina era cor-de-rosa com bandós roxos. Jeremy dizia que era como estar dentro de um ovo da Páscoa luxuosamente decorado. A estante era branca. A área de lazer era branca. Acendi o abajur ao lado da poltrona. Depois a luz sobre a pequena mesa e cadeiras brancas da cozinha. Cortinas de renda branca emolduravam a grande janela na frente da mesa. O vidro da janela estava muito preto e até ameaçador. Fechei a cortina, isolei a noite lá fora, atrás do blecaute branco. Parei um momento diante do único quadro da sala. Era uma impressão de W. Scott Miles, The Butterflies' Haunt. Era quase todo verde e as borboletas pintadas com suas cores naturais, de modo que havia muito pouco rosa ou roxo na imagem. Mas não escolhemos uma pintura porque ela combina com um cômodo. Escolhemos um quadro porque ele nos diz alguma coisa. Porque diz alguma coisa que queremos lembrar diariamente. O quadro sempre me pareceu tranquilo, idílico, mas naquela noite era apenas uma
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pintura numa tela. Naquela noite nada ia me agradar. Acendi as luzes da cozinha e fui para o quarto.
Doyle tinha ficado quieto num canto enquanto eu andava pela casa acendendo todas as luzes feito criança que acordou de um pesadelo. Luz para afastar as coisas ruins. O problema era que as coisas ruins estavam dentro da minha cabeça agora. Não havia luz suficientemente forte para isso.
Ele me seguiu quando fui para o quarto. Acendi a luz do teto e entrei.
- Gostei do que fez no quarto - ele disse. O comentário me fez dar meia-volta.
- O que quer dizer?
O rosto dele continuou impassível, intraduzível.
- A sala é tão... tão cor-de-rosa... Tive receio de que o quarto também fosse.
Olhei em volta do quarto, para as paredes cinza-claro, a borda de papel de parede vinho com flores goiaba, rosas e brancas. A cama era king size com quatro postes de dossel e não deixava quase espaço entre o pé da cama e as portas do closet. A colcha era cor de vinho profundo e tinha um monte de almofadas em cima: vinho, roxo, goiaba, rosa e algumas pretas, só algumas. A penteadeira com espelho era de cerejeira, com verniz tão escuro que ficava quase preta. A cômoda perto da janela combinava com ela. Jeremy dizia que meu quarto parecia quarto de homem, com alguns toques acrescentados pela namorada dele. Havia um armário de laca preta no canto mais distante da porta do banheiro. Esse armário era oriental, com garças e montanhas estilizadas. A garça fazia parte da farda do meu pai. Lembro que quando comprei o armário pensei que ele ia gostar. Em cima havia um vaso com um filodendro tão grande que os ramos caíam como cabelo verde em torno da bela peça de madeira.
Olhei em volta e senti de repente que aquele quarto não era meu, que aquele não era meu lugar.
- Como se fizesse alguma diferença para você, a cor do meu quarto - eu disse para Doyle.
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Ele nem piscou, mas a expressão ficou ainda mais ilegível, mais passiva, com um traço de arrogância, e me fez lembrar da máscara de Sholto na corte.
O meu comentário foi maldoso, e foi essa a minha intenção, Estava com raiva dele. Por não ter matado Nerys por mim. Por ter me forçado a fazer o que precisava ser feito. Por tudo, até pelas coisas que não eram culpa dele.
Ele me observou com um olhar tranquilo.
- Tem razão, Princesa Meredith, o seu quarto não é problema meu. Sou um capão da corte.
Balancei a cabeça.
- Não, o problema é exatamente esse. Você não é um capão. Nenhum de vocês é. Ela simplesmente não compartilha.
Ele deu de ombros, de forma educada. O movimento provocou uma careta de dor.
- Como está seu ferimento? - perguntei.
- Você estava com raiva de mim segundos atrás. Agora não está mais. Por quê?
Tentei explicar.
- Não é sua culpa.
- O quê não é minha culpa?
- Você não me ameaçou. Você salvou a minha vida. Não mandou os sluagh atrás de mim. Não provocou a manifestação da mão da carne esta noite. Não é sua culpa. Estou com raiva e quero culpar alguém, mas você não devia pagar o preço da merda que outros fizeram.
Ele ergueu as sobrancelhas negras.
- Atitude muito sábia para uma princesa. Balancei a cabeça de novo.
- Deixe o título de lado, Doyle. Sou Meredith, apenas Meredith.
As sobrancelhas subiram ainda mais, os olhos ficaram impos-sivelmente grandes, e a expressão dele acabou me fazendo rir. A risada soou normal, uma sensação boa. Sentei na beira da cama.
- Não pensei que ia dar risada esta noite. Ele se ajoelhou na minha frente.
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- Você já matou antes... por que isso é diferente? Olhei para ele, surpresa de ver que ele entendia exatamente o que me incomodava.
- Por que era tão importante eu matar Nerys?
- Os encantados recebem seu poder através de um ritual, mas isso não significa que o poder vai se manifestar. Depois que o poder é usado pela primeira vez, o encantado tem de se cobrir de sangue em combate. - Ele pôs as mãos na cama, uma de cada lado de mim, sem encostar. - É uma espécie de sacrifício de sangue. Que garante que os poderes não adormeçam de novo, que continuem crescendo.
- O sangue faz a plantação crescer - eu disse. Ele fez que sim com a cabeça.
- Mágica mortal é a mais antiga das mágicas, Princesa. - Ele deu aquele sorriso discreto. - Meredith - Doyle pronunciou meu nome suavemente.
- Então você me fez retalhar Nerys para meus poderes não adormecerem de novo?
Ele fez que sim com a cabeça de novo. Olhei para aquele rosto sério.
- Você disse que um encantado recebe o poder depois de um ritual. Eu não tive ritual nenhum.
- A noite que passou com o roane foi o seu ritual.
- Não, Doyle, não fizemos ritual nenhum aquela noite - protestei.
- Existem muitos rituais para despertar o poder, Meredith. Combate, sacrifício, sexo e muitos mais. Não é surpresa nenhuma o seu poder ter escolhido o sexo. Você descende de três divindades da fertilidade diferentes.
- Na verdade são cinco. Mas ainda não entendo.
- Seu roane estava coberto de Lágrimas de Branwyn. Naquela única noite ele desempenhou o papel de amante encantado para você. Ele fez aflorar seus poderes secundários.
- Eu sabia que era mágico, mas não sabia... - Deixei a frase no ar e olhei confusa para ele. - Acho que devia ser mais do que apenas bom sexo.
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- Por quê? É o sexo que faz o milagre da vida... o que poderia ser mais grandioso do que isso?
- A mágica curou Roane, devolveu-lhe sua pele de foca. Eu não tentei curá-lo, porque não sabia que podia.
Doyle sentou ao meu lado na cama, com as pernas compridas dobradas e encostadas na cômoda.
- Curar um roane sem pele não é nada. Eu vi encantados erguerem montanhas do mar, ou alagar cidades inteiras quando recebiam seu poder. Você teve sorte.
De repente fiquei assustada.
- Quer dizer que receber meus poderes podia ter provocado algum grande desastre natural?
- Podia.
- Acho que alguém podia ter me avisado - eu disse.
- Ninguém sabia que você ia nos deixar, por isso ninguém pôde aconselhá-la. E ninguém sabia que você tinha poderes secundários, Meredith. A rainha tinha se convencido de que se sete anos com Griffin na cama e anos de duelos não lograram despertar seus poderes, era porque não havia poderes para despertar.
- E por que agora? - perguntei. - Por que depois de todos esses anos?
- Não sei. Tudo que eu sei é que você é a Princesa da Carne e que tem mais uma mão de poder que ainda não se manifestou.
- É raro um encantado ter mais de uma mão de poder. Por que eu teria duas?
- Suas mãos derreteram duas barras de metal da cama. Duas barras derretidas, uma para cada mão.
Levantei e me afastei dele.
- Como ficou sabendo disso?
- Observei da varanda enquanto você dormia. Eu vi a cabeceira da cama.
- Por que não acusou sua presença para mim?
- Naquele ponto seu sono era efeito de drogas. Duvido que tivesse conseguido acordá-la.
- Por que não fez isso na noite em que usou as aranhas? Aquela noite na casa de Alistair Norton?
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- Você fala do humano que praticava adoração dos encantados. Isso me surpreendeu. Olhei para ele espantada.
- Do que é que está falando, Doyle? Quando foi que Norton venerou os encantados?
- Quando ele roubou o poder das mulheres usando as Lágrimas de Branwyn - disse Doyle.
- Não, eu estava lá. Fui quase uma vítima. Não havia cerimônia nenhuma invocando os encantados.
- Toda criança neste país aprende a única coisa que é proibida para os encantados quando são recebidos aqui.
- Não podemos bancar os deuses. Não podemos ser adorados. Aprendi isso em casa, com meu pai, e na escola, nas aulas de história.
- Você é a única de nós que estudou em escola comum com os humanos. As vezes me esqueço disso. A rainha ficou lívida quando descobriu que o Príncipe Essus tinha matriculado você numa escola de humanos.
- Ela tentou me matar afogada quando eu tinha seis anos, Doyle. Tentou me afogar como um cachorrinho de raça pura que tinha defeitos. Acho que não daria a mínima para a escola em que eu estudasse.
- Acho que nunca vi a rainha tão surpresa como quando o Príncipe Essus levou você e a comitiva dele para viver entre os humanos. - Ele sorriu, um breve clarão branco naquele rosto escuro. - Quando ela percebeu que o príncipe não ia reconhecer que você estava tendo tratamento inadequado, ela passou a tentar atraí-lo de volta para a corte. Ofereceu muita coisa para ele, mas ele recusou por dez anos. Tempo suficiente para você crescer, passar de menina a mulher entre os humanos.
- Se ela ficou tão irritada com isso, por que então permite que tantos da Corte Profana venham nos visitar?
- A rainha e o príncipe temiam que você ficasse humana demais se não visse o seu povo. Apesar de a rainha não aprovar escolhas do seu pai para a sua comitiva.
- Você fala de Keelin - eu disse. Ele meneou a cabeça.
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- A rainha jamais entendeu por que ele insistia em escolher uma fada que não tinha nem um pingo de sangue encantado nas veias para ser sua companheira o tempo todo.
- Keelin é metade fada como minha avó.
- E metade duende - disse Doyle. - Coisa que você não tem na sua história.
- Os duendes são soldados da infantaria do Exército Profano. Os encantados declaram guerra, mas são os duendes que iniciam os combates.
- Agora você está citando seu pai - disse Doyle.
- Estou sim.
De repente fiquei cansada de novo. A breve melhora de humor, as extraordinárias novas possibilidades de poder, a volta para a corte... nada disso evitava um cansaço que chegava a doer nos ossos. Mas uma coisa eu precisava saber.
- Você disse que Alistair Norton era adorador dos encantados. O que quis dizer com isso?
- Quis dizer que ele usou um ritual para invocar os encantados quando desenhou o círculo de poder em volta da cama dele. Eu reconheci os símbolos. Você não viu nenhum ritual porque mesmo o humano menos culto sabe que não pode invocar o poder da mágica encantada.
- Ele fazia o ritual de preparação antes da chegada das mulheres - eu disse.
- Exatamente - disse Doyle.
- Eu vi um encantado nos espelhos, mas não vi o rosto. Você conseguiu sentir quem era?
- Não, mas tinha bastante poder, tanto que eu não consegui atravessar. Só pude enviar para você meu animal e minha voz. É preciso muita força para me impedir de entrar em algum cômodo.
- Então um encantado está se deixando...
- Ou encantada - disse Doyle.
- Ou encantada - concordei - está se deixando ser adorada e deu as Lágrimas de Branwyn para um mortal, para serem usadas contra outros encantados.
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- Normalmente, humanos que têm ascendência encantada não se qualificam para isso, mas nesse caso sim.
- Deixar-se ser adorado é sentença de morte - eu disse.
- Permitir que as Lágrimas sejam usadas contra outro encantado é ser condenado à tortura por um período indefinido. Há quei prefira a morte a isso.
- Você contou para a rainha? Doyle ficou de pé.
- Contei do encantado ou encantada que está se deixando ser adorado, contei das Lágrimas. Precisarei contar para ela que você tem a mão da carne e que cumpriu o ritual do sangue. Ela também terá de saber que o traidor não é Sholto, e sim alguém que fala em nome dela.
Arregalei os olhos.
- Está dizendo que ela enviou apenas você, sozinho, contra Sholto e todos os sluagh, pensando que ele a tinha traído?
Doyle não disse nada.
- Não é nada pessoal, mas você precisava de um reforço.
- Não, ela ordenou que eu a levasse para casa antes de Sholto sair de Saint Louis. Eu cheguei naquela noite em que providenciei as aranhas para ajudá-la. E Sholto iniciou a viagem para cá no dia seguinte.
- Então alguém descobriu que a rainha queria que eu voltasse para casa, e em vinte e quatro horas armaram um plano para me matar.
- É o que parece - disse Doyle.
- Você nunca saiu do lado da rainha em... o quê? Seiscentos, oitocentos anos... exceto para cometer assassinatos?
- Para ser exato, mil e vinte e três anos.
- Então, se ela não quer que você me mate, para quê enviou você? Há outros Corvos dela em quem eu confio mais.
- Confia mais ou gosta mais? - perguntou Doyle. Pensei um pouco e concordei.
- Está bem, gosto mais. Essa é a conversa mais longa que já tivemos, Doyle. Por que ela enviou você, a Escuridão?
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- A rainha quer que você volte para casa, Meredith. Mas tinha medo que você não acreditasse nela. Eu sou a garantia dela para você. A Escuridão dela, com sua arma pessoal na mão, com sua mágica no meu corpo, para provar que ela está sendo sincera.
- Por que ela quer que eu volte, Doyle? Ela mandou você para cá antes de eu receber o meu poder, que foi surpresa para todos nós. O que a fez mudar de ideia? Por que minha vida merece defesa, assim de repente?
- Ela nunca ordenou a sua morte.
- Ela também nunca impediu que outros tentassem. Ele fez uma pequena mesura.
- Contra isso eu não posso argumentar.
- Então, o que mudou?
- Não sei por quê, Meredith, só sei que é isso que ela quer.
- Você nunca foi de fazer muitas perguntas mesmo - eu disse.
- E você, Princesa, sempre fez perguntas demais.
- Pode ser, mas quero a resposta dessa pergunta antes de voltar para a corte.
- Que pergunta? Franzi a testa para ele.
- Por que mudar de ideia, Doyle? Preciso saber antes de confiar minha vida à corte novamente.
- E se ela não quiser dar essa informação?
Procurei raciocinar e avaliar se valia a pena abdicar completamente do mundo encantado por causa de uma pergunta sem resposta. Era um assunto complexo demais para aquele momento.
- Eu não sei, Doyle. Eu não sei. A única coisa que sei é que estou muito cansada.
- Com sua licença, vou usar o espelho do banheiro para me comunicar com a rainha e fazer meu relatório.
Fiz que sim com a cabeça.
- Fique à vontade.
Ele fez a mesura que coube no espaço exíguo do quarto e foi indo para a porta do banheiro que ficava fora da vista de onde estávamos.
- Como sabe onde fica o banheiro? - perguntei.
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Ele olhou para trás, com expressão simpática, ilegível.
- Já vi o resto do apartamento. Onde mais poderia ser?
Não acreditei nele. Não demonstrei isso, ou então ele preferiu ignorar, porque seguiu em frente. Ouvi a porta do banheiro se abrir e fechar.
Sentei na cama de novo e tentei lembrar onde tinha guardado os sacos de dormir. Doyle tinha salvado minha vida esta noite. O mínimo que eu podia fazer era dar-lhe conforto. Pela minha vida acho que poderia ter oferecido a minha cama, mas eu estava exausta e moída e só queria a cama. Além do mais, até eu saber exatamente por que ele me salvara hoje, adiaria a gratidão maior. Há coisas piores do que a morte na Corte Profana. Nerys era o exemplo perfeito. A marca da rainha não seria violada por tal feitiço. Por isso, até eu ter certeza, até o último fio de cabelo, de que não estavam me salvando para algum destino horroroso, guardaria minha gratidão. Encontrei os sacos de dormir no pequeno armário da sala de estar. Desenrolei os dois ao pé da cama para arejar e então ouvi os gritos vindos do banheiro. Era Doyle berrando, com raiva. A Escuridão da rainha e a rainha estavam brigando, pelo menos era isso que parecia estar acontecendo. Imaginei se ele ia me contar o porquê da briga, ou se seria apenas mais um segredo.
Fui até a porta do banheiro. Doyle dizia, com a voz alterada:
- Por favor, minha senhora, não me peça para fazer isso. Fiquei sem saber o que mais teria ouvido, porque ele chegou até a porta, abriu uma fresta e perguntou:
- Sim, Princesa?
- Se você puder ficar aí dentro mais um pouco, vou me vestir para dormir.
Ele concordou com um movimento de cabeça. Não me convidou para ver minha tia pelo espelho. Não tentou explicar a briga. Ele simplesmente fechou a porta. Agora eu ouvia a voz deles, mais
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baixinho. A gritaria acabou. Não queriam que eu soubesse o assunto da discussão. Eu imaginava que tinha a ver comigo. O que Doyle detestaria tanto fazer, a ponto de brigar com a rainha?
Ele não pretendia me matar, e qualquer coisa além disso, naquela noite, não me importava. Apaguei a luz do teto e acendi o pequeno abajur ao lado da cama. A luz do teto era forte demais para o quarto. O fato de eu estar disposta a apagar qualquer luz significava que estava me sentindo melhor. Mais calma, pelo menos.
Era privilégio da rainha dormir com seus guarda-costas, seus Corvos, até um deles engravidá-la. Então ela se casava com ele e parava de ir para a cama com o resto. Andais podia tê-los liberado para ter outras amantes, mas preferiu não fazer isso. Os que iam para a cama com ela não iam com mais ninguém. Eles não faziam sexo com outra pessoa há muito, muito tempo.
Acabei resolvendo vestir uma camisola de seda que ia até os joelhos e revelava apenas um minúsculo V de pele no peito. Cobria mais do que qualquer outra peça que havia na gaveta, mas sem sutiã meus seios pressionavam o tecido fino, e meus mamilos ficavam visíveis. A seda era de um roxo vibrante e combinava muito bem com a minha pele e o meu cabelo. Estava tentando não me exibir para Doyle, mas também não queria parecer desleixada.
Fui me olhar no espelho. Parecia uma mulher à espera do amante, fora os cortes. Levantei os braços. As garras de Nerys tinham deixado linhas vermelhas inflamadas. O corte no braço esquerdo ainda sangrava. Será que eu precisava de pontos? Costumava me recuperar sem precisar de sutura, mas já devia ter parado de sangrar. Levantei a camisola para ver o ferimento na coxa. Era um furo bem em cima. Ela tentou cortar minha artéria femoral. Pretendia me matar, só que fui eu que a matei. Ainda não sentia nada quanto à morte dela. Era um grande lugar adormecido. Talvez amanhã eu me sentisse mal, talvez não. As vezes ficávamos apenas entorpecidos, porque qualquer outra coisa era inútil. E às vezes a sanidade dependia dos números.
Olhei bem para o meu reflexo no espelho e vi que até a minha expressão era vazia. Os olhos tinham aquela aparência atônita e
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insensível que tinha mais a ver com o choque do que com qualquer outra coisa. A última vez que vi aquela expressão no meu rosto foi depois do último duelo, quando finalmente soube que os duelos não iam cessar até eu estar morta. Foi na noite em que resolvi fugir, me esconder.
O convite para voltar para o mundo encantado tinha sido feito poucas horas antes, e eu já parecia uma vítima de neurose de guerra. Levantei os braços outra vez e fiquei olhando para as marcas das garras. De certa forma foi o preço que paguei para voltar para casa. Paguei com sangue, carne e dor. Essa era a moeda da Corte Profana. A rainha me chamou de volta e prometeu segurança, mas eu a conhecia. Ainda ia querer me castigar por ter fugido, por ter me escondido, por ter derrotado seu esforço para me caçar. Dizer que minha tia não é boa perdedora é atenuar os fatos em proporção universal.
Doyle bateu na porta do banheiro.
- Posso sair?
- Estou tentando resolver isso agora - eu disse.
- O quê? - ele perguntou.
- Está bem, saia - eu disse.
Doyle tinha prendido a bainha da espada sobre o peito nu. O cabo estava pendurado de cabeça para baixo, de um lado do torso dele, como uma pistola no coldre. As correias pareciam frouxas, ele devia ter tirado alguma coisa que as mantinha presas no lugar.
Eu nunca tinha visto Doyle sem estar vestido da cabeça aos pés. Mesmo em pleno verão ele raramente usava mangas curtas, apenas tecido mais leve. Ele tinha um anel de prata no mamilo esquerdo. Era surpreendente contra o negro total da pele dele. O ferimento ficava logo acima do peitoral esquerdo. O vermelho do sangue era quase decorativo sobre o peito dele, uma maquiagem elaborada para chamar a atenção.
- Os seus ferimentos são sérios? - ele perguntou.
- Devo perguntar a mesma coisa para você.
- Não tenho sangue mortal, Princesa. Vou ficar bom. E pergunto outra vez, está seriamente ferida?
- Estive pensando se preciso de uns pontos no corte do braço, e aqui...
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Já ia levantar a camisola para mostrar a unhada na virilha, mas parei na metade do movimento. Os encantados ficam à vontade diante da nudez, mas eu sempre procurei ser mais discreta perto dos guardas.
- O furo na minha coxa, estou preocupada com a profundidade.
Deixei a seda roxa cair de volta no lugar, sem apontar o ferimento. Era muito lá em cima, e eu estava sem calcinha. Costumava dormir sem. Era hábito. Naquele momento desejei estar usando uma. Apesar de Doyle não poder saber se eu estava ou não de calcinha por baixo da camisola, de repente me senti despida.
Eu provocaria Jeremy, mas não Uther, nem Doyle, pelos mesmos motivos. Os dois eram privados daquela parte deles. Uther porque era exilado, e não havia mulheres da estatura dele. Doyle por um capricho da rainha.
Ele pegou os sacos de dormir e pôs no chão entre a cama e a parede, depois sentou na beira da cama.
- Posso ver o ferimento, Princesa?
Sentei ao lado dele, ajeitando a camisola. Estendi o braço esquerdo para ele.
Ele levantou o braço com as duas mãos e dobrou para ver melhor. Os dedos dele pareciam maiores do que deviam ser, mais íntimos do que eram.
- É profundo. Rasgou alguns músculos. Deve estar doendo.
- Neste momento não estou sentindo nada - eu disse.
Ele botou a mão na minha testa. A mão dele estava morna, quase quente.
- Você está fria, Princesa. - Ele balançou a cabeça. - Eu devia ter notado antes. Você está em choque. Não é grave, mas foi descuido meu não ter visto isso. Precisa de uma cura e de calor.
Puxei meu braço. A sensação dos dedos dele deslizando na minha pele quando fiz isso fez com que eu virasse para o outro lado, para ele não ver a expressão no meu rosto.
- Como nenhum de nós dois é capaz de curar com o toque, acho que vamos ter que nos conformar com curativos e calor.
- Eu posso curar com mágica - ele disse.
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Olhei para ele de novo e vi que cuidava para manter a expressão neutra.
- Nunca vi você fazer isso na corte.
- É um método mais... íntimo... do que o toque de mãos. Na corte há curandeiros muito mais poderosos do que eu. As minhas pequenas habilidades nessa área de cura não são necessárias. - Ele estendeu as mãos para mim. - Posso curá-la, Princesa, ou será que prefere ir ao pronto-socorro e levar pontos? De qualquer modo, a hemorragia precisa ser estancada.
Não gosto muito de pontos. Pus a mão na dele. Ele dobrou meu braço de novo, apertou minha mão e entrelaçou os dedos nos meus. Minha pele parecia extraordinariamente branca em contraste com a pele negra dele, como azeviche polido e madrepérola. Ele pôs a outra mão no meu cotovelo. Segurou meu braço com firmeza e cuidado. Percebi que não podia me afastar dele e que não sabia como funcionava aquela cura.
- Vai doer?
Ele inclinou a cabeça para olhar para mim por trás do meu braço levantado.
- Pode doer um pouco, sim.
Doyle chegou mais perto do braço como se fosse beijar o ferimento.
Pus a mão no ombro dele e impedi que ele chegasse mais para frente. Sua pele era como seda quente.
- Espere... como é que vai me curar? Ele deu aquele pequeno sorriso.
- Se esperar só alguns segundos, vai ver.
- Não gosto de surpresas - eu disse, ainda segurando o ombro dele.
Ele sorriu e balançou a cabeça.
- Muito bem.
Mas Doyle continuou apertando a minha mão e segurando meu braço. Eu continuava presa, a impressão que tive foi de que ele ia me curar de qualquer maneira, mesmo se eu não quisesse.
- Sholto disse que um dos meus apelidos é Barão Língua Doce.
- É, eu me lembro - eu disse.
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- Ele deu a entender que tinha conotação sexual, mas não tem. Posso curar seus ferimentos, mas não com as mãos.
Olhei espantada para ele.
- Quer dizer que vai lamber o ferimento para ele cicatrizar?
- Vou.
- - Alguns cães da corte fazem isso, mas nunca ouvi falar de algum encantado que tivesse essa habilidade.
- Como disse Sholto, há certas vantagens em não ser encantado puro. As partes cortadas do corpo dele crescem de novo, e eu posso lamber uma ferida para ela fechar.
Não me esforcei para não demonstrar desconfiança.
- Se você fosse qualquer outro guarda, eu o acusaria de inventar uma desculpa para encostar a boca em mim.
Ele sorriu e dessa vez foi um sorriso maior, mais alegre.
- Se meus companheiros Corvos tentassem enganá-la desse modo, não iam querer tocar no seu braço.
Tive de sorrir.
- Você me convenceu. Então está bem, estanque o sangramento, se puder. Realmente não quero ir para a emergência do hospital esta noite. - Tirei a mão do ombro dele. - Pode continuar.
Ele se inclinou para o meu braço, lentamente e falando ao mesmo tempo.
- Vou tentar fazer isso da forma menos dolorosa possível. O hálito dele quase queimava minha pele de tão quente, então ele lambeu o ferimento de leve.
Dei um pulo.
Ele rolou os olhos para cima, para mim, sem mover o rosto.
- Eu te machuquei, Princesa?
Balancei a cabeça, sem saber se podia confiar na minha voz.
Doyle voltou a se concentrar no ferimento. Lambeu o corte por fora duas vezes, bem devagar, então enfiou a língua por dentro. A dor foi aguda, imediata, e dei um grito sufocado.
Dessa vez ele não recuou, chegou a boca mais perto ainda da minha pele. De olhos fechados, Doyle cutucou o corte com a língua e provocou sensações agudas de dor como pequenos choques elétricos. A cada dor dessas a parte de baixo do meu corpo se
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contraía e depois relaxava. Era como se ele tocasse em nervos ligados a outras partes que não tinham nada a ver com o meu braço.
Ele começou a lamber o ferimento com movimentos longos e lentos. Mantinha os olhos fechados, e eu via os cílios pretos sobre a maçã do rosto bem de perto. Agora já não sentia quase dor nenhuma, apenas a sensação da língua dele deslizando em mim. O toque da boca de Doyle fez meu coração disparar e a respiração ficar entrecortada. Os brincos dele captaram a luz e refletiram um faiscar prateado que cobria toda a curva das orelhas. O corte começou a esquentar. Já parecia a sensação da cura pelo toque. Aquele calor crescente, a energia vibrando na pele, dentro da pele, era quase idêntica.
Doyle se afastou do meu braço, com os olhos semicerrados e a boca entreaberta. Parecia que estava despertando de um sonho, ou então que tinha interrompido coisas mais íntimas. Ele soltou o meu braço quase sem querer.
A voz dele soou rouca, arrastada.
- Faz muito tempo que não faço isso. Esqueci como era essa sensação de curar.
Dobrei meu braço para trás para ver o corte, e não havia mais corte. Toquei a pele com a ponta dos dedos. Estava lisa, intocada, ainda úmida da língua de Doyle, ainda quente, com um restinho da mágica.
- Está perfeito. Não tem nem cicatriz.
- Você parece surpresa.
- Acho que é mais satisfação.
Ele fez uma pequena mesura, ainda sentado na cama.
- Fico feliz de poder prestar esse serviço para a minha princesa.
- Esqueci dos travesseiros.
Eu me levantei e ia para o closet. Ele agarrou meu pulso.
- Você está sangrando. Olhei para o braço, que continuava curado.
- Sua perna, Princesa.
Olhei para baixo e vi sangue escorrendo na perna direita.
- Maldição.
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- Deite aí na cama e deixe-me dar uma espiada nesse ferimento.
Ele ainda segurava meu pulso e tentou me puxar para a cama. Resisti, e ele me soltou.
- Não devia estar sangrando até agora, Princesa Meredith. Deixe-me curar esse também, como fiz com seu braço.
- É muito em cima na coxa, Doyle.
- A bruxa estava querendo furar sua artéria femoral.
- É - eu disse.
- Devo insistir em ver o ferimento, Princesa. É uma área vital demais para ser ignorada.
- Fica muito lá em cima na coxa - repeti.
- Já entendi isso - ele disse. - Agora faça o favor de deitar e deixar eu dar uma olhada nisso.
- Não estou usando nada por baixo dessa camisola - eu disse.
- Ah.
As emoções passaram muito rápido no rosto dele, e não pude decifrar, nuvens deslizando sobre o campo num dia de vento.
- Então você pode vestir alguma coisa para eu poder ver o ferimento.
- Boa ideia - eu disse.
Abri a gaveta da cômoda onde guardava minhas roupas de baixo. As calcinhas, assim como as camisolas, eram de cetim, de seda e cheias de renda. Acabei escolhendo um biquíni liso de cetim preto, sem babados, sem renda, sem aberturas e partes transparentes. Era a peça mais conservadora que eu tinha.
Olhei para trás. Doyle tinha virado de costas para mim, sem eu pedir. Vesti a calcinha, arrumei a camisola e disse:
- Pode olhar agora.
Ele virou com expressão muito solene.
- A maioria das damas da corte não mencionaria isso. Algumas para me provocar, e outras apenas porque nem lembrariam. A nudez é bastante comum nas cortes. Por que contou que estava sem calcinha?
- Alguns guardas provocam, brincam de passar a mão e fazer cócegas, e eu não teria avisado nenhum deles. Seria apenas outra
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parte da brincadeira. Mas você não brinca, Doyle. Está sempre distante disso. Se eu simplesmente deitasse na cama e abrisse as pernas para você seria... cruel. Ele concordou.
- É, seria. Muitos na corte tratam os que se mantêm distantes como se fôssemos eunucos, como se não sentíssemos nada. Mas eu acho melhor não tocar em pele macia do que ficar excitado e depois não chegar a lugar nenhum. Isso é pior do que nada para mim.
- A rainha continua não permitindo que vocês se masturbem sozinhos?
Ele olhou para o chão, e percebi que tinha passado da fronteira das perguntas educadas.
- Peço perdão, Doyle, não somos bastante íntimos para tal pergunta.
Ele falou sem levantar a cabeça:
- Você é a mais educada de toda a realeza profana. A rainha considerava fraqueza essas suas delicadezas. - Ele olhou para mim, examinou meu rosto. - Mas nós da guarda damos valor a isso. Sempre foi um alívio ter de lhe servir de guarda, porque não tínhamos medo de você.
- Eu não era suficientemente poderosa para atemorizá-los - eu disse.
- Não, Princesa, não estou falando da sua mágica. O que quero dizer é que não temíamos sua crueldade. O Príncipe Cel herdou o... senso de humor da mãe.
- Você quer dizer que ele é um sádico. Doyle confirmou balançando a cabeça.
- De todas as maneiras. Agora deite aí na cama para eu ver o ferimento. Se deixá-la morrer de hemorragia por algum recato, a rainha pode me transformar num eunuco.
- Você é a Escuridão dela, seu braço direito. Ela não o perderia por mim.
- Acho que você se subestima e me supervaloriza. - Ele estendeu a mão para mim. - Deite-se, Princesa, por favor.
Segurei a mão dele e subi na cama de joelhos.
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- Quer fazer o favor de me chamar de Meredith? Há anos não ouço mais princesa isso e princesa aquilo. Vou ter minha cota disso quando voltar para Cahokia. Esta noite, vamos deixar os títulos de lado.
Ele abaixou um pouco a cabeça.
- Como quiser, Meredith.
Deixei Doyle me ajudar a chegar ao meio da cama, apesar de não precisar dessa ajuda. Em parte porque encantados mais velhos gostam de ajudar e em parte porque gostei da sensação da mão dele na minha.
Acabei deitada com a cabeça aninhada no monte de pequenas almofadas na cama. Assim recostada, tinha uma visão perfeita do meu corpo todo.
Doyle se ajoelhou ao lado da perna ferida.
- Com licença, Princesa.
- Meredith - eu disse.
- Com licença, Meredith.
Levantei a camisola roxa até a ferida aparecer. Era tão alta que a calcinha preta apareceu logo abaixo da camisola levantada.
Ele examinou com as mãos, puxou a pele e apertou-a. Doeu e não foi uma dor boa. Devia estar pior do que eu imaginava. O sangue fluía mais depressa, mas certamente não era o bastante para ser uma artéria. Eu teria morrido de hemorragia muito antes se a femoral estivesse sangrando.
Ele se endireitou, com as mãos no colo.
- A ferida é muito profunda, e acho que danificou os músculos.
- Não estava doendo tanto até você começar a mexer.
- Se não curá-la esta noite, amanhã você ficará manca e teremos de ir para o hospital. Pode precisar de cirurgia, de pontos internos. Ou eu posso curar isso agora.
- Meu voto é agora - eu disse. Ele deu aquele sorriso.
- Ótimo. Eu teria que explicar para a rainha por que levei você para casa mancando, se podia curá-la. - Ele começou a se abaixar sobre a minha perna, mas levantou de novo. - Isso ficaria mais fácil se eu mudasse de lugar.
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- Você é o curandeiro. Faça o que tiver que fazer - eu disse. Ele ficou entre as minhas pernas, e eu tive de abri-las para dar espaço para os joelhos dele. Foi uma manobra meio complicada, precisou de alguns "Desculpe, Princesa", mas ele acabou deitado de barriga para baixo, com as mãos por baixo das minhas coxas. Examinou meu corpo de baixo para cima, até encontrar meus olhos. Só olhar para ele naquela posição já fazia a artéria do meu pescoço saltar e pulsar forte. Procurei evitar que transparecesse no meu rosto e acho que não consegui.
Ele soltou o bafo que parecia um vento quente na pele da minha coxa. Olhava para meu rosto enquanto fazia isso, percebi que era de propósito e que não tinha nada a ver com a cura.
Ele ergueu o corpo um pouco.
- Perdão, mas não é só de sexo que sentimos falta, é também das pequenas intimidades. A expressão de uma mulher quando reage ao nosso toque. - Ele passou a língua na minha pele com um movimento rápido. - Esse pequeno suspiro quando o corpo dela se ergue na direção do nosso toque.
Deitou entre as minhas pernas, olhando fixo para mim. Examinei o corpo dele de alto a baixo. O cabelo era uma corda grossa e preta que percorria as costas e a maciez justa da calça jeans. Quando olhei para os olhos dele de novo, tinham aquela expressão que todo homem tem, quando está certo de que você não vai dizer não para o que quer que ele peça. Doyle ainda não merecia aquele olhar, ainda não.
- Você não pode provocar, lembra?
Ele esfregou o queixo para frente e para trás na minha coxa enquanto falava.
- Não costumo me deixar ficar numa posição tão comprometedora, mas acho que já que estou aqui, é muito difícil não tirar algum proveito.
Ele mordeu suavemente minha coxa, e quando sufoquei um grito de prazer, ele mordeu com mais força. Curvei as costas e gritei. Quando consegui olhar para ele outra vez, tinha deixado uma marca vermelha dos dentes na minha pele. Fazia muito tempo
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que eu não tinha um amante que, além de querer, deixava de fato marcas no meu corpo.
A voz dele soou profunda e rouca:
- Isso foi delicioso.
- Se você me provocar, eu também vou provocá-lo. Pretendi que isso fosse um aviso, mas minha voz estava ofegante demais.
- Mas você está aí em cima, e eu aqui embaixo.
Ele apertou mais ainda minhas pernas. A força que tinha nas mãos era imensa. Eu entendi o que ele queria dizer. Ele tinha força suficiente para me imobilizar, apenas com as mãos nas minhas coxas. Eu podia sentar, mas não sair dali. Uma tensão no corpo que eu nem sabia que tinha diminuiu. Relaxei e deitei na cama de novo. Eu andava sentindo falta de coisas que tinham pouco a ver com orgasmo. Doyle jamais olharia para mim com expressão horrorizada diante do que eu pedisse para ele fazer. Jamais faria com que me sentisse um monstro por causa das coisas que meu corpo desejava.
Tirei a camisola de baixo das costas, puxei para cima pela cabeça. Levantei-me e sentei na cama. Aquele conhecimento misterioso não estava mais no olhar dele, substituído por puro desejo. Estava tão patente no rosto dele que eu soube que tinha levado o jogo longe demais. Cobri os seios com a camisola, sem saber como pedir desculpas e não tornar tudo ainda mais constrangedor do que já estava.
- Não - ele disse - não se cubra. Você me surpreendeu, foi só isso.
- Não, Doyle. Não podemos ir até o fim disso, e por sua causa, especialmente... Sinto muito.
Comecei a vestir a camisola de novo.
Ele apertou dolorosamente minhas coxas, pressionando muito as pontas dos dedos na minha pele. Perdi o ar e olhei para ele com a camisola ainda nos braços.
Sua voz soou carregada de autoridade, uma raiva mal contida que fez seus olhos brilharem como pedras negras:
-Não!
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Aquela única palavra me paralisou, arregalei os olhos e meu coração batia como algo preso na garganta.
- Não - ele disse, num tom menos severo - não, eu quero vê-los. Vou fazer você se contorcer, minha princesa, e quero v seu corpo enquanto faço isso.
Deixei a camisola cair na cama e sentei, o mais perto dele que pude. O aperto nas minhas coxas tinha passado do ponto do prazer e se tornado apenas dor, mas isso também, num contexto apropriado, era um tipo de prazer.
Ele afrouxou só um pouco a pegada e vi que tinha deixado marcas das unhas nas minhas pernas. Aquelas pequenas marcas de meia-lua se encheram de sangue enquanto eu olhava.
Ele já ia tirar as mãos de baixo das minhas coxas, mas balancei a cabeça, indicando que não.
- Você está aí embaixo, e eu aqui em cima.
Ele não contestou, apenas pôs as mãos de novo embaixo das minhas pernas, sem me machucar dessa vez, com firmeza suficiente para eu não poder me afastar. Passei as mãos na minha barriga, subi até os seios, depois recostei nas almofadas para ele poder me ver.
Doyle ficou olhando para mim alguns segundos, decorando a posição do meu corpo nas almofadas de cores escuras, e então pôs a boca no ferimento. E lambeu com movimentos lentos e fortes. Então começou a chupar. Puxou a pele com tanta força que doeu como se sugasse algum veneno da ferida.
A dor me fez levantar, e ele rolou os olhos para mim com aquele conhecimento que não tinha merecido. Deitei de novo na cama sentindo a pressão da boca dele na coxa, os dedos fortes apertando minhas pernas com tanta força que eu sabia que no dia seguinte seriam manchas roxas. Minha pele tinha começado a brilhar, pulsando à luz suave do quarto.
Olhei para ele, mas estava com a cabeça abaixada, concentrado na sua obra. O calor começou a aumentar sob a pressão da boca de Doyle, encheu o ferimento como se derramasse água quente naquele furo.
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Doyle começou a brilhar. A pele dele era o luar numa poça de água à noite. Só que esse luar vinha de dentro dele e tremeluzia em formas negras de luz e escuridão sob a pele.
O calor da cura batia na minha coxa como um segundo coração. Ele grudou a boca em mim, sugando no ritmo daquela batida, limpando e esvaziando. O calor cresceu no centro do meu corpo, e eu percebi que era o meu poder, só que nunca havia sido assim.
Esses calores na coxa e no meio do meu corpo se estenderam para fora como poços de calor, saindo, saindo, cada vez maiores, até meu corpo ser devorado pelo calor, minha pele brilhar branca e pura com uma dança por baixo, como se fosse água. Os dois poderes fluíram um contra o outro, e por um segundo o calor de cura de Doyle flutuou na superfície do meu calor, depois os dois poderes se misturaram e viraram um jorro de mágica de corpo retesado, dança de pele e coluna curvada.
Doyle levantou a cabeça. E gritou:
- Meredith, não!
Mas era tarde demais, o poder jorrou através de nós dois, numa onda de calor que retesou toda a parte de baixo do meu corpo até não conseguir mais respirar. Então o poder se abriu como um punho, tentando pegar o que não alcançava. Eu gritei, e o poder fluiu da minha pele com um brilho que formou sombras no quarto.
Vi Doyle através de uma névoa. Ele estava de joelhos. Com uma mão levantada para aparar um golpe. Então o poder caiu em cima dele. Vi sua cabeça sendo jogada para trás, o corpo se erguer de joelhos, parecia que o poder tinha braços para levantá-lo. A dança do luar sob a pele de Doyle cresceu, e eu vi uma nuvem de luz negra, brilhando como um arco-íris em volta do corpo dele. Ele ficou um segundo impossível no ar, tenso, uma coisa brilhante e tão linda que dava vontade de chorar, ou de ficar cega vendo aquilo. Um grito explodiu nele, metade dor, metade prazer. Ele despencou na cama abraçado nele mesmo. Aquele brilho deslumbrante começou a se apagar, a pele absorvia a luz, sugando-a de volta para as profundezas de onde tinha vindo.
Endireitei o corpo sentada e estendi a mão para ele, ainda com um brilho suave de luz branca.
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Ele se afastou de mim num pulo, caiu da cama com o tranco e olhou para mim com os olhos arregalados de medo.
- O que você fez?
- Qual é o problema, Doyle?
- Qual é o problema? - Ele se levantou e se apoiou logo na parede, desequilibrado. - Eu não posso ter prazer sexual, Meredith. Nem com a minha mão, nem com a mão de ninguém.
- Não toquei em você lá.
Ele fechou os olhos e encostou a cabeça na parede. Falou sem olhar para mim:
- Mas a sua mágica tocou. Ela passou através de mim como uma espada. - Ele abriu os olhos e se virou para mim: - Está entendendo agora o que você fez?
Finalmente entendi.
- Você está dizendo que a rainha vai contar isso como sexo.
- É.
- Nunca tive essa intenção... meu poder nunca foi assim antes.
- Foi assim na noite que passou com o roane? Pensei um pouco, depois franzi a testa.
- Sim, e não. Não foi exatamente assim, mas...
Parei de falar no meio da frase e olhei para o peito dele. Devo ter feito cara de espanto, porque ele também olhou para o próprio peito.
- O que é? O que está vendo?
- O ferimento do seu peito sumiu. Disse isso em voz baixa, atônita. Ele passou a mão no peito.
- Estou curado. Não fui eu que fiz isso. - Ele se aproximou da cama. - Seus braços.
Olhei e percebi que as marcas das garras tinham desaparecido. Meus braços tinham sarado. Passei as mãos nas coxas, e elas não tinham curado. As marcas de unha, cheias de sangue, as marcas vermelhas dos dentes dele, a marca da boca que deixou uma mancha vermelha na minha coxa onde era o ferimento.
- Por que todo o resto sarou, menos essas marcas? Ele balançou a cabeça.
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- Não sei.
- Você disse que a minha iniciação no poder tinha curado Roane, mas e se não for só aquele primeiro fluxo de poder? E se fizer parte da minha mágica recém-descoberta?
Observei Doyle tentando entender tudo aquilo.
- Pode ser, mas a cura pelo sexo não é um dom da Corte Profana.
- É da Corte Abençoada - eu disse.
- Você é da linhagem deles - ele disse baixinho. - Preciso contar para a rainha.
- Contar o quê? - perguntei.
- Tudo.
Cheguei para a frente engatinhando e estendi a mão para Doyle. Ele ficou fora do meu alcance, agarrado à parede como se eu fosse uma ameaça.
- Não, Meredith, chega. A rainha pode nos perdoar porque foi acidental e ficará satisfeita de saber que você tem outros poderes. Isso pode nos salvar, mas se tocar em mim novamente... - Ele balançou a cabeça. - Ela não terá piedade de nós se nos unirmos de novo esta noite.
- Eu só ia tocar no seu braço, Doyle. Acho que temos de conversar antes de você contar tudo para a rainha.
Ele recuou para o canto da parede, onde ela dobrava em um curto corredor.
- Acabei de ter a primeira ejaculação em mais séculos do que você é capaz de imaginar, e você fica aí sentada desse jeito... - Ele balançou a cabeça outra vez. - Você ia só tocar no meu braço, mas o meu autocontrole tem limite. Já provamos isso. Não, Meredith, um toque e posso cair em cima de você e fazer o que tenho desejado desde que vi seus seios tremendo em cima de mim.
- Posso me vestir - eu disse.
- Isso seria bom - ele disse - mas mesmo assim vou contar Para ela o que aconteceu.
- O que ela faz? É contagem de espermatozóides? Nós não fizemos sexo. Para que contar?
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- Ela é a Rainha do Ar e da Escuridão. Ela vai saber. Se nós não confessarmos, e ela acabar descobrindo, o castigo será mil vezes pior.
- Castigo? Foi um acidente.
- Eu sei, e isso pode nos salvar.
- Você não está falando sério... ela invocará a mesma penalidade para isso, como se tivéssemos feito amor deliberadamente?
- Morte por tortura - ele disse. - Espero que não, mas ela tem esse direito.
- Não, ela não ia querer perdê-lo depois de mil anos, por um acidente.
- Espero que não, Princesa, realmente espero que não. Ele virou para o corredor que dava no banheiro.
- Doyle - chamei. Ele voltou.
- Sim, Princesa?
- Se ela disser que vamos ser executados por isso, tem um lado bom.
Ele inclinou a cabeça para um lado, como fazem os passarinhos.
- Qual é?
- Podemos fazer sexo, sexo de verdade, carne com carne. Se vamos ser executados por isso, podemos muito bem fazer por merecer a culpa.
Emoções se alternaram no rosto dele. E mais uma vez não consegui traduzir. Finalmente, ele sorriu.
- Nunca pensei que seria capaz de encarar a minha rainha com essa notícia e ficar dividido quanto ao que ela vai dizer. Você é uma tentação, Meredith, pela qual um homem daria sua vida.
- Não quero sua vida, Doyle, só o seu corpo.
Ele foi para o banheiro dando risada, e isso era melhor do que chorar. Vesti a camisola e estava embaixo das cobertas quando ele voltou. Estava sério, mas disse:
- Nós não vamos ser castigados. Mas ela deu a entender que gostaria de ver você curar com esse poder recém-descoberto.
- Não participo dos pequenos espetáculos sexuais públicos dela - eu disse.
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- Eu sei disso, e ela também sabe, mas está curiosa.
- Que fique curiosa. Então não vamos ser executados? Nenhum dos dois?
- Não - ele disse.
- Por que você não está mais alegre? - perguntei.
- Não trouxe roupa nenhuma.
Levei um segundo para entender o que ele estava dizendo. Achei uma cueca samba-canção de seda para ele. Ia ficar um pouco apertada no quadril, porque Roane e ele não eram do mesmo tamanho, mas servia.
Ele voltou para o banheiro com a cueca. Pensei que voltaria logo para dormir, mas ouvi o chuveiro aberto. Joguei algumas almofadas sobre os sacos de dormir e virei de lado, para tentar pegar no sono. Não tinha certeza de que ia conseguir, mas Doyle ficou no banheiro muito tempo. A última coisa que ouvi antes de adormecer foi o barulho do secador de cabelo. Não ouvi quando ele saiu do banheiro. Simplesmente acordei no dia seguinte, e ele estava parado ao meu lado com uma xícara de chá numa mão e nossas passagens de avião na outra. Eu não sabia se Doyle tinha usado os sacos de dormir, nem se ele chegou a dormir.
Doyle cedeu educadamente a poltrona da janela para mim. Ele sentou com as costas muito retas, pôs o cinto de segurança e agarrou com força os braços do assento. Fechou os olhos quando o avião decolou. Costumo ficar observando o chão se afastar, mas ver Doyle ficar cinza foi muito mais divertido.
- Como pode ter medo de voar? - perguntei. Ele continuou de olhos fechados, mas respondeu:
- Não tenho medo de voar. Tenho medo de voar em aviões. O tom dele era muito sereno, como se fizesse muito sentido o que dizia.
- Então você voaria num cavalo voador e não teria medo?
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Ele fez que sim com a cabeça e abriu os olhos quando o avião se estabilizou.
- Já voei muitas vezes com os animais do ar.
- E por que os aviões o incomodam tanto? Ele olhou para mim como se eu devesse saber a resposta.
- É o metal, Princesa Meredith. Não fico à vontade cercado de tanto metal manufaturado. Funciona como uma barreira entre a terra e eu, e sou uma criatura da terra.
- Como você disse, Doyle, há certas vantagens em não ser encantado puro. Eu não tenho problema nenhum com metal.
Ele virou a cabeça e ficou de frente para mim.
- Você consegue fazer uma mágica poderosa dentro de um caixão metálico como esse?
- Não conheço nenhuma mágica que não possa executar dentro ou fora de um caixão de metal.
- Isso pode ser muito útil, Princesa.
A comissária de bordo, uma loura alta, de pernas compridas, com maquiagem quase perfeita, parou ao lado da poltrona de Doyle e se abaixou para Doyle ter uma boa visão dos seus seios, se ele quisesse. Cada vez que chegava perto de Doyle ela garantia essa exibição. Tinha ido três vezes nos últimos vinte minutos para perguntar se ele queria alguma coisa, qualquer coisa. Ele não quis nada, eu pedi vinho tinto.
Dessa vez ela trouxe o meu vinho. Como estávamos na primeira classe, era servido numa taça de pé comprido. A melhor coisa para derramar na roupa quando o avião sofresse alguma turbulência e foi o que aconteceu.
O avião balançou e trepidou tanto que devolvi o vinho para a comissária, e ela me deu um punhado de guardanapos de papel para secar a mão.
Doyle fechou os olhos de novo e repetia para todas as perguntas que a moça fazia:
- Não, obrigado.
Ela não chegou a se oferecer com todas as letras para tirar a roupa e fazer sexo com ele no chão do corredor do avião, mas o convite foi bem claro. Se Doyle percebeu, conseguiu ignorar magistralmente.
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Não sei se ele não se deu conta de que ela estava dando em cima dele, ou se apenas estava acostumado àqueles papelões das mulheres humanas. Ela acabou entendendo e se afastou. E teve de segurar no encosto das poltronas, senão teria caído.
A turbulência estava feia. Doyle ficou cinza. Acho que era a versão dele de ficar verde.
- Você está bem?
Ele apertou mais os olhos fechados.
- Ficarei bem quando estivermos a salvo, em terra firme.
- Há alguma coisa que eu possa fazer para ajudar o tempo a passar mais depressa?
Ele abriu os olhos, só um pouquinho.
- Acho que a aeromoça já se ofereceu para isso.
- Aeromoça é um termo sexista - eu disse. - É comissária de bordo. Então você entendeu as indiretas dela.
- Acho que apertar minha coxa e roçar os seios no meu ombro não contam como indireta... são mais convites mesmo.
- Você a ignorou muito bem.
- Tive muita prática.
O avião chacoalhou com tanta violência que nem eu fiquei à vontade. Doyle fechou os olhos de novo.
- Você quer mesmo ajudar esse voo a passar mais depressa?
- Devo pelo menos isso a você depois que exibiu seu distintivo da guarda oficial e entramos com nossas armas no avião. Sei que temos permissão da lei para portar armas nos EUA, só que em geral não é tão fácil nem tão rápido.
- O que ajudou foi que os policiais nos escoltaram até os portões, Princesa.
Doyle estava fazendo questão de me chamar de Princesa, ou de Princesa Meredith, desde que acordei naquela manhã. Não tínhamos mais a intimidade dos primeiros nomes.
- Os policiais pareciam aflitos para me botar no avião.
- Eles temiam que você pudesse sofrer um atentado no... território deles. Não queriam assumir a responsabilidade pela sua segurança.
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- Então foi assim que você conseguiu fazer com que eu entrasse no avião armada.
Ele fez que sim com a cabeça, ainda de olhos fechados.
- Eu disse para eles que, com apenas um guarda-costas, seria mais seguro se você também estivesse armada. Todos concordaram.
Sholto tinha deixado a LadySmith nove milímetros para mim. Eu tinha um coldre de cintura para ela que servia perfeitamente para sacar cruzado de frente. Mas eu usava nas costas, escondido embaixo do blazer, só que, como a polícia me deu carta branca para portar armas, nem precisava me dar ao trabalho de esconder.
Eu tinha uma faca de vinte e cinco centímetros numa bainha do lado, amarrada na perna com uma tira de couro na ponta para poder sacar com rapidez, como um pistoleiro do Velho Oeste. Essa amarração também fazia com que a bainha acompanhasse melhor o movimento da perna. Se a bainha não está bem presa, você acaba tendo de movê-la toda vez que muda de posição, ou ela espeta seu corpo, ou ainda se prende nas coisas.
Eu tinha também uma faca dobrável presa ao arame do sutiã. Sempre portava pelo menos duas lâminas na corte, por hábito. As armas de fogo só eram permitidas em certas partes do mundo encantado, nas colinas das fadas. Mas iam permitir as facas. Antes do banquete daquela noite, que era em homenagem a mim, segundo Doyle, eu ia arranjar mais lâminas. Para uma mulher, jóias e armas nunca eram demais.
Doyle carregava a Pavor Mortal numa bainha às costas, com o cabo despontando do ombro para sacá-la cruzado, como um coldre de ombro. E tinha sua velha bolsa de ginástica cheia de armas. Quando perguntei por que não as tinha usado contra os sluagh, ele explicou:
- Nada que eu tinha podia matá-los de verdade. Eu queria que eles soubessem que eu não estava brincando.
Sinceramente, eu sempre achei que abrir um rombo maior do que um punho nas costas de alguém indica muito bem que estamos falando sério. Mas muitos da Guarda consideram as armas de fogo recursos menores. Eles as usam entre os humanos, mas entre nós essas armas praticamente não são usadas, só em tempos de guerra.
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O fato de Doyle ter trazido até uma arma de fogo significava que as coisas estavam feias, ou talvez que tivesse havido alguma mudança na política enquanto eu estive fora. Se os outros guardas estivessem portando pistolas, aí eu saberia.
O avião embicou tão rápido que até eu sufoquei um grito de susto. Doyle gemeu.
- Fale comigo, Meredith.
- Sobre o quê?
- Qualquer coisa - disse ele com a voz tensa.
- Podemos falar sobre a noite passada - eu disse.
Ele abriu os olhos apenas o suficiente para transmitir raiva dessa ideia, o avião caiu num vácuo outra vez, ele fechou os olhos de novo e disse quase sussurrando:
- Conte uma história.
- Não sou muito boa nisso.
- Por favor, Meredith.
Ele me chamou de Meredith, estávamos melhorando.
- Posso contar uma história que você já conhece.
- Ótimo - ele disse.
- Meu avô do lado da minha mãe é Uar, o Cruel. Além de ser o mais completo e perfeito filho da mãe, ele ganhou esse nome porque gerou três filhos que eram monstros até para os padrões dos encantados profanos. Nenhuma mulher com sangue encantado quis dormir com ele depois que esses filhos nasceram. Disseram a ele que podia ter filhos normais se encontrasse alguém com sangue encantado que o quisesse.
Fiquei espiando os olhos fechados e o rosto inexpressivo de Doyle.
- Continue, por favor - ele disse.
- Vovó é meio fada e meio humana. Ela se dispôs a dormir com ele porque queria, acima de tudo, fazer parte da Corte Abençoada.
Cá com meus botões, porque não era parte da história, eu não condenava minha avó. Mais até do que eu, ela sabia o que era viver em dois mundos tão diferentes.
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O avião já estava nivelado mas ainda tremia com a ventania que o açoitava de todos os lados. Um voo complicado. - Já está entediado? - perguntei.
- Qualquer coisa que você disser será tremendamente fascinante até pousarmos em segurança.
- Sabe de uma coisa? Você fica bonitinho quando está com medo.
Ele novamente entreabriu os olhos furioso, depois fechou.
- Continue, por favor.
- Vovó teve duas lindas meninas, gêmeas. A maldição de Uar terminou, e vovó virou uma das damas da corte, mulher de Uar, aliás, porque teve filhos com ele. Até onde eu sei, meu avô jamais encostou na "mulher" dele de novo. Ele era um dos cavalheiros brilhantes e educados. Vovó era um tanto comum para ele, agora que ele tinha se livrado da maldição.
- Ele é um poderoso guerreiro - disse Doyle, olhos ainda fechados.
- Quem?
- Uar.
- Isso mesmo. Você deve ter lutado contra ele nas guerras da Europa.
- Ele era um grande adversário.
- Está tentando fazer com que eu me sinta melhor em relação a ele?
O avião já estava voando em linha reta e quase sem balançar havia três minutos. O bastante para Doyle abrir completamente os olhos.
- Você parecia muito amarga agora há pouco.
- Meu avô passou anos espancando minha avó. Ele achava que se a machucasse bastante ela abandonaria a corte, porque legalmente não podia se divorciar sem a permissão dela. E não podia abandoná-la porque ela lhe dera filhos.
- Por que ela simplesmente não abandonou seu avô?
- Porque não sendo mais esposa de Uar ela não seria mais recebida na corte. Jamais permitiriam que levasse as filhas com ela. Ela ficou para proteger as filhas.
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- A rainha ficou espantada quando seu pai convidou a mãe da sua mãe para acompanhar vocês dois no exílio.
- Vovó era a dona de casa para ele. Ela cuidava de todos os afazeres domésticos.
- Ela era uma serva, então - disse Doyle. Foi a minha vez de olhar furiosa para ele.
- Não, ela era... era o braço direito dele. Os dois me criaram, juntos, naqueles dez anos.
- Quando você deixou a corte pela última vez, sua avó também saiu. Ela abriu uma pousada.
- Vi os anúncios nas revistas: Victoria, Ótima Governanta. Pousada da Fada, onde terá conforto e alimentação preparada por uma ex-dama da corte real.
- Você não fala com ela desde que partiu, há três anos? - ele perguntou.
- Não falei com ninguém, Doyle. Seria expô-los ao perigo. Eu desapareci. Quero dizer que deixei tudo e todos para trás.
- Havia jóias, heranças que eram suas por direito. A rainha se surpreendeu de ver que você saiu de lá só com a roupa do corpo.
- Seria impossível vender qualquer joia sem que a corte ficasse sabendo. O mesmo se aplica às heranças.
- Seu pai tinha guardado dinheiro para você. Ele me observava, procurando entender, eu acho.
- Estive por minha conta esses três anos, um pouco mais. Não peguei nada de ninguém. Tenho sido independente, sem obrigação nenhuma para com os encantados.
- Então você pode alegar direitos virgens quando voltar para a corte.
Concordei:
- Exatamente.
Virgem, segundo os ideais celtas antigos, era uma mulher que se mantinha, que não devia nada a ninguém por um período de tempo. Três anos era o mínimo para exigir isso na corte. Ser virgem significava que eu estava fora de qualquer feudo ou rixa. Não seria forçada a tomar partido em qualquer questão, porque me distanciava de tudo isso. Era um modo de ser na corte, sem ser da corte.
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- Muito bom, Princesa, muito bom. Você conhece a lei e sabe como usá-la em seu benefício. Além de educada você é sábia, uma verdadeira maravilha para a realeza profana.
- Ser virgem permitiu que eu me hospedasse em hotéis sem virar alvo da fúria da rainha - eu disse.
- Ela não entendeu por que você não quis ficar na corte. Afinal, você quer voltar para nós, não quer?
Fiz que sim com a cabeça.
- Quero, mas também quero manter certa distância para ver até que ponto estarei a salvo na corte.
- Poucos se arriscariam a atrair a fúria da rainha - ele disse. Olhei nos olhos dele para ver se entendia o que ia passar em sua cabeça diante do que eu ia dizer.
- O Príncipe Cel corria esse risco porque ela nunca o castigou seriamente por qualquer coisa que fizesse.
Doyle apertou os olhos quando mencionei o nome de Cel, mas nada mais. Se eu não estivesse observando, não teria notado reação nenhuma.
- Cel é o único herdeiro que ela tem, Doyle. Não vai matá-lo. E ele sabe disso.
Doyle fez aquela expressão vazia.
- O que a rainha faz, ou deixa de fazer, com seu filho e herdeiro é problema dela e não posso questionar.
- Não me venha com essa, Doyle; para mim, não. Nós todos sabemos o que Cel é.
- Um príncipe encantado poderoso que tem o respeito da rainha, mãe dele - disse Doyle, e o tom de voz era um aviso, para combinar com as palavras.
- Ele tem apenas uma mão de poder, e suas outras habilidades não são grande coisa.
- Ele é o Príncipe do Sangue Antigo, e digo por mim que não gostaria que ele usasse esse poder em mim num duelo. Ele poderia fazer renascer em mim de uma vez só todos os ferimentos que tive em mais de mil anos de batalhas.
- Eu não disse que não era uma habilidade assustadora, Doyle. Mas há outros com magia mais poderosa, encantados capazes de
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realmente matar com um toque. Eu já vi sua chama devorar um encantado, já vi devorá-los vivos.
- E você matou os últimos dois encantados que a desafiaram para um duelo, Princesa Meredith.
- Eu trapaceei - eu disse.
- Não, você não trapaceou. Apenas usou táticas para as quais eles não estavam preparados. É qualidade de um bom soldado usar as armas de que dispõe.
Nós nos entreolhamos.
- Alguém além da rainha sabe que agora eu tenho a mão da carne?
- Sholto sabe, e seus sluagh. Já não será mais segredo quando esse avião pousar.
- Pode amedrontar os candidatos a duelos comigo - eu disse.
- Ficar preso para sempre numa bola de carne, não morrer nunca, não envelhecer nunca, apenas durar... ah, sim, Princesa, eu acho que eles ficarão com medo. Depois que Griffin... a deixou, muitos se tornaram seus inimigos, porque pensavam que você não tinha poderes. Todos eles vão se lembrar dos insultos que lançaram contra você. E ficarão imaginando se você voltou com sede de vingança.
- Vou invocar os direitos de virgem, e isso significa que terei uma tabula rasa. Eles também estarão zerados. Se eu retomar alguma rixa antiga, perco minha condição de virgem e serei sugada para o meio de toda essa estupidez. - Balancei a cabeça. - Não, vou deixá-los em paz, se eles me deixarem em paz.
- Você é muito sábia para a sua idade, Princesa.
- Estou com trinta e três, Doyle. Na idade dos humanos não sou mais criança.
Ele deu risada, uma risadinha breve e misteriosa que me fez pensar em como ele ficou na noite anterior, semidespido. Procurei afastar essa ideia da expressão no meu rosto e devo ter conseguido, porque a expressão dele não mudou.
- Lembro quando Roma era apenas um ponto maior na estrada, Princesa. Trinta e três anos é criança para mim.
Deixei passar para os olhos o que estava pensando.
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- Não lembro de você ter me tratado feito criança ontem à noite.
Ele virou para o lado, evitou olhar para mim.
- Aquilo foi um erro.
- Se é o que você acha...
Observei as nuvens pela janela. Doyle estava decidido a fingir que a noite passada não aconteceu. Eu estava cansada de tentar conversar sobre isso, já que era óbvio que ele não queria.
A comissária de bordo voltou. Dessa vez ela se ajoelhou, com a saia lá em cima, apertada, nas coxas. Ela sorriu para Doyle e ofereceu revistas em leque como cartas de baralho.
- Deseja alguma coisa para ler?
Ela pôs a mão na perna de Doyle e acariciou a parte de dentro da coxa.
A mão dela estava a um centímetro da virilha quando Doyle a agarrou pelo pulso e afastou-a.
- Madame, faça o favor.
Ela chegou mais perto, com uma mão em cada joelho de Doyle, e as revistas ocultavam parcialmente o que estava fazendo. Inclinou-se para roçar os seios nas pernas dele.
- Por favor - ela sussurrou. - Por favor, faz muito tempo que estive com um de vocês.
Isso chamou minha atenção.
- Quanto tempo? - perguntei.
Ela piscou, confusa, sem conseguir se concentrar em mim, já que Doyle estava tão próximo.
- Seis semanas.
- Quem foi?
Ela balançou a cabeça.
- Sei guardar segredo, apenas não diga não para mim. - Ela olhou para Doyle. - Por favor. Por favor.
Ela estava com a síndrome do elfo. Se um encantado faz sexo com um humano e não controla a mágica, pode transformar o humano em uma espécie de viciado. Humanos que têm a síndrome do elfo podem até definhar e morrer de desejo de tocar na carne de um encantado.
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Eu me aproximei de Doyle, fiquei tão perto que meus lábios encostaram no brinco dele. Tive uma vontade horrível de lamber aquele brinco, mas não lambi. Foi apenas uma daquelas vontades pervertidas que se tem de vez em quando. E cochichei.
- Pegue o nome e o telefone dela. Temos que informar isso para o Bureau de Assuntos Humanos e Encantados.
Doyle fez o que eu pedi.
A comissária ficou com lágrimas nos olhos de gratidão quando Doyle anotou o nome, o número de telefone e o endereço dela. Ela chegou a beijar a mão dele e faria mais se o comissário não a levasse embora.
- É ilegal fazer sexo com humanos sem proteger a cabeça deles - eu disse.
- É - disse Doyle.
- Seria interessante saber quem foi o amante encantado dela.
- Amantes, eu acho - disse Doyle.
- Será que ela faz o voo de Los Angeles para Saint Louis?
- Talvez ela saiba quem anda viajando muito de e para Los Angeles, criando esse culto que adora os encantados.
- Um homem só não forma um culto - eu disse.
- Você me disse que a mulher mencionou outros, alguns com implantes nas orelhas, talvez até encantados mesmo.
- Isso ainda não tipifica um culto. É um feiticeiro com seguidores, uma confraria de adoradores, na melhor das hipóteses.
- Ou um culto, na pior. Não temos ideia de quantas pessoas estão envolvidas, Princesa, e o homem que poderia responder a essa pergunta está morto.
- É engraçado que a polícia não se importe de eu estar saindo do estado com uma investigação de assassinato pairando sobre a minha cabeça.
- Eu não ficaria nem um pouco surpreso se a sua tia, nossa rainha, tivesse dado alguns telefonemas. Ela sabe ser muito encantadora quando quer.
- E se isso fracassa, sabe ser assustadora como ninguém - eu disse.
Doyle concordou, meneando a cabeça.
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- Isso também.
O comissário de bordo cuidou da primeira classe o resto da viagem. A mulher nunca mais apareceu diante de nós, até descermos do avião. Então ela segurou a mão de Doyle e disse, muito aflita:
- Você vai me procurar, não vai? Doyle beijou a mão dela.
- Ah, sim, vou ligar para você, e você vai responder sinceramente a todas as perguntas que eu fizer, não vai?
Ela fez que sim com a cabeça, e as lágrimas escorreram pelo rosto.
- Tudo que você quiser.
Tive de arrastar Doyle para longe dela. Cochichei no ouvido dele:
- Eu levaria uma acompanhante comigo quando fosse interrogá-la.
- Não pretendia ir sozinho - ele disse e olhou para mim, nossos rostos muito próximos porque estávamos cochichando. - Aprendi recentemente que não sou impermeável a avanços sexuais.
Ele parecia muito franco e aberto, a expressão que eu queria no avião.
- Vou ter que tomar mais cuidado no futuro - ele completou. Então Doyle se endireitou e ficou alto demais para cochichos.
Ele foi andando pelo corredor estreito que dava no prédio do aeroporto. Fui atrás dele.
Deixamos para trás o barulho das turbinas e fomos em direção ao barulho de gente.
As pessoas eram uma barulheira surda que crescia na minha direção e me envolvia, eu era engolida num mar de ruídos enquanto caminhava pelo corredor. A multidão multicor passava de um lado para outro diante da abertura, um muro de gente. Doyle andava logo à minha frente como guarda avançado, exatamente o que ele era.
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Nosso portão era seguido pelo grande salão que ia para dentro do aeroporto. Doyle estava na abertura do corredor, um pouco para o lado, à minha espera. Então, no meio da multidão vi um homem alto se aproximando de nós com passos largos. Galen usava camadas de verde e de branco. Suéter verde-claro, calça verde mais claro e um jaleco branco até os tornozelos que flutuava atrás dele feito uma capa. O suéter combinava com seu cabelo, que caía em cachos curtos até logo abaixo da orelha, exceto por uma trança bem comprida. O pai dele era um elfo que a rainha mandou matar pelo audacioso crime de seduzir uma de suas aias.
