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SEGREDO DE PRATA / Patricia Briggs
SEGREDO DE PRATA / Patricia Briggs

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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O motor de arranque queixou-se enquanto fazia girar o pesado motor do velho Buick. Senti em relação a ele uma imensa empatia, uma vez que lutar fora da minha categoria era algo com que estava intimamente familiarizada. Sou uma metamorfa coiote movendo-se num mundo de lobisomens e vampiros — falar em desigualdade é um eufemismo.
— Mais uma vez — disse a Gabriel, o meu gerente de escritório de dezassete anos, que estava sentado no banco do condutor do Buick da sua mãe. Funguei e sequei o nariz na ombreira do meu fato-macaco. Narizes com pingo são parte integrante de se trabalhar no inverno.
Adoro ser mecânica, com o nariz a pingar, as mãos gordurosas, e as outras coisas incluídas.
É uma vida repleta de frustrações e nós dos dedos esfolados, a que se seguem breves momentos de triunfo que fazem com que tudo o resto valha a pena. Considero-a um refúgio do caos que tem sido a minha vida ultimamente: não é provável que alguém venha a morrer caso não lhe consiga reparar o carro.
Nem mesmo se se tratar do carro da mãe dele. Tinha sido um dia de aulas curto, e Gabriel usara o seu tempo livre para reparar o carro da mãe. Ele fizera com que o carro passasse de funcionar mal a não funcionar de todo, e depois um amigo seu rebocara-o até à oficina para ver se eu conseguia repará-lo.
O Buick emitiu mais uns quantos ruídos pouco saudáveis. Afastei-me às arrecuas do compartimento do motor aberto. Combustível, fogo e ar fazem o motor funcionar — desde que o motor em questão não esteja pifado.
— Não está a pegar — disse Gabriel, como se eu não me tivesse dado conta.

 


 


Agarrou o volante com mãos elegantes, porém maltratadas pelo trabalho. Tinha uma mancha de massa lubrificante na maçã do rosto e um dos olhos estava vermelho porque não tinha colocado óculos de segurança quando rastejara para debaixo do carro. Fora recompensado com uma grande porção de esterco — metal enferrujado e massa lubrificante — no olho.

Embora os meus enormes aquecedores atenuassem o frio, ambos estávamos de casaco vestido. Não existe maneira de manter uma oficina verdadeiramente quente quando se passa o dia a subir e a baixar as portas para a entrada e saída de carros.

— Mercy, a minha mamá tem de estar no trabalho daqui a uma hora.

— A boa notícia é que não acho que tenha sido por causa de alguma coisa que tenhas feito. — Afastei-me do compartimento do motor e fixei-me nos seus olhos nervosos. — A má notícia é que não vai estar a funcionar daqui a uma hora. Resta saber se algum dia vai voltar a andar na estrada.

Deslizou para fora do carro e enfiou a cabeça debaixo do capô para observar fixamente o motor incapacitado, como se pudesse vir a encontrar algum fio no qual eu não tivesse reparado e que, miraculosamente, o pusesse a funcionar. Deixei-o com a sua cisma e atravessei o corredor até ao meu escritório.

Atrás do balcão estava uma tábua suja, que em tempos fora branca, com ganchos onde colocava as chaves dos carros em que estivesse a trabalhar — e uma meia dúzia de chaves-mistério prévias à minha atividade profissional na oficina. Peguei num molho de chaves presas num porta-chaves com o símbolo da paz pintado com as cores do arco-íris e depois regressei à oficina a passo largo. Gabriel estava novamente sentado atrás do volante do Buick da sua mãe e parecia saturado. Entreguei-lhe as chaves através da janela aberta.

— Leva o Fusca — disse-lhe. — Diz à tua mãe que os pisca-piscas não funcionam, portanto vai ter de fazer sinais com as mãos. E diz-lhe também para não puxar o volante com muita força senão ele sai.

No seu rosto desenhou-se uma expressão obstinada.

— Ouve — disse antes que ele tivesse possibilidade de recusar, — não me vai custar nada. Não dá para transportar os miúdos todos — não que o Buick desse; eram muitos miúdos — e o sistema de aquecimento não é lá grande coisa. Mas anda, e eu não estou a usá-lo. Trabalhamos no Buick fora do horário laboral até que fique pronto, e ficas a dever-me essas horas.

Estava plenamente convencida de que o motor tinha partido para a sucata lá de cima — e sabia que Sylvia, a mãe de Gabriel, não tinha dinheiro para comprar um motor novo, e menos ainda um carro mais recente. Portanto, iria solicitar Zee, o meu velho mentor, para nele usar a sua magia. Magia literal — não havia muito de figurativo em relação a Zee. Era um ser feérico, um gremlin cujo elemento natural era o metal.

— O Fusca é o carro que está a usar para o seu projeto, Mercy. — O protesto de Gabriel foi pouco firme.

O meu último projeto, um Karmann Ghia, fora vendido. Com a minha fatia dos lucros, partilhados com um extraordinário fabricante de carroçarias e um estofador, comprara um Carocha de 1971 e uma VW Kombi de 1965 com um dinheirinho que sobrara. A Kombi era belíssima e não funcionava; o Fusca tinha o problema oposto.

— Primeiro vou trabalhar na Kombi. Leva as chaves.

A expressão no seu rosto parecia a de alguém mais velho.

— Só se deixar que as minhas irmãs venham fazer a limpeza aos sábados até lhe devolvermos o Fusca.

Não sou estúpida. As suas irmãs mais novas sabiam trabalhar — ia tirar o máximo proveito da troca.

— Combinado — devolvi, antes que ele pudesse retirar o que propusera. Enfiei-lhe as chaves na mão. — Leva o carro à Sylvia antes que ela se atrase.

— Depois volto.

— É tarde. Vou para casa. Volta só amanhã, à hora do costume.

Amanhã era sábado. Oficialmente, a oficina estava fechada aos fins de semana, mas excursões recentes para combater vampiros tinham-me afetado os lucros. De modo que vinha mantendo as portas abertas até mais tarde e trabalhando ao fim de semana para ganhar um dinheirinho extra.

Combater o mal não dá dinheiro: segundo a minha experiência, o que acontece é precisamente o contrário. Tinha esperança de que a minha história com vampiros tivesse acabado — o último incidente quase provocara a minha morte, e o mais provável era a minha sorte estar a esgotar-se; uma mulher cujo maior talento consiste em transformar-se em coiote não tem nada que se aventurar nos campeonatos principais.

Disse a Gabriel para ir embora e dei início ao processo de fechar a oficina. Baixar as portas, regular o aquecimento para os dezasseis graus, desligar as luzes. Caixa registadora no cofre, a minha bolsa para fora. Precisamente na altura em que ia desligar o último interruptor, o meu telemóvel tocou.

— Mercy? — Era o filho de Zee, Tad, que frequentava uma universidade da Ivy League na Costa Leste, com uma bolsa de estudos. Os seres feéricos eram considerados uma minoria, portanto o seu estatuto oficial de metade feérico e as suas notas tinham feito com que entrasse — o trabalho árduo mantinha-o lá.

— Ei, Tad. Então?

— Ontem à noite recebi uma mensagem estranha no meu telemóvel. O Phin deu-te alguma coisa?

— O Phin?

— Phineas Brewster, o tipo que te disse para procurares quando a polícia tinha acusado o meu pai de homicídio e precisavas de umas informações sobre os seres feéricos para descobrires quem tinha realmente matado aquele homem.

Demorei uns segundos a responder.

— O tipo da livraria? Ele emprestou-me um livro. — Há já algum tempo que tencionava devolvê-lo. Simplesmente... quantas vezes temos a oportunidade de ler um livro sobre as misteriosas criaturas feéricas, escrito pelas próprias criaturas feéricas? Estava escrito à mão e era difícil de decifrar, de leitura lenta, e Phin não me parecera ansioso por tê-lo de volta quando mo emprestara. — Diz-lhe que eu peço desculpa e que lho devolvo esta noite. Tenho um encontro mais logo, mas posso ir entregá-lo antes disso.

Fez-se uma breve pausa.

— Na verdade, não foi muito claro em relação a querê-lo de volta ou não. Disse simplesmente: «Diz à Mercy para tomar conta daquela coisa que lhe dei.» Agora não consigo contactá-lo; tem o telemóvel desligado. Foi por isso que optei por te ligar. — Produziu um ruído frustrado. — Acontece, Mercy, que ele nunca desliga o raio do telemóvel. Gosta de ter a certeza de que a avó dele pode contactá-lo.

Avó? Talvez Phin fosse mais novo do que eu pensava.

Estás preocupado — disse-lhe.

Emitiu um ruído autodepreciativo.

— Eu sei, eu sei. Estou paranoico.

— Não há problema — repliquei. — Em todo o caso, tenho de o devolver. Mas, a menos que esteja aberto até muito tarde, não vai estar na livraria na altura em que puder lá ir. Sabes o endereço da casa dele?

Sabia. Anotei-o e, antes de desligar, deixei-o com palavras tranquilizadoras. Enquanto trancava a porta e ativava o alarme, relanceei os olhos à câmara escondida. Adam provavelmente não estava a ver-me — a menos que alguém fizesse disparar um alarme, as câmaras funcionavam sozinhas e simplesmente enviavam imagens para serem gravadas. Ainda assim... quando me encaminhei para o carro, beijei a minha mão e soprei na direção da pequena lente que vigiava todos os meus movimentos, após o que disse com os lábios: «Vemo-nos hoje à noite.»

Também o meu namorado tinha a preocupação de saber quão bem uma coiote seria capaz de se movimentar entre lobos. O facto de ele ser um lobisomem Alfa tornava-o um pouco ditatorial no que à sua preocupação dizia respeito — e a condição de diretor-geral de uma empresa de segurança que trabalhava para diversas agências governamentais dava-lhe acesso a uma série de ferramentas para satisfação dos seus instintos protetores. Tinha ficado zangada quando ele mandara instalar as câmaras, mas agora achava-as tranquilizadoras. Uma coiote adapta-se; é assim que ela sobrevive.

Phineas Brewster vivia no terceiro andar de um novo complexo de condomínios em West Pasco. Não parecia o tipo de lugar onde um colecionador de livros antigos viveria — mas quiçá tivesse a dose necessária de pó, mofo e bolor no trabalho e não precisasse de mais em casa.

Estava a meio caminho entre o meu carro e o edifício quando me apercebi de que não trouxera o livro ao sair do carro. Hesitei, porém decidi deixá-lo onde estava, enrolado numa toalha no banco traseiro do Rabbit. A toalha tinha como propósito proteger o livro — no caso de não ter removido na totalidade a massa lubrificante das minhas mãos — mas era boa para o esconder de potenciais ladrões, cuja existência parecia, em todo o caso, improvável neste local.

Subi dois lanços de escada e bati à porta na qual se lia 3B. Após contar até dez, toquei à campainha. Nada. Toquei à campainha uma vez mais, e a porta do 3A foi aberta.

— Ele não está em casa — disse uma voz rude.

Voltei-me para deparar com um velho descarnado, vestido com simplicidade e elegância: botas velhas, calças de ganga novas, uma camisa de vaqueiro e uma gravata também de vaqueiro. A única coisa que lhe faltava era um chapéu de vaqueiro. Havia qualquer coisa — penso que seriam as botas — que cheirava vagamente a cavalo. E a ser feérico.

— Não está?

Oficialmente, todos os seres feéricos têm a sua identidade revelada publicamente e assim tem sido há muito tempo. Mas a verdade é que os Senhores Cinzentos que governam os seres feéricos foram muito seletivos em relação àqueles de que o público tem conhecimento e àqueles que poderão incomodar o público — ou que são mais úteis fazendo-se passar por humanos. Por exemplo, existem alguns senadores que são criaturas feéricas sob disfarce. Não há nada na Constituição que indique a assunção do cargo de senador por parte de uma criatura feérica como algo ilegal, e os Senhores Cinzentos pretendem que isso se mantenha.

Este ser feérico estava a esforçar-se bastante por passar por humano; não haveria de gostar que eu dissesse que não o era. Portanto guardei a minha descoberta para mim.

Os seus olhos desbotados cintilaram enquanto abanava a cabeça.

— Não, não esteve em casa o dia todo.

— Sabe onde ele está?

— O Phin? — O velho riu-se, pondo a descoberto uma dentição tão uniforme e branca que parecia falsa. Talvez fosse. — Ora, ele passa a maior parte do tempo na livraria. Por vezes as noites também.

— Ele estava aqui a noite passada? — perguntei.

Olhou-me e exibiu um sorriso rasgado.

— Não. Ele não. Talvez tenha comprado a biblioteca de uma propriedade qualquer e esteja na livraria a catalogá-la. Às vezes faz isso. — O vizinho de Phin relanceou os olhos na direção do céu, avaliando as horas. — Ele não abre a porta depois da hora de fecho. Enfia-se na cave e não consegue ouvir ninguém. O melhor será esperar até amanhã de manhã e procurá-lo na livraria.

Olhei para o meu relógio. Precisava de ir a casa preparar-me para o meu encontro com Adam.

— Se tiver alguma coisa para lhe entregar — disse o velho, de olhos claros como o céu, — pode deixá-la comigo.

Os seres feéricos não mentem. Costumava pensar que não conseguiam mentir, mas o livro que pedira emprestado esclarecia de forma bastante elucidativa que havia outros fatores envolvidos. O vizinho de Phin não disse que ele estava a trabalhar na livraria. Disse «talvez». Tão-pouco disse que não sabia onde Phin estava. Os meus instintos estavam a fervilhar e tive de me esforçar por manter uma aparência descontraída.

— Estou aqui para verificar se está bem — disse-lhe, o que era verdade. — Tem o telemóvel desligado e estava preocupada com ele. — E depois arrisquei. — Ele não mencionou nenhum dos vizinhos dele. Vive aqui há pouco tempo?

Ele disse:

— Mudei-me há não muito tempo.

Depois, mudando de assunto, comentou:

— Talvez tenha deixado o carregador em casa. Tentou ligar para o número da livraria?

— Apenas tenho um número dele — respondi. — Acho que é o do telemóvel pessoal.

— Se me disser o seu nome, eu comunico-lhe que esteve aqui.

Deixei que o meu sorriso amigável se ampliasse.

— Não precisa de se dar a esse trabalho. Eu encontro-o. É bom saber que o Phin tem vizinhos que olham por ele. — Não lhe agradeci; agradecer a uma criatura feérica implica ficar em dívida para com ela, e estar em dívida para com uma criatura feérica é uma coisa muito má. Limitei-me a dirigir-lhe um aceno enérgico a partir do fundo das escadas.

Não tentou deter-me, mas observou todo o meu percurso até ao carro. Arranquei e, depois de desaparecer do seu campo de visão, encostei para telefonar a Tad.

— Olá — escutei do outro lado. — Este é o meu atendedor de chamadas. Talvez esteja a estudar; talvez tenha saído para passar um bom bocado. Deixe o seu nome e número e talvez lhe ligue de volta.

— Ei — disse ao atendedor de chamadas de Tad. — É a Mercy. O Phin não estava em casa. — Hesitei. De regresso à segurança do meu carro, ocorreu-me que talvez pudesse ter exagerado em relação ao seu vizinho. Quanto mais conheço os seres feéricos, mais assustadores me parecem. No entanto, era provável que fosse inofensivo. Ou que fosse de facto assustador — mas não tinha nada a ver com Phin.

Portanto, acrescentei:

— Conheci o vizinho do Phin, que é um ser feérico. Sugeriu-me que ligasse para a livraria. Tens o número da livraria? Tentaste ligar para lá? Vou continuar à procura dele.

Desliguei e pus o Rabbit em movimento com a intenção de ir para casa. Todavia, não sei como, dei por mim na interestadual em direção a Richland, e não a Finley.

O misterioso telefonema de Phin a Tad e a desconfiança que sentia em relação ao vizinho de Phin puseram-me nervosa. O trajeto até à livraria de Phin era curto, disse a mim mesma. Não havia problema nenhum em passar por lá. Tad encontrava-se preso no outro lado do país e estava preocupado.

O Uptown é um centro comercial a céu aberto, o mais antigo de Richland. Contrariamente aos seus homólogos luxuosos mais recentes, quando se olha para o Uptown, a sensação que se tem é que alguém pegou em duas dúzias de lojas de diversos estilos e dimensões, as juntou sem critério e colocou um parque de estacionamento à sua volta.

Alberga os tipos de negócios que não prosperariam no centro comercial maior de Kennewick: restaurantes que não pertencem a nenhuma cadeia, várias lojas de antiguidades (velharias), um par de lojas de roupa em segunda mão, uma loja de música, uma casa de donuts, um ou dois bares e várias lojas cuja melhor descrição será «ecléticas».

A livraria de Phin situava-se perto da extremidade sul do centro comercial, e os seus amplos vidros haviam sido escurecidos para proteger os livros dos potenciais danos provocados pelo sol. Uma inscrição dourada no vidro maior designava-a: LIVRARIA BREWSTER, LIVROS USADOS E RAROS.

Não havia qualquer luz acesa atrás dos estores, e a porta estava trancada. Encostei o ouvido ao vidro e pus-me à escuta.

Na forma humana continuo a ter uma excelente audição, não tão apurada quanto a da coiote, mas suficientemente boa para perceber que não havia ninguém a andar no interior da loja. Bati à porta, mas não obtive qualquer resposta.

No vidro à direita da porta encontrava-se um letreiro com o horário da livraria: das dez às dezoito, de terça a sábado. Domingo e segunda mediante combinação. O número apontado era o que eu já tinha. Pouco passava das dezoito.

Bati à porta uma última vez, depois voltei a relancear os olhos ao meu relógio. Se respeitasse o limite de velocidade, teria dez minutos até o lobisomem me aparecer à porta.

O carro do meu companheiro de casa estava no caminho de entrada, em perfeita sintonia com a minha caravana de seis metros por vinte e sete, de 1978. Carros muito caros, à semelhança das verdadeiras obras de arte, influenciam o ambiente para se acomodarem. Pelo simples facto de ali estar, o seu carro transformava a minha caravana numa casa da classe alta — independentemente do aspeto da própria caravana.

Samuel tinha o mesmo dom de nunca estar deslocado, sempre integrado, ao mesmo tempo que veiculava a sensação de que se estava na presença de alguém especial, alguém importante. As pessoas gostavam dele instintivamente, e confiavam nele. Isso era-lhe útil enquanto médico, mas sentia-me inclinada a pensar que lhe era útil em demasia enquanto homem. Estava demasiado habituado a levar a dele avante. Quando o charme não funcionava, usava um cérebro tático que não ficava atrás do de Rommel.

Daí a sua presença como meu companheiro de casa.

Demorara algum tempo até descortinar a verdadeira razão pela qual fora viver para a minha casa: Samuel precisava de um bando. Os lobisomens não se dão bem sozinhos, especialmente os lobos mais velhos, e Samuel era um lobo muito velho. Velho e dominante. Em qualquer bando, excetuando o do seu pai, ele seria um Alfa. O seu pai era Bran, o Marrok, o mais über lobisomem de entre todos.

Samuel era médico, e isso era uma responsabilidade mais do que suficiente para ele. Não queria ser um Alfa; não queria permanecer no bando do pai.

Adotava uma postura de lobo solitário, vivendo comigo no território do Bando da Bacia do Columbia, mas sem fazer parte dele. Eu não era uma mulher-loba, mas tão-pouco era uma humana indefesa. Crescera no seio do bando do seu pai, e isso significava que era quase da família. Até ao momento, ele e Adam, o Alfa do bando local — e meu namorado —, não se tinham mandado um ao outro com o intuito de matar. Estava moderadamente esperançosa de que esse estado de coisas assim se mantivesse.

— Samuel? — chamei enquanto entrava em casa apressadamente. — Samuel?

Não respondeu, mas conseguia sentir-lhe o cheiro. O odor característico do lobisomem era demasiado forte para poder ser reduzido a um vestígio de passagem. Avancei lentamente através do estreito corredor de acesso ao seu quarto e bati suavemente à porta.

Não era incaracterístico dele ignorar-me quando chegava a casa.

Preocupava-me com Samuel ao ponto de ficar paranoica. Ele não estava muito bem. Destroçado, mas funcional, pensava, com uma depressão latente que parecia nem piorar nem melhorar à medida que os meses passavam. O seu pai suspeitava que algo de errado se passava, e eu tinha a convicção de que a razão pela qual Samuel estava a viver comigo e não na sua própria casa, em Montana, se prendia com o facto de ele não querer que o seu pai se inteirasse completamente do quanto estava destroçado.

Samuel abriu a porta, com o seu eu habitual, alto e esguio: atraente, como o é a maioria dos lobisomens, independentemente da estrutura óssea. Perfeita saúde, juventude permanente e músculos de sobra são uma fórmula bastante consistente para a boa aparência.

— Tocaste à campainha? — disse numa imitação inexpressiva de Lurch, descendo a voz ao registo mais grave que alguma vez lhe escutara. Na noite anterior, assistíramos a uma série de episódios da Família Adams na televisão. Se estava a ser engraçado, era porque estava bem. Mesmo considerando que não me estava a olhar diretamente, como se pudesse estar preocupado com o que eu viesse a detetar.

Uma Medea ronronante encontrava-se estirada sobre um dos ombros. A minha gatinha Manx, de olhos semicerrados, dirigiu-me um olhar agradado enquanto ele a afagava. Quando a mão de Samuel lhe percorreu o dorso, pôs as garras posteriores a descoberto e arqueou o seu rabo de cauda no ar.

— Ai — disse, tentando afastá-la, porém ela tinha cravado as garras na sua camisa de flanela gasta e estava agarrada a ele com mais firmeza do que velcro — e infligindo mais dor, também.

— Hum — pronunciei, tentando não rir. — Eu e o Adam vamos sair hoje à noite. Jantarás sozinho. Não tive oportunidade de ir à mercearia, por isso há pouca coisa.

Ficou de costas voltadas para mim enquanto se curvava sobre a cama de modo a que, no caso de se conseguir desprender da gata, ela não caísse no chão.

— Está bem — replicou. — Ai, gata. Não sabes que eu era capaz de te comer de uma só dentada? Nem sequer — ai —, nem sequer ficava a cauda à mostra.

Deixei-o entregue à sua tarefa e apressei-me ao meu quarto. O meu telemóvel tocou antes que alcançasse a porta.

— Mercy, ele está a caminho e tenho uma informação para ti — disse a voz da filha adolescente de Adam ao meu ouvido.

— Ei, Jesse. Onde é que vamos esta noite?

Ao pensar nele, conseguia sentir a sua expectativa e o couro macio do volante sob as suas mãos — porque Adam não era apenas o meu namorado; era o meu companheiro.

Em termos lupinos, isso significava algo ligeiramente diferente para cada casal. Estávamos ligados não apenas pelo amor, mas pela magia. Tomei conhecimento de que alguns casais mal conseguem perceber a diferença... e alguns tornam-se virtualmente a mesma pessoa. Uf. Felizmente, eu e Adam encontrávamo-nos algures no meio. No essencial.

Tínhamos sobrecarregado o circuito de magia entre nós na primeira ocasião em que firmámos o nosso vínculo. Desde então provara ser errática e invasiva, aparecendo e desaparecendo intermitentemente durante umas horas, para depois desaparecer novamente durante dias. Desconcertante. Suponho que já me teria habituado ao vínculo com Adam se a magia fosse consistente, tal como Adam me assegurou que deveria ser. Nas circunstâncias atuais, tendia a apanhar-me de surpresa.

Senti o volante vibrar sob a mão de Adam no momento em que ligou o carro. Depois arrancou e eu estava com a roupa do trabalho a falar com a filha dele ao telefone.

— Jogar bowling.

— Obrigada, miúda — disse-lhe. — Eu trago-te um gelado de cone. Tenho de ir tomar um duche.

— Deves-me cinco dólares, embora um gelado até fosse bem-vindo — devolveu com uma firmeza de mercenária que eu respeitava. — É bom que te despaches a tomar esse duche.

Eu e Adam tínhamos um jogo, algo por pura diversão. O lobo nele a brincar comigo, pensei, porque a sensação que dava era essa: um jogo simples sem perdedores era uma brincadeira de lobo, algo que eles faziam com aqueles que amavam. Não acontecia frequentemente com o bando como um todo, mas no seio de grupos mais pequenos, sim.

O meu parceiro não me dizia onde nos ia levar — deixando para mim a tarefa de descobrir os seus planos através dos meios necessários. O facto de esperar que fosse bem-sucedida era um sinal do seu respeito.

Esta noite subornara a filha dele para que me telefonasse, informando-me de tudo o que soubesse, mesmo que fosse apenas o que Adam tinha vestido quando saísse porta fora. Então eu vestir-me-ia apropriadamente — e fingir-me-ia espantada por combinarmos tão bem sem que eu tivesse a mais pálida ideia de onde me ia levar.

Um jogo para namoriscar, mas também um jogo concebido para nos distrair a ambos da razão pela qual estávamos a sair juntos em vez de partilharmos o mesmo espaço enquanto parceiros. O bando dele não gostava que a sua companheira fosse uma metamorfa coiote. Ainda mais do que em relação aos da sua espécie, os lobos não gostam de partilhar território com outros predadores. Mas tinham tido muito tempo para se habituarem a isso, e a maioria deles havia-se resignado — até Adam me ter introduzido no bando. Não devia ter sido possível. Nunca ouvi falar em um companheiro que não fosse lobisomem integrar um bando.

Escolhi a roupa que ia vestir e pulei para o chuveiro. A cabeça do chuveiro estava posicionada a um nível baixo, pelo que não me foi difícil manter as tranças fora do alcance do jato de água enquanto esfregava as mãos com pedra-pomes e uma escova de unhas. Já me tinha lavado, mas todo o cuidado era pouco. Muita da sujidade estava entranhada e as minhas mãos nunca viriam a ter o aspeto das de uma modelo.

Quando emergi da casa de banho embrulhada numa toalha, ouvi vozes provenientes da sala de estar. Samuel e Adam estavam a manter um tom de voz deliberadamente baixo de modo a que eu não conseguisse distinguir as palavras, mas não me parecia que houvesse qualquer tipo de tensão. Gostavam um do outro, mas Adam era Alfa e Samuel um lobo solitário mais forte do que ele. Por vezes tinham problemas em estar juntos na mesma sala, mas hoje não era manifestamente o caso.

Estiquei os braços para pegar nas calças de ganga que colocara em cima da minha cama.

Bowling.

Hesitei. Simplesmente não conseguia visualizar na minha cabeça. Não a parte do bowling — tinha a certeza que Adam gostava de bowling. Atirar uma bola pesada contra uma série de pinos indefesos e observar o caos daí resultante é precisamente o tipo de coisa que os lobisomens adoram.

O que eu não conseguia visualizar era Adam a contar a Jesse que me ia levar a jogar bowling. Não numa altura em que andava a tentar esconder os planos que tinha para mim. Na última ocasião em que tínhamos falado, a única coisa que fora capaz de me dizer era a roupa que ele tinha vestida quando saíra de casa.

Talvez estivesse a ser paranoica. Abri o armário e olhei para as escassas opções ali penduradas. Tinha mais vestidos do que no ano anterior. Mais três.

Jesse teria reparado se ele se tivesse aperaltado.

Relanceei os olhos à cama, onde as minhas calças de ganga e uma t-shirt azul-escura me apelavam com o seu conforto. Os subornos podem dar para os dois lados — e Jesse acharia divertido fazer de agente dupla.

Portanto retirei do armário um vestido cinzento-claro, suficientemente elegante para poder ser usado na mais formal das ocasiões e não vistoso ao ponto de parecer deslocado num restaurante ou sala de cinema. Se fôssemos realmente jogar bowling, podia fazê-lo com aquele vestido. Enfiei-me no vestido e desentrancei rapidamente o cabelo, penteando-o.

— Mercy, ainda não estás pronta? — perguntou Samuel com um quê de divertimento na voz. — Não disseste que tinhas um encontro escaldante?

Abri a porta e constatei que não tinha propriamente acertado. Adam trazia um smoking vestido.

Adam é mais baixo do que Samuel, com a constituição física de um praticante de luta livre e o rosto de um... não sei. É o rosto de Adam, e é suficientemente bonito para distrair as pessoas do ar de poder que tem em si. O seu cabelo é escuro e usa-o curto. Numa ocasião disse-me que é para que os militares com que tem de lidar no seu negócio na área da segurança se sintam confortáveis à beira dele. No entanto, nos últimos meses, à medida que o fui conhecendo melhor, fui levada a pensar que o faz porque o seu rosto o embaraça. O cabelo curto remove qualquer indício de vaidade e diz: «Aqui estou. Vamos ao que interessa.»

Amá-lo-ia mesmo que tivesse três olhos e dois dentes, mas por vezes a beleza dele deixa-me simplesmente arrebatada. Pestanejei uma vez, respirei fundo e enxotei a necessidade de proclamá-lo meu de modo a conseguir trazer a minha mente de volta ao modo interativo.

— Ah — disse, estalando os dedos, — eu sabia que me tinha esquecido de alguma coisa. — Corri em direção ao meu roupeiro e saquei um reluzente agasalho prateado que acrescentava ao cinzento o esmero apropriado.

Voltei a sair e deparei com Samuel a dar uma nota de cinco dólares a Adam.

— Eu disse-te que ela ia descobrir — comentou Adam presunçosamente.

— Ainda bem — disse-lhe. — Podes dar esse dinheiro à Jesse. Ela disse-me que íamos ao bowling. Preciso de arranjar uma espiã melhor.

Exibiu um sorriso rasgado e tive de me esforçar para manter uma expressão zangada. Estranhamente, não foi a beleza de Adam-com-um-sorriso que me deliciou quando exibiu um sorriso rasgado — embora a sua aparência fosse verdadeiramente espetacular. Foi a consciência de que o fizera sorrir. Adam não era dado a... jovialidades, exceto comigo.

— Ei, Mercy — disse Samuel enquanto Adam abria a porta principal.

Voltei-me e ele deu-me um beijo na testa.

— Sê feliz. — A estranha frase prendeu-me a atenção, mas não havia nada de estranho no que disse a seguir. — Vou fazer o turno da noite. O mais provável é não te ver quando regressares. — Ergueu a cabeça na direção de Adam, fitando-o num desafio de macho para macho que levou Adam a estreitar os olhos. — Toma conta dela. — Depois empurrou-nos para o exterior e fechou a porta antes que Adam pudesse sentir-se ofendido com a ordem.

Momentos depois, Adam riu e abanou a cabeça.

— Não te preocupes — disse, sabendo que o outro lobo o escutaria através da porta. — A Mercy toma conta de si própria; a mim só me cabe tratar dos estragos posteriormente. — Se não estivesse de olhos cravados nele, não lhe teria visto os lábios torcidos enquanto falava. Como se não gostasse particularmente do que estava a dizer.

Subitamente, senti-me constrangida. Gosto do que sou — mas há imensos homens que não. Sou mecânica. A primeira mulher de Adam era toda curvas delicadas, mas eu sou sobretudo músculo. Uma característica não muito feminina, gostava de dizer a minha mãe em tom de queixa. E depois havia aquelas idiossincrasias que haviam resultado da violação.

Adam estendeu-me a mão, e eu pus a minha na dele. Tinha-se tornado muito bom a convidar o meu toque. A não me tocar primeiro.

Olhei para os nossos dedos entrelaçados enquanto descíamos as escadas do alpendre. Pensava que estava a melhorar, que os tremores involuntários, o medo, estavam a desaparecer. Ocorreu-me que talvez ele tivesse melhorado a sua capacidade de resolver os meus medos.

— Que se passa? — perguntou-me no momento em que parámos ao lado da sua carrinha.

Era tão recente que ainda tinha um autocolante na janela do banco traseiro. Substituíra o seu SUV depois de um dos lobisomens dele ter amolgado o para-choques enquanto me defendia — seguido de um outro incidente em que um elfo da neve (um enorme e grasnante ser feérico) que me estava a perseguir fez cair sobre ele a fachada de um edifício.

— Mercy... — Franziu-me o cenho. — Não me deves nada por causa da porcaria da carrinha.

A mão dele ainda segurava a minha, e por momentos percebi que o nosso vínculo inconstante como parceiros o fizera perceber o que eu estava a pensar. Até uma visão me ter feito cair sobre os joelhos.

Estava escuro e Adam encontrava-se ao computador no escritório da sua casa. Os olhos ardiam-lhe, as mãos doíam-lhe e as costas estavam hirtas das muitas horas de trabalho.

A casa estava silenciosa. Demasiado silenciosa. Nenhuma mulher para proteger do mundo. Já tinha deixado de a amar há muito tempo — é perigoso amar alguém que não nos ama. Tinha sido soldado demasiado tempo para se colocar deliberadamente em risco sem uma boa razão. Ela amava o estatuto dele, o dinheiro dele e o poder dele. E teria amado mais estas características se pertencessem a alguém que lhe obedecesse.

Ele não a amava, mas amara o facto de ter cuidado dela. Amava o facto de lhe comprar pequenos presentes, amava a ideia que tinha dela.

Tê-la perdido fora mau; ter perdido a sua filha fora muitíssimo pior. Jesse espalhava barulho e alegria por onde quer que passasse — e a sua ausência era... difícil. O lobo dentro dele sentia-se inquieto. Era uma criatura que agia consoante o momento, o seu lobo. Era impossível confortá-lo com a ideia de que Jesse viria passar o verão com ele. Como não confortava particularmente o Adam homem. Portanto tentou distrair-se com o trabalho.

Alguém bateu à porta das traseiras.

Empurrou a cadeira para trás e teve de se deter. O lobo estava zangado por alguém ter desrespeitado o seu santuário. Nem mesmo o seu bando tivera coragem suficiente para o procurar em sua casa nos últimos dias.

Quando entrou na cozinha em passo silencioso, tinha o lobo praticamente sob controlo. Abriu a porta das traseiras bruscamente e esperava deparar com um dos seus lobos. Mas era a Mercy.

Não parecia bem-disposta — mas a verdade é que isso raramente acontecia quando tinha de ir a casa dele para lhe falar. Era forte e independente, e de modo algum agradada com o facto de ele interferir, fosse de que maneira fosse, com essa independência. Há já muito tempo que ninguém lhe dava ordens como ela dava — e ele gostava disso. Mais do que seria de esperar de um lobo que era Alfa há vinte anos.

Ela cheirava a óleo de carro queimado, a jasmim por causa do champô que vinha usando naquele mês e a chocolate. Ou talvez este último cheiro proviesse dos biscoitos colocados no prato que ela lhe estendia.

— Toma — disse rigidamente. E ele apercebeu-se de que era timidez o que lhe estreitava os cantos da boca. — O chocolate normalmente ajuda-me a recuperar o equilíbrio quando a vida me prega uma rasteira.

Não esperou que ele dissesse nada, limitando-se a dar meia-volta e regressar para a sua casa.

Ele levou os biscoitos consigo para o escritório. Passados alguns minutos, comeu um. O chocolate, espesso e preto, alastrou-se pela língua, a sua amargura atenuada por uma quantidade pecaminosa de açúcar amarelo e baunilha. Tinha-se esquecido de comer e não se dera conta.

No entanto, não haviam sido o chocolate ou a comida os responsáveis por se ter sentido melhor. Fora a gentileza de Mercy para com alguém que ela via como seu inimigo. E, precisamente nesse instante, apercebeu-se de algo. Ela jamais o amaria por aquilo que ele pudesse fazer por ela.

Comeu mais um biscoito antes de se levantar para preparar o jantar.

Adam pôs fim à ligação entre nós, até esta se reduzir a um fio de teia.

— Desculpa — murmurou-me ao ouvido. — A sério. F... — Engoliu a obscenidade antes que lhe saísse dos lábios. Puxou-me para mais perto de si e apercebi-me de que ambos estávamos sentados na gravilha do caminho de entrada, junto à carrinha. E que sentia a gravilha bastante fria na minha pele nua.

— Estás bem? — disse ele.

— Tens noção do que me mostraste? — perguntei-lhe. A minha voz estava rouca.

— Acho que foi um flasback — respondeu. Já me vira a ter alguns.

— Não foi um dos meus — repliquei. — Foi um dos teus.

Ficou imóvel.

— Foi mau?

Tinha estado no Vietname; era lobisomem desde antes de eu ter nascido — era provável que já tivesse visto muitas coisas más.

— Pareceu-me um momento privado que eu não deveria ter visto — disse-lhe com a máxima honestidade. — Mas não foi mau.

Vira-o no momento em que eu passara a ser algo mais do que uma tarefa para o Marrok.

Recordei como me senti estúpida, postada no alpendre traseiro com um prato de biscoitos para um homem cuja vida acabara de ruir entre as chamas de um divórcio terrível. Não tinha dito nada quando me abrira a porta — pelo que na altura supus que também ele tinha achado a situação estúpida. Depois disso, regressei a casa o mais depressa que consegui sem correr.

Não fazia a menor ideia de que tinha ajudado. Tão-pouco sabia que ele me considerava forte e capaz. Curioso... Sempre tinha pensado que parecia fraca aos olhos dos lobisomens.

E se eu voltasse a estremecer caso ele se esquecesse e colocasse uma mão sobre o meu ombro? O tempo trataria de solucionar isso. Eu já estava muito melhor: os flashbacks diários da violação eram uma coisa do passado. Tínhamos resolvido isso. Adam estava disposto a fazer concessões por mim.

E o nosso vínculo como que se retesou bruscamente, à semelhança de um elástico — o que acontecia às vezes —, e voltou ao sítio, dando-lhe acesso aos meus pensamentos, como se a minha cabeça fosse transparente como vidro.

— Tudo o que precisares — disse ele, o corpo subitamente quieto como o ar da noite. — Tudo o que eu puder fazer.

Relaxei os ombros, enterrando o nariz na sua clavícula, e, instantes depois, o relaxamento era genuíno.

— Amo-te — disse-lhe. — E precisamos de falar sobre aquele assunto de eu te dar dinheiro por causa da carrinha.

— Eu não...

Cortei-lhe a palavra. A minha intenção era levar o meu dedo aos lábios dele ou algo terno como isso. Porém, levantara bruscamente a cabeça em reação à sua resposta e batera com a testa no seu queixo, calando-o de forma muito mais eficaz do que tencionara, visto que mordera a própria língua.

Riu enquanto o sangue lhe escorria pela camisa, e eu balbuciei pedidos de desculpa. Deixou que a cabeça lhe caísse para trás, embatendo na porta da carrinha com um baque.

— Deixa estar, Mercy. Daqui a nada o corte sara sozinho.

Afastei-me até ficar sentada ao seu lado — meio a rir, porque embora provavelmente lhe tivesse doído um bom bocado, tinha razão quando dizia que o ferimento ia sarar em pouco tempo. Era um ferimento menor, e ele era um lobisomem.

— Vais parar de tentar pagar o SUV — disse-me.

— O problema do SUV foi culpa minha — informei-o.

— Tu não atiraste uma parede para cima dele — replicou. — Se ainda fosse o arranjo da amolgadela, até era capaz de te ter deixado pagar...

— Nem sequer tentes mentir-me — irritei-me indignadamente, e ele voltou a rir.

— Está bem. Não teria deixado. Mas, seja como for, é uma questão que não faz sentido, porque depois de a parede lhe ter caído em cima, reparar a amolgadela estava fora de questão. E a falta de controlo do elfo da neve foi da inteira responsabilidade do vampiro...

Podia ter continuado a discutir com ele — normalmente gosto de discutir com Adam. Mas havia coisas das quais gostava mais.

Inclinei-me para a frente e beijei-o.

Sabia a sangue e a Adam — e não parecia ter qualquer problema em transitar do modo de conflito ameno para o modo paixão. Passado algum tempo — não sei quanto —, Adam olhou para baixo, na direção da sua camisa manchada de sangue, e desatou a rir novamente.

— Parece que afinal podemos ir jogar bowling — disse, ajudando-me a levantar.


2

Antes parámos numa casa de bifes para jantar.

Ele deixara o casaco e a camisa formal manchados de sangue no carro e retirara uma t-shirt azul-escura de um saco com roupas diversas, pousado no banco traseiro. Tinha-me perguntado se ficava mal, assim vestido com uma t-shirt e calças de smoking. Não conseguia ver o modo como a t-shirt se colava aos músculos dos seus ombros e costas. Tranquilizei-o, sem mentir — e com cara séria —, que ninguém se ia importar.

Era sexta-feira à noite, e o restaurante estava cheio de gente. Felizmente, o serviço foi rápido.

Depois de a empregada de mesa ter anotado os nossos pedidos, Adam, de forma mais descontraída do que seria de esperar, disse:

— Então o que é que apareceu na tua visão?

— Nada de constrangedor — respondi. — Apenas um episódio em que te fui levar biscoitos.

Os seus olhos iluminaram-se.

— Estou a ver — disse, e os seus olhos relaxaram um tudo-nada, apesar de as bochechas lhe terem ruborescido. — Eu estava a pensar nisso.

— Ficas chateado? — perguntei. — Desculpa se me intrometi.

Abanou a cabeça.

— Não é necessário pedir desculpa. Estás à vontade para ver o que quer que apareça.

— Muito bem — disse eu descontraidamente. — Então a tua primeira vez foi debaixo da bancada?

Levantou bruscamente a cabeça.

— Apanhei-te. O Warren contou-me.

Sorriu.

— Frio, molhado e miserável.

A empregada de mesa pousou a comida à nossa frente e afastou-se apressadamente. Adam deu-me a comer bocados do seu filé mignon mal passado e eu dei-lhe a provar o meu salmão. A comida estava boa, a companhia ainda melhor, e se eu fosse uma gata, teria ronronado.

— Pareces feliz. — Deu um gole do seu café e esticou uma das pernas, encostando o pé ao meu.

— Tu fazes-me feliz — repliquei.

— Podias estar sempre feliz — disse, comendo o último pedaço de batata assada — se viesses viver comigo.

Para acordar ao seu lado todas as manhãs... mas...

— Não. Já te causei problemas de sobra — disse-lhe. — Eu e o bando precisamos de chegar a um... estado de calma antes de eu ir viver contigo. A tua casa é o ponto de encontro, o coração do bando. Eles precisam de um lugar onde se sintam seguros.

— Eles podem adaptar-se.

— Eles estão a adaptar-se o mais depressa que conseguem — disse-lhe. — Primeiro foi o Warren... Sabias que depois de o teres deixado integrar o bando, houve vários outros bandos que também permitiram a integração de lobisomens homossexuais? E agora sou eu. Uma coiote num bando de lobisomens... Tens de admitir que são muitas mudanças para um bando aceitar.

— Quando dermos por ela — disse, — as mulheres vão poder votar ou um homem negro vai ocupar o cargo de presidente. — O seu ar era sério, mas havia humor na sua voz.

— Estás a ver? — Apontei-lhe o garfo. — Pararam todos no século XIX e estás à espera que eles mudem. O Samuel gosta de dizer que a maior parte dos lobisomens é confrontada com o máximo grau de mudança suportável no primeiro dia em que se transforma. É difícil impor-lhes outros tipos de transformação.

— O Peter e o Warren são os únicos que aqui andam desde o século XIX — informou-me Adam. — A maior parte deles é mais nova do que eu.

A empregada de mesa aproximou-se e pestanejou um pouco quando Adam pediu três sobremesas — os lobisomens ingerem imensa comida para se manterem abastecidos. Abanei a cabeça quando ela olhou na minha direção.

Quando se afastou, retomei a conversa a partir do ponto onde fora interrompida.

— Não nos faz mal nenhum esperar uns meses até que as coisas assentem.

Se não concordasse comigo no essencial, já estaria a dormir em sua casa em vez de nos remediarmos com encontros. Percebia tão bem como eu que o facto de me ter puxado para o seu bando causara imenso ressentimento. Talvez se se tratasse de um bando saudável e harmonioso, as coisas não tivessem ficado tão tensas.

Há uns anos, alguns elementos do seu bando começaram a molestar-me — uma coiote a viver na porta ao lado. Os lobisomens, à semelhança dos lobos, são territoriais, e não partilham facilmente o território de caça com outros predadores. Portanto, para pôr fim a isso, Adam declarou-me sua parceira. Na altura, não sabia por que motivo a perseguição parara abruptamente — e Adam não se mostrara particularmente lesto a explicar-me. No entanto, a magia do bando exigiu que a declaração fosse correspondida, e Adam pagou o preço de não ter sido. Isso deixou-o mais fraco, mais rezingão e menos capaz de ajudar o seu bando a permanecer calmo, sereno e tranquilo. Ao incorporar-me como membro no seu bando virtualmente ao mesmo tempo que o nosso laço de união se consumava, Adam não dera aos seus lobisomens a possibilidade de sentirem o chão debaixo dos pés antes de voltar a lançá-los para terreno incerto.

— Mais um mês — disse finalmente. — E depois eles, Samuel incluído, simplesmente vão ter de se habituar à ideia. — Os seus olhos, cor de chocolate preto amargo, estavam sérios quando se inclinou para a frente. — E vais casar comigo.

Sorri, mostrando os dentes.

— Não quererás dizer «Vais casar comigo?»

A minha intenção era ter graça, mas os olhos dele iluminaram-se até pequenas manchas douradas começarem a nadar na escuridão.

— Tiveste a tua oportunidade de escapar, coiote. Agora é tarde de mais. — Sorriu. — A tua mãe está contente por poder usar algumas das coisas para o casamento da tua irmã que não chegou a ser.

O pânico dilatou-me o coração.

— Não falaste com ela sobre isto, pois não? — Tive visões de uma igreja repleta de pessoas e cetim branco por todo o lado. E pombas. A minha mãe tivera pombas no seu casamento. A minha irmã fugira para se ver livre dela. A minha mãe é uma força invencível e não é muito boa a ouvir... quem quer que seja.

O lobo abandonou os seus olhos e exibiu um sorriso rasgado.

— Vives bem com a ideia de casar com um lobisomem que tem uma filha adolescente e um bando que se está a desmoronar... e a tua mãe causa-te pânico?

— Tu conheceste a minha mãe — respondi. — Também te devia causar pânico a ti.

Soltou uma risada.

— Apenas não estiveste com ela tempo suficiente. — Era mais do que justo avisá-lo.

Tivemos sorte e ficámos com a tabela de pontuação só para nós, uma vez que as mulheres que ocupavam a pista à nossa esquerda estavam a arrumar as coisas quando regressámos após a escolha das nossas bolas. A minha era verde brilhante com redemoinhos dourados. A de Adam era preta.

— Não tens imaginação nenhuma — disse-lhe presunçosamente. — Não te fazia mal nenhum teres escolhido uma bola cor-de-rosa para jogar.

— Todas as bolas cor-de-rosa têm buracos do tamanho de dedos de criança — replicou. — As pretas são as mais pesadas.

Abri a boca, mas ele calou-me com um beijo.

— Aqui não — disse-me. — Olha para o nosso lado.

Estávamos a ser observados por um miúdo que teria cerca de cinco anos e uma criança que mal começara a andar, enfiada num vestido cor-de-rosa com folhos.

Levantei o nariz.

— Como se eu me fosse pegar contigo por causa da tua bola. Que infantil.

Dirigiu-me um sorriso rasgado.

— Bem me pareceu que ias achar isso.

Sentei-me e brinquei com os nomes dos jogadores na interface na tabela de pontuação até me sentir satisfeita.

— Faleceu Ontem Rastejando Doente — disse secamente, olhando por cima do meu ombro.

— Pensei em usar os nossos carros como nomes. Agora conduzes um Ford. F-O-R-D.

— Vejam Wow?

— Não há muitas palavras fixes começadas por «W» — admiti.

Inclinou-se sobre o meu ombro e mudou para «Velho Wabbit». — Depois disse-me ao ouvido: — Vué Wild. O meu.

— Consigo viver com isso. — O seu sopro quente no meu ouvido era vué wild, quanto a isso não havia dúvidas.

Até me aproximar de Adam, sempre me sentira como a sua bola de bowling preta — desinteressante mas útil. Não sou nada de especial no departamento da aparência, excetuando a tez ligeiramente exótica herdada do meu pai, que pertencia à tribo Blackfoot. E o Adam... Cabeças são viradas quando Adam passa. Até na pista de bowling ele atraía atenções.

— Vai lá atirar a tua bola preta desinteressante — disse-lhe asperamente. — Lançar charme para cima de quem regista os resultados não te vai ajudar porque os computadores agora registam a pontuação.

— Como se eu precisasse de ajuda — replicou num sorriso afetado, recuando alguns passos antes de se voltar para prestar atenção aos pobres e indefesos pinos.

Atirou a bola com o fervor implacável e o estilo decidido com que fazia tudo. Poder controlado, Adam era isso.

No entanto, comecei a notar algo mais do que admiração nos olhares fixos das pessoas que nos começavam a observar. Ou melhor, a Adam. Ele não era propriamente uma celebridade; fazia por não aparecer nas notícias. Porém, Adam era um dos lobos que se tinha dado a conhecer ao público — um sóbrio e bem-sucedido homem de negócios cuja empresa de segurança protegia a tecnologia nuclear americana de mãos estrangeiras: um tipo porreiro que por acaso era lobisomem. Tudo ótimo e esplêndido quando lido nos jornais, presumo. Mas era diferente ver um lobisomem no sítio onde estavam a jogar bowling.

Têm medo dele.

O pensamento foi tão forte que senti que alguém mo estava a sussurrar ao ouvido, trazendo consigo preocupação.

Olha para eles. Vi os homens aproximarem-se das suas mulheres, as mães a puxar rapidamente os filhos para junto de si. Dali a instantes haveria um êxodo em massa — e isso partindo do pressuposto que alguns dos jovens que se levantaram a cerca de quatro pistas de distância não iriam fazer algo estúpido.

Ele ainda não se apercebeu.

Adam dirigiu-me um sorriso maldoso de agrado enquanto regressava após o seu arremesso — um arremesso mais notável porque não havia nenhum pino despedaçado, nenhum equipamento estragado. Força a mais pode ser tão desvantajosa quanto força a menos.

Olha para o teu lado.

Peguei na minha bola verde e relanceei os olhos às pessoas ao nosso lado. Tal como Adam, estavam demasiado envolvidos no seu jogo para repararem nos sussurros crescentes. Um miúdo estava a gatinhar debaixo das cadeiras e os pais dele estavam a discutir por causa de uma coisa qualquer no quadro de resultados. A sua filha absolutamente adorável — com o seu vestido cor-de-rosa e leõezinhos também cor-de-rosa nos rabos-de-cavalo de cinco centímetros que tinha na nuca — trepara à plataforma de bowling e estava a brincar com a saída de ar da máquinas de retorno de bolas, concebida para secar mãos suadas. Agitava as mãozinhas no ar frio e ria.

O Adam vai sentir-se mal quando reparar que as pessoas se estão a ir embora por causa da sua presença.

Senti suor na testa, o que era ridículo porque estava fresco no interior. Parei a meio caminho entre o banco e a linha de arremesso (ou lá como se chama) e, imitando Adam, levantei a bola e segurei-a contra o meu peito.

Talvez haja uma maneira de mostrar a toda a gente que ele não é um monstro, mas um herói.

Olhei por cima do meu ombro e vi a criança a dar pancadas na saída de ar. O irmão dela regressara da zona dos bancos e estava a brincar com as bolas nas prateleiras a elas destinadas. A mãe tinha acabado de reparar que ele fugira da beira dela e levantara-se para o ir buscar.

Voltei a minha atenção para os pinos.

— Estás a ver? — perguntei a Adam. O impulso de fazer alguma coisa por Adam era tão forte que me fez cerrar os punhos.

— Estou de olhos bem abertos — disse. — Vais fazer algo extraordinário?

Fiz um movimento desastrado, como se nunca tivesse jogado bowling, falhei o arremesso e lancei a bola para trás, na direção da menina que brincava com o ar.

Assim que me saiu dos dedos, não conseguia acreditar no que acabara de fazer. A suar, a tremer e apavorada, voltei-me. No entanto, apesar de ser muito rápida, não vi o trajeto da bola.

Adam tinha-a apanhado a uns bons cinquenta centímetros da criança.

Ela olhou para cima, na direção de Adam, cuja queda estrondosa lhe interrompera a brincadeira. Quando viu que um homem desconhecido estava tão perto dela, esbugalhou os olhos e fez sobressair o lábio inferior.

Adam basicamente não liga a crianças (excetuando a sua filha). Apenas quando são adolescentes ou mais velhas e, como me disse uma ocasião, capazes de uma conversa interessante.

— Ei — disse ele, parecendo bastante desconfortável.

Ela pôs-se a observá-lo por momentos. Mas ela era do sexo feminino e Adam era... bom, era o Adam. Portanto colocou as mãos à frente da boca e deu uma risadinha.

Era adorável. Absolutamente encantadora. Ele era uma pessoa derrotada, e toda a gente que estava a observar conseguia ver isso.

A conquistadora em miniatura guinchou enquanto o pai a pegava pelos braços e a mãe, com o miúdo a seu reboque, balbuciou um «obrigada».

E tu és a vilã da peça. Pobre Mercy.

Claro que eu era a má da fita; por pouco não esmagara uma criança. Onde é que eu tinha a cabeça? Se ela tivesse dado um passo atrás ou se Adam não tivesse sido suficientemente rápido, ela poderia ter morrido.

Ela não correu qualquer perigo. Não atiraste a bola contra ela, ia passar-lhe ao lado. Não a teria atingido. Salvaste-o, e ele nem sequer se apercebeu.

Franziu-me o sobrolho depois de passarmos para a pista ao lado (para a segurança de todos, apesar de o gerente ansioso não se ter aproximado e dito isso). Recomeçámos o jogo e deixou-me ser a primeira.

Com todo o cuidado, fiz a bola rolar ao longo do canalete, onde não havia probabilidade de atingir alguém. Não sei se o fiz por mim ou para tranquilizar quem me pudesse estar a observar.

Só estavas a tentar zelar pela felicidade do Adam. E este é o agradecimento que recebes.

Quase esmagar bebés não era propriamente um ato pelo qual esperasse receber um agradecimento. Esfreguei a testa como se esse gesto me ajudasse a tornar os pensamentos mais claros.

Não a teria atingido. Certificaste-te disso. Mesmo que Adam tivesse falhado, teria passado ao lado dela de forma inofensiva.

Adam observava-me pensativamente, mas não dizia nada enquanto eu construía a minha derrota por uma porrada de pontos. Dificilmente podia jogar bem depois do meu falhanço espetacular, senão alguém descobriria que tinha feito aquilo de propósito.

Eu tinha feito aquilo de propósito, não tinha?

Não conseguia acreditar que tinha feito uma coisa como aquela. O que é que me passou pela cabeça? Se Adam se tivesse mostrado mais recetivo, talvez tivesse falado com ele sobre isso.

Ele não quer ouvir o que tu tens a dizer. O melhor é ficares calada. Seja como for, ele jamais compreenderia.

Não me importei, nem tão-pouco protestei, com o facto de Adam se colocar numa posição que lhe desse garantias de que apanharia a bola no caso de eu voltar a perder o controlo. Afinal de contas, o seu salvamento da bebé ganhava outro impacto se ele parecesse achar que eu era uma idiota, certo?

Após quatro jogadas, Adam colocou-se à minha frente e, numa voz baixa que impossibilitava que mais alguém o ouvisse, disse:

— Fizeste de propósito, não fizeste? Que diabo te passou pela cabeça?

E por uma qualquer razão, apesar de concordar com ele, a sua pergunta deixou-me zangada. Ou talvez fosse a voz na minha cabeça.

Ele devia ter percebido mais cedo. Ele devia perceber a companheira dele melhor do que ninguém. Não devias ter de te defender perante ele. O melhor é não dizeres absolutamente nada.

Ergui uma sobrancelha e contornei-o para pegar na minha bola. A dor alimenta a raiva. Estava tão furiosa que perdi a cabeça ao ponto de fazer um strike. Fiz por não marcar mais nenhum ponto no jogo — e não lhe dirigi uma única palavra.

Adam ganhou com uma pontuação acima dos duzentos. Quando terminou o último arremesso, levou as nossas bolas para a prateleira enquanto eu mudava de sapatos.

Os rapazes adolescentes (por aquela altura a cinco pistas de distância) detiveram-no e pediram-lhe um autógrafo. Levei os sapatos de volta ao balcão e entreguei-os — e também paguei o jogo.

— Ele é mesmo o Alfa? — perguntou a adolescente atrás do balcão.

— Sim — disse por entre os lábios cerrados.

— Uau.

— Sim.

Abandonei o recinto de bowling e esperei por ele ao pé da sua nova carrinha reluzente, cujas portas estavam trancadas. A temperatura baixara sete graus assim que o Sol se pusera, suficientemente frio para me fazer sentir desconfortável, enfiada nos meus sapatos de salto e no meu vestido. Ou pelo menos assim seria se a minha irritação não me tivesse mantido quente.

Estava postada ao lado da porta do passageiro e ele não me viu logo. Vi-o levantar a cabeça e farejar o ar. Encostei a anca à parte lateral do carro e o movimento chamou-lhe a atenção. Manteve-se de olhos fitos em mim enquanto caminhava do edifício até à carrinha.

Ele pensa que tu serias capaz de deliberadamente colocar em risco uma criança para que ele fizesse boa figura. Ele não entende que tu jamais farias semelhante coisa. Ela não se teria magoado; a bola teria passado ao lado dela inofensivamente. Ele deve-te um pedido de desculpa.

Não lhe disse nada. Não podia explicar-lhe que as vozinhas me obrigaram a fazê-lo, pois não?

Semicerrou os olhos, mas também se manteve calado. Destrancou as portas e esperou que eu entrasse. Apertei o cinto e em seguida recostei-me no banco e fechei os olhos. As minhas mãos apertaram-se no meu colo, após o que se libertaram à medida que uma forma familiar se inseriu nelas, e aí senti a madeira velha e a prata do bastão feito pelas criaturas feéricas.

Habituara-me tanto a que aparecesse inesperadamente que nem sequer fiquei surpreendida, embora esta tivesse sido a primeira ocasião em que de facto o tinha sentido aparecer do nada. Estava mais preocupada com o desastre do nosso encontro.

Com o bastão nas mãos, a minha cabeça como que se desanuviou finalmente. De repente já não estava zangada. Estava apenas cansada e queria ir para casa.

— Mercy.

A raiva de Adam valia pelos dois: conseguia ouvir os dentes dele ranger. Achava que eu era capaz de atirar uma bola de bowling a uma criança.

Não podia censurá-lo pela sua raiva. Mexi o bastão até a extremidade inferior tocar o chão e depois friccionei o polegar na cabeça de prata. Não havia nada que eu pudesse dizer para me defender — eu não me queria defender. Tinha sido irrefletidamente estúpida. E se Adam tivesse sido mais lento? Senti-me mal.

— Não entendo as mulheres — disparou, ligando o carro e carregando no acelerador com um pouco mais de força do que a necessária.

Agarrei o bastão feérico com toda a minha força e mantive-me de olhos fechados durante toda a viagem até casa. O estômago doía-me. Ele tinha razão em estar zangado, razão em estar chateado.

Tive uma sensação violenta de que algo estava errado, muito errado. Não podia falar com ele porque tinha receio de piorar ainda mais a situação. Precisava de perceber por que motivo tinha feito aquilo antes de poder fazê-lo perceber.

Parámos na rampa de entrada da minha casa em silêncio. O carro de Samuel não estava lá, portanto deveria ter ido para o trabalho mais cedo do que tencionava. Precisava de falar com ele porque tinha um pressentimento bastante desagradável em relação a esta noite. Não podia falar com Adam — porque ia parecer que eu estava a tentar arranjar desculpas para mim mesma. Precisava de Samuel, e ele não estava aqui.

Desapertei o cinto de segurança e destranquei a minha porta — o braço de Adam passou à minha frente como uma bala e manteve a porta fechada.

— Precisamos de falar — disse, e desta vez não parecia zangado.

Mas ele estava demasiado perto. Não podia respirar com ele assim tão perto. E precisamente nesse momento, quando não podia mesmo permitir que isso acontecesse, tive mais um ataque de pânico.

Com um som desesperado que não consegui evitar, pus os pés em cima do banco num gesto brusco e pulei para o banco traseiro. A porta de trás também estava trancada, mas no momento em que tentei abri-la, Adam destrancou-a e eu estava livre.

Afastei-me da carrinha aos tropeções, a tremer e a suar no ar da noite, com o bastão feérico numa das mãos como uma moca ou uma espada que me podia proteger de... ser estúpida. Estúpida. Estúpida. Para o diabo com Tim e tudo o que ele me tinha feito para me deixar a tremer estupidamente enquanto estava em segurança na porra da rampa de entrada para a minha casa.

Queria voltar a ser eu mesma em vez desta estranha que tinha medo de ser tocada — e que tinha vozinhas na cabeça que a faziam atirar bolas de bowling a crianças.

— Mercy — disse Adam. Saíra da carrinha e contornara-a pela traseira. A sua voz era dócil e o som dela... Subitamente, consegui sentir a sua dor e desorientação. Algo tinha acontecido, e ele não sabia o que era. Apenas sabia que, de uma forma que não conseguia explicar, tinha feito asneira. Não fazia a menor ideia de como tinha corrido tão mal.

Não queria saber o que ele estava a sentir porque só me tornava mais estúpida — e vulnerável.

— Tenho de ir para dentro — disse ao bastão na minha mão porque nesse momento não me sentia capaz de olhar para o rosto de Adam. Se tivesse olhado para ele, acho que teria desatado a correr e ele teria ido atrás de mim. Num outro dia, talvez isso pudesse ter sido divertido. Esta noite, seria desastroso. Portanto caminhei lentamente.

Não me seguiu enquanto me dirigia para a porta da minha casa, no entanto disse:

— Vou enviar alguém para ficar de sentinela.

Porque eu era a companheira do Alfa. Porque ele se preocupava comigo. Por causa de Tim. Por causa da culpa.

— Não — disse ele, dando um passo na minha direção, indicando-me que naquele momento o vínculo era mais forte do seu lado. — Porque te amo.

Fechei suavemente a porta entre nós e nela encostei a testa.

O estômago doía-me; a minha garganta estava apertada. Queria gritar ou esmurrar alguém, mas em vez disso agarrei o bastão até os dedos me doerem e ouvi Adam entrar na carrinha e sair da rampa de entrada.

Olhei para baixo, na direção do bastão. Em tempos — se calhar ainda hoje —, fazia com que todas as ovelhas de quem o tivesse na sua posse gerassem gémeos. No entanto, tinha sido feito há muito tempo, e por vezes a magia antiga crescia e desenvolvia-se de formas estranhas. Tornara-se mais do que um simples bastão com aplicações agrícolas. O que isso significava ao certo, ninguém sabia — a não ser que me seguia.

Talvez fosse coincidência o facto de a primeira ocasião em que eu me sentira eu mesma desde que entrara no recinto de bowling ter sido quando o agarrara na carrinha de Adam. Ou talvez não.

Tive imensas discussões com Adam ao longo dos anos. Provavelmente inevitáveis, tendo em conta o que somos — o macho Alfa, tanto em sentido literal como figurativo, e... eu, que fui criada no seio de imensos machos dominantes e optara por não deixar que me controlassem (independentemente de quão benigno esse controlo pudesse ter sido). No entanto, nunca me tinha sentido assim depois de uma discussão. Normalmente sinto-me revigorada e alegre, não indisposta e com um medo de morte.

Claro que por norma a discussão é ideia minha e não de alguém que usa os vínculos do bando para me baralhar a cabeça.

Podia estar errada, pensei. Talvez tivesse sido uma qualquer nova espécie de reação fantástica à minha rixa com o não-particularmente-saudoso Tim — como se os ataques de pânico e os flashbacks não bastassem.

Porém, agora que tinha terminado, as vozes pareciam-me pertencer ao bando. Nunca tinha ouvido falar na possibilidade de um bando influenciar alguém através dos vínculos, mas havia muitas coisas que eu não sabia a respeito da magia dos bandos.

Precisava de me livrar da minha pele, de me libertar por algum tempo do bando e do vínculo de parceira que permitia a muitas pessoas terem acesso à minha cabeça. Eu podia fazer isso; talvez não me conseguisse ver livre de tudo, mas podia livrar-me da minha pele humana e correr sozinha, desanuviar a cabeça só por um bocado.

Precisava de descortinar o que se passara exatamente esta noite. A distância nem sempre me proporcionava solidão, mas normalmente ajudava a enfraquecer o vínculo entre mim e Adam — e também entre mim e o bando. Precisava de me ir embora antes que chegasse a pessoa que ele iria enviar para fazer de sentinela, porque ela certamente não me deixaria sair sozinha.

Sem me dar ao trabalho de me dirigir ao meu quarto, despi-me. Pôr de lado o bastão requereu mais esforço, o que indicava que já me convencera de que ele tinha servido para bloquear quem quer que me estivesse a influenciar.

Esperei, pronta para voltar a pegar no bastão, mas já não havia vozes na minha cabeça. Ou tinham perdido interesse porque Adam se fora embora e tinham sido bem-sucedidos no seu propósito, ou a distância era um fator com a importância que eu julgava ter. Em todo o caso, iria deixar o bastão para trás, dado que uma coiote a transportar tal objeto atrairia demasiado as atenções.

Portanto deslizei para a minha forma de coiote com um suspiro de alívio. Senti-me instantaneamente mais segura, mais centrada, sobre as minhas quatro patas. Estúpida, porque nunca me tinha dado conta de que mudar de forma influenciava o mínimo que fosse o vínculo com o meu parceiro ou com o bando. No entanto, por esta altura estava disposta a agarrar-me a tudo o que me fizesse sentir melhor.

Atravessei a porta para cães que Samuel instalara na porta das traseiras e penetrei a noite.

No exterior, o cheiro era diferente, melhor, mais distinto. Na minha pele de coiote, absorvia mais informações do que na forma humana. Conseguia sentir o odor da marmota na cova ali perto e dos morcegos que faziam ninho nas traves do telhado da minha garagem. O mês ia a meio e a Lua era uma fatia grande de cor laranja — mesmo para os meus olhos de coiote, deficientes na distinção das cores. A poeira das últimas colheitas pairava no ar.

E um lobisomem na forma lupina estava a aproximar-se.

Tratava-se de Ben, pensei, o que era bom. Darryl teria detetado a minha coiote, porém Ben fora criado em Londres e vivera lá até há um ano e meio. Seria mais fácil de enganar.

Mantive-me imóvel, resistindo à tentação de pousar o corpo no chão ou de me esconder. O movimento atrai a atenção e a minha pelagem tem uma coloração pensada para me fazer passar despercebida no deserto.

Ben nem sequer relanceou os olhos na minha direção, e assim que contornou a esquina — obviamente dirigindo-se ao meu alpendre frontal —, zarpei através das artemísias e da erva seca, rumo à noite do deserto.

Estava a caminho do rio, de uma margem rochosa onde pudesse estar sozinha, quando um coelho apareceu repentinamente, surgido do silvado à minha frente. E só então me dei conta de quão faminta estava.

Comera bastante ao jantar — não havia razão alguma para ter fome. E não estava apenas com alguma fome. Estava esfomeada. Algo de errado se passava.

Pus esse pensamento de lado quando dei início à perseguição. Não consegui apanhar esse coelho, mas apanhei o seguinte, e comi vorazmente até que dele nada sobrasse. Não foi de modo nenhum suficiente. Cacei durante mais meia hora, até encontrar uma codorniz.

Não gosto de matar codornizes. A forma como o penacho no topo balança no sentido oposto da cabeça quando andam faz-me sorrir. E são tontas, não têm a menor hipótese contra um coiote, pelo menos não contra mim. Suponho que não possam ser assim tão vulneráveis, uma vez que eu não sou a única coiote que anda por aqui e há imensas codornizes. Mas sempre me senti culpada ao caçá-las.

Depois de ter comido a minha segunda presa, planeei o que iria fazer à pessoa que me fizera sentir esfomeada ao ponto de comer uma codorniz.

Um bando de lobisomens pode alimentar-se de qualquer um dos seus membros, apropriando-se assim da energia do outro. Não tinha a certeza absoluta de como funcionava, embora já tivesse assistido a isso vezes mais que suficientes. Faz parte do processo que torna um lobo Alfa mais poderoso do que era antes de ter ocupado essa posição.

Nunca me sentira afetada por nada disso até me ter tornado membro do bando de Adam, portanto nunca me preocupara com o assunto. Nunca ninguém me tinha entrado na cabeça e implantado na minha mente que atirar uma bola de bowling a uma criança era uma boa ideia. Ou me tinha forçado a descarregar as minhas frustrações em Adam.

Terminada a refeição, e depois de saciada a fome, alcancei o meu destino final sem mais incidentes.

Não sei se esta parte do rio era propriedade de alguém; a vedação mais próxima ficava a noventa metros de distância, e a casa mais próxima um pouco mais distante do que isso. Havia umas quantas latas de cerveja velhas espalhadas pelo chão, e se o tempo estivesse um pouco mais quente, possivelmente teria deparado com pessoas.

Subi ao rochedo e tentei sentir o bando de Adam. Estava sozinha. Apenas eu, o rio e, ao fundo, em Horse Heaven Hills, as luzinhas do parque eólico. Não sei se era por causa da distância, ou se havia algo especial nesta pequena porção de terreno, mas a verdade é que nunca sentira o vínculo com o meu parceiro ou com o bando neste local.

Graças a Deus.

Apenas quando tive a certeza de que Adam não me conseguia ouvir é que me permiti refletir sobre quão assustador era ter outra pessoa na minha cabeça, incluindo Adam, que amava. Algo que jamais, se disso fosse capaz, permitiria que Adam soubesse.

Curiosamente, pelo facto de Adam já ser lobo antes de eu ter nascido, tinha mais facilidade em aceitá-lo como lobisomem do que ele próprio. Saber que eu me sentia apavorada em relação ao maior dom que qualquer lobo poderia dar a outro não o surpreenderia (como me surpreendera a mim), mas magoá-lo-ia desnecessariamente. Haveria de me adaptar com o tempo — não tinha alternativa se quisesse ficar com ele.

Se tivesse de lidar apenas com o vínculo amoroso entre mim e Adam, seria mais fácil. Porém, ele fizera de mim um membro do bando, e quando o vínculo funcionava como devia, conseguia senti-los a todos ali, comigo. E, aparentemente, com esse vínculo, conseguiam sugar-me energia e obrigar-me a discutir com o Alfa deles.

Sozinha na minha cabeça, era fácil olhar para trás e perceber como tinha acontecido — um toque com o cotovelo aqui, um empurrão ali. Estaria disposta a muita coisa para impedir que Adam se sentisse magoado, mas nunca colocaria em risco um inocente — e nunca na minha vida apliquei em ninguém o tratamento silencioso. Qualquer pessoa que me ofenda merece ouvir exatamente em que medida passou das marcas — ou precisa de ser conduzida a uma falsa sensação de segurança para depois ser atacada sub-repticiamente, quando não está a prestar atenção. Porém, o silêncio tinha sido a arma de eleição da ex-mulher de Adam.

Quem quer que estivesse a mexer comigo tinha como propósito separar-nos.

Portanto, quem tinha sido? Todo o bando? Parte do bando? Fora deliberado — ou dar-se-ia mais o caso de todo o bando me detestar e tentar forçar o meu afastamento? O mais importante de tudo, pelo menos para mim, era: como podia eu impedir que voltasse a acontecer?

Tinha de haver uma maneira — não havia dúvida de que se um lobisomem tivesse a capacidade de influenciar um membro do bando com a mesma facilidade com que me influenciara a mim, os Alfas teriam um controlo muito mais apertado sobre os seus bandos do que aquele que de facto tinham. Um bando funcionaria mais como um culto e não tanto como um monte de bestas selvagens movidas pela testosterona momentaneamente subjugadas pela ameaça de morte imediata às presas do seu líder. Ou isso ou ter-se-iam exterminado uns aos outros.

Precisava que Samuel estivesse em casa para lhe poder perguntar como funcionavam as coisas. Não tinha a menor dúvida de que Adam sabia, mas queria ter esta conversa com ele sabendo como abordá-lo.

Se Adam desconfiasse que um dos membros do seu bando estava a tentar truques que me influenciassem a mente... Não sabia ao certo quais as regras para algo desse género. Essa era uma das coisas que queria saber junto de Samuel. Se alguém fosse morrer, queria certificar-me de que aprovava, ou pelo menos tinha conhecimento disso antes de premir o gatilho. Se alguém ia morrer, talvez devesse guardar isto para mim e ser eu a engendrar uma punição apropriada.

Teria de esperar até que Samuel regressasse do emprego. Até lá, talvez me limitasse a segurar bem o bastão e esperar que as coisas corressem pelo melhor.

Permaneci na pequena margem rochosa a observar o rio sob o luar durante o tempo que me apeteceu. No entanto, se não regressasse antes que Ben se desse conta da minha ausência, ele convocaria as tropas. E eu simplesmente não estava na disposição de levar com um bando de lobisomens.

Levantei-me, estiquei o corpo e dei início à longa corrida de regresso a casa.

Quando cheguei à porta das traseiras da minha casa, Ben estava em frente a ela, cirandando num passo inquieto. Quando me viu, estacou — começara a aperceber-se de que algo estava errado, mas até me ter visto, não tinha a certeza de eu não estar em casa. Dobrou o lábio superior, mas não chegou a rosnar, aprisionado que estava entre a raiva e a preocupação, os instintos protetores de um macho dominante e a consciência de que lhe era hierarquicamente superior.

A linguagem corporal, quando sabemos lê-la, pode ser mais expressiva do que o discurso.

A frustração dele era problema seu, portanto ignorei-o e entrei pela porta para cães — demasiado pequena para um lobo — e fui diretamente para o meu quarto.

Regressei à minha forma humana, peguei em roupa interior e numa t-shirt lavada e dirigi-me para a cama. Não era exageradamente tarde — o nosso encontro tinha sido muito curto e a minha corrida não demorara muito mais tempo. Ainda assim, a manhã começava cedo e eu tinha de trabalhar num carro. E tinha de estar na máxima forma para descortinar a melhor maneira de abordar Samuel sem que ele contasse a Adam as perguntas que lhe colocasse.

Talvez devesse antes telefonar ao pai dele. Sim, decidi. Iria telefonar a Bran.

Acordei com o telefone encostado à orelha — e por momentos pensei que completara a tarefa a que me propusera antes de adormecer, dado que a voz que ouvia do outro lado falava galês. Isso não fazia sentido absolutamente nenhum. Bran não usaria o raio do galês para falar comigo, sobretudo ao telefone, onde as línguas estrangeiras são mais difíceis de compreender.

De forma um tanto nebulosa, parecia lembrar-me vagamente de ouvir o telefone tocar. Devia ter pegado nele enquanto despertava — mas isso não explicava a língua.

Olhei para o relógio e pisquei os olhos — tinha adormecido há menos de duas horas — e nessa altura percebi a quem pertencia a voz que me falava do outro lado.

— Samuel? — perguntei. — Porque é que estás a falar galês? Não consigo perceber o que estás a dizer a menos que fales mais devagar. E uses palavras pequenas. — Era uma espécie de graça. No galês parece não haver palavras pequenas.

— Mercy — respondeu arrastadamente.

Não sei por que razão, o meu coração começou a bater com intensidade, como se estivesse prestes a ouvir alguma notícia muito má. Sentei-me.

