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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SEGREDO DE CONFISSÃO / Jack Higgins
SEGREDO DE CONFISSÃO / Jack Higgins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Os russos o haviam treinado e infiltrado no ponto mais explosivo do mundo livre — a Irlanda do Norte. Ele tinha uma cobertura perfeita e um plano infernal... matar o homem mais querido do mundo.
Era tarde demais quando os russos mudaram de ideia. Naquela altura, ele já estava fora do alcance da KGB. Em desespero, o IRA tentou desviá-lo de sua rota. Mas, quando se tratava de se ocultar, ele era ainda mais hábil do que os irlandeses. Por isso, Tony Villiers, do Serviço Secreto inglês, teve que fazer o que mais odiava: forçar sua organização a pedir ajuda a Liam Devlin, antigo inimigo de morte e temido terrorista irlandês, a única pessoa capaz de deter o assassino antes que sua vítima inocentemente recebesse a morte de braços abertos...
No final da década de 50, um coronel da KGB, fanático por behaviorismo, transforma-se num dos maestros da Guerra Fria. Seu trabalho: treinar e infiltrar agentes soviéticos na Europa Ocidental. A missão destes agentes: provocar e semear o caos, a desordem e o pânico nas populações.
Trata-se de um plano que faz parte de um grande complô para desestabilizar os aliados dos Estados Unidos; um plano a cargo da temível SMERSH, organização especializada em assassinatos políticos, terrorismo e sabotagem; um plano que transforma o coronel num poderoso general obcecado pela morte.
Uma verdadeira máquina de matar sai em campo. O agente de codinome Cuchulain é enviado ao Ulster e hiberna, protegido pelo mais hábil dos disfarces. Vai acordar quando o Exército Republicano Irlandês, o IRA, recomeçar sua segunda e longa campanha de terror contra Londres. Sua função é abortar todas as tentativas de negociação de um acordo pacífico entre o governo britânico e os nacionalistas irlandeses. Cuchulain escolhe, criteriosamente, alvos contraprodutivos e os mata, de forma fria e calculista, jogando católicos e protestantes numa luta sem tréguas. Cuchulain é um “irlandês” acima de qualquer suspeita, infiltrado estrategicamente nos mais altos escalões do IRA.
Cuchulain, ator de muitas faces, depois de mais de vinte anos escondido na Irlanda, não é mais controlado por seus patrões soviéticos. É um homem só, ressentido, transformado em psicopata pelos russos, que roubaram os anos mais preciosos de sua juventude; é um homem sem pátria, que reconhece somente uma autoridade: Deus.
E, mesmo assim, resolve assassinar uma das pessoas mais amadas do mundo: João Paulo II. A morte do papa será a última cena do último ato do teatro que foi sua vida.
Mas quem é ele afinal? Como detê-lo?
Segredo de Confissão é mais um best-seller de Jack Higgins, uma ficção política perigosamente próxima da verdade, que expõe o terrorismo internacional de forma direta, poética e humana.

 


 


Quando o Land Rover virou a esquina no fim da rua, Kelly passava pela igreja do Santíssimo. Moveu-se até o pórtico rapidamente, abriu a pesada porta e entrou, mantendo-a parcialmente encostada de modo que pudesse ver o que estava acontecendo.

O Land Rover fora despido da capota e de vários acessórios, tanto que o motorista e os dois policiais agachados na parte traseira estavam completamente expostos.

Vestiam o inconfundível uniforme verde-escuro da Polícia Real do Ulster,1 submetralhadoras Sterling prontas para ação imediata. Desapareceram pela estreita rua abaixo, rumando para o centro de Drumore, e Kelly ficou parado dentro da igreja por um momento na segurança da semiescuridão, consciente daquele odor familiar.

— Incenso, velas e água benta — disse ele bem baixo, e seu dedo reagiu, mergulhando no recipiente de granito atrás da porta.

— Posso fazer algo por você, meu filho?

A voz era pouco mais que um murmúrio, e, enquanto Kelly se virava, um padre moveu-se para fora da escuridão, um velho numa batina surrada, os cabelos muito brancos, brilhantes à luz das velas. Carregava um guarda-chuva.

— Estou apenas fugindo da chuva — disse Kelly. Ele ficou parado lá, ombros calmamente curvados, mãos enterradas nos bolsos da velha capa de chuva marrom. Era pequeno. Um metro e sessenta, setenta no máximo, não muito mais que um garoto, e ainda assim era um pálido rosto do diabo que se via sob a aba do velho chapéu de feltro, olhos negros e preocupados que pareciam enxergar lá fora, dando a entender alguma coisa a mais. O velho padre viu e compreendeu tudo. Sorriu, gentilmente.

— Acho que você não mora em Drumore, mora?

— Não, padre, estou apenas de passagem. Marquei encontro com um amigo aqui num pub chamado Murphy's.

Sua voz carregava o sotaque pesado e indisfarçável de um homem do Ulster. O padre disse: — Você é da República?

— Dublin, padre. Conhece esse lugar, o Murphy's? É importante. Meu amigo prometeu uma carona para Belfast. Tenho chance de trabalho lá.

O padre assentiu. — Vou mostrar a você. É bem no meu caminho.

Kelly abriu a porta, o velho saiu. Agora chovia forte, e ele abriu o guarda-chuva. Kelly abrigou-se a seu lado, e caminharam pela calçada. Havia o som de uma banda de metais tocando um velho hino, Abide with me, e vozes se elevavam, melancólicas, na chuva. O velho padre e Kelly pararam, olhando abaixo a praça da cidade. Havia um memorial de guerra, feito de granito, coroas de flores ao pé do monumento.

Uma pequena multidão se agrupava em volta, a banda ao lado. Um clérigo da Igreja da Irlanda conduzia o serviço. Quatro velhos seguravam bandeiras orgulhosamente debaixo da chuva, embora a Union Jack2 fosse a única familiar a Kelly.

— O que é? — perguntou ele.

— O Dia do Armistício, para lembrar os mortos das duas guerras mundiais. Aquilo lá embaixo é o destacamento local da Legião Britânica. Nossos amigos protestantes gostam de segurar firme o que eles chamam de sua herança.

— Então é isso? — disse Kelly.

Continuaram a descer a rua. Na esquina, uma garotinha, não mais de sete ou oito anos, estava parada. Usava uma velha boina dois números maior, como a capa. Havia furos nas meias, e os sapatos estavam em péssimas condições. Seu rosto era pálido, a pele esticada firmemente sobre maçãs do rosto proeminentes, mas, não obstante, os olhos castanhos eram atentos e inteligentes, e ela esboçou um sorriso a despeito do fato de que suas mãos, segurando uma espécie de tabuleiro de papelão, estavam azuis de frio.

— Olá, padre! — disse ela. — Quer comprar uma papoula?

— Minha pobre criança, você deveria estar em casa num dia como este.

Ele achou uma moeda no bolso e deslizou-a para dentro da latinha, pegando uma papoula escarlate.

— À memória dos nossos gloriosos mortos — disse a Kelly.

— Verdade? — Kelly virou-se para dar com a garotinha segurando timidamente uma papoula em sua direção.

— Compre uma papoula, senhor.

— E por que não?

Ela prendeu a flor na capa de chuva dele. Por um momento Kelly olhou fixamente para aquele rostinho cansado, olhos negros, e então praguejou abafado pela respiração. Tirou uma carteira de couro do bolso, abriu-a, puxou duas notas de uma libra. Ela o encarou, atônita, e ele enrolou as notas e jogou-as na latinha. Então, gentilmente, tirou o tabuleiro de papoulas das mãos dela.

— Vá para casa — disse mansamente. — Você vai achar o mundo frio demais muito em breve, criança.

Havia perplexidade no rosto dela. Não compreendeu, mas deu as costas e foi embora.

O velho padre disse:

— Estive no Somme, mas a maioria ali — ele apontou para a multidão no memorial — deveria mesmo esquecer aquilo. — Ele balançou a cabeça, e continuaram a andar pela calçada. — Muitos morreram. Nunca tive chance de perguntar se um homem era católico ou protestante.

Ele parou e relanceou os olhos para o outro lado da rua. Uma placa escura dizia Murphy's Select Bar.

— Então, aqui estamos. O que você vai fazer com elas?

Kelly baixou os olhos para as papoulas.

— Sabe Deus.

— Eu costumo achar que Ele sabe.

O velho apanhou uma cigarreira de prata no bolso e escolheu um cigarro sem oferecer a Kelly. Expirou a fumaça, tossindo.

— Quando eu era um padre jovem, visitei uma velha igreja católica de Norfolk, em Study Constable. Lá existia um famoso afresco medieval de algum gênio desconhecido. A morte com capuz preto e manto vem para reclamar sua colheita. Eu a vi hoje de novo em minha própria igreja. A única diferença é que usava um chapéu de feltro e uma velha capa de chuva. — Ele tremeu de repente.

— Vá para casa, padre — disse Kelly, gentil. — Está muito frio aqui fora.

— Sim — disse o velho. — Decididamente, está muito frio.

Ele seguiu em frente, enquanto a banda começava a tocar um novo hino, e Kelly desviou, caminhou até os degraus do pub e empurrou a porta aberta. Viu-se dentro de uma sala comprida e estreita, o carvão da lareira queimando numa das extremidades. Havia várias mesas de ferro fundido e cadeiras, um banco de madeira ao longo da parede. O bar era de mogno escuro com tampo de mármore, um trilho de metal ao nível dos pés. Havia também a usual exposição de garrafas espremidas contra um grande espelho, com folhas douradas lascadas, revelando gesso barato. Não havia fregueses, somente o barman debruçado sobre as serpentinas de cerveja, um homem pesado, quase calvo, rosto oleoso, a camisa sem colarinho suja no pescoço.

Levantou os olhos para Kelly, parando nas papoulas. — Eu tenho uma dessas.

— Todos nós temos, não? — Kelly colocou o tabuleiro na mesa e se debruçou no bar. — Onde está todo mundo?

— Na cerimônia da praça. Esta é uma cidade protestante, filho.

— Como sabe que não sou um deles?

— Sou taverneiro há vinte e cinco anos ou não? Sem desconfiança. O que vai ser?

— Bushmills.3

O gordo fez um gesto de aprovação e alcançou uma garrafa.

— Um homem de gosto.

— Seu nome é Murphy?

— É assim que me chamam. — Ele acendeu um cigarro. — Você não é destas bandas.

— Não, eu pensava em encontrar um amigo aqui. Talvez o conheça.

— Qual é o nome dele?

— Cuchulain.

O sorriso sumiu completamente do rosto de Murphy. — Cuchulain — ele sussurrou. — O último herói das trevas.

Murphy disse: — Deus, mas vocês gostam de um melodrama. Vocês, caras. Parece aquelas peças horrorosas que passam na TV sábado à noite. Você foi instruído para não carregar uma arma.

— E daí? — disse Kelly.

— Tem havido muita atividade policial. Revista pessoal. Eles o desarmariam por segurança.

— Não estou armado.

— Ótimo.

Murphy pegou uma grande sacola marrom sob o balcão.

— Atravessando reto a praça, fica o quartel da polícia. O caminhão de provisões atravessa os portões diariamente ao meio-dia em ponto. Dê um jeito de amarrar ou jogar isso na traseira do caminhão. Vai ser o suficiente para arrasar meio quartel. — Ele enfiou a mão na sacola. Houve um clique audível. — Pronto, você tem cinco minutos.

Kelly pegou a bolsa e dirigiu-se para a porta. Ao alcançá-la, Murphy chamou.

— Ei, Cuchulain, herói das trevas! — Kelly virou-se, e o gordo suspendeu o copo, brindando: — Você sabe o que eles dizem. Talvez você morra na Irlanda.

Havia algo naqueles olhos, um escárnio que retalhou Kelly como um fio de navalha, quando ele saiu e começou a cruzar a praça. A banda executava outro hino, e a multidão cantava, manifestando disposição apesar da chuva. Ele relanceou os olhos sobre os ombros e viu que Murphy estava de pé no alto dos degraus do lado de fora do pub. Estranho aquilo, e então o taverneiro acenou várias vezes, como que sinalizando para alguém, e com um rugido repentino o Land Rover saiu de uma rua anexa à praça, derrapando de lado a toda velocidade.

Kelly começou a correr, escorregou nas pedras molhadas e caiu sobre um joelho. A coronha de uma Sterling vibrou dolorosamente em seus rins. Ao gritar, o motorista, que ele percebeu ser um sargento, pisou na mão estendida de Kelly com uma pesada botina e pegou a sacola. O homem virou-a de cabeça para baixo, e um relógio de cozinha de madeira ordinária caiu. Ele arremessou o relógio como uma bola de futebol na direção da multidão da praça, que se dispersou.

— Não dá nem para usar — gritou o sargento. — Isso é um traste.

Ele se abaixou, agarrou Kelly pelo cabelo mais longo da nuca e disse: — Você nunca aprende, não é, seu imbecil? Você não pode confiar em ninguém, meu filho. Eles devem ter lhe ensinado isso.

Kelly fixou o olhar por cima do ombro do sargento, em Murphy, de pé nos degraus fora do bar. Então, um informante. A maldição da Irlanda. Não, ele ainda não estava com raiva. Agora estava apenas frio; frio como gelo, a respiração lenta, para dentro e para fora dos pulmões.

O sargento o tinha pelo cangote, ajoelhado, subjugado como um animal. Curvou-se, passando as mãos pelas axilas e pelo corpo todo de Kelly, procurando uma arma. Então empurrou-o, ainda de joelhos, contra o Land Rover.

— Você deveria ter ficado em sua casa nos pântanos.

Kelly começou a endireitar o corpo, as duas mãos na coronha da pistola Browning que colocara com fita adesiva no lado interno da perna, pouco acima do tornozelo esquerdo. Libertou a arma, virou-se e atingiu o sargento no coração. A força do disparo tirou do chão os pés do sargento, que se chocou contra o policial parado perto dele. O homem rodopiou, tentando manter o equilíbrio, e Kelly o baleou nas costas, a Browning já apontando para o terceiro policial, alarmado, do outro lado do Land Rover, levantando a submetralhadora muito tarde, enquanto a terceira bala de Kelly o pegava na garganta, jogando-o contra o muro.

A multidão estava se dispersando, mulheres gritando, alguns integrantes da banda deixando cair os instrumentos. Kelly já estava completamente de pé, muito calmo em meio à carnificina, e olhou através da praça para Murphy, que permanecia como que congelado, no alto dos degraus fora do bar.

A Browning subiu quando Kelly fez pontaria, e uma voz gritou em russo através de um megafone: — Não, Kelly! Basta!

Kelly girou, baixando a arma. O homem com megafone avançando pela rua vestia o uniforme de um coronel da KGB, nos ombros um grande casaco militar fustigado pela chuva. O homem a seu lado acabava de entrar nos trinta, alto e magro, os ombros inclinados para a frente. Vestia um impermeável de couro, tinha cabelos louros e óculos de aro de metal. Atrás deles, vários grupos de soldados russos, rifles em posição, emergiram das ruas laterais e marcharam aceleradamente, curvados, rumo à praça. Estavam em trajes de combate e traziam as insígnias da Iron Hammer Brigade, comandos das forças especiais de elite.

— Bom garoto! Agora abaixe a arma! — falou o coronel.

Kelly se virou, o braço balançou para cima, e ele fez fogo uma só vez, um tiro perfeito, considerando a distância, e quase toda a orelha esquerda de Murphy desintegrou-se.

O gordo gritou, a mão se movendo para o lado da cabeça, sangue escorrendo através dos dedos.

— Não, Mikhail! Chega! — gritou o homem do casaco de couro.

Kelly virou-se para ele e sorriu, dizendo em russo: — Claro, professor, como quiser — e colocou a Browning cuidadosamente no capô do Land Rover.

— Achei que você foi treinado para fazer o que foi dito — comentou o coronel.

Um tenente do exército se adiantou e falou num tom de subalterno: — Um deles ainda está vivo, dois morreram, coronel Maslovsky. Quais são as ordens?

Maslovsky ignorou-o e disse a Kelly: — Não era para você estar armado.

— Eu sei — disse Kelly. — Por outro lado, de acordo com as regras do jogo, Murphy não era um informante. Disseram-me que ele era do IRA.4

— Então, você sempre acredita no que lhe dizem?

— O Partido diz no que devo acreditar, camarada coronel. Talvez tenha um novo manual de regras para mim.

Maslovsky estava irado, e isso ficou evidente. Não costumava ser alvo de atitudes daquele tipo, vindas de quem quer que fosse. Abriu a boca para destilar sua raiva, e houve um grito repentino. A garotinha que vendera as papoulas a Kelly abriu caminho através da multidão, aos empurrões, e caiu de joelhos ao lado do corpo do sargento de polícia.

— Papai! — soluçou em russo. — Papai! — Olhou para cima até alcançar Kelly, as faces lívidas. — Você o matou! Você assassinou o meu pai!

Estava sobre ele como uma jovem tigresa, unhas procurando o rosto do homem, gritando histericamente. Ele a segurou pelos pulsos finos, e repentinamente uma força descomunal saiu de dentro da garota, que mergulhou contra ele. Enlaçou-a, agarrando-a, alisando seus cabelos, murmurando em seu ouvido.

O velho padre destacou-se da multidão. — Eu a levo — ele disse, as mãos suaves nos ombros da menina.

Afastaram-se, a multidão abrindo caminho para deixá-los passar.

Maslovsky disse ao tenente: — Certo, vamos limpar a praça. — Virou-se para o homem do impermeável: — Estou cheio dessa eterna chuva ucraniana. Vamos voltar para dentro, e traga seu aluno. Precisamos conversar.


A KGB é o maior e mais complexo serviço de informação do mundo, controlando totalmente a vida de milhões de pessoas na União Soviética, tentáculos alcançando qualquer país. Seu coração, a área mais secreta de todas, diz respeito ao trabalho do Departamento 13, a seção responsável por morte, assassinato e sabotagem nos países estrangeiros.

O coronel Maslovsky comandara o D13 por cinco anos. Era um homem atarracado e de aparência brutal, cuja figura não coincidia com suas origens. Nascido em 1919 em Leningrado, filho de médico, fora para uma faculdade de direito da cidade, completando os estudos poucos meses antes da invasão alemã.

Passara o começo da guerra lutando na resistência atrás das linhas alemãs. Sua educação e a facilidade para línguas valeram-lhe uma transferência, ainda durante a guerra, para a unidade de Contrainformação, conhecida como Smersh. Devido ao sucesso obtido após a guerra, acabara não retornando à prática da lei.

Era o principal responsável pela instalação das originais e avançadas escolas de treinamento de espiões em lugares semelhantes a Gaczyna, onde agentes eram treinados para trabalhar em países de língua inglesa, em réplicas de cidades americanas ou inglesas, vivendo exatamente como se estivessem no Ocidente. A penetração extraordinariamente bem-sucedida da KGB no Serviço de Informação Francês em todos os níveis tinha sido, em linhas gerais, o resultado de uma escola que ele montara em Grosnia com ênfase na França: meio ambiente, cultura, culinária e vestuário, impecavelmente copiados.

Seus superiores sempre confiaram nele e lhe deram carta branca para aprimorar o sistema, o que explicava a existência de uma pequena cidade comercial do Ulster chamada Drumore nos confins da Ucrânia.


Seu escritório era a sala que usava quando as visitas de Moscou eram convencionais. Havia uma mesa, arquivos e um grande mapa de Drumore na parede. A lenha crepitava, brilhante, na lareira aberta, e ele estava em frente a ela, aproveitando o calor e tomando uma mistura de café forte e vodca.

A porta se abriu atrás dele, e o homem do impermeável de couro entrou e se aproximou, tremendo. Serviu-se de vodca e café da bandeja sobre a mesa e foi até o fogo. Paul Cherny tinha trinta e quatro anos, um homem elegante e bem-humorado que já conseguira reputação internacional no campo da psicologia experimental.

Um avanço considerável para o filho de um ferreiro numa cidadezinha da Ucrânia. Aos dezesseis anos, lutara na guerra ao lado de um grupo da resistência. Seu líder de grupo tinha sido um conferencista de língua inglesa na Universidade de Moscou e reconheceu seu talento assim que o viu.

Em 1945, Cherny já estava na universidade. Graduou-se em psicologia e então passou dois anos na Universidade de Dresden com um grupo cujo trabalho era ligado à psiquiatria experimental, doutorando-se em 1951. Seu interesse por psicologia comportamental levou-o em seguida à Universidade de Pequim, para trabalhar com o famoso psicólogo chinês Pin Chow, cuja especialidade era o uso de técnicas comportamentalistas em interrogatórios e condicionamento de prisioneiros ingleses e americanos na guerra da Coreia.

Na época, Cherny estava pronto para regressar a Moscou. Seu trabalho em condicionamento do comportamento humano, baseado nas técnicas pavlovianas, chamou a atenção da KGB e, em especial, de Maslovsky, que foi decisivo em sua indicação como professor de psicologia do comportamento na Universidade de Moscou.


— Ele é um rebelde — disse Maslovsky. — Não tem respeito pela autoridade. Totalmente falho em obedecer ordens. Foi instruído a não levar arma, não foi?

— Foi, camarada coronel.

— Então, desobedeceu a ordem e transformou um exercício de rotina num banho de sangue. Não que eu esteja preocupado com aqueles malditos dissidentes que usamos. É um jeito de forçá-los a servir ao país deles. A propósito, quem eram os policiais?

— Não tenho certeza. Um momento. — Cherny pegou o telefone: — Levin, venha até aqui.

— Quem é Levin? — perguntou Maslovsky.

— Ele já está aqui há três meses. É um judeu dissidente, sentenciado a cinco anos por se corresponder secretamente com parentes em Israel. Ele faz o escritório andar com extrema eficiência.

— Qual é a profissão dele?

— Físico... engenheiro de estruturas. Ele estava, acho, envolvido com desenho de aeronaves. Tenho razões para acreditar que já viu o erro de suas práticas dissidentes.

— É o que todos eles dizem — comentou Maslovsky.

Houve uma batida na porta, e o homem entrou. Viktor Levin era pequeno, mas parecia maior por causa da calça e da jaqueta acolchoada. Tinha quarenta e oito anos, cabelos grisalhos, e os óculos de aro de metal estavam remendados com esparadrapo.

Parecia acuado, como se esperasse que a KGB arrombasse a porta a qualquer momento, o que, na situação dele, não era uma presunção desprovida de razão.

— Quem eram os três policiais? — perguntou Cherny.

— O sargento era um homem chamado Voronin, camarada — disse Levin. — Um antigo ator do Teatro de Artes de Moscou. Tentou desertar para o Ocidente no ano passado, depois da morte da esposa. Dez anos de sentença.

— E a criança?

— Tanya Voroninova, filha dele. Tenho que checar os outros dois.

— Não se preocupe. Pode ir agora.

Levin saiu e Maslovsky disse: — Voltando a Kelly. Não consigo deixar de lado o fato de que ele atirou naquele homem fora do bar. Uma desobediência direta a minhas ordens expressas. Mesmo assim — ele adicionou, relutante —, um excelente tiro.

— Sim, ele é bom.

— Fale de novo do passado dele.

Maslovsky serviu-se de mais vodca e café e sentou-se perto do fogo. Cherny pegou uma pasta de arquivo na mesa e abriu.

— Mikhail Kelly, nascido numa cidade chamada Ballygar on Kerry. Fica na República da Irlanda. 1938. Pai, Sean Kelly. Foi ativista do IRA durante a Guerra Civil Espanhola, quando encontrou a mãe do garoto em Madri. Martha Vronsky, cidadã soviética.

— Pelo que lembro, o pai foi enforcado pelos ingleses.

— Exato.

— Participou da campanha de bombas do IRA na área de Londres nos primeiros meses da Segunda Guerra Mundial. Foi preso, julgado e executado.

— Outro mártir irlandês. Eles parecem gostar disso, aquele povo.

— Martha Vronsky se naturalizou irlandesa e continuou a viver em Dublin, sobrevivendo como jornalista, e o garoto foi para uma escola jesuíta lá mesmo.

— Cresceu como católico?

— Claro. Aquelas circunstâncias peculiares chamaram atenção do nosso homem em Dublin, que as reportou a Moscou. O potencial do garoto era óbvio, e a mãe foi persuadida a voltar com ele para a Rússia em 1953. Ela morreu há dois anos. Câncer no estômago.

— Então, agora ele tem vinte e um anos e muita inteligência, correto?

— Corretíssimo. Ele tem queda para línguas. Simplesmente as absorve. — Cherny relanceou os olhos pela pasta de novo. — Mas seu talento especial é para a ação. Eu não estaria exagerando se dissesse que ele é um gênio nisso.

— Altamente apropriado para as circunstâncias.

— Se as coisas tivessem sido diferentes, ele bem que poderia ter adquirido notoriedade nesse campo.

— Sim, bem, ele pode não saber como aquilo aconteceu — disse Maslovsky, acidamente. — Seus instintos assassinos parecem bem desenvolvidos.

— Matar assim não é problema nesse tipo de negócio — disse Cherny. — Como o camarada coronel bem sabe, qualquer um pode ser treinado para matar. O importante é o que colocamos na cabeça deles quando os recrutamos. Kelly tem uma aptidão muito rara com uma arma na mão. Quase única.

— Também acho — disse Maslovsky. — Mas matar daquele jeito, de uma forma tão cruel. Ele deve ter um forte componente de psicopata.

— Não nesse caso, camarada coronel. Talvez seja um pouco difícil de compreender, mas como eu lhe disse, Kelly é um ator brilhante. Hoje, ele representou o papel de um pistoleiro do IRA e levou a sério, como se tivesse participado de um filme.

— Exceto que não havia diretor para dizer corta — observou Maslovsky. — E os homens mortos não se levantaram e saíram andando depois que a câmera parou de gravar.

— Eu sei — disse Cherny. — Mas isso explica psicologicamente por que ele teve que matar os dois homens e por que atirou em Murphy, a despeito das ordens. Murphy era um informante. Tinha que ser poupado para ser punido. No papel que representava, era impossível para Kelly agir de outra maneira.

— Está bem, peguei o espírito da coisa. E você acha que ele está pronto para entrar no frio agora?5

— Acho que sim, camarada coronel.

— Certo, vamos chamá-lo agora.


Sem o chapéu e a capa de chuva, Mikhail Kelly parecia bem mais jovem. Vestia suéter de gola rulê, casaco de tweed Donegal e calça de veludo com listras salientes. Parecia completamente calmo, quase retraído, e Maslovsky sentiu aquele vago sentimento de irritação novamente.

— Suponho que você deva estar muito contente consigo mesmo depois do que aconteceu lá fora. Eu lhe disse para não atirar em Murphy. Por que você desobedeceu minhas ordens?

— Ele era um informante, camarada coronel. Pessoas desse tipo têm que aprender uma lição, se homens como eu devem sobreviver. — Ele encolheu os ombros. — O objetivo do terrorista é aterrorizar. Lenin disse isso. Era a citação favorita de Michael Collins na época da Revolução Irlandesa.

— Era um jogo, droga! — explodiu Maslovsky. — Não era realidade.

— Quando a gente representa um papel muitas vezes, camarada coronel, às vezes o papel pode acabar nos engolindo — disse Kelly, calmamente.

— Meu Deus! — exclamou Maslovsky, e já fazia muitos anos que ele não expressava um sentimento como naquela hora. — Está certo, vamos prosseguir com isso. — Ele sentou-se à mesa, encarando Kelly. — O professor Cherny sente que você está pronto para trabalhar. Você concorda?

— Sim, camarada coronel.

— Sua tarefa é facilmente compreensível. Nossos principais antagonistas são a América e a Inglaterra. A Inglaterra é o mais fraco dos dois, e a base de seu capitalismo está sendo erodida. O maior espinho para a Inglaterra é o IRA. E você está em vias de se transformar num espinho adicional.

O coronel projetou o corpo para a frente e olhou direto nos olhos de Kelly.

— A partir de agora, você é um agitador.

— Na Irlanda?

— Eventualmente, mas primeiro você deve ser submetido a mais treinamento no mundo em que vai viver. Vou explicar antes qual é o seu serviço. — Ele levantou-se e caminhou até a lareira. — Em 1956, o Conselho6 do IRA votou pelo começo de uma nova campanha no Ulster. Curiosamente, não deu certo. Há dúvidas sobre se essa campanha se diluirá mais cedo ou mais tarde. Não levou a nada.

— E daí? — disse Kelly.

Maslovsky voltou para a mesa. — Mesmo assim, nossas próprias fontes de informação indicam que, eventualmente, um conflito de natureza muito mais séria do que qualquer outro que aconteceu antes vai estourar na Irlanda. Quando este dia chegar, você deve estar pronto, escondido e esperando.

— Compreendo, camarada.

— Espero mesmo que compreenda. Contudo, já basta por agora. Quando eu tiver ido embora, o professor Cherny vai colocar você a par dos planos mais imediatos. Por enquanto, você está dispensado.

Kelly retirou-se sem uma palavra.

Cherny disse: — Ele pode fazer isso. Tenho certeza.

— Tomara. Ele pode ser tão bom quanto aqueles arruaceiros irlandeses, e bebe menos.

Maslovsky caminhou até a janela e observou a chuva insistente, repentinamente cansado, não mais pensando em Kelly afinal, mas invadido, por nenhuma razão em particular, pela expressão dos olhos da garotinha quando atacou o irlandês pouco antes lá na praça.

— Aquela criança — ele disse. — Qual era mesmo o nome dela?

— Tanya, Tanya Voroninova.

— Ela é órfã agora? Não existe ninguém que possa tomar conta dela?

— Ninguém que eu saiba.

— Você não diria que ela é bonitinha e inteligente?

— Sem dúvida. Pessoalmente, não tenho nada em vista em relação a ela. O camarada coronel tem algum interesse especial?

— Possivelmente. No ano passado, perdemos nossa filha única de seis anos numa epidemia de gripe. Minha mulher não pode ter mais filhos. Ela está procurando emprego num daqueles departamentos de assistência social, mas tem se queixado muito. Apenas não é mais a mesma mulher, Cherny. Fiquei esperançoso olhando aquela garota lá na praça. Ela pode preencher essa lacuna.

— Uma ideia excelente, camarada, para todos os envolvidos, se é que posso dizer assim.

— Ótimo! — disse Maslovsky, repentinamente radiante. — Vou levá-la para Moscou comigo e fazer uma surpresa para minha Susha.

Ele caminhou até a mesa, tirou a rolha da garrafa de vodca com os dentes e encheu dois copos.

— Um brinde — disse ele. — Aos negócios da Irlanda e... — Ele fez uma pausa, reticente. — Como é mesmo o nome de código?

— Cuchulain — disse Cherny.

— Isso — disse Maslovsky. — A Cuchulain. — Bebeu a vodca num trago e jogou o copo, espatifando-o, no fogo da lareira.

 

________________

1 Royal Ulster Constabulary: contingente de soldados que o governo inglês mantém na Irlanda do Norte. (N. do T.)

2 A bandeira do Reino Unido. (N. do T.)

3 A marca mais famosa de uísque irlandês. (N. do T.)

4 Irish Republican Army: Exército Republicano Irlandês, braço armado da minoria católica da Irlanda do Norte (Ulster), que luta há mais de sessenta anos pela união dos seis condados do Ulster com os vinte e seis da República da Irlanda e tem 96% da população de católicos. (N. do T.)

5 To go out into the cold: jargão da espionagem internacional que significa ser um agente de campo. (N. do T.)

6 Army Council: órgão executivo do comando do IRA, composto de treze membros. (N do E.)


1


1982

 


Quando o major Tony Villiers entrou no salão de oficiais da Guarda de Granadeiros, no Quartel de Chelsea, não havia ninguém lá. Era um local sombrio, e a única iluminação provinha de velas bruxuleando num candelabro sobre a mesa de jantar longa e polida, a luz refletida na prata suja.

Somente um lugar, na extremidade da mesa, estava arrumado para o jantar, o que o surpreendeu, mas uma garrafa de champanhe repousava dentro de um balde de prata cheio de gelo: Krug, 1972, a favorita dele. Parou, olhando para a garrafa, então apanhou-a e fez saltar a rolha, tentando alcançar uma das taças altas de cristal dispostas sobre a mesa. Colocou o champanhe na taça, devagar e cuidadosamente. Caminhou até a lareira ardendo e ficou parado lá, examinando seu reflexo no espelho sobre a lareira.

A túnica escarlate caía-lhe muito bem, e as medalhas davam uma magnífica impressão, principalmente as tiras púrpura e branca de sua Cruz Militar com a roseta de prata, que significava uma segunda distinção. Tinha estatura mediana, ombros largos, os cabelos negros mais longos do que ele poderia esperar para um soldado da ativa. Fora o nariz quebrado vez ou outra, era um homem bastante elegante.

Tudo era silêncio naquele instante. Apenas os homens famosos do passado, do alto de seus retratos obscurecidos pelas sombras, olhavam solenemente para ele. Havia uma atmosfera de irrealidade em tudo e, por alguma razão, sua imagem parecia refletir multidimensionalmente no espelho, rumo ao infinito. Estava com uma maldita sede. Ergueu a taça, e sua voz era muito rouca, parecendo pertencer inteiramente a outra pessoa. — A você, Tony, meu velho — ele disse — e um feliz Ano Novo.

Levou a taça de cristal aos lábios, e o champanhe estava mais gelado do que qualquer outra coisa que bebera. Bebeu avidamente e pareceu que o líquido se transformou em fogo dentro da boca, queimando todo o caminho de descida até as entranhas. Gritou em agonia enquanto o espelho se estilhaçava, e então teve a impressão de que o chão se abria a seus pés e ele estava caindo.


Um sonho, claro. Acordou e viu-se exatamente no mesmo lugar em que estava há uma semana, preso contra a parede num canto da pequena sala, incapaz de se deitar por causa da pesada canga de madeira em volta do pescoço e que imobilizava os pulsos ao nível dos ombros.

Usava um turbante verde enrolado na cabeça à moda dos homens da tribo baluchi, a quem ele comandara nas montanhas de Dhofar até sua captura, dez dias antes. Calça e camisa cáqui estavam imundas agora, rasgadas em vários lugares, e os pés descalços porque um dos rachid roubara suas botas de camurça de andar no deserto. E também havia a barba, desconfortável e espinhosa, e ele não gostava daquilo. Nunca havia sido capaz de fugir do velho hábito de granadeiro com um rosto bem escanhoado diariamente, não importava a situação. Mesmo no SAS1 não fora capaz de se livrar daquele hábito em particular.

Houve uma espécie de ranger metálico na porta, aberta, e moscas esvoaçaram numa grande nuvem. Dois rashid entraram, homens pequenos e peludos em roupas brancas e sujas, cartucheiras cruzadas nos ombros. Eles o soergueram sem uma palavra e o levaram para fora, puseram-no asperamente contra o muro e foram embora.

Demorou um pouco para que seus olhos se ajustassem ao brilho radiante do sol da manhã. Bir el-Gafamo era um lugar pobre, não mais que uma dúzia de casas com teto plano, com um oásis espremido pelas palmeiras mais abaixo. Um garoto tangia alguns camelos até a água, onde mulheres com vestidos e véus negros lavavam roupa.

Ao longe, à direita, as montanhas de Dhofar, a província mais ao sul de Omã, elevadas no céu azul. Pouco mais de uma semana antes, Villiers estivera naquelas montanhas à frente dos baluchi caçando guerrilheiros marxistas. Bir al-Gafani, do outro lado, era território inimigo, a República Popular Democrática do Iêmen do Sul, estirando rumo ao norte até o Empty Quarter.

Havia um grande pote de barro com água e uma concha à esquerda, mas em vez de tentar beber, ele resolveu esperar, pacientemente. A distância, sobre um ponto elevado, apareceu um camelo, movendo-se veloz na direção do oásis, levemente irreal no calor opressivo.

Fechou os olhos por um momento, deixando a cabeça cair sobre o peito para aliviar a tensão no pescoço, e foi despertado por passos. Olhou para cima e viu Salim bin al-Kaman aproximando-se. Vestia turbante e roupa preta, uma automática Browning dentro do coldre no quadril direito, uma adaga curva enfiada no cinto, e carregava um fuzil-metralhadora de assalto AK chinês, o orgulho da vida dele. Ele parou, olhando atentamente para Villiers, um homem de aparência afável, com uma franja de barba grisalha e uma pele de cor de couro espanhol.

— Salaam alaikum, Salim bin al-Kaman — disse Villiers formalmente em árabe.

— Alaikum Salaam. Bom-dia, sahib Villiers. — Foi sua única frase em inglês. Continuaram em árabe.

Salim encostou o AK no muro, encheu a concha com água e levou-a cuidadosamente à boca de Villiers. O inglês bebeu avidamente. Era um ritual matutino entre eles.

Salim encheu a concha de novo, e Villiers levantou o rosto para receber o líquido frio.

— Mais? — perguntou Salim.

— Isso é com você.

O camelo estava perto agora. O condutor tinha uma corda enrolada na parte de cima da sela. Um homem vinha bamboleando na outra ponta da corda.

— Quem vem lá? — perguntou Villiers.

— Hamid — disse Salim.

— Amigo?

Salim sorriu. — Este é o nosso país, major Villiers, terra rashid. As pessoas só devem vir aqui quando são convidadas.

— Mas em Hauf os comissários da República Popular não reconhecem os direitos dos rashid. Não reconhecem nem Allah. Só Marx.

— No lugar deles, eles podem fazer o barulho que quiserem, mas na terra rashid... — Salim encolheu os ombros e mostrou um arame fino e maleável. — Mas chega. Quer um cigarro, meu amigo?

O árabe arrancou habilmente o filtro da ponta do cigarro, colocou-o na boca de Villiers e deu-lhe um isqueiro.

— Russo? — observou Villiers.

— A cinquenta milhas daqui, em Fasari, existe uma base aérea no deserto. Muitos aviões russos, caminhões, soldados russos, tudo.

— Sim, eu sei — disse Villiers.

— Você sabe, e até agora o seu famoso SAS não fez nada?

— Meu país não está em guerra com o Iêmen — disse Villiers. — Fui autorizado pelo exército britânico para ajudar a treinar e liderar as tropas do sultão de Oman contra a guerrilha marxista do DLF em Dhofar.

— Nós não somos marxistas, sahib Villiers. Nós, rashid, vamos aonde bem entendemos e gostamos, e um major do SAS britânico é um grande prêmio. Vale muitos camelos, muitas armas.

— Para quem? — perguntou Villiers.

Salim fez arabescos com o cigarro. — Mandei uma mensagem a Fasari. Os russos vão chegar a qualquer momento. Pagarão bem por você. Concordaram com meu preço.

— Seja o que oferecerem, meu pessoal pagará mais — assegurou Villiers a Salim. — Entregue-me em segurança em Dhofar e pode ter qualquer coisa que quiser. Soberanos de ouro ingleses, moedas de prata, os famosos táleres da imperatriz Maria Theresa.

— Mas sahib Villiers, eu dei a minha palavra — sorriu Salim com escárnio.

— Eu sei — disse Villiers. — Não me diga. Para um rachid, a palavra é tudo.

— Exatamente.

O camelo se aproximava. O animal dobrou as patas dianteiras e arriou, e Hamid, um jovem guerreiro rashid em roupas ocres e um rifle nas costas, adiantou-se. Puxou a corda, e o homem na outra extremidade caiu sobre as mãos e os joelhos.

— O que temos aqui? — perguntou Salim.

— Achei-o cruzando o deserto à noite. — Hamid foi até o animal e voltou com um cantil militar e uma mochila. — Ele carregava isto.

Havia um pouco de pão na mochila e latas de ração do exército. Os rótulos eram russos. Salim segurou a lata bem baixo para Villiers poder ver e então disse para o homem em árabe: — Você é russo?

O homem era velho, os cabelos brancos, obviamente exausto, a camisa cáqui grudada no corpo de suor. Balançou a cabeça. Os lábios, inchados, tinham o dobro do tamanho normal. Salim tirou a concha cheia de água do vaso. O homem bebeu.

Villiers falava um pouco de russo e disse: — Ele quer saber quem é você. É de Fasari?

— Quem é você? — o velho grunhiu.

— Sou um oficial britânico. Estava trabalhando para as forças do sultão em Dhofar. O povo dele emboscou minha patrulha, matou todos os homens e me fez prisioneiro.

— Ele fala inglês?

— Umas três palavras. Você não é árabe, é?

— Não — disse o velho —, mas acho que meu inglês é provavelmente melhor que seu russo. Meu nome é Viktor Levin. Sou de Fasari. Estava tentando chegar a Dhofar.

— Para desertar? — perguntou Villiers.

— Qualquer coisa parecida.

Salim falou em árabe: — Ele falou inglês com você. Ele não é russo?

Villiers disse baixo para Levin: — Não há jeito de mentir sobre você. Seu pessoal está vindo para cá a fim de me pegar. — Virou-se para Salim: — Ele é russo, de Fasari.

— E o que ele faz no país rashid?

— Tentava chegar a Dhofar.

Salim o encarou de olhos quase fechados. — Fugindo do seu próprio povo? — riu alto e deu uma palmada na coxa. — Excelente! Eles vão pagar bem por ele também. Um bônus, meu amigo. Allah é bom para mim. — Ele acenou para Hamid. — Ponha os dois lá dentro, alimente-os e volte para falar comigo. — E foi embora.


Levin foi preso em uma canga semelhante à de Villiers. Estavam sentados contra a parede da cela. Pouco tempo depois, uma mulher com véu negro entrou agachada e deu comida aos dois de uma mesma tigela grande de madeira, contendo carne de bode cozida. Era impossível perceber se era jovem ou velha. A mulher limpou a boca deles com cuidado e então saiu, fechando a porta.

— Por que o véu? — disse Levin. — Não compreendo isso.

— Um símbolo de que pertencem aos maridos. Os outros não podem olhar.

— Um país estranho. — Levin fechou os olhos. — Muito quente.

— Quantos anos tem? — perguntou Villiers.

— Sessenta e oito.

— Não é a idade ideal para este negócio de desertar. Acho que devia ter largado tudo mais cedo.

Levin abriu os olhos e sorriu docemente. — Minha mulher morreu na semana passada em Leningrado. Não tenho filhos. Ninguém pode me chantagear se eu correr atrás da liberdade.

— O que faz?

— Sou professor de engenharia de estruturas na Universidade de Leningrado. Tenho interesses específicos em projetos de aeronaves. A Força Aérea Soviética tem cinco MIGs-23 em Fasari, para todos os efeitos numa função de treinamento, portanto é a versão para treinamento que eles estão usando.

— Com modificações? — sugeriu Villiers.

— Exatamente, tanto que o avião pode ser usado contra alvos terrestres em países montanhosos. As modificações foram feitas na Rússia, mas tem havido problemas, e fui trazido para resolvê-los.

— Então, você finalmente cansou. O que está pretendendo fazer, ir para Israel?

— Não particularmente. Não estou convencido de que o sionismo seja o único caminho. Não, a Inglaterra teria possibilidades muito mais atrativas. Estive lá com uma delegação comercial em 1939, pouco antes de a guerra começar. Os dois melhores meses da minha vida.

— Entendo.

— Eu esperava sair da Rússia em 1959. Estava me correspondendo secretamente com parentes em Israel que iam ajudar, então fui traído por uma pessoa que eu acreditava ser um amigo de verdade. Uma velha história. Fui sentenciado a cinco anos.

— Num gulag?

— Não, num lugar muito mais interessante. Você acreditaria que foi numa pequena cidade do Ulster chamada Drumore?

Villiers virou-se e encarou Levin surpreso. — Não compreendo.

— Uma pequena cidade do Ulster chamada Drumore, bem no meio da Ucrânia. — O velho sorriu diante do olhar de estupefação estampado no rosto de Villiers. — Acho que posso explicar melhor.

Quando o velho acabou de falar, Villiers ficou pensando no que ouvira. Técnicas de subversão e contraterrorismo tinham sido grande parte de seu negócio por muitos anos até aquele momento, sobretudo na Irlanda. Por isso, a história de Levin era fascinante, até que por fim ele disse: — Conheço Gaczyna, onde a KGB treina agentes para atuar em países de língua inglesa, mas esse outro grupo é novo para mim.

— E provavelmente para o seu pessoal de informação, acho.

— Antigamente, em Roma — disse Villiers — escravos e prisioneiros eram treinados como gladiadores para lutar na arena.

— Para morrer — disse Levin.

— Com chance de sobreviver se fosse melhor do que o outro homem, exatamente como aqueles dissidentes que representavam policiais em Drumore.

— Eles nunca tiveram muita chance contra Kelly — disse Levin.

— Não, ele soa como se fosse um artigo muito especial.

O velho fechou os olhos. Sua respiração era rouca e espasmódica, mas estava certamente dormindo momentos depois. Villiers descansou as costas no canto, miseravelmente sem conforto. Manteve-se pensando na estranha história de Levin. Soubera muito sobre as cidadezinhas do Ulster; Crossmaglen, por exemplo. um lugar ruim para estar. Tão perigoso que as tropas tinham que chegar e sair de helicóptero. Mas Drumore, na Ucrânia, era um pouco demais. Instantes depois, o queixo caiu sobre o peito e ele mergulhou no sono.


Acordou sendo sacudido vigorosamente por um homem da tribo rashid. Outro estava acordando Levin. O homem colocou Villiers em pé, e ele foi empurrado ainda trôpego através da porta. Soube que era de tarde pela posição do sol. Muito mais interessante era o blindado de meia-lagarta, um BTR convertido. Era o que os russos chamavam de Sandcruiser,2 pintado com camuflagem para deserto. Vários soldados estavam parados atrás do veículo, em uniformes de brim cáqui, cada homem empunhando um fuzil de assalto AK em posição de alerta. Mais dois homens estavam dentro do Sandcruiser, guarnecendo metralhadoras pesadas de 12,7mm, cujo raio de ação cobria não só os soldados russos, mas também os rachid que observavam a cena, rifles aninhados nos braços.

Salim virou-se para Levin e Villiers, que estavam sendo trazidos.

— Pois é, sahib Villiers, hora de partir. Que pena. Gostava da nossa conversa.

O oficial russo que se aproximou, com um sargento ao lado, vestia um uniforme de brim parecido com o de seus homens, um boné com pala e óculos de deserto que lhe emprestavam uma semelhança com os oficiais do Afrika Korps de Rommel. Parou, olhando para eles por um instante, então levantou os óculos. Era mais jovem do que Villiers havia pensado, feições lisas e olhos muito azuis.

— Professor Levin — disse ele em russo. — Gostaria de achar que se perdeu enquanto andava por aí, mas receio que nossos amigos da KGB vão encarar isso de modo diferente.

— É o que eles fazem normalmente — disse Levin.

O oficial dirigiu-se para Villiers e disse, calmamente: — Yuri Kirov, capitão, 21ª Brigada Especial de Paraquedistas. — O inglês era excelente. — E você é o major Anthony Villiers, Guarda de Granadeiros, mas, bem mais importante, do 22º Regimento do SAS.

— É muito bem informado — disse Villiers. — E permita-me cumprimentá-lo por seu inglês.

— Obrigado — disse Kirov. — Estamos usando exatamente as mesmas técnicas de linguagem do laboratório, um pioneirismo do quartel do SAS de Bradbury Line, em Hereford. Também vai despertar interesse muito especial na KGB.

— Estou certo que sim — disse Villiers, amavelmente.

— Bem. — Kirov dirigiu-se a Salim. — Aos negócios. — Seu árabe não era tão bom quanto o inglês, mas servia para o necessário.

Ele estalou os dedos, e o sargento avançou, entregando ao árabe um saco de lona. Salim abriu-o e retirou de lá a mão cheia de moedas, e o ouro brilhou ao sol.

Ele sorriu e passou o saco a Hamid, parado atrás dele.

— E agora — disse Kirov —, se você for bom o suficiente para libertar esses dois, nós vamos andando.

— Ah, mas sahib Kirov está esquecendo — sorriu Salim. — Também foram prometidas vinte mil balas e uma metralhadora.

— Sim, bem, mas meus superiores entendem que seria colocar muita tentação nas mãos dos rashid — disse Kirov.

Salim parou de sorrir.

— Mas foi uma promessa firmada.

Muitos homens, prevendo problemas, levantaram os rifles. Kirov estalou os dedos, e a um sinal de sua mão direita houve uma repentina rajada da metralhadora pesada, esfolando a parede sobre a cabeça de Salim.

Enquanto os ecos dos tiros morriam, Kirov disse, pacientemente:

— Pegue o ouro. Aconselho-o a recebê-lo como entrada.

Salim sorriu e fez um gesto amplo de agradecimento com os braços.

— Claro. A amizade é tudo. Certamente não se vai pôr tudo a perder por causa de um mal-entendido insignificante.

Ele tirou uma chave de uma bolsa no cinto e abriu o cadeado, primeiro da canga que prendia Levin. Moveu-se então até Villiers.

— Às vezes, Allah olha através das nuvens e pune os impostores — murmurou.

— Isso está no Corão? — perguntou Villiers, enquanto Hamid removia a canga, e ele esticava os braços doloridos.

Salim deu de ombros, e havia algo em seus olhos. — Se não está, deveria.

Dois soldados avançaram ao comando do sargento e se alinharam ao lado de Levin e Villiers. Caminharam até o Sandcruiser. Villiers e Levin subiram no blindado. Seguiram-se os soldados, e Kirov pulou na traseira. Villiers e Levin se sentaram, flanqueados por guardas armados. Kirov torceu o corpo e fez uma saudação, enquanto o motor roncou de volta para a vida.

— Foi excelente fazer negócio com você — disse a Salim.

— Com o sahib Kirov também.

O Sandcruiser arrancou em meio a uma nuvem de poeira, e assim que alcançaram o topo da primeira duna, Villiers olhou para trás e viu que o velho rashid ainda estava lá de pé, observando-os partir, e só agora os homens se moviam atrás do chefe. Havia uma curiosa calma em relação a eles, uma espécie de perigo, mas aí o Sandcruiser desceu a encosta da duna, e Bir al-Gafani desapareceu de vista.


A cela de concreto na extremidade do bloco administrativo de Fasari era um inegável progresso para aquelas instalações construídas em ritmo apressado. As paredes estavam caiadas de branco, o banheiro com água tratada quimicamente, e dois catres de ferro equipados com colchões e cobertores. Aquela era uma das seis celas em que Villiers reparara ao entrar, todas com pesadas portas de aço e portinholas de vigia, e parecia haver três guardas armados constantemente de serviço.

Através das barras da janela, Villiers pôde olhar para a pista de pouso, não tão extensa como esperava. Havia três hangares pré-fabricados, com uma única pista de macadame. Os cinco MIGs-23 estavam parados com as pontas das asas quase encostadas umas nas outras, formando uma linha diante dos hangares, parecendo estranhas criaturas primitivas aninhadas no lusco-fusco que precede a escuridão. Havia ainda dois helicópteros de transporte de tropas do tipo MI-8 do lado mais distante dos aviões e caminhões e carros de vários tipos.

— Parece virtualmente não existir segurança — murmurou Villiers.

Levin assentiu ao lado dele. — Há pouca necessidade. Afinal, eles estão em território amigo e completamente cercados pelo deserto. Acho que mesmo seu pessoal do SAS teria dificuldade com um alvo assim.

O ferrolho da porta gemeu atrás deles. Ela se abriu, e um jovem cabo entrou, seguido de um árabe carregando um balde e duas canecas esmaltadas.

— Café — disse o cabo.

— Quando comemos? — perguntou Villiers.

— Às nove.

Ele dispensou o árabe e trancou a porta ao sair. O café estava surpreendentemente bom e quente.

— Então usam pessoal árabe? — disse Villiers.

— Nas cozinhas, serviços sanitários e todo tipo de trabalhos braçais. Não são das tribos do deserto. Acredito que eles tragam de Hauf — explicou Levin.

— O que acha que vai acontecer agora?

— Bem, amanhã é quinta-feira e tem um avião de suprimentos chegando. Ele provavelmente nos levará de volta até Aden.

— Próxima parada Moscou?

Não havia resposta para aquilo, claro, como não havia resposta para as paredes de concreto, as portas de aço e as barras. Villiers estava deitado numa das camas, e Levin na outra.

— Para mim a vida é um constante desapontamento — disse o velho russo. — Quando visitei a Inglaterra, levaram-me a Oxford. Tão bonito! — ele suspirou. — Era uma fantasia minha voltar algum dia.

— Sonhando alto — observou Villiers. — Sim, é um belo lugar.

— Então você conhece?

— Minha mulher esteve lá na universidade. St. Hughes College. Foi depois da Sorbonne. Ela é meio francesa.

Levin se levantou, parcialmente apoiado num cotovelo. — Você me surpreende. Perdoe-me por estar falando assim, mas você não tem a aparência de um homem casado.

— E não sou — disse Villiers. — Divorciei-me há poucos meses.

— Sinto muito.

— Não, como você mesmo disse, a vida é um constante desapontamento. Queremos sempre algo diferente, esse é o problema com os seres humanos, particularmente entre homens e mulheres. Apesar do que dizem as feministas, elas são diferentes.

— Você ainda a ama?

— Oh, sim! — disse Villiers. — Amar é fácil. Viver junto é que é danado de duro.

— Então qual é o problema?

— Para simplificar, é o meu trabalho. Bornéu, Omã, Irlanda. Estava exatamente no Vietnã quando nos separamos em definitivo. Como ela disse uma vez, sou verdadeiramente bom numa coisa só: matar pessoas. E chegou o tempo em que ela não podia mais conviver com aquilo.

Levin deitou-se de costas sem uma palavra, e Tony Villiers olhou fixo para o teto, mãos atrás da nuca como um travesseiro, pensando em coisas que simplesmente não vão embora quando a escuridão cai.


Acordou num sobressalto, atento aos passos lá fora no corredor, ao murmúrio de vozes. A luz do teto devia ter sido acesa enquanto dormia. Não tinham levado seu Rolex, e ele relanceou os olhos para o mostrador, a par da agitação de Levin na outra cama.

— Que horas são? — perguntou o russo.

— Nove e quinze. Deve ser o jantar.

Villiers foi até a janela. Havia uma meia lua num céu vívido de estrelas, e o deserto estava luminoso, inflexivelmente belo, os MIGs-23 como silhuetas negras recortadas. Deus, tem que haver um jeito, pensou. Virou-se, o estômago apertado.

— O que há? — sussurrou Levin, enquanto o primeiro ferrolho era destravado.

— Estava apenas pensando — disse Villiers — que correr daqui para qualquer lugar lá fora, mesmo que signifique uma bala nas costas, seria infinitamente preferível a Moscou e a Lubianka.

A porta foi aberta com rapidez, e o cabo entrou seguido por um árabe que trazia uma grande bandeja de madeira, com duas tigelas de cozido, pão preto e café. A cabeça estava abaixada, e ainda assim havia algo de familiar nele.

— Vamos, depressa! — disse o cabo em péssimo árabe.

O árabe colocou a bandeja na pequena mesa de madeira aos pés da cama de Levin e levantou os olhos. E no momento em que Villiers e Levin atinaram que era Salim bin al-Kaman, o cabo fez meia-volta a caminho da porta. Salim tirou uma faca da manga esquerda, sua mão alcançou a boca do cabo, um joelho subiu tirando-lhe o equilíbrio, e a faca foi enfiada logo abaixo das costelas. Ele soltou o homem cuidadosamente em cima da cama e limpou a faca no uniforme do russo.

— Fiquei pensando no que disse, sahib Villiers. — Ele sorriu. — Aquele seu pessoal lá de Dhofar vai pagar uma bolada para ter você de volta.

— Bem, você foi pago duas vezes. Cada lado pagou uma vez. Bom tino para negócios — disse Villiers.

— Claro, mas, de qualquer maneira, os russos não foram honestos comigo. Tenho uma honra para zelar.

— E os outros guardas?

— Jantando. Soube de tudo através de amigos na cozinha. Aquele homem de quem tomei o lugar levou uma bela pancada na cabeça a caminho daqui. Foi tudo arranjado, claro. Mas, venham! Hamid está esperando nos limites da base com camelos.

Saíram da cela. Salim aferrolhou a porta, e seguiram rapidamente pelo corredor para fora do prédio. A base aérea de Fasari estava muito calma, tudo imóvel ao luar.

— Olhe para isso — disse Salim. — Nenhuma precaução. Até as sentinelas estão jantando. Paisanos de uniforme. — Ele se escondeu atrás de um tambor de latão encostado à parede e abriu um pacote. — Vistam isso e me sigam.

As duas mantas eram de lã, do tipo usado pelos beduínos durante as noites extremamente frias do deserto, cada uma delas com um capuz. Vestiram os agasalhos e seguiram Salim cruzando os hangares.

— Nem cerca nem muro — sussurrou Villiers. — O deserto é o único muro de que eles necessitam — disse Levin.

Além dos hangares, as dunas erguiam-se dos dois lados do que parecia ser a boca de uma ravina.

— Wadi al-tiara — disse Salim. — Desemboca na planície a menos de quinhentos metros daqui, onde Hamid aguarda.

— Já lhe ocorreu que Kirov pode muito bem somar dois mais dois e liquidar Salim bin al-Kaman? — disse Villiers.

— Mas claro! Meu povo já está agora a meio caminho da fronteira de Dhofar.

— Ótimo! — disse Villiers. — É tudo o que eu queria saber. Vou mostrar a vocês uma coisa muito interessante.

Fez meia-volta na direção do Sandcruiser, parado ali perto, e pulou para dentro, enquanto Salim protestava num murmúrio rouco.

— Isso é loucura, sahib Villiers.

Assim que Villiers caiu atrás do volante, o rachid escalou o veículo blindado, seguido de Levin.

— Tenho a desagradável sensação de que tudo isso é minha culpa — disse o velho russo. — Estamos, acho, vendo o SAS em ação?

— Na Segunda Guerra Mundial, o SAS, comandado por David Stirling, destruiu mais aviões da Luftwaffe no chão ao norte da África do que a RAF e os ianques em combates aéreos. Vou mostrar a técnica a vocês — disse Villiers.

— Você deve estar falando possivelmente de uma outra versão para aquela bala nas costas.

Villiers deu a partida, e o motor acordou. — Você pode manejar aquela metralhadora? — perguntou Villiers em árabe.

Salim agarrou as alças da Degtyarev. — Allah seja misericordioso! Há fogo em sua mente. Ele não é como os outros homens.

— Isso também está no Corão? — perguntou Villiers, mas quando pisou fundo no acelerador, a resposta do árabe foi abafada pelo rugido do motor de cento e dez cavalos.

O Sandcruiser trovejou pela pista. Villiers deu uma guinada forte na direção, o blindado girou sobre as lagartas e esmagou a cauda do primeiro MIG, continuando em frente, enquanto aumentava a velocidade. As caudas dos dois helicópteros eram muito altas, então ele se concentrou nas partes frontais das carlingas, as oito toneladas de aço blindado do Sandcruiser amarrotando a cobertura de Perspex com facilidade.

Guinou novamente numa volta ampla e disse a Salim: — Os helicópteros. Tente os tanques de combustível.

Agora o alarme Klaxon uivava no bloco principal da administração, vozes gritando na noite, e o tiroteio começou. Salim metralhou os dois helicópteros com rajadas contínuas, e o tanque de um deles à esquerda explodiu, uma bola de fogo como um cogumelo, queimando destroços que cascateavam por todos os lados. Um momento mais tarde, o segundo helicóptero explodiu contra o M1G próximo a ele, e ambos começaram a queimar.

— É isso aí! — disse Villiers. — Agora é o fim. Vamos cair fora daqui.

Enquanto ele guinava a direção, Salim apontou a metralhadora para trás, na direção dos soldados russos que corriam até eles. Villiers tinha a atenção fixa em Kirov, em pé, imóvel, enquanto seus homens se deslocavam para o outro lado da pista de macadame, atirando muito deliberadamente, num gesto galante e totalmente inútil.