Não creio que a rainha teria mandado matar o elfo se soubesse que ele gerara um filho. Filhos são preciosidades e qualquer coisa que procrie, que passe adiante o sangue, vale manter por perto.
Estava feliz por vê-lo, mas sabia que, se ele estava ali, devia haver um fotógrafo por perto. Francamente, fiquei surpresa de não termos caído num turbilhão da mídia. A Princesa Meredith estava desaparecida havia três anos e agora voltava para casa, viva e bem. Meu rosto tinha sido divulgado durante anos nos tablóides de supermercados. Visões da Princesa Encantada Americana rivalizavam com as visões de Élvis. Eu não sabia o que tinham feito para me salvar do frenesi midiático, mas estava muito grata por isso.
Deixei minha mala de mão ao lado da mala de Doyle e corri para Galen. Ele me levantou do chão com um abraço e me deu um beijo na boca.
- Merry, que bom te ver, menina.
Ele me envolveu com os braços e me manteve uns trinta centímetros acima do chão com facilidade.
Jamais gostei de ficar com os pés assim pendurados, indefesa. Abracei a cintura dele com as pernas, e ele passou as mãos das minhas costas para as coxas, para me sustentar.
Eu corria para os braços de Galen desde sempre. Depois da morte do meu pai, ele me defendeu entre os profanos, mais de uma vez. Apesar de ser mestiço como eu, ele não tinha muito mais influência do que eu. O que ele realmente tinha era um metro e oitenta de músculos e de guerreiro treinado para cumprir suas ameaças.
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É claro que quando ele me levantava nos braços, e eu tinha sete anos de idade, não havia o beijo e outras coisas. Com pouco mais de cem anos, Galen era um dos membros mais jovens da guarda real de Andais. A nossa diferença de idade eram meros setenta anos. Para os encantados, era como se tivéssemos crescido juntos.
O decote em V do suéter dele era profundo sobre o peito e mostrava um cacho de pelos num tom de verde mais escuro que o cabelo, quase preto. O suéter era macio, bom de apalpar, e grudado no corpo. A pele dele era branca mas o blusão ressaltava um tom discreto de verde muito claro, de modo que a pele dele parecia de um branco perolado, ou um verde de sonho, dependendo da luz incidente.
Os olhos eram verdes, da cor de grama brotando na primavera, mais humanos do que a esmeralda líquida dos meus. Mas o resto dele... o resto dele era exclusivo demais para descrever com palavras. Eu achava isso desde os meus catorze anos, só que não era para ele que meu pai havia me prometido. Porque Galen era um cara bom demais. Ele não fazia bem o jogo político para meu pai ter certeza de que viveria para me ver crescer. Não, Galen falava quando era mais sábio calar. Era uma das coisas que eu adorava nele quando criança e temia por ele quando cresci.
Ele dançou comigo pelo salão, ao som de uma música que só ele ouvia, mas eu também podia quase ouvir quando mirava seus olhos e desenhava a curva dos lábios dele com o olhar.
- Estou contente em vê-la, Merry.
- Já percebi - eu disse. Ele deu risada e foi uma risada muito humana. Nada além da alegria de Galen para torná-la especial, mas isso sempre foi muito especial para mim.
Ele chegou mais perto e sussurrou no meu ouvido:
- Você cortou o cabelo. Seu lindo cabelo. Beijei suavemente o rosto dele.
- Vai crescer de novo. Havia apenas alguns repórteres, porque não foram avisados a tempo de planejar um ataque em larga escala. Mas a maioria deles tinha uma câmera. Fotos da realeza encantada, especialmente se
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estavam fazendo algo incomum, sempre tinham lugar no mercado. Permitimos que eles tirassem as fotos porque não podíamos evitar. Usar mágica contra eles era infringir a liberdade de imprensa. Foi isso que a Suprema Corte determinou. Repórteres que cobriam sempre os encantados eram muitas vezes médiuns, ou feiticeiros e bruxas. Sabiam quando usávamos mágica com eles. Bastava um relatório e podíamos acabar num tribunal. Como dizia a Primeira Emenda.
Os encantados tinham duas posturas diante dos repórteres. Alguns eram muito recatados em público, jamais concediam qualquer fato interessante para os paparazzi. Galen e eu éramos adeptos de dar-lhes alguma coisa para fotografar. Algo sem importância, de modo que eles não ficassem tentados a fuçar mais à procura de matérias sensacionalistas. Dê-lhes algo positivo, otimista e interessante. Isso era incentivado pela Rainha Andais. Ela se empenhava para dar à sua corte uma publicidade melhor e mais positiva naqueles últimos trinta anos. Toda a minha vida. Eu era seguida quando saía com meu pai na primavera. Griffin e eu tivemos uma cerimônia pública de noivado. Não existia vida privada se a rainha a declarava pública.
Alguém pigarreou, espiei atrás de Galen e vi Barinthus. Se Galen era exclusivo, único, Barinthus parecia um alienígena. O cabelo dele era da cor do mar, dos oceanos. O turquesa do Mediterrâneo, o azul mais profundo do Pacífico, um azul acinzentado do mar logo antes de uma tempestade que passava para um azul quase preto, de águas profundas e densas como o sangue de gigantes adormecidos. As cores se moviam com cada toque de luz, misturavam-se, não parecia cabelo. A pele dele era de alabastro branco, como a minha. Os olhos azuis, mas as pupilas eram fendas negras. Eu sabia que ele tinha uma membrana clara, como uma segunda pálpebra, que cobria os olhos sempre que ele estava embaixo d'água. Quando eu tinha cinco anos, ele me ensinou a nadar, e eu adorava o fato de ele poder piscar duas vezes com um olho só.
Era mais alto do que Galen, tinha quase dois metros e quinze, como era apropriado para um deus. Usava uma capa de chuva azul real aberta sobre um terno preto de grife, mas a camisa era de seda,
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azul, com um daqueles colarinhos altos e redondos, tipo de padre, que os estilistas estão tentando vender para que os homens não precisem mais usar gravata. Barinthus estava esplêndido com tudo isso. Tinha deixado o cabelo solto e livre em volta dele como uma segunda capa. E eu sabia que mais alguém, provavelmente minha tia, tinha escolhido a roupa para ele. Deixado por conta própria, Barinthus era homem de jeans e camiseta... ou menos.
Galen e Barinthus eram dois dos frequentadores mais assíduos da casa do meu pai, fora os humanos. Barinthus era um poder no meio dos encantados. Ele era puro Corte Antiga. Os encantados ainda cochichavam sobre o último duelo que ele lutou, muito tempo antes de eu nascer, no qual um encantado tinha se afogado numa várzea em pleno verão, a quilômetros de qualquer água. Barinthus, igual ao meu pai, jamais concordou em entrar num duelo a menos que tivesse regras de moralidade. Qualquer coisa menos do que isso não valia a pena para ele.
Galen me largou no chão. Fui até Barinthus e estendi as duas mãos para saudá-lo. Ele tirou as dele dos bolsos da capa com cuidado, manteve meio fechadas até poder segurar as minhas. Ele tinha membranas interdigitais e era muito sensível por isso, desde que um repórter nos anos cinquenta o chamou de "homem peixe". Era difícil acreditar que alguém que um dia foi adorado como deus do mar pudesse ficar constrangido com um mercenário do século XX, mas era verdade. Barinthus nunca mais esqueceu aquela propaganda.
As membranas entre os dedos eram completamente retráteis, ficavam apenas linhas finas de pele, a não ser que ele resolvesse usá-las. Então ele podia expandir a pele e nadar como... como, bem... como um peixe. Só que esse cumprimento não era para ser dito em voz alta, nunca.
Ele segurou minhas mãos nas dele e se inclinou de sua imensa altura para dar um beijo civilizado mas bem-intencionado no meu rosto. Retribuí o favor. Barinthus gostava de ser civilizado em público. Seu lado pessoal não era para consumo do público, e ele tinha poder para garantir que nem a rainha o fizesse mudar de ideia. Deuses, mesmo os caídos, deviam ser tratados com certo
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respeito. Aquele repórter da década de cinquenta, o que lascou a manchete do homem-peixe na rede mundial de notícias, tinha morrido num acidente estranhíssimo de barco no Mississippi naquele verão. A água simplesmente subiu e bateu no barco, disseram as testemunhas. Foi a coisa mais estranha que tinham visto.
As câmeras continuavam clicando fotos. Nós continuamos a ignorar.
- É bom tê-la de volta, Meredith.
- É bom vê-lo também, Barinthus. Espero que a corte seja bastante segura para eu fazer dessa mais do que uma visita prolongada.
Ele piscou com a segunda pálpebra transparente. Quando não estava nadando, era sinal de nervosismo.
- Isso você terá que conversar com a sua tia.
Não gostei de ouvir isso. O repórter enfiou um gravador minúsculo na minha cara.
- Quem é você?
O fato de ele ter de perguntar significava que estava trabalhando desde que eu saí de casa.
Galen se adiantou, sorrindo, simpático. Abriu a boca para responder, mas outra voz encheu o silêncio agitado:
- Princesa Meredith NicEssus, Filha da Paz.
O homem que tinha dito isso se afastou da janela onde estava encostado.
- Jenkins, que desprazer vê-lo - eu disse.
Ele era um homem alto e magro, mas perto de Barinthus não era tão alto assim. Jenkins tinha uma permanente mancha de barba do fim do dia, tão pesada que uma vez perguntei a ele por que simplesmente não deixava a barba crescer. Ele respondeu que a mulher dele não gostava de pelos faciais. Eu retruquei que não podia acreditar que qualquer uma pudesse se casar com ele. Jenkins tinha vendido fotos do corpo retalhado do meu pai. Não nos Estados Unidos, é claro, porque somos civilizados demais para isso, mas há outros países, outros jornais, outras revistas. Compraram as fotos e publicaram. Também foi ele que me surpreendeu no enterro e tirou fotos de mim com lágrimas no rosto, os olhos tão
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vermelhos que chegaram a brilhar. Essa foto foi indicada para um prêmio qualquer. Perdeu, mas o meu rosto e o corpo do meu pai viraram notícia no mundo todo, graças a Jenkins. Eu ainda o odiava por isso.
- Ouvi um boato que dizia que você ia voltar para nos visitar. Ficará o mês inteiro, até o Dia das Bruxas? - ele perguntou.
- Não posso acreditar que alguém se arriscaria a desagradar minha tia conversando com você - eu disse e ignorei a pergunta dele.
Adquiri muita prática de ignorar as perguntas dos repórteres. Ele sorriu.
- Ficaria surpresa se soubesse quem conversa comigo, e sobre o quê.
Não gostei do jeito como ele formulou a frase. Parecia vagamente ameaçador, vagamente pessoal. Não, não gostei nem um pouco.
- Seja bem-vinda, Meredith - ele disse e fez uma mesura curta, mas estranhamente elegante.
O que eu tive vontade de dizer a ele não servia para consumo do público, e havia gravadores demais. Se Jenkins estava ali, então o pessoal de televisão não podia estar longe. Quando não conseguia uma exclusiva, ele tratava de juntar uma multidão.
Eu não disse nada. Deixei para lá. Ele me provocava desde quando eu era criança. Era apenas dez anos mais velho do que eu, mas parecia vinte porque eu continuava como era com vinte e poucos. Podia ser que eu não vivesse para sempre, mas ia sair de cena bem preservada. Acho que isso realmente incomodava Jenkins, fazer cobertura de gente que não envelhecia, ou que envelhecia mais devagar do que ele. Havia momentos em que o fato de ser mais jovem era um consolo, porque ele provavelmente morreria primeiro.
- Você continua fedendo a cinzeiro, Jenkins. Não sabe que o fumo vai encurtar sua expectativa de vida?
O rosto dele endureceu e afinou de raiva. Ele então sussurrou:
- E você continua sendo a vadiazinha do oeste, hein, Merry?
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- Tenho uma ordem restritiva contra você, Jenkins. Mantenha uma distância de quinze metros, senão chamo a polícia.
Barinthus apareceu e me ofereceu o braço. Ele nem precisou dizer. Eu sabia que não devia trocar desaforos com um repórter na frente de outros repórteres. A ordem restritiva tinha sido homologada depois que Jenkins divulgou o meu retrato no mundo inteiro. Os promotores da corte encontraram alguns juízes que achavam que Jenkins de fato havia explorado uma menor de idade e invadido a minha privacidade. Depois disso o proibiram de falar comigo, e ele tinha de manter uma distância de quinze metros de mim.
Acho que Barinthus só não matou Jenkins para mim porque os encantados teriam considerado isso uma fraqueza também. Eu não era apenas da realeza encantada, eu era a terceira na sucessão do trono profano. Se não pudesse me proteger de repórteres superdiligentes, não merecia estar na fila do trono. Por isso ele se tornou problema meu. A rainha tinha proibido que qualquer um de nós prejudicasse a imprensa depois do pequeno acidente de barco de Barinthus. Infelizmente, a única coisa que me livraria de Barry Jenkins seria a morte dele. Menos do que isso, ele apenas ficaria bom e voltaria a me perseguir.
Soprei um beijo para Jenkins e passei por ele de braço dado com Barinthus. Galen seguiu atrás de nós, se esquivando das perguntas da mídia. Peguei partes da história. Reunião de família, todos em casa para os feriados, blá-blá-blá. Barinthus e eu nos afastamos dos repórteres porque eles ficaram para trás com Galen. Então fiz uma pergunta séria:
- Por que a rainha de repente resolveu me perdoar pelo fato de eu ter fugido de casa?
- Por que costumam chamar de volta para casa o filho pródigo? - ele perguntou.
- Sem adivinhações, Barinthus. Apenas responda.
- Ela não contou para ninguém o que está planejando, mas insistiu muito para você voltar para casa e ser uma hóspede de honra. Ela quer alguma coisa de você, Meredith, algo que só você pode dar a ela, ou à corte.
- O que eu poderia fazer que vocês todos não podem?
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- Se eu soubesse, diria a você.
Encostei em Barinthus, passei a mão no braço dele e fiz um feitiço. Era um feitiço pequeno, como nos envolver numa bolha de ar para o barulho não nos incomodar. Eu não queria que ouvissem o que eu dizia e, se estivéssemos sendo espionados pelos encantados, ninguém acharia estranho que eu fizesse isso com repórteres em volta.
- E o Cel? Ele pretende me matar?
- A rainha insistiu muito e disse para todos - ele enfatizou a palavra todos - que ninguém deve perturbá-la enquanto estiver na corte. Ela a quer de volta aqui conosco, Meredith, e parece disposta a fazer cumprir seu desejo com violência.
- Mesmo contra o filho dela? - perguntei.
- Isso eu não sei. Mas alguma coisa mudou entre ela e o filho. Ela não está satisfeita com ele, e ninguém sabe ao certo por quê. Gostaria de ter informações mais concretas para você, Meredith, mas mesmo as maiores fofoqueiras da corte estão no escuro sobre essa. Todos têm medo de irritar a rainha, ou o príncipe. - Ele tocou no meu ombro. - É praticamente certo que estamos sendo espionados. Ficarão desconfiados se mantivermos o feitiço de confusão para o que falamos.
Concordei com ele e desfiz o feitiço, joguei-o para longe com o pensamento. O barulho nos cercou, e percebi, no meio daquele monte de gente, que tivemos sorte de ninguém ter esbarrado em nós, pois isso teria acabado com o feitiço. Mas é claro que eu estava andando ao lado de um semideus de um metro e oitenta e cabelo azul, que realmente servia para abrir caminho. Alguns encantados gostavam dos fãs de fadas e duendes, dos grupos de tietes, mas Barinthus não era um desses e bastava uma olhada com aqueles olhos para fazer com que quase todos recuassem.
Barinthus prosseguiu com uma voz um pouco animada demais para o que estava dizendo.
- Vamos levá-la daqui para a casa da sua avó. - Ele abaixou a voz. - Só não sei como você conseguiu que a rainha permitisse a visita aos parentes antes de prestar seus respeitos a ela.
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- Eu invoquei direitos de virgem, e é por isso também que você vai me levar ao hotel para me registrar e trocar de roupa.
Estávamos na esteira das bagagens, observando a passadeira prateada rodar vazia.
- Nenhuma encantada invoca direitos de virgem há séculos.
- Não importa quanto tempo faz, Barinthus, continua sendo uma lei nossa.
Barinthus sorriu.
- Você sempre foi inteligente, mesmo quando era pequena, mas agora está mais sagaz.
- E cuidadosa, não se esqueça disso, porque sem cautela, toda essa esperteza só serve para nos matar.
- Muito cinismo, bem verdadeiro. Você realmente sentiu nossa falta, Meredith, ou gostou de ficar livre de tudo isso?
- Podia passar sem algumas políticas, mas... - Apertei o braço dele. - Senti saudade de você, de Galen e... nosso lar não é uma coisa que podemos escolher, Barinthus. É o que é.
Ele se abaixou para sussurrar:
- Quero você em casa, mas temo por você aqui. Olhei para aqueles olhos maravilhosos e sorri.
- Eu também.
Galen chegou entre nós dois, pôs um braço no meu ombro e o outro na cintura de Barinthus.
- Uma grande família feliz.
- Não seja irônico, Galen - disse Barinthus.
- Nossa - disse Galen. - O ânimo afundou de vez. O que vocês dois estavam tramando pelas minhas costas?
- Onde está Doyle? - perguntei.
O sorriso de Galen perdeu um pouco o brilho.
- Ele foi se apresentar à rainha. - O sorriso dele voltou ao normal. - A sua segurança agora é problema nosso.
Minha expressão deve ter demonstrado alguma coisa, ou a de Barinthus, porque Galen perguntou:
- O que houve?
Olhei para a brilhante superfície espelhada diante de nós. Jenkins estava logo ali, depois da grade da esteira de bagagem. Mantinha
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mais ou menos a distância de quinze metros. Bem afastado para eu não poder mandar prendê-lo.
- Aqui não, Galen.
Galen se virou e viu Jenkins.
- Ele realmente odeia você, não é?
- É - eu disse.
- Nunca entendi essa animosidade dele com você - disse Barinthus. - Mesmo quando você era criança, parece que ele a desprezava.
- E parece que virou uma questão pessoal, não é?
- Sabe por que é tão pessoal para ele? - disse Galen, e alguma coisa no jeito como ele perguntou me fez virar para o lado, para evitar o olhar dele.
Minha tia decretara anos antes de eu nascer que não podíamos usar nossos poderes mais sinistros na frente de algum membro da imprensa. Eu descumpri essa regra uma vez, para a edificação pessoal de Jenkins. Minha única desculpa era que tinha dezoito anos quando meu pai morreu. Dezoito anos quando Jenkins divulgou a minha dor por toda a mídia do mundo. Arranquei os piores medos da cabeça dele e exibi-os diante dos seus olhos. Fiz Jenkins berrar e implorar. Deixei-o numa massa trêmula encolhida à beira de uma estrada rural deserta. Ele foi mais gentil, mais bondoso, algumas poucas semanas, depois retribuiu com mais rancor ainda. Mais perverso, grosseiro, mais disposto do que antes a fazer qualquer coisa para conseguir uma história. Ele me disse que a única maneira de fazê-lo parar era se eu o matasse. Eu não tinha domado Jenkins, tinha piorado o que ele era. Foi ele que me ajudou a aprender essa lição: ou matamos nossos inimigos, ou não nos metemos com eles.
Minha mala foi uma das primeiras a aparecer na esteira de bagagem. Galen foi pegar.
- Sua carruagem está à espera, minha senhora.
Olhei para ele. Se fosse apenas Galen, eu até acreditaria, mas Barinthus não se prestava às exibições de publicidade, e a carruagem devia ser mesmo um exagero.
- A Rainha Andais mandou o carro dela para pegá-la - disse Barinthus.
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Olhei para um, depois para outro.
- Ela mandou a carruagem preta das caçadas para mim? Por quê?
- Até a noite chegar - disse Barinthus - é apenas um carro, uma limusine. O fato da sua tia tê-lo oferecido, e de eu ter sido chamado para ser seu motorista, é uma honra que não deve ser subestimada.
Cheguei mais perto dele e falei bem baixinho para nenhum repórter ouvir. Não podia ficar fazendo mágica para esconder nossas palavras porque, apesar de não sentir, não tinha certeza de que não estávamos sendo observados.
- É uma honra grande demais, Barinthus. O que está acontecendo? Não costumo receber esse tratamento de realeza dos meus parentes.
Barinthus ficou tanto tempo olhando para mim em silêncio que pensei que não ia responder.
- Eu não sei, Meredith - disse ele.
- Conversamos no carro - disse Galen, sorrindo e acenando para os repórteres.
Ele nos levou pela porta automática. A limusine estava esperando, como um tubarão liso e preto. Até o vidro das janelas tinha filme preto, de modo que não dava para ver nada lá dentro.
Parei na calçada. Os dois passaram por mim, pararam também e olharam para trás.
- O que houve? - perguntou Galen.
- Só estava pensando o que pode ter se arrastado para dentro do carro enquanto estávamos no aeroporto.
Eles se entreolharam, depois se viraram para mim.
- O carro estava vazio quando o deixamos aqui - disse Galen. Barinthus foi mais prático:
- Dou a minha palavra que pelo que sei o carro está vazio. Sorri para ele, mas não foi um sorriso feliz.
- Você sempre foi cauteloso.
- Digamos que não dou minha palavra por coisas que não posso controlar.
- Como os caprichos da minha tia - eu disse.
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Ele fez uma pequena mesura e balançou o cabelo como uma cortina com todos os tons de azul.
- Exato.
Minha tia tinha escolhido bem. Havia três vezes três vezes três guarda-costas reais. Vinte e sete guerreiros dedicados a todos os desejos da minha tia. Desses vinte e sete, os dois em quem eu mais confiava estavam ali ao meu lado. Andais queria que eu me sentisse segura. Por quê? A minha segurança, ou a falta dela, jamais interessou à rainha antes. Lembrei-me das palavras de Barinthus. A rainha queria alguma coisa de mim, algo que só eu podia dar ou fazer por ela, ou pela corte. A questão era saber o que era essa coisa que só eu podia fazer. Assim de imediato não conseguia pensar em nada que pudesse dar para ela.
- Entrem no carro, crianças - disse Galen com um sorriso cheio de dentes.
Vi uma van do noticiário da televisão ao longe, presa no trânsito, mas se aproximando. Se eles parassem e bloqueassem nossa passagem, como já tinha acontecido no passado, teríamos outros problemas além da minha paranóia. Por mais bem justificada que fosse essa paranóia.
Barinthus tirou as chaves do bolso e apertou um botão no chaveiro. A tampa do porta-malas se abriu com assobio de escapamento de ar, como se estivesse hermeticamente fechado. Galen botou minha mala lá dentro e estendeu a mão para minha bolsa de mão.
Balancei a cabeça.
- Isso fica comigo.
Galen não perguntou por quê. Ele sabia, ou era capaz de adivinhar. Eu não teria voltado para casa sem as armas que carregava. Barinthus segurou a porta de trás aberta para mim.
- A van do noticiário vai chegar daqui a pouco, Meredith. Se queremos uma... como é que chamam?... uma fuga limpa, temos que partir agora.
Dei um passo para a porta aberta e parei. A forração era preta, tudo era preto. O carro tinha uma história comprida demais para não acionar todos os alarmes psíquicos que eu tinha. O poder
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daquela porta aberta cobriu minha pele e fez os pelinhos dos meus braços se arrepiarem todos. As vezes era a carruagem negra das caçadas. Mesmo que não tivesse nenhum truque à minha espera lá dentro naquele momento, não deixava de ser um objeto com poder violento, e esse poder fluiu sobre mim.
- Pelo Senhor e pela Senhora, Merry... - disse Galen.
Ele passou por mim e entrou no negrume do carro. Deslizou sentado no banco inteiro, até desaparecer, depois deslizou de volta, saiu e estendeu a mão pálida para mim.
- Ele não morde, Merry.
- Jura? - eu disse.
- Juro - ele disse sorrindo.
Segurei sua mão, e ele me levou para a porta.
- Mas é claro que nunca jurei que eu não morderia.
Ele me puxou para dentro do carro, nós dois dando risada. Era bom estar em casa.
O couro do estofamento deu um suspiro quase humano quando sentei. Um painel de vidro preto bloqueava a visão de Barinthus no banco do motorista. Era como estar numa cápsula espacial toda preta. Havia uma garrafa de vinho embrulhada num pano dentro de um balde prateado num pequeno compartimento à nossa frente. Duas taças de cristal em orifícios para firmá-las, à espera do vinho. Havia também uma pequena bandeja com biscoitos salgados e o que parecia caviar, atrás da garrafa.
- Foi você que arrumou isso? - perguntei. Galen balançou a cabeça.
- Quem dera fosse eu. Só que eu não poria o caviar. Papilas gustativas de camponês.
- Você também não gosta - eu disse.
- Mas eu sou camponês.
- Nunca.
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Ele deu aquele sorriso que me aquecia até os pés. Então o sorriso desapareceu.
- Dei uma espiada aqui atrás antes de virmos para cá. - Ele sacudiu os ombros. - Concordo que a rainha está muito estranha. Eu queria me certificar de que não havia nenhuma surpresa atrás de todo esse vidro preto.
- E daí? - perguntei. Ele pegou o vinho.
- E isso não estava aqui.
- Tem certeza? - eu disse.
Ele fez que sim, afastou o pano e leu o rótulo da garrafa.
- É do estoque particular dela.
Galen segurava a garrafa com cuidado quando mostrou para mim, pois tinham tirado a rolha para o vinho poder respirar.
- Quer experimentar um burgundy que deve ter uns mil anos? Indiquei que não.
- Não vou comer nem beber qualquer coisa que esse carro invente para nós. De qualquer modo, obrigada. - Dei um tapinha no couro do assento. - Sem ofensa.
- Pode ser um presente da rainha - disse Galen.
- Mais um motivo ainda para não beber - eu disse. - Só quando eu descobrir o que está acontecendo.
Galen meneou a cabeça e pôs o vinho de volta no balde.
- Bem pensado.
Recostamos no banco de couro. O silêncio parecia mais pesado do que devia, como se houvesse alguém escutando. Eu sempre pensei que era o carro que ouvia.
A Carruagem Negra é um dos objetos dos encantados que tem energia, tem vida própria. Não foi fabricada por nenhum encantado ou deus antigo, pelo menos até onde eu sabia. Ela simplesmente existia até o tempo mais remoto que qualquer um conseguia lembrar. Mais de seis mil anos. Claro que então era uma carruagem preta, puxada por quatro cavalos pretos. Os cavalos não eram encantados. Pareciam não existir até escurecer. Aí eram coisas da escuridão, com órbitas oculares vazias que se enchiam de fogo quando eram atrelados à carruagem.
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Era uma diligência, com quatro cavalos, na época que eu vi. Um dia, ninguém lembra exatamente quando, essa diligência desapareceu e uma enorme carruagem preta surgiu. Só os cavalos continuaram os mesmos. A diligência mudou quando pararam de usá-las. Ela se atualizou.
Então uma noite, menos de vinte anos atrás, a Carruagem Negra desapareceu, e a limusine ocupou seu lugar. Os cavalos nunca mais voltaram, mas eu vi o que deve ser o motor embaixo do capô dessa coisa. Juro que queima com o mesmo fogo insalubre que enchia os olhos dos cavalos. O carro não é abastecido com gasolina. Não tenho ideia de qual é o combustível, mas sei que carruagem, ou diligência, ou limusine às vezes desaparecem sozinhos. Parte na noite para tratar de assuntos próprios. A Carruagem Negra era presságio de morte, anunciava uma desgraça iminente. E começavam a rolar boatos sobre um carro preto sinistro parado na frente da casa de alguém com o motor ligado e fogo verde dançando na superfície, e que a desgraça cai sobre essa pessoa. Então perdoem-me se fico só um pouco nervosa viajando naquele banco tão macio.
Olhei para Galen. Estendi a mão para ele. Ele sorriu e me deu a mão.
- Senti saudade - ele disse.
- Eu também.
Encostou minha mão na boca e beijou suavemente as articulações. Puxou-me para perto, e eu não resisti. Deslizei nos bancos de couro e me encaixei sob o braço dele. Adorava a sensação do braço no meu ombro, assim aconchegada ao corpo dele. Apoiei minha cabeça na maravilhosa maciez do suéter, na firmeza do peito dele por baixo, e mais fundo deu para ouvir seu coração batendo feito relógio.
Suspirei e me aninhei com as pernas sobre as dele, e ficamos assim entrelaçados.
- Você sempre foi mais aconchegante do que todo mundo que eu conheço - eu disse.
- Esse sou eu... apenas um grande e adorável ursinho de pelúcia. Alguma coisa na voz dele me fez levantar a cabeça.
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- Qual é o problema?
- Você nunca me disse que ia embora. Sentei direito, o braço dele continuou no meu ombro, mas o perfeito aconchego de um segundo antes não existia mais. Estragado com acusações e provavelmente outras coisas que ainda viriam.
- Não podia me arriscar contando para alguém, Galen, você sabe disso. Se qualquer pessoa suspeitasse que eu ia fugir da cort teriam me impedido, ou coisa pior.
- Três anos, Merry. Três anos sem saber se você estava morta ou viva.
Tentei sair de baixo do braço dele, mas Galen segurou firme e me puxou de novo para ele.
- Por favor, Merry, deixe-me apenas segurá-la assim, para saber que você está aqui de verdade.
Deixei, mas não estava mais confortável como antes. Ninguém mais ia perguntar por que eu não contei para ninguém, por que não entrei em contato com ninguém aquele tempo todo. Barinthu, vovó, ninguém, só mesmo Galen. Nesses momentos eu entendia por que meu pai não escolheu Galen para ser meu consorte. Ele se deixava dominar pela emoção, e isso era muito perigoso.
Acabei me afastando dele.
- Galen, você sabe por que não entrei em contato com você. Ele não quis olhar nos meus olhos. Toquei no queixo dele
virei sua cabeça. Aqueles olhos verdes estavam magoados, guardavam a emoção como um copo com água. Dava para ver até o fundo dos olhos de Galen. Ele era muito incompetente para a política da corte.
- Se a rainha suspeitasse que você sabia onde eu estava, qualquer coisa sobre isso, ela ia torturá-lo.
Ele agarrou minha mão e segurou-a encostada no rosto.
- Eu nunca trairia você.
- Eu sei disso, e você pensa que poderia viver pensando que você estava sendo torturado enquanto eu estava segura em algum outro lugar? Você não podia saber de nada, para ninguém ter motivo para interrogá-lo.
- Não preciso da sua proteção, Merry.
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Isso me fez sorrir.
- Nós nos protegemos mutuamente.
E ele também sorriu, porque não aguentava muito tempo sem sorrir.
- Você é o cérebro, eu sou os músculos. Fiquei de joelhos e beijei a testa dele.
- Como conseguiu não se meter em encrencas sem os meus conselhos?
Ele me segurou pela cintura e colou meu corpo no dele.
- Foi difícil. - Ele olhou sério para mim. - Para que essa camiseta preta? Pensei que tínhamos combinado de nunca usar preto.
- Fica bonita com a calça cinza-escuro e o casaco combinando - eu disse.
Ele apoiou o queixo logo acima dos meus seios e os olhos verdes sinceros não me permitiram ignorar a pergunta.
- Estou aqui para me dar bem, se puder, Galen. Se isso significa usar preto como a maioria na corte, eu posso fazer isso. - Sorri para ele. - Além do mais, fico bem de preto.
- Fica mesmo.
Os olhos sinceros deram os primeiros sinais daquele sentimento antigo.
Houve tensão entre nós desde que tive idade suficiente para saber o que era aquela estranha sensação na parte de baixo do corpo. Mas por mais calor que houvesse, jamais haveria qualquer coisa entre nós. Não fisicamente, pelo menos. Galen, como tantos outros, era um dos Corvos da rainha, por isso era propriedade dela, e só ela detinha poder sobre ele. Entrar para a Guarda da Rainha foi o único ato político inteligente que Galen fez na vida. Ele não tinha mágica poderosa, não era bom nas tramas dos bastidores. A única coisa que realmente tinha era um corpo forte, com um bom braço, além da capacidade de fazer as pessoas sorrirem. E falo sério sobre essa capacidade. Ele exalava alegria do corpo, como algumas mulheres deixam um rastro de perfume. Era uma qualidade maravilhosa, mas como muitas que eu tinha, não ajudava numa luta. Como membro dos Corvos da Rainha, ele gozava de certa segurança. Ninguém desafiava alguém da guarda à toa para
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um duelo, porque nunca se sabia se a rainha ia considerar um insulto pessoal. Se Galen não fosse da guarda, provavelmente teria morrido muito antes de eu nascer. No entanto, o fato de ser guarda era o que nos mantinha separados. Sempre desejando, nunca satisfazendo. Ficava furiosa com meu pai por não me deixar ficar com Galen. Foi a única briga séria que tivemos. Levei anos para entender o que meu pai via. Que a maior parte das qualidades de Galen era também sua maior fraqueza. Seu coraçãozinho era abençoado, mas ele se aproximava demais de ser um risco político.
Galen encostou o rosto nos meus seios e fez um pequeno movimento, roçou em mim. Parei de respirar um segundo, depois dei um suspiro.
Passei os dedos no rosto dele, na boca carnuda e macia.
- Galen...
- Psiu - ele disse.
Ergueu-me pela cintura e me pôs de frente para ele. Fiquei com os joelhos sobre as pernas dele. Meu pescoço latejava com tanta força que era quase uma dor.
Ele desceu as mãos lentamente até as minhas coxas. E tive de me lembrar de Doyle na noite anterior. Galen moveu as mãos e afastou minhas pernas, ele me fez deslizar até ficar montada em cima dele, com uma perna de cada lado. Mantive a distância, o espaço entre nós, para não montar nele de verdade. Não queria aquela sensação tão íntima do corpo dele contra o meu, pelo menos não agora.
Ele botou as mãos na minha nuca e apoiou minha cabeça, enfiou os dedos compridos no meu cabelo, e o calor incrível das suas mãos acariciou minha pele.
Galen era um dos guardas que acreditavam que tocar um pouco na pele de alguém era melhor do que nada. Sempre dançamos sobre o fio da navalha um com o outro.
- Faz muito tempo, Galen - eu disse.
- Dez anos desde que a segurei assim - ele disse. Sete anos com Griffin, três anos longe, e agora Galen tenta recomeçar de onde tinha parado, como se nada tivesse mudado.
- Galen, acho que não devemos fazer isso.
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- Não pense em nada - ele disse.
Ele se inclinou para frente e seus lábios ficaram tão perto que um suspiro selaria o beijo. Poder emanava da boca dele numa linha íntima de troca de hálitos.
- Não, Galen. - Minha voz soou ofegante, mas eu falava sério. - Não use mágica.
Ele recuou um pouco para ver o meu rosto.
- Sempre fizemos assim.
- Dez anos atrás - eu disse.
- Que diferença isso faz? - ele perguntou.
Ele enfiou as mãos por baixo do meu casaco e massageou os músculos das costas.
Talvez ele não tivesse mudado em dez anos, mas eu sim.
- Galen, não.
Ele olhou para mim, evidentemente confuso.
- Por que não?
Não sabia como explicar sem magoá-lo. Esperava que a rainha me desse permissão para escolher um guarda como consorte outra vez, como tinha feito quando deu permissão para meu pai escolher Griffin. Se eu deixasse as coisas retomarem a rotina com Galen, ele concluiria que seria o escolhido. Gostava muito dele, acho que ia amá-lo sempre, mas não podia torná-lo meu consorte. Precisava de alguém que me ajudasse na política e na magia. Galen não era essa pessoa. Meu consorte não teria mais a proteção da rainha quando deixasse a Guarda. A minha ameaça não bastava para dar segurança a Galen, e a ameaça dele era mais fraca ainda, porque ele era mais escrupuloso do que eu. O dia em que Galen se tornasse meu consorte seria o dia em que eu assinaria sua sentença de morte. Mas eu nunca conseguiria explicar tudo isso para ele. Ele nunca aceitaria que era tremendamente perigoso para mim e para ele mesmo.
Eu tinha crescido e finalmente era filha do meu pai. Algumas escolhas fazíamos com o coração, outras com a cabeça, mas em caso de dúvida, era melhor escolher com a cabeça e não com o coração, pois era isso que nos manteria vivos.
Ajoelhei para sair de cima do colo dele. Galen me segurou pelas costas. Parecia muito magoado, muito perdido.
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- Você está falando sério mesmo.
Fiz que sim com a cabeça. Observei seus olhos procurando algum sentido naquilo tudo. Ele finalmente perguntou:
- Por quê?
Toquei o rosto dele, passei os dedos nos cachos do cabelo.
- Oh, Galen.
Havia muito sofrimento nos olhos dele, onde sempre havia alegria, ou dúvida, ou qualquer que fosse a emoção que ele sentia. Ele era o pior ator do mundo.
- Um beijo, Merry, para dar-lhe as boas-vindas.
- Nós nos beijamos no aeroporto - eu disse.
- Não, um beijo de verdade, só mais uma vez. Por favor, Merry. Eu devia ter dito que não, pedido para ele me soltar, mas não pude. Não podia dizer não para aquele olhar e, na verdade, se nunca mais ficaria com ele, eu queria um último beijo.
Ele levantou a cabeça, e eu me abaixei. Os lábios dele eram muito macios. Minhas mãos encontraram a curva do rosto dele enquanto nos beijamos. Ele massageava minhas costas, passava de leve sobre minhas nádegas, ao longo das minhas coxas. Ele puxou minhas pernas gentilmente, e eu fiquei colada ao corpo dele de novo. Dessa vez ele cuidou para não ter espaço nenhum entre nós. Senti a pressão e a rigidez dele contra mim.
Foi justamente essa sensação que fez com que eu interrompesse o beijo e que me fez sufocar um grito. Ele deslizou as mãos pelo meu corpo, agarrou minhas nádegas e me apertou ainda mais contra ele.
- Será que podemos nos livrar da arma? Está me furando.
- A única maneira de me livrar da arma é tirando o cinto - eu disse, e minha voz indicava coisas que não tinham sido ditas.
- Eu sei - ele disse.
Abri a boca para dizer não, mas não foi isso que saiu. Foi uma série de decisões. Cada vez que eu devia dizer não, devia ter parado, e não parei em nenhuma. Acabamos deitados no longo banco de couro com a maior parte da roupa e todas as armas espalhadas pelo chão do carro.
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Passei as mãos no peito largo de Galen. A trança fina de cabelo verde descia pelo ombro e se enroscava na pele mais escura do mamilo dele. Segui a linha de pelos que descia do umbigo e desaparecia na calça. Não lembrava como fomos parar ali, daquele jeito. Eu estava só de calcinha e sutiã. Não me lembrava de ter tirado a calça. Como se perdesse o tempo em minutos, depois acordasse e visse que estávamos mais adiante.
O zíper da calça dele estava aberto. Vi de relance a sunga verde. Senti vontade de enfiar a mão na calça. Uma vontade tão forte que cheguei a senti-lo na minha mão, como se já o segurasse.
Nenhum de nós usou poder. Foi apenas a sensação de pele com pele, dos nossos corpos se tocando. Tínhamos ido além disso anos atrás. Mas havia alguma coisa errada. Eu não conseguia lembrar o que era.
Galen chegou para a frente e beijou minha barriga. Lambeu meu corpo de cima a baixo. Eu não conseguia pensar e precisava pensar.
A língua dele brincou no elástico da minha calcinha, ele enterrou o rosto na renda, foi indo de lado com o queixo e a boca, cada vez mais para baixo.
Segurei uma mecha do cabelo dele, puxei sua cabeça para cima, para longe do meu corpo.
- Não, Galen.
Ele deslizou as mãos para cima, forçou os dedos por baixo do arame do meu sutiã e expôs meus seios.
- Diga que sim, Merry, por favor, diga sim.
Pôs as mãos sobre meus seios e começou a acariciá-los. Eu não conseguia pensar, não lembrava por que ele não devia estar fazendo aquilo.
- Não consigo pensar - eu disse em voz alta.
- Não pense - disse Galen.
Ele abaixou o rosto sobre meus seios, beijou-os suavemente, lambeu os mamilos.
Pus a mão no peito dele e empurrei-o. Ele continuou em cima de mim, com um braço de cada lado, com as pernas dobradas para trás, metade sobre as minhas.
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- Tem alguma coisa errada. Não devíamos fazer isso.
- Não há nada de errado, Merry. Ele tentou abaixar o rosto de novo sobre os meus seios, mas fiquei com as duas mãos no peito dele e o mantive afastado.
- Há, sim.
- O quê? - ele perguntou.
- Esse é o problema, não lembro. Não consigo lembrar, Galen, está entendendo? Não consigo lembrar. Eu devia poder lembrar.
Ele franziu a testa.
- Tem alguma coisa. - Ele balançou a cabeça. - Não consigo lembrar.
- Por que estamos aqui no banco de trás desse carro? - perguntei.
Galen recuou e se recostou no banco com a calça aberta, as mãos no colo.
- Você vai visitar sua avó.
Endireitei o sutiã e sentei no meu lado do banco.
- Isso mesmo.
- O que acabou de acontecer? - ele perguntou.
- Acho que é um feitiço - eu disse.
- Nós não bebemos o vinho nem comemos os canapés. Olhei para o interior preto do carro.
- Está aqui, em algum lugar. - Passei a mão na beirada do assento. - Alguém pôs no carro, e não estava aqui antes.
Galen passou as mãos no teto, procurando.
- Se tivéssemos feito amor...
- Minha tia teria mandado nos executar.
Não contei para ele a respeito de Doyle, mas duvidava muito que a rainha permitiria que eu desmoralizasse dois guardas dela, em dois dias, sem me castigar por isso.
Achei um calombo embaixo do tecido preto da placa no chão do carro. Levantei bem devagar, sem querer quebrar alguma coisa no carro. O que encontrei foi uma corda trançada amarrada num anel de prata. Era o anel da rainha, um dos itens mágicos que os encantados tinham podido levar da Europa no grande êxodo. O
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anel tinha muito poder, por isso a mágica do cordão funcionou sem ter de encostar na nossa pele, nem ter de ser invocada. Ergui aquela coisa para Galen poder ver.
- Encontrei, e está com o anel dela. Galen arregalou os olhos.
- Ela jamais tira esse anel do dedo. Ele pegou o cordão e tocou nos fios de cores diferentes.
- Vermelho é luxúria, laranja é paixão imprudente, mas por que o verde? Em geral se usa para encontrar um parceiro monógamo. Nunca se misturam essas três cores.
- Mesmo para Andais isso é psicótico. Por que me convidar de volta para casa, como hóspede de honra, e depois armar para eu ser executada no caminho para a corte? Não faz absolutamente sentido algum.
- Ninguém pegaria esse anel sem permissão dela, Merry. Uma coisa branca estava despontando entre o assento e o encosto. Cheguei mais para perto e vi que era a ponta de um envelope.
- Isso não estava aqui antes - eu disse.
- É, não estava - disse Galen.
Ele pegou o suéter que estava no chão e vestiu.
Puxei o envelope, e ele caiu como se tivesse alguém empurrando do outro lado. Como um músculo flexionado. Meu pescoço começou a latejar de novo, mas mesmo assim peguei o envelope. Tinha meu nome escrito com uma bela caligrafia. Era a letra da rainha.
Mostrei para Galen enquanto ele se vestia.
- É bom abrir - ele disse.
Examinei o outro lado e vi o selo dela, de cera preta, intacto. Quebrei o selo e tirei uma única folha grossa de papel branco.
- O que diz? - perguntou Galen. Li em voz alta para ele:
- "Para a Princesa Meredith NicEssus. Aceite este anel como presente e sinal de acontecimentos futuros. Quero vê-lo na sua mão quando nos encontrarmos." Ela até assinou o nome. - Olhei para Galen. - Isso está ficando cada vez mais sem sentido.
- Olhe - ele disse.
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Olhei para onde ele apontava e percebi que despontava no banco um saquinho de veludo que não estava ali quando peguei o envelope.
- O que está acontecendo?
Galen puxou o saco com cuidado. Era muito pequeno e só tinha dentro um pedaço de seda preta.
- Deixe-me ver o anel - ele disse.
Tirei o anel de prata do cordão e segurei-o na palma da mão. O metal frio esquentou. Esperei, tensa, ele ficar muito quente, mas era apenas um pouco de calor latejante. Aquilo devia ser parte do encantamento do anel, ou... dei o anel para Galen.
- Ponha na palma da mão e veja o que sente.
Ele pegou o anel receoso, com dois dedos, e pôs na palma da outra mão. O anel pesado, octogonal, brilhou um pouco.
Ficamos parados olhando para o anel alguns segundos. Nada aconteceu.
- Está quente? - perguntei.
Galen olhou para mim com as sobrancelhas arqueadas.
- Quente? Não. Devia estar?
- Para você, não, ao que parece.
Ele embrulhou o anel no pedaço de seda e guardou-o dentro do saquinho de veludo. Coube perfeitamente, mas não havia espaço para o pesado cordão.
- Acho que não foi a rainha que fez o feitiço. Ela deve ter posto este anel aqui dentro como um presente para você, como diz o bilhete.
- Então alguém acrescentou o feitiço - eu disse. Ele fez que sim com a cabeça.
- Foi um feitiço muito sutil, Merry. Quase não deu para notar.
- É, quase pensei que era invenção da minha cabeça. Se fosse algum feitiço sexual revoltante, teríamos notado que havia algo errado muito mais cedo.
Não eram muitos os membros da Corte Profana capazes de lançar um feitiço de amor tão sofisticado. O amor não era nossa especialidade, mas sim o tesão.
Galen pensava como eu.
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- Há apenas três, talvez cinco pessoas em toda a corte que poderiam fazer um feitiço desses. Se me perguntassem, eu diria que nenhuma delas ia querer prejudicá-la de propósito. Talvez nem todas gostem de você, mas não são seus inimigos.
- Ou não eram, três anos atrás - eu disse. - As pessoas mudam de ideia, formam novas alianças.
- Não notei nada assim tão diferente - disse Galen. Tive de sorrir.
- Você fala isso como se fosse uma grande surpresa não ter notado manobras e acordos políticos nos bastidores.
- Está certo, está certo, não sou um animal político, mas Barinthus é, e ele jamais mencionou qualquer mudança de intenções tão séria entre os neutros da corte.
Estendi a mão pedindo o anel. Galen me deu o saquinho. Tirei o anel e coloquei-o na palma da mão. Antes mesmo de encostar na minha pele, já senti o calor discreto. Fechei a mão com o anel dentro, apertei, e o calor aumentou. O anel, o anel da minha tia, o anel da rainha, reagiu à minha pele. Será que isso agradaria à nossa rainha... ou ela ficaria furiosa? Se não queria que o anel me reconhecesse, por que teria dado para mim?
- Você parece satisfeita - disse Galen. - Por quê? Acabou de ser vítima de uma tentativa de assassinato... lembra-se dessa parte, certo?
Ele estudava meu rosto, tentava ler minha expressão.
- O anel esquenta quando toco nele, Galen. É uma relíquia de poder e me conhece. - O assento mexeu embaixo de mim e dei um pulo. - Você sentiu isso?
Galen meneou a cabeça.
- Senti.
A luz do teto acendeu, e pulei de novo.
- Foi você que acendeu? - perguntei.
- Não.
- Eu também não - eu disse.
Dessa vez vi o banco de couro empurrar o objeto. Era como observar algo vivo, se contorcendo. O objeto era minúsculo, de
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prata, alguma joia. Quase tive medo de encostar nele, mas o assento continuou se mexendo até a coisa aparecer inteira sob a luz, e vi de relance que era uma abotoadura.
Galen pegou a abotoadura. Ficou muito sério e deu para mim. A abotoadura tinha a letra "C" floreada.
- A rainha mandou fazer abotoaduras como esta para todos os guardas mais ou menos um ano atrás. Elas têm nossas iniciais.
- Então você está dizendo que um guarda pôs o feitiço no carro e tentou esconder o bilhete e o saquinho nos assentos.
Galen concordou.
- E o carro guardou a abotoadura até poder mostrá-la para você.
- É... obrigada... carro - murmurei.
Felizmente o carro não respondeu ao agradecimento. Meus nervos ficaram gratos por isso. Mas eu sabia que tinha ouvido o que eu disse. Sentia que ele me observava, aquela sensação de olhos fixos nas nossas costas, e quando viramos vemos alguém nos olhando.
- Quando disse todos os guardas, quis dizer as guardas do príncipe também? - perguntei.
Galen indicou que sim.
- Ela gostava de ver as guardas mulheres com camisa de homem, dizia que era elegante.
- Com isso são mais o que... cinco, seis, na lista de possíveis suspeitos?
- Seis.
- Há quanto tempo se sabe que a rainha ia enviar a Carruagem Negra para me pegar no aeroporto?
- Barinthus e eu só descobrimos duas horas atrás.
- Eles tiveram de agir rápido. Talvez o feitiço do amor não fosse para mim. Pode ter sido apenas alguma coisa que plantaram com algum outro objetivo.
- Tivemos sorte de não ser para nós. Não teríamos recuperado o juízo a tempo se fosse.
Pus o anel de volta no saco e peguei minha camiseta no chão do carro. Não sei por quê, mas queria estar vestida antes de pôr o anel. Olhei para o teto preto.
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- É só isso que tem para me mostrar, carro? A lâmpada do teto se apagou.
Pulei no banco, apesar de adivinhar que isso ia acontecer.
- Merda - disse Galen.
Ele se afastou de mim, ou da falta de luz. Arregalou os olhos e fixou-os em mim.
- Nunca andei nesse carro com a rainha, mas ouvi dizer que...
- Que se ele responde a alguém, esse alguém é ela.
- E agora você - ele disse baixinho. Balancei a cabeça.
- A Carruagem Negra é mágica pura. E não tenho a pretensão de supor que possuo algum controle sobre isso. O carro ouve a minha voz. Se há mais alguma coisa... - Dei de ombros. - Só o tempo dirá.
- Você está no solo de Saint Louis há menos de uma hora, Merry, e já sofreu um atentado. Está pior do que quando saiu daqui.
- Quando é que você se tornou pessimista, Galen?
- Quando você deixou a corte - ele respondeu.
Galen tinha uma expressão de tristeza. Toquei no rosto dele.
- Ah, Galen, senti sua falta.
- Mas sentiu mais falta da corte. - Ele apertou minha mão contra seu rosto. - Posso ver nos seus olhos, Merry. A velha ambição crescendo.
Tirei a mão do rosto dele.
- Não sou ambiciosa como Cel. Só quero poder andar pela corte em relativa segurança e infelizmente vou precisar de algumas manobras políticas para isso.
Pus o saquinho de veludo no colo e vesti a camiseta. Depois vesti a calça e botei a arma e as facas nos seus devidos lugares. Por cima de tudo, o blazer.
- Seu batom sumiu - disse Galen.
- Você é que está com quase todo - eu disse.
Usamos o espelho que havia na minha bolsa para passar o batom e limpá-lo com um lenço de papel da boca de Galen. Escovei o cabelo e pronto, estava arrumada. Não podia mais adiar aquilo.
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Examinei o anel à luz fraca. Era grande demais para o meu anular, então pus no indicador. Da mão direita, sem pensar a respeito. O anel esquentou minha pele como um toque de carinho, para lembrar que estava lá, aguardando que eu descobrisse o que fazer com ele. Ou então aguardando que ele descobrisse o que fazer comigo. Mas confiava no meu sentido mágico. O anel não era ativamente maligno, só que isso não impedia acidentes. Mágica é como qualquer ferramenta: tem de ser tratada com respeito, senão pode se voltar contra você. A maior parte da magia não é perigosa, como uma serra elétrica, mas as duas coisas podem matar.
Tentei tirar o anel e não saía. Meu coração acelerou um pouco. Fiquei sem ar. Comecei a puxar meio desesperada, então parei. Respirei fundo algumas vezes para me acalmar. O anel era presente da rainha. Só de vê-lo na minha mão, algumas pessoas me tratariam com mais respeito. O anel, como o carro, tinha programação própria. Ele queria ficar no meu dedo e ficaria ali até querer sair, ou até eu descobrir como tirá-lo. Não estava me fazendo mal. Eu não precisava entrar em pânico.
Estendi a mão para Galen.
- Não quer mais sair.
- Aconteceu a mesma coisa com a rainha uma vez - ele disse, e eu sabia que a intenção dele era me acalmar.
Galen pôs a minha mão em seu rosto e a beijou de leve. Quando encostou no anel, senti o que parecia um choque elétrico, só que não era isso. Era mágica.
Galen me soltou e foi sentar no lado oposto do banco, longe de mim.
- Eu gostaria de saber se o toque de Barinthus faz o anel pular desse jeito.
- Eu também - eu disse.
Ouvimos a voz de Barinthus no comunicador.
- Estaremos na casa da sua avó dentro de cinco minutos.
- Obrigada, Barinthus.
Fiquei imaginando o que ele ia dizer quando visse o anel. Barinthus tinha sido o conselheiro mais próximo do meu pai, amigo dele. Ele era Barinthus Fazedor de Reis e, depois que meu pai
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morreu, ele se tornou meu amigo e conselheiro. Alguns na corte o chamavam de Fazedor de Rainha, mas só pelas costas, nunca diretamente para ele. Barinthus era um dos poucos da corte que poderiam derrotar com magia meus candidatos a assassinos. Mas se ele tivesse se intrometido e destruído meus inimigos, eu teria perdido a pouca credibilidade que tinha junto aos encantados. Barinthus teve de observar, impotente, quando eu me defendia, mas tinha me aconselhado a ser impiedosa. Às vezes não se trata de quanto poder podemos invocar, mas sim do que pretendemos fazer com esse poder.
- Faça com que seus inimigos tenham medo de você, Meredith - Barinthus tinha dito.
Fiz o melhor que pude. Mas eu jamais seria tão assustadora como Barinthus. Ele era capaz de destruir exércitos inteiros com um pensamento. E isso significava que seus inimigos lhe davam bastante folga.
Também significava que, se tínhamos de nadar junto com os tubarões, um ex-deus com seiscentos anos era um bom parceiro de mergulho. Eu adorava Galen, mas me preocupava com ele como aliado. Meu medo era que, por ser meu amigo, ia acabar sendo morto. Não me preocupava com Barinthus. Se alguém tinha de enterrar alguém, seria ele. Ele me enterraria.
Vovó tinha ficado com os cômodos no último andar da casa para ela. Nos velhos tempos, quando aquela monstruosidade vitoriana era nova, os quartos eram dos empregados. Eles congelavam no inverno e derretiam no verão. Mas ar-condicionado e aquecimento central são coisas maravilhosas. Ela mandou derrubar algumas Paredes para formar uma sala de estar aconchegante, com um banheiro pequeno e completo de um lado, outro quarto pequeno depois, para qualquer coisa, e um quarto bem grande que era só dela, do outro lado da sala de estar.
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A sala era toda em tons de branco, creme e cor-de-rosa. Sentamos num sofá de costas retas pintado de rosa forte, e eu não sabia o que fazer com tantas almofadas rendadas. Juntei todas num monte como uma pilha natural de flores e rendas.
Bebíamos chá em um aparelho florido. Minha segunda xícara de chá completa, com um pires delicado, estava flutuando da pequena mesa de centro até a minha mão. O segredo para pegar uma coisa levitando até você é simplesmente permanecer imóvel. Não a agarre, senão derrama. Espere, e se a pessoa que faz a levitação for boa, a xícara ou o que quer que esteja voando encostará na sua mão, e aí você poderá pegar. Às vezes eu penso que a minha primeira lição de paciência foi esperar uma xícara flutuar até a minha mão.
Eu me concentrava muito naquele momento. Para não derramar o chá, pensava como ia pegar um cubo de açúcar de um açucareiro flutuante. E me concentrava em simplesmente estar com a minha avó, depois de três anos longe. Mas havia muitas perguntas no fundo da minha mente. Quem tinha tentado nos matar no carro? Será que era Cel? Por que a rainha queria tanto que eu voltasse para casa? O que ela queria de mim? Chamam corrida de cavalos de esporte dos reis, mas não é esse o verdadeiro esporte de reis. O esporte deles é sobrevivência e ambição.
A voz da minha avó me trouxe de volta para o presente com um tranco que me fez pular no sofá. A xícara que levitava se afastou um pouco, como uma nave espacial manobrando para pousar.
- Desculpe, vovó, não ouvi o que disse.
- Queridinha, seus nervos estão tão estressados que vão acabar estalando.
- Não posso evitar.
- Não acho que a rainha ia arrastá-la de volta só para ver seus inimigos matá-la.
- Se ela seguisse alguma lógica, eu concordaria, mas sabemos muito bem que não é assim.
Vovó deu um suspiro. Ela era ainda menor do que eu, mal chegava a um metro e meio de altura. Lembrei-me de uma época em que ela parecia enorme, e eu acreditava que nada me faria mal
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quando estava em seus braços. O cabelo castanho comprido e ondulado emoldurava seu corpo delicado como cortina sedosa, mas não escondia o rosto. A pele dela era morena, da cor de uma noz, e um pouco enrugada, mas não pela idade. Os olhos eram grandes e castanhos da cor do cabelo, com cílios lindos. Mas ela não tinha nariz e quase não se via a boca. O rosto era quase uma caveira marrom. Dava para ver os orifícios onde as narinas deviam estar se tivessem cortado o nariz fora, mas ela nasceu assim. A mãe dela, minha bisavó, achava a filha linda. Quando minha avó era menina, o pai humano, meu bisavô, disse-lhe que ela era muito bonita. Que era igualzinha à mãe dela, a mulher que ele amava.
Eu gostaria de ter conhecido meu bisavô, mas ele era humano puro e viveu nos anos 1600. Alguns séculos antes do meu tempo. Eu poderia ter conhecido minha bisavó, se ela não tivesse morrido em uma das grandes guerras entre os humanos e os encantados na Europa. Foi morta por uma guerra que não era dela, já que era fada. Mas recusar o chamado para a batalha é traição. Traição é uma ofensa que merece pena de morte.
Os líderes encantados nos dão ordens o tempo todo.
O pires de porcelana encostou na minha mão, eu estiquei os dedos com todo o cuidado e peguei-o no ar. Teria sido mais fácil pôr minha mão inteira embaixo do pires para sustentá-lo, mas isso não era educado para uma dama. Eu aprendi a beber chá com regras de etiqueta que estavam desatualizadas há cem anos, ou mais. A segunda coisa perigosa com bebida quente levitando é que quando a pessoa desfaz a levitação, as xícaras ficam mais pesadas. Quase todo mundo derrama um pouco de chá pelas bordas nas primeiras vezes. Não é vergonha nenhuma.
Eu não derramei chá nenhum. Vovó e eu tivemos nosso primeiro chá quando eu tinha cinco anos de idade.
- Gostaria de saber o que dizer a você sobre a rainha, minha filha, mas não sei. O melhor que posso fazer é alimentá-la. Coma um pouco desses folheados, querida. Sei que são um pouco pesados para o chá, mas são seus preferidos.
- Recheio de carneiro? - perguntei.
- Com nabos e batatas, exatamente como você gosta.
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Sorri.
- Hoje à noite, no banquete, haverá comida.
- Mas será que vai querer comer? - ela perguntou. Minha avó tinha razão. Peguei um dos folheados com recheio de carne de carneiro. Um prato de sobremesa flutuou embaixo do salgado.
- O que você acha do anel?
- Nada.
- Como assim, nada?
- Querida, eu quero dizer que não tenho informação suficiente nem para arriscar um palpite.
- Será que foi o Cel que tentou matar a mim e ao Galen? Acho que estou com mais raiva porque quem pôs o feitiço no carro estava disposto a sacrificar Galen para chegar a mim, como se Galen não tivesse importância nenhuma.
O folheado tinha um aroma delicioso, mas de repente perdi a fome. O chá que bebi chacoalhava no meu estômago como se quisesse voltar. Eu não era boa para comer quando estava nervosa. Deixei o folheado no prato flutuante, e ele voltou para a mesa.
Vovó segurou a minha mão. Tinha pintado as unhas com um tom de esmalte vinho, quase da cor da pele dela.
- Não conheço alta magia, Merry. A minha mágica é mais habilidade inata. Mas se o assassino tinha a intenção de provocar uma sentença de morte, para que o cordão verde? A cor da fidelidade, da vida familiar frutífera. Por que acrescentar isso?
- A única coisa que posso pensar é que puseram o feitiço com algum outro objetivo e usaram-no para isso na última hora. Senão, por que outro motivo o feitiço estaria lá?
- Eu não sei, querida. Gostaria de saber - disse vovó. Levantei a mão, e o anel cintilou à luz do sol de outono.
- Quem pôs o feitiço no carro usou este anel para alimentar a mágica. Sabiam que o anel estaria lá. A quem a rainha confiaria essa informação?
- A lista dos que merecem sua confiança é pequena, mas é longa a lista daqueles que ela sabe que têm tanto medo dela que não vão contrariá-la. Ela poderia ter dado o anel e o bilhete para
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qualquer um, confiando que ele faria o que ela pedisse. Jamais imaginaria que um guarda pudesse desobedecer uma ordem sua. - Ela apertou minha mão. - Você não vai mesmo comer esses folheados. Vou mandá-los lá para baixo. Meus hóspedes certamente irão gostar.
- Sinto muito, vovó. Não consigo comer quando estou nervosa.
- Não estou ofendida, Merry, estou apenas sendo prática. Ela fez um gesto, a porta que dava para um pequeno corredor e a escada se abriu. Os pratos com os salgados começaram a sair voando.
- Para que serviria executar Galen e eu? - perguntei.
Os pratos continuavam flutuando pela porta naquela dança irregular, mas ela virou para mim sem demora e sem derramar nada.
- O que você deve perguntar é de que serviria o anel da rainha ser encontrado amarrado com um encantamento de amor destinado a você.
- Mas não era para mim. Podia ser qualquer um no banco de trás do carro.
- Acho que não - disse vovó.
Ela segurou minha mão e alisou o anel de prata. Não reagiu ao toque dela como tinha acontecido com Galen.
- Este é o anel da rainha, e você tem o sangue da rainha. Mas por um acidente na ordem de nascimento, Essus poderia ter sido rei. Você já seria rainha e não Andais. O seu primo Cel seria o segundo na linha de sucessão do trono, não você.
- Papai nunca aprovou o modo com que Andais administra a corte.
- Eu sei que alguns insistiram para ele matar a irmã e tomar o trono - disse vovó.
Não tentei esconder a surpresa.
- Pensei que ninguém sabia disso.
- Por que acha que o mataram, Merry? Alguém ficou nervoso pensando que Essus poderia aceitar o conselho e começar uma guerra civil.
Agarrei a mão dela.
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- Você sabe quem mandou matá-lo? Ela balançou a cabeça.
- Se eu soubesse, minha filha, já teria contado para você. Não tomei parte de nenhum desses complôs da corte. Eles me toleravam, apenas isso.
- Para papai não era apenas tolerar - eu disse.
- Ah, isso é verdade. Ele me deu o grande presente de poder ver você deixar de ser criança e passar a ser mulher. Serei sempre grata por isso.
Sorri para ela.
- Eu também.
Vovó endireitou as costas, com as mãos juntas no colo, sinal de que não estava à vontade.
- Se sua mãe tivesse visto a generosidade dele... mas ela estava cega pelo fato de ele ser profano. Eu sabia que ia lamentar fazer parte de um tratado de paz. O Rei Taranis usou Besaba como escrava. Não estava certo.
- Minha mãe queria se casar com um príncipe da Corte Abençoada. Nenhum deles encostava nela, porque, por mais que ela fosse alta e linda, tinham medo de levá-la para a cama. Medo de misturar o sangue deles, tão puro, com o dela. Não iam se sujar com ela, não depois do que aconteceu com sua irmã gêmea, Elu-ned, que engravidou depois de uma única noite com Artagan e o encurralou para casar com ela.
Vovó meneou a cabeça.
- Sua mãe sempre achou que Eluned tinha arruinado suas chances de conseguir um casamento na Corte Abençoada.
- É, ela pensava assim - eu disse. - Especialmente depois que a filha dela nasceu e era... - olhei para o rosto de vovó - parecida com você.
Estendi a mão para ela quando disse isso. Vovó segurou minha mão.
- Eu sei o que os encantados pensam da minha aparência, filha. Eu sei o que minha outra neta pensa das semelhanças na família-
- Minha mãe ficou com meu pai porque o Rei Taranis prometeu um amante da realeza quando ela voltasse. Seriam três anos
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vivendo com os impuros, os profanos, da Corte Profana, e ela poderia voltar e ter um amante abençoado. Acho que ela não esperava engravidar no primeiro ano.
- O que tornou aquele arranjo temporário uma situação permanente - disse vovó.
- Por isso sou o Banimento de Besaba da Corte Abençoada. Meu nascimento a prendeu na Corte Profana. Ela nunca me perdoou por isso.
Vovó balançou a cabeça.
- Sua mãe é minha filha e eu a amo, mas ela é muito... confusa às vezes, não sabe quem ama e por que ama.
Eu estava pensando que minha mãe talvez não amasse ninguém, só sua ambição, mas não disse isso em voz alta. Afinal de contas, vovó era mãe dela.
O sol da tarde já ia baixo.
- Preciso me registrar no hotel e me vestir para as festividades. Vovó tocou no meu braço.
- Você devia ficar aqui.
- Não, e você sabe por quê.
- Pus proteção na minha casa e no meu terreno.
- Proteção para enfrentar a Rainha do Ar e da Escuridão? Ou qualquer outro que possa estar querendo me matar? Não creio.
Abracei minha avó, ela retribuiu com seus braços finos, apertou-me contra ela com uma força que não devia existir num corpo tão delicado.
- Cuide-se bem esta noite, Merry. Não suportaria perdê-la. Passei a mão naquele cabelo maravilhoso e vi uma fotografia por cima do ombro dela. Era uma imagem de Uar, o Cruel, com ela, seu único marido. Ele era alto e musculoso. Tiveram de fotografar meu avô sentado e minha avó de pé ao lado, com a mão no ombro dele. O cabelo comprido e solto de Uar parecia um mar dourado. Usava um terno preto com camisa branca, comum. Não tinha nada de extraordinário além do rosto. Era um belo rosto. Os olhos eram círculos azuis dentro do azul. Tinha a aparência que toda mulher, encantada ou humana, podia desejar. Mas não era chamado de "o cruel" só por ter gerado três filhos monstruosos.
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Ele espancava minha avó porque ela era feia. Porque ela não era nobre. Porque ela lhe deu filhas gêmeas, e, por isso, o casamento deles era para sempre, a menos que ela resolvesse desfazê-lo. No caso de Uar e minha avó, eles não estavam brincando de eternidade.
Ela só aceitou uma versão encantada de divórcio três anos atrás, quando eu saí da corte. Imaginei na época se vovó tinha dado o divórcio em troca da intervenção dele em meu benefício junto a Andais. Ele era poderoso, e Andais respeitava esse poder. Não estou dizendo que Uar a ameaçou. Não, isso seria insensato. Mas ele pode ter sugerido que me deixassem fazer o que quisesse por algum tempo.
Eu nunca perguntei. Afastei-me dela e olhei para aqueles olhos, tão parecidos com os da minha mãe.
- Por que você lhe deu o divórcio três anos atrás? Por que justamente naquela época?
- Porque era hora, filha, hora de deixá-lo ir.
- Ele não intercedeu por mim com Andais? Não foi esse o preço para se libertar de você, foi?
Ela deu risada.
- Filha, filha, você acha mesmo que aquele velho metido a besta ia dizer alguma coisa para a Rainha do Ar e da Escuridão? Ele ainda não se recuperou do constrangimento provocado pela expulsão dos três filhos da corte, forçados a se tornarem povo de Andais.
Balancei a cabeça.
- Meus primos não são tão ruins assim. Luvas cirúrgicas modernas são tão finas que quase não aparecem. Eles não envenenam mais as pessoas acidentalmente, só de encostar nelas.
Vovó me abraçou de novo.
- Mas o veneno que sai das mãos deles impede que sejam da guarda real, não impede?
- Bem... impede. Mas desde que se evite o sangue real, há mulheres dispostas a ficar com eles.
- Na Corte Profana, eu poderia acreditar que sim. Quando olhei para ela, vi que estava constrangida.
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- Sinto muito, Merry. Isso não foi nada apropriado da minha parte. Peço perdão. Eu devia saber, melhor do que qualquer um, que não há tantas opções assim nas duas cortes.
- Preciso ir para o hotel, vovó.
Ela foi comigo até a porta, com o braço na minha cintura.
- Tome cuidado esta noite, filha, muito cuidado.
- Vou tomar.
Ficamos ali paradas, olhando uma para a outra, um ou dois segundos. O que podíamos dizer? O que se pode dizer em qualquer situação?