— Anda buscar-me...

Pronunciou as palavras de forma atrapalhada, como se o seu inglês fosse muito mau, o que não era verdade nem nunca fora. Não desde que o conhecera — o que correspondia à quase totalidade dos trinta e tal anos da minha existência.

— Vou já para aí — disse-lhe, enfiando-me nas calças de ganga apenas com uma mão. — Onde estás?

— Na sala de armazenamento de raios X. — Mal conseguiu articular a frase.

Sabia onde ficava a sala de armazenamento, na extremidade das Urgências do Kennewick General, onde ele trabalhava.

— Eu vou já ter contigo.

Desligou sem dizer uma única palavra.

Algo muito errado tinha acontecido. O que quer que fosse, não podia ser catastrófico na medida em que ele se ia encontrar comigo na sala de armazenamento, longe de toda a gente. Se eles soubessem que ele era um lobisomem, não seria necessário encontrarmo-nos na sala de armazenamento.

Contrariamente a Adam, Samuel não dera a conhecer a sua condição. Ninguém deixaria um lobisomem exercer medicina — o que provavelmente seria inteligente, verdade seja dita. Os cheiros do sangue, do medo e da morte eram intoleráveis para a maior parte deles. Porém, Samuel era médico há imenso tempo, e era dos bons.

Ben estava sentado no meu alpendre quando saí porta fora a correr. Tropecei nele e rolei sobre os quatro degraus altos e impiedosos, parando na gravilha.

Ele sabia que eu ia sair; não fizera qualquer esforço para ser silenciosa. Podia ter-se desviado, mas não o fez. Talvez se tivesse atravessado no meu caminho de propósito. Nem pestanejou quando olhei para cima na direção dele.

Reconheci aquele olhar, apesar de nunca antes o ter visto nele. Eu era uma coiote que se tornara companheira do seu Alfa, e eles tinham a convicção plena de que eu não era suficientemente boa.

— Soubeste da discussão de hoje à noite — disse-lhe.

Puxou as orelhas para trás e pousou o focinho nas patas dianteiras.

— Nesse caso deviam ter-te contado que estavam a usar os vínculos do bando para me atrofiar a cabeça. — Não tencionava dizer nada em relação a isso sem antes ter a oportunidade de falar com Samuel, mas o facto de ter rolado escada abaixo fizera-me perder o autocontrolo.

Imobilizou-se, e aquilo que o seu corpo denunciava não era descrença, mas sim terror.

Então era possível. Merda. Merda. Merda. Tinha esperança de que não fosse, tinha esperança de que fosse paranoia minha. Não precisava disto.

Por vezes, a sensação que tinha era que ambos os vínculos, com o meu parceiro e com o bando, estavam a fazer tudo para me roubar a alma. A analogia pode ser figurativa, mas achei-a quase tão assustadora quanto teria sido a versão literal. Descobrir que alguém podia usar aquilo para me obrigar a fazer coisas foi a maldita cereja em cima do bolo.

Felizmente, tinha em mãos uma tarefa que me permitia desligar-me da alhada em que estava metida. Levantei-me e sacudi a poeira do corpo.

Tinha planeado esperar e falar diretamente com Adam, mas este cenário apresentava algumas vantagens. Seria bom Adam saber que alguns dos elementos do seu bando andavam... empenhados em demonstrar a sua antipatia para comigo. E se Ben lhe contasse, ele não tinha como me ler a mente para descobrir que eu não estava alterada apenas por causa do controlo da mente, mas também pela questão do vínculo, tanto do bando como do parceiro.

Disse a Ben:

— Conta o que eu te disse ao Adam.

Ele iria fazê-lo. Ben podia ser sinistro e terrível, mas era quase meu amigo — os pesadelos partilhados têm esse efeito.

— Diz-lhe que eu peço desculpa e diz-lhe também que não vou fazer ondas — Adam iria perceber que isso significava que me manteria afastada do bando — até compreender as coisas. Neste momento vou buscar o Samuel, por isso estás dispensado do teu serviço.


3

Conduzi o meu fiel Rabbit até ao Kennewick General Hospital e estacionei no parque de estacionamento das Urgências. Ainda faltavam horas para o dia despontar quando entrei no edifício.

O truque para andarmos por onde quisermos num hospital sem sermos abordados por ninguém é caminhar energicamente, dirigir um aceno às pessoas que conhecemos e ignorar as que não conhecemos. O aceno passa a toda a gente a mensagem de que se é conhecido, a passada enérgica transmite a ideia de que se tem uma missão e não se está na disposição de falar. O facto de a maioria das pessoas na triagem me conhecer ajudou.

Através das portas duplas que conduziam à área reservada, conseguia ouvir um bebé a chorar — um som triste, cansado, deprimente. Enruguei o nariz por causa do omnipresente cheiro violento a desinfetante de hospital, e estremeci perante o crescendo de intensidade tanto dos decibéis como do cheiro à medida que atravessava as portas.

Uma enfermeira que escrevinhava num bloco de notas com mola ergueu o olhar quando entrei, e a expressão profissional plasmada no seu rosto transfigurou-se num sorriso de alívio. Conhecia-a de vista mas não lhe sabia o nome.

— Mercy — disse, claramente conhecedora do meu. — Então o Dr. Cornick finalmente ligou-lhe para que o levasse a casa, não é verdade? Já não era sem tempo. Eu disse-lhe que já devia ter ido para casa há horas, mas ele é bastante teimoso, e um médico é hierarquicamente superior a uma enfermeira. — Disse-o de um modo que parecia indicar que não achava que aquela devesse ser a ordem das coisas.

Tive receio de falar porque podia desmoronar o castelo de cartas que Samuel construíra para explicar o motivo pelo qual tinha de ir para casa mais cedo. No entanto, acabei por encontrar uma frase neutra:

— Ele é melhor a ajudar as pessoas do que a pedir ajuda.

Exibiu um sorriso rasgado.

— É mesmo típico dos homens. Provavelmente foi-lhe penoso admitir que destruiu o carro dele. Sou capaz de jurar que amava aquele carro como se fosse uma mulher.

Acho que me limitei a cravar os olhos nela — as suas palavras não faziam o menor sentido para mim.

Destruiu o carro? Queria ela dizer que ele tinha tido um acidente? Samuel tinha tido um acidente? Não conseguia visualizar isso na minha cabeça. Alguns lobisomens tinham dificuldade em conduzir porque tendiam a distrair-se facilmente. Mas não Samuel.

Precisava de ir ter com Samuel antes que dissesse alguma coisa estúpida.

— Talvez seja melhor eu...

— Foi uma sorte não se ter magoado mais — disse, e voltou a concentrar a atenção no que estava a escrever. Aparentemente, era capaz de continuar a conversa ao mesmo tempo, uma vez que continuou a falar. — Ele contou-lhe quão perto esteve de morrer? O agente da polícia que o trouxe disse que ele quase caiu à água, e estamos a falar da ponte Vernita, sabe, aquela na autoestrada 24, no Braço de Hanford? Ele teria morrido se tivesse caído... A distância até ao rio é enorme.

Que diabo andava Samuel a fazer tão longe, na ponte da velha autoestrada a norte de Hanford? Ficava no outro lado de Tri-Cidades, e de modo algum perto de qualquer trajeto possível entre a nossa casa e o hospital. Talvez tivesse andado no Braço, onde o número de pessoas era escasso e abundavam os esquilos terrestres. O facto de não me ter contado que ia caçar não queria dizer que o não viesse a fazer. Eu não era a guarda dele.

— Ele não disse nada sobre ter estado em perigo — repliquei honestamente, e em seguida disse uma pequena mentira com o propósito de conduzi-la a relatar-me mais pormenores. — Pensava que tinha sido apenas o carro.

— Típico do Dr. Cornick — resmungou. — Não nos deixou fazer mais nada para além de lhe removermos os vidros da pele. Mas a avaliar pelo modo como se está a mexer, dá para perceber que tem um problema nas costelas. E também está a coxear.

— Pelo que me diz, a situação é bastante pior do que a que ele me descreveu — comentei, sentindo-me indisposta.

— Ele trespassou o para-brisas e estava agarrado ao capô do carro. O Jack, agente da polícia, disse que pensava que o Samuel ia cair do capô antes que conseguisse lá chegar. O despiste deve ter deixado o doutor atordoado porque estava a rastejar na direção errada. Se o Jack não o tivesse impedido, ele teria caído.

E nesse momento percebi exatamente o que tinha acontecido.

— Minha querida? Minha querida? Está tudo bem consigo? Sente-se aqui.

Tinha puxado uma cadeira quando eu não estava a olhar e segurou-a atrás de mim. Os meus ouvidos zumbiam, tinha a cabeça para baixo, enfiada entre os joelhos, e a mão dela estava sobre as minhas costas.

E por um momento tinha novamente catorze anos, e ouvia Bran contar-me o que eu já sabia: Bryan, o meu pai de acolhimento, estava morto — o seu corpo tinha sido encontrado no rio. Cometera suicídio depois de a companheira dele, a minha mãe de acolhimento, ter morrido.

Os lobisomens são demasiado fortes para morrerem facilmente, portanto não há muitas formas de suicídio eficazes para os lobisomens. Desde que a Revolução Francesa tornou a guilhotina impopular no século XVIII, a autodecapitação não se tornou propriamente fácil.

As balas de prata também apresentam algumas dificuldades. A prata é mais dura do que o chumbo, e por vezes as balas atravessam o corpo e deixam o lobisomem doente, com dores, e vivo. O disparo de um dardo com prata é um pouco mais eficaz, mas, a menos que a coisa seja feita corretamente, pode demorar muito tempo até que o lobisomem morra. Se um intrometido qualquer aparecer e retirar o dardo, bom, nesse caso de nada valeu toda a dor.

A opção mais popular é a morte provocada por outro lobisomem. Porém, isso não seria uma opção para Samuel. Muito poucos lobos aceitariam o seu desafio — e aqueles que aceitassem... Digamos apenas que eu não gostaria de ver uma luta entre Samuel e Adam. Os suicidas não procuram um confronto em condições equivalentes.

O afogamento é a opção mais popular logo a seguir. Os lobisomens não sabem nadar; os seus corpos são demasiado maciços — e até um lobisomem precisa de respirar.

Inclusive sabia o motivo pelo qual escolhera aquele local. O Columbia é o maior rio da zona, com mais de quilómetro e meio de largura, porém, as três maiores pontes que o atravessam — a Blue Bridge, a ponte suspensa e a ponte interestadual — têm todas duas balaustradas. Além disso, o volume de tráfego que nelas se verifica é considerável, mesmo a meio da noite. A probabilidade de alguém ver uma tentativa de salto e tentar o salvamento é elevada. São precisos alguns minutos até se consumar um afogamento.

A ponte que ele escolhera não era tão movimentada e tinha sido construída antes de as pontes serem projetadas de modo a que até os atrasados mentais tivessem dificuldade em galgar a proteção e cair ao rio. O rio é mais estreito naquele local — ou seja, mais profundo e rápido — e a altura é... impressionante.

Consegui visualizar a cena, Samuel no capô do carro e o agente da polícia a correr na direção dele. Tinha sido uma sorte dos diabos o único veículo na estrada para além do dele ser um carro da polícia. Se se tivesse tratado de um cidadão comum, poder-se-ia ter dado o caso de recear pela própria segurança e não tentar um salvamento, deixando que Samuel se afogasse. Porém, um agente da polícia iria ao seu encontro e tentaria salvá-lo. Colocaria a própria vida em risco por Samuel.

Não, Samuel não teria caído no momento em que o agente da polícia o encontrou.

Por muito que desejasse.

O meu atordoamento estava a dissipar-se.

«Sê feliz», tinha-me dito quando saíra para o meu malfadado encontro. Um desejo para a minha vida e não para o encontro.

O imbecil. Senti uma rosnadela assomar-me à garganta e tive de fazer um esforço para a conter.

— Ele está bem — assegurou-me a enfermeira. Retirei a cabeça de entre os joelhos e, ao levantá-la, reparei que tinha um crachá onde se lia JODY. — Retirámos os vidros e, embora se esteja a mexer de forma rígida, não partiu nada importante, caso contrário não teria aguentado tanto tempo. Ele devia ter ido para casa, mas não quis. E você sabe como ele é.

Sim, sabia.

— Peço desculpa — disse-lhe, levantando-me devagar de modo a passar a ideia de que já estava bem. — Apanhou-me desprevenida. Já nos conhecemos há muito tempo e ele não me disse que as coisas estavam tão mal, nem pouco mais ou menos.

— Provavelmente não queria assustá-la.

— Sim, ele é atencioso a esse ponto. — O tanas é que era atencioso. Eu própria iria matá-lo, e depois já não teria de se preocupar com o suicídio.

— Ele disse que ia procurar um sítio calmo e descansar um bocadinho — disse a enfermeira Jody, olhando em volta como se ele fosse surgir do nada.

— Ele disse-me que podia encontrá-lo na sala de armazenamento de raios X.

Soltou uma risada.

— Bom, presumo que lá esteja tudo calmo. Sabe onde fica?

Sorri, o que é difícil quando se está preparado para esfolar alguém.

— Claro. — Ainda a sorrir, comecei a caminhar energicamente, passando por divisórias com as cortinas abertas que cheiravam a sangue e dor, acenando a um técnico de saúde que me parecia vagamente familiar. Pelo menos os gritos de bebé tinham passado a um choro ligeiro.

Samuel tentara cometer suicídio.

Bati à porta da sala de armazenamento de raios X, abrindo-a em seguida. Caixas de arquivo brancas, feitas de cartão, estavam empilhadas em prateleiras de forma organizada, transmitindo a sensação de que quem aqui viesse saberia exatamente onde encontrar o que queria.

Samuel estava sentado no chão, encostado a uma pilha de caixas. Vestia uma bata branca por cima da farda verde. Os braços repousavam nos joelhos, as mãos pendiam frouxas. Estava de cabeça inclinada e não olhou para cima quando entrei. Esperou que eu fechasse a porta atrás de mim antes de falar e continuou sem olhar para mim.

Julguei que agia assim por se sentir envergonhado ou por saber que eu estava zangada.

— Ele tentou matar-nos — disse Samuel, e o meu coração parou, após o que começou a bater violenta e dolorosamente no meu peito porque afinal estava enganada. Muito enganada. O «ele» a que se referia era Samuel. E isso significava que «ele» já não estava a assumir o controlo. Estava a falar com o lobo de Samuel.

Caí no chão como uma pedra e certifiquei-me de que a minha cabeça estava abaixo da do lobisomem. O Samuel homem normalmente dava pouca importância a incumprimentos da etiqueta, mas este lobo não. Se obrigasse o lobo a olhar para cima na minha direção, teria de reconhecer a minha superioridade ou desafiar-me.

Eu transformo-me numa predadora de quinze quilos capaz de matar galinhas e coelhos. E uma pobre de uma codorniz. Os lobisomens são capazes de fazer frente aos ursos-gigantes-do-alasca. Eu não estou de todo à altura de um desafio com um lobisomem.

— Mercy — sussurrou, levantando a cabeça.

A primeira coisa em que reparei foram as centenas de pequenos cortes espalhados por toda a cara, e lembrei-me de Jody, a enfermeira, ter dito que se tinham visto obrigados a remover todos os vidros da sua pele. O facto de as feridas ainda não terem sarado indicava-me que um outro dano mais grave havia sido infligido no seu corpo, um dano que precisava de ser curado primeiro. Fantástico — mais uma dosezinha de dor e sofrimento para lhe adoçar o temperamento.

Os seus olhos eram de um azul glacial, quase branco, intensos e selvagens.

Assim que os vi, desviei o olhar para o chão e respirei fundo.

— Sam — murmurei. — O que é que eu posso fazer para ajudar? Queres que eu telefone ao Bran?

— Não! — A palavra saiu-lhe na forma de um rugido que o lançou para a frente até se aninhar sobre ambas as mãos, levantando um dos joelhos para a frente e mantendo o outro pousado.

Aquele joelho no chão significava que ele não estava preparado para se lançar a mim.

— O nosso pai vai matar-nos — disse Sam de forma lenta e com forte entoação galesa. — Eu... Nós não queremos obrigá-lo a fazer isso. — Respirou fundo. — E eu não quero morrer.

— Claro, claro — pronunciei arrastada e roucamente, percebendo de imediato o que as primeiras palavras que me dirigira significavam exatamente. Samuel desejara morrer, mas o seu lobo impedira-o. O que era bom, mas deixava-nos com um problema complicado em mãos.

Existe uma razão muito boa para o Marrok matar quaisquer lobisomens que permitam que o lobo assuma as rédeas e o homem obedeça. Muito boas razões — tais como impedir chacinas em massa.

Mas se o lobo de Samuel não queria que eles morressem, concluí que era melhor o controlo estar a ser assumido por ele. Durante algum tempo. Considerando que não parecia querer matar-me ainda. Samuel era velho. Não sei ao certo quão velho, mas pelo menos mais antigo do que o Mayflower1. Talvez isso viesse a permitir que o seu lobo se controlasse sem a ajuda de Samuel. Talvez.

— Ok, Sam. Ninguém vai telefonar ao Bran.

Do canto do olho, reparei no modo como inclinou a cabeça, examinando-me cuidadosamente.

— Posso fingir ser humano até chegarmos ao teu carro. Entendi que seria melhor assim, por isso mantive esta forma.

Engoli em seco.

— O que é que fizeste ao Samuel? Ele está bem?

Os seus glaciais olhos azuis perscrutavam-me ponderadamente.

— O Samuel? Tenho a certeza de que ele se tinha esquecido de que eu conseguia fazer isto: há já muito tempo que não nos debatemos pelo controlo. Foi ele que escolheu que eu assumisse o controlo, deixei isso a cargo dele. — Calou-se por instantes e depois, quase timidamente, disse: — Tu sabes quando eu estou aqui. Tratas-me por Sam.

Ele tinha razão. Não me tinha apercebido disso até ele o dizer.

— Sam, o que é que fizeste ao Samuel? — perguntei novamente, procurando não soar intrusiva.

— Ele está aqui, mas não o posso deixar aparecer. Se o fizer, nunca mais me vai voltar a deixar assumir o controlo, e se isso acontecer, morreremos.

«Não o posso» soava a «nunca o poderei». «Nunca» era mau. «Nunca» faria com que ele viesse a morrer de forma tão certa quanto o suicídio — e talvez... provavelmente, muitas outras pessoas juntamente com ele.

— Excluindo o Bran, que tal a companheira do Charles, a Anna? Ela é Ómega; não achas que ela te poderá ajudar?

Os lobos Ómega, ao que sabia, são como Valium para os lobisomens. A cunhada de Samuel, Anna, foi a única que eu conheci — antes disso, nunca tinha ouvido falar neles. Gosto dela, mas não parece afetar-me do mesmo modo que afeta os lobos. Não sinto vontade de rebolar aos seus pés e deixar que ela me esfregue a barriga.

O lobo de Samuel parecia ansioso... ou se calhar estava apenas com fome.

— Não. Se o problema fosse eu, talvez ela pudesse ajudar. Mas isto não se trata de um impulso, não se trata de desespero. O Samuel simplesmente sente que já não pertence aqui, que não ganha nada com a sua existência. Nem mesmo a Ómega pode fazê-lo mudar de ideias.

— Então o que é que sugeres? — perguntei impotentemente.

Anna, pensei, talvez fosse capaz de fazer com que Samuel readquirisse o controlo, mas, tal como o lobo, receava que isso pudesse não ser uma boa ideia.

Soltou uma risada, uma risada triste.

— Não sei. Mas se não quiseres tentar retirar um lobo das Urgências, talvez fosse boa ideia irmos embora quanto antes.

Sam baloiçou-se para a frente de modo a levantar-se e parou a meio caminho soltando um grunhido.

— Estás ferido — disse enquanto me levantava para lhe dar uma ajuda.

Hesitou mas acabou por aceitá-la, levantando-se com menor dificuldade. Mostrar-me a sua fraqueza era um sinal de confiança. Em circunstâncias normais, essa confiança significaria que estava mais segura com ele.

— Estou perro — respondeu Sam. — Nada que não sare sozinho. Eu recorri à tua força para me curar parcialmente, de modo a que ninguém percebesse quão graves eram os ferimentos.

— Como é que fizeste isso? — perguntei, lembrando-me subitamente da fome violenta que resultara numa refeição de coelho e codorniz a seguir ao salmão que jantara com Adam. Pensara que tinha sido alguém do bando de Adam, pela muito boa razão de que roubar força era uma daquelas coisas que faziam parte do vínculo com um bando. — Nós não somos do mesmo bando — lembrei-o.

Voltou a olhar diretamente para mim e disse:

— Não somos?

— A menos que tu... A menos que o Samuel tenha andado a celebrar cerimónias de sangue enquanto eu estava a dormir, não somos. — Começava a sentir pânico. Claustrofobia. Adam e o bando dele já andavam a brincar com a minha cabeça; não estava particularmente interessada em ter mais alguém lá dentro.

— O bando existia antes das cerimónias — disse Sam num tom que parecia de divertimento. — A magia estabelece uma união mais óbvia, mais extensa, mas não mais profunda.

— Foste tu que me atrofiaste a cabeça quando fui sair com o Adam? — Não consegui evitar o tom acusatório.

— Não. — Levantou a cabeça e em seguida rosnou: — Alguém te fez mal?

— Não — respondi. — Não é nada.

— Mentira — disse ele.

— Pois é — concordei. — Mas se não foste tu o responsável por aquilo, cabe-me a mim e ao Adam lidar com o incidente.

Permaneceu imóvel por instantes.

— Por agora — disse.

Segurei a porta para que ele passasse e em seguida caminhei a seu lado ao longo das Urgências.

Enquanto percorríamos o corredor de acesso à saída, Sam manteve-se de olhos cravados em mim, e no seu olhar firme havia um peso. Não protestei. Ele fê-lo para que ninguém notasse a mudança de cor na sua íris — mas também porque quando um lobisomem tão dominante quanto Samuel olha alguém olhos nos olhos estando o lobo tão à superfície, até os humanos se tornam submissos. Isso seria bastante estranho e difícil de explicar. Nesta altura, agíamos com a esperança de que fosse possível a Samuel regressar a este lugar e aqui exercer medicina novamente.

Ajudei-o a entrar no banco traseiro do Rabbit — e reparei que o livro embrulhado numa toalha ainda ali estava. Desejei que a extensão dos meus problemas se resumisse à sua devolução ao proprietário. Agarrei nele e coloquei-o ao fundo, longe do alcance da mão. Pulando para a frente, arranquei de debaixo das luzes do parque de estacionamento o mais depressa que consegui. Ainda estávamos nas primeiras horas da madrugada, mas Samuel era um homem grande, e seria difícil não o ver despir-se no banco traseiro do meu pequeno carro.

Não tardou muito a desfazer-se das roupas e dar início à sua transformação. Não olhei, mas consegui perceber quando começou, uma vez que o barulho de tecido a rasgar deu lugar a gemidos de dor. Aquilo por que os lobisomens passam quando se transformam é uma das muitas razões pelas quais estou grata por ser o que sou, em vez de uma mulher-loba. Para mim, a transformação de coiote para humana ou o inverso é virtualmente instantânea. Os efeitos secundários não são mais incómodos do que pequenas picadas. Para um lobisomem, a transformação é dolorosa e lenta. A avaliar pelos grunhidos que produzia, a sua transformação ainda não tinha terminado quando estacionei na rampa de entrada.

A nossa casa não era o lugar mais seguro para onde o levar. Qualquer lobisomem que o visse perceberia o que se tinha passado, e a casa de Adam — frequentemente visitada por membros do seu bando — ficava logo a seguir à minha vedação traseira. Porém, não me ocorria nenhum sítio melhor.

Teríamos de contar a Bran, eventualmente — eu sabia-o, e suspeitava que Samuel... que Sam também o sabia. Mas ia conceder-lhe o tempo que pudesse — partindo do pressuposto de que ele não fosse tomado pela fúria e começasse a comer pessoas.

Isso significava mantê-lo longe da vista de Adam e do seu bando.

Do meu bando. Do meu parceiro e do meu bando.

Não me sentia bem ao esconder coisas dele. No entanto, conhecia Adam, e se havia algo em que ele era bom, esse algo era o sentido de honra e dever. Essa era uma das razões pelas quais eu me apaixonara por ele — era um homem que, se necessário fosse, escolhia a opção mais difícil. O dever e a honra forçá-lo-iam a chamar Bran. O dever e a honra forçariam Bran a executar Samuel. Samuel morreria, e dois homens bons ficariam a sofrer.

Para sorte de todos eles, o meu sentido de dever e honra era mais flexível.

Saí do carro e voltei-me num círculo lento. Detetei o cheiro de Ben, dissipando-se. Estávamos sozinhos com as mais mundanas criaturas da noite: morcegos, ratos e mosquitos. A luz do quarto de Adam estava acesa, mas foi apagada enquanto o observava. Amanhã precisava de arranjar um sítio melhor para Sam.

Ou uma boa razão para evitar o bando.

Abri a porta traseira do Rabbit, mantendo-a entre mim e Sam para o caso de ele ter ficado com mau humor após a transformação. A dor da transformação não contribui para deixar um lobo feliz — e Sam já estava magoado quando a começou. No entanto, parecia estar bem. Quando pulou para fora do carro, esperou educadamente que eu o fechasse, após o que me seguiu até à porta.

Dormiu aos pés da minha cama. Quando sugeri que talvez se sentisse mais confortável no seu quarto, fixou-se em mim com olhos da cor do gelo.

Onde é que um lobisomem dorme? Onde lhe apetecer.

Pensei que me iria incomodar, pensei que me iria assustar. Seria de esperar que me tivesse incomodado. No entanto, não estava demasiado preocupada com o facto de ter um lobo enorme enrolado aos meus pés. Afinal de contas, tratava-se de Sam.

O meu dia começou cedo apesar da minha noite longa.

Acordei ao som do estômago de Sam a roncar. Mantê-lo alimentado atingira um novo grau de prioridade, portanto pulei para fora da cama e preparei-lhe o pequeno-almoço.

E depois, porque cozinhar é algo que eu faço quando estou chateada ou nervosa — e porque às vezes me ajuda a pensar, especialmente se aquilo que estiver a preparar incluir açúcar —, satisfiz um desejo meu e confecionei uma série de biscoitos. Fiz uma dupla fornada de biscoitos de manteiga de amendoim, e enquanto estavam no forno, fiz também pepitas de chocolate.

Sam estava sentado debaixo da mesa, onde não me estorvava, e mantinha-se de olhos fitos em mim. Dei-lhe a comer duas colheradas da massa dos biscoitos, apesar de ele já ter comido vários quilos de bacon e uma dúzia de ovos. Ele tinha partilhado os ovos com a minha gata, Medea. Talvez fosse por isso que ainda tinha fome. Dei-lhe alguns dos biscoitos já cozinhados.

Estava a colocar biscoitos em saquinhos quando Adam me telefonou.

— Mercy — disse. Tinha a voz pouco firme por causa da fadiga, e o seu tom era monocórdico. — Vi que a luz estava acesa. O Ben transmitiu-me a mensagem. Posso ajudar-te com isso.

Normalmente acompanho as conversas com Adam sem problema algum, porém tinha dormido menos de três horas. E estava preocupada com Samuel, assunto em relação ao qual ele não podia saber nada. Esfreguei o nariz. O Ben. Ah. Adam estava a falar sobre como o bando tinha dado cabo do nosso encontro. Certo.

Tinha de manter Adam afastado. Apenas até engendrar um plano brilhante para manter Samuel vivo... E aqui diante de mim estava a desculpa perfeita.

— Obrigada — disse-lhe. — Mas acho que preciso de uns dias para mim... sem bando, sem... — Deixei que a minha voz se calasse. Não conseguia dizer-lhe que precisava de estar distante dele quando isso não era verdade. Mesmo ao telefone, ele podia detetar a mentira. Desejei que ele aqui estivesse. Tinha a capacidade de fazer com que as coisas parecessem ou pretas ou brancas. Como é evidente, isso significava que Samuel deveria ser morto para bem dos lobos. Por vezes o cinzento é a única cor que vejo.

— Precisas de alguma distância do bando... e de mim — disse Adam. — Eu compreendo. — Fez uma breve pausa. — Não te vou deixar sem proteção.

Olhei para baixo.

— O Samuel vai estar de folga durante uns dias. — Antes de mais, precisava de fazer um telefonema para lhe conseguir uma licença do trabalho, mas, em todo o caso, a verdade é que Sam não iria aparecer para trabalhar. E o desastre vinha mesmo a calhar. — Ele fica comigo.

— Está bem. — Fez-se um silêncio incómodo, após o qual Adam disse: — Desculpa, Mercy. Eu devia ter percebido que algo de errado se passava. — Engoliu em seco. — Quando a minha ex-mulher entendia que eu lhe tinha feito alguma coisa de que ela não gostava, ela aplicava-me o tratamento silencioso. Quando tu o fizeste... fiquei desconcertado.

— Acho que esse era precisamente o objetivo de alguém — disse eu secamente, e ele riu.

— Sim. Não parei para pensar quão improvável seria usares essa tática — concordou. — Ataques furtivos, manobras de guerrilha, mas não silêncio.

— A culpa não é tua — repliquei, antes de morder o lábio. Se não precisasse de o manter afastado de Sam, teria dito mais. Bastante mais, mas precisava de tempo para que Samuel recuperasse. — Só quando estávamos quase a chegar a casa é que me dei conta.

— Se nesse período me tivesse apercebido de que alguma coisa se estava a passar, podia ter descoberto quem era — rosnou Adam. Inspirou fundo e bufou. Quando voltou a falar, a sua voz estava mais calma. — O Samuel também saberá como impedi-los. Enquanto ele te estiver a escoltar, porque é que não lhe pedes para ele te ensinar a protegeres-te? Mesmo quando não é deliberado... — Teve de parar novamente. — As necessidades e os desejos do bando podem influenciar-te bastante. Não é muito difícil bloquear isso se souberes como fazê-lo. O Samuel pode mostrar-te.

Olhei para o lobo branco estendido no chão da cozinha, cujo focinho a Medea limpava. Sam também olhou para mim, com os seus olhos claros contornados por um anel preto.

— Eu peço-lhe — prometi.

— Vemo-nos em breve — disse, mas de imediato acrescentou: — Terça-feira é cedo de mais?

Era sábado. Se até terça-feira Samuel não tivesse melhorado, podia cancelar.

— Terça-feira seria ótimo.

Desligou. A seguir, perguntei a Sam:

— És capaz de me ensinar como impedir que o bando entre na minha cabeça?

Emitiu um ruído triste.

— Não sem conseguires falar — concordei. — Mas prometi ao Adam que te pediria. — Tinha três dias para tratar de Samuel. E sentia-me uma traidora por... Eu não tinha propriamente mentido a Adam, pois não? Criada no seio de lobisomens, que são detetores de mentiras vivos, há muito tempo que aprendera a mentir com a verdade quase tão bem quanto as criaturas feéricas.

Talvez tivesse tempo para também fazer brownies.

O meu telemóvel tocou e quase o atendi maquinalmente, presumindo que fosse Adam. Um qualquer instinto de autodefesa fez-me hesitar e relancear os olhos ao número: o de Bran.

— O Marrok está a telefonar — informei Samuel. — Achas que ele espera três dias? Eu também não. — Mas podia adiar um bocado a situação ao não atender o telefone. — Vamos trabalhar nuns carros.

Sam sentou-se no lugar do passageiro e dirigiu-me um olhar carrancudo. Estava zangado comigo desde que lhe pusera a coleira — mas a coleira servia de camuflagem. Fazia-o parecer-se mais com um cão. Algo suficientemente doméstico para usar coleira, não um animal selvagem. O medo desperta a violência nos lobos, portanto quanto menos pessoas tiverem medo deles, melhor.

— Não vou abrir o vidro — disse-lhe. — Este carro não tem vidros automáticos. Teria de encostar o carro e dar a volta para o baixar manualmente. Para além disso, está frio lá fora, e, ao contrário de ti, eu não tenho um casaco de peles.

Levantou o lábio numa rosnadela de escárnio e pousou o focinho no tabliê com um baque.

— Estás a sujar o para-brisas — disse-lhe.

Olhou para mim e, de forma deliberada, percorreu o vidro com o focinho.

Revirei os olhos.

— Ora aí está um gesto muito maduro. A última vez que vi alguém fazer uma coisa tão adulta foi quando a minha irmã mais nova tinha doze anos.

Quando cheguei à oficina, estacionei ao lado da carrinha de Zee, e assim que saí do carro, ouvi o ritmo característico da música salsa. Tenho uma audição bastante apurada, portanto a música não estaria alta ao ponto de incomodar aqueles que se encontrassem no interior das casinhas espalhadas pela zona dos armazéns e unidades de armazenamento que rodeavam a oficina. Uma figura pequena à janela acenou-me.

Tinha-me esquecido.

Como é que eu me podia ter esquecido de que Sylvia e as suas filhas iam fazer a limpeza ao escritório? Em circunstâncias normais, isso não teria sido um problema — Samuel jamais faria mal a uma criança, mas já não estávamos a lidar com Samuel.

Apercebi-me de que me habituara a ele, que ainda pensava nele como se fosse Samuel com um problema. Permitira-me esquecer quão perigoso ele era. Bem vistas as coisas, ainda não me tinha matado.

Talvez se ele ficasse comigo na oficina...

Não podia correr esse risco.

— Sam — disse ao lobo, que me seguira para fora do carro, — estão demasiadas pessoas aqui. Vamos...

Não tenho a certeza do que ia sugerir, talvez uma corrida num lugar em que ninguém nos visse. Mas era tarde de mais.

— Mercy — disse uma voz aguda no momento em que a porta da oficina abriu com um bramido de bongós e guitarras. Então, a irmã mais nova de Gabriel, Maia, saltou o pequeno conjunto de degraus e correu na nossa direção. — Mercy, Mercy, sabes uma coisa? Sabes uma coisa? Já sou uma menina grande. Vou para o elefantário.

E foi então que vislumbrou Sam.

— Oh — disse, ainda a correr.

Samuel não é nada feio na sua forma humana — mas o seu lobo é de um branco puro e fofo. Só lhe faltava um corno de unicórnio para ser o animal de estimação perfeito de uma menina pequena.

— Elefantário? — perguntei, dando um passo em frente e para o lado, de modo a ficar entre o lobisomem e Maia. Em vez de esbarrar em mim, Maia parou, mas manteve-se de olhos fitos no lobo.

A segunda rapariga mais nova, Sissy, que tinha seis anos, emergira do escritório poucos segundos depois da sua irmã.

— A Mamá disse que tu não podes sair do escritório a correr, Maia. Podem passar carros que não te veem. Olá, Mercy. Ela quer dizer infantário. Este ano entrei para o primeiro ano, e ela ainda é uma bebé. Isso é um cão? Quando é que comprou um cão?

— Elefantário — repetiu Maia. — E eu não sou uma bebé. — Deu-me um abraço e lançou-se na direção de Sam.

Tê-la-ia agarrado se Sam também não tivesse saltado para a frente.

— Um pónei — disse ela, atirando-se a ele como se fosse tudo menos um lobo assustadoramente gigante. Agarrou um punhado de pelo e trepou para cima dele. — Pónei, pónei.

Estiquei-me para pegar nela, mas congelei quando Sam me olhou.

— O meu pónei — disse Maia alegremente, sem perceber o meu terror. Usando os calcanhares, golpeou-lhe as costelas com uma força tal que consegui ouvir o barulho. — Anda, pónei.

A irmã de Maia pareceu compreender o perigo tão bem como eu.

— Mamá — soltou num grito agudo. — Mamá, a Maia está a ser estúpida outra vez.

Bom, talvez não tão bem.

Franziu o sobrolho à irmã e — enquanto eu permanecia imóvel, receosa de que qualquer movimento que fizesse seria o responsável por fazer com que Sam se passasse — disse-me:

— Nós levámo-la à feira e ela viu os cavalos. Agora dá-lhe para trepar para todos os cães que vê. Quase foi mordida pelo último.

Sam, por seu turno, rosnou na quarta ou quinta vez que os calcanhares de Maia lhe golpearam os flancos, dirigiu-me um novo olhar — que me pareceu ser de exaspero — e encaminhou-se para o escritório, agindo como se fosse um pónei em vez de um lobisomem.

— Mercy? — disse Sissy.

Suponho que estivesse à espera que eu dissesse alguma coisa — ou de que pelo menos me mexesse. O pânico deixou-me com os dedos gelados e um coração disparado — porém, à medida que se foi dissipando, uma ou outra coisa ocupou o seu lugar.

Já vi alguns lobisomens cujo lobo se sobrepôs ao homem. Normalmente, isso acontece no meio de uma luta — e a única coisa a fazer é esperar até que o homem readquira o controlo. A outra circunstância em que isso acontece com frequência é quando estão envolvidos lobos que sofreram a primeira Transformação. São viciosos, imprevisíveis e perigosos, inclusive para as pessoas que amam. No entanto, Samuel não tinha sido vicioso ou sequer imprevisível — exceto no melhor sentido da palavra — quando Maia pulara para cima dele, dando uma de Wild Horse Annie2.

Pela primeira vez desde que entrara naquela maldita sala de armazenamento do hospital a noite passada, senti uma esperança real. Se o lobo de Sam fosse capaz de agir de modo civilizado durante uns dias, talvez me fosse possível persuadir Bran a dar-nos um pouco mais de tempo.

Sam alcançara a porta do escritório e ali permanecera, esperando pacientemente que o deixassem entrar, enquanto Maia lhe dava palmadinhas no topo da cabeça e dizia que era um pónei bonito.

— Mercy? Está tudo bem consigo? — Sissy espreitou para o interior do meu carro: era comum eu trazer biscoitos. Trouxera aqueles que tinha feito esta manhã por uma questão de hábito. Por norma faço muitos mais biscoitos do que uma só pessoa é capaz de ingerir, portanto quando me lanço a cozinhar biscoitos desenfreadamente, trago-os para os clientes. Não disse nada quando viu os sacos pousados em cima do livro que ainda tinha de devolver a Phin, mas um enorme sorriso plasmou-se no seu rosto.

— Tudo ótimo, Sissy. Queres um biscoito?

Quando abri a porta do escritório, que era de um rosa-alaranjado, já desbotado e a precisar de uma nova pintura, a barulheira da música foi abafada pelas expressões «Mercy» e «Vejam, um cão!» E por aquilo que parecia ser uma centena de corpos minúsculos agarrada a nós.

Sissy levou os pequenos punhos aos lábios e, numa imitação perfeita do seu irmão, disse:

— Bárbaros.

Para em seguida dar uma trinca no biscoito que lhe tinha oferecido.

— Um biscoito! — alguém guinchou. — A Sissy tem um biscoito!

Fez-se silêncio e todos se puseram a olhar para mim do mesmo modo que um leão olharia para uma gazela na savana.

— Está a ver o resultado? — disse a mãe de Gabriel sem sequer levantar os olhos do balcão que esfregava. Sylvia era cerca de uma década mais velha que eu, porém, os anos não pareciam ter passado por ela. Era uma mulher baixa, delicada e bonita. Diz-se que Napoleão também era baixo.

— Você estraga-os com mimos — disse-me num tom desdenhoso. — Portanto cabe-lhe a si lidar com o problema. Tem de pagar o preço.

Retirei os dois sacos de biscoitos de onde os tinha escondido, no interior do casaco.

— Pegue — disse ofegante, estendendo-os por cima dos braços esticados da horda, na direção da mãe deles. — Pegue neles depressa antes que os monstros lhes deitem a mão. Proteja-os com a sua vida.

Sylvia pegou nos sacos e tentou esconder o sorriso enquanto eu me debatia por entre pequenos corpos vestidos de cor-de-rosa que soltavam guinchos. Ok, não eram uma centena; Gabriel tinha cinco irmãs mais novas. Que no entanto faziam um barulho que valia por cinquenta.

Tia, cujo nome era um diminutivo de Martina, a rapariga mais velha, olhou para todos nós de cenho carregado. Sam, sentado ao seu lado, fora preterido por biscoitos. Parecia divertido, mais divertido quando percebeu o meu olhar fatigado.

— Ei, estamos a fazer o trabalho todo — comentou Rosalinda, a segunda mais velha. — As chicas vão fazer o favor de começar a esfregar imediatamente. Vocês sabem que só vão ter direito a biscoitos quando a Mamá disser.

— A Sissy comeu um — disse Maia.

— E até que tudo esteja limpo, é assim que as coisas vão ficar — proclamou Tia assertivamente.

— Contigo as coisas não têm graça nenhuma — disse-lhe Sofia, a irmã do meio.

— Graça nenhuma — concordou Maia com o lábio inferior espetado. Mas não podia estar demasiado chateada, uma vez que se afastou de mim num pulo para gatinhar na direção de Sam, cuja coleira agarrou com os dedos. — O meu cachorrinho precisa de um biscoito.

Sylvia franziu o sobrolho a Sam, depois a mim.

— Você tem um cão?

— Não propriamente — repliquei. — Estou a tomar conta dele por um amigo. — Por Samuel.

O lobo olhou para Sylvia e agitou a cauda deliberadamente. Manteve a boca fechada, o que foi um gesto inteligente da parte dele. Ela não ficaria lá muito contente se lhe visse bem os dentes — que eram maiores do que os de qualquer cão que eu algum dia vira.

— De que raça é? Nunca tinha visto um monstro desse tamanho.

As orelhas de Sam baixaram um tudo-nada.

Mas a seguir Maia beijou-o no topo da cabeça.

— Ele é giro, Mamá. Aposto que podia correr com ele na feira, e ganhávamos um prémio. Devíamos comprar um cão. Ou um pónei. Podia ficar no parque de estacionamento.

— Hmmm, talvez seja arraçado de Cão de Montanha dos Pirinéus? — aventurei-me. — Qualquer coisa grande.

— O Abominável Cão das Neves — sugeriu Tia secamente. Esfregou energicamente uma orelha de Sam.

Sylvia suspirou.

— Bom, se ainda não as comeu, não creio que o vá fazer.

— Não me parece — concordei cautelosamente. Olhei para Sam, que parecia sentir-se otimamente, mais relaxado do que alguma vez o vira desde que entrara na sala de armazenamento do hospital.

Sylvia suspirou novamente, de modo teatral, com os olhos dramaticamente grandes a cintilar de diversão.

— É uma pena. Teria muito menos trabalho se tivesse menos algumas filhas, não lhe parece?

— Mamá! — irrompeu o coro indignado.

— Quando andam por aí a guinchar, parecem muitas mais do que na realidade são — disse-lhe.

— Já dei por ela. Quando estão a dormir, até são girinhas. O que é uma coisa boa, caso contrário nenhuma delas teria sobrevivido este tempo todo.

Olhei em volta. Já estavam a trabalhar há algum tempo.

— Sabe, as pessoas vão entrar, dar meia-volta e fazer o caminho inverso porque não vão reconhecer o sítio. O Gabriel e o Zee estão na oficina?

— Sí, sim, estão. Obrigada por nos ter emprestado o carro.

— Não há problema — disse-lhe. — Não estou a precisar dele. E você pode fazer-me um favor, relatando-me o que possa notar de errado nele.

— Para além de o volante se soltar?

Fiz uma careta.

— Sim.

— Farei isso. Agora você e aquele... elefante que trouxe... precisam de ir para a oficina para que as minhas monstrinhas possam voltar ao trabalho.

Obedientemente, retirei Maia de cima do lobo.

— Vamos trabalhar — disse-lhe.

Sam acompanhou-me por dois passos, e em seguida deitou-se no centro do escritório com uma rosnadela. Esticou-se sobre o flanco e fechou os olhos.

— Anda lá, Sa... — Mordi o lábio. Qual era o nome que Samuel ostentava na coleira? Certo. — Anda, Bola de Neve.

Abriu um olho branco e fixou-se em mim.

Engoli em seco. Discutir com lobos dominantes podia ter consequências desagradáveis.

— Eu tomo conta do cachorro — declarou Maia. — Podemos brincar aos cowboys, e eu ensino-o a ir buscar objetos atirados por mim. Fazemos uma festa do chá. — Enrugou o nariz. — E assim ele não se vai sujar todo a brincar com os carros cheios de óleo. Ele não gosta de estar sujo.

Sam fechou os olhos enquanto ela lhe afagava o nariz.

Ele não ia fazer-lhe mal.

Respirei fundo.

— Acho que ele gosta da música — disse a Sylvia.

Ela irritou-se.

— Eu acho que você não quer tomar conta dele.

— A Maia quer fazer de babysitter­ — disse-lhe. — Isso vai mantê-la ocupada.

Sylvia fitou Sam pensativamente. Abanou-me a cabeça mas não barafustou quando o deixei ali deitado.

Zee tinha fechado a porta entre o escritório e a oficina — ele não gosta de música latina. Portanto, quando entrei, também a fechei atrás de mim.


1 Famoso navio inglês que, em 1620, transportou os chamados «Peregrinos», do porto de Southampton, Inglaterra, para o Novo Mundo. (N. do T.)

2 Nome por que era conhecida Velma Bronn Johnston, famosa ativista dos direitos dos animais. (N. do T.)


4

A primeira coisa que ouvi quando emergi da casa de banho envergando o meu fato-macaco foi Zee a praguejar em alemão. Usava o alemão moderno porque consegui perceber cerca de uma palavra em cada quatro. O facto de o fazer em alemão moderno era um bom sinal.

O Buick estava no primeiro compartimento. Não conseguia ver Zee, mas a julgar pela direção da sua voz, estava debaixo do carro. Gabriel encontrava-se no lado oposto do veículo; olhou para cima quando me ouviu entrar, e uma expressão de alívio atravessou-lhe o rosto.

Ele sabe que Zee é... bom, não inofensivo, mas que Zee não lhe fará mal. Mas Gabriel é demasiado cortês — e, em resultado disso, tem de aturar muito mais do Zee Rezingão do que eu.

— Ei, Zee — disse-lhe. — Acredito que sejas capaz de reparar isso, mas vai ficar uma miséria e vais desejar que tivesse ido para a sucata e tivesses começado do zero.

— Monte de ferro-velho — resmungou Zee. — O que não está completamente podre está entortado. Se pegasses em todas as peças que estão boas e as empilhasses, conseguias levá-las no bolso. — Fez uma breve pausa. — Mesmo que o teu bolso fosse pequeno.

Dei uma palmadinha no carro.

— Não lhe dês ouvidos — sussurrei. — Daqui a nada já vais andar a circular na estrada.

Zee deu impulso ao corpo e a sua cabeça espreitou de debaixo do carro, junto aos meus pés.

— Não prometas o que não podes cumprir — rosnou.

Ergui as sobrancelhas e, num tom suave, repliquei:

— Estás a dizer-me que não o consegues arranjar? Peço desculpa. Lembro-me claramente de teres dito que não havia nada que não conseguisses reparar. Devo ter-me equivocado, devo ter ouvido a tua voz na boca de outra pessoa.

Soltou uma rosnadela que teria feito jus a Sam e voltou a deslizar para debaixo do carro, murmurando:

— Deine Mutter war eine Cola-Automat!

— A mãe dele é capaz de ter sido uma máquina de venda automática — disse, respondendo a uma das observações que percebi mesmo com Zee falando a toda a velocidade. «A tua mãe...» tem um som semelhante numa série de línguas. — Mas quando era nova, era uma estampa. — Exibi um sorriso rasgado a Gabriel. — Nós, mulheres, temos de ser umas para as outras.

— Porque é que todos os carros são mulheres? — perguntou.

— Porque veem problemas em tudo e são exigentes — respondeu Zee.

— Porque se fossem homens, não fariam nada senão queixar-se em vez de fazerem o que há a ser feito — disse-lhe.

Era um alívio fazer algo normal. Na minha oficina, eu estava em controlo... Bom, na verdade, sempre que aqui estava, quem assumia o controlo era Zee. Apesar de eu lhe ter comprado a oficina e agora lhe pagar para aparecer, ambos sabíamos quem era o melhor mecânico — e ele tinha sido meu patrão durante muito tempo. Talvez, pensei enquanto lhe passava anilhas tamanhos dez e treze, esse fosse o verdadeiro alívio. Aqui tinha um trabalho que sabia como realizar e alguém em quem confiava a dar-me ordens, e o resultado seria uma vitória para o bem e a ordem. Reparar carros é algo metódico — contrariamente à maior parte da minha vida. Faz-se a coisa certa e funciona. Faz-se a coisa errada e não funciona.

— Verdammte Karre — rosnou Zee. — Gib mir mal...

A última palavra foi cortada pelo estampido de algo pesado.

— Dou-te o quê? — perguntei.

Fez-se um longo silêncio.

— Zee? Estás bem?

Todo o carro se ergueu cerca de vinte centímetros acima dos macacos, fazendo-os tombar para o lado, e começou a tremer como um epilético. Uma onda de magia emanou do Buick, e eu recuei, com uma mão firmemente agarrada à t-shirt de Gabriel, pelo que estava junto a mim quando o carro caiu no chão com o estrondo das rodas no pavimento e o guincho dos amortecedores.

— Já me sinto melhor — disse Zee num tom bastante maléfico. — Ficaria ainda mais feliz se pudesse enforcar o último mecânico que lhe pôs as mãos.

Conhecia essa sensação — ah, a frustração sem paralelo de parafusos com o tamanho errado, unidades de transmissão mal ligadas e peças mal presas que me cabe a mim descobrir: coisas que transformam o que deveria ser um trabalho de meia hora num esforço de um dia inteiro.

Gabriel estava a tentar livrar-se da minha mão, como se quisesse afastar-se mais do carro. Tinha os olhos escancarados, com o branco em redor das íris completamente a descoberto. Apercebi-me, tardiamente, que esta talvez fosse a primeira vez que tivesse visto Zee a trabalhar de facto.

— Está tudo bem. Ele já fez o que tinha a fazer, acho. — Larguei a t-shirt de Gabriel e dei-lhe uma palmadinha no ombro. — Zee, acho que o último mecânico a pôr-lhe as mãos foste tu. Lembras-te? Substituíste o feixe de fios.

Zee voltou a colocar a cabeça de fora, e uma mancha de óleo preta descia-lhe da testa para o queixo onde algo lhe rolara pela cara. Tinha uma nódoa de sangue na testa e um inchaço no queixo.

— Podes calar-te quando te apetecer, Kindlein — aconselhou-me num tom ríspido. Depois franziu o sobrolho. — Cheira-me a biscoitos, e pareces-me cansada. Que se passa?

— Fiz biscoitos — disse-lhe. — Deixei um saco no carro para levares para casa. Trouxe mais comigo, mas a horda está na posse deles.

— Ótimo — replicou. — E o que é que te está a tirar o sono?

Ele não costumava meter-se na minha vida. Mas desde que Tim... desde que me tinham feito mal, acarinhava-me à sua maneira.

— Nada em que me possas ajudar — respondi.

— Dinheiro?

— Não.

Franziu o sobrolho, baixando as sobrancelhas brancas sobre os seus frios olhos cinzentos.

— Vampiros? — atirou brusca e secamente. Zee não gostava particularmente de vampiros.

— Não, senhor. — Retribuí o tom. — É um assunto em relação ao qual não podes fazer nada.

— Não seja insolente, menina. — Dirigiu-me um olhar ameaçador. — Eu...

Uma das irmãs de Gabriel soltou um grito. Tive uma visão terrível na qual Sam mastigava uma das crianças, portanto desatei a correr.

Já tinha a mão na porta e esta já se encontrava quase totalmente aberta quando Tia gritou:

— Mamá, Mamá, una pistola! Tiene una pistola.

Dentro do escritório havia crianças por toda a parte: penduradas em prateleiras, no parapeito do janelão, no chão de volta de Sam.

Um homem, um homem enorme com uma pistola automática intimidatória firmemente segura por ambas as mãos, estava postado na entrada, mantendo a porta aberta com uma bota de couro preto. Aliás, todo ele estava vestido de preto, com um desenho amarelo qualquer no ombro esquerdo do seu casaco de cabedal pseudomilitar. A única coisa que destoava na sua aparência à soldado-da-fortuna era o cabelo ruivo pelos ombros, que lhe pendia da cabeça de uma forma que teria feito jus a um modelo da capa de um romance de cordel.

Mesmo atrás de si, vislumbrei um outro homem, envergando uma camisa e umas calças largas. No entanto, a linguagem corporal do segundo homem disse-me num relance que apenas o primeiro homem, o homem com a arma, constituía uma ameaça. O segundo homem trazia qualquer coisa ao ombro, mas, sem determinar se se tratava de uma arma, ignorei tanto o objeto como o próprio homem e concentrei-me no perigoso.

Sylvia segurava uma vassoura, mas estava congelada porque o cano da arma estava apontado exatamente na direção da Sandoval mais nova. Maia estava agarrada a Sam com ambas as mãos e a gritar em espanhol de uma forma que seria exageradamente dramática se não tivesse uma pistola automática apontada.

Calculei que fosse a preocupação em relação a ela que mantinha o lobo imóvel no chão do escritório, de olhos semicerrados apontados ao cano da arma enquanto a pele sobre o seu focinho se enrugava numa rosnadela muda.

Se tivesse tido tempo para me sentir assustada, teria sido nessa altura, ao olhar para Samuel. Para Sam. Já lhe via a contração dos músculos dos quartos traseiros que precedia um ataque. Com arma ou sem arma, com Maia ou sem Maia, não tardaria a atacar.

Tudo isto testemunhei no primeiro instante em que abri a porta, e quando me apercebi do cenário, ainda estava em movimento. Agarrei a vassoura de Sylvia, contornei a esquina do balcão e, com o cabo, golpeei os pulsos do homem que segurava a arma. Atingi-o com um estalido, fazendo cair a arma antes que eu, ou qualquer outra pessoa no escritório, tivesse a possibilidade de reagir à minha entrada.

Excluindo o facto de me transformar em coiote quando me apetece, os meus superpoderes limitam-se a uma resistência inconsistente à magia e uma rapidez de movimentos que vai um pouco além do humanamente possível. Desde o instante em que ouvi o primeiro grito, usei de toda a agilidade que tinha.

Golpeei o homem uma segunda vez, agora visando o corpo, como se a vassoura fosse um Louisville Slugger3, apressando-me a dizer:

— Não te levantes, Sam.

Todas aquelas aulas de karaté serviram para alguma coisa, pensei enquanto o homem agarrava o cabo e se inclinava para trás. Larguei a vassoura. Desequilibrado pelo gesto defensivo, recuou um passo e desferi-lhe um pontapé no estômago, fazendo-o cair pelos degraus até se estatelar no asfalto. Não por acaso, levou consigo o tipo que estava atrás de si.

Espero que o lobisomem me tenha dado ouvidos e não se levante.

Peguei na arma que o nosso intruso deixara cair no chão e avancei para a entrada, segurando a porta como ele o fizera, com um pé. Apontei a arma à cara do estranho — e esperei que o verdadeiro terror começasse.

Mas não ouvi um único rugido atrás de mim, mais nenhum grito. Tudo isto enquanto Sam ficava calmo e transparecia aquele ar que fazia com que as pessoas olhassem para ele e pensassem em «animal de estimação» em vez de «monstro».

Aproveitei esse momento para respirar, um tanto ou quanto estonteada com o comedimento de Sam. Precisei de algum tempo até perceber o que fazer com o melhor cenário possível que inesperadamente me fora presenteado.

Ouvi barulho atrás de mim, mas ignorei-o. Zee estava lá; nenhum inimigo podia vir ao meu encontro daquela direção. Os soluços e as vozes amedrontadas suavizaram-se e pararam. Sam não estava a rosnar. Não tinha a certeza se isso era um bom sinal ou não, mas decidi pensar positivamente.

— Sylvia, chame a polícia — disse-lhe após ponderar por breves segundos. Tínhamos o direito de fazê-lo. E graças a Adam, que enchera o meu local de trabalho com câmaras de segurança, tínhamos provas. Como bónus adicional, não havia ataques de lobisomens a explicar. Não havia nenhuma razão para Sam desempenhar qualquer papel nisto. — Conte-lhes o que aconteceu e peça-lhes para virem depressa.

— Ouça lá, menina, você não quer fazer isso — disse o segundo homem, sem fôlego. Começava a debater-se para sair de debaixo do homem da arma, que me avaliava com um olhar glacial enquanto o seu assistente continuava a falar. — Você não quer ver a polícia envolvida. Quanto mais discreto isto for, melhor correrá.

Se não tivesse soado tão condescendente, não creio que tivesse premido o gatilho.

Disparei para o lado, suficientemente longe para não haver a menor possibilidade de atingir nenhum deles, mas suficientemente perto para que fossem atingidos pelo asfalto que ressaltou com o disparo.

— Se fosse a si, mantinha-me quieto — disse-lhe, com a voz trémula da adrenalina. As minhas mãos, a parte importante, mantinham-se firmes.

— Vou telefonar ao Tony — disse Sylvia atrás de mim numa voz baixa que os dois homens deitados de costas ao fundo das escadas não conseguiriam ouvir. — Assim não vai haver erros. — A sua voz era calma e desapressada. Todos aqueles anos a trabalhar como despachante da polícia serviam-lhe de ajuda. Tony era meu amigo e amigo de Sylvia, e ambas confiávamos nele.

Com os intrusos sob controlo, dei-me conta de que havia mais pessoas lá fora. Não eram clientes. Estavam postados ao lado de um monovolume preto que conseguia parecer simultaneamente intimidatório e elegante com a sua pintura personalizada.

Eram três pessoas — duas (um homem e uma mulher) vestidas como o homem armado, parecidos inclusive no cabelo, e uma rapariga com uma t-shirt cinzenta e uns auscultadores. A carrinha tinha a mesma inscrição a amarelo que vira no casaco do homem.

KELLY HEART, dizia, apercebi-me assim que tive oportunidade de ler, CAÇADOR DE RECOMPENSAS. Por baixo da mancha amarela, podia-se ler em letras ligeiramente mais pequenas: SÁBADOS ÀS 20, HORA CENTRAL. APANHAMOS OS MAUS DA FITA, UM DE CADA VEZ.

— Sorriam — disse em tom sombrio àqueles que me protegiam a retaguarda: Zee, Sylvia e as filhas, e Sam. — Isto é para os Apanhados. — Zee e Sam precisavam de saber que havia câmaras hostis apontadas a eles.

— Veja lá se se acalma — disse uma das pessoas vestidas de preto, a mulher com o cabelo amarelo-vivo e batom vermelho. Quando começou a falar, encaminhou-se na nossa direção em passo enérgico. — É melhor baixar essa arma. Isto é só a televisão, minha senhora, nada de particularmente excitante.

Eu não recebo ordens. Não de pessoas que invadem o meu espaço. Disparei uma segunda vez para o pavimento, em frente a ela.

— Tanya, para — gritou a rapariga fanática da tecnologia. — Não a faças disparar outra vez. Tens noção de quanto nos custam aquelas balas de prata?

— É bom que parem exatamente onde estão — disse-lhes. A prata era para lobisomens. Eles tinham vindo à caça de lobisomens. — Fui criada na floresta de Montana. Consigo acertar na asa de um pato. — Talvez. Provavelmente. Nunca tinha disparado contra um pato; prefiro caçar em quatro patas. — Na minha terra, uma arma é uma arma, não um adereço de televisão, e se todos os maus da fita estiverem mortos, a nossa versão da história será a única a ser contada. Não me obriguem a concluir que essa seria a via mais fácil.

Tanya congelou e voltei a apontar o cano ao homem cujo rosto me era vagamente familiar assim que fiquei a saber que era uma estrela da televisão. Sentia-me a lutar contra o impulso crescente de simplesmente puxar o gatilho e acabar com aquilo de vez.

Os coiotes, à semelhança dos lobisomens, são territoriais — e este imbecil que aparecera de arma em punho irrompera pelo meu espaço dentro como se tivesse todo o direito de aqui estar.

— A polícia está a caminho? — perguntei a Sylvia quando desligou o telefone. A minha voz estava a tremer da adrenalina e da raiva, mas as minhas mãos continuavam bastante firmes.

— Ele disse que daqui a cinco minutos está cá. Também disse que seria bom trazer reforços. Portanto, vêm outros agentes com ele.

Exibi um sorriso rasgado ao caçador de recompensas, mostrando os dentes como qualquer bom predador.

— O Tony é um agente da polícia. Conhece estas crianças desde que elas usavam fraldas. Não vai ficar nada contente consigo. — Tony também estava desesperadamente apaixonado por Sylvia, embora estivesse em crer que ela não soubesse disso.

Senti um movimento à minha direita e lancei um olhar de soslaio nessa direção, vendo Zee e Gabriel a sair da porta da oficina. Deviam ter ido dar a volta. Zee tinha um pé-de-cabra numa mão e segurava-o como um outro homem pegaria numa espada. Gabriel tinha...

— Zee — guinchei. — Diz-lhe para voltar a pôr a chave dinamométrica onde estava e pegar numa coisa que não me vá custar quinhentos dólares se atingir alguém com ela.

— Não vai custar quinhentos dólares — disse Zee, mas quando lhes relanceei novamente os olhos, acenou ao pálido Gabriel, que olhava para o que segurava como se nunca tivesse visto semelhante objeto. O rapaz regressou à oficina enquanto Zee dizia: — Não irias estragá-la, apenas terias de voltar a calibrá-la.

— Temos uma oficina cheia de ferramentas: alavancas, desmonta-pneus, e até alguns martelos. De certeza que existe alguma coisa melhor do que a minha chave dinamométrica para ele pegar.

— Ouça, minha senhora — disse Kelly Heart numa voz calma e apaziguadora. — Vamos respirar fundo e discutir isto por um momento. Não era minha intenção assustar ninguém. Aquela menina estava prestes a ser atacada por um lobisomem.

Verdade.

Não me surpreendeu. O facto de ter falado com Zee acalmara-me, e tivera um momento ou dois para pensar.

É possível que haja algures uma estrela de um programa da vida real capaz de apontar uma arma a uma criança fofa, mas não enquanto estivesse a ser filmado. O homem atrás dele era o seu operador de câmara — vi a câmara dele no chão, no lugar onde fora largada quando Heart aterrara em cima do segundo homem com os seus mais de noventa quilos de músculo.

Se tinha vindo aqui à caça de lobisomens, teria descoberto de imediato o que Sam era. Existe uma magia lupina que encoraja os humanos a ver um cão em vez de um lobo, mas é apenas uma magia suave, e se alguém estiver a olhar atentamente, perceberá que se trata de um lobo e não de um cão.

Portanto, teria muita coisa a admitir. Já demorara demasiado tempo para negar o que Sam era.

— Ele gosta de crianças — disse em vez de negar. — Dócil como um cachorro.

Sylvia estava a murmurar qualquer coisa às filhas, mas a sua voz parou com as minhas palavras. Fez-se um breve silêncio, após o que a mais pequena desatou a guinchar como um carro dos bombeiros, um carro dos bombeiros com uma sirene muito aguda. Se pudesse adiantar um palpite, diria que Sylvia tinha acabado de afastar a sua filha do grande lobo mau.

— Tenho um mandado de captura para o levar — continuou Heart, retraindo-se um pouco. Não conseguia perceber se o que o incomodava era o volume ou o tom, que se aproximava do ultrassónico.

Ergui as sobrancelhas e indiquei a arma com o queixo.

— Procura-se vivo ou morto?

Samuel não tinha exposto publicamente a sua condição. E a única pessoa que me fazia sentir preocupada caso viesse atrás de Samuel jamais enviaria um caçador de recompensas. Seria Bran a matá-lo, quando e se chegasse a altura. O mandado de captura de Heart não podia ser para Samuel.

Não era preciso ser-se um génio para perceber que lobisomem esperariam as pessoas encontrar no meu local de trabalho: Adam.

Como é que um caçador de recompensas arranjou um mandado de captura para ele, quando, ao que sabia, Adam era visto como um cidadão cumpridor da lei, não fazia ideia. Sabia pouco de caçadores de recompensas, mas tinha praticamente a certeza de que eles perseguiam e capturavam sobretudo pessoas que eram procuradas por se esquivarem ao pagamento de fianças, e depois o fiador pagava-lhes uma percentagem no dinheiro da fiança que de outro modo teriam perdido.

O Departamento de Polícia de Kennewick não ficava muito longe. Ainda assim, o primeiro carro a aparecer no meu parque de estacionamento foi o de Adam. Estacionou o seu SUV em frente à carrinha, bloqueando-a.

— Está enganado — disse a Kelly Heart, Caçador de Recompensas, mantendo-me de olhos fixos nele por muito que quisesse olhar para o homem que acabara de fechar a porta do seu novo SUV. — Não há nenhum lobisomem por estas bandas com um mandado de captura.

— Receio que esteja enganada — disse-me Kelly simpaticamente. Contra a minha vontade, fiquei impressionada com ele. Permanecia calmo e sereno enquanto estava deitado de costas como uma tartaruga, em cima do seu operador de câmara, que estava cheiinho de medo e concentrado na arma que eu segurava.

Uma outra porta do SUV foi aberta e fechada — Adam trazia alguém com ele. O vento não estava de feição, portanto não consegui descortinar quem seria. E não ia ser estúpida ao ponto de olhar. Não que achasse que o caçador de recompensas ainda fosse uma verdadeira ameaça. Pelo menos para as crianças atrás de mim.

Consegui ouvir a mulher de t-shirt dizer numa voz nervosa:

— Não a obrigues a disparar outra vez, Kelly. Quarenta dólares. Custam quarenta dólares. Cada uma.

— Não se preocupe — gritei-lhe. — Pode tirá-las de debaixo do chão que elas vão parecer quase intactas. Até é capaz de poder voltar a usá-las. — A prata não se deforma tão facilmente como o chumbo, o que faz dela uma munição péssima, a menos que se esteja a disparar contra lobisomens.

— Ela não parece estar muito preocupada consigo — disse a Kelly num tom de compaixão fingido enquanto Adam caminhava na nossa direção. — Presumo que seja mais difícil encontrar balas de prata do que caçadores de recompensas que ficam bem em couro preto.

Sorriu.

— Ela acha que sim. Ouça, posso levantar-me? Prometo que não vou tentar nada, mas sou quarenta quilos mais pesado do que aqui o Joe. Se continuar em cima dele por muito tempo, é capaz de deixar de respirar.

— Levanta a arma, Mercy — disse Adam. — Esconde-a antes que a polícia chegue. Será mais fácil assim. Até pode ser que saiamos disto sem que ninguém seja preso.

A minha capacidade de arbítrio desapareceu ao som da sua voz, e a minha cabeça girou com a mesma inevitabilidade que um girassol gira o botão na direção do Sol.

Adam vestia um fato e uma gravata do rato Mickey que a filha lhe oferecera no Natal — e conseguia parecer muitíssimo mais perigoso do que o homem que se encontrava no chão. Sabia que ele iria aparecer, mesmo depois da conversa que tínhamos tido esta manhã.

Magoara-o, e ainda assim tinha vindo quando as câmaras de vigilância que colocara em tudo o que é sítio na minha oficina lhe indicaram que eu estava em perigo. Nunca, por um segundo que fosse, tinha duvidado de que ele apareceria; Adam é fiel e leal, como o soldado de chumbo na velha história infantil. Mais fiel e leal do que eu, que o afastara para salvar Samuel.

— A Sylvia ligou ao Tony. A polícia já deve saber da arma.

— Ainda assim — replicou Adam. — As pessoas cometem erros quando há armas por perto.

Kelly não queria tirar os olhos de mim enquanto segurava uma arma apontada a ele, mas deixou-se envolver pelo mesmo feitiço em que estavam mergulhadas todas as pessoas em redor de Adam. Do canto do olho vi o rosto do caçador de recompensas virar-se para Adam, que aparecera do lado de modo a não se colocar na minha linha de mira caso Kelly se tivesse levantado repentinamente e começado a correr.

— É verdade — disse o caçador de recompensas. — Baixe a arma, Sra. Thompson. Tal como sugere este senhor. — Talvez pensasse que Adam seria mais razoável do que eu. Kelly Heart não iria compreender o que as manchas douradas nos olhos de Adam significavam.

— Vim aqui para levar um lobisomem para o qual tenho um mandado de captura — disse a Adam, e consegui perceber que acreditava no que dizia. — Vi o lobisomem com a criança e pensei que ia haver problemas.

Estava a dizer a verdade — também me dissera a verdade a mim. Atrapalhei-me um pouco ao pôr a arma que desconhecia na posição de segurança. Com Adam presente, quem precisava de uma arma?

Zee aproximou-se e estendeu a mão.

— Eu levo-a e faço-a desaparecer — disse-me.

Heart rolou de cima do operador de câmara, mantendo as mãos levantadas enquanto se afastava para o lado. Continuava a manter grande parte da atenção centrada em mim, como se a ameaça fosse eu e não Adam. Baixei consideravelmente a minha estimativa do seu grau de inteligência.

Adam colocou um par de óculos de sol — mas manteve-se fixo no caçador de recompensas enquanto Heart se levantava. Adam recuou um passo quando Heart deu uma mão ao seu operador de câmara, e o seu pé pisou qualquer coisa.

— Receio que isto não tenha sobrevivido à queda.

O operador de câmara produziu um ruído de lamentação, como se alguém lhe tivesse batido. Agarrou a câmara e abraçou-a contra a barriga, como se isso fosse de algum modo minimizar o estrago.

Adam olhou para o operador de câmara, e depois para lá dele na direção da carrinha, onde as pessoas que acompanhavam Heart conferenciavam nervosamente. Relanceou os olhos a Ben. Quando tinha a atenção do outro lobisomem, apontou para a carrinha com o queixo. Dessa forma tão simples, indicou a Ben que queria que ele fosse exercer vigilância sobre a equipa de rodagem de Heart. Adam não deixava nada ao acaso, e não iria ignorar possíveis hostilidades do outro lado do parque de estacionamento.

— Peço desculpa por tê-la assustado — disse-me Kelly. Desta vez estava a mentir. — E por afligir as crianças. — Tão-pouco estava preocupado com isso. Perguntei-me quantas pessoas acreditariam de facto naquela cena.

Dois carros da polícia, seguidos pela carrinha de caixa aberta de Tony, pararam no parque de estacionamento.

— Não têm as sirenes ligadas — comentou Adam. — Provavelmente Tony não lhes falou da arma.

Sam contornou-me, obrigando-me a ir contra a porta. Baixei um braço e agarrei-o pela pelagem do pescoço — não era estúpida ao ponto de o agarrar pela coleira. O meu gesto era um pedido, não uma ordem... mas Sam já tinha parado ao meu lado. Examinou a polícia que se acercava a partir do cimo dos degraus, uma posição que era superior em relação à deles.

A Sam, Heart prestou atenção. Olhou ansiosamente para Zee — porque a arma se encontrava longe da vista — e afastou-se um passo do lobisomem.

— Isto é um mal-entendido — disse numa voz suficientemente projetada para ser ouvida pela polícia. — A culpa é minha.

Reparei no momento em que o primeiro agente a chegar o reconheceu, porque os seus olhos se arredondaram e a sua voz se revelou um tudo-nada reverente quando disse aos agentes mais velhos que o seguiam:

— Está tudo bem, Holbrook, Monty. É o Kelly Heart, o caçador de recompensas da televisão.

Monty seria provavelmente Tony, cujo último nome era Montenegro. Isso fazia do polícia mais velho Holbrook.

— Green — disse o homem mais velho, baixinho. Não creio que fosse sua intenção que qualquer um de nós o ouvisse. — Não está tudo bem até saberes o que se passa. Não me interessa se é o presidente em pessoa que está à tua frente. — Mas depois Holbrook olhou bem para nós, todos com as mãos completamente visíveis e em poses relaxadas de pessoas que não se tinham quase matado cinco minutos antes. Nós, todos nós, éramos bastante bons a mentir com os nossos corpos. — Podes ir telefonar para a esquadra e dizer-lhes que a situação está sob controlo.

Green voltou-se sem contestar, deixando que Tony e Holbrook se aproximassem de nós sozinhos.

— Mercy? — Contrariamente aos outros agentes, Tony não trazia o uniforme vestido. Envergava um casaco escuro sobre umas calças de ganga pretas e usava brincos com diamantes nas orelhas furadas. Parecia mais um traficante de droga do que um polícia. — O que é que aconteceu?

— Ele entrou no escritório e viu aqui o meu amigo. — Pousei uma mão na cabeça de Sam. Não podia chamá-lo pelo nome. Tony conhecia o Dr. Samuel Cornick, sabia que ele era meu companheiro de casa, e não teria qualquer dificuldade em associá-lo a um lobo chamado Sam. E chamá-lo pelo nome de Bola de Neve nestas circunstâncias só ia atrair a atenção para o facto de que estava a esconder a sua identidade. — E partiu do pressuposto de que todos os lobisomens são um perigo.

— Isso é um lobisomem? — perguntou o agente mais velho, que subitamente pareceu mais desconfiado. A sua mão aproximou-se do coldre.

— Sim — respondi com firmeza. — E como podem ver, apesar das ações precipitadas do Sr. Heart — não lhes relatei quais haviam sido as ações precipitadas, embora a boca de Tony se tivesse contraído, um claro indício de que sabia acerca da arma, — aqui o meu amigo manteve-se calmo. Se isso não tivesse acontecido, haveria cadáveres. — Olhei para Heart. — Algumas pessoas podiam aprender com o seu exemplo de autocontrolo e capacidade de ajuizar.

— Ele é perigoso — afirmou Kelly. — Eu não teria dis... — Subitamente, decidiu deixar o assunto da arma de lado e mudou de tática sem se dar ao trabalho de terminar a frase. — Tenho um mandado de captura que autoriza a detenção do lobisomem.

— Não, não tem — disse-lhe em tom confiante. Era impossível ele ter um mandado de captura de Sam.

— Como? — disse Tony.

— Um lobisomem? — disse o polícia mais velho. — Não me lembro de ouvir nada a respeito de um mandado de captura de um lobisomem.

Assobiou e acenou, atraindo a atenção do polícia jovem que regressava em passo enérgico para junto de nós.

— Green — disse ele, — ouviste falar nalgum mandado de captura de algum dos lobisomens da nossa zona?

Os olhos do rapaz expandiram-se. Olhou para mim, olhou para Sam, e chegou à conclusão acertada. Sam agitou a cauda e o polícia endireitou-se, colocando no rosto uma expressão impessoal e profissional. Reconheci o olhar — este tinha estado nas forças armadas.

— Não, senhor — respondeu. Não estava com medo, mas observava Sam atentamente. — Não me esqueceria de uma coisa dessas.

— Tenho provas — interveio o caçador de recompensas, acenando na direção da carrinha. — Tenho o mandado de captura na carrinha.

A sobrancelha de Tony espetou-se e relanceou os olhos aos outros polícias.

— Posso garantir-lhe que não prendemos nenhum lobisomem que tivesse sido posto em liberdade sob fiança. Desde quando é que o nosso departamento põe mandados de captura nas mãos de caçadores de recompensas? Sinto-me inclinado a concordar com a Mercy: deve estar enganado.

Holbrook manteve-se fixo em Sam, porém, tanto Green como Tony revelaram mais bom senso.

— Sr. Agente Holbrook — disse eu, — tornaria as coisas bem mais fáceis aqui para o meu amigo se não olhasse para ele diretamente nos olhos. Ele não vai fazer nada. — Esperava eu. — No entanto, os instintos lupinos fazem com que o lobo interprete o contacto visual como um desafio.