Os três já estavam escalando a inclinação das dunas, as lagartas espirrando areia, e entrando na boca do Wadi. O leito seco do velho córrego era acidentado, com grandes pedras arredondadas aqui e ali, mas a visibilidade ao luar era boa. Villiers manteve o pé embaixo, dirigindo velozmente.

— Está tudo bem? — perguntou a Levin.

— Acho que sim — disse o velho russo. — Continuo me apalpando.

Salim acariciou a Degtyarev. — Que beleza. Melhor que qualquer mulher. Com essa eu vou ficar, sahib Villiers.

— Você a conquistou — disse Villiers. — Agora tudo que temos a fazer é dirigir como loucos até a fronteira.

— E sem helicópteros para nos caçar — gritou Levin.

— Isso mesmo.

— Você merece ser rashid, sahib Villiers. Há muitos anos não me divirto tanto. — Ele levantou a arma. — Eu as tenho segurado na concha da mão, e são como poeira.

— O Corão de novo? — perguntou Villiers.

— Desta vez é sua própria Bíblia. O Velho Testamento — e ele riu alto, exultante, enquanto emergiam do Wadi e começavam a descer para a planície onde Hamid esperava.

 

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1 Special Aerial Service: tropa de elite do governo britânico, composta de comandos paraquedistas. (N. do T.)

2 Cruzador de areia, ao pé da letra, Veículo para o deserto. (N. do T.)


2

 

 

O D15, a seção do Serviço Secreto de Informação britânico que se incumbe de contraespionagem, bem como de atividades de agentes secretos e subversão dentro do Reino Unido, não existe oficialmente, embora seus escritórios possam ser encontrados numa grande construção branca de tijolos vermelhos, não muito longe do Hotel Hilton, em Londres. O D15 pode somente conduzir uma investigação. Não tem poderes para efetuar prisões. São os oficiais da seção especial da Scotland Yard que concluem o trabalho.

Mas com o crescimento do terrorismo internacional e seus efeitos na Inglaterra, particularmente por causa do problema irlandês, a situação foi além da capacidade da Scotland Yard. Em 1972, o diretor-geral do D15, com o aval do número dez da Downing Street,1 criou uma seção conhecida como Grupo dos Quatro, com poderes delegados diretamente pelo primeiro ministro, para coordenar a investigação de todos os casos de terrorismo e subversão.

Depois de dez anos, o brigadeiro Charles Ferguson ainda continuava no cargo. Grande, o tipo de homem enganosamente dócil, a gravata de granadeiro era o único vestígio de seu passado militar. O terno cinza amarrotado de sua predileção e os óculos de leitura do tipo meia-lua, combinados com os cabelos grisalhos despenteados, davam a ele a aparência de um professorzinho daquelas universidades provincianas.

Embora tivesse um escritório na sede da diretoria-geral, Ferguson preferia trabalhar no seu apartamento da Cavendish Square. Sua segunda filha, Ellie, que era decoradora de interiores, havia adequado o lugar para ele. A lareira ao estilo Adam era real como o fogo que ardia nela. Ferguson era explosivo. O resto da sala era de estilo georgiano, tudo combinando com perfeição, inclusive as pesadas cortinas.

A porta se abriu, e seu criado, um ex-ghurka naik apelidado de Kim, entrou com uma bandeja de prata, que foi colocada sobre a lareira.

— Ah, chá! — exclamou Ferguson. — Diga ao capitão Fox para vir aqui.

Ele colocou o chá numa xícara de porcelana chinesa e apanhou o Times. As notícias das Malvinas não eram más. As forças britânicas haviam desembarcado em Pebble Island e destruído onze aviões argentinos, mais um depósito de munições. Dois Sea Harrier tinham bombardeado um navio mercante na zona de exclusão. A porta de acesso ao estúdio, coberta com um tecido verde grosso, abriu-se, e Fox entrou. Era um homem elegante, num terno de flanela cortado por Huntsman, de Savile Row, velhos alfaiates do duque de Windsor. Usava também a gravata de granadeiro, uma vez que fora um ativo capitão dos Blues and Royals até que um incidente infeliz com uma bomba em Belfast fizera com que perdesse a mão esquerda, durante seu terceiro turno de serviço. Agora usava uma réplica bastante engenhosa que, graças ao milagre do microchip, funcionava quase tão bem quanto a original. A luva de couro bovino escondia a diferença com perfeição.

— Chá, Harry?

— Aceito, sir. Vejo que eles acabaram soltando a história de Pebble Island.

— Sim, tudo muito colorido e romanceado — disse Ferguson, enquanto enchia uma xícara para Fox. — Mas, francamente, ninguém melhor que você sabe que temos problemas até a raiz dos cabelos, mesmo sem as Malvinas. Quero dizer que a Irlanda está como está, e agora a visita do papa. Foi marcada para o dia vinte e oito. Isso nos dá apenas onze dias. E ele sempre faz de si mesmo um alvo. Você acha que ele anda mais cuidadoso depois do atentado em Roma?

— Não o tipo de homem que ele é, sir. — Fox tomou um gole de chá. — Por outro lado, do jeito que as coisas estão indo, talvez ele não venha, no final das contas. A ligação com a América do Sul é de importância prioritária para a Igreja Católica, e eles nos consideram o vilão no negócio das Malvinas. Não querem que ele venha, e sua fala de ontem em Roma pareceu ser um indício de que não vem.

— Eu ficaria muito feliz — disse Ferguson —, me pouparia da responsabilidade de ter certeza de que algum louco não vai tentar matá-lo enquanto estiver aqui na Inglaterra. Por outro lado, milhões de católicos ingleses vão ficar amargamente desapontados.

— Compreendo por que os arcebispos de Liverpool e Glasgow voaram hoje para o Vaticano, a fim de persuadi-lo a mudar de ideia — disse Fox.

O telefone vermelho na mesa de Ferguson tocou com o bip característico, reservado para as chamadas confidenciais de alta segurança. Fox pegou o aparelho.

— Aqui é Fox. — Ele ouviu por um momento, virou-se, a fisionomia grave, e ficou segurando o telefone para Ferguson.

— Ulster, sir. Quartel do Exército em Lisburn, e não são boas notícias.


Tudo começara naquela manhã, pouco antes das sete, fora da cidade de Kilgannon, a cerca de quinze quilômetros de Londonderry. Patrick Leary entregara correspondência na área durante quinze anos, e seu furgão do Correio Real era uma visão familiar.

Sua rotina não variava nunca. Chegava para trabalhar no quartel de Londonderry exatamente às cinco e meia da manhã, apanhava a correspondência para a primeira entrega do dia selecionada pela turma da noite, enchia o tanque e depois tomava o rumo de Kilgannon. E sempre às seis e quinze saía da estrada e estacionava perto das árvores ao lado de Kilgannon Bridge, para ler o jornal da manhã, fazer o desjejum com sanduíches e tomar uma xícara de café da garrafa térmica. Era uma rotina que, infelizmente para Leary, não passou despercebida.

Cuchulain observou-o durante dez minutos, esperando pacientemente que Leary terminasse de comer os sanduíches. Aí o homem saiu do furgão, como sempre fez, e andou um pouco para dentro do bosque. Houve um som fraco de graveto sendo quebrado por um pisão atrás dele. Enquanto se virava, assustado, Cuchulain deslizou para fora das árvores.

Era uma figura fantástica, e Leary ficou imediatamente aterrorizado. Cuchulain vestia anorak escuro e balaclava preta, que deixava expostos somente os olhos, nariz e boca. Carregava uma PPK semiautomática na mão esquerda, com um silenciador Carswell atarraxado à ponta do cano.

— Faça o que eu disser e continuará vivo — falou Cuchulain. Sua voz era macia e tinha sotaque sul-irlandês.

— Faço qualquer coisa — disse Leary quase grasnando. — Tenho família, por favor.

— Tire o boné e a capa de chuva e deite-se ali.

Leary fez como foi dito. Cuchulain mostrou a mão direita e foi então que Leary viu a grande cápsula branca no centro da palma enluvada.

— Agora engula como um bom garoto.

— Vai me envenenar? — Leary suava.

— Você ficará desligado por umas quatro horas, é tudo — assegurou Cuchulain. — Assim é melhor. — Ele ergueu a arma. — Melhor que isto.

Leary engoliu a cápsula, as mãos tremendo. Suas pernas pareciam ter se transformado em borracha. Havia uma atmosfera de irrealidade em tudo aquilo, mas a mão estava em seus ombros, empurrando-o para baixo. A grama em seu rosto era fria. De repente, apenas as trevas.


O Dr. Hans Wolfgang Baum era um homem notável. Nascido em Berlim, em 1950, filho de um industrial preeminente, herdara uma fortuna equivalente a dez milhões de libras, assim como vastos negócios, após a morte do pai em 1970. Muitas pessoas em sua situação teriam se contentado em levar uma vida de prazeres, o que Baum fez, com a fundamental diferença que obtinha seu prazer no trabalho.

Tinha doutorado em engenharia pela Universidade de Berlim, bacharelado em direito pela Escola de Economia de Londres e mestrado em administração de empresas por Harvard. Fizera excelente uso de todos os títulos, expandindo e desenvolvendo suas várias fábricas na Alemanha Ocidental, França e Estados Unidos, a tal ponto que sua fortuna pessoal era estimada em mais de cem milhões de libras.

Seu projeto do coração, porém, era o desenvolvimento de um complexo industrial para a fabricação de tratores e maquinaria agrícola em geral, fora de Londonderry, perto de Kilgannon. As Indústrias Baum poderiam ter ido para qualquer outro lugar, como de fato queria o diretor do conselho administrativo.

Infelizmente, e contra todo o bom senso empresarial, Baum era um cristão convicto e um autêntico homem bom, mercadoria rara neste mundo. Membro da Igreja Luterana Alemã, fizera todo o possível para transformar a fábrica numa genuína sociedade entre católicos e protestantes. Tinha uma esposa totalmente voltada para a comunidade, e seus três filhos frequentavam escolas locais.

Não era segredo que Baum havia se encontrado com o PIRA, o IRA Provisório.2 Alguns diziam que com o lendário Martin McGuinness em pessoa. Verdade ou não, o IRA Provisório deixara a fábrica prosperar em Kilgannon. E prosperara de fato, propiciando trabalho para mais de mil protestantes e católicos desempregados.

Baum gostava de se manter em forma. Levantava exatamente à mesma hora toda manhã. Escorregava da cama às seis sem perturbar a mulher e metia-se numa roupa de jogging e tênis. Eileen Docherty, a jovem empregada, já estava de pé fazendo chá na cozinha, embora ainda de camisola.

— Café da manhã às sete, Eileen! — dizia ele. — O de sempre. Preciso começar mais cedo esta manhã. Tenho um encontro com o Comitê do Trabalho, em Derry.

Saiu pela porta da cozinha, cruzou o parque correndo, pulou a cerca baixa e tomou a direção do bosque. Sustentou um passo quase de atleta profissional, entre a corrida e o jogging, seguindo por uma série de trilhas, a mente voltada para a agenda cheia do dia.

Às seis e quarenta e cinco havia completado sua marca, saiu do bosque e se arrojou pelo acostamento de grama da estrada principal, de volta para casa. Como sempre, encontrou o furgão de Patrick Leary vindo pela estrada em sua direção. Parou e esperou; então pôde ver Leary através do para-brisa, com boné, capa e sua sacola de cartas.

Baum debruçou-se sobre a janela aberta. — O que tem para mim hoje, Patrick?

O rosto era o de um estranho: olhos escuros e calmos, ossos salientes, nada a temer, afinal. Mas era a morte que viera reclamá-lo.

— Sinto muito. De verdade — disse Cuchulain. — É um homem bom — e a Walther PPK em sua mão esquerda tocou Baum entre os olhos. A arma tossiu uma vez, e o alemão foi arremessado para trás, caindo ao lado da estrada, sangue e miolos espalhados pela grama.

Cuchulain manobrou instantaneamente e em cinco minutos estava de volta ao local perto da ponte onde deixara Leary. Tirou capa e boné, jogando-os ao lado do carteiro inconsciente, e correu através das árvores, passando por cima de uma cerca de madeira, a poucos minutos de uma estreita estradinha rural encoberta pelo mato. Uma motocicleta esperava-o lá: uma velha BSA de 350 cilindradas, sem acessórios e com pneus lameiros, como se fosse uma máquina de trilha. Era uma moto muito usada por fazendeiros dos dois lados da fronteira para agrupar ovelhas. Ele colocou um velho capacete com o visor riscado, montou, e o pé pressionou a alavanca da partida com experiência. O motor começou a roncar, e ele partiu, cruzando com um só veículo, do leiteiro, fora da cidade.

Começou a chover lá atrás na estrada principal, e a chuva ainda caía sobre o rosto de Hans Wolfgang Baum, quando o caminhão de leite freou ao lado dele, meia hora mais tarde. Naquele momento preciso, a oitenta quilômetros de distância, Cuchulain desviou a BSA para uma trilha no campo, ao sul de Clady, e cruzou a fronteira para a República da Irlanda em segurança.

Dez minutos depois, parou ao lado de uma cabine telefônica, discou o número do Belfast Telegraph, pediu para falar com a editoria de notícias e assumiu a responsabilidade pelo assassinato de Hans Wolfgang Baum, em nome do IRA Provisório.


— Não faz sentido — disse Ferguson. — Baum era muito querido por todo mundo, a comunidade católica inteira estava com ele. Baum brigou palmo a palmo com seu próprio conselho diretor para colocar aquela fábrica lá em Kilgannon. Eles provavelmente vão cair fora agora, o que deixa mais de mil católicos e protestantes desempregados, voando cada um na garganta do outro.

— Mas não é exatamente isso que o IRA Provisório quer, sir?

— Eu não pensaria assim, Harry. Não agora. Foi um serviço sujo. O assassinato clamoroso de um homem íntegro e decente, muito respeitado pela comunidade católica. Não vai fazer nada além de jogar o pessoal do Provisório contra sua própria gente. É isso que não compreendo. Foi uma coisa estúpida demais. — Ele deu uma pancadinha no arquivo de Baum que Fox trouxera. — Baum encontrou Martin McGuinness em segredo, que o convenceu da boa vontade do IRA Provisório. Pense o que quiser de McGuinness, mas ele é um homem esperto. Danado de esperto, para falar a verdade. Só que este não é o ponto. — Ele balançou a cabeça. — Isso não está batendo.

O telefone vermelho soou. Ele atendeu. — Ferguson falando. — Escutou por um instante. — Certo, ministro. — Colocou o fone no gancho e ficou em pé. — O secretário de Estado para a Irlanda do Norte, Harry. Ele me quer agora. Lisburn de novo. Serviço de Informação do Exército. Pode ser qualquer coisa. Descubra tudo que puder.

Ele estava de volta exatamente uma hora mais tarde. Enquanto tirava o casaco, Fox entrou.

— Não demorou muito, sir.

— Curto e grosso. Ele não está satisfeito, Harry, e nem a primeira-ministra. Ela está realmente furiosa, e você sabe o que isso significa.

— Ela quer resultados, sir.

— Só que ela quer resultados para ontem, Harry. O inferno despencando lá no Ulster. Os políticos protestantes tendo um dia cheíssimo. Paisley dizendo o “Eu avisei” de sempre. Ah, e o chanceler da Alemanha Ocidental a caminho da Downing Street. Para ser franco, as coisas não poderiam ser piores.

— Eu não seria tão enfático assim, sir. De acordo com o Serviço de Informação do Exército em Lisburn, o PIRA considera isso mais que um pequeno contratempo. Eles insistem em que não têm nada a ver com a história.

— Mas eles assumiram a responsabilidade.

— Atualmente, como sabe, eles andam mais na linha, desde que o comando central do Provisório foi reorganizado. McGuinness, entre outras coisas, ainda é chefe do Comando do Norte, e a palavra de Dublin é que ele nega categoricamente o envolvimento de qualquer um do seu pessoal. De fato, ele está tão zangado com as notícias como qualquer outro. Parece que ele pensava num grande acordo com Baum.

— Você acha que foi a INLA?3

— No passado, a INLA mostrou uma determinação de atacar com mais crueldade que o Provisório, quando a situação pedia. Mas o Serviço de Informação diz não, sir. Eles têm uma boa fonte na cúpula da INLA.

Ferguson aqueceu-se junto ao fogo. — Você está sugerindo que o outro lado foi responsável? A UVF4 ou a Mão Vermelha do Ulster?

— De novo, Lisburn tem boas fontes em ambas as organizações, e a palavra é definitivamente não. Nenhuma organização protestante esteve envolvida.

— Não oficialmente.

— Não parece que alguém esteja envolvido oficialmente, sir. Sempre existem os cowboys, claro. Os lunáticos que assistem a muitos filmes na sessão da meia-noite na TV e acabam tendo vontade de matar quem quer que seja.

Ferguson acendeu um charuto e sentou-se atrás de sua mesa. — Você acredita realmente nisso, Harry?

— Não, sir — disse Fox calmamente. — Eu estava apenas descartando as perguntas óbvias que os idiotas da mídia vão fazer.

Ferguson permaneceu sentado a encará-lo, carrancudo. — Você sabe alguma coisa, não sabe?

— Não exatamente, sir. Pode haver uma resposta, apenas uma suposição da qual não vai gostar nem um pouco.

— Diga.

— Está certo, sir. O fato de que o Belfast Telegraph recebeu um telefonema assumindo a responsabilidade em nome do PIRA vai fazer com que eles fiquem realmente muito mal.

— E daí?

— Vamos admitir que o propósito foi este.

— Quer dizer que uma organização protestante agiu com isso em vista?

— Não necessariamente, como verá, se me permitir explicar. Consegui os dados completos sobre o assunto direto de Lisburn, logo depois que você saiu. O assassino é absolutamente profissional, nenhuma dúvida a respeito. É frio, cruel, altamente organizado e mata apenas a pessoa em vista.

— Sim, isso já tinha me ocorrido também. Ele deu ao carteiro, Leary, uma cápsula. Uma espécie de comprimido para apagar a pessoa.

— E isso me deu coceira na cabeça, então coloquei os dados no computador. — Ele tinha uma pasta de arquivo sob o braço e agora a estava abrindo. — Os cinco primeiros assassinatos da lista envolvem uma testemunha forçada a engolir um desses comprimidos por um pistoleiro. A primeira vez ocorreu em Omagh, em 1975.

Ferguson examinou a lista e ergueu os olhos para Fox. — Mas em duas ocasiões as vítimas eram católicas. Aceito seu argumento de que o mesmo assassino esteve envolvido, mas isso não coincide com sua teoria de que o motivo do assassinato de Baum foi para deixar o IRA Provisório em maus lençóis.

— Espere um pouco, sir. A descrição do assassino em cada caso é idêntica. Balaclava preta e anorak escuro. Ele sempre usa uma Walther PPK. Em três ocasiões, foi visto escapando do local do crime numa motocicleta.

— E daí?

— Alimentei o computador com todos esses detalhes separadamente, sir. Todos os assassinatos envolvendo motocicletas. Cruzei as referências com o uso de automáticas Walther, não a mesma arma, claro. Depois, comparei com a descrição do assassino.

— E obteve algum resultado?

— Certamente, sir. — Fox mostrou não uma, mas duas folhas de papel fino. — São trinta assassinatos possíveis desde 1975, todos ligados aos fatores que mencionei. E ainda há outros dez possíveis.

Ferguson esquadrinhou a lista rapidamente. — Santo Deus! — murmurou. — Católicos e protestantes sem distinção. Não compreendo.

— Compreenderá se considerar as vítimas, sir. Em todos os casos em que o PIRA assumiu a responsabilidade, os alvos eram contraprodutivos, deixando os Provisórios numa situação muito ruim.

— E acontece o mesmo onde organizações extremistas protestantes estiveram envolvidas?

— Verdade, sir, embora o Provisório esteja mais envolvido do que qualquer outra organização. Outra coisa: se considerar as datas, todos os assassinatos ocorreram sempre que a situação estava calma ou tendia a melhorar, ou então quando acontecia alguma iniciativa política. Um dos possíveis envolvimentos do nosso homem pode ter sido em julho de 1972, quando, como sabe, uma delegação do IRA encontrou secretamente William Whitelaw em Londres.

— Certo — disse Ferguson. — Houve um cessar-fogo, uma verdadeira chance para a paz.

— Quebrada porque alguém começou a atirar a esmo no estádio Lenadoon em Belfast, e foi o bastante para ferver o caldeirão de novo.

Ferguson permaneceu sentado, olhando fixamente para a lista, o rosto sem expressão. Depois de um instante, ele disse: — Então você está dizendo que em algum lugar lá existe um louco solitário dedicado a manter as coisas podres.

— Exatamente, exceto que não acho que seja louco. Parece-me que ele está simplesmente seguindo os princípios marxistas-leninistas de revolução urbana. Caos, desordem, medo. Todos aqueles fatores essenciais para destruir qualquer tipo de ordem estabelecida.

— Com o IRA levando a culpa pela campanha suja?

— O que diminui mais e mais as chances de um eventual acordo entre eles e os protestantes, ou com o nosso próprio governo pelo menos.

— E assegura a continuação do conflito ano após ano e coloca a solução fora de nossas mãos. — Ferguson aquiesceu vagarosamente. — Uma teoria interessante, Harry. E você acredita nela?

Fox levantou os olhos numa atitude inquiridora.

Ferguson deu de ombros.

— Os fatos estão todos no computador. Nós nunca fazemos as perguntas certas, afinal. Se tivéssemos feito, o padrão teria aparecido mais cedo. Estava lá há muito tempo, sir.

— Sim, eu acho que você pode estar muito certo.

Ferguson ficou meditando um pouco mais que de costume.

Fox disse mansamente: — Ele existe, sir. É um fato. Tenho certeza. E tem mais uma coisa. Uma coisa que não é fácil de ser explicada por inteiro.

— Está bem, vamos ao pior.

Fox retirou uma outra folha do arquivo.

— Quando foi a Washington na semana passada, Tom Villiers voltou de Omã.

— Sim, ouvi alguma coisa sobre as peripécias dele por lá.

— Em seu relatório, Tony conta uma história interessante, envolvendo um judeu dissidente russo, chamado Viktor Levin, que ele trouxe junto. Uma ilustração fascinante de um centro de treinamento muito incomum da KGB na Ucrânia.

Ele se deslocou até a lareira e acendeu um cigarro, esperando que Ferguson terminasse a leitura do arquivo. Momentos depois, Ferguson disse: — Tony Villiers está nas Malvinas agora, você sabia?

— Sim, sir, está no SAS atrás das linhas inimigas.

— E este homem, Levin?

— Um engenheiro muito bem dotado. Entramos em contato com uma das faculdades de Oxford para conseguir-lhe um emprego. No momento, ele está seguro numa casa em Hampstead. Tomei a liberdade de fazer com que viesse até aqui, sir.

— Realmente, Harry? O que eu faria sem você?

— Manobramos muito bem, eu diria, sir. Ah, outra coisa: o psicólogo mencionado na história, Paul Cherny. Desertou em 1975.

— O quê? Para a Inglaterra? — perguntou Ferguson.

— Não, Irlanda. Esteve lá numa conferência internacional em julho daquele ano e pediu asilo político. Ele agora é professor de psicologia experimental no Trinity College, em Dublin.


Viktor Levin parecia bem e adaptado à nova realidade, ainda bronzeado do tempo passado no Iêmen. Vestia terno cinza de tweed, camisa branca, gravata azul e óculos de leitura de aro preto, que alteravam ligeiramente sua aparência. Falou por algum tempo, respondendo pacientemente às perguntas de Ferguson.

Durante uma pausa curta, ele disse: — Devo presumir que os cavalheiros acreditam que aquele homem, Kelly, ou Cuchulain, seu nome-código, está atualmente em atividade na Irlanda? Mas faz vinte e três anos!

— Mas essa era a ideia central, não? — disse Fox. — Alguém hibernando, escondido. Alguém pronto para quando a Irlanda explodisse. E talvez, até, ele a tenha explodido.

— E parece ser a única pessoa do lado de cá que tem alguma ideia de como ele se parece. Por isso, pedimos que dê uma olhada em alguns retratos. Muitos retratos — disse Ferguson.

— Como eu disse, foi há muito tempo — disse Levin.

— Mas deve haver nele alguma coisa que chamou sua atenção — sugeriu Fox.

— Deus sabe que é verdade. Uma face de demônio, quando matava. Mas não está sendo correto quando diz que sou o único que se lembra dele. Existe Tanya. Tanya Voroninova.

— A garotinha cujo pai representava o policial que foi morto por Kelly, sir — explicou Fox.

— Não tão jovem agora. Trinta anos. Uma garota apaixonante, deveria ouvi-la tocar piano — disse Levin.

— Viu-a desde então? — perguntou Ferguson.

— Sempre. Deixe-me explicar. Fiz com que pensassem que eu tinha reconhecido meus erros anteriores. Fui então reabilitado e enviado para trabalhar na Universidade de Moscou. Tanya foi adotada por Maslovsky, o coronel da KGB, e a mulher dele. Eles realmente cuidaram bem da garota.

— Ele é general agora, sir — adicionou Fox. — Ela demonstrou ter um grande talento para o piano. Quando tinha vinte anos, ganhou o Concurso Tchaikovsky de Moscou.

— Um momento — disse Ferguson, uma vez que a música clássica era seu interesse especial. — Tanya Voroninova, a concertista? Ela esteve ótima no festival de piano de Leeds há dois anos.

— Exato. A Sra. Maslovsky morreu um mês antes. Agora Tanya faz turnês o tempo todo. Sendo o pai adotivo um general da KGB, ela parece estar acima de qualquer suspeita.

— E tem visto a moça recentemente?

— Há seis meses.

— E ela falou sobre aqueles fatos de Drumore que descreveu?

— Ah, sim. Deixe-me explicar. Ela é muito inteligente e equilibrada, mas tem uma cisma com o que aconteceu. É como se aquilo ficasse indo e voltando em sua mente. Perguntei por que uma vez.

— E o que ela disse?

— Disse que era Kelly. Não pode esquecê-lo, porque ele foi muito gentil com ela, e não consegue compreender o que aconteceu. Disse que sonha frequentemente com ele.

— Bem, como ela está na Rússia, não é realmente de muita valia. — Ferguson ficou em pé. — Importa-se de esperar na sala ao lado por um momento, Sr. Levin?

Fox abriu a porta revestida de tecido verde para o russo. Ferguson disse: — Um homem bom. Gosto dele. — Caminhou até a janela e ficou olhando para a praça lá embaixo. Passado um instante, disse: — Harry, não acho que já tenhamos investigado algo que tenha sido tão vital.

— Eu concordo.

— Uma coisa estranha. Parece ser tão importante para o IRA quanto para nós que Cuchulain seja exposto.

— Sim, sir, o pensamento já tinha me ocorrido.

— Você acha que eles vão encarar isso dessa maneira?

— Talvez, sir. — O estômago de Fox estava vazio de excitação, como se ele soubesse o que estava para vir.

— Certo — disse Ferguson. — Deus sabe que você já deu o suficiente para a Irlanda, Harry. Está disposto a arriscar sua outra mão?

— Se tem que ser, sir.

— Ótimo! Vamos ver se eles estão dispostos a demonstrar algum bom senso pelo menos uma vez. Quero que você vá a Dublin falar com o conselho do IRA Provisório ou qualquer um que eles delegarem para vê-lo. Darei os telefonemas certos para arranjar isso. Fique no Westbourne, como de costume. E quero dizer hoje, Harry. Verei Levin agora de novo.

— Certo, sir — disse Fox com calma. — Agora se me permite, sir, preciso partir — e saiu.

Ferguson voltou até a janela e olhou a chuva lá fora.

Louca, claro, a ideia de que o Serviço de Informação britânico e o IRA pudessem trabalhar juntos, ainda que fizesse sentido naqueles dias. O ponto era se os selvagens de Dublin veriam a coisa daquela maneira.

Atrás dele, a porta se abriu, e Levin reapareceu. Tossiu em tom de desculpa.

— Brigadeiro, ainda precisa de mim?

— Mas é claro, meu caro amigo — disse Ferguson. — Vou levá-lo até meu quartel agora. Fotos, muitas fotos, receio. — Pegou o casaco, o chapéu e abriu a porta para dar passagem a Levin. — Quem sabe? Talvez possa reconhecer nosso homem.

Em seu coração, por um momento, não acreditou naquela possibilidade, mas não contou nada a Levin, enquanto desciam pelo elevador.

 

________________

1 A residência oficial do primeiro-ministro britânico, em Londres. (N. do T.)

2 Provisional Irish Republican Army: a facção mais violenta e bem armada do IRA. Os Provisórios são anarquistas e responsáveis pelas grandes campanhas de bombas contra Londres. (N. do T.)

3 Frente Nacional Irlandesa de Libertação. (N. do T.)

4 Ulster Volonteer Force: Força de Voluntários do Ulster, uma das inúmeras facções paramilitares protestantes. (N. do T.)


3

 

 

Estava chovendo em Dublin. Cruzando o Liffey River sob uma suave cortina cinza de água, o táxi vindo do aeroporto entrou numa rua lateral ao George's Quay e deixou Fox em seu hotel.

O Westbbourne era um lugar pequeno e antigo com apenas um bar-restaurante. Tinha o estilo georgiano original de uma construção tombada. Dentro, todavia, fora remobiliado com discreta elegância, exatamente igual ao período da fachada. A clientela como um todo era composta de uma classe média distintamente envelhecida que frequentara o hotel durante anos, sempre que chegava ao país por uns poucos dias. Fox ficara lá em diversas ocasiões, invariavelmente com o nome de Charles Hunt, comerciante de vinhos, uma profissão que o deixava quase que totalmente seguro de ser um disfarce apropriado.

A recepcionista, uma jovem expansiva, saudou-o de maneira calorosa.

— É bom vê-lo de novo, Sr. Hunt.

— Obrigado — disse Fox. — Recados?

— Nenhum, sir. Quanto tempo vai ficar?

— Uma noite, talvez duas. Eu a informarei.

O porteiro era um velho de cabelos muito brancos, a face vincada e triste dos autênticos desiludidos. Seu uniforme verde era maior do que deveria, e Fox, como sempre, sentiu-se levemente embaraçado quando ele apanhou as malas.

— Como vai, Sr. Ryan? — perguntou Fox, enquanto entravam no pequeno elevador.

— Bem, sir. Nunca estive melhor. Vou me aposentar no mês que vem. Eles estão me botando no estaleiro.

Ele percorreu o pequeno corredor, e Fox disse: — É uma pena. Vai sentir falta do Westbourne.

— Também acho, sir. Trinta e oito anos. — Ele destrancou a porta do quarto e entrou no aposento. — A hora chega para todos nós.

Era um quarto agradável, camas gêmeas, com uma imitação de lareira estilo Adam e mobília georgiana de mogno. Ryan colocou as malas na cama e ajeitou as cortinas.

— O banheiro foi reformado desde a última vez em que esteve aqui. Ficou ótimo. Gostaria de um pouco de chá?

— Por enquanto não, Sr. Ryan. — Fox tirou uma nota de cinco libras da carteira e passou a Ryan.

— Se houver algum recado, me informe imediatamente. Se eu não estiver aqui, estarei no bar.

Houve um lampejo nos olhos do velho, apenas por uma fração de segundo. Então, ele sorriu timidamente.

— Nunca o vi assim ansioso, sir.


Eram aqueles dias em Dublin, disse Fox a si mesmo, ao colocar a capa sobre a cama e parar defronte da janela. Não se podia confiar em ninguém, e havia, claro, simpatizantes em todo lugar. Não necessariamente do IRA, mas milhares de cidadãos decentes e comuns que odiavam a violência e as bombas, mas aprovavam o ideal político por detrás de tudo aquilo.

O telefone tocou, e quando Fox atendeu, Ferguson estava do outro lado da linha.

— Está tudo marcado. McGuinness vai vê-lo.

— Quando?

— Eles vão informá-lo.

A linha emudeceu, e Fox recolocou o telefone no gancho. Martin McGuinness, chefe do Comando Norte do IRA Provisório, entre outras coisas. Afinal, estaria negociando com um dos mais inteligentes membros dos Provisórios.

Ele podia ver o Liffey na extremidade da rua, e a chuva vibrava contra a vidraça. Sentiu-se inexplicavelmente deprimido. Irlanda, claro, exatamente ali. Por um momento, veio uma dor consistente na mão esquerda, que não existia mais há muito tempo. Pura cabeça, disse a si mesmo, e desceu para o bar.

O bar estava quase deserto, exceto pela presença do jovem barman italiano. Fox pediu uísque com água e sentou-se num canto ao lado da janela. Havia uma pilha de jornais sobre a mesa, e ele estava quase apanhando o Times, quando Ryan apareceu como uma sombra.

— Seu táxi está aqui, sir.

— Meu táxi? Oh, sim, claro! — Ele franziu a testa, percebendo a capa de chuva azul dobrada no braço de Ryan. — É a minha, não?

— Tomei a liberdade de pegá-la no quarto, sir. Vai precisar dela. Acho que a chuva não vai embora tão cedo.

De novo, havia algo em seus olhos, uma expressão quase divertida. Fox consentiu que ele o ajudasse a vestir a capa e seguiu-o pela escada até lá fora, onde o táxi preto aguardava.

Ryan abriu a porta e disse quando Fox entrava: — Passe uma boa tarde, sir.

O táxi arrancou imediatamente. O motorista era um jovem de cabelos pretos e encaracolados.

Vestia uma jaqueta de couro marrom e um cachecol branco. Não disse uma palavra, simplesmente entrou na corrente do tráfego e dirigiu ao longo do George's Quay.

Um homem com boné de pano e casaco grosso de lã estava parado ao lado de uma cabine telefônica verde. O táxi encostou junto ao meio-fio, o homem do casaco abriu a porta de trás e sentou-se calmamente ao lado de Fox.

— Continue dirigindo, Michael — disse ao motorista e virou-se para Fox, cordialmente. — Nossa Senhora, pensei que ia me afogar lá fora. Levante os braços, por favor, capitão. Não muito. Apenas o suficiente. — Ele revistou Fox completamente, de uma maneira profissional, e não encontrou nada. Recostou-se no banco, acendeu um cigarro e então tirou do bolso uma pistola, segurando-a entre os joelhos. — Sabe o que é isso, capitão?

— Uma Ceska, pelo jeito — disse Fox. — É uma versão com silenciador que os tchecos fabricaram há poucos anos.

— Na mosca. Lembre-se apenas de que ficarei com ela pronta, quando estiver conversando com McGuinness. Como eles dizem no cinema, um movimento em falso e estará morto.

Continuaram seguindo o rio, o tráfego pesado em meio à chuva, e finalmente estacionaram junto ao meio-fio do Victoria Quay.

— Desça — disse a Fox o homem do casaco, seguindo-o. A chuva caía em rajadas sobre o rio, e ele levantou a gola da capa. O homem do casaco passou debaixo de uma árvore e acenou para um abrigo público recuado na calçada. — Ele não gosta de ficar esperando. É um homem muito ocupado.


Ele acendeu outro cigarro e se encostou na árvore. Fox andou pela calçada e desceu os poucos degraus do abrigo. Havia um homem sentado num banco do canto, lendo um jornal. Estava bem vestido: capa de chuva bege aberta, revelando um terno azul-marinho bem cortado, camisa branca e gravata listrada em azul e vermelho.

Era muito elegante, a boca expressiva e os olhos azuis. Difícil de acreditar que aquele homem de aparência agradável figurava na lista dos mais procurados do exército britânico por quase treze anos.

— Ah, capitão Fox! — disse McGuinness. — É bom vê-lo novamente.

— Mas nunca nos encontramos — disse Fox.

— Derry, 1972 — falou McGuinness. — Você era alferes. Não é assim que chamam um segundo-tenente nos Blue and Royals? Havia uma bomba num pub da Prior Street. Você estava no destacamento da polícia militar naquela época.

— Meu Deus! — exclamou Fox. — Agora me lembro.

— A rua inteira estava em polvorosa, e você correu até uma casa perto da mercearia e tirou de lá uma mulher e duas crianças. Eu estava do outro lado, num telhado horizontal, com um homem que tinha um rifle Armalite e queria fazer um buraco na sua cabeça. Não permiti. Achei que não era direito naquelas circunstâncias.

— Você estava no comando do IRA em Derry naquela época.

McGuinness sorriu, maliciosamente. — Velhos tempos, e divertidos, não? Não era para você estar aqui, aliás. Bem, mas o que aquela velha cobra do Ferguson quer que você discuta comigo?

Então Fox contou.

Quando terminou, McGuinness ficou sentado, meditando, as mãos no bolso da capa de chuva, olhando fixo para o Liffey. Instantes depois disse: — Aquele lá é o Wolfe Tone Quay, você conhece?

— Tone não era protestante? — perguntou Fox.

— Era. Mas também foi um dos maiores patriotas irlandeses. Existiram poucos como ele.

McGuinness assoviou desafinado entre os dentes, e Fox disse: — Você acredita em mim?

— Oh, sim — disse McGuinness suavemente. — Uns desonestos sanguinários, os ingleses, mas acredito totalmente em você por uma simples razão. Faz um tremendo sentido, capitão. Todos aqueles assassinatos durante anos, e a merda que desabou sobre nós por causa deles, até internacionalmente. Sei quando não fomos responsáveis, e a cúpula do braço armado do IRA também sabe. A questão é: sempre pensamos que eram os idiotas, os cowboys, os lunáticos. — Ele sorriu, falsamente. — Ou o Serviço de Informação britânico, claro. Nunca ocorreu a nenhum de nós que tivesse sido trabalho de um só homem. Um plano deliberado.

— Vocês têm um punhado de marxistas na sua organização, não têm? — sugeriu Fox. — O tipo de gente que pode encarar os soviéticos como salvadores.

— Pode esquecê-los. — A raiva passou fugazmente pelos olhos de McGuinness. — Irlanda livre e Irlanda para os irlandeses. Não queremos nenhum conchavo marxista por aqui.

— E o que vai acontecer agora? Você vai até o conselho?

— Não, acho que não. Vou falar com o chefe do estado-maior.1 Afinal, foi ele quem me enviou aqui. Vou ver o que ele acha. Francamente, muito poucos estão no conselho, os melhores.

— É verdade — Fox levantou-se. — Cuchulain pode ser qualquer um. Talvez alguém muito chegado ao próprio conselho.

— Foi um pensamento que me ocorreu. — McGuinness acenou, e o homem do casaco saiu debaixo da árvore. — Murphy vai levar você de volta ao Westbourne agora. Não saia. Ficarei em contato.

Fox caminhou poucos passos, parou e se virou. — A propósito, e esta gravata de granadeiro que você está usando?

— Reparou, então? É apenas para fazer com que se sinta em casa, capitão Fox.


Fox discou para Ferguson da cabine que ficava no foyer do Westbourne, de modo que a chamada não passasse pela mesa do hotel. O brigadeiro não estava no apartamento, e por isso ele tentou a linha privada de seu escritório na diretoria-geral. Ferguson atendeu em seguida.

— Tivemos um contato preliminar, sir.

— Foi rápido. Mandaram McGuinness?

— Sim, sir.

— Ele comprou a história?

— Completamente, sir. Ele fará outro contato, talvez logo mais à noite.

— Ótimo. Estarei no apartamento dentro de uma hora. Não tenho planos de sair. Ligue-me assim que tiver mais notícias.

Fox tomou banho, mudou de roupa e desceu de novo para o bar. Bebia uísque com água e ficou sentado lá pensando nas coisas em geral, particularmente em McGuinness.

Um homem esperto e perigoso, sem nenhuma dúvida. Não apenas um pistoleiro, embora tivesse sua cota de assassinatos, mas um dos mais importantes líderes forjados pelos Troubles, o problema irlandês. A coisa mais constrangedora que Fox imaginava, com uma certa dose de irritação, era que ele de fato tinha gostado do homem. Mas, nada a fazer. Entrou no restaurante e jantou mais cedo, sentado num reservado com um exemplar do Irish Press na frente.

Mais tarde teve que passar pelo bar rumo ao saguão. Havia mais de vinte pessoas lá, obviamente outros hóspedes, pela aparência, exceto o motorista de táxi que o levara mais cedo ao encontro de McGuinness. Ele estava sentado numa banqueta na extremidade do bar, acompanhado de um copo de cerveja. A única diferença é que agora vestia um vistoso terno cinza. Não demonstrou reconhecer Fox, que entrou no saguão, onde foi abordado por Ryan.

— Se me lembro bem, sir, é chá e não café que prefere depois do jantar.

Fox, que tinha se sentado, disse: — Isso mesmo.

— Tomei a liberdade de colocar uma bandeja no seu quarto, sir. Pensei que pudesse querer um pouco de paz e tranquilidade.

Havia aquela expressão de novo em seus olhos, e ele deu as costas para Fox sem dizer palavra, tomando o rumo do elevador. Fox resolveu fazer o jogo, seguindo-o, esperando talvez outro recado, mas o velho não comentou nada, e quando alcançaram o primeiro andar, seguiu pelo corredor e abriu a porta do quarto para ele.


Martin McGuinness assistia ao noticiário na TV. Murphy estava parado ao lado da janela. Como o homem do bar, vestia terno, antiquado, de um tecido azul-marinho barato.

McGuinness desligou a TV, usando o controle remoto.

— Ah, aí está você! Experimentou o pato com laranja? Até que não é dos piores por aqui.

A bandeja com os apetrechos de chá sobre a mesa tinha duas xícaras.

— Posso servir, Sr. McGuinness? — perguntou Ryan.

— Não, nós mesmos cuidamos disso. — McGuinness alcançou o bule de chá e disse a Fox, enquanto Ryan se retirava: — O velho Patrick, como vê, é um dos nossos. E você pode esperar lá fora, Michael — ele acrescentou.

Murphy saiu sem dizer nada. — Disseram-me que os cavalheiros nunca colocam o leite antes, mas então eu pensei que nenhum cavalheiro de verdade se preocuparia com uma bobagem dessas. Não é assim que ensinam em Eton?

— Alguma coisa parecida. — Fox pegou a xícara que lhe era oferecida. — Não imaginei vê-lo tão cedo.

— Muita coisa a fazer e um tempo menor ainda. — McGuinness bebeu um pouco de chá e suspirou de prazer. — Está ótimo. Bem, estive com o chefe do estado-maior, e ele acha, como eu, que o seu computador esbarrou em algo que é importante ser seguido.

— Juntos?

— Isso depende. Em primeiro lugar, ele está decidido a não discutir isso com o conselho, certamente não neste estágio. Portanto, fica entre você e eu.

— Parece sensato.

— Outra coisa. Não queremos a polícia de Dublin no caso. Por isso, mantenha a turma da seção especial fora disso. Nenhum envolvimento do Serviço Militar de Informação também.

— Tenho certeza de que o brigadeiro Ferguson vai concordar.

— Ele é canalha o bastante para aceitar qualquer coisa. Mas ele também vai ter que aceitar que não haverá, em hipótese nenhuma, troca de informações sobre membros do IRA, passadas ou presentes. Aquele tipo de material que possa ser usado em outros expedientes.

— Certo — disse Fox. — Eu entendo, mas isso pode ser um erro. Como vamos estabelecer uma cooperação se não juntarmos informações?

— Existe um jeito. — McGuinness serviu-se de outra xícara de chá. — Discuti isso com o chefe do estado-maior, e ele está de acordo se você estiver. Usaremos um intermediário.

— Um intermediário? — Fox franziu as sobrancelhas. — Não compreendo.

— Alguém que os dois lados aceitem. Alguém igualmente confiável, entende?

Fox riu. — Não existe esse animal.

— Oh, sim, existe — disse McGuinness. — Liam Devlin, e não me diga que você não sabe quem ele é.

Harry Fox disse devagar: — Conheço Liam Devlin muito bem.

— Claro que conhece. Você e Ferguson fizeram com que o SAS o sequestrasse em setenta e nove para ajudá-los a tirar Martin Brosnan daquela prisão francesa, a fim de caçar até a morte o cachorro louco do Frank Barry.

— Você é extremamente bem informado.

— Sim, bem, Liam está aqui em Dublin agora. É professor do Trinity College. Ele tem um chalé a uma hora de carro daqui, numa cidade chamada Kilrea. Vá vê-lo. Se ele concordar em ajudar, voltaremos a discutir.

— Quando?

— Eu o informarei, ou talvez eu aja de alguma forma inesperada. Do mesmo jeito que fiz com o exército britânico naqueles tempos no norte. — Ele ficou em pé. — Tem um rapaz lá embaixo no bar. Reparou?

— O motorista do táxi.

— Billy White. Pode acertar uma mosca na parede com as duas mãos. Ele fica com você enquanto estiver aqui.

— Não é necessário.

— Oh, sim, é necessário. — McGuinness colocou a capa. — Número um: quero saber tudo o que acontece com você; e número dois: é conveniente saber onde você está. — Ele abriu a porta, e Fox viu Murphy um pouco além. — Ficarei em contato, capitão. — McGuinness fez uma saudação debochada, e a porta se fechou atrás dele.


— Acho que faz sentido — disse Ferguson. — Mas não estou certo de que Devlin vá trabalhar de novo para nós, não depois do caso Frank Barry. Ele sentiu que nós o usamos, e Brosnan também, de uma maneira péssima.

— De fato, sir — disse Fox. — Foi péssimo.

— Está certo, Harry. Mas não faça disso um bicho de sete cabeças. Telefone e veja se está em casa. Se estiver, vá vê-lo.

— Agora, sir?

— E por que não? São apenas nove e meia da noite. Se ele estiver, me informe. Quero falar pessoalmente com ele. A propósito, aqui está o número. Anote.

Fox foi ao bar e trocou uma nota de cinco libras por moedas de cinquenta pence. Billy White ainda estava sentado lá, lendo um jornal. O copo de cerveja parecia intocado.

— Posso lhe oferecer uma bebida, Sr. White?

— Nunca recuso uma bebida, capitão. — White sorriu, fazendo um brinde, e esvaziou o copo de cerveja num só gole. — Um Bushmills seria bom para rebater.

Fox pediu uma dose. — Preciso ir a uma cidade chamada Kilrea. Você conhece?

— Sem problemas — disse White. — Conheço bem demais.

Fox voltou para a cabine telefônica e fechou a porta. Sentou, refletindo por um instante, então discou o número que Ferguson lhe dera. A voz, quando respondeu, foi instantaneamente reconhecida. A voz do homem talvez mais formidável que Fox já encontrara.

— Aqui é Devlin.

— Liam? Harry Fox.

— Deus do céu! — exclamou Devlin. — Onde você está?

— Em Dublin, no Westbourne. Gostaria de ir até aí para vê-lo.

— Você quer dizer agora?

— Se não for inconveniente...

Devlin riu. — Para falar a verdade, neste exato momento estou perdendo no xadrez, filho, uma coisa que odeio. Você chegou bem na hora. É aquilo que se pode chamar de um telefonema de negócios?

— É. Vou ligar para Ferguson e dizer que você está em casa. Ele quer falar com você.

— Então o velho filho da puta continua na ativa! Ah, sim, você sabe como chegar até aqui?

— Sei.

— Então vejo você daqui a uma hora. Kilrea Cottage, em Kilrea. Não tem como errar. É perto do convento.

Quando Fox saiu da cabine depois de ligar para Ferguson, White o esperava.

— Então vamos indo, capitão?

— Vamos — disse Fox. — Um chalé em Kilrea, perto de um convento. Vou só pegar a capa.

White esperou que ele pegasse o elevador e se meteu na cabine. Discou um número. O aparelho do outro lado foi atendido imediatamente. Ele disse: — Estamos indo para Kilrea. Parece que ele vai ver Devlin agora à noite.

Enquanto rodavam pelas ruas molhadas de chuva, White disse casualmente: — Apenas para seu conhecimento, capitão, eu era tenente da brigada North Tyrone do IRA no ano em que você perdeu a mão.

— Você devia ser muito jovem.

— Nasci velho. Este sou eu. Graças às brigadas especiais, quando eu era garotinho, e graças àqueles estúpidos da Polícia Real do Ulster. — Acendeu um cigarro com uma só mão. — Conhece bem Liam Devlin, não conhece?

— Por que pergunta? — disse Fox cuidadosamente.

— É quem nós vamos ver, não é? Meu Deus, capitão, quem não conhece o endereço de Devlin?

— Algo como uma lenda para você, eu suponho.

— Uma lenda? Aquele homem é uma enciclopédia irlandesa. Quer dizer, atualmente ele não tem nenhum vínculo com o Movimento. É o que se pode chamar de um moralista. Não pôde suportar as bombas e todo esse tipo de coisa.

— E você pode?

— Estamos em guerra, não é? Vocês bombardearam o maldito Terceiro Reich. Nós vamos bombardear vocês, malditos ingleses, se é isso que conta.

Lógico, mas desanimador, Fox pensou. E terminaria? Um cemitério de corpos pela frente. Ele tremeu, o rosto desolado.

— Devlin — disse White, enquanto começavam a deixar a cidade. — Há uma história que ouvi sobre ele uma vez. Deve saber se é verdade, imagino.

— Conte.

— Dizem que ele foi para a Espanha nos anos trinta lutar contra Franco e caiu prisioneiro. Então os alemães o libertaram e o usaram como agente durante a grande guerra.

— Certo.

— Segundo ouvi, depois daquilo o enviaram para a Inglaterra. Alguma coisa a ver com uma tentativa de sequestro de Churchill por paraquedistas alemães em 1943. Existe alguma verdade nisso?

— Para mim parece ter saído direto de um romance — disse Fox.

— Foi o que pensei. Mesmo assim, só um maldito homem para toda essa história — ele se reclinou no banco e concentrou a atenção na estrada.

Uma versão incompleta como descrição de Liam Devlin, pensou Fox, sentado na escuridão. Um estudante brilhante que entrara no Trinity College de Dublin aos dezesseis anos e que se diplomara em primeiro lugar com louvor aos dezenove. Erudito, escritor, poeta e pistoleiro de alta periculosidade do IRA nos anos trinta, ainda estudante.

Muito do que White dissera era verdade. Ele fora à Espanha para lutar ao lado dos antifascistas, trabalhara para a Abwehr na Irlanda. Como o caso Cuchulain? Uma história murmurada em pequenos círculos com frequência, mas até onde ia a verdade? Bem, a verdade podia estar anos antes da abertura daqueles arquivos classificados.

No pós-guerra, Devlin foi professor ¨de um seminário católico chamado All Souls, fora de Boston. Envolvera-se na campanha abortada do IRA no final dos anos cinquenta, retornara ao Ulster em 1969, quando começaram os atuais problemas. Um dos arquitetos originais do PIRA se transformara progressivamente num desiludido na campanha de bombas e retirara seu apoio ao Movimento. Desde 1976, agarrara-se a uma posição na Faculdade de Literatura Inglesa em Trinity.

Fox não o vira mais desde 1979, quando foi coagido, pressionado e chantageado por Ferguson para obter sua ajuda ativa na caçada a Frank Barry2, ex-ativista do IRA que se transformara num assassino a soldo do terrorismo internacional. Houve várias razões para que Devlin prosseguisse, sobretudo porque acreditara nas mentiras de Ferguson. Mas como reagiria agora?

Entraram na comprida rua da cidade, e Fox se sobressaltou quando White disse:

— Aqui estamos. Kilrea. Lá está o convento, e aquele é o chalé de Devlin, atrás do muro, na beira da estrada.

Ele embicou o carro numa entrada de pedra e desligou o motor.

— Espero aqui, capitão, certo?

Fox saiu do carro e caminhou pelo acesso de paralelepípedos entre roseirais até o pórtico pintado de verde. O chalé era agradavelmente vitoriano, com a maioria dos ornamentos de madeira em forma triangular castigados pelo tempo. Uma luz brilhava atrás das cortinas fechadas numa janela de arco. Ele tocou a campainha. Havia vozes lá dentro, passos, e então a porta foi aberta, e Liam Devlin estava ali olhando para ele.

 

________________

1 O IRA tem uma estrutura semelhante à dos exércitos convencionais: estado-maior, brigadas e batalhões. (N. do T.)

2 Ver Liam Devlin 2, Pacto com o Diabo (Touch the devil, 1982)


4

 

 

Devlin usava uma camisa de flanela azul-escura aberta no pescoço, calça cinza e um caro par de sapatos de couro rústico marrom, em estilo italiano. Era um homem pequeno, não mais de metro e setenta, sessenta e cinco anos, cabelos negros ondulados, começando a embranquecer. Havia uma cicatriz desmaiada do lado direito da testa, resultado de um antigo ferimento a bala. Seu rosto era claro, os olhos de um extraordinário e vívido azul. Um leve sorriso irônico parecia manter um dos cantos da boca permanentemente para cima, o tipo do homem que achara a vida uma piada de mau gosto e decidira que a única coisa a fazer era rir daquilo.

O sorriso tinha charme e era totalmente sincero. — É muito bom ver você, Harry — ele abraçou Fox de uma forma delicada.

— Bom ver você também, Liam.

Devlin olhou além de Fox, para o carro com Billy White ao volante.

— Trouxe alguém com você?

— Só o motorista.

Devlin desceu a entrada de pedra e se debruçou na janela do carro.

— Senhor Devlin? — disse Billy.

Devlin deu as costas sem dizer nada e voltou.

— Motorista, não é, Harry? O único lugar para onde ele pode levar você é direto para o inferno.

— Ferguson contou tudo, não?

— Sim, mas esqueça disso um pouco. Entre.

O interior da casa era um ninho da era vitoriana parado no tempo. Forração de mogno, papel William Morris na parede do hall, com várias cenas noturnas do pintor vitoriano Atkinson Grimshaw penduradas na parede.

Fox examinou-as com admiração, enquanto tirava a capa e entregava a Devlin.

— Estranho isso aqui pendurado, Liam. Grimshaw era de Yorkshire, inglês até a raiz dos cabelos.

— Não é culpa dele, Harry. Ele pintava como um anjo.

— Vale um ou dois xelins — disse Fox, pilheriando, certo de que um lance de dez mil libras num leilão não seria um despropósito para arrematar mesmo um pequeno Grimshaw.

— Você garante? — disse Devlin, radiante, ao abrir uma folha da porta dupla de mogno e se dirigir para a sala.

Como o hall, o aposento era vitoriano. Papel de parede estampado em verde e ouro, mais Grimshaw nas paredes, e um fogo ardendo vivo numa lareira que parecia a original de William Langley. O homem que estava parado diante da lareira era um padre de batina escura. Ele deu as costas para o fogo e saudou o visitante.

Tinha mais ou menos a altura de Devlin, os cabelos de um cinza chumbo penteados para trás, deixando as orelhas visíveis. Um homem elegante, particularmente no momento em que deu um sorriso de boas-vindas, e havia uma espécie de ímpeto em seu interior, uma energia que despertou algo em Fox. Não era frequente que tanto uma como outra pessoa fossem tão semelhantes, completa e indistintamente, Devlin e o padre.

— Citando Shakespeare, dois toques de Harry na noite — disse Devlin. — Capitão Harry Fox, quero que conheça o padre Harry Cussane.

Cussane apertou calorosamente a mão de Fox. — É um grande prazer, capitão Fox. Liam contou algumas coisas sobre você depois de seu telefonema.

Devlin apontou o tabuleiro de xadrez ao lado do sofá. — Uma desculpa para ficar longe daquilo. Ele estava me arrancando as calças.

— Um enorme exagero, como sempre — disse Cussane. — Mas preciso ir. Vou deixá-los com seus negócios. — Sua voz era agradável e profunda. Pronúncia irlandesa, e havia um pequeno indício de sotaque americano.

— Você ouviu o homem, Harry? — Devlin apanhara três copos e uma garrafa de Bushmills na prateleira do armário, no canto da sala. — Sente-se, padre. Outro pequeno trago antes da cama não vai matá-lo. — Disse então a Fox: — Nunca conheci alguém tão inflexível.

— Está bem, Liam. Eu me rendo — disse Cussane. — Mas só quinze minutos. Depois preciso ir. Como você sabe, gosto de fazer uma última ronda lá no hospital. E ainda tem Danny Malone. Viver é uma luta diária para ele agora.

— O doce Danny — disse Devlin. — Tomarei um trago por ele. E isto vale para todos nós.

— Disse hospital? — perguntou Fox.

— Sim, existe um convento do Sagrado Coração aí ao lado, dirigido pelas Irmãs da Piedade. Há alguns anos elas construíram um hospital para pacientes terminais.

— Trabalha lá?

— Sim, sou uma mistura de administrador e padre. As freiras nunca são boas o bastante para lidar com as contas. Uma nulidade total. A irmã Anne-Marie, a superiora, gasta até o último penny. E a paróquia daqui é pequena. Por isso, o vigário não tem um cura. E eu dou uma mãozinha a ela.

— E gasta três dias da semana na chefia da assessoria de imprensa do secretariado católico em Dublin — disse Devlin. — Isso sem mencionar a façanha de agitador cultural do clube dos garotos aqui da região. Eles fizeram cinco representações ótimas de uma versão de South Pacific, com um elenco de noventa e três alunos.

— Adivinhe quem foi o diretor? — disse Cussane. — Da próxima vez vamos tentar West Side Story. Liam acha que é muito ambicioso, mas eu sempre penso que é melhor enfrentar um desafio do que escolher coisas fáceis.

O padre engoliu um trago curto de Bushmills, e Fox disse:

— Desculpe perguntar, padre, mas é irlandês ou americano? Eu não saberia dizer.

— Na maioria das vezes, nem ele sabe — riu Devlin.

— Minha mãe era irlandesa-americana que voltou para Connacht em 1938, quando os pais dela morreram. Veio buscar suas raízes. Tudo que achou fui eu.

— E seu pai?

— Nunca o conheci. Cussane era o sobrenome dela. A propósito, ela era protestante. Ainda existem uns poucos Cussane em Connacht, descendentes dos açougueiros de Oliver Cromwell.1 Cussane é geralmente chamado de Patterson nesta parte do país, numa tradução livre de casan, que significa vereda em irlandês.

— Ele nunca tem certeza de quando é Harry Patterson ou Harry Cussane — acrescentou Devlin.

— Não é bem assim — sorriu Cussane. — Minha mãe voltou para a América em 1946, após a guerra. Ela morreu de gripe um ano depois, e eu fiquei com o único parente dela vivo, um velho tio-avô que tocava uma fazenda no cinturão do trigo em Ontário. Ele era um homem muito bom, católico praticante. Foi por influência dele que eu decidi entrar para a Igreja.

— Entra o diabo, à esquerda do palco — Devlin ergueu o copo.

Fox pareceu confuso, e Cussane explicou. — O seminário que me aceitou foi o All Souls, em Vine Landing, fora de Boston. Liam era professor de inglês lá.

— Foi um grande desafio para mim — disse Devlin. — Uma arapuca. Eles me apanhavam constantemente fazendo citações erradas de T. S. Eliot nas aulas.

— Servi em duas paróquias de Boston e outra de Nova York — disse Cussane —, mas tudo que eu esperava era voltar para a Irlanda. Finalmente, consegui me mudar para Belfast em 1968. Uma igreja de Falis Road.

— Que foi incendiada completamente por uma turba orange2 no ano seguinte.

— Tentei manter a paróquia numa escola — disse Cussane.

Fox relanceou para Devlin. — Enquanto você andava por Belfast jogando gasolina nas chamas, não?

— Deus pode perdoá-lo por dizer isso — disse Devlin, piamente. — Eu não.

Cussane esvaziou o copo. — Vou indo. Foi ótimo encontrá-lo, Harry Fox.

Ele esticou a mão. Fox apertou-a, e Cussane foi até a janela francesa, misto de porta, e abriu-a. Fox viu o convento se erguendo na noite do outro lado do muro do jardim. Cussane cruzou o gramado, abriu o portão e se foi.

— Um homem de verdade — ele disse, enquanto Devlin fechava as janelas.