- Eu te amo, vovó.
- Eu também te amo, filha.
Aqueles adoráveis olhos castanhos estavam cheios de lágrimas. Ela me beijou com seus lábios finos que sempre me tocaram com mais carinho e amor do que o belo rosto ou as mãos brancas como lírio de minha mãe. Senti no rosto que suas lágrimas eram quentes. Ela continuou abraçada comigo quando comecei a descer a escada. E nos separamos com os dedos trêmulos num último afago.
Olhei para trás muitas vezes para ver aquela pequena figura marrom no topo da escada. Dizem que não devemos olhar para trás, mas quando não temos certeza do que temos pela frente, o que mais podemos fazer além de olhar para trás?
O hotel tinha todo o charme de uma caixa nova de lenços de papel. Funcional, algo decorativo, mas mesmo assim um hotel genérico, com toda a mesmice que isso implicava.
Entramos pela porta do saguão, Barinthus e Galen carregavam minhas malas. Eu segurava a bolsa de mão. Preferi levar comigo minhas armas porque era bom tê-las perto, não por pensar que Poderia tirá-las da mala em tempo e usá-las, caso a arma e a faca falhassem.
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Eu tinha aterrissado em Saint Louis havia poucas horas e já tinha sofrido um atentado junto com Galen. Não era uma tendênci agradável. Essa tendência só piorou quando vi quem estava à nossa espera no saguão.
Barry Jenkins conseguira chegar ao hotel antes de nós. Eu tinha feito a reserva em nome de Merry Gentry. Não era uma identidade que já tivesse usado em Saint Louis. Ou seja, Jenkins sabia que era eu. Merda.
E ele se certificou de que todos os outros farejadores de notícias me encontrassem. Nada que eu dissesse ia ajudar. Se pedisse para ele calar o bico, Jenkins ia gostar ainda mais.
Galen tocou gentilmente no meu braço. Também tinha visto Jenkins. Levou-me para o balcão como se temesse o que eu poderia fazer, porque havia alguma coisa na expressão de Jenkins quando ele se levantou da confortável poltrona do saguão. Era uma questão pessoal. Ele me machucaria se pudesse. Ah, não quero dizer que atiraria em mim, ou usaria uma faca, mas se pudesse escrever alguma coisa para me ferir, teria prazer de publicar.
A mulher que atendia no balcão sorriu para Barinthus. O sorriso era bonito, e ela o acendeu com uns cem watts, mas Barinthus era só providências. Nunca o vi tratar de outra coisa. Ele jamais provocava ou testava os limites dos súditos fiéis que a rainha impunha a ele. Parecia apenas aceitar.
Quando peguei a chave do meu quarto, a mão dela encostou de leve na minha. Tive uma visão muito nítida do que ela estava pensando. Barinthus deitado sobre lençóis brancos, com todo aquele cabelo sedoso, cheio de tons de água, em volta do corpo nu.
Fechei a mão com força não só por causa da imagem, mas pela intensidade do desejo dela. Senti o corpo dela tão tenso como minha mão. Ela olhava faminta para Barinthus, e eu falei sem pensar, usando palavras para reconhecer e quebrar a ligação com a menina.
Cheguei bem perto e disse:
- Sabe a imagem dele nu que formou na sua cabeça? Ela já ia protestar, mas desistiu, arregalou os olhos e lambeu o lábio. Finalmente meneou a cabeça.
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- Você o subestima.
Ela arregalou os olhos ainda mais e olhou fixo para Barinthus, que estava parado diante dos elevadores.
Eu estava captando as emoções dela. As vezes isso acontecia, pareciam sinais de rádio ou transmissões de televisão ao acaso. Mas a minha banda de recepção era estreita. Praticamente apenas imagens de tesão. Cenas ao acaso de desejo, e só de humanos. Nunca tive uma visão assim de outro encantado. Nunca entendi por quê.
- Quer que eu peça para ele tirar o casaco, para você ver melhor?
Com isso ela enrubesceu, e a imagem que tinha criado mentalmente se desfez, de vergonha. Agora a mente da recepcionista era apenas uma série de imagens confusas. Eu me libertei das ideias dela, das emoções.
Uma das antigas deusas da fertilidade na Corte Abençoada tinha me dito que poder ver as imagens de luxúria das outras pessoas era uma ferramenta útil quando se procuravam sacerdotes e sacerdotisas para o templo. Pessoas com forte desejo sexual podiam ser usadas em cerimônias, domando e ampliando essa energia sexual para poder ser transmitida aos outros. Antigamente, pensavam que tesão correspondia a fertilidade. Infelizmente, isso não era verdade.
Se tesão fosse equivalente a reprodução, os encantados já teriam ocupado o mundo inteiro, pelo menos de acordo com as antigas histórias. A recepcionista do hotel ficaria muito desapontada quando descobrisse que Barinthus era celibatário. Se ele se hospedasse no hotel, eu contaria a ele o que tinha visto. Ela me parecia o tipo de mulher que talvez o surpreendesse no quarto tarde da noite. Mas Barinthus voltaria para o monte quando escurecesse. Nada com que me preocupar.
Jenkins agora estava na frente dos elevadores, encostado na parede, sorrindo. Tentava conversar com Barinthus quando Galen e eu íamos para perto deles. Barinthus ignorava o jornalista como só uma divindade consegue. Com total desprezo, como se a voz de Jenkins fosse o zumbido de algum inseto sem importância. Era
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mais do que desprezo. Para Barinthus era como se o repórter não existisse mesmo.
Era uma habilidade que eu não tinha, e invejava.
- Ora, ora, Meredith, quem diria, encontrá-la aqui... Jenkins conseguiu tornar sua voz ao mesmo tempo alegre e cruel.
Procurei ignorá-lo como Barinthus fazia, mas sabia que, se o elevador não chegasse logo, iria perder esse jogo.
- Merry Gentry, não podia ter caprichado mais? O significado de gentry, nobreza de baixo escalão, tem servido de eufemismo para os encantados há séculos.
Ele ainda podia estar chutando, mas achei que não. Tive uma ideia. Olhei para ele e esbocei um sorriso doce.
- Você realmente pensa que eu usaria um pseudônimo tão óbvio se fizesse alguma diferença alguém descobrir?
A dúvida apareceu no rosto dele. Ele se endireitou e ficou bem perto de mim.
- Quer dizer que não se importa se eu publicar sua identidade falsa?
- Barry, não dou a mínima para o que você publica, mas devo avisar que está a menos de sessenta centímetros de mim. - Examinei o saguão. - Na verdade acho que não tem nenhum canto desse saguão que fique a mais de quinze metros de mim. - Virei-me para Galen. - Quer fazer o favor de pedir para a recepcionista chamar a polícia? - Olhei para Jenkins. - Diga que estou sendo importunada.
- Será um prazer - disse Galen.
Ele voltou para o balcão da recepção.
Barinthus e eu continuamos lá, junto com a minha bagagem. Jenkins olhava para mim e para Galen.
- Não vão fazer nada comigo.
- Isso nós vamos ver, não é? - eu disse.
Galen estava falando com a mesma recepcionista que tinha paquerado Barinthus. Será que agora imaginava Galen nu? Ainda bem que eu estava do outro lado do saguão, fora do alcance de algum toque acidental. Talvez essa capacidade de perceber o desejo
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das outras pessoas de vez em quando fosse útil para escolher sacerdotisas e sacerdotes para o templo, mas como eu não tinha templo, era só irritante.
Jenkins olhava fixo para mim.
- Estou muito feliz que tenha voltado para casa, Meredith. Muito, muito contente.
As palavras eram suaves, mas o tom era veneno puro. O ódio que ele sentia por mim era quase palpável.
Ele e eu observamos a recepcionista falar ao telefone. Dois rapazes, um com crachá que dizia "Assistente da Gerência", o outro com crachá que tinha apenas o nome dele, vieram decididos na nossa direção.
- Barry, acho que você está prestes a receber seu bilhete de saída. Aproveite a espera pela polícia.
- Nenhuma ordem judicial vai me manter longe de você, Meredith. Fico com coceira nas mãos quando estou perto de uma história. Quanto maior ela for, mais coçam. Fico a ponto de rasgar a pele de tanto coçar toda vez que estou perto de você, Meredith. Alguma coisa grande vai acontecer e está pairando sobre você.
- Nossa, Barry, quando é que você se tornou profeta?
- Uma tarde, à beira de uma estrada deserta no interior - ele disse.
Jenkins inclinou a cabeça para tão perto que pude sentir o perfume da loção de barba por baixo do cheiro de cigarro.
- Tive o que se pode chamar de epifania, e desde então possuo esse dom.
Os homens do hotel já estavam quase chegando. Jenkins se aproximou tanto de mim que de longe podia parecer um beijo. Ele sussurrou:
- Os deuses primeiro enlouquecem aqueles a quem pretendem destruir.
Os homens agarraram os braços dele e o puxaram para longe de mim. Jenkins não reagiu. Afastou-se sem dizer nada.
- Vão mantê-lo na sala da gerência até a polícia chegar - disse Galen. - Não vão prendê-lo, Merry, você sabe disso.
- É, Missouri ainda não tem leis de assédio.
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Tive uma ideia divertida. Se conseguisse fazer com que Jenkins me seguisse até a Califórnia, as leis seriam outras. Há leis contra perseguição muito rígidas no distrito de Los Angeles. Se Jenkins exagerasse a dose, talvez eu cuidasse para que me seguisse até algum lugar onde tivesse de cumprir pena na cadeia pelo que tinha acabado de fazer. Ele me atacou com um beijo em público... era isso que eu ia alegar... diante de testemunhas imparciais. Com as leis adequadas, seria enquadrado como um cara muito mau.
A porta do elevador se abriu. Ah, ótimo, agora que eu não precisava mais dele. A porta se fechou e ficamos sozinhos numa caixa espelhada. Estávamos os três olhando para os nossos reflexos.
- Jenkins nunca aprende - disse Galen. - Depois do que fez com ele, devia ter medo de você.
Vi minha imagem no espelho demonstrar surpresa, os olhos arregalados. Quando me recuperei, era tarde demais.
- Isso foi um palpite - eu disse.
- Mas um bom palpite - disse Galen.
- O que fez com ele, Meredith? - perguntou Barinthus. - Você conhece as regras.
- Eu conheço as regras - eu disse.
Já ia descer no andar, mas Galen me impediu, com a mão no meu ombro.
- Nós somos os guarda-costas. Deixe um de nós ir na frente.
- Desculpe, perdi o hábito - eu disse.
- Recupere esse hábito, e depressa - disse Barinthus. - Não quero que se machuque por não ter se protegido atrás de nós. É nossa função assumir os riscos para mantê-la em segurança.
Barinthus acertou o botão para manter a porta do elevador aberta.
- Sei disso, Barinthus.
- Mesmo assim, você já ia sair na frente.
Galen espiou com cuidado e depois saiu para o corredor.
- Limpo.
Ele fez uma mesura para mim. A pequena trança caiu sobre o ombro dele e tocou no chão. Lembrei-me de quando o cabelo dele se derramava no chão feito cachoeira verde. Uma parte de
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mim achava que era assim que o cabelo de um homem devia ser. Bastante comprido para arrastar no chão. Bem comprido para cobrir meu corpo como um lençol sedoso quando fazíamos amor. Lamentei quando ele cortou, mas não era da minha conta.
- Levante-se, Galen.
Fui andando pelo corredor com a chave na mão. Galen se levantou, correu dançando pelo corredor para passar a minha frente.
- Ah não, minha senhora. Eu preciso abrir a porta.
- Pare com isso, Galen. Estou falando sério.
Barinthus nos seguiu em silêncio, com a mala na mão, como um pai vendo os filhos crescidos se comportando mal. Não, não, ele nos ignorava, quase da mesma forma como tinha ignorado Jenkins. Olhei para trás e não vi nada naquele rosto pálido. Ele era muito controlado, indecifrável. Houve um tempo em que ele sorria mais, dava mais risada, não houve? Lembrei-me de quando ele me tirou da água com uma grande explosão de riso, o cabelo flutuando em volta dele, como nuvem. Nadei naquela nuvem, enrolei as mechas do cabelo nas minhas mãos minúsculas. Nós demos risada juntos. A primeira vez que nadei no oceano Pacífico pensei em Barinthus. Queria mostrar para ele aquele imenso e novo mar. Até onde sabia, ele nunca tinha visto.
Galen estava esperando na frente da porta. Parei e esperei Barinthus me alcançar.
- Você está muito sério hoje, Barinthus.
Ele olhou para mim com aqueles olhos e piscou a membrana invisível. Nervoso. Barinthus estava nervoso. Será que temia por mim? Tinha ficado satisfeito com o anel e insatisfeito com o feitiço no carro. Mas não insatisfeito demais, não preocupado demais, parecia que era tudo normal. De certa forma era mesmo.
- O que houve, Barinthus? O que foi que não me contou?
- Confie em mim, Meredith.
Peguei a mão dele, envolvi seus dedos nos meus. Minha mão se perdia na dele.
- Eu confio em você, Barinthus.
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Ele segurou minha mão com delicadeza, como se tivesse medo de quebrá-la.
- Meredith, pequena Meredith. - A expressão dele ficou mais suave enquanto falava. - Você sempre foi uma mistura de franqueza, malícia e ternura.
- Não sou mais tão terna como costumava ser, Barinthus.
- O mundo realmente arranca isso de nós, infelizmente - ele concordou.
Barinthus encostou minha mão na boca e deu um leve beijo nos meus dedos. Raspou no anel e provocou uma onda de formigamento em nós dois. Ficou sério de novo, o rosto inexpressivo, e largou minha mão.
- O que é, Barinthus? O que é?
Segurei seu braço, e ele balançou a cabeça.
- Faz muito tempo que esse anel ganhou vida dessa maneira.
- O que tem a ver o anel com alguma coisa? - perguntei.
- Tinha se tornado apenas mais um pedaço de metal e agora vive de novo.
- E daí? - perguntei.
Ele olhou para Galen atrás de mim.
- Vamos instalá-la no quarto. A rainha não gosta de esperar.
Galen pegou a chave da minha mão e destrancou a porta. Verificou se havia feitiços ou perigos escondidos no quarto enquanto Barinthus e eu esperávamos no corredor.
- Explique o que significa esse anel reagir a você e ao Galen, e não à minha avó.
Ele suspirou.
- A rainha usava esse anel para escolher consortes. Ergui a sobrancelha, sem entender.
- O que isso quer dizer?
- Ele reage aos homens que considera dignos de você. Fiquei olhando para ele, analisando aquele rosto bonito e exótico.
- O que significa digno de mim?
- A rainha é a única que conhece todos os poderes do anel. Eu só sei que há séculos esse anel não ganha vida na mão dela.
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O fato de estar vivo para você é bom e perigoso ao mesmo tempo. A rainha poderá ficar com ciúme porque ele é seu agora.
- Foi ela que me deu... por que teria ciúme?
- Porque ela é a Rainha do Ar e da Escuridão.
Ele disse isso como se explicasse tudo. De certa forma explicava, mas de outra, não. Como tanta coisa sobre a nossa rainha, era um paradoxo.
Galen apareceu na porta.
- Tudo limpo.
Barinthus passou por ele e forçou Galen a sair do caminho do homem grande com a mala.
- Qual é o problema dele? - perguntou Galen.
- Acho que é o anel.
Entrei no quarto. Era um quarto típico de hotel, pintado em tons de azul.
Barinthus tinha posto a mala sobre uma das camas com colcha azul-escura.
- Apresse-se, por favor, Meredith. Galen e eu ainda temos de nos vestir para o jantar.
Observei Barinthus no quarto todo azul. Ele combinava com a decoração. Se o quarto fosse verde, combinaria com Galen. Dava para definir o padrão de cores do quarto com os guarda-costas. Dei risada.
- O que foi? - perguntou Barinthus. Apontei para ele.
- Você combina com o quarto.
Ele olhou em volta, para o papel de parede com estampa azul, para as colchas azul-escuras, para o tapete azul-claro, como se ainda não tivesse notado.
- É, combino. Agora, por favor, vista-se.
Ele abriu a mala para enfatizar o pedido, apesar de soar como uma ordem, mesmo no tom em que foi dito.
- Temos um prazo que eu desconheço? - perguntei. Galen sentou na outra cama.
- Concordo com o grandão. A rainha está planejando um evento de boas-vindas para você, e ela não vai gostar de esperar.
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Se não estivermos vestidos com as roupas que ela mandou fazer para nós, ficará zangada.
- Vocês dois terão problemas? - perguntei.
- Se você se apressar, não - disse Galen. Fui para o banheiro com a valise de mão. Tinha posto dentro dela a roupa que ia usar esta noite, para me prevenir se a mala se extraviasse. Não queria ter de sair na última hora para comprar um vestido que atendesse às exigências da minha tia, dentro da moda da corte. Calça comprida não era indumentária apropriada para mulheres num jantar. Isso era sexista, mas verdadeiro. Para um jantar, tínhamos de usar roupas formais, sempre. Se não quiséssemos nos arrumar, que jantássemos no quarto.
Vesti calcinha preta de cetim com renda. O sutiã tinha arame e era de renda. As meias também pretas, até a coxa. O velho conselho humano de que devíamos usar roupa de baixo limpa para o caso de sermos atropeladas por um ônibus se aplicava à Corte Profana, de certa forma. Ali usávamos lingerie bonita porque a rainha podia ver. Na verdade eu gostava de saber que tudo que estava usando era bonito, mesmo as coisas que tocavam na minha pele onde ninguém podia ver.
Apliquei sombra e rímel em tons de cinza e branco. Usei bastante delineador para meus olhos ficarem bem destacados e em relevo exagerado, como esmeraldas e ouro incrustados em ébano. Escolhi um tom de batom bem escuro, cor de vinho.
Eu tinha duas facas dobráveis Spyderco. Abri uma. Era uma lâmina de quinze centímetros de comprimento, longa, estreita, brilhante e prateada, mas era de aço, modelo usado pelos militares. Aço ou ferro era necessário contra meus parentes. A outra faca era bem menor, uma Delica. Cada faca tinha um clipe para prender na roupa. Certifiquei-me de que as duas abriam com facilidade, fechei e pus ambas em seus lugares. A Delica cabia no centro do sutiã, presa ao arame. Prendi a liga elástica preta na perna esquerda, não para segurar a meia, que já tinha elástico, mas para sustentar a faca militar.
Tirei o vestido da mala de mão. Era vinho bem escuro. As alças eram exatamente da largura das alças do sutiã. O corpo era
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de cetim, justo e bem torneado. O resto do vestido era de um tecido mais leve, mais natural, e caía em linha reta e justa até o chão. O blazer era feito com o mesmo tecido vinho e tinha lapelas de cetim.
Eu tinha também um coldre de tornozelo completo, com uma Beretta Tomcat, a mais nova pistola automática calibre 32. A coisa pesava quase meio quilo. Havia armas menores por aí, mas se eu tivesse de atirar em alguém naquela noite, queria mais do que uma 22 para me proteger. O verdadeiro problema do coldre de tornozelo era que nos fazia andar esquisito. Há uma tendência de arrastar o pé que está com a arma, de abrir o passo com um movimento pouco natural. E o pior era que eu estava usando meias de seda, então as chances de não puxar um fio no coldre eram praticamente nulas. Mas era o único lugar que eu podia imaginar para esconder uma arma que não ficasse óbvia só de olhar para mim. Sacrificaria a meia para levar a arma.
Andei de um lado para outro com o sapato vinho de salto alto. Era um salto de apenas cinco centímetros. Dava mais agilidade, e com uma saia comprida como aquela a maioria das pessoas nem ia notar se meus saltos eram altos ou baixos. Tinha mandado fazer a bainha do vestido na loja para ficar na altura do sapato. Com um metro e meio de altura não dá para comprar um longo e usar salto cinco sem ter de fazer a bainha do vestido.
Acrescentei as jóias por último. O colar era antigo, de metal escurecido até ficar quase preto, com apenas uns toques escondidos da cor verdadeira da prata. As pedras eram granadas. Não tinha limpado o metal de propósito, para ficar bem escuro. Achei que destacava bem as granadas.
Tinha me dado ao trabalho de enrolar as pontas do cabelo para ficar na altura dos ombros. Era de um brilho vermelho tão escuro que combinava com a cor das pedras. O vestido vinho realçava a luminosidade também vinho do meu cabelo.
Minha tia talvez permitisse que eu ficasse com as minhas armas, talvez não. Eu não devia ser desafiada para um duelo na minha Primeira noite da volta para casa por pedido especial da rainha, mas... era sempre melhor estar armada. Há coisas na corte que
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não são da realeza e que não duelam. São as coisas que sempre fizeram parte da Hoste, os monstros da nossa raça, da nossa espécie, que não raciocinam como nós. As vezes, sem motivo nenhum, sem que ninguém possa explicar, um dos monstros resolve atacar. Pode haver mortes até que isso seja controlado.
Então por que conviver com tais horrores instáveis? Porque a única lei que sempre funcionou na Corte Profana é que todos são bem-vindos. Ninguém, nada, pode ser rejeitado. Nós somos o depósito escuro dos pesadelos. Perversos demais, pervertidos demais, para a luz da Corte Abençoada. É assim, sempre foi e assim será sempre assim. Mas ser aceito pela corte não significa que se é aceito como um dos encantados. Sholto e eu podemos confirmar isso.
Olhei-me no espelho mais uma vez, acertei a linha do batom e pronto. Guardei o batom na pequena carteira de contas que combinava com o vestido. O que a rainha queria de mim? Por que tinha insistido que eu voltasse para casa? Por que agora? Dei um longo suspiro, vi o cetim sobre os seios subir e descer. Tudo em mim brilhava, a pele, os olhos, o cabelo, a luz profunda das granadas no pescoço. Eu estava linda. Até eu mesma tinha de admitir. A única coisa que indicava que eu não era encantada pura era a altura. Era baixa demais para ser um deles.
Pus um pequeno pincel junto com o batom na carteira e depois tive de resolver se ia levar mais maquiagem para dar uns retoques durante a noite, ou um aerosol pequeno de gás lacrimogêneo. Escolhi a lata. Quando se tem de optar entre mais maquiagem ou mais armas, sempre escolha as armas. O simples fato de estar avaliando essas duas coisas prova que vai precisar mais das armas.
U SlTHlN, os montes das fadas, se destacavam no pôr do sol, pequenas elevações aveludadas contra o céu laranja. A lua já ia alta, prateada, brilhante. Respirei profundamente o ar fresco e
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revigorante, várias vezes. Na Califórnia, às vezes, acordávamos de manhã e o clima parecia de outono. Precisava usar calça comprida e um suéter leve antes do meio-dia. Algumas folhas caíam das árvores, sem obedecer a padrão nenhum, e formavam pequenos montes marrons e secos que em certas manhãs dançavam levadas pelo vento que parecia de outubro. Então, ao meio-dia, eu tinha de trocar de roupa, vestir um short, e a sensação era de estar no mês de junho.
Mas aquilo era real. O ar era fresco, mas não muito frio. O vento que soprava nas nossas costas cheirava a milharais secos e tinha o perfume limpo de folhas mortas.
Se eu pudesse voltar para casa em outubro e ver apenas as pessoas que queria ver, ficaria feliz. O outono era a minha estação preferida, outubro o meu mês preferido.
Parei na trilha, e os homens pararam comigo. Barinthus olhou para mim com as sobrancelhas arqueadas.
- O que aconteceu? - perguntou Galen.
- Nada - eu disse - absolutamente nada. Respirei fundo de novo aquele ar outonal.
- O ar nunca tem esse cheiro na Califórnia.
- Você sempre adorou o mês de outubro - disse Barinthus. Galen sorriu de orelha a orelha.
- Levei você e Keelin para pedir doces no Dia das Bruxas quase todos os anos até você ficar crescida demais para isso.
Balancei a cabeça.
- Não fiquei crescida demais. O meu glamour simplesmente ficou bastante forte para esconder quem eu era. Keelin e eu íamos sozinhas quando eu tinha quinze anos.
- Você tinha glamour suficiente aos quinze anos para esconder Keelin da vista dos mortais? - perguntou Barinthus.
- Tinha.
Ele abriu a boca para falar, mas fomos interrompidos. Uma suave voz masculina disse:
- Ora, isso não é comovente?
A voz rodopiou em volta de nós e foi para um ponto mais adiante no caminho. Galen se pôs na minha frente, protegeu-me
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com o escudo do seu corpo. Barinthus vasculhava a área atrás de nós à procura de outros. A escuridão quase completa na retaguarda não tinha ninguém, mas o que estava à nossa frente bastava.
Era meu primo Cel, parado no meio do caminho. O cabelo cor de meia-noite era como uma longa capa, por isso não dava para determinar onde terminava o cabelo, e começava o casaco preto. Ele estava todo de preto, a não ser pela camisa branca, estrela que faiscava no meio da escuridão.
Ele não estava sozinho. Ao lado, pronto para ficar na frente dele se fosse necessário, estava Siobahn, a capitã da guarda e sua assassina favorita. Ela era pequena, pouco mais alta do que eu, mas eu a tinha visto levantar um Volkswagen e esmagar alguém com ele. O cabelo dela brilhava todo branco no escuro, mas eu sabia que era branco e prata, como teias de aranha. A pele era branca e fosca, não tinha o brilho da minha, ou da pele de Cel. Os olhos eram cinzentos, com uma película por cima como os de um peixe morto. Usava uma armadura preta e segurava o elmo embaixo do braço. O fato de Siobahn envergar armadura completa era um mau sinal.
- Armadura completa, Siobahn - disse Galen. - Qual é o evento?
- A preparação é tudo na batalha, Galen. - A voz dela combinava com todo o resto, um sibilo seco e murmurante.
- Estamos prestes a entrar em combate? - perguntou Galen. Cel deu risada, e foi a mesma risada que colaborou para tornar minha infância um inferno.
- Nada de batalha esta noite, Galen, é apenas paranóia de Siobahn. Ela temia que Meredith tivesse adquirido poderes na sua jornada pelas terras do oeste. Vejo que os temores de Siobahn eram infundados.
Barinthus pôs as mãos no meu ombro e me puxou para junto dele.
- O que está fazendo aqui, Cel? A rainha ordenou que levássemos Meredith à presença dela.
Cel deslizou pelo caminho, puxando uma pequena figura encolhida a seus pés por uma coleira. A figura estava escondida atrás
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do casaco longo de Cel e do corpo de Siobahn. Logo de início não vi quem era.
A figura se desenrolou no chão, ficou agachada, e a cabeça não passava da parte de baixo do peito de Cel. Tinha a pele escura como a de minha avó, mas o cabelo era grosso e caía em mechas lisas e castanhas até os tornozelos. No escuro ela parecia humana, ou quase isso, mas eu sabia que com luz daria para ver que a pele dela era coberta por uma camada de pelagem macia. O rosto era plano e sem nenhum traço marcante, como algo inacabado. O corpo magro e delicado tinha alguns braços extras e um segundo par de pernas, de modo que seus movimentos eram estranhos, oscilantes. A roupa podia esconder os apêndices extraordinários, mas não o movimento do seu andar.
O pai de Keelin era um durig, um duende com senso de humor muito sinistro. Aquele tipo de humor capaz de matar um humano. A mãe dela era uma fadinha. Keelin foi escolhida para ser minha companheira praticamente desde quando eu nasci. Foi escolha do meu pai, e nunca tive motivo para reclamar. Fomos as melhores amigas desde pequenas. Talvez por causa do sangue de fada que nós duas tínhamos. Mas o que quer que tenha provocado a simpatia, nossa amizade foi instantânea. E ficamos amigas desde a primeira vez que vi aqueles olhos castanhos.
Fiquei muda quando percebi que era Keelin que Cel puxava na coleira. Havia duas maneiras de acabar virando "animal de estimação" de Cel. Uma era ser castigada pela rainha e presenteada a Cel. A outra era ser voluntária. Sempre me espantou o fato de muitas mulheres encantadas com menos influência permitirem que Cel abusasse delas da forma mais abjeta possível, porque se engravidassem dele seriam membros da corte. Como a minha avó.
Só que minha avó teria enfiado uma lança de ferro no coração do meu avô, se ele ameaçasse tratá-la como um cão maltratado.
Afastei-me de Barinthus até ele tirar as mãos do meu ombro e fiquei sozinha no caminho. Galen e Barinthus ficaram atrás de mim, um de cada lado, como bons guardas reais.
- Keelin - eu disse - o que está fazendo... aqui?
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Não era exatamente o que eu queria perguntar. Minha voz soou calma, moderada, normal. O que eu queria era gritar... berrar.
Cel a puxou para perto, alisou seu cabelo, apertou o rosto dela contra o peito. A mão dele desceu até o ombro, foi descendo, descendo, até segurar e acariciar um dos seios.
Keelin virou a cabeça de forma que o cabelo escondesse seu rosto de mim. O sol estava quase desaparecendo, a escuridão da noite chegaria em minutos. Ela era apenas uma sombra mais sólida contra a negritude de Cel.
- Keelin, Keelin, fale comigo.
- Ela quer fazer parte da corte - disse Cel. - O prazer que tenho com ela faz com que participe de todas as festividades.
Ele a puxou para mais perto ainda, e sua mão desapareceu no decote redondo do vestido de Keelin.
- Se ela engravidar, será uma princesa e o bebê herdeiro do trono. O filho dela poderia empurrá-la para o quarto lugar na fila do trono, em vez de terceiro - ele disse com voz suave e controlada, com a mão cada vez mais fundo no decote.
Dei um passo para frente, com a mão estendida.
- Keelin...
- Merry - ela disse e olhou para mim um segundo, com a mesma voz baixa e suave que sempre teve.
- Não, não, meu bichinho - disse Cel. - Não fale. Eu falarei por nós.
Keelin se calou e escondeu o rosto de novo.
Eu fiquei ali parada, e até Barinthus encostar no meu ombro e me fazer pular, não percebi que estava com os punhos cerrados. Tremia toda, mas não era de medo, era de raiva.
- A rainha deu uma ordem para nenhum de nós contar isso para você, Merry. Eu devia ter avisado mesmo assim - disse Galen aproximando-se pelo outro lado.
Parecia que os dois achavam que teriam de me segurar para evitar que eu fizesse alguma tolice. Mas eu não seria tola, era isso que Cel queria. Ele estava ali para exibir Keelin, para me enfurecer, com Siobahn preparada para me matar. Tenho certeza de que ele ia inventar alguma história, que eu o ataquei, e a guarda teve
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Que defendê-lo. A rainha tinha acreditado em histórias mais inverossímeis do que essa nos últimos anos. Ele tinha todos os motivos para se sentir seguro em relação à rainha. Eu podia ficar calma porque não havia nada a fazer aqui e agora, a não ser morrer. Podia até enfrentar Cel. Ele era uma das poucas pessoas em quem eu podia usar a mão da carne e não perder o sono por isso. Mas Siobahn era outra história. Ela me mataria.
- Há quanto tempo Keelin está com ele? - perguntei. Cel já ia responder, mas levantei a mão.
- Não, não fale, primo. Fiz a pergunta para Galen.
Cel sorriu, um lampejo branco na noite enluarada. E estranhamente, ficou calado. Não esperava isso dele, mas também sabia que se tivesse de ouvir mais uma vez a voz dele, ia começar a berrar só para abafá-la.
- Responda, Galen.
- Praticamente desde que você foi embora.
Meu peito ficou apertado, meus olhos arderam. Aquele era o meu castigo. A minha punição por ter fugido da corte. Não disse para Keelin que ia partir, mas apesar de ela ser inocente, eles a machucavam para me machucar. Cel a mantinha presa havia quase três anos, aguardando a minha volta. Sem dúvida ele se divertia e se tivesse um filho, melhor ainda. Mas não foi o desejo de ter filhos que motivou a escolha de Keelin. Olhei para a expressão sonsa de Cel e mesmo ao luar consegui decifrar aquele rosto. Ela foi escolhida como vingança, para me castigar. E eu estava a milhares de quilômetros de distância, sem saber de nada.
Cel e minha tia esperaram com toda a paciência para me mostrar a surpresa deles. Três anos torturando Keelin, e ninguém me contou. Minha tia me conhecia melhor do que eu pensava, porque saber que Keelin tinha sofrido o tempo todo que estive fora ia me devorar por dentro. E se ela oferecesse a liberdade de Keelin como prêmio por fazer o que ela queria que eu fizesse, talvez conseguisse. Eu precisava conversar com Keelin a sós.
Por mais que odiasse Cel, essa era uma das poucas formas de Keelin entrar na corte. Tinha sido uma das minhas aias, minha companheira. Mas sendo minha amiga e serva, ela pôde ver as
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entranhas da corte. Eu sabia que desejava demais ser aceita naquele séquito, talvez um desejo tão grande que bastasse para suportar Cel e que ela podia não gostar se eu acabasse com aquilo. Só por que eu encarava a libertação como um salvamento não significava que ela também visse dessa maneira. Antes de saber exatamente o que ela sentia, eu não podia fazer nada.
A mão de Cel finalmente reapareceu. Ficou mais fácil olhar para eles com aquela mão no ombro de Keelin e não enfiada no vestido dela.
- A rainha quer que eu acompanhe minha bela prima para seus aposentos particulares. Vocês dois têm encontro marcado na sala do trono.
- Eu sei muito bem o que tenho de fazer - disse Barinthus.
- Como podemos saber que você não vai fazer algum mal a ela? - perguntou Galen.
- Eu? Fazer mal à minha bela prima? - Cel deu aquela risada outra vez.
- Não vamos sair daqui. Barinthus disse isso com a voz muito baixa e firme. Era preciso conhecer bem a voz dele para saber que o tom era de raiva.
- Você também teme que eu faça algum mal a ela, Barinthus?
- Não - disse Barinthus. - Temo que ela faça mal a você, Príncipe Cel. A vida do único herdeiro significa muito para a nossa rainha.
Cel deu uma gargalhada demorada e barulhenta. Riu até ficar com os olhos marejados de lágrimas, ou então apenas fingiu secá-las.
- Quer dizer então, Barinthus, que você tem medo de que ela tente me atacar, e que eu a ponha no seu devido lugar.
Barinthus inclinou a cabeça para perto da minha e sussurrou:
- Você não pode parecer fraca diante de Cel. Eu não esperava que ele viesse nos encontrar. É uma jogada ousada. Se você adquiriu poderes nas terras do oeste, mostre agora, Meredith.
Virei de frente para ele. Barinthus estava tão perto que o cabelo dele roçou o meu rosto, com cheiro de mar, ervas e limpeza. Sussurrei de volta para ele:
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- Se exibir meus poderes para ele agora, perderei o elemento surpresa mais tarde.
A voz dele era o murmúrio suave da água nas pedras. Ele usava seu poder para garantir discretamente que Cel não ouvisse o que dizíamos.
- Se Cel insistir para sairmos daqui e tivermos de recusar outra vez, vai ficar muito ruim para nós.
- Desde quando a Guarda da Rainha contraria o filho dela? - perguntei.
- Desde que a rainha decretou. Cel interrompeu:
- Ordeno que você, Barinthus, e você, Galen, atendam ao seu compromisso, pois já estão atrasados. Nós levaremos minha prima à presença da rainha.
- Faça com que ele fique com medo de você, Meredith - disse Barinthus. - Faça com que ele queira a nossa presença aqui. Cel teria acesso ao anel da mãe.
Não me dei ao trabalho de perguntar se Barinthus realmente pensava que Cel tinha tentado me matar no carro. Se ele não achasse que era possível, não teria dito aquilo.
- Dei uma ordem direta para vocês dois - disse Cel.
Ele disse isso mais alto, e suas palavras cavalgaram o vento que ficou mais forte.
O vento ganhou velocidade, agitou os casacos compridos dos homens, murmurou nas folhas secas das árvores na vertente do campo à nossa esquerda. Virei para o murmúrio das árvores. Quase pude entender o vento e as árvores, quase ouvi o suspiro delas anunciando a chegada do frio e do longo inverno que tínhamos pela frente. O vento ganhou força e pressa e espalhou as folhas recém-caídas pelo caminho de pedra, passou por Cel e suas mulheres e pelos meus pés e pernas. O vento levantou as folhas num rodamoinho e as fez parecer pequenas mãos brincando nas minhas pernas. As folhas subiram e passaram por nós numa lufada do vento doce de outono. Fechei os olhos e respirei aquele vento.
Afastei-me dos homens que ficaram às minhas costas, dei alguns passos na direção de Cel, mas não era dele que me aproximava.
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Era do chamado da terra. A terra estava contente porque eu tinha voltado, e, como nunca tinha feito antes, o poder daquela terra me recebia feliz.
Abri os braços e me abri para a noite. Senti o vento soprar não contra o meu corpo, mas através dele, como se eu fosse uma árvore, não um obstáculo para o vento, mas parte dele. Senti o movimento da noite, o burburinho, a pressa, o pulsar de tudo. Sob meus pés o solo chegava a profundezas inimagináveis, e eu podia sentir todos eles, e por um momento tive a sensação de que o mundo girava embaixo de mim. Senti aquele giro lento e pesado em volta do sol. Fiquei com os pés plantados solidamente como raízes de árvore que desciam e desciam até a terra viva e fresca. Mas era só isso que estava sólido em mim. O vento me atravessava como se eu não estivesse ali, e eu sabia que podia me enrolar na noite e passear invisível entre os mortais. Só que não estava diante de mortais.
Abri os olhos e sorri. A raiva, a confusão, tudo tinha sumido, levado embora pelo vento que cheirava a folhas secas e a algo mais pungente, como se eu pudesse farejar no vento coisas que não eram lembranças completas, eram partes de sonhos. A noite era desregrada e oferecia mágica fantástica se tivéssemos essa compreensão. A magia da terra pode ser arrancada do mundo por alguém com poder suficiente para isso, mas a Terra é muito teimosa e não gosta de ser usada. Sempre pagamos quando usamos força contra os elementos. Mas em algumas noites, até alguns dias, a Terra se oferece como uma mulher desejando um amante em seus braços.
Aceitei o convite. Desfiz as barreiras e senti o vento soprar pequenas partes de mim feito poeira na noite, mas para cada parte que saía outras chegavam. Eu me entreguei para a noite, e a noite me preencheu, a terra sob meus pés me acolheu, deslizou pelas solas dos pés e subiu como a seiva da árvore, profunda, silenciosa e fresca.
Por um momento não tive certeza se queria mexer os pés e andar, com medo de interromper aquele contato. O vento rodopiou em volta de mim, jogou meu cabelo no rosto, trouxe o aroma de folhas queimadas, e eu dei risada. Caminhei pela trilha de
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pedras e cada vez que batia os calcanhares a Terra se movia comigo. Andei pela noite como se nadasse, nadando nas correntezas do poder. Fui andando até meu primo, sorrindo.
Siobahn se pôs na frente dele. O cabelo de teias de aranha desapareceu sob o negro total do elmo. Só apareciam mechas brancas, fantasmas flutuando no escuro. Ela era capaz de ferir ou matar só com um toque daquela pele pálida.
Barinthus veio para perto. Sem ver eu sabia que ele se aproximava e que ia tocar em mim. Senti o movimento dele através do poder às minhas costas. Dava quase para vê-lo parado ali atrás, como se eu tivesse outros olhos. Toda a mágica que eu possuía era sempre muito pessoal. Mas aquilo não era pessoal. Eu percebi como era minúscula, como o mundo era vasto, mas não foi uma sensação de solidão. Naquele momento me senti acolhida, inteira. Querida.
Barinthus abaixou a mão sem encostar em mim. A voz dele gorgolejou e escorreu como água na areia.
- Se soubesse que era capaz de fazer isso, não teria temido pela sua segurança.
Dei risada, um som alegre e livre. Eu me abri mais ainda, como porta escancarada. Não, era como se a porta, a parede que a sustentava e a casa inteira estivessem dentro do poder, fundidas naquele poder.
Barinthus prendeu a respiração espantado.
- Pela graça da Terra, o que foi que você fez, Merry? Ele nunca usava meu apelido.
- Estou compartilhando - sussurrei.
Galen se juntou a nós, o poder se abriu para ele sem que eu pensasse em nada. Ficamos os três ali, preenchidos pela noite. Era um poder generoso, uma presença risonha e acolhedora.
O poder saía de mim, ou talvez eu tivesse entrado em algo que sempre esteve ali, mas esta noite dava para sentir. Siobahn se adiantou, e o poder não a preencheu. O poder a rejeitou. A mágica de Siobahn era um insulto para a Terra e para aquele lento ciclo da vida, porque Siobahn roubava a vida, impunha a morte precoce Para alguém ou alguma coisa. Pela primeira vez compreendi que
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Siobahn estava, de certa forma, fora do ciclo, que ela era um objeto da morte que ainda se movia como se vivesse, mas que a Terra não a reconhecia.
O poder teria recebido Cel, mas ele achou que aquela primeira sensação era obra minha e se protegeu dela. Senti quando armou seus escudos e ficou atrás dos muros metafísicos, a salvo e incapaz de compartilhar a abundância oferecida e participar dela.
Mas Keelin não se fechou. Talvez não tivesse tanta proteção para erguer seus muros, ou quem sabe não desejava isso. Mas eu a senti dentro do poder, senti quando se abriu para ele e ouvi a voz dela escapar num suspiro que se misturou ao vento.
Keelin andou até esticar a correia da coleira até o fim e levantou seus quatro braços para a recepção da noite.
Cel puxou-a para trás com um tranco na tira de couro. Ela tropeçou, e eu senti seu espírito desmoronar.
Estendi a mão para ela, e o poder, apesar de não estar sob o meu controle, jorrou de mim para rodear Keelin. Ele empurrou Cel como a água empurra uma pedra no meio de um riacho, para ser contornada e ignorada. O empurrão fez Cel cambalear para trás, e a tira de couro caiu da mão dele. Ele levantou o rosto pálido para a lua nascente e exibiu uma expressão do mais puro horror naquele belo semblante.
A visão me agradou e foi um prazer medíocre. O fluxo generoso de poder curvou-se em volta de mim como a mão da mãe beliscando o braço de uma filha malvada. Não havia lugar para a mediocridade em meio a tanta... vida.
Keelin se levantou no centro do caminho, de braços abertos, a cabeça jogada para trás, de modo que o luar iluminava em cheio seu rosto inacabado. Foi um momento raro e valioso para Keelin se dispor a mostrar seu rosto abertamente sob qualquer luz.
Siobahn avançou para mim num clarão de mãos brancas e de brilho escuro da armadura. Reagi sem pensar, levantei a mão para frente como se aquele imenso e lento poder pudesse responder ao meu gesto. E respondeu.
Siobahn parou, bateu em um muro invisível. Suas mãos brancas brilharam com chamas claras que não eram fogo nenhum. O poder
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dela se incendiou contra algo que nem eu podia ver. Mas senti a frieza dela tentando devorar a noite quente e móvel, e ela não tinha poder nenhum ali. Se estivesse entre os verdadeiramente vivos, se seu toque provocasse a morte natural, a Terra não a teria rejeitado. O poder era mais neutro do que isso. Ele gostava de mim de certa forma, estava me recebendo de volta com prazer, mas ia receber bem também meu corpo decadente em seu abraço caloroso e cheio de vermes com a mesma disposição. Levaria meu espírito no vento para algum outro lugar.
Mas a magia de Siobahn não era natural, e ela não podia passar. Até compreender isso talvez fosse a minha senha para destruí-la. Mas precisaria de uma pessoa mais adepta de feitiços ofensivos do que eu para destrinchar essa senha.
Notei um movimento fora do nosso pequeno grupo. Cel e Siobahn viraram para ver essa mais recente ameaça e, quando viram que era Doyle, não baixaram a guarda. O príncipe e herdeiro do trono negro e sua guarda pessoal tinham medo da Escuridão da rainha. Isso era interessante. Fazia três anos que Cel não temia Doyle. Não tinha medo de ninguém, exceto da mãe. E mesmo dela ele não temia a morte, porque era tudo que ela tinha para passar seu sangue adiante. Seu único filho. Único herdeiro. Ninguém desafiava Cel para um duelo, jamais, porque ninguém ousava vencer, e perder podia significar a própria morte. Ele passara os três últimos séculos intocado, sem desafiantes, sem medo, até agora.
E nesse momento eu via, quase sentia, o mal-estar de Cel. Ele estava com medo. Por quê?
Doyle estava todo de preto, usava uma capa com capuz que chegava até os tornozelos e o cobria inteiro. O rosto era tão escuro que o branco dos olhos parecia flutuar no círculo negro do capuz.
- O que está acontecendo aqui, Príncipe Cel?
Cel saiu do caminho para poder manter Doyle e o resto de nós à vista. Siobahn foi com ele. Keelin permaneceu no caminho, mas o poder estava se retirando, com o vento que passava por nós, Para ir a outro lugar. Fez uma última carícia fresca e cheia de perfumes, depois partiu.
De repente, eu fiquei novamente sólida dentro da minha pele. Havia um preço a pagar por toda magia, mas para essa, não. Ela
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se ofereceu para mim. Eu não pedi. Talvez por isso me sentia forte e inteira, não exausta.
Keelin veio andando pelo caminho, com as mãos estendidas em minha direção. Devia estar se sentindo revigorada como eu, porque ela sorria, e aquele medo horrível tinha sumido, levado embora pelo doce vento.
Segurei as mãos dela. Beijamo-nos duas vezes, um beijo em cada face, depois a puxei, e ela me abraçou com os braços maiores de cima nos ombros, com os menores de baixo na cintura. Foi um abraço tão apertado que cheguei a sentir a pressão dos pequenos seios dela, os quatro. E não pude deixar de pensar: será que Cel havia gostado de estar com alguém que tinha tantos seios? Uma imagem surgiu logo depois desse pensamento. Apertei os olhos com força como se assim pudesse me livrar dessa imagem.
Passei a mão nas costas dela, nos pelos que pareciam pele de animal, e percebi que já estava chorando.
A voz doce de passarinho de Keelin me consolava.
- Está tudo bem, Merry. Está tudo bem. Balancei a cabeça e me afastei um pouco para poder ver o rosto dela.
- Não está tudo bem. Ela tocou no meu rosto e pegou minhas lágrimas nas pontas dos dedos. Ela não chorava. Algum problema genético a deixou sem canais lacrimais.
- Você sempre chorou minhas lágrimas por mim, mas não chore agora.
- Como posso não chorar?
Virei para trás e vi Cel cochichando com Doyle. Siobahn olhava para mim, sem piscar. Senti seu olhar morto através do elmo que estava usando, mesmo sem ver seus olhos. Ela não ia esquecer que eu tinha usado mágica contra ela e vencido, ou melhor, eu não tinha perdido. Não esqueceria nem perdoaria.
Mas esse era problema para outra noite. Virei de novo para Keelin. Um desastre de cada vez, por favor. Pus as mãos na coleira de couro duro no pescoço dela.
Ela me segurou pelos pulsos.
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- O que está fazendo, Merry?
- Vou tirar isso de você.
Ela puxou minhas mãos para baixo, gentilmente.
- Não.
Balancei a cabeça.
- Como pode... Como pôde?
- Não vá chorar de novo - disse Keelin. - Você sabe por que fiz isso. Tenho apenas mais algumas semanas, só até Samhain. Três anos completos. Se não estiver grávida, estarei livre dele. Se estiver, ele terá de me tratar como se trata uma esposa, ou não tocar em mim de jeito nenhum.
Ela estava tão calma com tudo isso, uma calma tão terrível e concreta, como se fosse muito... comum.
- Não entendo isso - eu disse.
- Eu sei. Mas você sempre teve sangue real, Merry.
Com uma mão livre ela encostou o dedo nos meus lábios antes de eu começar a protestar e continuou segurando minhas mãos.
- Sei que você tem sido tratada como uma prima pobre, Merry, mas você é parte deles. O sangue deles corre nas suas veias e eles... - Ela abaixou a cabeça, tirou o dedo da minha boca mas continuou segurando minhas mãos com mais força ainda. - Você é membro desse clube, Merry. Está dentro da casa grande, e nós ficamos aqui fora no frio, sob a neve, com a cara amassada no vidro da janela.
Não quis mais olhar para aqueles suaves olhos castanhos.
- Você está usando a minha metáfora contra mim. Ela tocou meu rosto com a mão dominante.
- Ouvi muito você falar isso quando éramos pequenas.
- Se eu tivesse pedido, você viria comigo?
Ela sorriu, mas mesmo com a pouca luz do luar, vi que era um sorriso amargo.
- Você não poderia usar seu glamour para me proteger, a menos que ficasse ao meu lado todas as horas do dia ou da noite. - Ela balançou a cabeça. - Sou horrenda demais para os olhos humanos.
- Você não é...
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Ela me fez calar só com um olhar.
- Sou como você, Merry. Não sou durig, nem fada.
- E Kurag? Ele gostava de você. Ela abaixou a cabeça.
- É verdade que entre certos tipos de duendes sou considerada atraente. Ter mais braços e pernas, especialmente mais seios, é sinal de grande beleza entre eles.
Eu sorri.
- Lembro aquele ano em que você me levou ao Baile dos Duendes. Eles me achavam feia.
Keelin sorriu também, mas fez que não com a cabeça.
- Só que todos eles quiseram dançar com você, feia ou não. - Ela fitou meus olhos. - Todos queriam tocar na pele de uma princesa de sangue nobre, porque sabiam que, tirando o estupro, era o mais perto que chegariam da doçura do seu corpo.
Eu não sabia como reagir à amargura que havia na voz dela.
- Não é culpa sua ser como você é, nem eu ser como sou. Não é culpa de ninguém. Somos o que somos. Através de você eu vi a corte e toda a multidão cintilante. Não podia voltar para Kurag e seus duendes depois da vida que você mostrou para mim. Eu me satisfaria de ficar de pé atrás da sua cadeira nos banquetes o resto da vida, mas perder tudo aquilo de repente... - Ela largou minhas mãos e se afastou. - Não pude suportar perder tudo quando você partiu.
Ela deu risada, a risada de um passarinho, mas agora era zombeteira, e ouvi o eco do riso de Cel.
- Além do mais, Cel gosta de uma mulher com quatro seios e diz que jamais foi para a cama com alguém que cruzasse quatro pernas em volta do seu corpo branco.
Keelin soluçou baixinho, e percebi que estava chorando. O simples fato de não possuir lágrimas não significava que ela não chorava.
Ela voltou para Cel. Eu deixei. Keelin me culpava por ter mostrado a lua que ela não podia ter. Talvez tivesse razão. Eu podia ter feito isso, mas não foi minha intenção. Claro que mesmo sem intenção a mágoa não diminuía.
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Respirei fundo algumas vezes o ar de outono e tentei não chorar de novo. O ar continuava doce como antes, mas já não era mais tão prazeroso.
- Sinto muito, Meredith - disse Barinthus.
- Não sinta por mim, Barinthus, porque não sou eu que estou presa à coleira de Cel.
Galen pôs a mão no meu ombro e ia me abraçar, mas eu o afastei com o braço.
- Não, por favor. Se você me consolar eu vou chorar. Ele deu um breve sorriso.
- Vou procurar me lembrar disso no futuro.
Doyle se aproximou de nós com seu andar macio. Tinha posto o capuz para trás, mas era quase impossível saber onde terminava o cabelo preto e onde começava a capa preta. O que eu podia ver era que a parte da frente do cabelo estava enrolada num pequeno coque no centro da cabeça, deixando as exóticas orelhas pontudas à mostra. Os brincos de prata brilhavam ao luar. Ele estava usando um par com argolas maiores, que batiam umas nas outras quando se mexia, e tilintavam um pouco. Já parado na nossa frente eu vi que tinha também penas compridas nas orelhas, que chegavam até os ombros.
- Barinthus, Galen, creio que receberam ordens do nosso príncipe.
Barinthus avançou e se avolumou diante do homem mais baixo. Se Doyle se intimidou com a presença física dominante do outro, não demonstrou.
- O Príncipe Cel disse que ia acompanhar Meredith até a presença da rainha. Achei que não era uma boa ideia.
Doyle balançou a cabeça.
- Sou eu que vou levar Meredith para ver a rainha.
Ele olhou para mim. No escuro era difícil saber, mas imagino que tenha dado aquele pequeno sorriso dele.
- Acho que nosso nobre príncipe já teve mais que sua dose da prima por hoje. Eu não sabia que você podia invocar a Terra.
- Não invoquei nada, ela se ofereceu para mim - eu disse. Doyle respirou fundo e soltou o ar ruidosamente.
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- Ah, isso é diferente. De certa forma não tão poderoso como tirar a Terra do seu curso. De certa forma mais inquietante, porque a terra lhe deu as boas-vindas na volta para casa. Ela a reconheceu. Interessante.
Doyle virou para Barinthus outra vez.
- Acho que vocês dois estão sendo aguardados em outro lugar. Ele disse isso em voz muito baixa, mas por trás das palavras comuns havia algo misterioso e ameaçador. Doyle sempre foi capaz de controlar seus homens com a voz, incutindo nas palavras mais simples as piores ameaças.
- Tenho a sua palavra de que nada de ruim acontecerá com ela? - perguntou Barinthus.
Galen foi ficar ao lado de Barinthus. Ele encostou no braço do companheiro. Pedir tal coisa era praticamente igual a questionar ordens. Podia ser esfolado vivo por isso.
- Barinthus - disse Galen.
- Dou-lhes a minha palavra de que ela chegará ilesa até a presença da rainha.
- Não foi isso que eu pedi - disse Barinthus.
Doyle chegou tão perto de Barinthus que sua capa encostou no casaco dele.
- Cuidado, deus do mar, para não pedir mais do que deve.
- Você quis dizer que teme pela segurança dela nas mãos da rainha, assim como eu - disse Barinthus, em tom neutro.
Doyle levantou a mão, rodeada pelo fogo verde. Eu já estava indo me juntar a eles sem conseguir pensar em nada de bom para dizer.
Barinthus continuou concentrado em Doyle e naquela mão incendiada, mas Doyle me viu chegando com passos largos. Galen ficou ao lado dos dois, obviamente sem saber o que fazer. Estendeu a mão para mim, acho que para me fazer parar onde estava.
- Deixe-me passar, Galen. Não estou planejando fazer nenhuma besteira.
Ele hesitou, depois recuou e deixou que eu encarasse os outros dois. O fogo na mão de Doyle pintava os dois com tons claros de verde amarelado. Os olhos de Doyle não refletiam o fogo exatamente,
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pareciam mais arder em sintonia com ele. Assim de tão perto pude sentir o poder dele como uma marcha de insetos na minha pele, mas senti também o poder de Barinthus, como o mar investindo na praia. Balancei a cabeça.
- Parem com isso, vocês dois.
- O que disse? - perguntou Doyle.
Empurrei Barinthus para trás com tanta força que ele tropeçou. Eu talvez não conseguisse erguer carros pequenos e esmagar pessoas com eles, mas era capaz de abrir um rombo na porta de um com um soco, sem quebrar a mão. Fui empurrando Barinthus sem parar, até a distância ser suficiente para aplacar o meu medo de que os dois saíssem no tapa.
- Vocês receberam ordens do herdeiro real e também do capitão da sua guarda. Obedeçam às suas ordens e vão embora. Doyle deu sua palavra de que chegarei sã e salva à presença da rainha.
Barinthus olhou para mim com expressão neutra, mas seus olhos diziam outra coisa. Doyle sempre foi um dos obstáculos entre a rainha e a morte. Por um momento imaginei se Barinthus procurava uma desculpa para testar a Escuridão da rainha. Se era isso, eu não ia deixar. Matar Doyle seria o início de uma revolução. Olhei bem para o rosto de Barinthus e tentei entender o que ele estava pensando. Seriam as boas-vindas que recebi da terra? Ou haveria alguma tensão nova entre Doyle e ele, que ninguém tinha me contado? Mas não importava.
- Não - eu disse, olho no olho, e repeti: - Não. Barinthus olhou para Doyle por cima de mim.
Doyle virou a outra mão e juntou com a que flamejava, formando um único pavio com as duas. Entrei no meio dos dois.
- Pare com essa encenação, Doyle. Eu vou.
Senti os dois se olhando, era um peso no ar. Sempre houve tensão entre eles, mas não assim.
Caminhei até Doyle com sombras esverdeadas no rosto e nas roupas, formadas pelo fogo colorido. Cheguei tão perto dele que deu para perceber que o fogo não emitia nada, nem calor, nem
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vida, nada mesmo, mas não era ilusão. Já tinha visto o que o fogo de Doyle era capaz de fazer. Assim como as mãos de Siobahn, podia matar.
Eu tinha de fazer alguma coisa para acabar com aquela tensão entre eles. Vira muitos duelos começarem por menos. Sangue demais, mortes demais por besteiras.
Toquei de leve os cotovelos de Doyle e deslizei as mãos lentamente para cima, pelos antebraços.
- Perdi um pouco o ânimo depois que vi Keelin, e Andais sabia disso; portanto, leve-me até ela.
Minhas mãos foram subindo devagar pelos braços dele e me dei conta de que a pele negra de Doyle não estava coberta. Ele usava manga curta por baixo da capa comprida.
- A Terra lhe dá as boas-vindas, pequenina, e você fica ousada - disse Doyle.
- Não foi ousadia, Doyle.
Minhas mãos estavam chegando aos pulsos, quase em cima das chamas pálidas. Não havia calor para dar o alarme, apenas minhas lembranças de ter visto um homem se contorcer e morrer, coberto pelo fogo verde.
- Isso... é ousadia.
Fiz duas coisas ao mesmo tempo. Pus as mãos sobre as chamas e assoprei como se faz para apagar uma vela.
As chamas desapareceram como se eu tivesse soprado, mas não foi isso. Doyle as apagou uma fração de segundo antes de eu encostar nelas.
Eu estava muito perto, de modo que, com a luz do luar, pude ver que ele ficou abalado com isso, amedrontado diante do que eu acabava de fazer.
- Você é louca.
- Você deu sua palavra de que me levaria ilesa à presença da rainha. Você sempre cumpre a sua palavra, Doyle.
- Você confiou que eu não lhe faria mal.
- É, confiei na sua palavra de honra.
Ele olhou para Cel e Siobahn, que estavam mais atrás. Keelin estava com eles novamente. Cel olhava fixo para nós. Sua expressão
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dizia que ele quase acreditava que eu tinha feito exatamente o que pareceu que fiz: apaguei a chama de Doyle.
Continuei com uma das mãos no pulso de Doyle e com a outra soprei um beijo para meu primo.
Cel pulou, como se o beijo soprado fosse um golpe. Keelin se encolheu ao lado dele e olhava para mim com uma expressão que eu sabia não ser inteiramente amigável.
Siobahn ficou entre eles e eu, e dessa vez ela desembainhou a espada, uma linha brilhante de aço frio. Eu sabia que o cabo era de osso trabalhado e que a armadura era de bronze, mas para matar usávamos aço ou ferro. Siobahn tinha uma espada curta de bronze do lado do corpo, mas sacou a lâmina de aço que ficava pendurada nas costas. Para se defender teria usado a de bronze, mas preferiu o aço. Tinha sacado aquela espada para matar. Era bom saber que ela estava sendo sincera.
Doyle agarrou meus dois braços e me fez virar de frente para ele.
- Eu não quero lutar com Siobahn esta noite porque você assustou seu primo.
Ele enterrou os dedos nos meus braços, e eu sabia que ficariam marcas, mas dei risada. Com um toque de amargura que me fez lembrar alguém... alguém que tinha olhos castanhos, sem lágrimas.
- Não esqueça que assustei Siobahn também. Isso é muito mais impressionante do que assustar Cel.
Ele me sacudiu uma vez, com força.
- E mais perigoso.
Doyle me soltou tão de repente que cambaleei e quase caí. O que impediu foi a mão dele no meu cotovelo. Ele olhou para os dois atrás de mim.
- Barinthus, Galen, vão embora, agora!
Ele disse isso com raiva e raramente deixava transparecer uma emoção de forma tão clara. Eu estava perturbando a todos, e uma Pequena parte perversa de mim gostou disso.
Doyle segurou firme meu braço e começou a me puxar pelo caminho.
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Não olhei para trás para ver se Barinthus e Galen estavam indo embora, nem para deixar Siobahn mais preocupada. Não era cautela. Não queria ver Keelin abraçada com Cel de novo.
Tropecei, e Doyle teve de me segurar mais uma vez.
- Você está andando rápido demais para esses sapatos que estou usando - eu disse.
Na verdade era o coldre de tornozelo, combinado com o vestido longo. Mas poria sempre a culpa no sapato. Estava andando ao lado da pessoa que tiraria a arma de mim se a encontrasse.
Doyle desacelerou o passo.
- Você devia usar uma roupa mais prática.
- Já vi a rainha forçar encantados a tirar a roupa toda, e irem nus para o banquete quando ela não gostava da roupa deles. Por isso, perdoe-me, mas quero que ela goste da minha.
Eu sabia que não podia soltar meu braço sem luta. E mesmo assim eu podia perder. Tentei convencê-lo.
- Dê o braço, Doyle. Leve-me como uma princesa, não como prisioneira.
Ele diminuiu o passo mais ainda e olhou para mim com o canto do olho.
- E a sua encenação já acabou, Princesa Meredith?
- Completamente - eu disse.
Ele parou e ofereceu o braço. Apoiei o meu no dele, com a mão encostada de leve no pulso. Deu para sentir os pelinhos do braço dele.
- Está meio frio para mangas curtas, não está? - perguntei. Ele olhou bem para mim, de cima a baixo.
- Bem, pelo menos você fez uma boa escolha.
Pus a outra mão sobre a que estava apoiada no braço dele, uma espécie de abraço duplo, mas nada que não fosse permitido.
- Você gostou?
Ele olhou para a minha mão. Parou de andar e a agarrou. Assim que tocou no anel, ele ganhou vida e nos cobriu com aquela dança de eletricidade. A mágica que havia no anel reconhecia Doyle, como tinha reconhecido Barinthus e Galen.
Ele tirou a mão rapidamente, como se tivesse doído, e a esfregou.
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- Onde arrumou esse anel? - A voz dele parecia tensa.
- Foi deixado no carro para mim. Doyle balançou a cabeça.
- Eu sabia que tinha sumido, mas não esperava encontrá-lo no seu dedo.
Se fosse qualquer outro, eu diria que ele estava com medo. Mas a expressão desapareceu enquanto eu ainda tentava decifrá-la. O rosto dele ficou liso, misterioso, impenetrável. Ele fez uma mesura formal e ofereceu o braço como qualquer cavalheiro faria.
Aceitei e rodeei o braço com as duas mãos, mas como a direita ficou em cima da esquerda, o anel não encostou nele. Pensei em tocá-lo e fingir que foi por acidente, mas não sabia exatamente o que o anel fazia. Não sabia para que ele servia e enquanto não soubesse não era uma boa ideia ficar invocando sua magia.
Fomos andando pelo caminho de braços dados, com um passo lento, mas firme. Os saltos do meu sapato faziam um barulho agudo nas pedras. Doyle caminhava ao meu lado em silêncio, feito sombra. Só a solidez do braço dele e o esvoaçar da capa no meu corpo indicavam que ele estava ali. Eu sabia que se largasse seu braço ele podia se fundir com a escuridão que era seu nome, e eu jamais veria o golpe que me mataria, a menos que quisesse. Não, a menos que a rainha quisesse.
Gostaria de preencher aquele silêncio com conversa, mas Doyle nunca foi muito de conversa, e naquela noite eu também não estava à vontade para isso.
O CAMINHO DE PEDRA dava na avenida principal, que era bastante larga para comportar uma carroça e um cavalo, ou um pequeno carro, se permitissem carros ali, mas não permitiam. Houve um tempo, segundo me contaram, em que penduravam tochas, depois lampiões para iluminar a rua. As modernas leis proibiam tochas acesas a noite inteira, por isso os postes a intervalos de cinco metros
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mais ou menos tinham apenas fogo fátuo. Um dos artesãos tinha confeccionado caixas de madeira e vidro para proteger essas luzes. O fogo era azul muito claro, branco transparente, amarelo tão esmaecido que era quase um tom de branco, e verde desbotado que mal se distinguia do brilho fraco das luzes amarelas. Era como caminhar em poças de fantasmas coloridos quando passávamos de uma lâmpada para outra.
Quando Jefferson convidou os encantados para viver no país, também ofereceu a terra que eles escolhessem. Os encantados escolheram as colinas de Cahokia. Há histórias murmuradas nas longas noites de inverno que descrevem o que vivia naqueles montes antes da nossa chegada. O que nós... expulsamos dos montes. As coisas que viviam dentro da terra foram expulsas ou destruídas, mas a mágica é mais difícil de apagar. Havia um clima no lugar quando caminhávamos pela avenida com os grandes montes de pedra e vegetação dos dois lados. O maior monte da cidade ficava no fim da avenida. Eu tinha feito faculdade em Washington, D.C., e na volta para casa era sempre um pouco irritante notar que o monte me fazia lembrar Washington, parada na praça rodeada de monumentos à glória norte-americana. Agora, andando pela rua central e única, tive a sensação de que muito tempo havia passado. Este lugar já tinha sido um dia uma grande cidade, como Washington era, centro de cultura e de poder, e agora estava ali silenciosa, esvaziada de seus habitantes originais. Os humanos pensavam que os montes estavam vazios quando os ofereceram para nós, que havia apenas ossos e algumas panelas enterradas aqui e ali. Mas a mágica ainda estava lá, profunda, adormecida. Ela enfrentou e depois acolheu os encantados. A conquista ou vitória sobre aquela mágica desconhecida foi um dos últimos momentos em que as duas cortes trabalharam juntas contra um inimigo comum.
Claro que a última vez mesmo tinha sido na Segunda Guerra Mundial. Hitler tinha acolhido os encantados da Europa. Queria misturá-los geneticamente em sua raça superior. Então ele conheceu alguns dos membros menos humanos do mundo encantado. Entre nós existe uma estrutura de classes tão rígida e inevitável quanto burra. Especialmente a Corte Abençoada vê com desprezo
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os que não têm aparência de pertencer à linhagem de sangue. Hitler confundiu essa arrogância com desleixo. Mas era como uma família com muitos irmãos. Entre eles podiam brigar e surrar uns aos outros, mas se alguém de fora os atacasse, viravam uma força unida contra o inimigo comum.
Hitler usou os feiticeiros que conseguiu reunir para montar armadilhas e destruir os encantados de classes mais baixas. Seus aliados encantados não o abandonaram. Ficaram contra ele sem aviso. Os seres humanos deviam ter sentido a necessidade de se afastar dele, de avisá-lo de que tinham mudado de ideia, ou talvez isso fosse um ideal norte-americano. Certamente não era ideal dos encantados. Os aliados encontraram Hitler e todos os feiticeiros pendurados de cabeça para baixo em seu bunker subterrâneo. Jamais encontraram sua amante, Eva Braun. De vez em quando os tablóides dizem que encontraram o neto de Hitler.
Nenhum parente direto meu se envolveu na morte de Hitler, por isso não estou certa, mas tenho fortes suspeitas de que Eva foi simplesmente comida por alguma coisa.
Meu pai recebeu duas estrelas de prata na guerra. Ele era espião. Não me lembro de ter ficado especialmente orgulhosa com as medalhas, porque meu pai parecia não dar valor a elas. Mas quando ele morreu, deixou as duas para mim, numa caixa forrada de cetim. E eu as levava sempre comigo, dentro de uma caixa de madeira trabalhada, junto com o resto dos meus tesouros da infância: penas coloridas de pássaros, pedras que faiscavam ao sol, as minúsculas bailarinas de plástico que enfeitaram o bolo de aniversário quando completei seis anos, um ramo seco de lavanda, um gatinho de brinquedo com pedras no lugar dos olhos e as duas estrelas de prata que deram a meu pai. Agora as medalhas estavam novamente na sua caixa forrada de cetim, numa gaveta da minha cômoda. O resto do "tesouro", espalhado pelos quatro ventos.
- Você está longe, Meredith - disse Doyle.
Ainda caminhava ao lado dele, de braço dado com ele, mas naquele momento só meu corpo estava lá. E me espantei de ver quão longe eu estava.
- Desculpe, Doyle, você disse alguma coisa?
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- No que estava pensando com tanto afinco? - ele perguntou. As luzes brincavam no rosto dele, pintavam sombras coloridas que contrastavam com a pele negra. Parecia madeira esculpida e polida refletindo a iluminação. Eu estava tocando nele, por isso pude sentir o calor, os músculos, a suavidade da pele. Era como a pele de qualquer um, só que nenhuma outra pele refletia a luz, não daquele jeito.
- Estava pensando no meu pai - eu disse.
- O que tem ele?
Doyle virou para mim e continuamos andando. As penas compridas roçaram no rosto dele e se misturaram com a cascata de cabelo preto que tinha só algumas mechas presas nas costas da capa. Então percebi que fora o pequeno coque que prendia os fios da frente, o resto todo do cabelo dele estava solto, por baixo da capa.