Holbrook desviou o olhar na minha direção.

— Obrigado, minha senhora — disse. — Agradeço a informação.

— O mandado de captura está na carrinha — informou Heart. — Posso pedir à minha assistente que o traga.

Enquanto a polícia estava a falar comigo e com Heart, Adam, Zee e Gabriel aproveitavam para se afastar em silêncio. No entanto, detetei movimento do canto do olho: Zee, a atrair a atenção de Adam. Quando a obteve, inclinou a cabeça na direção do pátio de armazenamento situado no outro lado da rua.

Tal como Adam, segui o gesto de Zee com os olhos e localizei-o imediatamente. Em cima da unidade de armazenamento mais próxima, estava algo que passava despercebido no telhado de metal vermelho. Com a dose suficiente de glamour, um ser feérico consegue assumir a aparência de qualquer coisa viva, mas algo inanimado — como um telhado — é mais difícil. Não consegui perceber o que ele ou ela era, apenas que algo estava ali. Num ápice, afastei os olhos de modo a que a criatura feérica não se apercebesse de que tínhamos reparado nela.

— Ben — disse Adam muito baixinho.

— O que é que disse? — perguntou Tony.

Ben estava encostado à carrinha a lançar charme a Tanya-a-Mulher-do-Caçador-de-Recompensas, ao Rapaz de Couro (o bem-parecido comparsa de Heart) e à Rapariga da Tecnologia. Todos eles deviam ter mesmo muito maus instintos, uma vez que estavam corados e a sorrir. Quando Adam falou, Ben olhou para o seu Alfa. A carrinha escondia-o da criatura feérica no telhado — mas também escondia a criatura feérica dele.

— Nada importante — respondeu Adam enquanto fazia alguns gestos discretos com a mão direita, aproximadamente ao nível da anca. Ben, por seu turno, respondeu com um gesto e Adam cerrou o punho, abrindo-o em seguida.

— Afinal de contas, quem é você? — perguntou Heart.

— Vai mostrar-nos o tal mandado de captura? — perguntou Tony, mudando de assunto.

Postado ao lado da carrinha, Ben sorriu. Inclinou a cabeça, disse qualquer coisa às pessoas com quem estava a falar, fazendo-as olhar na nossa direção, e em seguida contornou descontraidamente a carrinha. Não consegui vê-lo enquanto atravessava a rua por causa da carrinha, mas vi a criatura feérica reparar nele e tombar para o lado oposto do armazém.

Heart disse:

— Trá-lo, querida. — Percebi então que tinham um qualquer sistema de microfones que lhe permitia a ela ouvir tudo o que nós dizíamos. Provavelmente gravar, também. Não via grande problema nisso.

Ben pulou a elevada vedação em rede metálica sem lhe tocar — se algum mundano o visse, não hesitaria em dizer que ele não era humano. No entanto, a polícia, incluindo Tony, estavam de olhos postos na famosa estrela de televisão.

Ninguém, a não ser Adam, Zee e eu própria — segundo consegui perceber — reparou em nada. Gabriel tinha desaparecido. Lembrei-me que o vira regressar à oficina quando a sua irmã tinha gritado; porque Sylvia a tinha afastado do lobisomem.

Depois de prestar atenção, consegui ouvi-lo a falar em espanhol, com a voz tomada pela raiva enquanto ele e a sua mãe discutiam sobre qualquer coisa — e o meu nome fazia definitivamente parte da discussão.

Desliguei-me do que diziam no momento em que vi a rapariga fanática por tecnologia correr na nossa direção com uma pasta de arquivo grossa que entregou a Heart. Este folheou as páginas enfiadas num compartimento da pasta e retirou um documento aparentemente oficial que entregou a Tony.

— Ele tem um mandado de captura — informou-me Tony, tendo o cuidado de não olhar para Adam. — E tens razão. Não é para este lobisomem. — Entregou o papel a Holbrook.

O homem mais velho deu uma olhadela e aclarou a garganta:

— É uma falsificação — disse com absoluta certeza na voz. — Se me tivesse dito o nome, ter-lhe-ia dito logo que é uma falsificação sem sequer olhar para a assinatura elegante que é menos parecida com a do Juiz Fisk do que a minha. É impossível haver um mandado de captura de Hauptman que na esquadra tenhamos conhecimento disso.

— Foi o que eu pensei — concordou Tony. — A assinatura de Fisk é praticamente ilegível.

— O quê? — Havia na voz de Kelly indignação suficiente para acreditar piamente que era genuína.

Tony, que observava atentamente o caçador de recompensas, parecia ter a mesma opinião que eu. Entregou o mandado de captura ao agente mais jovem.

— Green, vai fazer um telefonema para saber se isto é verdadeiro — disse. — Só por causa do caçador de recompensas.

À semelhança de Tony, Green teve o cuidado de não olhar para Adam.

— Não ouvi falar nisto — comentou. — E não me esqueceria se tivéssemos um mandado de captura dirigido a ele. Nós conhecemos o nosso Alfa local. Posso garantir, com toda a certeza, que ele não se esquivou ao pagamento de nenhuma fiança. — Green olhou para Tony. — Mas vou telefonar para confirmar. — E regressou apressadamente ao carro-patrulha.

— A minha produtora disse-nos que o departamento de polícia não queria enfrentar um lobisomem e pediu a nossa ajuda — disse Heart, embora não soasse de todo seguro.

Holbrook, indignado, rosnou:

— Se tivéssemos um mandado de captura de um lobisomem, íamos buscá-lo. É esse o nosso trabalho.

— A sua produtora disse-lhe que nós não queríamos enfrentar um lobisomem — disse Tony pensativamente. — Foi a sua produtora quem lhe deu o mandado?

— Sim.

— Ela tem um nome? Gostávamos de ter dados para podermos contactá-la.

— Daphne Rondo. — Perguntei-me se se apercebera de que tinha o coração na voz quando disse o nome dela. Enfiou a mão no bolso de trás, lentamente, sacou a carteira e do seu interior retirou um cartão.

— Veja. — Segurou-o por momentos, até Tony estender o braço e pegar nele. — Conhece este tipo, não conhece? Foi por isso que soube que este não era o lobo que procurávamos. — Em seguida, uma expressão de compreensão iluminou-lhe o rosto e largou o cartão para atentar em Adam. — Adam Hauptman?

Adam acenou afirmativamente com a cabeça.

— Diria que é um prazer conhecê-lo, mas não gosto de mentir. O que é que supostamente fiz?

O polícia mais novo regressou do carro em passada veloz, abanando a cabeça.

Kelly olhou para o polícia e depois suspirou.

— Que diabo. Presumo que não tenha andado a matar raparigas e a deixar os seus cadáveres meio comidos no deserto?

Adam ficou inquieto. Consegui perceber isso, apesar de manter a aparência de homem de negócios relativamente calmo. O temperamento de Adam era a razão pela qual ele não era um dos lobisomens de Bran que dava o rosto pela causa da espécie. Quando estava zangado, cedia frequentemente a impulsos a que de outro modo não cederia.

— Lamento desapontá-lo — disse Adam a Kelly numa voz melíflua. — Mas prefiro coelhos. Os humanos sabem a carne de porco. — E depois sorriu. Kelly recuou um passo involuntariamente.

Tony dirigiu um olhar severo a Adam.

— Não vamos piorar a situação se pudermos evitá-lo, meus senhores. — Sacou do telemóvel e, olhando para o cartão, marcou o número. Tocou até se ouvir o correio de voz. Tony não deixou nenhuma mensagem.

— Ok — disse Tony. — Gostaria de obter um depoimento da sua parte acerca deste mandado de captura. Se andam a circular mandados de captura falsos, precisamos de nos inteirar. Podemos tratar disso aqui ou na esquadra.

Deixei Tony e os outros polícias tratar das consequências e regressei ao meu escritório, fechando a porta atrás de mim. Também deixei Sam lá fora. Se ainda não tinha matado ninguém esta manhã, não ia fazê-lo agora.

Tinha outros assuntos a resolver.

Gabriel segurava a irmã mais nova na anca, o rosto molhado dela encostado ao seu ombro. As restantes raparigas estavam sentadas nas cadeiras destinadas aos clientes e a mãe estava de costas para mim.

Era a única que falava — em espanhol, pelo que não fazia a mais pálida ideia do que estava a dizer. Gabriel dirigiu-me um olhar desesperado, e ela voltou-se. Os olhos de Sylvia Sandoval reluziam de raiva, uma raiva tão intensa como a que costumava ver nos olhos dos lobisomens.

— Você — disse ela com sotaque carregado. — Você não gosta das pessoas com quem anda, Mercedes Thompson.

Não disse nada.

— Vamos para casa. E, de agora em diante, a relação entre você e a minha família está terminada. Por sua causa, por causa do seu lobisomem, a minha filha vai ter pesadelos com um homem a apontar-lhe uma arma. Ela podia ter levado um tiro. Qualquer um dos meus filhos podia ter levado um tiro. Vou mandar vir um reboque para levar o meu carro.

— Não é preciso — disse-lhe. — O Zee já está a acabar a reparação. — Presumi que fosse esse o caso. Ninguém sabia o que ele tinha sido capaz de fazer com a sua magia.

— Está a funcionar — informou Zee. Não me apercebera de que tinha entrado no escritório, mas devia tê-lo feito pela oficina. Parou ao lado da porta interior, com ar carrancudo.

— Diga-me quanto é que lhe devo, acrescentando ao último salário do meu filho.

Gabriel produziu um ruído de protesto.

Ela olhou-o de relance e ele engoliu o que quer que fosse que tencionava dizer, de olhos suspeitosamente brilhantes.

— O meu filho acha que por ser quase um homem pode tomar as próprias decisões. Enquanto ele viver na minha casa, as coisas não se passam assim.

Tinha a certeza de que Gabriel era capaz de sair de casa e safar-se bem sozinho — mas sem o seu salário, Sylvia passaria por muitas dificuldades para dar de comer à família. Gabriel também tinha noção disso.

— Gabriel — disse-lhe, — tenho de te deixar ir. A tua mãe tem razão. O meu escritório não é um lugar seguro para se trabalhar. Se a tua mãe não estivesse envolvida, já não terias trabalho aqui. Eu envio-te o último salário pelo correio. Quando procurares um novo emprego, podes dizer para me telefonarem que eu faço a recomendação.

— Mercy — disse ele com o rosto pálido e pétreo.

— Não seria capaz de viver comigo própria se alguma coisa tivesse acontecido, a ti ou às tuas irmãs — desabafei.

— Oh, pobre Mercy — disse Sylvia com falsa simpatia e um inglês cada vez pior. — Pobre Mercy, a vida dela é demasiado perigosa, e ela ia sentir-se mal se o meu filho saísse magoado. — Apontou-me o dedo. — Não é só isto. Se fosse só o homem da arma, nesse caso dizia: não, Gabriel, não te deixo trabalhar mais aqui, mas continuamos a ser amigos da Mercy. Mas você mentiu-me. Eu digo «O que é este canzarrão?» e você diz-me «Talvez seja arraçado». Você tomou essa decisão, a de deixar a minha filha brincar com um lobisomem. Você não me disse o que ele era. Tomou essa opção quando o que estava em jogo era o bem-estar dos meus filhos. Não telefone para a minha casa. Não fale com os meus filhos na rua, ou eu chamo a polícia.

— Mamá — interveio Gabriel. — Estás a exagerar.

— Não — disse-lhe num tom quebrantado. — Ela tem razão. — Soube que tinha feito a escolha errada no instante em que ouvi o primeiro grito de Maia. Não tinha sido Sam, mas podia ter sido. O facto de só ter tido a certeza de que não fora ele quando vi Kelly Heart com a sua arma indicara-me que tinha tomado a opção errada. Colocara em risco os filhos de Sylvia.

— Zee, tiras o carro dela da oficina, por favor?

Inclinou a cabeça e rodou sobre os calcanhares. Não conseguia perceber se também ele estava zangado comigo ou não. Claro que tinha a certeza de que ele não fazia a mínima ideia do elevado risco que eu correra. Não era um lobo, não tinha vivido com os lobos; não saberia o que Sam era.

— Mercy — disse Gabriel, impotentemente.

— Vai — repliquei. Tê-lo-ia abraçado, mas achei que ambos iríamos chorar. Podia lidar com isso, mas Gabriel tinha dezassete anos e era o homem da sua família. — Vaya con Dios. — Veem, afinal sei um pouco de espanhol.

— Você também — disse ele formalmente.

E a irmã dele começou a chorar novamente.

— Eu quero o meu cachorro — gritava.

— Vamos — disse a mãe.

Foram embora, as raparigas cabisbaixas, atrás de Gabriel, com Sylvia em último lugar.


3 Bastão de basebol produzido pela Hillerich & Bradsby Company. (N. do T.)


5

Com Sam atrás de si, Adam entrou no escritório enquanto Sylvia e a família ainda estavam na oficina, à espera que Zee tirasse o Buick. A julgar pela cara de Adam, percebi que tinha ouvido todas as palavras que eu e Sylvia tínhamos dito. Colocou uma mão no meu ombro e beijou-me a testa.

— Não sejas bonzinho comigo — disse-lhe. — Fiz asneira.

— Não tiveste culpa que o rapaz excitado que está lá fora entrasse de arma em punho pronto a disparar — disse Adam. — Alguém lhe vendeu um montão de mentiras. Ele e o Tony estão a tentar entrar em contacto com a produtora, mas ela não atende o telefone. Suponho que ela quisesse um combate em grande na televisão. Homem versus lobisomem.

— Talvez — repliquei. — Talvez ele não tenha sido culpa minha. Mas se não tivesse sido o Kelly Heart, podia facilmente ter sido um vampiro ou um ser feérico. E nenhum dos dois hesitaria em matar o Gabriel ou uma das raparigas se achassem que eles eram um empecilho.

A mão sobre o meu ombro deslizou para baixo e puxou-me para um abraço. Aceitei-o, consciente de que o estava a receber sob falsos pretextos — percebia, pelo modo como estava a agir, que ainda não se tinha dado conta da extensão das minhas transgressões. Sem dúvida que estivera demasiado ocupado para observar Sam atentamente — e Sam, miraculosamente, não tinha feito nada para atrair a atenção de qualquer pessoa. Ainda. O dia ainda estava no princípio.

Inalei o cheiro de Adam e senti um conforto a que não tinha direito. Sylvia estava certa. Estava a sentir demasiada pena de mim própria, e também não tinha direito a isso.

Afastei-me e dei um pulo para me sentar no balcão, ao lado da arma, antes de o esclarecer — não iria aguentar se me estivesse a tocar quando concluísse que não me queria ver mais à frente. Tal como Sylvia acabara de concluir.

A substância preta e pegajosa que restara no sítio onde alguém colara um papel na Idade Média tinha desaparecido, e percorri com o dedo o local acabado de limpar. Ela deixara os biscoitos.

— Mercy?

Eu traíra-o. Pelas melhores razões do mundo, mas era a companheira dele — e tinha optado por Samuel. Presumo que talvez alimentasse a esperança de que ele não se apercebesse, mas isso parecia errado à luz do que se passara esta manhã. E se Heart não tivesse vindo primeiro? E se ele tivesse esbarrado com Adam e o tivesse alvejado? E se ele tivesse ido ao emprego de Adam ou tivesse uma fotografia dele... Agora que pensava no assunto, isso não era estranho? Adam tinha-se dado a conhecer publicamente, e tinha um rosto bastante fotogénico.

Alguém não tinha querido que Heart soubesse quem Adam era.

— Mercy?

— Desculpa — respondi. — Estou a tentar abstrair-me. Precisas de ver o Samuel. — Pus-me a mexer numa mancha de sujidade no meu fato-macaco porque não me sentia capaz de olhá-lo diretamente.

Se Bran quisesse Samuel morto, teria de passar por mim para o fazer, coisa de que era capaz. Mas estava farta de mentir a Adam, mesmo se apenas por omissão, apenas para impedir que Bran descobrisse.

Sam tinha passado por nós e parara ao pé da porta, espreitando a oficina. Ainda ouvia Maia a gritar pelo seu cachorro.

— Cachorro? — disse Adam num tom divertido. Sam virou-se e olhou para ele. Adam congelou.

Estava bem encaminhada para passar de estúpida a imbecil. Apenas quando Adam ficou imóvel é que me ocorreu subitamente que mostrar ao Alfa do Bando de Columbia, no espaço exíguo do meu escritório, que ele tinha um problema com Sam talvez não tivesse sido a melhor ideia.

Foi Sam quem rosnou primeiro. O rosto de Adam flamejava de fúria. Sam era mais dominante, mas não era Alfa — e Adam não ia ceder no seu território sem violência.

Pulei para fora do balcão e coloquei-me entre eles.

— Acalma-te, Sam — disparei, antes de me lembrar quão má ideia isso era.

Estava sempre a esquecer-me — não de que Samuel estava em sarilhos; não tinha qualquer problema em lembrar-me disso — mas de que o seu lobo não era Samuel. Só porque não se tinha transformado na besta devoradora em que normalmente se tornam os lobos que perdem o controlo para o lobo que têm dentro de si, isso não queria dizer que ele estava fora de perigo. A minha cabeça sabia isso — mas continuava a agir como se se tratasse apenas de Samuel. Porque ele agia como Samuel teria agido. Em quase tudo.

Sam espirrou e virou-nos costas — e eu voltei a respirar.

— Desculpem-me. Fiz as coisas de forma estúpida.

Não queria olhar para Adam. Não queria ver se ele estava zangado ou magoado ou o que quer que fosse. Já tinha suportado tudo o que me sentia capaz de suportar naquele dia.

E esse era o modo típico de um cobarde.

Portanto, voltei-me e olhei para cima na direção dele, mantendo-me fixa no seu queixo — onde podia ver a sua reação sem o desafiar olhando-o diretamente nos olhos.

— Estás tão lixada — disse ele pensativamente.

— Desculpa se te levei a pensar...

— O quê? — disse ele. — Que precisavas de algum tempo longe do bando, de mim? Quando o que na verdade querias era impedir que qualquer um de nós visse o Samuel?

O modo como falou pareceu sensato, mas conseguia ver a linha branca ao longo do seu queixo na zona onde cerrava os dentes, bem como a tensão no seu pescoço.

— Sim — respondi.

Ben entrou apressadamente no escritório — viu a nossa pequena cena e parou abruptamente. Adam olhou-o por cima do ombro e Ben retraiu-se e inclinou a cabeça.

— Não a apanhei — disse. — A coisa feérica. Mas estava armada, e deixou cair a arma quando fugiu. — Segurava um casaco, e do seu interior sacou uma espingarda que tinha muito pouco metal. Se fosse um pouco mais bonita, pareceria um brinquedo, uma vez que era feita sobretudo de plástico.

— É uma espingarda Kel-Tec — disse Adam, assumindo visivelmente uma postura profissional. — Concebida para disparar cartuchos de pistola de carregadores de pistola.

Ben entregou-a a Adam e este puxou o carregador. Lançando a mão para trás com um silvo, pousou-o no balcão.

— Nove milímetros — disse. — Munições de prata. — Olhou para mim. — Tenho praticamente a certeza de que a arma que tinhas apontada ao Heart era uma nove milímetros ou uma trinta e oito milímetros.

O tópico da minha transgressão não foi abandonado, apenas posto de lado por causa daquele assunto. Desejei que despachássemos aquilo rapidamente.

— Nove milímetros — concordei. — Ela podia ter disparado contra alguém e eles teriam atribuído a culpa ao caçador de recompensas. Qual seria a probabilidade de alguém fazer um teste de balística e reparar que uma das balas não foi disparada da mesma arma?

— O plano era que alguém morresse — disse Ben. — É o que eu penso.

— Concordo — disse Zee a partir da porta de acesso à oficina. Samuel desviou-se. Um pouco contrariado, mas desviou-se para que Zee pudesse entrar no escritório.

— O teste de balística não teria feito diferença — afirmou Zee. — Fazer com que uma bala seja idêntica a outra é canja se a criatura feérica estiver a lidar com prata. Até alguns com pouca magia seriam capazes de fazer isso. Trabalhar com o ferro é impossível para a maioria dos seres feéricos, com o chumbo acontece praticamente o mesmo, mas com a prata... A prata aceita a magia facilmente e conserva-a.

O meu bastão tinha prata.

Zee continuou a falar.

— A bala adquiriria a aparência das outras. Um pouco mais de glamour e a bala extra desaparece. E quem quer que fosse aquela criatura, não era uma criatura feérica menor. Tinha vestígios d’A Caça. D’A Caça Selvagem

— Não sei o que isso significa. — Mas a nossa criatura feérica assassina andava à caça de lobisomens para os matar. Para matar Adam. Precisava de descobrir o máximo de informação possível.

— Neste caso, violência gratuita — explicou-me Zee. — O tipo de violência que deixa um homem a olhar para os cadáveres e a perguntar-se porque é que decidiu puxar o gatilho quando a única coisa que pretendia era defender uma posição. Se eu não estivesse aqui para a contrariar... — Encolheu os ombros e olhou para Adam. — Alguém o queria ver morto com a culpa facilmente atribuída, de modo a que ninguém procurasse com muita atenção.

Adam pousou a arma no balcão ao lado do carregador, agarrou o casaco de Ben e atirou-o para cima de ambos os objetos.

— Não chateei os seres feéricos recentemente, ou chateei?

Zee abanou a cabeça.

— Quando muito, é o contrário. Deve ser um indivíduo. — Franziu o sobrolho e acrescentou relutantemente: — Alguém a pode ter contratado, presumo.

Ben disse:

— Nunca vi uma criatura feérica que usasse armas modernas. — Voltou-se para Adam. — Eu sei que ela era uma criatura feérica e tudo o mais... mas será que ela podia ser um dos caçadores de troféus?

— Caçadores de troféus? — perguntou Zee antes que eu tivesse oportunidade de o fazer.

— Este ano, o David capturou duas pessoas que estavam a tentar caçá-lo e matou uma terceira — disse Adam. — Um deles era um caçador de caça grossa; outro, veio a saber-se, era um assassino em série que andava à caça de fuzileiros navais da base local e decidiu apanhar presas maiores. E o outro era um caçador de recompensas, apesar de a cabeça de David estar tanto a prémio como a minha. Ao que parece, apenas queria experimentar caçar um lobisomem.

— O David Christiansen? — perguntei. Christiansen era um mercenário cuja pequena tropa se especializara no resgate de reféns. Conhecera-o uma ocasião, antes de se ter tornado famoso. Quando salvou umas crianças de um campo de terroristas na América do Sul, um fotógrafo tirou uma série de fotografias estupendas que transpareceram a imagem de um Christiansen heroico e doce. As fotografias chegaram aos noticiários de todo o país e o Marrok escolheu David para ser o primeiro lobisomem a admitir publicamente o que era, o que fez dele o mais famoso de todos os lobisomens.

— Sim — respondeu Adam.

— Zaroff, O Jogo Mais Perigoso4 — murmurei. Estão a ver? A minha formação não foi um desperdício total, diga o que disser a minha mãe.

— Não me parece que aqui seja esse o caso — disse Adam. — Isto não foi pessoal. O Heart não andava atrás de mim por excitação, ou pelo menos não apenas por excitação. Alguém lhe montou uma cilada.

— Não muito bem montada — acrescentei. — Ele não sabia quem tu eras, e a única coisa que a produtora dele precisava de fazer era uma simples pesquisa de imagens na Internet. É de crer que alguém que o enviasse atrás de ti se certificaria de que ele saberia contra quem disparar se fosses tu o alvo.

Adam começou a bater com o pé no chão.

— Isto cheira-me a trabalho profissional. Muito planeamento, muito trabalho para matar alguém da forma mais pública possível. E, o que é mais revelador, quando não correu conforme o planeado, ela foi-se embora.

— Não é «alguém» — disse-lhe. — É a ti. Faz sentido. Ela não queria que o Heart te matasse; queria ser ela própria a fazê-lo.

— Não — interveio Ben. — Estava enganado quando sugeri um caçador de troféus. Não me deu essa impressão. Não foi pessoal. Uma mulher à caça de sangue, partindo do pressuposto que as criaturas feéricas fêmeas são como o resto das con...

— Está uma senhora presente — rosnou Adam. — Cuidado com a linguagem.

Ben dirigiu-me um sorriso rasgado.

— Muito bem. Partindo do pressuposto que as senhoras feéricas são como as outras senhoras, a que esteve aqui estaria excitada e exultante com a ideia do assassinato. E teria ficado enfurecida quando eu apareci e lhe pus fim à diversão. Nem sequer hesitou quando me viu. Deixou cair a arma e fugiu, sem espalhafato e sem problemas.

— Está bem treinada — comentou Adam. — Ou simplesmente pensa de forma fria. — Olhou para mim. — E embora admita que aparentemente o alvo era eu, também podia ser o Zee ou tu. O Heart tinha balas de prata, por isso a assassina também as usou. Isso não significa que ela andava à caça de lobisomens.

Tony abriu a porta principal.

— Estás bem, Mercy?

— Estou ótima — menti, mas em todo o caso não estava à espera que algum dos presentes acreditasse em mim.

Tony franziu-me o sobrolho, após o que voltou a sua atenção para Adam.

— Tem algum inimigo do qual devêssemos ter conhecimento? Parece que a produtora do Heart queria mais alguma publicidade, mas só teremos a certeza disso quando a conseguirmos encontrar. Ele tinha a papelada indicada, excluindo o pequeno facto de não ser legítima. Também tinha uma série de fotografias de vítimas. Quando falarmos com ela, vamos averiguar de que forma as conseguiu.

— Na Internet — disse Ben. — Existe uma página na Internet dedicada a fotografias de cadáveres.

Todos olhámos para Ben, e ele sorriu afetadamente.

— Ei, não se ponham a olhar para mim. É do emprego. — Viu o rosto inexpressivo de Tony e continuou: — Tecnologias da Informação, TI. Computadores. No meu trabalho, quando estamos entediados, lançamos desafios. Por exemplo, a pessoa que conseguir encontrar a pior página na Internet almoça de borla. Quem ganhou o almoço fui eu. O tipo da página dos cadáveres foi o segundo classificado. Quando lancei charme ao pessoal do caçador de recompensas, mostraram-me as fotografias dos cadáveres no dossiê. A página na Internet dedicada aos cadáveres tem uma secção dedicada à morte de animais. Reconheci uma das fotografias daí.

— És um homem doente, muito doente — disse-lhe.

— Obrigado — replicou Ben, parecendo modesto.

— Alguém anda atrás de si — disse Tony a Adam.

— Estás a ver? — intervim. — O Tony também acha que tu és o alvo.

Adam encolheu os ombros.

— Passarei a ter cuidado.

Os lobisomens são duros, e Adam é mais duro do que a maioria — mas eu tinha visto muitos deles morrer.

— Bom, mantenha o meu número associado à marcação rápida e não mate ninguém se conseguir evitá-lo. — Tony voltou a olhar para mim. — Olha lá, Mercy, falaste com a Sylvia? Ela pareceu-me bastante chateada quando saiu. Está tudo bem com eles? — Tinha o coração nos olhos. Andava interessado nela e tinha-a abordado uma vez. Na altura, Sylvia dissera-lhe que não se envolvia com pessoas que partilhavam com ela o local de trabalho. E mais não dissera.

— Ela não ficou nada satisfeita ao ver o Heart apontar uma arma à Maia — disse-lhe. — Mas acho que estava mais zangada comigo do que com o Heart. Ele não trouxe um lobisomem para as crianças brincarem.

No seu rosto plasmou-se a típica expressão fria de um agente da polícia.

— O quê?

— Isso mesmo. Não me parece que ela algum dia volte aqui para reparar o carro. O Gabriel também não vai regressar.

— Fizeste o quê?

— Pare lá com isso — rosnou Adam. Gesticulou a Sam. — Este lobo jamais tocaria sequer num fio de cabelo de uma criança, e a Mercy sabia disso.

— Hoje as circunstâncias eram especiais — lembrei a Adam num tom áspero. Como podia ele ter-se esquecido de que não estávamos a lidar com Samuel, mas com o seu lobo? — Ela teve razões para ficar zangada. Se me tivesse lembrado que a Sylvia e as meninas iam estar aqui, não o teria trazido.

— Estiveram de alguma maneira em perigo? — inquiriu Tony.

— Não — disse Adam. E disse-o de forma convicta.

— A Mercy sabia disso?

— Sim — respondeu Adam mesmo por cima do meu «não». — Apenas se está a sentir culpada porque, independentemente de haver perigo ou não, acha que devia ter contado à Sylvia.

Tony fixou-se em mim.

— A Sylvia não é uma pessoa insensata. — Fez uma pausa e dirigiu-me um sorriso discreto. — Na verdade, não é. Se lhe explicasses...

— Foram-se embora — disse-lhe. — É melhor assim. Desde que comecei a conviver com os lobos — bem como com as criaturas feéricas e os vampiros, — este lugar deixou de ser seguro.

— É seguro para ti? — perguntou.

Antes de eu responder, a porta abriu-se uma vez mais e Kelly Heart entrou. O meu escritório não é particularmente grande — e no seu interior já estávamos eu, Zee, Sam, Adam, Ben e Tony. Kelly era pessoa e meia a mais. Sam rosnou ao caçador de recompensas, mas teria de passar por Zee, por Adam e por mim para chegar a ele — ou então pular sobre o balcão.

— Sr. Heart? — perguntei.

— A minha equipa de filmagem disse-me que alguém deu cabo das câmaras que estão na carrinha. — Olhou para Ben, que sorriu afetadamente. Entretanto, as rosnadelas de Sam aumentavam de volume.

Instantes depois, Heart encolheu os ombros.

— Ficámos apenas com as imagens da câmara do Joe, que terminam quando a Sra. Thompson me desarmou. Seja como for, as câmaras não são pagas com o meu salário. — Olhou para mim. — Você mexeu-se com uma rapidez impressionante.

— Não sou uma mulher-loba — repliquei num tom entediado enquanto passava por Ben de modo a ficar de costas voltadas para o balcão. Não ajudava muito, uma vez que Sam podia simplesmente saltar para cima dele e depois saltar por cima de mim, mas talvez o abrandasse.

— Apenas vim buscar a arma. — Sorriu-me. — A minha equipa está extremamente preocupada com a possibilidade de ficarmos sem as balas de prata.

— Mercy — disse Tony. — Se por ti estiver tudo bem, não preciso de saber de nenhuma arma que possa ter de incluir no meu relatório.

— Tudo bem — repliquei. — O Adam está aqui.

— Sim — disse Tony sarcasticamente após um breve relance a Adam. — Acho que estás suficientemente segura, Mercy. Vou regressar ao trabalho. — Abriu a porta. — Tens a certeza que não queres que eu fale com a Sylvia?

— Tenho. Assim é mais fácil. É melhor.

— Está bem. — Saiu, mas ainda havia demasiadas pessoas no escritório.

— Agora que a polícia se foi embora, vai contar-me o que se passou esta manhã? — perguntou Heart. — Porque é que alguém nos haveria de enviar da Califórnia até aqui para pregar uma partida elaborada que podia ter levado à morte de pessoas?

— Não — disse Adam.

Heart deu dois passos em frente e postou-se ao lado de Adam.

— De quem é que o seu moço de recados foi atrás no outro lado da rua?

Antes que eu tivesse oportunidade de mencionar que ameaçar um lobisomem era uma atitude um pouco imprudente, Adam encostou o caçador de recompensas à parede, pressionando-lhe o pescoço com o antebraço. Heart era mais alto, mais largo e claramente mais musculado — mas não era um lobisomem.

— Não é da sua conta — afirmou Adam numa voz baixa e ávida.

— Ele não é o inimigo — disse eu a Adam. — Não o mates. E, Sr. Heart, se tenciona andar à caça de lobisomens, é bom que faça o trabalho de casa. Não tente ameaçar um Alfa. Eles não gostam disso.

Adam aumentou a pressão contra a garganta do caçador de recompensas, mas Heart, depois de um esforço infrutífero para se libertar, desistiu de se debater.

Adam recuou um passo, abrindo e fechando as mãos repetidas vezes — talvez para afugentar o desejo de bater no caçador de recompensas. Quando virou costas a Heart, pareceu-me que toda a gente soltou um suspiro de alívio.

— Estou tão perturbado como você — confessou Heart a Adam. — A Daphne... A minha produtora desapareceu. Ela é uma boa pessoa. Alguém lhe deu aquele dossiê e obrigou-a a enviar-me atrás de si. Ela não está no escritório, não atende o telefone, e a empregada dela não a vê há três dias. E eu nem sequer sei onde procurar.

Adam suspirou e esticou os ombros para aliviar a tensão.

— Não sei onde ela está. Não sei quem planeou isto nem porquê, nem sequer se eu era o verdadeiro alvo. Dê-me o seu cartão. Se descobrir alguma coisa que possa ajudar, entrarei em contacto.

— A sua produtora é uma criatura feérica? — perguntei-lhe. Adam pôs a mão no meu ombro, um claro sinal de que eu me devia calar. Não queria que eu despertasse a curiosidade de Heart. Eu estava mais preocupada com a possibilidade de ele saber algo que precisássemos de saber, algo que nos pudesse indicar se Adam era a vítima desejada.

— Não — respondeu Heart. — Porquê? Os seres feéricos têm alguma coisa a ver com isto?

— Que nós saibamos, não — disse Adam.

— Então porquê a pergunta sobre criaturas feéricas?

— Parece-me um pouco exageradamente convencido de que a sua produtora não é uma criatura feérica — observou Ben.

— Ela é membro de vários grupos de ódio antifeéricos, coisa para que é preciso coragem na Hollywood dos dias de hoje, e gosta de dizer a viva voz que o país está a ser vítima das artimanhas das fadas.

— Quando é que soube que o iam enviar para aqui? — perguntei-lhe.

Heart virou-se para mim com o rosto pensativo.

— Ontem de manhã. Sim, isso significa que a Daphne já não estava em casa há dois dias. — Sorriu-me. — Estava à espera que você fosse a coisinha doce do Alfa.

Adam soltou uma risada.

— O quê? — perguntei-lhe. — Não achas que eu pareço uma coisinha doce? — Olhei para baixo, na direção do meu fato-macaco e das minhas mãos manchadas de óleo. Tinha partido mais uma unha.

— O mel é uma coisinha doce — disse Ben apologeticamente. — Tu és... simplesmente tu.

— Minha — interveio Adam, colocando-se entre mim e Heart. — Minha é o que ela é.

Heart retirou mais um cartão e entregou-mo.

— Telefone-me se tiver mais perguntas a fazer. Ou se alguém descobrir alguma coisa que me possa ajudar a encontrar a Daphne. Ela é boa gente. Não consigo imaginá-la a engendrar isto como uma partida ou uma manobra publicitária.

Heart acenou a Adam e saiu. Ben seguiu-o porta fora — e Sam foi atrás, serpenteando para evitar a porta que se fechava.

Zee olhou para mim e para Adam.

— Vou tomar conta do Samuel, ok? Assim, se ele caçar alguém, posso partilhar os louros.

— E podes devolver a arma ao Heart — disse-lhe.

Zee sorriu alegremente e exibiu um pedaço de metal que era, de certo modo, bonito — aço com reflexos prateados.

— Certificar-me-ei de que não irá embora sem ela. — Fechou a porta de acesso à oficina, deixando-me a sós com Adam.

— Mercy — disse Adam. E o seu telemóvel tocou. Retirou-o da bolsa que trazia ao cinto num gesto impaciente. Relanceou os olhos ao número, respirou fundo e atendeu.

— Hauptman — grunhiu.

— Adam — disse a voz calma do Marrok. — Preciso que localizes a Mercy e o meu filho.

— Eu sei onde eles estão — respondeu Adam, olhando-me nos olhos. Uma conversa privada ao telefone é coisa que não existe quando eu ou qualquer um dos lobos estamos por perto. Adam podia ter optado por atender a chamada lá fora, onde podia conversar com Bran em privado.

Fez-se uma breve pausa.

— Ah. Podes fazer-me o favor de chamar um deles ao telefone?

— Penso — disse Adam cuidadosamente — que talvez seja um pouco precipitado fazer isso.

Mais uma longa pausa, e a voz de Bran estava mais fria quando voltou a falar.

— Estou a ver. Tem muito cuidado, Adam.

— Estou em crer que tenho — disse Adam.

— Eu posso falar com ele — intervim, sabendo que Bran me ouviria. Adam estava a servir de escudo entre Samuel e o pai. Se acontecesse alguma coisa, Bran responsabilizá-lo-ia.

Eu amo Bran. Ele criou-me, tanto quanto os meus pais de acolhimento. Mas não sou cega. A sua primeira diretriz é proteger os lobos. Se para isso fosse necessário matar o seu filho, ele fá-lo-ia — mas mataria Adam mais depressa.

Adam disse:

— Não. Meu território, minha responsabilidade.

— Muito bem — disse o Marrok. — Se eu ou os meus pudermos ajudar, podes ligar-me.

— Sim — replicou Adam. — Telefono-te no final da semana para te pôr a par do desfecho.

— Mercy — disse Bran. — Espero que este seja o melhor caminho.

— Para o Samuel — respondi. — Para mim, para ti. Acho que é. Talvez não tanto para o Adam.

— O Adam sempre teve... tendências heroicas.

Toquei Adam no braço.

— Ele é o meu herói.

Houve uma outra pausa. Em pessoa, Bran não reflete tanto sobre os seus comentários. O telefone é difícil porque os lobos comunicam muito com o corpo.

— Isso é a coisa mais romântica que te ouvi dizer em toda a tua vida — comentou Bran. — Tem cuidado, Adam, ou ainda acabas por transformá-la numa verdadeira rapariga.

Adam olhou para mim.

— Gosto dela exatamente como é, Bran. — Estava a falar a sério, com os fatos-macaco, as unhas partidas e tudo o resto incluído.

Bran começou a rir-se e quando parou, disse:

— Toma conta do meu filho. E não esperes até ser tarde de mais para me telefonares. — E desligou.

— Obrigada — disse a Adam.

Guardou o telemóvel.

— Não o fiz por ti — replicou. — Com o lobo em controlo ou não, o Samuel obviamente não é tão perigoso como a maioria de nós seria. Há algumas vantagens em ser-se muito velho. Mas o Bran tem de seguir a lei à letra. Se soubesse exatamente o que se está a passar, teria de aplicar a sentença.

— Tu não?

Adam encolheu os ombros.

— Calculo que não seja muito de seguir as ordens conforme estão escritas. Prefiro o espírito à letra da lei.

Nunca tinha pensado nele dessa forma. Devia ter-me lembrado... que a linha entre o preto e o branco é aquela que ele traça.

Olhei para baixo.

— Presumo que um pedido de desculpas não sirva de nada.

— Pensas pedir desculpa pelo quê? «Querido Adam, desculpa-me por ter tentado evitar que soubesses que o Samuel se passou?» «Desculpa por ter usado os problemas entre nós para nos afastar de forma a eu poder lidar com o assunto?» Ou, e esta é a minha favorita, «Desculpa-me por não te ter contado o que se estava a passar, mas não podia confiar em ti para tratares do problema da forma que eu queria que fosse tratado?» — Começara num tom divertido, mas no final a sua voz era tão incisiva que parecia capaz de cortar couro.

Mantive-me calada. Eu sei como fazer isso. Às vezes. Quando estou errada.

Suspirou.

— Não me parece que um pedido de desculpa sirva, Mercy. Porque um pedido de desculpa implica que não o voltarias a fazer. E, dadas as circunstâncias, não farias nada de forma diferente, pois não?

— Não.

— E não devias ter de pedir desculpa por estares certa — disse, soltando um suspiro. — Por muito que gostasse de te dizer o contrário.

Levantei a cabeça abruptamente e constatei que estava a falar a sério.

— Se me tivesses ligado para contar que o Samuel se tinha passado, teria vindo ao vosso encontro e tê-lo-ia matado. Punha-lhe fim à vida com uma bala porque não sei se seria capaz de o vencer numa luta. Já vi lobos que se passaram anteriormente, e tu também.

Engoli em seco. Acenei afirmativamente com a cabeça.

— Aquilo que eu sei, que tu não sabes, é o quanto o lobo deseja caçar, sentir sangue nos dentes. A matança... — Afastou momentaneamente os olhos e voltou a concentrá-los em mim. — Sozinho, o lobo dentro de mim jamais deixaria aquele caçador de recompensas sair daqui vivo depois de me ter apontado uma arma. Duvido que tivesse aturado bebés a brincar em cima dele. — Um sentimento de amargura passou-lhe pelo rosto. — Mesmo se se tratasse da Jesse, a minha própria filha... eu não confiava nele. Mas o lobo de Samuel conseguiu aguentar-se. Portanto vou dar-lhe uma oportunidade. Uma semana. E depois dessa semana, vais falar com o Marrok e contas-lhe como o filho dele manteve a calma durante uma semana. E talvez consigas ganhar mais tempo.

— Desculpa — disse baixinho. — Aproveitei-me da tua culpa para te manter afastado.

Encostou-se ao balcão e cruzou os braços.

— A verdade é que não mentiste, não é, Mercy? O bando incomoda-te, tal como eu.

— Só preciso de algum tempo para me habituar.

Olhou para mim — e eu contorci-me do mesmo modo que vira a sua filha contorcer-se quando olhada daquela maneira.

— Não me mintas, Mercy. Não a mim. Nada de mentiras entre nós.

Esfreguei os olhos — não estava em lágrimas. Não estava. Era apenas o desaparecimento da adrenalina depois de ter enfrentado um homem armado com um lobisomem solitário nas minhas costas.

Adam virou-me costas. Pensei que o tinha feito para que eu não conseguisse ver a expressão no seu rosto. Até ele ter lançado as mãos ao balcão e o ter partido a meio — projetando a minha caixa registadora e uma pilha de faturas e documentos da contabilidade contra o chão.

Estranhamente, a minha primeira reação ao gesto de violência foi a consciencialização consternada de que, sem Gabriel, teria de ser eu a descortinar de que modo todos aqueles papéis precisavam de ser reorganizados para evitar que o fisco me chateasse.

Depois, Adam uivou. Um som fantasmagórico que não parecia saído da boca de um homem — apenas tinha escutado um lobo emitir aquele som. O meu pai de acolhimento, Bryan, quando segurava a sua mulher, o cadáver da sua companheira, nos braços.

Dei um passo na direção dele — e Sam estava parado entre nós, de cabeça em baixo, pronto a atacar.

A porta que separa o escritório da oficina é feita em aço, presa num caixilho também em aço. Depois da entrada de Sam, estava entortada e partida, pendurada numa dobradiça. Não tinha ouvido nada; apenas conseguira ouvir Adam.

Que não tinha emitido um único som, apercebi-me. O seu grito chegara-me de um sítio completamente diferente, onde o nosso vínculo me ligava a ele e o ligava a mim.

Adam não se voltou.

— Não tenhas medo de mim — sussurrou. — Não me deixes.

Nada de mentiras entre nós.

Expirei, recuei uns passos e tombei sobre uma das cadeiras maltratadas que se alinhavam paralelamente à parede, tentando, com a minha pose descontraída, acalmar as coisas.

— Adam, eu não tenho o bom senso de ter medo do Sam no estado em que ele agora se encontra. Não sei o que te leva a pensar que eu seria suficientemente inteligente para ter medo de ti. — Seria mais inteligente ter mais medo de um lobisomem transtornado ao ponto de ter despedaçado um balcão construído por Zee do que de meia dúzia de papéis e do fisco.

— Pede ao Samuel que nos deixe a sós.

— Sam? — disse-lhe. Ele ouvira Adam.

Rosnou, e Adam retribuiu o favor. Com mais intensidade.

— Sam — disse, exasperada. — Ele é o meu companheiro. Não me vai fazer mal. Vai-te embora.

Sam olhou para mim e em seguida atentou nas costas de Adam. Consegui ver as costas contraírem-se, como se Adam conseguisse sentir o olhar fixo de Sam. Talvez conseguisse.

— Porque é que não vais ver o que o Zee está a fazer? — pedi. — Aqui não estás a ajudar.

Sam gemeu. Deu meio passo na direção de Adam.

— Sam, por favor. — Não suportava a ideia de eles acabarem por lutar. Alguém morreria.

O enorme lobisomem branco virou-se relutantemente e começou a caminhar rigidamente, com pausas frequentes para ver se Adam se tinha mexido. Finalmente, pulou sobre os destroços da porta e desapareceu.

— Adam? — chamei.

Mas não respondeu. Se ele fosse humano, tê-lo-ia azucrinado — apenas para acabar com aquilo de uma vez. Tinha-o magoado, e esperei pelo meu castigo. Tinham-me ensinado que se vive com as consequências das escolhas que se fazem muito antes de ter lido Immanuel Kant na faculdade.

Mas ele não era humano. E nesse preciso momento estava a lutar com o lobo dentro de si. O facto de ser Alfa, de ser dominante, não facilitava em nada essa luta, pelo contrário. O facto de ser teimoso ajudava — e Adam era mais do que qualificado nesse departamento.

Conseguir que Sam saísse era uma ajuda. A única coisa que podia fazer mais para ajudar era permanecer sentada e calada enquanto Adam olhava fixamente para o aglomerado de destroços em que transformara o meu escritório.

Por Adam, fosse ou não fosse um problema causado pelo vínculo, estava disposta a esperar para sempre.

— A sério? — perguntou num tom que nunca lhe tinha escutado. Mais suave. Vulnerável. Adam não passava a imagem de vulnerável.

— A sério o quê? — perguntei.

— Apesar da forma como o nosso vínculo te assusta, apesar da forma como alguém do bando mexeu com a tua cabeça, continuarias comigo?

Tinha estado a ouvir os meus pensamentos. Desta vez não me incomodou.

— Adam — disse-lhe, — por ti era capaz de andar descalça em cima de brasas.

— Não aproveitaste esta situação com o Samuel para criar uma distância entre nós — disse Adam.

Inspirei. Conseguia perceber em que medida ele podia ter interpretado as coisas desse modo.

— Conheces aquela passagem da Bíblia em que Jesus diz a Pedro que ele o vai negar três vezes antes de amanhecer? Pedro diz «Nem pensar», mas a verdade é que quando umas pessoas lhe perguntam se ele é um dos seguidores de Jesus, ele diz que não. E depois da terceira vez em que o faz, ouve o galo cantar e apercebe-se do que fez. Neste momento sinto-me como Pedro.

Adam começou a rir. Virou-se e vi dois brilhantes olhos dourados olharem através de mim da forma como os olhos dos lobisomens parecem fazer sempre. Mais do que isso, na verdade começara a transformar-se ligeiramente — tinha o queixo mais comprido e o desenho das suas bochechas estava um pouco diferente.

— Estás a comparar-me com Jesus? Comigo assim? — Usou os dedos para indicar o rosto. — Não achas que estás a ser um pouco sacrílega?

A sua voz transmitia amargura.

— Não mais do que me estou a comparar com São Pedro — disse-lhe. — Mas vivi o momento «o que é que fui fazer» de Pedro, com a diferença de que o dele foi mais instantâneo e o meu demorou algum tempo. Começou quando ouvi a Maia gritar enquanto estava a trabalhar na oficina e continuou basicamente até à altura em que falaste com o Bran e ganhaste mais algum tempo para o Samuel. É curioso como tomar decisões que parecem acertadas na altura... — Abanei a cabeça. — Pedro provavelmente pensou que dizer ao tipo que não era um dos seguidores de Jesus seria a atitude mais inteligente. Para começar, manteve-o vivo. Pensei que manter o Samuel vivo, uma vez que não estava a delirar nem a matar ninguém, era uma boa ideia. Achei que dizer-te que precisava de um pouco de espaço era bom. Dar-me algum tempo para compreender o que se estava a passar, tendo eu outras pessoas a perturbar-me a cabeça. E queria fazê-lo sem te magoar. O que se passou assustou-me brutalmente.

— O quê? — perguntou Adam incredulamente.

Inclinei a cabeça e disse:

— O que se passou assustou-me... assusta-me... brutalmente.

Abanou a cabeça.

— Não é essa parte. A parte de não me magoares.

— Não gostas de ser lobisomem — disse-lhe. — Lidas com isso, mas detestas. Achas que isso faz de ti uma aberração. Também não queria que soubesses que estava a ter problemas com algumas das coisas dos lobisomens. — Engoli em seco. — Ok, mais problemas do que a questão do «tenho de controlar a tua vida porque me pertences», que é comum à maioria dos lobisomens.

Olhou-me fixamente com os seus olhos amarelos e o seu rosto alongado. Tinha a boca ligeiramente aberta porque a maxila superior e a inferior já não encaixavam bem. Conseguia ver as extremidades dos dentes que estavam mais afiados e mais desalinhados do que o habitual.

— Eu sou uma aberração, Mercy — disse, e eu bufei.

— Tens razão, és mesmo uma aberração — concordei. — É por isso que eu ando babada por ti há anos, mesmo tendo jurado que nunca mais na minha vida me envolvia com um lobisomem depois do Samuel. Sabia que se te contasse que a questão de pertencer ao bando e a questão dos vínculos e tudo isso me estavam a incomodar, ficarias magoado. E já tens de aturar a... — Não conseguia pronunciar a palavra «violação», essa palavra feia, por isso suavizei-a como era meu hábito. — A consequência do que se passou com o Tim. Pensei que se desse algum tempo a mim mesma, se descobrisse uma forma de impedir que o bando me transformasse na tua ex-mulher, e também ganhasse mais algum tempo por causa do Samuel...

Adam encostou-se à parede mesmo ao lado da porta — a parede que o meu balcão costumava bloquear — e cruzou os braços à altura do peito.

— O que eu estou a tentar dizer — expliquei-lhe — é que lamento. Na altura pareceu-me uma boa ideia. E não, não arquitetei isto para criar distância entre nós.

— Estavas a tentar evitar que eu ficasse magoado — disse Adam ainda com aquela voz estranha.

— Sim.

Abanou a cabeça lentamente — e reparei que, algures durante a nossa conversa, ele perdera a aparência lupina e o seu rosto regressara ao normal. Os seus olhos castanhos foram tocados pela luz vinda das janelas e ergueu um canto da boca.

— Tens ideia do quanto eu te amo? — perguntou.

— O suficiente para aceitares o meu pedido de desculpa? — sugeri baixinho.

— Nem pensar — disse, afastando-se da parede e caminhando em frente.

Quando chegou à minha beira, levantou as mãos e tocou-me na face com as pontas dos dedos — como se eu fosse um objeto frágil.

— Nada de pedidos de desculpa vindos de ti — disse-me, com uma voz suave que me fez tremer os joelhos e quase todo o meu corpo. — Em primeiro lugar, tal como já realcei, voltarias a tomar as mesmas decisões, certo? Em face disso, um pedido de desculpa não faz sentido. Em segundo lugar, sendo tu quem és, não podias ter escolhido outra opção. Uma vez que te amo como és, não faz muito sentido eu queixar-me quando ages em conformidade com o que és. Certo?

— As pessoas nem sempre veem as coisas assim — disse, aproximando-me dele até as nossas ancas esbarrarem.

Ele riu-se, um som baixo que me fez sentir feliz da cabeça aos pés.

— Pois. Bom, não prometo que vou encarar sempre a questão usando a lógica. — Lançou um olhar pesaroso ao meu balcão partido e à caixa registadora ao lado. — Especialmente a princípio. — O seu sorriso desapareceu. — Pensei que estavas a tentar deixar-me.

— Posso ser estúpida — disse-lhe, encostando o nariz à sua gravata de seda, — mas não sou assim tão estúpida. Agora já te tenho, e não vais a lado nenhum.

Os seus braços envolveram-me quase dolorosamente.

— Porque é que não contaste ao Bran a situação do Samuel? — perguntei-lhe. — Estava convencida de que tinhas de lhe contar. Não estás obrigado por juramentos de sangue?

— Se ontem à noite me tivesses ligado e me tivesses contado o que se estava a passar, eu teria ligado ao Bran. E teria, eu próprio, matado o Samuel. Mas... com base no que se passou esta manhã, parece-me que ele se está a aguentar bem. Merece algum tempo. — Os seus braços, que tinham afrouxado um pouco, abraçaram-me ainda com mais intensidade. — Se me acontecer alguma coisa parecida, telefonas ao Bran e manténs-te o mais afastada possível de mim. O meu lobo não é como o do Samuel. — Voltou a olhar para o balcão. — Se eu me passar... mantém-te longe até eu morrer.


4 Conto de Richard Connell que narra a história de um caçador de caça grossa. (N. do T.)


6

Quando quase toda a gente se tinha ido embora, Adam atirou a espingarda da criatura feérica para o banco traseiro do seu SUV.

— Vou ver se consigo descobrir alguma coisa a partir do número de série — disse. — A forma como simplesmente a largou provavelmente quer dizer que não acredita que cheguemos até ela através da arma, mas seria estúpido não verificar.

— Vê lá se tens cuidado — disse-lhe.

— Minha querida — inclinou-se e beijou-me, — eu tenho sempre cuidado.

— O que é que me dás se eu olhar por ele? — Não foi tanto o que Ben disse; foi a forma como o disse. Não faço ideia de como fez com que essas palavras soassem sugestivas, mas foi o que aconteceu.

Adam fixou-se imediatamente nele. Ben sorriu de forma impenitente, contornando o SUV e entrando.

— Estava a caminho de um sítio para trabalhar quando recebi o telefonema em que me disseram que se passava alguma coisa — explicou-me Adam. — Tenho de regressar.

— Não há problema — disse-lhe. — Vou fechar a oficina. Não creio que vá fazer mais alguma coisa aqui hoje.

Abriu a porta do condutor e parou de costas voltadas para mim.

— Lamento aquilo do balcão.

Dei alguns passos em frente, até o meu nariz tocar as suas costas, e envolvi-o nos meus braços.

— Eu lamento muitas coisas. Mas fico contente por te ter a ti.

Abraçou-me.

— Eu também.

— Arranjem um quarto — disse Ben do interior do SUV.

— Vai bugiar. — Adam virou-se, beijou-me e pulou para dentro do SUV.

Sam e eu observámo-lo enquanto o carro se afastava.

Parei numa casa de sandes e comprei dez baguetes com duas fatias de carne e queijo. Depois conduzi o Rabbit até ao parque do lado do rio onde ficava Kennewick para comer. Ainda não havia neve, mas estava um dia frio e desolador, portanto, excluindo algumas pessoas que estavam a fazer jogging e um ciclista com ar circunspecto, tínhamos o parque para nós. Comi meia sandes e bebi uma garrafa de água. Sam comeu o resto.

— Então, Sam — disse depois de terminarmos a refeição, — o que queres fazer hoje?

Olhou-me com ar interessado, o que não serviu de grande ajuda.

— Podíamos ir correr — sugeri enquanto despejava o nosso lixo num caixote ao lado do qual estacionara o Rabbit.

Abanou a cabeça de forma enfática.

— Caçar não é uma boa ideia? — perguntei. — Pensei que te podia ajudar a relaxar.

Dobrou os lábios para mostrar as suas presas, depois abriu e fechou a boca cinco vezes, batendo com os dentes numa intensidade e ferocidade crescentes. Quando parou, estava perfeitamente calmo — no entanto, consegui perceber que respirava mais profundamente e havia nos seus olhos uma fome intensa, apesar de ter acabado de comer três metros de sandes.

— Ok — disse depois de uma pausa, para garantir que a minha voz não estivesse a tremer, — caçar é uma má ideia. Já percebi. Uma coisa pacífica.

Abri a porta do passageiro para o deixar entrar e vi o objeto embrulhado numa toalha no banco de trás.

— Queres ajudar-me a devolver o livro? — perguntei.

O centro comercial Uptown estava apinhado de clientes de sábado, e tive de estacionar a uma distância razoável da livraria. Abri a porta a Sam. Pulou para fora e especou. Instantes depois, baixou o focinho até ao chão — mas o que quer que estivesse a procurar não encontrou, porque parou e inalou profundamente.

O meu olfato é mais apurado do que o de um humano — talvez tão apurado como quando estou na forma de coiote. Também eu inspirei fundo, mas havia demasiadas pessoas e demasiados carros para que conseguisse descortinar o que deixara Sam em alerta.

Agitou-se, dirigiu-me um olhar que não consegui decifrar e voltou a pular para o interior do Rabbit. Deitou-se, esticando-se para lá do intervalo entre os bancos e baixou o focinho no lugar do condutor.

— Presumo que vais ficar aqui? — disse-lhe. Não devia ser nada perigoso, caso contrário não me deixaria ir sozinha — o Sam dominado pelo lobo mostrara-se ainda mais protetor em relação a mim do que o próprio Samuel.

Talvez um dos outros lobisomens estivesse por perto. Fazia sentido Sam evitá-los. Voltei a inspirar profundamente. Continuava sem detetar qualquer cheiro que reconhecesse, mas o olfato de Samuel era mais apurado do que o meu.

Desviei-lhe a cauda e fechei a porta. Abri a porta traseira para pegar no livro — e reconsiderei. O vizinho de Phin podia ser um ser feérico e ligeiramente sinistro, mas isso não queria dizer que algo de errado se passava. Mas podia passar-se, e com Sam no carro, era seguro deixar o livro. Se Phin estivesse na livraria, voltaria ao carro para o vir buscar. Se quem lá estivesse fosse o vizinho dele ou outra pessoa que não o Phin, arranjaria uma nova estratégia.

— Vou deixar o livro no banco de trás — disse a Sam. — Não devo demorar.

No pouco tempo desde que saíramos do parque, a temperatura tinha baixado e levantara-se algum vento. O meu casaco leve não era propriamente o mais indicado para fazer frente ao vento e à humidade. Olhei atentamente para o céu azul — se esta noite chovesse e a temperatura baixasse muito mais, era provável que tivéssemos uma chuva gélida. Montana pode ter estradas íngremes e ventosas que se tornam complicadas quando cobertas de neve e gelo, mas isso não é nada em comparação com Tri-Cidades quando a chuva gélida transforma o pavimento numa pista de gelo polida.

Atravessei o parque de estacionamento em passada rápida e por um triz não fui atropelada por um Subaru que estava a recuar sem que o condutor estivesse a olhar. Mantive-me atenta para a eventualidade de surgir outro idiota, portanto só quando alcancei o passeio e olhei para cima na direção da montra da livraria, é que vi uma mulher de cabelo grisalho atrás do balcão. Senti um enorme alívio: não era o vizinho sinistro.

Aproximei-me da porta e vi que o letreiro a indicar que estava fechada se mantinha — com um acrescento. Alguém tinha afixado um papel branco onde se lia ATÉ NOVO AVISO impresso com letra gorda do tipo Sharpie.

Enquanto hesitava, a mulher dentro do estabelecimento dirigiu-me um sorriso alegre e encaminhou-se para a porta, destrancando-a para poder abri-la. Os seus movimentos eram surpreendentemente ágeis e impetuosos para uma mulher com a redondeza e as rugas de uma avó.

— Olá, minha querida — disse ela. — Lamento, mas hoje estamos fechados. Precisava de alguma coisa?

Era uma criatura feérica. Conseguia cheirar isso nela — terra, floresta e magia com um toque de algo a arder, ar e água salgada. Nunca tinha sentido um cheiro como aquele, e já conheci dois dos Senhores Cinzentos que governam os seres feéricos.

Ao meu olfato, a maior parte dos seres feéricos tem o cheiro de um dos elementos que os velhos alquimistas afirmavam constituir o universo — terra, ar, fogo e água. Nunca mais de um. Até ter conhecido esta mulher.

Os seus olhos cor de avelã sorriram para os meus.

— O Phin está por cá? — perguntei-lhe. — Quem é você? Nunca a tinha visto aqui. — Não era uma cliente habitual; se calhar trabalhava regularmente com Phin. Mas estava capaz de apostar que não era esse o caso. Se ela o ajudasse frequentemente, teria sentido o cheiro dela na livraria na primeira ocasião em que aqui vim. Não me esqueceria se tivesse detetado o seu cheiro.

Há imensas coisas que me assustam — como os vampiros, por exemplo. Desde que os passei a conhecer mais de perto, assustam-me ainda mais do que antes. Sei que eles me podem matar. Mas eu matei um e ajudei a matar outros dois.

Os seres feéricos...

Nos mais assustadores filmes de terror, nunca se vê o que está a matar as pessoas. Sei que assim é porque o desconhecido é muito mais assustador do que qualquer coisa que possa ser inventada por alguém da caracterização ou dos efeitos especiais. Os seres feéricos são assim, têm os verdadeiros rostos ocultados atrás de outras formas — e misturam-se com a raça humana escondendo aquilo que verdadeiramente são.

Esta pessoa com um rosto amoroso que parecia ser a avó de alguém podia ser uma daquelas criaturas que comia crianças perdidas no bosque, ou que afogava rapazes que entrassem na sua floresta sem autorização. Claro que era possível ela ser uma das criaturas feéricas menores ou mais gentis — tal como a sua aparência parecia indicar. Mas não achei que fosse esse o caso.

Sou mais esperta do que a Branca de Neve: não ia comer nenhuma maçã que ela me pudesse vir a dar.

Ignorou as minhas perguntas — os seres feéricos não anunciam o seu verdadeiro nome — e disse-me:

— É amiga dele? Está a tremer. Creio que talvez não fosse má ideia entrar e sentar-se um pouco para aquecer. Estou só a ajudar a arrumar os livros enquanto o Phin está ausente.

— Ausente? — Não ia entrar naquela loja sozinha com ela. Em vez disso, fiz-lhe uma chusma de perguntas do tipo que qualquer cliente... Ok, qualquer cliente obsessivo faria: — Onde é que ele está? Sabe como posso entrar em contacto com ele? Porque é que a loja não está aberta?

Sorriu-me.

— Não sei onde ele está neste momento. — Mais uma evasão. Podia saber que ele estava na cave, por exemplo, mas não o local exato onde se encontrava. — Provavelmente vai dizer-me quando tiver oportunidade de me telefonar. Quando lhe disser que esteve aqui alguém à procura dele, quem devo mencionar?

Olhei para os seus olhos desprovidos de maldade e percebi que Tad tinha razões para estar preocupado. As únicas coisas que tinha eram o telefone de Phin que não era atendido, um vizinho sinistro e a loja fechada — mas os meus instintos estavam a gritar. Alguma coisa tinha acontecido a Phin, alguma coisa má.

Não o conhecia bem, mas gostava dele. E, a julgar pelo telefonema que Tad recebera, o que quer que lhe tivesse acontecido tinha ligação com o livro que me emprestara. O que fazia com que a culpa fosse minha. Talvez se não tivesse ficado com ele durante o último mês para o ler, Phin ainda estivesse em segurança na sua livraria.

Retribui-lhe o sorriso, um sorriso educado.

— Não se preocupe com isso. Eu passo por cá noutra altura.

Estalou os dedos.

— Espere lá. O meu neto disse-me que tinha emprestado um livro bastante valioso a uma jovem simpática que o iria devolver em breve.

Ergui as sobrancelhas.

— Neste momento estou interessada numa primeira edição britânica de Harry Potter e a Pedra Filosofal. — Não era propriamente uma mentira. Seria interessante, e eu não lhe disse que andava a tentar comprar um. Não sei se os seres feéricos conseguem descobrir tão bem como os lobisomens se alguém está a mentir, mas qualquer grupo que tenha um código de proibição da mentira tão rígido como o dos seres feéricos provavelmente possui um método de a detetar.

— Ele não me falou disso — disse ela desconfiadamente, como se ele o fizesse naturalmente.

Porém, perdera a oportunidade de me convencer de que era a assistente de Phin quando permitiu o meu comentário sobre ser alguém estranha à livraria.

— Presumo que ele vá precisar de algum tempo para a arranjar — disse-lhe. — Só passei aqui para ver como ele estava. Volto numa outra altura. — Travei o «obrigada» que me estava na ponta da língua e substituí-o por um «adeus» e um aceno descontraído.

Senti os olhos dela nas minhas costas até à altura em que fiquei completamente escondida atrás de filas de carros, e senti-me aliviada por ter estacionado o carro a uma longa distância do centro comercial. Sam tirou a cabeça do meu banco sem erguer nenhuma parte do corpo ao ponto de poder ser visto através das janelas. Estava a esconder-se.

Olhei para ele e relanceei os olhos à livraria enquanto passava por ela à saída do parque de estacionamento. A mulher estava novamente atrás do balcão a examinar o que parecia ser um livro de contas.

As coincidências acontecem com muito menor frequência na vida real do que nos filmes.

— Sam — disse-lhe, — estás a esconder-te de uma criatura feérica? Uma que tem nela o cheiro de todos os elementos?

Ergueu o focinho e baixou-o.

— Ela faz parte dos bons da fita? — perguntei-lhe.

Fez um gesto que nem era sim nem era não.

— Sarilhos?

Rosnou afirmativamente.

— Merda.

Meti numa estação de serviço, estacionei o carro e telefonei a Warren, o número três do bando de Adam e meu amigo.

— Ei, Warren — disse quando ele atendeu. — O Kyle tem algum cofre naquela casa gigantesca onde vive? — Podia guardar o livro no cofre de Adam. E se quem andasse à procura dele não pertencesse às criaturas feéricas, sentir-me-ia relativamente segura com ele escondido e rodeado por lobisomens. Mas a casa do namorado humano de Warren seria um local muito menos provável e quase tão seguro.

— Vários. — O tom de Warren era seco. — Tenho a certeza de que ficaria encantado com a ideia de te emprestar um. Agora andas a armazenar material para chantagem, Mercy? — Ouvi ruídos de fundo do outro lado, pessoas e o tipo de eco que se produz num edifício muito grande.

— Isso é que era — disse-lhe. — Quanto é que achas que o Adam pagaria para impedir que um vídeo porno dele fosse parar à Internet?

Warren riu-se.

— Pois — disse eu tristemente, — é o que eu acho, também. Portanto, nada de riqueza no meu futuro e também nada de chantagem. Tu ou o Kyle podem ir ter comigo à casa do Kyle dentro de pouco tempo?

— Neste momento estou em trabalho de vigia, mas aposto que o Kyle está em casa. Ele nem sempre atende o telefone de casa. Tens o número do telemóvel dele?

Warren trabalhava para o namorado — eu sei, é uma coisa estranha, mas Warren não estava a ganhar propriamente uma fortuna na loja de conveniência onde trabalhara anteriormente. Kyle mexera uns cordelinhos, subornara alguns funcionários públicos (provavelmente) e talvez tenha chantageado uns quantos, conseguindo assim uma licença de detetive privado para Warren. Warren protegia clientes e fazia investigações sub-reptícias para a firma de advogados de Kyle.

— Tenho — respondi. — Estás no Wal-Mart?

— Não, estou numa mercearia. Estive no Wal-Mart, mas foi há uma hora.

— Pobrezinho — disse em tom solidário.

— Não — replicou num tom de voz suave. — Estou a fazer algo útil. Esta senhora merece sentir-se segura, embora haja muitas pessoas que pensem que eu sou o responsável pelo olho negro que ela tem.

— És um tipo duro — disse-lhe com frieza. — Podes bem com uns olhares desagradáveis. — O facto de ser lobisomem homossexual há cem anos desenvolvera em Warren uma pele tão espessa que bem se podia dizer que era uma armadura. Poucas coisas o irritavam, excetuando Kyle.

— Na verdade, alimento a esperança de que o futuro ex dela apareça — disse baixinho; para que ela não ouvisse, pensei. — Gostava de ter a oportunidade de me apresentar a ele.

A casa de Kyle Brooks situa-se nas colinas de West Richland, onde vivem as pessoas ricas. Enorme, embora delicadamente arquitetada, estabelece com as habitações vizinhas a mesma harmonia que um gato ardiloso no meio de caniches. A dimensão é a adequada, mas é mais graciosa e confortável na luz do deserto do que as restantes casas. Ser-se advogado de divórcios, pelo menos no caso de Kyle, compensa bastante.

Estacionei o Rabbit na rua, deixei Sam sair e peguei no livro... e no bastão que estava pousado ao lado.

— Olá — disse ao bastão. Não senti qualquer magia ou calor nas mãos, mas, de uma forma que não sei explicar, fui invadida por uma grande satisfação.

Fechei a porta do Rabbit com a anca e encaminhei-me para a porta principal da casa de Kyle. A importância do livro adquirira toda uma nova dimensão a partir do momento em que a velha na livraria o tinha mencionado. Por isso, segurei-o com ambas as mãos e enfiei o bastão debaixo do braço.

Quando cheguei à porta principal, não conseguia tocar à campainha.

Sam apercebeu-se do meu dilema e, com uma das patas, tocou ao de leve na campainha. Kyle devia estar mesmo ao pé da porta, tal como prometera quando tínhamos falado, porque quando a abriu, ficou de cara colada ao focinho de Sam.

Nem sequer pestanejou. Em vez disso, ergueu a anca, fez cara de beijo e depois sorriu sedutoramente, transformando um simples par de calças de ganga e uma t-shirt de manga cava de cor roxa em indumentária de bordel.

— Olá, querido — disse a Sam. — Aposto que és deslumbrante na tua forma humana, hã?

— É o Sam — expliquei a Kyle secamente. E embora soubesse que só ia provocar problemas, tive de o avisar novamente porque gostava mesmo dele. — Tens de ter cuidado com os lobos a quem lanças charme. Podes acabar por receber mais do que esperas.

Por vezes, Kyle era uma pessoa irritável — o facto de ter sido deserdado e posteriormente vivido numa comunidade conservadora teve esse efeito em mais do que um homem gay — e Kyle conseguia elevar o temperamento inflamado (e a filha da putice) a uma forma de arte quando achava que isso ia deixar desconfortável quem quer que o desaprovasse. Afortunadamente, optou por aceitar o meu aviso com o mesmo espírito com que fora dado.

Num tipo de voz completamente diferente, disse:

— Também te amo, Mercy. — Pôs fim à encenação de atiradiço com uma rapidez e perfeição que muitos vencedores de Óscares invejariam. — Ei, Samuel. Desculpa, não te reconheci com todo esse pelo. — Olhou para aquilo que eu segurava nas mãos. — Queres guardar uma toalha no meu cofre?

— É uma toalha muito especial — disse-lhe enquanto o contornava, avançando na direção da casa. — É o cabelo do Elvis, do dia em que deu o último concerto.

— Eh, lá — replicou, recuando para que Sam pudesse vir atrás de mim. Fechou a porta e, como se se tratasse de um gesto não planeado, trancou-a. — Nesse caso, não há dúvida de que precisas de guardá-lo num sítio seguro. Queres o cofre grande com o sistema eletrónico ou algo mais bem escondido?

— Mais bem escondido seria porreiro. — Não me pareceu que a eletrónica fosse funcionar bem contra os seres feéricos.

Indicou-nos o caminho, percorrendo o piso térreo, subindo as escadas, passando pela sua biblioteca — com uma das paredes repleta de livros jurídicos encadernados a carneira e a outra de livros brochados maltratados, onde se incluía a obra completa de Nora Roberts. Dei dois passos e parei, recuei e espreitei novamente a biblioteca.

Se os seres feéricos andassem atrás do livro, e tivessem alguma forma de lhe seguir o rasto, certamente já o teriam. Em vez disso, passara quase dois dias completos dentro do meu Rabbit, embrulhado numa toalha.

Kyle recuou e também se pôs a olhar para a biblioteca.

— É um livro, não é? Estás a pensar escondê-lo num lugar em que fique à vista? — Abanou a cabeça. — Podemos fazer isso, mas se alguém vier à procura de um livro, o primeiro sítio a que irá, depois do cofre grande, será a biblioteca. Tenho uma ideia melhor.

Segui-o em direção a um quarto. Estava pintado de azul-escuro com salpicos pretos, e os beliches tinham edredões com desenhos de Tomás, de Tomás e os Amigos, a andar sobre carris — o que não correspondia propriamente ao que esperava algum dia ver na casa de Kyle. Sabia que nunca recebia visitas da família, portanto não podia ser para um sobrinho. Kyle continuou a caminhar na direção da casa de banho, portanto segui-o. As garras de Sam produziam estalidos no chão de ardósia.

Tomás também imperava na casa de banho. Um suporte plástico para escovas de dentes em forma de comboio encontrava-se pousado ao lado do lavatório, e um conjunto de toalhas com bordados de Tomás e seus amigos pendia de toalheiros em forma de linha férrea.

Kyke abriu um armário ao lado do lavatório, revelando duas prateleiras vazias e uma cheia de toalhas de várias cores.

— Dá-me cá isso — disse, portanto entreguei-lhe o livro.

Ajoelhou-se no chão e desdobrou a toalha, reposicionou o livro e dobrou a toalha da mesma forma que todas as outras. Devolveu-mo e coloquei-o no fundo de uma das pilhas.

Kyle olhou para o que eu tinha feito e endireitou a pilha. A toalha que envolvia o livro estava igualzinha às restantes.

Uma coisa que fingia ser outra.

Por qualquer razão, pensei no incidente desta manhã com o caçador de recompensas. No caçador de recompensas — e na criatura feérica armada com uma espingarda de plástico carregada com balas de prata, tal como a arma de Kelly Heart. Porque ele andava à caça de lobisomens.

Talvez... talvez não fosse disso que a criatura feérica andava à caça. Adam sugerira que as munições de prata poderiam ter sido usadas apenas para coincidirem com as de Kelly Heart, que a atiradora podia andar atrás de qualquer um de nós e não apenas de um lobisomem. Na altura ocorreu-me que estaria apenas a tentar desviar o foco de si e com isso evitar que me preocupasse com ele. Mas e se ele tivesse razão? E se a criatura feérica andasse atrás de mim?

Provavelmente estava a ser paranoica. Afinal de contas, o mundo não girava à minha volta. Só porque neste último ano tinha tido vampiros, seres feéricos e lobisomens atrás de mim para me tentarem matar em diversas ocasiões, isso não significava que alguém andava atrás de mim no presente. A velha na livraria não sabia quem eu era. Seguramente que se os seres feéricos andassem a tentar matar-me, ela teria reconhecido o meu rosto. Talvez os seres feéricos estivessem dispostos a matar pelo livro que acabara de esconder na casa do meu amigo. Warren nem sempre estava aqui, e Kyle era apenas humano. Talvez não o devesse deixar aqui. Talvez estivesse paranoica e a ver conspirações onde as não havia.

— Kyle? — chamei-o.

Olhou para mim.

— Não arrisques nada por aquele livro — disse-lhe. — Se vierem aqui buscá-lo e te ameaçarem, simplesmente dá-o.

Ergueu uma sobrancelha bem arranjada.

— Porque é que não vais ter com eles e lhes dás o livro? Quem quer que sejam esses «eles».

Percorri uma série de respostas, mas acabei por dizer:

— A questão é essa. Na verdade, não sei quem são «eles» nem o motivo pelo qual querem o livro. Ou sequer se eles querem o livro. — Provavelmente estava a reagir de forma exagerada à situação e Phin telefonar-me-ia dali a uns dias pedindo-me a devolução do livro. Provavelmente o incidente do caçador de recompensas seria apenas o que toda a gente pensava: o resultado da vontade de uma produtora ávida de publicidade. E a criatura feérica armada era... A minha imaginação bloqueou. Mas podia haver uma explicação que não tivesse nada a ver comigo ou com o livro.