— É. — Devlin se virou não mais sorrindo. — Está bem, Harry. Ferguson fez o mistério de sempre. Parece que ele quer que você diga o que está havendo afinal.


Estava tudo calmo no hospital. Nada lembrava a ideia do que poderia ser um hospital convencional. O arquiteto desenhara a ala de modo a dar aos ocupantes de cada cama a escolha da privacidade ou da intimidade com os demais pacientes. A irmã do turno da noite estava sentada à mesa. A única luz era uma lâmpada num abajur.

Ela não ouviu Cussane se aproximar, e subitamente ele estava a seu lado, saído da escuridão.

— Como está Malone?

— Na mesma, padre. Pouco sofrimento. Nós o drogamos apenas para minorar a dor.

— Ele está lúcido?

— A maior parte do tempo.

— Vou lá vê-lo.

A cama de Danny Malone, separada das outras por uma estante de livros e um armário, ficava num ângulo em relação à janela que possibilitava uma vista dos campos e do céu noturno. Uma luz de cabeceira revelava seu rosto. Não era velho, pouco mais de quarenta, cabelos prematuramente encanecidos, as faces encovadas sob a pele esticada, a dor estampada pelo câncer que o estava levando para a outra vida, devagar e inexoravelmente.

Quando Cussane se sentou, Malone abriu os olhos. Encarou Cussane com um olhar vazio e então o reconheceu.

— Padre, achei que viria.

— Eu prometi, não foi? Eu estava tomando uma saideira com Liam Devlin.

— Meu Deus, padre, tem sorte de conseguir ser o único a ficar com ele. Ele é importante para a Causa, o Liam. Tenho que reconhecer. Não há homem vivo que tenha feito mais pela Irlanda.

— E você? — Cussane sentou-se à beira da cama. — Não há um lutador pelo Movimento que tenha sido mais forte que você, Danny.

— Mas quantas vezes eu matei, padre? Aí está o erro. E por quê? — perguntou Malone. — Daniel O'Connel disse uma vez num discurso que, por mais que a libertação da Irlanda fosse justa, não valia uma simples vida humana. Quando eu era mais jovem, duvidei daquilo. Agora que estou morrendo, acho que sei o que ele quis dizer. — Ele estremeceu de dor e se virou para olhar Cussane. — Podemos conversar mais, padre? Ajuda a desanuviar a cabeça.

— Só mais um pouco. Você precisa dormir — sorriu Cussane. — Uma coisa que um padre faz bem é ouvir, Danny.

Malone sorriu, satisfeito. — Certo. Onde é que nós estávamos? Eu falava sobre a organização da campanha de bombas contra a região central da Inglaterra e Londres, em 1972.

— Você estava dizendo que os jornais o apelidaram de Raposa — disse Cussane — porque parecia ficar indo e voltando da Irlanda para a Inglaterra. Mas todos os seus amigos foram presos, Danny, e você não. Como foi isso?

— Simples, padre. A maior praga desse nosso país são os informantes, e a segunda maior praga é a incompetência do IRA. Pessoas cheias de ideologia e ideais revolucionários fazem barulho e estão frequentemente perdendo o bom senso. Foi por isso que preferi ficar com os profissionais.

— Profissionais?

— É o que se pode chamar de criminosos. Por exemplo, nos anos setenta não havia nenhum esconderijo do IRA na Inglaterra que não fosse parar mais cedo ou mais tarde na lista da seção especial da Scotland Yard. Foi assim que muitos acabaram presos.

— E você?

— Os criminosos fugitivos, ou que precisavam se entocar quando as coisas andavam muito quentes, tinham lugares para ir, padre. Lugares caros, admito, mas seguros. E foram esses que eu usei. Havia um na Escócia, ao sul de Glasgow, em Galloway, administrado pelos irmãos Mungo. O que se pode chamar de escória da sociedade. Filhos da puta mesmo.

A dor ficou repentinamente tão insuportável que ele teve que lutar para respirar.

— Vou chamar a irmã — disse Cussane, alarmado.

Malone agarrou Cussane pela manga.

— Não, melhor não. Chega de anestésicos, padre. Elas são bem intencionadas, as irmãs, mas já basta. Vamos apenas continuar conversando.

— Está bem — disse Harry Cussane.

Malone ficou novamente de costas, fechou os olhos por um instante e depois os abriu de novo.

— De qualquer jeito, como eu estava dizendo, aqueles irmãos, Hector e Angus Mungo, eram uns filhos da puta muito originais.


Devlin ia e vinha pela sala sem parar, com passos estudados.

— Você acredita? — perguntou Fox.

— Faz sentido e poderia explicar muita coisa — disse Devlin. — Vamos dizer que em princípio eu acredite.

— O que vamos fazer então?

— O que vamos fazer? — Devlin encarou Fox. — Que homem insolente. Deixe-me lembrá-lo, Harry, que da última vez em que fiz um serviço para Ferguson o filho da puta me fodeu. Mentiu deslavadamente. Fui usado.

— Aquilo foi ontem. Hoje é hoje, Liam.

— Que pérola de sabedoria é essa?

Houve uma batida suave na janela. Devlin abriu a gaveta da mesa, pegou uma antiga pistola Mauser, com um bojudo silenciador na ponta, e armou o cão. Acenou para Fox e puxou as cortinas.

Martin McGuinness observava os dois atentamente, Murphy ao lado.

— Meu Deus! — gemeu Devlin.

Ele abriu as portas e McGuinness sorriu ao entrar.

— Deus o abençoe! — disse debochadamente e acrescentou para Murphy: — Vigie a janela, Michael. — Fechou-a e andou para perto do fogo. — Fica mais frio quando a noite chega.

— O que você quer? — perguntou Devlin.

— O capitão ainda não lhe explicou a situação?

— Explicou.

— E o que você acha?

— Não acho nada — disse Devlin. — Especialmente quando a maioria de vocês está envolvida.

— O objetivo do terrorismo é aterrorizar, costumava dizer Mick Collins — falou McGuinness. — Eu luto pelo meu país, Liam, com qualquer coisa que me vier às mãos. Estamos em guerra. — Ele estava irado agora. — Não tenho nada de que me desculpar.

— Se eu pudesse falar algo... — Fox entrou na conversa. — Vamos supor que Cuchulain exista. Não seria uma questão que seguramente diz respeito aos dois lados? Ainda mais reconhecendo-se que o que ele faz tem prolongado desnecessariamente os trágicos acontecimentos dos últimos treze anos.

McGuinness serviu-se de uísque. — Ele foi ao ponto. Quando eu era oficial no comando em Derry, em 1972, voei para Londres com Daithi O'Connell, Seamus Twomey, Ivor Bell e outros para encontrar Willie Whitelaw e discutir a paz.

— E aquele tiroteio em Lenadoon quebrou o cessar-fogo — disse Fox, virando-se para Devlin. — Não me parece mais uma questão de ficar desse ou daquele lado. Parece que Cuchulain trabalhou deliberadamente para manter toda essa sujeira podre. Eu tenho refletido sobre qualquer coisa que possa ajudar a acabar com isso, é o que importa.

— Moralidade, é isso? — Devlin levantou a mão e sorriu, perverso. — Está certo, você ganhou.

— Ótimo! — disse McGuinness. — Então vamos bater o prego com estopa. Esse sujeito, Levin, que viu Kelly ou Cuchulain ou que nome seja, anos atrás. Presumo que Ferguson esteja mostrando a ele fotos de cada agente da KGB.

— E de todos os partidários conhecidos do IRA, UDA, UVF. Tudo e tudo de novo — disse Fox. — Inclui uma olhada em tudo o que a seção especial de Dublin tem, porque trocamos informações.

— Os putos trocaram informações — disse McGuinness, amargamente. — Mas acho que nós temos algo que nem a polícia em Dublin e nem seu pessoal de Londres jamais viram.

— E como vamos articular isso? — perguntou Fox. — Você traz Levin até aqui, e ele e Devlin dão uma olhada no que temos. Ninguém mais. De acordo?

Fox relanceou os olhos para Devlin, que concordou num aceno. — Está bem — disse Fox. — Vou telefonar para o brigadeiro ainda hoje.

— Ótimo! — McGuinness se virou para Devlin. — Você tem certeza de que seu telefone não está grampeado ou qualquer coisa parecida? Estou pensando naqueles filhos da puta da seção especial.

Devlin abriu uma gaveta da mesa, tirou de lá uma caixa preta de metal, ligou o botão, e aí uma luz vermelha apareceu. Ele aproximou a caixa do telefone e segurou-a sobre o aparelho. Não houve reação.

— Ah, as maravilhas da era eletrônica — disse ele e colocou a caixa de volta na gaveta.

— Excelente! — disse McGuinness. — Bem, vamos ver por onde começamos. As únicas pessoas que sabem disso, além de você, capitão, são Ferguson, Liam, o chefe do estado-maior e eu.

— E o professor Paul Cherny — disse Fox.

McGuinness aquiesceu.

— Certo. Temos que conseguir alguma coisa sobre ele. — Virou-se para Devlin. — Você o conhece?

— Eu o tenho visto em festas na universidade. Trocamos algumas palavras cordiais, nada além disso. Ele é uma pessoa querida. Viúvo. A mulher morreu antes de ele desertar. Há uma chance de que não esteja envolvido nisso, claro!

— E porcos podem voar — disse McGuinness, ríspido. — O fato de ele ter desertado da Irlanda, para mim, não é coincidência. Uma libra contra um penny que ele conhece nosso homem. Então por que não o pegamos e damos uns apertões nele?

— Simples — disse Fox. — Não se apertam certos homens.

— Melhor tentar primeiro uma aproximação mais calminha.

— Certo — disse McGuinness. — Vou botar uma vigilância de vinte e quatro horas sobre ele. Michael Murphy fica encarregado. Ele não vai ser capaz de ir ao banheiro sem que a gente saiba.

Devlin olhou para Fox. — Está bem para você?

— Ótimo — disse Fox.

— Excelente, então — McGuinness abotoou a capa. — Vou indo. Deixo Billy de olho em você, capitão. — Ele abriu as janelas. — Cuide-se, Liam — e então se foi.


Ferguson estava na cama quando Fox telefonou, os travesseiros nas costas em meio a um bolo de papéis, preparando-se para a reunião do dia seguinte do Comitê de Defesa. Ouviu pacientemente tudo o que Fox contou.

— Até agora, tudo bem, Harry, melhor do que eu podia esperar. Levin passou o dia inteiro em cima do que tínhamos lá no diretorado. Nada.

— Já faz muito tempo, sir. Cuchulain pode ter mudado muito e não porque esteja mais velho. Quer dizer, ele pode ter uma barba, por exemplo.

— Pensando negativo, Harry. Vou colocar Levin no voo da manhã para Dublin, mas Devlin vai ter que pegá-lo. Preciso que você volte.

— Alguma razão particular, sir?

— Há muita coisa a ser feita em relação ao Vaticano. Está parecendo realmente que o papa não vem. Mas ele convidou os cardeais da Argentina e da Inglaterra para uma consulta.

— Então a visita pode continuar de pé?

— Talvez, mas o mais importante do nosso ponto de vista é que a guerra continua, e há rumores de que os argentinos estão tentando conseguir aqueles malditos mísseis Exocet no mercado negro da Europa. Preciso de você, Harry. Pegue o primeiro voo de volta. E a propósito, um desdobramento interessante. Tanya Voroninova. Lembra-se dela?

— Claro, sir.

— Está em Paris para uma série de concertos. O fascinante é que ela vem à tona nesse exato momento.

— O que Jung chamaria de sincronismo, sir?

— Jung, Harry? Que diabos você está falando?

— Carl Jung, sir. O psicólogo famoso. Sincronismo é a palavra que ele cunhou para eventos que coincidem no tempo e, por causa disso, revelam que alguma motivação interior profunda está envolvida.

— O fato de você estar na Irlanda não é desculpa para agir como se tivesse minhoca na cabeça, Harry — disse Ferguson, irritado.

Ele desligou o telefone, ficou sentado meditando, então se levantou, colocou o roupão e saiu do quarto. Bateu na porta do quarto de hóspedes e entrou. Levin estava recostado na cama, vestindo um pijama de Ferguson e lendo um livro.

Ferguson sentou-se à beira da cama.

— Pensei que estivesse cansado depois de examinar tantas fotos.

Levin sorriu. — Quando se chega à minha idade, brigadeiro, dormir é frustrante, a memória falha. Deve imaginar o que é isso afinal.

Ferguson foi caloroso com o homem. — E como, meu caro! Bem, o que acha de dar um pulo a Dublin amanhã no primeiro avião?

— Para ver o capitão Fox?

— Não, ele está voltando. É para ver um amigo meu. O professor Liam Devlin, do Trinity College, vai cuidar de você. Ele provavelmente lhe mostrará mais algumas poucas fotos, cortesia dos nossos amigos do IRA. Eles nunca me deixariam vê-las, por motivos óbvios.

O velho russo balançou a cabeça. — Diga-me, brigadeiro, “a guerra que acabaria com todas as guerras” não terminou em 1945, ou estou errado?

— Você e muitas outras pessoas estão enganados, meu amigo. — Ferguson se levantou e parou na porta do quarto. — Eu dormiria um pouco, em seu lugar. Precisa estar em pé às seis da manhã para pegar o primeiro voo que sai de Heathrow. Kim servirá seu café na cama.

Ele fechou a porta. Levin permaneceu sentado lá, uma expressão de tristeza no rosto. Então suspirou, fechou o livro, apagou a luz e foi dormir.


No chalé, em Kilrea, Fox colocou o telefone no gancho e falou com Devlin.

— Tudo marcado. Ele virá no primeiro voo da manhã. Infelizmente, meu avião sai um pouco antes. Ele vai se apresentar no balcão de informações do saguão principal. Você pode encontrá-lo lá.

— Não é necessário — disse Devlin. — Seu jovem White. Ele estará com você e pode pegar Levin do mesmo jeito e trazê-lo direto para cá. É o melhor a fazer nas circunstâncias. McGuinness pode entrar em contato mais cedo do que imagino.

— Ótimo — disse Fox. — É melhor que eu vá agora.

— Bom garoto.

Devlin passou-lhe a capa e o levou até o carro, onde Billy White esperava pacientemente.

— De volta para o Westbourne, Billy — disse Fox.

Devlin se debruçou na janela. — Arrume um quarto no hotel para passar a noite, filho, e pela manhã faça exatamente tudo o que o capitão disser. Corto seu saco fora se se afastar dele um centímetro. E Martin McGuinness provavelmente vai pisar no que sobrar de você.

Billy White sorriu, amavelmente. — Claro. Um belo dia ainda vão dizer que posso matar quase tão bem quanto você.

— Agora vá, e se cuide.

O carro arrancou. Devlin esperou que partissem e voltou para o chalé. Houve um farfalhar no mato, passos, o mais tênue dos sons, como se alguém se afastasse dali.

 

O equipamento de escuta que a KGB fornecera a Cuchulain era o mais avançado do mundo, desenvolvido originalmente por uma empresa japonesa para espionagem industrial, e que fora parar em Moscou quatro anos antes. O microfone direcional instalado no chalé de Kilrea podia captar qualquer palavra murmurada lá dentro a centenas de metros. Sua função secundária de ultrafrequência apanhava mesmo a mais sussurrada conversa telefônica. Todo o equipamento estava acoplado a um sofisticado aparato de gravação.

O conjunto de escuta estava situado num pequeno sótão, escondido atrás da caixa-d'água, entre as telhas da casa. Cuchulain vinha espionando Devlin daquela forma há algum tempo. E já ia longe a época em que alguma coisa tão interessante aparecera. Ele estava sentado no sótão, fumando um cigarro, a fita do gravador correndo veloz entre trechos mudos e ruídos sem importância. Localizou a conversa telefônica com Ferguson e prestou uma atenção cuidadosa ao diálogo.

Depois, permaneceu sentado lá, pensando por alguns instantes, então zerou a fita, desceu e saiu. Dirigiu-se até uma cabine telefônica no final da rua da cidadezinha, ao lado do pub, e discou um número em Dublin. O telefone foi atendido quase que imediatamente. Pôde distinguir vozes, uma risada repentina, o som suave de Mozart.

— Aqui é Cherny.

— Sou eu. Você não está sozinho?

Cherny riu, radiante. — Um jantar para alguns amigos da faculdade.

— Preciso ver você.

— Está certo — disse Cherny. — Amanhã à tarde, mesma hora, mesmo lugar.

Cuchulain recolocou o fone no gancho, saiu da cabine e subiu de volta pela rua, assoviando uma canção folclórica de Connemara que revelava todo o desespero, toda a tristeza da vida.

 

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1 Enviado para o Ulster a mando do Rei James I, anticatólico, Cromwell é uma figura odiada até hoje na Irlanda pela brutalidade com que massacrou os nacionalistas irlandeses em 1649-50. (N. do T.)

2 Laranja em inglês, a cor dos protestantes na Irlanda. Vem de William III da Inglaterra, conhecido como William of Orange, que derrotou o rei católico James II na famosa batalha de Boyne, perto de Londonderry, em 1690. (N. do T.)


5

 

 

Fox teve uma noite péssima e dormiu muito pouco, tanto que estava agitado e irritadiço enquanto Billy White dirigia o carro com destreza através do tráfego matinal, rumo ao aeroporto. O jovem irlandês estava tão bem disposto que tamborilava os dedos no volante ao ritmo da música que emanava do rádio.

— Vai voltar, capitão?

— Não sei. Talvez.

— Ah, bem, não esperava mesmo que fosse um apaixonado pelo nosso país — White apontou para a mão enluvada de Fox. — Não depois do que isso custou.

— E daí? — disse Fox.

Billy acendeu um cigarro. — O problema com vocês, ingleses, é que nunca encararam o fato de a Irlanda ser um país estrangeiro. Não é porque falamos inglês...

— Para ser sincero, minha mãe tinha Fitzgerald no sobrenome e nasceu no County Mayo — disse Fox. — Ela trabalhou para a Liga Gaélica, era fã de Valera1 e falava um excelente irlandês, a língua mais difícil que já conheci, e quando eu era garoto ela tentava me ensinar. Você fala irlandês, Billy?

— Por Deus, não, capitão!

— Bem, então eu sugiro que pare com essa infantilidade de achar que os ingleses são incapazes de compreender a Irlanda.

Olhou demoradamente para o tráfego. Um policial numa motocicleta emparelhou com eles pela esquerda, uma figura sinistra de óculos, capacete e pesada capa de chuva contra o aguaceiro. Olhou para Fox uma vez, anônimo em seus óculos escuros, e ficou para trás, enquanto entravam na estrada lateral que levava ao aeroporto.

Billy deixou o carro no estacionamento de trânsito rápido. Quando entraram no saguão, o funcionário já estava chamando o voo de Fox. Cuchulain, que estivera com eles por todo o caminho desde o hotel, ficou parado na porta através da qual eles entraram e observou Fox confirmar a reserva.

Fox e Billy caminharam até o portão de embarque, e Fox disse:

— Uma hora até chegar o voo da British Airways.

— Tempo para um belo café da manhã — Billy sorriu, malicioso. — Foi bom estar com você, capitão.

— Ainda nos veremos, Billy.

Fox estendeu a mão boa, e Billy White apertou-a com uma certa relutância.

— Tente não ficar do lado errado de alguma rua em Belfast. Eu odiaria ter você na mira, capitão.

Fox atravessou o portão, e Billy tomou o caminho do saguão, subindo as escadas até o café do terraço. Cuchulain observou o trajeto de Billy, então saiu, cruzando a estrada para o estacionamento. E esperou.

Voltou uma hora mais tarde e entrou, consultando mais de perto o quadro de aviso de chegadas. O voo da British Airways aterrissava naquele momento, e ele viu White se aproximar do balcão de informações e falar com um dos funcionários. Houve uma pausa, e em seguida o anúncio foi feito pelo sistema de alto-falantes.

— Sr. Viktor Levin, passageiro do voo de Londres, queira por favor se dirigir ao balcão de informações.

Momentos depois, a figura pequena e curvada do russo se destacou da multidão, com um homem de Ferguson ao lado. Levin carregava uma maleta e vestia capa de chuva marrom comprida e chapéu preto. Cuchulain pressentiu que aquela era sua caça, antes mesmo de ele falar com um dos funcionários, que apontou para White. Levin e White apertaram-se as mãos, e depois de umas poucas palavras o acompanhante inglês de Levin foi embora. Cuchulain observou-os demoradamente, deu as costas e saiu.

— Então, esta é a Irlanda! — disse Levin, enquanto rumavam de volta para a cidade.

— Primeira visita? — perguntou White.

— Oh, sim. Sou da Rússia. Não viajei muito por aí.

— Rússia? — disse Billy. — Meu Deus, vai achar tudo muito diferente por aqui.

— E esta é Dublin? — perguntou Levin, enquanto seguiam no tráfego.

— É. Kilrea, para onde vamos, fica do outro lado.

— Uma cidade com uma história significativa, eu acho — observou Levin.

— A cidade conta sua própria história — disse White. — Vou levá-lo à Parnell Square. Fica no caminho. Parnell foi um grande patriota, embora um protestante sanguinário. Depois, O'Connel Street e o Correio Central, onde os rapazes foram massacrados pelo sanguinário exército inglês em 1916.2

— Ótimo, gostaria muito de ver. — Levin recostou-se no assento e observou com interesse os cenários que iam ficando para trás.


Em Kilrea, Liam Devlin atravessou o gramado atrás da casa, cruzou o portão do muro e caminhou para a entrada dos fundos do hospital, enquanto a chuva engrossava num repentino aguaceiro. A irmã Anne-Marie atravessava o hall com duas médicas residentes vestidas de branco, cedidas pela University College, de Dublin.

A madre era uma mulher pequena, muito capacitada para seus setenta anos e vestia um avental branco sobre o hábito. Tinha doutorado em medicina pela Universidade de Londres e era do Royal College de médicos. Uma senhora com quem se podia contar. Ela e Devlin eram velhos adversários.

Trocara de nacionalidade há muito tempo, era francesa, e ele gostava muito dela.

— O que posso fazer por você, professor? — ela perguntou.

— Fala como se fosse o diabo que tivesse passado pela porta — disse Devlin.

— Uma observação de surpreendente acuidade.

Começaram a subir a escada, e Devlin disse: — Danny Malone. Como está ele?

— Morrendo — disse ela, calmamente. — Em paz, eu espero. Ele é um dos nossos pacientes que respondem bem às drogas. Isso quer dizer que a dor não é contínua.

Alcançaram uma das alas sem divisórias.

— Quando?

— Hoje à tarde, amanhã, na próxima semana. — Ela deu de ombros. — Aquele homem é um lutador.

— É verdade — disse Devlin.

— Danny da Causa.

— A vida inteira.

— O padre Cussane vem toda noite — disse ela —, senta-se lá e deixa que ele fale sobre a violência de seu passado. Acho que isso o preocupa, agora que está perto do fim. O IRA, os assassinatos...

— Tudo bem eu ficar lá com ele alguns instantes?

— Meia hora — disse ela com firmeza e saiu, seguida pelas residentes.

Malone parecia dormir, olhos fechados, a pele esticada sobre os ossos da face, amarela como pergaminho. Seus dedos rijos amassavam a borda do lençol.

Devlin se sentou. — Você está acordado, Danny?

— Ah, é você, padre? — Malone abriu os olhos, estreitou-os e franziu o cenho. — É você, Liam?

— Em carne e osso.

— Pensei que fosse o padre Cussane. Estávamos conversando ainda agora.

— Foi ontem à noite, Danny. Você deve ter dormido. Certamente você sabe que ele trabalha no secretariado de Dublin durante o dia.

Malone passou a língua nos lábios secos.

— Meu Deus, gostaria de uma xícara de chá.

— Vou ver se consigo uma para você.

Quando se levantou, houve uma confusão repentina, gritos ecoando lá em cima. Franziu a sobrancelha e se precipitou para a beira da escada.


Billy White saiu da rodovia principal para uma estrada secundária, estreita, flanqueada dos dois lados por pinheiros, que levava até Kilrea.

— Não falta muito agora.

Ele virou o pescoço para falar com Levin no banco de trás e notou, pelo retrovisor, que um policial numa motocicleta saíra da rodovia atrás deles.

Começou a diminuir a marcha, e Levin disse: — O que houve?

— Gardai, polícia rodoviária para vocês — falou Billy. — Um quilômetro acima do limite e eles multam. Idiotas.

O policial na motocicleta acelerou, emparelhando, e fez um sinal com a mão para que parassem. Por causa dos óculos e do capacete, White não pôde perceber um só traço da fisionomia do homem. Parou com raiva no acostamento.

— E agora que droga o companheiro deseja? Eu não estava nem um milímetro além dos sessenta por hora.

O instinto animal que protegera sua vida em muitos anos de violência transformou-o em alguém cuidadoso, a ponto de segurar a coronha do revólver no bolso esquerdo da capa, quando saltou do carro.

O policial calçou a moto. Tirou as luvas e se virou, a capa muito molhada.

— O que posso fazer por você, oficial, nesta agradável manhã? — perguntou Billy, insolente.

A mão do policial projetou-se para fora do bolso direito da capa, segurando uma Walther, o silenciador Carswell acoplado à ponta do cano. White compreendeu tudo no último momento de sua vida de violência, enquanto tentava freneticamente sacar sua arma. A bala dilacerou seu coração, jogando-o de costas contra o carro. O impacto o impeliu para cima, e então ele caiu com o rosto na estrada.

No banco de trás do carro, Levin estava paralisado de horror, ainda que não estivesse com medo, porque havia uma certa inevitabilidade em tudo aquilo, como se fosse algo determinado. O policial abriu a porta e olhou para ele. Fez uma pausa e levantou os óculos sobre o capacete.

Levin o encarou, atônito.

— Deus do céu! — murmurou em russo. — É você!

— Sim — respondeu Cuchulain na mesma língua. — Receio que seja eu mesmo — e atirou na cabeça de Levin, a Walther produzindo não mais que uma tosse raivosa.

Cuchulain colocou a arma no bolso, voltou para a moto, tirou-a do calço e partiu pela estrada. Não se passaram mais de cinco minutos para que um furgão da entrega de pão na cidade viesse na direção da carnificina. O motorista e seu assistente saltaram do furgão e se aproximaram da cena, trêmulos. O motorista se debruçou sobre White. Houve um gemido baixo, vindo da parte de trás do carro, e ele olhou imediatamente para dentro.

— Meu Deus! — gritou. — Tem outro aqui e está vivo. Pegue o furgão e volte o mais depressa que puder para a cidade. Mande vir uma ambulância.


Quando Devlin alcançou o saguão, estavam colocando Viktor Levin numa maca na recepção.

— A irmã Anne-Marie está na ala três. Ela está pronta — ele ouviu o homem da ambulância dizer à jovem freira da recepção. O motorista do furgão estava em pé, desconsolado, o sangue na manga da capa. Estava agitado. Devlin acendeu um cigarro e ofereceu a ele.

— O que aconteceu?

— Sei lá! Achamos o carro a poucos quilômetros lá na estrada. Um homem estava morto do lado de fora, e aquele ali no banco de trás. Estão trazendo o outro agora.

Enquanto Devlin, assaltado por uma premonição terrível, virava-se para a porta, o homem da ambulância entrou atabalhoado com o corpo de Billy White, o rosto descoberto.

A jovem freira veio da sala de recepção e sumiu pela porta mais próxima para examinar White. Devlin se aproximou rapidamente da maca onde Levin ainda jazia, gemendo baixo, o sangue coagulado no horrível ferimento na cabeça.

Devlin se abaixou.

— Professor Levin, pode me ouvir? — Levin abriu os olhos. — Sou Liam Devlin. O que houve?

Levin tentou falar, a mão segurando a lapela do paletó de Devlin.

— Eu o reconheci. Era Cuchulain. Ele está aqui.

Seus olhos rodopiaram nas órbitas. Houve um gorgolejar na garganta, enquanto a mão fechada na lapela de Devlin afrouxava. A irmã Anne-Marie chegou rápido. Afastou Devlin para o lado e curvou-se sobre Levin, procurando o pulso. Alguns segundos depois, ergueu-se.

— Conhecia este homem?

— Não — disse Devlin, o que era verdade num certo sentido.

— Não tem mais importância — disse ela. — Ele está morto. Um milagre não ter morrido instantaneamente, com a cabeça ferida desse jeito.

Ela esbarrou nele levemente e entrou pela mesma porta por onde White fora levado. Devlin permaneceu ali, olhando para Levin. Tinha esperado anos para conseguir fugir. E terminara daquela forma. Sentiu uma raiva plena. O brutal humor negro da vida permitindo que coisas assim acontecessem.


Harry Fox apenas chegara à Cavendish Square e acabava de tirar a capa quando o telefone tocou. Ferguson ouviu, a expressão grave, e então tampou o bocal.

— É Liam Devlin. Emboscaram o carro com seu homem, Billy White, e Levin perto de Kilrea. White morreu instantaneamente e Levin pouco depois, no hospital.

— Liam chegou a vê-lo?

— Sim. Levin contou a ele que foi Cuchulain. Disse que o reconheceu.

Fox jogou a capa na cadeira mais próxima. — Não compreendo, sir.

— Nem eu, Harry — Ferguson tirou a mão do bocal. — Ligo de volta, Devlin.

Ele colocou o telefone no gancho e pôs as mãos perto do fogo da lareira.

— Não faz sentido — disse Fox. — Como ele pode ter sabido?

— Algum vazamento, Harry. O IRA é o fim da picada. Não conseguem ficar de boca fechada.

— A coisa, sir, é o que vamos fazer agora?

— Mais importante, o que vamos fazer sobre Cuchulain? — disse Ferguson. — Aquele cavalheiro está realmente começando a me aborrecer.

— Mas não há muita coisa que possamos fazer. Não com Levin morto. Afinal, ele era a única pessoa que podia identificar o filho da puta.

— Não é bem assim — disse Ferguson. — Esqueceu-se de Tanya Voroninova, que neste preciso momento está em Paris. Dez dias, quatro concertos, e isso abre uma possibilidade muito interessante.


Mais ou menos à mesma hora, Harry Cussane estava em sua mesa da assessoria de imprensa do secretariado católico em Dublin, reunido com monsenhor Halloran, que era o responsável pelas relações públicas.

De sua confortável cadeira, Halloran disse: — É terrível como um evento de grande significação histórica como a visita do Santo Padre à Inglaterra possa ser posto em risco. Apenas pense nisso, Harry, Sua Santidade na Catedral da Cantuária. O primeiro papa da história a nos visitar. E agora...

— Acha que ele não virá? — perguntou Cussane.

— Bem, eles ainda estão conversando em Roma, mas para mim é o que parece. Por que, você sabe de alguma coisa que eu não sei?

— Não — disse Cussane. Ele apanhou uma folha datilografada. — Consegui isso em Londres. O itinerário planejado. Portanto, ainda estão agindo como se ele viesse. — Correu os olhos pela folha. — Chegada ao aeroporto de Gatwick no dia 28 de maio pela manhã. Missa na Catedral de Westminster, em Londres. Encontro com a rainha no Palácio de Buckingham à tarde.

— E Cantuária?

— No dia seguinte, sábado. Ele começa cedo. Um encontro com religiosos numa universidade de Londres. Sobretudo monges e freiras de ordens fechadas. Daí de helicóptero para Cantuária, com uma parada em Stokely Hall antes. Não oficial, claro.

— Por que razão?

— Os Stokely foram uma das grandes famílias católicas que conseguiram sobreviver a Henrique VIII e se agarraram à fé divina através dos séculos. Um banco é o proprietário da casa agora, mas ela contém uma relíquia ímpar, a capela particular da família. A mais antiga igreja católica da Inglaterra, segundo todos os relatos. Sua Santidade deseja rezar lá. Depois, Cantuária.

— Tudo isso, pelo menos até agora, está só no papel — disse Halloran.

O telefone tocou. Cussane atendeu.

— Assessoria de imprensa. Fala Cussane. — Seu rosto assumiu um ar grave. — Alguma coisa que eu possa fazer? — fez uma pausa. — Vejo você mais tarde então.

— Problemas? — disse Halloran.

— Um amigo de Kilrea, Liam Devlin, do Trinity College. Parece que houve um tiroteio fora da cidade. Dois homens foram levados para o hospital. Ambos mortos.

Halloran fez o sinal-da-cruz. — Foi político, não foi?

— Um dos homens era um conhecido membro do IRA.

— Estão precisando de você? Pode ir se for necessário.

— Não — sorriu Cussane, desanimado. — Agora eles precisam de um legista, monsenhor, e não de um padre. De qualquer modo, tenho muito que fazer aqui.

— Sim, claro. Bem, vou deixá-lo à vontade.

Halloran saiu, e Cussane acendeu um cigarro, olhando para a rua lá embaixo. Finalmente, sentou-se à mesa e começou a trabalhar um pouco.


Paul Cherny tinha seus aposentos no Trinity College. Como a maioria das pessoas considerava, ele estava muito bem acomodado em pleno centro de Dublin. Algo naquela extraordinária cidade recomendava aquela localização.

Sua deserção ocorrera por ordens expressas de Maslovsky. E um general da KGB não era para ser questionado. Ele desertara na Irlanda. Era o plano. Uma das universidades certamente ofereceria um cargo a ele, sua reputação internacional o assegurava. Assim, estaria na posição perfeita para agir como controlador de Cuchulain. No começo, foi difícil pela inexistência de uma embaixada soviética em Dublin, e havia a necessidade de operar via Londres. Mas agora tinham cuidado para que seus contatos da KGB na embaixada de Dublin lhe facilitassem uma ligação direta com Moscou.

Sim, os anos tinham sido ótimos, e Dublin era o tipo de paraíso com que ele sempre sonhara. Liberdade intelectual, companhias estimulantes e a cidade, a cidade que ele adotara para amar. Estava pensando em todas aquelas coisas, quando saiu do Trinity College naquela tarde.

Michael Murphy o seguia a uma distância discreta, e Cherny, desatento para o fato de ter uma sombra, caminhou despreocupado pela margem do Liffey até alcançar o Usher's Quay. Havia uma igreja vitoriana de tijolos vermelhos, e ele subiu os degraus e entrou. Murphy parou para examinar a tabuleta, as letras descascadas e pintadas com tinta dourada. Dizia: Nossa Senhora, rainha do universo. Abaixo estavam os horários das missas. Confissões eram ouvidas à uma e às cinco da tarde nos dias úteis. Murphy empurrou a porta aberta e entrou.

Era o tipo do lugar onde tinha ido parar o dinheiro do comércio nos dias prósperos dos portos, no século dezenove. Havia muitos vitrais manchados e gárgulas falsos, além do cheiro comum de velas e incenso. Várias pessoas passavam por dois confessionários, e Paul Cherny tinha se juntado a elas, sentando-se no fim do banco.

— Jesus! — murmurou Murphy, surpreso. — A bicha deve ter enxergado a luz.

Ele se posicionou atrás de um pilar e esperou. Passaram-se cerca de quinze ou vinte minutos antes de chegar a vez de Cherny. Ele deslizou para dentro do confessionário de carvalho, fechou a porta e se sentou, a cabeça perto da grade de madeira.

— Abençoe-me, padre, porque estou em pecado — disse ele em russo.

— Muito divertido, Paul — a voz do outro lado da grade respondeu na mesma língua. — Agora vamos ver se você ainda consegue sorrir, quando tiver ouvido o que vou dizer.

Quando Cuchulain terminou, Cherny disse: — O que vamos fazer?

— Não precisa entrar em pânico. Eles não sabem quem eu sou, e não estão nem perto de descobrir, agora que me livrei de Levin.

— Mas e eu? — disse Cherny. — Se Levin contou a eles sobre Drumore naquela época, deve ter contado sobre minha participação.

— Claro, você está sob vigilância agora. Um cara do IRA, não o Serviço de Informação britânico. Portanto, não se preocupe ainda. Entre em contato com Moscou. Maslovsky precisa saber disso. Ele pode querer nos tirar dessa. Telefono de novo à noite.

Cherny saiu, e Cuchulain observou através de uma fresta da porta quando Michael Murphy despontou de trás do pilar e o seguiu. Ouviu-se um bang quando a porta da sacristia foi aberta e depois fechada, e uma velha arrumadeira se arrastou por entre os bancos, enquanto o padre, usando um talar de linho branco, batina preta e uma faixa violeta em volta do pescoço, saiu do confessionário.

— Terminou, padre?

— Sim, Ellie. — Harry Cussane se virou, um sorriso insinuante estampado no rosto, enquanto puxava a faixa e começava a dobrá-la.

Murphy, acreditando que Cherny não fazia outra coisa a não ser retornar para a universidade, ficou um pouco distante, atrás dele. Cherny parou, entrando numa cabine telefônica. Não permaneceu muito tempo lá, e Murphy, que ficara embaixo de uma árvore para se abrigar da chuva, foi atrás dele novamente.

Um carro encostou junto ao meio-fio, ao lado dele, e o motorista, um padre, saltou, deu a volta pela frente do veículo e observou o pneu dianteiro. Fez meia-volta e, percebendo a presença de Murphy, disse:

— Tem um minuto?

— Sinto muito, padre. Tenho um encontro.

E eis que a mão do padre estava em seu braço, e Murphy sentiu a boca da Walther enterrada dolorosamente em suas costelas.

— Calma, seja um bom garoto. Continue andando.

Cussane empurrou-o para a ponta de uma escada de pedra que dava para um cais de madeira mais abaixo. Caminharam pelas tábuas quebradas, os passos ecoando surdamente. Havia lá um barco-casa de teto arrebentado e buracos no chão. Murphy não estava com medo, mas pronto para a ação, esperando sua chance.

— Aí está bom.

Murphy parou, de costas para o padre, a mão na coronha da automática no bolso da capa de chuva.

— Você é um padre de verdade? — perguntou ele.

— Oh, sim — disse Cussane. — Não muito bom, receio, mas bem real.

Murphy se virou devagar, a mão saindo de dentro da capa, mas muito tarde. A Walther tossiu, e a primeira bala pegou Murphy no ombro, fazendo-o rodopiar. A segunda mandou-o de cabeça dentro de um enorme buraco no chão, e ele afundou na água escura.


Dimitri Lubov, supostamente adido comercial da embaixada soviética, era, de fato, capitão da KGB. Ao receber a cuidadosa mensagem de Cherny, deixou o escritório e se dirigiu a um cinema no centro da cidade. Estava apenas relativamente escuro lá dentro, mas razoavelmente privado, porque poucas pessoas iam ao cinema à tarde. Sentou-se numa das filas de trás, e Cherny veio se juntar a ele vinte minutos mais tarde.

— É urgente, Paul? — perguntou ele. — Não costumamos nos encontrar entre os dias fixados.

— É muitíssimo urgente — disse Cherny. — Cuchulain está exposto. Maslovsky deve ser informado o mais rapidamente possível. Ele pode querer nos tirar daqui.

— Claro! — disse Lubov, alarmado. — Vou avisá-lo assim que voltar, mas você não pode dar mais detalhes?


Devlin trabalhava no estúdio do chalé, tomando notas numa tese sobre T. S. Eliot apresentada por um de seus alunos, quando o telefone tocou.

— Uma confusão e muito sangue — disse Ferguson. — Alguém deve ter aberto o bico aí do seu lado. Seus camaradas do IRA não são exatamente as pessoas mais confiáveis do mundo.

— Ossos do ofício — disse Devlin. — O que você quer?

— Tanya Voroninova — disse Ferguson. — Harry contou sobre ela?

— A garotinha de Drumore que foi adotada por aquela figura, Maslovsky. O que há com ela?

— Ela está em Paris no momento para dar uma série de recitais de piano. A questão é que, sendo filha adotiva de um general da KGB, isso lhe dá muita liberdade. Quero dizer que ela é considerada um excelente risco. Acho que você pode ir lá encontrá-la. Há um voo noturno de Dublin direto para Paris. Somente duas horas e meia. Air France.

— E que diabos você pretende que eu faça? Obrigá-la a desertar?

— Nunca se sabe. Quando ouvir a história toda, ela pode querer. De qualquer modo, encontre-a. Não vai fazer nenhum mal.

— Bem, por que não? — disse Devlin. — Um pouco da atmosfera francesa pode me fazer bem.

— Sabia que você concordaria — disse Ferguson. — Procure o balcão da Air France no aeroporto de Dublin. Eles têm uma reserva. Quando você chegar ao Charles de Gaulle, vai encontrar um dos meus rapazes baseados em Paris. Um amigo chamado Hunter, Tony Hunter. Ele está pronto para tudo.

— Tenho certeza de que está — disse Devlin e desligou. Pegou uma mala rapidamente, sentindo-se enormemente animado, e estava justamente colocando o casaco de lã dentro dela quando o telefone tocou de novo. Era Martin McGuinness.

— Péssimo negócio esse, Liam. O que aconteceu exatamente?

Devlin contou a ele e quando terminou, McGuinness explodiu.

— Então aquele filho da puta existe?

— Parece que sim. Mas bem mais preocupante, do seu ponto de vista, é: como ele soube que Levin estava a caminho daqui? O único homem capaz de identificá-lo.

— Por que você pergunta a mim?

— Porque Ferguson acha que existe um vazamento do seu lado.

— Bem, aperte Ferguson.

— Eu não aconselharia, Martin. Ouça, tenho que ir. Preciso pegar um voo para Paris.

— Paris? Por Deus, o que tem lá?

— Uma garota chamada Tanya Voroninova, que pode identificar Cuchulain. Vou ficar em contato.

Ele colocou o fone no gancho. Enquanto pegava a mala, houve uma batida leve na janela. As folhas se abriram, e Harry Cussane entrou.

— Desculpe, preciso voar ou perco meu avião — disse Devlin.

— E para onde no mundo você vai? — perguntou Cussane.

— Paris! — Devlin piscou e abriu a porta da frente. — Champanhe, mulheres, comida incrível. Não é possível que você esteja no clube errado, Harry?

A porta bateu. Cussane prestou atenção na partida do motor do carro, deu meia-volta e rumou para seu chalé atrás do hospital. Precipitou-se escada acima até a sala secreta, atrás das caixas d'água no teto, onde guardava o equipamento de escuta. Voltou rapidamente a fita e ouviu todas as conversas de Devlin durante o dia. No fim da fita, a conversa mais importante.

Mas então, claro, era muito tarde para fazer algo pessoalmente. Praguejou baixinho, desceu para pegar o telefone e discou o número de Paul Cherny.

 

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1 Referência a Eamon de Valera: primeiro presidente da República da Irlanda. (N. do T)

2 O levante do Domingo de Páscoa de 1916 foi o estopim da revolução irlandesa, que se tornou independente do Reino Unido em 1922. (N. do T.)


6

 

 

Mais tarde, na sacristia da igreja da cidade, quando se paramentava para a missa da noite, Cussane examinou seu rosto no espelho.

Era como um ator se preparando para uma representação. Próximo passo: a maquiagem. Quem sou eu?, pensou. Quem sou eu realmente? Cuchulain, o assassino em massa, ou Cussane, o padre? Mikhail Kelly parecia não ser nenhum deles. Agora era apenas um eco, como um sonho meio esquecido.

Por mais de vinte anos ele vivera múltiplas vidas, e ainda assim a persona única jamais habitara seu corpo. Eram papéis a ser representados segundo o roteiro e então descartados.

Colocou a faixa violeta em torno do pescoço e sussurrou para seu alter ego no espelho: — Na casa de Deus, sou um padre de Deus — e saiu.

Depois, diante do altar, com as velas bruxuleando e o órgão tocando, havia uma genuína paixão em sua voz quando entoou alto: — Confesso a Deus Todo-poderoso e a vocês, irmãos e irmãs, que pequei por minha própria culpa.

E quando ele bateu no peito, seguidamente, pedindo à Virgem Maria que rezasse por ele ao Senhor Deus, havia repentinamente lágrimas quentes em seus olhos.


No aeroporto Charles de Gaulle, Tony Hunter esperava ao lado da saída da alfândega e da imigração. Era um homem alto, ombros largos, trinta e poucos anos. Os cabelos castanhos suaves eram bem longos, o terno de linho estava vincado, e fumava um Gitanes sem tirá-lo da boca uma vez sequer, enquanto lia Paris Soir, não arredando os olhos da saída. Poucos instantes depois, Devlin apareceu. Vestia um casaco Burberry, um velho chapéu de feltro preto inclinado sobre uma orelha e carregava uma mala.

Hunter, que tinha uma foto e a descrição de Devlin, foi ao seu encontro.

— Professor Devlin? Tony Hunter. Tenho um carro esperando. — Eles caminharam até a saída. — Foi um bom voo?

— Não podia ser melhor — disse Devlin. — Há milhares de anos voei da Alemanha para a Irlanda num bombardeiro Dornier, ao lado dos inimigos dos ingleses, e saltei de paraquedas de uns quatro mil metros. Desta vez não foi preciso.

Chegaram ao Peugeot no estacionamento e quando se punham a caminho, Hunter disse:

— Pode passar a noite comigo. Tenho um apartamento na Avenue Foch.

— Bom para você, filho, se mora lá. Não sabia que Ferguson tinha tanto dinheiro.

— Conhece bem Paris?

— Pode-se dizer que sim.

— O apartamento é meu, e não do departamento. Meu pai morreu no ano passado. Ele me deixou bem de finanças.

— E a garota? Está na embaixada russa?

— Deus, não! Eles a puseram no Ritz. Ela é uma espécie de estrela. Toca que é uma maravilha. Eu a ouvi executar um concerto de Mozart ontem à noite. Foi excelente, esquecendo quem ela é.

— Disseram-me que ela tem total liberdade de ir e vir.

— Oh, sim. Liberdade absoluta. O fato de que o pai adotivo é o general Maslovsky se encarrega disso. Segui-a por toda parte hoje de manhã. Jardim do Luxembourg, e daí almoço num daqueles barcos, descendo pelo Sena. Pelo que ouvi, seu único compromisso amanhã é um ensaio à tarde no Conservatório de Paris.

— O que significa que de manhã é a hora para se fazer contato.

— Também acho. — Eles estavam agora em plena Paris, passando pela Gare du Nord, e Hunter adicionou: — Há um correio de Londres chegando amanhã no primeiro voo com a documentação que Ferguson está preparando às pressas. Passaporte forjado. Falso como ele.

Devlin riu alto. — Ele acha que tudo que tenho a fazer é perguntar, e ela virá. — Ele balançou a cabeça. — É um louco.

— A questão é como chegar até ela — sugeriu Hunter.

— Verdade — disse Devlin. — Por outro lado, tem que ser uma porcaria mais fácil do que colocar alguma coisa no chá da moça.

Foi a vez de Hunter rir. — Sabe, gosto de você, professor, e comecei não gostando.

— E por quê? — Devlin surpreendeu-se, interessado.

— Fui capitão da Brigada Rifle. Belfast, Derry, South Armagh.

— Ah, entendo o que quer dizer.

— Quatro períodos entre 1972 e 1978.

— Quatro períodos de verdade mesmo.

— Exato. E para ser franco, até onde me diz respeito, eles podem devolver o Ulster aos índios.

— A melhor ideia que ouvi agora à noite — disse Devlin, contente, e acendeu um cigarro, esparramando-se no banco, o chapéu de feltro sobre os olhos.


Ao mesmo tempo, em seu escritório no quartel-general da KGB, na Praça Dzerjinsky, em Moscou, o tenente-general Ivan Maslovsky estava sentado em sua mesa, pensando no caso Cuchulain. A mensagem de Cherny, passada por Lubov, chegara a Moscou umas duas horas antes. Por alguma razão, o comunicado o fez voltar todos aqueles anos até Drumore, na Ucrânia, e Kelly sob a chuva com a arma na mão, o homem que não cumpriu o que ele ordenara.

A porta se abriu, e seu ajudante de ordens, capitão Igor Kurbsky, entrou com uma xícara de café para ele. Maslovsky bebeu-o bem devagar.

— Então, Igor, o que você acha?

— Acho que Cuchulain tem feito um trabalho magnífico, camarada general, por muitos anos. Mas agora...

— Sei o que quer dizer — interrompeu Maslovsky. — Agora que o Serviço de Informação britânico sabe que ele existe, é apenas uma questão de tempo até que lhe caiam em cima.

— E podem pegar Cherny a qualquer momento.

Houve uma batida na porta, e um ordenança apareceu com um telegrama. Kurbsky apanhou-o e dispensou o homem.

— É de Lubov. Dublin.

— Leia — pediu Maslovsky.

A essência da mensagem era que Devlin estava a caminho de Paris com a intenção de se encontrar com Tanya Voroninova. À simples menção do nome de sua filha adotiva, Maslovsky ficou em pé e arrancou o telegrama das mãos de Kurbsky. A enorme afeição que o general sentia pela filha não era segredo desde a morte da esposa. Em alguns quartéis, ele era conhecido como um açougueiro, mas Tanya Voroninova ele amava verdadeiramente.

— Certo! — disse a Kurbsky. — Quem é nosso melhor homem na embaixada de Paris? Belov, não é?

— Sim, camarada.

— Envie uma mensagem hoje à noite. A turnê de Tanya está cancelada. Sem explicações. Segurança máxima sobre a pessoa dela, até que possa retornar a Moscou a salvo.

— E Cuchulain?

— Ele cumpriu seu objetivo. Uma pena.

— Vamos tirá-lo de lá?

— Não, não há tempo suficiente. Isso exige uma ação instantânea. Envie um telegrama imediatamente para Dublin. Quero Cuchulain eliminado. Cherny também, e quanto mais cedo melhor.

— Se posso discordar, não acho que Lubov tenha muita experiência com o lado nu e cru das coisas.

— Ele teve o treinamento usual, não teve? Em todo caso, não estão esperando por isso, o que torna tudo bem mais fácil.


Em Paris, a máquina de código da seção de informação da embaixada soviética começou a zumbir. A operadora esperou até que a mensagem desfilasse linha por linha na tela. Retirou a fita magnética que gravara a mensagem da máquina cuidadosamente e entregou-a ao supervisor da noite.

— Esta é uma mensagem confidencial da KGB, em Moscou, para o coronel Belov.

— Ele está fora da cidade — disse o supervisor. — Em Lyon, acho. Volta amanhã à tarde. Você tem que ficar com ela de qualquer modo. Só o coronel tem a chave para decodificá-la.

A operadora enrolou a fita, colocou-a no banco de dados e voltou ao trabalho.


Em Dublin, Dimitri Lubov estivera se divertindo à noite no Abbey Theatre, uma representação excelente da peça The hostage, de Brenda Behan. Depois, jantara no mais famoso restaurante de frutos do mar dos Quays,1 significando que já passava da meia-noite quando retornou à embaixada e encontrou a mensagem de Moscou.

Mesmo depois de ler pela terceira vez, ainda não podia acreditar. Nas próximas vinte e quatro horas tinha que se livrar não só de Cherny, mas de Cuchulain também. Suas mãos transpiravam, tremiam violentamente, o que era uma desagradável surpresa, porque, apesar dos anos na KGB e de todo aquele treinamento, o fato puro e simples era que Dimitri Lubov nunca tinha matado ninguém na vida.


Tanya Voroninova saía do banheiro de sua suíte no Ritz, enquanto o garçom entrava com a bandeja com o café da manhã. Chá, torradas e mel, exatamente o que ela havia pedido. Vestia macacão verde e botas macias de couro marrom, e a combinação lhe emprestava uma aparência vagamente militar. Era uma garota pequena, de um moreno intenso, cabelos pretos rebeldes, que ela constantemente tinha que afastar dos olhos. Olhou com reprovação para o espelho sobre a lareira e prendeu os cabelos num coque acima da nuca. Então se sentou, olhando fixamente para o desjejum.

Houve uma batida na porta, e sua secretária-executiva, Natasha Rubenova, entrou. Era uma mulher agradável, grisalha, perto dos cinquenta.

— Sente-se bem esta manhã?

— Ótima. Dormi muito bem.

— Excelente. Você está sendo esperada às duas e meia no Conservatório. Ensaio completo.

— Sem problema — disse Tanya.

— Vai sair agora de manhã?

— Sim, gostaria de ficar um pouco no Louvre. Temos estado tão ocupadas nessa visita que esta pode ser minha última oportunidade.

— Quer que eu vá com você?

— Não, obrigada. Ficarei bem. Volto à uma para almoçar.

A manhã estava suave quando ela saiu do hotel e desceu a escada da entrada. Devlin e Hunter aguardavam no Peugeot do outro lado do bulevar.

— Parece que ela vai dar umas voltas — disse Hunter.

Devlin concordou. — Siga-a um pouco, e então saberemos.

Tanya carregava uma bolsa de lona no ombro esquerdo e caminhava em passo acelerado, apreciando o exercício. À noite estaria tocando o Quarto Concerto para Piano de Rachmaninov. Era uma de suas peças favoritas, de modo que ela não experimentava nada parecido com aquela costumeira tensão nervosa, como acontecia com muitos artistas antes de um grande concerto.

Agora ela era tarimbada. Desde seus sucessos nos festivais de Leeds e Tchaikovsky, granjeara reputação internacional. Tinha havido muito pouco tempo para outras coisas. Numa das vezes em que se apaixonara, tinha sido insensata o bastante para escolher um médico militar de serviço numa brigada aerotransportada. Ele fora morto em ação no Afeganistão um ano antes.

A experiência, embora dolorosa, não a despedaçara. Fez uma de suas maiores apresentações na noite em que recebeu a notícia, mas tinha se retraído em relação aos homens, sem a menor dúvida. Muitas feridas abertas estavam envolvidas, e ela não precisava de um psicanalista brilhante para descobrir por quê. Apesar do sucesso, da fama e da posição privilegiada que sua vida lhe oferecia, além de ter constantemente por perto a forte presença de Maslovsky, ela ainda era, em muitas ocasiões, a garotinha de joelhos na chuva ao lado do pai, tão cruelmente ceifado de sua vida.

Andando rápido pelos Champs-Elysées, ela alcançou a Place de la Concorde.

— Meu Deus, mas ela adora um exercício! — observou Devlin.

Entrou na paz delicada dos Jardins das Tuileries, e Hunter concordou.

— Acho que adora mesmo. Meu palpite é de que ela está indo para o Louvre. É melhor que a siga a pé daqui. Vou dar a volta, estacionar e ficar esperando na entrada principal.

Havia uma exposição de Henry Moore nos jardins. Ela circulou por ali por pouco tempo, e Devlin ficou parado logo atrás, mas era óbvio que nada ali despertaria algum interesse. Caminhou através dos jardins até o grande Palais du Louvre.

Tanya Voroninova era certamente seletiva. Andou de galeria em galeria, escolhendo somente obras de gênios reconhecidos. Da Vitória de Samotrácia, no topo da escadaria Daru da entrada principal, ela foi até a Vênus de Milo. Passou algum tempo na galeria Rembrandt, no primeiro piso, e então parou para observar possivelmente o quadro mais famoso do mundo: a Mona Lisa, de Leonardo da Vinci. Devlin se aproximou.

— Você diria que ela está sorrindo? — ele tentou em inglês.

— O que quer dizer? — ela respondeu também em inglês.

— Oh, existe uma velha superstição no Louvre de que em certas manhãs ela não sorri.

Ela se virou e olhou para ele. — Isso é um absurdo.

— Você também não está sorrindo — disse Devlin. — Meu Deus, você fica preocupada em estar vulnerável?

— É um non sense total tudo isso — disse ela, mas acabou sorrindo.

— Quando você se ofende, sua boca vira para baixo nos cantos. Não adianta.

— O meu visual, quer dizer? Para mim não faz diferença.

Ele estava parado, as mãos nos bolsos do casaco Burberry, o chapéu de feltro preto inclinado sobre a orelha, e os olhos do azul mais vivo que ela jamais vira. Havia um ar de bom humor insolente nele e um tipo de autodeboche que era bem atraente, a despeito do fato de ele ter o dobro da idade dela afinal. Uma excitação difícil de controlar, e ela respirou fundo para voltar a si.

— Com licença — disse ela e se afastou.

Devlin deixou que se distanciasse e continuou a segui-la. Uma garota adorável, por alguma razão. E assustada. Interessante saber por quê.

Ela passeou pela grande galeria e finalmente parou defronte ao Cristo na cruz, de El Greco, e ficou lá algum tempo, fitando a magra figura mística, demonstrando não perceber a presença de Devlin atrás dela.

— E o que este quadro diz a você? — ele perguntou com gentileza. — Existe amor nele?

— Não — disse ela. — Uma fúria contra a morte, eu acho. E por que está me seguindo?

— Estou?

— Desde os jardins.

— É mesmo? Bem, então não sou lá muito bom nisso.

— Não necessariamente. Você é alguém para quem se olha duas vezes — disse ela com simplicidade.

— E você, minha cara, é muito doce.

Estranho como de repente ela se sentiu como que chorando.

Quis fugir do incrível calor daquela voz. Ele pegou em seu braço e disse: — Temos todo o tempo do mundo, minha garota. Você ainda não me disse o que este El Greco significa para você.

— Não fui criada como cristã — disse ela. — Não vejo um salvador na cruz, mas um ser humano atormentado, destruído por pessoas mesquinhas. E você?

— Adoro seu sotaque — disse Devlin. — Lembra Greta Garbo naqueles filmes de quando eu ainda era garoto, mas isso foi há um século antes do seu tempo.

— Conheço Greta Garbo — disse ela. — E estou devidamente lisonjeada. Bom, mas ainda não me contou o que o quadro significa para você.

— Uma questão profunda, levando-se em consideração o dia de hoje — disse Devlin. — Às sete da manhã foi celebrada uma missa na Basílica de São Pedro, em Roma. O papa com os cardeais primazes da Inglaterra e da Argentina.

— E isso adiantou alguma coisa?

— A missa não acabou com as manobras da marinha inglesa e nem impediu os Skyhawks argentinos de atacá-la.

— O que você quer dizer?

— Que Deus Todo-poderoso, se é que existe afinal, está se divertindo à nossa custa.

Tanya franziu a testa. — Seu sotaque me intriga. Você não é inglês?

— Irlandês.

— Mas eu achava que os irlandeses eram extremamente religiosos.

— E isto é um fato. Minha velha tia Hanna tinha calos nos joelhos de tanto rezar. Ela me levava à missa três vezes por semana, quando eu era menino, em Drumore.

Tanya Voroninova ficou alerta.

— O que você disse?

— Drumore. É uma pequena cidade comercial no Ulster. A igreja de lá é a do Santíssimo. O que mais me lembro é de meu tio e seus amigos saindo da missa direto para o Murphy's Select Bar.

Ela o encarou, agora com as faces lívidas. — Quem é você?

— Bem, de uma coisa você pode ter certeza, querida — ele passou a mão suavemente nos cabelos negros de Tanya. — Não sou Cuchulain, o último herói das trevas.

Seus olhos se arregalaram, e houve uma espécie de raiva quando ela o agarrou pelo casaco.

— Quem mandou você aqui?

— Viktor Levin, num certo sentido.

— Viktor? — Ela parecia ensandecida. — Mas Viktor está morto. Morreu em algum lugar da Arábia faz pouco mais de um mês. Meu pai me contou.

— O general Maslovsky? Não, Viktor escapou. Ou melhor, desertou. Londres. E depois Dublin.

— Ele está bem?

— Morreu — disse Devlin brutalmente. — Assassinado por Mikhail Kelly ou Cuchulain ou o último herói sanguinário das trevas ou qualquer nome que você queira chamá-lo. O mesmo homem que matou seu pai na Ucrânia há vinte e três anos.

Ela cambaleou. O braço dele a amparou, forte e reconfortante.

— Apoie-se em mim. Ande devagar. Vou levar você para tomar um pouco de ar lá fora.

Sentaram-se num banco nos Jardins das Tuileries, e Devlin tirou do bolso a cigarreira de prata, oferecendo-lhe um cigarro.

— Você fuma?

— Não.

— Bom para você. Cigarro acaba com a saúde, e você ainda tem muitos anos dourados pela frente.