- Estava pensando nas medalhas que ele recebeu na Segunda Guerra.
Doyle continuou andando mas virou completamente de frente para mim, sem perder o ritmo. Parecia intrigado.
- Por que pensou nisso agora? Balancei a cabeça.
- Não sei. Acho que pensava nas glórias do passado. Os montes me fazem lembrar a praça em Washington, D.C. Toda aquela energia e objetividade. Aqui deve ter sido assim um dia.
Doyle olhou para os montes.
- E agora está tudo quieto, quase deserto. Eu sorri.
- Sei que não é assim. Há centenas, milhares embaixo dos nossos pés.
- Mas a comparação das duas cidades deixou você triste. Por quê?
Nós nos entreolhamos. Estávamos numa poça de luz amarela, com pontos de todas as cores do fogo fátuo nos olhos de Doyle, rodopiando como minúsculas nuvens de pirilampos coloridos. Só que a cor dos olhos dele era rica e pura, não fantasmagórica, havia
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vermelhos, roxos e cores que não brilhavam em nenhum lugar em volta de nós.
Fechei os olhos, pois fiquei tonta e nauseada de repente. Respondi com os olhos fechados.
- É triste pensar que Washington possa ser um dia uma ruína esgotada. É triste saber que os dias de glória passaram por este lugar muito antes de chegarmos aqui.
Abri os olhos, olhei para ele. Seus olhos tinham voltado a ser apenas espelhos negros.
- É triste pensar que os dias de glória dos encantados já passaram, e o fato de estarmos aqui neste lugar é prova disso.
- Você preferia que estivéssemos entre os humanos, trabalhando com eles, casando com eles, como os encantados que ficaram na Europa? Eles não são mais encantados, não passam de mais uma minoria.
- E eu sou apenas parte da minoria, Doyle?
Alguma coisa passou no semblante dele, algum pensamento sério que não pude entender. Nunca tinha estado com um homem cujo rosto refletisse tantas emoções e que eu só conseguisse decifrar umas poucas.
- Você é Meredith, Princesa da Carne e encantada como eu. Aposto meu juramento nisso.
- Considero isso um grande elogio vindo de você, Doyle. Eu sei o valor que dá ao seu juramento.
Ele inclinou a cabeça para um lado, me analisando. Com o movimento, mais mechas de cabelo escaparam um pouco da capa e ficaram dobradas, não caíram livres quando ele endireitou a cabeça.
- Eu senti os seus poderes, Princesa, isso não posso negar.
- Eu nunca vi o seu cabelo sem trança ou preso. Nunca vi o solto - eu disse.
- Gosta dele?
Não esperava que ele pedisse a minha opinião. Nunca ouvi Doyle pedir a opinião de ninguém, para nada.
- Acho que sim, mas preciso ver sem a capa para ter certeza.
- Isso é fácil - ele disse e desamarrou a capa no pescoço.
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Doyle deixou a capa cair dos ombros e a pendurou num braço. Usava uma espécie de colete protetor de couro e metal da cintura para cima, mas se tinha sido feito para ser uma armadura, devia cobrir mais. As luzes coloridas brincaram nos músculos dele como se realmente fosse esculpido em mármore preto. A cintura e os quadris eram estreitos, as pernas compridas sob calça de couro bem justa que mergulhava em botas pretas de cano alto, acima do joelho, onde era amarrada com tiras e pequenas fivelas de prata. Havia fivelas iguais nas tiras de couro que cobriam o torso. A prata cintilava e contrastava com a pele escura. O cabelo era uma segunda capa preta esvoaçando ao vento, embaraçado em longas mechas em volta dos tornozelos e panturrilhas. O vento fez as penas que emolduravam o rosto cobrir a boca dele.
- Nossa, olha só quanta roupa você não está usando - eu disse, tentando fazer uma piada, sem conseguir.
O vento passou veloz por nós e tirou o cabelo do meu rosto. Acariciou o capim alto num campo próximo, e além dele eu ouvi os pés de milho sussurrando. O vento soprou na avenida, encanado entre os montes, rodopiou em volta de nós como mãos aflitas. Era um eco daquela recepção, da magia da Terra, que tinha me saudado no momento em que pisei em território encantado naquela noite.
- Gosta do meu cabelo solto, Princesa?
- O quê? - perguntei.
- Você disse que queria ver sem a capa. Gostou?
Fiz que sim com a cabeça, sem dizer nada. Ah, sim, eu gostei.
Doyle olhou fixo para mim, e eu só via os olhos dele. O restante do rosto se perdeu no vento, nas penas e no escuro. Balancei a cabeça e olhei para outro lado.
- É a segunda vez que você tenta me enfeitiçar com os olhos, Doyle. O que está acontecendo?
- A rainha quis que eu a testasse com os olhos. Ela sempre disse que são minha maior qualidade.
Deixei meu olhar passear pelas curvas fortes do corpo dele. O vento soprou, e ele ficou de repente envolvido por uma nuvem do próprio cabelo, negro e macio, quase não dando para ver a pele seminua, preto no preto.
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Olhei nos olhos dele mais uma vez.
- Se minha tia pensa que seus olhos são sua maior qualidade, então... - Balancei a cabeça e dei um suspiro. - Digamos que ela e eu devemos ter critérios diferentes.
Ele deu risada. Doyle riu. Tinha ouvido sua risada em Los Angeles, mas não assim. Aquela era uma gargalhada sonora, como trovoada. Era uma boa risada, aberta e profunda. Ecoou nos montes e encheu a noite e o vento com um som alegre. Então por que meu coração latejava no pescoço, e eu não conseguia respirar? As pontas dos dedos formigavam. Doyle não dava risada, não assim, nunca.
O vento parou. A gargalhada acabou mas o brilho dela permaneceu no rosto dele, num sorriso de orelha a orelha, exibindo dentes muito brancos e perfeitos.
Doyle pôs a capa nos ombros de novo. Se ficou com frio naquela noite de outubro sem ela, não deu sinal nenhum. Ele afastou a capa de um ombro e me ofereceu o braço. Ele estava me paquerando.
Fiz cara de quem não entendeu.
- Pensei que tínhamos conversado, que íamos fingir que a noite passada nunca aconteceu.
- Eu não falei nada - ele disse, com voz neutra.
- Você está dando em cima de mim - eu disse.
- Se fosse Galen no meu lugar você não hesitaria.
O humor estava se apagando da expressão dele e se reduzindo a um pequeno brilho nos olhos. Ele ainda estava se divertindo comigo, mas eu não sabia por quê.
- Galen e eu nos provocamos desde que eu atingi a puberdade. Nunca vi você provocar ninguém, Doyle, até a noite passada.
- Há coisas deslumbrantes para ver esta noite, Meredith. Maravilhas muito mais surpreendentes do que eu de cabelo solto e Sem camisa numa noite fria de outubro.
Agora ele estava usando aquele tom que os mais velhos usavam, um tom condescendente que dizia que eu era uma criança e
não importava a minha idade, eu continuaria a ser uma criança comparada com eles, uma criança tola.
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Doyle já tinha sido condescendente comigo antes. Era quase reconfortante.
O que pode ser mais deslumbrante do que a Escuridão da rainha flertando com outra mulher? Ele balançou a cabeça.
- Eu acho que a rainha terá notícias que farão com que qualquer coisa que eu diga fique sem graça.
- Que notícias, Doyle? - perguntei.
- Quem vai ter o prazer de contar será a rainha, não eu.
- Então pare de insinuar - eu disse. - Você não é disso.
Ele balançou a cabeça de novo, e um sorriso dominou seu rosto.
- É, acho que não sou. Depois que a rainha contar a novidade eu explico a minha mudança de comportamento. - Ele ficou muito sério, quase adotou sua máscara habitual de ébano. - Está bem assim?
Examinei o rosto dele até o último vestígio de humor desaparecer.
- Acho que sim.
Ele me ofereceu o braço.
- Cubra o corpo, e eu aceito o braço - eu disse.
- Por que incomoda tanto me ver assim?
- Você foi categórico quando resolveu que a noite passada nunca existiu, que não devíamos mencionar isso, e agora volta a me paquerar de repente. O que mudou?
- Se eu dissesse que foi o anel no seu dedo, você entenderia?
- Não - eu disse.
Dessa vez ele deu um sorriso gentil, quase imperceptível, o sorriso que sempre dava. Puxou a capa para cobrir os ombros de modo que a única coisa que aparecia sob o tecido grosso era a mão dele.
- Melhor assim?
- Sim, obrigada.
- Agora, pegue o meu braço, Princesa, e dê-me o prazer de levá-la até a nossa rainha.
Ele disse isso sem emoção, em tom neutro, sem profundidade. Quase preferi a forte emoção de um minuto antes. Agora as
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palavras dele soaram no vazio. Podiam significar qualquer coisa, ou coisa nenhuma. Sem emoção para dar-lhes cor, as palavras eram praticamente inúteis.
- Você tem algum tom de voz que fique entre o vazio e a alegria condescendente? - perguntei.
Aquele pequeno sorriso moveu os lábios dele.
- Vou tentar encontrar um... ponto a meio caminho das duas coisas.
Dei o braço para ele com cuidado, e a capa ficou embolada entre nós.
- Obrigada - eu disse.
- Não tem de quê.
A voz dele continuava vazia, mas havia um toque de carinho agora.
Doyle tinha dito que ia tentar encontrar um ponto no meio do caminho e já estava tratando disso. Era muita consideração dele.
A estrada de pedra acabava de repente num gramado. Essa estrada, como os caminhos, paravam logo antes de algum monte. Chegamos ao fim da estrada e só havia um gramado depois dela. Grama marcada por muitos pés, mas toda por igual, de modo que nenhuma trilha era mais usada do que outra. Um dos nossos antigos apelidos é "os escondidos". Hoje em dia podemos ser uma atração turística, mas é muito difícil acabar com os velhos hábitos.
As vezes os observadores de duendes acampam na região com Seus binóculos e passam dias e noites sem ver nada. Se alguém estivesse espiando naquela noite fria, estaria prestes a ver "alguma coisa".
Nem procurei a entrada. Doyle nos levaria para dentro, e eu não ia precisar fazer qualquer esforço. A porta mudava de lugar em horários próprios, ou talvez determinados pela rainha. De todo
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jeito, às vezes dava para a estrada, às vezes não. Quando era adolescente, resolvia dar uma escapada à noite e voltava tarde, tudo que podia fazer era torcer para a porta não se mover enquanto eu estivesse fora. A pequena mágica necessária para encontrar a abertura alertava os guardas, e aí estava tudo perdido, como dizem. E mais de uma vez, quando eu era jovem, concluí que aquela porta mudava de lugar de propósito.
Doyle me conduziu pela relva. Os saltos do sapato afundavam na terra macia, e fui forçada a andar praticamente na ponta dos pés para evitar sujá-los. A arma no coldre de tornozelo dificultava muito. Ainda bem que não tinha escolhido um sapato com salto mais alto ainda.
Doyle foi me levando para longe da avenida e das luzes fantasmagóricas dos fogos fátuos, e ali a escuridão parecia mais densa do que antes. A iluminação era fraca, mas qualquer luz dá à escuridão peso e substância. Apoiei-me com mais força no braço de Doyle quando nos afastamos das luzes da estrada e fomos para o breu salpicado de estrelas.
Doyle deve ter notado, porque perguntou:
- Quer uma luz?
- Eu posso conjurar meu fogo fátuo sozinha, muito obrigada. Meus olhos vão se acostumar em um minuto.
Ele deu de ombros e senti quando retesou o braço para eu poder me apoiar melhor.
- Como quiser.
Ele havia recuperado o tom neutro na voz. Talvez tivesse dificuldade para encontrar o tal ponto intermediário, ou então era apenas força do hábito. Eu apostava nessa segunda opção.
Quando Doyle parou mais ou menos no meio da colina, eu ja tinha me acostumado com a luz fraca e fria das estrelas e da lua que subia no céu.
Ele olhava fixo para a terra. Sua magia era um bafo quente no meu corpo enquanto ele se concentrava no monte. Examinei a terra coberta de relva. Aquele ponto no gramado era igual a qual quer outro, para quem não se concentrasse um pouco.
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O vento soprou a relva como dedos revolvendo uma caixa cheia de renda. A noite se encheu do farfalhar de capim seco de outono, mas bem baixinho, ah, bem suave, se podia ouvir a música do vento. Não dava para reconhecer a melodia, nem para ter certeza absoluta de que era outra coisa além do vento, mas aquela música era a pista que indicava que estávamos perto da entrada. Como uma espécie de campainha espectral, ou uma brincadeira mágica de "quente ou frio". Música nenhuma significava que você estava frio.
Doyle soltou o meu braço e passou a mão na relva da colina. Eu nunca tive certeza se a grama desaparecia, ou se a porta aparecia sobre ela e a vegetação continuava lá, embaixo da porta, em algum espaço metafísico. Como quer que aquilo funcionasse, uma porta arredondada surgiu na encosta do monte. O portal tinha o tamanho exato para nós dois passarmos. A abertura se encheu de luz. Se fosse preciso, seria suficientemente grande para dar passagem a um tanque. Era como se a porta soubesse que tamanho precisava ter.
A luz pareceu mais forte do que eu lembrava porque agora meus olhos já tinham se acostumado ao escuro. Era branca, mas não ofuscante, uma luz suave que saía da porta e parecia um nevoeiro luminoso.
- Por favor, minha princesa - disse Doyle, que fez uma mesura e indicou a porta para mim.
Eu queria voltar para a corte, mas quando olhei para aquela colina iluminada lembrei que um buraco no chão é um buraco no chão, seja do mundo encantado, ou uma cova. Não sei por que pensei justamente nessa analogia. Pode ter sido por causa da tentativa de assassinato. Ou eram apenas meus nervos. Passei pela porta.
Entrei em um corredor muito largo, onde um tanque passaria com facilidade, e um gigante não bateria a cabeça no teto. A entrada era sempre enorme, por menor que fosse o portal. Doyle me alcançou, e a porta desapareceu atrás dele. Tornou-se apenas mais Um muro cinza de pedra. O exterior do monte escondia a entrada. O interior era a mesma coisa. Se a rainha quisesse, a porta não apareceria do lado de dentro. Era muito fácil passar de convidado a prisioneiro ali. E essa ideia não era nada tranquilizadora.
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A luz branca que enchia o corredor não vinha de fonte nenhuma, ela vinha de toda parte e de parte alguma. A parede de pedra cinza parecia granito, de modo que não era nativa de Saint Louis. As pedras ali eram vermelhas ou de um marrom avermelhado, não cinza. Até nossas pedras são importadas de alguma praia distante.
Soube que houve um tempo em que havia mundos inteiros embaixo da terra. Campos, pomares e nosso próprio sol e lua. Eu tinha visto pomares secos e jardins floridos com apenas algumas flores esparsas, mas nenhum sol ou lua no subterrâneo. Os salões são maiores e mais quadrados do que deviam ser, e a planta do interior parece mudar ao acaso, às vezes na hora em que caminhamos pelas salas. É como andar numa casa maluca feita de pedra em vez de espelhos. Mas não há nenhum campo aberto, pelo menos que eu tenha visto. Tenho uma sensação forte de que os outros guardam segredos de mim. Não ficaria nada surpresa com isso, mas, até onde eu sei não há mundos subterrâneos, apenas pedra e salões.
Doyle ofereceu o braço, muito formal. Apoiei-me nele de leve, mais por hábito.
O corredor fazia uma curva acentuada. Ouvi passos vindo na nossa direção. Doyle puxou meu braço gentilmente. Parei e me virei para ele.
- O que é? - perguntei.
Doyle me puxou para trás. Fui voltando pelo corredor, e de repente ele parou. Agarrou o meu vestido, levantou-o até os joelhos, expôs meus tornozelos e a arma.
- Não era o salto que a desequilibrava nas pedras, Princesa. Ele parecia zangado comigo.
- Tenho permissão para usar armas.
- Armas de fogo são proibidas dentro do monte - ele disse.
- Desde quando?
- Desde que você matou Bleddyn com uma.
Nós nos olhamos estáticos um segundo, depois tentei me afas tar, mas ele agarrou meu pulso.
Os passos estavam cada vez mais próximos, Doyle me Puxou. Perdi o equilíbrio e caí em cima dele. Ele me prendeu contra
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Seu corpo com o braço nas minhas costas. Abriu a boca para falar na hora em que os passos viraram a curva do corredor.
Estávamos bem à vista, Doyle me segurando junto dele, com a outra mão no meu pulso. Parecia uma briga interrompida, ou o início de uma.
Os dois homens que apareceram na virada da passagem mantinham uma distância entre eles para cobrir a maior parte do corredor, com espaço para luta.
Olhei para Doyle e procurei pedir com o olhar. Implorei com os olhos para ele não contar nada da arma e não tirá-la de mim.
Ele encostou a boca no meu rosto e sussurrou:
- Você não vai precisar dela.
- Você jura? - perguntei a ele.
A raiva enrijeceu os músculos do maxilar de Doyle, fez latejar os braços dele.
- Não vou jurar por um capricho da rainha.
- Então deixe-me ficar com a arma - murmurei baixinho. Doyle ficou entre mim e os outros guardas. Continuou segurando o meu braço. Os outros só podiam ver a capa de Doyle.
- O que houve, Doyle? - perguntou um dos homens.
- Nada - ele disse, mas forçou meu braço para trás para poder segurar os dois pulsos com uma mão só.
As mãos de Doyle não eram grandes e, para me agarrar com firmeza, teve de apertar muito um pulso contra o outro, de modo que acabou me machucando. Eu teria resistido mais se achasse que Podia escapar, mas mesmo se conseguisse me livrar de Doyle, ele já tinha visto a arma. Não havia nada que eu pudesse fazer, por isso não lutei. Mas não estava nada contente com a situação.
Doyle usou o outro braço para me pegar no colo e botar sentada no chão. Fora a pressão nos pulsos, ele fez isso com certa gentileza. Ele se ajoelhou e sua capa continuou a nos esconder dos outros homens. Quando vi que ia pegar a arma, pensei em chutá-lo e em dificultar as coisas para ele, mas não adiantaria nada. Ele Poderia esmagar meus pulsos sem esforço algum. Talvez eu conseguisse a arma de volta naquela noite. Se ele quebrasse meus braços, ficaria sem opção nenhuma. Ele tirou a arma do coldre de tornozelo.
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Fiquei sentada no chão e não fiz nada para impedir; passiva sob o seu domínio, deixei que movesse meu corpo como quisesse. Só meus olhos não estavam passivos, já que não consegui afastar a raiva deles. Ou melhor, eu quis que ele visse a minha raiva.
Doyle me soltou e escondeu a arma nas costas dele, só que a calça de couro era tão justa que aquilo não podia estar nada confortável. Torci para que a arma furasse as costas dele até sangrar.
Ele segurou minha mão e me ajudou a levantar. Depois deu meia-volta com um rodopio da capa para me apresentar aos outros guardas, segurando minha mão como se fôssemos encenar uma entrada triunfal numa escadaria de mármore. Foi um gesto estranho naquele corredor cinzento e depois do que tinha acabado de acontecer. Entendi que Doyle não se sentia à vontade com a arma e com a decisão que tomou de tirá-la de mim, ou então ele talvez estivesse imaginando se eu teria outras. Ele estava bem desconfortável e procurava disfarçar.
- Um pequeno desentendimento, nada mais - ele disse.
- Desentendimento sobre o quê?
A pergunta foi feita por Frost, o segundo em comando da guarda de Doyle. Fora o fato de os dois serem altos, eram bem diferentes fisicamente. O cabelo de Frost, que descia como cortina brilhante até os pés, era prateado, tinha um tom metálico que lembrava purpurina de árvore de Natal. A pele dele era branca como a minha. Os olhos cinzentos como céu de inverno antes de uma tempestade. O rosto era anguloso e arrogantemente belo. Tinha os ombros um pouco mais largos do que os de Doyle, mas fora isso eles eram ao mesmo tempo muito parecidos e muito diferentes.
Frost usava um colete prateado e comprido até logo acima dos joelhos, calça também de tecido prata, enfiada em botas prateadas. O cinto era prata também, com pérolas e diamantes incrustados. Combinava com o pesado cordão que enfeitava o peito dele. Era muito brilho, como se fosse esculpido em uma única peça de prata, mais estátua do que homem. Mas a espada ao lado do corpo, com o cabo de prata e osso, era bem real, e se havia uma arma à mostra, devia haver mais, porque ele era Frost. A rainha o chamava de Frost, o matador. Se ele teve algum outro nome na
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vida, eu não conheço. Ele não exibia nenhuma arma mágica ou enfeitiçada e para Frost isso era quase a mesma coisa que estar desarmado.
Ele olhava fixo para mim com aqueles olhos cinzentos, obviamente desconfiado.
Encontrei minha voz de novo, precisava de qualquer coisa para cortar o silêncio. Precisava de uma distração. Soltei a mão de Doyle e dei um passo para a frente. Frost era muito vaidoso com sua aparência e com roupas.
- Frost, que pergunta mais intrometida.
Minha voz saiu forte, entre provocante e zombeteira. As mãos dele foram logo para a bainha da túnica, antes que pudesse evitar. Ele arqueou as sobrancelhas.
- Princesa Meredith, como sempre, é um prazer.
Uma discreta mudança no tom de voz deu às palavras educadas dele uma insinuação de deboche.
Não liguei. Ele não estava imaginando o que Doyle escondia. Isso era tudo que eu queria.
- E eu? - disse Rhys.
Virei e vi o terceiro guarda entre os meus prediletos. Não confiava nele como em Barinthus, ou Galen. Havia certa fraqueza nele, e eu tinha a sensação de que ele não morreria pela honra de ninguém, mas até chegar a isso dava para contar com ele.
Ele pendurou no braço a capa e o cabelo branco e ondulado que ia até a cintura para eu poder ver seu corpo. Rhys tinha quinze centímetros menos do que a média de um metro e oitenta de altura, era baixo para um guarda. Pelo que eu sabia, ele era puro-sangue da corte. Só que era baixo. Usava um macacão tão justo que dava para ver imediatamente que não havia nada por baixo, Só ele. Tinha um bordado, branco sobre branco, em volta da gola redonda, na barra das mangas compridas e rodeando uma abertura sobre a barriga, que revelava seus abdominais pétreos, como uma mulher que exibe o colo farto.
Frost deixou a capa e o cabelo caírem de volta em seus devidos lugares. Deu seu sorriso com lábios bem delineados para mim. A boca combinava com o rosto redondo e bonito de menino e com
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o único olho que era azul-claro. Eram três círculos azuis, azul hortênsia em volta da íris, azul céu e por fora um círculo de azul gelo. O outro olho não existia mais sob um emaranhado de cicatrizes. Lanhos de garras riscavam a parte superior de um lado do rosto dele. Uma delas ficava a dois centímetros do resto, cortava a pele que sem isso seria perfeita desde a testa direita, passando pelo nariz até a face esquerda. Ele me contara uma dezena de histórias diferentes sobre a perda desse olho. Grandes batalhas, gigantes, acho que me lembro de um ou dois dragões. Eu achava que era por causa das cicatrizes que ele se esforçava tanto para ter um corpo bonito. Ele era pequeno, mas cada centímetro era puro músculo. Balancei a cabeça.
- Não sei se você parece um boneco de um bolo de casamento pornográfico, ou um super-herói. Podia ser o Garoto Tanquinho, ou o Homem Abdominal.
Sorri alegremente.
- Mil abdominais por dia fazem maravilhas pelos músculos da barriga - ele disse e passou a mão nos músculos.
- Acho que todo mundo precisa de um hobby.
- Onde está a sua espada? - perguntou Doyle.
- No mesmo lugar que a sua - respondeu Rhys. - A rainha disse que não precisamos delas esta noite.
Doyle olhou para Frost.
- E você, Frost?
Rhys respondeu com um breve sorriso que fez o lindo olho azul cintilar.
- A rainha está tirando uma arma dele de cada vez. Ela decretou que ele precisa estar desarmado na hora em que ela estiver vestida para ir até a sala do trono.
- Não acho sensato deixar a guarda inteira desarmada - disse Frost.
- Eu também não - disse Doyle. - Mas ela é a rainha, e obedeceremos às suas ordens.
O belo rosto de Frost se fechou em linhas duras. Se ele fosse humano já teria rugas de expressão, mas o rosto dele não tinha nenhuma e seria sempre assim.
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- A roupa do Frost está boa para um banquete de boas-vindas, mas por que você e Rhys estão assim tão...
Abri as mãos num gesto de dúvida, tentando encontrar uma frase que não fosse um insulto.
- A rainha desenhou minha roupa pessoalmente - disse Rhys.
- É linda - eu disse.
Ele sorriu de orelha a orelha.
- Continue dizendo isso quando encontrar o resto da guarda esta noite.
Arregalei os olhos.
- Ah, não. Ela não está tomando hormônios de novo, está? Rhys fez que sim com a cabeça.
- Hormônios de bebê, e a libido dela não acaba mais. Ele examinou a própria roupa.
- É uma pena estar todo vestido e não ter nenhum lugar para ir.
- Muito engraçado - eu disse.
Ele fez cara de triste, sinceramente. Não teve a intenção de fazer graça. Seu rosto triste fez o sorriso desaparecer do meu.
- A rainha é nossa soberana. Ela sabe das coisas - disse Frost. Não consegui evitar, dei risada.
A expressão de Frost me fez lamentar essa risada. Aqueles olhos cinzentos baixaram a guarda por uma fração de segundo, e o que vi neles foi sofrimento. Ele refez seus muros de proteção, cerrou os olhos e não deixou mais nada transparecer. Mas eu tinha visto o que havia por trás daquela cuidadosa fachada, as roupas caras, a obsessão pelos detalhes... a rigorosa moralidade e a arrogância dele. Parte era real, mas outra parte era uma máscara para guardar tudo a sete chaves.
Jamais gostei de Frost, mas aquela visão fez com que eu não Pudesse mais deixar de gostar dele. Droga.
- Não vamos mais falar disso - ele disse, deu meia-volta e seguiu pelo corredor, para o lugar de onde tinha vindo. - A rainha está à sua espera.
Frost se afastou sem olhar para trás para ver se nós o seguíamos. Rhys veio ficar ao meu lado. Pôs o braço no meu ombro e me abraçou.
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- Estou contente que tenha voltado. Inclinei-me um pouco para ele.
- Obrigada, Rhys.
Ele apertou meu ombro.
- Estava com saudade, Olhos-verdes.
Rhys, mais do que Galen, falava inglês moderno. Ele adorava gírias. Seu escritor preferido era Dashiell Hammett, o filme era O falcão maltês com Humphrey Bogart. Rhys tinha uma casa na periferia da cidade no monte. Tinha eletricidade e um aparelho de televisão. Passei muitos fins de semana na casa dele. Ele me apresentou filmes antigos, e quando eu tinha dezesseis anos, fomos a um festival de filmes noir no Tivoli em Saint Louis. Ele usava um chapéu fedora e casaco comprido estilo militar. Até arrumou um traje de época para mim, e eu fui de braço dado com ele, como uma mulher fatal.
Rhys deixou claro naquela época que me considerava mais do que uma irmã caçula. Não era nada que pudesse provocar nossa execução, mas o bastante para ser um namoro de verdade. Depois disso minha tia cuidou para que não passássemos muito tempo juntos. Galen e eu nos provocávamos impiedosamente de um jeito sensual, mas a rainha parecia confiar nele, como eu. Nenhum de nós confiava integralmente em Rhys.
Rhys me ofereceu o braço.
Doyle ficou do outro lado. Pensei que ele também ia me dar o braço para eu ficar apoiada nos dois. Em vez disso, ele disse para Rhys.
- Siga pelo corredor e espere por nós lá na frente. Frost teria protestado e até se recusado, mas não Rhys.
- Você é o capitão da guarda - ele disse.
Era a resposta de um bom soldado. Ele virou a curva da passagem, e Doyle me levou com ele, com uma mão no meu braço, para ver Rhys se adiantar bastante, até não poder escutar o que dizíamos. Então Doyle me puxou para trás, para fora da vista de Rhys-
Ele apertou meu antebraço.
- O que mais tem aí com você?
- Confia em mim se eu disser? - perguntei.
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- Se me der a sua palavra, confio - ele disse.
- Eu parti daqui porque minha vida estava sendo ameaçada, Doyle. Preciso poder me proteger.
Ele apertou mais meu braço e sacudiu um pouco.
- A minha função é proteger a corte, especialmente a rainha.
- E a minha é me proteger - eu disse. Ele abaixou ainda mais a voz.
- Não, essa função é minha. É a função de toda a guarda. Balancei a cabeça.
- Não, vocês são a Guarda da Rainha. A Guarda do Rei protege Cel. Não existe guarda para a princesa, Doyle. Cresci sabendo muito bem disso.
- Você sempre teve o seu contingente de guarda-costas, assim como seu pai.
- E veja só como ele foi protegido - eu disse.
Doyle agarrou meu outro braço e me botou na ponta dos pés.
- Quero que você sobreviva, Meredith. Aceite o que ela lhe der esta noite. Não tente prejudicá-la.
- Senão o quê? Você vai me matar?
Ele soltou as mãos e me pôs de volta nas pedras do chão.
- Dê-me a sua palavra de que aquela era a única arma que tinha, e eu acreditarei.
Vendo aquela expressão sincera de Doyle, não pude jurar. Não podia mentir para ele, não podia dar a minha palavra. Olhei para o chão, depois de novo para ele.
- Bolas de Ferghus. Ele sorriu.
- Quer dizer que tem outras armas.
- Tenho, mas não posso ficar desarmada, Doyle. De jeito nenhum.
- Terá um de nós com você o tempo todo esta noite... isso eu Posso garantir.
- A rainha tem sido muito cautelosa esta noite, Doyle. Posso nao gostar do Frost, mas confio nele até certo ponto. Ela certificou-Se de que todos os guardas que encontro são aqueles em quem confio oou de quem gosto, mas os guardas da rainha são vinte e sete, e
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há mais vinte e sete guardas do rei. Confio talvez em uma dúzia, uns dez seria mais seguro dizer. O resto deles me assusta, ou no passado me feriram de verdade. Não vou andar por aí desarmada.
- Você sabe que posso tirar as suas armas - ele disse. Fiz que sim com a cabeça.
- Eu sei.
- Diga o que tem, Meredith. Vamos começar por aí. Enumerei tudo que tinha levado. Pensei que ele ia insistir em me revistar pessoalmente, mas não fez isso. Ele acreditou na minha palavra. Fiquei contente de não ter escondido nada.
- Entenda uma coisa, Meredith. Eu sou o guarda-costas da rainha antes de ser seu. Se você tentar atacá-la de qualquer maneira, vou tomar providências.
- Eu posso me defender? - perguntei. Doyle pensou um pouco.
- Eu... eu não deixaria que matassem você só por ter se prevenido, com medo de mim. Você é mortal, e a rainha não é. Você é a mais frágil das duas. - Ele lambeu os lábios e balançou a cabeça. - Vamos torcer para eu não ter de escolher entre vocês duas. Não acho que ela planeja qualquer violência contra você esta noite.
- O que minha querida tia planeja, e o que realmente acontece nem sempre são a mesma coisa. Todos nós sabemos disso.
Ele balançou a cabeça de novo.
- Pode ser.
Doyle ofereceu o braço.
- Vamos?
Dei o braço para ele, seguimos pela curva do corredor e encontramos Rhys que esperava pacientemente. Rhys olhava para nós, e eu não gostei da seriedade da expressão dele. Ele estava maquinando alguma coisa.
- Vai se sentir mal de pensar tanto, Rhys - eu disse.
Ele sorriu, abaixou a cabeça, mas quando olhou de novo para mim, continuava sério.
- O que você está tramando, Merry?
A pergunta me pegou de surpresa. E não procurei disfarçar.
- O único plano que tenho para esta noite é sobreviver e não me machucar. Só isso.
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Ele semicerrou os olhos.
- Acredito em você - ele disse, mas parecia não ter certeza de que acreditava mesmo em mim.
Então ele sorriu e disse:
- Eu ofereci meu braço para ela primeiro, Doyle. Você se meteu no meio.
Doyle ia dizer qualquer coisa, mas eu falei primeiro:
- Eu tenho dois braços, Rhys.
O sorriso dele cresceu, deu o braço para mim e aceitei-o. Quando pus a mão sobre a manga dele lembrei que era a direita, a que tinha o anel. Mas o anel não reagiu ao Rhys. Ficou imóvel, apenas uma bela peça de prata.
Rhys o viu e arregalou os olhos.
- É o...
- É ele mesmo - disse Doyle, tranquilamente.
- Mas... - Rhys ia dizendo.
- Sim - disse Doyle.
- Sim, o quê? - perguntei.
- Tudo na hora que a rainha determinar - disse Doyle.
- Mistérios me dão dor no coração - eu disse. Rhys imitou a voz de Bogart:
- Então compre um vidro de aspirina, baby, porque a noite é uma criança.
- Bogart nunca disse isso num filme.
- Não disse - concordou Rhys com sua voz normal. - Eu estava improvisando.
Apertei o braço dele.
- Acho que senti sua falta.
- Eu sei que eu senti a sua. Ninguém mais na corte sabe o que significa filme noir.
- Eu sei muito bem - disse Doyle. Nós dois olhamos para ele.
- Quer dizer filme preto, correto?
Rhys e eu nos entreolhamos e começamos a rir. Fomos andando pelo corredor ouvindo os ecos da nossa risada. Doyle não riu. Ele ficou repetindo:
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- Quer dizer filme preto, não é?
Isso tornou divertido aqueles últimos metros até os aposentos da minha tia.
As pedras eram diferentes atrás da porta dupla. Os aposentos da minha tia, o quarto da minha rainha era todo de pedra preta. Uma pedra brilhante, quase espelhada, que parecia que ia se espatifar a um toque mais pesado. Se golpeássemos essa pedra com aço só obteríamos faíscas coloridas. Era como obsidiana, mas infinitamente mais resistente.
Frost ficou o mais perto da porta que pôde e o mais longe da rainha. Muito ereto, ele era uma figura prateada brilhante em todo aquele negrume, mas havia alguma coisa na postura dele que indicava que estava perto da porta por algum motivo... talvez uma rota rápida de fuga.
A cama ficava encostada na parede do fundo, mas tinha tantos lençóis, colchas, cobertores e até peles por cima que era difícil saber se era uma cama mesmo, ou apenas uma gigantesca pilha de cobertas. Tinha um homem na cama, um jovem. O cabelo dele era louro verão, comprido em cima e curto na metade, um corte de skatista. Era moreno dourado suave do sol de verão, ou talvez de uma câmara de bronzeamento. Um braço magro estava esticado no ar, com a mão caída. Ele parecia dormir profundamente e era extraordinariamente jovem. Se tivesse menos de dezoito anos, era contra a lei em qualquer estado, porque minha tia era encantada, e os humanos não deixavam os filhos saírem conosco.
A rainha levantou-se do outro lado dele e surgiu lentamente do ninho de cobertas e de uma pele preta que era só um pouco mais escura do que o cabelo que ela afastou do rosto pálido. Ela prendera o cabelo no topo da cabeça, formando uma espécie de coroa negra, mas havia longos cachos soltos descendo pelas costas. O corpo do vestido dela parecia muito aqueles corpetes com cinta liga,
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era preto, de vinil e tinha duas alças finas enfeitando, mais do que cobrindo, os ombros. A saia era cheia e espessa e caía atrás com uma pequena cauda. Parecia couro brilhante mas o movimento era de tecido. Usava nos braços luvas de couro que subiam até os cotovelos. Usava batom vermelho, sombra escura e perfeita. Os olhos dela tinham três tons de cinza, iam de carvão, nuvem de tempestade, até um céu pálido de inverno. Essa última cor era um cinza tão claro que parecia branco. Com a maquiagem escura, os olhos ficavam extraordinários.
Houve um tempo em que a rainha se vestia com teias de aranha, escuridão, sombras, pedacinhos de coisas que ela governava formavam os tecidos que ela queria. Mas agora estava limitada a roupas de marca e ao seu costureiro pessoal. Era apenas mais um sinal de quanto poder tínhamos perdido. Meu tio, o rei da Corte Abençoada, ainda conseguia se vestir de luz e ilusão. Alguns pensavam que isso provava que a Corte Abençoada era mais forte do que a Corte Profana. Os que pensavam assim tinham o cuidado de não dizer isso na frente de tia Andais.
Ao se levantar ela deixou antever um segundo homem, só que esse era encantado e não mortal. Era Eamon, o consorte real. O cabelo dele era preto e tinha ondas grossas que emolduravam seu rosto branco. Os olhos estavam semicerrados de sono... ou de outras coisas.
Frost e Rhys correram para perto da rainha. Cada um segurou uma das mãos cobertas de couro de Andais. Firmaram suas mãos nas mãos e cotovelos dela e levantaram-na por cima do homem louro. A saia preta rodopiou e deixou aparecer rapidamente camadas de anáguas pretas e sandálias de couro preto que deixavam quase todo o pé à mostra. Quando os dois a ergueram e puseram-na delicadamente no chão, eu quase esperei ouvir o início de alguma música e dançarinos aparecendo do nada. Minha tia certamente era capaz de criar essa ilusão.
Ajoelhei com um joelho só no chão, e meu vestido era bastante elástico para tornar o movimento gracioso. O tecido voltaria ao normal quando ficasse de pé, e esse foi um dos motivos que me levou a escolher aquele. A liga marcava o tecido mas só dava para
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perceber que por baixo do tecido vinho eu usava uma liga, a faca não aparecia. Não abaixei a cabeça logo. A rainha estava dando um show. Ela queria ser observada.
A Rainha Andais era uma mulher alta mesmo para os padrões atuais. Tinha um metro e oitenta de altura. A pele dela brilhava como alabastro polido. A linha perfeita das sobrancelhas e o preto espesso dos cílios eram um contraste espantoso.
Finalmente abaixei a cabeça porque era o que esperavam de mim. Fiquei com a cabeça tão baixa que só podia ver o chão e a minha perna. Ouvi a saia dela deslizando pelo chão. Os saltos da sandália fizeram barulho quando ela passou do tapete para as pedras do piso. Não entendi por que ela não mandava atapetar o quarto inteiro. As anáguas estalavam e farfalhavam juntas quando ela caminhou até mim, e eu sabia que eram crinolina de armação, que pinicavam e eram desconfortáveis quando ficavam junto à pele.
Por fim uma ponta de saia preta apareceu no chão aos meus pés. A voz dela era de contralto, rica e grave.
- Saudações, Princesa Meredith NicEssus, Filha da Paz, Ruína de Besaba, filha do meu irmão.
Continuei de cabeça abaixada e ficaria assim até ela dizer para me levantar. Andais não me chamou de sobrinha, apesar de ter reconhecido o nosso parentesco. Era um pequeno insulto não citar minha relação familiar com ela, mas só quando ela me chamasse de sobrinha eu poderia chamá-la de tia.
- Saudações, Rainha Andais, Rainha do Ar e da Escuridão, Amante de Carne Branca, Irmã de Essus, meu pai. Vim das terras do oeste atendendo o seu pedido. O que deseja de mim?
- Nunca entendi como você faz isso - ela disse. Continuei olhando para o chão.
- O quê, minha rainha?
- Como você consegue dizer exatamente as palavras certas, com exatamente o tom correto de voz, e mesmo assim soar insincera, como se achasse tudo isso terrivelmente cansativo.
- Peço perdão se a ofendi, minha rainha.
Essa foi a resposta mais segura que encontrei diante da acusação porque achava de fato tudo aquilo terrivelmente cansativo.
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Só que não pretendia deixar transparecer com tanta clareza na minha voz. Fiquei ajoelhada, de cabeça baixa, esperando que ela dissesse que eu podia me levantar. Mesmo saltos de cinco centímetros não eram feitos para ficar naquela posição por muito tempo. Era difícil não oscilar com eles. Se Andais quisesse, poderia me deixar horas daquele jeito, até a perna inteira adormecer, exceto pelo ponto de dor agonizante no joelho sobre o qual quase todo o meu peso se apoiava. Meu recorde de ajoelhar assim foi de seis horas, depois que eu desobedeci ao horário de me recolher, aos dezessete anos. Teria sido mais tempo, mas eu adormeci ou desmaiei, realmente não sei qual das duas coisas.
- Você cortou o cabelo - ela disse.
Eu já estava começando a decorar as linhas do chão.
- Sim, minha rainha.
- Por que cortou?
- Ter o cabelo até os tornozelos é uma marca dos encantados da alta corte. Eu estive vivendo como humana.
Senti que ela se inclinou sobre mim, levantou meu cabelo e passou os dedos nele.
- Então você sacrificou seu cabelo.
- É muito mais fácil cuidar dele com esse comprimento - eu disse, com a voz mais neutra possível.
- Levante-se, minha sobrinha.
Levantei lentamente e com cuidado, com meu salto baixo.
- Obrigada, tia Andais.
De pé eu era terrivelmente baixa, comparada com a presença alta e elegante dela. De salto ela ficava mais de trinta centímetros acima de mim. A maior parte do tempo não tinha consciência de que sou baixa, mas minha tia procurava chamar a atenção para isso. Ela tentava fazer com que me sentisse pequena.
Levantei a cabeça para olhar para ela e me esforcei para não balançá-la e suspirar. Depois de Cel, Andais era a parte que eu menos gostava da Corte Profana. Olhei para ela com olhar calmo e lutei muito para não suspirar alto.
- Estou sendo entediante para você? - ela perguntou.
- Não, tia Andais, claro que não.
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Minha expressão não me traiu. Pratiquei anos aquela expressão educada e neutra. Mas Andais teve séculos para aperfeiçoar seu estudo das pessoas. Ela não podia ler nossas mentes, mas a percepção que tinha dos menores detalhes e mudanças na linguagem corporal, na respiração, era quase tão boa como a verdadeira telepatia.
Andais olhava fixo para baixo, para mim, e uma pequena ruga havia se formado entre as sobrancelhas perfeitas.
- Eamon, leve nosso animalzinho de estimação para o outro quarto, quando for se vestir para o banquete.
O consorte real puxou um robe de brocado roxo das cobertas misturadas sobre a cama e vestiu-o antes de descer da cama. A faixa tinha sido amarrada nas costas, de modo que o robe não fechava mais na frente. O cabelo dele caiu emaranhado em ondas negras, quase até os tornozelos. O roxo escuro do robe, além de não esconder o corpo dele, funcionava como uma moldura para as visões que tínhamos do branco quando ele se movia pelo quarto.
Eamon inclinou um pouco a cabeça quando passou por mim. Também inclinei a minha em resposta. Ele deu um beijo gentil no rosto de Andais e foi para a pequena porta que dava no quarto menor e no banheiro depois dele. Uma conveniência moderna que a corte havia adotado era água encanada dentro de casa.
O louro sentou na beira da cama, também nu. Ele se espreguiçou e formou uma longa linha de carne bronzeada. Seus olhos passaram por mim quando fez isso. Ele percebeu que eu o observava e sorriu. Um sorriso predador, lascivo, agressivo. Os "ani-maizinhos de estimação" humanos sempre se equivocavam com a nudez casual dos guardas.
O louro se aproximou com passos largos e um gingado no passo. O deboche era proposital. Não era a nudez dele que me constrangia. Era o olhar dele.
- Suponho que ele seja novo - eu disse.
Andais observou o rapaz com frieza. Ele tinha de ser muito novo para não saber o que significava aquele olhar. Ela não estava satisfeita com ele, nem um pouco.
- Diga para ele o que acha dessa exibição, sobrinha.
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A voz dela soou muito calma, mas havia um tom discreto que quase dava para sentir na língua, algo amargo no meio de um doce.
Examinei desde os pés descalços até o cabelo recém-cortado, e cada centímetro no meio. Ele deu um sorriso largo quando fiz isso, chegou mais perto de mim, como se o meu olhar fosse um convite. Resolvi tirar aquele sorriso do rosto dele.
- Ele é jovem, é bonito, mas Eamon é mais bem-dotado.
O mortal parou e franziu a testa, depois o sorriso voltou, só que meio incerto.
- Acho que ele não sabe o que "dotado" significa - disse Andais.
Olhei para ela.
- Você nunca escolheu qualquer um deles pelo intelecto - eu disse.
- Não se conversa com um animal de estimação, Meredith. Você já devia saber disso.
- Se eu quiser um animal de estimação, pego um cachorro. Isso... - apontei para o rapaz - tem manutenção muito cara para mim.
O rapaz ficou sério, olhando para mim e para ela, obviamente infeliz e também confuso. Andais tinha quebrado uma das minhas regras principais do sexo. Por mais cuidado que se tome, podemos acabar grávidas. Afinal de contas, sexo serve para isso. Então nunca vá para a cama com alguém cruel ou burro, e feiura é questão de gosto, porque essas três coisas podem predominar. O louro era bonitinho, mas não o suficiente para compensar a careta de dúvida.
- Vá com Eamon. Ajude-o a se vestir para o banquete - disse Andais.
- Posso ir ao baile esta noite, minha senhora? - ele perguntou.
- Não - ela disse e virou-se para mim como se ele tivesse deixado de existir.
Ele olhou para mim de novo, e vi raiva e irritação. Ele sabia que eu o havia insultado, mas não tinha certeza como. Aquele olhar dele me fez estremecer. Havia pessoas na corte bem menos bonitas
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do que o novo "animal de estimação" dela, com as quais eu fui para a cama primeiro.
- Você não aprova - ela disse.
- Seria presunção minha aprovar ou desaprovar os atos da minha rainha - eu disse.
Ela deu risada.
- Lá vai você de novo, diz exatamente o que deve dizer, mas faz soar como um insulto assim mesmo.
- Perdão - eu disse e já ia me ajoelhar outra vez. Ela pôs a mão no meu ombro para me impedir.
- Não, Meredith, não se ajoelhe. A noite não vai durar para sempre, e você está hospedada num hotel esta noite. Por isso não temos muito tempo. - Ela tirou a mão sem me machucar. - Certamente não temos tempo para brincadeiras, não é?
Analisei o rosto sorridente da rainha e procurei determinar se ela estava sendo sincera, ou se era algum tipo de armadilha. Acabei respondendo:
- Se quiser brincar, minha rainha, fico muito honrada de entrar na brincadeira. Se tem negócios a tratar, eu me sinto honrada de ser incluída nisso também, tia Andais.
Ela deu risada de novo.
- Ah, boa menina, está me fazendo lembrar que é minha sobrinha, minha parente de sangue. Você teme o meu humor, desconfia dele, por isso me faz lembrar do seu valor para mim. Muito bom.
Aquilo não parecia uma pergunta, por isso eu não disse nada, já que ela estava absolutamente certa.
Ela olhou para mim, mas apenas chamou:
- Frost.
Ele atendeu, de cabeça baixa:
- Minha rainha.
- Vá para o seu quarto e vista a roupa que mandei fazer para você usar esta noite.
Ele se abaixou sobre um joelho.
- A roupa... não serviu, minha rainha.
Vi a luz morrer nos olhos dela, ficaram frios e vazios como o céu branco de inverno.
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- Serviu sim - ela disse - Foi literalmente feita sob medida para você.
Ela agarrou um tufo do cabelo prateado de Frost e puxou a cabeça dele para poder olhar nos olhos dele.
- Por que não está usando a roupa? Ele lambeu os lábios.
- Minha rainha, achei a outra roupa desconfortável.
Ela inclinou a cabeça para o lado, como fazem os corvos espiando o olho de um homem morto antes de arrancá-lo com uma bicada.
- Desconfortável, desconfortável. Ouviu isso, Meredith? Ele achou a roupa que mandei fazer para ele desconfortável.
Andais puxou a cabeça de Frost para trás e expôs todo o pescoço dele. Eu vi a artéria dele pulsando, saltada.
- Estou ouvindo, tia Andais - eu disse, e dessa vez usei a voz mais neutra, monótona e vazia que podia. Alguém ali ia se machucar e não queria que fosse eu. Frost era um idiota. Eu teria usado a roupa.
- O que acha que devemos fazer com o nosso Frost desobediente? - ela perguntou.
- Mandá-lo para o quarto dele, para vestir a roupa - eu disse. Ela puxou a cabeça dele mais para trás ainda, até ele vergar a coluna, e eu sabia que era capaz de quebrar o pescoço de Frost com apenas um pouco mais de pressão.
- Isso não é castigo que baste, sobrinha. Ele desobedeceu a uma ordem direta minha. Isso não é permitido.
Procurei pensar em alguma coisa que Andais achasse divertido, que não fosse doloroso para Frost. Deu um branco na minha cabeça- Nunca fui boa naquele tipo de jogo. Mas então tive uma ideia.
- Você disse que não íamos mais brincar esta noite, tia Andais. A noite é curta.
Ela soltou Frost tão de repente que ele caiu de quatro no chão. E ficou assim, de cabeça abaixada, com o cabelo prateado cobrindo seu rosto como uma conveniente cortina.
- É, eu disse - concordou Andais. - Doyle. Doyle se apresentou e abaixou a cabeça.
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- Senhora?
Bastou um olhar dela para ele. Doyle encostou um joelho no chão. A capa se espalhou em volta dele como água preta. Ele ficou ajoelhado ao lado de Frost, tão perto que seus corpos quase se tocaram.
Andais pôs a mão na cabeça dos dois, mas dessa vez tocando de leve.
- Uma bela dupla, não acha?
- Acho - eu disse.
- Acha o quê? - ela cobrou.
- Sim, eles formam uma bela dupla, tia Andais - respondi. Ela fez que sim com a cabeça, com ar de satisfação.
- Encarrego você, Doyle, de levar Frost para o quarto dele e fazer com que ele vista a roupa que mandei fazer para ele. Traga-o para o banquete com a roupa, ou entregue-o para Ezekial para ser torturado.
- Como minha senhora deseja, assim será feito - disse Doyle. Ele se levantou, fez Frost levantar também e segurou o braço dele. Os dois foram recuando para a porta, de cabeça baixa. Doyle olhou rapidamente para mim quando se afastaram. Podia estar se desculpando por me deixar sozinha com ela, sem ele, ou então avisando alguma coisa. Não consegui decifrar o que era aquele olhar. Mas ele saiu do quarto com a minha arma ainda na cintura. Gostaria de tê-la comigo.
Rhys foi ficar perto da porta, como bom guarda. Andais viu o movimento como um gato espiando passarinhos, mas o que disse foi até suave:
- Espere do lado de fora, Rhys. Quero conversar privadamente com a minha sobrinha.
Rhys ficou surpreso. Ele olhou para mim e praticamente pedia minha permissão.
- Obedeça... ou quer se juntar aos outros na câmara de trabalho de Ezekial?
Rhys abaixou a cabeça.
- Não, minha senhora. Farei o que me foi ordenado.
- Saia - ela disse.
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Ele olhou mais uma vez para mim e saiu, fechando a porta. O quarto ficou muito, muito quieto, de repente. O ruído do vestido da minha tia arrastando no chão ficou alto naquela quietude, como as escamas secas, farfalhantes, de uma serpente enorme. Ela foi até o outro extremo do quarto onde havia degraus que davam numa pesada cortina preta. Puxou a cortina para um lado e revelou uma pesada mesa de madeira com uma cadeira trabalhada de um lado e um banco sem encosto do outro. Havia um tabuleiro com um jogo de xadrez armado nessa mesa redonda, as peças pesadas e bem lisas, de séculos de manuseio ao longo da superfície de mármore. E no tabuleiro, o mármore apresentava sulcos como caminhos pisoteados.
Contra a parede arredondada da grande alcova havia um armário de armas cheio de rifles e pistolas. E duas bestas na parede em cima do armário. Eu sabia que as flechas estavam atrás das portas fechadas na parte de baixo do armário, junto com a munição. Havia uma estrela da manhã como uma bola pesada e cheia de pontas numa corrente e uma maça apoiadas de um lado do armário de armas. Cruzadas como as espadas do outro lado. Um escudo enorme, com os signos de Andais, o corvo, a coruja e a rosa vermelha, ficava embaixo da maça e da estrela da manhã. O escudo de Eamon estava embaixo das espadas cruzadas. Dos dois lados da parede havia correntes com grilhões para pulsos e tornozelos. Sobre as correntes ganchos, onde havia um chicote enrolado como uma cobra à espreita. Um chicote menor pendia sobre as correntes do lado direito. Eu o chamaria de gato de nove caudas, mas tinha muito mais caudas do que isso, cada uma com uma pequena bola de ferro na ponta, ou um gancho de aço.
- Vejo que seus passatempos não mudaram - eu disse. Procurei continuar neutra, mas minha voz me traiu. As vezes, quando ela abria aquela cortina, se jogava xadrez. Outras vezes, não.
- Venha, Meredith, sente-se. Vamos conversar.
Ela sentou na cadeira de espaldar alto e botou a cauda do vestido sobre um braço para não amassar. Apontou o banco para mim.
- Sente-se, sobrinha. Eu não vou te morder. - Ela sorriu, depois deu uma súbita risada. - Ainda não, de qualquer maneira.
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Era o mais próximo que eu chegaria de uma promessa de que ela não ia me machucar... ainda. Equilibrei-me no alto do banquinho sem encosto, com os saltos apoiados numa das traves para não cair. Eu às vezes pensava que Andais ganhava as partidas de xadrez simplesmente porque as costas do adversário não aguentavam.
Toquei a beirada do pesado tabuleiro de mármore.
- Meu pai me ensinou a jogar xadrez na cópia desse tabuleiro - eu disse.
- Não precisa me lembrar, de novo, que é filha do meu irmão. Não te farei mal nenhum esta noite.
Acariciei o tabuleiro e olhei para ela, para aqueles olhos bonitos e nada confiáveis.
- Eu talvez ficasse menos cautelosa se você não dissesse coisas como "não te farei mal nenhum esta noite". Se simplesmente dissesse que não me deseja mal nenhum - disse isso meio perguntando, meio afirmando.
- Ah, não, Meredith. Dizer isso seria quase mentir, e nós não mentimos, não assim diretamente. Podemos falar até você achar que branco é preto, e que a luz é feita de queijo, mas não mentimos.
Eu falei com a voz mais calma possível:
- Então você pretende me fazer algum mal, só que não esta noite.
- Não farei mal a você se não me forçar.
Franzi a testa, sem perceber o que ela queria dizer.
- Não entendi, tia Andais.
- Você nunca pensou por que exijo o celibato dos meus homens?
A pergunta foi tão inesperada que eu fiquei só olhando para ela, muda e boquiaberta, alguns segundos. Finalmente fechei a boca e encontrei minha voz:
- Sim, tia Andais, já pensei.
Na verdade esse era um grande debate há séculos. Por que ela fazia isso?
- Os homens da nossa corte passaram séculos espalhando suas sementes. Geraram muitos mestiços, mas cada vez menos encantados puro-sangue. Por isso fiz com que conservassem suas energias-
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- Então por que negar-lhes o acesso às mulheres da alta corte? Ela recostou na cadeira, acariciando os braços de madeira com as luvas de couro.
- Porque eu queria que a minha linhagem continuasse, não a delas. Houve uma época em que eu teria preferido você morta do que arriscar que herdasse o meu trono.
- Sim, tia Andais - eu disse, olhando para aqueles olhos claros.
- Sim, o quê?
- Sim, eu sabia.
- Eu vi os vira-latas tomando conta da corte. Os humanos tinham nos expulsado para a clandestinidade, e agora o sangue deles estava corrompendo a nossa corte. Nasciam mais deles do que de nós.
- Pelo que sei, tia, os humanos sempre foram em maior número. Tem alguma coisa a ver com o fato de serem mortais.
- Essus me disse que você era filha dele. Que ele a amava. Ele também me disse que você seria uma ótima rainha um dia. Eu ri na cara dele. - Ela observou meu rosto. - Não estou dando risada agora, sobrinha.
Não sabia o que ela queria dizer com isso.
- Não entendi, tia.
- Você tem o sangue de Essus nas suas veias. O sangue da minha família. Eu prefiro a continuidade de um pouco do meu sangue do que nenhum. Quero que nossa linhagem se perpetue, Meredith.
- Não sei bem se entendi o que quer dizer com "nossa", tia. Mas eu tinha uma sensação assustadora de que entendia.
- Nossa, nossa, Meredith, sua, minha, do Cel. A entrada do meu primo na mistura fez meu estômago se apertar. Não era tão incomum casamentos entre encantados da mesma família. Se era isso que ela pretendia, eu estava profundamente encrencada. Sexo não era um destino pior do que a morte. Mas sexo com meu primo Cel podia ser.
Abaixei a cabeça e olhei para as peças no tabuleiro porque não confiava que podia esconder aquela emoção. E não ia para a Cama com Cel.
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- Quero que nossa linhagem continue, Meredith, a qualquer preço.
Finalmente olhei para ela, com o rosto inexpressivo.
- E qual seria esse preço, tia Andais?
- Nada tão desagradável como parece que você está pensando. Acredite, Meredith, não sou sua inimiga.
- Se me permite essa ousadia, minha tia, também não é minha amiga.
Ela fez que sim com a cabeça.
- Isso é verdade. Você não significa nada para mim, além de um recipiente para dar continuidade à nossa linhagem.
Não consegui me controlar e sorri.
- Eu disse alguma coisa engraçada?
- Não, tia Andais, não foi engraçado, de maneira nenhuma.
- Ótimo, então vou ser direta. Eu lhe dei o anel que está no seu dedo, saído da minha própria mão.
Olhei fixamente para ela. Andais parecia não ter nenhuma intenção maligna mesmo. Parecia não saber da tentativa de assassinato no carro.
- Agradeço muito o presente - eu disse, mas mesmo para mim essas palavras não soaram muito sinceras.
Ela não ouviu ou preferiu ignorar.
- Galen e Barinthus me disseram que o anel ganhou vida mais uma vez na sua mão. Fiquei mais satisfeita com isso do que você pode imaginar, Meredith.
- Por quê? - perguntei.
- Porque se o anel ficasse inativo na sua mão, indicaria que você é estéril. O fato dele ganhar vida quer dizer que você é fértil e pode gerar filhos.
- Por que ele reage a todos em quem eu toco?
- Com quem mais ele reagiu além de Galen e de Barinthus. - ela perguntou.
- Com Doyle e com Frost.
- Com Rhys não? - ela quis saber. Balancei a cabeça.
- Não.
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- Você encostou a prata na pele dele?
Já ia dizer que sim, então pensei melhor.
- Acho que não. Acho que foi só na roupa dele.
- Precisa ser na pele, diretamente - disse Andais. - Até um tecido fino pode atrapalhar.
Ela se inclinou para a frente, pôs as mãos na mesa, pegou uma torre que estava fora do jogo e ficou rodando com as mãos enluvadas. Se fosse outra pessoa eu diria que estava nervosa.
- Eu vou rescindir meu decreto de celibato para a minha Guarda.
- Minha senhora - eu disse com voz suave e um suspiro baixinho. - Essa é uma notícia maravilhosa.
Eu tinha melhores adjetivos, mas fiquei com o maravilhoso. Nunca era bom parecer satisfeita demais na frente da rainha. Mas fiquei imaginando por que ela resolveu contar isso primeiro para mim.
- A regra será suspensa para você e só para você, Meredith. Ela se concentrou na peça de xadrez, não olhou para mim.
- Perdão, minha senhora?
Eu nem tentei disfarçar o choque.
- Quero que nossa linha de sangue continue, Meredith. O anel reage aos guardas que ainda são capazes de gerar filhos. Se o anel não fizer nada, nem se preocupe com eles. Mas se ele reagir, então pode ir para a cama com eles. Quero que você escolha alguns guardas e que durma com eles. Não me importa com qual deles, mas dentro de três anos quero que você tenha um filho ou uma filha, da nossa linhagem.
Ela pôs a torre na mesa e olhou bem dentro dos meus olhos. Passei a língua nos lábios e procurei pensar num jeito educado de fazer perguntas.
- Essa oferta é muito generosa, minha rainha, mas quando diz alguns, a quantos está se referindo?
- Quis dizer que você deve escolher mais de dois. Três ou mais de cada vez.
Fiquei calada alguns segundos porque mais uma vez precisava de informação e não queria ser rude.
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- Três de cada vez de que modo, minha senhora? Ela franziu a testa.
- Ah, pelos micos de Danus, faça as perguntas que quiser, Meredith!
- Muito bem - eu disse - quando diz três ou mais de cada vez, quer dizer literalmente na cama comigo de uma vez só, ou é apenas namorar os três ao mesmo tempo?
- Da maneira que você quiser interpretar - ela disse. - Leve-os para a sua cama um de cada vez ou todos juntos, desde que leve.
- Por que devem ser três ou mais ao mesmo tempo?
- Será que é uma coisa tão horrível assim, ter de escolher entre alguns dos homens mais belos do mundo? Ter um filho com um deles e continuar a nossa linhagem? Como isso pode ser tão terrível?
Olhei para ela, tentei traduzir aquele lindo rosto e não consegui.
- Aprovo liberar os homens desse celibato, mas queridíssima tia, não faça de mim a única saída para eles. Eu imploro. Eles vão se engalfinhar como lobos famintos, não por eu ser algum prêmio valioso, mas porque ninguém é melhor do que ninguém.
- É por isso que insisto para você ir para a cama com mais de um por vez. Você deve dormir com a maioria deles antes de fazer sua escolha. Assim todos sentirão que tiveram uma chance. Senão, é como você diz. Haverá duelos até não restar mais ninguém de pé. Faça com que eles se esforcem para seduzi-la, em vez de se matar.
- Gosto de sexo, minha rainha, e não fui feita para a monogamia, mas há alguns da sua Guarda com quem nem posso trocar um cumprimento civilizado, e o sexo está a um passo de uma conversa trivial e educada.
- Farei de você minha herdeira - ela diz, com a voz muito calma e baixa.
Fiquei espantada olhando para a expressão dela, cuidadosa, ilegível. Não acreditei no que tinha acabado de ouvir.
- Pode repetir o que acabou de dizer, minha rainha?
- Você será minha herdeira - ela disse.
- E o que o primo Cel pensa sobre isso?
- O primeiro de vocês que tiver um filho, esse herdará o meu trono. Isso não melhora tudo?
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Eu me levantei abruptamente, e o banquinho caiu com estrondo no chão. Fiquei alguns segundos olhando para ela. Não tinha certeza do que ia dizer, porque nada daquilo parecia real.
- Devo observar humildemente, tia Andais, que eu sou mortal, e você não é. Você certamente vai sobreviver muitos séculos a mim. Mesmo se eu gerasse uma criança, ela jamais veria o trono.
- Eu abdico - ela disse.
Agora eu tinha certeza de que ela estava brincando comigo. Tudo aquilo era uma espécie de jogo. Tinha de ser.
- Você uma vez disse para o meu pai que ser rainha era sua razão de viver. Que adorava ser rainha, mais do que amava qualquer um, ou qualquer coisa.
- Nossa, você tem excelente memória para conversas entreouvidas.
- Você sempre falou livremente na minha frente, tia, como se eu fosse um dos seus cães. Você quase me afogou quando eu tinha seis anos. Agora está me dizendo que abdicaria do trono por mim. O que, na terra abençoada, poderia tê-la feito mudar de ideia assim tão completamente?
- Você lembra o que Essus me disse naquela noite? - ela perguntou.
Balancei a cabeça.
- Não, minha rainha.
- Essus disse: "Mesmo se Merry nunca subir ao trono, ela será mais rainha do que Cel jamais será rei."
- Você bateu nele aquela noite - eu disse. - Nunca lembrei por quê.
Andais meneou a cabeça concordando.
- Foi por isso.
- Então está insatisfeita com seu filho.
- Isso é problema meu - ela disse.
- Se eu deixar que me eleve a coerdeira junto com Cel, isso será problema meu também.
Eu estava com a abotoadura na bolsa. Pensei em mostrar para ela, mas não mostrei. Andais passara séculos negando o que Cel era e do que ele era capaz. Dizer para ela qualquer coisa contra
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Cel era correr um grande risco. Além do mais, a abotoadura podia pertencer a um dos guardas, embora eu não conseguisse imaginar por que algum guarda ia querer me ver morta, sem receber uma ordem direta de Cel.
- O que você quer, Meredith? O que você quer, de tudo que posso dar, para você achar que vale a pena fazer o que estou pedindo?
Ela estava me oferecendo o trono. Barinthus ficaria muito satisfeito. E eu, será que estava satisfeita?
- Tem certeza de que a corte vai me aceitar como rainha?
- Vou anunciá-la Princesa da Carne esta noite. Eles ficarão impressionados.
- Se acreditarem nisso - eu disse.
- Vão acreditar se eu falar - ela disse.
Andais acreditava no que estava dizendo, isso pude ver na expressão dela. Ela se supervalorizava. Mas essa arrogância absoluta era típica dos encantados.
- Volte para casa, Meredith, o seu lugar não é lá fora com os humanos.
- Como me faz lembrar tantas vezes, tia, sou meio humana.
- Três anos atrás você estava contente, feliz. Não tinha planos de nos deixar.
Ela se recostou na cadeira, ficou me observando.
- Eu sei o que Griffin fez.
Encarei aqueles olhos claros um segundo, mas não consegui mais tempo. Não era pena que eu via. Era frieza, parecia que ela só queria ver a minha reação, nada além disso.
- Você realmente pensa que eu deixei a corte por causa do Griffin?
Nem tentei disfarçar o espanto da minha voz. Não era possível que ela acreditasse sinceramente que eu tinha ido embora da corte por causa de um coração partido.
- A última briga que vocês dois tiveram foi bem pública.
- Eu me lembro da briga, queridíssima tia, mas não foi Por isso que deixei a corte. Eu fui embora porque não iria sobreviver ao próximo duelo.
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Ela me ignorou. Naquele momento percebi que ela jamais acreditaria nos defeitos do filho, a não ser que fosse forçada, sem a menor sombra de dúvida. Eu não podia dar-lhe essa prova absoluta e, sem ela, não ia revelar minha suspeita, não sem me arriscar.
Ela continuou falando de Griffin como se eu tivesse saído da corte por causa dele:
- Mas foi Griffin que começou aquela briga. Ele queria saber por que não estava na sua cama, no seu coração, como antes. Você passou noites correndo atrás dele na corte, e então era ele que a perseguia. Como conseguiu essa mudança tão rápida nele?
- Eu o recusei na cama.
Olhei nos olhos dela, mas não havia riso neles, só uma intensidade constante.
- E bastou isso para ele andar atrás de você em público, como uma mulher de pescador enraivecida?
- Acho que ele realmente acreditava que eu ia perdoá-lo. Que ia castigá-lo por um tempo e depois aceitá-lo de volta. Naquela última noite ele finalmente entendeu que eu falava sério.
- O que você disse? - ela perguntou.
- Que ele nunca mais ficaria comigo enquanto eu vivesse. Andais me encarou com firmeza.
- Você ainda o ama? Balancei a cabeça.
- Não.
- Mas ainda sente alguma coisa por ele. Não foi uma pergunta.
- Sinto sim, mas não é nada de bom - eu disse, balançando a cabeça novamente.
- Se ainda quiser Griffin, pode tê-lo por mais um ano. Se ao fim desse tempo não estiver grávida, pedirei que escolha outro.
- Não quero Griffin, não o quero mais.
- Ouço tristeza na sua voz, Meredith. Tem certeza de que não e ele que você quer?
Dei um suspiro, apoiei as mãos na mesa e fiquei olhando para ela. Eu estava curvada e cansada. Tinha me esforçado muito Para não pensar em Griffin e no fato de que o veria naquela noite.
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- Se ele pudesse sentir por mim o que eu sentia por ele, se ele realmente me amasse como eu o amava, então sim, ia querê-lo, mas isso não é possível. Ele não pode ser outra pessoa, e eu também não.
Olhei para ela, sentada do outro lado da pequena mesa.
- Você pode incluí-lo na competição para conquistar seu coração, ou pode excluí-lo. A decisão é sua.
Fiz que sim com a cabeça e endireitei o corpo, não ia ficar encolhida como um coelho ferido.
- Obrigada por isso, queridíssima tia.
- Por que será que isso soa em seus lábios como o pior dos insultos?
- Não tive a intenção de insultá-la. Ela me fez calar com um gesto.
- Não se preocupe, Meredith. Não existe afeto entre nós. E nós duas sabemos disso.
Ela me examinou de cima a baixo.
- Sua roupa é aceitável, apesar de não ser o que eu teria escolhido.
Eu sorri, mas não foi um sorriso de alegria.
- Se soubesse que ia ser nomeada herdeira esta noite, teria usado o original de Tommy Hilfiger.
Ela riu e se levantou, com um farfalhar da saia e das anáguas.
- Você pode comprar um guarda-roupa inteiro, se quiser. Ou pode mandar os costureiros da corte criarem um para você.
- Estou bem assim - eu disse. - Mas obrigada pela oferta.
- Você é muito independente, Meredith. Jamais gostei disso em você.
- Eu sei - eu disse.