Na verdade não conseguia imaginar alguém a matar-me nestas circunstâncias por causa do livro. Não me procurariam antes? Não me perguntariam por ele? Não me diriam que se não o devolvesse, matariam Phin?

A menos que já tivessem matado Phin.

— Estás bem, Mercy? — perguntou Kyle.

— Sim. Está tudo bem.

Íamos começar a descer as escadas quando finalmente cedi à curiosidade.

— Ok, quem é o fã de Tomás e os Amigos, tu ou o Warren?

Kyle lançou a cabeça para trás e desatou a rir.

— Se calhar devíamos ter escondido o livro na casa de banho do quarto da Princesa. Nesse caso ias perguntar qual de nós gosta de dormir com um dossel cor-de-rosa por cima da cabeça. — A cara de riso desvaneceu-se. — Recebo convidados, Mercy. Na maior parte dos casos, os divórcios são complicados e nocivos para todos os envolvidos. Todo esse sofrimento pode explodir nas pessoas erradas. Algumas pessoas precisam de um sítio onde possam estar em segurança durante algum tempo. E se esse sítio tiver uma piscina e um jacuzzi no jardim das traseiras, tanto melhor.

Kyle escondia pessoas em sua casa, crianças que precisassem de estar em segurança.

Sam rosnou.

Inclinei-me e pousei a mão na sua cabeça, mas Kyle não pareceu ter-se apercebido de que a reação de Sam fora um pouco extrema, mesmo para um lobo que adorava crianças. Ninguém se haveria de magoar aqui e agora.

— Sim — disse Kyle, começando a descer as escadas. — Concordo, Samuel. São esses os homens que eu gosto mesmo de tramar em tribunal. — Fez uma pausa. — E mulheres também, às vezes. Os maus-tratos e a violência acontecem de ambas as partes. Alguma vez vos falei de uma cliente minha que contratou alguém para tratar do marido?

— Referes-te a um contrato para matar?

Fez que sim com a cabeça.

— Foi a primeira vez em fui confrontado com uma situação dessas. Quem haveria de imaginar que podia acontecer na nossa pequena cidade? O assassino matou-o com um só tiro. Estavam casados há trinta e dois anos e ele começou a andar com a namorada do neto deles. Ela decidiu divorciar-se e, pelos vistos, o belo acordo que lhe consegui não foi suficiente. Entregou-se às autoridades essa mesma manhã. Parecia muito feliz com o que tinha feito. — Parou na cozinha. — Queres comer alguma coisa?

— Acho melhor ir indo — respondi. — Preferia que ninguém se apercebesse de que eu passei por aqui.

— Não trazias aquele teu bastão debaixo do braço? Deixaste-o na casa de banho?

Tinha desaparecido. Trazia-o comigo e não me dera conta do seu desaparecimento.

— Não te preocupes com isso — disse-lhe. — Ele volta a aparecer quando tiver vontade.

Dirigiu-me um sorriso alegre.

— Pois é, o Warren contou-me. O bastão segue-te para todo o lado como se fosse um cachorro?

Encolhi os ombros.

— Muito fixe.

Quando alcançámos a porta, deu-me um abraço e beijou-me a face. Sam levantou uma pata num gesto solene, como se fosse um cão bem treinado, e Kyle apertou-a sem pestanejar.

— Vê lá se tomas conta da Mercy — disse a Sam. — Não sei no que é que ela se meteu desta vez, mas «perigo» parece ser um nome que ela decidiu adotar.

— Ei — objetei.

Kyle olhou-me com um certo ar de desagrado.

— Braço partido, traumatismo, entorse, pontos, rapto... — Deixou a voz desvanecer-se. — E a lista não fica por aí, verdade? Mantém-te perto do Samuel ou de outra pessoa até que isto acabe. Não quero ir ao teu funeral, querida.

— Está bem — repliquei, desejando que ele estivesse errado. — Eu vou ter cuidado.

— Se te pudermos ajudar de mais alguma maneira, não hesites em telefonar-nos, a mim ou ao Warren.

Conduzi em direção ao grande centro comercial de Kennewick porque senti um forte impulso de não estacionar num sítio isolado — e queria telefonar a Tad. Tive de estacionar nos confins porque aos sábados todos os lugares perto do centro comercial ficavam ocupados. Mas, ainda assim, estava o menos sozinha possível. Depois telefonei a Tad.

— Ei, Mercy — atendeu. — O meu pai disse-me que esta manhã estiveste perto de te envolveres num Duelo de Fogo5, em East Kennewick.

— É verdade — disse-lhe. — Mas deixa-me descrever-te o dia todo e depois diz-me o que achas.

Relatei tudo do princípio ao fim — deixando de fora apenas a parte em que escondi o livro.

Quando terminei, fez-se uma breve pausa durante a qual Tad absorvia o que lhe dissera. Depois perguntou-me:

— Mas afinal o que é que está nesse livro?

— É um livro sobre seres feéricos escrito por alguém que era feérico — respondi. — Não creio que haja nele nada de mágico. Ou se houver, não consigo detetar, e normalmente consigo. Contém imensa informação e montes de contos de fadas recontados pela outra parte. — Tive de me rir. — Deu-me toda uma nova perspetiva sobre «Rumplestiltskin»6 e provocou em mim uma verdadeira aversão à ideia de algum dia voltar a ler «Hansel e Gretel»7.

— Nada de chocante?

— Não que eu tenha lido. Muitas das coisas já transitaram para a esfera do folclore, embora neste livro as coisas estejam mais organizadas. Particularmente no que diz respeito à diversidade de criaturas feéricas e artefactos feéricos. Calculo que possa haver alguma coisa chocante na parte que ainda não li, ou que exista alguma coisa escondida por magia ou por um código secreto... Tinta invisível, talvez? — A minha imaginação esgotou-se.

— Deixa-me contar tudo isto ao meu pai — disse Tad. — Não me parece que pudesse haver assim tanto interesse por esse livro antigo. Claro que é valioso e poderá haver um desejo, creio, de o manter longe das mãos dos humanos. Mas não será desastroso se a única coisa que contém são contos de fadas não muito diferentes dos que se pode encontrar em livros já disponíveis... Espera um minuto. — Fez uma pausa. — Talvez aquela velhota na livraria fosse a avó do Phin.

— A avó? Ela era mais velha, mas não tão velha. O Phin tem... — Fora-me difícil perceber-lhe a idade, lembrei-me. Mas era um adulto pelo menos na casa dos trinta, possivelmente próximo dos cinquenta, bem preservados. — Seja como for, esta mulher estará na casa dos sessenta e poucos, não mais do que isso.

Tad aclarou a garganta.

— Mercy, se ela é uma criatura feérica, a idade que tem é indiferente.

— O Phin não tem muitas criaturas feéricas na sua ascendência — disse-lhe. Tinha a certeza disso. — Esta mulher era o tipo de criatura feérica da velha guarda, como os Senhores Cinzentos.

Tad riu-se.

— A mulher a quem ele chama avó provavelmente é a sua bisavó, trisavó, tataravó... E podes continuar por aí fora. Ele disse-me que uma vez, quando era miúdo, ela afugentou uma série de criaturas feéricas que se sentiam desagradadas por ele ser tão humano... ou talvez por ele, um humano, ter o mais pequeno vestígio de sangue feérico. Depois disso, ela aparecia de vez em quando até começar a acompanhá-lo apenas por telemóvel.

— Então ela pertence aos bons da fita? Achas que devia falar com ela? Contar-lhe do livro e perguntar-lhe onde está o Phin?

— Não sei se esta peça tem tipos bons ou vilões, Mercy — disse. — E certamente não sei se a criatura feérica que viste era a avó do Phin ou um dos Senhores Cinzentos. E se era... nada nos garante que seja seguro confiar nela. Os seres feéricos não são como os humanos, Mercy. Alguns deles seriam capazes de comer os próprios filhos sem centelha de remorso. O poder motiva-os mais do que o amor, se é que eles são capazes de amar. Alguns deles são tão solitários... Nem fazes ideia. Vou telefonar ao meu pai e depois ligo-te de volta.

Desligou.

— Então, já tivemos excitação que baste por um dia? — perguntei a Sam. — Queres ir para casa?

Levantou os olhos na minha direção e reparei que também ele estava cansado. Mais cansado do que um dia quase inteiro a andar de carro de um lado para o outro podia explicar. Triste, pensei de repente.

— Não te preocupes — disse-lhe, curvando-me até que a minha testa lhe tocasse a cabeça. — Não te preocupes, também havemos de encontrar algumas respostas para ti.

Suspirou e meneou-se até pousar o focinho no meu colo. E assim seguimos para casa.

Fiz rolo de carne — segundo a receita de Samuel, que incluía imensas sementes de pimenta-jalapenho e várias outras pimentas. Um dia fora do frigorífico e pode queimar completamente a pele do céu-da-boca se não se tiver cuidado.

O meu telefone tocou e olhei para o número. Defini o temporizador no forno e o telemóvel continuou a tocar.

— Bran — atendi.

— Andas a brincar com o fogo — disse-me. Soava cansado.

— Como é que descobriste que eu estou a fazer o rolo de carne do Samuel?

— Mercedes.

— O combinado foi dares-nos algum tempo — disse-lhe. Senti uma agitação no estômago. Precisava de mais tempo para provar que Sam tinha a capacidade de se manter estável.

— Eu amo o meu filho — replicou Sam, — mas também te amo a ti.

Ouvi tudo aquilo que ele não disse. Anteriormente, tinha escolhido o filho em detrimento de mim — era assim que ele via as coisas. E essa era a forma como também eu poderia ter visto as coisas na altura.

— Ele não me vai fazer mal — disse-lhe, observando os olhos brancos de Sam. Retesou-se e lembrei-me de baixar o olhar, apesar de ele não me ter obrigado a fazer isso depois da noite anterior. Normalmente, a partir da altura em que o lobo sabe que o outro reconheceu que é ele quem manda, esse tipo de coisas apenas surge quando o lobo mais dominante está chateado.

— Tu não sabes isso.

— Por acaso até sei — retorqui. — Um homem armado entrou-me na oficina e apontou-lhe uma arma, e ele não atacou porque eu lhe pedi para não o fazer. E porque uma pessoa, uma criança, podia sair magoada do fogo cruzado.

Fez-se uma pausa muito longa.

— Preciso que sejas muito clara em relação ao que se passa — disse ele, porém, interrompi-o.

— Não, não precisas. Se eu te disser que o lobo de Samuel está em controlo, terás de o matar.

Não disse nada.

— Talvez se ele não fosse teu filho, tu pudesses dar-te ao luxo de ser mais brando. Ou se não tivesses usado o teu cargo de Marrok para forçar lobos que preferiam ter permanecido escondidos a revelar-se publicamente. Mas isso fez-te perder imenso apoio moral, que ainda não recuperaste. Se flexibilizares essas regras um bocadinho que seja... bom, provavelmente não perdes o teu cargo, mas muitas mortes podem acontecer. Talvez num número superior ao explicável perante os humanos. — Tinha andado a pensar muito sobre isto.

Deixei que as minhas palavras ficassem suspensas durante um bocado. Precisávamos daquela semana para justificar a comutação de pena de Sam aos outros lobos.

— Anda sempre com o telefone perto de ti — disse-me, desligando em seguida.

Sam olhou para mim e suspirou, depois esticou-se no chão sobre o flanco, como um enorme tapete de pelo.

Quando o telefone voltou a tocar, era Charles, o irmão de Samuel e braço-direito de Bran.

— Mercy?

— Estou aqui — respondi.

— Conta-me o que se passa com o Samuel.

— É seguro?

— Só depois de me contares é que vou saber, não é?

Estaria ele a tentar ser engraçado? Quando se tratava de Charles, nunca sabia com o que contar. De entre todos os lobos do Marrok, o seu filho mais novo era o mais intimidatório — pelo menos para mim.

— Refiro-me em relação ao Samuel — disse.

— Recebi ordens — explicou com uma frieza sorridente na voz — para guardar para mim o conteúdo da nossa conversa.

— Está bem. — Aclarei a garganta e contei a Charles a sucessão de acontecimentos desde que descobrira que Sam tentara cometer suicídio até ao episódio em que Kelly Heart tentara deter Adam.

— Ele brincou com as crianças? — perguntou Charles.

— Sim. Eu disse-te. A Maia pôs-se no dorso dele e montou-o como se fosse um pónei. Ainda bem para ele que ela não estava a usar esporas.

Ainda estendido no chão, Sam bateu com a cauda no chão duas vezes — se não tivesse feito isso, diria que estava a dormir.

— Isso é bom, não é? — perguntei. — Significa que ele tem algum tempo.

— Talvez — respondeu Charles. — Mercy, para os lobisomens... Todos nós temos relações diferentes com os nossos lobos. — Charles não costumava falar muito, e quando o fazia, o seu discurso era ponderado, como se reavaliasse cada pensamento antes de o dizer em voz alta. Bran também era assim ao telefone, mas Charles fazia-o sempre, inclusive pessoalmente.

— Pensa nos lobisomens como gémeos siameses. Alguns de nós somos bastante separados, não partilhamos praticamente nada com os nossos lobos. Apenas duas entidades por baixo da mesma pele... Todos começamos dessa maneira. Quando o nosso lado humano adquire a capacidade de assumir o controlo, lobo e homem alcançam uma... «Trégua» não é uma palavra acertada. «Equilíbrio» é melhor. E do mesmo modo que a nossa alma humana perde parte do que significava ser-se humano, o nosso lobo perde parte do que significa ser-se lobo.

— Então o lobo de Samuel não é perigoso?

— Não — respondeu prontamente, e Sam levantou a cabeça, rolou até ficar sobre a barriga e assumiu uma postura semelhante à de uma esfinge. — Nunca penses isso. Ele já não é integral, não está equipado para assumir o controlo. Tal como um gémeo siamês, partilha o coração e a cabeça com o Samuel. E se for bem-sucedido ao apoderar-se por completo do controlo de Samuel, ou se Samuel permitir que ele faça isso, esse coração deixará de bater.

Deixei-me cair sobre os joelhos e coloquei uma mão no quarto dianteiro de Sam porque a dor na voz de Charles encontrou eco na minha.

— Duvido que sobreviva muito tempo assim. Estás a ouvir-me, lobo?

O lábio superior de Sam dobrou-se, pondo os dentes a descoberto.

— Ele ouve — disse-lhe.

— Vai ficar cada vez mais cansado e terá mais fome do que o habitual. Irá perder lentamente as correntes que o Samuel forjou para o controlar, e a única coisa que vai restar será uma besta devoradora. Um lobo novato, um lobo em pleno comando, mata facilmente e com frequência, mas normalmente existe uma razão para isso, mesmo que essa razão seja o facto de ele não gostar do cheiro da sua vítima. O que restar do Samuel irá matar e destruir até cair morto.

— Como é que sabes? — Charles apenas tinha dois séculos de idade. Nunca vivera em nenhum sítio fora do controlo do Marrok, e o Marrok matava os lobos que perdessem o controlo. No entanto, falava com um tom de absoluta certeza.

— Digamos que, tal como tu, em tempos tive um amigo que quis ajudar, e mantive-o longe da vista do meu pai num sítio onde não podia fazer mal a ninguém. Teria sido mais generoso matá-lo no princípio.

Os meus dedos afundaram-se no pelo de Sam.

— Quanto tempo nos resta?

— O meu amigo era velho, mas não tão velho como o Samuel. Ele perdeu a humanidade dele passados poucos dias, depois ficou doente e letárgico. Pensei que estava a desfalecer, mas ficou frenético. — Parou de falar por um momento. — Depois caiu redondo e morreu. Isto em menos de uma semana. Não faço ideia de quanto tempo o Samuel vai durar.

— E se ele tivesse perdido o controlo quando o lobo se apoderou dele? — perguntei. — Como acontece com os lobos novatos. Estaria melhor? — Sentia-me tão feliz com o facto de Sam ter reagido de forma diferente.

— Nesse caso, ele teria vivido até o nosso pai o ter apanhado, mas tu terias morrido juntamente com as pessoas que estavam no hospital onde foste ter com ele. No caso dele, a situação é melhor, Mercedes. Mas não confies demasiado nele.

— Tens alguma sugestão sobre como posso ajudá-lo?

— A primeira coisa é convencer o lobo a permitir que o Samuel volte a tomar as rédeas, nem que seja por um curto período de tempo.

— Ele quer sobreviver — disse a ambos. — Foi precisamente por isso que ele se apoderou de Samuel. Se isso implica deixar que o Samuel volte a assumir o controlo, ele fará isso. — As minhas palavras soaram muito mais convictas do que eu própria, porém, Sam suspirou e dirigiu-me um ligeiro gemido cansado.

— E depois tens de convencer o Samuel de que ele quer sobreviver.

— E se eu não conseguir? E se o lobo libertar o Samuel e ele mantiver a ideia de se matar?

— Nesse caso, o lobo terá novamente de lutar por assumir o controlo, ou o meu irmão morre. — Charles soltou um suspiro. — Todas as coisas morrem, Mercedes. Simplesmente algumas demoram mais tempo do que outras.


5 Filme de John Sturges baseado no famoso tiroteio de Ok Curral, ocorrido em Tombston, Arizona, a 26 de outubro de 1881. (N. do T.)

6 Conto dos Irmãos Grimm. (N. do T.)

7 Conto de fadas de origem alemã transposto para livro pelos Irmãos Grimm. (N. do T.)


7

Nessa noite, levei Sam comigo até à livraria, o que não era muito prático.

Presumo que pudéssemos ter ficado os dois em casa, mas eu queria ir investigar a livraria de Phin. A mulher tinha estado à procura de alguma coisa; talvez conseguisse descobrir o que era. Talvez viesse a encontrar Phin lá, feliz e saudável. Talvez não ficasse especada em casa toda a noite, preocupada com coisas que não podia mudar.

Não podia deixar Sam sozinho, não depois da pequena conversa que tivera com Charles. No entanto, ele não era o melhor parceiro para arrombar a loja.

As pessoas não iriam reparar numa mulher a vaguear pelo centro comercial Uptown em Richland, mesmo depois de a maior parte das lojas ter fechado. Não era assim tão tarde, pouco passava das nove da noite. O índice de criminalidade em Richland é relativamente baixo — e a maior parte dos crimes tende a ser cometida por membros de gangs ou adolescentes. Sam...

Imaginei a conversa hipotética enquanto conduzia pela interestadual.

Sr. Agente: Diga-me, viu alguma coisa invulgar a noite passada?

Testemunha acidental: Havia um cão branco grande. Enorme. Era mesmo branco, destacava-se na escuridão como um farol.

Pois é. Sam tornava a tarefa mais difícil. Por isso, ia limitar-me a agir como se soubesse o que estava a fazer e esperar que ninguém chamasse a polícia para investigar.

— Não sei o que estou à espera de descobrir na livraria — disse. — Dificilmente vou encontrar um bilhete a dizer-me onde está o Phin, não é verdade? Ainda assim, é um começo. Se não encontrarmos nada, se calhar vamos forçar a entrada no apartamento dele. É melhor do que ficarmos em casa sem fazer nada, não é verdade?

E o bando ia reunir-se na casa de Adam essa noite. Eu sabia a razão pela qual ele convocara a reunião. Queria descobrir quem tinha andado a fazer joguinhos comigo. Telefonara-me para me informar do que ia fazer — e pediu-me para me manter longe porque não tinha tido oportunidade de me mostrar de que maneira é que eu me podia defender de membros do bando que se tentassem apoderar da minha cabeça.

Ainda assim, devia ter ido, devia ter confrontado os meus inimigos. Todavia, o caso mudava de figura quando a única coisa que os nossos inimigos podiam fazer era matar-nos.

— Não quero ficar em casa sabendo o quanto sou cobarde — disse a Sam. — Devia ter ido à casa do Adam quando os vi a todos a chegar.

Grunhiu.

— Mas a ideia de eles serem capazes de me obrigar a fazer coisas que eu jamais...

Tinha a certeza de que não fora apenas por falta de oportunidade que Adam não me ensinara a como me proteger. Dissera-me que se eu soubesse o que estava a acontecer na altura em que comecei a ser influenciada, ele teria conseguido descobrir a identidade da pessoa em causa. Penso que planeou a tentativa de forçar uma confissão esta noite — e se não conseguisse, esperaria até que voltassem a tentar fazer-me o mesmo. Se era essa a sua motivação, tinha a minha aprovação, mas ao mesmo tempo não queria esperar até que alguém voltasse a tentar fazer-me obedecer às suas ordens.

Estacionei na esquina do parque de estacionamento do Uptown, onde estava situado um restaurante que se mantinha aberto durante toda a noite. Não havia muitos carros, mas os suficientes para que o Rabbit não saltasse à vista.

Abri a porta de Sam e ele farejou o ar cautelosamente.

— Estás a tentar detetar o cheiro da mulher feérica que estava aqui hoje? — perguntei.

Não me deu qualquer tipo de resposta, apenas se meneou e fixou em mim de forma expectante — como se de facto fosse o cão que estávamos a fingir que era. Estava mais lento? A sua cauda estava mais inclinada do que o habitual? Ou estava a deixar que as palavras de Charles me deixassem paranoica?

Olhei para ele e tive a certeza de que era uma mistura de ambas. O facto de se estar paranoico não significa que não se tenha razão. Também não estava tão reativo, como se precisasse de algum tempo para traduzir as palavras em significados.

Não reparei em ninguém que desse indícios de nos estar a vigiar enquanto atravessávamos o parque de estacionamento — mas estávamos expostos num sítio onde as pessoas nos podiam ver. A única coisa que eu podia fazer era agir como se não estivesse prestes a forçar a entrada numa loja. Precisei de dois minutos para forçar a fechadura, o que correspondia a cerca de um minuto e meio a mais do que desejava para me sentir confortável, tendo o parque de estacionamento nas minhas costas e uma rua movimentada mais à frente. Alimentava a esperança de que se alguém me visse, pensasse que eu estava a ter dificuldade em abrir uma fechadura teimosa e não a forçar a sua abertura. Três pisos acima estava um bar aberto, mas ninguém tinha subido ou descido enquanto eu me esforçava por abrir a porta. Pura sorte, algo com que não podia contar sempre. Se continuasse a precisar de forçar a entrada em edifícios, ia precisar de alguma prática.

A maçaneta rodou e concentrei-me na outra fechadura, quando me apercebi de que a porta se abrira no momento em que destrancara a maçaneta. Alguém não tinha rodado a lingueta.

Segurei a porta a Sam e depois entrei discretamente. Ele não tinha como fechar a porta — e se dentro da livraria nos deparássemos com algo hostil, estava mais apto a lidar com isso.

Rodei a fechadura e relanceei os olhos em volta. A minha visão é boa no escuro, portanto não precisávamos de atrair ainda mais a atenção ao acender a luz. Estava mais escuro no interior da loja do que no exterior e, além disso, os vidros da montra eram coloridos, pelo que seria difícil a alguém olhar e ver outra coisa que não o reflexo das luzes no exterior.

A princípio, observei uma loja asseada e arrumada que cheirava a incenso e livros antigos. O papel preserva a memória de qualquer odor forte, portanto numa livraria de livros usados não era incomum detetar ligeiros indícios de comida, tabaco e perfume. Inspirei fundo para ver se conseguia descobrir qualquer coisa que se destacasse.

Sangue, medo e raiva são um pouco fora do vulgar.

Estaquei e inspirei fundo várias vezes. A cada inalação, o cheiro tornava-se mais forte.

O glamour feérico — um tipo de ilusão — é altamente eficaz na visão, audição, paladar e toque. Disseram-me que é suficiente para iludir o olfato de um humano, mas o meu é mais apurado. À terceira inspiração, senti o cheiro intenso a madeira partida bem como o odor semelhante a amoníaco que a magia feérica por vezes deixa atrás de si.

Fechei os olhos, inclinei a cabeça e deixei que o meu olfato atuasse. Os meus ouvidos escutaram um estampido e quando olhei para cima, as prateleiras arrumadas preenchidas com livros impecavelmente distribuídos tinham desaparecido, deixando destruição no seu lugar.

— Sam. — Falei em voz baixa, embora não acreditasse que alguém lá fora me ouvisse caso eu berrasse. Foi um reflexo: estávamos a agir de forma furtiva, portanto era imperioso que não fizesse barulho. — Consegues cheirá-lo? O sangue? Há glamour aqui. Também consegues quebrá-lo? Vês o caos em que os seres feéricos deixaram a loja quando a vasculharam?

Levantou-me uma orelha e depois olhou em volta. Depois, com um movimento rápido, virou-se e afundou os dentes no meu braço.

Talvez se eu pensasse que a possibilidade de ele me atacar era real, me pudesse ter desviado ou defendido. Em vez disso, olhei-o atónita enquanto as suas presas me rasgavam a pele e penetravam a carne. Largou-me quase de imediato, deixando duas marcas distintas que podiam ser uma mordedura de vampiro não fosse o afastamento entre elas e a sua dimensão. Os vampiros têm presas mais pequenas.

Começou a sair sangue de uma das marcas, depois da outra, escorrendo-me pelo antebraço. Sam lambeu a quase totalidade do sangue, ignorando o meu guincho de surpresa e a forma como me afastei dele às arrecuas.

Percorreu novamente a loja com os olhos. Estanquei o sangue no braço com a boca — não queria sangrar em território inimigo. As bruxas usam sangue, cabelo e outras partes do corpo para fazer coisas sinistras. Não achava que com os seres feéricos as coisas funcionassem exatamente assim, mas não quis correr riscos.

Espreitei por baixo do balcão à procura de lenços de papel e encontrei algo melhor — um kit de primeiros socorros. Não era tão bom quanto o meu, mas tinha gaze e uma ligadura plástica.

Com o ferimento ligado e sem o risco de deixar pingar pedaços de mim por toda a parte, regressei para junto de Sam. Permanecia quieto no local onde o deixara, olhando fixamente para algo que eu já não conseguia ver.

Não tinha sido uma mordidela violenta, e não ia permitir-me ter medo de Sam. A SIG do meu pai de acolhimento estava encaixada no meu coldre a tiracolo, carregada com munições normais que normalmente serviam na perfeição para matar criaturas feéricas — e que aos lobisomens não faziam nada a não ser deixá-los furiosos. Deixei de prestar atenção à voz de aviso de Charles e coloquei a mão do meu braço ileso no pescoço de Sam. Recusava-me a acreditar que ele estava a regredir para a condição de assassino impiedoso. Uma mordedura não fazia dele um assassino.

— Que diabo, Sam, porque é que me mordeste? — Se gritasse com ele, era sinal de que não lhe tinha medo. Portanto gritei com ele.

Sam olhou-me de soslaio e depois tombou com uma pata um dos livros caídos das prateleiras. Tratava-se de um exemplar encadernado a pano de Bambi’s Children, da autoria de Félix Salten. Na versão glamour da livraria, não havia qualquer livro no chão. Ele tinha-me mordido de propósito — não lhe tinha perguntado se também ele conseguia quebrar o glamour? Evidentemente, a mordedura fora a sua resposta. O meu sangue deve ter-lhe permitido ver o mesmo que eu, uma espécie de magia solidária ou algo semelhante.

— Fixe — disse-lhe. — Isso é fixe. — Compreendendo que nem Samuel nem Sam, meu amigo, me teriam mordido sem um propósito, voltei a minha atenção para a livraria.

Tenho uma memória olfativa bastante boa, e detetei o cheiro de Phin sem qualquer problema. Se estivesse à procura de assaltantes humanos, teria tido problemas. Estava numa livraria, onde passavam imensas pessoas. Não tanto criaturas feéricas, com exceção de Phin. No entanto, vários seres feéricos tinham aqui estado recentemente, sem muitas pessoas para lhes ocultar o rasto.

— Detetei o cheiro do Phin, da velha desta tarde e de mais três seres feéricos — informei Sam.

Sam ergueu-se sobre a beira de uma das estantes que caíra e encostou o focinho ao fundo, mexendo-o e farejando até encontrar o que pretendia. Recuou num gesto de claro convite.

Sem lhe tocar, inclinei-me até o meu nariz ficar muito próximo da madeira. Também a cheirei, precisamente no local onde alguém tinha colocado a sua mão guiada por magia e empurrado a estante, fazendo-a cair.

— Foi um deles — disse a Sam. — Uma espécie de criatura feérica dos bosques, acho. Ar e coisas que crescem.

Segui Sam, farejei e rastejei, e farejei um pouco mais até reunirmos informações sobre o que se tinha passado aqui. Tê-lo-ia feito mais facilmente se tivesse assumido a forma de coiote. Mas se alguém desse connosco, teria mais possibilidades de me explicar e manter as coisas calmas se me mantivesse na forma humana. Manter as coisas calmas era importante, porque não queria que Sam comesse alguém que não devia.

Disse a mim própria todas estas boas razões para preservar a minha forma humana porque eram boas razões. Porém, sabia que a verdadeira razão era outra: o facto de aquela mordedura me ter deixado preocupada com a possibilidade de Sam se esquecer de que era sua amiga caso eu andasse na forma de coiote. Se me mantivesse na forma humana, podia lembrá-lo disso.

— Ora bem — disse-lhe com uma mão na anca enquanto examinava uma mancha de sangue pertencente a Phin. — Entraram pela porta e o último trancou-a atrás de si. Vamos chamar-lhe Rapaz-Peixe8, porque ele é um ser feérico marítimo de alguma espécie. Parece que foi ele quem dirigiu o espetáculo, porque todos os danos na loja foram provocados pelos outros dois.

O olhar glacial de Sam atravessou-me como uma lança, por isso olhei para baixo e para o lado — num gesto semelhante à saudação de um esgrimista. Reconhecendo a sua condição de lobo grande e mau sem me render a ela. Deve ter sido suficiente, uma vez que não voltou a dar sinais de agressividade.

Voltando à questão de ser-se dominante, isso não era algo em que Sam normalmente embarcava, a menos que estivesse mesmo chateado ou se encontrasse com um lobo pela primeira vez. Quando se é o maioral há muito tempo, presumo que não se sinta necessidade de esfregar isso na cara das pessoas.

Se não me tivesse mordido, ter-me-ia limitado a baixar os olhos, mas isso já não me parecia seguro. Não depois de ele me ter mordido. Precisava de o lembrar que eu era companheira de um Alfa, predadora e não presa.

Uma semana, dissera Charles, baseado num exemplo que era muito mais novo do que Sam. Começava a preocupar-me com a possibilidade de ele ter sido otimista — um predicado que nunca me senti compelida a atribuir a Charles. Quanto tempo restava a Sam?

— E então o Rapaz-Peixe agarra o Phin e diz «Nós sabemos que ele está contigo». — Usei a minha melhor imitação de Jimmy Cagney enquanto relatava a cena conforme a reconstituíra. — E depois ele acena aos seus subordinados, os Iglus Um e Dois, porque a mim ambos me cheiravam a feijão-verde. A Iglu Um empurra uma estante que faz cair mais umas quantas. — Nem sempre conseguia distinguir o sexo da pessoa cujo rasto de cheiro estava a seguir, mas a Iglu Um era definitivamente do sexo feminino. — O Dois é um bocadinho mais forte. Pega numa estante e atira-a pelo ar, fazendo cair mais algumas pelo caminho de forma bastante mais destrutiva.

A estante que o Dois tinha arremessado estava desfeita em pedaços, tendo-se despedaçado quando atingiu as restantes. Conseguia ver a ação a decorrer como um filme na minha cabeça; os acontecimentos tinham sido colocados diante do meu nariz, e dos meus olhos — com alguma imaginação à mistura. Não tinha a certeza se mesmo um lobisomem teria sido capaz de levantar uma estante cheia de livros.

— Mas o Phin não se descose logo — disse a Sam.

Pensei em Tad, no meu visitante-matutino-de-arma-em-punho e no sangue seco no chão.

— Portanto o Rapaz-Peixe continua a pressionar o Phin enquanto os Irmãos Iglu o vão procurar na loja. Estão plenamente convencidos de que o livro está aqui porque viraram tudo de pernas para o ar. Acho que os livros desfeitos podem ter sido apenas por causa da frustração, porque não foi feito de uma forma metódica. Presumo, ainda assim, que se possa dar o caso de andarem à procura de algo que não um livro. — Olhei em redor. — Talvez pudesse estar escondido num livro ou atrás de um livro. Pararam porque o Phin começou a falar.

Sam deu um espirro, mostrando que estava de acordo — ou então se calhar era do pó. Preocupava-me a possibilidade de ser só o pó.

— Será que ele sabia que eles vinham e telefonou ao Tad para me avisar? — perguntei. — Ou será que eles o forçaram a telefonar ao Tad e ele conseguiu deixar um aviso vago? Em qualquer um dos casos, não é curioso que ele não tenha mencionado o objeto que eu tinha pedido emprestado?

Tamborilei com os dedos numa estante que ainda estava de pé.

— Portanto, se calhar eles não sabiam que se tratava de um livro e ele tinha receio que o pudessem ouvir, ou que pudessem ler a mensagem do Tad.

Sam voltou a espirrar. Olhei para ele e vi a cintilação inteligente que me indicou que estava a ouvir — e me fez perceber que uns minutos antes não estava.

— Se calhar andam mesmo à procura de algo completamente diferente. Até pode ter acontecido o Phin ter sido esperto e os ter posto atrás de mim para os despistar. Ele sabe que eu tenho mais proteção do que a maioria das pessoas.

Tirei a mão da estante e comecei a caminhar.

— E é aqui que eu vou somar um mais um e obter cinquenta, mas tem paciência comigo. — Percorri a loja duas vezes e parei onde tinha começado aquando da nossa entrada.

— Partamos do pressuposto de que, algures durante o dia de ontem, o Phin cede e lhes diz exatamente quem eu sou: coisas como quem é o meu parceiro e quantas pessoas ficariam zangadas se viessem atrás de mim. A parte de que vou falar agora é a mais frágil da minha história, Sam, mas os meus instintos estão a gritar-me que o incidente com o Kelly Heart esta manhã e o que aconteceu ao Phin são dois episódios que estão ligados: é aquela criatura feérica que esteve no telhado que me faz ter a certeza disso. Só não sei ao certo a razão pela qual me queriam morta.

Sam rosnou.

— Pensa nisso — disse-lhe, como se tivesse a certeza de que ele estava a rosnar à ameaça contra mim. — Isto não é obra dos Senhores Cinzentos. Se fosse, eu já estava morta. Sabemos que pelo menos três seres feéricos estão envolvidos. Quatro se a mulher no telhado da unidade de armazenamento não era a Iglu Um... Cinco se a velhota com quem eu estive aqui hoje, que pode ou não ser a avó do Phin, for um deles. Mas ainda assim, não creio que seja um grupo enorme. Não seria agradável para eles se os lobisomens os perseguissem. Portanto planeiam um incidente, e a produtora do Kelly Heart é encorajada, por encantamento ou gesto violento, como diria o Zee, a enviar o Kelly à minha oficina para caçar o Adam.

Parei e olhei lá para fora, para lá do parque de estacionamento, no sentido dos faróis dos carros que passavam.

— Se andavam atrás do Adam, há formas melhores de o encontrar do que aparecendo na minha oficina. Não é difícil encontrá-lo. Ele vai trabalhar seis dias por semana e a morada dele é do conhecimento público. Na altura tinha atribuído tudo ao desejo da produtora do Heart em encontrar o melhor drama...

Respirei fundo e sondei Sam para perceber a sua reação.

A postura de Sam — indicadora de que estava atento às minhas palavras — mostrou-me que ele estava a acompanhar-me no meu raciocínio. Ou pelo menos o lobo dele estava. Quão inteligente era a parte lupina do lobisomem?

— Mas as coisas não correram exatamente como tinham planeado. Desarmei o Heart imediatamente. Dificilmente podiam disparar contra mim enquanto eu segurava a arma a isso destinada, não é verdade? Mas quando o Adam apareceu, e depois a polícia, decidiram tentar criar um pequeno caos: uma agitação desenfreada alimentada pela magia. Porém, o Zee tratou disso, e localizou a atiradora deles. Tiveram de fugir do Ben e abandonar o terreno.

Esfreguei as minhas palmas húmidas nas coxas.

— Eu sei que parece rebuscado. Mas existe o livro e o telefonema feito ao Tad que me liga aos seres feéricos que vieram à livraria do Phin e a destruíram. Bateram no Phin até ele sangrar e foram-se embora com ele. Violência e criaturas feéricas, tal como esta manhã. E o único elemento comum sou eu. As coincidências acontecem, bem sei. Se calhar estou a ser egocêntrica ao pensar que é tudo por minha causa.

Esperei na livraria até me aperceber de que estava à espera que Samuel dissesse alguma coisa. No entanto, Samuel não estava aqui: éramos apenas eu e Sam.

— Ok, já chega de fantasiar. — Sacudi o pó das minhas calças de ganga. Tinha a esperança de estar errada, mas a julgar pelo que vinha sendo a minha vida no último ano, isto quase parecia insípido. Nada de vampiros ou fantasmas, certo? Nada de Senhores Cinzentos que aterrorizavam inclusive as outras criaturas feéricas. Se estivesse enganada, temia que assim fosse apenas porque a realidade era ainda pior. — Vamos continuar à procura. Ia sentir-me mesmo estúpida se o Phin afinal estivesse escondido na cave.

Sam encontrou uma porta atrás de cerca de três estantes. Felizmente, abria para o lado de lá, portanto apenas tivemos de trepar as estantes para podermos passar. Mesmo em frente estava uma parede em tijolo; à direita da porta pela qual acabáramos de entrar estendia-se um lanço de escadas estreito e íngreme que desembocava num fosso de escuridão cerrada: a livraria tinha uma cave. Não me pareceu que alguém viesse a reparar se eu ligasse as luzes aqui, uma vez que tinha a certeza que não havia qualquer janela na cave. Ter-me-ia dado conta caso houvesse.

Demorei algum tempo até encontrar o interruptor. Sam, aparentemente imperturbável perante a escuridão, já tinha avançado escada abaixo quando a minha mão tocou o interruptor.

Com luz para me guiar o caminho, consegui perceber que a cave era sobretudo um espaço de armazenamento com caixotes empilhados. Fez-me lembrar a sala de armazenamento de raios X, na medida em que as pilhas estavam claramente dispostas segundo uma ordem. O pé-direito era mais alto do que o habitual em caves tão próximas do rio, porém, não consegui detetar qualquer indício de humidade.

Mesmo à direita da escadaria, uma secção fora usada como escritório. Um tapete persa delimitava o espaço e estendia-se por baixo de uma secretária em carvalho antiquada com um candeeiro de mola. Uma enorme pintura a óleo encaixilhada retratando um jardim tipicamente inglês encontrava-se pendurada em frente à secretária, que podia ser usada como janela imaginária por quem estivesse sentado.

Em tempos, um monitor de computador estivera pousado sobre a secretária. Percebi isso porque o monitor estava no chão de cimento ao lado do tapete, desfeito em pedaços. Havia mais coisas partidas no chão — aquilo que pareciam ser restos de uma vela de frasco inodora, uma caneca que possivelmente conteria canetas e lápis que se tinham espalhado ao atingir o cimento e uma cadeira de escritório sem uma roda e sem o encosto.

— Tem cuidado — disse a Sam. — Ainda acabas com vidros nas patas.

A pilha de caixotes mais próxima da secretária era a única que tinha sido remexida. Cinco ou seis caixotes tinham sido tombados, e o seu conteúdo encontrava-se disperso pelo chão.

— Aqui não há sangue — disse-lhe, e tentei não me sentir aliviada. Não queria descobrir o corpo de Phin. Não estando sozinha com Sam, o lobo. — Estiveram só à procura, e não com particular afinco. Talvez tenham sido interrompidos, ou então ficaram-se por aqui quando o Phin finalmente cedeu e começou a falar.

— Fé fi fo fum — disse a voz de um homem, atingindo os meus ouvidos como o som de uma trompa. — Cheiro o sangue de uma rapariga e mais nenhum. Seja quente ou seja fria, uma coisa, amigos, posso apostar: daqui não irá ela escapar.

A única coisa que consegui ver foram dois pés nas escadas. Não detetara qualquer sinal de que o homem estivesse no edifício, e a julgar pelo movimento súbito de Sam, tão-pouco tinha ouvido ou farejado algo. Não fazia ideia que os seres feéricos se conseguiam esconder daquela maneira. Não havia como saber se estivera ali o tempo todo ou se nos tinha seguido.

O ser feérico trazia calçadas umas enormes botas pretas, daquelas que deveriam produzir ruído a cada passo. E ele não estava com a menor pressa de descer e matar-nos — o que me fez perceber que pertencia à espécie dos que desfrutavam da caça.

Não era um dos Iglus, apesar da minha nomeação galhofeira das duas criaturas feéricas da floresta, uma vez que os iglus tinham mentes de besta, eram mais instintivos do que inteligentes. As criaturas feéricas com mentes de besta que tinham sobrevivido ao aumento do número de humanos que empunhavam armas de metal haviam morrido às mãos dos Senhores Cinzentos. Os comportamentos instintivos não serviam para garantir a ocultação da sua natureza aos humanos, e durante séculos os seres feéricos tentaram fingir que nunca tinham existido para lá do folclore e dos contos de fada. No entanto, a julgar pelo tamanho daqueles pés, era suficientemente grande.

Sam atraiu a minha atenção ao encostar a sua cabeça à minha anca — após o que se enfiou debaixo da secretária. Ele planeava apanhar o ser feérico de surpresa. Era bom saber que Sam ainda estava comigo.

— Esse é capaz de ser o pior verso burlesco que alguma vez ouvi desde a altura em que tinha treze anos e escrevi um poema para um trabalho na disciplina de Inglês — disse ao ser feérico quieto enquanto caminhava de modo a conseguir espreitar para o cimo das escadas.

O ser ali postado teria um metro e oitenta, ou um pouco menos, embora os seus pés fossem dez centímetros mais compridos do que alguma vez vira num ser humano normal. Tinha cabelo ruivo encaracolado e um rosto agradavelmente animado — se não se olhasse muito fixamente para os seus olhos. Vestia umas calças compridas e largas e uma camisa vermelha com uma gravata azul que combinava com o avental de lona vermelho que lhe cobria a roupa. No topo do avental estavam gravadas as letras que correspondiam ao nome de uma mercearia.

Na mão direita segurava uma faca de talhante.

Cheirava ao ferro e à doçura característicos do sangue, com um toque que fazia dele o segundo dos Irmãos Iglu que haviam destruído a livraria. A maldita criatura forte que levantara uma estante cheia de livros.

— Ah — disse ele, — uma hintrusa. Que divertido. — Inclinou a cabeça para um lado, e depois para o outro. O seu sotaque era tão cerrado que se tornava difícil de decifrar. Intrusa, pensei, não hintrusa.

— Divertido? — aventurei-me, abanando a cabeça em seguida. — Fatídico parece-me mais apropriado. Pelo menos para si. — Em caso de dúvida, é importante parecer-se confiante. Baralha os tipos que estão prestes a varrer o chão juntamente connosco. O facto de eu ter uma arma secreta ajudava. — O que é que você fez ao Phin?

— Phin? — Desceu três degraus e estacou com um sorriso. Creio que ele estava à espera que eu fugisse; ou, à semelhança de um gato aborrecido, a prolongar o prazer da matança. Muitos dos seres feéricos são predadores por natureza, e entre as coisas que gostam de comer contam-se os humanos.

— O Phin é o proprietário desta livraria. — A minha voz era firme. Não creio que estivesse a ficar mais corajosa, mas depois de todas as coisas que tinham acontecido ultimamente, estar assustada perdera a sua originalidade.

— Talvez ieu teinha-o comido. — Sorriu. Os seus dentes eram mais afiados do que os de um humano, e tinha-os em maior quantidade.

— Talvez você seja um ser feérico e não consiga mentir — repliquei. — Portanto devia limitar-se aos factos em vez de testar a minha paciência com «talvez». Como, por exemplo, onde está o Phin?

Ergueu a mão esquerda e gesticulou-me. Faíscas verdes quase impercetíveis estenderam-se entre nós e ficaram suspensas por um momento, até uma delas me ter tocado. Caiu e levou as restantes atrás de si. Cintilaram no chão e depois desapareceram.

— O que é você? — perguntou-me, inclinando a cabeça como um lobo intrigado. — Não é bruxa. Ieu consigo sentir bruxas na meinha cabieça.

— Quieto — disse, tirando a SIG do coldre.

— Está a ameaçar-me com isso? — disse, soltando uma risada.

Disparei contra ele. Três vezes seguidas no coração. Lançou-o para trás mas não para o chão. Lembrei-me, da leitura que fizera do livro de Phin, que nem todos os seres feéricos têm os órgãos exatamente nos mesmos sítios que nós. Talvez devesse ter apontado para a cabeça. Ergui a arma para me certificar de que não falhava o alvo e vi-o afundar-se nas escadas de madeira como um fantasma. Deixou a faca de talhante e o avental para trás.

Mãos de pedra ergueram-se do chão e agarraram-me os tornozelos, puxando os meus pés de debaixo de mim. A minha queda foi demasiado rápida para conseguir reagir.

Acordei deitada no meio da escuridão e com dores em todo o lado, mas especialmente na nuca. Os meus tornozelos também estavam doridos quando os tentei mexer. Pestanejei, mas continuava sem ver nada — o que é muito invulgar em mim.

Senti o cheiro a sangue, como senti algo com arestas debaixo do meu ombro. A velha memória sensorial, resquício das horas de estudo pela noite dentro na faculdade, disse-me que se tratava de uma caneta. Esperei até que alguma memória mais recente surgisse — a última coisa de que me lembrava era a criatura feérica a agarrar-me os tornozelos. Quando mais nada se deu a conhecer, concluí que não havia mais memórias que deveriam regressar. Devia ter ficado desmaiada quando a minha cabeça atingiu o cimento.

Por estranho que possa parecer, ainda estava viva — apesar de ter estado deitada e indefesa diante da criatura feérica.

Estava quase sentada quando ouvi um som que não conseguia situar, um som molhado. Não um gotejar, mas um nhac, nhac, nhac. Rasgão. Nnhac, nhac, nhac.

Alguma coisa estava a comer. Assim que percebi isso, consegui cheirar a morte e todas as coisas indignas que provocava a um corpo. Esperei muito tempo, escutando os sons de algo com dentes afiados a alimentar-se, até me forçar a mexer-me.

Pouca diferença fazia saber quem morrera. Se tivesse sido Sam, não tinha a menor hipótese contra uma coisa capaz de matar um lobisomem depois de eu ter disparado três vezes contra o seu peito — independentemente de o coração dele estar ali ou não, devia tê-lo deixado ferido.

Se não tivesse sido Sam... ou me mataria a mim também, ou ambos sairíamos da cave. Porém, tive de esperar até considerar todas as possibilidades antes de rolar sobre mim mesma e me levantar.

O som não se alterou enquanto caminhava um tanto arrastada, triturando vidro debaixo dos pés até a extremidade do meu sapato tocar a bainha do tapete. Usei o tapete para encontrar a secretária e andei às apalpadelas até conseguir ligar o candeeiro da secretária.

O espaço não ficou muito iluminado, mas consegui perceber que as instalações de iluminação no teto tinham sido desapertadas e estavam penduradas por fios. A maior parte das pilhas de caixotes tinha desaparecido, tendo ficado no seu lugar livros amontoados, cartão rasgado e pedaços de papel. Também havia sangue. Muito sangue.

Algumas das criaturas feéricas têm sangue de cor estranha, mas neste caso a cor era o vermelho-escuro que formava uma poça preta debaixo da luz ténue a cerca de um metro da bainha do tapete onde a morte tinha sido executada. Não tinha ocorrido há muito tempo porque a borda da poça de líquido ainda estava húmida. No entanto, o assassino arrastara o corpo por cima de uma pilha de caixotes com livros e encontrara um local escondido atrás de várias pilhas inclinadas no canto mais afastado da cave, onde a luz fraca que eu segurava não penetrava.

— Sam? — chamei. — Sam?

O som de mastigação parou. Depois, um vulto mais escuro do que as coisas que o rodeavam correu por cima dos caixotes e aninhou-se no topo das pilhas de livros que restavam, bastante curvado para não bater no teto. Por momentos pensei que se tratava da criatura feérica, porque o lobo se encontrava tão ensopado em sangue que estava quase preto. Depois, um par de olhos brancos penetrou a luz do meu candeeiro de secretária e Sam rosnou.

— Então — disse a Sam enquanto regressávamos a Kennewick, — o que é que achas que podemos fazer para ressuscitar o amor pela vida na tua metade humana? Porque não me parece que isto esteja a funcionar. Quase que te passaste de vez, amigo.

Sam gemeu baixinho e colocou a cabeça sobre o meu colo. Tinha-nos limpado a ambos o melhor que consegui na casa de banho de Phin. O seu pelo branco continuava mais cor-de-rosa do que branco, e estava completamente encharcado. Graças a Deus que o Rabbit tinha um sistema de aquecimento poderoso.

— Bem, se tu não sabes — murmurei, — como é que eu hei de descobrir?

Pressionou a cabeça contra a minha coxa.

Sam quase me tinha matado esta noite. Tinha-lhe visto a intenção nos olhos quando levantara os quartos traseiros — e tombara os caixotes onde estava empoleirado, já precariamente inclinados durante a sua batalha com a criatura feérica.

Era o tipo de erro que Samuel jamais teria cometido, e que lhe tinha comprometido o ataque. Aterrara perto de mim, em cima da cadeira de escritório partida. Colocara uma pata no espaço entre o braço e o assento, e durante o esforço para se libertar, lembrara-se de que éramos amigos.

A julgar pela cauda e cabeça baixas, penso que se assustara quase tanto quanto me assustara a mim.

Tínhamos passado muito tempo naquela livraria, portanto o trânsito acalmara um pouco, apesar de continuar bastante intenso.

Tirei a mão direita do volante e passei os dedos pela pelagem atrás das orelhas de Sam. Todo o seu corpo relaxou à medida que eu ia esfregando.

— Havemos de arranjar uma solução — disse-lhe. — Não te preocupes. Eu sou muito mais teimosa do que o Samuel. Vamos para casa para ver se nos secamos. Depois acho que... é altura de telefonar ao Zee...

MERCY!

A voz de Adam na minha cabeça gritou num volume tal que não me consegui mexer. Um ruído estrondoso, embora silencioso, que crescia e crescia até... não restar absolutamente mais nada. O grito deixou-me com uma dor de cabeça que fazia com que a outra que sentira ao acordar na cave de Phin parecesse uma simples picadela.

— Sam — disse urgentemente, de novo com ambas as mãos no volante: por todo o bem que me ia fazer. Por pouco não tinha carregado a fundo no travão, o que teria indubitavelmente causado um enorme choque em cadeia atrás de mim na movimentada autoestrada. Por outro lado, não conseguia continuar a conduzir no estado em que me encontrava. — Sam. Sam, não consigo ver.

Uma boca fechou-se em redor do meu pulso direito, puxando-me a mão para baixo e depois para trás. Logo que me pôs a conduzir em linha reta, carreguei suavemente no travão e fiz o carro parar.

O Rabbit abanava enquanto os carros passavam por nós disparados, mas ninguém apitou, o que significava que provavelmente tínhamos alcançado a berma. Passado um período de tempo indefinível, a dor dissipou-se finalmente e deixou-me trémula e a suar e com a sensação de que um camião me tinha passado por cima.

— Temos de chegar a casa — disse, voltando a ligar o carro. As minhas mãos estavam a tremer quando desengatei o Rabbit e meti pelo caminho mais curto até Finley.

Tinha deixado que Adam lidasse sozinho com o seu bando. Se lhe tivesse acontecido alguma coisa, jamais me perdoaria pela minha cobardia.


8 Fishy Boy, no original. Fishy também significa «suspeito; de caráter duvidoso», pelo que a opção aqui tomada não traduz o jogo semântico do texto original. (N. do T.)


8

Estávamos na Chemical Drive, a autoestrada que seguia para fora da cidade em direção ao campo, quando uma ambulância passou por nós no sentido inverso, com as luzes a piscar mas as sirenes desligadas. Quase dei a volta para a seguir.

Não. É melhor descobrir primeiro o que se passou ao certo. O Sam hoje não é médico, e eu não posso ajudar ninguém melhor do que o hospital para onde estão a levar a vítima. E talvez quem seguisse na ambulância não fosse ninguém que eu conhecesse.

Assim que meti para a minha rua, acelerei a fundo e esqueci os limites de velocidade. À nossa frente, fumo negro subia em vagas de um qualquer sítio. Havia luzes vermelhas intermitentes — carros dos bombeiros à porta da minha casa, que estava bem encaminhada para se transformar numa enorme chama.

Adam teria pensado que eu estava lá dentro. Não lhe tinha dito que ia sair — porque ele teria enviado alguém para me acompanhar, alguém da sua confiança, e eu queria que todos ficassem com ele.

Subitamente, o grito de Adam fazia sentido, mas sentira-me apavorada com o que ele fizera quando a ligação rebentara. A sensação passada podia bem ter sido a de que eu morrera ou perdera a consciência. Devia ter-lhe telefonado em vez de esperar até chegar aqui de carro.

O bando de Adam rodeava a caravana, sem contudo estorvar o trabalho dos bombeiros. O incêndio devia ter deflagrado enquanto decorria a reunião ou logo depois de ter terminado — reprimi firmemente o pensamento de eles lhe poderem ter pegado fogo à revelia. Os meus olhos cruzaram-se com rostos conhecidos — Darryl, Auriele e Paul — e alguns não tão conhecidos — Henry e George. Não conseguia encontrar Adam em parte alguma. O meu estômago espartilhou-se de medo com a sua ausência.

Estacionei na beira da estrada o mais perto que consegui, com os carros dos bombeiros em todo o lado, mas ainda assim bastante longe do incêndio.

Corri na direção do elemento do bando de Adam que se encontrava mais próximo e agarrei-o pelo braço: Auriele.

— Onde é que está o Adam? — perguntei.

As suas íris expandiram-se em choque.

— Mercy? O Adam pensava que estavas ali dentro quando a casa explodiu.

Explodiu? Olhei em volta e de facto parecia que a caravana tinha pura e simplesmente explodido. Pedaços de revestimento, vidro e outros componentes da caravana encontravam-se espalhados a dez metros do entulho flamejante que em tempos fora a minha casa. A caravana tinha aquecimento a gás; talvez tivesse havido uma fuga. Quanto tempo teria de durar a fuga até explodir? Se já estivesse com fuga na altura em que saí de casa, eu teria sentido o cheiro a gás.

Amanhã vou sentir-me mal por ter perdido a minha casa e as coisas que são importantes para mim, como as minhas fotografias... pobre Medea. Deixei-a fechada dentro de casa porque é o que faço todas as noites para que ela esteja em segurança. Não quero pensar no que lhe terá acontecido. Hoje tenho medos mais urgentes.

— Auriele — disse de forma pausada e clara, — onde é que está o Adam?

— Mercy!

Um par de braços agarrou-me com força e puxou-me.

— Oh, meu Deus, oh, meu Deus, Mercy. Ele pensou que tu tinhas morrido. Entrou pela parte lateral da caravana para te encontrar. — A voz de Ben estava enrouquecida pelo fumo e quase irreconhecível. Se não fosse o sotaque britânico, teria duvidado se seria ele.

— Ben? — Libertei-me do seu abraço com alguma dificuldade; e também cuidado, porque as mãos que me agarravam convulsivamente estavam queimadas e com bolhas. Mas eu tinha de conseguir respirar. — Ben, diz-me onde está o Adam.

— No hospital — disse Darryl, encaminhando-se para nós em passo rápido depois de abandonar um pequeno núcleo de bombeiros com quem estivera a falar. Darryl era o companheiro de Auriele e o número dois de Adam. — A Mary Jo acompanhou-o por causa do emprego dela. — Mary Jo era uma mulher-loba que trabalhava como bombeira e técnica de emergência médica. — Eu levo-te.

Já estava a correr de volta para o Rabbit. Sam conseguiu passar por mim enquanto entrava, e quando a porta do passageiro foi aberta, pulou para o banco traseiro de modo a que Ben se pudesse sentar.

— O Warren está a caminho — disse Ben. Os seus dentes batiam em resultado do choque, e os seus olhos tinham uma cintilação lupina. — Ele estava a trabalhar, não ia conseguir sair a tempo de vir à reunião. Mas eu telefonei-lhe e disse-lhe que o Adam estava no hospital.

— Ainda bem — repliquei, arrancando numa tempestade de gravilha. — Porque é que não te levaram também para o hospital?

Longe do incêndio, o odor a pele queimada e a sua dor eram por demais evidentes. O motor do pequeno carro roncou quando puxei por ele ao máximo na autoestrada. Ben fechou os olhos e, abraçando-se, reclinou-se.

— Eu ainda estava dentro de casa — disse. Tossiu, abriu a janela e pôs a cabeça de fora, sufocado e com uma tosse seca. Passei-lhe uma garrafa de água meio vazia e ele bochechou e cuspiu.

Fechou a janela e bebeu um gole.

— O Adam dirigiu-se para o teu quarto, e eu para o do Samuel. — A sua voz soava ainda mais rouca do que anteriormente.

— Quão mal estás?

— Vou ficar bem. A inalação de fumo é uma merda.

Irrompemos os três pelas Urgências dentro. Mesmo para um sítio acostumado a coisas estranhas, devemos ter dado um belo espetáculo. Relanceei os olhos a Sam. Tinha rebolado no chão quando eu não estava a olhar, tapando com terra as manchas de sangue que restavam na sua pelagem. Todos nós estamos com mau aspeto, mas pelo menos não achava que eu e Sam tínhamos ar de quem andara a matar seres feéricos. Claro que também não tínhamos ar de quem estivera a combater um incêndio, como Ben. Se alguém fizesse perguntas, haveria de me surgir uma história qualquer.

Tinha-me esquecido de que havia algo mais chocante em nós do que a sujidade, as queimaduras, e manchas de sangue velhas.

— Ei, não podem entrar aqui com um cão! — A enfermeira encarregue da triagem deu três passos velozes na nossa direção e olhou-me nos olhos... e parou imediatamente. — Sra. Thompson? Isso é um lobisomem?

— Onde é que está o Adam Hauptman?

Um rugido vindo das Urgências disse-me tudo aquilo que eu precisava de saber.

— Quem teve a ideia brilhante de o trazer para aqui? — murmurei, correndo em direção à porta dupla que separava a sala de espera das Urgências, com Ben e Sam a flanquear-me.

— Não fui eu — retorquiu Ben num tom um pouco mais animado. Penso que também ele estava preocupado com o que iríamos encontrar. — Estou livre de culpas. Estava na caravana a ser tostado quando o enviaram para aqui.

No espaço entre as salas de pacientes e o balcão central, encontrava-se um lobisomem cinzento cujo pelo escurecia em redor do focinho. A sua transformação era tão recente que ainda conseguia ver os músculos das costas a reajustar-se.

Tinha largas falhas de pelo em zonas onde a pele estava escurecida e ganhara bolhas. As quatro patas estavam hediondamente queimadas, sendo a pele chamuscada uma horrível imitação da pelagem negra que normalmente as cobria. A cortina da sala caía-lhe sobre a cauda.

Parei imediatamente a seguir à porta dupla, avaliando a situação.

Jody, a enfermeira com quem falara na noite do acidente de Samuel, estava muito quieta — e alguém lhe dera instruções sobre como se comportar entre lobisomens, porque os seus olhos estavam fixos no chão. Mas mesmo do local onde eu me encontrava, conseguia cheirar-lhe o medo, um odor que desperta o apetite a qualquer lobisomem. Mary Jo aninhou-se em frente a Adam, uma mão no chão, a cabeça inclinada em gesto de submissão — e o seu robusto corpo atlético, de aparência tão frágil ao lado do lobisomem, servia de fronteira entre as pessoas presentes e o seu Alfa.

Olhei para baixo na direção de Sam, mas aparentemente tinha-se alimentado o suficiente da criatura feérica morta para não se concentrar em mais nada que não Adam, embora permanecesse ao meu lado. Ben esperava no meu outro lado, muito quieto, como se se esforçasse imenso por não atrair a atenção de Adam.

Se as circunstâncias fossem outras, não me sentiria tão preocupada. Os lobisomens tendem a perder as suas metades humanas quando estão gravemente feridos, mas podem voltar a si se chamados pela parceira ou por um lobo mais dominante. Samuel era mais dominante do que Adam, e eu era a parceira de Adam. Um de nós haveria de conseguir trazê-lo de volta.

Infelizmente, Samuel não era ele próprio esta noite e Adam dera cabo do nosso vínculo de parceiros durante o pânico que sentira ao pensar que eu estava presa no interior da caravana. Não sabia o que isso significava em termos do modo como iria reagir a mim. Baixou a cabeça e deu um passo em frente, e o meu tempo para vacilar esgotou-se.

— Adam — disse-lhe.

Todo o seu corpo congelou.

— Adam? — Afastei-me de Ben e Sam. — Adam, está tudo bem. Estes são os bons da fita. Estão a tentar ajudar. Tu estás ferido.

Sou rápida, e tenho bons reflexos, e nem sequer o vi mexer-se. Empurrou-me contra a moldura da porta, erguendo-se sobre as pobres patas traseiras queimadas até o seu focinho e a minha cara ficarem à mesma altura. O odor a fumo e coisas queimadas envolveu-nos no momento em que o seu hálito quente tocou as minhas bochechas. Inalou, e todo o seu corpo começou a tremer.

Ele pensava mesmo que eu tinha morrido.

— Eu estou bem — murmurei enquanto fechava os olhos e levantava o queixo para exibir o pescoço. — Não estava na caravana quando ela explodiu.

O nariz dele percorreu o trajeto do meu maxilar até à minha clavícula e depois tossiu de forma baixa e estrangulada, emitindo um som que parecia não ter fim. Quando finalmente acabou, pousou a cabeça no meu ombro e começou a transformar-se.

Seria mais seguro para toda a gente se ele estivesse na forma humana, o que terá provavelmente sido a razão pela qual ele o fez. No entanto, tinha-se ferido gravemente há muito pouco tempo — e instantes antes passara pela transformação de humano para lobo. Tentar fazer a transformação inversa num espaço de minutos era brutalmente difícil. O facto de ainda assim o ter tentado tornou claro para mim que estava em muito mau estado.

Jamais teria iniciado uma transformação enquanto me tocava se estivesse plenamente consciente. A transformação, por si só, é suficientemente agonizante; o contacto com outra pele torna-a ainda pior. Se se acrescentar a isso a sua posição estranha e a dor que já sentia por causa das queimaduras, sabe-se lá o que poderia acontecer. Deslizei parede abaixo lentamente, trazendo-o comigo enquanto a sua pele esticava e os ossos mexiam. Ver um lobo transformar-se não é uma coisa bonita.

Coloquei as palmas no chão de modo a não ceder à tentação de lhe tocar. Por muito que a minha cabeça soubesse que mais contacto entre peles era a última coisa de que ele precisava, o meu corpo estava curiosamente convencido de que eu podia aliviar a agonia da transformação.

Olhei para cima na direção de Ben e com o queixo indiquei a enfermeira... e o médico que puxara a cortina para se juntar à agitação. Ben lançou-me um olhar como que a dizer «porquê eu?» Em resposta, relanceei os olhos a Adam — obviamente incapacitado — e depois a Sam, que era um lobo.

Ben olhou para o céu, invocando a piedade de Deus, presumi. Começou a caminhar penosamente, mãos a baloiçar à frente do corpo, para solucionar os problemas que era capaz de solucionar. Olhei para Mary Jo e interrompi um olhar dirigido a mim... e que olhar. Assim que se apercebeu de que estava a olhar para ela, a sua expressão desanuviou-se. Não consegui interpretar a emoção que vira, apenas percebi que era muito forte.

— Alguém está ferido? — perguntou Ben. Quando ultrapassa as fronteiras da sua habitual personalidade desagradável, as pessoas tendem a ver em Ben uma pessoa tranquilizadora. Eu acho que tem a ver com o seu fantástico sotaque britânico e a sua aparência serena. E mesmo com as queimaduras e a roupa chamuscada, parecia mais civilizado do que qualquer um dos presentes.

— Não — disse o médico, em cujo crachá se lia REX FOURNIER. Parecia ter quarenta e muitos. — Apanhei-o de surpresa quando abri as cortinas. — E depois, com um sentido de justiça raramente visto em pessoas apavoradas, disse: — Ele teve todo o cuidado para não magoar ninguém, apenas me fez tombar. Se não tivesse tropeçado no banco, teria permanecido de pé.

— Ele estava inconsciente quando saí — disse Mary Jo a Ben, meio apologeticamente. — Fui ver se encontrava alguém que o pudesse ajudar... Já estávamos aqui há algum tempo. Não me dei conta de ter estado afastada o tempo suficiente para ele se transformar.

— Não estiveste tanto tempo — disse-lhe. — Eu vi a ambulância passar por nós. É impossível estares aqui há mais de meia hora, e ele demora cerca de metade desse tempo a transformar-se. Afinal quem é que teve a brilhante ideia de trazer o Adam para o hospital no estado em que ele está?

Fora Mary Jo quem tivera a ideia. Percebi isso na sua expressão.

— A única coisa de que precisava era que lhe arrancassem a carne morta — disse ela.

Uma intervenção muito, mas mesmo muito, dolorosa — e nenhum analgésico tem um efeito duradouro nos lobisomens. A ideia tinha sido tão má que todos nós cravámos os olhos nela; todos nós os que sabíamos, pelo menos — Ben, Sam e eu. Adam estava preocupado com a sua transformação.

— Não tinha noção de que ele estava tão mal — defendeu-se. — Pensava que eram só as mãos. Só lhe vi os pés quando já estávamos na ambulância a caminho daqui. Se tivessem sido só as mãos, não teria havido problema.

Talvez. Provavelmente.

— Pensava que tu e o Samuel estavam mortos — disse ela. — E, em virtude disso, o problema passou a ser meu, como responsável pelas questões médicas do bando que sou. E como responsável médica e como leal seguidora do meu Alfa, entendi que o hospital era a solução mais segura.

Tinha acabado de mentir.

Não em relação à questão de Adam estar mais seguro no hospital do que em casa. Considerando as recentes perturbações, provavelmente tinha razão ao entender que um Adam gravemente ferido não estaria seguro junto do seu bando. Despedaçá-lo-iam e pediriam desculpa, e talvez se viessem inclusive a sentir mal depois. Mas aquela primeira afirmação...

Talvez ela pensasse que nós estávamos demasiado exaustos para reparar — e por vezes Ben não estava tão alerta para sinais subtis como alguns dos outros lobos. Mas se calhar Mary Jo não fazia ideia de que eu conseguia perceber tão bem como os outros lobos quando ela estava a mentir.

— Tu sabias que nós não estávamos na casa — disse lentamente. E depois abateu-se a luz sobre o que isso significava. — O Adam mandou-te vigiar-me enquanto ele se encontrava com os outros? Viste-nos partir?

Era isso que tinha acontecido. Estava escrito na sua cara — e não se deu ao trabalho de o negar. Talvez conseguisse mentir aos humanos neste espaço, mas não a nós.

— Porque é que não disseste ao Adam? — perguntou Ben. — Porque é que não o impediste antes de ele se dirigir para o fogo?

— Responde-lhe — disse eu.

Olhou-me diretamente nos olhos durante uma longa contagem até três, baixando-os por fim.

— Eu devia ter-te seguido quando partiste. Garantir que não te magoavas. Mas a verdade é que eu acho que toda a gente estaria melhor se um dos vampiros te tivesse matado.

— Portanto optaste por desafiar as ordens do Adam porque não estavas de acordo com ele — disse Ben. — Ele escolheu-te para olhares pela Mercy porque confiava em ti para tratares disso enquanto ele lidava com o bando... e tu traíste essa confiança.

Sentia-me grata por Ben continuar a falar.

Mary Jo era uma das pessoas do bando de Adam que julgara ser minha amiga. Não porque uma dívida que os seres feéricos tinham para comigo tivesse evitado a sua morte pouco tempo antes... Suspeitei que se tivesse tratado de uma bênção potencialmente negativa, à semelhança da maior parte das dádivas feéricas. Mas porque tínhamos passado muitas horas juntas em virtude de Adam a usar frequentemente como minha vigilante quando entendia que eu precisava de uma.

Mary Jo queria-me morta. Era isso que aquele olhar significava.

O choque foi tão grande que era bem possível que não tivesse ouvido a sua resposta a Ben caso não tivesse soado tão defensiva.

— Não foi isso que aconteceu. Ela estava em segurança; tinha partido com o Samuel. Nada do que eu pudesse fazer a iria proteger melhor do que o Samuel.

— Então porque é que não impediste os incendiários?

Incendiários? Tinha havido incendiários?

— Não recebi ordens para proteger a casa dela. Ela não estava lá dentro.

Ben sorriu com uma satisfação tal que percebi que também ele não sabia da existência de incendiários.

— Quem eram eles, Mary Jo?

— Seres feéricos — respondeu. — Ninguém que eu conhecesse. Apenas mais problemas que ela está a trazer para o território do meu bando. Se eles queriam pegar fogo à casa da Mercy, o que é que eu tinha a ver com isso? — Olhou para mim e, num tom cruel, acrescentou: — Quem me dera que a tivessem incendiado contigo lá dentro.

— Ben!

Como conseguiu deter a mão antes que esta lhe atingisse a cara, não sei. Mas foi o que aconteceu. Se ele a tivesse atingido, Mary Jo teria dado cabo dele. Podia estar nominalmente abaixo dele na hierarquia do bando, mas isso apenas se devia ao facto de as mulheres sem parceiro pertencerem ao nível hierárquico mais baixo do bando.

Ela queria lutar com ele. Conseguia perceber-lhe isso na expressão facial.

Com a quase totalidade do corpo de Adam no meu colo, não me conseguia mexer.

— Basta — disse em voz baixa.

Ben estava ofegante, com as mãos a tremer de raiva... ou dor. As suas mãos estavam mesmo maltratadas.

— Ele podia ter morrido — disse-me Ben numa voz rude. — Ele podia ter morrido porque esta... — Deteve-se.

E a violência eclipsou-se da postura de Mary Jo num ápice, como se alguém tivesse carregado num interruptor. Os seus olhos iluminaram-se de lágrimas.

— Achas que eu não sei isso? Ele saiu de casa a correr, gritando o nome dela. Tentei dizer-lhe que era tarde de mais, mas ele simplesmente desfez a parede e entrou pelo buraco que tinha feito. Nem sequer me ouviu.

— Ele ter-te-ia ouvido se lhe tivesses dito que ela não estava lá dentro — disse Ben, indiferente às lágrimas dela. — Eu estava mesmo atrás dele. Tu nem sequer tentaste. Podias ter-lhe simplesmente dito que ela estava viva.

— Basta — intervim. A transformação de Adam estava quase consumada. — O próprio Adam pode resolver isto mais tarde.

Olhei para Sam.

— Quando há tecido danificado, passar por duas transformações é mau, não é? Não sara direito. — A orelha humana que conseguia ver estava cheia de marcas, e a metade superior da cabeça de Adam, das sobrancelhas para cima, também parecia estar. Possivelmente teria uma toalha molhada ou algo parecido por cima da cabeça para lhe tapar a cara, mas caíra a dada altura deixando-lhe o couro cabeludo a descoberto.

Sam suspirou.

O médico escutara, fascinado, a história de Mary Jo — aposto que via telenovelas.

— Lamento — disse-me, parecendo sincero. — A menos que haja uma forma eficaz de o dominar, não posso tratar dele aqui. Não vou colocar o meu pessoal em risco.

— Nesse caso, pode dispensar-nos uma sala? — perguntei.

O tempo não estava do nosso lado. Podíamos levá-lo de volta para a sua casa e cuidar dele... mas a partir do momento em que Mary Jo me lembrara do perigo que ele correria ferido, no meio do bando, não tinha a menor vontade de o levar de volta.

O olhar de Sam e o meu cruzaram-se e ele atentou na sala com cortinas a partir da qual Adam viera ao meu encontro.

Olhei novamente para o médico.

— Uma sala fechada seria melhor. Podemos usar a sala de armazenamento de raios X?

O médico franziu o sobrolho, mas Jody veio em meu socorro.

— Esta é a Mercy amiga do Dr. Cornick — disse. — É a companheira do Adam Hauptman, o Alfa do bando.

— Que está deitado no meu colo — informei-os. — Se o ferido fosse alguém que não o Adam, podíamos garantir que o seu pessoal estaria em segurança... Mas o Adam seria o único capaz de assegurar que esse alguém estaria sob controlo. Tem razão em não querer colocar o seu pessoal em risco. Mas eu estou acompanhada de lobos, a Mary Jo é uma técnica de emergência médica, e conseguimos resolver a situação sozinhos. Se não fosse urgente começarmos a tratar dele, simplesmente levava-o para casa. Mas se não fizermos alguma coisa depressa, as marcas vão ser permanentes.

Os seus pés eram a parte do corpo em pior estado. Estava completamente transformado em humano e... conseguia ver osso por baixo da pele enegrecida. Estava inconsciente, a suar, e muito mais pálido do que o habitual.

— De que é que vocês precisam? — perguntou Fournier.

— De uma maca — respondeu Mary Jo. Olhou para Sam, à espera que ele assumisse o controlo das operações. Depois apercebeu-se de que neste local não podia revelar aos outros que era um lobisomem. Não me parece que ela se tivesse dado conta da real extensão do problema de Samuel. Virou-se então para o médico e começou a falar em jargão.

Foi trazida uma maca e Ben levantou Adam do meu colo, colocando-o sobre ela. Entretanto, apareceu pessoal do hospital, que começou a retirar as caixas da sala de armazenamento de raios X — com muito pouco respeito pela organização existente. Alguém ia ficar chateado por causa daquilo. O Dr. Fournier recebeu uma mensagem no pager para se dirigir ao terceiro piso e partiu com a mesma eficiência lesta com que parecia lidar com tudo — incluindo lobisomens nas suas Urgências.

Depois de tudo retirado, havia espaço, ainda que à justa, para todos nós, para a maca e para a bandeja com instrumentos cirúrgicos que Jody trouxera.

— O Fournier não é tão bom como o Dr. Cornick quando as coisas correm mal. — Jody dirigiu-me um olhar incisivo enquanto Mary Jo e Ben manobravam a maca de modo a colocar Adam no centro da salinha, e perguntei-me se estaria a pensar sobre a quantidade de lobos que eu aparentemente conhecia e a associar isso ao facto de eu ser companheira de casa de Samuel. Se era esse o caso, não parecia histérica perante a presença de todos aqueles lobisomens, portanto talvez viesse a manter em segredo as suas suspeitas.

— O Fournier não se magoou — disse-lhe. — Não piorou as coisas. Isso para mim já é muito bom.

— Precisam de ajuda? — perguntou corajosamente.

Sorri-lhe.

— Não. Creio que a Mary Jo é capaz de dar conta do recado. — Preferia que fossem Jody e o médico a tratar dele, mas Adam não ficaria muito agradecido se colocasse humanos em risco. Tal como Jody, na verdade preferia que fosse Samuel... que acabara de desaparecer da minha beira.

— Não é um ambiente esterilizado, mas parece que isso não é importante.

— Não — disse a Jody distraidamente. Onde é que se tinha metido Sam? — Os lobisomens lidam melhor com os germes do que as pessoas. Parece que eles estão preparados para começar.