Em algum lugar, ele dissera as mesmas palavras, há muitos, muitos anos. Outra garota parecida demais com aquela. Não era bonita, não pelos padrões convencionais, e mesmo assim havia aquela compulsão de se virar e olhar uma segunda vez. Havia mágoa naquela lembrança que até agora ela não conseguira apagar.

— Você é um homem estranho para um agente secreto — disse ela. — Acho que você é isso.

Ele gargalhou, tão sonoramente que Tony Hunter, lendo um jornal sentado no banco ao lado da exposição de Henry Moore, relanceou os olhos bruscamente na direção deles.

— Minha nossa! — Devlin passou a mão na carteira e tirou um pedaço de papel retangular. — Meu cartão. Apenas para ocasiões formais.

— Professor Liam Devlin, Trinity College, Dublin — ela leu alto e levantou os olhos. — Professor de quê?

— Literatura inglesa. Eu uso o termo genericamente como os acadêmicos, mas inclua aí Oscar Wilde, Shaw, O'Casey, Brenda Behan, James Joyce, Yeats. Um saco de gatos, católicos e protestantes, mas todos irlandeses. A propósito, pode me devolver o cartão. Tenho poucos.

Ele colocou o cartão de volta na carteira, e ela disse: — Mas como um professor de uma universidade famosa e tradicional pode estar envolvido num assunto desses?

— Você já deve ter ouvido falar do Exército Republicano Irlandês.

— Claro.

— Sou da organização desde que tinha dezesseis anos. Pouco ativo, como costumamos dizer. Faço algumas restrições severas à maneira pela qual os Provisórios têm conduzido alguns aspectos da atual campanha.

— Não me conte. Deixe que eu adivinhe — disse ela. — Você é um homem de coração romântico, não é, professor?

— É uma afirmação?

— Só um romântico pode usar alguma coisa tão absurdamente maravilhosa como esse chapéu de feltro preto. Mas tem mais, claro. Nada de bombas em restaurantes que possam atingir mulheres e crianças. Você mataria um homem sem hesitação. Seja bem-vindo o desespero eventual de se encontrar cara a cara com soldados bem treinados.

Devlin estava começando a se sentir pouco à vontade. — É isso mesmo que você acha?

— Oh, eu acho, professor Devlin. Acho que o reconheço agora. O verdadeiro revolucionário, o romântico falido que não quer que isso acabe.

— E isso seria exatamente o quê?

— O jogo, professor. O jogo louco, perigoso e maravilhoso que sozinho faz a vida importante de ser vivida para um homem como você. Ah, você pode gostar da vida enclausurada das bibliotecas ou de dizer a si mesmo que gosta, mas na primeira chance que tem de farejar pólvora...

— Posso tentar respirar?

— E o pior de tudo — ela continuou, implacável — é que você necessita das duas coisas. Divertir-se, mas também ter uma bela e limpa revolução onde nenhum espectador inocente se machuque.

Ela permaneceu sentada, braços cruzados no peito, tentando se conter.

Devlin disse: — Será que não esqueceu nada?

Ela sorriu tristemente. — Às vezes eu me sinto muito magoada. É como um relógio em que vai se dando corda até arrebentar a mola.

— E tudo vai pelos ares, e você cai na sua imitação de Freud — disse ele. — Aposto que esta sensação é bem mais forte com vodca e morangos, depois do jantar na velha dacha de Maslovsky.

O rosto dela ficou duro. — Você não deve fazer piadas. Ele tem sido muito bom para mim. O único pai que conheci.

— Talvez — disse Devlin. — Mas não foi sempre assim.

Ela o encarou com raiva. — Está bem, professor Devlin, já esgrimimos bastante. Talvez seja hora de me contar por que está aqui.

Ele não omitiu nada, começando por Viktor Levin e Tony Villiers no Iêmen e terminando com o assassinato de Billy White e Levin perto de Kilrea. Quando terminou, ela ficou muda por um longo tempo.

— Levin contou que você se lembrava de Drumore e dos acontecimentos que cercaram a morte de seu pai — disse Devlin, gentilmente.

— É como um pesadelo. Mergulha e volta à superfície de vez em quando. Estranho, mas é como se estivesse acontecendo com outra pessoa, e eu fico olhando para aquela garotinha ajoelhada ao lado do corpo do pai.

— E Mikhail Kelly? Ou Cuchulain, como eles o chamam? Você se lembra dele?

— Até o dia em que morrer — disse ela, a voz neutra. — Era um rosto estranho, o rosto de um jovem santo desolado, e ele foi tão bom para mim, tão gentil. Isso é o mais insólito de tudo.

— Vamos andar um pouco. — Devlin pegou em seu braço, e eles foram caminhando entre os jardins. — Alguma vez Maslovsky já discutiu aqueles fatos com você?

— Não.

Ele sentiu o braço dela ficando rígido em sua mão. — Relaxe, querida — disse, suave —, e me conte a coisa mais importante. Você já tentou discutir isso com ele?

— Não, droga! — Ela puxou o braço, virando-se, o rosto cheio de emoção.

— Você não quer discutir, não é? — disse ele. — Isso pode abrir uma lata de minhocas na sua cabeça. Vingança.

Ela ficou olhando para ele, tentando se conter novamente. — O que você quer de mim, professor Devlin? Quer que eu deserte como Viktor? Quer que eu enfrente aquela maratona de fotos na esperança de que possa reconhecê-lo?

— É um fac-símile razoável da ideia original.

— E por que deveria? — Ela sentou-se num banco e fez com que ele a imitasse. — Deixe que lhe diga uma coisa. Você cometeu um grande erro, vocês ocidentais, quando decidiram que todos os russos estão presos num cabresto, ansiosos apenas por uma chance de cair fora. Eu amo meu país. Gosto dele como é. É um país que me apoia. Sou uma artista respeitável. Posso viajar para onde quiser. Agora, hoje de manhã, Paris. Sem KGB. Nada de homens de casacos pretos observando meus movimentos. Vou para onde bem entendo.

— Eu ficaria surpreso se não fosse assim, com um pai adotivo general da KGB no comando do Departamento 5 entre outras coisas. A propósito, ele é chamado de Departamento 13. Inoportuno para alguns, e então Maslovsky o reorganiza em 1968. Pode ser mais bem descrito como um bureau para assassinatos, mas, claro, nenhuma organização bem azeitada pode viver sem esse tipo de coisa.

— Exatamente como o seu IRA, não? — Ela se inclinou para a frente. — Quantos homens já matou pela causa em que acredita, professor?

Ele sorriu com gentileza e tocou em suas faces com um estranho gesto de ternura.

— Você foi ao ponto. Vejo que estou tomando seu tempo. Mas você pode muito bem ficar com isso.

Ele tirou do bolso um envelope amarelo comprido, que fora trazido de manhã pelo correio de Ferguson, e depositou no colo dela.

— O que é? — indagou ela.

— O pessoal de Londres. Sempre esperançosos. Fizeram um passaporte britânico para você, uma nova identidade. Sua foto parece formidável. Tem dinheiro aí, francos franceses, e detalhes de rotas alternativas para chegar a Londres.

— Não vou precisar.

— Bem, agora já está com você. E tome isso também. — Ele tirou o cartão da carteira e deu a ela. — Vou voltar para Dublin à tarde. Não posso ficar esperando.

Era estritamente verdade, porque o correio que voara de Londres trouxera mais que o pacote com o passaporte falso. Tinha havido também uma mensagem pessoal de Ferguson para Devlin. McGuinness e o chefe do estado-maior do IRA estavam ficando furiosos. Até onde sabiam, o vazamento não vinha da organização. Eles queriam tirar o time, e Devlin precisava colocar os panos quentes.

Ela colocou o pacote e o cartão com relutância na bolsa.

— Sinto muito. Você veio de muito longe para nada.

— Você tem meu número — disse ele. — Pode ligar a qualquer hora. — Ele se levantou. — Quem sabe você possa querer começar fazendo perguntas.

— Acho que não, professor. — Ela estendeu a mão. — Adeus.

Devlin segurou sua mão por um instante, então deu as costas para ela e caminhou de volta pelo jardim até onde Hunter estava sentado.

— Vamos? — disse ele. — Vamos embora daqui!

Hunter anuiu e foi atrás dele.

— O que houve?

— Nada — Devlin disse quando chegavam ao carro. — Nada de tão terrível. Ela não quer saber. Agora, de volta para pegar minha mala, e você me leva para o Charles de Gaulle. Com sorte, ainda posso pegar o voo da tarde para Dublin.

— Vai voltar?

— Vou — disse e afundou no banco, empurrando seu chapéu de feltro preto sobre os olhos.

Lá atrás, Tanya Voroninova os viu desaparecer no tráfego da Rue de Rivoli. Ficou parada pensando por um momento, então saiu dos jardins e começou a andar pela calçada, considerando os extraordinários acontecimentos daquela manhã. Liam Devlin era um homem perigosamente atraente, sem dúvida; mais que aquilo: a história dele a perturbara terrivelmente, e fatos de um passado convenientemente esquecido tentavam chamá-la de muito longe no tempo.


Ela estava atenta ao carro parado junto ao meio-fio, um pouco mais à frente: uma Mercedes preta. Quando se aproximou, a porta de trás foi aberta, e Natasha Rubenova esticou o corpo para fora. Parecia agitada. Não, mais que isso: com medo.

— Tanya!

Tanya caminhou em sua direção.

— Natasha! O que você está fazendo aqui? O que aconteceu?

— Por favor, Tanya. Entre!

Havia um homem sentado ao lado dela, jovem, com um rosto implacável e duro. Vestia terno azul, gravata azul-escura e camisa branca. Também usava luvas de couro preto. O homem ao lado do motorista podia ser seu irmão gêmeo. Pareciam empregados de uma funerária de primeira classe, e Tanya se sentiu levemente tensa.

— Que diabos está havendo?

Num segundo, o jovem ao lado de Natasha estava fora do carro, a mão exercendo uma pressão discreta mas firme no cotovelo esquerdo de Tanya.

— Meu nome é Turkin. Peter Turkin, camarada. Meu colega é o tenente Ivan Shepilov. Somos oficiais da GRU, e deve vir conosco.

Serviço de Informação Soviético, pensou. Ela estava mais que tensa agora. Estava apavorada e tentou se soltar.

— Por favor, camarada! — O aperto aumentou. — Vai apenas se machucar se ficar se contorcendo, e há um concerto hoje à noite. Não queremos desapontar seus fãs.

Havia algo em seus olhos de muito perturbador. Um vislumbre de crueldade, de perversidade.

— Deixe-me em paz! — Ela tentou atingi-lo, e ele bloqueou seu golpe com facilidade. — Vai responder por isso. Você sabe quem é meu pai?

— Tenente-general Ivan Maslovsky da KGB, sob cujas ordens diretas estamos agindo agora. Portanto, seja uma boa garota e faça o que dissermos.

Ela não tinha mais nenhum desejo de resistir, tão grande foi o choque, e descobriu-se sentada perto de Natasha, que estava quase às lágrimas. Turkin entrou pelo outro lado.

— Para a embaixada — disse ao motorista. Enquanto a Mercedes partia, Tanya segurou firmemente a mão de Natasha. Pela primeira vez desde que era garotinha, sentiu um medo real e autêntico.

 

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1 Quays é a região do cais em Dublin. (N. do T.)


7

 

 

Nikolai Belov já passara dos cinquenta. Um homem bastante elegante, com o rosto levemente flácido, de alguém que apreciava as boas coisas da vida um pouco além do que era saudável. O tipo do bom marxista cujo terno escuro e capa tinham sido cortados em Savile Row, em Londres. O cabelo grisalho e um certo ar decadente davam-lhe o jeito de um ator maduro e famoso, em vez de um coronel da KGB.

A viagem a Lyon poderia ter sido classificada formalmente como de negócios inadiáveis, mas era certo que tivesse levado com ele Irana Vronsky, sua secretária.

Como ela vinha sendo amante dele por vários anos, significava que eles tinham passado dois dias juntos, extremamente agradáveis. A lembrança daqueles dias fora apagada relativamente rápido, quando ele ficou sabendo da situação que o esperava na volta para a embaixada soviética.

Ele acabara de se sentar pesadamente em seu escritório, quando Irana entrou.

— Há uma comunicação urgente da KGB de Moscou. É confidencial.

— De quem?

— General Maslovsky.

A simples menção do nome foi suficiente para colocar Belov de pé. Ele saiu, e ela o seguiu para a sala de códigos, no andar de baixo, onde o operador pegou a importante fita. Belov introduziu seu código pessoal na máquina, que zumbiu. O operador destacou a folha impressa e passou a ele. Belov leu e praguejou baixo. Pegou Irana pelo cotovelo e a conduziu para fora da sala.

— Quero o tenente Shepilov e o capitão Turkin. Eles devem largar qualquer coisa que estiverem fazendo.

Belov estava sentado em sua mesa entre a papelada, quando a porta se abriu, e Irana introduziu Tanya, Natasha Rubenova, Shepilov e Turkin no escritório. Belov conhecia Tanya muito bem. Adido cultural durante muitos anos, sua posição oficial na embaixada, um cargo de cobertura, ele a acompanhara a festas em diversas ocasiões.

Belov levantou-se. — É um prazer vê-la de novo.

— Quero saber o que está acontecendo — disse ela, enfática. — Fui assaltada na rua por esses dois valentões aqui e...

— Tenho certeza de que o capitão Turkin estava somente agindo do modo que achou conveniente. — Belov acenou para Irana. — Telefone agora para Moscou — e virou-se para Tanya: — Relaxe e sente-se.

Ela ficou em pé, em desafio, e então relanceou os olhos para Shepilov e Turkin encostados à parede, mãos enluvadas e cruzadas.

— Por favor... — disse Belov. Ela se sentou e ele ofereceu-lhe um cigarro. Sua inquietação era tanta que aceitou, e Turkin abandonou a parede para acender o cigarro.

O isqueiro não era apenas de Cartier, mas de ouro. Ela tossiu quando a fumaça invadiu sua garganta.

— Agora me conte o que você fez hoje de manhã — disse Belov.

— Fiquei passeando nos Jardins das Tuileries. — O cigarro estava ajudando, acalmando-a. Ela tinha autocontrole agora, o que significava que podia lutar.

— E então?

— Fui ao Louvre.

— E com quem você falou?

A pergunta era direta e tinha o objetivo de confundi-la, porque pedia uma resposta automática. Para sua própria surpresa, ela se viu respondendo calmamente:

— Eu estava sozinha. Não fui com ninguém. Será que ficou claro?

— Sim, ficou — disse ele de um modo paciente. — Mas você não falou com ninguém mesmo por lá? Alguém se aproximou de você?

Ela esboçou um sorriso. — Você quer dizer se alguém tentou me agarrar? Não tive essa sorte. Paris tem a reputação de ser uma cidade muito desapontadora nesse sentido. — Ela apagou o cigarro. — O que está havendo, Nikolai? Você pode me contar?

Belov não tinha nenhuma razão para não acreditar nela. De fato, ele queria aceitar de bom grado o que ela havia dito. Com efeito, ele se ausentara do dever na noite anterior. Não fosse assim, teria recebido a instrução de Maslovsky, e então Tanya Voroninova não teria sido autorizada a circular fora de sua suíte do Ritz naquela manhã. Não desacompanhada, certamente.

A porta foi aberta, e Trana entrou. — O general Maslovsky na linha um. Belov segurou o aparelho, e Tanya tentou arrebatá-lo. — Quero falar com ele. Belov se afastou. — Aqui é Belov, general. — Ah, Nikolai, ela está com você agora? — Está, general. — Belov omitiu o ‘camarada’, num gesto demonstrativo da estreita amizade entre eles.

— Ela está sob guarda? Ela não falou com ninguém, não é?

— Fique tranquilo quanto às duas perguntas, general. — E o homem, Devlin, não teve oportunidade de entrar em contato com ela?

— Parece que não. O computador vai fisgá-lo dos arquivos para nós. Fotografias, tudo. Saberemos se ele tentar chegar perto dela.

— Ótimo. Passe-me para Tanya agora.

Belov estendeu o aparelho, e ela quase o arrancou da mão dele.

— Papai? Tanya falara com ele pelo telefone durante anos, e sua voz era calorosa e gentil como sempre.

— Você está bem? — Assustada — disse ela. — Ninguém quer me dizer o que está acontecendo.

— Basta saber que, por motivos que não lhe dizem respeito, você está envolvida num assunto de segurança de Estado. Um negócio muito sério. Você deve voltar a Moscou o mais cedo possível.

— Mas e a minha turnê? A voz do homem do outro lado da linha estava repentinamente fria, implacável e imparcial.

— Sua turnê será cancelada. Você vai aparecer hoje à noite no Conservatório e cumprir só este compromisso. De qualquer maneira, o primeiro voo direto para Moscou é amanhã de manhã. Haverá um comunicado para a imprensa. Um velho ferimento no pulso está causando problemas de novo. Você necessita de tratamento imediato. Isto será perfeito.

Durante toda sua vida, ou pelo menos tinha parecido, ela fora obediente, permitira que ele a ajudasse na carreira, consciente de sua dedicação e amor, mas aquele era um dado novo.

Ela tentou outra vez: — Mas papai! — Chega de argumentos. Você fará o que disserem e obedecerá o coronel Belov em tudo. Passe o telefone para ele agora.

Ela esticou o aparelho para Belov, muda, a mão trêmula. Nunca ele havia falado daquele jeito. Não era mais sua filha? Era meramente um ‘soviético’ sujeito a obedecer ordens contra a vontade?

— Aqui é Belov, general — ele ouviu por um minuto ou dois e então aquiesceu com a cabeça. — Sem problemas. — Olhou para Tanya. — Pode confiar em mim.

Belov desligou o telefone e abriu uma pasta de arquivo sobre a mesa. A foto que tirou de lá e passou a Tanya era de Liam Devlin, talvez alguns anos mais moço, mas indiscutivelmente de Devlin.

— Este homem é irlandês. Seu nome é Liam Devlin. É um professor universitário de Dublin, com a reputação de ter um certo charme. Isso pode ser um erro para qualquer um que o tome por um irlandês pacato. Ele tem sido do Exército Republicano Irlandês a vida toda. Um líder importante do primeiro escalão. Ele também é um pistoleiro cruel e competente que já matou muitas vezes. Quando era jovem, foi oficial de execuções do pessoal dele.

Tanya respirou profundamente. — E o que ele tem a ver comigo?

— Não lhe interessa. É suficiente saber que ele gostaria muito de falar com você, e isso não podemos permitir, não é, capitão?

Turkin não demonstrou nenhuma emoção.

— Não, coronel.

— Bem — disse Belov —, você voltará ao Ritz agora, você e a camarada Rubenova, junto com o tenente Shepilov e o capitão Turkin. E não sairá de novo até a apresentação de hoje à noite, quando eles a escoltarão até o Conservatório. Eu estarei lá por causa da recepção depois do concerto. O embaixador também estará lá, e mais o presidente da República, o Sr. Mitterrand. A presença dele é o único motivo para não cancelamos o concerto. Alguma dúvida?

— Não — disse ela, friamente, as faces lívidas e tensas. — Compreendi tudo muito bem.

Tanya deu as costas para Belov, Turkin abriu a porta, um sorriso de desprezo pairando nos lábios. Ela passou por ele andando rápido, seguida de uma Natasha Rubenova verdadeiramente apavorada, e Shepilov e Turkin foram atrás das duas.


Em Kilrea, Devlin acabara de chegar ao chalé. Não tinha empregada regular, apenas uma velha senhora que vinha duas vezes por semana, punha a casa em ordem e lavava a roupa. Mas ele preferia assim. Colocou a chaleira no fogo, foi até a sala e fez a lareira crepitar rapidamente. Apenas acabara de colocar mais uma acha de lenha, quando ouviu uma pequena batida na janela. Virou-se e lá estava Martin McGuinness. Devlin abriu as janelas depressa.

— Foi rápido. Acabei de chegar.

— Fui informado cinco minutos depois que seu voo aterrissou. — McGuinness estava zangado. — Qual é o papo? O que está acontecendo?

— O que você quer dizer?

— Levin e Billy, e agora Mike Murphy pescado do Liffey com duas azeitonas no corpo. Deve ter sido Cuchulain. Você sabe disso, e eu também. A questão é: como ele soube?

— Não tenho nenhuma resposta pronta. — Devlin pegou dois copos, o Bushmills e encheu-os. — Experimente isso aqui para relaxar.

McGuinness engoliu um trago curto. — Acho que é um vazamento. Do lado de Londres. É um fato muito bem sabido que há anos o Serviço de Segurança britânico vem sofrendo pesada infiltração de agentes soviéticos.

— Um certo exagero, mas existe alguma verdade aí — disse Devlin. — Como eu já disse antes, sei que Ferguson acha que o vazamento vem de seu pessoal.

— Para o inferno! Eu digo que devemos pegar Cherny e espremê-lo a seco.

— Pode ser. Mas tenho que falar com Ferguson sobre isso. Deixe passar só mais um dia.

— Está certo — disse McGuinness, com relutância óbvia. — Manterei contato, Liam. Muito de perto — e saiu pelas janelas em arco.

Devlin colocou mais um uísque no copo e se sentou, saboreando a bebida e pensando. Pegou o telefone. Estava para discar quando hesitou. Recolocou o fone no gancho, pegou a caixa preta de plástico e ligou o mecanismo. Não houve sinal positivo do telefone, nem de qualquer lugar da sala.

— Bem — disse ele, baixo —, Ferguson ou McGuinness. Um ou outro está grampeado, e está tudo indo por água abaixo.

Discou o número da Cavendish Square, e o telefone foi atendido prontamente.

— Aqui é Fox.

— Ele está em casa, Harry?

— No momento, não. Como foi em Paris?

— Uma garota adorável. Deliciosamente confusa. Não fiz nada além de apresentar os fatos. Dei-lhe o material que o correio levou. Ela pegou, mas não estou muito otimista.

— Eu nunca estive — disse Fox. — Você consegue serenar as coisas aí em Dublin?

— McGuinness está no meu pé. Ele quer Cherny. Tentar alguma pressão no estilo antigo.

— Essa pode ser a melhor solução.

— Meu Deus, Harry, Belfast marcou você mesmo, hein? Ainda assim você até que pode ter razão. Consegui segurar McGuinness por mais um dia. Se precisar, estarei aqui. A propósito, dei meu cartão a ela. A garota achou que eu era um romântico falido, Harry. Você já ouviu alguma coisa do tipo?

— Você faz uma imitação muito convincente, mas eu nunca engoli.

Fox deu uma gargalhada e desligou. Devlin ficou sentado, uma ruga na testa, e então veio outra batidinha nas janelas, que se abriram. E Cussane entrou.

— Harry! — disse Devlin. — Você caiu do céu. Como eu sempre digo, você faz os melhores ovos mexidos do mundo.

— E você vai longe com essa bajulação.

Cussane de serviu de uma bebida. — E Paris?

— Paris? Eu só estava brincando. Fui a Cork. Negócios sobre o festival de cinema da universidade. Mas deixe isso para lá. Acabei de chegar e sou aquele homem sempre morto de fome.

— Certo — disse Harry Cussane. — Você põe a mesa, eu faço os ovos.

— Você é um amigão, Harry.

Cussane parou na porta. — E por que não seria, Liam? Já faz tanto tempo — ele sorriu e sumiu na cozinha.


Tanya tomava um banho quente, tentando relaxar. Bateram na porta, e Natasha Rubenova entrou.

— Café?

— Quero sim, obrigada.

Tanya estava deitada na banheira, com a água cheia de espuma para banho. Ela tomou o café, prazerosamente. Natasha puxou um banquinho para a frente e se sentou.

— Estranho — disse Tanya. — Ninguém nunca tinha me dito para tomar cuidado antes.

Ocorrera a ela que sempre vinha sendo protegida de alguma forma, desde o pesadelo de Drumore, que emergia em seus sonhos. Maslovsky e a mulher foram bons pais. Nunca lhe faltara nada. Numa sociedade marxista que fora pensada nos grandes dias de Lenin, e a revolução dando poder ao povo, o mesmo poder tinha se tornado rapidamente uma prerrogativa de poucos.

A Rússia soviética transformara-se numa sociedade elitista, onde ser quem era muito mais importante do que ser o que, e ela, para todos os efeitos e fins, era a filha do general Ivan Maslovsky. As melhores casas, escolas especiais, seu talento cuidadosamente cultivado. Quando ia de Moscou para a casa de campo, era numa limusine com motorista, trafegando na faixa livre da pista, mantida aberta para o uso de pessoas importantes da hierarquia. As especiarias que enfeitavam sua mesa, as roupas que vestia, tudo comprado com cartão especial da GUM.1

Ela ignorara tudo aquilo, como ignorara os julgamentos públicos, os gulags. Como se tivesse dado as costas até mesmo para a realidade gritante de Drumore, seu pai morto na rua e Maslovsky no comando da situação.

— Você está bem? — disse Natasha.

— Claro. Passe-me a toalha. — Tanya enrolou-a no corpo. — Você reparou no isqueiro que Turkin usou quando acendeu meu cigarro?

— Não.

— Era um Cartier. Ouro puro. Não foi um escritor ocidental que disse “Todos os animais são semelhantes, mas alguns são mais semelhantes que os outros”?

— Por favor, querida! — Natasha Rubenova estava visivelmente agitada. — Você não deve dizer coisas desse tipo.

— Você está certa — sorriu Tanya. — Estou com raiva, é tudo. Acho que gostaria de dormir um pouco. Preciso estar em forma para o concerto à noite.

Entraram no quarto da suíte, e Tanya foi para a cama, a toalha ainda enrolada no corpo.

— Os dois continuam lá fora?

— Sim.

— Vou dormir agora.

Natasha fechou as cortinas e saiu. Tanya ficou deitada na escuridão, pensando. Os acontecimentos de horas antes eram um choque por si mesmos, mas bastante estranha e mais significativa foi a maneira como a trataram. Tanya Voroninova, artista internacionalmente aplaudida, ela que recebera a medalha da cultura de Brejnev em pessoa, tinha sentido o peso poderoso da mão do Estado. A verdade era que, graças a Maslovsky, ela tinha sido alguém na vida. Agora ficava parecendo que, quebrado o encanto, ela era apenas mais um zero à esquerda.

Aquilo foi suficiente. Acendeu a luz de cabeceira, alcançou a bolsa e pegou o pacote que Devlin lhe dera. O passaporte inglês era excelente. Emitido, de acordo com a data, três anos antes. Havia um visto americano. Ela entrara nos Estados Unidos duas vezes; e também Alemanha, Itália, Espanha e França, uma semana antes. Um toque de gênio. Seu nome era Joanna Frank, jornalista, nascida em Londres. A foto, como disse Devlin, era fantástica na semelhança. Havia ainda cartas pessoais com seu endereço de Chelsea, em Londres, um cartão de crédito do American Express e uma carteira de motorista. Eles tinham pensado em tudo.

As rotas alternativas estavam claramente esboçadas. O voo direto Paris-Londres não estava na lista. Surpreendeu-se como agora estava fria e calculista. Ela teria apenas uma chance mínima de fugir, se afinal alguma oportunidade se apresentasse, e sua falta seria notada quase que imediatamente. Eles cobririam os aeroportos num piscar de olhos.

Parecia óbvio que o mesmo valia para os terminais de barcas de Calais e Boulogne. Mas o pessoal de Londres indicara outro caminho. Havia trens de Paris para Rennes, com baldeação para St.-Malo, na costa inglesa. De lá, para Jersey, em Channel Islands, de aerobarco. E de Jersey havia vários voos diários para Londres.

Ela se levantou em silêncio, foi pé ante pé até o banheiro e fechou a porta. Então chamou a recepção pelo telefone de parede. Eles eram extremamente eficientes.

Sim, havia um trem noturno para Rennes, saindo às onze da noite da Gare du Nord. Em Rennes, poderia haver algum atraso, mas ela estaria em St.-Malo para o café da manhã. Tempo de sobra para pegar o aerobarco.

Saiu rápido do toalete e voltou para o quarto, satisfeita consigo mesma, porque não dera o número do quarto e nem o nome. A pergunta podia ter partido de qualquer uma entre as centenas de hóspedes. — Estão transformando você num animal da selva, Tanya — ela disse baixo a si mesma.

Pegou sua pequena maleta do guarda-roupa, a que usava para guardar seus apetrechos de concerto. Não podia ocultar muita coisa lá. Daria na vista. Pensou no assunto por um instante, então enrolou suas botas de camurça macia, de modo que coubessem bem no fundo da maleta. Em seguida, apanhou um casaco de algodão preto do cabide e também colocou na valise. Pôs por cima o marcador de compassos e as partituras que estivera estudando.

Bom, nada mais a ser feito. Foi até a janela, puxou as cortinas e olhou fixamente para fora. Chovia novamente e, de repente, ela tremeu, subitamente solitária, e lembrou-se de Devlin e de sua força interior. Por um momento, pensou em telefonar para ele, mas não era uma boa ideia. Não de lá. Eles poderiam localizar a chamada em minutos, no momento em que começassem a checar. Voltou para a cama e apagou a luz. Se pudesse dormir por uma ou duas horas. Então o rosto veio à superfície em sua mente: a fisionomia pálida, os ossos angulosos e os olhos escuros de Cuchulain não a deixaram dormir.


Ela vestia um longo de veludo preto para o concerto. Era Balmain e chamava atenção, com uma sobrecapa combinando. As pérolas no pescoço e os brincos eram supostamente para dar sorte, um presente de Maslovsky antes das finais do concurso Tchaikovsky, seu maior triunfo.

Natasha entrou e ficou parada atrás dela na penteadeira. — Você está pronta? Está quase na hora. — Ela colocou as mãos nos ombros de Tanya. — Você parece adorável.

— Obrigada. Já arrumei a maleta. — Natasha a pegou. — Colocou a toalha? Você sempre esquece. — Ela abriu o zíper antes que Tanya pudesse impedir e ficou congelada.

Olhou para a garota, os olhos arregalados.

— Por favor — disse Tanya, suavemente. — Eu nunca quis esconder nada de você.

A velha respirou fundo, foi até o banheiro e voltou com uma toalha. Dobrou-a, colocou-a na maleta e fechou o zíper.

— Bem — disse Natasha —, estamos prontas.

— Ainda está chovendo?

— Está.

— Então não devo usar a capa de veludo. Acho que o casaco de lã...

Natasha pegou o casaco do guarda-roupa e o ajeitou nos ombros de Tanya, que sentiu suas mãos tensas por um instante.

— Devemos ir agora.

Pegou a maleta, abriu a porta e entrou na sala anexa, onde Shepilov e Turkin aguardavam. Os dois vestiam dinner jacket por causa da recepção depois da performance.

— Se me permite observar, você está soberba, camarada — disse Turkin. — Um crédito para nosso país.

O Conservatório fora preparado para aquela ocasião especial. Quando ela caminhou pelo palco, a orquestra se levantou para saudá-la, e houve uma chuva de aplausos, a plateia igualmente de pé, seguindo o exemplo do presidente Mitterrand.

Ela se sentou ao piano. Todos os ruídos cessaram. Houve um completo silêncio, enquanto o maestro aguardava, a batuta pronta, elevada no ar; então baixou-a, e a orquestra começou a tocar. As mãos de Tanya Voroninova ondulavam no teclado.

Tanya era movida por uma exuberância, quase um êxtase, e tocou como jamais havia feito antes em toda a vida, com uma energia nova, vibrante, como se algo aprisionado em seu interior durante anos tivesse sido libertado.

A orquestra respondeu, tentando acompanhá-la, de modo que, no final, o último movimento do dramático e vigoroso concerto de Rachmaninov fundiu-se num todo que proporcionou uma experiência inesquecível para os presentes naquela noite.

A manifestação da plateia foi diferente de tudo que ela experimentara antes na vida. Ficou em pé, encarando a plateia, a orquestra também em pé atrás dela, todos batendo palmas, e alguém atirou uma flor no palco; e outras se seguiram, quando as mulheres desprenderam seus buquês dos vestidos.

Ela saiu pela lateral do palco, e Natasha, esperando, lágrimas correndo nas faces, enlaçou-a.

— Babushka, você foi maravilhosa. A melhor coisa que já ouvi.

Tanya abraçou-a fortemente. — Eu sei. Minha noite, Natasha, a noite que posso levar comigo para o mundo inteiro e, se for preciso, começar o jogo de novo, ganhando. — Virou-se e voltou ao palco para uma plateia que se recusava a parar de aplaudir.

François Mitterrand, presidente da República da França, estreitou suas mãos e beijou-as calorosamente. — Eu a saúdo, senhorita. Uma performance extraordinária.

— Está sendo mais do que gentil, Monsieur le President — ela respondeu em francês.

A multidão se compactou quando o champanhe foi servido, e máquinas fotográficas dispararam no momento em que o presidente fez um brinde a ela e apresentou-a ao ministro da Cultura e a outros mais. Ela estava muito atenta para as presenças de Shepilov e Turkin perto da porta. Nikolai Belov, elegante num smoking de veludo e camisa de babados, falava com eles. Ele levantou sua taça num brinde e veio na direção dela. Tanya relanceou os olhos para o relógio. Passava um pouco das dez. Se ela fosse, teria que ser logo.

Belov envolveu sua mão direita e a beijou. — Tremenda obra-prima. Você deveria ficar com raiva mais frequentemente.

— É um ponto de vista. — Ela pegou outra taça de champanhe de um garçom.

— Todo mundo que é alguém no corpo diplomático parece estar aqui. Você deve ter gostado. Um triunfo.

— Claro! Mesmo assim, nós, russos, sempre tivemos uma alma musical que está faltando em certos povos.

Ela olhou em volta. — Onde está Natasha?

— Lá, com a imprensa. Vou chamar.

— Não é necessário. Preciso ir ao camarim por um instante, mas posso perfeitamente tomar conta de mim.

— Claro! — ele acenou para Turkin, que cruzou o salão. — Acompanhe a camarada Voroninova ao camarim, Turkin. Espere e escolte-a de volta. — Sorriu para Tanya: — Não queremos que seja esmagada pelos fãs.

A multidão abriu caminho, gente sorrindo, levantando taças, e Turkin a seguiu ao longo do estreito corredor, até que chegaram ao camarim.

Ela abriu a porta. — Presumo que me é permitido entrar sozinha no toalete.

Ele sorriu com escárnio. — Já que insiste, camarada!

Ele puxou um cigarro do maço e estava acendendo, enquanto ela fechava a porta. Não a trancou. Simplesmente descalçou os sapatos, pegou o casaco na maleta, abriu o zíper de seu adorável vestido e deixou que deslizasse para o chão. Tinha o macacão fora da valise em segundos e logo estava dentro dele, fechando o zíper e colocando as botas de camurça. Pegou o casaco de lã e a bolsa, foi para o toalete, fechou a porta e trancou.

Checara a janela mais cedo. Era larga o suficiente para se sair por ela e dava num pequeno pátio no andar térreo do Conservatório. Ela subiu no vaso sanitário e se esgueirou para fora. Estava chovendo forte. Vestiu o casaco de lã, colocou a bolsa no ombro e correu para o portão. Estava trancado pelo lado de dentro e foi fácil de abrir. Um instante depois, Tanya se precipitava pela Rue de Madrid procurando um táxi.

 

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1 Lojas especiais para altos funcionários da hierarquia soviética e diplomatas estrangeiros, em Moscou. (N. do T.)


8

 

 

Devlin estava assistindo ao último filme na TV, quando o telefone tocou. A ligação era tão surpreendentemente boa que pensou se tratar de uma chamada local.

— Professor Devlin?

— Sim.

— É Tanya. Tanya Voroninova.

— Onde você está? — perguntou Devlin.

— Gare du Nord. Paris. Tenho apenas poucos minutos. Vou pegar o trem para Rennes.

— Para Rennes? — Devlin estava desconcertado. — Que diabos você vai fazer lá?

— Vou trocar de trem para St.-Malo. Estarei lá pela manhã. Há um aerobarco para Jersey. É praticamente na Inglaterra. Uma vez lá, estou segura. Tomarei um avião para Londres. Tenho pouco tempo de vantagem sobre eles, de modo que as outras rotas que o seu pessoal forneceu devem estar bloqueadas.

— Então você mudou de ideia. Por quê?

— Vamos dizer apenas que gosto mais de vocês do que deles. Isso não quer dizer que odeio meu país. Só algumas pessoas. Agora preciso ir.

— Vou entrar em contato com Londres — disse Devlin. — Telefone-me de Rennes, e boa sorte.

A linha emudeceu. Ele permaneceu em pé, segurando o telefone, um sorriso de tênue ironia no rosto, um tipo de encantamento.

— E agora? — disse a si mesmo, baixinho. — Uma garota voltando para a casa da mãe, e isto é um fato.

Discou o número da Cavendish Square, e Ferguson atendeu quase instantaneamente.

— Ferguson — ele parecia rabugento.

— Alguma chance de você estar sentado aí na cama vendo um velho filme de Bogart? — perguntou Devlin.

— Deus, agora você está no ramo da adivinhação?

— Bem, pode desligar e sair da cama, seu velho bastardo. O jogo prossegue com uma vingança.

— O que você está dizendo? — a voz de Ferguson mudou de tom.

— Que Tanya Voroninova deu no pé. Ela acaba de telefonar da Gare du Nord. Está pegando o noturno até Rennes. Baldeação para St.-Malo. Aerobarco de manhã para Jersey. Ela acha que as outras rotas estão cobertas.

— Garota esperta — disse Ferguson. — Eles iriam até a lua para levá-la de volta.

— Ela vai telefonar quando chegar a Rennes. Meu palpite é de que vai ser lá pelas três e meia ou quatro da madrugada.

— Bom garoto, você — disse Ferguson. — Fique ao lado do telefone. Volto a ligar.


Em seu apartamento, Harry Fox estava para entrar no banho antes de dormir, quando o telefone tocou. Foi atender, praguejando. Tinha sido um longo dia. Precisava dormir um pouco.

— Harry? — Ele ficou alerta num segundo ao som da voz de Ferguson.

— Sou eu, sir.

— Mexa seu traseiro daí. Temos trabalho.


Cussane trabalhava em seu estúdio no sermão de domingo, quando o aparelho sensor conetado à parafernália de escuta no sótão foi ativado. Durante o tempo em que ele esteve lá em cima, Devlin não usou o telefone. Cussane fez a fita voltar e depois ouviu tudo atentamente. Ao terminar, ficou sentado, pensando em todas as implicações, que eram péssimas.

Desceu para o estúdio e discou para Cherny. Quando o professor atendeu, ele disse: — Sou eu. Você está sozinho?

— Estou. Ia para a cama. De onde você está falando?

— De casa. Más notícias. Agora escute com atenção.

Depois que Cussane terminou, Cherny disse: — E vai ficar pior. O que você quer que eu faça?

— Fale com Lubov agora. Diga para fazer contato com Belov em Paris imediatamente. Eles podem pará-la.

— E se não conseguirem?

— Então vou cuidar dela pessoalmente quando chegar. Ficarei em contato; portanto, não arrede o pé do lado do telefone.

Ele serviu uma dose de uísque e ficou parado em frente ao fogo da lareira. Estranho, mas ele ainda a via como aquela garota franzina na chuva todos aqueles anos.

Ergueu o copo e disse, suavemente: — A você, Tanya Voroninova. Agora vamos ver se você é capaz de fazer aqueles filhos da puta justificarem seus salários.


Em cinco minutos, Turkin tinha percebido que algo estava muito errado, entrara no camarim e descobrira a porta do toalete trancada. O silêncio, a única resposta às suas insistentes batidas, fez com que arrombasse a porta. O banheiro vazio e a janela diziam tudo. Deslizou pela janela, pulou no pátio e foi até a Rue de Madrid. Não havia sinal dela. Deu a volta pela frente do Conservatório e entrou pela porta principal, com ódio no coração. Sua carreira arruinada, sua boa vida por um fio por causa daquela maldita mulher.

Belov estava com outra taça de champanhe, absorto numa conversa com o ministro da Cultura, quando Turkin bateu em seu ombro.

— Desculpe interromper, coronel, mas podemos trocar algumas palavras?

Ele levou Belov ao canto mais próximo e enumerou as más notícias.


Nikolai Belov sempre achara que a adversidade colocava em cena seu melhor desempenho. Nunca havia chorado sobre a contingência dos fatos. No seu escritório da embaixada, ele sentou-se atrás da mesa e encarou Natasha Rubenova. Shepilov e Turkin estavam junto à porta.

— Vou perguntar de novo, camarada — disse ele. — Ela disse alguma coisa a você? Seguramente, você, mais que todos, deve ter tido alguma ideia de suas intenções, não? Ela estava genuinamente angustiada e chorosa, e aquele estado a ajudou a mentir com mais facilidade.

— Estou mais perplexa do que você, camarada coronel.

Ele acenou para Turkin, que a pegou por trás, empurrando-a numa cadeira. Tirou a luva da mão direita e apertou o pescoço dela, pinçando um nervo e fazendo correr através dele a dor mais lancinante.

— Vou perguntar outra vez — disse Belov, gentil. — Por favor, seja sensível. Eu odeio esse tipo de coisa.

Natasha, cheia de dor, raiva e humilhação, tomou a atitude mais corajosa de sua vida.

— Por favor, camarada! Juro que ela não me disse nada! Nada!

Ela ficou apavorada novamente, quando o dedo de Turkin localizou o nervo, mas Belov fez um movimento com a mão.

— Chega! Estou satisfeito. Ela está dizendo a verdade. Que motivo teria para mentir?

Ela permaneceu sentada, confusa, choramingando, e Turkin disse:

— E agora, camarada coronel?

— Temos os aeroportos totalmente vigiados. Nenhum voo possível que ela já possa ter tomado.

— E Calais e Boulogne?

— Nosso pessoal já está a caminho, de carro. O modo mais rápido que ela tem para sair dos dois lugares é numa barca, bem cedo. Mas eles estarão lá antes.

Shepilov, que quase não falava, disse com calma:

— Desculpe, camarada coronel, mas já considerou a hipótese de ela ter pedido asilo na embaixada britânica?

— Claro! — disse Belov. — Como acontece desde junho do ano passado, temos um sistema de vigilância operando perto da entrada durante a noite. Razões muito óbvias. Ela seguramente ainda não apareceu por lá e se aparecer... — ele encolheu os ombros.

A porta foi aberta, e Irana Vronsky entrou afoita. — Lubov, direto de Dublin para você, camarada. Muito urgente.

A sala de rádio fez a transferência para a linha um. Ele pegou o aparelho e ouviu. Quando finalmente desligou, estava sorrindo.

— Por enquanto, tudo bem. Ela está no trem noturno para Rennes. Vamos dar uma olhada no mapa. — Ele apontou Natasha. — Leve-a daqui, Irana.

— Mas por que Rennes? — disse Turkin.

Belov localizou Rennes no mapa da parede. — Para trocar de trem para St.-Malo. De lá, ela vai pegar o aerobarco para Jersey, em Channel Islands.

— Território britânico?

— Exatamente. Jersey, meu caro Turkin, pode ser pequena, mas é possivelmente a maior base de operações financeiras off-shore do mundo. Tem um excelente aeroporto, vários voos diários para Londres e muitas outras coisas.

— Certo — disse Turkin. — Devemos chegar a St.-Malo antes dela.

— Um momento. Vamos dar uma olhada no Michelin.

Belov encontrou o guia vermelho da França na primeira gaveta da mesa, à esquerda, e começou a folheá-lo.

— Aqui está. St.-Maio. Fica a 594 quilômetros de Paris. Fácil de alcançar o território britânico de lá. E é impossível chegar lá de carro agora. Não há tempo. Vá ao Bureau 5, Turkin. Vamos ver se eles têm alguém que possamos usar em St.-Malo. E você, Shepilov, diga a Irana que quero todas as informações que tiver sobre Jersey. Aeroporto, porto, horários de trens e barcas e assim por diante. E depressa.


Na Cavendish Square, Kim estava acendendo a lareira da sala, enquanto Ferguson trabalhava, dentro de um robe de veludo, mergulhado numa montanha de papéis.

O ghurka se ergueu. — Café, sir?

— Por Deus, não, Kim! Chá, o bom chá feito na hora. E traga logo. Com sanduíches. Pode ficar com o café.

Kim saiu e Harry Fox entrou apressado, vindo do estúdio.

— A coisa está no seguinte pé, sir: ela vai fazer uma parada em Rennes de quase duas horas. De lá até St.-Malo são pouco mais de dez quilômetros. Chegará às sete e meia da manhã.

— E o aerobarco?

— Sai às oito e quinze. A viagem dura mais ou menos uma hora e quinze. Com baldeação e tudo, ela deve chegar a Jersey às nove e meia, hora de Londres. Existe um voo de Jersey para cá, Heathrow, às dez e dez. Ela tem tempo de sobra para pegar o avião. Jersey é uma ilha pequena, sir. Apenas quinze minutos de táxi do porto ao aeroporto.

— Não, ela não pode ficar sozinha, Harry. Quero alguém com ela. Deve haver um voo mais cedo.

— Sai às nove e meia, infelizmente.

— Droga! — disse Ferguson e deu um murro na mesa, enquanto Kim entrava com a bandeja de chá e um prato de sanduíches recém-preparados.

Um incontestável odor de bacon frito emanava dos sanduíches.

— Há uma possibilidade, sir.

— E qual é?

— Meu primo, Alex, sir. Alexander Martin. Primo em segundo grau, na verdade. Mora em Jersey. Mexe com finanças. Casou com uma garota de lá.

— Martin? — Ferguson franziu o cenho. — O nome é familiar.

— Deve ser mesmo, sir. Já o usamos antes. Quando ele estava trabalhando num banco aqui em Londres, viajava muito. Genebra, Zurique, Berlim, Roma.

— Ele está na lista dos ativos?

— Não, sir. Nós o usávamos sobretudo como correio, embora tenha havido um incidente em Berlim Oriental há três anos, quando as coisas andaram fugindo do controle. E ele se saiu muito bem.

— Agora me lembro — disse Ferguson. — Alguma coisa sobre pegar documentos com um contato. E quando ele encontrou a mulher, ela estava exposta. Passou com ela no porta-malas do carro pelo Checkpoint Charlie.1

— Este é Alex, sir. Um curto serviço comissionado na Welsh Guards, três vezes na Irlanda. Pianista talentoso. Toca muito bem. Um pouco doido. Tipicamente galês.

— Ache-o — disse Ferguson. — Agora, Harry. — Ferguson teve um bom presságio em relação a Martin e subitamente se sentiu mais satisfeito. Pegou um sanduíche. — Como eu sempre digo, esse bacon é ótimo.


Alexander Martin tinha trinta e sete anos, alto, elegante, com uma aparência falsamente pacata. Ele era mais do que o sorriso tolerante necessário à profissão de agente financeiro, uma carreira que começara ao ir para Jersey, um ano e meio atrás. Como dissera à esposa, Joan, em mais de uma ocasião, o problema de estar nos negócios de investimentos era que aquilo jogava as pessoas numa convivência com os ricos, uma categoria que ele desprezava profundamente.

Ainda assim, a vida tinha suas compensações. Ele era um excelente pianista, formidável mesmo. Se tivesse seguido a carreira do teclado, a vida poderia ter sido bem diferente. Ele estava sentado ao piano na sala de sua aprazível casa com vista para o mar, em St. Aubin, dedilhando uma peça de Bach, joia rara, uma obra-prima brilhante que requeria total concentração. Vestia um dinner jacket, a gravata preta desfeita no pescoço. O telefone tocou várias vezes antes que o som penetrasse em sua mente. Ele enrugou a testa, imaginando o avançado da hora, e atendeu.

— Martin falando.

— Alex? Aqui é Harry. Harry Fox.

— Meu Deus! — exclamou Alexander Martin.

— E Joan e as crianças?

— Com a irmã dela, na Alemanha. Por uma semana. O marido manda na cidade. Detmold. É prefeito.

— Então você está na sua? Pensei que tivesse ido para a cama.

— Quase lá. — Martin estava muito desperto agora, toda sua experiência passada dizendo que aquela não era uma conversa social. — Está bem, Harry, do que se trata?

— Precisamos de você, Alex. Desagradável, eu sei, mas não é como das outras vezes. Vai ser aí mesmo em Jersey.

Alex Martin riu, atônito. — Aqui em Jersey. Você deve estar brincando.

— Uma garota chamada Tanya Voroninova. Já ouviu falar?

— E como! — disse Martin. — Uma das melhores concertistas de piano que já apareceram. Vi a apresentação dela nos concertos de primavera do Albert Hall. Meu escritório recebe jornais de Paris diariamente. Ela está lá agora numa turnê.

— Não está, não — disse Fox. — Agora ela está a meio caminho de Rennes no trem noturno. Ela está desertando, Alex.

— Ela o quê?

— Com sorte vai pegar o primeiro aerobarco de St.-Malo para Jersey. Tem um passaporte britânico em nome de Joanna Frank.

Martin percebeu tudo. — E você quer que eu vá esperá-la, certo?

— Exatamente. Direto para o aeroporto, e embarque-a no voo das dez e dez para Heathrow, e só. Nós a pegamos aqui. Vai lhe causar algum problema?

— Claro que não. Sei como ela é. Acho que ainda tenho um programa do concerto. Há um retrato nele.

— Ótimo — disse Fox. — Ela fará contato conosco por telefone, quando chegar a Rennes. Vamos avisá-la de que você estará esperando por ela.

Houve uma pequena pausa, e então Martin ouviu aquela voz:

— Aqui é Ferguson.

— Alô, sir.

— Estamos muito gratos.

— Nada disso, sir. Apenas uma coisa. E a oposição?

— Muito improvável que haja alguma. A KGB vai ficar esperando em todos os buracos óbvios: Charles de Gaulle, Calais, Boulogne. É improvável que estejam na pista de Rennes. Vou passar Harry de volta.

— Ficaremos à mão, Alex — disse Fox. — Vou dar o número daqui para o caso de qualquer problema.

Martin anotou o número. — Vai ser sopa. É bom variar um pouco de negócio. Vou ficar em contato.

Agora ele estava totalmente desperto e positivamente feliz. Nenhuma esperança de dormir. As coisas estavam em curso. Preparou uma vodca com tônica e voltou para Bach.


O Bureau 5 era a seção da embaixada soviética em Paris que lidava com o Partido Comunista francês, infiltração em sindicatos e coisas similares. Turkin passou meia hora vasculhando os arquivos sobre St.-Malo e circunvizinhanças, mas saiu de mãos vazias.

— O problema, camarada — disse a Belov quando voltou ao escritório — é que não se pode confiar nada no PC francês. Eles tendem a colocar o país antes do partido, quando o caldo entorna.

— Eu sei — disse Belov. — Aquela crença nata de que são superiores. — Ele apontou os papéis esparramados na mesa. — Analisei Jersey, detalhadamente. A solução é muito simples. Sabe aquele campo de pouso fora de Paris que já usamos antes?

— Croix? — disse Turkin. — A Lebel Táxi Aéreo?

— Exato. O aeroporto de Jersey abre cedo. Vocês podem descer lá às sete. Tempo de sobra para encontrá-la no porto. Os passaportes de sempre estão à disposição. Você pode ir como empresário francês.

— Mas como vamos trazê-la de volta? — perguntou Turkin. — Temos que passar pela alfândega e pela imigração para voar de volta. Muito fácil para ela criar uma confusão.

— Desculpe, camarada coronel — Shepilov entrou na conversa —, mas é realmente preciso trazê-la de volta? Tive a impressão errada ou a questão é silenciá-la?

— Você teve a impressão errada — disse Belov, friamente. — Quaisquer que sejam as circunstâncias, e não importam as dificuldades, o general Maslovsky a quer de volta. Eu odiaria estar em sua pele se você comunicar a necessidade de atirar nela, Shepilov. Acho que existe uma solução mais simples. De acordo com os prospectos, existe um iate clube na marina de St. Helier Harbor. Barcos de aluguel. Você não tinha o hobby de velejar antigamente, Turkin?

— Sim, camarada.

— Ótimo, então tenho certeza de que não está muito acima de suas habilidades pilotar uma lancha de Jersey até St.-Malo. Lá, você pode alugar um carro e trazê-la de volta.

— Muito bem, coronel.

Irana chegou com uma bandeja de café.

— Excelente — disse Belov. — Tudo de que precisamos agora é que alguém arranque Lebel da cama. A tempo de fazermos um bom trabalho.


Surpresa consigo mesma, Tanya conseguiu dormir a maior parte do tempo e teve que ser cutucada para acordar pelos dois jovens estudantes que viajavam próximos a ela desde Paris. Eram três e meia e estava muito frio na plataforma da estação de Rennes, embora tivesse parado de chover. Os estudantes conheciam um café fora da estação que não fechava, no Boulevard Beaumont, e indicaram o caminho a ela. Estava quente e aconchegante lá dentro, com pouca freguesia. Ela pediu café e omelete e foi ligar para Devlin do telefone público.

Devlin esperava, ansioso.

— Você está bem?

— Ótima — disse ela. — Até dormi no trem. Não se preocupe. Eles não podem ter nenhuma ideia de onde estou. Quando vejo você de novo?

— Logo — disse Devlin. — Primeiro temos que levá-la em segurança até Londres. Agora preste atenção. Quando o aerobarco chegar a Jersey, um homem chamado Martin vai encontrá-la. Alexander Martin. Seu fã ardoroso, por isso ele sabe como identificá-la.

— Entendo. Mais alguma coisa?

— Por enquanto não.

— Bom, então vou voltar para a minha omelete, professor.

Ela desligou, e Devlin colocou o aparelho no gancho. Uma garota e tanto, disse a si mesmo, enquanto entrava na cozinha. Em seu chalé, Harry Cussane já estava telefonando para Paul Cherny.


Croix era um campo de pouso pequeno, com uma torre de controle, dois hangares e três alojamentos, sede de um aeroclube, mas também utilizado por Pierre Lebel para operar seu serviço de táxi aéreo. Lebel era um homem fechado e taciturno que nunca fazia perguntas constrangedoras, se o preço estivesse de acordo. Voara para Belov em várias ocasiões e conhecia bem Turkin e Shepilov. Ele não tinha a mais remota ideia de que eram russos. Sempre pensara que havia algo de ilegal neles, mas enquanto o trabalho não envolvesse drogas e o dinheiro fosse o combinado, ele não se importava. Estava esperando pelos dois, quando chegaram. Abriram a porta do hangar de modo que pudessem entrar.

— Qual avião? — perguntou Turkin.

— Vamos usar o Chieftain. É mais rápido que o Cessna, e tem sempre um vento contra na região do golfo de St.-Malo.

— Quando podemos partir?

— Quando quiser.

— Mas eu achava que o aeroporto de Jersey não abria antes das sete.

— Quem lhe disse isso estava errado. Sete e meia, oficialmente, para os táxis aéreos. Mas o aeroporto já está aberto às cinco e meia para o avião da papelada.

— Papelada?

— Jornais que vêm da Inglaterra. Correio. Por aí. Normalmente eles são simpáticos a um pedido de permissão de pouso bem cedo, sobretudo se conhecerem o piloto. Tive impressão de que existe alguma urgência nesse voo.

— Pode crer — disse Turkin.

— Ótimo, vamos até o escritório acertar os últimos detalhes do negócio.

O escritório ficava acima de um lance de escada, com os degraus quase despencando. Era pequeno e desarrumado, a mesa suja, tudo iluminado por uma única lâmpada.

Turkin passou um envelope para as mãos de Lebel.

— É melhor contar.

— Ah, sim, vou contar — disse o francês, quando o telefone começou a tocar. Ele atendeu imediatamente e estendeu o aparelho para Turkin.

— Para você.

— Ela fez contato com Devlin em Rennes — disse Belov. — Há uma nova complicação. Um sujeito chamado Alexander Martin vai encontrá-la quando descer do aerobarco.

— Do IRA? — perguntou Turkin.

— Nenhuma informação sobre ele. Não é provável que tenham alguém num lugar como Jersey. Mesmo assim...

— Não tem problema — interrompeu Turkin. — Vamos cuidar disso.

— Boa sorte!

A linha ficou muda, e Turkin se virou para Lebel. — Está bem, amigão. Quando você quiser.


Eram quase seis da manhã quando aterrissaram no aeroporto de Jersey. Uma bela manhã, o vento soprando e o céu já luminoso no leste, um brilho alaranjado no horizonte enquanto o sol despontava. O oficial de serviço no setor de alfândega e imigração foi agradável e cortês. Nenhuma razão para ser de outro modo, porque os papéis e passaportes franceses estavam perfeitamente em ordem, e Jersey era uma porta de entrada para milhares de visitantes franceses a cada ano.

— Vai ficar? — o oficial perguntou a Lebel.

— Não, vou voltar direto para Paris — disse o francês. — E os senhores?

— Três ou quatro dias. Negócios e prazer — disse Turkin.

— Alguma coisa a declarar? Leram a instrução?

— Não. — Turkin ofereceu sua pequena mala para revista.

O oficial balançou a cabeça. — Está certo, senhores. Tenham uma excelente estada aqui.

Os dois apertaram formalmente a mão de Lebel e passaram para o saguão, que estava deserto àquela hora da manhã. Havia poucos carros estacionados lá fora. Mas o local reservado para táxis estava vazio. Existia um telefone na parede, mas quando Turkin ia usá-lo, Shepilov deu um tapinha em seu ombro e apontou. Um táxi chegava à entrada do aeroporto. Duas aeromoças saíram do carro e entraram. Os russos aguardaram, e o táxi estacionou ao lado deles.

— Chegaram cedo, senhores — disse o motorista.

— Sim, viemos de Paris — falou Turkin. — Voo privado.

— Ah, entendo. Onde posso deixá-los?

Turkin, que passara a maior parte do voo examinando o guia de Jersey que Irana tinha fornecido, particularmente o mapa de St. Helier, disse: — Weighbridge, é isso? Ao lado do porto.

O táxi arrancou. — Então não precisam de um hotel?

— Vamos encontrar alguns amigos mais tarde. Eles estão providenciando esse tipo de coisa. Queremos apenas um café da manhã.

— Estamos no caminho certo. Há um café que abre bem cedo, perto de Weighbridge. Vou mostrar.

As estradas naquela hora da manhã estavam livres, e o trajeto de descida até Bel Royal, e depois ao longo da pista dupla da Victoria Avenue, levou pouco mais de dez minutos. O sol acabava de nascer naquele instante e a vista da baía de St. Aubin era espetacular, de modo que era possível ver o forte Elizabeth Castle encravado nas rochas e rodeado pela água. À frente deles estava a cidade, o quebra-mar do porto, os guindastes distantes se projetando para o céu.

O motorista entrou no estacionamento do fim da esplanada.

— Aqui estamos, senhores. Weighbridge. Existe um escritório para turistas. Abre logo mais, se precisarem de alguma informação. O café fica ali do outro lado da estrada, na esquina. Vamos ver, são três libras.

Turkin, a quem Irana suprira com centenas de libras, tirou da carteira uma nota de cinco.

— Guarde o troco. Você foi muito gentil. Como se vai até a marina daqui?

O motorista indicou. — Lá no fim do porto. Dá para contornar.

Turkin apontou o quebra-mar, que se estendia ao longo da baía.

— E os barcos entram lá?

— Sim. Albert Quay. Pode ver daqui a rampa para os carros entrarem na balsa. Os aerobarcos atracam um pouco mais além.

— Ótimo — disse Turkin. — Muito obrigado mesmo.

Saltaram, e o táxi partiu. Havia um banheiro público a poucos metros, no caminho, e, sem dizer uma palavra, Turkin caminhou para lá seguido por Shepilov. Turkin abriu a maleta e tateou sob as roupas, levantando o fundo falso. Duas armas. Ele deslizou uma delas para dentro do bolso e deu a outra a Shepilov. Eram automáticas, cada uma delas equipada com silenciador. Turkin fechou o zíper da mala.

— Tudo bem por enquanto. Vamos dar uma olhada na marina.