- Se Doyle tivesse contado nas terras do oeste o que eu planejava para você esta noite, você viria de bom grado, ou teria tentado fugir?
Arregalei os olhos, espantada.
- Você está me nomeando herdeira. Permite que eu namore os guardas. Não é um destino pior do que a morte, tia Andais-
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Ou será que há mais alguma coisa que você ainda não me contou, sobre esta noite?
- Levante o banquinho, Meredith, vamos deixar esta sala arrumada, está bem?
Ela deslizou ao descer os degraus e caminhar até a porta na parede oposta.
Peguei o banquinho, mas não gostei de ela não ter respondido à minha pergunta. Tinha mais coisa aí.
Eu a chamei antes de chegar à pequena porta:
- Tia Andais?
Ela deu meia-volta.
- Sim, sobrinha.
A expressão dela era um pouco debochada e condescendente.
- Se o feitiço de luxúria que você pôs no carro tivesse funcionado, se Galen e eu tivéssemos feito amor, você teria matado nós dois?
Ela piscou algumas vezes, o sorriso discreto desapareceu do rosto.
- Feitiço de luxúria? Do que você está falando? Contei a ela.
- O feitiço não foi meu - ela negou. Levantei a mão para mostrar o anel cintilante.
- Mas aquele feitiço usou o seu anel para aumentar o poder.
- Dou-lhe a minha palavra, Meredith, não pus qualquer tipo de feitiço no carro. Apenas deixei o anel lá para você encontrar, só isso.
- Você mesma deixou o anel, ou deu para alguém botar no carro? - perguntei.
Ela não me olhava nos olhos.
- Eu pus lá.
E eu sabia que ela estava mentindo.
- Alguém mais sabe que você pretende revogar a ordem de Celibato para mim?
Ela balançou a cabeça, e um cacho comprido e preto deslizou sobre seu ombro.
- Eamon sabe, mas só ele, e ele é muito discreto.
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Concordei.
- É mesmo.
Minha tia e eu nos encaramos, uma de cada lado do quarto, eu vi a ideia se formar no olhar dela e depois se espalhar pelo rosto.
- Alguém tentou assassinar você - ela disse. Meneei a cabeça.
- Se Galen e eu tivéssemos feito amor, e você não revogasse a norma, você poderia me matar por isso. O destino de Galen parece apenas incidental nisso tudo.
A raiva crispou o rosto de Andais como a luz de uma vela dentro de um vidro.
- Você sabe quem fez isso - eu disse.
- Não sei, não, mas o que eu sei é quem sabia que você ia ser nomeada coerdeira.
- Cel - eu disse.
- Eu tinha de prepará-lo - ela disse.
- Eu sei.
- Não foi ele que fez isso - ela disse, e pela primeira vez notei uma coisa na voz dela, o mesmo tipo de protesto que se ouve de qualquer mãe quando defende um filho.
Fiquei simplesmente olhando para ela sem expressão nenhuma. Foi o melhor que pude fazer, porque conhecia Cel. Ele não desistiria sem mais nem menos ao seu direito de nascença por um capricho da mãe, rainha ou não.
- O que Cel fez para deixá-la furiosa com ele? - perguntei.
- Digo a você, como disse para ele, não estou furiosa com ele. Mas havia negação demais na voz dela. Andais estava na defensiva pela primeira vez aquela noite. Gostei.
- Cel não acreditou nisso, não é?
- Ele sabe quais são os meus motivos - ela disse.
- Você se importaria de revelar esses motivos para mim? - pedi.
Ela sorriu, e foi o primeiro sorriso sincero que vi em toda a nossa conversa. Um movimento dos lábios, quase constrangido-Ela apontou o dedo enluvado para mim.
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- Não, meus motivos são só meus. Quero que você escolha alguém para levar para a cama esta noite. Leve-os para o seu hotel, não me importa quem são, mas quero que comece esta noite.
O sorriso desapareceu. Ela voltou à postura real novamente, indecifrável, resguardada, misteriosa e ao mesmo tempo totalmente óbvia.
- Você nunca me entendeu, tia.
- Que mal lhe pergunte, o que isso quer dizer?
- Quer dizer, queridíssima tia, que se você tivesse omitido essa última ordem, eu provavelmente levaria alguém para a minha cama hoje. Mas obedecer a uma ordem dessas faz com que me sinta uma prostituta real. Não gosto disso.
Ela arrumou a saia e veio na minha direção com a cauda do vestido arrastando no chão. Conforme foi se aproximando, seu poder começou a se desdobrar, esvoaçou pelo quarto como fagulhas invisíveis que pinicavam minha pele. As duas primeiras vezes eu pulei, depois fiquei parada e deixei o poder se fartar na minha pele. Eu tinha armas de aço, mas algumas facas jamais bastaram para enfrentar a mágica de Andais. Tinham de ser os meus poderes recém-descobertos que impediriam que aquilo fosse muito pior.
Ela semicerrou os olhos quando parou na minha frente. Eu estava sobre a pequena plataforma elevada, de modo que ficamos olho no olho. A mágica da rainha saía dela como um muro móvel de força. Tive de firmar meus pés, como se enfrentasse uma ventania. As pequenas picadas ardidas viraram uma dor constante, parecia que eu estava dentro de um forno, sem tocar a superfície incandescente, mas sabendo que um movimento mínimo faria minha pele queimar e secar.
- Doyle disse que seus poderes tinham aumentado, mas eu não acreditei muito. E agora você está aí na minha frente, e devo reconhecer que é uma verdadeira encantada, afinal. - Ela pôs o Pé no primeiro degrau. - Mas nunca se esqueça de que eu sou a rainha aqui, Meredith, não você. Por mais poderosa que se torne, Jamais será rival para mim.
- Eu jamais teria essa pretensão, minha senhora - eu disse, e mminha voz tremeu um pouco.
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A mágica me empurrava. Eu não conseguia respirar direito. Estava ofuscada como se olhasse diretamente para o sol. Fiz força para me manter firme e não ceder território.
- Minha senhora, diga o que quer que eu faça, e eu farei. Não representei nenhum desafio.
Ela subiu mais um degrau, e dessa vez eu recuei. Não queria que ela encostasse em mim.
- Pelo simples fato de se manter de pé diante do meu poder já está me desafiando.
- Se deseja que eu me ajoelhe, eu ajoelho. Diga o que quer, minha rainha, farei o que deseja.
Não queria entrar numa disputa de magia com ela. Eu perderia. Sabia que perderia. E acabaria sem nada.
- Faça o anel criar vida no meu dedo, sobrinha. Eu não sabia o que dizer. Estendi a mão para ela.
- Quer o anel de volta?
- Mais do que você pode imaginar, mas ele é seu agora, sobrinha. Quero que o aproveite.
Essa última frase pareceu mais uma maldição do que uma bênção.
Fui até o outro lado da mesa e me agarrei nela para suportar a pressão crescente da magia de Andais.
- O que quer de mim?
Ela não respondeu. Fez um gesto com as duas mãos na minha direção, e a pressão se transformou numa força que me jogou para trás. Saí do chão um segundo e bati com as costas na parede, a cabeça logo depois. Consegui me manter de pé, mas com uma chuva de flores cinzas e brancas no canto do olho.
Quando a visão clareou, Andais estava diante de mim segurando uma faca. Ela encostou a ponta na pequena depressão na base da minha garganta e apertou-a até eu sentir espetar a pele. Botou o dedo no ferimento e tirou-o, com uma gota trêmula do meu sangue no couro que cobria sua mão. Virou o dedo para baixo, e a gota de sangue caiu no chão.
- Saiba de uma coisa, minha sobrinha. O seu sangue é o meu sangue, e é só por isso que me importo com o que acontece com
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você. Não me importo se gostou ou não do que planejei para você. Preciso que você dê continuidade à nossa linhagem, mas se não me ajudar a realizar isso, não precisarei mais de você.
Ela afastou a faca bem devagar, apenas alguns centímetros. Encostou o lado da lâmina no meu rosto, com a ponta perigosamente perto do meu olho.
Senti minha pulsação acelerada na língua e me esqueci de respirar. Olhei para o rosto dela e sabia que me mataria, sem mais nem menos.
- Quem não é útil para mim é descartado, Meredith.
Ela pressionou o lado da faca na pele e, quando eu piscava, meus cílios tocavam na ponta da lâmina.
- Você escolherá alguém para levar para a cama esta noite. Não me importa quem seja. Já que você invocou o direito de virgem, tem liberdade para voltar para Los Angeles, mas terá de escolher alguém da minha guarda para levar com você. Então observe-os esta noite, Meredith, com esses seus olhos verde-esmeralda e dourados, esses seus olhos de encantado, e faça sua escolha.
Ela chegou o rosto bem perto do meu, tão perto que poderia me beijar. Sussurrou as últimas palavras dentro da minha boca:
- Trepe com um deles esta noite, Meredith, porque senão, amanhã à noite divertirá a corte com um grupo que eu vou escolher.
Ela sorriu, e era o sorriso que dava quando pensava em algo perverso, doloroso.
- Pelo menos um dos que você escolher terá de ser criatura minha para espionar para mim. Se resolver voltar para Los Angeles.
Minha voz saiu um fiapo.
- Preciso dormir com o seu espião?
- Precisa - ela disse.
A ponta da faca chegou um pouco para cima, tão perto que embaçou minha visão, e eu lutei para não piscar, porque se piscasse furaria a pálpebra.
- Está bom assim para você, sobrinha? Está bom para você eu querer que durma com o meu espião?
Respondi a única coisa que podia dizer:
- Sim, tia Andais.
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- Você vai escolher seu pequeno harém hoje, durante o banquete?
Meus olhos não estavam tremendo. Ardiam com a necessidade de piscar.
- Sim, tia Andais.
- Vai dormir com alguém esta noite antes de pegar o voo de volta para suas terras do oeste?
Arregalei bem os olhos e me concentrei no rosto dela, em olhar para ela. A faca era uma mancha embaçada de aço que bloqueava quase toda a visão do meu olho direito, mas ainda conseguia enxergar, dava para ver o rosto dela pairando sobre o meu como uma lua pintada.
- Sim - sussurrei.
Ela tirou a lâmina do meu rosto e disse:
- Pronto. Foi tão difícil assim?
Desabei contra a parede, de olhos fechados. Fechei os olhos porque não pude evitar que a raiva ficasse estampada neles, e não queria que Andais visse. O que eu mais queria era sair daquele quarto, apenas sair dali, para bem longe dela.
- Vou chamar Rhys para acompanhá-la até a festa. Você parece meio trêmula.
Andais deu risada.
Abri os olhos, pisquei para expulsar as lágrimas provocadas por ter sido forçada a não piscar. Ela desceu os degraus.
- Vou chamar Rhys, só que, com o feitiço que botaram no carro, talvez você precise de mais um guarda. Vou pensar em quem vou enviar para ficar ao seu lado.
Ela já estava saindo quando se virou e disse:
- E quem será o meu espião? Vou procurar escolher alguém bonito, que seja bom de cama, para essa tarefa não ser muito custosa.
- Não vou para a cama com homens burros, ou mesquinhos - eu disse.
- A primeira coisa não limita muito o campo de escolha, mas a segunda... alguém que tenha espírito generoso, isso é uma exigência e tanto.
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O sorriso dela se iluminou. Era óbvio que devia estar pensando em alguém.
- É, ele talvez sirva.
- Quem? - perguntei.
- Você não gosta de surpresas, Meredith?
- Não muito.
- Bem, eu gosto. Gosto demais de surpresas. Ele será meu presente para você. Ele é formidável na cama, ou era... sessenta... ou seriam noventa anos atrás? Sim, acho que ele será ótimo.
Não me dei ao trabalho de perguntar quem era de novo.
- Como pode ter certeza de que ele vai espionar para você quando estiver em Los Angeles?
Ela parou com a mão na maçaneta.
- Porque ele me conhece, Meredith. Ele sabe do que sou capaz, tanto no prazer, como na dor.
Com isso ela abriu a porta dupla e mandou Rhys voltar para o quarto.
Ele olhou para ela e depois para mim. Arregalou um pouco os olhos, mas só. A expressão dele estava cuidadosamente neutra quando se aproximou e ofereceu o braço para mim. Aceitei, aliviada. Pareceu uma eternidade a caminhada até a porta. Queria sair correndo daquele quarto e continuar correndo. Rhys deu um tapinha afetuoso na minha mão, parecia sentir a tensão em todo meu corpo. Eu sabia que ele tinha visto o pequeno ferimento em meu pescoço. Ele podia imaginar como foi provocado.
Chegamos até a porta, entramos no corredor. Meus ombros relaxaram um pouco.
- Divirtam-se, crianças - disse Andais às nossas costas. - Nós los encontraremos de novo na festa.
Ela bateu a porta ruidosamente, e dei um pulo. Rhys quase parou.
- Você está bem?
Apertei o braço dele e puxei-o para irmos andando.
- Tire-me daqui, Rhys. Só quero que me tire daqui. Ele não perguntou nada. Simplesmente me conduziu pelo corredor, para longe daquele lugar.
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Voltamos pelo caminho de ida, só que agora o corredor era reto e mais estreito. Um corredor diferente. Olhei para trás e não vi mais a porta dupla. Os aposentos da rainha estavam em outra parte. Por um tempo eu estava a salvo. Comecei a tremer e não conseguia parar.
Rhys me abraçou com os dois braços, apertou-me contra o peito. Afundei nele, envolvi sua cintura por baixo da capa. Ele afastou o cabelo do meu rosto.
- Sua pele está fria. O que ela fez, Merry? - Ele levantou gentilmente a minha cabeça para poder ver meu rosto enquanto eu continuava abraçada nele. - Conte para mim - ele disse, com a voz suave.
Balancei a cabeça.
- Ela me ofereceu tudo, Rhys, tudo que uma pequena encantada podia querer. O problema é que não confio nela.
- Do que você está falando? - ele quis saber. Eu me afastei dele.
- Disso.
Toquei meu pescoço, onde o sangue estava secando.
- Eu sou mortal, Rhys. O fato de terem me oferecido a lua não quer dizer que vou sobreviver para me apossar dela.
A expressão de Rhys era gentil, mas então percebi de repente que ele era muito mais velho do que eu. O rosto dele ainda era jovem, mas o olhar não.
- Essa é a pior das ofensas? Fiz que sim com a cabeça.
Ele estendeu a mão e tocou no ferimento. Nem doeu quando ele fez isso. Não era exatamente um ferimento. O difícil mesmo era explicar que o que doía não aparecia na pele. A rainha estava vivendo a negação do que Cel era, mas eu tinha consciência disso. Ele jamais dividiria o trono comigo. Um de nós teria de morrer antes de o outro assumir o reinado.
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- Ela ameaçou você? - perguntou Rhys. Meneei a cabeça novamente.
- Você parece apavorada, Merry. O que foi que ela disse para você lá dentro?
Olhei fixo para ele, e não quis contar. Se dissesse em voz alta, tornaria aquilo mais real ainda. Mas era mais do que isso. A verdade é que se Rhys soubesse não ficaria totalmente desgostoso.
- É meio boa notícia, meio má notícia - eu disse.
- Qual é a boa?
Contei para ele que ia ser nomeada coerdeira. Ele me abraçou com força.
- Essa é uma notícia maravilhosa, Merry. O que poderia ser má notícia depois disso?
Desvencilhei-me do abraço dele.
- Você acha mesmo que Cel vai me deixar viver tempo suficiente para ocupar o lugar dele? Ele estava por trás do atentado contra a minha vida três anos atrás e não tinha um motivo nem de longe tão bom para querer me ver morta.
O sorriso desapareceu do rosto dele.
- Agora você tem a marca da rainha... nem Cel ousaria matá-la. Agora, qualquer um que fizer algum mal a você morrerá, por ordem da rainha.
- Ela disse que eu deixei a corte por causa do Griffin. Tentei explicar que não saí daqui devido a um coração partido, que fui embora por causa dos duelos. - Balancei a cabeça. - Ela não me deu ouvidos, Rhys, continuou falando como se eu não tivesse dito nada. Ela está passando por um processo agudo de negação e acho que minha morte não vai mudar isso.
- Quer dizer que ela acha que o nenenzinho dela jamais faria tal coisa - ele disse.
- Exatamente. Além disso, você pensa que ele arriscaria seu Pescoço branco como os lírios? Se puder ele incumbe outros disso, e aí serão eles em perigo, não ele.
- Nossa função é protegê-la, Merry. Somos bons nisso.
Dei risada, mas não foi uma boa risada, foi mais estresse do que humor.
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- Tia Andais mudou a descrição da função de vocês, Rhys.
- O quê?
- Vamos andando, e eu conto. Estou precisando aumentar a distância entre mim e a nossa rainha.
Ele me ofereceu o braço de novo.
- Como desejar, minha senhora.
Rhys sorriu ao dizer isso, e eu fui com ele, mas passei o braço na cintura dele, em vez de só me apoiar no braço. Ele ficou tenso, estranhou um pouco, depois pôs o braço no meu ombro. Fomos andando pelo corredor assim abraçados. Eu continuava com frio, parecia que um fogo interior tinha se apagado.
Há homens com os quais não posso andar de braços dados, nossos corpos possuem ritmos diferentes. Rhys e eu nos movíamos pelo corredor como duas metades de um inteiro. Descobri que simplesmente não podia acreditar que tinha permissão para tocar nele. Não parecia verdade receber de repente as chaves do reino:
Rhys parou, me fez virar e esfregou meus braços.
- Você continua tremendo.
- Não tanto quanto antes - eu disse. Ele beijou minha testa carinhosamente.
- Vamos, pão de mel, conte-me, o que a Bruxa Má do Leste fez com você?
Eu sorri.
- Pão de mel?
Ele sorriu de orelha a orelha.
- Ursinho de mel? Menina de mel? Fofurinha? Dei risada.
- Só está piorando.
Rhys ficou sério. Olhou para o anel sobre a brancura da manga da camisa dele.
- Doyle disse que o anel ganhou vida com ele. Isso é verdade? Olhei para a pesada aliança octogonal de prata e fiz que sim com a cabeça.
- No meu braço ele está quieto. Rhys parecia... desapontado.
- A rainha costumava deixar o anel escolher o consorte - ele disse.
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- Reagiu a quase todos os guardas que encontrei esta noite.
- Menos eu.
A voz dele soou tão decepcionada que não pude deixar ficar nisso.
- Precisa encostar na pele mesmo - eu disse.
Ele já ia segurar a minha mão com o anel. Encolhi o braço.
- Não, por favor.
- Qual é o problema, Merry? - ele perguntou.
A luz estava mais fraca, era apenas uma penumbra. Teias de aranha cobriam o corredor feito grandes cortinas prateadas e brilhantes. Aranhas brancas maiores que as minhas mãos juntas se escondiam nas teias, como fantasmas redondos e inchados.
- É que mesmo aos dezesseis anos era eu que dizia para parar. Você devia saber.
- Um pouquinho de morde e assopra e fui exilado para sempre da brincadeira. Garota, isso é cruel.
- Não, é prático. Não quero terminar minha vida pregada na cruz de Santo André.
É claro que agora isso não se aplicava. Notei que Rhys e eu podíamos transar ali encostados numa parede naquele minuto, e não haveria castigo. Pelo menos era o que Andais tinha dito. Mas eu não confiava na minha tia. Ela só tinha revelado para mim que ia acabar com o celibato. Eu só tinha a palavra dela de que Eamon sabia, e ele era consorte dela, sua criatura. E se eu jogasse Rhys contra a parede, e depois ela mudasse de ideia? Aquilo não ia ser real, nem seguro, até Andais anunciar em público. Então, e só então, eu ia acreditar.
Uma grande aranha branca chegou na beira da teia. A cabeça tinha no mínimo seis centímetros de largura. Eu ia ter de passar bem embaixo daquela coisa.
- Bastou ver uma mulher mortal torturada até a morte por ter seduzido um guarda, para lembrar pelo resto da vida. Longa lembrança - disse Rhys.
- Eu vi o que ela mandou seu torturador de estimação fazer com o guarda transgressor, Rhys. Acho que a sua lembrança está curta demais.
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Fiz Rhys parar, puxei o braço dele, logo antes de passar embaixo da aranha enorme. Eu invocaria o fogo fátuo, mas as aranhas não se impressionavam com isso.
- Você pode invocar algo mais forte do que o fogo fátuo? - perguntei.
Fiquei olhando para a aranha com o corpo redondo maior do que o meu punho. As teias sobre a minha cabeça ficaram mais pesadas de repente, começaram a pender com os corpos redondos e inchados como uma rede cheia de peixes prestes a derramar seu conteúdo em cima de mim.
Rhys fez cara de quem não estava entendendo, depois olhou para cima, para as teias espessas, para a agitação sobre nós.
- Você jamais gostou de aranhas.
- É - eu disse. - Jamais gostei de aranhas.
Rhys foi até a aranha que parecia estar à minha espera. Deixou-me parada no meio do corredor, escutando o movimento apressado nas teias que ondulavam no teto. Não vi Rhys fazer nada. Ele simplesmente encostou um dedo na barriga da aranha. A aranha tentou fugir mas parou de repente, começou a tremer, esperneava freneticamente. Ela estrebuchou e estremeceu, abriu um buraco na teia e ficou pendurada indefesa, metade dentro, metade fora da teia.
Ouvi dezenas daquelas coisas correndo para se esconder, batendo em retirada. As teias balançaram como um mar de cabeça para baixo com a correria das aranhas. Meu Senhor e minha Senhora, devia haver centenas delas.
O corpo branco da aranha começou a murchar, encolher, parecia que estava sendo esmagado por uma mão enorme. Aquele corpo gordo e branco virou uma casca preta e seca, e eu não saberia o que era se não tivesse visto a coisa viva.
Todo movimento na teia cessou. O corredor ficou perfeitamente quieto, a não ser pela figura sorridente de Rhys. A iluminação fraquíssima se reuniu toda em volta dos cachos e do terno branco, e ele brilhou contra as teias e as pedras cinzentas. Rhys sorria para mim, alegre, do seu jeito normal.
- Está bom assim? - ele perguntou.
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Fiz que sim com a cabeça.
- Eu só vi você fazer isso uma vez, mas foi numa batalha e sua vida estava ameaçada.
- Você lamenta a morte do inseto?
- É um aracnídeo, não é um inseto, e não, não lamento. Jamais tive o poder do tipo certo para caminhar em segurança por este lugar.
Mas... o que eu realmente queria era que ele invocasse o fogo nas mãos, ou iluminação mais forte, para afastar as aranhas. Não pretendia que ele fizesse...
Rhys estendeu a mão para mim, sorrindo ainda.
Olhei para a casca preta que balançava na teia com a minúscula corrente de ar que criávamos andando pelo corredor.
O sorriso dele não mudou, mas o olhar ficou mais terno.
- Eu sou um deus da morte, Merry, ou fui, um dia. O que pensava que eu ia fazer, acender um fósforo e gritar bu?
- Não, mas...
Fiquei olhando para a mão dele estendida. Mais tempo do que mandava a boa educação. Mas finalmente, meio ressabiada, aceitei. Tocamos as pontas dos dedos, e ele deu um suspiro.
Ele olhou para a aliança de prata. Depois me encarou.
- Merry, eu posso? Por favor. Vi aqueles olhos azul-claros.
- Por que é tão importante para você?
Imaginei se o boato já tinha se espalhado, do que a rainha planejava anunciar aquela noite.
- Todos nós torcíamos para que ela a chamasse de volta, para você escolher outro candidato a consorte. Suponho que estão fora do páreo aqueles que o anel não reconhece.
- Você nem imagina como isso está perto da realidade - eu disse.
- Então, posso? - ele pediu.
Rhys tentou não demonstrar que estava louco para saber, mas não conseguiu. Acho que eu não podia condená-lo por isso. Assim que a notícia se espalhasse ia ser isso a noite inteira. Não, ia ser Pior, muito pior.
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Resolvi ceder.
Ele levantou minha mão até a boca enquanto falava.
- Você sabe que eu nunca machucaria você de propósito, Merry.
Rhys beijou minha mão e encostou os lábios no anel. O anel se reanimou... essa foi a única palavra que encontrei para descrever o que acontecia. Produziu um clarão em mim, em nós dois. A sensação foi de aperto no coração, de algo preso na garganta.
Rhys ficou curvado sobre minha mão, mas ouvi quando murmurou:
- Ah, sim.
Ele se endireitou e estava com o olhar vidrado.
Foi a reação mais violenta até aquele momento, e fiquei preocupada. Será que a força da reação indicava a potência da virilidade do homem, era uma espécie de contagem sobrenatural de espermatozóides? Nada pessoal contra Rhys, mas se eu tinha de ir para a cama com alguém naquela noite, provavelmente seria com Galen. O anel podia pulsar quanto quisesse em seu coração talhado. Eu é que ia decidir quem levaria para a cama. Até a queridíssima tia enviar seu espião, é claro. Afastei essa ideia. Não podia encará-la naquele momento. Havia encantados na guarda da rainha que eu preferia matar, em vez de beijar, que dirá qualquer coisa além disso.
Rhys segurou meus dedos e plantou a palma da mão no anel. Essa segunda pulsação foi mais forte ainda, fez com que eu desse um grito sufocado sem querer. Era como se algo acariciasse as minhas entranhas. Aonde nenhuma mão chegaria... mas o poder... o poder não se limitava às fronteiras da carne.
- Ah, gosto disso - disse Rhys. Puxei a mão.
- Não faça mais isso.
- A sensação é ótima, e você sabe. Olhei para seu rosto excitado e disse:
- Ela não quer só que eu encontre outro noivo. Quer que eu faça sexo com vários ou todos os guardas que esse anel reconheça.
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É uma corrida para ver quem lhe dá um herdeiro do sangue real primeiro. Cel ou eu.
Rhys tentou entender a minha expressão.
- Eu sei que não é brincadeira para você, mas parece bom demais para ser verdade.
Eu me senti melhor de ver que Rhys também não acreditava.
- É exatamente isso. Agora mesmo ela disse que o celibato não vale mais, só para mim, sem nenhuma testemunha. Acho que ela estava sendo sincera, mas enquanto não anunciar diante de toda a corte, vou continuar agindo como se o sexo ainda fosse tabu.
- O que são mais algumas horas para quem esperou mil anos?
- Não posso transar com todo mundo esta noite, Rhys, portanto a espera será mais longa do que algumas horas.
- Desde que eu seja o primeiro da fila, que importância tem isso?
Ele quis que soasse como piada, mas eu não ri.
- Temo que todos vão se sentir exatamente assim. Eu sou uma só, e vocês são... quantos? Vinte e sete?
- Você tem de transar com todos nós?
- Ela não disse, mas vai insistir para que eu durma com seu espião, seja quem for.
- Você odeia alguns guardas, Merry, e eles também odeiam você. Ela não pode esperar que vá para a cama com esses. Senhor e Senhora, se você engravidar de um desses que a odeiam... - ele não terminou a frase.
- Eu ficaria presa num casamento com um homem que desprezo, e ele seria rei.
Rhys piscou os olhos, e a parte branca captou a luz quando ele moveu a cabeça.
- Não tinha pensado nisso. Sinceramente, só estava pensando no sexo, mas você tem razão... um de nós será rei.
Olhei para cima, para o manto cinza de teias de aranha. Não tinha nenhuma à vista, mas...
- Será que devemos falar sobre isso aqui, com essa coisa em Cima de nós?
Ele olhou para as teias.
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- Bem pensado.
Rhys ofereceu o braço.
- Posso acompanhá-la ao banquete, minha senhora? Pus a mão no braço dele.
- Será um prazer.
Ele deu um tapinha na minha mão.
- Espero que seja, Merry, espero mesmo que seja.
Dei risada, e o som ecoou de forma estranha no corredor, fez as teias balançarem e ondularem. A sensação era de que aquele teto se estendia muito além, até uma vasta escuridão que só as teias de aranha impediam que víssemos. Meu riso se desfez, muito antes de sairmos de baixo das teias.
- Obrigada, Rhys, por compreender o meu medo, em vez de apenas se concentrar na ideia de que várias centenas de anos de celibato podem estar prestes a acabar.
Ele encostou minha mão nos lábios.
- Vivo apenas para servi-la, por baixo, ou por cima, ou do jeito que quiser que eu fique.
Soquei o ombro dele.
- Pare com isso.
Ele sorriu de orelha a orelha.
- Rhys não é o nome de qualquer deus da morte conhecido. Pesquisei você quando estava na faculdade, e você não estava lá.
Ele de repente ficou ocupado demais examinando o corredor, cada vez mais estreito.
- Rhys é meu nome agora, Merry. Não importa quem eu era antes.
- Claro que importa - eu disse.
- Por quê?
Rhys ficou subitamente sério e maduro.
Observei seu brilho branco na luz cinzenta e não me senti nada madura. O que eu sentia era cansaço. Mas o olhar dele tinha um peso, a expressão exigia que eu respondesse.
- Só quero saber com quem estou lidando, Rhys.
- Você me conhece a vida inteira, Merry.
- Então conte para mim - eu disse.
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- Não quero falar sobre o passado distante, Merry.
- E se eu o convidasse para a minha cama? Você me contaria todos os seus segredos?
Ele examinou meu rosto.
- Você está me provocando.
Toquei na cicatriz do rosto dele, segui a linha de pele áspera com os dedos e passei nos lábios macios e carnudos.
- Não estou provocando, Rhys. Você é belo. Tem sido meu amigo há anos. Você me protegeu quando eu era mais jovem. Seria ingratidão deixá-lo celibatário se posso acabar com isso. Fora que passar a boca nessa sua barriga de tanquinho tem sido uma fantasia sexual recorrente para mim.
- Engraçado, tive essa mesma fantasia - disse Rhys.
Ele moveu as sobrancelhas para mim e fez uma imitação muito ruim de Groucho Marx.
- Quem sabe você não pode vir até minha casa para ver algumas gravuras?
Sorri e balancei a cabeça.
- Você não assistiu a nenhum filme feito depois que o cinema passou a ser em cores?
- Não muitos.
Rhys estendeu a mão, eu a segurei. Fomos andando de mãos dadas pelo corredor, como companheiros. De todos os guardas de quem eu gostava, pensava que Rhys seria o mais chato diante da possibilidade do sexo. Mas ele foi um perfeito cavalheiro. Mais uma prova de que eu realmente não entendia os homens.
A porta no final do corredor estava pequena aquela noite, da altura de um homem. Às vezes era suficientemente grande para um elefante passar. A cor dela era cinza-claro, com ferragens douradas, muito Luiz alguma coisa. Não me dei ao trabalho de perguntar a Rhys se a rainha tinha redecorado. O lugar era como a Carruagem Negra, fazia a própria redecoração.
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Rhys abriu a elegante porta dupla mas não chegamos a entrar no salão porque Frost impediu. Não que estivesse bloqueando fisicamente a porta, apesar de estar. Ele tinha trocado de roupa, vestia a roupa que a rainha mandou fazer, e a aparência dele me fez parar de supetão. Acho que Rhys parou porque eu parei.
A camisa era completamente transparente, a ponto de não dar para ter certeza se o tecido era realmente branco, ou se era translúcido e a pele dele fazia parecer branco. O corte da camisa era o de uma segunda pele sobre o peito, mas as mangas eram bufantes, de um tecido diáfano, até logo acima do cotovelo, presas com uma barra larga e justa, prateada e cintilante. O resto das mangas era um longo tubo, como uma ipomeia transparente. O fio usado na costura era prateado e brilhava em cada bainha. A calça era de cetim prateado, com a cintura tão baixa que os ossos do quadril apareciam por baixo da camisa transparente. Se estivesse usando roupa de baixo apareceria por cima da cintura da calça. A única coisa que segurava aquela calça no lugar era o fato de ser extremamente justa. Uma série de cadarços brancos no gancho, como os que prendiam as costas de um corpete feminino, funcionava no lugar do zíper.
Frost tinha repartido o cabelo em três. A parte de cima estava enfiada num pedaço de osso oco, de modo que o cabelo prateado caía feito água de um chafariz em volta da cabeça. A segunda parte estava simplesmente puxada para trás dos dois lados e presa com barretes de osso. A parte de baixo ele deixou solta, mas era tão rala que parecia um véu fino que destacava o corpo dele, em vez de esconder.
- Frost, você está quase lindo demais para ser verdade.
- Ela nos trata como bonecos, que veste ao seu bel-prazer. Foi a coisa mais parecida com uma crítica à rainha que eu tinha ouvido Frost dizer.
- Eu gostei, Frost - disse Rhys. - É bem você. Ele fez uma careta para Rhys.
- Não sou eu.
Nunca tinha visto um guarda tão furioso com uma coisa tão pequena.
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- São apenas roupas, Frost. Não lhe fará mal nenhum usá-las com elegância. Demonstrar o seu desprazer com elas, isso sim pode lhe fazer mal, muito mal.
- Obedeci à minha rainha.
- Se ela souber que você detestou assim essa roupa, vai mandar fazer mais iguais. Você sabe disso.
A careta dele ficou pior, e ele conseguiu enrugar aquele rosto perfeito. Então ouvimos um grito no salão atrás de Frost. Mesmo sem dizer nada, reconheci a voz. Era Galen.
Dei um passo à frente. Frost não saiu do lugar.
- Saia da minha frente, Frost - eu disse.
- O príncipe ordenou esse castigo, mas generosamente exigiu privacidade. Ninguém entra até isso acabar.
Olhei fixo para Frost. Não podia forçar caminho por cima dele e não ia matá-lo. Fiquei sem opção.
- Merry será nomeada coerdeira esta noite - disse Rhys. Frost olhou incrédulo para nós dois.
- Não acredito.
Galen berrou de novo, e meus braços ficaram arrepiados, cerrei os punhos.
- Vou ser coerdeira esta noite, Frost. Ele balançou a cabeça.
- Isso não muda nada.
- E se ela dissesse que o seu celibato vai ser revogado para Merry, apenas Merry? - perguntou Rhys.
Frost conseguiu parecer arrogante e incrédulo ao mesmo tempo.
- Não vou brincar de "e se" com você.
Galen deu outro grito agudo. Os Corvos da rainha não gritavam com facilidade. Avancei para Frost, e ele se empertigou, tenso. Acho que esperava uma luta.
Passei os dedos de leve na camisa dele. Ele deu um pulo como se o tivesse machucado.
- A rainha vai anunciar esta noite que eu poderei escolher os guardas. Ela ordenou que eu fosse para a cama com um de vocês hoje, senão amanhã serei protagonista de uma das orgias dela.
Abracei Frost pela cintura e encostei o corpo no dele, com uma leve pressão.
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- Confie em mim, Frost, terei um de vocês esta noite, amanhã, depois de amanhã e na noite depois disso. Seria uma pena se você não estivesse entre os que vou levar para a cama.
A arrogância desapareceu e foi substituída por uma expressão desejosa e medrosa. Não entendi o medo, mas a aflição dele, isso eu entendia. Ele se virou para Rhys.
- Você jura que isso é verdade?
- Tem a minha palavra - disse Rhys. - Deixe-a passar, Frost. Ele olhou para mim. Ainda não tinha retribuído meu carinho, que era como um beijo em lábios insensíveis. Mas saiu da frente e se afastou do meu abraço. Ele me observava como se vigia uma cascavel preparada para o bote, sem movimentos súbitos e sem acreditar que ela não o morderia de qualquer jeito. Frost estava com medo do que acontecia naquela sala.
Passei por ele. Senti Rhys logo atrás de mim, mas só podia ver o que havia no centro da sala. Era um pequeno tanque de água, com uma grande pedra decorativa bem no meio. Para chegar até ela havia pedras menores. A pedra grande tinha correntes pregadas. Galen estava acorrentado à rocha. Quase não dava para ver o corpo dele, embaixo do adejar lento das asas de borboleta das semifadas. Elas pareciam borboletas de verdade, bebendo na beira de uma poça de água, movendo as asas lentamente, no mesmo ritmo com que sorviam. Só que essas não bebiam água. Estavam bebendo o sangue de Galen.
Ele gritou novamente, e eu corri. Doyle apareceu de repente na minha frente. Devia estar de guarda na outra porta.
- Você não pode interromper depois que começam a se alimentar.
- Por que ele está gritando? Não devia doer tanto assim. Tentei passar por Doyle, mas ele agarrou meu braço.
- Não, Meredith. Não.
Galen deu outro berro, alto e longo, seu corpo ficou arqueado nas correntes. O movimento deslocou algumas semifadas, e eu vi por que ele gritava tanto. O pênis dele era uma massa ensanguentada. Elas arrancavam carne além do sangue.
- Animais nojentos - sibilou Rhys.
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Doyle apertou mais o meu braço.
- Elas estão mutilando Galen - protestei.
- Ele vai sarar.
Tentei escapar dele mas parecia que seus dedos estavam soldados na minha pele.
- Doyle, quer fazer o favor?
- Sinto muito, Princesa.
Galen berrou, a rocha tremeu com o puxão que ele deu, mas as correntes continuaram firmes.
- Isso é exagero, e você sabe muito bem.
- O príncipe tem o direito de punir Galen por ter desobedecido a uma ordem dele.
Doyle tentou me puxar para mais longe, como se isso melhorasse alguma coisa.
- Não, Doyle. Se Galen tem de suportar isso, não vou ignorar, agora me larga.
- Promete não fazer nada impetuoso?
- Tem a minha palavra - eu disse.
Doyle me soltou, e quando toquei no seu ombro ele se afastou para um lado para eu poder ver. As asas tinham todas as cores do arco-íris e outras que nem existiam no arco-íris. Asas enormes, maiores do que as minhas mãos, flexionadas lentamente, para a frente e para trás, sobre breves vislumbres do corpo quase nu de alen. A calça dele estava arriada nos tornozelos e não havia mais nenhuma peça de roupa que eu pudesse ver. A cena possuía uma beleza terrível, era como uma parte bonita do inferno.
Um par de asas era maior do que o outro, como imensas peças claras. Era a própria Rainha Niceven que se banqueteava com o pênis de Galen. Tive uma ideia.
- Rainha Niceven, não fica bem para uma rainha fazer o trabalho sujo de um príncipe - eu disse.
Ela levantou o pequeno rosto pálido e sibilou para mim, com os lábios e o queixo vermelhos do sangue de Galen, assim como a frente do seu vestido branco. Levantei a mão com o anel.
- Serei nomeada coerdeira esta noite.
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- Isso não significa nada para mim.
A voz dela era de sinos malignos, doce e perturbadora.
- Uma rainha merece coisa melhor do que o sangue de um lorde encantado.
Ela me observou com seus claros olhinhos minúsculos. Era leprosa aquela brancura toda, parecia um pequeno fantasma.
- O que você oferece, que seja mais macio do que isso?
- Mais macio, não, mas mais poderoso. O sangue de uma princesa encantada para a rainha das semifadas.
Ela fez cara de espanto e limpou a boca com a mão delicada. Elevou-se com suas enormes asas de mariposa e voou até mim. As outras continuaram a sugar sangue. Niceven pairou na frente do meu rosto, e suas asas sopravam uma pequena corrente de ar na minha pele.
- Você tomaria o lugar dele?
- Não, Princesa - disse Doyle. Eu o fiz calar com um gesto.
- Eu ofereço para a Rainha Niceven das semifadas o meu sangue. O sangue de uma princesa encantada é prêmio bom demais para ser compartilhado.
Frost e Rhys foram para perto de Doyle. Eles observavam nós duas como se nunca tivessem visto um espetáculo como aquele.
Niceven lambeu os lábios com uma língua minúscula que parecia a pétala de uma flor.
- Você deixaria que eu tirasse seu sangue? Apontei um dedo para ela.
- Deixe-o ir e poderá furar minha pele e beber.
- O Príncipe Cel nos pediu para destruir a virilidade dele.
- Como disse Doyle, ele vai sarar. Por que o príncipe pediria às semifadas esse favor que não é dano permanente?
Ela adejou perto do meu dedo exatamente como uma borboleta examinando uma flor.
- Isso você terá de perguntar ao Príncipe Cel. - Ela desviou o olhar do meu dedo para o meu rosto. - Você devia ter ouvido o que ele queria que nós fizéssemos no início. Queria que o arruinássemos de vez, para a vida toda, mas a rainha não permite que seus amantes virem mercadoria estragada.
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Niceven pairou perto do meu rosto e tocou a ponta do meu nariz com sua mãozinha minúscula.
- O Príncipe Cel me fez lembrar que ele será rei um dia. Ela tocou meus lábios de leve com aqueles dedos miúdos.
- E eu o fiz lembrar que ainda não governa isso aqui, e que eu não ia arriscar atrair a fúria da Rainha Andais para ele.
- O que ele respondeu?
- Ele se conformou. Nós nos alimentamos de sangue e de carne, ambos preciosos, e esta noite esse aí será inútil na cama da rainha.
Ela franziu a testa e cruzou os braços sobre o peito diminuto.
- Não sei por que ela tem ciúme desse aí e não dos outros.
- Não era da cama da rainha que ele queria afastar Galen - eu disse.
Niceven inclinou a cabeça para um lado, e seu cabelo comprido de teia de aranha balançou em volta dela.
- Era por sua causa? Acenei com o anel para ela.
- Recebi ordem de dormir com um guarda esta noite.
- E escolheria esse?
Fiz que sim com a cabeça. Niceven sorriu.
- Cel está com ciúme de você.
- Não como está pensando, Rainha Niceven. Então nosso negócio está fechado? Meu sangue para sua doce boca, e Galen fica livre?
Ela ainda ficou mais alguns segundos esvoaçando perto do meu rosto, depois fez que sim com a cabeça.
- Negócio fechado. Estenda o braço e dê-me um lugar para Pousar.
- Liberte Galen primeiro e depois fique à vontade para se alimentar.
- Como quiser.
Ela voou de volta para as outras e disse alguma coisa que as fez esvoaçar para o teto numa nuvem multicolorida. A pele verde bem clara de Galen estava coberta de pequenas mordidas vermelhas.
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Fios de sangue começaram a escorrer pelo corpo dele como uma caneta vermelha ligando os pontinhos.
- Soltem-no e tratem de suas feridas - eu disse.
Rhys e Frost me obedeceram. Apenas Doyle ficou por perto, com jeito de que não confiava em uma de nós, ou nas duas.
Estendi o braço com a mão um pouco curvada para cima. Niceven pousou. Ela era mais pesada do que parecia, mas mesmo assim leve e estranhamente áspera e quebradiça, como se os pés fossem feitos de ossos secos. Segurou meu dedo indicador com as duas mãos, depois abaixou a cabeça para a ponta como se fosse me beijar. Mordeu com dentes minúsculos, muito afiados. A dor foi aguda e imediata. Ela começou a lamber o sangue que escorreu com a língua pétala. Curvou o corpo na minha mão até cada centímetro encostar na minha pele. Foi um movimento quase sensual, parecia que recebia mais do que apenas o sangue enquanto se alimentava.
As outras semifadas ficaram pairando no ar em volta de mim, eram um vento colorido que se movia suavemente. Suas boquinhas estavam manchadas de sangue e as mãozinhas vermelhas do sangue de Galen. Niceven acariciou minha mão com as dela, com os pés e o joelho encostava na palma.
Ela levantou a cabeça e respirou.
- Estou cheia de carne e de sangue do seu amante. Não aguento mais.
Niceven sentou na minha mão e encostou a cabeça no meu dedo.
- Eu gostaria muito de beber mais outro dia, Princesa Meredith. Você tem gosto de alta magia e de sexo.
Ela ficou de pé e alçou voo devagar, batendo as asas suavemente. Pairou diante do meu rosto e ficou olhando, como se visse algo que eu não via, ou como se quisesse encontrar alguma coisa em mim que não existia. Finalmente balançou a cabeça e disse:
- Nós nos veremos no banquete, Princesa.
Niceven subiu mais, e as outras a seguiram, numa nuvem colorida. As portas enormes do outro lado da sala se abriram sem
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que ninguém as tocasse e, depois que o grupo colorido desapareceu, fecharam lentamente.
Um pequeno ruído chamou minha atenção. Galen estava encostado na parede, já de calça, mas ainda aberta. Rhys passava um líquido transparente de um vidro nas feridas. Então o corpo de Galen brilhou com as luzes.
- É verdade que o celibato vai ser revogado? - ele me perguntou.
- É verdade - eu disse e me acocorei ao lado dele. Ele sorriu, mas estampou nos olhos muita dor.
- Não terei muita utilidade para você esta noite.
- Haverá outras noites - eu disse.
O sorriso dele cresceu, mas ele fez uma careta quando Rhys passou o líquido nos ferimentos de novo.
- Por que Cel deu tanta importância ao fato de eu ir para a cama com você?
- Acho que Cel acredita que se eu não puder dormir com você hoje, ficarei sozinha.
Galen olhou sério para mim.
Não esperei que ele dissesse alguma coisa que tornaria aquilo tudo ainda mais constrangedor.
- Não sei se você soube do que eu contei para os outros, mas se eu não fizer sexo esta noite com alguém escolhido por mim, amanhã vou entreter a corte com um grupo escolhido pela rainha.
- Você precisa levar alguém para sua cama hoje, Merry.
- Eu sei.
Toquei no rosto dele, estava frio e molhado de suor. Ele perdera muito sangue, nada fatal para um encantado, mas estaria fraco à noite para muitas coisas, não só o sexo.
- Se esse foi o seu castigo por desobedecer a Cel, qual foi o de Barinthus?
- Está proibido de comparecer ao banquete esta noite - disse Frost.
Estranhei, franzi a testa.
- Galen se arrebenta todo, e Barinthus só perde o jantar?
- Cel tem medo de Barinthus, mas não de Galen - disse Frost.
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- Sou bonzinho demais.
- É - disse Frost. - É mesmo.
- Eu falei de brincadeira - disse Galen.
- Infelizmente - disse Doyle - isso não tem graça.
- Não podemos deixar a rainha esperando - disse Rhys. - Você consegue andar?
- Ajudem-me a levantar que eu consigo. Doyle e Frost ajudaram.
Galen moveu-se lentamente, todo enferrujado, sentindo muita dor, mas quando chegou até a porta com auxílio dos dois já estava andando sozinho. A cura se dava diante dos nossos olhos, a pele dele absorvia as mordidas. Era como assistir a um filme de flores brotando detrás para a frente.
O óleo ajudou a acelerar o processo, mas a maior parte era mesmo o corpo dele que reagia. A espantosa máquina de carne de um guerreiro encantado. Em poucas horas as mordidas estariam fechadas e em poucos dias os outros danos iam desaparecer também. E então Galen e eu poderíamos finalmente apagar o fogo que havia entre nós. Mas naquela noite teria de ser algum outro. Olhei para os três guardas quase como se fosse dona deles, como se entrasse na cozinha e visse que estava bem abastecida com meus suprimentos preferidos. Nenhum deles era destino pior do que a tortura. Era apenas questão de escolha. Se o amor não entrava na equação, como escolher entre uma flor e outra? Eu não tinha a menor ideia. Talvez pudesse decidir jogando uma moeda.
A porta da fonte da dor dava numa espaçosa antessala. Era um cômodo escuro. A luz branca que vinha do nada parecia muito fraca e meio acinzentada ali. Senti alguma coisa estalar sob meus pés e vi que eram folhas. Havia folhas secas por toda parte. Olhei para cima e descobri que as trepadeiras que se entrelaçavam sobre nossas
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cabeças estavam secas e sem vida. As folhas tinham murchado completamente, ou caído.
Toquei nas plantas perto da porta e não senti vida nelas.
- As rosas estão mortas - disse para Doyle.
Eu murmurei baixinho, como se fosse um grande segredo. Ele fez que sim com a cabeça.
- Estão morrendo há anos, Meredith - disse Frost.
- Estão morrendo, Frost, mas não estão mortas.
As rosas eram a última defesa da corte. Se os inimigos chegassem até aquele ponto, as rosas ganhariam vida e os matariam, ou tentariam, por estrangulamento ou com os espinhos. Os brotos mais recentes, mais baixos, tinham espinhos como qualquer outra roseira trepadeira, mas havia gavinhas no meio da folhagem seca com espinhos do tamanho de pequenas adagas. E não eram apenas defesa. Eram um símbolo de que um dia existiram jardins mágicos embaixo da terra. As plantas e árvores frutíferas morreram primeiro, foi o que me contaram, depois as ervas e agora, as últimas flores.
Vasculhei as plantas buscando qualquer sinal de vida. Estava tudo seco e morto. Lancei um jato de poder nas roseiras e senti a resposta, um poder pulsante, ainda forte, mas nada igual à presença poderosa que deviam ter um dia. Toquei nas plantas mais próximas gentilmente. Ali os espinhos eram pequenos, mas secos, pareciam alfinetes.
- Pare de acariciar as rosas - disse Frost. - Temos problemas mais sérios para resolver.
Continuei com a mão na roseira e me virei para ele.
- Se as rosas morrerem, morrerem de verdade, você sabe o que isso vai significar?
- Sei, provavelmente melhor do que você - ele disse. - Só que também sei que não podemos fazer nada pelas rosas, nem contra o fato de o poder dos encantados estar acabando. Mas se tomarmos cuidado, talvez possamos nos salvar esta noite.
- Sem a nossa magia não somos encantados - eu disse. Afastei a mão das plantas sem olhar e espetei o dedo num dos espinhos. Dei um tranco com a mão e quebrei o espinho, que saiu
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preso à minha pele. Era fácil ver o pequeno espinho escuro e removê-lo com a ponta da unha. Nem doeu muito. Ficou apenas um pontinho vermelho no dedo.
- É sério? - perguntou Rhys.
- Não - eu disse.
Um silvo seco soou na sala como uma enorme serpente no escuro. O ruído vinha de cima, e olhamos para o teto. A vegetação estremeceu, e folhas secas caíram em chuvarada, enganchando no nosso cabelo, nas nossas roupas.
- O que está acontecendo? - perguntei. Doyle respondeu:
- Eu não sei.
- Então não é melhor ir para o outro salão? - perguntou Rhys.
Ele levou a mão à espada que não estava lá. Mas com a outra ele agarrou meu braço e me puxou para a porta mais próxima, para o corredor. Nenhum deles estava armado, a menos que Doyle ainda guardasse minha pistola. Por algum motivo eu achava que não era de uma arma de fogo que precisávamos.
Os outros me rodearam e formaram um muro de carne e osso. Rhys pôs a mão na maçaneta, e a trepadeira se espalhou pela porta como uma correnteza seca. Ele pulou para trás, puxou-me para longe da porta e das plantas que se contorciam. Doyle segurou meu outro braço e de repente corremos para a porta mais distante. Eles iam rápido demais para meu salto alto. Eu tropecei, mas eles me mantiveram de pé e correndo, meus pés mal encostavam no chão. Frost foi na frente para a porta. Ele gritou:
- Depressa!
Rhys resmungou baixinho:
- Estamos indo.
Olhei para trás para ver onde estava Galen. Ele estava de costas para mim, protegendo a minha retaguarda sem nada nas mãos. Mas os espinhos não encostavam nele. Havia movimento em toda parte naquele ninho de cobras, mas os tentáculos finos e secos da trepadeira que pendiam como um polvo só apontavam para mim. Doyle e Rhys foram me levando pelo salão, então os espinhos
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caíram na minha cabeça, engancharam no meu cabelo e me puxaram para trás. Quando Doyle se virou para olhar para cima, eu vi uma mancha vermelha no rosto dele, de sangue fresco.
Os espinhos agarraram meu cabelo e tentaram me segurar. Gritei e dei um tranco com a cabeça para baixo. Rhys agarrou um tufo do meu cabelo, e juntos conseguimos nos livrar dos espinhos, deixando mechas de cabelo para trás.
Frost abriu a porta no fundo do salão. Vi de relance uma luz mais forte e rostos olhando para nós, alguns humanos, outros não. Frost berrava:
- Uma espada, preciso de uma espada!
Um guarda se adiantou, com a mão no cabo da sua espada. Ouvi uma voz gritar:
- Não! Largue a espada! Era a voz de Cel. Doyle rosnou uma ordem:
- Sithney, entregue essa espada!
O guarda à porta começou a desembainhar a espada. Frost estendeu a mão para pegá-la. As vinhas se lançaram na passagem, numa onda seca. Houve um momento em que Frost poderia mergulhar pela abertura para o outro salão, mas ele recuou. A porta desapareceu sob uma massa de espinhos.
Rhys e Doyle me jogaram no chão. Doyle empurrou Rhys para cima de mim. De repente me vi embaixo de uma pilha de corpos. O cabelo de Rhys caiu no meu rosto feito seda ondulada. Vi uma capa preta através do cabelo dele e por trás de um braço. Eu estava tão achatada no chão que, além de não conseguir me mexer, mal podia respirar.
Se fossem quaisquer outros em cima de mim e não Doyle ou Frost, eu ia esperar que gritassem. Em vez disso, esperei apenas que a pilha ficasse mais leve à medida que os homens eram arrancados dali pelos espinhos. Mas a pilha não ficou mais leve.
Estava de barriga para baixo no chão frio de pedra, espiando através do cabelo de Rhys. O braço fincado atrás da cortina de cabelo estava descoberto, além disso não era branco puro, de modo que só podia ser de Galen.
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O sangue pulsava nos meus ouvidos, e eu só conseguia ouvir meus batimentos. Minutos passaram, e nada aconteceu. Meus batimentos desaceleraram. Pus as mãos nas pedras do chão que eram cinza e quase tão lisas como o mármore, desgastadas pelos pés durante séculos. Ouvi a respiração de Rhys perto da minha orelha. O farfalhar de tecido quando alguém se moveu sobre nós. Mas o resto era apenas o barulho dos espinhos, um murmúrio baixo e contínuo, como o marulho do mar.
Rhys sussurrou no meu cabelo:
- Eu mereço um beijo antes de morrer?
- Não parece que estamos morrendo - eu disse.
- Para você é fácil falar. Você está embaixo da pilha. Foi a resposta de Galen.
- O que está acontecendo aí em cima? Não consigo ver absolutamente nada - eu disse.
- Pode agradecer por isso - disse Frost.
- O que está acontecendo? - perguntei de novo, com mais firmeza na voz.
- Nada. - A voz profunda de Doyle ribombou através da pilha de homens, os outros reverberavam o tom grave de suas palavras como um diapasão, até a minha coluna. - E acho isso surpreendente - ele disse.
- Você parece desapontado - disse Galen.
- Desapontado não - disse Doyle. - Curioso.
A capa de Doyle sumiu, e o peso em cima de mim diminuiu de repente.
- Doyle! - gritei.
- Não se preocupe, princesa. Estou bem - ele disse.
A pressão em cima de mim diminuiu mais ainda, mas não muito. Levei alguns segundos para entender que Frost se mexia mas não estava saindo de cima da pilha.
- Isso é estranho - ele disse.
O braço de Galen sumiu da minha frente.
- O que a roseira está fazendo? - ele perguntou.
Não ouvi ninguém andando, mas pude ver Galen abaixado. Afastei o cabelo de Rhys do meu rosto como se fosse uma cortina.
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Frost estava ajoelhado ao lado de Galen. Doyle era o único de pé, do outro lado. Vi sua capa preta.
Rhys levantou o corpo apoiado nos braços, em posição de flexão.
- Estranho - ele disse. E tive de ver o que era.
- Saia de cima de mim, Rhys. Quero ver.
Ele abaixou o rosto na frente do meu, ficou de cabeça para baixo, ainda sustentando o torso com os braços, mas apertando a parte de baixo do meu corpo com o dele. Em outras circunstâncias eu teria dito que era de propósito. Mas o tecido do meu vestido era muito fino, a roupa dele também, e por isso eu sabia que ele não estava feliz em me ver. Ver aqueles olhos de azul triplo assim tão de perto e de cabeça para baixo foi estonteante e surpreendentemente íntimo.
- Sou o último corpo entre você e a grande coisa má - ele disse. - Só saio daqui quando Doyle mandar.
Fiquei com dor de cabeça de ver a boca de Rhys se mexendo de cabeça para baixo. Fechei os olhos.
- Não fale de cabeça para baixo - eu disse.
- Claro - disse Rhys - você pode olhar para cima.
Ele levantou a cabeça até ficar de quatro em cima de mim, feito égua protegendo o potro.
Continuei estirada no chão mas inclinei a cabeça bem para trás. Só deu para ver as gavinhas da roseira se contorcendo. Elas pendiam sobre nós como cordas marrons embaraçadas, balançando de um lado para outro ao sopro de um vento inexistente, e o que parecia embaraçado eram os espinhos.
- Além do fato de as rosas estarem vivas novamente, o que eu devia observar?
Doyle respondeu:
- São só os espinhos pequenos que tentam chegar até você, Merry.
- E daí? - perguntei.
Ele veio para perto de nós, e vi apenas a capa preta.
- E daí que acho que as rosas não querem lhe fazer mal.
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- O que mais elas podem querer? - perguntei.
Devia estar me sentindo ridícula, conversando ali deitada no chão, com Rhys de quatro em cima de mim. Mas não. Eu queria alguma coisa, alguém entre mim e o movimento dos espinhos.
- Acho que talvez queiram beber um pouco de sangue real - disse Doyle.
- O que quer dizer com beber? - perguntou Galen antes de eu dizer qualquer coisa.
Ele sentou no chão e se aproximou para eu poder ver a parte de cima do seu corpo. Havia sangue seco em alguns pontos e nos pequenos fios onde tinha escorrido no torso dele, mas as mordidas tinham sumido quase todas, deixando apenas o sangue como prova de que ele foi ferido. A frente da calça estava encharcada de sangue, mas ele já se movimentava melhor, com menos dor. Tudo estava sarando.
Eu não ia sarar se os espinhos furassem meu corpo. Eu simplesmente morreria.
- As rosas bebiam o sangue da rainha toda vez que ela passava por aqui, em outra época - disse Doyle.
- Séculos atrás - disse Frost. - Antes de sequer imaginarmos poder viajar para as terras do oeste.
Apoiei-me nos cotovelos.
- Eu passei embaixo das rosas mil vezes, e elas nunca reagiram a mim, nem mesmo quando ainda tinham alguns brotos.
- Você recebeu seu poder maior, Meredith. A Terra reconheceu isso quando a recebeu esta noite - disse Doyle.
- Como assim, a Terra a recebeu? - perguntou Frost. Doyle contou o que tinha acontecido.
Rhys se abaixou para olhar meu rosto de novo, naquela posição incômoda, de cabeça para baixo.
- Legal - ele disse.
Tive de sorrir, mas empurrei a cabeça dele para longe do meu rosto mesmo assim.
- A Terra agora reconhece o meu poder.
- Não é só a Terra - disse Doyle.
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Ele sentou de frente para Galen e espalhou a capa preta em volta dele com um gesto espontâneo, como se usasse sempre muitas capas pretas compridas. E usava mesmo.
Agora dava para ver o rosto dele. Estava pensativo, contemplando alguma filosofia profunda.
- Isso tudo é fascinante - disse Rhys - mas podemos discutir se Merry é a escolhida de alguma coisa mais tarde. Precisamos dar o fora daqui antes de a roseira tentar comê-la.
Doyle olhou sério para mim.
- Sem nossas espadas temos poucas chances de chegar até a porta com Merry viva. Nós escaparíamos do pior ataque das rosas, mas ela não. Já que a segurança dela é mais importante do que a nossa, precisamos descobrir um jeito de sair dessa sem violência. Se atacarmos as rosas, elas vão retribuir. - Ele apontou para cima. - Parecem bem pacientes conosco, então sugiro que usemos essa paciência para pensar.
- A Terra nunca recebeu Cel daquela forma nem as rosas reagiram a ele - disse Frost.
Ele se arrastou engatinhando e foi sentar perto de Doyle. Parecia não confiar na paciência das rosas como Doyle. Concordei com Frost. Nunca tinha visto as rosas se mexendo antes, nem um pouco. Sabia das histórias mas nunca pensei que veria aquilo pessoalmente. Desejei muitas vezes ver aquela sala coberta de rosas cheirosas. Devemos ter cuidado com o que desejamos. Claro, não havia flor nenhuma, apenas espinhos. Não era exatamente o que eu tinha desejado.
- Pôr uma coroa na cabeça de alguém não significa que esse alguém tem capacidade para governar - disse Doyle. - Nos tempos antigos eram a mágica, a Terra, que escolhiam nossa rainha, ou nosso rei. Se a mágica os rejeitasse, se a Terra não os aceitasse, então, com ou sem herança de sangue, tínhamos de escolher um novo herdeiro.
De repente percebi que todos olhavam para mim. Encarei Cada um deles. Tinham expressões quase idênticas, e eu estava com medo de saber o que pensavam. O alvo nas minhas costas só aumentava.
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- Eu não sou a herdeira direta.
- A rainha vai determinar isso, esta noite - disse Doyle. Olhei para seu rosto escuro e tentei decifrar aqueles olhos negros.
- O que quer de mim, Doyle?
- Primeiro vamos ver o que acontece quando Rhys abrir caminho para os espinhos. Se eles reagirem com violência, não prosseguimos. Os outros guardas vão acabar nos salvando.
- Quer que eu saia daqui agora? - perguntou Rhys. Doyle fez que sim com a cabeça.
- Quero, por favor.
Agarrei os dois braços de Rhys e impedi que ele saísse de cima de mim.
- E se a roseira me cobrir e me arrebentar toda?
- Nós nos jogamos sobre você antes de os espinhos encostarem na sua pele branca.
A voz de Doyle soou neutra, sem emoção, mas ainda curiosa. Era a voz que ele usava em público na corte, quando não queria que ninguém adivinhasse seus motivos. Uma voz treinada com séculos de respostas para a realeza, muitas meio loucas.
- Por que isso não me conforta? - perguntei.
Rhys virou de cabeça para baixo para me olhar de novo.
- Como acha que eu me sinto? Vou sacrificar todo esse corpo sarado e musculoso exatamente quando pensava que alguém podia dar valor a ele.
Isso me fez sorrir.
Ele também sorriu para mim, como o gato de Alice.
- Se soltar meus braços - ele disse - prometo me jogar em cima de você ao primeiro sinal de perigo. - O sorriso dele cresceu. - Na verdade, com a sua permissão, posso me jogar sobre o seu corpo a qualquer hora.
Era quase impossível não rir dele. Se eu estava prestes a ser dilacerada, podia muito bem morrer sorrindo e não de cara feia. Larguei os braços dele.
- Saia de cima de mim, Rhys.
Ele beijou minha testa de leve e se levantou.
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Fiquei sozinha no chão. Rolei para um lado e olhei para cima. Todos os homens estavam de pé, à minha volta, mas só Rhys olhava para mim. Os outros olhavam para cima, para os espinhos.
As vinhas da trepadeira balançavam lentamente sobre nós, dançando ao som de alguma música que não podíamos ouvir.
- Parece que não estão fazendo nada - eu disse.
- Experimente ficar de pé - disse Doyle, estendendo a mão para mim.
Olhei para aquela perfeita mão negra, com as unhas muito claras, quase branco leite. Depois olhei para Rhys.
- Você vai se jogar em cima de mim ao primeiro sinal de perigo?
- Rapidinho que nem um coelho - ele disse.
Peguei Galen olhando de lado para Rhys. Não foi um olhar simpático.
- Ouvi falar isso de você - disse Galen. - Que você é rapidinho.
- Se quiser ficar por baixo na próxima vez, esteja à vontade - disse Rhys. - Sou mais do tipo de ficar por cima.
A resposta foi maldosa, e ele não parecia nada contente.
- Meninos - disse Doyle, com um tom leve de reprovação. Suspirei.
- A proclamação ainda nem foi anunciada formalmente, e vocês já começaram a implicar. E Rhys e Galen são dois dos mais sensatos e calmos...
Doyle fez uma pequena mesura e passou a mão a poucos centímetros de mim.
- Vamos cuidar dos nossos problemas, um de cada vez, Princesa. De outra forma não conseguimos nada.
Encarei aqueles olhos negros e pus a mão na dele. Ele me segurou com uma forma incrível e me levantou mais rápido do que eu faria sozinha. Perdi o equilíbrio, cambaleei e tive de me agarrar à mão dele para não cair. Ele segurou meu braço com a outra mão. Ficamos quase abraçados. Doyle não deixou transparecer qualquer sinal de que fizera aquilo de propósito.
Os espinhos sibilaram furiosos sobre nossas cabeças. De rePente eu olhei para cima com as mãos nos braços de Doyle, só que não para me firmar, pois fiquei com muito medo.
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- Não é melhor nos dar as facas que trouxe com você antes de prosseguir com o nosso plano? - ele sugeriu.
- Até onde nós vamos?
- As roseiras querem um gole do seu sangue. Elas precisam tocar no seu pulso ou em outra parte, mas costuma ser no pulso - ele disse.
Não gostei da ideia.
- Não me lembro de ter me oferecido para doar sangue de novo.
- As facas primeiro, Meredith, por favor - Doyle pediu. Olhei bem para os espinhos trêmulos. Uma vinha parecia mais baixa do que o resto agora. Larguei Doyle, enfiei a mão no vestido e peguei a faca dobrável que tinha escondido no sutiã. Abri a faca. Frost se surpreendeu e não ficou nada feliz com isso. Rhys também ficou surpreso mas satisfeito.
- Não sabia que dava para esconder uma arma assim em tão pouca roupa - disse Frost.
- Talvez não tenhamos de trabalhar tanto para protegê-la como eu pensava - disse Rhys.
Galen me conhecia o bastante para saber que eu sempre andei armada na corte.
Entreguei a faca para Doyle e levantei a saia do vestido. Quando chegou aos joelhos senti a atenção dos homens pesando na minha pele. Olhei para eles. Frost virou para outro lado, constrangido. Mas os outros continuaram olhando para minhas pernas ou para meu rosto. Sabia que tinham visto mais do que aquilo, em pernas mais longas.
- Se continuarem me observando assim com tanta concentração vão me deixar sem graça.
- Perdão - disse Doyle.
- Por que a súbita atenção, cavalheiros? Vocês já viram as damas da corte com muito menos do que isso.
Continuei levantando a saia até descobrir a cinta liga. Eles observaram cada movimento, como gatos vigiando um passarinho na gaiola.
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- Mas as damas da corte são proibidas para nós. Você não - disse Doyle.
Ah. Tirei a faca, com a bainha e tudo, de dentro da liga. Deixei a saia cair no lugar e vi o olhar deles seguir o movimento do tecido. Gosto de ser admirada pelos homens, mas aquele nível de escrutínio era quase irritante. Se eu sobrevivesse àquela noite, teria de conversar com eles sobre isso. Mas como Doyle tinha dito, um problema de cada vez, senão nada se resolve.
- Quem fica com esta faca?
Três mãos brancas se ofereceram para pegá-la. Olhei para Doyle. Ele era, afinal de contas, o capitão da Guarda. Ele meneou a cabeça consentindo, e aprovando eu ter olhado para ele para saber o que fazia, em vez de resolver eu mesma. Eu sabia qual dos três preferia, só não tinha certeza de qual deles era mais destro com uma faca.
- Dê para Frost - disse Doyle.
Dei a faca para Frost com o cabo virado para ele. Frost pegou e fez uma pequena mesura. Notei pela primeira vez que havia manchas de sangue na sua bela camisa. Ele tinha ficado deitado sobre os ferimentos das costas de Galen. Tinha de deixar a camisa de molho senão aquelas manchas não iam sair mais.
- Entendo que Frost mereça uma ou duas paqueradas esta noite, Meredith, mas você está desperdiçando tempo - disse Doyle.
- É, acho que estou.
Olhei para os espinhos pendurados. Meu estômago se contraiu, minhas mãos ficaram frias. Eu estava com medo.
- Estenda o pulso para a vinha mais baixa. Nós vamos protegê-la até o último suspiro, você sabe disso.
- Eu sei.
Eu realmente sabia. Até acreditava, mas mesmo assim... observei os espinhos e depois olhei mais para cima, para a escuridão. Vinhas da grossura da minha perna se enroscavam e se reviravam como um emaranhado de serpentes. Alguns espinhos eram do tamanho da minha mão, e esses captavam a luz com um reflexo opaco e negro.
Voltei a me concentrar nos espinhos finos e pequenos das vinhas logo acima da minha cabeça. Eram pequenos, mas em grande quantidade, uma verdadeira armadura de alfinetes minúsculos.
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Respirei bem fundo e soltei o ar. Levantei a mão devagar com o punho cerrado. Mal tinha chegado à altura da testa quando a vinha mergulhou como uma cobra numa toca. A coisa marrom se enrolou no meu pulso e cravou os espinhos na pele, como anzóis na boca de um peixe. A dor foi imediata e aguda, um segundo depois do primeiro fio de sangue escorrer pelo meu pulso. A sensação do sangue escorrendo foi igual à de pequenos dedos acariciando a pele. Uma chuva fina e vermelha deslizou pelo meu braço, espessa e lenta.
Galen ficou do meu lado, balançando as mãos em volta de mim como se quisesse me tocar mas tivesse medo.
- Já não basta? - ele perguntou.