Fechei a porta, respirei fundo e voltei-me para Mary Jo.

— Sabes o que fazer? Tenho de ir à procura do Sam.

— Estou aqui. — Samuel estava nu como veio ao mundo, e a suar abundantemente por causa da rapidez da transformação. A sua pele estava imunda, com terra e sangue feérico, situação que estava a remediar com um balde de água e uma toalha que deviam estar entre as coisas que Mary Jo tinha solicitado. Os olhos estavam cinzentos, um ou dois tons mais claros do que o habitual, mas os restantes lobisomens por certo atribuiriam isso à transformação. — Eu trato disso.

— Samuel — disse eu.

Mas ele desviou o olhar e pegou em algo que se parecia com uma escova de esfrega, com pelos duros.

— Preciso que me segurem nele. Ben, deita-te em cima das ancas dele. Mary Jo, depois digo-te onde vou precisar de ti. As mãos vão ser a pior parte, por isso vamos começar por aí.

— Então e eu? — perguntei.

— Fala com ele. Não pares de lhe dizer que esta tortura é para o ajudarmos. Se ele te ouvir e acreditar em ti, não nos vai oferecer tanta resistência. Vou administrar-lhe alguma morfina. Não vai servir de muito nem vai durar muito tempo, por isso precisamos de agir depressa.

Portanto, enquanto Samuel lhe arrancava a pele morta e crostas quase formadas com uma escova de pelo duro, eu falava ininterruptamente. As queimaduras haviam matado tecido que tinha de ser removido. Assim que tivesse sido extraído, os ferimentos sarariam por completo e sem deixar cicatrizes.

Adam tinha ataques de tosse frequentes. Quando aconteciam, toda a gente se afastava e o deixava tossir até cuspir sangue com pedaços grandes de matéria negra misturada. Ben também tinha alguns desses ataques, mas aguentava até ao fim mantendo o seu peso sobre Adam.

De vez em quando, Sam parava e administrava mais uma dose de morfina a Adam. O pior de tudo era que Adam nunca emitia um único ruído ou se debatia para se libertar daqueles que o seguravam. Limitava-se a manter os seus olhos nos meus enquanto suava e o seu corpo se agitava com pequenos tremores que se intensificavam e abrandavam sempre que Samuel fazia alguma coisa.

— Pensava que tinhas morrido — disse-me, a sua voz não mais do que um fio áspero, enquanto Samuel passava das mãos para os pés. Parecia doer-lhe menos: presumo que não lhe restassem muitos nervos nessa zona. Saltara descalço para o interior de uma casa em chamas para me salvar.

— Estúpido — repliquei, pestanejando com força. — Como se eu fosse morrer sem te levar comigo.

Sorriu tenuemente.

— Foi a Mary Jo que nos traiu quando estávamos no bowling? — perguntou, provando que não estivera completamente inconsciente do que se passava à sua volta enquanto se transformava.

Ambos ignorámos o som angustiado que Mary Jo produziu.

— Depois pergunto-lhe.

Assentiu com a cabeça.

— É melhor... — Parou de falar e as suas pupilas contraíram-se, apesar da morfina que lhe tinha sido administrada.

Soergueu-se e virou-se de modo a poder pressionar o seu rosto contra a minha barriga, soltando um ruído que estaria no intervalo entre um grito e um rugido. Mantive-o nessa posição enquanto Samuel rosnava a Ben e Mary Jo para que o segurassem.

Mais uma injeção de morfina e Samuel mudou-nos a todos de lugar. Ben passou para cima das pernas de Adam...

— E não penses que eu não reparei nas tuas mãos, Ben. A seguir és tu.

... e Mary Jo passou para um dos braços, mesmo acima do cotovelo. Quanto a mim, fui incumbida de segurar o outro braço.

— Conseguem segurá-lo? — perguntou Samuel.

— Só se ele me deixar — respondi-lhe.

— Não há problema — disse Adam. — Não a vou magoar.

Samuel sorriu.

— Pois, não me parece que fosses capaz de o fazer.

Quando Samuel começou a esfregar a cara de Adam com a escova, tive de fechar os olhos.

— Chiu — reconfortou-me Adam. — Daqui a nada já acabou.

Warren chegou não muito depois disso. Demasiado tarde para nos ajudar a tratar de Adam, mas ele e Mary Jo agarraram Ben enquanto Samuel lhe retirava a pele negra e as bolhas das mãos. Não tinha passado por duas transformações e iniciado uma cura de forma errada, mas ainda assim foi suficientemente mau.

Adam tinha fechado os olhos e estava a descansar com as minhas mãos em redor do seu braço, um dos sítios onde não tinha perdido qualquer pele. O vínculo entre nós ainda não tinha sido restabelecido, e tive de me socorrer dos meus sentidos para perceber o que estaria ele a sentir. Considerando o quanto me sentira infeliz com aquele vínculo, fiquei surpreendida pelo facto de ter sentido falta dele quando desapareceu. A minha audição dizia-me que ele não estava a dormir profundamente, apenas a tirar uma soneca.

Ben não foi tão silencioso quanto Adam, mas estava obviamente a esforçar-se ao máximo por conter os seus gritos. Finalmente, enterrou os dentes no bíceps de Warren e trincou-o.

— Dá-lhe, rapaz — pronunciou Warren de modo lento e arrastado, sem pestanejar. — Mastiga se te ajudar. É demasiado longe do coração para me fazer grande mal. Mas, porra, como eu detesto incêndios. Armas de fogo, facas, presas e garras são tramadas... mas incêndios são do pior.

As mãos de Adam pareciam hambúrgueres crus, mas pelo menos não pareciam hambúrgueres estorricados — e uma delas foi estendida e fechou-se sobre os meus dedos. Tentei largá-lo, mas abriu os olhos e agarrou-se a mim.

— Pronto, já acabei — informou Samuel, após o que se afastou de Ben. — Sentem-no no banco e deixem-no sozinho durante algum tempo.

— Trouxe uma mala térmica com rosbife — disse Warren. — Está lá fora na carrinha, por isso podemos dar-lhe de comer.

Samuel levantou a cabeça abruptamente.

— O teu Alfa está em sarilhos e tu foste às compras?

Warren sorriu com os olhos frios enquanto do braço onde Ben cravara os dentes gotejava sangue para o chão.

— Não.

Samuel fixou-se nele — e Warren cravou os olhos na parede atrás de Samuel sem recuar um milímetro que fosse. Podia gostar de Samuel, mas este não era o seu Alfa. Não ia conceder ao lobo solitário o direito de questionar as suas ações.

Suspirei.

— Warren, porque é que andas com uma mala térmica cheia de carne?

O vaqueiro virou-se para mim e dirigiu-me um amplo sorriso.

— Uma brincadeira do Kyle. Nem perguntes. — As suas bochechas ficaram ligeiramente coradas. — O congelador e o frigorífico da casa do Kyle já estão cheios. Guardámos a carne na mala térmica e pusemo-la na garagem para depois a levar para o meu apartamento, onde tenho um congelador vazio, mas ainda não a tinha levado. — Olhou para Samuel. — Estás um bocadinho irritadiço, não?

— Está à espera que a Mercy comece a ralhar com ele — disse Adam. Fê-lo numa voz débil, mas todos nós temos muito boa audição. — E a Mercy está a ponderar se deve fazê-lo à nossa frente ou não.

— Porque é que a Mercy está chateada contigo? — perguntou Warren. Quando se tornou óbvio que Samuel não ia responder, Warren olhou para mim.

Eu estava a observar Samuel.

— Não posso mais — disse ele finalmente. — É melhor ir-me embora agora, antes que magoe alguém.

Sentia-me demasiado cansada para aturar os disparates dele.

— O tanas é que não podes. «Não entres tão depressa nessa noite escura», Samuel. «Ira, ira de encontro ao fenecer da alvura». — Ele tinha-me ajudado a memorizar esse poema quando andava na escola secundária. Eu sabia que ele se ia lembrar.

— «A vida é uma simples sombra que passa», Mercy. — Respondeu à minha citação de Dylan Thomas com Shakespeare, dito com uma frialdade abatida que qualquer ator de teatro invejaria. — «É uma história contada por um idiota, cheia de ruídos e de furor e que não significa... nada». — Pronunciou a última palavra com amargura.

Sentia-me tão furiosa que estava capaz de lhe bater. Em vez disso, bati com as palmas das mãos num gesto de aclamação fingida.

— Muito comovente — disse. — E estúpido. Macbeth matou o seu suserano e seguiu a sua ambição, trazendo miséria e morte a todos os envolvidos. A tua vida tem mais valor, acho, do que a dele. Tem mais valor para mim... e para todos os pacientes que se cruzam no teu caminho. Esta noite, foram o Adam e o Ben.

— Podes incluir-me também — interveio Warren. Podia não estar a par da causa da nossa conversa, mas qualquer lobo teria percebido a essência daquilo que estávamos a falar. — Se não estivesses presente quando o demónio me apanhou há não muito tempo, eu estaria morto.

A reação de Samuel não foi a que eu esperava. Virou subitamente a cabeça e rosnou a Warren.

— Não sou responsável por ti.

— És, sim — disse Adam, abrindo os olhos.

— Isso irrita-te? — sugeriu Warren num tom suave. Encolheu os ombros. — As pessoas morrem. Eu sei isso; tu sabes isso. Até os lobos como nós morrem. Quando estás por perto, menos pessoas morrem. Esses são os factos. Ficar chateado por causa deles não os torna falsos.

Samuel apressou-se a afastar-se de todos nós. No entanto, não havia muito espaço para fugir e ele parou com a cabeça voltada para o chão.

— Tinha esperança de que isto fosse mais fácil, Mercy. Mas esqueci-me que contigo as coisas nunca são fáceis. — Virou-se e olhou-me nos olhos. Quando voltou a falar, fê-lo naquele suave tom paternalista do qual eu julgava tê-lo curado há muito tempo. — Tu não me podes salvar, Mercy. Não quando eu não quero ser salvo.

— Samuel — disse Adam num tom vigoroso, muito mais forte do que a sua condição permitia. Ergueu-se sobre os cotovelos e fitou o outro lobo.

Samuel olhou Adam diretamente nos olhos... e vi choque no seu rosto, apenas por um instante, antes de ele se ter começado a transformar em lobo. Era um golpe baixo, algo que os Alfas — os Alfas fortes — tinham a capacidade de fazer, forçando a transformação noutro lobisomem. Suspeitei que se Adam não tivesse apanhado Samuel de surpresa, jamais teria funcionado. Adam manteve-se de olhos fixos nos de Samuel enquanto esperava com uma respiração moderada. Quinze minutos é muito tempo para se permanecer imóvel. E no final, Samuel tinha desaparecido, deixando o lobo de olhos brancos no seu lugar. O lobo sorriu a Adam.

— Talvez não te consiga salvar, velho rapaz — disse Adam, voltando a deitar-se sobre as costas e fechando os olhos. — Mas consigo ganhar algum tempo para te dar um pontapé no rabo suficientemente forte para deixares de pensar no «amanhã e amanhã» e começares a pensar no quanto te dói o rabo.

— Às vezes — disse Warren, — é muito fácil perceber que o chefe esteve no exército.

— Onde os pontapés no rabo eram uma parte essencial do serviço, tanto para quem dava como para quem recebia — concordou Adam sem abrir os olhos.

Mary Jo estava de olhos cavados em Sam.

— O lobo dele é que controla — disse, horrorizada.

— Já há uns dias — concordou Adam. — Ainda não há corpos a registar.

Ele não sabia da criatura feérica na livraria... mas não tinha a certeza se as criaturas feéricas contavam. Tinha sido um assassínio defensivo e não uma matança descontrolada, apesar de Sam quase me ter comido como sobremesa no final.

Sam olhou-me pensativamente e percebi que ele parecia... diferente, mais expressivo do que quando estivéramos na livraria de Phin — exatamente como estava habituada a ver o lobo de Samuel. Algum tempo antes, tinha pensado que ele se estava a tornar mais agressivo, mas consegui notar que também se vinha tornando... menos Samuel, menos ainda Sam. Era possível que o nosso pequeno desastre nos tivesse feito ganhar um pouco mais de tempo.

— Presumo que o Marrok não saiba o que se passa com o Samuel? — Warren interrompeu o silêncio num estilo à vaqueiro, muito relaxado, o que normalmente era um sinal de que não estava.

— Mais ou menos — respondi. — Disse-lhe que ainda não era a altura certa para ele saber, e acreditou em mim. Mas com a condição de eu falar com o Charles. De acordo com o Charles, a boa notícia é que se o lobo do Samuel fosse mais independente dele, teria começado logo a causar o caos. A má notícia é que se não livramos o Samuel do pavor em que está mergulhado dentro de pouco tempo, também o lobo dele vai esmorecer. — Tal como vinha acontecendo. — E acabamos na mesma com um Samuel morto, mas só depois de um bónus de muitos outros cadáveres.

— Um funeral viking comum — comentou Warren.

Mary Jo dirigiu-lhe um olhar severo, que ele retribuiu.

— Eu sei ler, desde que haja muitas imagens boas — disse ele, falando ainda mais devagar do que o habitual e com a pronúncia do Texas ainda mais acentuada.

— Essa frase é minha — disse a Warren. — Fico magoada por ma roubares.

Ben riu-se. Mas depois perguntou:

— Qual é a diferença entre esmorecer e ter o lobo a controlar?

Os lobos são criaturas sem papas na língua, sobretudo impacientes em relação à suavização da linguagem que o resto do mundo entende como educação.

— Deduzo que o Sam vá perder os miolos e ficar só com as presas e será apenas uma questão de tempo até cair morto — disse-lhes. — Provavelmente haverá menos danos do que o que normalmente acontece quando o lobo está a assumir o controlo. Especialmente considerando que o lobo só para quando alguém o parar. Mas não será bom.

— Será mais fácil de matar se acontecer assim — disse Warren, reconhecendo as vantagens. Samuel era velho, poderoso e inteligente: se o seu lobo tivesse metade da inteligência dele, seriam necessários Bran e Charles para o apanhar. Desta forma, qualquer um de nós com uma arma carregada com balas de prata conseguiria fazê-lo.

Sam não parecia incomodado com a conversa. Semicerrou os olhos e estalou os dentes a Warren com uma ferocidade fingida. Tinha as orelhas levantadas, mostrando que estava apenas a brincar.

Magoaram o meu coração com a sua cruel aceitação da realidade.

— Arrumem as tralhas, meninos — disse Adam, ainda com os olhos fechados. — Está na altura de acabar com a festa e ir para casa.

Casa.

Lancei um olhar preocupado a Warren. Adam estaria de pé e funcional dali a um ou dois dias — graças aos fantásticos superpoderes que os lobisomens tinham de se curar. Mas no bando ainda reinava a desordem.

— Ok, chefe. — Warren acenou-me com a cabeça e continuou a falar com Adam. — Acho é que vou ficar contigo durante algum tempo, se não te importares. O Darryl também vai lá estar.

Colocámos Adam no banco traseiro da carrinha de Warren, deitado sobre um espesso colchão de campismo e por baixo de um saco-cama. Os lobisomens são quase imunes ao frio — especialmente ao tipo de frio que se fazia sentir em Tri-Cidades durante a maioria dos invernos. No entanto, não queríamos correr nenhum risco com ele. Aceitou o nosso excesso de zelo com uma espécie de divertimento principesco que era ao mesmo tempo apreciativo, embora não tivesse pronunciado uma única palavra.

— Acampar? — murmurei a Warren depois de termos instalado Adam. — Conseguiste levar o Kyle a acampar? — Kyle apreciava muito o conforto da civilização. Não conseguia imaginá-lo a passar um fim de semana na floresta voluntariamente.

— Ná — murmurou entre dentes. — Pelo menos não para ficar de um dia para o outro. Mas tenho a esperança de que isso venha a acontecer na próxima primavera.

— Mas tu tinhas sacos-cama e colchões de campismo na carrinha. — Não consegui conter o sorriso que me surgiu no rosto. — Isto tem alguma coisa a ver com a mala térmica cheia de carne?

Desviou a cabeça, mas estava a sorrir.

— Não me perguntes o que não queres saber, Mercy.

Mary Jo seguiu ao lado de Adam no banco traseiro da carrinha enquanto eu segui no meu carro, com Ben ao meu lado e Sam atrás. Ben tinha-se oferecido para conduzir o Rabbit de modo a eu poder acompanhar Adam, mas as suas mãos estavam em carne viva e sentia dor. Mary Jo não ia fazer nada para magoar Adam; o ódio ou o ressentimento que sentia por mim não interferia no seu desejo de o manter em segurança.

Mal comecei a conduzir, Ben disse:

— Precisas de descobrir quem era o segundo homem que estava a vigiar.

— O quê?

— O outro lobo que o Adam enviou juntamente com a Mary Jo. Ela não quer dizer, e é hierarquicamente superior a mim, por isso não lhe posso perguntar. Se o Warren perguntasse... Ela é um dos que acha que ele não devia pertencer ao bando.

— O quê? — Julgava que os elementos homofóbicos do bando eram todos homens.

Ben acenou com a cabeça.

— Ela é mais discreta do que a maior parte dos lobos em relação a esse assunto, mas também é a mais teimosa. Se o Warren lhe desse uma ordem a que ela não quisesse obedecer, como uma que a obrigasse a delatar alguém de quem gostasse, o mais provável é que o desafiasse. Ele teria de a magoar e isso magoá-lo-ia mais porque ele gosta dela... e não faz a menor ideia de que ela se inclui no grupo das pessoas estúpidas.

Sempre pensara que Ben também se incluía no grupo das pessoas estúpidas. Acho que devo ter deixado transparecer isso, porque ele riu-se.

— Era uma pessoa amarga quando cheguei aqui. Washington Oriental é uma grande regressão em relação a Londres. — Não disse nada durante algum tempo, mas na altura em que meti para a autoestrada, continuou a falar numa voz suave: — O Warren é um tipo porreiro. Preocupa-se com o bando, e entre os que estão no escalão superior, isso não é assim tão comum como possas pensar. Precisei de algum tempo até me aperceber disso.

Dei-lhe uma palmadinha no ombro.

— Também precisámos de algum tempo até te aceitarmos — disse-lhe. — Deve ter sido por causa da tua personalidade encantadora.

Voltou a rir-se, e desta vez fê-lo com uma genuína boa disposição.

— Sim. Não há dúvida. Tu às vezes também és uma autêntica cabra, sabias?

A resposta foi num registo típico de escola primária.

— Quem acusa é porque é — repliquei. — Achas que houve outra pessoa a ver o Adam saltar para uma casa em chamas para me salvar e não fez nada para o impedir?

— Acho que o Adam nos manda fazer os trabalhos aos pares. Um homem à frente e um segundo como apoio. Sempre. A Mary Jo não estava sozinha quando tu e o Samuel partiram. Ela não foi a única a ver quem pegou fogo à tua casa.

Fez uma pausa.

— Acho que sei quem é, mas eu sou parcial, por isso vou manter-me de bico calado. Lembra-te apenas de uma coisa: a Mary Jo... Ela é boa gente quando é preciso. Ela é bombeira desde que foi permitida a entrada de mulheres nas equipas. Pode não morrer de amores por ti, mas não tem nada contra o Samuel. Não acredito que ela tivesse ficado parada a olhar enquanto pegavam fogo à tua casa sem que ninguém interviesse e a influenciasse. Não há muitos elementos no bando capazes de se sobrepor ao bom senso dela daquela maneira.

— Achas que uma outra pessoa tomou a decisão de desobedecer às ordens.

Ben anuiu com a cabeça lentamente.

— Sim, acho.

— Alguém em quem Adam confiasse ao ponto de não insistir para que comparecesse na reunião que convocou na casa dele.

— Sim.

— Merda.


9

Às três da manhã, dei por mim a beber chocolate quente à mesa da cozinha de Adam, acompanhada por Jesse, Darryl, Auriele e Mary Jo. Se dependesse de mim, gostaria de ver algumas pessoas entre mim e Mary Jo — porque não acho que seja boa ideia atirar água para óleo a ferver —, mas na altura em que acabara de me servir de chocolate quente, o lugar entre Jesse e ela era o único disponível.

O aspeto positivo era que a maior parte dos lobisomens regressara às respetivas casas e Adam ainda estava em segurança. Sam e Warren estavam no quarto de Adam, de guarda, enquanto nós tentávamos decidir o que fazer até Adam estar plenamente recuperado. Todos os outros lobos que tinham aparecido haviam sido mandados embora.

Planeava ir para junto de Adam assim que terminássemos, mas sabia que ele estava bem sem mim. Tinha comido cerca de cinco quilos de carne e caído num sono tão profundo que mais parecia um coma. Warren era um lobo suficientemente forte para fazer frente a qualquer par de lobos do bando, desde que no grupo não estivesse incluído Darryl, que era superior a ele. Em grande parte.

Sam era um pouco imprevisível, mas, considerando o seu estado atual, tinha a certeza de que faria parte da nossa equipa. Quando um lobo está ferido, torna-se vulnerável. No melhor cenário possível, um lobo ferido será protegido pelos seus colegas de bando — mas quando o bando anda inquieto, como era o caso do de Adam, é melhor manter guardas de confiança por perto.

Entre os dois, Warren e Sam, eles certificar-se-iam de que nenhum mal era feito a Adam.

Ben entrou, caminhando com dificuldade, e trouxe a reboque uma das cadeiras da sala de jantar. Colocou-a entre Jesse e Auriele, retirou dolorosamente os dedos ensanguentados das costas da cadeira e sentou-se. Jesse pôs uma chávena com chocolate quente à sua frente e depois pegou na lata de chantilly e esguichou para o interior da chávena uma porção da doce e artificial substância pegajosa de cor branca. O cabelo encaracolado de Jesse tinha crescido um pouco e pintara-o de cor-de-rosa.

— Obrigado, querida — disse-lhe Ben numa voz sugestiva, e ela afastou a sua cadeira dele. Ben inclinou a cabeça de modo a que ela não lhe conseguisse ver o rosto e sorriu até se aperceber de que eu estava de olhos postos nele. Semicerrei os olhos e ele aclarou a garganta. — Um e-mail será enviado para a lista de endereços, a explicar o que aconteceu e a dizer que o Adam estará recuperado dentro de um ou dois dias.

A existência de uma lista de endereços era uma novidade para mim. Eu não fazia parte dela, provavelmente porque assim podiam queixar-se de mim sem ferir os meus sentimentos. Dado o estado das mãos de Ben, Auriele tinha-se oferecido para enviar o relatório, mas ele dissera que o trabalho informático era da sua competência, e uma vez que ainda tinha dez dedos, se achava capaz de cumprir a tarefa.

Inclinou-se para a frente e bebericou o seu chocolate quente sem tocar na chávena quente.

— É instantâneo — desculpei-me. — O meu carregamento de genuíno material condimentado foi-se juntamente com a casa. — No momento em que as palavras me saíram da boca, desejei não as ter dito. Tinha estado a sair-me muito bem na tarefa de esquecer que lá fora na escuridão, para lá das janelas da cozinha, a minha casa se transformara numa pilha de sucata queimada.

— É chocolate — replicou Ben. — Neste momento, isso é suficiente.

O silêncio abateu-se sobre a cozinha, e lembrei-me de que deveria ser eu a conduzir esta reunião. De uma forma estranha, trouxe-me à memória a altura em que me vira forçada a tomar conta do grupo de escuteiras a que a minha irmã pertencia pelo facto de a minha mãe estar doente. Catorze raparigas pré-adolescentes, uma mesa cheia de lobisomens — havia algumas semelhanças monstruosas.

Passei as mãos pela face.

— Então o que é que falta tratar para podermos ir todos para a cama?

Darryl entrelaçou as enormes mãos sobre a mesa.

— O chefe de serviço de incêndios ainda não descobriu o que se passou ao certo, mas os bombeiros pareciam convictos de que terá sido a cablagem. O incêndio começou perto da caixa de fusíveis instalada no vestíbulo. Aparentemente, as casas de construção antiga por vezes incendeiam-se dessa maneira, especialmente durante as primeiras semanas em que o sistema de aquecimento é ativado no inverno. — Relanceou-me os olhos. — Aceitamos isso, ou andaste a irritar pessoas novamente?

Podia dever a sua pele cor de ébano e o seu tamanho ao pai africano, mas, apesar de ser apenas meio chinês, conseguia fazer uso do típico rosto indecifrável dos chineses melhor do que qualquer pessoa integralmente chinesa que eu conhecera. Era difícil perceber se tinha dito a última frase com o intuito de brincar ou de me dirigir uma crítica justificada.

— Foram os seres feéricos — anunciei com um suspiro, batendo sem convicção com o tornozelo na perna da mesa mais próxima.

— O quê... todos eles? — perguntou Ben humoristicamente. Deslizei sobre o assento e pontapeei-lhe o pé, o que me deu satisfação.

— Não, não foram todos eles — repliquei depois de ele ter soltado um guincho de dor fingida.

— Só nos trazes problemas atrás de problemas, não é verdade, Mercy? — comentou Mary Jo, olhando para o exterior através da janela.

— Cabra — disse-lhe Ben. Parecia ser a sua palavra do dia, que apesar de tudo era melhor do que as que usava habitualmente. Na verdade não tinha dito muitos palavrões à minha beira naquele dia, excluindo a parte em que Samuel lhe estava a tratar das mãos. E se as únicas palavras que contavam fossem as que faziam com que um filme obtivesse a classificação «para maiores de 16», perguntei-me se isso teria acontecido por coincidência, se estava a tentar melhorar ou se não tinha passado tempo suficiente com ele.

Mary Jo fez uma careta.

— Sabujo.

— É preciso teres lata para atirares pedras quando te limitaste a ficar parada a olhar enquanto pegavam fogo à casa da Mercy — replicou ele.

— O quê? — disse Darryl numa voz muito baixa.

Mas Mary Jo não estava a prestar atenção a Darryl. Em vez disso, levantou-se e inclinou-se sobre a mesa, numa pose de ameaça a Ben.

— E daí? Achas que eu devia ter feito frente a um monte de criaturas feéricas desconhecidas por causa dela?

Auriele levantou-se e empurrou a mesa com violência, atirando Mary Jo contra a parede atrás de si. A avaliar pelo estrondo, decerto terá sentido dor. Se alguém não a conhecesse muito bem, suponho que talvez fosse possível subestimar Auriele. Tinha uma compleição delicada, à semelhança de algumas mulheres hispânicas, e tinha ar de nunca ter sujado as suas belas mãos tratadas por uma manicure.

Entre Darryl e Auriele, a maior parte dos elementos do bando preferiria ter uma altercação com o primeiro.

A voz da parceira de Darryl soou gelada quando perguntou:

— Limitaste-te a observar enquanto um grupo de criaturas feéricas pegava fogo à casa de um dos elementos do bando?

Pegara na minha caneca de chocolate quente quando a mesa se movera e também conseguira salvar a de Jesse. Com a minha anca, tinha alterado a trajetória da mesa o suficiente para garantir que Jesse não era atingida. Darryl pegara na chávena de Ben — já tinha bebido o conteúdo da sua. Portanto, apenas os chocolates quentes de Mary Jo e Auriele se tinham derramado sobre a mesa e no chão.

No tenso silêncio daquele momento, a interrupção do meu telemóvel pareceu-me decididamente bem-vinda. Pousei as duas canecas que segurava na mesa e retirei o telemóvel do bolso.

Não reconheci nem o número nem o indicativo. Normalmente reconheço o número das pessoas que me telefonam a meio da noite.

— Sim?

— Mercedes Thompson, você tem uma coisa que me pertence. Eu tenho uma coisa que lhe pertence. Vamos jogar?

Premi o botão de alta voz e coloquei o telefone no meio da mesa. Claro que toda a gente, excetuando Jesse, poderia ter ouvido o telefonema de qualquer modo — mas com todos nós a ouvirmos no volume máximo, era possível que alguém pudesse ouvir algo diferente. O meu telemóvel era relativamente recente, e pagara um dinheiro extra para obter um com boa qualidade de som.

Darryl sacou do telemóvel dele — um daqueles computadores em miniatura com todas as aplicações que existem —, carregou no ecrã algumas vezes e colocou-o ao lado do meu. «Gravar», disse com os lábios.

— Tudo o que eu tenho foi consumido pelas chamas a noite passada — disse à pessoa do outro lado, e depois de o ter dito, a verdade da minha afirmação bateu-me novamente. Pobre Medea. Impus a mim mesma que esta pessoa — que me parecia do sexo feminino, embora com uma voz cavernosa de fumadora — em momento algum escutaria a dor que me causara. Partindo do pressuposto de que esta era uma das criaturas feéricas que incendiara a minha casa.

— Não estava lá — replicou, e estava cada vez mais convencida de que era uma «ela». As palavras que disse a seguir também me fizeram ter a certeza de que era uma criatura feérica. — Ter-se-ia revelado no fogo ou na morte. Vimo-la arder, vimos o fogo comer a sua vida, e o que levou de Phineas Brewster não estava no carvão nem nas cinzas.

É frequente as criaturas feéricas dizerem coisas que soam estranhas ao ouvido humano. Já dei por mim a declamar frases de Zee e vi pessoas a parar para olharem para mim.

— No fogo ou na morte — disse eu, repetindo a expressão que me parecera uma qualquer citação.

— Revela-se quando aquele que a segura morre ou arde — clarificou impacientemente.

— O seu caçador de recompensas pareceu-me ser o tipo de homem que faz o que tem de ser feito — disse-lhe. — Porque é que não o mandou matar-me em vez de recorrer a reforços? — Ter crescido com lobisomens ensinou-me várias formas de controlar a situação sem ser demasiado agressiva. Colocar uma questão um pouco lateral ao assunto é uma das formas de fazê-lo, e se a questão ocultar uma outra questão, as minhas probabilidades de obter informações são ainda maiores.

— O Kelly? — disse ela num tom incrédulo. No entanto, sabia de quem eu estava a falar. Devia ser a criatura feérica que criara o incidente que quase fizera com que Maia se tivesse magoado. — O Kelly jamais faria mal a uma mulher. Mas a polícia não teria acreditado nisso.

Havia qualquer coisa no tom de voz da mulher que me dizia que conhecia Kelly pessoalmente — e que sentia um desprezo velado por algo nele que ela entendia ser uma fraqueza.

— Presumo que esteja a falar com a pessoa que se autodesigna Daphne Rondo? — Lembrara-me do nome da produtora desaparecida porque partilhava o primeiro com a menina bonita do Scooby Doo e isso chamara-me a atenção. Elaborei a pergunta cuidadosamente porque as criaturas feéricas não conseguem mentir, e aquele provavelmente não era o seu nome verdadeiro. Na maioria dos casos, os seres feéricos não revelam o seu verdadeiro nome a ninguém.

— Às vezes — respondeu, mas não gostou do facto de eu ter descoberto quem era. Podia ter-se recusado a responder, claro, mas isso teria sido o mesmo que responder. Uma criatura feérica que não fosse a produtora desaparecida de Kelly Heart teria todo o prazer em informar-me de que eu estava enganada.

— O Sr. Heart está preocupado consigo — disse-lhe. E depois podia ter mordido a língua. Esta mulher não merecia saber da preocupação dele. Enviara-o ao meu encontro para morrer. Se Adam acreditasse que Kelly me tinha matado, trataria pessoalmente da morte de Heart. Qualquer pessoa que soubesse que eu andava com o Alfa local depreenderia isso. Aí estava a explicação para ter tramado o caçador de recompensas. — O sentimento dele seria diferente se soubesse o que planeou para ele.

— Se ele soubesse de que é que eu andava atrás, ter-me-ia apoiado de alma e coração — replicou com uma paixão súbita que me disse que ela tinha as suas dúvidas, e que essas dúvidas a incomodavam. — Ele é meu soldado e segue as minhas ordens.

Tinha ouvido aquele tipo de discurso anteriormente e senti os lábios contraírem-se de raiva — por conta de um desconhecido que me tinha, sobretudo, chateado... mas sobretudo por causa de um amigo meu, Stefan, um outro soldado que tinha sido usado de forma abusiva até acabar por quebrar.

— Presunção não lhe falta — disse-lhe. — Mas esse é um traço comum às criaturas feéricas. — Estava cansada, e era-me difícil não ultrapassar a linha ténue que impedisse que ela levasse a melhor sem a irritar. Quem é que ela tinha? Stefan? Não via o vampiro há semanas. Zee? Não lhe tinha telefonado como planeara fazer antes de a minha casa se ter incendiado.

— Estupidez não lhe falta — retorquiu com um desdém glacial. Tinha-lhe dado uma alfinetada por causa de Kelly... não que ela lhe tivesse feito mal, mas a verdade é que talvez ele não tivesse cumprido a ordem dela se soubesse qual era o seu desejo. — Mas isso é um problema comum aos humanos. Especialmente aos humanos que se envolvem em assuntos que não lhes dizem respeito. — Fez uma pausa, como se estivesse a meditar sobre uma qualquer questão. Depois disse: — Seria sensato da sua parte não me aborrecer, considerando que tenho na minha posse algo que você estima.

Ouviram-se dois sons distintos assim que acabou de falar. O primeiro foi o de algo a penetrar carne; o segundo, um grito abafado. Ficámos todos imóveis, à escuta de algum indício que pudesse revelar a identidade da pessoa em causa.

«Homem», disse Darryl com a boca.

Acenei afirmativamente com a cabeça. Também me tinha apercebido disso. O grito foi seguido de um terceiro som: alguém que estava amordaçado a tentar falar. Estava furioso. Havia qualquer coisa no som... não era Stefan, nem Zee.

Mary Jo agarrou-me o ombro. O seu rosto estava pálido e atormentado.

«Gabriel», disse com a boca.

Era isso. Mary Jo tinha desempenhado o papel de vigilante-da-Mercy-no-trabalho durante parte do verão passado, trabalhando comigo e com Gabriel. Ela também o conhecia.

Não estava alerta para a possibilidade de ser Gabriel — porque achava que ele estava em segurança. Fechei os olhos num desespero momentâneo. Stefan era um vampiro; Zee era um ser feérico ao qual outro ser feérico daria um espaço respeitoso. Gabriel era um rapaz de dezassete anos sem quaisquer poderes sobrenaturais. Não tinha a menor hipótese contra um dos seres feéricos.

Jesse emitiu um som ligeiro e de imediato levou as mãos à boca, porém, a criatura feérica do outro lado ouviu o ruído.

— Furiosa, minha menina? — perguntou. Pensou que tinha sido eu a emitir o som. — Sabe quem é que nós apanhámos? Vou dar-lhe uma pista. Ele estava a roubar um carro seu. Estivemos à beira de liquidá-lo, mas ele pertence-lhe, não pertence? Decidimos trazê-lo connosco para ver se você aceitaria entrar no jogo.

— O Gabriel pode conduzir qualquer carro que eu tenha — repliquei de forma clara, e desejei que até os ouvidos humanos de Gabriel me conseguissem ouvir. — Os Senhores Cinzentos não vão ficar contentes quando souberem que implicou um humano em questões feéricas.

Soltou uma risada. O seu riso apanhou-me completamente de surpresa. Qualquer mulher com uma voz tão cavernosa como a sua normalmente tem um riso que lhe é complementar. Porém, o seu era delicado e leve — completamente inumano, como sinos de prata a repicar — e o seu som indicou-me que tipo de ser feérico era, o que só fez com que o aperto que sentia no estômago se intensificasse. Gabriel estava envolvido em mais de um tipo de perigo.

Na parede, ao lado do telefone, estava um bloco de folhas. Apontei para ele e Auriele levantou-se sem produzir um único som e trouxe-mo.

— Então você descobriu quem está connosco — disse a mulher feérica. — A mamã dele telefonou-lhe? Tem um ar mesmo muito doce, não acha? — Havia na sua voz um vago desejo. — Se a idade dele fosse outra, ficava com ele. — Esperei pela diatribe sobre como as coisas eram diferentes antigamente: ouvi imensas variações em torno disso ao longo dos anos. Mas apenas escutei silêncio.

Escrevi: Rainha das fadas. Faz-se acompanhar de cinco a vinte seguidores. Costumava capturar humanos para os usar como serventes/amantes. Leva-os para o seu reino, parecido com Underhill, mas diferente. Feitiço: os humanos têm uma perceção estranha da passagem do tempo. «Rip Van Winkle» (100 anos) ou «Thomas, o Versejador» (sete dias transformavam-se em sete anos). Sublinhei o nome Thomas, o Versejador porque pertencia à História e Rip era uma história ficcional de Washington Irving que poderia ou não ter-se baseado em diversas lendas — incluindo a de Thomas. O seu sorriso é igual ao repique de sinos de prata. Também uma espécie de feitiços hipnóticos. Retira às vítimas a capacidade de livre-arbítrio — é possível que também tenha o mesmo efeito nos seus seguidores feéricos. Rege-se por regras, mais do que a maior parte dos seres feéricos, mas é poderosa dentro dos limites dessas regras.

Aquele livro ensinara-me muito mais sobre as criaturas feéricas do que aquilo que sabia anteriormente. Tinha a esperança de que algo nos ajudaria a encontrar Gabriel antes que a rainha das fadas decidisse ficar com ele.

— Você é paciente — disse ela. — Isso não joga com o que ouvi de si.

— Não sou assim tão paciente — repliquei. — Não me parece que vá entrar no seu jogo sozinha. Acho que os Senhores Cinzentos são capazes de tratar dos meus problemas por mim. — Não iriam fazê-lo, evidentemente, e eu não era estúpida ao ponto de os convidar a fazê-lo. Mas queria ouvir a sua reação a isso.

Riu-se novamente.

— Faça isso. Faça isso, Mercedes Thompson. E se eles descobrirem o que está na sua posse, e tiverem a mais pequena suspeita de que você sabe o que é, matam-na, com ou sem lobisomens. Para ficarem na posse dele, matá-la-iam. E, acredite-me, é mais fácil matá-la a si, humana, do que o transtorno de procurá-lo onde quer que esteja guardado.

Não duvidei que ela estivesse a dizer a verdade acerca dos Senhores Cinzentos. As criaturas feéricas dizem sempre a verdade. Normalmente também reagem a provocações, motivo pelo qual imprimi um tom presunçoso à minha voz enquanto dizia:

— Muito especialmente porque você também não sabe o que é.

— O Artefacto de Prata — disse ela.

Ela não estava à procura do livro. Não fazia ideia do que era «o artefacto de prata», mas o livro era feito de couro, com gravações douradas em relevo; não havia nele nada relacionado com prata. Não tinha nada para negociar a libertação de Gabriel, portanto teríamos de encontrar as criaturas feéricas e trazê-lo usando uma estratégia que impedisse que ela nos voltasse a incomodar. Muitos contos de fadas terminavam da seguinte forma: «... e a partir desse dia, a fada má nunca mais os incomodou».

— Você não sabe qual é o aspeto dele — disse-lhe num tom confiante. — Acha que está na minha posse porque o Phin está morto e o objeto não se revelou àqueles que o mataram como aconteceria se estivesse na posse dele — disse-lhe como se soubesse que era um facto indesmentível.

— Tem-no consigo? — perguntou. — Se calhar, ele deu-o de facto a outra pessoa. Mas, se não estiver na sua posse, ficarei com este belo rapaz como consolação e continuarei à procura dele.

Mordi o lábio. Phin estava morto.

— Tenho uma coisa que pertencia ao Phin — disse-lhe com óbvia cautela. De manhã, iria sentir-me mal pelo homem que tinha corrido riscos para me ajudar, desrespeitando os Senhores Cinzentos, que amava livros e coisas antigas, e que tivera uma avó que se preocupava com ele. Conforme estavam as coisas, precisava de manter o discernimento. Estava cansada, e a dor e fadiga de Adam começavam a penetrar em mim, numa altura em que o nosso vínculo, de forma inconveniente, começava a restabelecer-se.

— Não vai contar nada aos lobisomens — disse-me. — Esse é o primeiro passo. Se não cumprir com a sua palavra, ficarei a saber. Nesse caso, levarei o rapaz e redobrarei os meus esforços no sentido de a ver morta.

Relanceei os olhos aos lobos de volta da mesa.

— Não me pareceu tão ansiosa por me matar ao ponto de arriscar a ira do meu companheiro ontem de manhã.

Produziu um som sibilante.

— Quando tiver na minha posse aquilo que foi concebido da prata, não terei qualquer necessidade de ter medo. Nem dos lobos, nem dos Senhores Cinzentos. A única coisa que a salva a si neste momento é que pode demorar algum tempo depois da sua morte até que se revele. Se me tornar isto demasiado difícil, correrei esse risco.

— O que é que você quer que eu faça? — perguntei-lhe.

— Diga-me que não irá falar com nenhum dos lobisomens a respeito de mim, do que está na sua posse e do facto de Gabriel correr algum tipo de perigo.

— Ok — disse relutantemente. — Não falarei com nenhum lobisomem a seu respeito, da coisa que tenho e que pertencia ao Phin ou do perigo que o Gabriel corre neste momento.

— Não dirá nada a nenhuma das criaturas feéricas. Nem aos Senhores Cinzentos, nem ao velho ser feérico que estava no seu local de trabalho esta manhã.

Olhei para Darryl, que, com uma expressão sombria, acenou com a cabeça. Contaria a Zee por mim.

— Não falarei com nenhuma criatura feérica que conheça a seu respeito, da coisa que tenho e que pertencia ao Phin ou do perigo que o Gabriel corre neste momento.

— Não posso forçá-la a comprometer-se com o que disse — replicou. — Já não possuo essa magia. Mas no momento em que faltar à palavra, ficarei a saber, e o nosso acordo perderá efeito. Este belo rapaz será meu e você morrerá.

A mão fria de Jesse agarrou a minha. Ela e Gabriel eram, de certo modo, namorados há algum tempo. «De certo modo» porque ele andava concentrado nos estudos, uma vez que precisava de uma bolsa para ingressar na universidade.

— Está bem — disse à criatura feérica.

— Em segundo lugar, irá levar o objeto à livraria e entregá-lo-á ao meu cavaleiro das águas.

O Rapaz-Peixe, pensei. Embora Cavaleiro das Águas não me dissesse nada. Talvez fosse um título e não tanto um tipo de criatura feérica.

— Não. Não vou levá-lo à livraria e entregá-lo ao seu cavaleiro. — Um dos seus seguidores podia matar-nos a todos e isentá-la de perjúrio. Precisávamos de lidar apenas com ela.

— Você...

— Não confiarei em si a menos que haja uma troca justa. Você leva o Gabriel, e eu trago-o são e salvo em troca do objeto que lhe levar.

— Não posso levar-lhe o Gabriel são — disse, parecendo divertida.

Mary Jo rosnou muito baixinho e eu dei-lhe com o cotovelo para parar. Talvez a criatura feérica não estivesse a prestar atenção. Tinha escutado o som que Jesse tinha emitido anteriormente, mas, como Bran gostava de me dizer, podemos ter os sentidos mais apurados do mundo, mas se nos esquecemos de os usar, não nos servem de nada.

— Não menos são do que agora — repliquei. — Ele próprio, em controlo da própria mente, com o corpo sem mais ferimentos do que os que já tem.

— Isso pode-se arranjar — disse, ainda num tom divertido.

— Consideraria a morte como mais um dano.

Soltou uma risada. O som começava a enervar-me.

— Tão desconfiada, Mercedes. Você não lê os seus contos de fadas? São os humanos que traem os seus compromissos. Desejo-lhe uma boa noite de sono... Ups, tarde de mais. Descanse, então. Ligar-lhe-ei para este número durante o dia de amanhã quando tiver oportunidade de encontrar um local de encontro seguro.

Sentia-me desconcertada porque ela estava demasiado satisfeita, como se soubesse alguma coisa que nós não sabíamos.

— O Gabriel é o único humano que tem consigo? — disse-lhe, subitamente preocupada com a possibilidade de ela ter mais reféns.

Riu-se novamente.

— Você não acha mesmo que eu vou responder a isso, ou acha?

E desligou.

— Alguém sabe de que zona é o indicativo 333? — perguntei.

— Não existe — respondeu Ben. — Não existe o indicativo 333, como não existe o 666. A companhia telefónica não acredita oficialmente na numerologia, mas tem muitos clientes que sim.

— Queres que eu telefone ao Zee agora? — rosnou Darryl. — Ou ele fica mal-humorado quando o acordas?

Olhei para ele.

— Não te posso responder à primeira pergunta. E o Zee está quase sempre mal-humorado. Não fiques incomodado com isso.

— Eu telefono-lhe — disse Auriele.

— Espera até... — Hesitei em dizer alguma coisa sobre a possibilidade de ela telefonar a Zee, não sabendo até onde podia ir sem desencadear o feitiço da criatura feérica. Mas Auriele percebeu e voltou a sentar-se.

— Alguém ouviu alguma coisa que pudesse dar pistas em relação ao sítio de onde estava a ligar? — perguntou Jesse, que com regularidade assistia a vários programas de televisão sobre polícia forense.

— Nada de comboios — disse Mary Jo secamente. Empurrou a mesa para se desentalar. — Nada de barulhos de água. Nada de autoestrada ou barulho de carros. Nada de aviões. Nada de sinos de igreja. Nada de golfinhos a brincar ao fundo.

— O que elimina montes de sítios — comentou Auriele. — Tenho a certeza de que estava no interior de um espaço fechado. Ouvi um zunido que podia ser de uma lâmpada fluorescente.

— Eu ouvi ecos, como se ela estivesse num espaço com paredes duras — disse Darryl. — Mas não era um espaço enorme. Não eram ecos distantes.

— Quando... — Não podia dizer «ela lhe bateu», porque tinha prometido não falar com os lobisomens da rainha das fadas ou do perigo que Gabriel corria. — Quando a Mary Jo ouviu uma coisa, houve um som quase impercetível de algo a ser arrastado — disse. — Como uma cadeira a deslizar no cimento. — Fechei os olhos e pensei nos sons de fundo.

— A falta de sons do exterior pode querer dizer que ela estava numa cave, não apenas num espaço fechado — opinou Darryl. — Se ela não é destas bandas, precisaria de arranjar um sítio seguro, não um hotel. Neste momento, é difícil encontrar espaços para arrendar nesta área. Um dos meus colegas de trabalho estava a queixar-se disso. Se o Phin estiver morto, talvez a criatura feérica esteja na casa dele.

— Ele vivia num apartamento, um dos mais recentes de West Pasco, e tem vizinhos metediços. — Levantei-me, peguei num pano da louça e molhei-o para limpar o chocolate quente.

— Nesse caso, a livraria — disse Auriele. Pegou no pano e atirou-o na direção de Mary Jo. — Foste tu que sujaste, és tu que limpas.

Os ombros de Mary Jo estavam tensos, mas começou a limpar sem protestar.

— Eu e o Sam estivemos na cave da livraria esta noite — anunciei. — A iluminação de lá é incandescente. Não havia zumbidos. Além disso, o som era diferente. Havia muitos livros lá em baixo, por isso não fazia tanto eco. O espaço de onde ela telefonou parecia mais vazio.

— Estiveram na livraria? Detetaram algum odor? — Ben tinha estado a dormitar, pensei. Mesmo depois de ter falado, os seus olhos estavam fechados. O esforço que os seus ferimentos lhe tinham exigido e a barriga cheia com a carne da misteriosa mala térmica de Warren estariam a funcionar como narcóticos.

— Precisas de ir lá para baixo dormir? — perguntei-lhe.

— Não, estou bem. Descobriram alguma coisa?

— Detetámos o odor do Phin, e de mais quatro seres feéricos que tinham lá estado. Um deles, uma espécie qualquer de criatura feérica da floresta, regressou, e o Sam matou-o. Havia mais uma criatura feérica da floresta, alguém do sexo feminino que nós não vimos. Pertencia à mesma espécie da que o Sam matou, tenho a certeza disso. E depois havia uma que cheirava a pântanos e coisas húmidas, que esperançosamente terá sido o seu cavaleiro das águas. Quanto menos aliados tiver, mais contente fico. Conheci a quarta, que deixou indícios da sua presença na livraria hoje... A esta hora, terá sido ontem. Parecia uma do tipo avó feliz. Não consegui perceber o que ela era.

— Era ela? — perguntou Ben, acenando para o telefone.

— Não posso responder a isso — disse-lhe.

— Mas podes responder-me a mim — interveio Jesse. — Foi a velhota que levou o Gabriel?

— Não sei — respondi. Fechei os olhos e pensei no que tinha acontecido e quando. — Não. Ela estava a examinar os registos do Phin, tentando descobrir a quem é que o Phin tinha dado uma determinada coisa. Os maus da fita já me tinham tentado matar uma vez. Caso não tenhas reparado, o incidente de ontem na minha oficina tinha-me a mim como alvo. Sabiam onde estavam a procurar. — Talvez se eu tivesse tido oportunidade de falar com ela, soubéssemos mais acerca daquilo que a rainha das fadas queria.

— Não é perspicaz, esta rainha das fadas — disse Ben. — Se fosse, teria percebido que tu não és humana.

— Não faço propriamente publicidade — repliquei. — E, excluindo a minha ligação a Adam e ao Marrok, não sou importante. Não há razão para ela saber. Especialmente se considerarmos que produz programas na Califórnia.

— Ela faz suposições — disse Darryl. — A maior parte das pessoas olha para ti, Mercy, e pergunta-se se és uma criatura feérica ou uma mulher-loba que esconde a sua identidade, uma vez que és companheira de um lobo e trabalhas com uma criatura feérica. — Calou-se e ergueu uma sobrancelha especulativa. — Ou pensa que és uma das duas coisas e, ao picar-te chamando-te humana, estava à espera que tu reagisses e lhe dissesses qual das duas coisas és.

— Parece-me ser esse o caso — disse-lhe.

— Porque não dar-lhe o que ela quer e trazer o Gabriel? — sugeriu Mary Jo. — Não te pertence e de qualquer modo tudo aponta para que o legítimo proprietário esteja morto.

Ben rosnou.

— Não costumas ser tão estúpida. Queres que se entregue a esta criatura feérica um objeto de poder que, segundo a sua convicção, a pode proteger de nós?

Darryl virou a cabeça e olhou para Mary Jo. Ela corou e baixou os olhos.

— Não penses que me esqueci que desobedeceste ao Adam — disse ele. — Aqui não tens qualquer crédito, e não vais sair desta casa enquanto não fores punida. — Fez uma pausa e depois respondeu à sua pergunta: — O Ben tem razão. Para além disso, achas mesmo que ela vai deixar que aqueles que sabem o que ela tem na sua posse permaneçam vivos? Não faço a merda da menor ideia do que ela pretende. Se os Senhores Cinzentos estiverem dispostos a matar a Mercy pelo simples facto de ela ter conhecimento do livro, e estamos a falar de uma Mercy que é bem vista por eles e é amada pelo nosso Alfa, não te parece que eles matariam um dos que vivem sob o seu domínio e não têm essas proteções? Se eu consigo perceber isso através de um telefonema, essa Daphne também o sabe. Ela não tem a menor intenção de deixar escapar ninguém. Faria a troca e depois mataria a Mercy e o rapaz.

— Ou ficaria com o rapaz e mataria a Mercy — acrescentou Jesse, que, tal como o pai, tinha olho para a estratégia. — O Gabriel preferia morrer. — No entanto, ainda era uma adolescente com propensão para o drama. Não estava assim tão certa de que Gabriel preferisse morrer a servir a rainha das fadas. A julgar por todas as descrições, servi-la era razoavelmente agradável para a vítima na medida em que ela não tinha força de vontade para objetar.

Eu preferia morrer. Talvez ela tivesse razão.

— Mercy — resmoneou Darryl, — numa coisa ela tinha razão: precisas de dormir. Vai para a cama. — A sua voz suavizou-se. — Tu também, Jesse. Todos estaremos mais capazes de ajudar o teu rapaz depois de uma noite de sono.

Tinha razão. Estava tão cansada que mal conseguia manter os olhos abertos.

Bocejei e enfiei o meu braço no de Jesse.

— Ok.

Depois de deixar Jesse no seu quarto, abri a porta do de Adam da forma mais silenciosa possível. Alguém tinha retirado o edredão da cama, atirando-o para o chão. Adam estava estendido nu por cima do lençol — e o seu aspeto era horrível. Um montão de crostas vermelhas-escuras cobria-lhe a quase totalidade das extremidades, para além de algumas espelhadas aqui e ali ao longo do corpo.

Warren descalçara as botas e estava deitado ao seu lado na cama, virado para a porta. Sam estava enroscado entre eles aos pés da cama.

Preocupara-me um pouco a ideia de o deixar com um Alfa ferido, mas aparentemente ainda se estava a comportar de forma atípica para um lobo sem controlo. Enquanto fechava a porta, esticou-se sobre o flanco e olhou para mim de viés. Agitou-se um tudo-nada e emitiu um som de satisfação ao mesmo tempo que desviava os pés de Warren alguns centímetros. Reparei que não tocou em Adam.

Warren estava acordado — apesar de parecer estar a dormir profundamente. Passei por cima dele e os cantos da sua boca subiram. Instalei-me entre ele e Adam, puxando as pernas para cima de modo a não pontapear Sam.

Tentei não tocar em Adam, mas ele rebolou e atirou um braço para cima da minha anca. A sensação foi de aconchego, segurança e bem-estar — e provavelmente de dor para ele. Os seus olhos abriram-se um pouco para logo a seguir se fecharem.

Durante algum tempo, mantive-me ali deitada apenas a usufruir da sensação de gratidão por ele ter sobrevivido ao incêndio. A porta abriu-se precisamente na altura em que mergulhava no sono.

— Há espaço para mais um? — perguntou Ben. Ergui a cabeça e vi-o postado junto à porta com um par de calças de fato de treino largas. O seu cabelo estava despenteado de um dos lados, como se tivesse estado deitado antes de subir. — Se não houver, posso ir...

— Anda — resmungou Warren. — Eu vou para o quarto de hóspedes lá em cima.

Warren rolou para fora da cama e Ben ocupou o seu lugar. Encostou um pé ao meu, depois soltou um suspiro e colapsou como um cachorro que brincara durante demasiado tempo. O bando serve para confortar quando se está mal, pensei, voltando a pousar a cabeça. E pela primeira vez em muito tempo, talvez pela primeira vez desde sempre, senti prazer em pertencer a um.

Acordei porque o topo da minha cabeça estava demasiado quente. A sensação era-me vagamente familiar, por isso voltei a tentar dormir. Até coisas afiadas se começarem a afundar no couro cabeludo de forma lenta. E depois lembrei-me do motivo pelo qual não seria de esperar que um gato estivesse a dormir na minha cabeça.

Sentei-me e fixei-me no olhar frio da ligeiramente chamuscada gata Manx que expressou a sua irritação mudando abruptamente de posição com um miado irritado. Cheirava a fumo e tinha uma pelada no dorso, mas, excluindo isso, parecia estar bem.

Adam não se mexeu, mas Ben virou-se e abriu os olhos.

— Ei, gata — disse-lhe, chorando, enquanto ela se ajustava à minha nova posição e se punha a jeito para poder ser acariciada tanto por mim como por Ben. — Pensava que estavas estorricada.

Enfiou a cabeça debaixo da minha mão e rebolou de modo a que os meus dedos pudessem deslizar através da sua pelagem. Ben estendeu o braço, mas parou assim que mexeu os dedos. Estavam com melhor aspeto do que antes — embora continuassem a parecer algo digno de figurar num filme de terror.

— Não fazia ideia de que não sabias — disse Ben, com a voz ainda rouca. — Eu devia ter-te dito. O Adam dirigiu-se para o teu quarto. Eu dirigi-me para o do Sam e encontrei-a debaixo da cama.

Limpei os olhos e o nariz ao ombro (estando ambas as mãos ocupadas com a gata e cobertas com o seu pelo). Depois, inclinei-me para a frente e beijei o nariz de Ben.

— Obrigada — disse-lhe. — Iria sentir muito a falta dela.

— Acredito. — Estendeu-se sobre as costas, com as mãos cuidadosamente pousadas sobre a barriga. — Nós também iríamos sentir a falta dela. É a única gata que conheço que tolera lobisomens. — As suas palavras faziam transparecer uma estranha vulnerabilidade. Não creio que ele estivesse acostumado a ser o herói.

— Não te sintas demasiado lisonjeado — disse Adam secamente. — A Medea também gosta de vampiros.

— Adam? — chamei.

Mas estava novamente a dormir. E conseguia senti-lo na minha cabeça, precisamente onde devia estar.


10

Acordei, e o meu primeiro pensamento foi o de surpresa por me sentir tão dorida. Depois lembrei-me da enorme criatura feérica que me tinha feito tombar com violência. Depois de a minha casa ter ardido e Adam ter ficado ferido, o encontro com a criatura feérica na livraria tornara-se num episódio secundário. Tinha um inchaço do tamanho de um ovo de ganso na nuca, nenhuma parte do meu corpo se queria mexer e os tornozelos — ambos — doíam-me.

Sam estava a ressonar, algo que não lhe era muito habitual. Dormia estendido, atravessado aos meus pés, o que certamente não seria muito confortável para ele, embora parecesse satisfeito. Deverá ter sentido a minha atenção porque rolou até ficar sobre o dorso e esticou-se — um instante de meio despertar que terminou com o regresso do ronco.

Adam ainda dormia como um morto, à semelhança do que acontecera durante a maior parte da noite — excetuando a altura em que acordara a tossir sangue tingido de cinzento com partículas de fumo. Algures durante a noite, rolara para longe de mim, e agora dormia sobre o flanco. Passei uma mão sobre a sua omoplata e ele mexeu-se ao meu toque sem acordar.

— Ei — disse-lhe. — Amo-te.

Não respondeu, mas eu não precisava de uma resposta — sabia o que ele estava a sentir. Só depois de rebolar dolorosamente até à extremidade da cama é que me ocorreu que Ben tinha desaparecido. Um relancear de olhos à janela fez-me perceber que ainda era de manhã, não muito cedo, mas não tarde ao ponto de me fazer sentir uma sorna.

Encaminhei-me para a casa de banho numa passada lenta e perra. Depois de um duche quente, já me conseguia mexer novamente. E apesar de as roupas que vesti serem as mesmas do dia anterior — e cheirarem a sangue e fumo e outras coisas —, sentia-me pronta para encarar o dia. Após alguma hesitação, voltei a colocar o meu coldre a tiracolo.

Não sentia qualquer necessidade urgente de ir armada — mas também não tinha nenhum lugar seguro onde guardar a SIG. Adam provavelmente tinha um cofre para armas algures na casa, mas não sabia onde. De modo que coloquei o coldre debaixo da minha t-shirt, que era suficientemente larga para o esconder. Teria dificuldades em sacar da arma, mas isso não seria muito importante: estava carregada com balas de chumbo e a casa estava cheia de lobisomens. Se tivesse de sacar da arma, provavelmente já estaria morta.

Com esse pensamento animador, saí do quarto e fechei silenciosamente a porta atrás de mim. O maravilhoso cheiro a salsichas e manteiga atraiu-me para a cozinha.

Darryl estava a cozinhar.

Auriele exibiu um sorriso rasgado ao ver a minha expressão.

— Aos domingos — disse ela com satisfação, — ele cozinha e eu lavo a louça. A maior das vezes acabamos aqui na Central do Bando, e quando o Darryl cozinha, toda a gente aparece. É uma tarefa bastante exigente.

A julgar pela forma como os lobisomens comem, não tive dúvidas de que seria. Uma tarefa exigente que se incluía numa daquelas pequenas coisas que unia um bando: pequenos-almoços dominicais na casa de Adam.

— Se tu tratas da louça quando é ele a cozinhar, ele trata da louça quando és tu a cozinhar? — perguntei.

— Não — respondeu Darryl, servindo a cada uma de nós um prato de salsicha, ovos, hash browns9 e torradas com uma presteza digna de um profissional, após o que regressou para junto do fogão. — Não sou assim tão liberal.

Auriele sorriu nas suas costas.

— Mas aspira a casa.

Em resposta, Darryl emitiu um ruído de irritação.

— Vocês viram o Ben? — perguntei, e depois disse involuntariamente: — Isto está mesmo bom. — A torrada estava guarnecida com baunilha verdadeira, canela e uma série de coisas mais, incluindo xarope de ácer autêntico.

— Nham — concordou Auriele, acenando com a cabeça enquanto provava os seus hash browns. — Ele trabalhou como cozinheiro enquanto estudava na universidade.

— E ganhei um bom dinheiro com isso — acrescentou Darryl. — O Ben desceu, tomou o pequeno-almoço e foi-se embora. Ele volta em breve. Telefonei ao Zee ontem à noite.

Pousei o garfo.

— O que é que ele disse?

— Se deixares a minha comida esfriar, nada.

Levei uma porção de comida à boca de forma apressada e ele retomou a tarefa na cozinha — e a fala.

— Fi-lo ouvir a gravação que fiz do telefonema de ontem à noite e depois obrigou-me a relatar-lhe tudo o que nos disseste. Depois disse que ia ver o que podia fazer. Telefonou-me há coisa de uma hora e pediu-me para te dizer que viria aqui ter assim que pudesse. Pode demorar umas horas, por isso empata a vilã se ela quiser que tu saias antes da chegada dele.

— Como é que ele te pareceu?

— Mal-humorado. Café ou sumo de laranja?

— Pode ser água.

As suas sobrancelhas ergueram-se.

— Oh, diabo — disse Auriele, porém, estava a sorrir.

Mas Darryl não.

— Estás a insinuar que o meu café não é o melhor de Kennewick e arredores? Ou que o meu sumo de laranjas acabadinhas de espremer é menos que perfeito?

Jesse entrou na cozinha como um furacão e, com uma voz aguda, disse:

— Oh, meu Deus, o Darryl está a cozinhar. Quase me tinha esquecido que era domingo. Sumo de laranja, por favor. — Olhou-me de relance e soltou uma risada. — A Mercy não toma sumo de laranja nem café — disse, retirando um copo do guarda-louça e enchendo-o com o conteúdo do jarro que Darryl preparara. — Que pena. Mais sumo de laranja para mim.

Estava a agir de forma fofa e alegre, mas tinha círculos escuros debaixo dos olhos. Pegou no prato que Darryl lhe estendeu e sentou-se ao lado de Auriele.

— Então — disse. O seu cabelo cor-de-rosa ajudava à sua encenação: é difícil parecer-se triste com o cabelo cor-de-rosa, ainda que os seus olhos também estivessem um pouco cor-de-rosa. — Como é que vamos salvar o Gabriel?

— Já repararam que toda a gente que conhece a Mercy acaba sempre por precisar de ser salva? — comentou Mary Jo enquanto entrava na cozinha.

Ia ter de fazer alguma coisa em relação a Mary Jo. Dei uma outra trinca na minha torrada e pousei o garfo no prato. Mais valia fazê-lo cedo do que tarde.

Levantei-me.

— Com licença — disse a Darryl. A Jesse disse: — Preciso de ir para o teu quarto. Tens alguma objeção a fazer?

Fixou-se em mim por momentos.

— Não? — disse ela com a voz a subir de volume, como se a sua resposta fosse uma pergunta. E se calhar era.

— A tua aparelhagem de som é bastante eficaz a impedir que o que é dito seja ouvido por todos os lobisomens da casa. E a avaliar pelo barulho que vem do piso de baixo, estão aqui muitos lobisomens.

— É o dia em que o Darryl cozinha — disse Auriele, soando um tudo-nada apologética.

— Consigo perceber porquê — comentei. — Agradecia-te que me guardasses o prato até eu voltar. — Olhei para Mary Jo. — Tu, anda comigo.

E sem olhar para trás, segui escada acima em direção ao quarto de Jesse. Entrei e liguei a aparelhagem de som, aumentando o volume até se tornar quase doloroso. O CD não era aquele que eu teria escolhido para ouvir, mas estava alto, e isso era a única coisa que me interessava.

— Fecha a porta — disse a Mary Jo. Ficara quase surpreendida por ela me ter seguido conforme lhe dissera para fazer.

Com o rosto inexpressivo, obedeceu às minhas palavras.

— Ok. Se vieres aqui, ao pé da janela, é quase impossível alguém nos ouvir.

Todas aquelas precauções não eram realmente necessárias. Com tanta gente na casa de Adam, ninguém, por muito boa audição que tivesse, conseguiria ouvir de uma divisória para a outra — havia demasiadas conversas a ocorrer em simultâneo. Porém, a aparelhagem de som tornava a nossa privacidade virtualmente certa.

— O que é que tu queres? — perguntou sem sair do centro do quarto.

Encostei-me à parede ao lado da janela e cruzei os braços à altura do estômago. Parecia-me errado estar nesta posição. Toda a minha vida fui uma pessoa solitária. Mesmo quando vivia em Aspen Creek com o bando do Marrok, mesmo aí estava sozinha, uma coiote entre lobos. Mas Adam precisava do seu bando a apoiá-lo — e, por minha causa, isso não estava a acontecer. Se eu era o problema, devia-lhe a ele ser parte da solução. Portanto ia ver se todas aquelas vezes em que observei o Marrok baralhar a cabeça das pessoas até elas ficarem completamente à nora me permitiria usar as suas técnicas para alcançar os mesmos resultados.

Sorri-lhe.

— Quero que me digas qual é o teu problema comigo. Aqui e agora, onde não há mais ninguém que possa interferir.

— Tu és o problema, Mercedes — disparou. — Uma mísera coiote entre lobisomens. Tu não pertences aqui.

— Oh, então. Tu consegues melhor do que isso — disse para a acicatar. — Parece que tens a idade da Jesse, e olha que a Jesse não fala assim.

Os olhos dela fecharam-se enquanto considerava o que eu tinha dito.

— Está bem — disse momentos depois. — Um ponto para ti. Primeiro problema: fizeste com que o Adam entrasse em declínio desde que afirmou que tu eras parceira dele, há dois anos. E durante esses dois anos o nosso bando desmoronou-se porque o Adam mal conseguia manter a calma, e tornou-se quase incapaz de ajudar os outros a manterem os seus lobos controlados.

— Concordo — repliquei. — Mas, em minha defesa, tenho de realçar que durante esse período o Adam nunca me perguntou se eu queria ser parceira dele. Nem nessa altura nem antes de o ter declarado diante do bando. Nunca me perguntou, nem antes nem depois. Eu não era um membro do bando, e a declaração dele tinha como propósito impedir que os restantes lobos se aproximassem de mim, portanto eu só vim a saber disto muito depois de ter acontecido. E, mesmo aí, ninguém me falou das consequências. Só há uns meses. E assim que eu descobri o que estava a acontecer ao bando e ao Adam por causa dessa declaração, tomei uma decisão.

— Que generoso da tua parte — disparou, os seus olhos a iluminar-se de fúria. — Tornares-te companheira do Adam para bem do bando.

— Um ponto para mim — disse-lhe calmamente. — A opção que eu tomei não teve nada a ver com os problemas do bando. A única coisa de que o Adam precisava era uma resposta, e um «não» teria tido o mesmo efeito em termos de estabilização do bando. Concordei porque... porque se trata do Adam. — Meu, sussurrou uma voz na minha cabeça, mas tive a certeza de que era a minha própria voz.

— Segundo problema — disse por entre os dentes cerrados. — Foi o teu convite ao transviado que fez com que o Adam quase morresse e a Jesse fosse raptada.

— Não — retorqui, abanando a cabeça. — Não me podes culpar por isso. Isso foi um problema dos lobisomens do princípio ao fim. Vi-me envolvida porque estava no sítio errado à hora errada. Nada mais, nada menos. Ponto para mim.

— Discordo — disse ela. Estava na clássica postura de «descansar», reparei. Como um soldado. Perguntei-me se seria algo que Adam lhes ensinava quando os preparava para a vida de lobisomens porque, ao que sabia, Mary Jo nunca tinha estado no exército.

— Tudo bem — disse-lhe, encolhendo os ombros. — Estamos num país livre. Podes pensar o que quiseres.

— Não podes negar que quem fez com que o nosso número três quase morresse na altura em que o demónio apareceu foste tu, tu e a tua ligação aos vampiros.

A sua voz estava calma, o batimento cardíaco constante. Warren não era importante para ela; Ben tinha razão. Nem sequer se tinha referido a ele pelo nome porque achava que a sua posição hierárquica tinha mais valor do que o homem.

— Assim que se soube que havia um demónio na cidade, era inevitável que os lobos fossem atrás dele — disse-lhe. — E tu estás-te a marimbar para o Warren, por isso não finjas que te preocupaste com ele.

A minha última frase fez com que ela levantasse a cabeça e se fixasse em mim. Na verdade, parecia um pouco preocupada. Andava a tentar fingir que não era um dos lobos a quem Warren causava incómodo.

— O Warren é dez vezes mais valioso do que tu — disse-lhe. — Está sempre presente quando é preciso, e não precisa de ludibriar o Adam quando as suas ordens são inconvenientes. — Com um aceno impedi que ela contra-argumentasse porque queria guardar a discussão em torno das suas atividades mais recentes para depois, quando a tivesse esgotado ao ponto de responder às minhas perguntas. — De volta ao que interessa. Que mais?

— Foi por tua causa que eu morri — disse. — Pobre Alec... Quando me cortou a jugular, não sabia o que lhe estava a passar pela cabeça. Nenhum de nós sabia. Os vampiros visaram-nos por tua causa.

Os vampiros tinham montado uma armadilha no bar Tio Mike, a taberna local onde os seres feéricos e outras criaturas sobrenaturais iam para relaxar. Tinham lançado um feitiço que causava derramamento de sangue em todos aqueles que tivessem vínculos com lobos. Tinha sido um azar para Mary Jo o facto de ela e mais dois lobisomens — Paul e Alec — irem lá na noite errada. Quando Adam e eu chegámos ao local, Mary Jo estava morta. Mas, aparentemente, se se morrer na presença de um Senhor Cinzento, pelo menos de um Senhor Cinzento em particular, a morte não é um estado tão permanente como seria noutra circunstância.

— Ponto para ti — disse-lhe, relaxando propositadamente contra a parede de modo a que ela visse que não me sentia minimamente incomodada. Não consigo mentir com a boca, mas às vezes a linguagem corporal fá-lo por mim. — Dir-te-ia que admitir a culpa que na verdade pertence aos maus da fita é uma coisa estúpida. As pessoas a culpar pela tua quase morte são os vampiros. Mas se eu não estivesse num relacionamento com o Adam, não teriam visado os lobisomens, portanto presumo que seja legítimo culpares-me.

Esperei até que voltasse a levantar o olhar de modo a poder ler-lhe o rosto. Quando olhou para mim, estava novamente em pleno controlo. Havia duas coisas que podiam explicar a sua súbita aversão a mim. A primeira era o incidente no Tio Mike, porém, ela não estava suficientemente zangada por causa disso. O que me deixava com a segunda coisa — da qual faria uso quando me fosse mais conveniente.

— No entanto — disse-lhe, — se eu aceito a culpa, gostaria de salientar que eu também sou a razão pela qual ainda estás aí. A Senhora Cinzenta devolveu-te a vida porque me devia um favor.

Exibiu um sorriso sarcástico.

— Espero muito sinceramente que um dia alguém te faça esse tipo de favor. Doeu... Ainda dói. Há dias em que não sinto diferentes partes do corpo.

Tinha tomado conhecimento disso, e era algo que me preocupava, apesar de a criatura feérica me ter dado a sua palavra de que Mary Jo regressaria ao normal. Suspeito que omitira a palavra «eventualmente» porque, na verdade, o sofrimento de Mary Jo não interessava à criatura feérica.

— Na próxima vez, digo-lhe para não se dar ao trabalho de te trazer de volta — prometi. Bati com o pé no chão e perguntei-me até que ponto queria levar isto. Em parte dependia do papel que queria assumir no bando. Nessa altura estava a abrir caminho para o Bran que existia em mim, usando as técnicas que tinha crescido a ver o Marrok usar, técnicas que sobrevinham com uma facilidade tal que me sentia um pouco desconfortável: não me considero uma pessoa manipuladora. No entanto, naquele momento pus esse pensamento de parte e considerei o caso com que estava a lidar.

«Percebe quais os resultados que pretendes e faz o que puderes para os obter» era uma das frases favoritas de Bran. Muito bem, quais eram exatamente os resultados que eu pretendia?

Parte disso dependia do quanto as suas atividades recentes me visavam a mim e visavam Adam. Entendi que podia desculpar as suas ações contra mim, mas sentia-me menos inclinada a perdoá-la em relação a Adam.

Lembrei-me daquele olhar que ela me dirigira quando eu estava no chão do hospital com Adam a transformar-se no meu colo — Adam, que quase morrera no maldito fogo a tentar salvar-me porque ela não lhe tinha dito que eu estava em segurança. O olhar que dizia que teria ficado mais satisfeita com ele morto do que com ele no meu colo.

Ter-se-ia tratado de algo passageiro ou a raiva que sentia por Adam ser meu adquirira uma força tal que a conduzira a um ponto sem retorno?

— Mary Jo — disse num tom agradável, — tu e eu sabemos que tudo isso são balelas. É verdade, ou pelo menos em grande parte, mas não é a razão pela qual estás tão zangada comigo.

Espetou o queixo.

— O Adam é meu — disse-lhe. — E tu não suportas isso. Incomoda-te o facto de eu ser coiote? O facto de a nossa união ser uma espécie de caso extremo de relacionamento inter-racial, ou até mesmo interespécies? O Darryl é africano e chinês e a Auriele é hispânica, e não me parece que eles te causem incómodo. — Não era o facto de eu ser uma metamorfa coiote que a incomodava. Eu sabia que não era. Apenas me perguntava se ela também sabia. Incomodava alguns membros do bando; talvez também Auriele e Darryl incomodassem alguns deles. Se era esse o caso, esses elementos do bando eram suficientemente espertos para guardarem isso para si.

Mary Jo contraiu os lábios mas não disse nada.

— Há quanto tempo é que o desejas? — perguntei-lhe. — Tiveste todos estes anos desde que a mãe da Jesse se foi embora.

Os métodos de Bran eram uma merda. Vi os olhos dela escurecerem de dor e tive vontade de dar um pontapé a mim própria. No entanto, ela tinha sido pelo menos parcialmente responsável pelos ferimentos de Adam. E concordava com Warren depois de ter visto Samuel a retirar carne morta da viva. Mary Jo fora estúpida. Estava capaz de apostar que ela não tinha magoado Adam de propósito, mas precisava de saber.

Observei a raiva que se seguiu à dor crescente no seu rosto, e limitei-me a manter-me de olhos fitos nela.

— Tu não és nada — cuspiu. — Eu também não sou nada. É por isso que eu sei. O Adam merece o melhor. Uma mulher-loba forte e bonita, uma mulher que seja...

— Mais inteligente, de boa raça? — sugeri.

— Não uma coiote arraçada — disparou. A loba dela estava nos seus olhos, e a sua voz era áspera. — Não uma mecânica estúpida ou uma merda de um elemento do corpo dos bombeiros. Nem sequer existe uma palavra apropriada para aquilo que eu sou. Elemento do corpo dos bombeiros. Ele precisa de uma mulher delicada, feminina.

— Ele merece tanto — disse-lhe lentamente. Tinha-a nas minhas mãos, apesar de isso me fazer sentir indisposta. Os coiotes não são gatos; nós não brincamos com as nossas presas. — Acho que ele merece um bando que o proteja.