Havia dezenas de barcos atracados, de todos os tipos e comprimentos. Iates, lanchas a motor, barcos de corrida. Encontraram o escritório de aluguel de barcos facilmente, mas ainda não estava aberto.

— Muito cedo — disse Turkin. — Vamos até lá embaixo.

Caminharam ao longo dos pontões oscilantes, os barcos atracados de ambos os lados, pararam e então viraram noutro pontão. As coisas sempre andaram bem para Turkin. Ele acreditava muito em seu destino. O nonsense em torno de Tanya Voroninova tinha sido um tropeço em sua carreira, mas a tempo de tomar pé novamente; ele estava certo. E agora o destino dava as cartas do jogo.

Havia uma lancha amarrada no fim do pontão, deslumbrantemente branca, com uma faixa azul acima da linha d'água. O nome na popa era L'Alouette, registrada em Garnville, que ele sabia ser um porto ao longo da costa de St.-Malo. Um casal veio pelo convés falando francês, o homem alto, de barba e óculos. Vestia um casaco escuro, curto, de marinheiro. A mulher usava jeans, um casaco semelhante e lenço na cabeça. Enquanto o homem a ajudava a transpor a amurada, Turkin ouviu-o dizer.

— Vamos tomar um táxi para o aeroporto lá na rodoviária. O voo para Guernsey sai às oito.

— A que horas estaremos de volta? — perguntou ela.

— Lá pelas quatro da tarde. Temos tempo para o café da manhã no aeroporto.

O casal se afastou.

— Guernsey? — disse Shepilov.

— Uma ilha perto daqui. Vi no guia. Existe um serviço aéreo entre as ilhas durante o dia inteiro. O voo leva quinze minutos. É para turistas.

— Você está pensando a mesma coisa que eu? — perguntou Shepilov.

— É um belo barco — disse Turkin. — Podemos chegar a St.-Malo e pegar o rumo de casa horas antes daqueles dois voltarem. — Ele puxou um maço de cigarros franceses e ofereceu um ao companheiro. — Vamos dar um tempo para eles irem embora. Depois checaremos o barco.

Passearam pelos pontões, voltando em dez minutos, e subiram a bordo. A porta da escotilha que levava para baixo estava trancada. Uma faca de mola apareceu na mão de Shepilov, e ele forçou a porta com habilidade. Havia duas cabines mobiliadas com esmero, um salão, e uma cozinha mais abaixo. Voltaram para o convés e tentaram a casa do leme. A porta estava aberta.

— A chave não está na ignição — disse Shepilov.

— Sem problema. Dê-me sua faca.

Turkin trabalhou na parte superior atrás do painel de controle e puxou vários fios.

Demorou um momento para fazer a ligação certa e quando ele apertou o botão de partida, o motor pegou imediatamente. Checou também o marcador de combustível.

— Três quartos de tanque. — Desligou os fios. — Acho que hoje é o nosso dia, Ivan.

Deram a volta pelo outro lado do porto em direção ao Albert Quay. Pararam para examinar o local de atracação do aerobarco.

— Excelente! — Turkin olhou para o relógio. — Vamos achar aquele café e comer alguma coisa.


Em St.-Malo, o aerobarco Condor deixou o cais perto de Mole les Noires. Estava quase lotado, principalmente por turistas franceses que passavam o dia em Jersey, a julgar pelas conversas que Tanya Voroninova entreouviu. Fora dos limites do porto, o aerobarco começou a se elevar, ganhando velocidade, e ela olhou para a paisagem matutina, sentindo-se totalmente extasiada. Conseguira. Derrotara-os. Uma vez em Jersey, estaria tão bem quanto em Londres. Ela reclinou-se na confortável poltrona e fechou os olhos.


Alex Martin entrou com seu possante Peugeot no Albert Quay e foi dirigindo até encontrar um lugar conveniente para estacionar. Não foi fácil, porque a barca que transportava automóveis e caminhões chegou de Weymouth, e as coisas estavam complicadas do ponto de vista do movimento. Não dormira, afinal, e estava começando a sentir os efeitos da noite em claro, embora um bom desjejum e uma ducha fria tivessem ajudado. Ele vestia calça azul-marinho, suéter de gola rulê da mesma cor e paletó esporte azul de Yves St. Laurent. Era, em parte, uma certa vontade de impressionar Tanya Voroninova. Sua música tinha uma enorme significação para ele, e a chance de encontrar a intérprete que ele tanto admirava possuía mais importância que Ferguson e Fox podiam ter imaginado.

Seus cabelos ainda estavam úmidos, e Alex passou os dedos entre os fios, repentinamente tenso. Abriu o porta-luvas do Peugeot e pegou a arma. Era um Smith and Wesson Especial, calibre trinta e oito, modelo Airweight, cano curto, de duas polegadas, a arma predileta da CIA. Seis anos antes, ele o apanhara ao lado do corpo de um terrorista protestante em Belfast, da organização clandestina UVF. O homem tentara matar Martin e quase foi bem-sucedido. Em vez disso, Martin o matou. Aquilo nunca o tinha preocupado, o que era estranho. Sem arrependimentos, sem pesadelos.

— Corta essa, Alex! — disse ele de maneira branda. — Aqui é Jersey.

Mas a sensação não ia embora. Belfast de novo, aquele toque de inquietação, a lembrança de um velho truque dos dias de clandestinidade, ele escorregando o revólver rapidamente para dentro da cueca, nas costas, abaixo da cintura. Frequentemente, até mesmo uma revista pessoal deixava escapar uma arma escondida lá.

Ficou sentado, fumando um cigarro, ouvindo a Rádio Jersey, até que o aerobarco atravessou a entrada do porto. Contudo, ele permaneceu no carro.

Haveria as formalidades usuais de desembarque, alfândega, etc. Esperou que as primeiras pessoas despontassem na saída do terminal de passageiros, então abriu a porta do carro e seguiu em frente. Reconheceu Tanya imediatamente em seu macacão preto, o casaco de lã nos ombros como um capote.

Adiantou-se para o encontro. — Srta. Tanya Voroninova? — Ela o examinou cuidadosamente. — Ou devo dizer Srta. Joanna Frank?

— Quem é você?

— Alexander Martin. Estou aqui para que você pegue seu avião em segurança. Está na lista do voo das dez e dez para Londres. Há tempo de sobra.

Ela colocou a mão em seu braço, relaxando por completo, totalmente desatenta em relação a Turkin e Shepilov, do outro lado da estrada.

— Você não tem ideia de como é bom ver um rosto amigo.

— Por aqui — ele a conduziu até o Peugeot. — Vi você tocar o Emperor no festival de Albert Hall no ano passado. Você foi estupenda.

Ele a colocou no banco ao lado da direção, deu a volta e entrou no carro.

— Você também toca? — perguntou ela, como por instinto.

— Ah, toco, sim — ele deu a partida. — Mas não como você.

As portas traseiras do carro se abriram, e os dois russos entraram, Turkin atrás de Tanya.

— Não discuta. Há uma pistola com silenciador apontada para a sua espinha e a dela. E estes bancos não são propriamente uma armadura. Podemos matar vocês dois sem um som e dar o fora.

Tanya ficou rígida. E ofegava.

— Você conhece esses homens? — perguntou Alex Martin com calma.

— GRU. Serviço Militar de Informação.

— Entendo. E o que acontece agora? — perguntou ele a Turkin.

— Ela volta, se conseguirmos levá-la. Senão, morre. A coisa mais importante é que ela não fale com as pessoas erradas. Qualquer besteira sua e ela é a primeira que vai. Conhecemos nosso serviço.

— Tenho certeza de que conhecem.

— Somos fortes e vocês são fracos, garotão — disse Turkin. — Eis por que vamos vencer no fim. Marcharemos direto para o palácio de Buckingham.

— Temporada do ano errada, filhote — disse Alex. — A rainha está em Sandringham.

Turkin fez uma carranca. — Muito divertido. Agora faça essa joça se mover para a marina.


Andaram pelo pontão a caminho do L'Alouette, Martin segurando o cotovelo da garota, os dois russos logo atrás. Martin ajudou Tanya a subir a bordo. Ela estava tremendo, ele podia sentir.

Turkin abriu a porta da escotilha. — Desçam. Os dois — e foi atrás, bem próximo, agora com a arma na mão.

— Pare! — disse a Martin, quando chegaram ao salão. — Fique debruçado sobre a mesa, com as pernas abertas. E você, sente-se — disse a Tanya.

Shepilov ficou em pé ao lado, a arma também na mão. Tanya estava quase às lágrimas.

— Sorria. Vale a pena. Sempre — disse Alex, gentil.

— Vocês, ingleses, são realmente uns perdedores — disse Turkin, enquanto revistava Martin de maneira profissional. — Vocês não são mais nada. Trastes. Esperem até que os argentinos os ponham a pique lá no Atlântico Sul. — Ele levantou o paletó por trás e achou o trinta e oito. — Veja só! — disse a Shepilov. — Amador. Vi uma corda na cozinha. Vá pegar.

Shepilov voltou logo.

— Então, o mar é o meu túmulo? — perguntou Martin.

— É por aí! — Turkin virou-se para Shepilov. — Amarre-o. É melhor sairmos daqui depressa. Vou ligar o motor.

Ele subiu pela escotilha. Tanya tinha parado de tremer, o rosto lívido, raiva nos olhos e desespero. Martin mexeu a cabeça um milímetro, e Shepilov o golpeou dolorosamente nas costas com o joelho.

— Fique em pé com as mãos para trás.

Martin pôde sentir a boca do silenciador nas costas. O russo disse a Tanya:

— Amarre os pulsos dele.

Será que eles não ensinaram nada a esses caras? Nunca fique parado a curta distância de ninguém!, pensou Martin.

Ele girou para a esquerda, fora do alcance da arma, que tossiu uma vez, abrindo um buraco na divisória. Sua mão direita segurou o pulso do russo, erguendo e torcendo o braço dele, esticado como uma barra de aço. Shepilov grunhiu e soltou a arma. Aí o punho esquerdo de Martin desceu, fechado, numa martelada, quebrando o braço do russo.

Shepilov gritou, caindo sobre o joelho. Martin se agachou e pegou a arma, e espantosamente a outra mão do russo subiu, a lâmina da faca de mola faiscando. Martin bloqueou o golpe, sentindo a dor repentina quando a lâmina estocou seu antebraço, tirando sangue. Acertou o queixo de Shepilov, os nós dos dedos estalando, e chutou a faca para baixo de uma poltrona.

Tanya estava em pé, mas já havia passos apressados no convés.

— Ivan? — chamou Turkin.

Martin colocou o dedo nos lábios, pedindo silêncio a Tanya, roçou nela de passagem e entrou na cozinha. Uma pequena escada dava na escotilha da proa. Abriu-a e saiu no convés, quando ouviu Turkin começar a descer.

Começara a chover, uma névoa fina soprando do mar. Ele cruzou o convés rapidamente rumo à escotilha principal. Turkin tinha descido e estava em pé lá embaixo, a arma na mão direita, enquanto esquadrinhava cautelosamente o salão. Martin não emitiu um ruído. Não lhe deu sequer uma chance. Simplesmente estendeu a arma e atirou com perfeição em seu braço direito. Turkin berrou, deixou cair a arma, se estatelando no salão. E Martin desceu pela escotilha.

Tanya se juntou a ele. Martin pegou a automática de Turkin e colocou no bolso. Turkin agora estava debruçado na mesa, apertando o braço e encarando Martin.

Shepilov conseguiu se levantar, mas para desabar em seguida no banco com um gemido. Martin girou Turkin e revistou os bolsos até encontrar o Smith and Wesson. Virou Turkin novamente.

— Tive cuidado com seu braço. Você não vai morrer. Ainda. Não sei quem é o proprietário do barco, mas você obviamente pensou em fugir nele: você e o imbecil ali. Eu iria em frente se fosse vocês. E que embaraço para o seu pessoal, hein! Tenho certeza de que eles querem vocês de volta a Moscou. Vocês devem se entender.

— Filho da puta! — disse Turkin desesperado.

— Não na frente da senhorita, por favor — disse Martin e conduziu Tanya Voroninova escotilha acima. Virou-se no meio da escada.

— Para falar a verdade, vocês dois não sobreviveriam num sábado agitado em Belfast — e então ele seguiu a garota até o convés.

Quando chegaram ao Peugeot, ele tirou o paletó bem devagar. Havia sangue na manga do suéter. Puxou o lenço.

— Você saberia o que fazer com isso, não?

Ela prendeu o lenço com firmeza em volta do corte. — Que tipo de homem é você?

— Bem, pessoalmente prefiro Mozart — disse Alex Martin, enquanto vestia o paletó. — Ei, olhe aquilo!

Fora da marina, o L'Alouette ganhava o mar, afastando-se do porto.

— Estão indo embora — disse Tanya. — Pobres idiotas. O próximo endereço deles deve ser um gulag.

Alex fez com que Tanya entrasse no Peugeot e sorriu satisfeito ao sentar em frente ao volante. — Agora vamos levar você ao aeroporto, certo?


No terminal número um do aeroporto de Heathrow, Harry Fox estava sentado no escritório da segurança, tomando café e fumando um cigarro, junto com o sargento de serviço. O telefone tocou, o sargento atendeu e passou o aparelho para Fox.

— Harry? — disse Ferguson.

— Eu, sir.

— Ela conseguiu. Está no avião. Acaba de sair de Jersey.

— Algum problema, sir?

— Não, se você excluir uma dupla de oficiais do GRU sequestrando Martin e a garota em pleno Albert Quay.

— E o que aconteceu?

— Ele conseguiu, foi o que aconteceu. Temos que usar aquele rapaz de novo. Você disse que ele era da Brigada?

— Sim, sir, Brigada Welsh, os galeses.

— Bem pensado. Um sujeito com quem se pode contar — disse Fox contente e desligou.


— Não, madame, não tem que pagar nada — disse a aeromoça a Tanya, enquanto o One-Eleven ganhava altura no céu, deixando Jersey para trás. — A bebida é de graça. O que gostaria de beber? Vodca-tônica, gim com suco de laranja? Temos champanhe.

Champanhe grátis. Tanya pegou a taça de vidro fosco que lhe foi oferecida. Para uma nova vida, ela pensou, e disse baixinho: — A você, Alexander Martin.

E esvaziou a taça num longo gole.


Felizmente, a arrumadeira estava de folga. Alex se desfez do suéter, jogando-o no fundo de uma das latas de lixo. Foi ao banheiro e limpou o braço. Precisava realmente levar alguns pontos, mas aquilo provocaria perguntas que não deveriam ser feitas. Cobriu o corte com tufos de gaze esterilizada e fez uma bandagem. Meteu-se num roupão de banho, preparou um uísque e foi para a sala. Assim que se sentou, o telefone tocou.

— Querido, liguei para o escritório, e disseram que você tinha tirado uma folga — disse sua esposa. — Alguma coisa errada? Você não andou se excedendo de novo na bebida, andou?

Ela não sabia nada do trabalho que fizera para Ferguson no passado. Não havia necessidade de alarmá-la. Ele sorriu, arrependido, reparando no rasgão na manga do paletó Yves St. Laurent, jogado na cadeira perto dele.

— Claro que não! — disse. — Você me conhece, não é? Eu pago para ficar tranquilo. Estou trabalhando em casa hoje, só isso. Agora me diga... como vão as crianças?

 

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1 Posto de fronteira controlado pelos Estados Unidos no Muro de Berlim, entre as duas Alemanhas. (N. do T.)


9

 

 

Na Cavendish Square, Ferguson estava sentado atrás da mesa, o telefone no ouvido, a fisionomia grave, quando Harry Fox veio do estúdio com uma mensagem via telex.

Ferguson esboçou um gesto breve com a mão para que Fox não interrompesse.

— Obrigado, ministro — e então desligou.

— Problemas, sir?

— Até onde entendo, sim. O pessoal da chancelaria acaba de informar que a visita do papa está definitivamente marcada. O Vaticano vai fazer o anúncio em poucas horas. O que você tem aí?

— Um telex, sir. Informações sobre os progressos da força-tarefa. E a má notícia é que a HMS1 Antelope finalmente afundou. Foi bombardeada ontem pelos Skyhawks. A boa notícia é que sete jatos argentinos foram abatidos.

— Eu ficaria mais feliz se visse o naufrágio, Harry. Ou provavelmente a metade do que eles mostram hoje em dia. A Batalha da Grã-Bretanha, tudo de novo.

— Talvez, sir. Ninguém admite fracasso no calor do momento. Esta atitude confunde muito.

Ferguson acendeu um de seus charutos. — Sei lá, às vezes parece que a porcaria do teto está caindo. Tenho o papa chegando, que a gente poderia passar muito bem sem... Cuchulain ainda à solta lá... e agora essa loucura sobre os argentinos tentando comprar mísseis Exocet no mercado negro em Paris. Já seguiram as ordens para tirar Tony Villiers de trás das linhas inimigas nas Malvinas?

— Não há problema, sir. Um submarino já desembarcou Tony no Uruguai. Ele está voando, pela Air France, de Montevidéu para Paris. Vai chegar amanhã cedo.

— Ótimo. Você vai encontrá-lo lá. Informe-o detalhadamente sobre a questão dos mísseis e então volte direto para cá.

— Isso será suficiente, sir?

— Claro, meu Deus! Você sabe como é Tony quando começa a se mexer. O diabo sobre rodas. Ele vai isolar a posição lá sem problemas. Preciso de você aqui, Harry. E a garota, Tanya Voroninova?

— Como eu disse, demos uma parada na Harrods para fazer umas compras, quando vínhamos de Heathrow. Ela só tinha a roupa do corpo.

— Deve estar dura, claro — disse Ferguson. — Temos que usar a verba do fundo de contingência.

— Para ser sincero, sir, não será necessário. Parece que ela tem uma conta bancária bem recheada aqui. Direitos autorais de gravações e coisas do tipo. Vão implorar, todos os empresários, quando souberem que ela está disponível.

— Isto terá que esperar. Definitivamente, ela vai ficar oculta até que eu diga o contrário. Como ela está?

— Muito bem, realmente, sir. Acomodei-a no quarto de hóspedes e está tomando um banho agora.

— Sim, mas não a transforme numa preguiçosa, Harry. Temos que prosseguir com a coisa toda. Falei com Devlin, e parece que outro capanga de McGuinness, aquele que era para estar de olho em Cherny, foi achado boiando no Liffey. Nosso amigo não perde tempo.

— Estou vendo, sir — disse Fox. — Então, o que sugere agora?

— Vamos mandá-la para Dublin já, hoje à tarde. Você pode acompanhá-la, Harry. Entregue a garota nas mãos de Devlin no aeroporto e então volte para cá. Você pode ir a Paris no voo de amanhã bem cedo.

— Ela precisa dar um tempo — disse Fox, num tom de ternura. — Respirar um pouco. Esse tipo de coisa.

— Todos nós precisamos, Harry. E se isso é uma maneira dissimulada de me contar como você se sente, então tudo que posso dizer é que devia ter aceitado aquele emprego no banco do seu tio. Entra às dez, sai às quatro.

— Tedioso, terrivelmente tedioso, sir.

Kim abriu a porta naquele exato momento e introduziu Tanya Voroninova. Tinha leves olheiras, mas parecia surpreendentemente bem, resultado do efeito conseguido pelo suéter de cashmere azul e a elegante saia de tweed, comprados na Harrods. Fox fez a apresentação.

— É um grande prazer, Srta. Voroninova — disse Ferguson. — Você certamente andou tendo muita atividade. Sente-se, por favor.

Ela se sentou no sofá perto da lareira. — Tem ideia do que está acontecendo em Paris? — perguntou ela.

— Ainda não — disse Fox. — Mas acabaremos descobrindo, e se quer um palpite civilizado, a KGB não admite falhas na maioria das vezes; e se considerarmos o especial interesse de seu pai adotivo no caso... — ele encolheu os ombros —, eu não acharia saudável estar na pele de Turkin ou Shepilov.

— Até mesmo para um sujeito velho e astuto como Nikolai Belov vai ser difícil sobreviver depois do que aconteceu — acrescentou Ferguson.

— Bem, e o que acontece agora? — perguntou ela. — Vou ver o professor Devlin de novo?

— Sim, mas isso implica voar até Dublin. Sei que você já percorreu um caminho duro, mas o tempo é fundamental. Gostaria que partisse logo mais à tarde, se concordar. O capitão Fox vai acompanhá-la, e arranjaremos para que Devlin a encontre no aeroporto de Dublin.

Ela estava eufórica, e de alguma forma aquilo tudo pareceu ser parte do que já havia ocorrido. — Quando partimos?


— O primeiro avião da noite... — disse Devlin. — Claro, estarei lá. Sem problemas.

— Você fará todos os preparativos necessários para o encontro com McGuinness, de modo que ela possa olhar todas as fotos e o material que eles queiram mostrar.

— Eu me encarrego disso — disse Devlin. — Antes tarde do que nunca — falou Ferguson, a voz firme.

— Ouço e obedeço, ó gênio da lâmpada — disse Devlin. — Agora deixe-me falar com ela.

— Professor Devlin? O que é? — Acabei de saber de Paris que a Mona Lisa está sorrindo de orelha a orelha. Até breve.


Em Moscou, coisas importantes tinham acontecido naquela manhã. Fatos que afetaram toda a Rússia e o mundo político. Yuri Andropov, o cérebro da KGB desde 1967, foi nomeado secretário do Comitê Central do Partido Comunista. Ele ainda habitava seu velho escritório no quartel-general da KGB, na Praça Dzerjinsky, e foi lá que se reuniu com Maslovsky logo depois do meio-dia. O general ficou em pé em frente à mesa, cheio de maus presságios, porque Andropov era possivelmente o homem de quem sentia um medo autêntico. Andropov estava escrevendo, sua caneta arranhando o papel. Ele ignorou Maslovsky por um momento; então falou sem erguer os olhos.

— Existe uma pequena questão referente à enorme ineficiência demonstrada por seu departamento em relação ao caso Cuchulain.

— Camarada! — Maslovsky não esboçou nenhuma tentativa de se defender.

— Você deu ordens para que ele fosse eliminado juntamente com Cherny?

— Sim, camarada.

— Quanto mais cedo melhor. — Andropov fez uma pausa, tirou os óculos e passou a mão na testa. — E também há o caso de sua filha adotiva. Ela agora está em Londres em segurança, resultado do serviço porco de seu pessoal.

— Sim, camarada.

— O brigadeiro Ferguson a está embarcando para Dublin, onde o IRA pretende ajudá-la a identificar Cuchulain.

— Parece que é o caso — disse Maslovsky, debilmente.

— O IRA Provisório é uma organização fascista, pelo que entendo; decadente, por suas ligações com a Igreja Católica, e Tanya Voroninova é uma traidora de seu país, de seu partido e de sua classe. Você mandará um telegrama para o homem de Dublin, Lubov, imediatamente. Ele deve eliminá-la, bem como Cherny e Cuchulain.

Ele recolocou os óculos, pegou a caneta e voltou a escrever.

Maslovsky disse, numa voz estrangulada: — Por favor, camarada, talvez...

Andropov ergueu os olhos, surpreso. — Minhas ordens lhe causam algum problema, camarada general?

— Não, claro que não, camarada.

Ele saiu, sentindo um tremor em todos os membros do corpo.


Na embaixada soviética em Dublin, Lubov já recebera a mensagem de Paris, informando que Tanya Voroninova furara a rede. Ele ainda estava na sala de rádio digerindo as primeiras notícias, quando chegou uma segunda mensagem de Maslovsky, de Moscou. O operador gravou, colocou a fita na máquina, e Lubov inseriu seu código pessoal.

Quando leu a mensagem, sentiu-se fisicamente doente. Entrou no escritório, trancou a porta e pegou uma garrafa de uísque no armário. Tomou um copo. E outro. Finalmente, ligou para Cherny.

— Aqui é Costello. — Usou o nome de código para aquelas ocasiões. — Você está ocupado?

— Particularmente não — disse Cherny.

— Precisamos nos encontrar.

— O lugar de sempre?

— Sim, mas preciso falar com você primeiro. Muito importante. De qualquer modo, precisamos arranjar também um encontro com nosso amigo comum esta noite. Na Dun Street. Pode conseguir?

— Isso é muito incomum.

— Assuntos muito importantes, como eu disse. Ligue de volta para confirmar o encontro de hoje à noite.

Cherny estava definitivamente preocupado. Dun Street era o nome-código de um armazém abandonado no City Quay, que ele alugara anos antes em nome de uma firma de leasing. Mas aquele não era o ponto. Realmente importante era o fato de que ele, Cussane e Lubov nunca tinham se encontrado todos juntos naquele local antes.

Telefonou para o chalé de Cussane sem sucesso, então tentou o escritório do secretariado católico em Dublin. Cussane atendeu de imediato.

— Graças a Deus! — disse Cherny. — Fiquei ligando para o chalé.

— Acabei de chegar — disse Cussane. — Algum problema?

— Não tenho certeza. Estou tenso. Posso falar livremente?

— Você sempre falou nesta linha.

— Nosso amigo Costello entrou em contato. Pediu um encontro, perguntou se podia ser às três e meia da tarde.

— No mesmo lugar?

— Sim, mas ele também perguntou se eu podia arranjar um encontro entre nós três hoje à noite na Dun Street.

— Isso não é normal.

— Eu sei. E não gosto disso.

— Talvez ele tenha instruções para nos tirar daqui — disse Cussane. — Ele disse alguma coisa sobre a garota?

— Não. Deveria?

— Apenas imaginei o que estaria acontecendo lá em Moscou, é tudo. Diga que vou vê-lo às seis e meia na Dun Street. Não se preocupe, Paul. Sei como lidar com as coisas.

Ele desligou, e Cherny discou de volta para Lubov. — Seis e meia, está bom?

— Ótimo — disse Lubov. — Ele perguntou se você ouviu alguma coisa sobre a garota em Paris?

— Não, nem uma palavra — mentiu Lubov. — Vejo você às três e meia, então.

Ele desligou, serviu-se de uma bebida, destrancou a gaveta de cima da mesa, tirou de lá uma valise pequena e abriu. Continha uma pistola semiautomática Stetchkin e um silenciador. Preocupado, olhou fixamente para os dois objetos.


Em seu escritório no secretariado, Harry Cussane estava parado em frente à janela, olhando para a rua lá embaixo. Ouvira a conversa entre Devlin e Ferguson antes de sair do chalé e sabia que Tanya Voroninova estava para chegar no começo da noite. Era inconcebível que Lubov não tivesse sabido, nem de Moscou, nem de Paris.

Então por que não havia mencionado aquilo?

O encontro em Dun Street era um item incomum por si só, mas em vista daquele encontro, por que falar com Cherny primeiro no lugar de costume, a fila de trás no cinema? Qual poderia ser o objetivo? Nada se ajustava, e cada instinto que Cussane possuía, aguçados por anos de trincheiras, dizia aquilo. Fosse o motivo que fosse, não era para conversar que Lubov queria vê-lo.


Paul Cherny pegava a capa de chuva quando ouviu uma batida na porta de seu quarto. Quando abriu, Harry Cussane estava parado do lado de fora. Usava um chapéu escuro e uma capa típica de padre, e parecia agitado.

— Paul, graças a Deus que o encontrei!

— Por quê? O que há? — perguntou Cherny.

— O homem do IRA que seguia você e que eu eliminei outro dia, lembra-se? Eles já arranjaram outro. Venha por aqui.

Os aposentos de Cherny ficavam no primeiro andar do velho prédio de pedras cinzentas da universidade. Cussane subiu rapidamente os degraus para o andar de cima e, mais uma vez, outro lance de escada. Terceiro andar.

— Para onde estamos indo? — perguntou Cherny.

— Vou lhe mostrar.

Havia uma janela georgiana alta no fim do corredor. Estava metade aberta. Cussane observou atentamente.

— Lá — disse ele. — Do outro lado da quadra.

Cherny olhou para baixo na direção das lajes e da grama da quadra.

— Onde? — perguntou.

A mão em suas costas. O violento e repentino empurrão. Ele conseguiu gritar, mas só quando seu corpo já se projetava pela janela de mais de dez metros de altura e batia, primeiro a cabeça, contra as lajes lá embaixo.

Cussane correu pelo corredor e desceu velozmente pela escada dos fundos. Num certo sentido, dissera a verdade. McGuinness já havia realmente substituído Murphy por um novo sabujo, dois deles, de fato, sentados dentro de um Ford Escort estacionado perto da entrada principal. Eles não ficariam muito contentes quando descobrissem o que tinha acontecido.


Lubov tinha toda a fila de trás para sentar. De fato, havia ao todo umas cinco ou seis pessoas no cinema, até onde ele podia ver na luz fraca. Estava adiantado, o que era sua intenção, e colocou o dedo no gatilho da Stetchkin silenciosa dentro do bolso, a palma da mão úmida de suor. Trouxera um frasco de bebida e agora o tirava do bolso, dando um longo gole. Mais uísque para conseguir a coragem de que precisava. Primeiro Cherny, e aí Cussane, mas aquilo seria fácil se chegasse ao armazém primeiro e ficasse de tocaia. Bebeu um novo trago e acabara de colocar o frasco de volta no bolso, quando percebeu um movimento na penumbra, e alguém se sentou ao lado dele.

— Paul?

Ele virou a cabeça.

O braço deslizou em torno de seu pescoço, a mão tapou sua boca. No instante em que reconheceu o rosto claro de Cussane sob o chapéu preto, a ponta fina do estilete que ele segurava na mão direita mergulhou entre as costelas, impulsionada direto para o coração. Não houve nada a não ser o tempo de ficar perplexo, um tipo de luminosidade cegante, nenhuma dor, e então só as trevas.

Cussane limpou a lâmina cuidadosamente no paletó de Lubov e encostou seu corpo na poltrona, como se estivesse dormindo. Encontrou a Stetchkin no bolso do homem morto e colocou-a em seu próprio bolso. Estava certo, como sempre. A prova final. Levantou-se, caminhou entre a fila de poltronas, apenas uma sombra numa capa preta, e deixou o cinema através de uma das portas de saída.


Estava de volta ao escritório no secretariado dentro de meia hora e se sentara pesadamente, quando o monsenhor Halloran entrou. Ele estava satisfeito e obviamente excitado.

— Você ouviu? Acabaram de confirmar no Vaticano. A visita do papa está de pé.

— Então eles decidiram. Estará lá?

— Sim, decididamente. Tenho um lugar reservado na Catedral da Cantuária. Uma ocasião histórica, Harry. Uma coisa para as pessoas contarem aos netos.

— As que têm netos — sorriu Cussane.

Halloran riu. — Exato, o que infelizmente não se aplica a nós. Preciso ir. Tenho uma dúzia de coisas para organizar.

Cussane ficou lá sentado pensando na questão, então alcançou a capa que jogara na cadeira e tirou o punhal em sua bainha de couro. Colocou-o numa das gavetas da mesa e apanhou a Stetchkin. Que amador estúpido tinha sido Lubov ao usar uma arma de fabricação russa. Mas era a prova de que necessitava. Aquilo se destinava a seus patrões. Ele não era somente um empregado. Ele agora era um credor.

— E então, Harry Cussane? — ele se perguntou, baixinho. — Para onde você vai?

Estranho aquele hábito, de falar consigo mesmo, usando o nome completo. Era como se fosse uma outra pessoa, o que, de um certo modo, era mesmo. O telefone tocou, e quando ele atendeu, Devlin falou:

— Então aí está você, hein?

— De onde você está ligando?

— Do aeroporto aqui de Dublin. Estou pegando um hóspede. Uma bela garota para ser preciso. Acho que você vai gostar dela. Pensei que podíamos jantar todos juntos à noite.

— Isso parece ótimo — disse Cussane, tranquilo. — Combinei de celebrar a missa da noite na igreja de Kilrea. Acabo às oito. Está bem?

— Ótimo. Vamos até lá para assistir.

Cussane colocou o telefone no gancho. Ele podia fugir, claro, mas para onde e com que objetivo? De qualquer jeito, a peça tinha sempre mais um ato a ser representado, todos os seus instintos lhe diziam.

— Nenhum lugar para se esconder, Harry Cussane — disse suavemente.


Quando Harry Fox e Tanya Voroninova atravessaram o portão para o saguão de chegada, Liam Devlin aguardava, encostado numa pilastra, fumando um cigarro, com seu chapéu de feltro preto e o casaco de lã. Ele se aproximou, sorrindo.

— Cead mile failte! — disse ele e pegou as mãos da garota. — É um jeito de dizer bem-vinda em irlandês.

— Go raibh maith agat! — Fox agradeceu.

— Pare de se mostrar. — Devlin pegou a mala da garota. — A mãe dele era uma irlandesa muito decente, graças a Deus.

A fisionomia de Tanya estava luminosa. — Estou tão excitada. Tudo isso é tão... tão inacreditável.

— Bem, você está segura agora — disse Fox. — Fico por aqui. Há um voo de volta dentro de uma hora. É melhor que eu faça logo uma reserva. Ficaremos em contato, Liam.

Fox desapareceu na multidão, e Devlin a pegou pelo braço, conduzindo-a para a entrada principal.

— Um homem ótimo — disse ela.

— A mão dele? O que aconteceu?

— Pegou uma bolsa com uma bomba dentro numa daquelas noites agitadas em Belfast, e não conseguiu se livrar dela com rapidez suficiente. Mas ele se vira com aquela maravilha eletrônica que lhe deram.

— Você diz isso com tanta tranquilidade — falou ela, enquanto atravessavam o estacionamento.

— Ele não iria agradecer esse tipo de simpatia equivocada. Faz parte da educação dele. Eton, a Guarda do Exército. Eles ensinam as pessoas a seguir em frente, e não ficar chorando sobre um copo de cerveja. — Ele abriu a porta de seu Alfa Romeo esporte. — Harry é de uma raça especial, exatamente como aquele velho bastardo do Ferguson. São conhecidos como cavalheiros.

— E você não é.

— Deus me livre, minha velha mãe daria pulos no túmulo se ouvisse você só tentar insinuar uma coisa dessas — disse ele, enquanto partiam. — Então decidiu pensar melhor nas coisas depois que eu saí de Paris? O que houve?

Ela contou tudo a ele. Belov, a conversa telefônica com Maslovsky, Shepilov e Turkin, e, finalmente, Alex Martin em Jersey.

Devlin franziu o cenho, pensativo, quando ela terminou. — Então eles estavam na sua pista? Esperando em Jersey, de verdade? Como podem ter sabido, droga?

— Eu perguntei sobre os horários dos trens no hotel — disse ela. — Não dei o nome e nem o número do quarto. Achei que consegui passar despercebida. Talvez Belov e o pessoal dele tenham feito as perguntas certas.

— Pode ser. Mesmo assim, você está aqui agora. Vai ficar comigo no meu chalé em Kilrea. Não é longe. Preciso fazer uma ligação quando chegarmos. Com sorte, conseguiremos marcar o tipo de encontro conveniente para você amanhã. Muitas fotos para batalhar.

— Espero que eu consiga tirar alguma coisa disso — disse ela.

— Todos nós esperamos. De qualquer modo, uma noite tranquila antes. Vou fazer o jantar, e um velho amigo estará conosco.

— Alguém interessante?

— O tipo de homem muito escasso no lugar de onde você vem. Um padre católico. Padre Harry Cussane. Acho que gostará dele.


Devlin telefonou para McGuinness do estúdio.

— A garota está comigo aqui em casa. Quanto mais cedo você puder marcar o encontro, melhor.

— Espere um pouco — disse McGuinness. — Você já ouviu sobre Cherny?

Devlin ficou alerta imediatamente. — Não.

— Deu um grande mergulho de uma janela bem alta do Trinity College hoje à tarde. A questão é: caiu ou foi empurrado?

— Acho que alguém poderia dizer se o fim de Cherny foi acidental — disse Devlin.

— Só uma pessoa — disse McGuinness. — Jesus, como eu gostaria de botar as mãos naquele imbecil!

— Vamos marcar o encontro com a garota então — falou Devlin. — Pode ser que ela o reconheça.

— Eu voltaria para o confessionário de novo se achasse que isso fosse garantido — disse McGuinness. — Está bem, deixe comigo. Ligo para você de volta.


Cussane se vestiu para a missa na sacristia, muito calmo, muito frio. Não era como uma peça longa. Era mais uma improvisação, em que os atores criavam um enredo. Ele não tinha ideia do que ia acontecer.

Os quatro acólitos que o esperavam eram rapazes da cidade, asseados e esmerados, muito angelicais em suas batinas escarlates e sobrepelizes brancas. Cussane colocou a faixa violeta em torno do pescoço e pegou seu livro de orações. Virou-se para os acólitos.

— Vamos fazer com que seja especial essa noite, não vamos?

Apertou o botão da campainha da porta. Um instante depois, o órgão começou a tocar. Um dos rapazes abriu a porta, e eles caminharam em procissão para a pequena igreja.


Devlin estava na cozinha preparando os bifes. Tanya abriu as janelas francesas de folha dupla e percebeu imediatamente a música do órgão flutuando pelo jardim, vinda do outro lado do muro. Voltou para dentro e perguntou a Devlin:

— O que é aquilo?

— Há um convento e um hospital lá. A capela deles é a igreja da cidade.

Ela voltou para a sala e ficou ouvindo. Um clima de calma e paz. O órgão tocando era realmente uma sensação muito boa. Ela atravessou o gramado e abriu o portão do muro. A capela, no fim do convento, parecia pitoresca e convidativa, a luz suave emanando das janelas. Ela subiu os degraus e abriu a porta de carvalho.

Havia poucas pessoas da cidade lá, duas em cadeiras de rodas, que eram obviamente pacientes do hospital, e várias freiras. A irmã Anne-Marie tocava o órgão. Não era um bom instrumento, e a atmosfera úmida tinha um efeito nocivo sobre a madeira do órgão, mas a irmã tocava bem. Passara um ano no Conservatório, em Paris, como uma garota normal, antes de ouvir o chamado de Deus para a vida religiosa.

As luzes eram bem fracas, a maioria de velas, e a igreja era um lugar de sombras e calma, as vozes das freiras doces, enquanto cantavam o ofertório. Domine Jesu Christ, Rex Floriae... No altar, Harry Cussane orou por todos os pecadores, sem distinção, cujas ações os afastavam da infinita misericórdia e amor de Deus. Tanya sentou-se ali ao lado, perto de onde estava, movida pela atmosfera. A verdade era que ela nunca frequentara um serviço religioso como aquele na vida. Não podia enxergar muito do rosto de Cussane. Ele era simplesmente a figura central, ajoelhado no altar, em meio à luz fraca, fascinante para ela em seus paramentos, como se fosse tudo.

A missa continuou, e muitos membros daquela congregação se aproximaram para receber o corpo e o sangue de Cristo. Ela observou, enquanto o padre se movia de uma pessoa para outra, sua cabeça curvando-se ao murmurar as palavras rituais, e ela foi inundada por uma estranha tensão. Era como se conhecesse aquele homem, como se houvesse algo de familiar na mágica daqueles movimentos.

Quando a missa acabou, a absolvição final foi dada, ele ficou lá parado e se dirigiu à congregação.

— Nas suas preces dos próximos dias, gostaria de pedir a cada um de vocês que rezem pelo Santo Padre, que brevemente vai visitar a Inglaterra nesta hora difícil. — Ele se moveu um pouco à frente, a luz da vela se derramando sobre seu rosto. — Rezem por ele, que suas orações vão lhe dar forças para cumprir sua missão.

Seu olhar penetrante percorreu todos que estavam na igreja, e por um instante foi como se ele estivesse olhando diretamente para ela. Cussane se moveu de novo. Tanya ficou congelada de horror, absorvendo o choque, o mais terrível de toda sua vida. Quando ele pronunciou as palavras da bênção, pareceu que seus lábios se movimentavam sem emitir nenhum som. Era o rosto, o rosto que havia povoado seus sonhos durante anos. Mais velho, claro, infinitamente mais gentil, e ainda inequivocamente o rosto de Mikhail Kelly, o homem que eles tinham batizado de Cuchulain.


O que aconteceu então foi estranho, ainda que não tão estranho, consideradas as circunstâncias. O choque foi tão profundo que pareceu drenar todas as suas forças, e ela permaneceu na semiescuridão do fundo da igreja, enquanto os fiéis saíam, e Cussane e os acólitos desapareciam dentro da sacristia. Havia uma grande calma na igreja, enquanto ela ficava sentada lá, tentando encontrar o sentido das coisas. Cuchulain era o padre Harry Cussane, o amigo de Devlin, e aquilo explicava muitas coisas. Oh, meu Deus, ela pensou, o que vou fazer? E aí a porta da sacristia se abriu, e Cuchulain apareceu.

Tudo estava quase pronto na cozinha. Devlin verificou o forno, assoviando baixinho, e chamou Tanya.

— Você já arrumou a mesa?

Não houve resposta. Ele foi até a sala. Não só a mesa não estava posta, como não havia sinal de Tanya. Então ele notou as janelas francesas entreabertas, tirou seu avental e saiu da casa.

— Tanya? — chamou do jardim e, ao mesmo tempo, viu o portão do muro, que ficara aberto.


Cussane vestia um terno preto e colarinho de padre. Parou por um momento, ciente da presença dela, embora não fizesse nenhuma manifestação. Notara-a quase que imediatamente durante a missa. O fato de que era uma estranha fizera com que se destacasse, mas naquelas circunstâncias tinha sido óbvio quem ela podia ser. Pressentindo a situação, ele viu o fantasma da criança estampado em seu rosto, a criança que se debatera quando a segurou naquele dia em Drumore, todos aqueles anos antes. Olhos nunca mudam, e os olhos... os olhos dos quais sempre se lembrava.

Parou em frente ao altar, fez a genuflexão, e Tanya, agora em pânico e terrivelmente apavorada, fez um esforço para ficar em pé e andou entre os bancos. A porta de um dos dois confessionários estava parcialmente aberta, e ela escorregou para dentro. Quando fechou a porta, houve um ruído fraco.

Ela o ouviu caminhando entre os bancos, passos vagarosos, distintos, na laje. Os passos ficaram mais próximos. Pararam.

Ele disse suavemente em russo: — Sei que você está aí, Tanya Voroninova. Pode sair agora.


Ela ficou lá parada, tremendo, gelada. Ele estava calmo, a fisionomia séria. Ainda em russo, ele disse:

— Já faz tanto tempo.

— Então você vai me matar como matou meu pai? Como matou os outros?

— Eu sempre desejei que não fosse necessário.

Ele ficou parado olhando para ela, as mãos nos bolsos do paletó, e então sorriu gentilmente, e houve uma espécie de tristeza naquele sorriso.

— Ouvi seus discos. Você tem um talento formidável.

— Você também. — Ela sentiu-se forte. — Para a morte e a destruição. Eles escolheram você muito bem. Meu pai adotivo sabia o que estava fazendo.

— Não sabia, realmente — disse ele. — Nada é assim tão simples. Aconteceu que eu estava disponível. A ferramenta certa na hora certa.

Ela respirou fundo. — E o que vai acontecer agora?

— Pensei que jantaríamos juntos, você, Liam e eu — disse ele.

O pórtico da entrada bateu ao ser aberto, e Devlin entrou.

— Tanya? — chamou e fez uma pausa. — Ah, aí estão vocês. Então já se encontraram!

— Sim, Liam, muito tempo atrás — falou Harry Cussane.

E sua mão apareceu do bolso direito do paletó, segurando a pistola Stetchkin que tomara de Lubov.


No chalé, ele encontrou uma corda numa gaveta da cozinha.

— Os bifes estão com um cheiro ótimo, Liam. Melhor desligar o forno.

— Viu só? — disse Devlin para a garota. — Ele pensa em tudo.

— A única razão pela qual consegui ir tão longe — disse Cussane serenamente.

Todos foram para a sala. Ele não os amarrou, mas fez um gesto para que se sentassem no sofá perto da lareira. Ele andou até o fogo e alcançou a pistola Walther que Devlin sempre mantinha à mão para emergências, apoiada em pregos na chaminé da lareira.

— É para deixar você longe da tentação, Liam.

— Ele conhece todos os meus segredinhos — disse Devlin a Tanya —, mais do que deveria. Quero dizer que somos amigos há vinte anos.

A amargura estava presente em sua voz, a agitação de uma raiva explícita, e ele pegou um cigarro da caixa na mesa ao lado, sem pedir permissão a Cussane.

Cussane manteve alguma distância, sentou-se à mesa de jantar e levantou a Stetchkin.

— Essas coisas fazem muito pouco barulho, amigo velho. Ninguém melhor que você sabe disso. Sem truques. Nada daqueles galanteios idiotas de Devlin. Odiaria ter que matá-lo.

Ele colocou a Stetchkin na mesa e acendeu um cigarro.

— Amigo, não é? — disse Devlin. — Amigo do mesmo jeito que você é um padre?

— Amigo — insistiu Cussane. — E tenho sido um bom padre. Pergunte a qualquer um que me conheceu lá em Falis Road, em Belfast, em sessenta e nove.

— Ótimo — disse Devlin. — Até mesmo um idiota como eu pode somar dois mais dois e obter quatro eventualmente. Seus patrões esconderam você bem fundo. Virar padre foi sua cobertura. Será que eu estaria certo em pensar que você escolheu aquele seminário perto de Boston para seu treinamento porque eu era professor de Inglês lá?

— Claro! Você era um homem importante do IRA naquela época, Liam. As vantagens que o relacionamento ofereciam para o futuro eram óbvias, mas ficamos amigos e continuamos amigos. Você não pode negar esse fato.

— Deus do céu! — Devlin balançou a cabeça. — Quem é você, Harry? Quem é você realmente?

— Meu pai era Sean Kelly.

Devlin encarou-o, atônito. — Mas eu o conheci. Servimos na Brigada Lincoln Washington, durante a Guerra Civil na Espanha. Um momento. Ele se casou com uma garota russa que encontrou em Madri.

— Minha mãe. Meus pais voltaram para a Irlanda, onde nasci. Meu pai foi enforcado na Inglaterra em 1940 por ter participado da campanha de bombas do IRA naquela época. Minha mãe e eu moramos em Dublin até 1953. Aí ela me levou para a Rússia.

— A KGB deve ter grudado em vocês como sanguessugas.

— Algo parecido.

— Eles descobriram os talentos especiais dele. — Tanya entrou na conversa. — Assassinato, por exemplo.

— Não — respondeu Cussane, meigo. — Quando eu fui analisado pela primeira vez pelos psicólogos, Paul Cherny concluiu que meu talento especial era para o palco.

— Um ator, não é? — disse Devlin. — Bem, você está no trabalho certo.

— De fato, não. Não existe plateia, entendem? — Cussane se concentrou em Tanya. — Eu duvido que tenha matado mais que Liam. Nós somos diferentes nesse sentido?

— Ele lutou por uma causa — disse ela, de uma maneira passional.

— Exatamente. Sou um soldado, Tanya. Luto pelo meu país, nosso país. Para ser sincero, não sou um oficial da KGB. Sou tenente-coronel do Serviço Militar de Informação. — Ele sorriu depreciativamente para Devlin. — Eles continuaram me promovendo.

— Mas as coisas que você fez. Os assassinatos — disse ela. — Gente inocente.

— Não pode existir inocência nesse mundo, não com o homem nele. A Igreja nos ensina isso. Há sempre iniquidade nessa vida. A vida é injusta. Temos que lidar com o mundo como ele é, e não como poderia ter sido.

— Jesus! — disse Devlin. — Num minuto, você é Cuchulain e, no minuto seguinte, você é padre de novo. Você tem alguma ideia de quem é realmente?

— Quando sou padre, então eu sou padre. — Cussane falou. — Não há como fugir disso. A Igreja será a primeira a dizer isso, a despeito do que tenho sido. Mas meu outro eu luta pelo seu país. Não tenho nada de que me desculpar. Estou em guerra.

— Muito conveniente — disse Devlin. — Então, a Igreja responde a sua pergunta, ou é a KGB? Existe uma diferença?

— Não importa.

— Maldição, Harry... mas me diga uma coisa: como você soube que estávamos na sua pista? Como soube sobre Tanya? Fui eu? — Ele explodiu. — Mas como pode ter sido eu?

— Você quer dizer que sempre checou o telefone, não?

Cussane estava agora em frente ao armário, a Stetchkin na mão. Colocou Bushmills em três copos e levou-os numa bandeja até a mesinha de centro, perto do sofá. Pegou um copo e se afastou.

— Andei usando um equipamento especial lá em cima, no sótão do meu chalé. Microfone direcional e outras maravilhas. Não perdi quase nada do que foi dito aqui.

Devlin respirou fundo, mas quando ergueu o copo, sua mão estava firme.

— Um pouco demais em se tratando de amizade. — Ele engoliu o uísque. — Bom, e o que vai acontecer agora?

— A você?

— Não, seu louco, a você! Para onde você vai, Harry? De volta para a querida mãe Rússia? — Ele meneou a cabeça e se virou para Tanya. — Pensando bem, a Rússia não é o lar dele.

Cussane não sentiu raiva, então. Não havia desespero em seu coração. Durante toda a sua vida, ele tinha representado cada papel que exigiram dele, tinha cultivado o tipo de frieza profissional necessária para premeditar bem sua ação. Houve poucos espaços para emoções reais em sua vida. Quaisquer ações, mesmo as melhores, tinham sido simples reações à situação apresentada, uma parte essencial da representação. Ou assim ele dizia a si mesmo. E ainda gostava verdadeiramente de Devlin, sempre gostara. E a garota? Olhava para Tanya agora. Não queria feri-la.

Devlin, como se sentisse a essência daquilo, disse suavemente:

— Para onde você vai correr, Harry? Existe algum lugar?

— Não — disse Cussane com calma. — Nenhum lugar para ir. Nenhum lugar para se esconder. Pelo que fiz, seus amigos do IRA se livrariam de mim sem hesitação. Ferguson certamente não me quer vivo. Não tenho nada a lucrar. Eu seria apenas um estorvo.

— E o seu pessoal? Uma vez de volta a Moscou, seria o gulag, sem dúvida. No final das contas, você é um fracasso, e eles não gostam disso.

— Verdade — aquiesceu Cussane. — Exceto em relação a uma coisa. Eles nem me querem de volta, Liam. Eles apenas me querem morto. E já tentaram. Para eles também eu sou um embaraço.

Havia calma naquelas palavras, e então Tanya falou:

— Mas e agora? O que você vai fazer?

— Só Deus sabe — disse ele. — Sou um morto-vivo, minha cara. Liam compreende isso. Ele está certo. Não há lugar para onde fugir. Hoje, amanhã, na próxima semana. Se eu ficar na Irlanda, McGuinness e seus homens cortarão minha cabeça, você não concorda, Liam?

— É verdade.

Cussane caminhou de um lado para outro com passos estudados, a Stetchkin pendendo na mão na altura do joelho. Virou-se para Tanya.

— Você acha que a vida foi cruel para aquela garotinha na chuva lá em Drumore? Você sabe quantos anos eu tinha? Vinte anos de idade. A vida foi cruel quando enforcaram meu pai. Aí minha mãe concordou em me levar para a Rússia. Foi quando Paul Cherny me pegou, aos quinze anos, como um espécime com potencialidades interessantes para a KGB. — Ele se sentou novamente. — Se minha mãe e eu tivéssemos ficado sozinhos em Dublin, quem sabe o que podia ter acontecido com aquele grande talento que eu tinha... O Abbet Theatre, a Old Vic, Stratford? — Ele encolheu os ombros. — Em vez disso...

Devlin percebeu uma grande tristeza. Esqueceu tudo naquele momento, exceto que durante anos gostara mais daquele homem do que de qualquer outro.

— É a vida — disse ele. — Sempre algum canalha dizendo a você o que fazer.

— Vivendo nossa vida por nós, você quer dizer? — falou Cussane. — Professores, a polícia, líderes sindicais, políticos, os pais!

— Até os padres — disse Devlin com gentileza. — É, acho que entendo agora o que os anarquistas querem dizer quando falam “Já matou a sua autoridade hoje?”.

O jornal estava numa cadeira com uma manchete referente à visita do papa à Inglaterra. Cussane segurou o jornal.

— O papa, por exemplo.

— Piada de mau gosto, essa — disse Devlin.

— E por que eu estaria brincando? — perguntou Cussane. — Você sabe quais foram as minhas instruções todos estes anos, Liam? Sabe o que Maslovsky disse que seria a minha tarefa? Ajudar a criar o caos e a desordem no Ocidente, indistintamente. Ajudei a manter o conflito irlandês aceso, matando alvos contraprodutivos, causando traumas a ambas as causas, católica e protestante; IRA, UVF, empurrei uns contra os outros. Mas aqui... — Ele segurou o jornal com a foto do papa João Paulo II na primeira página. — O que você acha disso? O alvo mais contraprodutivo de todos os tempos. Será que gostariam em Moscou? — Ele acenou para Tanya. — Você deve conhecer Maslovsky muito bem. Você acha que isso o agradaria?

— Você está louco — ela murmurou.

— Talvez. — Ele jogou um rolo de corda na direção dela. — Amarre os pulsos dele nas costas. Sem truques, Liam.

Ele ficou em pé a distância, cobrindo os dois com a Stetchkin. Restava pouco a Devlin, a não ser se submeter. A garota manietou suas mãos desajeitadamente. Cussane empurrou-a de bruços ao lado da lareira.

— Fique deitada ao lado dele.

Puxou seus braços para trás e amarrou-os seguramente, e então os tornozelos. Aí verificou os pulsos de Devlin e também amarrou seus tornozelos.

— Então não vai nos matar? — disse Devlin.

— Por que mataria vocês?

Cussane atravessou a sala e arrancou os fios do telefone da parede com um puxão rápido. Devlin virou a cabeça de lado, apoiada contra o tapete.

— Para onde você está indo?

— Cantuária — disse Cussane. — É isso.

— Cantuária?

— É onde o papa estará no sábado. Todos estarão lá. Os cardeais, o arcebispo da Cantuária, o príncipe Charles... Eu conheço essas coisas, Liam. Dirigi a assessoria de imprensa do secretariado, lembra-se?

— Está bem, vamos ter um pouco de bom senso — disse Devlin. — Você nunca chegará perto dele. A última coisa que os ingleses querem é o papa morto nas mãos deles. Haverá tanta segurança que faria até mesmo o Kremlin ficar sentado e se mancar.

— Um desafio de verdade — disse Cussane calmamente.

— Pelo amor de Deus, Harry, matar o papa! Com que objetivo?

— Por que não? — Cussane encolheu os ombros. — Porque ele está lá. Porque eu não tenho mais nenhum lugar para ir. Se eu tiver que morrer, que seja fazendo uma coisa espetacular. — Ele olhou para baixo e sorriu. — E você sempre pode tentar me impedir, Liam, você, McGuinness, Ferguson e o pessoal dele de Londres. Até mesmo a KGB moveria céus e terra para me impedir, se pudesse. Isso certamente exigiria deles muitas explicações.

Devlin explodiu. — Isso é tudo o que significa para você, Harry? Um jogo?

— O único — disse Cussane. — Tenho sido manipulado anos a fio por outras pessoas. Uma constante marionete num cordão. Mas agora estou no comando. Será uma mudança interessante.

Ele saiu da sala, e Devlin escutou o som das janelas francesas sendo abertas e fechadas. E silêncio.

— Ele foi embora — disse Tanya.

Devlin fez que sim e se esforçou para sentar. Forçou os pulsos contra a corda, mas estava perdendo tempo, e sabia.

— Liam, você acha que ele falava sério? Sobre o papa?

— Sim — disse Devlin, de uma forma inflexível. — Acredito que falava.


Uma vez em seu chalé, Cussane trabalhou rápido e com método. Tirou o passaporte irlandês que usava normalmente de um cofre escondido logo atrás de uma fileira de livros, no estúdio. Havia também dois passaportes britânicos. Num deles, ele continuava sendo padre, com outro nome; no outro, jornalista. Havia ainda duas mil libras em notas de valores diversos: libras inglesas, não irlandesas.

Pegou uma sacola de lona, do tipo preferido pelos oficiais do exército, e abriu-a. Havia um fundo falso. Colocou lá dentro a maior parte do dinheiro, os passaportes falsos e a Walther PPK com um silenciador Carswell, além de vários pentes de munição adicional. Guardou também uma porção de explosivo plástico e dois detonadores de tempo. Como o soldado que pensava ser, ele teria que estar pronto para tudo; então, pegou um par de pacotes de provisões de campanha, algumas ampolas de morfina e colocou tudo lá dentro também. Recolocou o painel do fundo falso, enrolou uma de suas batinas pretas e ajeitou-a no fundo da sacola sobre o painel. Um par de camisas e o que achava serem coisas de civis: gravatas, meias, artigos de toalete. Seu livro de orações foi para dentro da sacola também, a hóstia no cibório de prata, e os santos óleos, tudo num hábito reflexo. Tinha sido um fato natural viajar com aquilo durante anos até agora. Desceu para o hall e colocou a capa de chuva preta; então, apanhou um dos chapéus de feltro preto e foi para o estúdio. Ele costurara dois clipes de plástico na copa do chapéu. Abriu uma gaveta em sua mesa e tirou um revólver Smith and Wesson, calibre trinta e oito, com cano curto, de duas polegadas. A arma se ajustava perfeitamente nos clipes, e ele colocou o chapéu na sacola.

Estava pronto, então. Correu os olhos rapidamente pelo estúdio do chalé, que tinha sido seu lar por tanto tempo, então fez meia-volta e saiu. Atravessou o pátio até a garagem, abriu a porta e acendeu a luz. Sua motocicleta estava ao lado do carro, uma velha BSA de 350 cilindradas em excelentes condições. Fixou a sacola na traseira da moto, pegou o capacete da cavilha na parede e colocou-o na cabeça.

Quando acionou o pedal, o motor rugiu imediatamente para a vida. Ficou lá sentado um instante, ajustando as coisas, aí fez o sinal-da-cruz e pegou a estrada.

O som do motor foi diminuindo na distância e alguns instantes depois tudo o que havia era silêncio.


No chalé, Devlin ainda continuava tentando se livrar das cordas. Ele e Tanya estavam sentados lado a lado, encostados no sofá.

— Isso pode ficar muito monótono — disse ele. — Minha arrumadeira vem amanhã, mas não antes das dez.


Naquele momento em Dublin, Martin McGuinness estava observando um de seus homens colocar o telefone de volta no gancho.

— Não dá nem ocupado e nem sinal de discar. A linha está muda, com certeza.

— Isso me parece mais que estranho, rapaz — disse McGuinness. — Vamos fazer uma visita a Liam, e vamos rápido.

McGuinness e dois de seus homens levaram quarenta minutos para chegar lá. McGuinness ficou observando, enquanto seus homens libertavam Devlin e a garota. Ele balançou a cabeça.

— Meu Deus, Liam, seria divertido ver o grande Liam Devlin amarrado como uma galinha, se isso não fosse tão terrivelmente trágico. Conte-me tudo.

Ele e Devlin foram para a cozinha, e Devlin informou-o do que havia acontecido. Quando terminou, McGuinness explodiu.

— O bastardo filho da puta! Lá em Falis Road, em Belfast, eles se lembram dele como um santo, e ele é um imbecil de um agente russo se passando por padre.

— Acho que o Vaticano não ficaria exatamente eufórico — disse Devlin.

— E você sabe o que é pior? Sabe o que realmente está entalado na minha garganta? Afinal de contas, ele não é um russo fodido. Meu Deus, Liam, o pai dele morreu pela Causa numa forca inglesa! — McGuinness estava agitado de raiva. — Eu vou cortar o saco dele.

— E como você pretende fazer isso?

— Deixe isso comigo. O papa na Cantuária, não é? Vou fechar a Irlanda tão firme que nem um rato vai ficar anônimo dentro do buraco.

Ele chamou os homens apressadamente e foi embora. Tanya entrou na cozinha. Parecia fraca e cansada.

— E agora?