- Parece que não - disse Doyle.
Olhei para onde Doyle olhava e vi um segundo fio da planta pairando sobre a minha cabeça. Parou como a primeira tinha parado... esperando. Só aguardando o meu convite para chegar mais perto.
Virei para Doyle.
- Você deve estar brincando.
- Faz muito tempo que ela não se alimenta, Meredith.
- Você já suportou mais dor do que alguns espinhos - disse Rhys.
- E até gostou - disse Galen.
- Era um contexto diferente - eu disse.
- O contexto é tudo - ele disse baixinho.
Havia algo mais na voz dele, mas não tinha tempo para tentar decifrar.
- Eu daria o meu pulso no seu lugar, mas não sou herdeiro - disse Doyle.
- Nem eu, ainda.
A vinha se aproximou mais, encostou no meu cabelo como um amante querendo abrir caminho para a terra prometida com carícias. Ofereci o outro braço, com a mão fechada. A planta se enrolou no meu pulso com pressa e avidez. Os espinhos afundaram na minha carne. A gavinha sugou com força. Provocou um grito sufocado na garganta. Rhys tinha razão. Eu já suportara dor
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maior, mas cada dor é única, uma tortura diferente das outras. As gavinhas se esticaram e levantaram minhas mãos um pouco acima da cabeça. Eram tantos espinhos que parecia um pequeno animal querendo morder meus pulsos.
O sangue escorria pelos meus braços como uma chuva fina e constante. Antes eu tinha sentido cada fio de sangue individualmente, mas minha pele parou de reagir com tantas sensações. A dor nos pulsos atraía toda a minha atenção. As vinhas me puxaram, e eu tive de ficar na ponta dos pés, até que a força delas era tudo que me impedia de cair. A dor aguda e ardente começou a desaparecer e a se transformar numa queimação. Não era veneno. Era apenas o meu corpo reagindo ao estrago.
Ouvi a voz de Galen e parecia que vinha de longe:
- Já chega, Doyle.
Só quando ele disse isso é que me dei conta de que tinha fechado os olhos. Eu tinha fechado os olhos e me entregado à dor, porque só aceitando eu poderia ficar acima dela, viajar por ela, para o lugar onde não havia dor nem sofrimento, onde eu flutuava num mar de escuridão. A voz dele me trouxe de volta, distendida naquele beijo de espinhos e no derramamento do meu sangue. Meu corpo se contorceu com aquele súbito despertar e os espinhos reagiram ao movimento me puxando para cima, para longe do chão.
Eu gritei.
Alguém agarrou minhas pernas, apoiou meu peso. Pisquei, olhei para baixo e vi que era Galen.
- Já chega, Doyle - ele disse.
- Eles nunca beberam tanto tempo da rainha - disse Frost. Frost estava perto de nós, com a minha faca na mão.
- Se cortarmos as gavinhas, elas nos atacarão - disse Doyle.
- Precisamos fazer alguma coisa - disse Rhys. Doyle concordou.
As mangas do meu casaco estavam ensopadas de sangue. Pensei vagamente que devia ter me vestido de preto. A luz cinza parecia nadar em volta de nós. Eu estava tonta, com a cabeça vazia. Queria estancar aquela perda de sangue antes de ficar nauseada. Nada
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era pior do que a náusea produzida pela perda de sangue. Você se sente fraco demais para se mexer, mas deseja esvaziar o estômago no chão. Meu medo estava se transformando numa sensação leve e quase luminosa, como se o mundo estivesse coberto de névoa.
Eu estava perigosamente prestes a perder a consciência. Farta dos espinhos. Tentei dizer "chega", mas não saiu nenhum som. Concentrei-me nos meus lábios, e eles se moveram, formando a palavra, mas sem som.
Então ouvi um som, mas não era a minha voz. As trepadeiras sibilaram e estremeceram em cima de mim. Olhei para o alto e minha cabeça caiu toda para trás. As gavinhas rolaram sobre mim como um mar negro feito de cordas. Os espinhos em volta do pulso me puxaram para cima com ruído sibilante. Só os braços de Galen agarrados às minhas pernas evitavam que eu fosse puxada para o ninho de espinhos. As vinhas dos pulsos puxaram mais, Galen aguentou, e eu sangrei.
Gritei. Berrei uma palavra:
- Chega!
As vinhas estremeceram. De repente muitas folhas começaram a cair. Uma neve marrom e seca encheu o ar. Senti um cheiro forte de folhas de outono e por trás, como uma segunda onda de perfume, o aroma rico de terra nova.
Os espinhos me fizeram descer até o chão. Galen me pegou no colo quando a planta me soltou, lentamente. Os braços de Galen e as gavinhas pareciam extremamente suaves, se é que dentes podiam ser suaves quando tentavam devorar seu braço.
O barulho da porta batendo na parede foi o primeiro sinal de que a roseira tinha recuado da saída.
Galen me segurava no colo enquanto os espinhos ainda prendiam meus pulsos acima da minha cabeça, quando todos nós viramos para a luz que vinha da porta aberta.
Era uma luz brilhante, ofuscante com uma moldura de névoa. Eu sabia que só parecia brilhante em contraste com a escuridão de antes, e achei que a moldura de névoa era apenas deficiência da minha visão... até que uma mulher saiu daquela luz com fumaça
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subindo das pontas dos dedos, como se cada um daqueles dedos amarelo-claros fosse uma vela apagada.
Fflur entrou na sala com um vestido todo preto que fazia sua pele amarela ficar da cor forte de narcisos. O cabelo amarelo se abria em leque em volta do vestido como uma capa cintilante ao vento do poder dela mesma.
Os guardas correram para ficar dos dois lados dela. Alguns portavam armas, o resto entrou na sala de mãos vazias. Havia vinte e sete homens na Guarda da Rainha e o mesmo número de mulheres na Guarda do Rei, que agora obedeciam a Cel porque não havia rei. Cinquenta e quatro guerreiros, e menos de trinta entraram por aquela porta.
Apesar de estar quase desfalecendo, procurei memorizar cada rosto, tentei lembrar quem foi nos ajudar e quem ficou no outro salão em segurança. Qualquer guarda que não tivesse passado por aquela porta tinha perdido qualquer chance de tocar no meu corpo. Mas não consegui focalizar todos os rostos. Uma enxurrada de novas formas chegou atrás da Guarda, a maioria mais baixa e bem menos humana.
Os duendes tinham chegado.
Os duendes não eram criaturas de Cel. Essa foi a última coisa que pensei antes de a escuridão atacar minha visão e da névoa nos meus olhos. Mergulhei naquela escuridão abençoada igual a uma pedra jogada na água que só faz afundar, afundar e afundar, porque não existe fundo.
Havia uma luz na escuridão. Um ponto branco flutuou na minha direção, ficando cada vez maior. E eu vi que não era luz, mas sim chamas brancas. Uma bola de fogo branco chegou na escuridão, e eu não podia escapar dela porque não tinha corpo. Eu era apenas
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uma coisa flutuando no escuro frio. O fogo me cobriu, e então adquiri um corpo. Ossos, músculos, pele e voz. O calor consumiu minha pele, senti os músculos ardendo, estalando com o calor. O fogo penetrou nos meus ossos, encheu minhas veias de metal derretido e começou a me virar do avesso. Acordei berrando.
Galen estava inclinado sobre mim. O rosto dele foi a única coisa que me impediu de entrar em pânico. Tinha apoiado minha cabeça e a parte de cima do corpo nas coxas, acariciava minha testa e afastava o cabelo do meu rosto.
- Está tudo bem, Merry. Está tudo bem.
Os olhos dele brilhavam com as lágrimas que não tinha derramado, pareciam grama molhada. Fflur abaixou-se ao meu lado.
- Não sou portadora de bela recepção, Princesa Meredith, mas preciso atender à nossa rainha.
Traduzindo, o que ela dizia era que tinha me tirado da escuridão, tinha me forçado a despertar, e a mando da rainha. Fflur era uma daquelas que se esforçavam muito para viver como se o ano nunca tivesse chegado aos quatro dígitos. Suas tapeçarias tinham sido exibidas no Museu de Arte St. Louis. Foram fotografadas e comentadas em pelo menos duas revistas importantes. Fflur havia se recusado a ver os artigos e sob circunstância alguma se deixou convencer a ir ao museu. Recusou-se a dar entrevistas para a televisão, jornais e as mesmas revistas já mencionadas.
Foram necessárias duas tentativas para a minha voz funcionar sem ser aos gritos:
- Você tirou a roseira da porta?
- Tirei - ela disse.
Tentei sorrir para ela, mas não consegui.
- Você se arriscou muito para me ajudar, Fflur. Não tem por que se desculpar.
Ela levantou a cabeça e examinou os rostos em volta. Encostou a ponta do dedo na minha testa e pensou duas palavras: "mais tarde". Ela queria conversar comigo mais tarde, mas não queria que ninguém soubesse. Ela era uma curandeira, entre outros talentos
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que tinha. Podia ter verificado a minha saúde com o mesmo gesto, por isso ninguém ia desconfiar.
Nem arrisquei menear a cabeça. O melhor que pude fazer foi olhar para seus olhos negros, um contraste espantoso em todo aquele amarelo, que pareciam olhos de boneca. Então olhei nos olhos dela e procurei dizer-lhe com um olhar que tinha entendido. Eu nem tinha visto a sala do trono ainda e já estava envolvida até o pescoço nas intrigas da corte. Era típico.
Minha tia ajoelhou-se diante de mim numa nuvem de couro e vinil. Segurou minha mão direita, ficou acariciando-a e sujou as luvas de sangue.
- Doyle me disse que você espetou o dedo num espinho, e as rosas ganharam vida.
Tentei ler a expressão dela, mas fracassei. Meus pulsos doíam com uma ardência que parecia chegar até o osso. Ela ficou passando os dedos nas feridas e toda vez que encostava o couro da luva eu me contraía.
- Sim, eu espetei o dedo. Mas o que deu vida às rosas é mero palpite.
Ela aninhou minha mão entre as dela, carinhosa, e olhou para os ferimentos com ar de... deslumbramento.
- Eu já tinha perdido a esperança com as nossas rosas. Mais uma perda numa imensidão de perdas.
Ela sorriu e parecia sincera, mas eu tinha visto Andais usar aquele mesmo sorriso quando torturava alguém em seu quarto. Não dava para confiar só porque o sorriso parecia verdadeiro.
- Fico feliz de vê-la satisfeita - eu disse, com a voz mais neutra possível.
Andais deu risada e fez pressão nas feridas com as mãos. De repente tive consciência de cada costura das luvas de couro que me apertavam. Ela fez uma pressão constante até eu gemer baixinho de dor. Parece que ela gostou disso e me soltou. Então se levantou com um farfalhar das saias.
- Depois que Fflur tiver feito os curativos nesses ferimentos, você pode se juntar a nós na sala do trono. Estou aflita para tê-la ao meu lado.
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Ela deu meia-volta, a multidão abriu passagem e formou um túnel de luz que ia até a sala do trono. Eamon apareceu como uma sombra negra de couro para oferecer-lhe o braço.
Um pequeno duende com uma linha de olhos na testa, feito colar, ajoelhou-se ao meu lado, na ponta das saias pretas de Fflur. Os olhos do duende piscaram para mim, depois para ela, para mim, para ela, mas na verdade estavam olhando para o sangue. Era um duende bem pequeno, mal chegava a sessenta centímetros de altura. O anel de olhos era considerado bonito entre os duendes. Eles chamavam tal característica, literalmente, de "colar de olhos", e diziam isso num tom que os humanos reservavam para grandes seios ou bunda arrebitada.
A rainha podia pensar o que quisesse sobre as rosas. Eu não acreditava que uma gota do meu sangue tinha inspirado a trepadeira agonizante. Acreditava, sim, que o meu sangue real tinha me salvado, mas aquele ataque inicial... Suspeitava que era mais um feitiço, escondido entre os espinhos. Era viável para alguém com poder suficiente.
Eu tinha inimigos. O que precisava era de amigos... aliados.
Deixei a mão cair junto ao quadril como se estivesse muito fraca. Os ferimentos ficaram a poucos centímetros da boca do duende. Ele avançou rapidamente e lambeu meu sangue como um gato, com sua língua áspera. Gemi baixinho, e ele se encolheu.
Galen deu um safanão no ar como quem espanta um cão. Mas Fflur agarrou o duende pelo pescoço.
- Seu guloso, o que pretende com essa impertinência? Ela já ia expulsá-lo. Mas eu impedi.
- Não, ele provou o meu sangue sem permissão. Exijo uma indenização por tal abuso.
- Indenização? - Galen perguntou.
Fflur não largou o pequeno duende. Os muitos olhos dardejavam de um lado para outro.
- Não tive a intenção. Desculpe, sinto muito.
Ele tinha dois braços principais e dois outros minúsculos que pareciam inúteis. Os quatro braços tremiam, abrindo e fechando os pequenos dedos com garras.
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Frost tirou o duende de Fflur e tirou do chão a pequena criatura com as duas mãos. Ele não estava mais com a minha faca. Precisava lembrar de pedi-la de volta. Mas naquele momento tinha outras coisas para tratar.
- Preciso fechar essas feridas - disse Fflur - senão você vai perder mais sangue. Eu lhe dei um pouco da minha força, mas você não gostou e gostaria menos ainda uma segunda vez.
Balancei a cabeça.
- Ainda não.
- Merry - disse Galen - deixe que ela trate dos seus ferimentos.
Pela expressão dele vi que estava preocupado. Ele tinha sido criado na corte, como eu. Devia saber que agora não era hora de cuidar dos nossos ferimentos. Agora era hora de agir. Olhei para o rosto dele. Não para seu rosto bonito e aberto, nem para seus cachos verde-claros, nem para sua risada que iluminava o rosto todo... olhei para ele como meu pai deve ter olhado para ele um dia quando resolveu me entregar para outro. Eu não tinha tempo para explicar as coisas que Galen já devia estar pensando. Examinei o grupo que olhava para mim como espectadores de um acidente de automóvel, apenas mais bem vestidos e mais exóticos.
- Onde está Doyle?
Houve um movimento na multidão, à minha direita. Doyle apareceu. Ele parecia muito alto, olhando assim do chão, onde eu estava deitada. Era uma coluna de capa preta. A única coisa que abrandava o aspecto ameaçador dele eram os brincos com penas de pavão que emolduravam seu rosto. A expressão, a linha dos ombros sob a capa, tudo era o velho Doyle. A Escuridão da Rainha parou ao meu lado, e as penas pareciam fora de contexto. Ele se vestira para uma festa e acabou no meio de uma briga. As feições não diziam nada, mas justamente aquela falta de expressão indicava que ele não estava satisfeito.
De repente, eu me senti com seis anos de idade e um pouco amedrontada com aquele homem alto e negro que andava junto com a minha tia. Mas agora ele não estava ao lado dela. Estava comigo. Recostei-me de novo no colo de Galen e o contato com ele era reconfortante, mas era para Doyle que eu pedia ajuda.
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- Traga Kurag para tratar comigo se ele quiser resgatar esse ladrão - eu disse.
Doyle arqueou a sobrancelha preta e fina.
- Ladrão?
- Ele bebeu meu sangue sem a minha permissão. O único roubo maior entre os duendes é o da carne.
Rhys se ajoelhou do meu outro lado.
- Ouvi dizer que os duendes perdem muita carne quando fazem sexo.
- Só se ficar acertado antes - eu disse.
Galen inclinou o corpo e sussurrou no meu ouvido:
- Se você estiver fraca demais por causa da perda de sangue e não puder levar ninguém para a cama esta noite... - Ele encostou os lábios no meu rosto. - Acho que eu não ia suportar ver você em um dos espetáculos sexuais dela. Você deve ficar boa para dormir com alguém hoje, Merry. Deixe Fflur tratar dos seus ferimentos.
Vi o rosto dele no canto do olho, claro e embaçado, os lábios pareciam uma nuvem cor-de-rosa. Ele não estava errado. Só que não pensava mais adiante.
- Posso usar melhor o meu sangue sem encharcar os curativos.
- De que você está falando? - perguntou Galen. Foi Doyle que respondeu:
- Os duendes consideram qualquer coisa que venha do corpo mais valiosa do que jóias ou armas.
Galen encarou Doyle. Pôs a mão no meu pulso, e senti o movimento do peito dele quando suspirou, encostado na minha cabeça.
- E o que Merry tem a ver com isso?
Mas havia algo na voz dele que indicava que já sabia a resposta. Os olhos negros de Doyle foram de mim para Galen. Ele ficou um tempo olhando para o jovem guarda.
- Você é jovem demais para se lembrar das guerras dos duendes.
- Merry também é - disse Galen. Aqueles olhos negros voltaram para mim.
- É jovem, mas ela conhece a história dela. - Ele se virou para Galen mais uma vez. - Você conhece a sua história, jovem Corvo?
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Galen fez que sim com a cabeça. Puxou-me mais para perto dele e mais para longe de Fflur, de todos. Ficou abraçado comigo, com meus braços tão próximos que o sangue manchou sua pele.
- Eu lembro a minha história. Apenas não gosto dela.
- Vou ficar bem, Galen - eu disse.
Ele meneou a cabeça olhando para mim, mas não acreditou.
- Chame Kurag - eu disse para Doyle. Ele encarou a multidão que aguardava.
- Sithney, Nicca, vão buscar o rei dos duendes.
Sithney deu meia-volta e seu cabelo castanho comprido esvoaçou. Não vi o cabelo roxo de Nicca. O brilho pálido de sua pele lilás seria fácil de se notar no meio das peles brancas e escuras da corte. Mas se Doyle chamou, ele devia estar lá.
O grupo abriu passagem, e Kurag apareceu, com sua rainha ao lado. Os duendes, como todos os encantados, consideravam a consorte real um companheiro de armas, não alguém para ficar escondido em segurança. A rainha tinha tantos olhos espalhados pelo rosto que parecia uma aranha que crescera demais. A boca larga e sem lábios tinha presas muito grandes, que deixariam qualquer aranha orgulhosa. Alguns duendes tinham veneno em seus corpos. Eu podia apostar que a nova rainha de Kurag era um desses. Os olhos, o veneno e um monte de braços pelo corpo como coleção de cobras faziam dela quase a perfeição de beleza dos duendes, apesar de ela só ter um par de pernas arqueadas. Pernas extras eram a mais rara beleza entre os duendes. Keelin não dava valor à sorte que tinha.
A rainha duende tinha um ar de contentamento que indicava que era uma mulher que conhecia o seu valor e que usava isso a seu favor. Todos aqueles braços se agarravam ao corpo de Kurag, alisando, acariciando. Um par estava entre as pernas dele, esfregando seu pênis e seus testículos por cima da calça. Tomar a iniciativa de fazer algo tão declaradamente sexual quando era apresentada a alguém era sinal de que ela me considerava uma rival.
Meu pai achava importante eu conhecer bem a corte dos duendes. Nós os visitamos muitas vezes, e eles também visitavam nossa casa. Ele tinha dito que os duendes eram os que mais lutavam
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nas nossas guerras. Que eles eram a espinha dorsal dos nossos exércitos, não os encantados. Isso era verdadeiro desde a última guerra dos duendes, quando assinamos um tratado duradouro com eles. Kurag ficava tão à vontade com meu pai que chegou a pedir a minha mão como consorte. O resto dos encantados ficou mortalmente ofendido. Alguns falaram até em entrar em guerra por causa desse insulto. Os duendes consideraram o desejo dele por uma noiva que parecia humana o cúmulo da perversidade e falavam em encontrar um novo rei pelas costas dele. Mas outros duendes viram os benefícios de ter sangue encantado numa rainha. Foi necessário uma boa dose de diplomacia para evitar a guerra, ou o meu casamento com um duende. Logo depois disso foi anunciado o meu noivado com Griffin.
Kurag parou na minha frente. A pele dele tinha um tom de amarelo parecido com a de Fflur. Mas enquanto a dela era lisa como o perfeito marfim envelhecido, a pele de Kurag era coberta de verrugas e caroços. Cada imperfeição na pele dele era uma marca de beleza. De um grande caroço no ombro direito brotava um olho. Era um olho errante, como os duendes chamavam, porque aparecia longe do rosto. Eu adorava aquele olho quando era criança. Gostava do jeito como se movia, independente do rosto dele, dos três olhos que enfeitavam seu rosto largo, suas feições fortes. O olho do ombro era da cor de violetas, com cílios compridos e pretos. Havia uma boca logo acima do mamilo direito, com lábios grossos, vermelhos, e saía ar dessa boca. Se puséssemos uma pena na frente dessa segunda boca, ela era soprada para cima, repetidamente. Enquanto meu pai e Kurag conversavam, eu me entretinha observando aquele olho, aquela boca e os dois braços finos que saíam desengonçados do lado direito de Kurag, um de cada lado das costelas. Jogávamos cartas com aquele olho, aquela boca e aqueles braços. Eu achava Kurag muito inteligente porque podia se concentrar em coisas tão diferentes ao mesmo tempo.
O que eu não sabia até entrar na adolescência era que havia duas pernas finas embaixo do cinto de Kurag, também do lado direito, completas, com um pênis pequeno mas totalmente funcional. A ideia que os duendes faziam de namoro era tosca. A potência
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sexual contava muito entre eles. Quando eu não fiquei nada animada com a proposta dele de casamento, Kurag abaixou a calça e mostrou o seu equipamento e o de seu gêmeo parasita. Eu tinha dezesseis anos e ainda lembro o horror que senti ao ver que havia outro ser preso ao corpo de Kurag. Outro ser com independência suficiente para jogar cartas com uma criança enquanto Kurag não prestava atenção. Havia uma pessoa inteira presa dentro dele. Uma pessoa completa que, se a genética tivesse sido mais bondosa, talvez combinasse mais com aquele adorável olho lilás.
Depois disso nunca mais fiquei à vontade com Kurag. Não foi a proposta nem a visão do formidável pênis latejante dele que chamavam a atenção. Foi a visão daquele segundo pênis, grande e inchado, independente de Kurag e com tesão em mim. Quando recusei os dois, porque eram dois mesmo, aquele olho cor de lavanda derramou uma única lágrima.
Passei semanas tendo pesadelos. Membros a mais era algo interessante, mas pessoas a mais aos pedaços, presas dentro de outra... não havia palavras para descrever esse tipo de horror. A segunda boca respirava, então obviamente tinha acesso aos pulmões, mas não possuía cordas vocais. Eu não tinha certeza se isso era uma bênção, ou mais uma maldição.
- Kurag, Rei Duende, saudações. Gêmeo de Kurag, Carne do Rei Duende, saudações também.
Os braços finos no lado do peito nu do rei acenaram para mim. Passei a saudar os dois desde aquela noite em que me dei conta de que a pessoa com quem eu jogava cartas e fazia brincadeiras bobas como soprar uma pena não era Kurag. E até onde eu sabia, era a única pessoa que saudava os dois.
- Meredith, Princesa Encantada, saudações de nós dois.
Os olhos cor de laranja se fixaram em mim, o maior como o de um ciclope, um pouco acima e no meio dos outros dois. O olhar dele era o de um homem que deseja uma mulher. Tão descarado, tão óbvio, que senti o corpo de Galen enrijecer. Rhys se levantou para ficar ao lado de Doyle.
- É uma honra ter a atenção de vocês, Rei Kurag - eu disse.
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Para os duendes era um insulto quando os homens não demonstravam tesão pelas mulheres deles. Indicava que ela era feia e estéril, que não merecia ser desejada.
A rainha continuou agarrada a Kurag, mas moveu uma das mãos para o lado do corpo dele, onde eu sabia que pendia sua segunda genitália. O monte de olhos dela olhava furioso para mim enquanto acariciava o membro do marido. Kurag bufou com as duas bocas.
Se não nos apressássemos, ainda estaríamos ali quando a rainha o fizesse gozar, aliás, os fizesse gozar. Os duendes não achavam nada de mais em fazer sexo em público. Era um sinal de virilidade entre os homens gozar muitas vezes num banquete, e a mulher que conseguia isso era muito valorizada. E é claro que o duende que sustentava as atenções de uma fêmea bastante tempo era valorizado entre as mulheres. Se um duende tivesse algum problema sexual como ejaculação precoce, ou impotência, ou, para a fêmea, frigidez, todo mundo ficava sabendo. Não escondiam nada.
Os olhos de Kurag viraram para Frost e para o pequeno duende que ele segurava. Pela atenção que o rei duende lhe dava, sua rainha podia muito bem estar em outra sala.
- Por que prendeu um dos meus homens?
- Isto não é um campo de batalha, e não sou carniça - eu disse. Kurag piscou incrédulo. O olho no ombro piscou um ou dois segundos depois dos três principais. Ele se virou para o pequeno duende.
- O que você fez?
O pequeno duende gaguejou.
- Nada, nada.
Kurag dirigiu-se a mim.
- Conte para mim, Merry. Esse aqui mente mais do que respira.
- Ele bebeu meu sangue sem a minha permissão. Os olhos piscaram novamente.
- Isso é uma grave acusação.
- Quero indenização pelo sangue roubado. Kurag tirou uma grande faca do cinto.
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- Quer o sangue dele?
- Ele bebeu o sangue de uma princesa real da alta corte dos encantados. Você realmente acha que o sangue vulgar dele é uma troca justa?
Kurag me encarou e perguntou, desconfiado:
- O que seria uma troca justa?
- O seu sangue pelo meu - eu disse.
Kurag afastou as mãos da rainha. Ela deu um gritinho, e ele teve de empurrá-la com mais força, de modo que ela caiu sentada no chão. Kurag nem olhou para ela, para ver se estava bem.
- Compartilhar o sangue significa uma coisa para os duendes, Princesa.
- Eu sei o que significa - eu disse.
- Eu poderia simplesmente esperar você perder muito sangue e virar carniça - ele disse, me fitando com os olhos amarelos.
A rainha juntou-se a ele.
- Posso apressar o processo.
Ela ergueu uma faca que era mais comprida do que o meu antebraço. A lâmina cintilava com a luz. Kurag se virou para ela e rosnou:
- Isso não é problema seu!
- Você quer compartilhar o sangue com ela, que nem é uma rainha. É problema meu, sim!
Ela golpeou com a faca direto no corpo dele. A arma pareceu uma mancha prateada, o movimento foi quase rápido demais para seguir com os olhos.
Kurag só teve tempo de levantar o braço para evitar que a lâmina atingisse seu corpo. O corte foi no braço dele, que espirrou sangue. Ele bateu no rosto dela com o outro braço principal. Ouviu-se um ruído forte de osso quebrando, e ela caiu sentada pela segunda vez. O nariz tinha explodido como um tomate maduro. Dois dentes entre as presas estavam quebrados. Se saía sangue da boca, perdia-se no sangue que jorrava do nariz. O olho mais perto do nariz saltou da órbita rachada e ficou pendurado sobre o rosto como um balão de ar preso num barbante.
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Kurag prendeu a faca da rainha com o pé. Ele bateu nela de novo, e dessa vez ela caiu deitada de lado e ficou imóvel. Havia mais de um motivo para eu não ter querido casar com Kurag.
Ele se abaixou sobre a rainha caída. Verificou com dedos grossos que ela ainda respirava, que seu coração ainda batia. Meneou a cabeça para ele mesmo e a pegou no colo. Abraçou-a com gentileza, com ternura. Então rugiu uma ordem, e um enorme duende abriu caminho pelo meio da multidão.
- Leve-a de volta para a nossa colina. Mande cuidarem desses ferimentos. Se ela morrer, penduro a sua cabeça numa estaca.
Os olhos do duende dardejaram para o rosto do rei, depois para o chão. Mas houve aquele momento de puro medo na expressão do duende. O rei tinha espancado a rainha, quase a matou, mas seria culpa do guarda duende se ela morresse. Assim o rei seria inocente e poderia encontrar uma nova rainha mais depressa. Se ele a tivesse matado mesmo diante de tantas testemunhas da realeza, podia ser forçado a abdicar do trono, ou perder a vida. Mas ela estava viva quando a entregou delicadamente para o portador. Se ela morresse agora, as mãos do rei estariam metaforicamente limpas.
Mas não dava para saber se ela ia morrer. Os duendes eram muito resistentes.
Um segundo guarda duende, mais baixo e mais atarracado do que o primeiro, recebeu a faca da rainha das mãos de Kurag e seguiu o primeiro guarda duende. Kurag estaria exercendo seu direito mandando matar os dois se a rainha morresse. Uma das coisas que a realeza aprende cedo é a espalhar a culpa. Espalhe a culpa e mantenha sua cabeça no pescoço. Era como um jogo complicado, parecido com o da Rainha de Copas de Alice no País das Maravilhas. Diga a coisa errada, não diga a coisa certa e sua cabeça pode rolar. Metaforicamente, ou não tão metaforicamente.
- Minha rainha nos poupou o trabalho de abrir minha veia - Kurag disse para mim.
- Então vamos logo com isso. Estou desperdiçando meu sangue - eu disse.
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Galen ainda estava cobrindo meus pulsos com as mãos e percebi que ele fazia pressão para estancar o sangue.
- Galen, por favor, solte-me.
Ele abriu a boca, ia dizer alguma coisa, depois fechou e lentamente largou meus pulsos. As mãos dele ficaram manchadas com o meu sangue. Mas a pressão que tinha aplicado diminuiu a hemorragia, ou talvez tenha sido apenas o toque de Galen. Quem sabe não era apenas a minha imaginação de achar que as mãos dele eram uma presença calma e reconfortante.
Ele me ajudou a levantar. Tive de empurrar as mãos dele para ficar de pé sozinha. Espacei os pés para ter mais equilíbrio e encarei Kurag.
Assim de pé eu chegava quase ao externo no meio do peito dele. Os ombros de Kurag tinham uma largura quase igual à minha altura. A maioria dos encantados era alta, mas os duendes maiores eram muito corpulentos.
Fflur tinha ficado ao lado de Galen, Doyle e Rhys, atrás de mim. Frost estava de um lado, segurando o pequeno duende. As pessoas se acotovelaram à nossa volta, encantados, duendes e outros. Mas eu só tinha olhos para o rei dos duendes.
- Embora ofereça minhas desculpas pela grosseria do meu homem - disse Kurag - não posso oferecer meu sangue sem obter alguma vantagem em troca.
Estendi a mão direita para ele e a esquerda para a boca vermelha no peito dele.
- Então beba, Kurag, Rei Duende.
Levantei o braço o mais alto que pude, perto da boca principal. Ficar assim com o braço tão acima da cabeça me deixou tonta. Encostei o pulso esquerdo na boca aberta do peito e foram aqueles lábios que se fecharam sobre meu pulso primeiro, foi aquela língua que remexeu na ferida para fazê-la sangrar novamente. A língua daquela boca era suave e humana, não parecia nada a língua áspera de gato do pequeno duende.
Kurag abaixou a cabeça sobre meu pulso e cuidou de não segurar meu braço com as mãos. Usar as mãos seria grosseiro e considerado uma abertura sexual. A língua dele era áspera feito
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lixa, mais grossa ainda do que a do pequeno duende. Ela arranhou a ferida e provocou em mim um grito sufocado. A boca do peito já tinha formado uma ligação com o ferimento e sugava como um bebê com mamadeira. A língua de Kurag trabalhou até o sangue fluir, fresco e rápido. Quando ele abocanhou a ferida, sua boca envolveu quase todo o meu pulso. Ele apertou os dentes dolorosamente na minha carne quando sugou com mais força. A pequena boca no peito era muito mais educada.
A boca de Kurag se empenhou no meu pulso, os lábios selavam completamente a área. Quando estava me acostumando com a sucção, ele raspou os dentes na ferida, e a língua fez um movimento que causou uma dor aguda. Ele estava demorando demais. Era como um concurso para ver quem bebia mais cerveja. Você bebe o máximo que consegue num determinado tempo, sem vomitar.
Mas finalmente, felizmente, Kurag afastou a cabeça do meu pulso. Tirei a mão do peito dele também. Os lábios ali deram um leve beijo no meu braço antes.
Kurag esticou os lábios finos num sorriso, mostrando os dentes amarelados manchados de sangue.
- Faça melhor se puder, Princesa, só que sempre achei os encantados meio delicados demais para um bom trabalho de língua.
- Você deve estar recebendo os encantados errados, Kurag. Eu achei todos eles... - abaixei a voz até virar um cochicho e fiz um olhar para combinar - ...oralmente talentosos.
Kurag deu uma risadinha, baixa e perversa, mas satisfeita.
Eu cambaleei um pouco, mas mantive o equilíbrio, e era só disso que precisava. Mas teria de me sentar em breve, antes de cair de vez.
- É a minha vez - eu disse.
O sorriso de Kurag ficou maior.
- Chupe-me, doce Merry, chupe-me com vontade.
Eu teria balançado a cabeça se não tivesse certeza de que ia piorar a tontura.
- Você não muda nunca, Kurag - eu disse.
- Por que deveria? - ele disse. - Nenhuma fêmea que levei para a cama em mais de oitocentos anos jamais saiu insatisfeita.
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- Só sangrando - eu disse. Ele deu risada de novo.
- Se não tiver sangue, qual é a graça? Tentei não sorrir e não consegui.
- Muita falação para um duende que ainda não ofereceu seu sangue.
Ele estendeu o braço para mim. O sangue escorria por ele num fio grosso e vermelho. O corte que ele pôs diante do meu rosto era mais profundo do que parecia, uma abertura vermelha como uma terceira boca.
- Sua rainha pretendia matá-lo - eu disse.
Ele espiou o corte, ainda sorrindo de orelha a orelha.
- É, pretendia mesmo.
- Você parece estar gostando disso - eu disse.
- E você, Princesa, parece que está retardando o momento em que deve pôr essa boca limpa e branca no meu corpo.
- Sangue de encantado pode ser doce - disse Galen - mas o sangue de duende é amargo.
Era um ditado antigo. E também uma inverdade.
- Desde que o sangue seja vermelho, sempre tem o mesmo gosto - eu disse.
Encostei a boca na ferida aberta. Não ia conseguir envolver o braço de Kurag com a boca, como ele tinha feito com o meu. Mas sorver o sangue dele tinha de ser mais do que um mero beijo com os lábios. Tratar a bebida do sangue como qualquer coisa menor do que uma partilha passional como devia ser, como a honra que devia ser, era um insulto.
Sugar o sangue de uma ferida que sangrava tanto assim era uma arte. Temos de começar devagar e ir avançando. Lambi a pele perto da parte menos profunda do corte com movimentos longos e seguros da língua. Um dos segredos para se beber bastante sangue é engolir muitas vezes. O outro é se concentrar separadamente em cada tarefa. Eu me concentrei na aspereza da pele de Kurag, no grande calombo que beirava o corte, como um nó de árvore na pele. Prestei atenção naquele nó, explorei com a boca um segundo, mais do que precisava, mas é que estava juntando coragem
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para o corte propriamente dito. Eu gosto de um pouco de sangue, um pouco de dor, mas aquele corte era fundo e recente, um tanto bom demais.
Dei mais duas boas lambidas na parte mais rasa e então meti a boca. O sangue fluiu rápido demais e fui forçada a engolir convulsivamente, respirando pelo nariz, e mesmo assim havia líquido doce e metálico demais para mim. Não conseguia respirar ao mesmo tempo, tinha muito sangue para engolir. Lutei contra a ânsia de vômito e procurei pensar em outra coisa, qualquer coisa. As bordas do corte estavam muito limpas e lisas. Só por isso deu para saber como a lâmina devia ser afiada. Teria ajudado se eu pudesse encostar as mãos nele, se tivesse outros dados sensoriais. Tive consciência de que minhas mãos se crispavam no ar como se tentassem encontrar algum ponto de apoio. Mas não estava aguentando. Tinha de fazer alguma coisa.
Uma mão encostou na ponta dos meus dedos, e eu a agarrei, com força, apertei mesmo. A outra mão balançava no ar, até que alguém a segurou também. Pensei que era Galen, pela perfeição lisa das costas das mãos, mas a palma e os dedos eram cheios de calosidades da espada e do escudo... grossas demais para serem de Galen. Aquelas eram mãos que se exercitavam com armas há mais tempo do que toda a vida de Galen. Aquelas mãos seguraram as minhas, reagiram à pressão que fiz, apertaram as minhas quando me segurei nelas.
Continuava com a boca em Kurag, mas prestava atenção nas mãos e na força de quem me sustentava. Senti quando puxou e levou minhas mãos às minhas costas, um pouco para cima, quase provocando dor. Era uma distração perfeita, exatamente o que eu precisava.
Tirei a boca do corte sufocada e finalmente consegui respirar direito. Estava quase vomitando, mas as mãos deram um puxão nos meus braços para cima, e só arfei. A sensação passou, e fiquei bem de novo. Não ia me constranger regurgitando todo aquele sangue bom.
As mãos afrouxaram a pegada nos meus braços, que pararam de doer. Agora eram apenas um apoio.
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- Humm - disse Kurag. - Isso foi bem feito, Merry. Você é de fato filha do seu pai.
- Um grande elogio vindo de você, Kurag.
Dei um passo para trás e tropecei. As mãos me firmaram e pude recostar no peito do dono delas. Descobri quem era antes de me virar para ver. Doyle olhava para mim quando encostei nele, ainda de mãos dadas.
Formei com a boca a palavra "obrigada" sem som para ele.
Ele meneou discretamente a cabeça. Não se mexeu para me soltar, e eu também não me mexi para me afastar da pressão do corpo dele. Estava apavorada ao pensar que, se me afastasse dele, ou se soltasse suas mãos, cairia. Mas também me senti segura naquele momento. Sabia que se caísse, ele ia me amparar.
- Meu sangue está no seu corpo e o seu no meu, Kurag - eu disse. - Somos irmãos de sangue até a próxima lua.
Kurag concordou.
- Os seus inimigos são meus inimigos. Os seus amados, meus amados.
Ele se aproximou e pairou sobre mim, até sobre Doyle.
- Somos aliados de sangue durante uma fase da lua, se...
- O que quer dizer com "se"? O ritual foi completo. Kurag olhou para Doyle com seus três olhos.
- A sua Escuridão sabe do que estou falando.
- Ele ainda é a Escuridão da rainha - eu disse. Kurag olhou para mim e depois para Doyle de novo.
- Não são as mãos da rainha que ele está segurando. Tentei me separar de Doyle, mas ele apertou mais minhas mãos.
Forcei-me a relaxar encostada nele.
- Não é da sua conta saber qual parte de mim Doyle segura, Kurag.
Kurag semicerrou os olhos.
- Ele é seu novo consorte? Ouvi um boato de que era por isso que você ia voltar para a corte, para escolher um novo consorte.
Puxei as mãos de Doyle em volta da minha cintura.
- Eu não tenho consorte.
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Ajeitei-me melhor nos braços de Doyle. Ele ficou rijo um segundo, depois senti seu corpo relaxar um músculo de cada vez, até ficar como um pesado cobertor em volta de mim.
- Mas pode-se dizer que estou pesquisando por aí.
- Ótimo, ótimo - disse Kurag.
Senti que Doyle ficou tenso, mas duvido que qualquer um que estivesse observando pudesse notar a diferença. Eu não estava entendendo alguma coisa ali. O que era?
- Se não houver consorte, eu posso exigir mais uma coisa e a aliança é desfeita.
- Não faça isso, Kurag - disse Doyle.
- Eu invoco o direito da carne - disse Kurag.
- Ele bebeu seu sangue sob falsa alegação - disse Frost. - Ele sabe quem são seus inimigos, e o rei dos duendes os teme.
- Está chamando Kurag, Rei dos Duendes, de covarde? - perguntou Kurag.
Frost prendeu o pequeno duende que segurava embaixo do braço, deixando a outra mão livre, apesar de ainda desarmada.
- Sim, eu o chamo de covarde, se está se escondendo atrás da carne.
- O que é o direito da carne? - perguntei.
Já ia me afastar de Doyle, mas ele me segurou com mais força.
- O que está acontecendo aqui, Doyle?
- Kurag está tentando esconder sua covardia sob um ritual muito antigo.
Kurag deu um largo sorriso para os dois. Chamar qualquer um de covarde, em qualquer corte, era duelo na certa. Kurag estava moderado demais.
- Não tenho medo de nenhum encantado - ele disse. - Não invoco a carne para evitar os inimigos dela, guardas, mas para unir concretamente a minha carne com a dela.
- Você já é casado - disse Frost. - Adultério é crime para os encantados.
- Mas não para os duendes - disse Kurag. - Por isso meu estado civil não faz nenhuma diferença aqui, apenas o dela.
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Eu me livrei de Doyle. O empurrão foi um movimento súbito demais. Cambaleei e, com a mão no meu ombro, Fflur me impediu de cair.
- Vou tratar dos seus ferimentos agora - ela disse. Eu não podia protestar.
- Obrigada - disse para ela.
Fflur começou a fazer os curativos, e eu me virei para os homens.
- Alguém quer fazer o favor de explicar do que ele está falando?
- Com prazer - disse Kurag. - Se o seu inimigo é meu inimigo e devo ajudá-la a se defender de forças poderosas, então meus amados devem realmente ser os seus amados. Teremos uma união da carne da mesma forma como partilhamos o sangue.
- Está falando de sexo? - perguntou Galen. Kurag meneou a cabeça.
- Sim, de sexo.
- Não - eu disse.
- Ah, não - disse Galen.
- Sem união carnal, não tem aliança - disse Kurag.
- Para os encantados - disse Doyle - seus votos de matrimônio continuam sagrados. Meredith não pode ajudá-lo a enganar sua esposa, assim como não poderia trair o próprio marido. A regra da carne só funciona se ambas as partes são solteiras.
Kurag fez uma careta, contrariado.
- Vocês não mentiriam mesmo. Maldição. Você sempre escapa de mim, Merry.
- Só porque você sempre recorre a subterfúgios para tentar me levar para a cama.
Chegou uma serva trazendo um pote com água limpa e ficou segurando para Fflur lavar meus pulsos. Ela abriu um vidro de antisséptico e derramou nos dois braços. O líquido avermelhado caiu na água e ficou flutuando na superfície como gotas de sangue.
- Eu fiz uma proposta válida de casamento a você um dia - disse Kurag.
- Eu tinha dezesseis anos - eu disse. - Você me deixou apavorada.
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Fflur secou meus pulsos.
- Homem demais para você, não sou?
- Vocês dois juntos são demais para mim, Kurag, você tem razão - eu disse.
Ele pôs a mão do lado do corpo, onde ficava a segunda genitália. Bastou uma boa esfregada e apareceu um volume dentro da calça, num lugar em que a maioria dos homens não sentiria nada.
- A carne foi invocada - disse Kurag, ainda alisando o lado do corpo. - Não pode ser desfeito até haver uma resposta.
Olhei para Doyle.
- O que ele quer dizer? Doyle balançou a cabeça.
- Não tenho certeza.
Uma segunda serva levou uma bandeja com itens de primeiros socorros e ficou segurando enquanto Fflur enrolava gaze limpa em volta dos meus pulsos. A serva agia como uma espécie de enfermeira, dando a tesoura e o esparadrapo quando Fflur precisava.
- Eu sei o que Kurag está fazendo - disse Frost. - Continua tentando fugir dos seus inimigos.
Kurag encarou Frost como uma enorme tempestade.
- Merry precisa de todos os braços fortes que puder reunir ao seu lado. Sorte sua, Frost Matador.
- Então você vai honrar sua aliança e ser um dos braços fortes ao lado dela? - disse Frost.
- Essa é a verdade - disse Kurag. - Se não fizer sexo com a sua Merry, prefiro não honrar a aliança.
O rosto torto e cheio de olhos dele ficou sério de repente, até inteligente. Percebi pela primeira vez que Kurag não era burro como fingia ser, nem dominado pelos hormônios como queria parecer. Houve um momento de astúcia absoluta naqueles três olhos amarelos. Foi um olhar tão intenso, tão diferente de um segundo antes, que cheguei a recuar, como se ele tivesse tentado me atacar. Porque por baixo daquela expressão tão séria havia outra coisa... medo.
O que estava acontecendo nas cortes para Kurag, o rei duende, ficar com tanto medo?
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- Se você não honrar sua aliança - disse Frost - toda a corte vai saber que é um covarde sem palavra. E ninguém confiará em você outra vez.
Kurag examinou a multidão em volta. Alguns tinham ido ter com a rainha, como uma fila colorida de seres desprezíveis, mas muitos tinham ficado. Para ver. Para ouvir. Para espionar?
O rei duende girou a cabeça lentamente para ver todos os rostos, depois dirigiu-se a mim.
- Eu invoquei a carne. Tenha uma união carnal com um dos meus duendes, um dos meus duendes solteiros, que cumpro essa aliança de sangue.
Galen veio para o meu lado.
- Merry é uma princesa dos encantados, segunda na linha de sucessão ao trono. Princesas encantadas não vão para a cama com duendes.
Havia força na voz dele, irritação. Raiva. Toquei no ombro de Galen.
- Está tudo bem, Galen.
- Não, não está tudo bem. Como é que ele ousa fazer tal exigência?
Ouvimos um vozerio baixo e revoltado se espalhando entre os encantados na sala. O pequeno grupo de duendes que Kurag teve permissão para levar para a nossa colina juntou-se atrás dele.
Doyle veio ficar às minhas costas. Ele sussurrou:
- Isso pode acabar mal.
- O que espera que eu faça?
- Seja uma princesa e futura rainha - ele disse. Galen ouviu parte dessa conversa e disse para Doyle:
- O que está pedindo que ela faça?
- A mesma coisa que está fazendo conosco a pedido da rainha Andais - disse Doyle. - Eu não pediria se o objetivo não valesse o sacrifício - ele falou para mim.
- Não! - exclamou Galen.
- O que vale mais para você: a virtude dela ou a vida? Galen olhou furioso para Doyle, e a tensão percorreu seu corpo como uma corrente de raiva quase visível.
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- A vida dela - ele acabou respondendo, cuspido, como se fosse uma coisa amarga.
Se os duendes fossem meus aliados e se Cel conseguisse me matar, ele teria um feudo de sangue com Kurag e sua corte. Isso faria com que Cel, ou qualquer outro, hesitasse. Eu precisava daquela aliança.
- Eu aceito um dos seus duendes - eu disse. Kurag sorriu.
- A carne dele em seu doce corpo. Deixe a sua carne e a dele serem uma só, e toda a nação dos duendes será sua aliada.
- Vou me unir à carne de quem? - perguntei.
Kurag ficou pensativo. O olho no ombro se arregalou, e os dois bracinhos do lado do corpo gesticulavam loucamente, apontando.
Kurag virou para o círculo de duendes e foi andando entre eles, seguindo os pequenos braços do seu gêmeo. Não deu para eu ver na frente de quem ele parou. Ele voltou do grupo comprimido de duendes e só pude ver quando o pequeno duende saiu de trás dele.
Tinha apenas um metro e vinte de altura, pele clara como madrepérola brilhante. Eu conhecia pele de encantado quando via uma. O cabelo dele caía em cachos na nuca, preto e grosso, mas cortado acima dos ombros. O rosto era estranhamente triangular, com olhos enormes e amendoados, de um azul safira com pupila alongada que parecia uma linha preta no meio de todo aquele azul. Ele vestia apenas um calção com bordas prateadas, o que para os duendes significava que devia haver alguma deformidade nas partes expostas. Eles não escondiam suas deformidades; ao contrário, consideravam marcas de honra.
Ele caminhou até mim como um boneco minúsculo e perfeito. Se havia alguma deformidade, eu não estava vendo. Se não fossem a altura e os olhos, diria que ele podia fazer parte da corte.
- Este é Kitto - disse Kurag. - A mãe dele era uma dama encantada que foi estuprada na última guerra dos duendes.
Significava que Kitto tinha quase dois mil anos. Certamente não parecia.
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- Salve, Kitto - eu disse.
- Saudações, Princesa.
Ele sibilava quando falava, como se tivesse dificuldade de formar as palavras. Os lábios eram carnudos, cor-de-rosa, e tinham a forma de um arco de Cupido, mas aqueles belos lábios mal se moviam quando ele falava, e tive a impressão de que havia alguma coisa na boca que ele não queria me mostrar.
- Antes de concordar - disse Kurag - veja o espetáculo completo.
Kitto virou de costas e mostrou por que usava apenas o calção. Ele tinha escamas brilhantes, iridescentes, que começavam na base do cabelo e desciam até a base da coluna. As nádegas eram pequenas, rijas e perfeitas, mas as escamas cintilantes explicavam por que os olhos tinham pupilas elípticas e por que ele tinha problema com a pronúncia dos "sss".
- Duende cobra - eu disse.
Kitto deu meia-volta e confirmou balançando a cabeça.
- Abra a boca, Kitto. Quero ver tudo - eu disse. Ele abaixou a cabeça, depois rolou os olhos estranhos para mim. Abriu a boca num largo bocejo e exibiu belas presas. A língua saiu como uma fita vermelha com uma mancha preta em cada extremidade da ponta bifurcada.
- Satisssfeita? - ele perguntou. Fiz que sim com a cabeça.
- Estou.
- Não pode fazer isso - disse Rhys.
Ele estava tão quieto que quase esqueci que fazia parte do nosso grupo.
- A escolha é minha - eu disse.
Rhys tocou no meu ombro e me puxou para um canto.
- Dê uma boa olhada nessa cicatriz que corta meu rosto. Eu sei que contei para você milhares de histórias heróicas de como fiquei assim, mas a verdade é que a rainha me puniu. Ela me entregou para os duendes, para uma noite de prazer. E eu pensei Por que não? Era sexo livre, apesar de ser com duendes.
Ele piscou o olho bom e continuou.
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- A ideia que um duende tem de sexo é muito mais violenta do que você pode imaginar, Merry.
Rhys passou o dedo na cicatriz e ficou com o olhar distante, relembrando.
Toquei na cicatriz, onde terminava, e segurei a mão dele.
- Um duende fez isso em você quando faziam sexo? Ele fez que sim.
- Ah, Rhys - eu disse, com voz suave.
Ele deu um tapinha na minha mão e balançou a cabeça.
- Não é para sentir pena. Só quero que entenda no que está se metendo.
- Eu entendo, Rhys. Obrigada por me contar.
Dei um tapinha no rosto dele, apertei sua mão e passei por ele para ir ao encontro dos duendes que estavam à minha espera. Eu caminhava ereta e em linha reta, mas minha cabeça girava um pouco e fazia com que eu desejasse muito me apoiar em alguma coisa. Mas quando se está negociando um tratado de guerra, é preciso parecer forte, pelo menos não demonstrar que está prestes a despencar desmaiada.
- A carne de Kitto no meu corpo, certo? - perguntei. Kurag meneou a cabeça e parecia muito satisfeito, como se soubesse que tinha ganhado aquela parada.
- Eu concordo em ter a carne de Kitto dentro do meu corpo.
- Concorda? - disse Kurag, com a voz cheia de surpresa. - Você concorda em compartilhar a carne com um duende?
- Concordo, com uma condição.
Ele semicerrou os olhos, desconfiado.
- Que condição?
- Que a nossa aliança dure toda uma estação - eu disse. Senti Doyle se aproximar mais de mim. Uma onda de surpresa se espalhou pela sala em cochichos e pequenos movimentos.
- Uma temporada - disse Kurag. - Não, é tempo demais.
- Onze meses a partir de agora - eu disse. Ele balançou a cabeça.
- Duas luas.
- Dez - eu disse.
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- Três.
- Seja razoável - eu disse.
- Cinco - ele disse.
- Oito - argumentei. Ele deu um largo sorriso.
- Seis.
- Fechado - eu disse.
Kurag ficou olhando para mim.
- Fechado - ele disse baixinho, como se nesse momento em que repetia a palavra tivesse certeza de que era um erro.
Levantei a voz para que todos na sala ouvissem, com os pés bem afastados para manter o equilíbrio. Devia estar parecendo uma pose agressiva, só que eu não pretendia me mostrar agressiva. Eu tentava não deixar meu corpo cambalear junto com o rodamoinho na minha cabeça.
- A aliança está formada. Kurag disse em voz alta também:
- Só estará formada quando você dividir sua carne com o meu duende.
Estendi a mão para Kitto. Ele botou a mão em cima da minha, um toque leve de carne macia. Puxei a mão dele para perto do meu rosto. Tentei beijar as costas da mão dele, mas a sala rodou. Tive de me endireitar e segurar a mão dele com as minhas duas, separando bem os pequenos dedos perfeitos. Nunca tinha segurado a mão de um homem que fosse menor do que a minha. Chupar um dedo seria a coisa mais sensual que eu poderia fazer, mas tinha chupado o último pedaço de carne que queria naquela noite. Dei um beijo suave mas demorado na palma da mão de Kitto. Não deixei marca de batom porque o gastei todo sugando o braço de Kurag.
Kitto arregalou os olhos estranhos.
Afastei a mão dele da minha boca lentamente e rolei os olhos Para Kurag quando levantei a cabeça, como um leque.
- Nós vamos compartilhar a carne, Kurag, não se preocupe. Agora venha comigo, Kitto. A rainha nos espera, a mim e a todos os meus homens.
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Kitto olhou de lado para Kurag, depois para mim de novo.
- Sinto-me honrado.
Olhei para o rei.
- Lembre-se disso, Kurag, quando eu compartilhar a carne com Kitto nas noites vindouras: foi a sua luxúria e a sua covardia que o entregaram a mim, e eu a ele.
O rosto de Kurag passou de amarelo para laranja. Ele cerrou os punhos.
- Vadia - ele disse.
- Passei muitas noites na sua corte, Kurag. Eu sei que para você o fato de eu ir para a cama com um encantado não significa nada. Que apenas compartilhar a carne com um duende é sexo de verdade para você. Menos que isso é apenas preliminar. E você me entregou para outro duende, Kurag. Na próxima vez que tentar me enganar para me levar para a sua cama, pense bem a que ponto seus truques nos levaram, você e eu.
Senti minhas forças diminuírem quando terminei o discurso. Tropecei. Mãos fortes seguraram meus dois braços. Doyle de um lado, Galen do outro. Olhei para os dois e consegui sussurrar:
- Preciso sentar logo.
Doyle respondeu com um aceno de cabeça. Galen continuou segurando meu cotovelo e passou o outro braço na minha cintura. O apoio de Doyle no outro braço ficou firme como uma rocha. Soltei a parte de cima do corpo, deixei os dois aguentando quase todo o meu peso, mas para quem via eu parecia estar muito bem de pé. Aperfeiçoei essa técnica específica em tantas vezes que fui arrastada pelos guardas até a presença da minha tia, quando ela exigia que eu ficasse de pé e não podia fazer isso sozinha. Alguns guardas me ajudavam a executar esse truque. Outros não. A caminhada ia ser interessante.
Doyle e Galen me orientaram para a porta aberta. O salto de um dos meus sapatos arranhava o chão ruidosamente. Tinha de melhorar isso. Concentrei-me em levantar o pé só o bastante para andar, mas eram Galen e Doyle que me mantinham de pé. O meu mundo se reduziu a pôr um pé na frente do outro. Deuses, como eu queria ir para casa. Mas a rainha estava esperando, e ficar esperando não era seu forte.
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Vi Kitto de relance se movendo logo atrás de nós, de um lado. Segundo a etiqueta dos duendes, ele era meu consorte, meu homem-objeto. Sim, ele podia me machucar durante o ato sexual, mas só se eu fosse burra demais para ir para a cama com ele sem antes negociar um contrato do que era ou não era aceitável. Rhys podia ter sido poupado do ferimento se conhecesse os duendes, mas a maioria dos encantados simplesmente os via como bárbaros, selvagens. Poucos estudavam as leis dos selvagens, mas meu pai as conhecia bem.
É claro que eu não planejava fazer sexo de qualquer natureza com o duende. Estava tramando compartilhar a carne com ele... literalmente. Os duendes adoravam carne, mais do que sangue e sexo. Compartilhar a carne significava ao mesmo tempo fazer sexo e a maior dádiva que era uma mordida permitida que deixaria uma cicatriz até seu amante morrer. Era uma maneira de marcar seu amado, de mostrar que esteve com um duende. Muitos duendes tinham cicatrizes especiais como assinaturas que usavam para marcar todos os seus amantes, de modo que todos pudessem ver suas conquistas à primeira vista.
Mas o que quer que eu tivesse de fazer para cimentar o negócio, teria a aliança dos duendes pelos próximos seis meses. Meus aliados, não de Cel, nem mesmo da rainha. Se houvesse uma guerra nesse período de seis meses, a rainha teria de negociar comigo se quisesse que os duendes lutassem ao lado dela. Isso valia um pouco de sangue e talvez até meio quilo de carne, se eu não tivesse de perder tudo de uma só vez.
Eu estava caída no chão perto da porta. Um lugar em que muitos pés tropeçaram milhares de anos, rodopiando nos calcanhares para subir no pequeno jirau que havia dos dois lados da sala. Eu podia ter andado por ali numa escuridão completa, mas naquela noite tropecei na pequena depressão do chão. Ensanduichada entre os
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guardas, devia estar firme como se estivesse entre dois muros, mas torci o tornozelo e trombei com tanta violência em Doyle que puxei Galen comigo. Doyle nos sustentou um instante, depois despencamos os três no chão.
Kitto chegou primeiro, ofereceu a mão para Galen. Notei a cara de Galen quando olhou para a pequena mão, mas mesmo assim ele aceitou. Deixou o duende ajudá-lo a se levantar. Outros guardas teriam cuspido na mão, em vez de segurá-la.
Foi Frost que puxou minha mão e me pôs de pé, com a minha faca na outra. Ele não olhou para mim. Examinava em volta à procura de ameaças. Foi tudo muito sutil. Se o feitiço fosse um pouco menos perverso, eu poderia atribuí-lo à falta de coordenação provocada pela perda de sangue da minha parte, mas aquele feitiço era grande demais, exagerado. Dois membros da Guarda Real não desabavam assim e acabavam numa pilha no chão porque a mulher no meio tropeçou.
A mão de Frost me forçou a sustentar todo o meu peso nos dois pés, e um deles não aguentou. Senti uma dor no tornozelo esquerdo. Gemi e passei o peso para o outro pé. Frost teve de me segurar pela cintura, tirou-me completamente do chão, apertou-me contra seu corpo com o braço. Ele continuava alerta para qualquer ataque, o ataque que não viria, não ali, não naquele momento.
Rhys andava pela sala, verificando se havia outras armadilhas. Nenhum de nós se mexeu até ele dar o sinal, ainda abaixados no chão.
Doyle já estava de pé. Não tinha sacado a outra faca.
- Você se machucou muito, Princesa?
- Torci o tornozelo, talvez o joelho também. Frost me fez levantar antes de saber.
Isso atraiu o olhar de Frost.
- Posso largá-la se quiser, Princesa.
- Prefiro que me carregue até uma cadeira. Frost dirigiu-se a Doyle.
- Não é situação para facas, é? Ele parecia quase triste.
- Não, não é - disse Doyle.
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Frost fechou a faca embutida com uma mão só. Que eu soubesse, ele jamais tinha empunhado uma faca dobrável de qualquer tipo, mas o gesto dele pareceu natural e experiente. Ele prendeu a lâmina no cinto, nas costas, e me pegou no colo.
- Que cadeira você prefere? - perguntou.
- Esta - disse a rainha.
Ela estava diante do trono, sobre o tablado. Seu trono se erguia acima de todos, digno da sua posição. Mas havia dois tronos menores no tablado, logo abaixo do dela, que costumavam ser reservados para o consorte e o herdeiro. Naquela noite Eamon estava de pé ao lado dela, deixando a cadeira dele vaga.
Cel estava sentado no outro trono menor. Siobhan atrás dele. Keelin estava aos seus pés num pequeno banco acolchoado, como um cãozinho de colo. Cel olhava para a mãe e havia algo muito parecido com pânico na expressão dele.
Rozenwyn foi ficar ao lado de Siobhan. Ela era a segunda em comando de Cel, equivalente a Frost. O cabelo cor de algodão-doce estava preso num coque de tranças enroladas no topo da cabeça, como um pote feito de capim rosa claro. A pele dela era da cor de lilases de primavera, os olhos ouro derretido. Achava Rozenwyn linda quando era pequena, até ela deixar claro que me considerava inferior. A cicatriz em forma de mão nas minhas costelas era de Rozenwyn, que quase esmagou meu coração.
Cel se levantou com tanta violência que fez Keelin deslizar pelos degraus e esticar a tira da coleira que ele segurava. Cel nem olhou para ela quando Keelin ficou de pé.
- Mãe, você não pode fazer isso.
Ela olhou para ele e continuou apontando para a cadeira vazia que era de Eamon.
- Ah, posso sim, filho. Ou será que você esqueceu que ainda sou a rainha aqui?
A voz dela tinha um tom de ameaça que se fosse dirigida a qualquer outro que não Cel, essa pessoa teria se jogado no chão humilhada, à espera do golpe que ia levar. Mas era Cel, e ela sempre foi mole com ele.
- Eu sei quem governa aqui agora - disse Cel. - O que me Preocupa é quem vai governar depois.
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- Isso também é problema meu - disse Andais, ainda com aquela voz muito calma e muito perigosa. - Fico pensando quem poderia ter lançado esse feitiço tão poderoso dentro da sala do trono, sem que ninguém tivesse notado.
Ela olhou em volta do enorme salão, examinando cada rosto dos que sentavam em seus pequenos tronos. Havia dezesseis cadeiras de cada lado da sala, sobre tablados. Cadeiras menores ficavam em volta delas, mas nas especiais estavam sentados os chefes de cada família real. Andais analisou cada um, especialmente os mais perto da porta.
- Não entendo como qualquer um podia ter executado tal feitiço sem ninguém notar.
Olhei para os encantados que estavam mais próximos da porta, e eles evitaram olhar para mim. Eles sabiam. Tinham visto. E não fizeram nada.
- Um feitiço muito poderoso - continuou Andais. - Se minha sobrinha não tivesse o apoio de dois guardas, poderia ter caído e quebrado o pescoço.
Frost ainda me segurava no colo, mas não se mexeu para chegar mais perto.
- Traga minha sobrinha para cá, Frost. Que ela sente ao meu lado, como deve ser - disse Andais.
Frost me levou até ela. Doyle e Galen foram junto, um de cada lado de Frost. Rhys e Kitto seguiram na retaguarda.
Frost se ajoelhou no primeiro degrau que levava ao trono. Ajoelhou-se, me carregando como se não fosse esforço nenhum, como se pudesse ficar assim a noite toda, e seus braços nem tremeriam. Imaginei por um segundo se os joelhos dele ficariam dormentes caso fosse forçado a se ajoelhar por muito tempo.
Os outros também caíram de joelhos um pouco atrás, de um lado e de outro. Kitto, além de se ajoelhar, esticou-se no chão, de barriga para baixo, com braços e pernas esticados e abertos, parecendo algum tipo de penitente religioso. Eu não tinha avaliado totalmente o problema dele até então. Havia tipos bastante específicos de mesuras e cortesias que se faziam, dependendo da sua patente e da patente da pessoa com quem vai se encontrar. Kito
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não era realeza nem entre os duendes. Se fosse, Kurag teria mencionado. Foi um duplo insulto me dar um duende que também era um duende comum. Kitto não podia encostar nos degraus, a não ser que recebesse convite expresso para isso. Só os membros das outras casas reais dos encantados podiam se ajoelhar com os dois joelhos no chão na sala do trono, sem curvar o corpo de jeito nenhum.
Kitto não conhecia o protocolo, por isso adotou a postura mais humilhante. Naquele momento eu soube que ele ia cooperar e aceitar carne em vez de sexo. Ele estava mais interessado em permanecer vivo do que em qualquer sentido falso de orgulho.
- Venha se sentar, Meredith. Vamos anunciar logo isso, antes de aparecer qualquer outra armadilha.
Ela olhou para Cel ao dizer isso. Também apostava que ele era o autor do feitiço, mas só porque ele sempre foi uma das minhas primeiras opções quando alguma coisa sinistra acontecia comigo na corte. Andais sempre olhava para outros cantos, pelo bem de Cel. Alguma coisa tinha acontecido entre os dois, algo que fizera a atitude de Andais com seu único filho mudar. O que será que Cel tinha feito para aliená-la assim?
Frost se ergueu com um movimento fácil e me carregou degraus acima. Senti as pernas dele nos levando para cima enquanto me carregava no colo. Ele me pôs gentilmente na cadeira, depois tirou as mãos debaixo de mim. Abaixou com um joelho no chão na minha frente e pegou meu pé esquerdo no colo.
Olhei para o salão. Sempre me foi proibido subir no tablado. Nunca tive aquela vista ali de cima. Não era muito alto, nem muito grandioso, mas dava uma sensação justa.
- Traga um banquinho para Meredith apoiar o tornozelo. Depois que eu fizer o meu pronunciamento, Fflur pode vir cuidar dela.
Andais parecia não falar para ninguém especialmente, mas um pequeno banco de pé acolchoado flutuou na nossa direção. Vi com o canto do olho, sem olhar de propósito para o banquinho flutuando. Uma forma que era um fiapo apagado aparecia como Uma sombra branca, carregando o pequeno banquinho com mãos
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fantasmagóricas delgadas. A dama branca deixou o banquinho perto da perna de Frost. Senti uma pressão da ameaça de trovão pesando no ar. Era a sensação de um fantasma próximo demais. Nem tinha de vê-la para saber que estava ali naquele instante. Então a pressão diminuiu, e eu soube que ela flutuou para longe.
Frost pôs o meu pé no banquinho que era bem mais baixo do que o joelho dele. Engoli em seco com o movimento, mas a dor estava me ajudando a manter a clareza mental. Não sentia mais que ia desmaiar. Tinha sido o terceiro atentado contra a minha vida numa única noite. Alguém estava muito decidido.
Frost foi para trás da minha cadeira, como estava Siobhan atrás de Cel, e como Eamon tinha ido ficar atrás da rainha.
Andais olhou para os nobres reunidos. Os duendes e o povo em geral, os que tinham sido convidados, estavam espalhados em torno das mesas compridas e enfeitadas, uma de cada lado do salão. Mas nem Kurag tinha um trono naquele lugar. Ali ele era apenas ralé.
- Saibam que a Princesa Meredith NicEssus, filha do meu irmão, é minha herdeira a partir de agora.
Um grito sufocado de espanto percorreu a plateia de boca em boca feito vento e depois só restou o silêncio. Um silêncio tão pesado que as damas brancas subiram no ar como nuvens quase invisíveis e começaram a dançar sobre aquela tensão toda.
Cel ficou de pé.
- Mãe.
- Meredith finalmente recebeu seu poder. Ela tem a mão da carne, como teve seu pai antes dela.
Cel continuou de pé.
- Minha prima deve ter usado a mão em combate mortal e ficado coberta de sangue diante de pelo menos duas testemunhas encantadas.
Ele sentou e recuperou seu ar de segurança. A rainha olhou para ele com tanta frieza que aquela segurança desapareceu do rosto dele.
- Você fala como se eu não conhecesse as leis do meu próprio reino, meu filho. Tudo foi realizado de acordo com as nossas tradições. Sholto! - ela chamou.
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Sholto se levantou da sua grande cadeira perto da porta. Agnes Negra estava de um lado dele, Segna de Ouro do outro. Voadores noturnos pairavam do teto como enormes morcegos. Outras criaturas do sluagh os rodeavam. Gethin acenou para mim.
- Sim, Rainha Andais - disse Sholto.
O cabelo dele estava preso para trás, exibindo o belo rosto, arrogante como a maioria naquele salão.
- Conte para a corte o que contou para mim.
Sholto contou que Nerys me atacou, mas não explicou por que ela fez isso. Ele revelou uma versão editada dos acontecimentos, mas foi o bastante. Só que não mencionou Doyle e achei estranho deixá-lo de fora.
A rainha se levantou.
- Meredith se iguala a Cel, meu filho, em todas as coisas. Mas como tenho apenas um trono para ser herdado, ele irá para aquele que tiver um filho primeiro. Se Cel engravidar uma das mulheres da corte dentro de três anos, ele será seu rei. Se Meredith engravidar primeiro, então ela será sua rainha. Para garantir que Meredith possa escolher entre os homens da corte, revoguei a lei de celibato da minha Guarda para ela, exclusivamente para ela.
Os fantasmas rodopiaram no alto como nuvens alegres, e o silêncio ficou ainda mais denso. Parecia que estávamos todos sentados dentro de um poço muito profundo e brilhante. A expressão dos homens mudava de surpresa para desdém, depois para choque, alguns iam direto à luxúria. Mas no fim quase todos olharam para mim.
- Ela tem liberdade para escolher qualquer um de vocês. Andais sentou no trono e espalhou as saias em volta.
- Na verdade acho que ela já iniciou a seleção. - A rainha virou aqueles olhos cinza-claros para mim. - Não é mesmo, sobrinha?
Fiz que sim com a cabeça.
- Então chame-os, que eles sentem ao seu lado.
- Não - disse Cel - ela precisa de duas testemunhas encantadas. Sholto é um só.