— Eu protejo-o — replicou. Não lhe conseguia ver as mãos. Durante toda a conversa, mantivera-se em posição militar de descanso, e as suas mãos estavam escondidas atrás das costas. A julgar pela flexão dos seus bíceps, estava capaz de apostar que as tinha cerradas em punhos, e a sua voz não soava tão forte e determinada quanto tencionava. Mas as suas palavras disseram-me aquilo que eu tinha tentado perceber, disseram-me que não queria que ele morresse. Isso fazia com que o resto se tornasse simultaneamente mais difícil e mais fácil. Mais difícil porque ela ia sofrer ainda mais até que isto acabasse — mais fácil porque sobreviveria a isso.

— Ai proteges? — Mantive um tom de voz suave, o corpo relaxado. — É curioso, podia jurar que tu lhe armaste uma cilada para que morresse.

— Eu tirei-o de lá — disse-me. — Corri lá para dentro juntamente com o Darryl e tirei-o de lá.

— Não suficientemente cedo, Mary Jo — retorqui. — Podia facilmente ter morrido lá dentro. — Tive de respirar um pouco mais fundo para conseguir manter a postura relaxada. Ele podia ter morrido. Mas tinha de aproveitar o balanço, fazê-la ouvir-me, fazê-la ouvir-se.

— Quem é que estava contigo? — perguntei calmamente. — O Ben disse que quem quer que tenha sido, tem de ser mais dominante do que tu. Não foram nem o Warren nem o Darryl. — Ben teria reparado caso Darryl não tivesse ido à reunião. Ter-me-ia dito alguma coisa porque se quem estava a comandar as operações fosse Darryl, teria sido demasiado perigoso manter-se calado. O mesmo se aplicava a Auriele.

— Quem é que está logo abaixo deles na hierarquia do bando? — Vi-a suar. Ben tinha razão quando disse que se tratava de alguém numa posição superior. Mary Jo estava à espera que eu dissesse o nome dali a pouco, portanto tratava-se de alguém que não estava muito abaixo na hierarquia do bando. — A Auriele. Também não foi ela, pois não? Ela gosta do Adam. Ela jamais o deixaria entrar numa casa em chamas para salvar alguém que não estava lá.

Retesou-se perante a minha especulação.

— Depois temos o Paul. — Isso fê-la reagir. Interessante, não? Mas eu não era parva. — Mas não foi ele. O Adam não confia no Paul. Tê-lo-ia mantido aqui durante toda a reunião do bando. — O meu palpite sobre quem me influenciara no recinto de bowling recaía sobre Paul. Até ter percebido quão furiosa Mary Jo estava. Adam provavelmente também suspeitara dele. Paul ainda estava zangado por ter perdido uma luta com Warren, e culpara Adam por isso. Tal como Ben, Paul era uma pessoa amarga e difícil que não gostava de muitas pessoas. Mary Jo era uma das poucas de quem gostava, dela e do namorado, Henry.

Observei o seu rosto atentamente. Estava preocupada com a possibilidade de eu adivinhar. Se não tinha sido Paul, quem tinha sido? Mais abaixo na hierarquia do bando as coisas podiam tornar-se dúbias para uma estranha, que na verdade era o que eu continuava a ser. Percorri mentalmente todos os lobos que conhecia bem e depois parei. Henry? Ele era um tipo porreiro. Inteligente e perspicaz. Um banqueiro, pensei, mas não tinha a certeza, algo relacionado com finanças. Ele jamais... Hmm. «Jamais» era uma palavra brutalmente forte.

Perguntei-me o que sentiria Henry em relação ao fraquinho de Mary Jo por Adam.

— O Henry — disse experimentalmente, e vi o seu rosto empalidecer. Talvez ela não tivesse consciência do quanto me estava a dizer sem sequer abrir a boca. — O Henry estava contigo ontem à noite. O Henry disse-te para não te meteres com as criaturas feéricas quando pegaram fogo à minha casa.

A porta do quarto de Jesse abriu-se e Adam entrou, fechando-a suavemente atrás de si. Estava visivelmente perro e, a julgar pela imobilidade do queixo e a tensão da pele em volta dos olhos, também estava com dores. Pelo que me era dado a ver, estava a sentir muito mais dor do que aparentava. E o Alfa não revelava fraqueza se pudesse evitá-lo.

Vestia apenas um par de calças de artes marciais que terminavam na barriga das pernas, deixando os terríveis ferimentos nos seus pés claramente à vista. Também tinha outras partes do corpo em mau estado, mas em comparação com os pés, pareciam ferimentos menores.

— Ouvi a tua voz — disse-me, fazendo-me afastar os olhos dos seus pés para me concentrar no seu rosto. — Por isso encostei a orelha à porta, e mesmo com o barulho altíssimo daquilo a que a minha filha chama música, ouvi o que disseste, Mercy. — Olhou para Mary Jo, que se voltara para ficar de frente para ele e abandonara a sua postura militar. Simplesmente manteve-se ali postada, com ar vulnerável.

Se quem ali estivesse fosse Samuel, ter-me-ia preocupado com a possibilidade de ele ser demasiado brando com ela. Mas Adam na verdade não via as mulheres como o sexo mais fraco, e sabia como organizar e como reconhecer a organização quando a via.

O seu rosto indecifrável estava concentrado em Mary Jo.

— Então o Henry estava presente quando as criaturas feéricas pegaram fogo à casa da Mercy. E eu a pensar que tinhas ido sozinha. Porque eu sabia que o Henry estava em minha casa quando lhe tinha dito expressamente para te proteger a retaguarda ontem à noite. Não tenho dúvidas de que se lhe perguntasse, ele me diria que pensava que eu só pretendia que ele lá estivesse enquanto a reunião estava a decorrer... ou então iria encontrar outra explicação qualquer.

— Foi o Henry que te disse que a minha casa estava a arder, não foi? — disse-lhe. Tal como Adam, estava a observar Mary Jo. Não consegui ver-lhe a cara, mas estreitou os ombros. Um amigo meu de faculdade, um aluno do curso de Teatro, disse-me que os ombros são a parte mais expressiva do corpo. Tive de concordar com ele. Ela estava perto de ver o panorama geral da situação, porque estava à espera que Adam respondesse afirmativamente.

— Estou a ver que chegaste à conclusão lógica disto, Mercy — disse-me, porém os seus olhos mantinham-se em Mary Jo. — Pergunto-me se ela também já terá chegado... ou se é parte dela.

— O Henry entrou em tua casa a correr e levou-te até à caravana antes que mais alguém saísse da casa? — A voz de Mary Jo era decidida, mas não estava a discutir.

— Isso mesmo — concordou Adam. — Mais ou menos. Ele entrou na cozinha. Antes de eu ter oportunidade de lhe perguntar porque é que não estava a vigiar a Mercy, olhou através da janela e disse «O que é aquilo? É um incêndio? Meu Deus, a casa está a arder.»

— Ele sabia — disse Mary Jo com pouca firmeza. — Ele viu-os a pegar-lhe fogo. Não me deixou fazer-lhes frente porque tinha medo que eu me pudesse magoar. Disse-me que a Mercy e o Sam não estavam lá. Qual era o problema se a casa da coiote arrogante ardesse? Ela merecia sentir alguma dor depois de todo o mal que tinha causado.

Mary Jo olhou para Adam.

— Ele estava preocupado comigo. Estava mesmo furioso em relação à forma como os vampiros nos tinham atacado... Estava furioso com a forma como eu tinha sido ferida por estarem a tentar caçar a Mercy. Queria vingar-se da Mercy.

— Ele de facto devia dar-me importância — disse-lhe. — A namorada dele gostava tanto de mim como gostava dele. O Henry estava interessado em atingir o Adam. Viu uma oportunidade para se vingar dele e agarrou-a. — Olhei para Adam. — Da próxima vez que saltares para o interior de uma casa em chamas à minha procura, é bom que tenhas a porcaria da certeza de que eu estou lá. E vai calçado, porra. — Olhei novamente para os pés dele. — Estás a sujar o tapete com esse líquido nojento que te está a escorrer dos pés.

Sorriu.

— Também te amo, minha querida. E graças àquela altura em que o sujaste todo com o teu sangue, conheço um sítio onde retiram praticamente todo o tipo de sujidade de um tapete.

— Ele queria que o Adam ficasse ferido — disse à Mary Jo. — Porque se ele estiver ferido, fica vulnerável. Um Alfa pode ser desafiado em qualquer altura. Uma vez que o Adam está ferido, podia adiar o confronto sem que ninguém se queixasse, especialmente considerando que não pode haver lutas para a assunção da posição de Alfa sem a autorização do Marrok. Mas o bando está... — Olhei para Adam. — Desculpa, eu sei que a culpa é minha. Mas o bando está desintegrado. O Adam não pode adiar um confronto, não numa altura em que o bando está a viver toda esta perturbação. Se o fizer, é provável que enfrente algo pior do que uma luta formal... Terá de enfrentar uma rebelião.

Eu cresci num bando de lobisomens. Conheço os perigos. Nem mesmo o medo do Marrok consegue controlar completamente a natureza do bando. Essa é a razão pela qual um Alfa faz tudo o que estiver ao seu alcance para esconder a sua fraqueza do bando.

— O Henry desafiou-te? — A julgar pela voz, Mary Jo parecia chocada. — O Marrok vai matá-lo, isso se não o fizeres primeiro.

— Quase acertaste — replicou Adam. — Na verdade foi o Paul quem me desafiou. Entrou-me pela janela do quarto há coisa de quatro minutos e desafiou-me à frente do Ben, do Alec e do Henry. Nessa altura, o Henry ofereceu-se para dar boleia ao Ben, que ia buscar umas roupas para a Mercy, porque as mãos dele ainda estão demasiado doridas para conduzir, e sugeriu que o Alec os acompanhasse.

Fez uma pausa e depois, num tom pesaroso, disse:

— É essa a prestabilidade do Henry.

Mary Jo acenou com a cabeça.

— E o Alec é conhecido pela sua neutralidade. Não é um dos teus maiores fãs, mas também não é um dos exaltados.

Adam prosseguiu o seu discurso numa voz mais suave.

— Deviam ter combinado algum sinal para que ele e o Paul me aparecessem no quarto virtualmente ao mesmo tempo sem que o Warren ou o Darryl estivessem presentes para interferir. O Ben e o Henry testemunharam o desafio. O Henry ficou chocado com o facto de o Paul me ter desafiado estando eu ferido.

— Montaram-te uma armadilha — disse Mary Jo entorpecida. — Usaram-me para te montar uma armadilha.

— Isso era o que eu te estava a tentar dizer — disse-lhe, e depois acrescentei uma pergunta: — Só tu e o Henry é que me baralharam a cabeça no recinto de bowling, ou o Paul também ajudou?

Acenou afirmativamente com a cabeça, não se dando sequer conta das suposições que fizera porque estava demasiado distraída com a consciencialização de que as coisas podiam não ter acontecido como ela julgava.

— Eu, o Paul e o Henry. Foi o Paul que me sugeriu. «Num bando respeitável não podemos ter uma coiote como número dois». — Mary Jo olhou para Adam. — Ele disse que ela não era suficientemente boa para ti... e eu concordei. O Henry ficou muito relutante. Tive de o convencer. Ele armou-me uma cilada, não armou? Os dois armaram-me uma cilada.

Senti pena dela. Mas tinha sentido mais pena dela antes de ter tomado conhecimento de que o lobo que desafiara Adam fora Paul. Henry era um bom lutador — já o tinha visto lutar uma ou duas vezes — mas não tinha comparação com Paul. Paul... Em circunstâncias normais, também não me preocuparia com o facto de Paul enfrentar Adam, mas, em circunstâncias normais, dos pés de Adam não estaria a verter gosma para o tapete, e as suas mãos não estariam inchadas e em carne viva.

Essa era a razão pela qual não sentia por Mary Jo uma pena que me fizesse achar que ela ficava isenta de culpa ao apontar o dedo aos outros dois.

— A responsável pelo que se passou no recinto de bowling foste tu — disse-lhe. — É verdade que se eu e o Adam nos separássemos, o Paul não ia chorar, mas mais do que se livrar de mim, ele quer-se livrar do Adam. O Henry... Talvez para o Henry isso tenha sido a gota que fez verter o copo. Saberás melhor do que eu. Essa foi a primeira vez que ele percebeu o quanto desejavas o Adam?

Adam virou abruptamente a cabeça na minha direção. Presumo que não se tivesse apercebido do que Mary Jo sentia.

— O Paul — começou Mary Jo. Depois parou. Fechou os olhos e abanou a cabeça. — Não é o Paul. — Dirigiu um sorriso forçado a Adam. — O Paul é duro, e não é estúpido, mas não é um planeador. Jamais teria engendrado uma forma de te forçar a aceitar um desafio antes de estares preparado. Ela tem razão. É o Henry. O que é que eu posso fazer?

— Absolutamente nada — respondeu Adam. — A única coisa que podes fazer é seres mais inteligente na próxima vez.

— Quando é a luta? — perguntei, tentando parecer calma, tentando ser uma boa coiote que deixa o seu companheiro travar um duelo até à morte numa altura em que este sente dor a andar. Tinha de o fazer, porque lamentar e mostrar preocupação não iam fazer outra coisa senão tornar a sua vida mais difícil. Se recusasse o desafio, Paul tornar-se-ia Alfa, e se bem conhecia Paul, a primeira coisa que iria fazer seria matar Adam. Pelo menos assim o desejava Henry.

E a razão pela qual fora Paul a desafiá-lo e não Henry tinha a ver com o facto de que assim que isto chegasse aos ouvidos do Marrok, Paul era um homem morto. E isso deixaria Darryl à frente do bando, sendo Warren o seu número dois. O bando não iria tolerar que um homem gay assumisse a posição de número dois porque se acontecesse alguma coisa a Darryl, Warren passaria a liderar o bando. Portanto Warren seria morto ou levado para outro sítio por Bran — deixando Henry como número dois do bando.

Claro que para que isso acontecesse, Adam teria de perder a luta com Paul. Senti-me maldisposta.

Adam olhou para o relógio de Jesse, que marcava 9:15.

— Daqui a quinze minutos no dojo — respondeu. — Podes ir lá abaixo dizer ao Darryl e ao Warren que eles vão servir de testemunhas? Acho que me vou deitar mais dez minutos. — Já estava no corredor quando disse: — Se eu sobreviver, Mary Jo, vamos ter de encontrar uma compensação adequada para o que se passou no recinto de bowling. Estragaste uma noite muito promissora, e eu não me vou esquecer disso.

— A tua comida está fria — resmungou Darryl enquanto eu entrava na cozinha. — Espero que o que quer que tenhas ido fazer seja importante.

Jesse ainda lá estava, a secar a louça enquanto Auriele a lavava. Não havia como evitar isto, não depois de Paul ter especificado que a luta seria aqui — não havia possibilidade de convencer Jesse a esperar num sítio seguro até que tudo acabasse; tal pai, tal filha.

— O Paul desafiou o Adam — disse-lhes. — Daqui a quinze minutos no dojo, na garagem.

Darryl virou-se bruscamente com uma rosnadela, e Auriele colocou-se entre ele e Jesse, embora me parecesse que Jesse não se tinha dado conta uma vez que estava de olhos postos em mim.

— Como é que ele chegou até ao Adam? — perguntou Auriele. — Quem é que estava encarregado de olhar por ele?

— Eu — respondi após um momento de atordoamento. — Presumo que fosse eu.

— Não — disse Auriele. — Era o Samuel. O Ben disse que te deixou a ti, ao Adam e ao Samuel no quarto.

— O Samuel não pertence ao bando — rosnou Darryl, com os olhos dourados na escuridão do seu rosto.

Sam não era Samuel, pensei. Em circunstâncias normais, Samuel teria impedido que esse desafio acontecesse. Perguntei-me se Paul e Henry teriam tido consciência disso. Provavelmente não.

— A culpa é minha — disse-lhes.

— Não. — Tinha deixado Mary Jo no quarto de Jesse, mas devia ter vindo atrás de mim. — A culpa não é tua — afirmou Mary Jo. — Talvez o Warren ou o Darryl pudessem ter impedido o Paul, mas o Henry teve todo o cuidado no sentido de garantir que não estivessem lá. — Dirigiu-me um olhar inescrutável que fazia jus a Darryl, inescrutável mas não declaradamente hostil. — Eles não pensavam que o Samuel pudesse vir a interferir. Veem-no como um lobo solitário, não como amigo do Adam.

O olhar, percebi entretanto, tinha como propósito comunicar-me que ela não lhes contaria acerca de Samuel a menos que eu o fizesse.

— O Henry? — Darryl ficou chocado ao ponto de a sua fúria desaparecer. — O Henry?

Mary Jo levantou o queixo.

— Foi ele que planeou tudo. — Olhou para mim e depois desviou o olhar. — Ele quer ver o Adam morto e está a usar o Paul... e também me usou a mim para alcançar o seu objetivo.

— Foi isso que te disseram? — Henry em pessoa entrou na cozinha. Era um homem compacto, um pouco mais alto do que eu, de sorriso fácil e olhos cor de avelã dos quais sobressaíam mais o cinzento ou o dourado do que o castanho ou o verde. Usava um corte de cabelo conservador e, estava certa disso, barbeava-se regularmente com uma lâmina e não uma máquina de barbear, dado que uma máquina de barbear nunca produziria um resultado tão eficaz. — Mary Jo...

— Que inconveniente — murmurei. — Não poder mentir a outro lobisomem.

Se Mary Jo não se tivesse colocado à sua frente, ele ter-me-ia batido. Levou ela com o golpe dirigido a mim e foi projetada contra o balcão central. O tampo de granito soltou-se com o impacto e deslizou — Jesse agarrou a placa de granito antes que esta virasse e caísse no chão, voltando a colocá-la no sítio original. Se me tivesse batido com tanta força, não me teria levantado como Mary Jo — que o fez agarrada às costelas.

Auriele colocou-se à frente de Henry quando este se preparava para se aproximar de Mary Jo. Os lábios de Auriele elevaram-se.

— Hijo de perra! — disse ela numa voz colérica.

Henry corou, portanto o insulto atingiu-o. «Filho de uma cadela» é um insulto eficaz para um lobisomem.

— Hijo de Chihuahua — disse Mary Jo.

Auriele abanou a cabeça.

— O Darryl sempre disse que não podia ser o Paul a pessoa por trás de toda a agitação que temos vivido nestes últimos anos. Ninguém iria dar ouvidos ao Paul. Sabíamos que ele tinha razão, mas mais ninguém parecia encaixar. Teria suspeitado mais depressa do Peter do que de ti.

Peter era o lobo solitário e submisso do bando. Era inconcebível que um lobo submisso entrasse em jogos de poder. Se Auriele tivesse razão, tudo isto tinha começado muito antes do desastroso incidente no recinto de bowling.

— Há quanto tempo é que sabes que a Mary Jo seria capaz de te deixar pelo Adam sem sequer pestanejar? — perguntei.

Rosnou algo grosseiro.

— Não tens nenhum bom senso — disse Auriele. Presumi que estivesse a falar comigo, por isso respondi-lhe.

— Ele não vai fazer nada enquanto estiveres no meio de nós — disse-lhe. — É suficientemente esperto para ter medo de ti.

— Desde que morri — interveio Mary Jo, respondendo à questão que eu colocara a Henry. — Não é verdade? Desde a primeira vez em que recobrei os sentidos. Beijaste-me na testa e eu chamei-te Adam. Mas parece-me que já tinhas uma noção bem real disso antes desse episódio.

— Sai daqui — disse Darryl, num tom baixo cheio de fúria. — Sai desta casa, Henry. Quando voltares para assistir à luta, entras pela porta da rua. E é bom que rezes para que o Adam ganhe a luta, senão dou cabo de ti de uma maneira tal que não vai ser necessário um caixão para te enterrar. E vai ser preciso uma esfregona para limpar o que sobrar de ti.

Henry corou, empalideceu e voltou a corar. Abandonou a cozinha sem dizer uma única palavra. A porta da rua foi aberta e fechou-se em seguida com um estrondo.

Ben entrou com um aspeto carregado. Sam vinha imediatamente atrás dele.

— Onde é que o Henry vai com tanta pressa? Darryl, ainda bem que estás aqui, estava à tua procura. Acabei agora mesmo de falar com o Warren lá em baixo. Ouviste falar...? — Calou-se no momento em que viu Jesse ali postada. Olhou com atenção para todos nós. — Já vi que ouviram.

Darryl retesou-se.

— Samuel? — O seu tom de voz era suave.

— Já está assim há uns dias — explicou Ben. — Até agora tem corrido tudo bem. É uma longa história, e podes ouvi-la mais tarde; temos de estar na garagem daqui a cinco minutos.


9 De origem americana, o «hash brown» é feito a partir de batatas escaldadas que são posteriormente raladas e temperadas, moldadas em forma de triângulo e fritas. (N. do T.)


11

A única razão pela qual a garagem não estava apinhada de lobisomens tinha a ver com o facto de não ter passado tempo suficiente para a notícia se espalhar.

Em vez de trinta ou algo próximo disso, apenas estavam presentes dezoito, sem incluir Sam, que não pertencia ao bando. Porém, tive de continuar a olhar em volta e a contar porque parecia haver menos pessoas do que a minha contagem indicava. Na maior parte das lutas pela disputa da superioridade, como os combates de boxe ou luta livre, abundam os encontrões, os aplausos, as zombarias e as apostas. Nesta, o silêncio era arrepiante, e apenas uma pessoa se estava a mexer.

Paul corria parado numa das extremidades do piso almofadado, parando a cada dez ou quinze segundos para fazer alongamentos ou dar socos no ar. Era um homem alto com o cabelo loiro e a barba ruiva curta. A sua pele era a típica dos ruivos, pálida e sardenta. A excitação do combate iminente deixara-o corado. Tal como Adam, apenas vestia um par de calças de artes marciais.

Não existe nenhuma tradição que dite que as lutas pela disputa do mais forte tenham de ser realizadas na forma humana. No entanto, é comum assim acontecer porque desse modo o desafio baseia-se mais na técnica e na força. Quando se está armado com presas e garras, um golpe de sorte pode matar um oponente mais capaz.

No outro lado do tapete estava Adam, na «postura do cavalo», cabeça inclinada, olhos fechados e ombros relaxados. Todos os sinais de dor tinham desaparecido do seu rosto, mas não tinha sido capaz de eliminar a rigidez muscular causada pela dor que sentira durante o trajeto de casa até ao tapete. Mesmo que tivesse sido capaz, depois de se olhar para as crostas partidas nos seus pés e mãos, só um idiota não perceberia que ele estava em sarilhos.

Enquanto Alfa, mesmo tendo ficado tão gravemente ferido, os seus ferimentos deveriam estar a curar mais depressa. Mesmo reconhecendo que os lobisomens, inclusive o mesmo lobisomem, veem a velocidade da cura dos seus ferimentos variar de acordo com uma série de coisas. Podia estar mais ferido do que aquilo que nos dera a ver, ou o problema que estava a ter com o seu bando podia estar a interferir na sua capacidade de se curar. Tentei não parecer preocupada.

Eu e Jesse estávamos no lado onde Adam se encontrava, na aresta do tapete — local tradicional para a família do Alfa, mas não muito inteligente considerando que nenhuma de nós se saberia defender razoavelmente caso a luta ultrapassasse os limites do tapete. Sam estava ao lado de Jesse, e Warren no nosso meio, presumivelmente para impedir que os combatentes nos magoassem.

Adam não estava a usar relógio, mas exatamente às nove e meia segundo o relógio de parede, levantou a cabeça, abriu os olhos e acenou com a cabeça a Darryl.

Os lobos não são muito dados a fazer discursos longos. Darryl caminhou da zona lateral até ao centro do tapete.

— O Paul escolheu desafiar hoje o nosso Alfa — anunciou sem rodeios. Os seus lábios torceram-se quando disse: — Abdicou da formalidade de falar ao Marrok do desafio.

Ninguém murmurou ou pareceu surpreendido. Todos sabiam o que Paul tinha feito.

Havia a possibilidade de o Marrok olhar para a confusão em que estava o bando e conceder que Paul não tinha outra alternativa senão desafiar Adam. A probabilidade de o Marrok não vir a matar Paul seria ligeiramente maior se Adam não estivesse já ferido. Mas provavelmente Paul pensava que a razão estava consigo e que conseguiria convencer o Marrok disso mesmo.

Presumo que tudo seja possível. Não creio que Paul soubesse quão improvável isso era. Ele nunca, pelo menos que fosse do meu conhecimento, chegara sequer a conhecer o Marrok. Henry, que o conhecera, provavelmente tinha dito a Paul que não haveria qualquer problema. Pessoas como Henry são boas a levar os outros a acreditar nelas.

Darryl percorreu o público com os olhos.

— A minha função é impedir que vocês se aproximem do tapete. Estou disposto a acabar com as vossas vidas para garantir que isto seja uma luta justa. Estamos entendidos?

— Com licença — disse Mary Jo.

Tinha cerca de um metro e cinquenta, portanto só a vi quando se encaminhou para o tapete, colocando-se em frente a Darryl.

— Gostaria de desafiar o Paul — disse.

E depois fez-se barulho, um imenso barulho enquanto toda a garagem cheia de lobisomens protestava — as mulheres não entram em lutas de disputa do poder.

Darryl levantou a mão e o silêncio espalhou-se relutantemente.

— Estou três posições abaixo dele na hierarquia — disse. Os seus olhos estavam devidamente apontados para os pés de Darryl, porém o seu rosto estava virado para ele. — Tenho o direito de o desafiar para conquistar o direito de desafiar o Alfa.

Fixei-me nela. Isto não era algo que esperaria da Mary Jo que permitira que as criaturas feéricas pegassem fogo à minha casa quando devia estar de sentinela.

— Não estás três posições abaixo — rosnou Darryl.

Mary Jo levantou a mão.

— O Paul — disse. Depois levantou um dedo. — O Henry. — Um outro dedo. — O George e eu.

Ela tinha razão. Essa era a posição em que também eu a colocaria.

— Tu és uma mulher sem parceiro — replicou Darryl. — Isso coloca-te no fundo da hierarquia. Quem está a seguir ao George é o Alec.

— Alec — chamou, sem desviar a atenção de Darryl. — Quem é mais dominante, tu ou eu?

Alec contornou os restantes lobos, olhou para ela e depois para Paul. Consegui perceber a resposta que pretendia dar, e Darryl começou a relaxar. Adam, reparei, estava a observar Mary Jo com ar de respeito e surpresa.

Alec abriu a boca, depois hesitou.

— Vocês iam perceber todos se eu mentisse — acabou por dizer. Levantou ambas as mãos num gesto de rendição. — Espero que saibas o que estás a fazer, Mary Jo. — Olhou Darryl nos olhos e disse: — A Mary Jo é superior a mim.

E o caos reinou. Paul encostou a cabeça à cara de Darryl e enfureceu-se. Era um dos muito poucos elementos do bando suficientemente altos para ficar olhos nos olhos com Darryl. Se o barulho não fosse tanto, teria conseguido ouvir o que ele dissera — mas podia supor. Paul gostava de Mary Jo. Não queria matá-la.

Mary manteve-se ali como uma estaca; à semelhança de Adam, era uma ilha de calma no meio do tumulto. Era baixa, mas cada quilo de peso que tinha era músculo. Era dura, rápida e ágil. Não tinha assim tanta certeza como Paul de que ela perderia — eu não quereria lutar com ela. Se ganhasse, podia render-se a Adam. Se ela decidisse lutar — e não me parecia que ela fosse fazê-lo —, fá-lo-ia cansada e possivelmente ferida.

Depois lembrei-me da forma como Henry a lançara contra o balcão central da cozinha. Tinha partido, ou pelo menos rachado, as costelas aquando do choque. Apesar de não conseguir detetar isso no modo como se mexia, não tinha passado tempo suficiente para ela se curar. Ninguém se curava tão depressa, a menos que fosse um Alfa numa noite de Lua cheia.

— Basta — rosnou Warren subitamente, a sua voz a ressoar no tumulto como um tiro disparado numa multidão.

Darryl virou-se para Mary Jo e disse:

— Não.

— Não te cabe a ti decidir — informou-o. — Adam?

— Estou com um problema — disse ele. — O sentido de justiça exige que eu não tome esta resolução uma vez que sou parte interessada na decisão. Em nome da justiça, então, que decidam os três abaixo de mim na hierarquia: a Mercy, o Darryl e a Auriele.

Olhou para mim.

Eu sabia o que queria dizer. Auriele muito provavelmente concordava com Mary Jo — e já todos conhecíamos o ponto de vista de Darryl. Mesmo se Mary Jo perdesse, iria ajudar Adam. Olhei para os lobos e vi imensas expressões de ressentimento — também tinham feito as contas e estavam muito descontentes com o facto de eu fazer parte da decisão.

Depois constatei que se criara algum espaço para opinar.

— Parece-me que existe um outro problema — disse eu. — Se estamos de acordo que a Mary Jo pode lutar por estar três posições abaixo do Paul, permito-me alegar que o Paul não está três posições abaixo do Adam. — Tal como Mary Jo, levantei a mão. — Primeiro o Adam, depois eu. — Levantei um dedo. — O Darryl e a Auriele, e depois o Warren.

— E depois a Honey — disse Warren com um ligeiro sorriso. — E depois o Paul.

Paul rosnou.

— Ele já aceitou o desafio. Isso pressupõe que eu tenho o direito de lutar com ele.

Olhei para Adam.

— Boa tentativa — disse-me. — Mas concordo com o Paul.

— E o código de conduta oficial — interveio Ben, mal-humorado, — que tive de memorizar muito bem antes de me ser permitida a entrada no bando, diz, e passo a citar, «três homens», fim de citação. Sendo que a palavra importante é «homens».

— Portanto a Mary Jo não pode lutar — disse Paul com um amplo sorriso de alívio. — Ela não é um homem.

— Portanto aquilo que a Mary Jo reivindica ainda é válido — salientei. — Ela está três homens abaixo da tua posição na hierarquia. O código de conduta diz que quem desafia tem de ser um homem? — Kyle dissera-me que um dos segredos de se ser advogado consistia em nunca fazer a uma testemunha uma pergunta cuja resposta não se sabe. Eu sabia o que dizia o código de conduta, mas soaria melhor vindo da boca de outra pessoa.

— Não — disse Ben.

Tinha feito tudo o que estava ao meu alcance. Com a instigação silenciosa de Adam a incitar-me, olhei para Mary Jo e disse:

— Tal como o Adam, também eu tenho muitos interesses em relação a isto.

— Mercy — sussurrou Jesse ferozmente. — O que é que tu estás a fazer? — Dei uma palmadinha na mão com que me agarrara o pulso.

— Nesse caso, cabe ao Darryl, à Auriele e ao Warren decidir isto — disse Adam.

Porque o meu vínculo com Adam estava novamente a funcionar, sabia que ele acreditava que se eu fizesse parte da tomada de decisão, isso se tornaria em mais um elemento para alimentar a discórdia. Mais uma coisa estúpida que a permissão da entrada de uma coiote num bando de lobisomens conseguira — em vez do que deveria ser, um reconhecimento do direito que Mary Jo tinha de desafiar Paul, independentemente do seu sexo. Calculei que ele tivesse razão.

— Só há três elementos do sexo feminino neste bando — disse Darryl. Creio que se terá esquecido de mim porque se queria referir às mulheres-lobas, e não tanto aos elementos do sexo feminino em geral. — Isso é comum a todos os bandos. A maior parte dos lobisomens morre antes de chegar à década de existência enquanto lobo, mas para as mulheres que são lobas, a esperança de vida quase duplica por não lutarem com os homens pela disputa do poder. E ainda assim são muito poucas. Vocês são demasiado preciosas para nos podermos dar ao luxo de arriscar as vossas vidas.

Demorei algum tempo a perceber que ele não estava a falar para todo o bando, mas para a sua parceira.

Auriele cruzou os braços.

— Isso faz sentido numa espécie onde as mulheres são importantes para a sobrevivência. Mas nós não somos. Não podemos ter filhos, e por isso somos tão valiosas para o bando como qualquer outro elemento.

A julgar pelo tom com que falara, aquele parecia ser um debate antigo.

— Eu voto não — disse Darryl, estalando os dentes enquanto falava.

— Eu voto sim — replicou Auriele friamente.

— Que merda — comentou Warren. — Como se já não bastasse o problema em si, vão atirar-me para o meio de um problema conjugal?

— Cabe-te a ti decidir — disse Auriele de forma determinada.

— Que diabo — disse Warren, — se isto não é uma situação difícil, não sei o que será. Mary Jo?

— Sim?

— Tens a certeza de que queres fazer isto, querida?

De repente, pareceu que todo o bando susteve a respiração.

— A culpa de tudo isto é minha — respondeu-lhe. — O facto de o Adam ter ficado ferido, de o bando andar tão agitado. Não causei tudo isso, mas também não impedi que acontecesse. Acho que chegou a altura de compensar tudo isso de uma forma adequada, não concordas? Tentar reparar os danos?

Warren fixou-se nela, e vi o lobo dele aparecer-lhe e desaparecer-lhe nos olhos.

— Está bem. Está bem. Podes lutar com ele, Mary Jo, e é bom que ganhes, que diabo. Estás a ouvir?

Fez que sim com a cabeça.

— Vou dar o meu melhor.

— Dá mais do que isso — replicou num tom sinistro.

— Mary Jo. — A voz de Paul era de lamento. — Não te quero magoar, mulher.

Mary Jo descalçou-se desferindo dois pontapés no ar e começou a tirar as meias.

— Rendes-te? — perguntou a Paul enquanto este se equilibrava sobre um pé.

Ele fixou-se nela com o corpo cada vez mais tenso da raiva crescente.

— Arrisquei o meu pescoço por ti — replicou.

Ela acenou afirmativamente com a cabeça.

— Sim. E eu fiz mal em pedir-te para o fazeres. — Atirou a segunda meia para o lado e olhou para ele. — Mas o Henry usou-nos aos dois para arruinar o nosso bando. Vais permitir que ele escape sem castigo?

O ambiente na garagem era de uma grande calma. Nem sequer tinha a certeza de que alguém estivesse a respirar. O nome de Henry provocara um choque. As cabeças viraram-se na direção dele, que se encontrava encostado à parede entre as portas da garagem, o mais longe possível da extremidade do tapete onde estava Adam.

Paul também olhou para ele. Por momentos, pensei que iria resultar.

— Vais permitir que uma simples rapariga te endromine como me fez a mim? — disse Henry, num tom de voz de quem se sentia num estado miserável. — Ela quer o Adam, e está disposta a desfazer-se de nós para ficar com ele. — Foi um desempenho de mestre, e Paul caiu como um patinho.

— Assim sendo, vai para o diabo — disse Paul a Mary Jo. — Vai para o diabo, Mary Jo. Aceito o teu desafio. — Olhou para Adam. — Vais ter de esperar. Acho que vou começar pela sobremesa.

E encaminhou-se para a extremidade do tapete, ao lado de Henry. Mary Jo caminhou na direção do local onde Adam estava postado.

— Tentativa de compensação aceite — disse Adam. — Não te esqueças que ele luta com o coração e não com a cabeça.

— E que é mais lento a mover-se para a esquerda do que para a direita — concordou Mary Jo.

Adam saiu da beira dela. À medida que atravessava o tapete branco, ia deixando pequenos vestígios de sangue nos sítios onde pousava os pés. Sangue era melhor do que pus amarelo, certo?

— Bom trabalho — murmurou quando chegou junto de mim. — Obrigado. Não sabia se me conseguias ouvir ou não.

Warren cedeu a Adam o seu lugar entre mim e Jesse, contornando Jesse de modo a poder continuar a servir-lhe de amparo caso fosse necessário. Sam colocou-se ao meu lado e pousou o corpo sobre o cimento com um suspiro.

— Não te esqueças de me dar os parabéns quando ela estiver morta — disse eu, muito baixinho. Ter-lhe-ia contado acerca das costelas dela, mas tinha receio que isso fosse ouvido pela pessoa errada e Paul viesse a saber. Henry sabia, evidentemente... mas estava em crer que ele não iria contar a Paul que tinha partido as costelas a Mary Jo. Paul não compreenderia o porquê, e Henry era suficientemente esperto para saber isso.

Mary Jo adotou a «postura do cavalo» em que Adam se encontrava anteriormente e virou-se para Paul, que estava de costas voltadas para ela.

— Desafio lançado e aceite — comunicou Darryl. — Combate até à morte, tendo o vencedor a opção de aceitar uma rendição.

— De acordo — disse Mary Jo.

— Sim — disse Paul.

Mary Jo era mais rápida, e era uma lutadora mais bem treinada. Mas quando batia, não o fazia com tanta força. Se Paul estivesse mais próximo dela em altura, Mary teria boas hipóteses de o derrotar. Mas era cerca de trinta centímetros mais alto do que ela, o que se traduzia em alcance. Lembrava-me da luta dele com Warren, e de quão surpreendentemente rápido era para um homem da sua altura.

De repente, golpeou o ombro dela com o punho, fazendo-a tombar no chão como se tivesse sido atingida por um martelo.

— Rende-te — disse Paul.

Ela colocou os seus pés entre os dele e afastou-os. Em seguida, rolou como um macaco entre as suas pernas abertas, dando-lhe uma cotovelada nos rins enquanto se levantava atrás dele. Um segundo pontapé atrás do joelho quase o fez cair, porém recuperou.

— O tanas é que me rendo — disse ela com os dentes cerrados, a pouca distância dele.

— Para de ser brando com ela — disse Darryl com firmeza. — Isto é um combate até à morte, Paul. Ela vai matar-te se puder. Se aceitaste o desafio dela, deves-lhe o respeito de lutar honestamente.

— Exatamente — interveio Adam.

Paul rosnou baixinho e recuou até à extremidade do tapete, levantando ambos os braços numa posição de bloco alto, os pés perpendiculares um em relação ao outro, mãos cerradas num punho pouco firme, convidando deliberadamente a um golpe no torso.

O problema com uma armadilha daquelas era que se Mary Jo conseguisse safar-se bem, talvez conseguisse transformá-la num erro muito grande. Agarrei o braço de Adam e esforcei-me por não lhe cravar as minhas unhas. Estava tenso ao meu lado, murmurando:

— Cuidado, cuidado. Ele é mais rápido do que parece.

Mary Jo deslocou-se lentamente para a esquerda, depois para a direita, e Paul virava-se com toda a facilidade de modo a ficar de frente para ela. Ela deslocou o seu peso para a direita — mas num gesto rapidíssimo moveu-se para a esquerda e preparou o ataque, baixando-se e fazendo um movimento súbito para a frente, semelhante ao de um esgrimista, desferindo, com uma rotação de anca e ombro, um soco semelhante ao arremesso de uma lança. Foi um golpe perfeito, aplicado com uma rapidez sobre-humana.

Paul rodou o corpo com elegância e o seu punho, veloz como um raio, perfurou o ar, tocando-lhe no estômago apenas de raspão. Então, ele lançou ambos os punhos, como martelos, contra as suas costas desprotegidas, fazendo-a estalar-se no chão com um ruído semelhante ao de um trovão distante. Ao meu lado, Adam resmoneou, como se ele próprio tivesse sentido o impacto dos punhos de Paul.

Mary Jo estava claramente atordoada, deitada sobre o estômago a pestanejar. A boca dela parecia a de um peixe quando fora de água. Depois inspirou de forma longa e trémula e voltou a ver direito. Se as suas costelas já estavam lesionadas anteriormente, devia estar em agonia depois do golpe que tinha levado.

Qualquer pessoa sã perceberia que a luta tinha terminado, e teria implorado rendição, porém, ela debatia-se lentamente para colocar os cotovelos debaixo do corpo e levantá-lo do tapete. A boca de Paul torceu-se num sorriso triste enquanto observava os esforços dela.

— Deixa-te ficar deitada — disse-lhe Paul. — Deixa-te ficar deitada. Rende-te, que diabo. Não te quero magoar mais.

Já se encontrava sobre os cotovelos e estava a levantar os joelhos quando ele levantou uma das pernas num gesto vistoso e, com a parte lateral do pé, a atingiu na coxa, fazendo-a estatelar-se novamente no tapete. Soltou um grito curto, mas lançou os joelhos para debaixo do corpo e pôs-se de pé.

A guarda dela estava demasiado baixa, o seu cotovelo esquerdo pressionado contra as costelas lesionadas. Abaixo do seu cotovelo, uma pequena mancha de sangue vermelho-vivo começava a espalhar-se lentamente. Todos os lobos presentes conseguiam cheirá-lo, e eu também. Receava que uma das costelas lesionadas pudesse ter perfurado um pulmão. A sua perna esquerda não estava muito boa e ela adotou uma posição simples com a maior parte do seu peso a incidir sobre o pé direito. Estava mesmo no limite do tapete, o que a impossibilitava de recuar mas também significava que Paul não podia circular à volta dela.

Paul avançou lentamente, cuidadosamente, um predador a seguir uma presa ferida. Mas vi-o franzir o sobrolho quando olhou para as costelas de Mary Jo. Estava a tentar perceber como é que ela se tinha magoado ali.

Movimentou-se para a esquerda e para a direita, forçando-a a usar a perna lesionada. A cabeça dele mantinha-se inclinada. Devia ter ouvido o mesmo que eu — o ténue murmurar de um pulmão maltratado. Tinha a boca aberta, tentando inspirar mais oxigénio.

Paul desferiu um poderoso pontapé frontal sem qualquer elegância, mas força de sobra. Mary Jo baixou ambos os braços e atenuou a violência do golpe, que visava a sua perna lesionada, mas ainda assim recuou aos tropeções para fora do tapete.

Conseguiu manter o equilíbrio, por pouco, mas era óbvio que a perna estava praticamente inutilizada. Uma onda irregular de mãos empurrou-a de forma brusca para o interior do ringue onde Paul a esperava.

— Está tudo bem — disse Adam. — Está tudo bem. Rende-te, Mary Jo.

Mary Jo parecia derrotada, mas quando entrou no ringue, a sua perna lesionada elevou-se subitamente, os dedos dos pés esticados como os de uma bailarina. O seu pontapé foi tão simples quanto fora o de Paul. Direto, apontado ao interior das coxas dele.

Tentou bloqueá-lo, mas já era tarde de mais. Ouviu-se um impacto surdo e Paul expirou com violência, como se da sua boca tivesse saído uma explosão. Recuou rapidamente, inclinou-se para a frente com os punhos em cruz sobre as partes baixas e todos os músculos do torso tensos por causa da dor súbita. Mary Jo avançou, embora conseguisse perceber que sentia dor, e tirou proveito da sua guarda baixa para o atingir na nuca com um soco martelo.

Um perfeito golpe num nervo, pensei. Ainda bem para ti, Mary Jo.

Se ele não fosse um lobisomem, teria ficado a ver estrelas e a ouvir sinos durante semanas. Os seus olhos estavam muito claros, como os dos lobos, e os seus braços mexiam-se de forma estranha enquanto os ossos debaixo da pele começavam a transformar-se. Paul abanou a cabeça, tentando afastar os efeitos do golpe. Se ela estivesse em melhor estado, podia ter acabado com ele.

Mas Mary Jo estava demasiado lenta. Paul endireitou-se e, a muito custo, puxou as mãos para trás de modo a colocar-se em posição de defesa. Depois aproximou-se dela lentamente, implacavelmente, limitando-se a andar para encurtar a distância. Mary Jo tentou socá-lo na garganta, mas Paul bloqueou o golpe com a mão direita, depois empurrou-lhe o cotovelo com a esquerda, fazendo o corpo dela girar, e deu-lhe uma joelhada nas costelas lesionadas, com força. Ela foi ao tapete, de barriga para baixo e a cuspir sangue. Paul lançou-se para o chão, aterrando com as pernas sobre os ombros dela. Agarrou-lhe uma das pernas e começou a puxá-la para trás, curvando-lhe as costas num arco tenso. Ouviam-se ligeiros estalidos e Mary Jo esgaravatou o tapete freneticamente, já sem controlo e com o seu lobo a lutar pela sobrevivência.

— Raios partam — disse ele. — Rende-te. Não me obrigues a matar-te.

Não sei por que razão, nesse momento olhei para Henry. O cabrão estava a assistir a tudo sem qualquer emoção no rosto.

— Rende-te — gritou Adam. — Mary Jo. Rende-te.

Mary Jo bateu com a mão direita no tapete, duas vezes.

— Ela rende-se — disse Paul, olhando para Darryl.

— O Paul ganha — anunciou Darryl. — Aceitas a rendição dela?

— Sim, sim.

— O combate terminou — declarou Darryl.

Paul saltou de cima dela e rodou-lhe o corpo.

— Médico — disse, frenético. — Médico.

Algumas cabeças voltaram-se para Sam. Não se mexeu, mas ficou quase a tremer por causa do seu impulso de ajudar. Fechou os olhos e acabou por virar costas à cena. Foi Warren quem puxou a t-shirt de Mary Jo para cima, e Adam quem foi buscar o kit de primeiros socorros.

Agarrei Jesse, e ambas nos mantivemos afastadas. Poucos segundos depois, não conseguia ver o que se estava a passar por causa de todas as pessoas que se juntaram à volta dela.

— Tenho de lhe arrancar a costela do pulmão — disse Adam com firmeza. Depois: — Quanto aos pedaços partidos, tiram-se. Eles voltam a crescer. — Entre os lobisomens, a medicina é, em muitos sentidos, muito mais simples, ou mais brutal, do que para os humanos. — Segura nela, Paul. Quanto mais ela contrariar, mais lhe vai doer. — Depois, numa voz muito mais suave, trauteou: — Aguenta-te, querida. Vamos pôr-te a respirar melhor daqui a nada.

— Eu não lhe bati nas costelas — disse Paul.

— Henry mandou-a contra o balcão da cozinha — disse Auriele. — Toma. Não deites a vaselina toda. Só um bocadinho à volta da ferida para selar a almofada de teflon, mas tens de pôr adesivo em três lados da almofada, e isso vai funcionar melhor se não estiveres a pôr adesivo numa pele cheia de adesivo.

Houve uma onda de silêncio aliviado quando o que estavam a fazer pareceu começar a surtir efeito e Mary Jo voltou a respirar. As pessoas afastaram-se, dando-lhe espaço depois de perceberem que ela já não corria perigo imediato.

O dojo estava equipado com uma maca — algo bastante rudimentar, apenas uma estrutura metálica com lona à volta e duas pegas de cada lado. Alec e Auriele levantaram Mary Jo do chão e transportaram-na para o interior da casa. Um humano ficaria mal durante bastante tempo se tivesse um pulmão perfurado. Com alguns quilos de carne crua, o pulmão de Mary Jo provavelmente ficaria ótimo em poucas horas, senão mesmo antes. As costelas iriam demorar mais tempo a sarar, mas voltariam ao normal em poucos dias, uma semana no máximo. Não é preciso haver preocupações com infeções ou infeções secundárias quando pedaços de costela ou pulmão voltam a crescer.

Henry não se tinha mexido do lugar onde estava. Reparei que estava a ser alvo de olhares por parte do resto do bando. E quando começaram a afastar-se do tapete por causa da batalha final, abriu-se um espaço em redor de Henry — e esse espaço não existira até ali.

Enquanto dois dos lobos limpavam o sangue do tapete, Paul regressou ao seu canto do tapete e Adam ao seu.

Mantive-me de olhos postos em Paul. Aquele golpe na nuca desferido por Mary Jo...

A princípio, pensei que não o tinha afetado; a sua passada até à sua extremidade do tapete tinha sido bastante firme. Mas antes de o sangue de Mary Jo ser completamente removido do tapete, Paul abanou a cabeça devagar e levantou uma mão para coçar a orelha, evitando o local onde tinha sido atingido. Pestanejou rapidamente e parecia ter dificuldades em concentrar a visão.

Depois Paul expirou longa e uniformemente e recuperou a concentração. O seu corpo imobilizou-se e a sua respiração tornou-se profunda e regular. Estava postado como uma estátua, com o tronco nu coberto por um manto de suor. Não havia gordura alguma naquele homem, e parecia o cruzamento entre um anúncio da Calvin Klein e um poster de recrutamento para o exército.

Depois de as manchas de humidade terem secado superficialmente, Darryl regressou ao centro.

— Paul, ainda queres manter este desafio?

Olhou para Henry.

— Bateste na Mary Jo?

Ainda estava um pouco desequilibrado? Não conseguia perceber.

— Foi um acidente — disse Henry. — A Mercy disse... — Olhou para mim. — Sabes, uma coisa tão frágil como tu devia aprender a ficar de boca calada, assim as outras pessoas não teriam de pagar por ti.

— Pessoas com tanto a perder como tu — disse-lhe — deviam aprender a controlar melhor a sua fúria. — Enquanto insulto, faltava... substância às minhas palavras. Mas era mais importante obter uma resposta rápida do que ser esperta. Olhei para Paul. — A Mary Jo colocou-se entre mim e o Henry.

— E ainda assim deixaste-a lutar? — perguntou-me Paul incredulamente. — Não achaste que isso podia ser perigoso?

— Um combate até à morte é perigoso — repliquei. — Ela sabia do problema que tinha nas costelas. Eu sabia que tu não a querias matar.

Fixou-se em mim e depois relanceou os olhos a Henry. A Darryl, disse:

— Sim. Vamos despachar isto.

Darryl fez-lhe uma meia vénia, saiu do tapete e disse:

— Meus senhores, podem começar.

Começou lentamente.

Com o grosso da extensão do dojo entre eles, Paul fez uma saudação elaborada que não reconheci; um gracioso bater de mãos e antebraços combinado com meio passo à frente, e depois atrás. Produziu um som aspirado e sibilante que parecia extraterrestre e predatório.

Adam uniu os punhos à altura do peito e depois baixou-os lenta e silenciosamente, passando suavemente para uma guarda com as mãos abertas: uma saudação mais comum, simples e direta. Parecia muito semelhante à saudação que o meu sensei me ensinara. As crostas nos seus dedos estalaram enquanto os mexia.

Paul avançou numa rápida sucessão de passos em ziguezague, deslizando pelo tapete e tornando virtualmente impossível prever em que direção o levaria o passo seguinte. O seu braço esquerdo estava numa posição elevada, quase vertical, enquanto o direito mantinha uma guarda baixa, a mão inconscientemente posicionada perto das partes baixas.

Adam observava-o, rodando ligeiramente para o poder olhar de frente enquanto ele percorria o tapete. Teria ele visto o que eu tinha visto? Que Paul estava a pestanejar como se estivesse a querer melhorar a visão?

Adam sorriu um pouco. Seria para mim? Concluí que seria melhor tentar manter-me fora da cabeça dele se conseguisse descobrir como — e permitir que ele se concentrasse em Paul.

Paul desferiu um pontapé baixo e lateral no joelho de Adam, e este ergueu a perna para se defender. Quando Adam fez o bloqueio, Paul deteve o pé e depois, com um pontapé rotativo, visou a face direita de Adam. Paul era suficientemente possante para aplicar bastante força no pontapé, apesar da distância curta. Adam bloqueou-o a tempo, mas por pouco, e a força do pontapé fê-lo cambalear meio passo. Paul recuou num movimento que parecia de dança, ficando fora do alcance do adversário.

Adam avançou lenta e deliberadamente dois passos corajosos, de olhos postos no seu objeto de perseguição. Paul recuou, dando automaticamente terreno ao Alfa. Olhou para Adam, que cravou os seus olhou nele e assim se manteve. Com os lobisomens, uma batalha podia ser travada em múltiplas frentes.

Para escapar ao olhar de Adam, Paul desferiu um outro pontapé rotativo com a perna esquerda, mas estava demasiado distante para acertar com eficácia. Um desperdício estúpido de energia, pensei, mas pelo menos o gesto permitiu-lhe pôr fim ao contacto visual sem perder a disputa. Estava a usar mais as pernas do que os braços, e perguntei-me se teria magoado as mãos na luta com Mary Jo. Se era esse o caso, não se tinha magoado ao ponto de comprometer o seu desempenho.

Paul aproveitou o impulso do pontapé desperdiçado para rodopiar e conduzir o calcanhar direito na direção do estômago de Adam. Podia ser um parvalhão, mas sabia como se mexer, e era extraordinariamente rápido.

Uma vez mais, Adam conseguiu bloquear o pontapé, mas o bloqueio apenas atenuou a potência — Adam foi projetado para trás. Paul dirigiu-se imediatamente a ele, levantando os braços na posição de bloco alto que usara com Mary Jo. Adam recuperou o equilíbrio no momento em que Paul estava quase colado a ele e rodou sobre o pé esquerdo, projetando a perna direita num pontapé lateral. Ouviu-se o barulho de tecido a cortar o ar enquanto a sua perna era esticada ao máximo, porém, falhou o alvo por um palmo ou mais.

Paul cerrou os punhos e fê-los descer numa réplica exata do ataque que utilizara contra Mary Jo. Adam estava curvado, com a perna do pontapé falhado ainda estendida e as costas expostas aos punhos descendentes de Paul. E depois fez um daqueles movimentos que se vê nos filmes de kung-fu, rodopiando horizontalmente. Não fui a única pessoa a arquejar.

Não tinha falhado o pontapé; fora o início de algo belo e perigoso. A perna esquerda de Adam atingiu o ombro de Paul com uma força tal que o golpe de Paul falhou o alvo, atingindo o ar, enquanto ele rodopiava no meio do ar antes de se estatelar no tapete.

Paul atingiu o chão como um pinheiro que tivesse caído, e o som do seu braço a partir foi suficientemente alto para todos o ouvirem. Adam aterrou sobre o seu estômago, enfiando uma perna debaixo do corpo de Paul, que estava perpendicular a Adam. Contrariamente a Paul, a aterragem de Adam tinha sido deliberada e controlada. Antes que Paul pudesse reagir, Adam torceu o corpo e levou a canela da perna livre de encontro ao peito de Paul.

Nos filmes de karaté, parte-se aipo para replicar o som de ossos a partir. Acreditem-me, a minha audição é apurada, e percebo destas coisas: o barulho que as costelas de Paul fizeram não era minimamente parecido com o do aipo. Um humano poderia ter morrido depois daquele golpe; certamente teria precisado de RCP. Os lobisomens são mais duros do que isso.

Paul bateu com a mão no tapete.

— Ele rende-se — disse Adam.

— Vitória do Adam — anunciou Darryl. — Aceitas a rendição do Paul, Alfa?

— Aceito — respondeu Adam.

— A luta terminou — declarou Darryl.

Adam inclinou-se para Paul.

— Aquela intensidade que perdeste na luta com a Mary Jo foi o que me permitiu arranjar tempo para descobrir algo que te feriria, em vez de te matar. Podes agradecer-lhe o facto de estares vivo.

Paul mexeu a cabeça, expondo o pescoço a Adam.

— Farei isso, Alfa.

Adam sorriu.

— Ajudava-te a levantares-te, mas é melhor o Warren ver as tuas costelas antes. Já chega um pulmão perfurado.

Tinha estado de olho em Henry ao longo da luta. Olhei-o de relance no preciso momento em que pisou o tapete.

— Alfa — chamou. — Desafi...

Não chegou a terminar — porque saquei da SIG do meu pai de acolhimento e alvejei-o na garganta antes que tivesse oportunidade de o fazer.

Por um brevíssimo instante, todos olharam para ele, como se não conseguissem descortinar de onde tinha vindo todo aquele sangue.

— Estanquem o sangue — disse eu. Apesar de não ter ensaiado qualquer movimento no sentido de o fazer. Por mim, aquela ratazana bem podia morrer. — Era uma bala de chumbo. Ele vai ficar bem. — Embora fosse ficar algum tempo sem falar, ou desafiar Adam. — Quando estiver estável, ponham-no na cela, onde não terá como causar mais mal.

Adam olhou para mim.

— Estava à espera que trouxesses uma arma para uma luta corpo a corpo — disse, mostrando claros sinais de admiração. Depois olhou para o bando. O nosso bando. — Façam o que ela disse.


12

Quando o bando acompanhou Adam num cortejo triunfante até ao interior da casa, mantive-me na garagem juntamente com Jesse e Sam — ambos com um ar bastante atormentado.

Paul abandonara o dojo da mesma forma que Mary Jo, na maca — e devia estar a descansar ao seu lado num dos quartos do piso inferior, que eram considerados propriedade do bando e não tanto de Adam. Qualquer membro do bando podia exigir um quarto para dormir, ou ler, ou fazer aquilo de que necessitasse. Com Adam em casa, nem Paul nem Mary Jo teriam problemas relacionados com o autocontrolo enquanto se curavam — os lobos deles sabiam que o seu Alfa estava por perto para os manter em segurança.

Ser-se lobisomem implicava algumas coisas horríveis. Muitas, na verdade. Mas também havia alguns aspetos razoáveis — e alguns bons. Um deles era saber que enquanto o Alfa estivesse por perto, se tinha um local seguro onde estar.

Henry não tinha morrido da perda de sangue, pelo menos que eu soubesse, e provavelmente já estaria curado. Uma bala é um objeto pequeno, e o buraco que abre é uniforme desde que não atinja nada duro no seu percurso — como um osso. Estaria de pé antes de Mary Jo ou Paul. Claro que o que lhe aconteceria depois disso seria um ponto de discussão. Presumo que a decisão coubesse a Adam.

Warren esperou até que toda a gente, exceto eu, Sam e Jesse, se fosse embora. E depois fechou a porta.

— Dentro de cerca de cinco minutos, o Adam vai sentir a tua ausência — disse-me. — E dentro de seis minutos vais ter de o levar lá para cima e metê-lo na cama sem deixar que todo o bando perceba que daqui a dez minutos aquele homem vai cair inconsciente.

— Eu sei — repliquei.

O vaqueiro enorme dirigiu-me um sorriso cansado, apesar de, tal como eu, não ter feito mais do que assistir ao desafio.

— Foi uma bela luta. Suspeito que ele pudesse ter derrotado o Paul sem a interferência da Mary Jo.

Concordei com um aceno de cabeça.

— Mas agora o Paul regressou ao bando, mais feliz do que antes. E não creio que isso pudesse ter acontecido sem a Mary Jo.

— Detesto esta parte — disse Jesse com a voz tremente.

— A parte em que toda a gente está a salvo e queres encontrar um canto tranquilo onde possas berrar como um recém-nascido? — Warren relanceou-me os olhos. — Admito que é melhor do que quando as pessoas não estão a salvo, mas também não é a minha parte favorita. — Colocou o braço em volta dos ombros da filha de Adam e ela aconchegou-se nele.

— Pronto — disse-lhe Warren. — Podes chorar à vontade, querida. Ninguém te vai dizer que não tens o direito de o fazer. Força com isso e chora um bocadinho por mim, porque se o Kyle me apanha a chorar, vai achar que me transformei num maricas.

Jesse soltou uma risada, mas manteve a cabeça no mesmo sítio.

Warren olhou para mim.

— Vai lá. Tens o ombro de outra pessoa para chorar. Diz-lhe que eu cuido da Jesse. E, Samuel, também ficas comigo. Não precisamos de mais drama, e, até que a adrenalina baixe um pouco, duvido que o Adam seja capaz de mostrar a sua fraqueza a alguém que podia ser seu rival.

Sam esticou-se, bocejou e deitou-se.

— Obrigada, Warren — disse-lhe.

Sorriu e tocou a aba do seu chapéu de vaqueiro imaginário.

— Ora essa, minha senhora, só estou a cumprir o meu dever. O Darryl vai dar de comer ao povo uma vez mais, e eu vou tomar conta dos que ficaram para trás.

Jesse recuou e limpou os olhos com um sorriso no rosto.

— Alguma vez te disse que és o meu vaqueiro favorito?

— Claro que sou — respondeu presunçosamente.

— És o único vaqueiro que ela conhece — informei-o.

Relanceou os olhos ao relógio.

— Restam-te cerca de dois minutos.

— Mercy? — disse Jesse, agarrando-me o braço antes que eu pudesse ir. — E o Gabriel?

— Nós vamos encontrá-lo — afirmou Warren antes que eu tivesse possibilidade de responder. Sorriu-me. — Tenho uma boa audição, e a noite passada a casa estava suficientemente calma para se ouvir um telefone a tocar na cozinha. — Inclinou-se de modo a poder olhar Jesse diretamente nos olhos. — Andar às voltas de um lado para o outro sem sabermos nada não vai servir de grande ajuda. O Zee está a ver se descobre alguma coisa, e neste momento a nossa melhor opção é esperar por ele.

— Se o Zee não nos pudesse ajudar, por esta altura já nos teria dito — comentei, olhando apenas para Jesse. Não estava a falar com Warren; estava a falar com Jesse. Portanto não estava a quebrar o meu juramento. — Vamos tirar o Gabriel desta situação.

— Talvez incitemos a Sylvia a ir atrás deles — disse Warren.

— Soubeste o que se passou? — Claro que sabia. As novidades circulam depressa no bando.

— Soube o quê? — Jesse estava a regressar ao mundo real, pensei. O abraço de Warren tinha sido exatamente aquilo de que precisara.

— A Sylvia ameaçou chamar a polícia se eu voltasse a aparecer na casa deles. O Gabriel já não trabalha para mim. — Franzi o sobrolho. Não tinha pensado nisso, mas essa circunstância também poderia vir a afetar Jesse. — Não sei se ela te incluiu no grupo das pessoas proibidas, mas dado que ela ficou furiosa por eu não a ter avisado que o Sam era um lobisomem antes de a Maia o ter adotado como o seu novo pónei, presumo que toda a espécie de lobisomem irá ser indesejada durante algum tempo. Assim que o trouxermos para casa, vais precisar de falar sobre isso com o Gabriel.

Anuiu com a cabeça.

— Se o trouxermos para casa, estou disposta a discutir com a Sylvia sobre o meu direito de andar com o Gabriel.

— Fazes bem — comentou Warren.

Afastou-se dele às arrecuas e quase caiu em cima de Sam.

— Ei — disse Jesse a Sam. — Porque é que deixaste que fossem o Warren e o meu pai a tratar a Mary Jo?

— Ele não está em si — expliquei-lhe. — Não teria sido uma boa ideia.

Sam dirigiu-me um olhar repleto de culpa e desviou a cabeça.

Pensei naquele olhar culpado durante todo o meu percurso até à sala de estar, onde os elementos do bando estavam espalhados por toda a parte, na mobília e no chão. Havia mais lobos — retardatários a quem as lutas eram descritas golpe a golpe. E já não via o bando de Adam tão relaxado desde... sempre. Só neste último ano é que tinha convivido com os lobisomens — e não tinha sido um ano nada pacífico para o bando.

Honey intercetou-me quando me encaminhava na direção de Adam, que estava sentado numa das pontas do sofá de couro. Não tinha notado a presença dela na garagem — e teria notado caso ela tivesse estado presente, uma vez que Honey não passa despercebida, em parte porque é muito dominante e em parte porque é muito bonita — portanto ela devia ser um dos retardatários.

— Reconheceram a Mary Jo como mais dominante do que o Alec? — perguntou. Não parecia satisfeita, o que era estranho. Pelo facto de o seu parceiro, Peter, ser um lobo submisso, Honey era considerada o elemento com a posição mais baixa na hierarquia do bando, com exceção de Mary Jo, apesar de, pela sua personalidade e pela sua capacidade de luta, ter capacidades para figurar no topo. Talvez a ideia de ser colocada na posição hierárquica que merecia colidisse com a sua ideia do que uma senhora deveria ser. Talvez ela tivesse a preocupação de isso poder vir a causar problemas no seio do bando, ou entre ela e o seu parceiro. Talvez tivesse medo de vir a ser alvo de desafios para disputa do poder. Fosse qual fosse o motivo, o problema dela ocupava uma posição absolutamente secundária na minha lista de prioridades — Adam estava a inclinar-se para a direita. Dali a pouco tempo, alguém iria reparar.

— Sim — respondi, contornando-a e aproximando-me de alguém que estava deitado no chão sobre o flanco. — Não me perguntes o que isso significa a longo prazo; acho que ninguém sabe. Adam?

Olhou para cima e perguntei-me se Warren não teria retirado um minuto à sua contagem decrescente até ao colapso de Adam; o estado dele era muito mau.

— Anda comigo. Temos de ligar ao Marrok. — Invocar o nome do Marrok deveria anular a possibilidade de alguém vir atrás de nós. Fortaleci essa improbabilidade ao acrescentar: — Ele não vai ficar satisfeito com o facto de ser deixado fora disto. Quanto mais cedo souber, melhor.

Adam pestanejou, mas manteve no resto da face uma expressão estoica.

— Se vou levar uma reprimenda, é melhor irmos para o meu quarto. Ajudas-me a levantar, por favor? O Paul aplicou-me uns golpes bem fortes.

Estendeu uma das suas mãos doridas e maltratadas e eu agarrei-a sem mostrar qualquer reação perante a dor que terá sentido ao fechar a sua mão na minha. Era uma encenação para dar ao bando a garantia de que estava mais forte do que nunca. Parou de pestanejar e na sua boca desenhou-se um sorriso enquanto se levantava descontraidamente, sem puxar a minha mão.

Quando chegámos à beira do imbecil que estava sentado no único acesso à escadaria, Adam agarrou-me pela cintura e levantou-me no ar antes de ele próprio passar por cima do homem.

— Scott? — disse Adam enquanto subíamos os degraus.

— Sim?

— A menos que alguém te dê um tiro, te esfole e atire o que restar de ti para o chão, nunca mais te quero ver sentado na passagem.

— Sim, senhor!

Quando chegámos ao topo das escadas, senti o peso da sua mão no meu ombro, e Adam foi-se inclinando cada vez mais sobre mim à medida que nos encaminhávamos para o quarto.

Alguém — e apostava que tinha sido Darryl — deixara três gigantescas sandes de rosbife, uma chávena de café quente e um copo com água gelada na mesa ao lado da cama. A Medea estava a dormir sobre a almofada no meio da cama. Levantou os olhos na nossa direção e, ao ver que eu não fazia qualquer movimento para a expulsar dali, fechou os olhos e regressou ao sono.

— Migalhas nos lençóis — murmurou Adam, olhando atentamente para as sandes enquanto eu o conduzia até à cama.

— De certeza que há lençóis lavados algures neste mausoléu — disse-lhe. — Podemos encontrá-los hoje à noite e fazer a cama de novo. Pronto, já não tem migalhas. — Peguei em meia sandes e segurei-a à altura do seu rosto. — Come.

Sorriu e mordeu-me o dedo com um espírito brincalhão que julgava impossível nele, dado o seu estado.

— Come — disse severamente. — Comer e depois dormir. O resgate... — Mordi a língua. Adam era um lobo. Não podia falar com ele sobre Gabriel, por muito errado que isso me parecesse. — Comer e depois dormir. Tudo o resto pode esperar.

Mas era tarde de mais. Jamais deixaria aquela palavra passar. Aceitou a sandes, deu uma trinca e engoliu.

— Resgate?

— Não posso falar sobre isso. Fala com a Jesse ou com o Darryl.

Mercy?

A sua voz envolveu-me a cabeça como um revigorante vento invernoso, fresco e agradável para o meu gosto. Aqui estava uma forma de eu poder comunicar sem o discurso falado — se conseguisse descobrir como. Olhei-o intensamente.

Finalmente, sorriu.

— Não podes falar sobre isso. Prometeste... a alguém. Consegui captar isso. Dentro do armário está uma pasta com um bloco de notas dentro. Porque é que não o vais buscar e me escreves uma carta a explicar-me o assunto sobre o qual não podes falar?

Beijei-o no nariz.

— Tens andado novamente a conviver com as criaturas feéricas, não tens? Os lobos normalmente são um pouco melhores a conservar tanto o espírito como interpretar a lei à letra.

— Nesse caso, ainda bem que não és uma mulher-loba. — A sua voz estava grossa por causa da fadiga e dos danos causados pelo fumo.

— Achas mesmo isso? — perguntei-lhe. Quando estava a crescer, desejara ter sido uma mulher-loba para poder pertencer verdadeiramente ao bando do Marrok. Sempre perguntara a mim própria se, caso tivesse sido uma mulher-loba em vez de uma coiote, o meu pai de acolhimento teria reconsiderado a sua decisão de acompanhar a sua parceira na morte. Porém, quando Adam disse que estava contente por eu não ser uma mulher-loba, parecia tê-lo feito de forma sentida.

— Não mudava sequer um fio de cabelo em ti — replicou. — Agora vai lá buscar o bloco de notas e escreve tudo antes que eu morra de curiosidade.

— Fá-lo-ei se tu comeres.

Fez o obséquio de dar mais uma trinca e eu remexi o armário dele até encontrar a pasta. Desviou-se e a Medea protestou. Adam colocou-a então no seu colo para que eu me pudesse sentar na beira da cama. Enquanto, sentada ao seu lado, anotava tudo o que me ocorria, comeu quase metade de uma sandes («É tua», disse ele. «Come.») e adormeceu enquanto eu ainda estava a escrever.

Terminei.

— Adam?

Não se mexeu, mas reparei que as suas mãos estavam com melhor aspeto. O seu bando estava novamente com ele — pelo menos de momento. Ou se calhar tinha a ver com a forma como a sua magia optara por funcionar desta vez. As pessoas que se esforçam demasiado por explicar como funciona a magia acabam por ir parar a manicómios.

Acrescentei «Bons sonhos» no fundo da última página e pousei o bloco de notas ao seu lado. Saí silenciosamente do quarto e fechei a porta. Não tinha dado dois passos até o meu telemóvel começar a tocar. Era Zee.

— Vai para um sítio onde ninguém te ouça — disse Zee.

Vi a porta aberta e entrei no quarto de Jesse — onde não estava ninguém —, fechei a porta e liguei novamente a aparelhagem de som. Adam dormia como um morto; podia durar cinco minutos como podia durar várias horas. Mais ninguém ouviria nada.

— Pronto.

— Sei que não podes falar comigo sobre a mulher que nos levou o Gabriel — disse Zee. — Portanto, só me vais poder ouvir.

— Estou a ouvir.

— A avó do Phin está aqui ao meu lado, e precisamos de falar. Mas nada de lobisomens.

— Porquê? — A minha pergunta não se relacionava com o rapto, portanto entendi que era seguro colocar a questão sem aborrecer a rainha das fadas.

— Porque ela está cheia de medo deles, quase foi assassinada por eles. Nem sequer consegue olhar para um sem ter um ataque de pânico. E acredita que não queres ter esta senhora por perto quando está a ter um ataque de pânico.

Perguntei-me se teria sido tão compreensiva caso eu própria não sofresse de ataques de pânico.

— Ok. Onde?

— Boa pergunta. Tu já não tens casa — disse. — Ela não vive aqui, portanto não tem uma casa. Na minha casa não pode ser. Ela não vai para um sítio onde haja tantos seres feéricos.

— E a oficina, que te parece?

— Daqui a quinze minutos — concordou. — Tens alguma coisa que pertença ao Gabriel?

Abri a boca e fechei-a novamente. Quão específico seria o feitiço? Era melhor jogar pelo seguro.

— Não posso responder a essa pergunta.

— Leva qualquer coisa.

Uma voz feminina disse:

— Qualquer coisa que seja dele. Qualquer coisa a que ele esteja ligado, que seja importante para ele ou que lhe tenha pertencido durante muito tempo.

— Ouviste o que ela disse? — perguntou Zee.

Não disse nada.

— Ainda bem.

Desligou.

Não tinha nada que correspondesse ao que me tinha sido pedido. Gabriel era incrivelmente organizado; não deixava coisas dispersas pelos sítios.

Olhei à minha volta. Jesse teria certamente alguma coisa. As opções eram: ou isso ou ir confrontar Sylvia.

Pensar em Sylvia fez-me perceber que lhe devia ter telefonado assim que descobrira o que se tinha passado com Gabriel. Preferia passear completamente nua pelo centro comercial com uma boa de penas cor-de-rosa. Preferia ser fritada em óleo. Óleo rançoso.

Podia telefonar-lhe a caminho da oficina. Antes disso, precisava de encontrar Jesse, na esperança de que ela tivesse algo que pertencesse a Gabriel e que eu pudesse usar.

Convenientemente, Jesse entrou no seu quarto no exato momento em que eu ia sair à procura dela.

— Ando à procura do Samuel — disse-me. — Ele foi dar uma volta. O Ben diz que ele devia ser alimentado porque não comeu nada esta manhã, e por qualquer razão o Ben está todo agitado com isso. Não estava à espera de encontrar o Samuel aqui, mas também não estava à espera de te encontrar a ti.

— Ia agora mesmo à tua procura.

Olhou para mim, depois para a aparelhagem de som.

— Gostas dos Bullet for My Valentine? — perguntou. — E também dos Eyes Set to Kill, cujo CD partilhaste com a Mary Jo há bocado?

— Eu sei o que é o sarcasmo — repliquei. — Podias moderá-lo, que ainda assim perceberia onde querias chegar. Estava a ter uma conversa privada.

Dirigiu-me um breve sorriso.

— Deixa-me adivinhar. Sobre coisas que eu não devia saber porque sou uma rapariga. Não passo de uma humana. Não se pode correr riscos comigo.

— Sabes como usar uma arma? — Não tencionava perguntar-lhe isso. Tencionava perguntar-lhe apenas se tinha alguma coisa que pertencesse a Gabriel. Mas eu sabia qual era a sensação de estar parada sem fazer nada enquanto as pessoas estavam em sarilhos, sem nada poder fazer em relação a isso.

Imobilizou-se perante a minha pergunta — exatamente como o seu pai fazia quando algo importante se passava.

— Tenho uma bela M.1911 calibre .40 que o meu pai me ofereceu no meu último aniversário — respondeu. — Diz-me que encontraste o Gabriel...

E a intensidade da sua voz tomou a decisão por mim. Eram jovens — ele estava a tentar não assumir algo sério porque tinha a faculdade como objetivo; ela estava a tentar não assumir algo sério porque sabia que ele tinha esse objetivo. Podia ser que nunca viesse a dar em nada, mas ela gostava imenso dele, daí o seu enorme interesse — e se ela sabia usar uma arma, podia proteger-se.

Jesse era igual ao pai. Inteligente, perspicaz e dura. Como se não bastasse ter um dos meus frágeis humanos em perigo, estava a considerar a possibilidade de acrescentar mais um.

No entanto, não podia falar com as criaturas feéricas ou os lobisomens sobre Gabriel, e a opção da escrita, tal como a minha tentativa com Adam demonstrara, era muito morosa. Precisava de Jesse.

Puxei Jesse para o interior do quarto e fechei a porta.

— O Zee telefonou-me e quer que eu vá ter com ele à oficina dentro de quinze minutos. Está com uma criatura feérica que tem pavor de lobisomens, que nos poderiam ajudar. Precisamos de encontrar alguma coisa que pertença ao Gabriel e à qual ele esteja muito ligado. Não me parece que a intenção dela seja procurá-lo a partir do cheiro dele, por isso pode ser uma coisa dura, como um anel, em vez de coisas que tenham cheiro, como uma meia ou uma camisola.

— Posso ir?

— Podes ir a este encontro — disse-lhe. — Preciso de ti. Mas precisas de entender que não vou trocar o Gabriel por ti. Não vou permitir que te aconteça algum mal. — Dirigi-lhe o melhor sorriso que fui capaz de convocar porque os seres feéricos deixam-me completamente acagaçada. — Preciso de ti. Mas também preciso que me dês ouvidos quando te enviar para casa.