— Você bota a chaleira no fogo, e nós vamos tomar uma bela xícara de chá. Sabe, dizem que nos velhos tempos um mensageiro trazendo más notícias era normalmente executado. Você me dá licença alguns minutos, vou telefonar para Ferguson.

 

________________

1 Sigla de Her Majesty Ship. Navio de Sua Majestade. (N. do T.)


10

 

 

Ballywalter, no litoral sul de Dundalk Bay, perto de Clogher Head, podia ser descrita precariamente como um porto.

Um pub, algumas poucas casas, meia dúzia de barcos de pesca e um cais do tamanho de uma lata de sardinha. Já fazia uma boa hora e meia depois do telefonema de Devlin para Ferguson quando Cussane entrou com a motocicleta no bosque da colina que descortinava o lugar. Colocou a máquina no estribo, saiu do bosque e olhou para Ballywalter lá embaixo, nítida ao luar. Em seguida, voltou ao bosque, desafivelou a sacola da traseira da moto e tirou o chapéu de brim, colocando-o na cabeça, no lugar do capacete.

Começou a descer pela estrada, sacola na mão. O que pretendia agora era despistar, da maneira mais esperta que pudesse, para agir. Era como um jogo de xadrez, realmente. Tentar pensar não apenas em determinado movimento, mas em três movimentos adiante. Certamente, agora era a ocasião de verificar se todas aquelas informações extraídas tão cuidadosa e gentilmente do moribundo Danny Malone viriam a calhar.


Sean Deegan era taverneiro em Ballywalter há onze anos. Não era lá uma atividade que lhe tomasse o dia inteiro, numa vila que ostentava apenas quarenta e um homens com idade legal para tomar uns tragos, o que explicava por que ele também era o comandante de uma traineira de vinte e cinco metros, a Mary Murphy. Somando-se a isso, do lado ilegal das coisas ele era não apenas do IRA, mas um dos ativos, tendo acabado de sair da prisão de Long Kesh, no Ulster, em fevereiro. Tinha estado lá cumprindo três anos de prisão por porte ilegal de armas. O fato de Deegan ter pessoalmente matado dois soldados ingleses em Derry nunca colocara as autoridades em seus calcanhares.

Sua esposa e as duas crianças estavam fora, visitando a avó materna em Galway, e ele tinha fechado o bar às onze, pretendendo sair bem cedo para pescar. Ainda estava acordado quando Cussane desceu a rua, pela simples razão que fora tirado da cama por um telefonema de um dos homens de McGuinness. Deegan ficou de arranjar um jeito ilegal de sair do país para a Ilha de Man, através de uma costumeira viagem comercial. A descrição de Cussane foi curta e precisa.

Deegan acabara de colocar o telefone no gancho, quando houve uma batida na porta. Abriu e deu de cara com Cussane. A descrição que recebera foi acurada o suficiente para dizer quem era o visitante noturno, embora o colarinho de padre, o chapéu preto e a capa já bastariam para identificá-lo.

— O que posso fazer por você, padre? — perguntou Deegan e deu dois passos atrás para deixar Cussane entrar.

Foram até o pequeno bar, e Deegan reavivou o fogo. — Obtive seu nome de um paroquiano, Danny Malone — disse Cussane. — A propósito, meu nome é Daly.

— Daly, é? — disse Deegan. — Fiquei sabendo que ele está mal.

— Está morrendo, pobre alma. Ele me disse que você pode dar uma escapada até a Ilha de Man se o preço for certo, ou então a causa.

Deegan foi para trás do balcão e serviu um uísque. — Vai me acompanhar, padre?

— Não, obrigado.

— Está com problemas? Política ou polícia?

— Um pouco de ambas. — Cussane tirou do bolso dez notas de cinquenta libras e colocou-as no balcão. — Isso aqui daria um jeito?

Deegan apanhou as notas e avaliou-as cuidadosamente. — E por que não, padre? Olhe, aqueça-se ali perto do fogo, que vou dar um telefonema.

— Um telefonema?

— Claro! Não posso manejar o barco sozinho. Preciso de uma tripulação, e dois é o número certo.

Ele saiu, fechando a porta. Cussane deu a volta no balcão e foi até o telefone que havia lá. Houve um ruído leve da campainha, e ele tirou o aparelho do gancho suavemente. O homem estava falando com urgência na voz.

— Aqui é Deegan, de Ballywalter. Posso falar com McGuinness?

— Ele já foi dormir.

— Por Deus, homem, dá para chamá-lo? Ele está aqui na minha casa agora. Aquele tal de Cussane que o seu pessoal telefonou perguntando.

— Aguarde. — Houve uma demora, e então a outra voz disse: — McGuinness. É você mesmo, Sean?

— E ninguém mais. Cussane está aqui em meu pub. Disse que se chama Daly. Acaba de me dar quinhentas libras para ir até a Ilha de Man. O que faço? Seguro o homem aqui?

— Não há nada que gostaria mais do que vê-lo pessoalmente, mas isso é infantilidade — disse McGuinness. — Você pode conseguir bons homens aí?

— Phill Egan e Tadgh McAteer.

— Então dessa vez ele morre, Sean. Se eu lhe disser o que ele fez no passado, os danos que causou ao Movimento, você nunca acreditaria. Ponha-o naquele seu barco, devagar e com calma, sem confusão, e aí meta-lhe uma bala na nuca a umas três milhas da costa, e mar com ele.

— Considere feito — disse Deegan. Ele desligou o telefone, saiu da sala, subiu a escada e se vestiu. Voltou ao bar, metido numa velha capa de timoneiro.

— Vou deixá-lo sozinho por um instante, padre, enquanto pego os rapazes. Fique à vontade e sirva-se do que quiser.

— É muito gentil de sua parte — disse Cussane.

Ele acendeu um cigarro e leu o jornal para não ficar à toa. Deegan voltou em meia hora, dois homens com ele.

— Phil Egan, padre. Tadgh McAteer.

Todos apertaram as mãos. Egan era pequeno e peludo, talvez vinte e cinco. McAteer era um homem grande numa velha capa de pescador, com uma pesada barriga de cerveja sobre o cinto. Era mais velho que Deegan. Cerca de cinquenta e cinco, Cussane achava.

— Vamos indo então, padre. — Cussane pegou a sacola, e Deegan disse: — Não tão depressa, padre. Gostaria de saber o que estou carregando.

Colocou a sacola de Cussane no balcão do bar, abriu-a e fuçou rapidamente o conteúdo. Fechou o zíper, virou-se e fez um aceno para McAteer, que revistou rudemente o padre e encontrou a Stetchkin.

— Para que precisa disso, é negócio seu — disse Deegan. — Vai tê-la de volta quando chegarmos à Ilha de Man — e enfiou a arma no bolso.

— Compreendo — disse Cussane.

— Ótimo, então vamos indo — e Deegan indicou a saída.


Devlin estava na cama quando McGuinness telefonou.

— Encontraram o homem — disse ele.

— Onde?

— Ballywalter. Um dos nossos, um homem chamado Sean Deegan. Cussane apareceu por lá dizendo que era amigo de Danny Malone e que necessitava de uma viagem secreta para a Ilha de Man. Presumivelmente, Danny contou a ele uma coisa ou duas que não devia ter contado.

— Danny é um homem agonizante. Não sabe o que diz metade do tempo — disse Devlin.

— De qualquer maneira, Cussane, ou padre Daly, como ele agora diz que se chama, está bem perto de receber um choque muito desagradável. A três milhas da costa, Deegan e os rapazes vão encher o caixão dele de pregos, e dessa vez ele vai. Estou dizendo que apanhamos o idiota.

— Se você diz...

— Ficarei em contato, Liam.

Devlin ficou lá sentado, pensando no assunto. Bom demais para ser verdade. Cussane descobrira obviamente com Danny Malone que Deegan oferecia o tipo de serviço de que ele necessitava. Bem oportuno, mas aparecer como ele tinha feito, nenhuma tentativa de disfarce, além da troca de nomes... Podia deduzir que Cussane pudesse assumir aquele disfarce por achar que ele e Tanya só seriam encontrados pela manhã, mas mesmo assim... Não fazia nenhum sentido.

Ou fazia?


Havia uma névoa clara vinda do mar quando zarparam, mas o céu estava limpo, e a lua tocava as coisas com uma luminosidade vagamente irreal. McAteer estava atarefado no convés, Egan tinha o controle da pequena casa de máquinas abaixo da escada e Deegan estava no leme. Cussane permanecia de pé ao lado dele, observando atentamente através da janela.

— Uma linda noite — observou Deegan.

— Realmente. Quanto tempo vai demorar?

— Quatro horas se tudo correr bem. Significa que temos de calcular o tempo para encontrar os barcos da ilha voltando para Man com a pesca da noite. Vamos deixá-lo na costa oeste. Um pequeno lugar que conheço perto de Peel. Pode tomar um ônibus até Douglas, a capital. Existe um aeroporto lá, Ronaldsway. Dá para pegar um avião para Londres, ou apenas cruzar o mar até Blackpool, na costa inglesa.

— Sim, eu sei — disse Cussane.

— Melhor ir lá para baixo. Fique com a cabeça fora de vista por algum tempo — sugeriu Deegan.

A cabine tinha quatro bancos, uma mesa fixa no centro e uma pequena cozinha no fundo. Estava muito desarrumada, mas era quente e confortável, a despeito do cheiro de óleo diesel. Cussane preparou um chá numa caneca e se sentou, bebendo e fumando um cigarro. Então deitou num dos bancos do fundo da cabine, o chapéu ao lado, os olhos fechados. Pouco tempo depois, McAteer e Egan desceram pela escotilha.

— Está se sentindo bem, padre? — perguntou McAteer. — Uma xícara de chá ou qualquer outra coisa?

— Já tomei uma, obrigado — disse Cussane. — Acho que vou dormir um pouco.

Ficou deitado lá, olhos semifechados, levando a mão negligentemente para baixo do chapéu. McAteer sorriu para Egan e piscou; o outro homem colocou colheradas de café instantâneo em três canecas e adicionou água fervendo e leite condensado. Saíram. Cussane pôde ouvir seus passos no convés, o murmúrio da conversa, a explosão de uma risada. Permaneceu deitado, esperando o que estava para vir.


Passara talvez meia hora até que o motor parou, e eles começaram a flutuar à deriva. Cussane levantou e colocou os pés no chão.

Deegan chamou pela escotilha: — Pode subir aqui no convés, padre?

Cussane assentou o chapéu na cabeça num ângulo escolhido com cuidado e subiu a escada.

Egan estava sentado no alçapão do motor, McAteer debruçado na janela aberta da casa do leme e Deegan em pé na amurada do lado da popa, fumando um cigarro e olhando na direção da costa irlandesa, distante duas ou três milhas.

— O que é? O que está acontecendo?

— A farsa acabou! — Deegan virou-se, segurando a Stetchkin na mão direita. — Como vê, sabemos quem é, filho. Sabemos tudo.

— E de seus métodos perversos — acrescentou McAteer.

Egan girava um pedaço de corrente pesada. Cussane relanceou os olhos na direção dele, aí se virou para Deegan, tirando o chapéu e segurando-o contra o peito.

— Não há maneira de discutirmos isso, suponho?

— Nenhuma chance — disse Deegan.

Cussane atirou no peito de Deegan através do chapéu e ele foi arremessado de costas contra a amurada. Deixou cair a Stetchkin, perdeu o equilíbrio, agarrou a amurada sem sucesso e caiu no mar. Cussane já estava virando, atirando para cima em McAteer na casa do leme. Enquanto ele se retraía, a bala alcançou o grandalhão exatamente acima do olho direito. Egan avançou na direção dele com a corrente. Cussane desviou do golpe desajeitado com facilidade.

— Filho da puta! — gritou Egan, e Cussane fez uma pontaria cuidadosa, atingindo-o no coração.

Ele se movia rápido agora, enfiando no bolso a Stetchkin que Deegan deixara cair, e jogando na água o barco inflável com motor de popa, acondicionado no meio do barco. Amarrou-o na amurada e foi até a casa do leme, onde deixara sua sacola, contornando o corpo de McAteer para alcançá-la. Abriu o fundo falso, retirou os explosivos e cortou um pedaço com sua faca de bolso. Espetou um detonador de tempo nele, regulado para explodir em quinze minutos, e jogou o artefato dentro da casa de máquinas. Entrou então no bote inflável, acionou o motor e se afastou velozmente. Atrás dele, Sean Deegan, apesar da bala no peito, observou Cussane partir e se movimentou devagar para se manter na superfície.

Cussane já estava longe em sua rota quando a explosão dilacerou a noite, as chamas amarelas e alaranjadas florindo como pétalas. Relanceou os olhos para trás apenas por um breve momento. As coisas não podiam ter corrido melhor. Agora ele estava supostamente morto, e Ferguson e McGuinness chamariam de volta os cães de caça. Imaginou como Devlin se sentiria quando ele finalmente percebesse a verdade.

Ancorou numa pequena praia perto de Ballywalter e arrastou o bote para cima, num abrigo natural: uma moita de arbustos. Então refez o caminho até o bosque, onde deixara a motocicleta. Afivelou a sacola na garupa e se afastou pela estrada.


Foi um outro barco de pesca de Ballywalter, o Dublin Town, jogando suas redes na noite, o primeiro a se aproximar da cena. A tripulação, segurando suas redes no convés a uma milha de distância, vira quando ocorreu a explosão. Mas quando alcançaram a posição onde o Mary Murphy afundara, meia hora se passara. Havia um considerável acúmulo de restos do naufrágio na superfície, e um colete salva-vidas com o nome do barco gravado nele deu a entender o pior. O capitão usou o rádio para notificar a guarda costeira sobre a tragédia, e continuou a busca de sobreviventes, ou por fim dos corpos da tripulação, mas não teve nenhum sucesso. Uma névoa espessa tornou as coisas ainda mais difíceis. Às cinco da manhã uma lancha da guarda costeira estava lá, vinda de Dundalk, e também vários outros pequenos barcos de pesca. Continuaram as buscas, enquanto alvorecia.


As notícias da tragédia foram passadas a McGuinness às quatro da manhã, e ele, por sua vez, ligou para Devlin.

— Deus sabe o que aconteceu — disse McGuinness. — A traineira explodiu e afundou como uma pedra.

— E nenhum corpo?

— Provavelmente lá dentro, ou no que resta dela no fundo. E parece que existe um fluxo de maré muito ruim naquela área. Carregaria um corpo para longe. Gostaria de saber o que aconteceu. Um bom homem, Sean Deegan.

— Eu também gostaria de saber — disse Devlin.

— Bom, Cussane acabou. Finalmente, aquele filho da puta encontrou seu fim. Você vai contar a Ferguson?

— Deixe comigo.

Devlin desceu e fez um pouco de chá. Cussane estava morto, e nem assim ele sentiu dor pelo homem que, mais que qualquer outro, fora seu amigo por mais de vinte anos. Nenhum sentimento de pesar. Em vez disso, uma sensação de intranquilidade, como um nó nas tripas.

Ligou para o número da Cavendish Square em Londres. Foi atendido após pequena demora, e a voz de Ferguson respondeu, ainda meio sonolenta. Devlin contou as notícias, e o brigadeiro ficou totalmente desperto com alguma rapidez.

— Tem certeza?

— É o que parece. Só Deus sabe o que deu errado no barco.

— Ah, bem — disse Ferguson. — Finalmente, Cussane não está mais grudado em nosso pescoço para todo o sempre. A última coisa de que eu precisava era de um louco provocando confusão. — Ferguson fungou. — Matar o papa. Realmente!

— E Tanya?

— Ela pode voltar amanhã. Coloque-a no avião, que vou encontrá-la eu mesmo.

— Certo — disse Devlin. — Então é isso...

— Você não parece feliz, Liam. O que há?

— Vamos colocar nos seguintes termos: gostaria de ver o corpo — disse Devlin e desligou.


A fronteira do Ulster com a República da Irlanda, a despeito dos bloqueios de estrada, uma considerável presença da polícia e o Exército Britânico, tem estado sempre aberta para qualquer um que a conheça. Em muitos casos, fazendas dos dois lados têm a terra cortada pela linha imaginária da fronteira, e a área é entrecortada por centenas de passagens estreitas, caminhos rurais e trilhas.

Cussane estava em segurança no Ulster às quatro da madrugada. Nenhum tipo de veículo estaria na estrada àquela hora da madrugada, a não ser que fosse essencial, tanto que ele ficou fora de vista por algum tempo, o que fez do outro lado, ao norte de Newry, hibernando num celeiro abandonado num bosque, ao lado da estrada principal.

Não dormiu, mas sentou-se confortavelmente encostado na parede e fumou um cigarro, a Stetchkin pronta na mão para qualquer eventualidade. Partiu pouco depois das seis da manhã, hora em que haveria madrugadores suficientes na estrada rumo ao trabalho para fazê-lo insuspeito. Tomou a A-1 para Lisburn, via Banbridge.

Eram sete e quinze quando entrou no estacionamento do aeroporto Aldergrove e estacionou a motocicleta. A Stetchkin foi se juntar à Walther no fundo falso da sacola.

A temporada de férias começara. Havia um voo saindo às oito e quinze para a Ilha de Man, e voos para Glasgow, Edinburgh e Newcastle como alternativas possíveis se houvesse dificuldade de obter um lugar para Man, todos partindo no período de uma hora. A Ilha de Man era sua escolha preferencial, porque se tratava de uma rota tranquila, usada principalmente por gente em férias. Sobrava espaço, e ele não teve dificuldade em conseguir uma passagem.

Bagagem de mão sempre passa por raio X, mas isso só é verdade nos grandes aeroportos internacionais. Em Belfast, a bagagem destinada ao compartimento de carga também era submetida ao raio X, mas ele sabia que nem sempre se aplicava às rotas menos movimentadas na temporada de férias. Qualquer dificuldade que se apresentasse seria na alfândega da Ilha de Man.


Eram aproximadamente oito e meia, e Cussane já estava a bordo por uns bons dez minutos, quando o Dublin Town, quase sem combustível, deu por encerrada a infrutífera busca dos sobreviventes do Mary Murphy, fazendo a volta na direção de Ballywalter. Foi o membro mais jovem da tripulação, um garoto de quinze anos que enrolava corda na proa, quem percebeu destroços do naufrágio a estibordo e chamou o comandante, que alterou o curso imediatamente. Poucos minutos mais tarde, ele parou o motor e flanqueou uma das escotilhas do Mary Murphy.

Sean Deegan estava atravessado de costas sobre ela. Sua cabeça moveu-se devagar, e ele esboçou um sorriso espectral.

— Perdendo o seu doce e precioso tempo, hein? — ele falou numa voz rouca.


No aeroporto de Ronaldsway, Cussane afinal não teve qualquer contratempo. Ele recuperou sua sacola e se misturou ao grande número de pessoas que passavam pela alfândega. Ninguém fez tentativa alguma de impedi-lo. Como em todos os recantos ideais para férias, a tônica era tornar as coisas o mais cômodas possível para os turistas.

Um pequeno avião Islander faz o curto voo para Blackpool, na costa inglesa, várias vezes por dia mas, devido ao grande movimento, ele só conseguiu embarcar ao meio-dia. Podia ter sido pior, claro; ele comprou a passagem e foi até a lanchonete do aeroporto comer alguma coisa.


Eram onze e meia quando Ferguson atendeu o telefone e encontrou Devlin do outro lado da linha. Ele ouviu, o rosto transfigurado pelo horror.

— Você tem certeza?

— Absoluta. Esse homem, Deegan, só sobreviveu à explosão porque Cussane atirou e ele caiu na água. Foi Cussane quem causou a explosão, e voltou para a praia no bote inflável do barco de pesca. Quase que Deegan pifou.

— Mas por quê? — perguntou Ferguson.

— Aquele filho da puta esperto ganha de mim no xadrez há anos. Conheço seu estilo. Sempre três movimentos à frente no jogo. Encenando sua morte aparente na noite passada, ele afastou os cães de caça. Não haveria ninguém procurando por ele. Não haveria necessidade.

Ferguson foi invadido por um terrível tremor no corpo.

— Você está tentando dizer o que penso que está?

— O que você acha? Agora ele está na sua piscina, não na nossa, brigadeiro.

Ferguson praguejou baixo. — Certo, pedirei ajuda oficial da seção especial em Dublin. Eles podem revirar aquele chalé dele para nós. Fotos, impressões digitais. O de sempre.

— Você vai precisar informar ao secretariado católico — disse Devlin. — Eles vão adorar isso tudo lá no Vaticano.

— A senhora do número dez1 também não está disposta a ficar parada. Em que avião você fez reserva para a garota, Tanya Voroninova?

— O voo das duas da tarde.

— Venha com ela. Preciso de você.

— Há apenas um item de menor importância, mas que deve ser mencionado — disse Devlin. — Aí no seu lado da piscina eu ainda sou um homem procurado, caso volte. Membro de uma organização ilegal, em resumo.

— Vou cuidar disso, pelo amor de Deus! — disse Ferguson. — Apenas sente o traseiro ao lado dela no avião — e ele desligou.


Tanya Voroninova trouxe chá da cozinha. — E o que vai acontecer agora?

— Estou indo com você para Londres — disse —, e vamos cuidar de tudo lá.

— E Cussane? Onde ele está, você sabe dizer?

— Em qualquer lugar e em todo lugar. — Ele tomou um pouco de chá. — Mas ele tem um problema. O papa chega na sexta-feira, segundo os jornais. Visita Cantuária no dia seguinte.

— Sábado, dia 29?

— Exatamente, portanto Cussane tem algum tempo para se preparar. A questão é onde ele pretende ir e o que pretende fazer.

O telefone tocou. McGuinness estava do outro lado da linha.

— Você tem falado com Ferguson?

— Tenho.

— O que ele tenciona fazer?

— Sei lá. Ele me pediu para ir lá.

— E você vai?

— Sim.

— Jesus, Liam, você soube daquele russo, Lubov, encontrado morto no cinema? Esse seu padre prega um sermão infernal.

— Ele adotou uma atitude visivelmente diferente em relação ao trabalho, desde que descobriu que seu próprio pessoal tentou apagá-lo — disse Devlin. — É interessante ver aonde isso vai levá-lo.

— Para a Cantuária, é onde o filho da puta louco está indo — disse McGuinness — e não podemos ajudar em nada. O caso está nas mãos do Serviço de Informação. O IRA não pode fazer mais nada por eles. Cuide-se, Liam.

Ele desligou, e Devlin ficou sentado, franzindo o cenho, pensativamente. Levantou-se em seguida.

— Vou sair um pouco, Tanya. Não demoro — e se foi através das portas francesas.


Os oficiais da alfândega de Blackpool foram tão corteses como tinham sido os de Ronaldsway. Cussane parou, sorrindo, enquanto a corrente de pessoas ia passando, e ofereceu sua sacola.

— Alguma coisa a declarar, padre? — perguntou o oficial.

Cussane abriu o zíper da sacola. — Uma garrafa de uísque e dois pacotes de cigarro.

O homem da alfândega sorriu maliciosamente. — Uma garrafa de vinho cairia melhor. Hoje parece não ser o seu dia, padre.

— Obviamente que não. — Cussane fechou o zíper e seguiu em frente.

Ficou hesitante do lado de fora da entrada do pequeno aeroporto. Havia vários táxis esperando passageiros, mas em vez disso ele decidiu descer andando pela rua principal. Ele tinha, afinal de contas, todo o tempo do mundo. Existia uma banca de revistas do outro lado, e ele atravessou a rua e comprou um jornal. Enquanto voltava, um ônibus parou no ponto, poucos passos adiante. O destino: Morecambe, que ele sabia ser um refúgio litorâneo a alguns quilômetros costa acima. Num impulso, correu e pulou dentro do ônibus, que partiu.

Comprou uma passagem e foi para a parte de cima. Era realmente muito agradável, e ele sentiu calma, ainda que cheio de energia ao mesmo tempo. Abriu o jornal e viu que as notícias do Atlântico Sul não eram boas. A HMS Coventry fora bombardeada, e um navio de contêineres da linha Cunard, o Atlantic Conveyor, tinha sido atingido por um míssil Exocet. Acendeu um cigarro e se ajeitou no banco para ler aquelas notícias.


Quando Devlin entrou na ala do hospital, a irmã Anne-Marie estava ao lado da cama de Danny Malone. Devlin aguardou, e finalmente ela sussurrou alguma coisa para a enfermeira, virou-se e então reparou nele.

— E o que você quer?

— Falar com Danny.

— Ele não está realmente bem para conversar nesta manhã.

— É muito importante.

Sua testa ficou enrugada de exasperação.

— Para você, é sempre importante. Está bem. Dez minutos. — Ela começou a se afastar e então fez meia-volta. — O padre Cussane não veio ontem à noite. Você sabe por quê?

— Não — mentiu Devlin. — Não o tenho visto.

Ela saiu, e ele puxou uma cadeira para frente.

— Danny, como você está passando?

Malone abriu os olhos e disse numa voz rouca: — É você, Liam? O padre Cussane não veio.

— Diga-me Danny, você falou com ele sobre Sean Deegan, de Ballywalter? Aquele que transporta gente para a ilha de Man, eu acho.

Malone franziu o cenho. — Claro, falei com ele sobre um monte de coisas.

— Mas principalmente sobre assuntos do IRA.

— Claro, ele estava interessado em saber como eu cuidava das coisas nos velhos tempos.

— Particularmente por mar? — perguntou Devlin.

— Sim, você sabe quanto tempo eu aguentei sem ser apanhado, Liam. Ele queria saber como eu fiz isso. — Uma ruga vincou sua testa. — Qual é o problema?

— Você foi sempre aquele sujeito forte, Danny. Seja forte agora. Ele não era um dos nossos.

Os olhos de Malone se arregalaram. — Você está brincando comigo, Liam.

— E Sean Deegan no hospital com uma bala e dois homens bons mortos?

Danny estava lá sentado, encarando Liam. — Conte-me.

Então Devlin fez o que Malone pediu. Quando terminou, o velho Danny disse numa voz suave: — Bastardo!

— Diga o que você pode lembrar, Danny. Alguma coisa que interessou a ele particularmente?

Malone franziu a testa, tentando pensar. — Sim, aquele negócio todo de como eu estava sempre à frente da seção especial e do Serviço de Informação por tanto tempo. Expliquei a ele que jamais usei a rede do IRA quando estava solto lá fora. Era totalmente inconfiável, você sabe disso, Liam.

— É verdade.

— Sempre usei o submundo. Prefiro um trapaceiro honesto qualquer dia da semana, ou um desonesto se o preço for justo... Conheci um monte de gente assim.

— Conte-me sobre eles — disse Devlin.


Cussane gostava de cidades à beira da praia, especialmente as que contribuíam para as missas. Gente honesta, trabalhadora, que ficava fora de casa boa parte do dia. Muitos cafés, o movimento divertido das calçadas, feiras ao ar livre e muito ar fresco. Morecambe certamente tinha aquilo. As águas escuras da baía estavam encapeladas por ondas de crista espumosa, e do lado mais distante ele pôde ver as montanhas de Lake District.

Ele caminhou pela estrada. A temporada ainda não estava no auge, mas havia levas de turistas, e ele seguiu com dificuldade pelas ruas estreitas, até encontrar a estação rodoviária.

Era possível viajar pela maior parte das cidades provincianas em ônibus expressos. Consultou os horários e encontrou o que procurava: um ônibus para Glasgow via Carlisle e Dumfries. Partia dentro de uma hora. Reservou uma passagem e saiu em busca de alguma coisa para comer.

 

________________

1 Referência a Margaret Thatcher. (N. do T.)


11

 

 

Georgi Romanov era adido sênior, responsável pelas relações públicas da embaixada russa em Londres. Era alto, um cinquentão de aparência afável e, intimamente, tinha muito orgulho de seu sobrenome aristocrático. Trabalhava para a KGB em Londres há onze anos e, no ano anterior, fora promovido a tenente-coronel. Ferguson gostava dele, e ele também gostava de Ferguson. Eram tão chegados que, quando Ferguson telefonou para ele logo depois de sua última conversa com Devlin e sugeriu um encontro, Romanov concordou imediatamente.

Encontraram-se no Round Pond, em Kensington Gardens, tão conveniente que Romanov era capaz de sair da embaixada e ir a pé até lá. Ferguson estava sentado num banco, lendo o Times. Romanov reuniu-se a ele.

— Oi, Georgi! — disse Ferguson.

— Charles! A que devo a honra?

— Sem rodeios, Georgi. É bem pior do que poderia ser. O que você sabe sobre um agente da KGB, nome de código Cuchulain, plantado bem fundo na Irlanda há bem uns vinte anos?

— Pela primeira vez, posso responder com total honestidade — disse Romanov. — Não sei de nada.

— Então ouça e assimile bem direitinho — falou Ferguson.

Quando ele terminou de contar, a fisionomia de Romanov estava séria.

— Isso é realmente muito ruim.

— Bom que você encare assim. O importante mesmo é que aquele louco está solto em algum lugar do país, já tendo manifestado a intenção de matar o papa na Cantuária, no sábado, e francamente, com a trilha de números que ele deixou para trás, temos que levá-lo a sério. Ele não é apenas mais um lunático.

— Então, o que quer que eu faça?

— Entre em contato com Moscou no mais alto nível que puder. Eu imaginaria que a última coisa que eles querem é o papa morto pelas mãos de alguém que se pode provar ser um agente da KGB, especialmente depois daquela tentativa grosseira em Roma. Avise-os que neste caso não vamos admitir interferência. E se, por algum capricho do destino, ele entrar em contato com você, Georgi, conte-me. Vamos pegar aquele filho da puta, não tenha dúvida, e ele vai morrer, Georgi. Nada daquelas besteiras de julgamento e coisas do tipo. Insisto, Georgi. Tenho certeza de que seu pessoal em Moscou vai querer ouvir.

— Garanto que vai. — Romanov ficou em pé. — Acho melhor voltar e enviar logo uma mensagem.

— Aceite a dica de um velho chapa — disse Ferguson a ele. — Certifique-se de que vá mais alto que Maslovsky.


Em vista da importância do assunto, Ferguson teve que ir ao diretor-geral, que por sua vez falou com o chefe do gabinete. O resultado foi uma convocação para comparecer em Downing Street, quando Ferguson estava no meio do seu almoço. Ligou pedindo o carro imediatamente e estava lá em dez minutos. Havia a costumeira pequena multidão no fim da rua, atrás das barreiras. O policial na porta cumprimentou, discreto. A porta foi aberta, quando Ferguson ia bater.

Havia um burburinho de atividade lá dentro, como devia haver mesmo, com a questão das Malvinas chegando ao ponto de ebulição. Ele estava surpreso pelo fato de ela querer vê-lo pessoalmente. Seu guia indicou o caminho para o primeiro andar, pela escada principal, e Ferguson o seguiu.

No andar de cima, o jovem bateu na porta e o introduziu.

— O brigadeiro Ferguson, primeira-ministra.

Ela levantou os olhos da mesa onde estava, elegante como sempre, num costume cinza de tweed, o cabelo louro impecavelmente penteado e largou a caneta.

— Meu tempo é limitado, brigadeiro. Estou certa de que compreende.

— Pensei numa rápida exposição dos fatos, madam.

— O chefe de gabinete já me colocou a par dos fatos mais relevantes. Eu simplesmente quero sua garantia de que vai parar aquele homem.

— Estou em condições de dá-la sem a menor hesitação, primeira-ministra.

— Se houver qualquer atentado contra a vida do papa enquanto estiver aqui, mesmo que não seja bem-sucedido, as consequências serão desastrosas para nós em termos políticos.

— Compreendo.

— Como chefe do Grupo 4, tem poderes especiais, concedidos diretamente por mim. Use-os, brigadeiro. Se houver alguma coisa mais de que necessitar, não hesite em pedir.

— Primeira-ministra.

Ela pegou novamente a caneta e voltou ao trabalho, e Ferguson se retirou, encontrando o jovem à espera dele do lado de fora. Enquanto desciam a escada, ocorreu a Ferguson, e não pela primeira vez em sua carreira, que era muito mais a sua cabeça do que a de Cussane que estava no cepo.


Em Moscou, Ivan Maslovsky recebeu outra convocação para o escritório do ministro de segurança do Estado, ainda ocupado por Yuri Andropov, a quem encontrou sentado à mesa, analisando um relatório datilografado. Ele o passou a Maslovsky.

— Leia, camarada.

Maslovsky obedeceu, e seu coração pareceu se transformar em pedra. Devolveu o relatório assim que terminou de ler, as mãos trêmulas.

— Seu homem, Maslovsky, está agora solto na Inglaterra, pretendendo assassinar o papa, uma ideia aparentemente só dele e que pode nos causar sérios embaraços. E não há nada que possamos fazer, a não ser sentar e esperar que o Serviço de Informação britânico seja cem por cento eficiente nesta questão.

— O que posso dizer, camarada?

— Nada, Maslovsky. Todo esse caso lamentável não foi somente mal orientado. Foi uma aventura do pior tipo. — Andropov pressionou um botão sob a mesa. A porta se abriu atrás de Maslovsky, e dois jovens capitães uniformizados da KGB entraram. — Você vai desocupar seu escritório e entregar todos os códigos oficiais e arquivos para a pessoa que eu designar. Então será levado para Lubianka e vai aguardar para ser julgado por crimes contra o Estado.

A Lubianka... quantas pessoas ele mandara para lá pessoalmente? Subitamente, Maslovsky sentiu dificuldade para respirar e sentiu dor nos braços, no peito. Começou a cair a agarrou-se à mesa. Andropov pulou para trás, alarmado, e os dois oficiais da KGB se precipitaram para segurar os braços de Maslovsky. Não se esforçou para resistir, não tinha forças, mas tentou falar enquanto a dor piorava, tentou dizer a Andropov que não haveria cela na Lubianka, julgamento, nada. Estranhamente, a última coisa em que pensou foi Tanya, sua querida Tanya, sentada ao piano, tocando a peça favorita dele, La mer, de Debussy, e aí a música desapareceu, e houve somente escuridão.


Ferguson teve uma reunião com o chefe de gabinete do governo, o comandante do D13, o esquadrão antiterror da Scotland Yard, e o diretor-geral dos serviços de segurança. Estava cansado quando voltou ao apartamento e encontrou Devlin sentado perto da lareira, lendo o Times.

— Parece que o papa está assumindo obrigações em relação às Malvinas no momento — disse Devlin e fechou o jornal.

— Sim, é bom que tudo esteja bem — disse Ferguson. — Mas agora ele não pode voltar atrás. Você deveria ter estado comigo lá nessa reunião a que acabei de assistir, Liam. O chefe de gabinete em pessoa, a Scotland Yard, o diretor, e quer saber? — Ele se aqueceu, de costas para a lareira. — Eles não estão encarando isso com toda a seriedade necessária.

— Você quer dizer Cussane?

— Ah, não me interprete mal. Eles aceitam a existência dele, se é que você me entende. Mostrei a eles os números, e a atividade dele em Dublin nesses últimos poucos dias tem sido ruim o bastante. Só Deus sabe. Levin, Lubov, Cherny, os dois pistoleiros do IRA. O homem é um açougueiro.

— Não — disse Devlin. — Não pense assim. Para ele, é apenas parte do trabalho. Alguma coisa que tem que ser feita, e ele leva a coisa adiante com habilidade e rapidez. Frequentemente tem poupado muitas vidas ao longo dos anos. Tanya e eu mesmo somos exemplos. Ele procura o alvo, é tudo.

— Não precisa me lembrar. — Ferguson teve um arrepio e estremeceu.

A porta se abriu, e Harry Fox entrou.

— Olá, sir! Liam! Acho que as coisas continuaram rolando enquanto estive fora.

— Vamos dizer que continuaram — falou Ferguson. — Tudo correu bem em Paris?

— Sim.

— Você pode me contar mais tarde. É melhor eu informá-lo dos últimos acontecimentos.

Foi o que Ferguson fez, tão rapidamente quanto possível. Ocasionalmente, Devlin dava uma opinião. Quando o brigadeiro terminou, Fox disse: — Que homem mais estranho — e balançou a cabeça.

— O que é?

— Quando o encontrei outro dia, gostei muito dele, sir.

— Uma coisa que não é difícil de acontecer — disse Devlin.

Ferguson franziu o cenho. — Vamos deixar toda essa loucura um pouco de lado.

A porta foi aberta, e Kim entrou com o chá na bandeja e um prato de fatias de bolo.

— Excelente! — exclamou Ferguson. — Estou faminto.

— E a garota, Tanya Voroninova? — perguntou Fox.

— Eu a instalei numa casa segura por enquanto.

— Qual delas, sir?

— O apartamento de Chelsea Place. O diretorado forneceu uma agente para ficar com ela até que tenhamos outra escolha. — Ele serviu a todos uma xícara de chá.

— Então qual é o próximo movimento? — perguntou Devlin.

— O chefe de gabinete e o diretor, e devo dizer que concordo com eles, entendem que no momento não devemos tornar público um assunto como este. Todo o propósito da visita do papa é óbvio e delicado. Uma tentativa genuína de ajudar a dar um fim à guerra do Atlântico Sul. Imagine como a coisa ficaria nas primeiras páginas dos jornais. A primeira vez que um papa visita a Inglaterra e um cachorro louco assassino solto lá fora.

— E que se beneficia de ser um padre, sir.

— Sim, podemos muito bem não considerar isso, sabendo realmente o que ele é em especial.

— Sem essa de não considerar — disse Devlin. — Permita que eu, como católico não muito bom, lembre a vocês umas poucas coisas. Aos olhos da Igreja, Harry Cussane foi ordenado padre em Vine Landing, Connecticut, há vinte anos, e ele ainda é um padre. Vocês não têm lido nada de Graham ultimamente?

— Está bem — disse Ferguson, irritado. — Seja como for, a primeira-ministra não vê motivo para que se dê publicidade de primeira página a Cussane. Não faria bem a nenhum de nós.

— Mas com a publicidade podemos agarrá-lo mais depressa, sir — disse Fox em tom moderado.

— Bem, eles esperam que nós o agarremos de qualquer forma. A seção especial em Dublin colheu suas impressões no chalé para nós. Já colocaram no computador, que, como você sabe, está conectado ao computador dos serviços de segurança em Lisburn, que, por sua vez, está ligado ao nosso computador aqui, na central da Scotland Yard.

— Não consigo imaginar esse tipo de conexões — disse Devlin.

— O milagre do microchip — disse Ferguson. — Onze milhões de pessoas lá fora. Antecedentes criminais, escolaridade, profissão, preferências sexuais. Hábitos pessoais. Onde compram móveis.

— Você só pode estar brincando.

— Não. Pegamos um dos seus no Ulster ano passado porque ele sempre fazia compras na Co-Op.1 Tinha uma excelente cobertura, mas não pôde mudar o hábito de uma vida inteira. Cussane está nos chips agora e não só suas digitais, mas tudo o que sabemos sobre ele, e assim que a maioria das forças policiais das províncias tiver o que chamamos de conjunto de características visuais em seus sistemas de computadores, eles podem acionar nosso banco central de dados e obter sua foto.

— Meu Deus!

— Hoje em dia podem fazer o mesmo com você. No que diz respeito a Cussane, dei instruções para que inserissem um registro deliberadamente retificado. Nenhuma menção à KGB ou coisas do tipo. Faz-se passar por padre, conexões conhecidas com o IRA. Extremamente violento, aproximar-se com cuidado. Você conhece o quadro.

— Se conheço...

— Com esse objetivo, estamos liberando sua foto para a imprensa e enchendo de aspas os detalhes que acabei de mencionar. Alguns jornais da noite vão tentar fazer com que saia ainda hoje, mas a foto e as informações estarão estampadas nas edições de amanhã de todos os jornais do país.

— E acha que será suficiente? — perguntou Fox.

— É muito possível. Vamos ter que esperar para ver, não vamos? Mas uma coisa é certa. — Ferguson caminhou até a janela e olhou para fora. — Ele está lá em algum lugar.

— E o negócio — disse Devlin — é que ninguém pode fazer droga nenhuma, enquanto ele não volta à tona.

— Exatamente. — Ferguson foi na direção da bandeja e pegou o bule. — Este chá está realmente delicioso. Alguém quer outra xícara?


Pouco tempo depois, naquela tarde, Sua Santidade, o papa João Paulo II, estava sentado atrás da mesa de seu pequeno escritório anexo ao dormitório e examinava o relatório que acabara de lhe chegar às mãos. O homem que estava parado diante dele vestia o mais modesto hábito preto e, pela aparência, poderia ser tomado como um simples padre. Mas era, de fato, o superior da Companhia de Jesus, a mais famosa de todas as ordens da Igreja Católica. Os jesuítas tinham orgulho de ser considerados soldados de Cristo e, nos bastidores, através dos séculos, tinham sido responsáveis pela segurança do papa. O relatório explicava por que o padre superior se abalara de seu escritório no Collegio di San Roberto Bellarmino, na Via del Seminario, para obter uma audiência com Sua Santidade.

O papa João Paulo colocou o relatório sobre a mesa e levantou os olhos. Falou num italiano perfeito, permeado por um sotaque quase imperceptível de polonês, sua língua nativa:

— Quando você recebeu isto?

— O primeiro relatório do secretariado de Dublin já faz três horas. As notícias de Londres agora há pouco. Falei pessoalmente com o chefe de gabinete do governo inglês. Ele me garantiu sua segurança e me encaminhou ao brigadeiro Ferguson, mencionado no relatório como sendo diretamente responsável.

— Mas você está preocupado?

— Santidade, é quase impossível impedir que um assassino solitário alcance seu alvo, especialmente se ele não se importa com sua própria segurança, e este homem, Cussane, já provou suas habilidades de matar em várias ocasiões no passado.

— Padre Cussane. — Sua Santidade levantou-se e caminhou medindo os passos até a janela. — Ele pode ter sido assassino, pode ser ainda, mas ele é padre, e Deus, meu amigo, não permitirá que se esqueça disso.

O padre superior olhou para aquela fisionomia modelada toscamente, o rosto que podia ter pertencido a um dos milhões de trabalhadores comuns. Aquelas faces foram presenteadas com uma simplicidade estranha, definitiva. Como acontecera em outras ocasiões, o padre superior, apesar de toda a autoridade intelectual, perdeu a energia diante daquela presença.

— Sua Santidade vai à Inglaterra?

— Vou a Cantuária, meu amigo, onde o abençoado Thomas Beckett morreu por amor a Deus.

O superior dos jesuítas aproximou-se para beijar o anel de Pedro no dedo da mão estendida.

— Então, Santidade, com sua licença. Há muita coisa a fazer.

Ele saiu, e João Paulo ficou parado diante da janela por um momento, então atravessou o quarto, abriu a pequena porta e entrou em sua capela particular. Ajoelhou-se em frente ao altar, mãos entrelaçadas, um certo medo no coração, enquanto se lembrava da bala assassina que quase pusera fim à sua vida, os meses de dor... Mas ele afastou aqueles pensamentos e se concentrou em tudo aquilo que era importante. Suas orações se dirigiram para a alma imortal do padre Harry Cussane e para todos os pecadores em geral, cujas ações os afastavam da infinita bênção do amor de Deus.


Ferguson colocou o telefone no gancho e virou-se para Devlin e Fox.

— Era o diretor-geral. Sua Santidade foi informada detalhadamente sobre Harry Cussane e da ameaça que ele representa. Não fez a menor diferença.

— Bem, e faria? — disse Devlin. — Você está falando de um homem que lutou anos contra os nazistas nos subterrâneos da Polônia.

— Está certo — disse Ferguson. — Você foi ao ponto. De qualquer maneira, é melhor você ir. Leve-o ao diretorado, Harry. Passe de segurança Grau A. Não é apenas mais um pedaço de plástico com sua foto nele — disse Ferguson para Devlin. — Muito poucas pessoas possuem um desses. Abre qualquer porta.

Ele caminhou até a mesa, e Devlin disse: — O passe me dá direito a uma arma? Uma Walther seria bem-vinda. Como você sabe, sou um dos naturalmente pessimistas.

— Fora de questão para a maioria do seu pessoal, desde que aquele idiota tentou matar a princesa Anne, e Walthers, o guarda-costas dela, ficou ferido. Revólveres não resolvem. Aceite meu conselho.

Ele pegou alguns jornais e então foi para o estúdio vestir o paletó e a capa.

— Eu ainda prefiro uma Walther — disse Fox.

— Por mais que você se sinta seguro com uma delas — disse Devlin —, é melhor não facilitar, não se você der de cara com Harry Cussane. — Ele abriu a porta, e saíram rumo ao elevador.


Harry Cussane tinha um plano com alternativas. O objetivo em vista: Cantuária, no sábado. Mas ainda faltavam quase três dias e três noites, durante os quais ele teria que se esconder. Danny Malone mencionara um número de pessoas do submundo do crime que providenciavam o tipo certo de ajuda por um preço. Muita gente em Londres, claro, ou Leeds ou Manchester, mas os irmãos Mungo em sua fazenda em Galloway tinham despertado particularmente seu interesse. Era o fato de ser remoto que o atraía.

O último lugar onde alguém o procuraria seria a Escócia, e além do mais o voo da British Airways de Glasgow para Londres levava apenas uma hora e quinze.

Tempo para ser preenchido, era a questão. Nenhuma necessidade de estar na Cantuária antes do último momento. Nada para organizar. Aquilo o divertia, sentado lá no ônibus que corria veloz pela rodovia, subindo para Carlisle. Dava para imaginar os preparativos na Catedral da Cantuária, todos os pontos de entrada possíveis vigiados, atiradores de elite da polícia por todos os cantos, provavelmente até o pessoal do SAS à paisana disperso entre a multidão. E tudo para nada. Era como xadrez, do jeito que ele costumava dizer a Devlin, o pior jogador do mundo. Não era o movimento do instante que contava. Era o movimento final. Aquilo se parecia muito com um mágico no palco. A pessoa acredita no que ele faz com a mão direita, mas é o que faz com a esquerda que importa.

Dormiu tranquilo um tempo e quando acordou o mar estava à esquerda, brilhante sob a luz da tarde. Ele se inclinou e falou com a mulher na frente.

— Onde estamos?

— Acabamos de passar por Annan. — Ela tinha um forte sotaque de Glasgow. — A próxima é Dumfries. É católico?

— Receio que sim — disse ele, cautelosamente. — As terras baixas da Escócia sempre foram tradicionalmente protestantes.

— Que ótimo! Também sou católica. De Glasgow, nascida na Irlanda, padre. — Pegou a mão dele e beijou. — Abençoe-me, padre. Vem do velho país.

— Realmente.

Ele pensou que ela podia provocar um aborrecimento, mas muito estranhamente se recostou na poltrona e desviou a atenção de Cussane. Lá fora, o céu estava muito escuro, e começou a chover, trovões ribombando agourentamente, e breve a chuva engrossara como se tivesse a força de uma monção que tamborilava ruidosamente no teto do ônibus. Pararam em Dumfries para deixar dois passageiros e então partiram através das ruas lavadas, vazias, pegando novamente a estrada.

Faltava pouco agora. Não mais de sessenta quilômetros até o fim da viagem, em Dunhill. De lá, uns poucos quilômetros por uma estrada secundária até uma aldeia chamada Larwick, e então a fazenda dos Mungo, nas colinas, a não mais de três quilômetros.

O motorista estivera falando pelo microfone do rádio e agora ligava o sistema de alto-falantes do ônibus.

— Atenção, senhoras e senhores. Acho que teremos problemas pela frente, um pouco antes de Dunhill. Uma inundação muito perigosa na estrada. Muitos veículos enguiçaram lá.

A velha na frente de Cussane reclamou. — O que eles querem que a gente faça? Ficar dentro do ônibus a noite inteira?

— Chegaremos a Corbridge em poucos minutos. É um lugarejo, mas existe uma estaçãozinha onde eles embarcam leite. Estão fazendo arranjos para parar o próximo trem para Glasgow.

— O preço da passagem do trem é o triplo — disse a velha.

— A companhia paga — disse o motorista num tom feliz. — Não se preocupe, amor.

— O trem para em Dunhill? — perguntou Cussane.

— Talvez. Não tenho certeza. Veremos.

Lag's luck2 era como eles chamavam aquela situação nas prisões. Danny Malone tinha contado a ele. Por mais que alguma coisa seja bem planejada, existe sempre um fator totalmente imprevisível para atrapalhar. Não valia a pena gastar energia ruminando aquilo. A coisa a fazer era examinar as alternativas.

Uma placa branca, Corbridge grafado em preto, apareceu à esquerda, e então as primeiras casas despontaram indistintamente na chuva pesada. Havia um armazém e uma banca de revistas. A estaçãozinha ficava do lado oposto, e o motorista manobrou, estacionando num terreno lateral.

— É melhor esperarem aqui dentro, enquanto verifico as coisas lá fora.

Ele saltou do ônibus e entrou na pequena estação. A chuva desabava implacavelmente. Havia um espaço vazio entre o pub e o armazém, vigas estiradas para escorá-los.

Obviamente a construção que fora levantada lá acabara de ser demolida, e uma pequena multidão se acotovelara. Cussane observou negligentemente, procurou pelo maço de cigarros no bolso e encontrou-o vazio. Hesitou, então pegou a sacola, desceu do ônibus e atravessou a estrada em direção à banca de revistas. Pediu dois maços à moça parada na entrada e também um mapa completo da região, se houvesse. A moça tinha o mapa.

— O que está havendo? — perguntou Cussane.

— Faz uma semana que eles estão demolindo o velho armazém de grãos. Tudo ia bem até que essa chuva começou. Estão com problemas nos porões, sei lá.

Saíram e ficaram observando. Naquele momento, um carro da polícia apareceu, vindo do outro lado da vila, e estacionou. Havia somente um ocupante, um homem grande e de compleição forte, que vestia um anorak azul-marinho com divisas de sargento. Ele forçou a passagem através da multidão e desapareceu.

— Chegou a cavalaria — disse a moça.

— Ele é daqui? — perguntou Cussane.

— Não existe posto policial em Corbridge. Ele é de Dunhill. Sargento Brodie, Lachlan Brodie. — O tom da voz da moça foi suficiente.

— Impopular, é? — perguntou Cussane.

— Lachlan é o tipo de homem que adora encontrar três bêbados juntos no sábado à noite para surrá-los. É duro como pedra e gosta de provar isso.

— Você é católico, por acaso?

— Receio que sim.

— Para Lachlan, significa o anticristo. Ele é o tipo de batista que acha a música um pecado. Um pregador leigo, além do mais.

Um trabalhador veio através da multidão, com capacete e jaqueta de segurança alaranjada. Seu rosto estava ensopado e manchado de lama. Ele se encostou na parede.

— Está o diabo lá embaixo.

— Muito ruim? — perguntou a moça.

— Um dos meus homens está preso. Uma parede ruiu. Estamos fazendo o melhor que podemos, mas não há mais espaço para trabalhar, com a água subindo. — Ele franziu a sobrancelha e disse a Cussane: — É um padre católico?

— Sou.

O homem agarrou seu braço. — Meu nome é Hardy. Sou o contramestre. O homem lá embaixo mora em Glasgow como eu, mas é italiano. Gino Tisini. Ele acha que vai morrer. Pediu que eu arranjasse um padre. Vem?

— Mas claro! — disse Cussane sem hesitação e passou a sacola para a moça. — Pode tomar conta para mim?

— Certamente, padre.

Ele seguiu Hardy através da multidão, e desceram até o local da escavação. Havia um buraco e os degraus do porão. Brodie, o sargento de polícia, estava empurrando as pessoas para trás. Hardy começou a descer, e Cussane o seguiu. Brodie agarrou o braço dele.

— O que é isso?

— Deixe-o passar — disse Hardy. — É um padre.

Viu a hostilidade imediata nos olhos de Brodie, a antipatia evidente. Aquilo era apenas um velho filme para Cussane; Belfast, tudo de novo.

— Não conheço você — disse Brodie.

— Meu nome é Fallon. Estava no ônibus a caminho de Glasgow — disse Cussane com calma.

Segurou o pulso do policial, esquecendo o apertão em seu braço, e Brodie se assustou com a força do gesto, enquanto Cussane o empurrava de lado. Desceu os degraus. Logo, a água batia no joelho. Ele se encharcou todo sob o teto baixo e seguiu Hardy pelo que deveria ter sido um corredor estreito. Havia uma certa quantidade de luz, proveniente de uma lâmpada portátil de fio, que iluminava um caos de alvenaria e tábuas reviradas. Existia uma fenda estreita, e quando chegaram até lá, toparam com dois homens, ambos encharcados e obviamente no ponto de exaustão.

— Isso é ruim — disse um dos homens. — A cabeça dele vai ser coberta pela água em questão de minutos.

Hardy tomou rapidamente a frente deles, e Cussane foi atrás dos três homens. O rosto pálido de Gino Tisini apareceu na escuridão, enquanto eles se agachavam para prosseguir. Cussane usou a mão para se firmar. Uma tábua e vários tijolos caíram.

— Cuidado! — disse Harry. — Essa arapuca pode desmoronar como um castelo de cartas.

Havia um constante murmúrio da água entrando. Tisini conseguiu sorrir palidamente.

— Não temos tempo para uma confissão, padre.

— Não vai demorar. Vamos tirar você daqui — disse Cussane.

Uma repentina torrente de água encobriu o rosto de Tisini, e ele entrou em pânico. Cussane moveu-se atrás dele, segurando a cabeça do homem acima da água, agachando-se ao lado dele de uma forma protetora.

Hardy mergulhou. — Há muita coisa que tem que ser movida aqui — disse ele. — O influxo da água pode ajudar. Existe apenas uma trave prendendo Gino, mas está encostada na parede. Se eu forçar, pode cair tudo na nossa cabeça.

— E se você não forçar, ele morre afogado em menos de cinco minutos — disse Cussane.

— Você pode se dar mal também, padre.

— E você idem — disse Cussane. — Portanto, vamos logo com isso.

— Padre! — gritou Tisini. — Absolva-me em nome de Deus!

Cussane disse numa voz firme e clara: — Que Nosso Senhor Jesus Cristo o absolva, e eu, pela Sua autoridade, o absolvo de seus pecados, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. — Ele fez um sinal para Hardy. — Agora!

O contramestre respirou fundo e desapareceu sob a água, as mãos agarrando a ponta da trave. Seus ombros pareciam inchar, e ele voltou à superfície com a trave.

Tisini gritou, flutuando livre nas mãos de Cussane. A água começou a ocupar mais espaço. Hardy ergueu Tisini e o arrastou até a entrada. Cussane empurrou por trás, enquanto as paredes desmoronavam em torno deles. Ergueu um braço para se proteger, sabendo que estavam nos degraus agora. Mãos ansiosas para ajudar esticaram-se em sua direção, e aí um tijolo o atingiu, um impacto direto na cabeça. Tentou subir os degraus, caiu de joelhos e as trevas chegaram.

 

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1 Supermercados ou lojas de departamentos cooperativadas. (N. do T.)

2 Ao pé da letra: sorte de prisioneiro. (N. do T.)


12

 

 

Voltou a si bem devagar e encontrou a moça da loja ajoelhada sobre ele. Estava deitado num tapete em frente a uma lareira de carvão, e ela limpava seu rosto.

— Calma — disse ela. — Você vai ficar bom. Lembra-se de mim? Sou Moira McGregor. Esteve em minha loja.

— E o italiano e seu amigo Hardy?

— Estão lá em cima. Mandamos buscar um médico.

— Onde está minha sacola?

— Está bem guardada na outra sala — disse ela.

O enorme policial, Brodie, se agigantou ao se aproximar. — De volta ao mundo dos vivos, hein? — Havia ironia em sua voz. Um desprazer. — Acho que vale duas dúzias de velas para a Virgem.

Brodie saiu. Moira McGregor sorriu para Cussane. — Não leve em conta. Salvou a vida daquele homem, você e Hardy. Vou pegar uma xícara de chá.

Ela foi para a cozinha e encontrou Brodie perto da mesa.

— Eu faria este chá com alguma coisa mais forte — disse ele.

Ela pegou uma garrafa de uísque e um copo do armário e colocou-os na mesa sem dizer uma palavra. Ele alcançou uma cadeira e empurrou-a na direção da mesa, sem perceber a sacola de Cussane, que caiu no chão. A sacola estava aberta, vários pertences fora dela em desordem, entre eles um par de camisas, o cibório de prata e a faixa violeta.

— É a sacola dele? — perguntou Brodie.

Ela deu as costas para o fogão, a chaleira na mão.

— É.

Ele se ajoelhou, socando os objetos de volta na sacola e franziu o cenho.

— O que é isso?

Ele estava segurando um passaporte britânico. Brodie o abriu.

— Ele me disse que seu nome era Fallon.

— E daí? — falou Moira.

— Então, como ele tem um passaporte em nome do padre Sean Daly? A semelhança é boa. — Sua mão tateou mais além. — O fundo falso abrira, quando a sacola caiu da cadeira. — Meu Deus! — disse Brodie, e sua mão apareceu segurando a Stetchkin.

Moira McGregor ficou abalada.

— O que significa isso?

— Vamos saber em breve.

Brodie foi até o outro quarto e colocou a sacola sobre uma cadeira. Cussane estava deitado tranquilamente, os olhos fechados. Brodie ajoelhou-se ao lado dele, tirou um par de algemas e bem devagar colocou um dos aros em torno do pulso esquerdo de Cussane. Ele abriu os olhos, e Brodie agarrou o outro pulso, e o fecho da algema de aço estalou. Levantou o padre e o empurrou para uma cadeira.

— O que está fazendo? — disse Cussane.

— Então o que é isso tudo? — disse Brodie e puxou completamente o fundo falso para cima, separando o conteúdo. — Três armas de fogo, vários passaportes e uma grana relativamente alta. Que droga de padre. O que significa tudo isso?

— O policial é você, não eu — disse Cussane.

Brodie deu-lhe uma pancada no ouvido. — Boas maneiras, baixinho. Estou vendo que vou ter que castigar você.

Observando da porta, Moira disse: — Não faça isso.

Brodie sorriu contemplativamente. — Mulheres. Sempre as mesmas. Fantasiando com ele, não? Só porque bancou o herói com o italiano?

Ele saiu, e ela disse a Cussane num tom de desespero: — Quem é você?

Ele sorriu. — Não vou preocupar sua cabeça com isso. Entretanto gostaria de um cigarro, antes que os bons garotos voltem.


Brodie era policial há vinte anos, após cinco anos na polícia militar. Vinte anos, uns iguais aos outros. Era um homem amargo e cruel, cuja verdadeira autoridade estava somente no uniforme. E sua religião tinha o mesmo objetivo do uniforme: dar-lhe uma autoridade espúria. Ele poderia ter telefonado para o quartel de Dumfries, mas havia algo especial naquilo, ele sentiu nos ossos. Em vez disso, ligou para o quartel de polícia de Glasgow.

Glasgow recebera fotos e detalhes completos sobre Harry Cussane uma hora antes. O caso estava marcado como prioridade um, exigindo imediata remissão ao Grupo 4 em Londres. A ligação telefônica de Brodie foi transferida imediatamente para a seção especial. Em dois minutos, ele estava falando com o inspetor-chefe Trent.

— Conte tudo o que sabe novamente — disse Trent.

Brodie fez como ordenado. Quando terminou, Trent disse:

— Não sei quanto tempo você levou para agarrá-lo, mas esta é a maior prisão da sua carreira. Este homem se chama Cussane. Uma verdadeira fera do IRA. Você disse que os passageiros do ônibus onde ele estava estão sendo transferidos para o trem?

— Exatamente, sir. Inundação na estrada. Aqui é apenas um ponto de embarque de leite, mas eles vão parar o expresso de Glasgow.

— Quando ele deve passar aí?

— Mais ou menos em dez minutos, sir.

— Vá em frente, Brodie, e traga seu amigão. Encontro você em Glasgow.