Doyle falou, ainda ajoelhado:
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- Eu sou a outra testemunha.
Cel se recostou lentamente no trono. Nem ele seria tão ousado a ponto de questionar a palavra de Doyle. Cel olhou feio para mim, e o ódio nesse olhar foi tanto que minha pele chegou a arder.
Desviei-me do ódio dele e olhei para os homens que ainda estavam ajoelhados diante do tablado. Estendi as mãos para eles. Galen, Doyle e Rhys se levantaram e subiram os degraus. Doyle beijou minha mão e assumiu seu posto ao lado de Frost, atrás de mim. Galen e Rhys sentaram dos dois lados das minhas pernas, como Keelin ao lado de Cel. Era um pouco subserviente para o meu gosto, mas não tinha certeza do que mais eu podia fazer. Kitto permaneceu achatado no chão, imóvel.
- Rainha Andais, este é Kitto, o duende. Ele é parte do meu acordo com Kurag, Rei dos Duendes, para selar uma aliança entre mim e o reino dos duendes por seis meses.
Andais olhou para o teto.
- Você andou muito ocupada esta noite, Meredith.
- Senti necessidade de ter aliados poderosos, minha rainha - eu disse.
Mesmo sem querer olhar para ele, meus olhos viraram para Cel.
- Mais tarde deve me contar como conseguiu arrancar seis meses de Kurag mas, por ora, chame o seu duende.
- Kitto - eu disse e estendi a mão - levante-se e venha segurar minha mão.
Ele levantou o rosto sem mexer o corpo. O movimento pareceu doloroso e nada natural. Ele se virou para a rainha, depois para mim.
- Pode vir, Kitto - eu disse.
Ele olhou de novo para a rainha. Ela balançou a cabeça.
- Levante-se do chão, rapaz, para que a médica possa cuidar dos ferimentos da sua amante.
Kitto ficou de quatro. Ninguém gritou com ele, por isso ficou de joelhos e, com todo o cuidado, de pé. Subiu os degraus rápido demais, quase correndo, e sentou aos meus pés com cara de alívio.
- Fflur, atenda à princesa - disse Andais.
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Fflur subiu no tablado com duas damas brancas. A que segurava a bandeja com os curativos era a mais concreta das duas. Parecia quase viva, de um jeito branco, meio transparente. O outro espírito era completamente invisível e segurava uma pequena caixa fechada que pairava no ar da mesma forma que fazia a magia das fadas, só que não havia nenhuma fada usando mágica ali. Nada tão terreno assombrava a Corte Profana.
Fflur tirou meu sapato e girou meu pé. Eu me revirei de dor na cadeira. Consegui não dizer ai, ai, ai, mas era o que eu queria. Felizmente foi apenas o tornozelo. Todo o resto estava funcionando bem.
- Você precisa tirar a meia para eu imobilizar o tornozelo - disse Fflur.
Levantei a saia para puxar a meia pelo elástico na coxa, mas Galen pôs a mão em cima da minha e me fez parar.
- Permita-me - ele disse.
Ele não ia para a minha cama esta noite, mas o olhar dele, a rouquidão da voz, o peso da mão dele sobre a minha, tudo parecia uma promessa.
Rhys botou a mão no meu joelho.
- Por que é você que vai tirar a meia dela?
- Porque eu pensei nisso primeiro. Rhys sorriu e balançou a cabeça.
- Boa resposta.
Galen sorriu para Rhys. O sorriso fez todo o rosto dele brilhar, foi como acender uma vela embaixo da pele. Ele virou esse rosto iluminado para mim, e o humor escapou dos olhos dele, transformou-se em algo mais misterioso e mais sério.
Ele estava ajoelhado na minha frente, diante do pé torcido, e Rhys perto da outra perna. Ele prendia minhas mãos contra minha coxa. Então levantou minhas mãos nas dele, beijou as costas de cada uma e as colocou nos braços do trono. Apertou meus dedos na madeira, indicando que eu não devia movê-las dali.
Minha perna estava apoiada no banquinho, então Galen teve de se inclinar para um lado, e isso deu uma visão bem clara para todos no salão. Ele empurrou a saia comprida para cima, expôs
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minha perna e a liga. Deslizou a liga pela minha perna e pendurou-a no braço. Tocou com a ponta dos dedos a meia logo acima do joelho e escorregou as mãos no tecido liso, parou no meio da coxa como um peso quente na minha pele. Olhou nos meus olhos, e a expressão dele fez meu coração disparar.
Ele abaixou os olhos para ver as mãos subindo lentamente pela minha perna. Seus dedos se moviam embaixo da saia e então as mãos dele desapareceram sob ela, quase até os pulsos, quando encontrou o fim da meia com as pontas dos dedos.
As mãos de Galen pareciam maiores do que eram, assim por baixo da saia. Quando ele subiu mais os dedos até tocar minha pele nua, eu estremeci sem querer.
Ele olhou de novo para o meu rosto, como se perguntasse se eu queria que parasse. A minha resposta era sim e não. A sensação das mãos dele no meu corpo, saber que não precisávamos parar, tudo era inebriante, excitante. Se estivéssemos sozinhos, e ele completamente curado, eu teria jogado fora toda a cautela e toda a minha roupa. Mas estávamos cercados por quase uma centena de pessoas, e era plateia demais para mim.
Tive de fechar os olhos antes de balançar a cabeça e sinalizar que não.
Os dedos dele subiram um pouco e, com um, ele acariciou o topo da minha coxa por dentro. Provocou em mim um breve suspiro trêmulo.
Abri os olhos. Dessa vez indiquei para ele com a expressão do rosto, além do balançar da cabeça. Aqui não. Agora não.
Galen sorriu, mas foi um sorriso íntimo, cúmplice. O tipo de sorriso que um homem dá quando tem certeza de que você o quer e sabe que a única coisa que existe entre ele e seu corpo é um pouco de privacidade.
Ele segurou com os dedos a borda do elástico e foi enrolando a meia sobre a minha perna, com cuidado e bem devagar.
Ouvi uma voz atrás de nós.
- Parece que a princesa já fez sua escolha.
Era Conri, que nunca foi um dos meus preferidos. Ele era alto, moreno, belo e tinha olhos de ouro tricolor derretido.
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- Com o devido respeito, Sua Alteza, você nos dá a promessa da carne, depois somos forçados a ficar aqui parados assistindo enquanto outro recebe o prêmio.
- Parece mesmo que Meredith tem sido uma abelhinha muito atarefada no meio de todos vocês, flores adoráveis - disse Andais.
Ela deu risada, e o som era de escárnio, jubiloso, cruel, e de certa forma íntimo. Fez com que eu corasse enquanto Galen puxava a meia pelo meu pé.
Ele chegou para o lado para deixar Fflur tratar do tornozelo. Galen pôs a meia junto ao rosto, passou o tecido preto e transparente nos lábios, olhando fixo para Conri.
Conri nunca foi meu amigo. Era um dos amigos de infância de Cel, leal apoiador do único herdeiro verdadeiro.
Vi raiva em seus olhos dourados, ciúme e inveja, não de mim como pessoa, mas de mim como a única fêmea à qual eles tinham acesso. Dava para sentir a tensão no salão, ela crescia, inchava como a pressão barométrica antes de uma tempestade. As damas brancas sempre reagiam a uma grande tensão ou mudança na corte. Os fantasmas giravam nos cantos da sala, oscilavam numa dança espectral longe do chão. Quanto mais excitadas elas ficavam, quanto mais agitadas, maiores eram os acontecimentos que se sucediam. Elas eram como profetas que só previam segundos antes.
O que se pode fazer com um segundo de aviso? As vezes muita coisa. As vezes nada. O segredo era que tínhamos de prever o perigo para evitá-lo. Segundos para ver e impedir, então fui lenta demais, cheguei atrasada, mais uma vez.
Conri bradou:
- Desafio Galen à morte.
Galen já ia se levantar, mas segurei a mão dele.
- O que espera ganhar com a morte dele, Conri?
- Assumir o lugar dele ao seu lado.
Dei risada. Não consegui evitar. A raiva possessa estampada na cara de Conri quando eu ri dele foi de gelar os ossos. Puxei Galen para baixo, para ele se ajoelhar ao meu lado. Fflur escolheu aquele momento para apertar as bandagens, e tive de bufar de dor antes de poder falar de novo.
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LAURELL K HAMILTON- Então Galen Cabelo Verde é um covarde? - debochou Conri, que saíra de sua cadeira, descera do tablado e estava no chão.
Dei um tapinha no braço de Galen para mantê-lo comigo.
- Você nunca teve mesmo nenhum senso de humor, Conri - eu disse.
Ele semicerrou os olhos.
- Do que você está falando?
- Pergunte por que eu ri.
Ele ficou sem entender uns dois segundos, depois respondeu:
- Está bem, por que você riu?
- Porque você e eu não somos amigos. Somos quase inimigos. Eu não vou para a cama com gente que não gosto e não gosto de você.
Ele pareceu confuso. Eu suspirei.
- Quero dizer que se você matar Galen, não vai conquistar com isso um lugar na minha cama. Não gosto de você, Conri. Você não gosta de mim. Não vou dormir com você em nenhuma circunstância. Por isso sente-se, cale a boca e deixe alguém que tenha alguma chance de dividir minha cama falar.
Conri ficou lá parado, boquiaberto e sem saber o que fazer. Ele era um dos guardas que mais conhecia a corte. Servia a Cel cegamente. Bajulava a rainha às raias da impropriedade. Sabia quais nobres devia tratar bem e quais podia ignorar, ou até tratar mal. Eu entrava nessa última categoria, porque não se podia ser amigo de Cel e meu ao mesmo tempo. Cel não permitia. Observei o rosto de Conri quando ele entendeu que não tinha sido tão esperto em relação ao funcionamento da corte como pensava que era. Adorei ver o constrangimento dele.
Mas ele se revoltou.
- Meu desafio permanece. Se não posso dividir sua cama, então também não quero que Galen a tenha.
Apertei o braço de Galen.
- Para que lutar se sabe que não vai receber o prêmio? - perguntei.
Conri sorriu, e não foi um sorriso nada simpático.
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- Porque a morte dele fará você sofrer e isso será quase tão doce como ter seu corpo junto ao meu.
Galen se levantou, soltou-se da minha mão em seu braço. Começou a descer a escada do tablado e temi por ele. Conri era um filho da mãe cruel e bajulador, mas também era um dos melhores espadachins na corte.
Levantei também, pulando em um pé só, porque não podia pôr o pé esquerdo no chão. Rhys me segurou, senão eu teria caído.
- Continuo sendo o motivo desse feudo, Conri.
Conri concordou e ficou observando Galen indo na direção dele.
- De fato, você é, Princesa. Saiba que quando eu matar Galen, terei feito isso por despeito a você.
Então eu tive um desses momentos de inspiração desesperada, uma ideia brilhante nascida do pânico.
- Você não pode desafiar um consorte real para um duelo mortal, Conri - eu disse.
- Ele só será um consorte real quando você estiver grávida - disse Conri.
- Mas se estou tentando ter um filho com ele, ele passa a ser meu consorte real, porque não temos como saber se estou grávida neste segundo.
Conri ficou chocado.
- Você não... quero dizer... A rainha deu risada de novo.
- Ah, Meredith, você andou mesmo atarefada como uma abelha. - Ela se levantou. - Se houver mesmo uma remota chance de Galen ter gerado um filho com minha sobrinha, então ele será de fato um consorte real até que se prove o contrário. Se você o matar, e ela estiver grávida, se você privar esta corte de um casal real fértil, eu providenciarei para ver sua cabeça apodrecendo num vidro, numa estante do meu quarto.
- Não acredito - disse Cel. - Eles não fizeram sexo esta noite. Andais se virou para ele.
- E não houve um feitiço de tesão no carro quando os dois estavam lá sozinhos?
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O sangue se esvaiu completamente do rosto de Conri, ele ficou branco e parecia nauseado. A expressão dele bastou. O feitiço da luxúria no carro foi obra dele. Mas poucos encantados naquele salão duvidariam de quem mandou Conri fazer aquilo.
- Meredith não foi a única que trabalhou muito esta noite. A voz de Andais esquentou com o princípio de uma fúria das boas.
Cel se empertigou todo e mesmo assim conseguiu afundar na cadeira. Siobhan saiu de trás da cadeira e foi ficar ao lado dele, não exatamente entre Cel e a rainha. Mas o gesto deu essa impressão. Siobhan tinha declarado sua lealdade diante de toda a corte. Andais não esqueceria e muito menos perdoaria isso.
Rozenwyn hesitou e não seguiu prontamente o exemplo da capitã. Acabou indo ficar ao lado de Siobhan, mas exibiu claramente a relutância de ter de escolher entre a rainha e o príncipe. A lealdade de Rozenwyn era com a própria Rozenwyn.
Eamon se colocou ao lado da rainha, e Doyle chegou mais perto dela também, como se não tivesse certeza de onde devia ficar. Eu nunca vi Doyle inseguro assim antes, sem saber a quem prestar obediência. Vi a rainha examinar seu rosto e acho que essa hesitação dele a magoou. Ele era seu guarda-costas havia mil anos, seu braço direito, sua Escuridão. Agora ele estava indeciso se saía do meu lado para ir ficar com ela.
- Já basta - disse Andais.
A fúria se inflamou naquelas palavras simples.
- Vejo que você fez uma nova conquista, Meredith. Minha Escuridão não hesitou nesses mais de mil anos me servindo, mas aí está ele, praticamente dançando de um pé para o outro, pensando em quem deve proteger se tudo der errado.
O olhar dela me fez agarrar a mão de Rhys com força.
- Fique feliz de ser sangue do meu sangue, Meredith. Sentenciaria à morte qualquer outro que abalasse a lealdade de quem mais confio.
Era quase como se Andais estivesse com ciúme, mas em todos os anos em que eu tinha idade suficiente para notar, ela jamais tratou Doyle como mais do que um servo, um guarda. Nunca o
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tratou como homem. Nunca, em mais de mil anos, ele foi escolhido para ser amante dela. Mas agora ela estava com ciúme.
Doyle adotou uma expressão suave, confusa, deslumbrada. Entendi naquele instante que ele amara a rainha um dia, não amava mais, e que não foi por minha causa. Andais o alienou simplesmente por não prestar atenção nele. Aquele momento dos dois era íntimo demais para ser exibido em público.
Entre os humanos alguns teriam olhado para outro lado, dando-lhes uma ilusão de privacidade, mas com os encantados a coisa não era assim. Nós olhávamos fixo mesmo, observávamos cada nuance que passava pelos rostos deles, e no final, em poucos minutos, Doyle recuou e ficou ao meu lado, com a mão no meu ombro. Não foi um gesto particularmente íntimo, especialmente depois do espetáculo que Galen deu, mas partindo de Doyle, num momento como aquele, era íntimo sim. Ele, como Siobhan, demonstrou com quem estava sua lealdade, dinamitou suas pontes.
Eu sabia que Doyle me manteria viva às custas da própria vida porque a rainha tinha ordenado. Neste momento eu soube que ele me manteria viva porque se eu morresse agora, a rainha jamais confiaria nele de novo. Ele nunca mais seria a Escuridão dela. Ele era meu, para o que desse e viesse. Isso atribuía um significado completamente novo ao "até que a morte nos separe". Agora a minha morte significava a dele também, isso era praticamente certo.
Fiquei olhando para a minha tia mas elevei a voz para todo o salão:
- Eles são todos meus consortes reais. Os protestos se espalharam, nas vozes alteradas dos homens.
- Você não podia ter ido para a cama com todos eles! E ainda houve quem gritasse "prostituta!", mas acho que foi voz de mulher.
Levantei a mão do jeito que tinha visto minha tia fazer diversas vezes. O salão não ficou no mais completo silêncio, mas foi quase isso e pude continuar.
- Minha tia previu, em sua sabedoria, os duelos que poderiam ser travados. Ela previu que pôr uma mulher diante da Guarda
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podia levar a um grande banho de sangue. Perderíamos os melhores e mais inteligentes de nós. Uma voz de mulher gritou:
- Como se você fosse um grande prêmio!
Dei risada e firmei a mão no ombro de Rhys para me apoiar, como se ele fosse uma bengala. Kitto se levantou e ofereceu a mão para mim. Aceitei agradecida aquele apoio extra. O tornozelo estava começando a doer.
- Sei que foi você que disse isso, Dilys. E, não sou um grande prêmio, mas sou mulher e estou à disposição deles. Ninguém mais está. Isso me transforma num prêmio, quer vocês gostem, quer não. Mas minha tia previu esse problema.
- Sim - disse Andais. - Ordenei que Meredith escolhesse não apenas um de vocês, nem quatro, nem cinco, mas muitos. Deve tratá-los todos como seu... harém pessoal.
- E temos permissão para recusar se ela nos escolher? Examinei a multidão mas não descobri quem fez essa pergunta.
- Vocês têm liberdade para recusar sim - disse Andais. - Mas qual de vocês recusaria a chance de ser o próximo rei? Se ela tiver um filho de um de vocês, não será mais o consorte real e sim o monarca.
Galen e Conri continuavam parados a um metro de distância um do outro, se encarando.
- Todos nós sabemos quem ela quer que seja seu rei. Ela deixou isso muito claro esta noite - disse Conri.
- A única coisa que deixei bem clara - eu disse - foi que não vou para a cama com você, Conri. Quanto ao resto, todos são livres para dar palpites.
- Você não fará de Galen seu consorte real - disse Cel, com satisfação na voz. - Se está grávida, será o último filho dele.
Olhei para ele procurando entender aquele nível de animosidade, mas não consegui.
- Eu negociei com a Rainha Niceven antes de os danos serem grandes demais.
- O que tinha para oferecer para Niceven?
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A rainha minúscula se ergueu sobre a multidão onde ficava sua miniatura de trono sobre uma prateleira, como uma casa de bonecas, com sua corte em volta.
- Sangue, Príncipe Cel. Não o sangue de um lorde menor, mas o sangue de uma princesa.
- Todos nós carregamos a moeda da Corte Profana nas veias, primo - eu disse.
Siobhan se manifestou para tentar salvá-lo, protegê-lo com suas palavras, como teria protegido com a espada.
- E se ela engravidar do duende? Foi isso que Siobhan perguntou. A rainha respondeu:
- Então o duende será rei.
Uma onda de choque percorreu a corte. Murmúrios, maldições, exclamações de horror.
- Jamais serviremos a um rei duende - disse Conri. Outros repetiram o que ele disse.
- Rejeitar o escolhido pela rainha é traição - disse Andais. - Vá para o Corredor da Mortalidade, Conri. Acho que já não é sem tempo de aprender uma lição sobre o que ganhará com sua desobediência.
Ele ficou lá parado olhando para ela, depois olhou para Cel, e isso foi um erro. Andais bateu o pé.
- Eu sou a rainha aqui! Não olhe para o meu filho. Vá procurar os cuidados gentis de Ezekial, Conri. Vá agora ou enfrente o pior.
Conri fez uma pequena mesura e ficou curvado até sair da sala. Era a única coisa que ele podia fazer. Insistir naquela discussão talvez o levasse à decapitação.
A voz de Sholto soou bem alta no silêncio tenso:
- Pergunte para Conri quem ordenou que ele pusesse o feitiço da luxúria na Carruagem Negra.
Andais se virou para ele como tempestade prestes a desabar na praia. Sentada perto dela, pude sentir sua magia ganhando força, pinicando minha pele. Ela provocou um arrepio nas costas nuas de Galen.
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- Vou punir Conri, não se preocupe - ela disse.
- Mas não o mestre de Conri - disse Sholto.
A corte inteira prendeu a respiração, porque Sholto estava finalmente dizendo o que todo mundo sabia ser verdade. Durante anos Cel tinha dado ordens. Seus comparsas sofriam quando eram pegos, mas ele nunca.
- Isso é problema meu - disse Andais, mas havia um leve tom de pânico na voz dela.
- Quem foi que me disse que Sua Majestade queria que os sluagh viajassem para as terras do oeste para matar a Princesa Meredith? - perguntou Sholto.
- Não... - disse a rainha, com a voz suave, como quem sonha e procura se convencer de que o pesadelo não é real.
- Não o quê, majestade? - perguntou Sholto.
- Quem teve acesso às Lágrimas de Branwyn e permitiu que mortais as usassem contra outros encantados? - Doyle fez essa pergunta.
O silêncio tenso se encheu de fantasmas dançantes, rodopiando cada vez mais rápido. Todos os olhos se concentravam no tablado, alguns pálidos, outros ansiosos, assustados, mas todos esperando. Esperando para ver o que a rainha faria, afinal.
Mas foi Cel que falou em seguida. Ele se inclinou para o meu lado e sibilou:
- Não é a sua vez agora, prima? A voz dele estava cheia de ódio.
Percebi que ele pensava que eu o tinha visto em Los Angeles, mas, como Sholto, eu só estava esperando o momento perfeito para desmascará-lo. Respirei fundo, mas Andais segurou meu braço. Ela se aproximou e cochichou no meu ouvido:
- Não fale dos adoradores dele.
Ela sabia. A rainha sabia que Cel tinha deixado humanos prestarem culto a ele. Fiquei completamente muda diante disso. O que não foi dito entre nós foi a revelação de que, para proteger o filho, ela havia posto todos nós em risco. Porque se pudessem provar nos tribunais humanos que qualquer encantado tinha permitido
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que humanos o adorassem em solo norte-americano, seríamos expulsos. Não apenas os encantados, mas todos do mundo mágico.
Vi naqueles olhos em três tons de cinza não a aterradora Rainha do Ar e da Escuridão, mas sim uma mãe que temia pelo único filho. Ela sempre amou Cel demais.
Sussurrei de volta para ela:
- Essa adoração precisa acabar.
- Precisa sim, você tem a minha palavra.
- Ele deve ser punido - eu disse.
- Mas não por isso - ela murmurou.
Pensei um pouco enquanto ela segurava a manga do meu casaco, encharcada de sangue.
- Então ele deve ser punido por ter dado as Lágrimas para um mortal.
Ela apertou meu braço até doer. Se não houvesse tanto medo no olhar dela, eu pensaria que estava me ameaçando.
- Vou puni-lo por tentar matar você. Balancei a cabeça.
- Não, eu quero que seja castigado por ter dado as Lágrimas de Branwyn para um mortal.
- Isso é uma sentença de morte - ela disse.
- Existem dois castigos possíveis, minha rainha. Concordo que ele não perca a vida, mas quero a sentença total de tortura.
Ela se afastou de mim muito pálida, demonstrando de repente um cansaço enorme. A tortura para aquele crime era bem específica. O criminoso ficava despido e era acorrentado num quarto escuro, depois coberto de Lágrimas de Branwyn. O corpo ficava cheio de desejo ardente, de tesão mágico, mas ficava intocado, inacabado, sem alívio possível. Dizem que com isso um encantado chegava a enlouquecer. Mas era o melhor ou o pior, que eu podia fazer.
- Seis meses é tempo demais - ela disse. - A cabeça dele não aguentaria.
Foi a primeira vez que ouvi Andais dizer que Cel era fraco, ou pelo menos que não era forte.
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Nós negociamos muito, como eu tinha feito com Kurag, e acabei conseguindo três meses.
- Três meses, minha rainha, mas se eu ou meu povo sofrermos qualquer ataque nesse tempo, então Cel perderá a vida.
Ela virou e olhou para o filho, que nos observava atentamente, imaginando o que conversávamos. Ela finalmente disse para mim:
- De acordo.
Andais ficou de pé devagar, parecia que a idade cobrava seu tributo. Ela jamais teria um corpo envelhecido, mas por dentro os anos continuavam passando. Ela anunciou com a voz clara e fria o crime de Cel e seu castigo.
Cel ficou de pé.
- Não vou me submeter a isso.
Ela desfechou sua mágica contra ele, empurrou-o para a cadeira, apertou o peito dele com mãos invisíveis de poder até ele não poder mais respirar ou falar.
Siobhan fez um movimento discreto. Doyle e Frost se posicionaram entre ela e a rainha.
- Você é um tolo, Cel - disse Andais. - Eu salvei sua vida esta noite. Não me faça me arrepender do que fiz.
Andais soltou Cel de repente, e ele caiu no chão, perto de onde Keelin estava agachada.
Andais deu as costas para a corte.
- Meredith levará quem ela quiser esta noite para o seu hotel. O anel que ela usa está vivo e cheio de magia mais uma vez. Vocês viram as rosas, puderam observar quando elas ganharam vida pela primeira vez em décadas. Com todas essas maravilhas vocês ainda questionam a minha escolha? Cuidem para não morrerem de tanto questionar.
Com isso ela sentou e gesticulou para todos se sentarem. Nós sentamos.
As damas brancas começaram a trazer as pequenas mesas individuais que ficavam na frente dos tronos. O jantar veio flutuando em mãos fantasmagóricas.
Galen veio se juntar a nós de novo, ao lado do tablado. Conn já estava sendo castigado e ia perder o banquete, mas Cel não. Ele
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e os dele poderiam desfrutar do banquete antes que a sentença dele fosse cumprida. Etiqueta profana, quando se era príncipe.
A rainha começou a comer. O resto de nós também. A rainha bebeu o primeiro gole de vinho. Nós bebemos também.
Ela parou de tomar a sopa e olhou para mim. Não era uma expressão de raiva, era mais confusa, mas certamente não estava feliz. Inclinou a cabeça para bem perto, tão perto que encostou os lábios na minha orelha.
- Transe com um deles esta noite, Meredith, senão vai se juntar ao Cel.
Recuei para poder ver seu rosto. Ela sabia o tempo todo que Galen e eu não tínhamos feito amor. Mas ajudou-me a salvá-lo da vingança de Conri, e, por isso, eu tinha de lhe agradecer. Mesmo assim, Andais não fazia nada sem um motivo, e tive de imaginar por que aquele ato de misericórdia. Adoraria perguntar isso para ela, mas a misericórdia da rainha era tão frágil quanto uma bolha de sabão. Se mexesse demais nela, acabava estourando e deixaria de existir. Eu não ia cutucar aquele ato de bondade. Simplesmente aceitaria.
Estávamos de novo na Carruagem Negra quando a escuridão ainda ocupava o céu, mas havia no ar a sensação da aurora, era quase como o gosto de sal do ar perto do mar. Não dava para ver, mas mesmo assim sabíamos que estava lá. O dia estava amanhecendo, e eu estava contente. Havia coisas na Corte Profana que não podiam sair à luz do dia, coisas que Cel mandaria atrás de mim, apesar de Doyle duvidar de que o príncipe tentaria qualquer coisa esta noite. Mas tecnicamente a punição de Cel só começaria na noite seguinte, então os três meses ainda não estavam contando. Por isso, quando os homens foram pegar suas coisas, juntaram todas as suas armas. Frost praticamente retinia quando andava. Os outros portavam as suas com um pouco mais de sutileza, mas bem pouco.
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A grande espada de Frost, Geamhradh Pog - Beijo do Inverno - estava encostada na porta do carro ao lado dele. Mesmo pendurada nas costas dele, a espada era comprida demais para usar sentado num carro. Não era uma arma de matança como a Terror Mortal, mas era capaz de tirar a paixão de uma fada ou duende, de deixá-los frios e estéreis como a neve. Houve um tempo em que não ter paixão, perder o brilho, assustava mais um elfo do que a morte.
Doyle foi dirigindo o carro, e Rhys sentou na frente com ele. Doyle tinha mandado Rhys viajar atrás com o resto de nós, mas Frost insistiu para ele sentar atrás. Isso foi... esquisito.
Então ele estava na outra ponta do banco, encostado na porta, com a coluna muito reta e com todo aquele cabelo prateado faiscando na penumbra. Galen sentou no lado oposto de Frost. Quase todos os ferimentos dele tinham sarado, e os que ainda não tinham estavam escondidos sob uma calça jeans nova. Ele tinha vestido uma camiseta branca por baixo de uma camisa verde-clara. A camisa estava para dentro da calça jeans mas desabotoada, de modo que deixava aparecer o tecido canelado da camiseta. A única coisa que tinha sobrado da corte eram as botas de couro macio tingido de verde-escuro, que iam até o joelho. A trança que decorava a parte de cima do cano da bota pendia em dois fios emaranhados, fazendo parecer muito as que eram usadas pelos nativos norte-americanos. O casaco de couro marrom que ele tinha havia anos estava dobrado sobre seus joelhos.
Havia espaço no banco para Kitto, mas ele resolveu se encolher num canto do piso do carro, abraçado às pernas dobradas e coladas ao peito. Galen emprestou para ele uma camisa social de manga comprida para cobrir a correia metálica que ele usava. A camisa ficou enorme para ele, as mangas brancas sobravam além das mãos. A única coisa que dava para eu ver eram os pés descalços despontando sob o tecido. Parecia ter uns oito anos ali encolhido no escuro.
Kitto respondia "Sim, senhora", quando eu perguntava se ele estava bem, se tinha certeza disso. Respondia assim sempre, mas era óbvio que estava sofrendo por algum motivo. Desisti de tentar
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arrancar alguma informação dele. Estava cansada e meu tornozelo doía. Não, meu pé e minha perna doíam até o joelho. Rhys e Galen tinham se revezado segurando gelo no meu tornozelo na festa depois do banquete. A dança que supostamente me ajudaria a escolher os homens foi um fiasco porque eu não pude dançar. Mesmo sem o problema do tornozelo eu não me sentia bem e estava exausta.
Recostei-me no ombro de Galen e cochilei um pouco. Ele levantou o braço para pôr no meu ombro, mas parou no meio do movimento.
- Ai - disse ele.
- As mordidas ainda doem? - perguntei.
Ele fez que sim com a cabeça e abaixou o braço devagar.
- É.
- Eu não estou ferido - disse Frost.
- O quê? - perguntei.
- Eu não estou ferido - ele repetiu.
O rosto dele exibia a arrogante perfeição habitual, das maçãs do rosto proeminentes até o maxilar forte com a insinuação de uma covinha. Era um rosto que combinaria com lábios finos e retos. Em vez disso os lábios dele eram cheios, sensuais. A covinha e a boca salvavam o rosto de ser completamente sério. Naquele momento ele estava tenso como eu nunca vira, com as costas muito retas, agarrado à maçaneta da porta com tanta força que dava para ver os músculos do braço retesados. Na hora em que ele falou, ele tinha olhado para mim, mas depois virou para frente, e só pude ver seu perfil.
Fiquei observando e descobri que Frost Matador estava nervoso. Nervoso por minha causa. Havia certa fragilidade na postura dele, como se lhe custasse muito oferecer o ombro para eu recostar.
Galen arqueou as sobrancelhas, tentou dar de ombros e parou. Conformou-se em balançar a cabeça. Foi bom ver que Galen também não sabia o que estava acontecendo.
Eu não ficava à vontade com Frost o bastante para encostar a cabeça no ombro dele, mas... mas ele podia ter saído da sala quando chegou até a porta e se salvado do ataque dos espinhos, só que
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não fez isso. Ele ficou conosco, comigo. Eu não tinha ilusão nenhuma de que Frost andava nutrindo uma profunda paixão por mim em segredo todos aqueles anos. Isso simplesmente não era verdade. Mas a proibição tinha sido revogada, e se eu dissesse sim para ele, o sexo para Frost era uma possibilidade pela primeira vez em muito tempo. Ele insistiu em sentar atrás comigo e agora oferecia o ombro para eu encostar. Do jeito dele, Frost tentava me cortejar.
De certa forma era doce. Mas Frost não era doce. Ele era arrogante e muito orgulhoso. Deve ter sido muito difícil para ele fazer essa abertura, por menor que fosse. Se eu recusasse, será que ele arriscaria de novo? Será que ofereceria qualquer coisa para mim, mesmo timidamente?
Eu não podia rejeitá-lo daquele jeito e ao mesmo tempo sabia o quanto ele ia odiar saber que o que me levou a ir para o seu lado do banco não era tesão nem a beleza física dele, mas algo muito próximo da piedade.
Deslizei no banco, ele levantou o braço, e eu me encaixei. Frost era um pouco mais alto do que Galen, por isso não foi no ombro dele que encostei a cabeça, mas na parte de cima do peito.
O tecido da camiseta arranhava meu rosto, e eu não consegui relaxar. Nunca estive tão perto assim de Frost e era... estranho. Não ficamos confortáveis juntos. Ele sentiu isso também, porque nós dois não paramos de nos mexer para acertar as posições. Ele passou a mão das minhas costas para a cintura. Experimentei chegar a cabeça mais para cima no peito dele, mais para baixo também. Tentei aconchegar o corpo mais perto do dele, depois mais longe. Nada funcionava.
Acabei rindo. Ele enrijeceu os músculos, ficou com o braço tenso nas minhas costas. Ouvi quando ele engoliu em seco. Minha Deusa, ele estava muito nervoso.
Ia me ajoelhar no banco ao lado dele, mas me lembrei do tornozelo e só pude dobrar uma perna, com cuidado para o salto alto não furar a meia que restava, nem o cetim da calcinha.
Frost virou o rosto de lado para mim de novo. Toquei no queixo dele e o fiz virar de frente. Assim de perto, mesmo no escuro, pude ver o sofrimento nos olhos dele. Alguém, em algum
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lugar, tinha magoado Frost. Essa mágoa estava lá, à vista, e ainda sangrava, no olhar dele.
Senti meu rosto ficar suave, o riso desapareceu.
- Eu ri porque... comecei a explicar.
- Eu sei por que você riu - ele disse e se afastou de mim. Frost encostou na porta do carro mas continuou com as costas retas e todo tenso. Lembrei-me de Kitto todo encolhido no chão.
Toquei de leve no ombro de Frost. Aquele véu fino de cabelo tinha caído por cima dos ombros. Era como tocar em seda. A cor do cabelo dele era tão metálica que eu não esperava que fosse macio. Mais macio do que os cachos de Galen. Uma textura completamente diferente.
Ele observou enquanto eu alisava seu cabelo.
Olhei para ele.
- É que estamos numa fase desajeitada de primeiro encontro. Nunca andamos de mãos dadas, nem nos abraçamos ou beijamos, e ainda não sabemos como ficar à vontade um com o outro. Galen e eu tratamos de todas essas preliminares menores há muito tempo.
Ele deu as costas para mim, tirou o cabelo das minhas mãos, mas não acho que foi de propósito. Espiava impassível pela janela, que funcionava como um espelho preto e mostrava o rosto dele para mim como uma das damas brancas da corte.
- Como é que se supera essa falta de jeito?
- Você deve ter namorado antes - eu disse. Ele balançou a cabeça.
- Já faz mais de oitocentos anos, Meredith.
- Oitocentos - eu disse. - Pensei que a proibição tinha entrado em vigor há mil anos.
Ele confirmou balançando a cabeça, sem virar para mim, olhando para o próprio reflexo na janela.
- Fui o consorte escolhido pela rainha há oitocentos anos. Servi meus vinte e sete anos, depois ela escolheu outro.
Percebi certa hesitação na voz dele quando disse essa última frase.
- Eu não sabia - eu disse.
- Eu também não - disse Galen.
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Frost continuou olhando para o vidro da janela como se estivesse fascinado com o reflexo dos seus olhos cinzentos.
- Nos primeiros duzentos anos eu era como Galen, paquerava as mulheres da corte. Então ela me escolheu e quando me afastou foi muito mais difícil me abster. A lembrança do corpo dela, do que nós... - Ele não completou a frase. - Por isso não faço nada. Não encosto em ninguém. Já não toco em ninguém há mais de oitocentos anos. Não beijo ninguém. Não segurei a mão de ninguém. - Ele apertou a testa no vidro. - Não sei como parar.
Levantei o corpo sobre um joelho, e meu rosto ficou ao lado do dele na janela. Apoiei o queixo no ombro dele, pus uma mão de cada lado do seu corpo.
- Você quer dizer que não sabe como começar - eu disse. Ele levantou o rosto e olhou para o meu reflexo.
- É - Frost sussurrou.
Passei os braços pelos ombros dele e o abracei colando o corpo no dele. Queria dizer que sentia muito por ela ter feito isso com ele. Queria dizer que sentia pena, mas sabia que se ele desconfiasse uma vez que o que eu sentia era pena, estaria tudo acabado. Ele talvez nunca mais se abrisse comigo.
Passei o rosto na maciez inacreditável do cabelo dele.
- Está tudo bem, Frost. Vai dar tudo certo.
Ele encostou a cabeça no meu rosto, e senti seus ombros relaxando na curva dos meus braços. Pus uma mão sobre o peito dele e segurei o pulso com a outra. Lentamente, tateando, ele pôs as mãos sobre as minhas, e quando eu não me mexi nem fiquei tensa, ele as segurou e as apertou contra o peito.
Frost transpirava nas palmas das mãos, só um pouco. O coração dele batia com tanta força que eu sentia pulsar nas minhas mãos. Encostei os lábios no rosto dele, muito de leve, nem chegou a ser um beijo.
Ele soltou o ar num longo suspiro que fez seu peito subir e descer. Frost virou de frente para mim e aquele pequeno movimento deixou nossos rostos muito próximos. Olhei para os olhos dele, acariciei seu rosto com o olhar como se estivesse memorizando tudo e, de certa forma, era isso mesmo que eu estava fazendo.
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Aquela foi a primeira carícia, o primeiro beijo. Que nunca mais teríamos, nunca mais seriam os primeiros.
Frost poderia vencer aquela pequena distância com os lábios, mas não fez isso. Estudou meu rosto como eu tinha estudado o dele, mas não fez nenhum movimento para terminar. Eu que cheguei mais perto e reduzi a distância entre as nossas bocas. Beijei-o suavemente. Os lábios dele ficaram completamente imóveis nos meus. Só a boca meio aberta e o bater frenético do coração diziam que ele queria aquilo. Comecei a me afastar, e a mão dele subiu pelo meu braço até aninhar a parte de trás da minha cabeça. Ele fechou a mão no meu cabelo, apertou-os, sentiu os fios grossos como eu sentira a maciez do cabelo dele antes. Seus olhos estavam um pouco arregalados, com um brilho branco. Frost abaixou minha cabeça. Nós nos beijamos de novo, e dessa vez ele retribuiu. Apertou os lábios na minha boca. Virou os ombros para mim, e eu quase escorreguei neles.
Abri a boca sob a pressão dos lábios dele e mexi a língua, um breve toque molhado. Ele abriu a boca para mim também, e o beijo cresceu. Ele ficou com a mão no meu cabelo mas a outra agarrou minha cintura e me fez sentar no seu colo. Ele me beijou como se fosse me engolir da boca para baixo. Senti com a mão ele mover os músculos do pescoço enquanto me beijava com os lábios e a língua, e foi como se a boca dele tivesse partes que eu nunca havia sentido antes. Eu me virei nos braços dele, sentei melhor no seu colo. Com isso ele gemeu baixinho, levantou-me pela cintura para eu ficar com uma perna de cada lado dele. De repente eu estava ajoelhada em cima dele, e o beijo molhado nunca foi interrompido. Meu tornozelo torcido raspou no banco e tive de parar para respirar direito.
Frost apertou o rosto no meu peito. A respiração dele ficou entrecortada, engasgada. Segurei o rosto dele com os braços em volta dos ombros. Eu piscava muito como se tivesse dormido.
Galen estava quase boquiaberto. Tive medo de ele ficar com ciúme, só que ele estava espantado demais para sentir ciúme. Éramos dois espantados. Eu mal podia acreditar que era Frost nos
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meus braços, que a boca que deixava uma lembrança como queimadura nos meus lábios era de Frost.
Kitto olhou para mim com seus enormes olhos azuis e não fez cara de espanto. A expressão dele era de tesão. Lembrei que ele não sabia que não ia ter sexo nenhum naquela noite.
Galen se recuperou primeiro. Ele aplaudiu e falou, com um riso nervoso na voz:
- Numa escala de um a dez, dou um doze e eu só estava observando.
Frost me abraçou e ainda respirava como se tivesse corrido uma longa distância. E disse meio ofegante, ainda não recuperado:
- Pensei que tinha esquecido como era fazer isso.
Então eu ri, uma risada gostosa e baixa, do tipo que vira a cabeça de um homem num bar, e não era fingimento. Meu corpo ainda pulsava com sangue demais, tesão demais. Apertei Frost contra o meu corpo. O peso do rosto dele no meu colo, a boca dele virada para baixo, e o calor da respiração queimando através do tecido fino da minha blusa, o que eu mais queria era que ele descesse mais com a boca, que beijasse meus seios.
Recuperei a voz.
- Confie em mim, Frost, você não esqueceu nada. Dei risada de novo.
- E se um dia você beijou melhor do que isso, não sei se eu sobreviveria a esse beijo.
- Gostaria de ficar com ciúme - disse Galen. - Estava todo preparado para sentir ciúme, mas que droga, Frost, será que pode me ensinar como faz isso?
Frost levantou a cabeça para poder ver meu rosto, e a expressão dele era de prazer e brilho, com uma pontada de algo misterioso e satisfeito. Tinha mudado para algo mais... humano, mas não menos perfeito.
Com a voz suave, baixa e íntima, ele disse:
- E isso foi apenas o toque do meu corpo. Sem poder, sem mágica.
Olhei nos olhos dele e engoli em seco. De repente era eu que estava nervosa.
- Foi mágico, Frost, uma magia toda especial.
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Minha voz saiu ofegante.
Ele corou, um rubor rosa-claro do pescoço até a testa. Perfeito. Beijei a testa dele e deixei que ele me ajudasse a pôr o tornozelo torcido de volta no seu colo. Sentei direito no banco com o braço de Frost no ombro. Meu corpo se encaixou na curva do braço dele como se eu ficasse sempre assim.
- Está vendo? Superconfortável - eu disse.
- É - ele disse, e até essa única palavrinha tinha um calor que fez minha barriga e tudo lá embaixo se contrair.
- Você precisa pôr esse pé para cima - disse Galen. - Ofereço o meu colo. - Ele deu um tapinha na perna.
Estiquei as pernas, e Galen pôs meus pés em cima das pernas dele. Mas fiquei desconfortável ao sentar daquele jeito, encostada em Frost.
- Minhas costas não dobram assim - eu disse.
- Se não puser o tornozelo para o alto, vai inchar - disse Galen. - Deixe os pés no meu colo e deite aí. Tenho certeza de que Frost não vai se importar se ficar com a cabeça no colo dele.
Essa última frase soou com uma ponta de sarcasmo.
- É - disse Frost. - Não me importo.
Se ele entendeu a ironia de Galen, não demonstrou.
Eu deitei segurando a saia para não subir. Com as pernas para cima no colo de Galen, fiquei contente de estar de vestido comprido, que tornava a posição mais discreta. Estava tão cansada que aquela discrição era a velocidade certa para as coisas.
Descansei a cabeça na coxa de Frost, com a têmpora encostada em sua barriga. Ele passou a mão na minha barriga e tocou na minha mão. Ficamos de mãos dadas, e eu admirei o rosto dele. Sua expressão era quase íntima demais. Movi a cabeça para um lado, com a bochecha toda na coxa dele. Com a mão livre ele brincou com o cabelo ao lado do meu rosto, puxando suavemente.
- Posso tirar seu outro sapato? - perguntou Galen.
- Para quê? - perguntei.
Ele ergueu um pouco os quadris, e senti o salto agulha apertar a parte dele que era macia demais para ser a coxa. Ele continuou pressionando o salto fino, olhando sério para mim.
- Esse salto é meio pontiagudo - ele disse.
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- Então pare de empurrar o corpo contra ele - eu disse.
- Ainda dói quando me mexo, Merry - ele disse.
- Desculpe, Galen, pode tirar o sapato, sim.
Ele deu um sorriso radiante. Tirou o sapato, olhou bem para ele e balançou a cabeça.
- Gosto quando você usa salto, mas um sapato baixo podia ter salvado seu tornozelo.
- Ela teve sorte de torcer só o tornozelo - disse Frost. - Foi um feitiço poderoso, apesar de mal estruturado.
Concordei e aninhei a cabeça na virilha dele.
- É, foi como atirar em esquilos com uma espingarda de matar gamos. Mata o esquilo, mas não sobra nada para comer.
- Cel tem poder, mas pouquíssimo controle - disse Frost.
- Tem certeza de que foi o Cel? - perguntou Galen. Nós dois olhamos para ele.
- Você não acha que foi? - perguntei.
- Estou só dizendo que não devíamos atribuir tudo ao Cel. Ele é seu inimigo, mas pode não ser o único. Não quero que nos concentremos tanto no Cel, a ponto de deixar de ver algo importante.
- Bem pensado - disse Frost.
- Nossa, Galen, isso foi quase uma observação inteligente - eu disse.
Galen deu um tapa sem força no peito do meu pé.
- Cumprimentos como esse não vão fazer você chegar perto do meu corpo.
Pensei por um instante em fazer pressão com o pé na virilha dele e acariciá-lo para provar que já estava bem perto do corpo dele, mas não fiz isso. Ele estava magoado, e eu não quis piorar as coisas sem motivo algum.
Kitto nos observava com olhar intenso e muito azul. Havia alguma coisa no rosto dele, no jeito de prestar atenção, que me fazia apostar que ele seria capaz de repetir tudo que tínhamos feito, tudo que tínhamos dito. Será que ele ia contar para Kurag? Até que ponto ele era "meu"?
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Kitto viu que eu olhava para ele e fitou meus olhos. Não foi um olhar de medo. Parecia ousado, cheio de expectativas. Ele estava mais relaxado depois que eu beijei Frost, mas eu não sabia bem por quê.
O fato de eu olhar para ele deixou Kitto mais ousado. Ele chegou para a frente, para perto de mim. Olhou rapidamente para Galen, depois para Frost, e montou no calombo do eixo no chão do carro, com um joelho dobrado de cada lado.
Ele falou com todo o cuidado, manteve a boca fechada sempre que pôde para esconder as presas e a língua bifurcada.
- Você trepou com o encantado de cabelo verde esta noite. Eu já ia protestar, mas Galen tocou na minha perna, deu um pequeno apertão. E ele tinha razão. Não sabíamos até que ponto podíamos confiar no duende.
- Esse beijo...
Com os dois "ss" de "esse", ele sibilou pela primeira vez e hesitou um pouco por isso. Então recomeçou:
- Você beijou o encantado de cabelo prateado esta noite. Peço permissão para fazer valer a honra dos duendes nessa questão. Enquanto não compartilharmos a carne, o tratado entre você e meu rei não está consumado.
- Segure essa língua, duende - disse Frost.
- Não - eu disse - está tudo bem, Frost. Na verdade Kitto está sendo muito educado para um duende. A cultura deles é muito ousada no que diz respeito ao sexo. Além disso, ele tem razão. Se alguma coisa acontecer com Kitto antes de podermos compartilhar a carne, os duendes não terão mais compromisso nenhum com nosso acordo.
Kitto curvou-se até encostar a cabeça no banco, e seu cabelo caiu sobre a mão de Frost que segurava a minha. Ele esfregou a testa no banco, ao longo do meu corpo, como um gato.
Dei um tapinha na cabeça dele.
- Não me venha com ideias de fazer no carro. Não sou dada a sexo grupal.
Ele levantou a cabeça lentamente e olhou para mim com os imensos olhos azuis.
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- Quando vamos para o hotel? - ele perguntou.
- Ela está machucada - disse Galen. - Acho que isso pode esperar.
- Não - eu disse. - Precisamos dos duendes.
Senti que Galen ficou tenso pela mão dele na minha perna.
- Não gosto disso.
- Você não precisa gostar, Galen, apenas reconhecer que é muito prático.
- Também não gosto de pensar no duende encostando em você - disse Frost - mas seria muito simples assassinar o duende. É mais fácil matá-los do que matar um encantado, usando magia.
Olhei para o corpo delicado de Kitto. Sabia que ele podia trocar golpes com quase qualquer coisa e sair quase inteiro, mas com mágica... Esse não era o forte dos duendes.
Eu estava cansada, muito cansada. Mas tinha trabalhado duro para formar a aliança com os duendes. Não ia perder tudo agora por algum capricho. A questão era decidir que pedaço do meu corpo eu ia oferecer para ele enterrar aquelas presas dele. Não ia perder meio quilo de carne, apenas uma mordida, a que Kitto tinha o direito de ganhar. De qual lugar do corpo você deixaria alguém arrancar um pedaço?
Eu não conseguia andar por causa do tornozelo luxado. Doyle me carregou para o saguão do hotel. Kitto ficou bem perto de mim. Rhys fez um comentário maldoso quando estávamos entrando. Se Rhys continuasse a reclamar de todos os duendes, ia dificultar mais ainda as coisas. Eu não precisava de mais dificuldades. Precisava, isso sim, que as coisas ficassem mais fáceis.
O que nos aguardava no saguão do hotel não era mais fácil.
Griffin estava lá sentado numa poltrona, com as pernas compridas esticadas para a frente, e a cabeça apoiada no encosto da poltrona. Quando chegamos, estava de olhos fechados, parecia dormir.
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O cabelo grosso e ondulado, cor de cobre, se espalhava pelos ombros dele. Lembrei-me de quando chegava até os pés e de como lamentei quando resolveu cortar. Eu tinha evitado procurá-lo no banquete aquela noite. Uma olhada bastou para provar que aquele cabelo castanho avermelhado não estava no salão. O que ele fazia no hotel? Por que não foi ao banquete?
Observei a linha de cílios pretos no rosto branco de Griffin. Ele gastava seu glamour para se fazer passar por humano. Mas mesmo opaco com a própria magia, ele brilhava. Estava de calça jeans e botas de vaqueiro, camisa social branca toda abotoada e um casaco jeans com remendos de couro nos ombros e nos braços. Achei que meu peito ia ficar apertado, que a respiração ia falhar ao vê-lo. Porque ele não estava dormindo. Fazia pose para me impressionar. Mas meu peito não apertou. E não fiquei sem ar.
Doyle parou comigo nos braços logo antes de pisar na imitação de tapete oriental que ficava embaixo das poltronas. Olhei bem para Griffin, do alto do colo de Doyle, e não senti nada. Tinham sido sete anos da minha vida, e agora eu podia olhar para ele sem sentir nada, apenas um grande vazio sofrido. Era uma tristeza ter desperdiçado aquele tempo todo, toda a minha energia, empenhada naquele homem. Tive medo de vê-lo de novo, medo de que todos aqueles sentimentos antigos voltassem, ou que eu ficasse furiosa com ele. Mas não havia nada. Sempre teria doces lembranças do corpo dele, e menos doces da sua traição, mas o homem que posava na poltrona com tanto esmero não era mais o meu amor. Essa compreensão foi ao mesmo tempo um profundo alívio e uma grande dor.
Ele abriu os olhos devagar e sorriu. O sorriso doeu no meu peito porque antigamente eu pensava que era um sorriso especial que ele dava só para mim. Aquele olhar cor de mel também era conhecido. Conhecido demais. Ele olhou para mim como se eu jamais tivesse partido. Olhou para mim com a mesma segurança que Galen teve mais cedo. Os olhos dele se encheram com a intimidade do meu corpo e a promessa de que ele teria acesso a ele em breve.
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Isso acabou com qualquer sentimento bondoso que ainda podia ter por ele.
O silêncio durou um pouco além da conta, mas não senti necessidade de quebrá-lo. Sabia que se não dissesse nada, Griffin falaria primeiro. Ele sempre gostou muito do som da própria voz.
Griffin se levantou com um movimento elegante e ficou só um pouco curvado para seu um metro e noventa e cinco de altura não dar na vista. Deu para mim o sorriso inteiro, que enrugava em volta dos olhos e exibia aquela covinha de um lado do rosto.
Fiquei olhando para ele com expressão neutra. O fato de estar muito cansada ajudou, pois mal conseguia pensar, mas era mais do que isso. Eu me senti oca por dentro e deixei isso transparecer no rosto. Deixei Griffin ver que não significava nada para mim, só que, por conhecê-lo bem, sabia que não ia acreditar.
Ele se adiantou com a mão estendida como se fosse pegar a minha. Continuei apenas olhando para ele até que abaixou a mão e pela primeira vez pareceu constrangido.
Ele olhou para todos nós, depois se concentrou em mim de novo.
- A rainha insistiu para eu não ir ao banquete esta noite. Ela achou que ia deixá-la perturbada.
A segurança estava abandonando os olhos dele, Griffin começava a ficar aflito.
- O que eu perdi da festa?
- O que faz aqui, Griffin? - perguntei, com a voz vazia como meu coração.
Ele trocou o pé de apoio. Era óbvio que aquela reunião não estava indo como ele planejara.
- A rainha disse que ia revogar a regra do celibato da Guarda para você.
Griffin virou para Doyle e os outros. Franziu a testa quando viu o duende. Não estava gostando de nada daquilo. Não gostou de me ver nos braços de outro. Senti uma pontada de satisfação. Mesquinha, mas verdadeira.
- Como é que a revogação que foi feita só para mim pode responder à minha pergunta, Griffin?
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Ele franziu o cenho.
- Por que está aqui? - perguntei.
- A rainha me disse que informou você de que ia enviar um guarda que ela escolhesse.
Ele tentou sorrir outra vez, mas não conseguiu.
- Está querendo dizer que a rainha enviou você como o espião dela?
Ele levantou a cabeça e pôs o queixo para a frente. Era um sinal claro de que não estava contente.
- Pensei que ficaria satisfeita, Merry. Há muitos outros guardas piores para dividir sua cama.
Balancei a cabeça e encostei o rosto no ombro de Doyle.
- Estou cansada demais para isso agora.
- O que quer de nós, Meredith? - perguntou Doyle.
O olhar de Griffin endureceu, e eu sabia que Doyle tinha usado meu primeiro nome de propósito, sem o título, apenas o nome. Eu sorri.
- Levem-me para o quarto e entrem em contato com a rainha. Não vou ser obrigada a dividir minha cama com ele de novo, de jeito nenhum.
Griffin se aproximou e alisou meu cabelo. Doyle deu meia-volta e me pôs fora do alcance dele.
- Ela foi minha consorte durante sete anos - disse Griffin, e agora havia raiva na voz dele.
- Então devia ter-lhe dado valor, como a preciosa dádiva que ela é.
- Vá embora, Griffin - eu disse. - Vou pedir para a rainha mandar outra pessoa.
Ele se pôs na frente de Doyle, bloqueando o nosso caminho para os elevadores.
- Merry, Merry, você não...
- Se não sinto nada? - completei para ele. - Sinto que temos de sair deste saguão antes de atrair uma multidão.
Ele olhou para a recepção. A recepcionista da noite nos dava toda a sua atenção. Um homem tinha ido se juntar a ela, como se temessem que fosse haver encrenca.
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- Estou aqui obedecendo ordens da rainha. Só ela pode me mandar embora, você não.
Vi o olhar furioso dele e dei risada.
- Está bem, está bem. Vamos todos em bando subir e falar com a rainha de lá.
- Tem certeza? - perguntou Doyle. - Se quiser que ele fique no saguão, podemos cuidar disso.
Havia um pouco de agressividade nas palavras de Doyle, e percebi que ele queria machucar Griffin, queria uma desculpa para castigá-lo. Não acho que era nada pessoal comigo. Era mais pelo fato de Griffin ter tido o que todos eles queriam, acesso a uma mulher que o adorava, e que ele tinha jogado fora, enquanto eles não podiam fazer nada, só observar.
Frost foi ficar atrás de Doyle. Kitto também. Rhys chegou pelo outro lado e Galen foi dando a volta para se aproximar das costas de Griffin.
Griffin ficou tenso de repente. Pôs a mão no cinto e dentro da jaqueta.
- Se perder sua mão de vista - disse Doyle - vou concluir que pretende nos atacar. Não vai querer que eu conclua isso, Griffin.
Griffin procurou mantê-los todos à vista, mas já tinha deixado que o cercassem. Não dava para ver todos os pontos de um círculo. Era um descuido muito sério, e Griffin podia ser muitas coisas, mas descuidado não. Pela primeira vez imaginei se ele realmente sofreu com o nosso rompimento, o suficiente para ficar descuidado, se tinha sido sofrimento bastante para acabar machucado, ou até morto.
A ideia foi até divertida, de uma forma meio sociopata, mas eu não queria vê-lo morto. Apenas que se afastasse de mim.
- Por mais divertido que seria ver vocês se arrebentando, não vamos fazer isso.
- Quais são suas ordens? - perguntou Doyle.
Todos para cima, falar com a rainha, nos refrescar e descansar um pouco, depois veremos.
- Como desejar, Princesa - disse Doyle.
Ele me carregou até os elevadores. Os outros nos seguiram, formando uma rede semicircular para envolver Griffin lá atrás.
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Sem precisar de comando nenhum, Rhys e Galen assumiram seus postos, um de cada lado de Griffin, quando entramos no elevador.
Doyle foi para um canto, de costas para as paredes espelhadas, para poder ver Griffin e a porta. Frost ficou na frente dele do outro lado da porta. Kitto olhava para Griffin como se nunca o tivesse visto antes.
Griffin encostou os ombros na parede da cabine, de braços cruzados, tornozelos também, era a imagem da tranquilidade. Mas os olhos não estavam tranquilos. Tinha uma rigidez nos ombros que nenhum fingimento podia esconder.
Olhei para ele entre Galen e Rhys. Griffin era o mais alto, com mais de sete centímetros de diferença de Galen e muito mais de Rhys.
Ele me pegou olhando e se desfez do glamour lentamente, como num striptease. Já vira Griffin fazer isso nu tantas vezes que até tinha perdido a conta. Era como ver uma luz se espalhando por baixo da pele dele, os pés sempre primeiro, subindo pelos músculos das panturrilhas, as coxas fortes, subindo pelo corpo dele até que cada centímetro brilhasse como alabastro polido com uma vela dentro, tão luminoso que quase provocava sombras com aquele brilho da pele.
A lembrança do corpo dele nu e brilhando queimava dentro da minha cabeça, e fechar os olhos não adiantava. Foi uma lembrança querida demais, por tempo demais. Abri os olhos e vi o brilho do cabelo vermelho acobreado que parecia ter fios metálicos entremeados. As ondas grossas e grandes do cabelo estalavam e se moviam com o poder dele. Os olhos não estavam castanho-mel. Tinham três cores: castanho em volta da pupila, ouro líquido e depois bronze queimado. A visão dele brilhando inteiro me deixou sem ar. Ele seria sempre lindo. Nenhuma quantidade de raiva ia tirar isso dele.
Mas beleza não bastava, nem de longe.
Ninguém disse nada até o elevador parar. Então Galen agarrou o braço de Griffin, e Rhys examinou o corredor antes de Doyle me carregar para fora.
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- Para que esse cuidado? - perguntou Griffin. - O que aconteceu esta noite?
Rhys verificou a porta do quarto, pegou o cartão-chave que estava comigo e abriu-a. Examinou o quarto enquanto todos ficamos esperando no corredor. Se os braços de Doyle estavam cansados de me carregar para lá e para cá, ele não demonstrava.
- O quarto está limpo - disse Rhys.
Ele segurou o outro braço de Griffin e o levaram para o quarto. O resto foi atrás.
Doyle me botou na cama, sentada, encostada na cabeceira. Pegou um travesseiro de baixo da colcha azul e pôs embaixo do meu tornozelo. Tirou a capa e deixou-a no pé da cama. Ele ainda usava as correias de couro com tachas de metal cruzadas sobre o peito nu. Os brincos de prata ainda cintilavam nas orelhas dobradas. As penas de pavão ainda roçavam os ombros dele. Ocorreu-me pela primeira vez que jamais vi Doyle de outra forma, sempre assim, como estava agora. Ah, as roupas... mas não tinha certeza se ele usava glamour ou não. Doyle não procurava ser o que não era.
Griffin brilhava, continuava lindo. Galen e Rhys o fizeram sentar numa cadeira. Galen se encostou na pequena mesa ao lado da cadeira. Rhys na parede. Nenhum dos dois brilhava, mas eu sabia que Galen, pelo menos, não tentava se fazer passar por humano.
Kitto subiu na cama e se encolheu ao meu lado, com uma mão na minha cintura, perigosamente perto dos meus seios. Mas não tentou se aproveitar disso. Encostou o rosto no meu quadril e parecia satisfeito, como se pretendesse dormir.
Frost sentou no outro lado da cama, continuou com os pés no chão mas não saiu da cama para não deixar só o duende ocupá-la comigo. Cruzou as mãos sobre o peito logo embaixo das manchas de sangue. Ficou lá sentado empertigado, coluna reta, lindo de morrer, mas não brilhou como Griffin brilhava.
E tive uma súbita revelação. Griffin não tinha tirado o glamour. Ele pôs mais. Todas as vezes que eu pensava que ele estava se desfazendo de todos os truques, na verdade ele se cobria com o maior truque de todos. A maior parte dos encantados não era capaz de usar o glamour para adquirir uma aparência melhor para outros
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encantados. Podiam tentar, mas era desperdício de energia. Mesmo depois de eu ter assumido o meu poder ele brilhava, só que agora eu conseguia ver o que realmente era. Uma mentira. Fechei os olhos, encostei a cabeça na parede.
- Desfaça esse glamour, Griffin. Sente aí como um bom menino.
Minha voz soou cansada até para mim.
- Ele é muito bom nisso - disse Doyle. - Talvez o melhor que já vi.
Abri os olhos e me virei para Doyle.
- Fico feliz em saber que o show não foi só para mim. Estava me sentindo bem idiota.
Doyle se dirigiu aos outros.
- Cavalheiros?
- Ele brilha - disse Galen.
- Como um pirilampo em junho - disse Rhys. Frost concordou.
Toquei no cabelo de Kitto.
- Você o vê? - perguntei a ele.
Kitto levantou a cabeça com os olhos semicerrados.
- Todos os encantados são lindos para mim.
Ele ajeitou o rosto em mim de novo e dessa vez um pouco mais para baixo do meu quadril.
Olhei para Griffin, que continuava brilhando e tão bonito que tive de proteger os olhos como se olhasse para o sol. Quis gritar com ele, falar de mentiras e de truques, mas não gritei. Com raiva ele ia se convencer de que eu ainda sentia alguma coisa por ele. Não sentia, ou melhor, não o que ele queria que eu sentisse. Na realidade eu me sentia ludibriada, burra e furiosa.
- Fale com a rainha, Doyle - eu disse.
A cômoda ficava na frente da cama, com um espelho grande em cima, virado para mim. Doyle ficou bem no centro do espelho. Eu podia ver meu reflexo. Fiquei pensando por que eu não parecia diferente. Ah, precisava escovar o cabelo, retocar a maquiagem, estava sem nenhum batom, mas meu rosto continuava o mesmo. Minha inocência tinha desaparecido anos atrás, por isso
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pouca coisa me surpreendia. Tudo que eu realmente sentia era um enorme torpor.
Doyle pôs as mãos sobre o espelho. Senti a magia dele rodar pelo quarto como uma fila de formigas marchando na pele. Kitto levantou a cabeça para ver e encostou a face na minha coxa.
O poder cresceu como pressão no ar. Parecia que dava para resolver fazendo os ouvidos estalar, igualando a pressão, mas a única coisa que aliviaria mesmo a pressão era o uso. Doyle acariciou o espelho, e ele ficou ondulado e trêmulo feito água. As pontas dos dedos dele eram como pedras jogadas num lago, criando ondas em círculos cada vez maiores. Ele fez um pequeno gesto com as mãos, flexionou o pulso e a mão, e o espelho ficou opaco. A superfície ficou leitosa, como um nevoeiro.
A névoa clareou, e a rainha estava lá sentada na beira da cama, olhando para nós pelo espelho de corpo inteiro dos aposentos dela. Tinha tirado as luvas, mas o resto da roupa não. Estava à espera do nosso contato. Eu apostaria uma parte do corpo nisso. O ombro nu de Eamon aparecia ao lado dela. Ele estava virado de lado, como se dormisse. O menino louro estava ajoelhado ao lado da rainha, apoiado nos cotovelos. Ele também estava nu, mas sem a coberta por cima. O corpo dele era forte mas magro, corpo de menino sem a musculatura de um homem. Fiquei imaginando de novo se teria mesmo dezoito anos.
Doyle tinha chegado para o lado de modo que a rainha me visse primeiro.
- Salve, Meredith.
Ela examinou a cena, o duende semidespido e Frost na cama comigo. A rainha sorriu, e foi um sorriso de satisfação. Percebi que as duas cenas eram semelhantes. Ela com dois homens na cama dela, eu com dois na minha. Torci para que ela estivesse aproveitando mais do que eu. Ou não torci nada.
- Salve, tia Andais.
- Pensei que já estaria pronta na cama, com um ou mais dos seus rapazes. Você me decepcionou.
Ela passou a mão nas costas do menino e parou nas nádegas. Foi um gesto natural, como se acaricia um cachorro.
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Minha voz saiu bem neutra, cautelosa, vazia:
- Griffin estava aqui quando nós chegamos. Disse que você ordenou que viesse.
- Fui eu que mandei sim - ela disse. - Você concordou que dormiria com o meu espião.
- Não concordei que dormiria com Griffin. Pensei que depois da nossa conversa você tivesse entendido como me sinto em relação a ele.
- Não - disse Andais. - Não, eu não entendi nada disso. Na verdade nem tive certeza de que você sabia o que sentia por ele.
- Eu não sinto nada por ele - eu disse. - Apenas não quero mais vê-lo, quero que ele se afaste de mim e certamente não vou dormir com ele.
Assim que disse essa última parte concluí que ela poderia insistir nisso por pura perversidade. Por isso acrescentei logo:
- Quero saber que ele está sujeito ao celibato de novo. Ele se livrou da proibição dez anos atrás para poder ir para a cama comigo, mas usou sua liberdade para trepar com todas que o quisessem. Quero que ele saiba que estou transando com os outros guardas, que eles têm sexo e ele não. Que a menos que eu aceite deitar com ele, nunca mais terá sexo pelo resto de sua vida tão artificial.
Sorri quando disse isso e vi que era a verdade. Com a bênção da Deusa, era vingativo, mas era verdade. Andais deu risada de novo.
- Ah, Meredith, você deve ser mais da minha linhagem de sangue do que eu jamais imaginei. Como quiser. Mande-o de volta para sua cama solitária.
- Você ouviu o que ela disse - eu disse. - Dê o fora.
- Se não for eu - disse Griffin - será algum outro. Talvez deva perguntar quem ela vai mandar para me substituir na sua cama.
Olhei para minha tia.
- Quem é que vai mandar no lugar do Griffin?
A rainha estendeu a mão, e um homem apareceu, como se esperasse pacientemente pela sua deixa. A pele dele era da cor de lilases na primavera, e o longo cabelo cor-de-rosa. Os olhos pareciam piscinas de ouro líquido. Era Pasço, irmão gêmeo de Rozenwyn.
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Encarei Pasço, e ele me encarou de volta. Jamais fomos amigos. Na verdade houve momentos em que até achei que éramos inimigos. Griffin deu risada.
- Não pode estar falando sério, Merry. Deixaria Pasço transar com você e eu não?
Griffin tinha parado de brilhar e parecia quase comum ali parado. Ele estava com raiva, com tanta raiva que suas mãos tremeram um pouco quando ele apontou para o espelho.
- Griffin, querido - eu disse. - Eu deixaria muitos homens virem para a minha cama antes de você.
A rainha riu, puxou Pasço para baixo até ele sentar no colo dela, como uma criança com Papai Noel num shopping. Ela olhou para mim e passou a mão no cabelo cor-de-rosa de Pasço.
- Concorda que Pasço seja meu espião?
- Concordo.
Pasço arregalou os olhos só um pouco quando eu respondi, pois devia esperar alguma forma de protesto da minha parte. Mas eu simplesmente não estava disposta naquela noite.
Andais passou a mão nas costas de Pasço.
- Acho que você o surpreendeu. Ele me disse que você jamais concordaria em dividir sua cama com ele.
Dei de ombros.
- Não é um destino pior do que a morte.
- Verdade, minha sobrinha.
Nossos olhos se encontraram através do nada do espelho. Ela meneou a cabeça e empurrou o homem para ele ficar de pé. Deu um tapa na bunda dele quando ele saiu do campo de visão.
- Ele vai já para aí.
- Ótimo - eu disse. - Agora dê o fora, Griffin.
Griffin hesitou, depois entrou no campo de visão do espelho. Olhou para uma, depois para outra. Abriu a boca como se fosse dizer alguma coisa, então fechou-a sem dizer nada. Foi provavelmente a coisa mais sábia que podia ter feito.
Ele se curvou.
- Minha rainha. Virou-se para mim.
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- Vou vê-la de novo, Merry. Balancei a cabeça.
- Para quê?
- Você me amou um dia - ele disse, meio pergunta, quase implorando.
Eu podia mentir, não havia nenhum feitiço sobre mim, mas não menti.
- Sim, Griffin, eu te amei um dia.
Ele ficou observando a cama e a variedade de homens ali.
- Eu sinto muito, Merry. Griffin parecia sincero.
- Sente ter me perdido, sente ter matado o meu amor por você, ou sente não poder mais transar comigo?