Fitou-me com os olhos do pai e percebi o momento exato em que tomou a decisão.

— Ok. Dizemos aos outros que vamos sair para comprar coisas de que precisas porque a tua casa ardeu?

— Coisas secretas de mulher — disse-lhe. — Lembra-te que eles percebem se tu lhes mentires. Portanto quando tudo isto acabar, vou comprar cinco quilos de gelado com pedaços de chocolate de menta.

— Coisas secretas de mulher — repetiu. — E se eles disserem ao Warren para nos acompanhar por acharem que ele poderá estar eventualmente interessado em coisas de mulher? O que não faz nenhum sentido porque o Kyle gosta de homens, quanto mais másculos, melhor. Mas se isso acontecer, o que é que fazemos?

— Medida preventiva — disse-lhe. — Primeiro vamos encontrar o Warren e dizer-lhe para vir cá para cima vigiar o teu pai, que está a dormir.

E nessa altura Sam apareceu de debaixo da cama.

Funcionou. Conseguimos chegar ao meu carro apenas com Sam ao nosso lado. Nenhum dos lobos no interior da casa se importou que eu e Jesse saíssemos juntas — porque estávamos com Sam.

— Tens de ficar aqui, Sam — disse-lhe. E depois parei. Olhei para ele. Olhei para ele com muita atenção.

O Sam lobo não teria voltado costas enquanto toda a gente estava a tentar socorrer Mary Jo — e não teria transparecido um sentimento de culpa por isso. Porque o Sam lobo não era médico — era um lobo. Esta manhã, Darryl reconhecera bastante depressa que Samuel estava em sarilhos. Mas na garagem não houve um único lobo que tivesse dirigido um olhar estranho a Sam. Porque quem lá tinha estado era Samuel.

— Bem-vindo de volta — disse-lhe, tentando agir como se não se tratasse de nada de especial. Não sabia por que motivo decidira assumir novamente o controlo, ou se isso era bom, mas calculei que quanto menos drama se criasse em torno disso, melhor se sentiria Samuel. Mas...

— Não podes vir connosco — disse-lhe. — Ouviste o que o Zee disse. Vamos ter com uma senhora que... — Parei de falar. — Como é que as criaturas feéricas conseguem fazer aquilo de mentir-sem-mentir? Que merda. Ouve, Samuel, vamos encontrar-nos com a senhora que morre de medo de lobisomens. Tens de ficar aqui. Não podes ir como lobo, e não tens roupa.

Limitou-se a ficar ali parado de olhos cravados em mim.

— Teimoso.

— Vamos chegar atrasadas — comentou Jesse. — E o Darryl está a olhar para nós através da janela com o sobrolho franzido.

Tirei a minha bolsa do interior do meu carro e segurei a porta traseira do SUV de Adam para Samuel entrar.

— Deve haver calças de ganga, fatos de treino e outras coisas no banco de trás se te quiseres vestir — informei Samuel. — E quando chegarmos à oficina, tens de ficar cá fora e deixar que sejamos nós a falar com ela. Se tudo correr bem, vamos descobrir... o que precisamos de descobrir... e depois disso suponho que vamos ficar muito contentes por teres ido connosco.

Quando estávamos a caminho da oficina, liguei a Sylvia. Era possível que insistisse em meter a polícia ao barulho — mas esperava conseguir dissuadi-la disso. O telefone tocou até ouvir o atendedor de chamadas.

— Sylvia, é a Mercy. Tenho notícias do Gabriel. Tem de me telefonar assim que...

— Já lhe disse — disparou Sylvia, atendendo a chamada. — A minha família não quer falar consigo. E se o Gabriel a escolhe a si em vez da família...

— Ele foi raptado — interrompi-a antes que ela pudesse dizer algo que mais tarde lhe viesse a partir o coração. Não era tão dura como gostava de dar a entender. Sabia disso porque também eu fingia muitas vezes ser mais dura do que na realidade era.

Quebrando o silêncio que se seguiu, disse-lhe:

— Aparentemente, foi à oficina ontem à noite e tentou levar um dos carros, algo que sempre lhe dei permissão para fazer. Você, melhor do que eu, saberá porque faria ele isso e para onde pretendia ir. Tenho um amigo que está metido num sarilho e esse sarilho acabou por estourar no Gabriel.

— O seu tipo de sarilho, certo? — perguntou. — Deixe-me adivinhar. Algum sarilho relacionado com lobisomens.

— Não é nenhum sarilho relacionado com lobisomens — repliquei, subitamente irritada com a sua assunção de que todos os lobisomens eram horríveis. Comigo, podia estar chateada, mas não ia permitir que falasse mal dos lobisomens.

— Diga à Maia que o lobisomem amiguinho dela vai arriscar o pescoço para lhe salvar o irmão mais velho, que foi raptado pelos maus da fita. — Porque eu sabia que Samuel, o meu Samuel que naquele preciso instante se estava a vestir no banco traseiro, jamais ficaria de braços cruzados a ver um humano sofrer. Ele era o único lobisomem que eu conhecia que se preocupava assim tanto com os banais humanos, pela simples razão de serem banais humanos. A maioria dos lobisomens, mesmo aqueles que gostavam de ser lobisomens, sentia aversão, senão mesmo ódio, pelas pessoas normais — pelo facto de serem aquilo que eles não podiam voltar a ser.

Sylvia manteve-se em silêncio. Supus que tivesse finalmente absorvido a informação de que Gabriel estava em sarilhos.

— O Gabriel está vivo — disse-lhe. — E conseguimos fazer com que os seus raptores percebessem que a saúde dele é importante para os objetivos que pretendem. A polícia não ia ajudar, Sylvia. Eles simplesmente não dispõem das ferramentas para lidar com estas pessoas. Meter a polícia ao barulho vai ter como único resultado piorar a situação e fazer com que alguém morra. — Como Phin. — O meu amigo lobisomem está ligeiramente mais bem equipado. Prometo que entrarei em contacto consigo quando descobrir mais alguma coisa, ou se você ou a polícia puderem ajudar. — E desliguei.

— Uau — disse Jesse. — Nunca tinha ouvido ninguém arrumar com a Sylvia desta maneira. Acho que até o próprio Gabriel tem algum medo dela. — Recostou-se no assento. — Ainda bem para ti. Talvez isso a faça pensar. Quer dizer, os lobisomens são assustadores, e são perigosos, mas...

— São os nossos lobisomens assustadores e perigosos e só comem pessoas de que não gostam.

Dirigiu-me um sorriso breve.

— Acho que era isso que eu queria dizer. Agora que colocas as coisas nesses termos, acho que consigo perceber porque é que ela ficou tão transtornada. Mas parece-me que o que ela estava a dizer quando obrigou o Gabriel a deixar de trabalhar contigo era que não confiava no discernimento do Gabriel. Como se ele fosse estúpido e trabalhasse num sítio que era perigoso.

— Um sítio onde pudesse vir a ser raptado por um grupo de criaturas feéricas sinistras? — perguntei secamente, mas depois prossegui: — Como se ele fosse o filho dela, o filho cujas fraldas ela mudou. É preciso perdoar aos pais por se comportarem como pais apesar de os filhos já não terem quatro anos. Para usar um exemplo não muito diferente, quando o teu pai descobrir que eu te levei a um encontro com uma criatura feérica desconhecida, vai tratar-me da saúde.

Nesse momento exibiu um sorriso rasgado.

— A única coisa que tens de fazer é deixá-lo gritar contigo, e depois dormes com ele. Os homens perdoam qualquer coisa por sexo.

— Jessica Tamarind Hauptman, quem é que te ensinou isso? — disse, fingindo-me horrorizada. Curioso como ela me fez sentir melhor depois de ter falado rudemente com uma mãe cujo filho fora recentemente raptado por uma rainha das fadas... Colocando a questão nestes termos, parecia que estava a falar da «Rainha da Neve». Esperava que não viéssemos a encontrar Gabriel como a pobre Gerda encontrara o seu Kai na história: com uma lasca de gelo no coração.

A carrinha de Zee já estava na oficina quando lá cheguei. O Fusca que emprestara a Sylvia estava estacionado onde ela o deixara, mas estava vandalizado. Alguém tinha arrancado a porta do condutor, o para-brisas estava partido e havia sangue no banco do carro.

Samuel não tinha terminado a transformação.

— Fica aqui — disse-lhe, e saí do SUV de Adam.

— Ele não é um cão — comentou Jesse enquanto caminhávamos em direção à oficina.

— Eu sei — suspirei. — Seja como for, ele não me vai dar ouvidos. Vamos tratar disto o mais depressa possível.

Zee tinha mudado a disposição das cadeiras no escritório de modo a que três delas ficassem viradas umas para as outras — a única coisa que faltava era uma mesa de cozinha. Quando viu que Jesse estava comigo, pareceu um pouco surpreendido mas puxou outra cadeira.

— Eu sou a mediadora — explicou Jesse. — Ela pode falar comigo.

Não fiquei surpreendida ao ver que a companhia de Zee era a mulher idosa da livraria — embora também não ficasse surpreendida se tivesse deparado com uma completa desconhecida. Parecia-me ligeiramente diferente da mulher com um ar de típica avó que conhecera anteriormente. O tipo de diferença que fizera com que o Capuchinho Vermelho dissesse «Que dentes tão grandes tu tens, Avó».

— Mercy — disse Zee, — podes tratar esta senhora por Alicia Brewster. Alicia, esta é a Mercedes Thompson e — fez uma pausa — a Jesse.

Olhou para mim.

— Espero que saibas o que estás a fazer — acrescentou.

— Tê-la aqui vai acelerar as coisas — repliquei. — Quando acabarmos, ela vai para casa.

— Está bem — disse Zee, e sentou-se ao lado de Alicia.

— Você foi à loja do meu neto à procura dele — disse-me a mulher feérica sem ligar às apresentações. — E para devolver o que ele lhe tinha emprestado.

Olhei para Jesse.

— Quando vi a Alicia na loja do Phin, estava a tentar devolver o livro ao Phin. Ele tinha telefonado ao Tad, o filho do Zee, a dizer-lhe que me pedisse para tomar conta dele. Aquele telefonema foi estranho, e o ser feérico que tinha ido viver para a casa ao lado da do Phin era ainda mais estranho. Quando cheguei à livraria, estava preparada para acreditar que existia um problema. Quando vi a Alicia ao balcão e vi que não me dizia nada sobre onde o Phin estava ou quando ia voltar, decidi que não lhe ia dar o livro para que o devolvesse ao Phin. Também decidi que alguém precisava de ver se conseguia descobrir onde estava o Phin.

— Portanto regressou à noite e procurou-o na loja?

— Pensei — disse eu à Jesse — que o propósito da nossa vinda aqui era descobrir onde está o Gabriel e a maneira de o resgatar.

— E eu opto por lhe colocar questões relacionadas consigo primeiro para poder decidir quanto é que lhe quero contar — disse Alicia.

Isso significava que se eu optasse por não responder às perguntas dela, não nos diria nada. Se é que sabia alguma coisa. Olhei para Zee, que encolheu os ombros e levantou as mãos do colo escassos centímetros — não tinha qualquer influência sobre ela.

A minha outra opção era esperar pelo contacto da rainha das fadas.

— Está bem — disse à Jesse. — Já sabes que eu e o Sam fomos à livraria durante a noite para tentarmos descobrir se tinha acontecido alguma coisa ao Phin. Descobrimos que a loja dele tinha sido virada de pernas para o ar por uma criatura feérica do mar e duas criaturas feéricas da floresta.

— Havia glamour na loja — disse Alicia. — Um forte glamour que não consegui penetrar, embora soubesse que ele estava presente. Tive tanto medo de o corpo do meu neto estar deitado ao meu lado e eu não ser capaz de detetar a sua presença.

— Existe um custo para a magia — interveio Zee, entrelaçando os dedos manchados pela idade em cima da sua pequena pança. — Em relação ao glamour, é menor do que na maior parte das magias, mas ainda existe um custo para a visão e para o som, um custo para as dimensões físicas. São poucos os seres feéricos que têm um bom olfato, portanto é dispendido menos esforço aí e mais nos outros sentidos. A magia opera... — Relanceou os olhos na minha direção.

— «De forma estranha» é o que eu costumo dizer — completei.

— De forma estranha na Mercedes. Alguma magia funciona na perfeição, outra não tão bem. Mas ela tem um olfato apurado, e isso permite-lhe penetrar os glamours. Já a vi penetrar um glamour lançado por um dos Senhores Cinzentos. Mas esta criatura de quem andamos atrás não é um dos Senhores Cinzentos.

— O Phin sangrou naquele chão, Jesse — disse-lhe. — Não tenho muitas esperanças de que tenha sobrevivido. Mas não encontrámos o corpo. Descemos à cave, que também tinha sido virada de pernas para o ar, e enquanto estávamos lá em baixo, uma das criaturas feéricas que tinha destruído a livraria apareceu nas escadas.

— O que foi morto na cave — disse Alicia num tom invulgar. — O que alguém começou a comer.

— O Sam não tem estado em si nos últimos tempos — disse à Jesse. — O ser feérico atacou-me, fazendo-me perder os sentidos, e quando acordei, o Sam tinha-o matado e...

— O Sam — repetiu a criatura feérica num tom suave, entrelaçando os dedos sobre o colo. — O Zee contou-me que você tem amigos lobisomens. Esse Sam é um lobisomem?

— O Sam é um lobisomem e meu amigo — disse num tom porventura demasiado severo, mas começava a ficar farta de as pessoas atacarem Samuel. — Que salvou a minha vida ao matar o não muito simpático gigante verde. Se o usou para uma refeição leve, por mim tudo bem. — Se o seu gesto carregou no meu botão de não-serás-um-canibal, esse era um botão dado pela minha mãe, não pelos lobisomens. Ele não tinha violado quaisquer tabus dos lobisomens: comer a presa é melhor do que deixar os corpos incólumes.

No entanto, Alicia não pareceu ter ficado muito chateada por lhe ter falado rudemente.

— Samuel Cornick — disse ela, de olhos postos nos meus. — Samuel Domarrok, Samuel Dobran, Samuel Lobo Branco, Samuel Ágil, Samuel Morte, Samuel Vingador. — Não me lembrava da cor dos seus olhos quando nos tínhamos encontrado na livraria, mas sabia que não eram verdes. O que eu via não era um castanho-esverdeado, não era de todo uma cor humana, mas um verde-relva brilhante que escurecia para um tom de azul e depois ficava mais claro.

— Sou eu — disse Samuel, postado na entrada. Vestia uma camisola cinzenta e encontrara um par de calças de ganga que eram apenas ligeiramente largas. — Olá, Ari. Já lá vão alguns séculos. — A sua voz era suave. — Não sabia que tinhas um talento especial para a atribuição de nomes verdadeiros.

Ela olhou para ele, e vi as pupilas dos seus olhos expandirem-se para lá das íris de cor variável até os olhos ficarem negros como a noite. E depois o glamour dela ficou como que perturbado.

Já tinha visto criaturas feéricas abandonarem o seu glamour. Por vezes é fixe, com cores a deslizar e a misturar-se; por vezes é como quando eu me transformo — basta pestanejar e o homem à nossa frente de repente tem antenas e pelos de quinze centímetros a crescer-lhe das mãos.

Mas neste caso, foi diferente. Fez-me lembrar um eletrodoméstico a estragar-se num curto-circuito, acompanhado por ruídos efervescentes. Um pedaço de pele apareceu-lhe no braço que estivera tapado pela camisola que vestia, e nesse pedaço de pele estava uma pequena cicatriz. Depois ouviu-se um barulho e a camisola reapareceu e na sua coxa revelou-se um pedaço de pele de quinze por dez centímetros, porém quase todo esse espaço era ocupado por uma cicatriz horrenda que parecia profunda e dura — um ferimento que não fora devidamente curado, ao ponto de provavelmente interferir com a sua capacidade de usar a perna. Passado um instante, desapareceu, e três zonas cicatrizadas apareceram-lhe no rosto, na mão e no pescoço. O tom de pele à volta das cicatrizes era mais escuro do que aquele que ela usava para se esconder do mundo. A cor não era nada de extraordinário, alguns tons mais escura do que a minha ou mais clara do que a de Darryl, mas aos meus olhos a textura era mais suave do que a da pele humana. Parecia que os velhos ferimentos estavam a apresentar-se a nós — ou, melhor dizendo, a Samuel, posto que nunca desviou a atenção dele.

Jesse esticou o braço e agarrou-me o joelho, mas a expressão no seu rosto não se alterou enquanto a mulher feérica se levantava lentamente. Começou a respirar com dificuldade enquanto recuava vários passos, fazendo a sua cadeira deslizar atrás de si até esbarrar contra umas prateleiras, e aí já não tinha como recuar mais. A sua boca abriu-se e começou a ficar ofegante, e nesse momento percebi que aquilo a que estava a assistir era um ataque de pânico violento ao estilo feérico.

Zee tinha-me dito que os ataques de pânico dela eram perigosos.

— Ariana — disse Samuel numa voz semelhante ao ronronar mais suave da Medea. Não saiu do lugar onde estava, junto da porta, dando-lhe espaço. — Ari. O teu pai está morto e as bestas dele também. Estás em segurança, dou-te a minha palavra.

— Não se mexam — ordenou-nos Zee, a mim e a Jesse, em voz baixa, de olhos postos na mulher feérica. — Isto pode correr muito mal. Eu disse-te para não trazeres nenhum dos lobos.

— Fui eu que me trouxe, velhote — disse Samuel. — E eu disse à Ariana que se algum dia ela precisasse de mim, eu apareceria. Foi uma promessa e uma ameaça, apesar de naquela altura não ser essa a minha intenção.

Alicia Brewster — que Samuel aparentemente conhecera como Ariana — cantarolou três notas por entre dentes e começou a falar.

— Há muito tempo, numa terra distante desta — disse Alicia numa voz de contadora de histórias, — havia uma filha feérica capaz de fazer magia com a prata. Numa altura em que as criaturas feéricas estavam a morrer por causa do ferro frio, em que a sua magia se desvanecia à medida que os ignorantes seguidores do Deus Único construíam as suas igrejas nos nossos sítios de poder, os metais amavam o toque dela, a sua magia florescia, e o seu pai ficou com inveja.

— Ele era uma criatura sinistra — disse Samuel, de olhos postos no rosto enrugado da mulher, que por vezes revelava cicatrizes na bochecha ou no canto do olho. — A Mercy, se o conhecesse, chamá-lo-ia ratazana nojenta. Era um senhor da floresta cuja principal magia era comandar bestas. Quando o último dos gigantes, que eram bestas controladas pela magia dele, morreu, ficou reduzido a um senhor da floresta sem grande poder, e foi ficando cada vez mais ressentido à medida que o poder da Ariana crescia. Numa altura em que as criaturas feéricas tinham perdido a capacidade de aplicar a sua magia às coisas, como o bastão que te aparece, Mercy, ela ainda era capaz de o fazer. E as pessoas descobriram isso.

— Um eminente senhor dos seres feéricos apareceu — continuou Ariana. Não parecia estar a prestar atenção a Samuel, mas esperou que ele acabasse de falar antes de prosseguir. — Esse senhor exigiu que ela criasse uma abominação, um artefacto que iria subtrair toda a magia feérica dos seus inimigos e transferi-la para ele. Ela recusou, mas o pai dela aceitou e selou o acordo com sangue.

Parou de falar e, passado um momento, Samuel retomou a história a partir de onde ela a deixara.

— Bateu-lhe, e ela ainda assim recusou. A magia dele era parecida com a da rainha das fadas, no sentido em que tinha a capacidade de influenciar os outros. Poder-lhe-ia ter sido mais útil, mas ele apenas conseguia influenciar bestas.

— Por isso ele transformou-a numa besta. — A voz de Ariana ecoou, apesar de o meu escritório ter objetos suficientes para impedir que um tiro de caçadeira ecoasse, e o eco foi de tal modo fantasmagórico que Jesse deu um salto para junto de mim.

Ariana já não estava a olhar para Samuel, mas não consegui perceber onde se fixavam os seus olhos. Onde quer que fosse, pensei, a visão não era agradável.

— Naquela altura, a magia das criaturas feéricas ainda era forte ao ponto de ser difícil matá-las a menos que se tivesse ferro ou aço — acrescentou Samuel.

Não parecia preocupado com Ariana, mas Zee sim. Zee afastara-se gradualmente da cadeira até ficar agachado entre Jesse e a mulher feérica cheia de cicatrizes.

— Usou os seus poderes para a torturar — prosseguiu Samuel. — Ele tinha dois cães de caça que eram cães de caça feéricos. Os uivos deles faziam tombar um veado à sua passagem, e o olhar deles deixava qualquer homem morto de medo. Mandava-os atacá-la todas as manhãs durante uma hora, sabendo que desde que não deixasse passar nenhum tempo para lá dessa hora, ela não podia morrer: porque isso fazia parte da magia desses cães de caça.

— Ela cedeu — disse Ariana numa voz rouca. — Ela cedeu e obedeceu-lhe tão fielmente como os seus cães de caça. Não conhecia outra coisa que não as suas ordens, e criou o que ele desejava, forjando o artefacto com prata e magia e o seu próprio sangue.

— Tu não cedeste — disse-lhe Samuel com voz de certeza. — Ofereceste-lhe resistência todos os dias.

A voz de Ariana mudou, e disparou:

— Ela não tinha como lhe oferecer resistência.

— Ofereceste-lhe resistência — repetiu Samuel. — Ofereceste resistência e ele chamou os cães de caça até a magia dele deixar de funcionar porque a tinha usado vezes de mais. Eu ouvi esta história da boca de alguém que esteve lá, Ariana. Ofereceste resistência e paraste, deixando o artefacto incompleto.

— É a minha história — rosnou, cravando aqueles olhos negros em Samuel. — Ela falhou. Ela construiu-o.

— A verdade não é propriedade de ninguém — disse-lhe Samuel. — O pai da Ariana foi visitar uma bruxa porque a magia dele era insuficiente para cumprir a sua vontade. — Havia algo na sua voz que me fez pensar que conhecia e odiava aquela bruxa. — Ele pagou o preço que ela exigiu por um feitiço que combinasse feitiçaria com a magia dele.

— A sua mão direita — disse Ariana.

Samuel esperou que ela continuasse, porém, Ariana limitou-se a fitá-lo.

— Eu penso que ele queria chamar os seus cães de caça — disse Samuel. — Mas eles estavam longe de mais, fora do raio de influência dele. E o que foi ter com ele foi algo bastante diferente.

— Lobisomens — explicou Ariana, e depois virou-nos costas, encolhendo os ombros. Vi que também nas costas tinha cicatrizes.

— Atacámos porque não tínhamos alternativa — disse Samuel suavemente. — Mas o meu pai era mais forte do que nós, e resistiu. Matou o pai dela. Parámos, mas ela estava gravemente ferida. Se fosse humana, teria morrido ou renascido como um de nós. Ela apenas sofreu.

— Trataste-a — disse-lhe. — Ajudaste-a a recuperar. Salvaste-a.

Ariana colapsou — e Samuel saltou por cima de todos nós e agarrou-a antes que atingisse o chão. O seu corpo estava mole, os olhos fechados e as cicatrizes novamente escondidas atrás do seu glamour.

— Salvei? — perguntou Samuel, descendo o olhar na direção dela, com o coração nos olhos. — A cicatriz que ela tem no ombro foi provocada por mim.

C’um catano, pensei, observando-o. C’um catano, Charles. Encontrei uma razão para o Samuel viver.

Samuel estava no andar de cima com Adam quando a rainha das fadas telefonara para nos dizer aquilo de que estava à procura. O Artefacto de Prata. A menção ao artefacto por si só era suficiente para impossibilitar que se submetesse ao seu lobo. Mas foi na altura em que Zee me telefonou e Ariana falou que ele regressou para junto de nós.

— Salvaste-a — disse-lhe. — E amaste-a.

— Ela não sabia, pois não? — perguntou Jesse, parecendo tão envolvida na história quanto Ariana. — Trataste dela e ela apaixonou-se por ti. E tu não lhe podias dizer o que eras. Isso é mesmo romântico.

— E trágico — acrescentou Zee amargamente.

— Como é que sabes que é trágico? — apressou-se Jesse a dizer.

O velho ser feérico fez cara feia e gesticulou para Samuel.

— Eu não estou a ver aqui um desfecho do tipo «e viveram felizes para sempre», tu estás?

Samuel puxou a mulher feérica contra si. Parecia estranho, um homem novo a segurar uma mulher que podia ser a sua avó. Mas as criaturas feéricas não envelhecem, desvanecem. A sua aparência de avó era um glamour. As cicatrizes eram verdadeiras — mas eu vi a cara de Samuel e percebi que a única coisa importante para ele era a dor que elas representavam.

— Os finais são relativos — disse eu, e Samuel levantou a cabeça abruptamente. — Desde que nenhum dos dois esteja morto, existe a possibilidade de reescreverem os seus finais, não achas? Acredita em mim, Samuel, o tempo é capaz de curar feridas terríveis.

— Ela pareceu-te curada? — replicou, e os seus olhos estavam da cor do gelo.

— Estamos todos vivos — disse Zee secamente. — E ela não desapareceu, coisa que é capaz de fazer com a magia que possui. Diria que tens hipótese.


13

Samuel começou a dizer algo a Zee quando a mulher que segurava nos braços abriu os olhos, que estavam novamente verdes. Dirigiu-nos a todos um olhar desorientado, como se não fizesse ideia de como tinha chegado ali.

Sabia exatamente como ela se sentia.

Assim que se apercebeu de que ela estava desperta, Samuel largou-a com enorme cuidado.

— Desculpa, Ari. Estavas a cair... Eu não te teria tocado...

Nunca na minha vida tinha visto nada igual. Samuel, o filho de um poeta galês, que partilhava com o pai o dom da palavra, a balbuciar como um adolescente perdido de amores.

Ela agarrou a camisola de Samuel e olhou para cima na direção dele, absolutamente espantada.

— Samuel?

Ele afastou-se dela, mas parou de imediato porque Ariana lhe continuava a agarrar a camisola.

— Não te posso dar espaço se não me largares — disse-lhe Samuel.

— Samuel? — disse ela, e, embora não me tivesse chamado a atenção antes, apercebi-me de que a sua voz mudara algures a meio do seu ataque de pânico, e soava demasiado jovem para o rosto de idade avançada que tinha. Também denunciava um ligeiro sotaque, uma espécie de combinação entre inglês britânico e galês, ou uma língua relacionada. — Pensava... Procurei-te mas nunca te consegui encontrar. Simplesmente desapareceste e deixaste-me sem nada. Sem uma camisola ou um nome.

Afastou-se novamente, e desta vez ela largou-o. Liberto, recuou até à porta danificada que separava o meu escritório da oficina.

— Eu sou um lobisomem.

Ariana acenou com a cabeça e deu dois passos em frente.

— Eu reparei nisso quando mataste os cães de caça que me iam atacar. — Havia um toque de humor na sua voz. Ainda bem, pensei. Para mim, qualquer mulher que andasse com Samuel teria de ter sentido de humor. — As presas denunciaram-te... Ou talvez a cauda. Salvaste-me novamente, e depois foste-te embora, e a única coisa que eu sabia era o teu primeiro nome.

— Assustei-te — disse Samuel de forma rígida.

Ela dirigiu-lhe um meio sorriso, mas cerrou os punhos.

— Bem, sim. Mas parece-me que te assustei ainda mais porque fugiste durante... muito, muito tempo, Samuel.

Samuel desviou os seus olhos dos dela — era o lobisomem mais dominante de Tri-Cidades e não conseguia olhá-la nos olhos. Será que ele não via que, mesmo tendo-a assustado, ela o desejava?

Tentou dar mais um passo na direção dele e parou. Conseguia cheirar-lhe o pavor, intenso e profundamente desconfortável. Afastou-se dele com um suspiro.

— É muito bom voltar a ver-te, Samuel — disse. — Graças a ti, estou aqui, viva, há todos estes séculos, depois de o meu pai me ter querido destruir. E foi o corpo dele que serviu de alimento às bestas e às árvores das florestas dele.

Samuel inclinou a cabeça e disse para o chão:

— Fico contente por estares bem, e peço desculpa por ter provocado o teu ataque de pânico. Devia ter ficado lá fora...

— Sim. Ataques de pânico. Eles podem ser muito... — Olhou para Zee, que regressara à sua cadeira e parecia tão relaxado como se tivesse passado os últimos dez minutos a ver uma telenovela muito entediante. — Magoei alguém, Siebold?

— Não — respondeu, cruzando os braços. — Apenas disseste os nomes verdadeiros do nosso lobo e contaste à Mercedes e à Jesse a história do Artefacto de Prata.

Ariana olhou para mim, depois para Jesse, talvez para ver quão assustadas estávamos. O que quer que viu tranquilizou-a, porque no seu rosto desenhou-se um sorriso tímido.

— Ah, ótimo. Ótimo. — Os seus ombros relaxaram e voltou a concentrar a atenção em Samuel. — Já não os tenho com frequência. Com os cães mortais não tenho problema nenhum. Só os cães feéricos, os mágicos — os cães pretos e os de caça —, é que me provocam ataques. Só quando estou morta de...

— Medo? — sugeriu Samuel, mas ela não respondeu. Não tinha mencionado os lobisomens, reparei.

— Fico contente ao ver que a tua magia voltou — disse Samuel. — Pensavas que tinha desaparecido.

Ela respirou fundo.

— Sim. E durante algum tempo sentia-me feliz por isso. — Olhou para mim. — E isso está relacionado com a situação presente. Você é amiga do Samuel, Mercedes?

— E companheira do lobisomem Alfa local, pai da Jesse — respondi. Não lhe ia dizer que Samuel era solteiro, isso era por demais óbvio. Percebi que era importante para ela o facto de Samuel não me pertencer.

— Você vai... — Estava tão envolvida no meu espírito de casamenteira que quase deitei tudo a perder naquele momento. Calei-me e agarrei a mão de Jesse.

— ... ajudar-nos a encontrar o Gabriel — completou Jesse a frase.

O modo como Ariana se movia quando regressou ao sítio onde estávamos sentados, agarrando a sua cadeira, não era em nada humano; movia-se como um... lobo, arrojado, gracioso e forte. Sem olhar para Samuel, sentou-se.

— Pergunta-lhe sobre a coisa que a rainha das fadas quer — disse à Jesse.

— O Zee disse-me que ela quer o Artefacto de Prata — replicou Ariana. — É o objeto de poder que construí para o meu pai, apesar de nunca ter funcionado como quem o encomendou desejava. Durante muitos anos, pensei que tinha destruído toda a minha magia ao fazê-lo. — Fechou os olhos e sorriu. — Vivi como uma humana, exceto a minha longa esperança de vida. Casei, tive filhos... — Relanceou os olhos a Samuel, que estava a olhar lá para fora através da janela. O seu rosto aparentava serenidade, mas consegui ver-lhe a pulsação rápida no pescoço.

Ariana continuou a contar a sua história rapidamente.

— Demorei quase um século a estabelecer a ligação entre a minha carência de magia e o Artefacto de Prata.

Dirigiu-me um sorriso forçado.

— Eu sei. Deixei de ter magia e a última coisa que fiz foi algo que tinha como objetivo sugar magia. Era de esperar que eu tivesse feito a ligação. Mas a única coisa que eu sabia era que não tinha terminado... e não me conseguia lembrar até que ponto tinha chegado quando o meu pai chamou os lobos. Algum tempo depois, deixou de ser tão importante para mim. Era apenas uma coisa que não fazia nada. Alguém o roubou, e eu pensei: que alívio. Ignorei o assunto e passados alguns meses a minha magia voltou. Foi nessa altura que percebi pela primeira vez que tinha sido bem-sucedida, em parte. É verdade que consome magia feérica, mas sobretudo a magia da pessoa que o tem em sua posse.

— Nesse caso, porque é que uma rainha das fadas o havia de querer? — perguntei, e depois acrescentei um tardio: — Jesse?

— Come magia feérica, feérica — interveio Zee. — Imagina quão fácil é transformar um adversário formidável em alguém mais vulnerável do que um humano. Pelo menos um humano sabe que não tem nenhum poder. Os duelos ainda são permitidos entre as criaturas feéricas.

— Ou se calhar ela não sabe ao certo o que ele faz — sugeriu Ariana. — Pode ser que ela acredite que ele faz aquilo para que foi concebido: retirar poder de um ser feérico e concedê-lo a outro. Ouvi as histórias, e não me dou ao trabalho de as corrigir. Agora que respondi a uma pergunta, tenho uma para lhe fazer. Mercy, o Phin deu-lhe aquele livro?

Inspirei, já preparada para responder, e Jesse tapou-me a boca com a mão e meteu-se na conversa.

— Seria melhor fazer as perguntas a mim — disse. — Assim seria menor a probabilidade de a Mercy quebrar a promessa que fez. — Retirou a mão da minha boca. — O Phin deu-te o livro?

— Mas o que é que o livro tem a ver com isto?

— Glamour — apressou-se a dizer Samuel. — Por tudo o que é mais sagrado, Ari, como é que conseguiste fazer isso? Disfarçaste aquela coisa na forma de um livro e deste-o ao teu neto?

— Ele é quase totalmente humano — respondeu-lhe sem olhar na sua direção. — E eu disse-lhe para o manter fechado a sete chaves para que não lhe sugasse a magia que tinha.

— E se ele o tivesse vendido? — perguntei. — Jesse?

— Nasceu do meu sangue — disse Ariana. — Acabará por encontrar o seu caminho de regresso a mim. Jesse, por favor, pergunta-lhe se o Phin lhe deu o livro.

— Não. Talvez o tivesse comprado se tivesse dinheiro... — Parei de falar porque ela se curvou e levou as mãos à cara.

— As minhas desculpas, as minhas desculpas — disse Ariana, soluçando e enxugando os olhos com as mãos. Samuel apressou-se ao seu encontro e depois estacou. Ela estremecera, só um bocadinho.

— É que tem sido tão... Eu estava convencida de que o Phin estava morto, de que eles o tinham matado por causa do livro, e a culpa teria sido minha. — Voltou a limpar as lágrimas. — Normalmente não sou assim, mas o Phin é... Eu adoro o Phin. É tão parecido com o meu filho que perdi há tanto tempo... E pensava que ele estava morto.

— Agora sabes que ele está vivo? — perguntou-lhe Samuel.

— No fogo ou na morte — disse Jesse, compreendendo tudo antes de todos nós. — Foi o que a rainha das fadas disse. Que se ela matasse a Mercy ou se eles o queimassem, ele se revelaria. Mas se ainda pertence ao Phin...

— Se o tivessem matado, o Artefacto de Prata ter-se-ia revelado a eles — concordou Ariana. — E nesse caso não andariam à sua procura.

— Porque é que o fez dessa maneira? — perguntou Jesse.

Ariana sorriu-lhe.

— Não fiz. Mas as coisas de poder... desenvolvem-se em torno dos limites que lhes são dados. Essa é a razão pela qual, apesar de pensar que não fazia nada, o mantive comigo. Porque mesmo inacabado, era uma coisa de poder.

— Como é que descobriu que ele... Ah. — A voz de Jesse indiciava que tinha compreendido algo.

— Precisamente. É uma coisa muito antiga, e muitos dos seus proprietários morreram de diversas formas. A coisa do fogo veio mais tarde. — O seu rosto tornou-se contemplativo. — E de forma bastante espetacular.

— Você não é a proprietária dele? — perguntou Jesse.

— Não se quiser manter a minha magia... Sou apenas a sua criadora. É por isso que se chama Artefacto de Prata.

— Ariana significa prata em galês. — Samuel sentou-se no chão e encostou-se à extremidade da estante metálica mais próxima. Também ele tinha vivido dois dias complicados, mas esperava que o medo óbvio que Ariana sentia dele não o fizesse cair novamente em desespero.

— Jesse — disse eu. — Pergunta-lhe como podemos encontrar o Gabriel.

— O que é que me trouxe que pertença a esse rapaz?

Jesse estendeu-lhe um saco de plástico branco.

— É uma camisola que ele me emprestou numa altura em que estava com frio.

— O Phin disse-me que a magia dele consistia em por vezes sentir coisas a partir de objetos — disse eu. — Coisas como a idade de um objeto. Psicometria.

— Herdou isso de mim. — Ariana retirou a camisola do saco e encostou-a ao rosto. — Lamento. Isto não vai funcionar.

— Porquê? — perguntou Samuel. — É dele. Consigo sentir o cheiro dele daqui.

— Eu não me sirvo de cheiros — replicou-lhe, de olhos postos na camisola. — Eu sirvo-me de vínculos, dos fios que nos ligam àquelas coisas que são nossas. — Olhou para Jesse. — Esta camisola tem muito mais significado para ti, enquanto presente de amor, do que tinha para ele quando a usava. Portanto posso usá-la para te encontrar a ti, mas não a ele. — Hesitou. — Ele sente por ti o mesmo que tu sentes por ele?

Jesse corou e abanou a cabeça.

— Não sei.

— Dá-me a tua mão — disse a mulher feérica.

Jesse estendeu o braço e Ariana segurou-lhe na mão, após o que sorriu como um lobo que sentisse o cheiro da sua presa.

— Sim, tu és um íman. — Virou-se para olhar para Zee. — Com ela consigo encontrá-lo. Ele está naquela direção — disse, apontando para as traseiras da oficina.

Entrámos no SUV de Adam porque na carrinha de Zee não cabíamos todos — e Zee ocupou o lugar do condutor. Ariana sentou-se à frente e Samuel sentou-se atrás de Zee, o mais longe possível dela.

O som do enorme motor provocou um sorriso no rosto de Zee; ele é mais apreciador da tecnologia moderna do que eu.

— O Adam tem bom gosto — foi tudo o que disse.

Procurar Gabriel foi frustrante porque demorámos algum tempo até percebermos que tínhamos de atravessar o rio, e as estradas nem sempre seguiam nas direções em que ela apontava. Adam tinha um mapa no porta-luvas e Samuel usou-o para descortinar a melhor forma de chegarmos aos destinos mais prováveis.

Acabámos num prado despido e plano no topo de um sinuoso caminho de terra (não assinalado no mapa de Adam). A viagem até lá teria durado uma hora de carro a partir de Tri-Cidades se na altura em que partimos soubéssemos o nosso destino. A delimitar o terreno havia uma vedação que todos tivemos de pular. Talvez dez anos antes tivesse servido de local de pasto, mas o arame farpado estava tombado e os postes de suporte da vedação inclinados. Perto do sítio onde tínhamos estacionado o carro, estavam os restos do que em tempos fora a cabana de alguém.

Ariana, que com o seu casaco de malha e as suas calças de malha elástica parecia deslocada, parou no meio do terreno entre um monte de capim e algumas artemísias.

— Aqui — disse ela, parecendo preocupada.

— Aqui? — perguntou Jesse incredulamente.

Aproveitei o facto de termos parado para retirar espiguetas das minhas meias. Se soubesse que íamos para um sítio como aquele, teria calçado botas — e um casaco mais grosso.

— A rainha das fadas estabeleceu aqui o seu Álfheim — observou Zee num tom sóbrio.

— Isso é mau? — perguntei.

— Muito mau — respondeu. — Significa que ela é muito mais forte do que eu pensava e que provavelmente tem mais seres feéricos às ordens dela do que suspeitávamos, se ainda tem a capacidade de construir uma casa.

— Como é que ela conseguiu fazer isso aqui? — perguntou Ariana. — Ela deve ter acesso a Underhill para criar o seu próprio território. Já não temos acesso aos portões do Sítio Secreto há séculos... e esta nunca foi a zona de Underhill.

Olhei para Zee. Não consegui evitá-lo, uma vez que eu própria já tinha estado em Underhill — e jurara silêncio em relação a essa ida.

— Underhill estava onde escolhia estar — disse Zee. — A reserva fica a menos de quinze quilómetros daqui, em linha reta. A maior parte das criaturas feéricas que vive lá não pertence aos poderosos... mas somos muitos, mais dos que aparecem nos registos do governo. Esse tipo de concentração gera poder. — Teve o cuidado de não dizer que a reserva reabrira mais do que um caminho para Underhill.

Ariana estendeu a mão, de palma virada para baixo, e fechou os olhos por breves instantes.

— Tens razão, Zee. Existe aqui um poder que evoca o Sítio Antigo. Já me tinha perguntado por que razão é que ela manteria o Phin vivo quando matá-lo teria sido a opção mais lógica. Ela excedeu a sua própria inteligência ao levá-lo para o Álfheim.

— As rainhas das fadas obedecem a regras — concordou Zee. — Os mortais que são levados para o Álfheim não podem ser mortos ou feridos de forma permanente. Faz parte da magia de construir um sítio à parte.

Ariana dirigiu-lhe um ligeiro sorriso.

— O meu Phin deve ser demasiado humano para que ela o consiga matar. Pergunto-me se ela saberia isso quando o levou para o seu covil. Se ele é humano, ela não pode, de moto próprio, libertá-lo durante um ano e um dia.

— Isso significa que ela não pode matar o Gabriel? — Jesse esfregou as mãos para se manter quente. — E que só o podemos libertar daqui a um ano e um dia?

— Ela também não pode matar o Gabriel. — Foi Samuel quem respondeu. — Isso não significa que ela não lhe vá fazer mal ou subjugá-lo com os seus encantos. Os prisioneiros das rainhas das fadas podem ser resgatados pela calada, através do confronto ou por via da negociação.

— Da negociação? Como na canção «The Devil Went Down to Georgia»10, mas com uma fada? — perguntei. Tinha a impressão de ter ouvido um conto parecido com fadas incluídas.

— Precisamente — concordou Samuel. — Pode ser através de uma competição, que é normalmente musical porque as rainhas das fadas tendem a ser musicalmente talentosas. Mas há histórias de corridas a pé ou a nadar. O meu pai tem uma canção maravilhosa sobre um rapaz que desafiou uma fada para competir quem conseguia comer mais e ganhou.

— Como é que nós entramos? — perguntou Jesse.

— A única forma que eu conheço de entrar no Álfheim é indo atrás da rainha — disse Ariana.

— Talvez eu consiga abrir um caminho — interveio Zee. — Acho que consigo fazer com que ela não perceba o que eu fiz. Mas vou ter de ficar aqui a segurar a porta aberta, e não vou conseguir mantê-la aberta para sempre. No máximo, uma hora depois vocês têm de regressar. Se a porta se fechar... Tal como em Underhill, o tempo passa de forma diferente no Álfheim. Se a porta se fechar, mesmo que vocês consigam escapar, não há como saber quanto tempo terá passado até à vossa saída.

— Ok — replicou Jesse.

— Não, não — disse-lhe. — Tu não, Jesse. Não.

— Vou ser a pessoa que menos perigo corre lá dentro — disse-me. — Não passo de uma humana mortal. Eles não me podem matar.

— Podem fazer-te desejar estar morta — afirmou Samuel.

— Vocês precisam de mim para encontrar o Gabriel. — Jesse levantou o queixo. — Eu vou.

Olhei para Ariana, que acenou afirmativamente com a cabeça.

— O Álfheim está completamente sob o controlo de quem o criou. Se quisermos encontrar o rapaz depressa e tirá-lo de lá, vamos precisar dela.

— Nesse caso, deixe-me telefonar ao Adam para ele trazer os lobos com ele. — Devia ter passado pela casa de Sylvia para pegar nalguma coisa que Ariana pudesse usar para encontrar Gabriel. Alguma coisa que não estivesse viva. Não queria causar ao bando de Adam mais problemas do que aqueles que já tinha causado. Mas queria ainda mais salvar Gabriel e Phin sem colocar Jesse em perigo.

Ariana inspirou curtamente.

— Lamento — disse. — O Samuel é... Não conseguiria fazê-lo com lobisomens desconhecidos. Se fosse só medo, fá-lo-ia. Mas os ataques de pânico podem ser perigosos para qualquer pessoa que esteja perto de mim. — Olhou para Zee. — Achas que eles o conseguiriam encontrar sem mim?

— Não — respondeu Zee. — Se eu vou ficar aqui fora, eles vão precisar de ti para não se perderem. Para além disso, acho que o recurso aos lobos poderia ser um erro. O Samuel é suficientemente velho e poderoso por direito próprio. Acho que ele é capaz de resistir à vontade de uma rainha das fadas. Mas os lobos todos... Nesse caso, a probabilidade de ela virar os nossos contra nós seria demasiado alta. Se ela te virar a ti ou à Jesse, a Ariana e o Samuel conseguem tirar-vos de lá. Se entrarem com o bando, bastaria um lobo virar-se contra nós para isso ser sinónimo de morte.

— Não há problema, Mercy — disse Jesse. — Não sou indefesa, e eu... Tu eras capaz de ficar aqui fora à espera se quem estivesse ali dentro fosse o meu pai?

— Não.

— Estão preparados? — perguntou Zee.

— Está bem — disse eu, dolorosamente consciente de que Adam não ficaria satisfeito comigo. Porém, Jesse tinha razão. Provavelmente, de entre todos nós, era a que corria menos perigo. — Vamos tirá-los daqui.

— Ótimo — disse Zee, e deixou cair o seu glamour sem toque de trombetas nem drama.

Num momento era um velhote escanzelado, sobre o alto, com uma pequena pança e manchas de velhice no pescoço e nas mãos, e no seguinte era um soldado alto e elegante de pele escura. A luz do Sol tingia-lhe o cabelo de dourado. Pendia numa trança espessa que lhe passava por um dos ombros e terminava abaixo do seu cinto. Da última vez que o tinha visto, as suas orelhas pontiagudas estavam furadas em imensos sítios e nesses furos usava brincos de osso. Desta vez, não tinham qualquer decoração.

O corpo dele não pertencia às calças de ganga e à camisa de flanela que ainda vestia. As roupas encaixavam tão bem na sua forma atual como naquela a que eu estava habituada. Suponho que isso fizesse sentido porque o Zee que eu conhecia é que era a ilusão e este homem, bem como as suas roupas, é que era o real.

O verdadeiro rosto de Zee era inquietante — bonito, orgulhoso e cruel. Lembrei-me das histórias que encontrara sobre o Ferreiro de Drontheim. Zee nunca tinha sido o tipo de criatura feérica que limpava casas ou salvava crianças perdidas. Tinha sido um daqueles seres a evitar, se possível, e a tratar muito cortesmente, se fosse impossível evitá-lo. Tornara-se um pouco mais brando com a idade e já não estripava quem o desagradasse. Pelo menos, não que eu tivesse visto.

— Uau — disse Jesse. — És tão bonito. Assustador. Mas bonito.

Zee olhou para ela por um momento e depois disse:

— Ouvi o Gabriel dizer o mesmo de ti, Jesse Adamstochter11. Era um elogio, creio. — Virou-se para Ariana. — Vais ter de deixar o glamour para trás. O único glamour que funciona no Álfheim é o da rainha, e se esperares até que o Álfheim to tire, os que estão no seu interior vão ser alertados da presença de um intruso.

Ela cerrou os punhos, olhou para Samuel e depois desviou o olhar.

— Eu já vi as tuas cicatrizes — disse ele. — Sou médico e lobisomem. Vi esses ferimentos quando foram feitos, as cicatrizes não me incomodam. São os louros do sobrevivente.

À semelhança de Zee, não foi nada teatral. Sem glamour, a sua pele era vários tons mais clara do que a de Zee. Era muito bonita, combinada com o cabelo entre o cinza e o alfazema, que não tinha mais do que um dedo de comprimento e lhe flutuava da cabeça mais como plumagem do que como cabelo — à semelhança do atual corte de cabelo de Jesse. As roupas de Ariana mudaram quando se desfez do seu glamour: ficou com um simples vestido claro pelo joelho com bainha de lenço.

Não era convencionalmente bonita — o seu rosto era demasiado inumano para isso, com olhos demasiado grandes e nariz demasiado pequeno para os padrões humanos. As suas cicatrizes não tinham tão mau aspeto como me parecera quando as vira anteriormente. Pareciam mais antigas e menos furiosas... mas eram imensas.

— Estamos prontos — disse Samuel, olhando para Ariana com uma fome que não tinha nada a ver com o seu estômago.

Zee levou a mão às costas e puxou o seu punhal, de lâmina escura e elegante na sua simplicidade letal, de debaixo da gola da sua camisa. Se era magia ou se tinha uma bainha, não sabia, e tratando-se de Zee, podia ser qualquer uma das duas coisas. Usou-o para fazer um corte no seu antebraço. Durante um momento, nada aconteceu, e depois o sangue, escuro e vermelho, irrompeu. Ajoelhou-se e deixou o sangue gotejar sobre a terra.

— Mãe — disse. — Ouve-me, ao teu filho.

Conduziu a mão do braço ileso ao solo e misturou o seu sangue com a terra fina. Depois, sussurrou em alemão:

— Erde, geliebte Mutter, dein Kind ruft. Schmecke mein Blut. Erkenne deine Schöpfung, gewähre Einlass.

A magia provocou-me formigueiro nos pés e comichão no nariz — mas nada mais aconteceu. Zee levantou-se e contou quatro passos antes de fazer um golpe no outro antebraço.

Ajoelhando-se, inclinou a cabeça e desta vez havia poder na sua voz.

— Erde mein, lass mich ein.

Sangue deslizou-lhe pela pele até às costas das mãos, que estavam pousadas no chão.

— Gibst mir Mut! — gritou, e virou as mãos, limpando o sangue no chão.

— Trinkst mein Blut. Erkenne mich. — Inclinou-se para a frente e colocou o peso sobre os braços. Primeiro as mãos, e depois os braços, afundaram-se no chão até os ferimentos que infligira a si próprio ficarem tapados. Inclinou-se até a sua boca quase tocar a terra, e disse baixinho: — Öffne Dich.

O chão debaixo dos meus pés vibrou, e entre o local onde Zee se encontrava e o local onde misturara o seu sangue com a terra abriu-se uma fenda.

— Erde mein — disse. O chão tremeu com as vibrações da sua voz, que soava mais sombria, como se estivesse a arrancá-la de uma caverna profunda. — Lass mich ein. Gibst mir Glut. — Colocou a testa no chão. — Trinke mein Blut. Es quillt für Dich hervor. Öffne mir ein Tor!

Viu-se um clarão e uma enorme porção de terra simplesmente desapareceu, deixando no seu lugar uma escadaria de pedra cujos primeiros oito degraus desciam a direito e depois começavam a virar na direção da sua aresta interna. Não conseguia ver mais longe porque um denso nevoeiro ergueu-se das profundezas do buraco e ocultou a escadaria cerca de três metros abaixo.

Zee retirou as mãos do chão. Tinha terra nos braços, mas não tinha nenhum ferimento ou sangue. Levantou uma mão e estendeu-a a Ariana, dando-lhe uma pedra que brilhava.

— Consigo segurá-la durante cerca de uma hora — disse-nos Zee. — A Ariana pode usar a pedra para encontrar o caminho de regresso até mim. Se virem a luz começar a tremeluzir, significa que estou no limite das minhas forças e vocês precisam de regressar. Desde que esta porta esteja aberta, o tempo no Álfheim estará sincronizado com o do exterior. Se esta porta se fechar, é possível que consigam sair, mas não sei daqui a quanto tempo.

Samuel foi à frente, seguido por Ariana. Disse a Jesse para ir à minha frente e segui na retaguarda. A luz acima de nós diminuiu rapidamente até começarmos a caminhar na escuridão. Jesse tropeçou, e eu agarrei-a antes que pudesse cair.

— Aqui — disse Ariana. — Põe a mão no meu ombro, Jesse.

— Eu ponho a minha no teu — disse à Jesse. — Samuel, consegues ver alguma coisa?

— Agora consigo — respondeu. — Está mais iluminado ali à frente.

«Iluminado» era um termo relativo, mas consegui ver os dez últimos degraus que descemos. Os degraus culminavam num túnel de terra iluminado por gemas incrustadas no chão, grandes como laranjas. O teto do túnel era cerca de quinze centímetros mais baixo do que Samuel, e tanto aquele como as partes laterais estavam repletos de raízes de árvores.

— Não há nenhuma árvore acima de nós — disse eu. — E mesmo que houvesse, descemos muito abaixo do limite onde eu julgava ser possível chegarem as raízes.

— Ela tem um senhor da floresta na sua corte — explicou Ariana, chegando-se ao lado, onde fiadas de raízes serviam de cortina à parede de terra do outro lado. As raízes aproximaram-se dela, acariciando-lhe os dedos por breves instantes, antes de regressarem ao sítio de onde tinham saído.

— Que tipo de criatura feérica é você, Ariana? — perguntou Jesse. — Também é uma senhora da floresta? Ou é um gremlin como o Zee, uma vez que consegue trabalhar a prata?

— Não há mais nenhuma criatura feérica como o Zee — disse-nos. — Ele é único. Quase todas as criaturas feéricas conseguem trabalhar a prata até um determinado grau. A prata adora a magia feérica. Mas tens razão: nas minhas origens há seres feéricos que trabalham o ferro, e o aço não me faz mal algum.

Estávamos a falar baixinho, porém, não estava muito preocupada com a possibilidade de sermos descobertos. Havia aqui uma sensação de... vazio, que me indicava que não existia vida neste lugar, a não ser nas raízes que se enredavam no meu cabelo e me faziam tropeçar.

— Nós... — Calei-me, lembrando-me que não podia discutir nada sobre a rainha das fadas. Será que já tinha faltado à palavra? Isso tinha importância depois de estarmos a tomar de assalto o castelo?

— Jesse? — disse eu, decidindo jogar pelo seguro. — Nós não planeámos absolutamente nada para o resgate.

— Não há planos quando se está no Álfheim — interveio Samuel, que estava a caminhar curvado, com uma mão levantada para desviar as raízes. — Não é esse tipo de lugar. A Ariana vai levar-nos até junto do neto dela e do Gabriel, e vamos tentar sair lidando da melhor maneira com tudo o que nos acontecer pelo caminho.

— Isso parece... simples — repliquei.

— Pode ser simples — disse-me Ariana. — Ela não pode estar à espera de visitas. São muito poucos os seres feéricos capazes de abrir uma entrada traseira de acesso ao covil de uma rainha. Os servos não vão reagir perante nós: não sabem nada e pouco mais são do que autómatos que obedecem às ordens da rainha. É possível que consigamos encontrar o Phin e o Gabriel e sair com eles antes que alguém se aperceba de que algo de errado se passa.

— Devíamos ter trazido... — Os dedos de Ariana tocaram os meus lábios.

— É melhor não falarmos sobre o que ela tanto deseja no seu covil — disse-me. — Suspeito que possa ouvir. E não. É poderoso, e mesmo que não faça o que ela pretende, causará grande mal nas mãos erradas.

— Está bem — repliquei.

Samuel levantou a cabeça.

— É melhor não falarmos de todo. Estou a começar a detetar o cheiro de pessoas.

Também lhes conseguia sentir o cheiro depois de ele ter falado nisso. Estávamos a entrar em caminhos percorridos por mais pessoas. A terra solta do chão dava agora lugar a terra compacta e as raízes desapareceram e foram substituídas por blocos irregulares, do mesmo modo que no chão surgiram seixos e o teto subiu, deixando que Samuel se pudesse esticar novamente.

Havia outros túneis que desembocavam no nosso.

Detetei o odor antes de Samuel, mas acho que isso aconteceu apenas porque a mulher nos apareceu vinda de trás, e eu seguia em último lugar. No entanto, isso não tinha importância porque apenas tive tempo para me virar e ela já estava colada a nós.

Vestia um casaco rasgado e calças de ganga imundas e segurava em ambas as mãos uma enorme tábua de cozinha. Caminhou na minha direção e esbarrou em mim. Quando tentou contornar-me, bloqueei-a uma segunda vez.

— Levar isto para a cozinha — disse ela sem olhar para mim. Transferiu o seu peso de um pé para o outro, completamente concentrada na tábua que segurava. O cabelo pendia-lhe em maciços irregulares e tinha terra nos nós dos dedos. À volta do pescoço ostentava uma fina coleira de prata. — Para a cozinha, minha filha. Para a cozinha. Levar isto para a cozinha.

Desviei-me da frente dela, e ela passou por nós numa passada rápida.

— Ela não está a cuidar dos seus servos — disse Ariana em tom de reprovação.

— Servos? — perguntou Jesse.

— Escravos — intervim. — Ela escraviza-os através de um feitiço.

— Vamos atrás dela — disse Ariana. — A cozinha deve ficar no coração do Álfheim.

Corremos atrás dela, passando por um rapaz vestido com um uniforme de polícia, uma rapariga envergando vestuário de jogging e uma mulher mais velha que segurava um bule do qual saía vapor. Todos usavam uma coleira de prata e todos se moviam com uma concentração de espírito anormal. No chão, os seixos deram lugar a lajes e o teto voltou a subir até ficar cerca de cinco metros acima das nossas cabeças.

As gemas que tinham servido para iluminar o corredor que havíamos percorrido forravam agora as paredes e pendiam do teto, presas a finos fios de prata ou a teias de aranha — não conseguia perceber a qual dos dois. O que quer que fosse, não parecia suficientemente forte para as segurar. A cabeça de Samuel esbarrava ocasionalmente nas gemas mais abaixo, fazendo-as baloiçar.

Entrámos na cozinha, que parecia ter sido importada de um televisor da década de 1950 — um trem de cozinha muito grande, uma vez que havia dois fogões de seis bicos numa divisão maior do que a minha agora defunta caravana. Olhei em volta, mas nenhuma das pessoas que estava na cozinha era a Donna Reed ou a June Cleaver... ou tão-pouco o Gabriel Sandoval. Os reluzentes eletrodomésticos brancos apresentavam uma estranha forma arredondada e os três frigoríficos tinham puxadores com ferrolhos de prata e Frigidaire gravado a prata por cima. Pessoas com coleiras de prata preparavam comida e bebidas — e não pareciam dar-se conta da nossa presença. A mulher que tínhamos seguido até esta divisão colocou a tábua de cozinha no balcão, ao lado de uma das bancas, e começou a encher a banca com água, não abrindo uma torneira — posto que não existia —, mas dando à bomba.

— Desculpe — disse Ariana, caminhando na direção de um homem que estava a mexer algo num recipiente, algo parecido com papas de aveia.

— Mexer o conteúdo do recipiente setenta vezes sete — disse ele.

— Onde é que eles mantêm os prisioneiros? — perguntou Samuel, imprimindo à sua voz a intensidade que só os lobos verdadeiramente dominantes conseguiam. A sua voz ecoou de forma estranha na cozinha.

Lentamente, toda a ação na cozinha parou. Uma a uma, as seis pessoas que usavam coleiras de prata à volta do pescoço viraram-se para olharem para Samuel. O homem com quem Ariana falara foi o último a parar. Retirou a colher do recipiente e apontou para uma das sete portas arredondadas. Os outros, um a um, apontaram na mesma direção.

— Quarenta e sete passos — disse o homem que estivera a mexer as papas de aveia.

— Virem no túnel à direita — acrescentou um homem que tinha estado a cortar nabos.

— Dezoito passos e depois virem-se — disse uma rapariga que estivera a amassar pão. — A chave está no gancho. A porta é amarela.

— Não os deixem sair — afirmou um rapaz que aparentava ter cerca de treze anos e que tinha estado a encher copos com água usando um cântaro.

— Regressem ao trabalho — disse Samuel, e foi o que fizeram, um de cada vez.

— Acho que isto foi a coisa mais sinistra que alguma vez vi — comentou Jesse. — Vamos simplesmente deixar estas pessoas aqui?

— Vamos libertar o Gabriel e o Phin — disse Ariana. — E depois vamos relatar isto aos Senhores Cinzentos, que proibiram a manutenção de servos. Só a rainha das fadas pode libertar os seus servos, e os Senhores Cinzentos são os únicos seres que a podem obrigar a fazê-lo. No Álfheim, é ela quem manda.

— E se ela transformou o Gabriel num dos seus servos?

— Ela não fez isso — respondeu Ariana categoricamente. — Prometeu à Mercy, e a quebra dessa promessa teria consequências nefastas. E o meu Phin está protegido contra isso.

O caminho que tomámos depois de sairmos da cozinha era menos imponente do que aquele que havíamos percorrido. O chão era feito daquelas pequenas lajes octogonais de cor branca e duas linhas de lajes pretas paralelas às paredes, a cerca de trinta centímetros. A quarenta e sete passos da cozinha, o túnel alargava numa pequena divisão. As lajes pretas formavam um complicado nó celta no centro do espaço. Havia corredores que se estendiam em frente ao nosso, bem como um de cada lado.

Entrámos na que se encontrava à nossa direita. Aqui o chão estava coberto com pranchas de madeira irregulares onde eram visíveis indícios de que haviam sido cortadas à mão. Chiava um pouco sob os pés de Samuel, que era o mais pesado de todos nós.

— Dezoito — disse ele, e depois apareceu uma porta amarela com uma chave de desenho antigo pendurada num gancho: a primeira porta que tínhamos visto no Álfheim.

Samuel pegou na chave e destrancou a porta.

— Doutor? — disse Gabriel. — O que é que está a fazer aqui?

— Gabriel. — Jesse passou por Samuel, empurrando-o para o lado.

Com a chave na mão, Samuel seguiu-a até ao interior do espaço. Eu e Ariana ocupámos a retaguarda.

Gabriel estava a abraçar Jesse.

— O que é que estão aqui a fazer todos? Ela também vos apanhou?

O quarto era branco. Paredes de pedra branca, teto branco com cristais claros pendurados para iluminar o quarto. O chão era feito de mármore branco polido. Havia duas camas com roupa de cama branca.

A única cor presente no quarto vinha de Gabriel e do homem que estava deitado numa das camas. Estava com um aspeto medonho e jamais o teria reconhecido se Ariana não tivesse sussurrado o seu nome.

Phin ergueu-se até ficar sentado, de forma lenta como se lhe doessem as costelas, e Ariana apressou-se a ajoelhar-se ao lado da cama sobre um joelho.

Fez uma careta ao olhar para ela.

— Quem é você?

— A avó Alicia — respondeu.

Pareceu sobressaltado, e depois sorriu.

— Já lhe disseram que não parece uma avó? E, assim sendo, isto é um resgate? Como nas histórias antigas?

— Não — disse Samuel, que se tinha voltado para olhar para a porta. — É uma armadilha.

— Sejam bem-vindos à minha casa — anunciou uma voz sombria e familiar. — Estou tão contente por terem respondido ao meu chamamento.

A mulher postada na entrada do quarto era maravilhosa. O seu cabelo era cinzento-acastanhado, puxado para trás numa complicada trança composta por imensas dobras pequenas. Caía-lhe pelas costas e estendia-se até ao chão como a cauda de um cavalo árabe, realçando a cor de porcelana da sua pele e o rosa dos seus lábios.

Estava de olhos postos em mim.

— Estou tão contente por recebê-la em minha casa, Mercedes Thompson. Estava precisamente a tentar ligar-lhe para o telemóvel quando, qual não foi a minha surpresa, fiquei a saber que estava aqui. Mas não o trouxe. — Uma rainha das fadas a falar de telemóveis quase me fez rir. Quase.

Ergui o queixo. Pela calada, através do confronto ou por via da negociação.

— Não sou uma negociadora assim tão má, rainha das fadas. Se o tivesse trazido, não podíamos jogar.

Sorriu, e os seus olhos cinza-prata ficaram mais ternos.

— Ora essa! — replicou. — Vamos jogar.


10 Canção da Charlie Daniels Band cuja narrativa se centra na deslocação do Diabo a Geórgia para conquistar almas. Porém, ao ver que não consegue o seu intento, o Diabo entra em desespero e mostra-se disponível para fazer um acordo. (N. do T.)

11 Töchter significa «filha» em alemão. (N. do T.)


14

— Mas este não é o local indicado para negociar — disse a rainha das fadas. — Sigam-me.

Ariana pegou em Phin pelos braços. Samuel olhou para Gabriel.

— Estou bem — disse-lhe Gabriel. Relanceou os olhos a Ariana e depois olhou para mim. — Mulher-loba? — disse com a boca.

— Não — replicou Samuel — Eu é que sou lobisomem. A Ariana é uma criatura feérica.

Gabriel espetou a cabeça na direção de Samuel.

— Você é... — E depois o seu rosto como que se iluminou. — Isso explica algumas coisas... Bola de Neve?

Samuel sorriu.

— Tens a certeza de que não precisas de ajuda?

— O Phin é que está mesmo ferido — explicou. — Melhorou bastante na última semana, mas no início as coisas não foram nada simpáticas.

Dirigi um olhar intenso a Gabriel, mas concluí que na verdade não era importante dizer-lhe que só tinha desaparecido há um dia — se não saíssemos antes de Zee perder a capacidade de manter a porta aberta, então aí é que deixaria mesmo de ser importante.

A voz da rainha das fadas flutuou através da entrada.

— Vêm?

Ariana acenou com a cabeça a Samuel, que saiu porta fora, atrás da rainha das fadas. Ariana foi a seguir, e acenei a Gabriel e a Jesse para que fossem à minha frente. Respirei fundo, aquele tipo de respiração que desimpede a mente e os pulmões antes de um esforço extremo — e senti o cheiro a terra e coisas a crescer neste frio quarto de mármore.

Apenas o glamour da rainha das fadas funcionaria no seu Álfheim, dissera Zee. Prestei atenção ao meu olfato enquanto percorríamos o corredor atrás da rainha das fadas.

Pergunta, pensei enquanto tentava distinguir os odores reais daqueles produzidos pelas ilusões da rainha. Se tem aspeto de corredor, se dá a impressão de ser um corredor e tem a função de corredor — é importante descobrir se não é um corredor?

Porém, a curiosidade é quase o meu maior pecado. Gradualmente, enquanto andávamos, o cheiro a terra, a seiva de árvores quebradas e a algo que se assemelhava a mágoa, intensificou-se. Olhei para cima, na direção das luzes pendentes, e vi três raízes em vez de fios de prata, e pedras reluzentes em vez de gemas, pedras muito parecidas com a que Zee dera a Ariana. Pestanejei, e as gemas voltaram a aparecer, mas já não acreditava nelas, e elas bruxulearam.

Tropecei e olhei para baixo, vendo momentaneamente uma raiz a brotar de um chão de terra mole, depois a minha visão mudou e as minúsculas lajes brancas, dispostas de forma plana e regular sem nada em que se pudesse tropeçar, regressaram.

— Mercy? — perguntou Jesse. — Está tudo bem contigo?

A rainha olhou para trás, na minha direção, e o seu rosto — apesar de ainda belo — era diferente do da mulher de há escassos minutos antes. Alongara-se do queixo à testa, e as suas pestanas cresceram mais do que seria humanamente possível sem cola e pestanas falsas. Um par de asas estreitas e quase transparentes, como as de uma libelinha, assomou-lhe dos ombros. Eram demasiado pequenas para a fazer levantar voo sem magia.

— Tudo bem — respondi.

O longo vestido prateado que a rainha envergava era bastante real, mas na bainha e perto dos pulsos tinha manchas castanhas-escuras que podiam ser de sangue antigo. O colar que usava, que na primeira ocasião me parecera uma cascata de prata e diamantes, era feito de metal preto baço, e as pedras nele colocadas não tinham sido talhadas.

O meu primeiro vislumbre da enorme sala para onde nos levou deixou-me de queixo caído, sobretudo pela ostentação. O chão era em mármore branco com toques de cinzento e prateado, e pilares verde-jade erguiam-se graciosamente para suportar o teto abobadado que não teria parecido deslocado na Catedral de Notre-Dame. Árvores de prata com folhas jade cresciam do chão de mármore e tremiam, perturbadas por um vento que não conseguia sentir. Quando as folhas embatiam umas nas outras, produziam música. Bancos graciosos, cinzelados a partir de madeira clara e escura, como um tabuleiro de xadrez, estavam engenhosamente distribuídos à volta da sala, ocupada por mulheres encantadoras e homens belos que olharam para nós quando entrámos.

No lado oposto da sala encontrava-se um estrado com um trono de prata, delicadamente construído e decorado com gemas verdes e vermelhas, cada uma tão grande como a minha mão. Enroscado ao lado da cadeira estava um gato que se parecia com uma chita pequena até ter levantado a cabeça, revelando as suas enormes orelhas. Um gato-bravo africano, pensei, ou algo que se parecia muito com um gato-bravo africano. Porém, não sentia nenhum cheiro a gato: toda a sala cheirava a madeira podre e coisas moribundas.

E depois a sala que eu estava a atravessar não era uma sala.

Achava que não havia qualquer caverna criada pela natureza nesta área. Existem algumas cavernas feitas pelo Homem porque algumas das empresas vinícolas abriram as suas próprias cavernas no basalto para envelhecerem os seus vinhos. O grosso da nossa geologia é ígneo, o que permite a existência de tubos de lava, mas não cavernas de calcário como as de Carlsbad. Suponho que a magia, se for suficientemente forte, não liga muito à geologia — porque estávamos numa caverna gigantesca cujas paredes, teto e chão não eram de pedra mas de terra e raízes.

O Álfheim era construído a partir da magia, mas perguntei-me se teria sido a magia da rainha das fadas que o criara. Ariana tinha olhado para as raízes das árvores na caverna para a qual a entrada de Zee nos conduzira e tinha dito que devia existir aqui um senhor da floresta. Olhando em redor, pensei que ela pudesse ter razão.

O chão estava coberto por um entrançado de raízes de árvores — tive de ter cuidado para não tropeçar e atrair novamente as atenções para mim. O trono da rainha das fadas era a única coisa em toda a sala que não se tinha alterado quando vi através do glamour. Os pilares eram raízes grossas que estavam suspensas no teto ou tinham irrompido do chão como estalactites e estalagmites vivas. Os bancos eram feitos de madeira rústica, não tão encantadores como as ilusões da rainha, mas mais bonitos.

A maior parte das criaturas feéricas presentes na sala não era bonita — embora houvesse algumas que o eram desde que os padrões de beleza não se regessem pelo que é estritamente humano. Nenhuma delas tinha ar de senhor ou senhora — Ariana e a própria rainha das fadas eram, entre todos, as que tinham uma aparência mais humana, e nenhuma delas conseguiria entrar numa loja sem que toda a gente percebesse que a sua natureza era outra.

No entanto, não perdi muito tempo a olhar para a criatura feérica da corte. Foi a criatura deitada atrás do trono da rainha das fadas que me prendeu a atenção. Era gigante e estava muito quieta, como um enorme pau-brasil deitado abaixo pelo machado de um habitante da floresta. Tinha casca de árvore e folhas persistentes — mas também tinha quatro olhos grandes como pratos ladeiros que brilhavam como lanternas rubi. Estava presa com correntes de ferro que brilhavam com a magia. Não sabia qual a aparência de um senhor da floresta, mas uma árvore gigante com olhos parecia-me uma forte possibilidade.

Ao lado do trono estava uma mulher de meia-idade que tinha os traços fortes e a tez dos povos mediterrânicos — dos gregos ou italianos, ou possivelmente dos turcos. Usava a coleira que começara a associar aos servos da rainha das fadas, mas também estava acorrentada ao trono. O meu olfato disse-me que algures entre os seres feéricos, os humanos e o senhor da floresta moribundo, estava uma bruxa. Conseguia imaginar uma bruxa ser dura ao ponto de a rainha das fadas querer mais do que um anel de prata à volta do seu pescoço para garantir que ela estivesse controlada.

Entre aquelas que se intitulam bruxas, existem diversos tipos. Menos problemáticas são as humanas que adotaram a religião Wicca. Algumas delas têm algum poder, o suficiente para enriquecer a sua fé, mas não ao ponto de atrair a atenção de coisas maiores e mais sinistras.

Depois há as bruxas brancas — pessoas nascidas de famílias de bruxas que optaram por não praticar o mal. À semelhança das bruxas mundanas, as bruxas brancas normalmente não são muito poderosas — porque a magia das bruxas tem na morte, na dor e no sacrifício as suas fontes de poder, e as bruxas brancas optaram por renunciar a isso.

A maior parte das bruxas com algum poder é constituída pelas bruxas negras. Há bruxas negras que contornam a prática do verdadeiro mal. Elizaveta Arkadyevna, a bruxa do nosso bando, é uma delas. Ela é muito poderosa, à semelhança de outras bruxas negras. Mas, ao que sei, contornar o mal é difícil, moroso, e requer da bruxa um muito maior esforço do que a prática da verdadeira magia negra. É muito mais fácil usar o sofrimento dos outros para fazer magia, e os resultados são mais previsíveis.

Esta bruxa — e à medida que nos aproximávamos do trono, o cheiro foi-se tornando cada vez mais forte, tornando a minha suposição cada vez mais provável — tresandava à mais negra das magias. No bairro dela, animais de estimação e bebés desapareceriam, inclusive o ocasional sem-abrigo. Estava capaz de apostar que as correntes de ferro que prendiam o senhor da floresta eram dela.

A sala que os outros viam, para a altura que tinha, não era particularmente grande. A caverna que eu conseguia ver era maior, mas quase metade era ocupada pelo senhor da floresta atrás do trono. Não demorámos muito tempo a alcançar o estrado.

A rainha das fadas sentou-se na beira do assento do trono de prata e estendeu a mão para baixo de modo a afagar a sua bruxa — que não pareceu ter gostado muito do gesto. As asas da rainha bateram no momento em que se sentou e depois fecharam-se para que se pudesse encostar no trono.

As suas pestanas agitaram-se acompanhadas com um som quase impercetível. Assim que fiquei de frente para ela, percebi que havia nos seus olhos algo de... errado. Mantinha-os fixos durante uma eternidade e depois pestanejava rapidamente. Era difícil assistir àquilo.

— Jesse — começou a rainha. — Dizes-me o teu nome?

— Jessica Taramind Hauptman — respondeu Jesse, com algo de errado na voz.

— Jessica — repetiu a rainha. — Que nome bonito. Anda sentar-te aos meus pés, Jessica. — Olhou para mim e sorriu-me ao constatar que Jesse fazia o que ela lhe tinha dito.

A rainha inclinou-se para a frente de modo a afagar-lhe a cabeça — Jesse pareceu ter gostado mais do gesto do que a bruxa.

— Ela já é metade minha — anunciou a rainha. — Eu e o vosso rapaz, o Gabriel, já fizemos isto. Não é verdade?

— Sim, minha rainha — murmurou ele com firmeza.

— Não lhe pus uma coleira por causa da nossa negociação, Mercedes Thompson, mas enquanto um humano estiver na minha presença, a menos que eu reprima a minha magia, ele pertence-me. Não foi inteligente da sua parte trazer-me mais uma serva. — Afagou Jesse uma última vez e depois recostou-se. — Não, isso não foi a única coisa que trouxe ao meu Álfheim. Conte-me, Mercedes, como é que conseguiu trazer consigo não só uma criatura feérica, como também um lobo, quando não podia falar deste assunto com eles?

Dei-lhe a versão curta.

— Gravei a nossa conversa telefónica.

— Estou a ver. — Parecia que tinha engolido um limão, mas não se queixou. — Portanto, Mercedes Thompson, quer negociar. — Sorriu friamente. — Quer dar-me o Artefacto de Prata em troca da sua vida?