Brodie conduziu Cussane pelo braço ao longo da plataforma, a outra mão segurando a sacola dele. As pessoas se viravam curiosamente para observar enquanto o padre passava, algemado. Alcançaram o vagão-alojamento dos guardas ferroviários no fim da composição. Um guarda estava em pé na plataforma, ao lado da porta aberta.

— O que há?

— Prisioneiro especial para Glasgow. — Brodie empurrou Cussane para dentro. Havia algumas malas postais no canto, e o policial empurrou o padre sobre elas. — Agora fique quieto aí como um bom garoto.

Um princípio de tumulto, e Hardy apareceu na porta, Moira McGregor atrás.

— Vim o mais cedo que pude — disse o contramestre. — Acabei de ouvir.

— Você não pode entrar aqui — disse Brodie.

Hardy o ignorou. — Olha, não sei o que está acontecendo, mas se houver alguma coisa que eu possa fazer...

Na plataforma, o guarda do trem soprou seu apito, e Cussane disse:

— Não há nada que ninguém possa fazer. Como está Tisini?

— Parece que quebrou a perna.

— Deseje boa sorte a ele.

Houve um balanço brusco, enquanto o trem partia. — De repente me ocorreu que se eu não tivesse pedido sua ajuda, você não estaria aqui agora — disse Hardy.

Ele saltou para se juntar a Moira na plataforma, enquanto o guarda embarcava.

— Eu quis tirar a sorte — disse Cussane. — Não se preocupe.

E aí Hardy e a moça foram varridos para longe no passado, assim que o guarda fechou a porta corrediça e o trem oscilou na partida.


Trent não pôde resistir em telefonar para Ferguson em Londres, e o diretorado-geral transferiu-o para o número da Cavendish Square. Fox e Devlin estavam fora, e o próprio brigadeiro atendeu.

— Aqui é Trent, sir, inspetor-chefe, seção especial, Glasgow. Acho que agarramos seu homem, Cussane.

— Meu Deus, agarraram? — disse Ferguson. — Qual é o estado dele?

— Bom, ainda não o vi, sir. Ele foi apanhado numa cidadezinha alguns quilômetros ao sul daqui. Vai chegar de trem aqui em Glasgow dentro de uma hora. Vou esperá-lo pessoalmente.

— Pena que o sacana não esteja morto — disse Ferguson. — Bem, não se pode ter tudo. Quero este homem a caminho daqui no primeiro avião disponível amanhã de manhã, inspetor-chefe. Traga-o você mesmo. Isso é importante demais para que haja qualquer erro.

— Farei isso, sir — disse Trent, ansioso.

Ferguson colocou o aparelho no gancho, chegou a segurar o telefone vermelho, mas uma precaução instintiva tolheu seu gesto. Era melhor ligar para o chefe de gabinete quando o peixe estivesse de fato na rede.


Brodie ´se sentou num banquinho, encostado num canto, observando Cussane e fumando um cigarro. O guarda verificava uma lista na mesa. Terminou a tarefa e largou a caneta.

— Vou fazer minha ronda. Vejo você mais tarde.

Ele saiu, e Brodie arrastou o banquinho pelo carro-bagageiro e foi sentar bem perto de Cussane.

— Nunca compreendi, sabe. Homens de saia. Nunca vou conseguir entender. — Ele se inclinou. — Diga-me, vocês, padres, como é para fazer aquilo?

— Aquilo o quê?

— Você sabe. É com os meninos do coro? Não é verdade? — Havia gotas de suor na testa grande do homem.

— Vá para o inferno, você e esse seu bigode — disse Cussane. — Você é um boca-mole ou o quê?

Brodie estava com raiva agora.

— Vou lhe mostrar, seu filho da puta.

Ele se aproximou e enfiou a brasa do cigarro na mão de Cussane. Ele gritou e caiu de costas contra as malas postais.

Brodie riu e se inclinou sobre ele.

— Acho que você vai gostar disso — disse, e tentou encostar o cigarro novamente na mão de Cussane, que lhe aplicou um chute no saco. Brodie cambaleou para trás, apertando a região atingida, e Cussane ficou em pé de um salto. Desferiu outro chute com habilidade, acertando a rótula direita e, enquanto Brodie tombava para a frente, deu uma joelhada em seu rosto.

O sargento jazia de costas, gemendo, e Cussane revistou seus bolsos, achou a chave e abriu as algemas. Pegou a sacola, verificando que o conteúdo estava intacto e deslizou a Stetchkin para dentro do bolso. Puxou a porta corrediça, e a chuva inundou o vagão.

O guarda, que entrou no carro-bagageiro um segundo mais tarde, ainda pôde ver por um breve instante a figura vaga de Cussane caindo no terreno cheio de urze ao lado dos trilhos e rolando mais e mais pelo declive. Então havia somente neblina e chuva.


Quando o trem encostou na estação central de Glasgow, Trent e vários policiais uniformizados estavam esperando na plataforma um. A porta do carro-bagageiro deslizou, abrindo-se, e o guarda apareceu.

— Aqui dentro.

Trent parou na entrada. Havia somente Lachlan Brodie, sentado no banco do guarda, esfregando um rosto ensanguentado e inchado. O coração de Trent ficou pequeno.

— Conte tudo.

Brodie explicou da melhor maneira que pôde e quando terminou, Trent disse:

— Ele estava algemado, você disse. E você deixou que ele o pegasse?

— Não foi tão simples como parece, sir — disse Brodie, gaguejando.

— Seu estúpido! Mas que homem estúpido! — disse Trent. — Quando eu acabar com você, pode se considerar um sortudo se eles o mandarem limpar privadas.

Girou nos calcanhares, profundamente aborrecido, e caminhou de volta pela plataforma, a fim de ligar para Ferguson.


Naquele preciso momento Cussane parou para descansar num abrigo de pedras no alto de uma colina, ao norte de Dunhill. Abrira o mapa da região, que tinha comprado de Moira McGregor. Encontrou Larwick sem problema, e a fazenda dos irmãos Mungo era vizinha. Talvez pouco mais de trinta quilômetros naquele país montanhoso, e ainda assim se sentiu satisfeito, enquanto seguia em frente.

A neblina condensando-se em volta e a chuva pesada deram-lhe uma sensação de segurança íntima, longe do mundo lá fora; uma espécie de liberdade. Caminhou através de bétulas e fetos grandes, que encharcaram as pernas da calça. Ocasionalmente, tetrazes e lavandeiras, aves ariscas, se assanhavam nos urzais, perturbadas pelos seus passos. Ele se manteve em movimento, mas agora sua capa estava ensopada por dentro, e tinha experiência suficiente para saber dos perigos de estar num país montanhoso como aquele com roupas inadequadas. Veio pela borda de uma escarpa, talvez uma hora depois de ter deixado o trem, e olhou para o vale estreito e profundo lá embaixo. A escuridão estava caindo, mas existia logo mais à frente uma trilha nítida, aberta por gente da região, que terminava num monte de pedras ásperas.

Era o suficiente, e ele prosseguiu rápido, com energia renovada, precipitando-se perigosamente colina abaixo.


Ferguson estava olhando para um grande mapa militar das planícies escocesas.

— Aparentemente, ele pegou o ônibus em Morecambe — disse. — Já estabelecemos isso.

— Um caminho limpo para chegar a Glasgow, sir — disse Fox.

— Não — discordou Ferguson. — Ele comprou passagem para um lugar chamado Dunhill. Que diabos ele pode estar fazendo lá?

— Conhece a área? — perguntou Devlin.

— Passei uma semana lá, caçando, na propriedade de um chapa meu, há uns vinte anos. Florestas densas, muitas montanhas e pequenos lagos escondidos por todo lugar. Galloway Hills, muito agradável.

— Você disse Galloway? — Devlin olhou para o mapa bem de perto. — Aí está, Galloway.

— E daí? — Ferguson franziu o cenho.

— Acho que é para lá que ele foi. Acho que é para lá que ele estava tentando ir o tempo todo.

— O que o faz pensar assim? — disse Fox.

Devlin contou-lhes sobre Danny Malone e quando terminou, Ferguson disse:

— Muito bem, temos alguma coisa.

Devlin aquiesceu. — Danny mencionou uma série de casas usadas pelo pessoal do submundo em várias partes do país, mas o fato de que ele está na área de Galloway deve ter algum significado, porque o lugar é território dos irmãos Mungo.

— O que fazemos agora, sir? — perguntou Fox a Ferguson. — Avisar à seção especial de Glasgow para cair em cima dos Mungo?

— Não, para o inferno com isso — disse Ferguson. — Acabamos de ter um exemplo clássico da eficiência da polícia local. Eles o tinham e deixaram que escorregasse entre os dedos. — Ele relanceou os olhos através da janela para a escuridão lá fora. — É muito tarde para fazer alguma coisa esta noite. Muito tarde para ele também. Ele ainda deve estar andando a pé por aquelas montanhas.

— Determinado a chegar ao lugar — disse Devlin.

— Então, você e Harry voam amanhã para Glasgow. Chequem aquele território dos Mungo pessoalmente. Estou invocando poderes especiais. Nesse caso, a seção especial fará o que quiserem.

Ferguson saiu. Fox deu um cigarro a Devlin.

— O que você acha?

— Eles o tinham, Harry, algemado — disse Devlin. — E ele fugiu. É isso que eu acho. Agora me acenda o cigarro.


Cussane caminhava através das bétulas, seguindo o curso de um córrego agradável que se esparramava entre um amontoado de seixos de granito. Estava começando a ficar cansado agora, apesar do fato de que a caminhada era colina abaixo.

O córrego desapareceu além da borda de um rochedo, cascateando para dentro de um charco profundo, um movimento imutável ao longo do tempo. Ele escorregou pelas bétulas no lusco-fusco, mais rápido do que pretendia, sujando-se todo, ainda agarrado à sacola.

Houve um ofegar de surpresa, e Cussane, apoiado num joelho, tentando ficar em pé, viu duas crianças agachadas na beira do charco. A garota, olhando mais atentamente, era mais velha do que pensara, talvez dezesseis; usava botas de borracha até os joelhos, jeans e um velho casaco de pescador, que era muito grande para ela. Tinha uma fisionomia penetrante, grandes olhos escuros e uma profusão de cabelos pretos que escorriam por entre a larga boina escocesa.

O garoto era mais novo, não mais que dez. Vestia um suéter esfarrapado, calça curta de tweed e tênis de lona que já tinham visto melhores dias. Ele estava em pleno ato de retirar uma fisga da água, com um salmão espetado nela.

— De onde eu venho isso não seria considerado muito esportivo — sorriu Cussane.

— Corra, Morag! — gritou o garoto e tentou estocar Cussane com a fisga, o salmão ainda se agitando na ponta.

Uma parte da margem cedeu sob seu pé, e ele caiu de costas dentro do charco. Voltou à superfície, ainda segurando a fisga, mas num instante a rápida correnteza, engrossada pela chuva forte, carregou-o com força.

— Donald! — gritou a garota e correu pela margem. Cussane colocou a mão em seu ombro e puxou-a para trás exatamente na hora em que outra parte da borda cedeu.

— Não seja doida. Vai se dar mal, do mesmo jeito.

Ela fez força para se livrar, e ele jogou a sacola no chão, tirou a garota do caminho e correu pela margem, arremetendo através das bétulas. Naquele ponto, a água escoava com incrível força através de uma fenda nas rochas, levando o garoto.

Cussane entrou na água, ciente da presença da garota atrás dele. Livrou-se da capa. Superou as rochas, tentando chegar até a fenda antes do garoto, fazendo força para agarrar uma ponta da fisga estendida, que o menino ainda segurava, agora sem o salmão.

Tentou. Tinha consciência da enorme força da corrente. Aí, mergulhou de cabeça, a única alternativa diante das circunstâncias. Voltou à tona mais abaixo, o garoto a pouco mais de um metro, e tão longe, tentando segurá-lo pelo suéter. Instantes depois, a correnteza carregou os dois até uma tora de madeira. Enquanto a garota vinha correndo pela margem, o menino estava fora da água, chacoalhando como um cachorrinho terrier, tentando correr, com uma certa dificuldade ao encontro dela.

Um repentino pé de vento jogou o chapéu preto de Cussane dentro d'água, que saiu flutuando. Ele o pegou, examinou-o e riu.

— Agora, com certeza, ele nunca mais vai ser o mesmo — disse e jogou o chapéu de novo no charco.

Virou-se para chegar ao topo da margem e se surpreendeu olhando para a boca de uma espingarda de cano serrado, empunhada por um velho de seus setenta anos, parado na orla das bétulas. A garota, Morag, e o jovem Donald estavam ao lado dele. O velho vestia uma roupa de tweed gasta, na cabeça uma boina igual à da garota e precisava urgentemente fazer a barba.

— Quem é ele, vovô? — perguntou a garota. — Não é um bailia.1

— Com um colarinho desses, não parece ser. — A fala do velho era marcada pela pronúncia característica dos escoceses das terras altas. — É homem do clero?

— Meu nome é Fallon — disse Cussane. — Padre Michael Fallon. — Ele lembrou-se do nome de uma cidadezinha ali perto, quando examinava o mapa da região. — Estava indo para Whitechapel, perdi o ônibus e achei que poderia cortar caminho pela colina.

A garota fora pegar a capa de chuva de Cussane. Quando voltou, o velho a segurou.

— Agora vá lá pegar a sacola do cavalheiro, Donald.

Então, ele deve ter visto tudo desde o começo. O garoto obedeceu às pressas, e o velho sopesou a capa. Enfiou a mão no bolso e tirou a Stetchkin.

— Olhe só para isto, Morag! Não é um bailia, pode crer, e nem um maldito padre forasteiro.

— Ele salvou Donald, vovô. — A garota puxou a manga do paletó do velho.

Ele sorriu brandamente para ela. — É, salvou. Volte para o acampamento, menina. Diga que temos companhia e veja se a chaleira está no fogo.

Ele colocou a Stetchkin de volta no bolso da capa e devolveu-a a Cussane. A garota fez meia-volta e partiu como uma flecha através das árvores, e o menino voltou com a sacola.

— Meu nome é Hamish Finlay e estou em dívida com você. — Ele afagou os cabelos do garoto. — Você é bem-vindo para compartilhar o que temos. O que mais um homem pode dizer?

Eles foram subindo por entre as árvores e entraram em terreno cultivado.

— Este é um país estranho — disse Cussane.

O velho pegou um cachimbo e encheu-o de fumo numa algibeira surrada, a espingarda presa debaixo do braço.

— Sim, isto aqui é Galloway. Um homem pode se perder dos outros homens nessas bandas, se é que me entende.

— Ah, entendo — disse Cussane. — Às vezes todos nós precisamos disso.

Houve um grito de medo logo mais à frente, a voz da garota chegou alta e clara até eles. A arma de Finlay estava em riste num segundo, e quando avançaram, viram a garota se debatendo nos braços de um homem alto e pesadão. Como Finlay, ele carregava uma espingarda e usava uma velha roupa de tweed remendada. Seu rosto era inegavelmente brutal, a barba por fazer, o cabelo louro revolto abaixo do boné. Ele estava encarando firme a garota, como se tivesse prazer em provocar-lhe medo, um meio sorriso estampado na boca. Cussane foi invadido por uma raiva plena, mas foi Finlay quem tomou conta da situação.

— Largue-a, Murray!

O homem fez uma carranca, vacilante, então empurrou-a de lado com um sorriso forçado.

— Apenas um pouquinho de esporte. — A garota saiu correndo. — O que é que há?

— Murray, você é filho do meu falecido irmão, e minha responsabilidade, mas quantas vezes eu já lhe disse que você fede que nem carne podre?

A espingarda apertada nas mãos de Murray moveu-se levemente. Havia um ódio intenso em seus olhos. Cussane deslizou a mão para dentro do bolso da capa e achou a Stetchkin.

Calmamente, quase desdenhosamente, o velho acendeu o cachimbo, e alguma coisa passou pela cabeça de Murray. Ele girou nos calcanhares e foi embora.

— Meu próprio sobrinho. — Finlay balançou a cabeça. — É como se diz: “Escolhemos os nossos amigos, mas não nossos parentes.”

— É verdade — disse Cussane, enquanto recomeçavam a caminhada.

— Sim, e você pode largar a coronha dessa pistola. Não será mais necessário agora, padre, ou seja lá o que você for.


O acampamento no vale era o tipo do lugar pobre. As três carroças eram velhas, com toldos de lona remendados, e o único veículo à vista era um jipe da época da Segunda Guerra Mundial, pintado de verde. Uma atmosfera depressiva de pobreza atingia tudo à volta, das roupas surradas das três mulheres que cozinhavam ao ar livre aos pés descalços das crianças que brincavam de pique, em meio a poucos cavalos que pastavam ao lado do riacho.

Cussane dormiu bem, profundamente, um sono sem sonhos, totalmente revigorante, e acordou com a garota, Morag, sentada no beliche oposto, observando-o:

— Olá! — sorriu Cussane.

— Engraçado — disse ela. — Num minuto, está dormindo. No seguinte, seus olhos estão abertos e completamente despertos. Como aprendeu a fazer isso?

— É o hábito de uma vida inteira. — Ele relanceou os olhos para o relógio. — São só seis e meia.

— Levantamos cedo. — Ela apontou para fora da carroça.

Ele pôde ouvir vozes e sentir o cheiro do bacon frito.

— Sequei suas roupas — disse ela. — Gostaria de um pouco de chá?

Havia uma ânsia nela como se quisesse desesperadamente pedir ajuda, algo infinitamente comovente. Ele tentou inclinar um pouco mais a boina da garota.

— Gosto dela.

— Minha mãe tricotou para mim. — Ela tirou a boina e ficou olhando, o rosto triste.

— Que bom! Ela está aqui?

— Não. — Morag colocou de novo a boina escocesa na cabeça. — Ela foi embora para a Austrália com um homem chamado McTavish no ano passado.

— E seu pai?

— Ele a deixou quando eu era bebê — ela encolheu os ombros —, mas eu não me importo.

— Donald é seu irmão?

— Não, Murray, o pai dele, é meu primo. Você já o viu.

— Ah, sim. Acho que você não gosta dele, não é?

Ela teve um calafrio. — Ele faz com que eu me sinta estranha.

Cussane pôde sentir a raiva voltando, mas controlou-a. — Aquele chá seria bem-vindo, se eu puder me vestir.

Sua réplica, cínica e adulta demais para a idade, surpreendeu-o completamente.

— Com medo de que eu possa corrompê-lo, padre? — Ela esboçou um sorriso. — Vou buscar seu chá — e saiu depressa.

Sua roupa fora escovada e seca com perfeição. Ele se vestiu rapidamente, deixando de lado as vestes e o colarinho de padre. Em vez disso, meteu-se dentro de um grosso suéter preto de gola rulê. Colocou a capa porque ainda estava chovendo e saiu. Murray Finlay estava encostado na carroça, fumando um cachimbo de barro, com Donald agachado perto.

— Bom dia! — disse Cussane, mas Murray só conseguiu emitir um grunhido.

Morag trouxe chá para Cussane numa caneca esmaltada lascada, e Murray falou alto:

— E para mim, não tem?

Ela o ignorou, e Cussane disse: — Onde está seu avô?

— Pescando no lago. Vou mostrar onde é. Traga seu chá.

Havia nela algo de muito atraente, um ar de garota enjeitada, um tanto acentuado pela boina. Era como se estivesse mostrando a língua para o mundo inteiro, apesar das roupas gastas. Não era agradável pensar nessa garota massacrada pelo contato com gente como Murray e pela miséria dos anos vindouros.

Subiram andando até um pequeno lago, um lugar agradável, onde as urzes se enraizavam na beira da água. O velho Hamish Finlay estava tinha água pelo joelho, a vara na mão, arremessando a linha com extrema habilidade, seguidamente. Um serpenteio agitou a água, pequenas barbatanas negras apareceram, e de repente uma truta veio do fundo, além da orla arenosa do lago, saltou no ar e desapareceu.

O velho olhou de relance para Cussane e riu, como se cacarejasse.

— Viu só aquilo? Você já percebeu que muitas vezes as coisas boas da vida tendem a aparecer inesperadamente nos lugares errados?

— Frequentemente.

O velho deu a vara a Morag. — Você vai achar três iguais àquela, bem gordas, dentro do samburá. Vá aprontar o desjejum.

Ela retornou ao acampamento, e Cussane ofereceu um cigarro ao velho.

— Uma ótima garota.

— É, pode-se dizer que sim.

Cussane acendeu o cigarro do velho. — Estranha essa vida que vocês levam. E nem são ciganos, não é?

— Gente de estrada. Ambulantes. As pessoas nos chamam de muitos nomes, quase todos não muito gentis. Somos os últimos remanescentes de um clã falido de Culloden. É verdade que tivemos uma ligação com outro pessoal da estrada uma vez. A mãe de Morag era uma cigana inglesa.

— Nenhum lugar fixo? — disse Cussane.

— Nenhum. Ninguém nos quer por perto muito tempo. Algum tira de aldeia lá de Whitechapel vai subir aqui, no mais tardar amanhã. Três dias. É tudo que permitem e depois nos mandam embora. Mas e você?

— Vou pegar meu rumo agora de manhã mesmo, tão logo coma alguma coisa.

O velho aquiesceu. — Não vou duvidar daquele colarinho que você usava ontem à noite. Seus negócios só dizem respeito a você mesmo. Há alguma coisa que eu possa fazer?

— É melhor deixar como está — disse Cussane.

O velho deu um suspiro profundo, e em algum lugar Morag gritou.


Cussane veio correndo entre as árvores e encontrou-os numa clareira em meio às bétulas.

A garota estava de costas, Murray agachado sobre ela, prendendo-a, e havia somente lascívia em sua expressão. Ele apertou um dos seios de Morag, e ela gritou novamente de repugnância. Aí Cussane chegou. Sua mão ficou cheia dos longos cabelos louros de Murray, e ele os torceu de maneira tão cruel que o grandalhão começou a gritar.

Murray ficou em pé, e Cussane girou-o preso pelos cabelos, manteve o homem seguro por um momento e então jogou-o longe.

— Não toque nela de novo!

O velho Hamish Finlay chegou naquele instante, a espingarda apontada para o sobrinho.

— Eu avisei, Murray.

Mas Murray ignorou Finlay e avançou sobre Cussane, com fúria nos olhos.

— Vou amassar você, seu filho da puta.

Ele agiu rápido, os braços estendidos, com o único objetivo de destruir. Cussane girou de lado, enganando Murray, e desferiu um golpe de esquerda em seus rins. Murray ficou sobre um dos joelhos, parado um momento, então levantou-se e desferiu o mais selvagem dos socos, sem acertar.

A esquerda de Cussane foi se enterrar abaixo das costelas de Murray, seguida de um gancho de direita no rosto, dilacerando a carne.

— Murray, o meu Deus é um Deus da ira, quando a ocasião pede. Agora ouça. — Ele esmurrou o grandalhão no rosto outra vez. — Toque nessa garota de novo e mato você, entendeu?

Cussane acertou um chute na rótula de Murray. O grandalhão caiu de joelhos e ficou lá.

O velho Finlay se aproximou dele.

— Estou avisando pela última vez, seu bastardo. — Ele cutucou Murray com a espingarda. — Vai sair do acampamento hoje e se virar sozinho.

Murray fez um esforço doloroso para ficar em pé, deu meia-volta e foi capengando para o acampamento.

Finlay disse: — Por Deus, homem, você não deixa as coisas pela metade!

— Nunca pensei sobre isso — disse Cussane.

Morag tinha apanhado a vara e o samburá com os peixes. Ficou parada olhando para Cussane, uma espécie de admiração nos olhos. Então, voltou a si e disse em voz baixa, antes de seguir para o acampamento: — Vou cuidar do café.

Houve um som. Era o motor do jipe pegando. O veículo se afastou do acampamento.

— Ele não perdeu muito tempo — disse Cussane.

— Que bom que nos livramos dele — falou o velho. — Agora vamos comer.


Murray Finlay estacionou o jipe em frente à lojinha que vendia jornais e revistas em Whitechapel e ficou lá sentado, pensando. Donald, ao lado dele, estava trêmulo.

Odiava o pai e tinha medo dele. Não queria ter vindo, mas Murray não lhe dera nenhuma opção.

— Fique aqui — disse Murray. — Preciso comprar fumo.

Caminhou na direção da porta da lojinha, que teimava em ficar fechada, enquanto ele fazia força para abri-la.

Desistiu, mas estacou quando ia fazendo meia-volta. Os jornais da manhã estavam amontoados perto da porta, e sua atenção foi despertada por uma fotografia estampada na primeira página de um deles. Pegou uma faca no bolso, cortou o barbante que amarrava uma das pilhas e pegou o exemplar de cima.

— Olhem só! Peguei você agora, filho da puta. — Ele girou nos calcanhares, precipitou-se pela rua até a pequena delegacia e abriu o portão do jardim da casa.

Donald, intrigado, saltou do jipe e pegou outro jornal. Viu-se diante de uma foto razoavelmente boa de Cussane. Ficou parado, olhando fixamente para a imagem do homem que lhe salvara a vida. Então, fez meia-volta e saiu correndo pela estrada o mais rápido que podia.


Morag estava empilhando os pratos de estanho depois do desjejum, quando Donald chegou numa carreira desabalada.

— O que foi? — gritou, uma vez que a aflição dele era óbvia.

— Onde está o padre?

— Passeando lá no bosque com vovô. O que há?

O som do jipe se aproximando era claro. Donald mostrou o jornal a ela, agitado.

— Veja! É ele!

Inegavelmente era. A descrição, como Ferguson instruíra, apresentava Cussane como um padre e mais que um membro do IRA: um homem extremamente perigoso.

O jipe chegou roncando ao acampamento, e Murray saltou, segurando sua espingarda, acompanhado pelo policial da vila. Estava de uniforme, só que não tivera tempo para fazer a barba. Era óbvio.

— Onde está ele? — Murray perguntou, agarrando o garoto pelos cabelos e sacudindo-o. — Diga logo, seu merdinha!

Donald gritou de dor. — Está no bosque.

Murray empurrou o garoto e se dirigiu ao policial.

— Certo, vamos pegá-lo — e fez meia-volta, precipitando-se na direção da mata.

Morag não pensou. Agiu simplesmente. Meteu-se rapidamente na carroça, encontrou a sacola de Cussane e jogou-a no jipe. Então pulou atrás do volante e deu partida.

Ela dirigia frequentemente, sabia o que estava fazendo, e partiu com o jipe, as rodas derrapando no terreno acidentado. Desviou de Murray e do policial. Murray correu atrás do jipe, e Morag percebeu o ódio estampado no rosto dele, a coronha da arma pronta para o golpe. Ela deu uma guinada na direção, resvalando nele, e dirigiu o jipe direto para o bosque de bétulas. Cussane e Finlay, alertados por toda a confusão, estavam correndo na direção do acampamento, quando o jipe veio raspando nas árvores e parou.

— O que foi, menina? — gritou Finlay.

— Murray chamou a polícia. Entre! Entre! — disse ela a Cussane.

Ele não discutiu, simplesmente pulou para dentro do jipe ao lado dela. Morag manobrou num círculo, batendo nas árvores. Murray vinha hesitante na direção deles, o policial atrás, e aí os dois saltaram rapidamente de lado. O jipe se libertou das árvores, sacolejou pelo terreno irregular perto do acampamento e ganhou a estrada.

Ela apertou os freios e fez uma breve parada. — Whitechapel não dá. Eles não vão bloquear a estrada?

— Vão bloquear todas as malditas estradas do mundo — disse ele.

— Então para onde nós vamos?

— Nós? — disse Cussane.

— Não discuta, Sr. Cussane. Se eu ficar, vão me prender por ajudá-lo.

Ela passou a ele o jornal que Donald lhe dera. Ele olhou para sua foto e leu rapidamente. Sorriu de uma maneira estranha. Alguém caíra sobre ele num maldito piscar de olhos, mais rapidamente do que jamais teria imaginado.

— Para onde então? — perguntou ela, impaciente.

Aí ele tomou sua decisão. — Vire à esquerda e continue subindo. Tentaremos alcançar uma fazenda que fica perto de uma vila chamada Larwick, do outro lado daquelas colinas. Dizem que estas latas velhas vão a qualquer lugar, portanto ninguém precisa de estradas. Você pode dar um jeito?

— Fique apenas observando — disse ela e pisou no acelerador.

 

________________

1 Uma espécie de administrador de propriedades rurais na Escócia. (N. do T.)


13

 

 

O vale estreito e profundo era essencialmente uma típica floresta escocesa. Eles saíram da estrada e seguiram por uma trilha através de pinheirais, subindo cada vez mais, ao longo de um córrego engrossado pelas fortes chuvas. Finalmente, alcançaram o topo do vale, fora da trilha de árvores, e chegaram a um pequeno platô.

Cussane bateu no braço de Morag. — Isto é o bastante — falou alto por causa do barulho do motor.

Ela freou e desligou o jipe. Colinas onduladas se estendiam dos dois lados, encobertas pela neblina e pela chuva forte. Ele pegou o mapa da região e avançou para estudar o terreno. O mapa era de tamanha precisão que somente um órgão militar do governo poderia tê-lo elaborado. Localizou Larwick sem dificuldade. Glendhu, era onde Danny Malone tinha dito que ficava a fazenda dos irmãos Mungo, a alguns quilômetros fora da vila. O Vale Negro, em gaélico, e havia apenas uma fazenda assinalada no mapa. Tinha que ser o lugar. Ele gastou mais alguns minutos comparando a conformação do terreno abaixo com o mapa e então retornou ao jipe.

Morag tirou os olhos do jornal.

— É verdade essa coisa toda sobre você e o IRA?

Ele saiu da chuva, entrando no jipe.

— O que você acha?

— Aqui diz que costuma se passar por padre. Quer dizer que não é padre?

Aquela era a grande questão, e ele sorriu. — Você sabe o que dizem. E se está aí no jornal, deve ser verdade. Por quê? Preocupa você estar em companhia de um personagem desesperado?

Ela balançou a cabeça. — Você salvou Donald lá no riacho e não precisava ter feito aquilo. Você me ajudou, livrou-me de Murray. — Ela fechou o jornal e jogou no banco de trás do jipe, um ligeiro traço de confusão no rosto. — Existe o homem do jornal e existe você. Parecem duas pessoas diferentes.

— No fundo, a maioria de nós reúne três pessoas — disse ele. — A que eu acho que sou, a que você pensa que sou...

— E a que realmente é — acrescentou ela, cortando.

— Verdade, exceto que qualquer pessoa só pode sobreviver através de uma adaptação contínua. Elas se transformam em muitas pessoas, mas para que funcione elas devem viver realmente uma parte do todo.

— Como um ator? — disse ela.

— Exatamente. Com a diferença de que, como qualquer bom ator, devem acreditar no papel que estão representando naquele momento específico.

Ela estava recostada no banco do jipe, meio virada para ele, braços cruzados, ouvindo atentamente, e aquele estado de espírito atingiu Cussane. Apesar do passado dela e da ausência de qualquer educação formal na vida, ela era evidentemente muito inteligente.

— Entendo — disse ela. — Então, quando se passa por padre, realmente se transforma num padre.

— Mais ou menos isso.

A integridade de caráter da garota era perturbadora. Ficaram sentados em silêncio por alguns instantes, antes de ele dizer suavemente: — Você me salvou lá atrás. Se não fosse por você, eu estaria de algemas novamente.

— Novamente? — disse ela.

— Fui preso por um policial ontem. Estavam me levando de trem para Glasgow, mas consegui pular fora. De lá fui andando pelas colinas e encontrei você.

— Sorte de Donald — disse ela. — Sorte minha isso ter acontecido.

— Você quer dizer... Murray? Há muito tempo que ele tem sido um problema?

— Desde que eu tinha treze anos — disse ela com calma. — Não era tão ruim quando minha mãe ainda estava conosco, mas quando ela foi embora... — Morag encolheu os ombros. — Ele nunca tinha implicado comigo, mas ultimamente as coisas pioraram. Eu estava pensando em deixar o acampamento.

— Fugir? Mas para onde?

— Para ficar com minha avó. A mãe da minha mãe. Ela é uma cigana de verdade. Seu nome é Brana, Brana Smith, mas ela arranjou um apelido. Gypsy Rose.

— Parece que já ouvi um nome parecido — disse Cussane, sorrindo.

— Ela tem um dom natural — disse Morag, séria. — Uma outra visão de todas as coisas. Pode ver na palma da mão, bola de cristal, cartas de tarô. Ela tem uma casa em Wapping, em Londres, perto do rio, quando não está trabalhando nas feiras em shows itinerantes.

— E você gostaria de ficar com ela?

— Vovó sempre disse que eu poderia, quando ficasse mais velha. — Ela ficou mais ereta no assento. — Pretende ir para Londres?

— Talvez — disse ele devagar.

— Então podemos ir juntos. — Ela disse aquilo calmamente, sem a menor emoção, como se fosse a coisa mais natural do mundo.

— Não — disse ele num tom neutro. — Acho que não. Por um lado, você só ia arranjar mais problemas. Por outro, tenho que viajar sozinho. Sem excesso de bagagem. Quando tenho que fugir, tenho que fugir rápido. Sem tempo para pensar em ninguém além de mim.

Havia algo nos olhos da garota, uma espécie de mágoa, mas ela não demonstrou nenhuma emoção. Simplesmente saiu do jipe e ficou parada ao lado da trilha, as mãos nos bolsos.

— Eu compreendo. Vá em frente. Vou voltar para o vale.

Cussane teve uma visão instantânea do acampamento miserável, imaginou a lenta e inevitável brutalização dos anos. E ela era valiosa demais para passar por tudo aquilo. Valiosa demais.

— Não seja estúpida — disse ele. — Entre, vamos!

— Para quê?

— Preciso de você para dirigir o jipe, enquanto estudo o mapa, não é? Vamos vale abaixo, além daquela colina lá no meio. Existe uma fazenda num lugar chamado Glendhu, fora de Larwick.

Ela pulou atrás do volante rapidamente, sorrindo.

— Tem amigos lá?

— Não exatamente. — Ele alcançou a sacola, abriu-a, deslocou a tampa do fundo falso e tirou um maço de dinheiro. — Esse é o tipo de coisa que eles gostam. A maioria das pessoas gosta, afinal. — Ele tirou duas notas do bolso, dobrou-as, e elas foram parar no bolso de cima do velho casaco de marinheiro de Morag. — Isso vai manter você andando até que encontre sua avó.

Os olhos dela se arregalaram, atônitos. — Não posso aceitar.

— Ah, vai aceitar, sim. Agora ponha essa coisa para funcionar. Precisamos chegar lá o mais cedo possível.

Ela engatou uma marcha reduzida e começou a descer a trilha, cuidadosamente.

— E o que vai acontecer quando chegarmos lá? Comigo, quero dizer.

— Veremos. Talvez possa pegar um trem. Você estará bem sozinha. Sou o único que eles querem realmente, portanto o perigo de fato consiste em estar comigo.

Ela não respondeu, e ele examinou o mapa em silêncio. Finalmente, ela disse:

— Aquela coisa entre mim e Murray. Ficou revoltado? Quero dizer, a perversidade...

— Perversidade? — riu baixo. — Garota querida, você não tem nenhuma concepção da verdadeira perversidade, o mal de fato, embora Murray seja um animal que se aproxima muito disso. Um padre ouve mais pecados numa semana do que os pecados que a maioria das pessoas comete na vida inteira.

Ela olhou para ele de soslaio, brevemente. — Mas eu pensei que tinha dito que só se passava por padre.

— Eu disse? — Cussane acendeu um cigarro, recostou-se no assento e fechou os olhos.


Quando o carro da polícia saía do estacionamento do aeroporto de Glasgow, o inspetor-chefe Trent disse ao motorista: — Você sabe para onde vamos. Temos trinta e cinco minutos. Portanto, pise fundo.

Devlin e Fox estavam sentados no banco de trás, e Trent virou-se para eles.

— Fizeram um bom voo?

— Foi rápido, isso é o que importa — disse Fox. — Qual é a situação no momento?

— Cussane apareceu de novo num acampamento cigano em Galloway Hills. Fiquei sabendo pelo rádio do carro um pouco antes de vocês chegarem.

— E fugiu de novo, imagino — disse Devlin.

— Para ser sincero, fugiu.

— Que ótimo!

— De qualquer forma, vocês disseram que querem ir para a área de Dunhill. Agora estamos indo direto para a estação central de Glasgow. A estrada principal ainda continua inundada, mas já providenciei para colocá-los a bordo do expresso Glasgow-Londres. Vão deixá-los em Dunhill. Temos também o idiota que pegou Cussane e deixou que fugisse da primeira vez, o sargento Brodie. Pelo menos ele conhece a área.

— Ótimo — disse Devlin. — Ao que parece, isso resolve tudo. Você está armado, não está?

— Sim. Posso saber para onde estamos indo?

— Uma vila chamada Larwick, não muito longe de Dunhill — disse Fox. — Há uma fazenda lá perto que, de acordo com nossas informações, funciona como esconderijo para criminosos foragidos. Achamos que nosso homem pode estar lá.

— Mas nesse caso vocês devem deixar que eu peça reforços.

— Não — disse Devlin ao inspetor. — Achamos que a tal fazenda fica numa área isolada. O movimento de pessoas, muitas ou poucas, e mesmo sem uniforme, certamente seria notado imediatamente. Se nosso homem estiver lá, isso faria com que fugisse de novo.

— Então já o pegamos — disse Trent.

Devlin relanceou os olhos para Fox, que fez um movimento cúmplice, e então o irlandês encarou Trent de novo.

— Antes de ontem à noite, três pistoleiros do IRA Provisório tentaram mandá-lo para o fundo do mar. Ele acabou com os três.

— Meu Deus!

— Exatamente. Ele enganou seus colegas também, antes que conseguissem chegar perto dele. É melhor tentar do nosso jeito, inspetor-chefe — disse Devlin. — Pode crer.


Do alto da colina sobre Glendhu, Cussane e Morag olharam para baixo, agachados em meio aos fetos molhados pela chuva. A trilha acabara, mas de qualquer forma, parecera a Cussane uma boa política deixar o jipe lá em cima, fora de visão. Não havia nada melhor do que um ás na manga, se alguma coisa desandasse. Era melhor que os Mungo não soubessem do jipe.

— Não é lá grande coisa — disse Morag.

A afirmação era um elogio, porque a fazenda tinha um aspecto deplorável. Um celeiro sem teto, telhas faltando na casa principal, crateras inundadas no terreno, um caminhão sem rodas e um trator caindo aos pedaços, vermelho de ferrugem.

A garota teve um calafrio súbito. — Tive um mau pressentimento — respirou fundo. — Não gosto desse lugar.

Ele ficou em pé, pegou a sacola e tirou a Stetchkin do bolso.

— Deixe comigo. Não precisa se preocupar. Confie em mim.

— Sim — disse ela, e havia uma espécie de mormaço em sua voz. — Eu confio.

Ela segurou no braço dele, e juntos começaram a descer na direção da fazenda através dos grandes fetos.


Hector Mungo tinha saído cedo para Larwick naquela manhã, principalmente porque precisava de cigarros. O que queria dizer que eles precisavam de tudo. Comprou bacon, ovos, comida enlatada, um pacote de cigarros e uma garrafa de uísque, e disse um “põe na conta” para a velha que cuidava do armazém. Ela obedeceu no ato, porque tinha medo de Hector e de seu irmão. Qualquer um tinha medo deles. Na saída, Hector pegou maquinalmente um jornal, entrou no furgão e partiu.

Ele era um homem mal-encarado, de sessenta e dois anos, um tipo rabugento e lerdo, dentro de um velho casaco de aviador e boné de tweed, com uma barba grisalha e curta cobrindo o queixo. Entrou com o furgão no pátio da fazenda, estacionou e saiu com uma caixa de papelão cheia de compras. Correu na chuva até a porta, que abriu com um chute.

A cozinha onde entrou era indescritivelmente imunda, a velha pia de pedra atravancada por uma pilha de utensílios sujos. Seu irmão, Angus, estava sentado à mesa, a cabeça entre as mãos, olhando para o nada. Era mais novo que Hector, quarenta e cinco anos, cabelos raspados à máquina e um rosto grosseiro e brutal que se tornava ainda mais feio por causa da cicatriz que dividia o olho direito, deixando-o opaco.

— Achei que não voltaria nunca mais — ele fuçou na caixa que o irmão trouxera e achou o uísque, abrindo a garrafa e tomando um longo trago no gargalo. Então encontrou os cigarros.

— Seu bastardo nojento — disse Hector. — Você podia ter acendido o fogo.

Angus o ignorou. Simplesmente deu um novo trago no gargalo, acendeu um cigarro e abriu o jornal. Hector foi até a pia e achou a caixa de fósforos para acender o fogão a gás, ao lado da pia. Parou, olhando para o pátio lá fora, quando Cussane e Morag apareceram e se aproximaram da casa.

— Temos companhia — disse ele.

Angus foi se reunir a ele. Ficou duro como um cadáver.

— Espere um pouco. — Ele assentou o jornal na tábua de secar louça. — Aquele sujeito lá é danado de parecido com esse que está aqui na primeira página, bem na minha frente.

Hector passou os olhos rapidamente pelo jornal.

— Jesus, Angus, temos o cara aqui. Problema de verdade.

— Apenas mais um irlandês correndo dos tiras — disse Angus com desprezo. — O mundo está cheio de quartos no fundo do poço para ele, exatamente como os outros.

— É verdade — anuiu Hector, solene. — Mas não para a garota. — Angus limpou a boca com as costas da mão. — Gosto do jeito dela. Ela é minha, seu velho bastardo. Lembre-se disso. Agora deixe-os entrar — acrescentou, quando as batidas na porta foram ouvidas.


— Então você conhece os irmãos Mungo, sargento? — perguntou Fox a Brodie.

Eles estavam no vagão-bagageiro no fim do expresso Glasgow-Londres, os quatro: Devlin, Fox, Trent e o enorme sargento.

— São uns animais — disse Brodie. — Qualquer um aqui no distrito tem pavor deles. Não sei como eles fazem para viver lá em cima nas colinas. Os dois já estiveram na cadeia. Hector por operar uma destilaria ilegal de uísque. Ficou atrás das grades três vezes por causa disso. Angus tinha cometido uma série de pequenos delitos, então matou um homem a socos durante uma briga. Foi sentenciado a cinco anos, mas deixaram que saísse dois anos antes. Da segunda vez, ele foi acusado de estupro, mas a mulher retirou a acusação. A hipótese de que dirigem um esconderijo não me surpreende, mas não tenho conhecimento disso, e certamente nunca foi incluído no prontuário deles.

— Qual é a menor distância que podemos chegar da fazenda, sem que nos percebam? — perguntou Trent.

— Uns quatrocentos metros. A estrada que sobe para Glendhu só vai até a fazenda.

— Algum outro caminho para sair de lá? — perguntou Fox.

— Acho que a pé, subindo pelo vale, depois da colina.

— Temos que admitir um ponto importante — disse Devlin. — Se Cussane pretendia ficar lá com os Mungo, seus planos foram muito obstruídos. Foi apanhado pelo sargento aqui, pulou do trem, o acampamento cigano, isso tudo não estava na agenda. Os planos dele podem ter mudado.

— Verdade — disse Fox. — E tem a garota também.

— Eles ainda podem estar lá nas colinas — disse Trent. — Por outro lado, eles têm que ter passado por Larwick, se estão no jipe. Numa vila daquele tamanho, alguém deve tê-los visto.

— Vamos torcer — disse Devlin, e o expresso começou a diminuir a marcha, enquanto chegavam a Dunhill.


— Danny Malone. — Hector Mungo colocou chá forte em duas canecas encardidas e acrescentou leite. — Faz tanto tempo que Danny esteve aqui, não é, Angus?

— É isso aí. — Angus estava sentado com um copo na mão, ignorando os dois, e olhava fixamente para Morag, que fez o melhor de si para evitar aquela provocação.

Cussane estava quase convencido de que cometera um grande erro. Os serviços que os irmãos Mungo ofereceram a pessoas como Danny anos atrás deviam ter sido bem diferentes dos que estavam disponíveis agora. Ignorou o chá e ficou sentado lá, com a mão na coronha da Stetchkin. Não tinha certeza sobre seu próximo movimento. O roteiro parecia estar sendo escrito por si mesmo naquele momento.

— Para falar a verdade, estávamos lendo sobre você um pouco antes de chegar. — Hector Mungo passou-lhe o jornal. — Nenhuma menção à garota, pode ver.

Cussane ignorou o jornal. — E nem há motivo para isso.

— Então, o que podemos fazer por você? Quer ficar entocado aqui em cima por algum tempo?

— Só por hoje — disse Cussane. — À noite, quando já estiver escuro, um de vocês pode nos levar para o sul naquela caminhonete. Encha-a de material da fazenda e nos esconda na traseira.

Hector aquiesceu, soturnamente.

— E por que não? Para onde? Dumfries?

— Qual é a distância até Carlisle, onde começa a rodovia?

— Uns cem quilômetros. Vai custar dinheiro.

— Quanto?

Hector relanceou os olhos para Angus e lambeu os lábios secos, nervosamente.

— Mil libras. Você está quente, meu amigo. Pegando fogo.

Cussane abriu a bolsa, tirou o bolo de notas e puxou fora cinco delas. Colocou-as sobre a mesa.

— Quinhentas libras.

— Bem, não sei... — começou Hector.

— Não seja estúpido! — disse Angus. — Aí tem mais dinheiro de uma vez só do que você já viu nos últimos seis meses. — Ele virou-se para Cussane. — Eu mesmo vou dirigindo até Carlisle.

— Combinado, então. — Cussane ficou em pé. — Suponho que tenham um quarto que possamos usar.

— Sem problemas. — Hector era todo gentileza. — E um para abrigar a senhorita também.

— Um só está ótimo — disse Cussane, enquanto seguiram Hector pelo corredor de lajes até os degraus podres.

Ele abriu a primeira porta do andar de cima e indicou um quarto bem amplo. Havia um cheiro desagradável de mofo, e o papel de parede florido estava manchado pela umidade. A cama de casal era de metal, com um colchão que já vira dias melhores e cobertores de campanha empilhados sobre ela.

— Existe um banheiro na próxima porta — disse Hector. — Bem, vou deixá-los à vontade.

Ele saiu, fechando a porta. Ouviram quando descia a escada. Havia uma velha tranca enferrujada na porta. Cussane passou-a. Existia ainda uma outra porta do lado oposto do quarto, com a chave na fechadura. Ele abriu-a e olhou para fora. Dava numa escada de pedra para o pátio, pegada à casa. Fechou a porta e trancou de novo.

Aí virou-se para a garota.

— Tudo bem?

— O caolho. — Ela encolheu os ombros. — É pior do que Murray. — Hesitou. — Posso chamar você de Harry?

— Por que não?

Ele desdobrou rapidamente os cobertores e estendeu-os sobre o colchão.

— O que você vai fazer? — perguntou ela.

— Descansar — disse ele. — Um cochilo. Ninguém pode entrar. Não agora.

— Você acha que eles vão nos levar até Carlisle?

— Não, mas acho que não tentarão nada enquanto não escurecer e estivermos prontos para partir.

— Como pode ter certeza de que vão tentar alguma coisa?

— Pelo tipo de homens que eles são. Agora deite-se e tente dormir um pouco.

Ele foi para a cama sem tirar a capa, com a Stetchkin na mão direita. Ela se deitou do outro lado da cama. Por um instante, permaneceu longe, aí rolou sobre o colchão e se aninhou nele.

— Estou assustada.

— Calma. — Seu braço envolveu-a. — Fique sossegada agora. Estou aqui. Ninguém vai molestar você.

A respiração dele se tornou lenta e profunda. Ficou lá deitado, abraçando a garota, pensando. Agora ela era quase uma responsabilidade, e ele não tinha certeza de quanto tempo mais podia sustentar aquela situação. Por outro lado, devia a ela. Havia uma dívida moral naquilo, seguramente. Olhou para a pureza daquele rosto jovem, ainda não marcado pela vida. Uma coisa boa num mundo mau. Fechou os olhos, pensando naquilo, e finalmente caiu no sono.


— Viu todo aquele dinheiro? — perguntou Hector.

— Vi — disse Angus. — Se vi.

— Ele trancou a porta. Eu ouvi.

— Claro que trancou. Ele não é louco. Não que isso tenha importância. Terá que partir mais cedo ou mais tarde. Aí vamos pegá-lo.

— Ótimo! — disse Hector.

Angus colocou mais uma dose de uísque no copo. — E não esqueça. A garota fica comigo.


Devlin, Fox, Trent e Brodie foram de Dunhill para Larwick numa velha perua Ford que o sargento pediu emprestada numa garagem local. Ele estacionou a perua em frente ao armazém da vila e entrou, enquanto os outros esperavam. Voltou cinco minutos mais tarde e sentou em frente ao volante.

— Hector Mungo esteve aqui cedo, fazendo compras. A mulher lá dentro toma conta do balcão do bar do pub à noite. Ela diz que os dois estão por aí, mas nenhum estranho. Num lugar desses, estranhos dão na vista como um elefante de duas trombas.

Devlin olhou através de uma das janelas traseiras da porta da perua. Havia realmente apenas uma rua, uma fileira de chalés de pedra, um pub, o armazém e as colinas erguendo-se à volta.

— Entendo o que quer dizer.

Brodie ligou o motor e partiu, seguindo por uma estradinha estreita entre muros de pedras cinzentas.

— É a única estrada, e a fazenda fica no fim dela. — Poucos minutos depois, ele disse: — Bem, não podemos ir além daqui sem sermos vistos.

Ele estacionou sob as árvores, e todos desceram.

— Quanto falta? — perguntou Trent.

— Menos de quatrocentos metros. Vou mostrar onde é.

Indicou uma subida através das árvores, ao lado da estradinha, e foi bamboleando pelo mato. Parou, cautelosamente, no topo.

— Aí está.

A fazenda ficava bem na ravina, logo abaixo, a poucas dezenas de metros.

— Que ratoeira! — murmurou Devlin.

— E, parece mesmo — replicou Fox. — Nenhum sinal de vida.

— E o que é mais importante: nenhum sinal do jipe — disse Devlin. — Talvez eu esteja errado, afinal.

Naquele momento, os dois irmãos Mungo saíram pela porta da cozinha e atravessaram o pátio.

— Parece que são eles. — Fox tirou do bolso um pequeno par de binóculos Zeiss e focalizou-os. — Que duplinha sórdida! — acrescentou, enquanto os dois entravam no celeiro.

Instantes depois, Morag Finlay foi avistada do lado mais distante da casa, hesitou, então cruzou o pátio em direção ao celeiro.

— É a garota! — disse Trent, excitado. — Tem que ser. Casaco de pescador, boina. Encaixa exatamente na descrição.

— Jesus, Maria e José — disse Devlin, suavemente. — Eu estava certo. Harry deve estar na casa.

— Como vamos agir? — perguntou Trent.

— Vocês dois têm walkie-talkies? — perguntou Fox.

— Claro.

— Certo, me dê um. Devlin e eu vamos para o lado de trás da fazenda. Com um pouco de sorte, pegamos todos de surpresa. Vocês voltam e esperam na perua. Quando eu der a senha pelo rádio, venham pela estrada como um trem expresso.

— Ótimo.

Trent e Brodie voltaram na direção da estrada. Devlin tirou do bolso uma PPK e puxou o cão. Fox fez o mesmo.

— Apenas lembre-se de uma coisa — sorriu o irlandês. — Harry Cussane é o tipo de homem que não dá a menor chance.

— Não se preocupe — disse Fox, sorrindo maliciosamente. — Não vou me esquecer.

Ele começou a descida através do mato, e Devlin o seguiu.


Morag acordou e ficou olhando absorta para o teto, aí lembrou-se de onde estava, virando-se para olhar Cussane ao lado dela. Ele dormia tranquilamente, a respiração fraca, o rosto em repouso, muito calmo. Ainda segurava a Stetchkin na mão direita. Ela colocou os pés no chão bem devagar, levantou da cama e se espreguiçou.

Foi até a janela e quando olhou para fora, viu Hector e Angus cruzando o pátio na direção do celeiro, do lado oposto. Abriu a porta e ficou parada no alto da escada de pedra. Teve a atenção despertada para uma espécie de motor sendo acionado. Franziu o cenho, desceu rapidamente os degraus e atravessou o pátio.

Na cama, Cussane se mexeu, deu uma espreguiçada e abriu os olhos, desperto como sempre. Percebeu a ausência da garota de imediato, ficou de pé num segundo, então reparou na porta aberta.


O celeiro emanava um cheiro adocicado de cereal, porque os Mungo operavam sua destilaria lá dentro. Hector ligou o velho motor a gasolina e a bomba que fornecia energia auxiliar, e aí verificou o barril.

— Precisamos de mais açúcar — disse ele.

— Vou arranjar — anuiu Angus.

Angus abriu a porta que dava para uma espécie de cabana, junto ao celeiro. Havia todo tipo de ingredientes para aquele trabalho ilegal lá dentro, inclusive várias sacas de açúcar. Ele estava para pegar uma das sacas, quando viu Morag Finlay lá fora, através de uma tábua quebrada. Ela estava com os olhos grudados na janela de onde se podia ver o interior do celeiro. Angus sorriu em êxtase, deixou a saca no chão e saiu sorrateiramente da cabana.

Morag ainda não tinha percebido sua aproximação. A mão tapou-lhe a boca, impedindo-a de gritar, e ela foi erguida do chão por braços fortes e carregada, chutando e se debatendo, para o celeiro.

Hector se virou e deixou o barril de lado.

— O que é isso?

— Um narizinho bisbilhoteiro que precisa aprender boas maneiras — disse Angus.

Ele a colocou no chão, e Morag atacou-o selvagemente. Ele a espancou com as costas das mãos, e de novo, com força suficiente para que caísse desajeitadamente sobre uma pilha de sacas.

Ele ficou parado sobre ela e começou a desafivelar o cinto.

— Modos — disse. — É isso que vou ensinar a você.

— Angus — gritou Cussane da porta. — Você é um filho da puta por natureza ou se esforça para ser um?

Cussane estava lá em pé, as mãos negligentemente nos bolsos da capa, e Angus virou-se para encará-lo. Abaixou-se para pegar uma pá.

— Seu porra, vou quebrar sua cabeça!

— Tem uma coisa que eu aprendi no IRA — disse Cussane. — Uma punição especial para filhos da puta como você.

A Stetchkin saiu do bolso, houve um impacto surdo, e uma bala estraçalhou a rótula direita de Mungo. Ele uivou, caiu de costas sobre o motor a gasolina e rolou pelo chão, apertando o joelho com as duas mãos, o sangue escorrendo pelos dedos. Hector Mungo gritou aterrorizado, girou nos calcanhares e deu uma corrida para a porta lateral do celeiro, os braços levantados num fútil gesto de proteção. E desapareceu.

Cussane ignorou Angus no chão e ergueu Morag. — Você está bem?

Ela se virou para olhar Angus caído, raiva e humilhação estampadas no rosto dele.

— Não vamos ter que agradecer afinal.

Cussane segurou o braço de Morag, e saíram, cruzando o pátio na direção da porta da cozinha.

Quando a garota abriu a porta, Fox gritou:

— Fique parado aí mesmo, Cussane! — e saiu de trás da caminhonete.

Cussane reconheceu a voz instantaneamente, empurrou a garota vacilante porta adentro, virou-se e atirou, tudo numa sequência, como se tivesse sido ensaiada. Fox foi jogado contra a caminhonete, a arma saltando da mão. No mesmo momento, Devlin veio pelo canto da casa e atirou duas vezes. A primeira bala pegou de raspão no antebraço esquerdo, a segunda acertou-o no ombro, fazendo com que rodopiasse. Ele mergulhou pela porta da cozinha, fechou-a com um chute e passou a tranca.

— Você está ferido — gritou Morag.

Cussane agarrou a garota. — Não faz mal. Temos que sair daqui. — Empurrou-a pela escada para o quarto.

— Pegue a sacola — ele apressou-a, cruzou o quarto até a porta aberta e observou lá fora.

A caminhonete, com Fox e Devlin, estava encoberta pela casa. Ele pôs o dedo nos lábios, pedindo silêncio a Morag, e desceu a escada de pedra devagar, seguido pela garota. No fim da escada, indicou o caminho pelo jardim dos fundos, alcançou o muro de onde não podiam ser vistos e começaram a andar pela trilha, através dos fetos, que dava no topo de Glendhu.


Devlin abriu a camisa de Fox e examinou o ferimento um pouco abaixo do lado esquerdo do tórax. Fox respirava com dificuldade, a dor estampada nos olhos.

— Você tinha razão — disse Fox. — Ele é o diabo sobre rodas. Rápido demais.

— Calma — disse Devlin. — Chamei Trent e Brodie.

Devlin já ouvia o Ford se aproximando. Fox disse: — Ele ainda está na casa?

— Duvido.

— Bobeamos, Liam. Vai ser difícil dar o troco. Nós o tínhamos, e ele fugiu.

— Um péssimo hábito, este dele — disse Devlin, e o Ford entrou no pátio da fazenda, freando bruscamente.


Cussane estava sentado no banco do jipe, com os pés no chão. Seu pulso estava enfaixado. Não havia muito sangue no ombro, apenas a feia e enrugada borda da ferida.

Ele sabia que aquilo era um mau sinal, mas não tinha motivo para contar a ela. Morag colocou pó de sulfa no ferimento, cuidadosamente, e ajustou uma bandagem de emergência, seguindo as instruções dele.

— Como você se sente? — perguntou, ansiosamente.

— Estou ótimo — o que era mentira, porque o choque inicial estava passando, e a dor era considerável. Ele encontrou uma das ampolas de morfina. Eram do tipo usado na guerra. Aplicou uma injeção em si mesmo, e a dor começou a ceder rapidamente.

— Tudo bem — disse ele. — Agora me dê uma camisa limpa. Ainda tem uma sobrando.

Ela o ajudou a vestir a camisa e a capa.

— Você está precisando de um médico.

— Ah, claro! — disse ele. — Pode me ajudar, doutor? Tem uma bala no meu ombro. E a primeira coisa que ele faria seria passar a mão no telefone mais próximo.

— O que vamos fazer então? Eles vão realmente começar a caçá-lo. Todas as estradas serão vigiadas.

— Eu sei — disse ele. — Vamos dar uma olhada no mapa. — Depois de um momento, ele disse: — O estuário do Solway está entre nós e a Inglaterra. Apenas uma estrada para Carlisle, via Dumfries e Annan. Não existem muitas estradas para bloquear.

— Então estamos numa armadilha?

— Não necessariamente. Existe a ferrovia. Ainda pode haver alguma chance. Vamos sair daqui e achar aqueles trilhos.


— Que confusão! — disse Ferguson. — Não podia ser pior. Como está Harry Fox?

— Dizem que vai viver. Pelo menos é a opinião do médico daqui. Eles o levaram para o hospital municipal de Dumfries.

— Vou fazer alguns contatos para trazê-lo aqui para Londres. Quero que tenha o melhor. De onde você está ligando?

— Delegacia de polícia de Dumfries. Trent está aqui comigo. Estão colocando todos os homens disponíveis lá fora. Bloqueios de estrada etc. O tempo não está ajudando. Ainda chove canivetes.

— O que você acha, Liam?

— Ele escapou.

— Você não acha que ele vai cair na rede, acha?

— Não existe nenhuma chance no mundo.

Ferguson suspirou. — É, francamente, também sinto isso. Fique um pouco com Harry, até ter certeza de que ele está fora de perigo, e venha para cá.

— Agora? Esta noite?

— Pegue o noturno para Londres. O avião do papa desce amanhã às oito no aeroporto de Gatwick. Quero você comigo.


Cussane e Morag deixaram o jipe numa pequena clareira do bosque perto de Dunhill e caminharam na direção dos trilhos. As ruas da periferia da cidadezinha estavam desertas por causa da chuva, e eles atravessaram a estrada, passaram por um armazém em ruínas com janelas fechadas por tábuas e se comprimiram através de um furo na cerca, acima dos trilhos. Um trem de carga estava parado no desvio. Cussane se agachou e observou, enquanto um maquinista encapotado andava ao longo dos trilhos e pulava para dentro da locomotiva.