- Tudo isso - ele disse. - Eu sinto por tudo isso.
- Bom menino. Agora vá embora - eu disse.
Um sentimento passou pelo rosto dele, algo parecido com sofrimento, e pela primeira vez pensei que talvez, só talvez, ele compreendesse que o que tinha feito era errado. Griffin destrancou a porta, saiu, e quando fechou a porta eu soube que ele tinha partido, que aquela partida era mais do que apenas não estar por perto. Ele não era mais minha paixão, não era mais uma pessoa especial para mim.
Suspirei e me encostei na parede de novo. Kitto se aconchegou e esfregou uma perna na minha. Imaginei se teria alguma chance de ficar sozinha aquela noite.
Virei-me para o espelho mais uma vez.
- Você sabia que eu não ia aceitar Griffin como seu espião, se isso significasse ter de ir para a cama com ele.
Andais fez que sim com a cabeça.
- Eu precisava saber o que você realmente sentia por ele, Meredith. Tinha de ter certeza de que não o amava mais.
- Por quê? - perguntei.
- Porque o amor pode interferir no desejo. Agora tenho certeza de que você livrou-se dele em seu coração. Estou satisfeita.
- Gostei demais de você ter ficado satisfeita - eu disse.
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- Cuidado, Meredith. Não gosto que se dirijam a mim com sarcasmo.
- E eu não gosto de ter o meu coração retalhado para o seu prazer.
Assim que acabei de dizer isso eu soube que era um erro. Ela semicerrou os olhos.
- Quando eu retalhar o seu coração, Meredith, você vai saber. O espelho ficou todo enevoado e de repente passou a refletir de novo. Eu me vi no espelho com a artéria latejando no pescoço.
- Ter seu coração retalhado - disse Galen. - Péssima escolha de palavras.
- Eu sei - eu disse.
- No futuro - disse Doyle - controle seu gênio. Andais não precisa de ajuda nenhuma para ter ideias horríveis.
Empurrei Kitto para longe de mim. Pus os pés no chão com cuidado e usei a mesa de cabeceira como apoio para me levantar.
- O que está fazendo? - perguntou Doyle.
- Vou lavar esse sangue e essa terra e depois vou para a cama. - Olhei para todos. - Quem quer me ajudar a preparar o banho?
O silêncio ficou muito concreto de repente. Os homens se entreolharam, sem saber o que fazer, o que dizer. Galen se apresentou e estendeu a mão para me ajudar. Segurei a mão dele, mas balancei a cabeça indicando que não.
- Você não pode ficar comigo esta noite, Galen. Tem de ser alguém que possa terminar o que começarmos.
Ele ficou uns dois segundos olhando para o chão, depois levantou a cabeça.
- Ah.
Galen me ajudou a voltar para a cama, e eu o deixei. Depois ele foi até a cadeira onde tinha deixado sua jaqueta de couro.
- Vou providenciar outro quarto aqui do lado. Depois vou dar uma caminhada. Quem vem comigo?
Todos se entreolharam de novo. Nenhum deles sabia como enfrentar aquela situação.
- Como a rainha faz para escolher um de vocês? - perguntei.
- Ela simplesmente chama o guarda, ou os guardas que deseja ter aquela noite - disse Doyle.
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-Você não tem preferência? - perguntou Frost, e havia quase mágoa no tom de voz dele.
- Você fala isso como se houvesse alguma escolha ruim aqui. Não existe nenhuma escolha pior. Todos vocês são adoráveis.
- Eu já tive meu tempo com Meredith - disse Doyle - por isso saio dessa disputa hoje.
Isso chamou a atenção de todos, e Doyle teve de explicar exatamente o que quis dizer com esse comentário. Frost e Rhys se entreolharam e de repente surgiu uma tensão no ar, que não existia antes.
- Qual é o problema? - perguntei.
- Você precisa escolher, Meredith - disse Frost.
- Por quê?
- Você não pode deixar só dois de nós, sem arriscar um duelo - foi Galen que respondeu.
- Não são só dois, são três - eu disse.
Todos olharam para mim e depois devagar para o duende que continuava na cama. Ele ficou tão surpreso quanto os outros. Olhava espantado para nós com aqueles olhos enormes. Parecia meio assustado.
- Eu jamais teria a pretensão de competir com os encantados.
- Kitto vai para o banheiro comigo independentemente de quem mais for - eu disse.
Todos os pares de olhos se viraram para mim.
- O que disse? - perguntou Doyle.
- Você ouviu. Quero essa aliança com os duendes selada e para isso tenho de compartilhar a carne com Kitto. É isso que pretendo fazer.
Galen foi para a porta.
- Volto mais tarde.
- Espere por mim - disse Rhys.
- Você vai embora? - perguntei.
- Por mais que eu a queira, Merry, não transo com duendes. Rhys saiu do quarto com Galen. Os dois fecharam a porta, e Doyle trancou-a.
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- Quer dizer que você fica? - perguntei a ele.
- Fico de guarda na porta - disse Doyle.
- E se quisermos usar a cama? - perguntou Frost. Doyle pensou um pouco e depois sacudiu os ombros.
- Posso esperar logo aqui do lado de fora do quarto se quiserem usar a cama.
Negociamos mais algumas coisas. Frost quis deixar claro que não teria de encostar no duende. Eu concordei. Frost me pegou no colo e levou-me para o banheiro. Kitto já estava lá enchendo a banheira. Olhou para nós quando entramos. Tinha tirado a camisa de Galen e estava de novo só com a cinta prateada. Ele não disse nada, só nos observou com os olhos imensos e azuis, com uma das mãos embaixo do jato de água da torneira.
Frost olhou em volta. Acabou me pondo sentada na bancada ao lado da pia. Ficou na minha frente e de repente perdemos a naturalidade. O beijo no carro tinha sido maravilhoso, mas foi a primeira vez que Frost e eu nos tocamos. Agora, subitamente, íamos fazer sexo... e com plateia.
- Estranho, não é? - eu disse.
Ele meneou a cabeça. O movimento fez o fino véu de cabelo prateado deslizar sobre o corpo dele. Frost levantou o braço devagar, timidamente, para o meu blazer. Puxou o veludo dos meus ombros, descendo pelos braços. Eu quis ajudá-lo com as mangas, mas ele disse:
- Não, deixa que eu faço.
Pus as mãos dos lados do corpo, e ele puxou uma manga, depois a outra. Deixou o blazer cair no chão. Passou a ponta dos dedos no meu ombro. Fiquei toda arrepiada.
- Solte o cabelo - eu disse.
Ele tirou o primeiro prendedor de osso, depois o segundo, e o cabelo caiu em volta dele numa cascata gloriosa de purpurina prateada. Peguei uma mecha. Parecia fio de prata, mas era macio como cetim, com a textura de seda.
Ele chegou tão perto que encostou as pernas nas minhas. Passou as mãos nos meus braços nus. As carícias dele eram muito tímidas, como se tivesse medo.
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- Incline-se para frente para eu abrir o zíper do vestido.
Fiz o que ele pediu e apoiei a cabeça no peito dele. O tecido da camisa dele era áspero, mas ele abriu o zíper do vestido com movimentos lentos e suaves. Deslizou as pontas dos dedos dentro do vestido, alisando a pele das minhas costas.
Tentei tirar a camisa de dentro da calça dele, mas não saía.
- Não consigo tirar sua camisa.
- Está presa para ficar lisa - ele disse.
- Presa? - perguntei.
- Tenho de tirar a calça para soltar a camisa.
Ele enrubesceu, uma linda tonalidade cor-de-rosa.
- Qual é o problema, Frost?
A água parou de jorrar na torneira da banheira. Kitto disse:
- O banho está pronto, senhora.
- Obrigada, Kitto. - Virei-me para Frost. - Responda à minha pergunta, Frost. Qual é o problema?
Ele olhou para baixo, para todo aquele cabelo que parecia uma cortina. Desviou o olhar e virou-se para a parede, de modo que nem o duende podia ver seu rosto.
- Frost, por favor, não me faça descer daqui aos pulos para fazer com que olhe para mim. Não quero torcer o outro tornozelo.
Ele falou sem se virar:
- Não confio em mim quando estou com você.
- Como assim? - perguntei.
- Como um homem ao lado de uma mulher. Eu ainda não tinha entendido.
- Continuo sem entender, Frost.
De repente ele ficou de frente para mim, seus olhos adquiriram cor de tempestade, cinza-escuro, de raiva.
- Quero cair em cima de você como um animal voraz. Não quero ser gentil. Simplesmente desejo.
- Está dizendo que não confia em você mesmo para não... - procurei a palavra, mas tive de me contentar com a primeira que me veio à cabeça - ...me estuprar?
Ele fez que sim com a cabeça.
Dei risada, não pude evitar. Sabia que ele não ia gostar da risada, mas não aguentei mesmo.
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Ele assumiu uma máscara arrogante, distante, com os olhos frios, mas ainda cheios de raiva.
- O que você quer de mim, Meredith?
- Frost, perdoe-me, mas não pode me estuprar se tem meu consentimento.
Ele fez uma careta como se não entendesse minhas palavras.
- Eu quero fazer sexo com você esta noite. Esse é o plano. Como pode ser estupro?
Ele balançou a cabeça e fez o cabelo dançar em volta, faiscan-do com a luz.
- Você não entendeu. Eu não confio que serei capaz de me controlar.
- De que modo?
- De todo modo!
Frost olhou para o outro lado novamente, com os braços cruzados na frente do peito, com as mãos nos ombros.
Eu finalmente comecei a entender o que ele queria dizer.
- Você está preocupado de não aguentar tempo suficiente para me dar prazer?
- Isso, e...
- O quê, Frost, o quê?
- Ele quer trepar com você - disse Kitto.
Nós dois olhamos para o duende que continuava ajoelhado ao lado da banheira.
- Isso eu sei - eu disse. Kitto balançou a cabeça.
- Não é sexo, só uma trepada. Faz tanto tempo que não tem isso, que ele quer simplesmente gozar.
Olhei para Frost, mas ele estava evitando meus olhos.
- É isso que você quer?
Ele abaixou a cabeça e se escondeu atrás de todo aquele cabelo.
- Quero arrancar fora a sua calcinha, botar você contra a pia e estar dentro de você. Não me sinto gentil esta noite, Meredith. Sinto-me meio enlouquecido.
- Então faça - eu disse. Ele se espantou.
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- O que disse?
- Faça do jeito que quer. Depois de oitocentos anos, você tem direito a um pouco de fantasia.
Ele franziu a testa.
- Mas você não terá prazer nenhum.
- Deixe que eu me preocupo com isso. Você esquece que sou descendente dos deuses da fertilidade. Todas as vezes que você penetrar em mim, posso fazê-lo sentir tesão de novo com um toque da minha mão, usando um pequeno poder. Só porque vamos começar a noite aqui, não temos de terminar aqui também.
- Você vai deixar eu fazer isso?
Olhei bem para Frost, os ombros largos, os músculos do tórax se insinuando através daquele glorioso cabelo, a cintura e os quadris estreitos naquela calça tão justa. Imaginei-o sem a calça, vê-lo nu pela primeira vez, entrando em mim, aflito, tão cheio de desejo que não tocaria em nada, não faria nada além de penetrar em mim. Tive de soltar o ar com um suspiro antes de falar:
-Vou.
Ele atravessou o banheiro com dois passos largos, levantou-me da bancada e me pôs no chão. Tive de me equilibrar no tornozelo ruim, mas ele nem me deu tempo para protestar. Tirou as alças do meu vestido com um único puxão. Tive de me segurar na beirada da bancada da pia para não cair. Arriou o vestido e deixou-o embolado no chão, em volta dos meus pés. Agarrou o cetim preto da calcinha e puxou para baixo também.
Eu vi Kitto no espelho embaçado. Ele observava tudo, com olhos sedentos, no mais completo silêncio, como se não quisesse quebrar o encanto.
Frost teve de desamarrar a calça e levou algum tempo. Quando finalmente conseguiu abrir e tirar a calça, ele produzia um ruído baixinho na garganta. A camisa estava presa na genitália, e ele rasgou-a e arrancou-a fora. Seu pênis estava rijo e mais do que pronto. Dei uma espiada por cima do ombro, então ele me segurou pela cintura e me fez virar de frente para o espelho embaçado.
Num instante senti que ele se esfregava em mim e logo já estava dentro de mim. Frost abriu caminho pela passagem apertada
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e forçou a penetração. Tinha lhe dado permissão para isso, eu o queria, mas sem preliminares eu senti dor junto com prazer. Uma pressão ardida, que quase me dilacerou e me fez gemer de dor e desejo. Quando estava inteiro dentro de mim, até onde dava para ir, ele sussurrou:
- Você é apertada... não está preparada para mim... mas está molhada.
Minha voz soou ofegante:
- Eu sei.
Ele recuou um pouco, avançou de novo e depois disso só existia o corpo dele dentro do meu. O desejo dele era grande e feroz, e ele também. Ele penetrava em mim com toda força e velocidade que podia. O barulho de carne batendo em carne marcava cada investida do corpo dele. Forçava ruídos da minha garganta, apenas com a força dele e com as sensações enquanto ele se movia dentro de mim, em cima de mim e através de mim. Meu corpo se abriu para ele, eu não estava mais apertada, só molhada.
Ele empurrou meu corpo sobre a bancada, depois me levantou, de modo que fiquei com o corpo quase todo em cima da bancada. Meus pés não tocavam mais no chão. Ele entrava em mim com violência como se quisesse abrir caminho não só para dentro do meu corpo, mas através dele, para sair do outro lado. Senti que meus músculos se contraíam, e minha respiração ficou acelerada. Carne na carne, tão dura e rápida, com tanta força, que ficava naquele tênue limiar entre o prazer e a dor. Fiquei esperando que ele saciasse sua carência com uma explosão demorada e gloriosa, mas não foi isso que aconteceu. Ele hesitou, usou as mãos grandes e fortes para mudar meu quadril de lugar em cima do aparador, uma pequena adaptação como se procurasse o lugar certo, depois penetrou em mim novamente com um movimento longo e duro, e eu gritei. Frost tinha encontrado o ponto dentro do meu corpo e passava em cima dele, sem parar, duro e rápido como antes, mas agora provocava em mim pequenos ruídos. A sensação começou a crescer, a intumescer, uma coisa quente crescendo dentro de mim. Ficou maior e maior, fluiu para fora pela minha pele e foi como se passassem mil plumas no meu corpo, provocando
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tremores, espasmos, extraindo ruídos sem palavras, sem pensamento, sem forma, da minha boca. Era a canção da carne, não do amor, nem mesmo do desejo. Era algo mais primitivo, mesmo primordial.
Olhei para o espelho e vi minha pele brilhando, meus olhos assustados cheios de fogo verde e dourado. Pude ver Frost no espelho. Era uma escultura de marfim e alabastro. Um jogo cintilante e brilhante de luz branca que pulsava na pele dele, como se o poder fosse explodir nele. Frost me viu espiando, e os olhos cinzentos brilhantes como nuvens com a lua por trás se encheram de raiva. Ele pôs a mão no meu rosto e me fez virar a cabeça para o lado, para não poder vê-lo, ficou com a mão lá, me prendendo, e a outra nas minhas costas, enquanto me imprensava na bancada. Eu não podia me mover, não podia escapar, não podia impedi-lo. Não queria, mas então entendi. Era importante para ele estar no controle, que ele dissesse quando e como, e até eu olhar para ele era uma intromissão. Aquele momento era dele. Eu era apenas a carne em que ele entrava. Para ele era vital que eu não fosse nada nem ninguém, apenas uma qualquer que satisfizesse sua necessidade.
Ouvi a respiração dele ficar mais acelerada, as estocadas ganharam urgência, mais duras, mais rápidas, e eu gritei, e mesmo assim ele continuou. Senti que o ritmo do corpo dele mudou, ele estremeceu inteiro, depois parou. Aquele calor crescente se espalhou em mim, através de mim, pulsando profundamente no meu corpo, fazendo meu corpo se contrair, estremecer, sem controle. Só as mãos dele me mantinham quieta, inteira. Mas se meu corpo não podia se mexer, o prazer tinha de escapar de alguma maneira. E saiu da minha boca em gritos, berros profundos e atormentados, sem parar, com a velocidade com que eu conseguia respirar.
Frost gritou também, e seus gritos ecoaram os meus. Ele se inclinou sobre a bancada com uma mão de cada lado meu, cabeça baixa. O cabelo dele se espalhou sobre as minhas costas como seda morna. Fiquei prostrada, totalmente passiva, ainda presa embaixo do corpo dele, procurando reaprender a respirar.
Ele encontrou sua voz primeiro, mas saiu como um sussurro áspero:
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- Obrigado.
Se eu tivesse fôlego suficiente, teria rido. Minha garganta estava tão seca que minha voz ficou rouca.
- Pode acreditar, Frost, que o prazer foi meu. Ele se abaixou e deu um beijo no meu rosto.
- Vou procurar ser melhor da próxima vez.
Ele tirou as mãos de cima de mim, deixou que eu me movesse, mas continuou dentro de mim.
Olhei para ele, achando que estava brincando, mas ele estava muito sério.
- Fica melhor do que isso? - perguntei. Ele meneou a cabeça solenemente.
- Ah, fica.
- A rainha foi uma idiota - eu disse baixinho. Então ele sorriu.
- Sempre achei isso também.
Acordei com uma mecha de cabelo prateado como teias de aranha cintilantes no rosto. Mexi apenas a cabeça, e o cabelo deslizou na minha face. Frost estava deitado de barriga para baixo, com a cabeça virada para longe de mim. O lençol estava todo enrolado na cintura e deixava as costas dele descobertas. O cabelo estava para o lado, como um segundo corpo entre nós, uma parte em cima de mim.
Claro que havia um segundo corpo na cama, ou melhor, um terceiro. Kitto estava na outra ponta. Deitado de lado, de costas para mim, ele estava com o corpo todo encolhido, como se quisesse se esconder de alguma coisa em sonhos. Ou talvez fosse apenas frio, porque ele estava nu. O corpo dele era branco, parecia uma boneca de porcelana. Eu nunca tinha estado assim tão perto de um homem que me fazia pensar em palavras como "petite". Meu ombro doía onde ele deixara sua marca. O conjunto perfeito de
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presas na carne do meu ombro. A pele estava toda escura em volta, roxo avermelhado, quase quente ao toque. Não era veneno, apenas uma mordida muito profunda. Ia deixar cicatriz, e era esse o objetivo.
Em algum momento depois da terceira ou quarta vez com Frost, convidei Kitto para vir se juntar a nós. Esperei até o corpo de Frost me levar a um ponto em que dor e prazer se misturavam, para então deixar Kitto escolher seu pedaço de carne. Não doeu quando ele mordeu, e isso indicava até que ponto eu cheguei naquela noite. Doeu um pouco quando finalmente fomos dormir. Esta manhã estava doendo mais. E não era a única coisa que doía. Meu corpo todo doía, eu tinha abusado dele na noite passada, ou melhor, tinha deixado Frost abusar dele.
Festejei aquelas pequenas dores, me espreguicei, explorei exatamente o que estava doendo. Era como a dor depois de malhar bastante com pesos e corrida, só que os músculos que doíam eram em lugares diferentes. Não me lembrava da última vez que tinha acordado com aquela sensação de sexo em todo o meu corpo, como uma contusão sedosa. Fazia tempo demais.
Kitto sentiu-se honrado de eu ter permitido que me marcasse para todos saberem que eu fora amante dele. Não sei se ele entendeu que jamais teria uma relação sexual comigo, mas na noite passada ele não pediu. Na verdade ele ficou completamente submisso, só fez o que eu deixei, ou pedi, nunca se intrometeu. Ele foi a plateia perfeita porque só aparecia quando era chamado, depois seguia melhor as ordens do que qualquer homem com quem eu já tinha ficado.
Sentei na cama, e o cabelo de Frost escorregou no meu corpo como se tivesse vida própria. Passei a mão no meu cabelo lamentavelmente curto. Agora que tinha me revelado como a Princesa Meredith, podia deixar crescer outra vez. Meu pulso doeu quando passei a mão no cabelo, e isso não tinha nada a ver com o sexo. As ataduras não tinham sobrevivido ao banho na véspera e devíamos ter feito novos curativos, mas naquela manhã as marcas dos espinhos tinham criado cascas, estavam quase fechadas, como se tivessem mais de uma semana, em vez de horas. Passei os dedos sobre as feridas quase cicatrizadas. Nunca havia me curado assim
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tão rápido antes. Kitto deve ter me mordido depois da quarta trepada, senão a dentada dele já estaria melhor. Supondo que era o sexo que tinha me curado. Ainda não tínhamos certeza disso.
Eu tinha só uma ponta do lençol, o resto estava enrolado em Frost. Ele era um devorador de lençóis. Fazia muito frio no quarto. Puxei as cobertas e só consegui alguns ruídos de protesto, mais nada. Fiquei olhando para as costas lisas de Frost e tive uma ideia para tirar o lençol dele.
Passei a língua nas suas costas, e ele emitiu um ruído baixinho. Inclinei-me sobre ele e lambi sua coluna até em cima.
Frost levantou a cabeça do travesseiro, devagar, saindo de algum sonho profundo e misterioso. Os olhos dele estavam meio vidrados, mas quando olhou para mim deu um sorriso de satisfação.
- Não ficou satisfeita?
Deitei ao lado dele, mas as cobertas impediam que nossos corpos se tocassem da cintura para baixo.
- Nunca - eu disse.
Ele deu risada, uma risada baixa e agradável, e rolou de lado, apoiado em um cotovelo para olhar para mim. E também liberou as cobertas. Puxei-as para cobrir Kitto, que ainda parecia dormir profundamente.
Frost pôs o braço na minha cintura e me fez deitar de novo. Recostei-me nos travesseiros, e ele beijou suavemente meus lábios. Pus as mãos por cima dos ombros dele, nas costas, e o puxei para mim.
O joelho dele deslizou sobre as minhas pernas, entre elas, e ele fez aquele primeiro movimento de quadril para montar em mim, então ficou imóvel, seu olhar mudou completamente, muito atento, quase com medo.
- O que foi, Frost?
- Quieta.
Fiquei quieta. Ele era o guarda-costas. Seria o pessoal de Cel? Aquele era o último dia em que podiam me matar sem arriscar a vida de Cel. Frost rolou para fora da cama, pegou sua espada no chão, a Beijo de Inverno, e atravessou o quarto indo para as janelas com um movimento muito rápido, um raio prateado.
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Peguei minha arma embaixo do travesseiro. Kitto estava acordado e olhava em volta assustado.
Frost abriu a cortina e já ia dar um golpe com a espada, mas parou. Do lado de fora da janela havia um homem com uma câmera fotográfica. Vi quando ele levantou a cabeça atônito, Frost deu um murro no vidro da janela e agarrou o repórter pelo pescoço.
- Frost, não o mate!
Corri nua pelo quarto, com a arma na mão. Alguém abriu a porta do quarto atrás de nós, eu me virei e apontei a pistola que já estava destravada.
Era Doyle, de espada na mão. Nós nos encaramos um segundo, e ele viu a pistola na minha mão. Abaixei a arma, Doyle fechou a porta com um pontapé e entrou no quarto com passos largos. Ele não guardou a espada na bainha, jogou-a na cama e foi em direção a Frost.
A cara do repórter já estava toda roxa, ele não podia respirar. O rosto de Frost era irreconhecível, devastado pela fúria, possesso.
- Frost, você está matando o homem. Doyle foi para junto dele.
- Frost, se matar esse repórter a rainha vai castigá-lo. Parecia que Frost não estava ouvindo, que tinha ido para um lugar distante onde tudo que restava era a mão dele no pescoço do homem.
Doyle ficou atrás dele e deu-lhe um chute no fim da espinha, com tanta força que Frost caiu na janela, quebrou mais o vidro, mas largou o repórter. Ele virou com sangue escorrendo na mão e olhar de fera.
Doyle estava em posição de luta, de mãos vazias. Frost jogou a espada no chão e espelhou a posição de Doyle. Kitto se encolheu no meio da cama e ficou observando tudo de olhos arregalados.
Fui até a janela para fechar a cortina e vi os repórteres correndo na nossa direção como um bando de cães de caça. Alguns batiam fotos enquanto corriam, outros gritavam:
- Princesa, Princesa Meredith!
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Fechei a cortina e não deixei nenhuma fresta para eles espiarem, mas aquilo não ia durar. Tínhamos de ir para o quarto ao lado onde Galen e o resto haviam dormido. Mirei a arma na cabeceira de madeira da cama, ao lado dos dois guardas. Kitto viu o que eu ia fazer e se jogou no chão, do outro lado do quarto.
Disparei só um tiro, e o estampido foi como trovão no quarto. Os dois homens rodopiaram e arregalaram os olhos, espantados. Apontei a arma para o teto.
- Há uns cem repórteres que vão cair em cima de nós daqui a pouco. Precisamos ir para o outro quarto agora!
Nenhum dos dois discutiu comigo. Frost, Kitto e eu pegamos lençóis e roupas e fomos para o outro quarto antes de os repórteres começarem a entrar pela janela quebrada. Doyle foi atrás com as armas. Ele, Galen e Rhys voltaram para pegar as malas. Chamei a polícia e acusei os repórteres de terem invadido o nosso quarto.
Nós três, que estávamos sem roupa, nos revezamos no banheiro para nos vestir, não por qualquer pudor, e sim porque não havia janela no banheiro.
Quando saí de lá carregada de artigos de toalete, Doyle e Frost estavam sentados nas únicas cadeiras do quarto. Não havia mais ninguém ali. Os dois tinham aquela cara típica de guarda, indecifrável, inescrutável. Mas havia algo estranho na postura deles.
- O que aconteceu? - perguntei.
Eu estava andando normalmente. Tinha esquecido o tornozelo que devia estar luxado. Só lembrei quando Galen comentou. Frost e Doyle não disseram nada, e isso me deixou nervosa.
Os dois se entreolharam, e Doyle se levantou. Hoje ele estava de calça jeans preta, sobre bota curta de couro preto. Quase dava para confundir com sapato social. A camisa era social, de manga comprida, e também preta. Era de seda e brilhava sobre a pele negra dele. O coldre de ombro era também preto e combinava perfeitamente com tudo. Até a pistola era preta. Uma Beretta 10 milímetros, modelo mais antigo.
O cabelo parecia muito curto, cortado rente à cabeça. Ele tinha feito a trança apertada de sempre, que caía pelas costas até se perder sobre a calça preta. As orelhas pontudas faiscavam com
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brincos de prata. Os brincos e a pequena fivela prateada do cinto eram as únicas distrações na aparência monocromática dele. E tinha acrescentado uma corrente de prata em uma orelha, com um pequeno pingente de rubi.
- Temos um problema - ele disse.
- Repórteres tirando fotos pela janela, Frost e eu na cama juntos. É, também diria que temos um problema.
- Não é só aquele repórter - disse Frost.
- Eu os vi, um bando de tubarões farejando sangue. Comecei a guardar o punhado de artigos de toalete na mala que estava aberta na cama.
- Já fui alvo da atenção da mídia, mas nunca desse jeito. Frost cruzou as pernas com sua calça social cinza e exibiu o mocassim cinza-claro, sem meia. Frost nunca usava calça social suficientemente curta para mostrar as meias... era tão sem classe... O paletó feito sob medida combinava com a calça e tinha um pequeno lenço azul-claro no bolso da lapela. A camisa era branca e a gravata cinza-claro, com prendedor prateado.
Ele tinha prendido o cabelo num rabo de cavalo bem puxado, que deixava à mostra as linhas fortes e limpas do rosto. Ficava estonteante de tão lindo sem o cabelo para distrair. Parecia calmo, perfeito, nem de longe aquele homem que quase tinha me moído no banheiro na noite passada. Mas eu sabia que o outro Frost estava ali, esperando a permissão para sair.
Joguei o resto das coisas na mala e fechei o zíper. Olhei para os dois.
- Vocês estão com cara de que alguma coisa muito, muito ruim aconteceu. Que eu ainda não sei. Onde estão os outros?
Frost respondeu:
- Estão de guarda na porta e na janela. Estão tentando manter a mídia longe, mas é uma batalha perdida, Meredith.
Doyle apoiou as mãos na cômoda, de cabeça baixa. A trança grossa se enrolou na perna dele como um animalzinho de estimação.
- Vocês estão me assustando. Contem-me o que aconteceu. Frost tocou no jornal que estava na mesa ao lado dele. Foi um gesto arbitrário, mas...
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- Esse é o Sr. Louis Post Dispatch? - perguntei.
Doyle olhou imediatamente para Frost, que levantou as mãos.
- Ela tem de saber.
- É sim - disse Doyle, tenso.
- Conversei com Barry Jenkins ontem. Ele disse que ia me desmascarar, contar que eu era a princesa encantada. Imagino que cumpriu a ameaça.
Doyle deu meia-volta, encostou as nádegas na cômoda, de braços cruzados, acariciando a arma com a mão direita. Para ele aquilo era um gesto de nervosismo. Parecia uma ameaça quando ele ficava parado atrás da rainha alisando a arma, e podia ser mesmo, mas era também sinal de nervosismo.
Fui até a mesa.
- Mas o que é isso, meninos? Jenkins é um babaca, mas não ia mentir abertamente, pelo menos não no Post.
- Leia e depois diga se não temos com o que nos preocupar - disse Doyle.
A foto principal era de Galen e eu no aeroporto, na primeira página. Mas foi a legenda que chamou minha atenção. PRINCESA MEREDITH VOLTA PARA CASA PARA ENCONTRAR MARIDO. Em letras menores embaixo da foto estava escrito: Será esse?
-Jenkins pode estar chutando. Galen e eu sabíamos que havia repórteres no aeroporto.
Olhei de um para outro, e eles continuaram sérios, preocupados.
- O que houve com vocês? Todos nós já aparecemos nos jornais antes.
- Não assim - disse Frost.
- Fica melhor - disse Doyle. - Ou pior. Leia o artigo. Comecei a ler mas parei no primeiro parágrafo.
- Griffin deu uma entrevista para Jenkins. - Minha voz ficou ofegante e de repente tive de sentar na beira da cama. - Deusa nos salve.
- Sim - disse Doyle.
- A rainha já entrou em contato conosco. Vai tratar de puni-lo por ter feito essas inconfidências sobre você. Marcou uma coletiva para hoje à noite.
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- Meredith, leia o artigo, por favor - disse Doyle.
Eu li o artigo. Duas vezes. Não me importei de Griffin ter dado detalhes pessoais, mas sim de ter feito isso sem a minha permissão. Ele revelou minha vida privada para todos. Os encantados têm regras estranhas sobre privacidade. Não damos valor a segredos íntimos como fazem os humanos, mas nossa vida pessoal não pode ser espionada. Quem espionava costumava receber sentença de morte. Para Griffin isso talvez ainda valesse. A rainha ia considerar muito sem classe ter aberto o bico para um repórter.
Acabei sentada na cama olhando para o jornal, sem ver.
- Ele dá detalhes do nosso relacionamento, faz insinuações, insinuações maldosas. Sorte minha que foi para um jornal sério, e não um tablóide.
Os dois se entreolharam.
- Ah, não. Por favor, digam que estão brincando comigo. Frost esticou a mão para trás como se estivesse lendo quando saí do banheiro. E entregou-o para mim.
Deixei o jornal cair no chão todo espalhado e peguei o tablóide, lustroso e colorido, da mão dele. A foto da capa era de Griffin comigo, numa cama. Só as mãos dele impediam que meus seios ficassem completamente à mostra. Eu estava rindo. Nós dois estávamos rindo. Lembrei-me daquelas fotos. Lembrei que ele quis muito tirar as fotos. Eu ainda tinha algumas, mas não todas. Não todas.
Ouvi minha voz, e ela pareceu calma, embora distante.
- Como? Como publicaram o artigo tão depressa? Pensei que essas revistas precisassem de mais tempo para sair.
- Tudo indica que pode ser feito - disse Doyle.
Olhei para a foto. A legenda era PRINCESA MEREDITH E SEU AMANTE ENCANTADO TÊM SEUS SEGREDOS SEXUAIS REVELADOS.
- Por favor, digam que essa é a única foto.
- Sinto muito - disse Doyle.
Frost ia dar um tapinha na minha mão, mas desistiu.
- Não tenho palavras para dizer como sinto por ele ter feito isso com você.
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Olhei para os olhos cinzentos de Frost. Vi compaixão, mas não vi raiva. E naquele momento era o que eu queria.
- A rainha já sabe disso?
- Ela sabe - disse Doyle.
Fiquei parada com a revista na mão, querendo abrir para ver as outras fotos, mas não consegui. Não tinha coragem de ver. Joguei a revista nas mãos de Frost.
- É muito grave?
Ele olhou para Doyle, depois para mim. A máscara arrogante e distante se desfez um pouco, e o Frost com quem eu tinha acordado espiou do fundo dos olhos dele.
- O tablóide não usou nenhum nu total ou frontal. Fora isso, é bem grave sim.
Cobri o rosto com as mãos, com os cotovelos apoiados nos joelhos.
- Meu Deus, se Griffin vendeu essas fotos para Jenkins, para os tablóides, ele será capaz de vender para qualquer um.
Levantei como uma nadadora que volta do fundo do mar. De repente ficou difícil respirar.
- Há revistas na Europa que publicariam todas as fotos. Não me importei com as fotos em que estou nua, mas elas eram particulares, só para Griffin e para mim. Se eu quisesse publicar fotos assim, teria dito sim para a Playboy anos atrás. Meu Deus e minha Deusa, como Griffin pode fazer isso?
Tive um pensamento horrível. Olhei para Frost.
- Por favor, diga que você pegou a máquina e o filme do repórter que tentou estrangular esta manhã.
Ele me encarou, mas não queria.
- Eu sinto muito, Meredith. A máquina devia ser minha prioridade, mas deixei a raiva afetar meu raciocínio. Faria qualquer coisa para compensar isso para você.
- Frost, eles vão publicar as fotos, você entende? Fotos de mim e de você e... merda... de Kitto, todos juntos na cama. Vão encher os tablóides com elas e as de nus irão para a Europa.
Tive vontade de xingar ou gritar, mas não conseguia pensar em nada bastante forte para eu me sentir melhor.
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- Griffin devia saber o que a rainha faria com ele por causa disso - disse Doyle. - Ele terá sorte se ela não matá-lo.
Concordei com ele e tentei controlar minha respiração. Esforcei-me para só pensar no meu peito subindo e descendo. Lutei para manter a calma, mas não consegui.
- Ele causará o máximo de danos antes que o peguem. Respirei arfando três vezes, e minha voz saiu com dificuldade, mas sem falhar:
- Imagino que ele deve ter fugido para longe.
- Nós vamos encontrá-lo - disse Frost. - O mundo não é tão grande assim.
Isso me fez rir, mas o riso se transformou em choro. Escorreguei da cadeira para o chão, no meio das folhas espalhadas do Post-Dispatch. Doeu cair sentada daquele jeito. Eu estava dolorida por causa do sexo. A dor me ajudou a lembrar que as coisas não estavam tão ruins assim. Era horrível, mas eu ainda tinha acesso aos homens da corte. Ainda era bem-vinda no mundo encantado. A rainha tinha dado sua palavra... e seu poder... para me proteger do perigo. As coisas podiam ser piores. Pelo menos era isso que eu ficava dizendo a mim mesma.
Consegui controlar a respiração, mas não a raiva.
- Não pretendia prejudicá-lo na noite passada, mas agora... Peguei o tablóide da mão de Frost e me forcei a ver o que tinha dentro. Não foi a nudez parcial que me chocou. Foi a felicidade estampada nos nossos rostos, nossos corpos. Estávamos apaixonados e dava para ver. Mas se ele era capaz de fazer isso comigo, então nunca me amou de verdade. Tinha tesão por mim, ele me desejava, queria me possuir, talvez, mas amor... o amor não fazia coisas como esta.
Joguei o tablóide para o alto e fiquei vendo as páginas flutuando lentamente de volta para a terra.
- Quero que ele morra por isso. Não digam isso para a rainha. Daqui a alguns dias posso mudar de ideia e não quero que ela faça qualquer coisa drástica.
Minha voz estava gelada de raiva, o tipo de raiva que se instala no nosso coração e nunca acaba. A raiva ardente passa por
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nós e é parente próxima do fogo da paixão, mas a raiva fria, esta é parente próxima do ódio. Odiava Griffin por isso, mas não o bastante.
- Não quero que ela me mande a cabeça dele, ou o coração, num cesto. Não quero isso.
- Ela pode estar planejando matá-lo de qualquer jeito - disse Doyle.
- É, mas se fizer isso será responsabilidade dela, não minha. Não vou pedir a morte dele. Que ela chegue a isso sozinha.
Frost se ajoelhou ao meu lado, olhando para mim com aqueles olhos cinza-tempestade. Segurou minhas mãos. As dele estavam quentes. Isso queria dizer que as minhas estavam frias. Talvez eu estivesse mais perturbada do que eu pensava, talvez estivesse em choque.
- Tenho certeza de que a nossa rainha já resolveu o destino dele - disse Frost.
- Não - eu disse.
Levantei e puxei as mãos das dele, evitei seu olhar. Abracei a mim mesma porque sabia que podia confiar nos meus braços. Estava começando a desconfiar de todo mundo.
- Não, se ela pegá-lo logo, pode matá-lo. Mas quanto mais demorar a captura dele, mais criativa ela ficará.
Frost ficou ajoelhado no chão, olhando para mim.
- Se eu fosse ele, acho que ia preferir ser capturado logo, enquanto uma morte rápida ainda fosse possível.
- Ele vai fugir - eu disse. - Vai fugir para o lugar mais distante e o mais depressa que puder. Vai ganhar tempo e esperar que algum milagre o salve.
- Você o conhece tão bem assim? - perguntou Frost.
Dei risada olhando para ele. Uma risada que parecia um pouco louca.
- Pensei que conhecesse. Talvez nunca tenha conhecido de fato. Talvez tenha sido tudo mentira.
Ainda bem que não amava Frost, ainda bem que era só físico. Naquele momento eu confiei mais na atração física do que no amor. Doyle ficou de pé e segurou meus braços carinhosamente.
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- Não duvide de você por causa do Griffin, Meredith. Não deixe que ele a faça duvidar de nós.
- Como sabia exatamente o que eu estava pensando? - perguntei espantada para ele.
- É exatamente o que eu estaria pensando no seu lugar.
- Não, não é. Você estaria planejando matá-lo.
Doyle me abraçou e encostou o rosto no meu cabelo. Fiquei tensa, pouco à vontade com ele, mas não me afastei.
- É só dizer que deseja a morte dele e assim será. Escolha uma parte do corpo dele que eu vou buscar para você.
- Nós vamos buscar para você - disse Frost enquanto se levantava.
Relaxei nos braços de Doyle e passei um braço na cintura dele. Encostei o rosto na seda de sua camisa. Ouvi seu coração pulsando, forte e um pouco acelerado.
Alguém bateu na porta. Doyle inclinou a cabeça, e Frost foi abrir. Doyle sacou a arma e me fez chegar para o lado, ainda com o braço no meu ombro, de modo que seu corpo me escondia um pouco.
- É o Galen, pode abrir.
Frost espiou pelo visor com uma 44 enorme folheada a níquel na mão.
- Galen e Rhys.
Doyle abaixou a arma mas não guardou no coldre. O nível de tensão era alto, muito alto. Acho que todos esperávamos outro ataque de Cel e companhia. Sei que eu esperava e só estava paranóica por necessidade. Os guardas eram profissionalmente paranóicos.
Kitto entrou atrás dos dois. Estava de calça jeans azul-escuro, uma camisa polo amarelo-claro com um pequeno jacaré na frente e tênis branco. Tudo parecia novo em folha, duro e recém-saído da sacola.
Galen olhou para os jornais e depois para mim.
- Sinto muito, Merry.
Doyle me deixou sair de trás dele, e fui para perto de Galen. Afundei o rosto no peito dele e o abracei pela cintura. Eu me sentia
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Segura com Doyle, sentia paixão com Frost, mas eram os braços de Galen que me confortavam.
Eu queria ficar assim abraçada com ele, fechar os olhos e só. Mas havia uma coletiva de imprensa programada, e a rainha queria que chegássemos cedo à corte para poder acertar a versão da verdade que íamos dar para a mídia. Eu ia a coletivas de imprensa desde que era menina e nunca vi uma em que disséssemos a verdade, toda a verdade, com a ajuda da Deusa. Não havia como consertar o estrago que Griffin tinha feito. Ele podia ser castigado, mas a história e as fotos já estavam circulando, e nada mudaria isso. Eu nem fazia ideia de que versão satanizada da verdade seria inventada para as fotos de Frost, Kitto e eu nus e juntos. Mas se havia alguém capaz de imaginar uma mentira necessária para acobertar isso, era minha tia. Andais, Rainha do Ar e da Escuridão, podia apimentar qualquer escândalo e fazer a cabeça da mídia viajar. Enfeitiçados pelos encantos dela, os repórteres costumavam escrever o que ela mandava escrever, mas consertar aquele escândalo específico ia ser difícil, até para os talentos dela. Eu costumava torcer para viver o suficiente para ver minha tia fracassar feio. Agora eu torcia para que ela tivesse um sucesso retumbante. Era hipocrisia minha? Podia ser, ou então eu estava sendo apenas prática.
Por volta da meia-noite os últimos repórteres foram embora cheios de vinho de safras antigas, de canapés caros e das mentiras da minha tia. Mas ela reverteu tudo com muito estilo. Escolheu vestir um terninho preto de executiva, sem blusa por baixo, de modo que os seios ficassem bem insinuantes no decote do paletó, bem garota de programa chique. Ela ficou entusiasmada de eu ter voltado para visitá-la. E excitada porque eu finalmente resolvi me aboletar com algum encantado de sorte. Triste com a traição de Griffin. Um repórter perguntou a ela sobre o suposto afrodisíaco
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mágico que quase provocou um escândalo na delegacia de Los Angeles. Ela não sabia de nada. Andais não deixava ninguém mais responder às perguntas. Não sei se ela confiava no que eu diria. Os homens estavam lá só de figuração, eles nunca diziam nada.
Cel sentou à direita dela, eu à esquerda. Sorrimos um para o outro.
Nós três posamos para as fotos. Ele com seu terno monocromático de grife, preto sobre preto, eu com um pretinho também de grife e um blazer curto coberto por centenas de pedras naturais de azeviche, Andais com seu terninho de garota de programa. Parecia que íamos a um enterro muito caro, muito chique. Se um dia eu chegar a ser rainha, vou criar um novo esquema de cores na corte, qualquer coisa, menos preto.
Nessa noite a corte estava muito quieta. Cel foi levado a se preparar para seu castigo. A rainha levou Doyle e Frost para seus aposentos para ouvir os relatórios. Galen estava mancando quando a coletiva terminou, por isso Fflur o levou para botar algum unguento que apressasse sua cura. Sobraram Rhys, Kitto e Pasço para me proteger. Pasço tinha ido para o hotel na véspera, mas passou a noite no outro quarto. Seu cabelo comprido e cor-de-rosa descia até os joelhos feito cortina. Preto não era a cor dele. Fazia a pele dele ficar meio roxa e o cabelo quase castanho. Com as cores certas Pasço cintilava, mas nessa noite, não. Preto ficava melhor em Rhys, mas o que valia na roupa era a camisa azul, cor que combinava com o olho dele e que a rainha tinha permitido que usasse.
Rhys e Pasço andavam atrás de mim como bons guarda-costas. Kitto ficou ao meu lado como um cão fiel. Não foram permitidas as fotos com ele na coletiva. O preconceito contra os duendes é muito forte nas cortes. Kitto foi o único que pôde ficar com sua calça jeans e camisa polo. íamos passar a noite na corte porque era a única zona livre de repórteres num raio de cem quilômetros. Ninguém ia quebrar o vidro da janela da rainha, nem tirar fotos através de um monte de terra.
Eu tentava encontrar meu antigo quarto, mas havia uma porta no meio do corredor, uma grande porta de madeira e bronze.
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O Abismo do Desespero ficava atrás daquela porta. A última vez que vi aquela sala ela ficava perto do Corredor da Mortalidade, isto é, a sala de tortura. O Abismo supostamente não tinha fundo, o que seria impossível se fosse apenas físico, só que não era apenas físico. Um dos nossos piores castigos era ser lançado no Abismo e ficar caindo eternamente, sem nunca envelhecer, nunca morrer, preso em queda livre por toda a eternidade.
Parei no meio do corredor e deixei Pasço e Rhys me alcançarem. Kitto chegou instintivamente para o lado, para fora do alcance de Rhys. Rhys não tinha nem tocado nele, só olhou-o. O que Kitto viu naquele único olho azul sobre azul deixou o duende apavorado.
- O que foi? - perguntou Rhys.
- O que essa coisa está fazendo aqui? Ele observou a porta, de testa franzida.
- É a porta do Abismo.
- Exatamente. Devia estar a três lances de escada para baixo, no mínimo. O que está fazendo no andar principal?
- Você fala assim como se os encantados tivessem alguma lógica - disse Pasço. - O monte resolveu mover o Abismo para o andar de cima. Ele às vezes promove mudanças enormes como essa.
Olhei para Rhys, e ele concordou.
- É, às vezes.
- Defina às vezes - eu disse.
- Mais ou menos uma vez a cada milênio - disse Rhys.
- Eu simplesmente adoro conviver com gente que pensa "às vezes" em termos de cada mil anos - eu disse.
Pasço segurou a enorme maçaneta de bronze da porta.
- Permita-me, Princesa.
A porta abriu bem devagar e provou, sem sombra de dúvida, que era uma porta muito pesada. Pasço era como quase todos na corte, podia amassar uma casa pequena se encontrasse um apoio adequado, e, no entanto, abriu aquela porta como se pesasse muito.
O salão lá dentro era todo cinza-escuro, como se as luzes que funcionavam no resto do monte não funcionassem ali. Entrei naquela penumbra com Kitto nos meus calcanhares, correndo logo
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na minha frente para ficar fora do caminho de Rhys, um cachorrinho com medo de ser chutado. O salão era exatamente como eu lembrava. Um espaço enorme e redondo de pedra com um buraco redondo no chão, bem no centro. Em volta do buraco havia uma cerca branca feita de ossos, fios de prata e mágica. A cerca brilhava com glamour próprio. Alguns diziam que era enfeitiçada para evitar que o Abismo extravasasse pelo chão e engolisse o mundo. A cerca era enfeitiçada para evitar que as pessoas pulassem por cima dela, para ninguém cometer suicídio lá dentro do buraco, ou caíssem por acidente. Havia uma única maneira de passar pela cerca. Era sendo jogado por cima.
Dei uma boa distância da coleção de ossos, e Kitto se agarrou à minha mão como uma criança com medo de atravessar a rua sozinha. Havia mais uma porta no outro extremo do salão, e fomos até ela. Meus passos de salto alto na pedra ecoavam na enorme sala. A porta atrás de nós bateu ruidosamente e me fez pular de susto. Kitto puxou minha mão, querendo que eu andasse mais depressa para a outra porta. Não precisava de incentivo nenhum, mas também não ia correr de salto alto. Tinha ficado boa de um tornozelo torcido naquela semana. Bastava um.
Duas coisas aconteceram ao mesmo tempo. Vi alguma coisa com o canto do olho no lado oposto ao que estávamos do Abismo, um movimento onde não havia nada. E também ouvi um barulho atrás de nós. Virei na direção do barulho.
Rhys estava ajoelhado, com as mãos inertes ao lado do corpo e uma expressão de perplexidade. Pasço estava parado ao lado dele, com uma faca ensanguentada na mão. Rhys foi caindo para a frente devagar e despencou ainda com as mãos ao lado do corpo, abrindo e fechando a boca como peixe fora d'água.
Fui para a porta, de costas para a parede, com Kitto ao meu lado. Mas eu sabia... eu sabia que era tarde demais. O que havia do outro lado da sala se abriu feito uma cortina invisível e revelou Rozenwyn e Siobhan. Uma foi para a esquerda, a outra para a direita, para me cercar. Siobhan toda branca e fantasmagórica como um horror do Dia das Bruxas e Rozenwyn toda cor-de-rosa e lilás como uma boneca de cesto de Páscoa de criança. Uma alta, a
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outra baixa, os opostos que se moviam como dois pedaços de uma coisa só.
Encostei na parede, Kitto se encolheu ao meu lado, tentando ficar menor ainda e mais invisível.
- Rhys não está morto. Nem um golpe no coração é capaz de matá-lo - eu disse.
- Mas uma queda no Abismo sim - disse Pasço.
- Suponho que esse é o meu destino também - eu disse, e minha voz pareceu terrivelmente calma.
Minha mente se agitava, mas minha voz estava calma.
- Vamos matá-la primeiro - disse Siobhan. - Depois a jogamos no Abismo.
- Muito obrigada, é muita consideração de vocês me matar primeiro.
- Podemos deixar que morra de sede enquanto cai - disse Rozenwyn. - A escolha é sua.
- Existe uma terceira opção? - perguntei.
- Acho que não - disse Siobhan, o chiado da voz dela ecoou na sala, como se pertencesse àquele lugar.
As duas deram a volta na cerca do buraco e se aproximavam, uma de cada lado. Pasço ficou ao lado do corpo ofegante de Rhys. Eu tinha as duas facas dobráveis, mas elas tinham espadas. Tinham armas melhores e já iam me deixar sem saída.
- Vocês têm tanto medo de mim que tiveram de vir três para me matar? Rozenwyn quase me matou sozinha. Ainda tenho a marca que ela deixou nas costelas.
Rozenwyn balançou a cabeça.
- Não, Meredith, não vai nos convencer a entrar num duelo mano a mano. Recebemos ordens expressas para simplesmente matá-la, sem preliminares, por mais divertidas que sejam.
Kitto estava colado no chão, encolhido perto da minha perna.
- O que vão fazer com Kitto?
- O duende vai junto com Rhys para o Abismo - sibilou Siobhan. Saquei uma das facas dobráveis, e elas riram. Invoquei poder na outra mão, invoquei a mão da carne pela primeira vez. Esperei que doesse, mas não doeu. O poder se moveu em mim como uma
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onda: liso, vivo, cultivando meu corpo, minha mão, como algo suficientemente sólido para ser arremessado.
As duas sabiam que eu estava invocando alguma magia, porque se entreolharam. Houve um momento de hesitação, depois elas avançaram de novo. Estavam a apenas uns três metros de mim, quando Kitto se projetou feito leopardo, dando o bote em Siobhan. Ela o golpeou com a espada e varou o corpo dele, mas não atingiu nenhum órgão vital, e ele montou sobre ela atacan-do-a com as garras, mordendo, lutando como um animal elegante.
Rozenwyn correu para mim, com a espada em riste, mas eu estava esperando isso e mergulhei no chão. Senti o vento quando a espada passou por mim. Agarrei a perna dela, toquei no tornozelo, e a perna dela se desmanchou. Para fazer o que tinha feito com Nerys, precisava atingir o centro do corpo dela, mas Rozenwyn nunca me daria a chance de alcançá-la com um golpe no meio do corpo.
Ela caiu berrando, vendo sua bela perna comprida murchar, virar uma bola de osso e carne em ondas. Enfiei a faca na garganta dela, não para matar, mas para distrair. Peguei a espada da mão dela, que de repente ficou inerte. Ouvi Pasço correndo atrás de mim. Caí de joelhos e lutei contra a vontade de olhar para trás, mas não tive tempo. Senti a espada dele passar por cima da minha cabeça e golpeei para trás e para cima com a espada de Rozenwyn, procurando desesperadamente o corpo dele. Encontrei-o. A espada cortou fundo o corpo de Pasço e até rezei agradecendo antes de rolar para longe dele. Ele caiu sobre a espada que enterrou nele até o cabo e ficou emitindo ruídos líquidos do fundo da garganta. Então aconteceu uma coisa que eu não tinha previsto. Pasço rolou para cima da perna arrebentada da irmã, e a bola de carne se espalhou sobre o rosto dele. Pasço nem teve tempo de gritar porque a carne da perna da irmã cobriu a dele, e seu corpo começou a derreter no dela. Ele batia com as mãos no chão, e a cabeça já tinha sido engolida pelo monte de carne em que tinha se transformado a parte de baixo do corpo da irmã.
Rozenwyn arrancou a minha faca do pescoço. O corte sarou na mesma hora, e ela começou a berrar. Estendeu a mão cor-de-rosa para mim.
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- Meredith, Princesa, não faça isso, eu imploro!
Recuei para a parede só observando, porque não podia fazer aquilo parar. Não sabia como. Foi um acidente. Eles eram gêmeos, tinham dividido um ventre antes, e essa podia ser a causa disso. Um acidente bizarro em todos os sentidos. Se eu tivesse ideia de por onde começar, faria aquilo parar. Ninguém merecia aquilo.
Parei de olhar para aquele horror de Rozenwyn e o irmão virando um só e procurei Siobhan e Kitto. Siobhan estava toda ensanguentada, arranhada e mordida, mas não ferida para valer. Mas estava de joelhos, com a espada no chão, na frente dela. Siobhan rendia sua arma para mim. E Kitto estava deitado, ofegante, ao lado dela. O buraco no peito dele já estava fechando. Ela podia ter me matado enquanto eu observava Rozenwyn e Pasço se desmanchando, mas Siobhan, que era o conteúdo dos pesadelos, viu horrorizada a carne rosa e lilás consumindo os dois encantados. Ficou apavorada demais para se arriscar a chegar perto e receber um golpe mortal. Estava com medo... de mim.
O rosto de Rozenwyn se desfez por último, berrando, como se tentasse manter a cabeça fora da areia movediça, mas foi engolida, e a massa de carne e de órgãos ficou pulsando no chão de pedra. Dava para ouvir os gritos deles, dessa vez eram duas vozes, duas vozes sem saída. Meu coração batia nos meus ouvidos, e tudo que pude ouvir foi o horror que senti diante daquela visão. Não era só Siobhan que estava com medo.
Rhys se levantou cambaleando, segurando sua espada. Então caiu de joelhos ao meu lado, olhando para a coisa no chão.
- Senhor e Senhora, salvai-nos.
Não consegui falar, mas finalmente minha voz voltou, baixa e rouca:
- Desarme Siobhan e depois mate aquela coisa.
- Como? - perguntou Rhys.
- Corte, esquarteje tudo, Rhys, faça-a em pedaços até parar de se mexer.
Olhei para a espada de Rozenwyn. Era única, feita sob medida para a mão dela, com cabo de flores feitas de pedras preciosas. Fui indo para a porta com a espada na mão.
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- Aonde você vai? - perguntou Rhys.
- Tenho de transmitir um recado.
A imensa porta de bronze se abriu para mim como se uma mão gigantesca a puxasse. Passei por ela, e ela se fechou. O monte pulsava e sussurrava à minha volta. Fui procurar Cel.
Ele estava nu, acorrentado ao chão de um quarto escuro. Ezekial estava com ele, nosso torturador, de luva cirúrgica, segurando um vidro de Lágrimas de Branwyn. A tortura ainda não tinha começado, de forma que os três meses também não, por isso eu podia exigir a vida de Cel.
A rainha me viu primeiro e notou logo a espada na minha mão. Doyle e Frost estavam com ela, testemunhas da vergonha do filho.
- O que aconteceu? - ela perguntou.
Encostei a espada no peito nu de Cel. Ele a reconheceu... vi nos olhos dele.
- Eu teria trazido uma orelha de Rozenwyn e de Pasço, mas nenhum dos dois tem orelha.
- O que fez com eles? - ele perguntou baixinho. Levantei a mão esquerda logo acima do corpo dele.
- Meredith, não, você não pode fazer isso - disse a rainha.
- Eles compartilharam um ventre uma vez, agora compartilham a carne. Devo mandar jogá-los no Abismo aonde você pretendia lançar Rhys e Kitto? Devo deixar que caiam para sempre como aquela bola de carne latejante?
Vi o medo nos olhos dele, mas por trás a dissimulação.
- Eu não sabia que eles iam fazer isso. Não fui eu que ordenei isso.
Eu me levantei e acenei para Ezekial.
- Comece.
Ezekial olhou para a rainha. Ela confirmou com a cabeça, e ele se ajoelhou ao lado de Cel para cobri-lo com o óleo.
- Por isso quero que ele fique aqui assim, sozinho, por seis meses, a sentença completa - eu disse a Andais.
Andais ia protestar, mas Doyle disse:
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- Sua Majestade, precisa começar a tratar dele como ele merece.
Ela aceitou.
- Seis meses. Dou minha palavra.
- Mãe, não, não!
- Quando terminar, Ezekial, tranque o quarto. Quando Andais saiu, Cel ainda gritava por ela.
Vi Ezekial cobri-lo com o óleo, vi o corpo dele ganhar vida. Frost e Doyle ficaram ao meu lado. Cel olhou para mim enquanto a mágica acontecia, com uma expressão de quem não estava pensando em mim como prima.
- Eu ia apenas matá-la, Meredith, mas agora não. Quando sair daqui vou foder com você, foder e foder até você engravidar. O trono é meu, nem que eu tenha de consegui-lo através desse seu corpo branco como lírio.
- Se chegar perto de mim outra vez, Cel, eu te mato.
Dito isso eu saí do quarto. Doyle e Frost vieram comigo, um de cada lado como bons guarda-costas. A voz de Cel nos seguiu pelo corredor. Ele berrava meu nome:
- Merry, Merry!
Cada vez mais histérico do que antes.
Muito depois de não poder mais escutar seus berros, eles continuaram ecoando nos meus ouvidos.
A morte de Pasço significava que a rainha precisava de um novo espião para mandar para Los Angeles comigo. Ela parecia meio insegura com os gritos de Cel ainda ecoando pelos corredores. Pude pressioná-la para aceitar um guarda que não era exatamente um de seus bichinhos de estimação. Nicca tem pavor da minha tia, por isso contará tudo para ela, mas ele também nos ajudou depois que os espinhos tentaram me sugar até secar. Doyle confia nele, e eu confio em Doyle. A rainha diz que Nicca não é um
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amante inspirado, mas a embalagem é bonita. O pai dele era um dos semifadas, algo com asas de borboleta. A mãe dele era uma das damas da corte, uma encantada sangue puro. A rainha mandou Nicca tirar a camisa para mim, para mostrar que ele tinha asas de borboleta gigantes tatuadas nos ombros, braços e costas, que desapareciam dentro da calça. A genética tentou dar-lhe asas apesar de ele ter o tamanho de um homem. Nenhum artista tatuador tinha feito algo tão lindo como as asas nas costas de Nicca. A rainha queria que tirasse toda a roupa para eu poder ver até onde ia o desenho, mas preferi manter certo mistério. Nicca pareceu assustado o tempo todo. Ele olhava para a rainha Andais como um pardal aleijado olha para uma serpente, só imaginando quando a primeira grande mordida vai furar sua carne. Tirei-o da presença dela assim que pude, sem ser grosseira. Doyle garante que Nicca serve, desde que a rainha não esteja por perto. Adoraria saber o que ela fez com ele para provocar tanto medo... mas talvez não. Quanto mais idade tenho, mais me convenço de que a ignorância pode não ser uma bênção, mas às vezes é a melhor alternativa.
Viajamos de volta para Los Angeles no primeiro voo que conseguimos. Tivemos de chamar a polícia para manter a imprensa afastada. As fotos de Frost, Kitto e minhas já estavam nos tablóides. Eu soube que os tablóides europeus exibiam as fotos de nudez completa sem tarjas. O que todos queriam saber era qual dos dois, Frost ou Kitto, era meu noivo. Eu respondia que não era nenhum dos dois, e uma repórter esperta perguntou se eu era polígama. Apontei para todos os homens bonitos em volta de mim e disse a ela:
- Você não seria?
Os repórteres riram e adoraram. Como não podemos fazer outra coisa, dançamos conforme a música. A Princesa Meredith está escolhendo um noivo. Ou dois.
Jeremy levou Uther ao aeroporto para nos receber. Uther usou o "olhar terrível" para abrir caminho entre os repórteres. Se você tem quatro metros de altura, de músculos e uma fileira dupla de presas sinistras saindo da cara, até os repórteres dão passagem. Jeremy se esquivou de perguntas, disse que sim, a princesa trabalhava para a Agência Grey de Detetives. Já tínhamos nos falado pelo
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telefone, porque Jeremy achava que eu não ia voltar a trabalhar. Mas eu me sentia muito melhor trabalhando como detetive do que sendo princesa dos encantados. Além do mais, tinha muito que atualizar. Ringo recebeu alta do hospital e estava quase curado do ataque do ogro na van. Roane estava de volta das suas férias no mar. Ele me deu uma concha branca, brilhante, uma versão mais refinada e mais rosada da concha abalone. Era linda e significava mais para mim do que qualquer joia, porque significava mais para Roane. Ele deixou de ser meu amante sem ter de ser avisado, mas eu disse a ele que se a relação comigo fez com que ele ficasse viciado em encantadas, que era bem-vindo. Parece que ele está bem, sua nova pele de foca foi a cura para a saudade de encantadas. Fico feliz, porque no momento tenho homens suficientes na minha vida.
Tenho, pelo menos, um guarda-costas comigo o tempo todo. Doyle prefere dois. Serão vinte e quatro horas por sete, por isso eles fazem um rodízio e variam esse rodízio para nenhum guarda poder ter certeza de quem estará de plantão e quem não estará. Deixo Doyle cuidar dos detalhes. É a função dele. Quando não estão guardando meu corpo, estão tentando se inserir no novo mundo para onde os arrastei. Rhys, é claro, quis trabalhar para a agência de detetives e ser um detetive na vida real. Jeremy não ia discutir com um encantado puro-sangue que queria entrar para a equipe. Assim que a notícia se espalhou, parecia que todas as celebridades da região queriam um encantado como guarda-costas. O trabalho ia bem e em geral era muito fácil - apenas ficar por perto e parecer decorativo, sem representar nenhum perigo real, por isso Galen e Nicca também se candidataram. Doyle diz que não protege mais ninguém, só a mim. Frost concorda com ele. Kitto quer apenas ficar perto de mim e passaria a maior parte do tempo embaixo da minha mesa, se eu deixasse. Não está se adaptando bem a essa primeira visão do século vinte. O pobre duende nunca tinha visto um carro, nem uma televisão... e agora ele passa os dias num arranha-céu em uma das cidades mais modernas do mundo. Se ele não começar a se adaptar, terei de mandá-lo de volta para Kurag, e aí o rei dos duendes enviará um substituto.
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Digamos que é um palpite: aposto que o próximo duende não será tão legal.
O que a semifada fez com Galen deve ter sido mais do que uma mera mordida, porque ele não está sarando num determinado lugar como deveria. Consultamos um médico e o melhor curandeiro mágico da cidade para tratar dele. Nenhum dos dois ajudou muito. Se a ciência e a magia continuarem nos desapontando, talvez eu precise ter uma conversa com a rainha Niceven para descobrir que diabo elas fizeram com ele. Acho que ele deu para trabalhar de guarda-costas para os outros, porque ficar perto de mim e não poder me possuir, quando todos os outros podem, é difícil demais para ele. Para mim também. Todo aquele tesão, aqueles anos todos esperando, e continuamos esperando.
A Agência Grey de Detetives está ficando tão fina, tão alta roda, que Jeremy está entrevistando novos candidatos e falando de mudar para um escritório maior. Houve alguns momentos tensos entre Jeremy e os guardas, porque eles eram profanos, e Jeremy ainda implicava com eles. Galen e Rhys saíram com ele para beber, eu não sei o que conversaram, mas no dia seguinte o nível de tensão tinha baixado. Era a cumplicidade masculina funcionando.
A viúva de Alistair Norton, Frances Norton, e Naomi Phelps, a ex-amante, estão bem. Foram morar juntas e, se fossem um casal heterossexual, eu diria que íamos receber um convite de casamento em breve. Elas parecem felizes, e nenhuma lamenta a morte de Alistair. A polícia investigou alguns companheiros dele, adoradores dos encantados. Dois deles morreram misteriosamente logo antes de a polícia encontrá-los. Não espero grande coisa da saúde dos adoradores de encantados. A rainha, ou os capangas de Cel, ou todos eles, estão limpando a sujeira. A rainha me garantiu que estava faltando só um vidro de Lágrimas de Branwyn do seu estoque particular, por isso o perigo para os humanos tinha acabado. Ela jurou que era verdade, e nenhum encantado volta atrás num juramento, nem mesmo Andais. Praticamente não existe insulto pior para os encantados do que ser um descumpridor de promessas. Depois disso ninguém mais fará negócios com você. Ninguém irá para a cama com você, menos ainda vai querer casar
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Com você. Andais está em terreno incerto com os encantados agora. Ela não correria esse risco. Há boatos sobre uma revolução, e eu sei que os seguidores de Cel na corte estão por trás disso. Já sugeriram que Barinthus está nessa, que ele pretende me fazer rainha estando eu grávida ou não. "Barinthus Fazedor de Rainha" é como o chamam pelas costas. Fiz Barinthus prometer que não vai fazer nada disso, mas ele se recusa a vir para Los Angeles, diz que precisamos ter pelo menos um amigo poderoso para falar de mim na corte. Talvez tenha razão, mas estou começando a imaginar o que ele anda dizendo na corte, sem que eu esteja lá para negar ou confirmar.
Doyle compartilhou a minha cama, mas não compartilhamos nossos corpos. Temos dormido juntos, literalmente, mas sem sexo. Ele diz que a expectativa tornará tudo melhor ainda. Eu não sei quais são os planos dele, mas quando olho para seus olhos negros sei que ele tem um plano, um objetivo. Quando pergunto qual é, ele diz:
- Só quero garantir sua segurança e vê-la rainha, sucedendo sua tia.
Não acredito nele. Ah, eu acredito que ele deseja a minha segurança e acredito que quer que eu governe depois de Andais, mas não é só isso. Quando o pressiono, ele sorri e balança a cabeça. Eu já devia saber que quando a Escuridão da rainha guarda segredos não há como arrancá-los dele até ele estar preparado para contar. Até ficarmos juntos de vez, até eu saber exatamente o que ele está pensando, ele continua sendo a Escuridão da rainha, não minha. Não é a ausência de sexo, mas a quantidade de segredos que me impede de conhecer Doyle completamente. Se eu não puder possuí-lo de corpo e alma, como posso confiar nele? A resposta é que eu simplesmente não posso.
Voltei a trabalhar de detetive em Los Angeles, mas agora com meu verdadeiro nome. Tenho acesso a amantes encantados e posso voltar para o mundo encantado a hora que quiser. Tenho tudo que mais quis, mas há uma tensão que nunca vai embora. Porque eu sei, como dizem, que essa história ainda não acabou. Cel continua vivo, seus seguidores temem que eu vá destruí-los se subir
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ao trono. Revoluções já aconteceram por muito menos. A mídia está sempre presente como uma roda de tubarões mantidos longe só com ordens judiciais. Estão perseguindo o ângulo do sexo e do romance. Se soubessem quanta coisa além disso existe nessa história... Griffin não foi encontrado. Pode estar morto, e ninguém me contou. Mas de alguma forma, conhecendo minha tia, acho que ela teria empacotado e enviado para mim algumas partes preferidas. Eu devia estar contente e estou, mas não tenho paz. Estamos na calmaria que antecede a tempestade, e vai ser um diabo de tempestade. Vou enfrentar essa tempestade num barco feito de carne e ossos, dos corpos dos meus guardas e a cada carícia, cada olhar, eu fico mais e mais relutante de desistir de qualquer um deles. Já perdi muita gente na vida. Dessa vez gostaria de experimentar não perder ninguém. Eu abandonei minha religião com a minha família, mas montei um altar no meu quarto e voltei a rezar. Tenho rezado com muito afinco, mas sei melhor do que a maioria que, apesar de receber sempre uma resposta às orações, às vezes essa resposta não é como queremos que seja. Eu não quero o trono se tiver de pisar nos corpos dos meus amigos e amantes para conseguir. Não existe nada que eu queira tanto assim... nunca quis. Sempre achei que o amor é mais importante do que o poder, mas às vezes não se pode ter amor sem o poder para mantê-lo em segurança. Rezo pela segurança dos que amo. Pode ser que na verdade eu esteja rezando pelo poder, poder suficiente para protegê-los. Que seja. O que for preciso para garantir a segurança deles, mesmo que para isso eu tenha de ser rainha. Não posso ser rainha enquanto Cel continua vivo, não importa o que a rainha pense. Rezo pela segurança daqueles a quem quero bem, e o que eu realmente peço é o poder, o trono e a morte do meu primo. Porque essas três coisas têm de acontecer para todos terem segurança. Dizem que devemos tomar cuidado com o que desejamos. Bem, tomem mais cuidado ainda com suas orações. Certifiquem-se de que é o que querem. Nunca se sabe quando uma divindade vai dar exatamente o que pedimos.
Laurell K. Hamilton
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