— Mas não sabemos para onde está indo — disse Morag.

Cussane sorriu.

— A locomotiva está na direção sul, não está? — Ele agarrou o braço da moça. — Vamos!

Vieram pelo declive, em meio à semiescuridão do crepúsculo, cruzando a linha, enquanto o trem começava a se mover. Cussane partiu na direção de um vagão, emparelhou, puxou a porta corrediça e jogou a sacola lá dentro. Pulou no vagão, virou-se e alcançou a mão da garota. Num instante, ela estava com ele. O vagão estava quase cheio de carga, algumas caixas impressas com o endereço de uma fábrica em Penrith.

— Onde fica isso? — perguntou Morag.

— Ao sul de Carlisle. Mesmo que a gente não vá mais longe, estamos no caminho certo.

Ele se sentou, com uma sensação razoável de estímulo, e acendeu um cigarro. Seu braço esquerdo funcionava, mas sentia como se não pertencesse a ele. A morfina ainda cuidava da dor. Morag se aconchegou ao lado, e ele passou o braço bom em torno dela. Fazia muito tempo que protegendo alguém. Para ser ainda mais rigoroso consigo mesmo, fazia muito tempo que alguém tinha cuidado dele.

Os olhos dela estavam fechados, e parecia dormir. Graças à morfina, a dor não voltou, e ele podia lutar contra ela quando viesse. Havia várias ampolas em seu kit. Suficiente para mantê-lo em pé. Com a bala no ombro e sem cuidados médicos, uma septicemia era questão de tempo, mas tudo de que necessitava agora era de trinta e seis horas. O avião do Santo Padre desceria em Gatwick de manhã. E no dia seguinte, Cantuária.

Enquanto o trem serpenteava ao longo dos trilhos, ele se recostou, o braço são em torno da garota, e mergulhou no sono.


14

 

 

Morag acordou com um solavanco. O trem parecia estar diminuindo a marcha para uma parada. Passavam por alguns desvios e entroncamentos, e a luz dos postes filtrava através das ripas do vagão, relevando da escuridão o rosto de Cussane a intervalos. Ele estava adormecido, a fisionomia neutra, sem nenhuma expressão. Quando ela tocou gentilmente em sua testa, estava molhada de suor. Ele gemeu e virou de lado, e seu braço moveu-se com o corpo; ela viu que estava segurando a Stetchkin.

Ela estava com frio, então levantou a gola do velho casaco, pôs as mãos nos bolsos e observou-o. Ela era apenas uma garota, descomplicada apesar da vida que tinha levado, mas abençoada com uma mente ágil e uma boa dose de senso prático.

Nunca conhecera alguém como Cussane. Nada tinha a ver com a arma em sua mão, a violência calculista e a rapidez de ação daquele homem. Não tinha medo dele. Fosse quem fosse, não era cruel. Mais importante que tudo, ele a tinha ajudado, e aquilo era algo a que ela não estava acostumada. Até mesmo seu avô tivera dificuldade de protegê-la contra a brutalidade de Murray. Cussane a salvara daquilo, e era mulher o suficiente para imaginar que a salvara de coisa muito pior. Que ela havia ajudado a ele simplesmente nunca lhe ocorrera.

Pela primeira vez na vida, ela estava inundada por uma sensação de liberdade.

O trem deu outro solavanco. Os olhos de Cussane se abriram, e ele se virou rápido, ficando agachado sobre um joelho. Olhou o relógio.

— Uma e meia. Devo ter dormido muito.

— E dormiu.

Ele observou através das ripas do vagão, atentamente, e fez um sinal para Morag.

— Devemos estar no entroncamento de Penrith. Onde está minha sacola?

Ela a empurrou na direção dele. Cussane remexeu lá dentro, achou o kit de primeiros socorros, e aplicou em si outra injeção de morfina.

— Como está? — perguntou ela.

— Ótimo — disse ele. — Sem problemas. É apenas precaução.

Estava mentindo. A dor que retornava era bem real. Ele fez correr a porta e observou com cuidado o lado de fora. Uma placa indicando Penrith emergiu da escuridão.

— Eu estava certo — disse ele.

— Vamos saltar aqui?

— Não há nenhuma garantia de que este trem vá mais adiante, e a rodovia não fica muito longe.

— E então?

— Deve haver um posto de serviço lá, uma lanchonete, lojas, estacionamento, caminhões. Sei lá! — A dor tinha ido embora de novo, e ele esboçou um sorriso.

— Há um monte de possibilidades. Agora me dê a mão, espere que o trem diminua bem a marcha e salte.


Foi uma caminhada mais longa do que Cussane tinha previsto, tanto que já eram três da madrugada quando entraram no estacionamento de um posto na rodovia M-6 e se aproximaram da lanchonete. Dois carros e um caminhão estavam saindo para a estrada, e a jamanta era tão grande que Cussane só viu o carro da polícia chegando no último instante. Puxou Morag para baixo, atrás de um furgão, e o carro da polícia parou, a luz da capota piscando num ritmo preguiçoso.

— O que vamos fazer? — sussurrou ela.

— Esperar para ver.

O motorista ficou sentado atrás do volante, e o outro policial saiu do carro e entrou na lanchonete.

Eles podiam vê-lo claramente através dos vidros da janela. Havia talvez umas vinte ou trinta pessoas lá dentro, amontoadas nas mesas. O policial deu uma boa olhada em volta e saiu. Retornou ao carro e estava falando pelo rádio, quando partiram pela estrada.

— Estavam procurando a gente — disse Morag.

— E o que mais? — Ele tirou a boina dela e enfiou-a numa lata de lixo próxima. — Assim é melhor. Dava muito na vista. — Ele fuçou no bolso e achou uma nota de cinco libras, dando a ela. — As pessoas fazem compras nesse lugar. Compre chá e sanduíches. Espero aqui. É mais seguro.

Ela subiu a pequena rampa da lanchonete. Viu-a hesitar em frente ao caixa: aí pegou uma bandeja. Reparou num banco perto, encostado na parede, semioculto por uma grande perua. Sentou-se e acendeu um cigarro. Esperou, pensando em Morag Finlay.

Era estranha a frequência com que pensava em Morag, e aquilo ocorreu a ele de uma maneira esquisita, com a sensação de culpa comum aos padres. Não devia estar agindo daquele modo. Ela era somente uma criança. Ele fora celibatário por mais de vinte anos e nunca encontrara o menor grau de dificuldade para levar a vida sem mulheres. E como seria absurdo se apaixonar quase no fim da vida por uma garotinha cigana de dezesseis anos.

Ela veio rodeando o furgão com uma bandeja de plástico e colocou-a no banco.

— Chá e sanduíches de presunto. E o que você acha disso? Estamos no jornal. Tinha uma banca ao lado da porta.

Ele tomou com cuidado o chá escaldante de uma das xícaras plásticas e abriu o jornal no joelho, lendo-o à luz fraca que se derramava sobre o estacionamento, vinda da lanchonete. Era um jornal local, impresso em Carlisle na noite anterior. Cussane estava na primeira página, e havia uma foto separada de Morag ao lado dele.

— Você parece mais nova — disse ele.

— Foi minha mãe que tirou essa foto no ano passado. Vovô pendurou na carroça dele. Eles devem ter apanhado. Ele nunca a daria.

— Se um jornal local tinha a foto ontem à noite, acho que estaremos em todas as primeiras edições dos jornais nacionais hoje de manhã — disse ele.

Houve um silêncio pesado. Ele acendeu outro cigarro e ficou sentado, pensando, sem dizer nada.

— Você vai me deixar, não vai? — disse ela.

Ele sorriu gentilmente. — Meu Deus, parece que você envelheceu mil anos, hein? Sim, vou deixar você. Não temos escolha.

— Não precisa explicar.

Mas ele explicou. — Fotos em jornais podem não significar nada para a maioria das pessoas. É o incomum que chama a atenção, como você e eu juntos. Sozinha, você tem uma boa chance de ir para onde quiser. O dinheiro que dei está aí com você?

— Está.

— Então vá lá para a lanchonete. Sente-se no quentinho e espere. O ônibus expresso para aqui. Eu sei. Vim num deles outro dia, indo na direção oposta. Daqui você pode pegar um ônibus para Birmingham ou Londres, sem nenhum problema.

— E você?

— Não se preocupe comigo. Nunca. Se puserem as mãos em você, diga que foi forçada a ajudar. Muita gente vai acreditar que isso é verdade. — Ele pegou a sacola e colocou a mão no rosto dela. — Você é uma pessoa muito especial. Não deixe ninguém aprontar com você de novo. Promete?

— Prometo — ela se sentia como que chocada, na ponta dos pés para beijar o rosto dele, e então girou nos calcanhares e saiu correndo.

A dura escola da vida tinha ensinado Morag a não chorar, mas havia uma sensação quente de comichão no fundo dos olhos quando entrou na lanchonete. Ela passou zunindo por uma mesa, e alguém agarrou a manga de seu casaco. Ela se virou para olhar e deu de cara com uma dupla de motoqueiros em jaquetas de couro, jovens mal-encarados, jeito de viciados, os cabelos cortados à máquina. O que havia segurado seu braço era louro e tinha uma cruz nazista de ferro pendurada no pescoço.

— Qual é o problema, queridinha? Nada que uma voltinha na garupa da minha moto não possa consertar.

Ela se desvencilhou, sem raiva, e foi pegar uma xícara de chá. Sentou-se atrás de uma mesa, as mãos absorvendo o calor que irradiava da xícara. Ele tinha entrado em sua vida, tinha ido embora, e nunca mais nada voltaria a ser como antes. Começou a chorar, lágrimas silenciosas e amargas, pela primeira vez em muitos anos.


Cussane tinha duas escolhas. Tentar a sorte com o polegar, pedindo carona, ou roubar um carro. A segunda opção lhe daria mais liberdade, mais controle pessoal da situação, mas precisava ser um carro cujo roubo demorasse a ser notificado. Havia um motel do outro lado da rodovia. Qualquer coisa estacionada lá pertenceria a alguém que estivesse pernoitando. Três ou quatro horas antes de darem queixa, e ele já estaria bem longe.

Subiu os degraus da passarela, pensando em Morag Finlay, imaginando o que aconteceria com ela, mas não era problema dele afinal. O que dissera a ela fazia sentido. Juntos dariam tão na vista como chifre em cabeça de cavalo. Ele parou no meio da passarela, acendeu outro cigarro, e lá embaixo os caminhões passavam roncando. Tudo perfeitamente sensato e lógico. Então por que ele se sentia tão mal?

— Por Deus, Harry! — exclamou baixinho. — Você está sendo corrompido por honestidade, decência e inocência. Não é admissível desonrar aquela garota. Ela permanecerá sempre intocada pela podridão da vida.

E ainda assim...


Alguém se levantou da cadeira atrás dela, e uma voz suave disse:

— Você está bem, garota? Posso ajudar?

Ele era indiano, ela sabia, com cabelos pretos e crespos, as extremidades um pouco grisalhas. Tinha talvez quarenta e cinco anos e usava um casacão de motorista com gola de pele, muito sujo de graxa. Carregava uma lancheira de plástico e uma garrafa térmica. Ele sorriu, o tipo de sorriso que passou a ela a ideia imediata de que tudo estava bem e se sentou.

— Qual é o problema? — disse ele.

— A vida.

— Ei, isso é realmente muito profundo para uma guria tão jovem como você. Posso fazer alguma coisa?

— Estou esperando o ônibus.

— Para onde?

— Londres.

Ele balançou a cabeça. — É sempre Londres que vocês, crianças, procuram quando fogem de casa.

— Minha avó mora em Londres — disse ela, cansada. — Em Wapping.

Ele fez um sinal afirmativo e franziu a testa, como se estivesse considerando o assunto, e então ficou em pé.

— Está bem, sou o seu homem.

— O que quer dizer com isso?

— Eu dirijo uma carreta, e a sede da empresa fica em Londres. É uma volta longa, compreende, porque quando eu chegar a Manchester tenho que pegar a rodovia Pennine para Leeds e descarregar umas coisas lá, mas estaremos em Londres no começo da tarde.

— Não sei — hesitou ela.

— O ônibus não vai passar por aqui nas próximas cinco horas, portanto o que você tem a perder? Se isso ajudar, tenho três garotas, todas mais velhas que você, e meu nome é Earl Jackson.

— Está certo — ela tomou uma decisão e saiu ao lado dele.

Desceram a rampa da lanchonete e atravessaram o estacionamento. O caminhão rebocava uma carreta.

— Aqui estamos — disse ele. — Todos os confortos de casa.

Houve um ruído de passos, e quando eles se viraram, o motoqueiro louro da lanchonete saiu de trás de outro caminhão. Ele avançou e ficou parado, as mãos na cintura.

— Menina teimosa — disse ele. — Eu não disse que seria melhor para você sentar lá na garupa da minha moto? E o que vejo? Você escapando na noite com esse rato aí. Agora é que tudo está errado mesmo.

— Ei, garota, viu só? — disse Earl Jackson. — Isso fala e tudo. Vai ver que ainda molha a caminha.

Ele se abaixou para colocar a lancheira e a garrafa térmica no chão, e o outro motoqueiro saiu de de baixo do caminhão e deu-lhe um chute. Ele se projetou para a frente, perdendo o equilíbrio, e o louro aplicou uma joelhada em seu rosto. O outro levantou Jackson, preso pela garganta numa gravata, e o louro flexionou as mãos, ajustando as luvas.

— Segure-o, Sammy. Essa carne é minha.

Sammy berrou quando um golpe o atingiu bem nos rins. Contraiu-se todo de dor, soltando a garganta de Jackson, e Cussane acertou-o de novo, mandando-o de joelhos para o chão. A mão do louro saiu do bolso, e enquanto Morag dava um grito de alerta, houve um clique quando a lâmina apareceu, faiscando à luz fraca. Cussane deixou cair a sacola no chão, desviou-se, segurou o pulso do rapaz com as duas mãos, girou-o para cima, a faca caindo, e enfiou a cabeça do louro na lateral do caminhão. Ele caiu de joelhos, sangue no rosto. Cussane suspendeu-o pela gola da jaqueta, arrastando-o na direção do outro, que tentava se levantar. Ergueu o outro também e manteve os dois juntos. — Eu podia colocar vocês numas muletas por um ano, ou será que já estavam de saída?

Ficaram petrificados de pavor, giraram nos calcanhares e foram embora andando desajeitadamente. Cussane estava consciente da dor como nunca, tão forte que ele se sentiu mal. Virou-se, agarrando-se à lona da carreta, e Morag correu para ampará-lo.

— Harry, você está bem?

— Claro, não se preocupe.

— Você me livrou de boa, cara — disse Earl Jackson. — Fico lhe devendo uma. — Virou-se para Morag. — Acho que não peguei a história toda.

— Estávamos juntos, então nos separamos. — Ela relanceou os olhos para Cussane. — Agora estamos juntos de novo.

— Ele vai para Londres também? — perguntou Jackson.

Ela aquiesceu. — A oferta ainda está de pé?

— E por que não? — Ele sorriu. — Subam na cabine. Vão encontrar um painel corrediço atrás do banco de passageiros. Um aperfeiçoamento meu. Tem um beliche lá, cobertores, essas coisas. Quer dizer que posso dormir nos estacionamentos e me livrar das contas dos hotéis.

Morag subiu. Quando Cussane fez menção de segui-la, Jackson segurou-o pela manga.

— Olhe, não tenho nada com isso, mas ela é uma ótima garota.

— Não precisa se preocupar — disse Cussane. — Também acho — e subiu na cabine.


Eram quase oito horas de uma manhã bela e límpida, quando o jato da Alitalia que trazia o papa João Paulo de Roma aterrissou no aeroporto de Gatwick. O pontífice desceu a escada do avião, acenando para a multidão entusiasmada, e seu primeiro ato foi se ajoelhar e beijar o solo inglês.

Devlin e Ferguson estavam em pé na sacada, olhando lá para baixo.

— É nessas horas que eu gostaria de estar aposentado.

— Encare os fatos — disse Devlin. — Se um assassino de verdade, determinado, do tipo que não se importa em cometer suicídio, cismar de matar o papa, a rainha da Inglaterra ou quem quer que seja, as estatísticas vão pesar muito a seu favor.

Abaixo, o papa foi recebido pelo cardeal Basil Hume e pelo duque de Norfolk, que ladeavam a rainha. O cardeal fez um discurso de boas-vindas, e o papa respondeu, agradecendo. De lá foram para os carros que estavam à espera.

— E o que vai acontecer agora? — disse Devlin.

— Missa na Catedral de Westminster. Depois, visita ao Palácio de Buckingham com a rainha. Então, para a Catedral de St. George, em Southwark, para benzer os enfermos. Estou vendo nosso prazo se esgotando logo. — Ferguson estava insatisfeito e demonstrava. — Maldição, Liam! Onde está ele? Onde está aquele canalha do Cussane?

— Por aí — disse Devlin. — Provavelmente, mais perto do que pensamos. A única certeza é que terá que vir à tona nas próximas vinte e quatro horas.

— E aí o pegamos — disse Ferguson, enquanto deixavam o aeroporto. — Resolvido.

— Se você diz... — foi o único comentário de Liam Devlin.


O pátio do armazém de Hunslet, em Leeds, quase ao lado da rodovia, estava cheio de caminhões. Cussane tinha aberto o painel corrediço, e Jackson disse: — Não dê na vista, cara! Passageiros são estritamente proibidos. Posso perder minha licença.

Ele saltou do caminhão para ver o desengate da carreta, e então foi até o escritório para assinar a entrega.

O gerente ergueu os olhos da mesa onde estava.

— Oi, Earl, boa viagem?

— Mais ou menos.

— Ouvi dizer que está havendo o maior corre-corre lá para os lados da M-6. Um dos rapazes ligou de perto de Manchester. Motor pifado. Ele disse que a polícia está muito assanhada.

— Não reparei — disse Jackson. — O que foi?

— Um sujeito que se meteu numa confusão com o IRA. Tem uma garota com ele.

Jackson conseguiu manter a calma e assinou todas as vias.

— Mais alguma coisa?

— Não, tudo bem. Vejo você na próxima viagem.

Jackson deixou o escritório. Hesitou ao lado do caminhão, e aí resolveu fazer o que tinha pensado antes. Saiu do pátio, atravessou a estrada e foi até o café da transportadora. Deu a garrafa térmica para que a garota atrás da registradora enchesse, pediu sanduíches de bacon e comprou um jornal, que veio lendo rapidamente na volta para o caminhão.

Subiu ao volante da cabine e passou para trás a garrafa e os sanduíches.

— Café da manhã e alguma coisa para ler, enquanto comem.

As fotos eram as mesmas que apareciam no jornal de Carlisle, e a história idêntica, mas incompleta. Os detalhes sobre a garota eram mínimos. Diziam simplesmente que estava com ele.

Quando pegaram o acesso que subia para a rodovia, Cussane disse:

— E então?

Jackson estava concentrado na estrada. — Uma batata quente, cara! Está bem, devo-lhe um favor, mas nem tanto. Se você for apanhado...

— Parece que não será nada bom para você.

— Não posso negar — falou Jackson. — Sou fichado. Já estive preso duas vezes. Meu joguinho era roubar carros, até que aprendi a lição. Não quero problemas, e nunca mais estou a fim de ver a prisão de Pentonville do lado de dentro.

— Então a coisa mais simples a fazer é continuar dirigindo — disse Cussane a ele. — Chegando a Londres, nós vamos descer e você cuida dos seus negócios. Ninguém nunca vai ficar sabendo.

Era a única solução, e Jackson percebeu.

— Está bem — suspirou. — Tomara mesmo!

— Sinto muito, Sr. Jackson — disse Morag.

— Nada disso, garota. Podia ser pior. Agora fiquem aí dentro e fechem o painel — e o caminhão ganhou a estrada.


Devlin estava telefonando para o hospital de Dumfries quando Ferguson entrou no estúdio. Assim que o irlandês colocou o aparelho no gancho, o brigadeiro disse:

— Eu gostaria de alguma notícia boa. O coronel Jones acabou de ser morto, tentando tomar Goose Green nas Malvinas. Foram três ataques contra as tropas argentinas que estavam lá, como já sabíamos.

— E o que aconteceu?

— Ah, ganhamos o dia, mas Jones morreu.

— A notícia sobre Harry Fox é confortadora — disse Devlin. — Vão colocá-lo no avião em Glasgow no começo da noite. O estado dele é razoável.

— Graças a Deus! — disse Ferguson.

— Falei com Trent. Não conseguimos arrancar uma palavra daqueles ambulantes. Nada que pudesse ajudar. Segundo o avô, ele não tem a menor ideia de para onde a garota possa ter ido. A mãe está na Nova Zelândia.

— Ambulantes! São piores que ciganos — disse Ferguson. — Conheço os tipos. Sou de Angus, lembra-se? Gente muito curiosa. Mesmo quando se odeiam entre si, odeiam muito mais a polícia. São incapazes de mostrar o caminho do banheiro público a alguém.

— E vamos fazer o que agora?

— Dar uma chegada até St. George para ver como Sua Santidade está se saindo, e então você pode dar um pulo até Cantuária. A propósito, estou providenciando um carro da polícia com motorista para você. Vai ajudar a parecer o mais oficial possível.


Morag estava encostada no canto do beliche.

— Por que voltou para Penrith? Você não me contou.

Cussane deu de ombros. — Vamos dizer que decidi que você não está preparada para ficar sozinha lá fora, ou qualquer coisa do tipo.

Ela balançou a cabeça. — Por que você tem tanto medo de assumir que é uma pessoa gentil?

— Sou? — Ele acendeu um cigarro e observou a garota tirar um baralho do bolso e embaralhar as cartas. Eram de tarô. — Você mexe com essas coisas?

— Minha avó me mostrou como é, há anos, quando eu era bem garota. Não tenho certeza se possuo o dom. É muito cedo para dizer.

Ela embaralhou as cartas novamente. — A polícia pode estar esperando lá na casa dela — disse ele.

Morag ficou parada, a surpresa estampada no rosto.

— Por que estaria? Eles não sabem que ela existe.

— Devem ter feito perguntas no acampamento, e alguém deve ter dito alguma coisa. Se não foi seu avô, há sempre Murray.

— Nunca — disse ela. — Nem mesmo Murray faria uma coisa dessas. Você era diferente, uma pessoa de fora. Mas eu, não é a mesma coisa, afinal de contas.

Ela virou a primeira carta. Era a Torre, a construção riscada por relâmpagos, e dois corpos caindo.

— Os sofrimentos individuais estão sendo orquestrados no mundo pelas forças do destino — comentou Morag.

— Sou eu. Ah, sou eu, definitivamente — disse Harry Cussane e começou a rir, desamparado.


Susan Calder tinha vinte e três anos. Era uma garota pequena, inegavelmente sensual dentro do impecável uniforme azul marinho de policial, com o chapéu axadrezado em branco e azul em torno da pala. Formara-se para ser professora primária, mas três períodos letivos naquele trabalho foram definitivamente suficientes. Apresentara-se como voluntária para a polícia metropolitana e tinha sido aceita. Servia há pouco mais de um ano. Esperando ao lado do carro da polícia em frente ao apartamento da Cavendish Square, Susan compunha uma figura agradável e cativou o coração de Devlin. Ela estava lustrando o para-brisa, quando ele desceu os degraus da escada.

— Bom dia, coleen.1 Deus salve o trabalho bem-feito.

Ela mediu a capa Burberry preta, o chapéu de feltro num ângulo inclinado, e estava para dar uma resposta ácida, mas fez uma pausa.

— Deve ser o professor Liam Devlin, não?

— Como sempre fui. E você?

— Policial Susan Calder, sir.

— Já lhe disseram que você é minha até amanhã?

— Sim, sir. O hotel já está reservado na Cantuária.

— Vai ter falatório na delegacia, hein! Pé na estrada então — ele abriu a porta de trás e entrou. Ela deslizou para a frente do volante e partiram. Devlin recostou-se, observando a garota. — Já lhe falaram do que se trata?

— É do Grupo 4, é tudo que sei.

— E isso quer dizer...?

— Antiterrorismo, o pessoal do Serviço de Informação, diferente do esquadrão antiterror da Scotland Yard.

— Isso, o Grupo 4 pode usar pessoas como eu e depois se desfazer delas — ele franziu a testa. — Nas próximas dezesseis horas, vamos ganhar zero ou dez nessa prova, e você ficará comigo a cada passo.

— Como quiser, sir.

— Então acho que merece saber do que se trata.

— Deve me contar, sir? — perguntou ela, com a voz mansa.

— Não, mas vou contar — e começou a falar, dizendo a ela tudo o que se sabia sobre o caso desde o começo, especialmente sobre Harry Cussane. Aquilo também era uma forma de assimilar tudo corretamente em sua própria mente.

Quando terminou, ela disse: — Uma história e tanto.

— E isto é apenas uma versão suavizada.

— Há apenas uma coisa, sir.

— E qual seria?

— Meu irmão mais velho foi morto em Belfast há três anos, quando servia lá como tenente dos fuzileiros navais. Um franco atirador acertou uma bala nele de um prédio em Divis.

— Isto quer dizer que causo algum problema a você?

— Não, absolutamente, sir. Queria apenas que soubesse — disse ela num tom decidido e tomou a estrada principal ao longo do rio.


Cussane e Morag estavam parados numa rua sossegada de Wapping e observaram a carreta dobrar a esquina e desaparecer.

— Pobre Earl Jackson — disse Cussane. — Aposto que ainda vão cair em cima dele. Qual é o endereço de sua avó?

— Cork Street Wharf. Já faz cinco ou seis anos que estive aqui. Tenho medo de não me lembrar onde é.

— Vamos encontrar.

Desceram a rua na direção do rio, o que parecia ser a coisa mais óbvia a fazer. Seu braço latejava de novo, e estava com dor de cabeça, só que não demonstrou nada à garota. Quando chegaram a uma mercearia na esquina, Morag entrou para conseguir alguma informação.

Saiu rápido. — Não é longe. Só algumas quadras.

Andaram ao longo do rio até a esquina. Havia uma placa na parede indicando Cork Street Wharf a poucos metros.

— Está bem, vá você — disse Cussane. — Vou ficar esperando sem dar na vista, no caso de ela ter visitas.

— Não demoro.

Ela se precipitou pela rua, e Cussane recuou até o portão quebrado de um depósito cheio de entulho e esperou. O lugar tinha sido um dos maiores portos do mundo. Agora era um cemitério de guindastes enferrujados, apontando para o céu como monstros pré-históricos. Ele se sentia num estado miserável, e quando acendeu um cigarro, a mão tremeu. O som de passos chegou até ele, e Morag apareceu.

— Ela não está lá. Falei com o vizinho do lado.

— Onde está?

— Com um show itinerante. Uma feira de atrações. Vai ficar em Maidstone durante uma semana.

E Maidstone era a pouco mais de vinte e cinco quilômetros da Cantuária. Havia uma inevitabilidade nas coisas.

Cussane disse: — É melhor sairmos daqui.

— Vai me levar junto?

— Por que não? — Ele fez meia-volta e mostrou a rua por onde ir.


Achou o que procurava em vinte minutos: um estacionamento automático.

— Por que isso é tão importante?

— Porque as pessoas pagam adiantado pelo tempo que ficam estacionadas e deixam o tíquete no para-brisa do carro. Uma ajuda maravilhosa para os ladrões. Você pode saber de antemão a que distância pode ir antes que alguém dê queixa.

Ela examinou em volta. — Tem um aqui que diz seis horas.

— E a que horas ele chegou? — Ele verificou e tirou a faca do bolso. — Este serve. Ainda temos quatro horas de vantagem. E vai escurecer logo.

Cussane trabalhou no quebra-vento com a faca, forçou-o e destravou a porta. Mexeu atrás do painel e puxou os fios.

— Você já fez isso antes — disse ela.

— É verdade. — O motor pegou. — Muito bem — disse ele —, vamos dar o fora daqui.

Assim que ela pulou para o banco, Cussane arrancou.

 

________________

1 Garota, em irlandês. (N. do T.)


15

 

 

— Claro, não é de admirar que o papa queira vir aqui, sir — disse Susan Calder a Devlin. — Foi Santo Agostinho quem fundou a catedral. Na época dos saxões. É o berço do cristianismo inglês.

— É mesmo?

Eles estavam parados sob a magnífica nave perpendicular da Catedral da Cantuária, as pilastras erguendo-se até a abóbada arqueada lá no alto. O lugar fervilhava, operários por toda parte.

— É espetacular, no mínimo — disse Devlin.

— A catedral foi bombardeada em 1942 durante a blitz contra Cantuária. A biblioteca foi destruída, mas depois eles a reconstruíram. Foi lá em cima na ala noroeste que são Thomas Beckett acabou sendo morto pelos três cavaleiros há oitocentos anos.

— Acredito que o papa deve ter uma afinidade muito especial em relação a ele — disse Devlin. — Vamos dar uma olhada.

Subiram acima da nave até o local do martírio de Beckett. O lugar exato onde tradicionalmente se acreditava que Beckett tombara estava marcado por uma laje de pedra.

Havia uma atmosfera estranha. Devlin sentiu um calafrio súbito.

— O Sword's Point, o Ponto da Espada — disse a garota, sem emoção. — É como eles chamam este lugar.

Saíram pelo pórtico sul e deixaram para trás o policial que estava de guarda. Havia intensa atividade lá fora. Homens trabalhando em arquibancadas, e uma considerável presença da polícia. Devlin acendeu um cigarro, e os dois caminharam pela calçada.

— O que acha? — disse ela. — Quer dizer, Cussane não vai conseguir entrar mesmo. Viu a segurança.

Devlin tirou a carteira do bolso e mostrou o passe de segurança que Ferguson lhe dera.

— Já viu um desses antes?

— Acho que não.

— Tremendamente especial. Abre qualquer porta.

— E daí?

— Ninguém pediu para vê-lo. Fomos ignorados quando entramos. E por quê? Porque você está usando um uniforme de policial. E o uniforme não diz quem você é. Este é o ponto.

— Entendo o que quer dizer — ela demonstrava preocupação.

— O melhor lugar para esconder uma árvore é uma floresta — disse ele. — Amanhã haverá muitos policiais e autoridades eclesiásticas por aqui. Portanto, mais um policial ou um padre...

Naquele instante, uma voz gritou o nome de Devlin, e eles se viraram. Ferguson caminhava na direção dos dois, acompanhado de um homem com uma capa escura. O brigadeiro usava o casaco do tipo favorito dos oficiais da guarda e carregava habilmente um guarda-chuva.

— O brigadeiro Ferguson — disse ele à garota, ligeiro.

— Policial Calder, sir — ela saudou Ferguson como mandava o figurino.

— Este é o superintendente Foster, vinculado ao esquadrão antiterror da Scotland Yard. Já o coloquei a par do assunto. Tudo parece muito claro para mim agora.

— Mesmo que seu homem chegue o mais perto que puder da Cantuária, não existe jeito de entrar na catedral amanhã — disse Foster com simplicidade. — Aposto minha reputação.

— Espero que não tenha que apostar — disse Devlin.

Ferguson agarrou Foster pela manga, impaciente. — Certo, vamos entrar na catedral antes de escurecer. Vou ficar lá dentro pessoalmente durante a noite, Devlin. Telefono para seu hotel mais tarde.

Ferguson e Foster caminharam na direção de uma grande porta, um policial abriu-a, e eles entraram.

— Você sabe se aquele policial os conhece? — perguntou Devlin.

— Sei lá, meu Deus! Você está me assustando agora. — Ela abriu a porta do carro para ele. Devlin entrou, ela escorregou para a direção e deu a partida. — Uma coisa.

— O que é?

— Mesmo que ele entre lá e faça alguma coisa, nunca vai conseguir sair.

— Mas esta é toda a questão — disse Devlin. — Ele não se importa com o que vai acontecer depois.

— Então, que Deus nos ajude.

— Eu não contaria com isso. Não podemos fazer nada agora, minha cara. Não controlamos o jogo. É o jogo que nos controla. Portanto, vamos para o hotel com calma, e eu vou lhe pagar o melhor jantar do mundo. A propósito, eu já lhe disse que sinto aquela coisa terrível por mulheres de uniforme?

Ela começou a rir, enquanto o carro entrava na corrente do tráfego.


O trailer era grande e espaçoso, extremamente bem mobiliado. O quarto ficava num compartimento pequeno, separado do resto, com dois beliches idênticos. Quando Cussane abriu a porta e olhou para dentro, Morag parecia dormir. Começou a fechar a porta, quando ela chamou: — Harry?

— Sim — ele voltou. — O que foi?

— Vovó ainda está trabalhando?

— Está.

Ele sentou-se à beira do beliche. Sentia muita dor agora. Doía até para respirar. Alguma coisa estava muito errada, ele sabia.

Ela se ergueu para tocar seu rosto, e ele recuou um pouco.

— Você se lembra daquele dia lá na carroça do vovô? — disse ela. — Perguntei se ficou assustado que eu pudesse corromper você.

— Para ser preciso — disse ele —, suas palavras exatas foram: Está assustado que eu possa corrompê-lo, padre?

Ela ficou muito compenetrada. — Então você é padre? Um padre de verdade? Acho que sempre soube.

— Vá dormir — disse ele.

Ela segurou sua mão. — Você não vai embora sem me avisar, vai?

Havia um medo autêntico em sua voz.

Cussane disse, gentilmente: — Você acha que eu faria uma coisa dessas? — Ele se levantou e abriu a porta. — Como eu disse, durma. Vejo você de manhã.

Ele acendeu um cigarro, abriu a porta do trailer e saiu. A feira de Maidstone era um negócio relativamente pequeno: alguns shows de quinta categoria, várias barracas, bingo, carrosséis. Havia um número considerável de pessoas, ruidosas e bem-humoradas, apesar do avançado da hora, a música alta no ar noturno. Numa ponta do trailer, estava o Land Rover que o rebocava; na outra, uma tenda vermelha com um letreiro iluminado: Gypsy Rose. Enquanto observava, um casal saiu, rindo. Cussane hesitou, mas acabou entrando na tenda.

Brana Smith tinha uns setenta anos, um lenço de cor berrante prendia os cabelos, de modo a revelar por completo seu rosto encarquilhado, e usava um xale nos ombros, além do colar de moedas de ouro em torno do pescoço. Havia uma bola de cristal sobre a mesa.

— A senhora tem estilo mesmo — disse ele.

— Esta é a ideia geral. O público gosta de uma cigana que se pareça com uma cigana. Ponha lá o aviso para fechar a tenda e me dê um cigarro. — Cussane fez o que foi dito, voltou e sentou-se no lugar reservado aos clientes. — Morag está dormindo?

— Sim — ele respirou fundo para controlar a dor. — Nunca mais deve permitir que ela volte ao acampamento, compreende?

— Não se preocupe — sua voz era seca e calma. — Nós, ciganos, trapaceamos, mas pagamos nossas dívidas. Dou minha palavra que mais dia menos dia Murray vai pagar pelo que fez. Pode acreditar.

Ele aquiesceu. — Quando viu a foto dela hoje nos jornais e leu os detalhes, deve ter ficado preocupada. Por que não procurou a polícia?

— A polícia? Deve estar brincando. — Ela deu de ombros. — De qualquer jeito, eu sabia que ela estava vindo, e sabia que estava bem.

— Sabia? — disse Cussane.

A mão da cigana repousou suavemente sobre a bola de cristal.

— Estes aqui são somente os truques, meu amigo. Eu tenho o dom como minha mãe tinha antes de mim, e a mãe dela...

— Morag me contou. Ela leu as cartas de tarô para mim, mas não tem certeza de seus poderes.

— Ah, ela tem o dom. — A velha fez um sinal afirmativo. — Ainda não desenvolvido. — Ela colocou um baralho na frente dele. — Corte as cartas e depois me dê o baralho com a sua mão esquerda.

Cussane obedeceu, e ela cortou o baralho por sua vez. — As cartas não significam nada sem o dom. Compreende?

Ele se sentiu estranhamente iluminado. — Sim, compreendo.

— Três cartas vão dizer tudo. — Ela virou a primeira. Era a Torre. — Ele sofreu por causa das forças do destino — disse ela. — Outros controlaram sua vida.

— Morag virou essa carta — disse ele. — Ela falou uma coisa parecida.

Brana Smith virou a segunda carta. Revelava um jovem de cabeça para baixo, preso numa forca de madeira pelo tornozelo. — O Homem Enforcado. Ele labuta com um companheiro inseparável. Ele é duas pessoas. Ele mesmo, e ainda assim não é ele mesmo. Agora é impossível voltar no tempo até a integridade da juventude.

— É muito tarde — disse ele. — Tarde demais.

A terceira carta mostrava a Morte em sua forma tradicional, a foice ceifando indiscriminadamente corpos humanos.

— Mas morte de quem? — Cussane riu um pouco alto. — A minha ou talvez a de alguém mais?

— A carta vai muito além da imagem superficial. Ele vem para redimir. Na morte deste homem jaz a oportunidade para renascer.

— Sim, mas morte de quem? — perguntou Cussane, inclinando-se para a frente, e a luz refletida na bola de cristal parecia muito brilhante.

Ela tocou em sua testa, molhada de suor. — Está doente.

— Ficarei bem. Preciso descansar, é tudo. — Ele ficou em pé. — Vou dormir um pouco, se concordar, então partirei antes que Morag acorde. Isso é muito importante, compreende?

— Oh, sim — aquiesceu a velha. — Eu compreendo muito bem.

Ele saiu na noite fria. A maioria das pessoas já tinha ido embora, e as barracas e os carrosséis estavam fechando. Sua testa ardia em febre. Subiu os degraus do trailer e se deitou no sofá, olhando para o teto. Era melhor tomar a morfina naquela hora do que de manhã. Levantou-se, revirou a sacola e encontrou a ampola.

A injeção fez efeito rapidamente, e logo depois ele dormiu.


Cussane acordou com um sobressalto, a mente desanuviada. Era de manhã. A luz se infiltrava pelas janelas, e a velha estava sentada atrás da mesa, fumando um cigarro e observando. Quando ele se levantou, a dor era uma coisa viva. Por um momento, achou que ia parar de respirar.

Ela empurrou uma xícara de chá na direção dele. — Chá quente. Beba um pouco.

Tinha um gosto bom, o melhor de uma vida inteira, e ele sorriu, tentando tirar um cigarro do maço, a mão trêmula.

— Que horas são?

— Sete.

— Morag ainda está dormindo?

— Está.

— Ótimo. Eu vou indo.

— Está doente, padre Harry Cussane — disse ela, a voz séria. — Está muito doente.

Ele sorriu, com gentileza. — A senhora tem o dom. Portanto, deve saber — respirou fundo. — As coisas vão entrar nos eixos antes que eu vá. A situação de Morag. Tem um lápis?

— Sim.

— Ótimo. Anote este número. — Ela obedeceu. — O homem do outro lado da linha se chama Ferguson, brigadeiro Ferguson.

— Ele é da polícia?

— Mais ou menos. Ele adoraria pôr as mãos em mim. Se ele não estiver neste número, eles saberão como entrar em contato com ele em qualquer lugar, provavelmente na Cantuária.

— Por que lá?

— Porque estou indo a Cantuária para matar o papa. — Ele tirou a Stetchkin do bolso. — Com isto.

Ela pareceu se encolher, buscando refúgio em si mesma. Acreditou nele, claro, Cussane pôde ver.

— Mas por quê? — murmurou ela. — Ele é um homem bom.

— E todos nós não somos? — disse ele. — Ou pelo menos não fomos bons em algum momento de nossas vidas? Mas o importante é telefonar para Ferguson, depois que eu tiver ido embora. Diga a ele que vou para a Catedral da Cantuária. Diga também que forcei Morag a me ajudar. Diga que ela temia por sua vida. Diga qualquer coisa — ele riu. — Isso deve adiantar.

Ele pegou a sacola e caminhou até a porta.

— Está morrendo, será que não percebe?

— Claro que sim — ele esboçou um sorriso. — Disse que a Morte na carta de tarô significava redenção. Na minha morte existe uma oportunidade para o renascimento. Aquela garota lá. É tudo que importa. — Ele abriu a sacola, pegou o maço de notas de cinquenta libras e jogou-as sobre a mesa. — O dinheiro é para Morag. Não vou mais precisar dele agora.

Cussane saiu, a porta bateu. Ela ficou sentada, escutando o barulho do motor sendo acionado e depois se distanciando. Permaneceu imóvel por um longo tempo, pensando em Harry Cussane. Gostara dele mais do que de qualquer outro homem que tinha conhecido, mas havia morte em seus olhos; percebeu no primeiro encontro. E havia Morag para considerar.

Houve um ruído de movimento atrás da porta, quando a garota acordou, uma excitação tênue. Olhou o relógio. Oito e meia. Tomando uma decisão, levantou-se, saiu do trailer bem devagar e atravessou a feira com passos ligeiros até o telefone público. Discou o número de Ferguson.


Devlin tomava café com Susan no hotel da Cantuária, quando foi chamado ao telefone. E voltou rápido.

— Era Ferguson. Cussane apareceu. Ou pelo menos sua amiguinha. Você conhece Maidstone?

— Sim, sir. Não deve ficar a mais de vinte e cinco quilômetros daqui. Trinta no máximo.

— Então vamos indo — disse ele. — Agora não nos sobra realmente muito tempo.


Em Londres, o papa tinha deixado a pró-nunciatura bem cedo para se encontrar com mais de quatro mil religiosos; freiras, monges, padres católicos e anglicanos, no Digby Stuart Training College. Muitos religiosos pertenciam a ordens fechadas. Era a primeira vez que saíam da clausura para o mundo lá fora, em muitos anos. Foi um momento de profunda emoção para todos, quando renovaram seus votos na presença do Santo Padre. E foi de lá que o papa seguiu para Cantuária, num helicóptero cedido pela British Caledonian Airways.


Stokely Hall era cercada por um muro alto de tijolos vermelhos, um toque vitoriano dado à propriedade, quando a família ainda tinha dinheiro. O pavilhão atrás dos grandes portões de ferro também era de estilo vitoriano, embora o arquiteto tivesse dado o melhor de si para que a casa principal obtivesse uma semelhança com os traços do primeiro período Tudor. Quando Cussane passou pela estrada, havia dois carros da polícia nos portões, e o policial de motocicleta que o estivera seguindo nos últimos quilômetros parou lá.

Cussane seguiu pela estrada, o muro à esquerda, orlado de árvores. Quando os portões estavam fora de vista, ele esquadrinhou o lado oposto da estrada e finalmente percebeu o portão com barras de ferro que descortinava uma trilha rumo ao bosque. Embicou rapidamente o carro no portão, abriu-o e então dirigiu um pouco para dentro do bosque, de modo que o carro ficasse escondido pelas árvores. Voltou ao portão, fechou-o e retornou ao carro.

Tirou a capa, a jaqueta e a camisa com muita dificuldade por causa do ferimento. O cheiro tornou-se perceptível instantaneamente, o odor fétido de carne necrosada.

Riu como um louco e disse baixo:

— Jesus, Harry, você está apodrecendo.

Tirou as vestes pretas e o colarinho de padre da sacola e vestiu tudo. Finalmente, a batina. Parecia fazer milhares de anos que ele a colocara no fundo da sacola, em Kilrea. Recarregou a Stetchkin com um pente novo, pôs a arma num dos bolsos e um pente de reserva no outro.

Entrou no carro, enquanto começava a chuviscar. Bastava de morfina. A dor o manteria alerta. Fechou os olhos e se dedicou unicamente a não perder o controle da situação.


Brana Smith estava sentada à mesa do trailer, um braço envolvendo Morag, que não parava de chorar.

— Apenas conte o que ele disse exatamente — falou Devlin.

— Vovó... — a garota tentou falar.

A velha balançou a cabeça. — Calma, criança! — e virou-se para Devlin. — Ele me disse que pretendia matar o papa. Mostrou-me a arma. Então me deu aquele número de telefone em Londres. O telefone daquele homem, Ferguson.

— E o que disse para a senhora falar?

— Que estaria na Catedral da Cantuária.

— É tudo?

— E não é o bastante?

Devlin se virou para Susan Calder, perto da porta: — Certo, é melhor voltarmos.

Susan abriu a porta, e Brana Smith disse: — E Morag?

— É com Ferguson — disse Devlin. — Mas verei o que posso fazer.

Ele já ia saindo, e ela disse: — Sr. Devlin? — Ele se virou. — Ele está morrendo.

— Morrendo?

— Sim, um ferimento a bala.

Devlin saiu, ignorando a multidão curiosa de trabalhadores da feira, e sentou no banco ao lado de Susan. Enquanto partiam, chamou o quartel da polícia militar da Cantuária pelo rádio e pediu para ser passado a Ferguson.

— Nada de novo aqui — disse ao brigadeiro. — O recado era mesmo para você. Seco. Ele pretende aparecer na Catedral da Cantuária.

— Filho da puta sem-vergonha! — disse Ferguson.

— Outra coisa. Ele está morrendo. Deve ser septicemia por causa daquela bala na fazenda dos Mungo.

— A sua bala?

— Isso mesmo.

Ferguson respirou fundo. — Está certo. Volte rápido para cá. O papa vai chegar ao meio-dia.


O papa tinha manifestado a vontade de rezar em Stokely Hall. Era uma das mais luxuosas mansões Tudor da Inglaterra, e os Stokely tinham sido uma das raras famílias aristocráticas inglesas que permaneceram católicas depois da reforma de Henrique VIII. Stokely Hall era famosa pela capela da família, a capela no bosque, ligada à casa principal por um túnel. Era citada pelos especialistas como a igreja católica mais antiga da Inglaterra.

Cussane estava recostado no banco do carro, os pensamentos vagando. A dor adquiria mais vida agora. Suas faces estavam geladas e ainda encharcadas de suor. Conseguiu encontrar um cigarro e ia acender, quando ouviu a distância um ruído de motores. Saiu do carro e ficou ouvindo. Instantes depois, um helicóptero pintado de azul e branco passou acima de sua cabeça.


— O senhor não parece bem — disse Susan Calder.

— Ele agia como eu ontem à noite. E não estou nada satisfeito. O comportamento de Cussane não faz sentido.

— Isso foi ontem. Agora é agora. O que o está preocupando?

— Harry Cussane, meu grande amigo de mais de vinte anos. O melhor jogador de xadrez que conheci.

— E o que tem de tão importante?

— É importante porque ele sempre estava três movimentos à frente. É importante porque ele tinha a habilidade de fazer você se concentrar à direita, quando o que contava realmente estava à esquerda. Nas atuais circunstâncias, o que isso sugere a você?

— Que ele não tem intenção de ir à catedral. É lá que está a ação. É onde todo mundo o espera.

— Então ele ataca em algum outro lugar. Mas como? Onde está o roteiro do papa?

— No banco de trás, sir.

Ele o encontrou e leu alto: — Começa no Digby Stuart Training College, em Londres. Daí para Cantuária, de helicóptero. — Ele franziu a testa. — Espere um instante. Ele vai descer num lugar chamado Stokely Hall para visitar uma capela.

— Passamos por lá no caminho de Maidstone — disse ela. — A uns cinco quilômetros daqui. Mas é uma visita fora do protocolo. Não foi mencionada em nenhum jornal que eu tenha visto. Como Cussane soube?

— Ele trabalhava na assessoria de imprensa do secretariado católico em Dublin. — Devlin deu um murro na coxa. — É isso! Pise fundo nesse acelerador e não pare para nada.

— E Ferguson?

Ele pegou o microfone do rádio. — Vou tentar entrar em contato, mas é tarde demais para que ele possa fazer alguma coisa. Estaremos lá em minutos. Agora é com a gente.


A estrada estava deserta, quando Cussane a atravessou, e moveu-se protegido pelas árvores, rente ao muro. Alcançou um portão de ferro, estreito e enferrujado, solidamente fixo no muro. Testou o portão e ouviu vozes do outro lado. Escondeu-se atrás de uma árvore e esperou. Através das grades do portão, ele podia divisar um caminho ladeado de rododendros. Um momento depois, duas freiras passaram. Ele deu tempo suficiente para que se afastassem e então voltou ao local onde o chão se elevava pouco mais de um metro, deixando-o numa posição quase nivelada com o muro. Alcançou um galho que se projetava para dentro. Teria sido ridiculamente fácil, não fosse por causa do ombro e do braço. A dor era lancinante, mas ele ergueu a batina para ter maior liberdade de movimentos e jogou o corpo para frente, equilibrando-se por um instante em cima do muro, antes de cair no chão do outro lado.

Ficou agachado sobre o joelho, lutando para respirar, então levantou-se e ajeitou os cabelos com a mão. Em seguida, precipitou-se pelo caminho, atento para as vozes das freiras, um pouco mais adiante. Virou para contornar uma velha fonte de pedra e quase esbarrou nelas. As duas viraram-se, surpresas. Uma delas era muito velha.

A outra era mais jovem.

— Bom dia, irmãs! — disse ele, jovialmente. — Não é lindo aqui? Não pude resistir e vim dar um passeio.

— Nós também não pudemos resistir, padre — disse a freira mais velha.

Caminharam lado a lado e saíram da vegetação para um extenso gramado. O helicóptero estava pousado à direita, a tripulação conversando ao lado do aparelho. Havia várias limusines na frente da casa e dois carros de polícia. Uma dupla de policiais atravessou o gramado com um cão de guarda alsaciano na coleira. Passaram por Cussane e pelas freiras sem dizer uma palavra e prosseguiram para o matagal.

— É da Cantuária, padre? — perguntou a mais velha.

— Não, irmã...? — ele fez uma pausa.

— Agatha. E esta é a irmã Anne.

— Sou do secretariado de Dublin. É uma coisa maravilhosa ser convidado para vir até aqui ver Sua Santidade. Não pude encontrá-lo na visita à Irlanda.


Susan Calder saiu da estrada em frente aos portões de ferro, e Devlin mostrou o passe de segurança aos dois policiais que se adiantaram.

— Alguém passou por aqui nos últimos minutos?

— Não, sir — disse o oficial. — Veio um monte de convidados antes de o helicóptero chegar.

— Ande logo! — disse Devlin.

Susan subiu pela entrada da mansão com certa velocidade. — O que acha?

— Ele está aqui — disse Devlin. — Aposto minha vida.


— Já encontrou Sua Santidade, padre? — perguntou irmã Anne.

— Não, acabei de chegar da Cantuária com uma mensagem para ele.

Agora cruzavam o pátio de cascalho, passando pelos dois policiais ao lado dos carros, subindo os degraus, sem chamar atenção dos dois guardas de segurança uniformizados, e entrando pela grande porta de carvalho. O hall era espaçoso, com uma escadaria central dando para o piso superior. Portas de folhas duplas estavam abertas à direita, revelando uma grande sala de recepções cheia de convidados, muitos deles altos dignitários da Igreja.

Cussane e as freiras andaram para a sala.

— E onde fica a famosa capela? — perguntou ele. — Eu nunca a vi.

— Ah, é tão bonita! — disse irmã Agatha. — Um passado de orações. A entrada é pelo hall. Vê onde o monsenhor está parado?

Não chegaram a entrar na sala de recepções. Pararam.

— Vão me dar licença um instante — disse Cussane. — Tenho que entregar a mensagem a Sua Santidade antes que se reúna aos convidados.

— Esperaremos aqui, padre — disse irmã Agatha. — Gostaríamos de entrar com você na recepção.

— Claro! Não demoro.

Cussane passou pelo pé da escadaria e se dirigiu para o canto do hall onde o monsenhor estava parado, resplandecente em preto e escarlate.

Era um velho de cabelos grisalhos e falava com sotaque italiano.

— O que procura, padre?

— Sua Santidade.

— Impossível. Ele está fazendo suas orações.

Ele segurou o velho pelo rosto, girou a maçaneta da porta e forçou o monsenhor a entrar. Fechou a porta atrás de si com um chute.

— Sinto muito, de verdade, padre. — Ele golpeou o velho no pescoço e depositou seu corpo no chão suavemente.

Um túnel longo e estreito se estendia à frente dele sob uma luz tênue, depois degraus que conduziam a uma porta de carvalho lá no fim. A dor era terrível agora, consumindo todas as suas forças. Mas não faltava muito. Lutou para poder respirar por um instante, então tirou a Stetchkin do bolso e avançou.


Susan Calder parou derrapando em frente à escada da casa. Devlin saltou e ela o seguiu. O passe de segurança já estava em sua mão quando o sargento se aproximou.

— Aconteceu alguma coisa anormal? Entrou alguém estranho?

— Não, sir. Muitos visitantes vieram antes de o papa chegar. Duas freiras e um padre acabam de entrar.

Ele se aproximou das irmãs Agatha e Anne. — Acabam de chegar, irmãs?

Um pouco além, os convidados conversavam animadamente, os garçons circulando entre eles.

— Isso mesmo — disse irmã Agatha.

— Não havia um padre?

— Ah, sim, nosso bom padre de Dublin!

O estômago de Devlin ficou embrulhado.

— Onde está ele?

— Ele tinha uma mensagem para Sua Santidade, uma mensagem de Cantuária, mas eu lhe disse que o Santo Padre estava na capela, e então ele foi falar com o monsenhor lá na porta. — A irmã Agatha se dirigiu para o hall e parou. — Oh, parece que o monsenhor não está mais lá.

Devlin já estava correndo com a Walther na mão, quando mergulhou pela porta aberta e deu de cara com o monsenhor estirado no chão. Estava atento para a presença de Susan Calder atrás dele, e mais atento ainda para o padre de batina preta, subindo os degraus no fim do túnel e segurando a maçaneta da porta de carvalho.

— Harry! — gritou Devlin.

Cussane se virou e atirou sem a menor hesitação, a bala estraçalhando o antebraço direito de Devlin, arremessando-o contra a parede.

Devlin largou a Walther quando caiu, e Susan deu um grito, colando-se à parede.

Cussane permaneceu onde estava, mas não atirou. Em vez disso, deu um sorriso horrível.

— Fique fora disso, Liam! — gritou. — Último ato! — e virou-se, abrindo a porta da capela.

Devlin estava em péssimo estado, perplexo pelo choque. Segurou a Walther com a mão esquerda, atrapalhou-se e deixou a arma cair, enquanto tentava se firmar. Ergueu os olhos, olhando fixamente para a garota.

— Pegue a arma! Impeça-o! Agora é com você!

Susan Calder não entendia nada de armas, além de umas poucas horas de instruções básicas em seu curso de formação. Tinha praticado tiro a distância algumas vezes, e era tudo. Mas pegou a Walther sem hesitação e correu pelo túnel. Devlin se levantou e a seguiu.


A capela era um lugar de sombras consagradas pelos séculos. Havia uma única lâmpada iluminando aquele santuário, e Sua Santidade, o papa João Paulo II, estava ajoelhado com suas vestes brancas diante do altar simples. O som débil do silenciador da Stetchkin, abafado pela porta, não o tinha alertado, mas as vozes crescentes, sim. Estava em pé e se virando quando a porta foi aberta com um estrondo, e Cussane entrou.

Ficou parado lá, o rosto ensopado de suor, estranhamente medieval em sua batina preta, a Stetchkin abaixada contra a coxa.

João Paulo disse calmamente: — Padre Harry Cussane.

— Está enganado. Sou Mikhail Kelly — Cussane riu selvagemente. — Um ator itinerante de muitas faces.

— É o padre Harry Cussane — disse João Paulo, inflexível. — Padre outrora, padre agora, padre eternamente. Deus não permitiria o contrário.

— Não! — Gritou Cussane numa espécie de agonia. — Eu renego isso!

A Stetchkin subiu, e Susan Calder entrou atabalhoadamente pela porta, caindo de joelhos, a saia se levantando, a Walther apontada com duas mãos.

Ela atingiu Cussane duas vezes, seccionando sua espinha; ele deu um grito de agonia e ficou de joelhos em frente ao papa. Permaneceu naquela posição por um instante e então rolou de costas, ainda apertando a Stetchkin na mão.

Susan estava de joelhos, baixando a arma, observando o pontífice retirar a Stetchkin gentilmente da mão de Cussane.

Ela ouviu o papa dizer em inglês: — Quero que faça um ato de contrição. Diga comigo: Oh meu Deus, que por obra de sua infinita bondade...

— Oh meu Deus — disse Cussane e morreu. O papa, de joelhos, começou a rezar, as mãos unidas. Atrás de Susan, Devlin se arrastou pelo chão, sentando-se de costas contra a parede, segurando o braço ferido, o sangue escorrendo entre os dedos. Ela deixou cair a arma e se acercou dele, como que para aquecê-lo.

— Será que alguém já se sentiu assim? — ela perguntou, ríspida. — Suja e envergonhada?

— Bem-vinda ao clube, garota — disse Liam Devlin e passou o braço bom em torno dela.


Epílogo

Eram seis horas de uma manhã cinzenta, armando chuva no céu, quando Susan Calder atravessou com seu Mini o portão do cemitério católico de St. Joseph, em Highgate.

Era o tipo de lugar pobre, com muitos monumentos em estilo gótico, de um passado obviamente próspero, mas agora coberto pelo mato, nada além da decadência.

Ela não estava de uniforme. Usava uma echarpe escura, capa azul com cinto e botas de couro. Estacionou em frente ao alojamento do administrador e encontrou Devlin ao lado de um táxi. Vestia a costumeira capa Burberry, chapéu de feltro, e o braço estava numa tipoia preta. Ela saltou do carro, e ele veio andando para reunir-se a ela.

— Desculpe o atraso. O trânsito — disse ela. — Já começaram?

— Já — sorriu ele, irônico. — Acho que Harry apreciaria. É como um lugar péssimo, num filme de segunda categoria. Até mesmo a chuva faz tudo parecer outro clichê — disse ele, enquanto pingos grossos começavam a cair.

Avisou ao motorista do táxi para esperar e junto com a garota caminhou ao longo dos túmulos.

— É só mais um lugar — disse ela.

— Tinham que escondê-lo em algum canto. — Ele pegou um cigarro com a mão boa e acendeu. — Ferguson e o pessoal do gabinete acharam que você devia receber algum tipo de condecoração.

— Uma medalha? — Havia um espanto genuíno em seu rosto. — Podem ficar com ela. Ele tinha que ser impedido, mas isso não significa que gostei de fazer aquilo.

— De qualquer modo, decidiram não dar. Haveria muita publicidade; ia requerer explicação. E não podem fazer isso. Ainda mais com Harry querendo que a KGB levasse a culpa.

Chegaram à cova e pararam a pouca distância, sob uma árvore. Havia dois coveiros, um padre, uma mulher de capa preta e uma garota.

— Aquela mulher é Tanya?

— Sim, e a garota é Morag Finlay — disse Devlin. — As três mulheres da vida de Harry Cussane, juntas, para vê-lo ser enterrado. Primeiro, aquela que ele considerava erroneamente uma criança. Depois, a criança que ele salvou. É irônico. Harry, o redentor.

— E a terceira sou eu — disse ela. — Sua executora, e eu nunca o encontrei antes.

— Só uma vez — disse Devlin. — E foi suficiente. Estranho, mas as pessoas mais importantes em sua vida foram mulheres, e no fim acabaram sendo a morte para ele.

O padre borrifou a cova e o caixão com água benta. Depois, o incenso. Morag começou a chorar, e Tanya Voroninova passou o braço em torno dela, enquanto a voz do padre se elevava numa prece.

— Senhor Jesus Cristo, Salvador do mundo, nós encomendamos o corpo do seu servo e rezamos por ele.

— Pobre Harry — disse Devlin. — Desce o pano, e ele nem mesmo conseguiu uma plateia cheia.

Devlin segurou o braço de Susan. Fizeram meia-volta e foram embora na chuva.

 

 

                                                                  Jack Higgins

 

 

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