Ariana olhou-me intensamente, mas eu sabia ouvir — e tinha conhecimento de negociações com criaturas feéricas que nos faziam lamentar o dia em que as tínhamos feito, mesmo antes de ter lido o livro de Phin. Se não tivesse muito cuidado, podia acabar por negociar o livro pela minha vida — e depois da troca feita, ficar a desejar a minha morte. Por exemplo, podia sair daqui e ser forçada a deixar Jesse e Gabriel para trás.

— Não sei — respondi, contorcendo-me sob o peso do olhar fixo da rainha das fadas. Mordi o lábio até sangrar, e doeu-me porque os dentes humanos não são suficientemente aguçados para penetrar a pele com facilidade.

— Samuel — disse eu, — um beijo para me dar coragem e clarividência, meu amor?

Samuel virou-se para mim, espantado — um beijo seria provavelmente a última coisa que lhe estaria a passar pela cabeça. Pus-me em bicos de pés e quase tive de trepar por ele acima para o beijar. Encostei os meus lábios abertos aos dele e tentei passar a maior quantidade possível de sangue da minha boca para a dele. Passado um instante, pareceu compreender o que eu estava a fazer. Envolveu-se plenamente no ato, lambeu-me o lábio e pousou-me suavemente.

Tinha esperança de que o sangue funcionasse como acontecera na livraria, e que ele visse o mesmo que eu. A julgar pela reação de Samuel, era difícil saber, mas sentia-me inclinada a achar que sim. Talvez não fizesse diferença, mas, excluindo a arma no meu coldre a tiracolo e aquela que Jesse trazia enfiada na parte de trás das calças, Samuel era a nossa melhor arma contra as criaturas feéricas. Talvez ele fosse melhor do que as armas porque seria muito mais difícil de parar. Certamente não faria mal dar-lhe a conhecer aquilo a que ia fazer frente.

— Muito tocante — disse a rainha, soando entediada. — Já se sente corajosa e clarividente o suficiente para me dar o Artefacto de Prata?

— Isso não é uma negociação — repliquei, tentando impedir que ela visse o sangue na minha boca. — É uma troca. Apenas estaria disposta a considerar tal troca se fosse autorizada a partida dos meus camaradas. É a saída segura e rápida deles que estou interessada em negociar.

— Uma verdadeira negociação? — disse ela. — Você toca algum instrumento?

Eu e o piano temos uma relação de ódio-ódio. Não considerava isso tocar, e sabia que a minha professora também não.

— Não.

— Uma negociação diferente, nesse caso. Você segura uma determinada coisa à minha escolha enquanto essa coisa se transforma. De cada vez que se transformar, liberto uma pessoa.

Estalou os dedos e a bruxa começou a murmurar de si para si, e a criatura feérica mais próxima de nós — uma criatura pequena e de ossos estreitos com pele de pêssego e cabelo verde-rosado — começou a arder. Não era glamour porque a sala não se alterou. Eram chamas reais, apesar de aparentemente não provocarem dor à criatura feérica.

— Ela não pode segurar em chamas sem morrer — disse Ariana. Não tinha olhado nem para Samuel nem para mim desde o momento do nosso beijo. Não sei se ela suspeitava de algo, ou se achava que éramos amantes. — E isso vai contra a essência da negociação. Tem de ser algo que seja possível ao desafiador realizar, mesmo que improvável.

— Muito bem — disse a rainha. — Se é tão minuciosa, Prata, pode ser você a desafiadora. — Soltou uma risada e as raízes no teto contorceram-se quando o som de sinos ecoou na sala. — É claro que sabia quem você era, querida Prata. Como podia você pensar que não? Existem assim tantos entre nós que optaram por viver desfigurados pelas presas de cães de caça e lobos? Não. Apenas a Prata. Portanto pode entrar nesta negociação, e a alternativa é eu matar esta mulher quase-mortal que não é tão humana quanto o seu Phin ou o rapaz. A mestiça não é suficientemente humana para ser salva pelas leis de receção de visitas no Álfheim.

Ariana não pareceu ouvir as provocações da rainha. Em vez disso, disse de forma clara e lenta:

— Eu pego nesta criatura feérica, que irá sofrer uma transformação... A primeira forma do fogo conta como uma. Depois disso, de cada vez que ela se transformar, um dos meus camaradas será libertado. Sofrerá mais cinco transformações, três minutos cada forma, e se eu for bem-sucedida, todos partirão. Se não for, fica uma pessoa por cada forma.

Enquanto falava, Ariana largou Phin ao lado de Gabriel. Mesmo sob o controlo da rainha, Gabriel pôs uma mão no ombro de Phin para o acalmar.

— Quatro vezes — disse a rainha. — Cinco formas. Não deixarei partir a Mercedes Thompson, que tem o Artefacto de Prata.

— Não há problema — disse eu a Ariana. — Eu sou uma sobrevivente. Pergunte a quem quiser. Posso resolver a questão do livro com a rainha quando vocês estiverem todos a salvo.

— Seis formas — disse Ariana. — Uma para cada. Está nas regras: «Negociação acordada, toda a gente aprisionada em função do teste libertada.»

A poesia não fluía da melhor maneira, mas suponho que para registar as regras de uma rainha das fadas, a poesia não precisasse de ser muito boa.

Os olhos da rainha agitaram-se de irritação. Senti uma grande dificuldade em desviar os olhos dela, e em conter o impulso de pestanejar.

— De acordo — resmungou. — Mas a Mercedes é a última a ser libertada e o seu neto o primeiro.

Samuel interveio:

— O Phin, a Jesse, o Gabriel, a Ariana, eu, e a seguir a Mercedes.

— O Phin, a Ariana, e depois os restantes, seguidos da Mercedes — foi a contraproposta da rainha.

Percebi o que ela estava a fazer. Ao colocar Ariana e Phin no início, achava que estaria a reduzir a motivação de Ariana à medida que a tarefa se fosse tornando mais difícil.

Samuel abanou a cabeça.

— O Phin, a Jesse, o Gabriel, a Ariana, eu, e a seguir a Mercedes.

— Estou a ficar entediada — retorquiu a rainha. — De acordo. Negócio fechado.

Ariana fitou Samuel com os olhos semicerrados — julgo que pelo facto de a ter colocado antes dele. Mas eu concordava com Samuel. Fazer com que os indefesos fossem os primeiros a sair, e depois aqueles mais capazes de se protegerem. Isso significava que Ariana saísse antes de Samuel.

— Aceite — concordou Ariana, e avançou, envolvendo a criatura feérica com os braços. No momento em que a tocou, o cabelo de Ariana começou a arder, bem como as suas roupas, e o que não era incendiável caiu no chão, incluindo a pedra que Zee lhe dera. A sua luz constante era quase impercetível contra as chamas. Entretanto, o resto do corpo de Ariana ardeu em fogo lento durante um momento, para logo a seguir se levantarem chamas.

— Ela contém terra, ar, fogo e água — disse-me Samuel. Se não o conhecesse tão bem, poderia ter pensado que ele estava desinteressado. — Foi isso que lhe permitiu fazer grande magia depois de a maior parte de Underhill ter ficado inacessível. O fogo mágico não lhe vai fazer mal algum.

A rainha estava a falar com a bruxa. Depois de ter terminado de falar, a bruxa levantou-se com uma faca de aço na mão. Juntou as suas correntes e deslocou-se até ao lado oposto do trono, ficando apenas possibilitada de alcançar o senhor da floresta. Afundou a faca na criatura que se parecia com uma árvore, e esta bradou, agitou-se e do seu interior verteu um fluido âmbar, manchando a faca. O chão mexeu-se debaixo dos meus pés e as raízes no teto contraíram-se e contorceram-se.

Samuel colocou a mão debaixo do meu cotovelo para me acalmar — o que me fez perceber que o sangue tinha funcionado. Ele conseguia ver através do glamour, presenciando a realidade daquilo com que estávamos a lidar.

A bruxa lambeu a faca e afundou um dedo no corte que fizera ao ser feérico aprisionado. Usou esse dedo para desenhar símbolos no ar, onde ficaram suspensos, a brilhar com a sua cor amarela terrosa. Levantou a camisola, pondo a descoberto a pele da sua barriga, após o que estendeu a mão e agarrou os símbolos, chicoteando com eles a sua pele nua. Quando terminou, regressou para junto do trono, sentou-se e acabou de limpar a lâmina com a língua. Reparou que eu a observava e sorriu.

Talvez ela não soubesse do glamour, ou talvez pensasse que eu tinha medo de gatos. Uma coisa era certa: sabia que eu tinha medo dela. Quem me dera saber o que acabara de fazer.

O que quer que fosse, era improvável que nos viesse a servir de ajuda. E nós precisávamos de ajuda. Três minutos vezes seis perfazem dezoito — e Zee já estava a segurar a porta há algum tempo. O acrescento de dezoito minutos iria forçá-lo bem para lá da hora que prometera. A rainha não iria precisar da abertura de Zee para permitir que saíssem — mas se se mantivesse aberta, sairiam no mesmo dia em que tinham entrado.

O tempo tinha finalmente passado e a criatura feérica que Ariana segurava transformou-se em gelo. Três minutos é muito tempo para segurar um gigantesco cubo de gelo. Não conseguia perceber porque é que Ariana continuava a abraçá-lo com força em vez de afrouxar um pouco os braços de modo a ficar menos colada a ele. Especialmente considerando que todas as suas roupas tinham ardido e estava nua, sem nada a separar a sua pele do gelo.

— Pele com pele, não se esqueça — disse a rainha feérica num tom tão rabugento que percebi que alimentava a esperança de que Ariana recuasse.

Ouvi uns murmúrios das criaturas feéricas à nossa volta, comentários acerca das cicatrizes de Ariana. Quão feias eram, quão vergonhosas. Pensei que talvez estivessem a comentar de propósito, como uma espécie de subterfúgio da rainha das fadas, mas se era esse o caso, as suas provocações não pareciam ter qualquer efeito sobre Ariana.

Passaram-se três minutos, e Jesse estava a salvo — e o ser feérico que Ariana segurava transformou-se em fumo. No entanto, parecia que estava preparada para isso porque à medida que as extremidades dele começaram a desvanecer-se, ela esticou os braços e puxou a capa da criatura feérica que estava mais próxima dela. Colocou a capa em volta dela e do ser feérico, depois tocou na capa com a sua mão fria e uma camada de gelo cobriu-a, encurralando o fumo no pano congelado.

Sub-repticiamente, relanceei os olhos em volta, passando em revista as criaturas feéricas que estavam na sala connosco. Havia algumas quando tínhamos chegado aqui, mas as restantes tinham entrado depois de forma mais intencional, como se a rainha as tivesse convocado. Contei vinte e oito, sem incluir o senhor da floresta, que, suspeitei, não se contava entre os seus seguidores.

Olhei para os seus rostos, e pareciam menos... inexpressivos do que os dos servos, mas também não me pareceu que tivessem total arbítrio. Talvez fosse por causa da forma como as vinte e oito criaturas se fixavam avidamente na rainha, como se estivessem à espera de alguma tarefa, de alguma ordem — de qualquer coisa que pudessem fazer pelo seu verdadeiro amor a quem veneravam. Já tinha estado no meio de criaturas feéricas. Raramente vira sequer três fixas no que quer que fosse, quanto mais vinte e oito.

— Vejam as cicatrizes que o pai dela lhe provocou — disse uma.

— Como é possível ela ter sobrevivido àquilo? Parece que foi lacerada por bestas.

— Não sabem a história? — disse uma terceira. Todos olharam para Ariana, em vez de olharem para a rainha das fadas, enquanto a terceira continuava. — O pai dela convocou as bestas dele para a torturarem todas as manhãs durante três anos.

Os lábios de Ariana cerraram-se-lhe ao lembrar-se disso. E entretanto passaram-se mais três minutos e conquistara a liberdade de Gabriel.

O ser feérico sob a capa começou a crescer e Ariana deixou o pano cair no chão. A princípio, não consegui perceber o desafio. A criatura transformara-se num outro ser feérico, uma enorme figura masculina com traços quase humanos. A pele tinha a cor e a textura de uma bétula, nalguns sítios lisa e branca e noutros rugosa e cinzenta-escura ou preta. O cabelo parecia casca de árvore cortada às tiras e pendia-lhe nas partes laterais do rosto. Não era feio ou horrível — mas nessa altura Ariana começou a tremer.

Ao meu lado, Samuel retesou-se e rosnou baixinho.

— Olá, minha filha — disse o homem feérico com pele de casca de árvore. Depois disso, falou em galês; a pronúncia era tão obscura que não consegui perceber o que dizia. Levantou o braço direito — vi que não tinha mão na extremidade — e acariciou-lhe o cabelo com ele.

O pai de Ariana fora um senhor da floresta, mas claramente não a mesma espécie de senhor da floresta que a rainha das fadas tinha como prisioneiro, porque tinha uma aparência bastante diferente.

A rainha das fadas tinha usado as suas criaturas feéricas para enfraquecerem Ariana para este momento, para a lembrarem do que lhe tinha sido feito por este homem. Porém, subestimara Ariana se pensava que esta ia perder assim tão facilmente. Abraçou o homem e puxou-o para junto de si.

O galês de Samuel conseguia compreender: não estava a falar ao telefone, estava a falar devagar e o que disse foi bastante simples.

— Ele não pode chamar os cães dele, Ari, meu amor. Não te preocupes. Estão mortos e enterrados. Certifiquei-me disso. Ele não é real, não é real. Ela não tem esse tipo de poder. O meu pai matou o teu. Eu matei os cães e eles não vão voltar.

Repetiu pacientemente o que dissera, permitindo-lhe ouvir outra coisa para além do ser feérico, que tinha obviamente o rosto e a forma do seu pai.

Mantive-me de olhos fitos na bruxa, e não estava tão certa quanto Samuel de que o pai dela não fosse real. As bruxas são capazes de fazer coisas verdadeiramente assustadoras. As três primeiras coisas em que a criatura feérica se transformara — fogo, gelo e fumo — tinham-me todas cheirado a magia. Esta — para além do cheiro que tinha, que era muito seu — tresandava a magia negra, magia de bruxa — e as bruxas conseguiam trazer de volta os mortos.

Durante três minutos, Ariana abraçou o homem que se revelara capaz de a torturar até que ela perdesse a razão. Ao fim dos três minutos, podia tê-lo largado e saído do Álfheim, deixando-me a mim e a Samuel para trás. Mas ela era mais dura do que isso. Portanto, quando o seu pai se transformou num lobisomem bastante parecido com Samuel, pôs-se de joelhos de modo a poder puxá-lo para junto de si e fixou-se... em Samuel. Os olhos dela ficaram pretos e o seu rosto inexpressivo, mas aguentou-se, dizendo com a boca uma palavra, vezes sem conta — o nome de Samuel.

Samuel também se pôs sobre os joelhos, com os olhos brancos e selvagens.

— Aqui não — disse-lhe, e era a minha vez de falar. — Não te podes transformar aqui, Samuel. Tens de a levar para fora daqui, juntamente com o Phin e os miúdos. Tens de... Ela não vai estar em condições de fazer nada. Aguenta-te.

Ela não ia conseguir libertar-me: primeiro o pai dela, depois o lobisomem, e tinha um palpite bastante plausível sobre qual seria a forma final, uma vez que a rainha das fadas não tinha qualquer intenção de me libertar.

Aquela que fora Daphne achava que eu era a proprietária do Artefacto de Prata. Achava que quando libertasse Gabriel, a nossa negociação sobre a minha segurança teria terminado. Obviamente, eu não era suficientemente humana para beneficiar das leis de receção de visitas que impediam uma rainha das fadas de matar os humanos que entrassem no seu reino. Ela podia matar-me e ir buscar o livro.

Teria razão, não fosse um pormenor. Eu não era a proprietária do Artefacto de Prata, mas sim Phin. Quando me matasse, a única coisa que ia conseguir seria uma chusma de problemas — e daria o meu melhor para a convencer disso assim que os outros fossem libertados. A única coisa que teria de fazer era manter-me firme até que Adam me viesse buscar.

Claro que se Ariana conseguisse segurar a última forma que a criatura feérica assumisse, a minha vida ficaria bastante facilitada.

Durante três minutos, Ariana segurou o lobisomem — e depois ele transformou-se. O cão de caça era um tanto parecido com um beagle gigante: branco com manchas castanhas, orelhas arredondadas que pendiam em cada um dos lados da cabeça, mas não havia nele o mais pequeno indício da expressão amigável com que a maior parte dos beagles nasce e morre.

Ariana olhou para o cão de caça que abraçava, envolveu-lhe o pescoço e quase enfiou as pernas por baixo do seu corpo. Durante um momento, nada aconteceu, e, apesar do que me poderia vir a acontecer, senti uma grande esperança. Não queria ser deixada sozinha com a rainha das fadas, que me queria matar.

Em seguida, Ariana rolou para longe do cão de caça, que seria certamente parecido com um dos cães de caça que o seu pai usara para a torturar, e enroscou-se numa posição fetal, de boca aberta e a gritar, porém, com os sons aprisionados pelo pavor. Samuel levantou-a e começou a trautear. Sem dizer nada, apenas fazendo-a ouvir a sua voz. Os olhos dele estavam na rainha das fadas.

— Cinco — disse a rainha das fadas, soando moderadamente maldisposta. — Achei que também ia conseguir mantê-lo a si, lobisomem, mas ela foi mais forte do que eu pensava.

Samuel rosnou-lhe.

Reparei que a pedra de Zee, pousada no chão debaixo da barriga do cão de caça, que estava concentrado em Ariana, tremeluzia.

— Samuel — disse-lhe urgentemente. — O Zee está à espera. Leva os miúdos, e Phin também... — Especialmente Phin. Uma criatura feérica disposta a usar uma bruxa negra e que permitia que esta torturasse outro ser não era alguém a quem queria dar mais poder. Precisávamos de levar Phin para longe daqui, em segurança, para que o Artefacto de Prata ficasse fora do alcance dela. — Leva-os e sai daqui.

— Podes ajudar-me a levantar? — perguntou Phin a Gabriel. Sabia do que precisávamos.

Fez-se uma pausa momentânea, mas ao ver que a rainha não interferiu no pedido de Phin, Gabriel ajudou-o a levantar-se.

— Tu — disse a rainha, apontando para a criatura feérica mais perto dela. — Leva-os para o Exterior e deixa-os partir. Vais ter de transportar o homem humano. — Olhou para Jesse e depois relanceou os olhos a Gabriel. — Vão, meus filhos, e quando estiverem fora do meu Álfheim, voltem a ser o que eram.

A criatura feérica para a qual apontara inclinou a cabeça e pegou em Phin com a mesma facilidade que Ariana demonstrara. Nem todas as criaturas feéricas são tão fortes. No mais absoluto silêncio, Jesse e Gabriel seguiram-no em direção à porta.

Samuel parou e deu-me um beijo na face, ainda com Ariana nos braços, que tremia apavorada.

— Mantém-te viva — disse-me.

— É o que eu planeio fazer — repliquei. Dirigi a Ariana, que estava completamente imersa no seu estado de pânico, um olhar circunspecto. Lembrei-me da preocupação dela quando voltara a si da última vez, e portanto acrescentei: — Mantém-te vivo também. Agora vai-te embora enquanto podem.

— Semper Fi12 — disse, olhando de relance para a pedra de Zee. Depois apressou-se ao encontro dos outros.

Que eu soubesse, Samuel nunca tinha sido fuzileiro naval. Mas ele sabia que eu tinha percebido a referência. Os fuzileiros navais nunca deixam um homem para trás. Ele iria voltar, assim como Adam. A única coisa que tinha de fazer era sobreviver.

Todos esperámos até que a criatura feérica que os acompanhara até ao exterior regressasse. Inclinou a cabeça diante da rainha e disse:

— Eles estão no Exterior, sãos e salvos, minha rainha.

Respirei fundo, e alguns segundos depois, a pedra de Zee era apenas mais uma pedra cinzenta entre as raízes no chão da caverna. Segundo as minhas contas, teriam conseguido escapar cerca de dois minutos antes do tempo — embora provavelmente Zee mantivesse a entrada aberta até os ver.

— A minha parte do acordo está feita — disse-me.

— Muito bem — repliquei.

— Agora vai dar-me o livro em troca da sua vida.

— Não. — Abanei a cabeça. — Ponderei e decidi que isso não vai acontecer.

Já não havia humanos que me pudessem proteger. Era apenas eu. A minha preocupação em relação ao que a bruxa podia fazer se a libertasse fez-me hesitar antes de sacar da minha arma — e foi uma hesitação demasiado longa. Levei a mão ao interior da minha t-shirt e dois dos subordinados da rainha agarraram-me os braços. A arma caiu no chão e a rainha das fadas pontapeou-a para o lado — para bem longe do alcance da bruxa.

— Não me estou a fazer entender — disse-me. — Eu vou tirar-lhe a vida e você vai dar-me o livro com a sua morte.

— Pensava que era preciso ser-se proprietário do livro para que isso funcionasse — repliquei numa voz de perplexidade.

A rainha das fadas cravou os olhos em mim.

— Deu o livro a alguém antes de ter vindo aqui?

— Não no sentido em que está a pensar — respondi.

— Então em que sentido? — disse numa voz suave.

— Porque é que haveria de responder a isso? — perguntei. A rainha das fadas acenou de forma contundente e a bruxa esticou o braço e tocou-me.

Quando voltei a mim, estava deitada na cama onde Phin estivera. Pelo menos tinha o cheiro de Phin, porém, o quarto era feito de raízes e terra e não mármore. Fiquei confusa por momentos, mas depois fiquei mais desperta e dei-me conta de que nunca o tinha visto sem o glamour — apenas o tinha cheirado.

Doía-me o corpo todo, embora não tivesse nenhuma nódoa negra ou ferimento. Tinha resistido o máximo possível para dar tempo a Samuel e a Adam para porem toda a gente em segurança. Não sabia se tinha sido tempo suficiente. Esperava estar morta quando terminasse. Porém, era capaz de lidar com resultados inesperados — mesmo que envolvessem o uso de um penico. Aquele recipiente branco de porcelana debaixo da outra cama só podia ser isso. A rainha das fadas tinha uma cozinha com frigoríficos e tudo mais e não tinha uma casa de banho? Meditei sobre isso durante algum tempo e concluí que se calhar apenas não tinha casas de banho para os prisioneiros.

Após um longuíssimo período de tempo, que provavelmente não terá correspondido a mais de uma hora, a porta do quarto foi aberta e a rainha entrou com duas companhias femininas, e duas masculinas.

O primeiro homem era o ser feérico que acompanhara Samuel e os outros. Era alto, mais alto do que Samuel, com olhos da cor da espuma do mar. Pela primeira vez, apercebi-me de que era a criatura feérica do mar que forçara a entrada na livraria. O segundo homem era baixo segundo os padrões humanos, mas não ao ponto de causar estranheza. A sua pele era verde e encrespada como as ondas de um oceano. À semelhança da rainha das fadas, tinha asas nas costas, embora as suas fossem pardacentas e semelhantes a couro, para além de menos parecidas com as de um inseto.

Uma das mulheres transportava uma cadeira. Era quase humana em aparência, excluindo os olhos cor de laranja e a pele pálida, azul-pálida. A segunda mulher estava coberta, da cabeça aos pés, de cabelos lisos e castanhos com cerca de cinco centímetros de comprimento, e os seus braços eram um terço mais longos do que deveriam ser. Transportava uma estreita coleira de prata suficientemente grande para contornar o meu pescoço.

Ao ver a coleira de prata, tentei fugir. O homem alto apanhou-me e sentou-me na cadeira enquanto a mulher que transportava a coleira na mão me prendeu a ela: nos pulsos, nos cotovelos e nos tornozelos.

Depois puseram a coleira de prata à volta do meu pescoço.

Depois de sujeitá-los à servidão, só ela os pode libertar.

— Precisei de muito tempo para descobrir os seus segredos, Mercedes — disse a rainha. — O Phin era o proprietário, mas a Ariana pô-lo sob vigilância na reserva, onde nenhum dos meus o pode ir buscar. Você deu o livro ao seu amigo, mas ele entregou-o aos lobisomens, e também não podemos ir ao encontro deles.

Quanto tempo é que teria estado inconsciente, o que é que lhe teria dito? Não me lembrava de tudo, e isso preocupava-me.

A rainha das fadas envergava um vestido diferente. Este era azul e dourado. Queria isso dizer que estávamos num dia diferente? Ou apenas que ela tinha sujado o vestido com alguma coisa e se viu forçada a mudar?

— Por agora, apenas me resta a vingança. — Os seus olhos pestanejaram daquela forma estranha. — Com o tempo, deixarão de guardar o Artefacto de Prata com tanta diligência, e ficarei com ele. Até lá, ficarei com o que conseguir. Espero que desfrute da sua vitória.

— Mercedes Athena Thompson — disse ela, pondo-me a mão na testa. Olhe para mim.

A parte do «Olhe para mim» passou-se dentro da minha cabeça. Fez-me lembrar a forma como a voz de Mary Jo entrara na minha cabeça no recinto de bowling. Talvez se não tivesse passado por essa experiência, a voz da rainha não me tivesse parecido tão claramente alheia.

Você deseja servir-me. Nada mais é importante.

Adam era importante.

Se não escapasse daqui com vida, ficaria a pensar que a culpa era dele. Que se estivesse em melhor estado, eu o teria trazido comigo e ele salvaria o dia. Assumiria a responsabilidade de tudo se alguém (como eu) não estivesse por perto para lhe dar um abanão. Portanto tinha de sobreviver — porque Adam era importante para mim.

A rainha das fadas continuou a falar dentro da minha cabeça, porém, não estava a prestar atenção ao que ela dizia.

— A quem servirá? — perguntou em voz alta, afastando a mão da minha cabeça. Porém, fê-lo como se não estivesse interessada na resposta.

— «Escolhei hoje a quem ireis servir» — murmurei. — «Porém, eu e a minha casa serviremos ao Senhor». — Pareceu-me apropriado citar-lhe Josué.

— Como? — replicou, surpreendida.

— O que estava à espera que eu respondesse? — perguntei, sentindo-me um pouco desiludida. Algumas das criaturas feéricas muito velhas reagem mal às Escrituras, mas esta não pareceu ter ficado incomodada. Com as Escrituras, pelo menos.

— Levem-na para a sala — disse, as pestanas a baterem-lhe nas maçãs do rosto com a intensidade da sua fúria.

Os homens pegaram em mim, cadeira incluída, e transportaram-me de volta à sala. Apenas tinha vagas memórias do que ali me acontecera às mãos da bruxa — a minha mãe uma ocasião dissera-me que o mesmo acontecia em relação ao parto. Toda aquela dor, e depois nada. Mas se a minha mente tinha bloqueado o que de pior se tinha passado, o meu corpo pareceu servir de contrapeso. À medida que nos aproximávamos, sentia um aperto crescente no estômago e comecei a suar. Quando chegámos à sala, não teria ficado surpreendida se os homens que me transportavam sentissem o cheiro do meu medo.

Levaram-me para junto do trono e pousaram-me.

— O que é que fizeste? — perguntou a rainha à bruxa numa voz sibilante. Em resposta, a bruxa recuou. — O que é que fizeste para ela me resistir?

— Nada, minha rainha — respondeu a bruxa. — Nada que lhe permitisse resistir a si. Ela só é metade humana. Talvez seja esse o problema.

A rainha largou-a e dirigiu-se a mim. Retirou do cinto uma faca de prata e fez um corte no meu braço, exatamente em cima da mordidela que Samuel me dera. As marcas da mordidela tinham um aspeto recente, portanto não tinha perdido muito tempo.

Esfregou os dedos no meu sangue e levou-os à boca. Depois fez um corte nela própria e deixou cair três gotas do seu sangue na ferida aberta do meu braço.

Ia usar magia antiga para nos unir. Era isto que os lobos faziam para integrar um novo membro no bando.

Tive um repentino pensamento assustador. Se ela conseguisse a união, seria capaz de chegar ao bando através de mim? Zee mostrara preocupação em relação à possibilidade de ela encantar os lobos.

— O meu sangue no seu — disse ela, e era tarde de mais para contrariar o que ela estava a fazer. — A minha prata, a minha magia, o nosso sangue, fazem de si minha. — Porque já estava feito.

Uma névoa ocupou-me a cabeça.

Lutei e lutei, mas não havia nada contra o que lutar; era apenas uma névoa que parecia tapar tudo e enclausurar os meus pensamentos.


12 Latim para «Sempre Fiel». (N. do T.)


15

Depois de lutar e lutar, dei por mim sozinha, postada numa enorme extensão de neve. O frio era tão intenso que me congelava o nariz. No entanto, apesar de estar nua, não me sentia desconfortável.

— Mercedes. — Bran falava como se não tivesse fôlego. — Estás aqui! Finalmente.

Rodei sobre mim mesma sem o conseguir ver.

— Mercedes — disse-me, — consigo falar contigo porque pertences ao bando do Adam e o bando dele também é meu. Mas precisas de me ouvir porque eu não te consigo ouvir a ti. A única coisa que posso fazer é mostrar-te aquilo que eu acho que precisas.

— Está bem — repliquei. Saber que ele não me conseguia ouvir fez-me sentir só. Só porque não tinha sido Adam quem me encontrara ali na neve. Estremeci apesar de ainda não sentir frio.

— A maior arma no arsenal de uma rainha das fadas é a sujeição. Enquanto membro de um bando, devias ser quase imune a isso. Mas o teu caso é especial, e disseram-me que ninguém te ensinou de que modo é que a magia do bando funcionava em ti. Aparentemente, o meu filho e o Adam, que deviam saber mais do que isso, presumiram que seria tudo instintivo porque é assim que as coisas funcionam num lobo. Quando o Adam descobriu que não era esse o caso, optou por esperar de modo a conseguir descobrir quem é que andava a interferir com a tua mente, em vez de te colocar em segurança.

— Houve complicações — disse-lhe com veemência. Não gostei de o ouvir criticar Adam. Sabia o que ele estava a fazer e aprovara a forma como a sua mente funcionava.

Seguiu-se uma pausa, e tive a distinta impressão de surpresa.

— Desculpa por te ter ofendido — disse lentamente. — O facto de eu saber que te sentes ofendida é... interessante. — Tive a impressão de um encolher de ombros, e ele continuou a sua mensagem. — Devo informar-te que a magia da sujeição não é assim tão diferente dos vínculos do bando, Mercedes. Os vínculos do bando não são feitos com o intuito de sujeitar a individualidade ao pensamento do Alfa ou forçar qualquer tipo de comportamento. Um bando precisa de todas as suas diferenças, e encontramos força nisso: muito mais força do que uma rainha das fadas estúpida que está a roubar magia e a usar uma bruxa. Compreendes-me? — A sua fúria abalou todo o meu ser. Estava mesmo furioso.

No entanto, não era comigo que estava furioso, portanto não tinha com que me preocupar.

— Compreendo — respondi, mesmo sabendo que ele não me conseguia ouvir. Ou que não me conseguia ouvir de um modo geral.

— Vou mostrar-te uma coisa — disse-me. E, de repente, na neve branca apareceu um festão13 de prata. — Este é um dos teus vínculos com o bando — informou-me. Não conseguia vê-lo, mas conseguia senti-lo a caminhar ao meu lado enquanto seguíamos o festão. Parámos e vi que tinha uma pedra atada numa das extremidades... dentro de um invólucro de prata. A pedra emitiu uma cálida luz amarela que era muito bem-vinda neste sítio frio.

— Um festão de Natal e uma pedra? — disse ele com um sorriso na voz. — Porque não um ornamento?

— Os lobos não são frágeis — repliquei. — E são... teimosos e difíceis de comover.

— Calculo que essa imagística funcione tão bem como outra coisa qualquer — concedeu. — Sabes quem é que isto representa? Consegues sentir o quanto ela está preocupada contigo?

— É a Mary Jo — respondi. E assim que ele me chamou a atenção para isso, também consegui sentir essa preocupação. Consegui sentir que estava à minha procura, a correr sobre quatro patas para usar o faro de forma vantajosa. Ela não estava na pista certa, e tive a impressão de quilómetros percorridos e quilómetros a percorrer, com uma distância infinita a separar-nos.

— Normalmente não é tão nítido — disse Bran, afastando-me de Mary Jo. — Isso deve-se, em parte, ao facto de estar contigo, e eu ser o Marrok. A outra parte tem a ver com o facto de a rainha te ter trancado dentro da tua própria cabeça. Consigo perceber isso pela qualidade do meu contacto contigo. Ela ter feito isto é uma ofensa imperdoável — uma vez mais senti-o a tentar conter a sua fúria — mas isso vai dar-te uma força aqui que de outro modo não terias. — Fez uma pausa. — A ligação entre mim e ti também é mais forte do que seria de esperar. Não estou a ouvir palavras, mas existe algo... Não vale a pena distrairmo-nos agora com o porquê. Temos outras coisas a fazer.

Levou-me para junto de mais um festão de prata e fez-me dizer-lhe a quem pertencia. Depois do terceiro, consegui encontrar os festões sem a sua orientação. O quarto pertencia a Paul. Estava a correr com Mary Jo — e igualmente ansioso por me encontrar. No entanto, continuava sem gostar de Warren. Consegui ver que o seu festão e o de Mary Jo estavam entrelaçados e ligados a todos os outros festões. Uma a uma, passámos pelas pedras que eram os lobos do bando.

Bran deteve-me quando alcançámos o festão de Darryl, numa altura em que queria acelerar para encontrar Adam.

— Não — disse ele. — Quero que olhes para aqui durante algum tempo. Consegues encontrar a ligação do Darryl à Auriele? É diferente dos vínculos do bando.

Olhei e voltei a olhar. Encontrei a pedra de Auriele ali perto, mas não consegui ver nada. Finalmente, num estado de desespero, peguei na pedra de Darryl e vi que também a de Auriele se mexeu — como se estivessem ligadas... e depois não consegui perceber como não dera fé da corda dourada em chamas entre elas, era por demais evidente. Talvez estivesse demasiado concentrada em encontrar um festão de prata e, em vez disso, o seu vínculo era muito diferente — mais delicado, mais forte, mais profundo. Contrariamente ao vínculo do bando, não estava ligado às pedras; começava num e terminava no outro.

Bran encostou a sua mão ao meu cotovelo.

— Pronto, podes parar de brincar com eles. Estás a deixar o Darryl chateado. Quero mostrar-te mais um.

Conduziu-me até ao centro de todos os festões de prata.

Quase enterrada na magia do bando estava uma pedra completamente preta. Emanava raiva, medo e tristeza com uma intensidade tal que era difícil aproximar-me dela.

— Não te assustes — disse Bran com algum afeto na voz. — O Adam já tem vindo a assustar pessoas que cheguem ultimamente. Olha e diz-me o que vês.

Este era Adam? Corri em direção à pedra e coloquei ambas as mãos nela.

— Ele está ferido — disse, e depois corrigi-me. — Ele está a sofrer.

— Onde é que está o vosso vínculo de parceiros?

Estava pousado na neve, uma coisa frágil e gasta. Tinha nós toscos em imensos sítios para não se desintegrar.

— Feito à pressa por necessidade, o que não é necessariamente uma coisa má — comentou o Marrok, — mas que foi fragilizado por um manuseamento grosseiro por parte de uma série de idiotas. A maior parte dos quais devia ter mais juízo.

Consegui ver que à volta dos nós a corda estava gasta, como se um cão... ou um lobo a tivesse trincado até alguém a ter atado para impedir que rompesse.

— O Henry já não está no bando — informou Bran. — Caso não tenhas reparado. Trouxe-o para o meu bando para um pequeno frente a frente. Talvez daqui a uns meses o deixe ir embora sozinho. Grande parte desses estragos é da responsabilidade dele.

Porém, já não estava preocupada com as secções mastigadas.

— Está quebrada — disse-lhe, ajoelhando-me na neve funda. À minha frente, a corda desintegrou-se abruptamente, como se cortada por uma faca afiada. Pensara que a razão pela qual não tinha conseguido sentir Adam se prendia com a sobrecarga que ocorrera quando ele tinha pensado que eu estava morta. Porém, o vínculo estava a ser restabelecido, não estava? Quando é que eu tinha perdido a ligação?

Doía saber que estava quebrado.

— Ora, isso — rosnou Bran — foi cortado por magia negra.

A sua voz troou tão forte no meu ouvido direito que me virei — e vislumbrei algo gigantesco e horrível que não se parecia minimamente com Bran.

— Não percebi como é que isso seria possível até o Samuel me ter contado que havia uma bruxa envolvida. Entre a bruxa e a rainha, encontraram uma fraqueza e cortaram a corda — disse-me. E depois, num tom curiosamente divertido, acrescentou: — E eu não te assusto minimamente, pois não?

— Porque é que me haverias de assustar? — perguntei, mas a minha atenção estava centrada na corda cortada. Magoaria Adam se a tocasse?

— Força — disse Bran. — O Adam dava tudo para que tocasses nela outra vez.

— Meu — disse. — Meu.

Mas, ainda assim, não a toquei.

Com aquele sentido de humor superior que usava ocasionalmente, e que me dava sempre vontade de lhe bater, Bran disse:

— Tenho a certeza de que ele conseguirá encontrar outra pessoa disposta a ficar com ela.

Agarrei-a com ambas as mãos — mas não porque estivesse preocupada com a possibilidade de haver mais alguém, independentemente do que Bran pudesse pensar. Fi-lo porque pertencíamos um ao outro: Adam ligado a mim, eu ligada a ele. Adorava quando me dava espaço para o fazer rir — era um homem sério por natureza e atormentado pela responsabilidade que tinha. Sabia que ele jamais me deixaria, jamais me dececionaria — porque o homem nunca tinha abandonado nada na sua longa vida. Se eu não tivesse pegado na corda de ouro do nosso vínculo, sabia que Adam se sentaria em cima de mim e me ataria os membros com ela. Eu gostava disso. Muito.

— Mercy! — Esta voz não era a de Bran. Esta voz era imperiosa e meio demente. Fez-se uma breve pausa e depois, de forma muito mais controlada, Adam disse: — Porra, já não era sem tempo. Encontrei-te. Mercy, nós vamos buscar-te. Mantém-te firme.

Deixei-me envolver pela sua voz e agarrei com mais força a corda entre nós até ela se instalar dentro de mim e eu não ter de a segurar mais.

— Adam — disse, feliz. E depois, porque ele perceberia que eu estava a pegar com ele, acrescentei: — Demoraste imenso tempo. Estavas à espera que eu escapasse daqui sozinha?

Olhei em volta, atentando na extensão de neve, por aquela altura repleta de festões e pedras reluzentes. Fechei os olhos e deixei-me envolver pela energia do bando como se de um manto quente se tratasse. Senti a magia da rainha das fadas tocar a corda dourada que partilhava com Adam — e desta vez foi a magia da rainha que se despedaçou.

Eu e o senhor da floresta aprisionado tínhamos os olhos cravados um no outro. Pestanejou, e eu baixei imediatamente os olhos — e vi que do meu braço ainda gotejava sangue.

— Pronto — disse a rainha das fadas. — Agora és minha.

Enquanto ela cortava as cordas que me mantinham presa à cadeira, pestanejei-lhe e tentei colocar no rosto a expressão estúpida que vira nos outros servos.

— Vai à cozinha e traz qualquer coisa para limpar o sangue do chão — ordenou-me.

Levantei-me e comecei a caminhar. Deixou de me prestar atenção porque eu já não era interessante. Comecei a caminhar um pouco mais depressa porque vi a minha arma no chão, ao lado de um dos bancos, para onde alguém a devia ter pontapeado. Creio que isso fazia sentido. Não havia muitas criaturas feéricas capazes de pegar nela sem se magoarem. Nenhum dos servos sonharia sequer em usá-la — mas dava para perceber que as criaturas feéricas seriam capazes de hesitar em mandar um dos servos desfazer-se dela.

Peguei nela e virei-me. Lentamente, de modo a não atrair a atenção das criaturas feéricas que se encontravam na sala — que estavam de olhos postos na rainha das fadas e não na sua nova serva. A rainha estava debruçada no braço do trono, a falar com a sua bruxa. Alvejei a rainha três vezes no coração. A bruxa estava a observar-me e sorriu no momento em que puxei o gatilho.

— Pf — pronunciou uma voz mesmo ao meu lado. Virei a cabeça e tive de olhar para baixo, na direção de uma criança de aparência humana que parecia não ter mais de oito ou nove anos.

A rapariga sorriu-me.

— E estavam eles com medo de que alguma coisa lhe acontecesse antes que todos chegassem para se juntar à festa. Só mesmo uma coiote para acabar com o divertimento de toda a gente.

Da última vez que tinha visto esta criatura feérica, estava a brincar com um ioió e a fazer de sentinela no pátio de uma casa onde ocorrera um crime. Não sabia o seu nome, apenas que era bastante poderosa, que as pessoas tinham medo dela e que era muito mais velha do que aparentava.

Por um instante, quase vi algo completamente diferente postado ao meu lado, depois ela sorriu e disse:

— Não pense que vai ver para lá do meu glamour, Mercedes.

As outras criaturas feéricas presentes na sala não se mexeram, presas ao momento da morte da rainha das fadas.

A Rapariga do Ioió caminhou em frente na direção da rainha morta, e eu segui-a. A bruxa agarrara o cadáver e estava a encher as mãos com o sangue da rainha, usando-o para pintar a coleira de servo em prata à volta do seu pescoço.

— Não me parece — disse a Rapariga do Ioió. Curvou-se, tocou no corpo da rainha e disse algo que talvez fosse uma palavra. Então o cadáver da rainha transformou-se em pó.

A Rapariga do Ioió começou a recuar — e depois viu o senhor da floresta acorrentado atrás do trono. Não creio que o tivesse visto até ter reduzido a rainha a cinzas.

A coleira de prata soltou-se do pescoço da bruxa — para ser substituída por pequenos dedos. Ouvi apenas o eco de um sussurro, e depois também a bruxa se transformou em pó. A Rapariga do Ioió encheu uma mão com a massa cinzenta em que se transformara a bruxa, levou-a à boca e lambeu-a como se fosse um gelado de cone.

— Nham — disse-me. As suas mãos, as suas roupas e a sua boca estavam cobertas de cinzas. — Adoro bruxas.

— Eu prefiro chocolate, se não se importar — disse-lhe.

— Mercy! — bramiu Adam algures perto da sala.

— Que pena — disse a Rapariga do Ioió. — Alguém perdeu a matança.

— Estou aqui! — gritei. — Está tudo bem.

E era verdade. Porque Adam estava ali e tinha os seus braços à minha volta e isso fazia com que tudo estivesse bem.

Pontapeei a neve e dei uma topada na banca da cozinha. Era a noite do grande resgate e toda a gente estava a festejar na casa de Adam. Tinha sido abraçada e massacrada com perguntas até decidir que era uma boa altura para ir ver os destroços da minha casa.

A neve escondia muita coisa, e o bando fizera uma limpeza. Tinham tido o mês inteiro em que eu estivera desaparecida para o fazer. Creio que tive sorte por não ter sido um ano ou um século.

Não tinham conseguido encontrar o Álfheim depois de Zee se ter visto forçado a deixar que a sua porta se fechasse. Aparentemente, conforme Zee me explicara, o Álfheim movia-se em relação à reserva, e Ariana não fora capaz de me encontrar.

Só quando o vínculo entre mim e Adam foi restabelecido é que conseguiram localizar o Álfheim. Enquanto Zee tentava abrir mais uma entrada, tinham enviado à sua frente a Rapariga do Ioió para que esta se certificasse de que eu estava em segurança. Aparentemente, ela não precisava de algo tão corriqueiro como uma entrada para alcançar o Álfheim. Provavelmente tinha outro nome para além de Rapariga do Ioió, mas os seres feéricos são esquisitos com os nomes e ninguém lhe queria atribuir um.

As criaturas feéricas que antes pertenciam à rainha das fadas estavam temporariamente alojadas na reserva. Algumas delas não se lembravam de como se haviam tornado seguidoras da rainha. Algumas estavam zangadas por eu a ter matado, mas não ao ponto de tentarem alguma coisa contra mim. Zee disse que os Senhores Cinzentos estavam divididos entre a fúria — pela forma como a rainha das fadas tinha usado um senhor da floresta e uma bruxa preta — e a sensação de triunfo — pela constatação de que Underhill estava a devolver algum poder a todas as criaturas feéricas.

Pouco restava da minha caravana, excetuando uma pequena pilha de coisas que poderiam ser reutilizadas. Não tinha perdido a minha arrecadação com a minha Volkswagen Transporter dentro. Não tinha perdido nem a Medea nem Samuel.

Na primeira ocasião em que tinha visto a casa, vira um coiote escondido debaixo do alpendre, e tinha interpretado isso como um presságio. Quando finalmente a comprara, sentira, pela primeira vez na minha vida, que finalmente tinha uma casa. Uma casa que ninguém me podia tirar.

— A dizer adeus?

Não tinha ouvido o Marrok, mas Bran era assim.

— Sim. — Sorri-lhe para que percebesse que não me importava que ele estivesse ali.

— Queria agradecer-te por causa do Samuel — disse Bran.

Abanei a cabeça.

— Não fui eu. Foi a Ariana. Já os viste juntos? Não fazem um par giro? — Ariana não estava em casa de Adam, embora Samuel estivesse. Não estava ainda preparada para conviver com um bando de lobisomens em entusiástica celebração. No entanto, Samuel falara sobre ela durante vinte minutos.

Ariana não tinha ainda conseguido tocar em Samuel na forma de lobo, contara-me Samuel. Mas não tinha qualquer problema com o Samuel homem, e não tinha ataques de pânico na presença dos lobos — desde que estivessem calmos e se aproximassem dela um de cada vez, na forma humana. Apenas precisava de um motivo para tratar as suas fobias, explicara-me Samuel com grande orgulho. Bran tinha sorrido quando Samuel disse isso, o sorriso que indicava que o Marrok tinha feito das suas. Portanto, era possível que tivesse alguma coisa a ver com o facto de ela começar a conseguir conviver com os lobos. Ou talvez apenas quisesse que eu pensasse isso. Descobri que para mim a melhor solução é nunca me preocupar em demasia com o que Bran pode ou não fazer.

— A Ariana é uma dádiva — disse Bran. — Mas se não tivesses feito o que fizeste, o Samuel não estaria aqui para a receber.

— É para isso que servem os amigos — repliquei. — Para nos animarem quando estamos em baixo, e para nos darem um pontapé no rabo quando precisamos. O Adam ajudou. Por falar em amigos, obrigada pela Magia do Bando, que impediu que eu me transformasse na Zombie Mercy.

Sorriu, uma expressão que o fez parecer ter dezasseis anos. Quem não o conhecesse, teria dificuldade em acreditar que aquele homem jovem de expressão tímida era o Marrok.

— Ouviste tudo? — perguntou. — Não tinha a certeza do quanto ia chegar a ti.

Olhei para a sua expressão inocente.

— Quanto é que ouviste de mim?

Esbugalhou os olhos e depois exibiu um sorriso rasgado.

— Acho que ambos tivemos uma ajudinha de uma parte interessada.

— Quem?

— O Zee não teve a menor dificuldade em libertar o senhor da floresta das correntes. É um tipo encantador, a propósito, muito amável, para além de poderoso. A rainha raptou o senhor da floresta na sua própria casa, no Norte da Califórnia, há cerca de um ano, ano e meio. A mulher e a família ficaram muito contentes quando souberam que ele vai regressar a casa em breve. A Daphne, a rainha das fadas, pelos vistos visitou a reserva e decidiu que seria um bom sítio para ficar. Encantou uma bruxa sinistra e usou-a para aprisionar o senhor da floresta, porque não tinha poder suficiente para o encantar.

— Achas que ele nos ajudou?

— Alguém ajudou. Eu já tinha praticamente desistido. — Olhou em volta para o que restava da minha casa. — Tenho uma resposta mais provável, mas estou a ter alguma dificuldade em compreender exatamente o que poderá ter acontecido. Já decidiste o que vais fazer com isto?

— Estava coberta pelo seguro — respondi. — Talvez a vá substituir. — Gabriel talvez viesse a precisar de um sítio para viver.

Ele e Zee tinham mantido a oficina aberta durante o mês em que eu andara desaparecida. A mãe dele não aprovara a sua opção, por isso ele estava a viver na casa de Adam. Na cave — o mais longe do quarto de Jesse que Adam o conseguiu colocar.

— Olha — disse Bran. — O teu carvalho não ardeu.

— É verdade — repliquei, agradada. — Ficou levemente queimado, mas acho que vai ficar bem. — Dei um passo na direção da árvore e o meu pé tocou em alguma coisa e essa coisa mexeu. A princípio pensei que seria o cabo de uma vassoura, mas quando me curvei para pegar no objeto, percebi que era o meu velho amigo, o bastão.

— Ah — disse Bran. — Tinha-me perguntado onde é que isso teria ido parar.

Olhei pensativamente para o objeto.

— Já o tinhas visto?

— Estava pousado no sofá da cave do Adam — respondeu. — Quando peguei nele, todos os meus esforços deram subitamente frutos e encontrei-te no meio dos vínculos do bando, como se nunca tivesses desaparecido.

Dirigi-lhe um sorriso forçado.

— De facto, parece ter tendência para aparecer em alturas interessantes.

— Então, já pensaste na possibilidade de criar ovelhas?

— De momento, não — respondi secamente. — Não.

Caminhámos um pouco mais num silêncio cúmplice.

— Tenho umas fotografias — disse Bran abruptamente. — Do Bryan e da Evelyn. — A minha família de acolhimento lupina. — Também tenho algumas das tuas fotografias de escola, se quiseres.

— Gostava de as ter, sim — repliquei.

Olhou para trás, na direção da casa de Adam, e vi que alguém se acercava.

— Parece que sentiram a tua falta. Vou deixar-vos a sós. — Beijou-me na testa e foi-se embora.

Cruzou-se com Adam na vedação de arame farpado e Adam disse algo que não consegui perceber e que fez Bran rir.

— Ei — disse eu enquanto Adam se aproximava. A sua resposta foi um sopro de calor que me fez corar.

— Tens aí as chaves da tua carrinha? — perguntou, a sua voz uma carícia que me provocou pele de galinha. Adam cheirava a necessidade e impaciência.

— Estão na carrinha.

— Ainda bem — disse, pegando-me pelo braço e caminhando apressadamente na direção da arrecadação que sobrevivera ao incêndio sem uma única marca. — Se eu tivesse de ir buscar o meu SUV, alguém podia ver-nos a ir embora. Tenho as chaves do apartamento do Warren comigo. Ele disse que o quarto de hóspedes tem lençóis lavados.

Parou ao lado da carrinha.

— Preciso de conduzir.

Em circunstâncias normais, teria discutido com ele, mas por vezes, especialmente quando Adam estava tão enérgico a ponto de explodir, era melhor deixar o macho Alfa levar a sua avante. Sem dizer uma única palavra, dirigi-me ao lugar do passageiro.

Não conduziu em excesso de velocidade nem falou. Chegámos a Richland sem apanharmos um único sinal vermelho, mas aí a nossa sorte acabou.

— Adam — disse-lhe num tom suave, — se me partires o volante, vamos ter de percorrer o resto do caminho até à casa do Warren a pé.

Afrouxou as mãos mas não olhou para mim. Pus uma mão sobre a sua coxa, e esta vibrou debaixo da minha palma.

— Se queres que cheguemos à casa do Warren — disse ele numa voz quase gutural, — vais ter de guardar as tuas mãos para ti.

Existe algo de incrivelmente estimulante em ser-se desejado. Retirei a mão e inspirei fundo.

— Adam — disse.

O semáforo passou finalmente a verde. Tive o pensamento bizarro de que o tempo que passara em Álfheim me desorientara completamente o relógio interno, porque estava capaz de jurar que tínhamos permanecido ali horas em vez de segundos.

Warren vivia numa casa A, inserida num grupo de «Casas Alfabeto», construídas durante a Segunda Guerra Mundial para alojar a população crescente de trabalhadores da indústria nuclear em Richland. Aquela em que vivia era um dúplex. Ambas as faces eram sombrias — e o outro dúplex tinha um anúncio na janela onde se lia ARRENDA-SE.

Adam estacionou a carrinha e deslizou para fora sem olhar para mim. Fechou a porta com uma suavidade encantadora que dizia muito sobre o seu estado de espírito. Saí e nem sequer me preocupei em saber se a minha estimada Volkswagen Transporter estava trancada — o que, creio, também dizia muito sobre o meu estado de espírito.

Adam destrancou a porta do apartamento de Warren e segurou-a para eu entrar. Assim que entrámos, fechou a porta e trancou-a.

Quando se virou para ficar de frente para mim, os seus olhos estavam dourados e cintilavam, e as suas bochechas estavam coradas.

— Se não quiseres isto — disse-me, tal como fazia sempre desde o... incidente com Tim, — basta dizeres que não.

— Uma corrida até ao quarto — repliquei, e encaminhei-me para as escadas.

Agarrou-me o braço com muito cuidado depois de eu dar dois passos.

— Correr... não seria uma boa ideia neste momento. — Estava envergonhado em relação à sua falta de controlo; talvez outra pessoa não lhe tivesse detetado isso na voz. Talvez até eu deixasse isso escapar, não fosse o vínculo que nos unia.

Coloquei a minha mão sobre a dele e dei-lhe palmadinhas.

— Ok. Porque é que não me levas para a cama?

Não estava preparada para ele me agarrar e levantar tão rapidamente, de outro modo não teria soltado um guincho.

Especou.

— Desculpa — disse-lhe. — Eu estou bem.

Acreditou nas minhas palavras e levou-me em braços rumo às escadas. Parte de mim estava à espera que ele corresse, mas em vez disso a sua passada era deliberada, os seus passos quase pesados. As escadas eram estreitas e íngremes, e ele foi cuidadoso de modo a que a minha cabeça ou os meus pés não esbarrassem nalgum sítio.

Pousou-me mal entrou no quarto de hóspedes e fechou a porta. Ficou ali postado, de costas voltadas para mim, com a respiração ofegante.

— Um mês — disse-me. — E nem o Zee nem nenhuma das criaturas feéricas que conhecíamos nos conseguiam dizer se algum dia te íamos voltar a ver. A mulher que anda com o Samuel não te conseguiu encontrar, todas as tuas coisas tinham sido consumidas pelas chamas. Nem a carrinha nem o Rabbit serviam para estabelecer uma ligação suficientemente próxima. Ela tentou aproximar-se de mim para ver se me podia usar, mas nem sequer conseguia estar na mesma sala que eu, não comigo naquele estado, meio maluco. Tocar-me estava fora de questão. Pensei que te tinha perdido para sempre.

Lembrei-me de Mary Jo e Paul à minha procura.

— Vocês procuraram-me.

— Procurámos — concordou. E, de repente, virou-se e puxou-me contra ele. Estava a tremer, e escondeu o rosto no meu cabelo. Era inútil, se a sua intenção era impedir que eu percebesse o que ele estava a sentir. Eu tinha uma visão tecnicolor através do nosso vínculo.

Abracei-o com toda a minha força para que percebesse que eu era real, que não me importava que ele me abraçasse com força.

— Estou aqui — disse-lhe.

— Não te conseguia encontrar — disse-me numa voz que não era mais do que um leve sussurro. — O nosso vínculo estava quebrado, e eu não conseguia perceber se o tinhas feito de propósito, se tinha sido a rainha ou se tinhas morrido. Conseguíamos sentir-te nos vínculos do bando, mas isso já aconteceu depois da morte de pessoas. O Bran veio e também não te conseguia encontrar. Depois ontem o Darryl estava a servir-nos o almoço e deixou cair a panela no chão.

Aquele episódio já me fora contado, por diversas pessoas, mas não o interrompi.

— O Darryl pensou que alguém estava a brincar com a mente da Auriele, e desatou a correr escada acima, parando a meio depois de deparar com a Auriele, que estava preocupada com ele pela mesma razão. Foi nessa altura que o Bran apareceu, vindo da cave, e disse... — Parou de falar.

— O que ele disse foi: «Já fiz a parte difícil, Alfa. Agora faz o favor de nos dizer onde está a tua companheira» — completei. — E estava com o bastão na mão.

— E ali estavas tu — disse-me Adam. — Dentro de mim, exatamente onde pertencias.

Afastou-se ligeiramente, colocando as mãos nas minhas faces. Senti o calor da sua pele como algo precioso para mim, e os seus incandescentes olhos âmbar incendiaram-me o coração — e o corpo.

Abriu as narinas, como um garanhão que sentisse o odor de uma égua. As suas mãos desceram até ao meu casaco, despiu-mo e atirou-o para o chão antes de recuar.

— Raios partam — rosnou, com a cabeça encostada à porta. — Raios partam... Não consigo fazer isto.

Despi a t-shirt e tirei as calças e as cuecas. Warren não tinha o aquecimento ligado — uma vez que nos últimos tempos tinha dormido quase sempre na casa de Kyle. No entanto, não senti frio, não enquanto a intensidade da necessidade de Adam me atingia como uma chama.

— Não consegues fazer o quê? — perguntei-lhe num tom suave, desfazendo a cama e deitando-me sobre os lençóis.

— Não consigo ser dócil. Eu sei... Eu sei que tu precisas de carinho, e neste momento não sou capaz de to dar. — Abriu a porta. — Tenho de ir. Eu mando...

— Se me deixares nua na cama à espera sem que façamos amor, eu...

Não tive oportunidade de concluir a ameaça. Penso que terá sido a palavra «nua», ou talvez tenha sido «cama», mas antes de terminar a frase, ele estava em cima de mim.

Tinha razão; não foi dócil. Até àquela altura da nossa relação, o modo como fazíamos amor resultara de uma combinação de paixão, humor e doçura. Eu passara por uma experiência dolorosa e ele tinha tido todo o cuidado comigo.

Na escuridão do quarto de hóspedes de Warren, a doçura e o humor não ocupavam lugar dentro dele. E embora houvesse carinho no seu toque, foi tudo menos cuidadoso. Não que me tenha magoado — bem pelo contrário. Mas Adam era fogo e urgência que iam tão para lá do simples desejo, que me senti consumida por ele — e, como a Fénix, renasci das cinzas.

Correspondi à sua urgência com a minha, afundando os dedos na pedra revestida a seda que eram os seus braços enquanto a sua boca lasciva me provava toda a pele do corpo. Ele estava a arder, pujante, a sua urgência forçando-me a corresponder ao seu fogo com o meu. O suor dele gotejava na minha pele, e o seu cheiro era afrodisíaco porque pertencia a Adam. Se era verdade que ele precisava de mim, não era menos verdade que eu precisava dele, com intensidade igual.

Ergueu o tronco e fechou os olhos enquanto abria caminho através de mim, dentro de mim, se tornava parte de mim, com um violento impulso. Só depois de me ter penetrado completamente, é que voltou a olhar para mim, e nesse olhar havia triunfo e uma reivindicação tão básica que seria de esperar que eu me assustasse.

— Minha — disse ele, agitando as ancas contra as minhas num gesto que tinha mais a ver com posse do que com paixão.

Levantei o queixo e cravei os meus olhos nos dele num desafio que apenas eu podia fazer sem que houvesse consequências. Contraí a barriga e enterrei os calcanhares no colchão para, com um impulso, mostrar também o meu poder.

— Meu — disse-lhe.

O lobo de Adam sorriu-me e ferrou-me o ombro.

— Consigo viver com isso — replicou. E depois demonstrou o que essa posse significava quando implicava um lobisomem Alfa que sabia ser paciente e cuidadoso quando caçava coiotes.

Sonhei que caminhava na neve, mas não sentia medo. Havia uma espessa corda dourada a envolver-me. Não estava gasta nem tinha nós e conduziu-me até à floresta, alumiando-me o caminho com o seu calor brilhante. Segui-a com o coração leve e a expectativa de encontrar algo maravilhoso. Finalmente alcancei o fim da corda e vi um lobo azul-acinzentado com olhos dourados.

— Olá, Adam — disse-lhe.

— Chiu — pronunciou Adam, sonolento. Puxou-me para mais perto dele e rolou para cima de mim, como se isso me viesse a calar. — Dorme.

Sentia o corpo cansado. Estava aconchegada e em segurança. Um regresso ao sono deveria ter acontecido com facilidade, especialmente considerando que despertara de um sonho tão bom. Porém, trouxera-me à memória a sensação de ter estado perdida.

— Eu também não te conseguia encontrar — disse a Adam, o meu corpo contra o dele. Estava mais magro do que da última vez que tinha estado com ele na cama. O incêndio não lhe deixara cicatrizes, e continuava a usar o cabelo curto, mas as costelas que conseguia sentir fizeram-me perceber que sofrera por minha causa.

— Deixei de tentar — admiti. — Tinha tanto medo que ela me viesse a usar para encantar todo o bando... Não sabia que ela não tinha a capacidade de fazer isso, que não tinha o poder necessário. — Fechei os olhos e permiti-me recordar quão apavorada me tinha sentido. Abri-os novamente, quase de imediato, necessitada de o ver para me sentir segura. — Naquele sítio, a sensação que eu tinha era que ela tinha poder para fazer qualquer coisa.

Adam estava tão quieto que pensei que pudesse ter adormecido novamente, até falar.

— Ela magoou-te. — Não era uma pergunta.

— Sim. — Eu não seria capaz de lhe mentir. — Mas foi só dor, não causou verdadeiros danos. Eu sabia que, se me conseguisse aguentar, tu me ias buscar. — Fiz questão que percebesse na minha voz a certeza que tinha disso.

Rolou até eu ficar em cima dele. Colocou as mãos nos meus ombros e agitou-me ao de leve.

— Nunca mais me faças passar pelo que passei. Não seria capaz de aguentar.

— Isso não vai acontecer — prometi-lhe precipitadamente. — Nunca mais.

Soltou uma risada e agarrou-me com força.

— O Bran não te ensinou que não deves fazer promessas que não és capaz de cumprir? — Suspirou. — Bom, se não te calares para eu poder dormir, mais me vale arranjar outra coisa para fazer.

Quando terminou a frase, ambos adormecemos.

Adam foi comigo devolver o livro a Phin na manhã seguinte, uma hora antes de a loja abrir. O livro ainda estava embrulhado na toalha de Kyle, e aparentemente viajara do armário de Kyle para o de Adam sem problemas. Darryl e Auriele tinham-no trazido, juntamente com um novo casaco para mim e roupas para Adam, uma vez que as dele não tinham sobrevivido. Darryl nem esboçara um sorriso, apesar de ter sido óbvio para ele o que tínhamos estado a fazer — até para um humano, que não possuía o olfato de um lobo, teria sido óbvio. Em vez disso, tanto ele como Auriele nos observaram com uma satisfação que achei um tanto desconcertante. Fiquei aliviada quando nos deixaram.

Phin estava à secretária, na livraria, com um aspeto muito semelhante ao da primeira vez em que o vira, com a diferença de que tinha perdido algum peso: um homem de idade indeterminada com cabelo loiro desbotado e olhos bem-humorados. Havia algumas estantes novas, mas, tirando isso, a livraria tinha um aspeto idêntico ao da primeira vez em que a vira.

— Ei, Mercy. Adam — disse Phin com um sorriso amigável.

— Ei. Tenho uma coisa para ti. — Desenrolei a toalha cuidadosamente e pousei o livro no balcão.

Quando toquei nele, senti o couro mole como manteiga debaixo das pontas dos dedos.

— A Ariana tem um sentido de ironia muito apurado — observou Adam, lendo o título pela primeira vez: Feito de Magia estava gravado em relevo na capa e na lombada, em letras douradas. — É difícil acreditar que isso seja glamour.

— Não é propriamente glamour — disse Ariana, aparecendo de detrás de uma estante.

Mudara a sua aparência. Já não tinha o aspeto de uma mulher de meia-idade; em vez disso, alterara a sua verdadeira aparência apenas o suficiente para parecer humana. A sua pele era morena e macia, os olhos cinzentos e o cabelo tão loiro como teria sido o de Phin quando era novo.

Olhou para Adam durante um momento e ele permaneceu imóvel, com a quietude lisonjeira de um homem que tenta não assustar uma criatura selvagem.

— Você está diferente — disse-lhe Ariana, relaxando um pouco. — Ela deixa o seu lobo contente.

— Peço desculpa se a assustei. — A voz de Adam era cuidadosamente suave, e lembrei-me que ele me dissera que Ariana não tinha sido capaz de estar na mesma sala com ele.

Ela abanou a cabeça.

— Não tem culpa. Nem do medo antigo, nem do recente. Mas a verdade é que assim, como está, já não tenho tanto medo de si. — Com uma respiração resoluta e o queixo erguido, atravessou a loja em direção a nós.

Olhou para o livro e abanou a cabeça.

— Tu causas-me mais problemas. — A mim e a Adam disse, quase timidamente: — Gostavam de ver o verdadeiro aspeto dele?

— Por favor — respondi.

Colocou ambas as mãos no livro e eu senti uma onda de magia. Pegou no livro, e quando o mudou de sítio, uma pequena estátua de prata de um pássaro foi deixada para trás. Uma cotovia, pensei, apesar de não ser nenhuma especialista. Não era maior do que a palma da minha mão e era de um realismo extraordinário. Olhei para o livro pousado ao lado.

— Os melhores disfarces são os reais — disse Ariana. — Apenas usei o livro para esconder o artefacto.

Adam pousou a mão no meu ombro, curvou-se e disse:

— Como é que uma coisa tão pequena causou tantos problemas. — E beijou-me a orelha.


13 Um festão é um cordão de folhagem, que pode ter ou não flores entrelaçadas. (N. do T.)


Leia nas próximas páginas um excerto do 6º Volume da série Mercy Thompson

O Diabo do Rio

Bem-vindo ao mundo de Patricia Briggs, um lugar onde bruxas, vampiros, lobisomens e seres feéricos vivem lado a lado com os humanos. Só uma mulher invulgar como Mercy Thompson poderia sentir-se em casa num lugar assim.

A mecânica Mercy Thompson sempre soube que havia algo de diferente em si, e não era apenas a sua paixão por carros. Mercy é uma metamorfa, um talento que herdou do seu falecido pai. Mas a jovem também consegue ver fantasmas, tornando-a parte de uma espécie ainda mais rara, os caminhantes. E se nunca antes recebera a visita do fantasma do seu pai, tudo vai mudar na sua lua-de-mel com Adam, um lobo Alfa.

Entretanto, algo terrível esconde-se nas profundezas do rio Columbia, causando vítimas inocentes. Quando Mercy conhece finalmente outros caminhantes, terá que aceitar a sua herança paterna e exorcizar o mundo da lenda conhecida como o Diabo do Rio... Qual será o preço a pagar? A sua vida? A de Adam? Ou o seu casamento?

Mais informações em

www.saidadeemergencia.com


1

Sob o brilho intenso dos postes de iluminação pública, percebia que a relva no jardim da frente da casa de Stefan amarelecera, ressequida pelo intenso calor do verão. Tinha sido cortada, mas apenas com o propósito de ser nivelada, não de ficar esteticamente agradável. A julgar pelos restos de erva morta no jardim, o relvado teria crescido ao ponto de a Câmara exigir que fosse cortado. A erva que restava estava tão seca que quem quer que a tivesse cortado não teria de voltar a fazê-lo a menos que alguém começasse a regá-la.

Aproximei o Rabbit da beira do passeio e estacionei. Na última ocasião em que vira a casa de Stefan, ela enquadrava-se perfeitamente no seu bairro chique. O desleixo do jardim ainda não se propagara ao exterior da casa, mas as pessoas no seu interior preocupavam-me.

Stefan era resiliente, inteligente, e... era Stefan, simplesmente — capaz de falar de Pokémon com rapazes surdos em linguagem gestual, de derrotar vilões temíveis enquanto estava preso no interior de uma jaula, e em seguida partir na sua Kombi, pronto para defrontar tipos maus quando fosse necessário. Ele era como o super-homem, mas com presas e uma moral invulgarmente escassa.

Saí do carro e atravessei o passeio em direção ao alpendre frontal. No caminho de entrada, Scooby-Doo observava-me ansiosamente através de uma camada de pó nas janelas da carrinha habitualmente imaculada de Stefan. Tinha oferecido a Stefan o enorme cão de peluche para combinar com a pintura que replicava a Máquina Mistério.

Não tinha notícias de Stefan há meses. Na verdade, desde o Natal. Estivera envolvida numa série de coisas, e ter sido raptada por um dia (que para todas as outras pessoas se traduziu num mês, porque aparentemente as rainhas das fadas têm a capacidade de fazer isso) fora apenas parte dessa série de coisas. No entanto, durante o último mês, telefonara-lhe uma vez por semana e todos os telefonemas haviam sido encaminhados para o atendedor de chamadas. A noite passada telefonara-lhe quatro vezes para o convidar para uma Sessão de Cinema Foleiro. Faltava uma pessoa porque Adam — meu companheiro, noivo, e Alfa do Bando da Bacia do Columbia — se ausentara da cidade em negócios.

Adam era proprietário de uma firma de segurança que, até recentemente, trabalhara sobretudo com entidades governamentais. No entanto, desde que os lobisomens — e Adam — tinham dado a conhecer ao público a sua identidade, o seu negócio começara a prosperar noutras frentes. Aparentemente, os lobisomens eram vistos como profissionais da segurança muito competentes. Andava fortemente empenhado na procura de alguém a quem pudesse delegar a responsabilidade pelas viagens, mas até ao momento não tinha encontrado a pessoa certa.

Estando Adam ausente, podia dar mais atenção às outras pessoas que faziam parte da minha vida. Chegara à conclusão de que Stefan tivera tempo suficiente para lamber as feridas, mas a julgar pelo que me era dado a ver, vinha com alguns meses de atraso.

Bati à porta e, não obtendo resposta, recorri ao velho ritmo das sete pancadas sincopadas. Já tinha começado a desferir golpes violentos quando a tranca finalmente produziu um estalido e a porta foi aberta.

Demorei algum tempo a reconhecer Rachel. Da última vez que a tinha visto, parecia um ícone das desencantadas adolescentes góticas ou das adolescentes que fugiam de casa. Agora parecia uma viciada em crack. Teria perdido cerca de quinze quilos para lá do razoável. Sobre os ombros caía-lhe o cabelo fraco, oleoso e despenteado. Borrões de rímel estendiam-se pelas suas faces, manchas desbotadas que teriam feito jus a um figurante do A Noite dos Mortos-Vivos. Tinha nódoas negras no pescoço e abraçava-se como se os ossos lhe doessem. Fiz por não dar a entender que me dera conta de que lhe faltavam os últimos dois dedos da mão direita. A mão fora tratada, mas as cicatrizes ainda estavam vermelhas e inflamadas.

Marsilia, a Senhora dos vampiros de Tri-Cidades, usara Stefan, o seu fiel cavaleiro, para expulsar traidores do seu ninho, e parte disso traduzira-se em roubar-lhe o rebanho — os humanos que mantinha para deles se alimentar — e levá-lo a pensar que os seus elementos estavam mortos ao quebrar os vínculos de sangue que tinha com eles. Aparentemente, entendera que torturá-los também havia sido necessário. No entanto — excluindo Stefan —, não confio na verdade dos vampiros. Não passava pela cabeça de Marsilia que Stefan viesse a objetar o uso que fizera dele e do seu rebanho quando descobriu que o intuito das ações dela era proteger-se a si mesma. Afinal de contas, ele era o seu leal Soldado. Tinha-se equivocado em relação ao modo como Stefan lidaria com a sua traição. Pelo que me era dado a ver, não estava a recuperar bem.

— É melhor pôr-se a andar daqui, Mercy — disse-me Rachel apaticamente. — Não é seguro.

Segurei a porta antes que ela conseguisse fechá-la.

— O Stefan está em casa?

Inspirou de forma irregular.

— Ele não vai servir de ajuda.

Pelo menos não parecia que Stefan fosse o perigo em relação ao qual me avisara. Tinha virado a cabeça na altura em que a impedira de fechar a porta, e reparei que alguém lhe tinha cravado os dentes no pescoço. Dentes humanos, pensei, não presas, porém as crostas trepavam à parte lateral do tendão entre a clavícula e o maxilar num relevo brutal.

Empurrei a porta com o ombro e entrei para estender a mão e tocar nas crostas, e Rachel retraiu-se e recuou, afastando-se da porta e de mim.

— Quem é que fez isto? — perguntei. Era impossível acreditar que Stefan pudesse permitir que mais alguém a magoasse daquela forma. — Um dos vampiros da Marsilia?

Abanou a cabeça.

— O Ford.

Por momentos não percebi a quem se referia. Depois lembrei-me do homem grande que me indicara o caminho até ao exterior da casa de Stefan na última ocasião em que lá tinha estado. Meio transformado em vampiro e um tanto louco — e isso fora antes de Marsilia lhe ter deitado as garras. Um tipo deveras sinistro e assustador — e tinha para mim que ele já era assustador antes de ter posto pela primeira vez os olhos num vampiro.

— Onde é que está o Stefan?

Tenho muito pouca tolerância para o drama que acaba com pessoas magoadas. Era a função de Stefan olhar pelos seus, independentemente de, para a maior parte dos vampiros, os seus rebanhos existirem como refeições convenientes, e de todas as pessoas sob o seu controlo experimentarem mortes lentas e terríveis por um período que pode durar até seis meses.

Stefan não era assim. Sabia que Naomi, a governanta da casa, estava com ele há trinta anos ou mais. Stefan era cuidadoso. Esforçara-se por provar que era possível viver sem matar. No entanto, a julgar pelo aspeto de Rachel, já não se estava a esforçar muito.

— Não pode entrar — retorquiu. — Tem de se ir embora. Não podemos incomodá-lo, e o Ford...

O chão da entrada estava nojento, e o meu olfato detetou corpos suados, mofo e o odor amargo do velho medo. Ao meu olfato apurado de coiote, toda a casa cheirava a um monte de lixo. Provavelmente também ao olfato de um humano normal cheiraria a um monte de lixo.

— Eu vou incomodá-lo, está bem? — disse-lhe em tom ameaçador. Era óbvio que alguém tinha de o fazer. — Onde é que ele está?

Quando se tornou evidente que ela não podia ou não ia responder, avancei mais para o interior da casa e berrei o seu nome, levantando a cabeça de modo a que a minha voz alcançasse o piso superior.

— Stefan! Vem aqui imediatamente! Tenho umas contas a ajustar contigo. Stefan! Já tiveste tempo de sobra para a autocomiseração. Das duas uma, ou matas a Marsilia, e eu ajudo-te nisso, ou ultrapassas o problema.

Rachel começara a dar-me palmadinhas no ombro e a puxar-me a roupa para tentar pôr-me fora de casa.

— Ele não pode sair — disse num tom de exaltada urgência. — O Stefan obriga-o a ficar em casa. Mercy, tem de se ir embora.

Sou dura e forte, e ela estava a tremer de fraqueza — e, provavelmente, de carência de ferro. Não tive qualquer dificuldade em manter-me onde estava.

— Stefan — gritei novamente.

Imensas coisas aconteceram num espaço de tempo muito curto, pelo que tive de pensar nelas posteriormente para as colocar na ordem certa.

Rachel inspirou e congelou, e, de repente, a sua mão estava a prender o meu braço em vez de o puxar. Porém soltou-a quando alguém me agarrou por trás e me lançou contra o piano vertical encostado à parede entre a entrada e a sala de estar. O barulho foi tal que a minha atenção se dividiu entre o som do meu impacto e a dor que senti quando as minhas costas embateram no topo do piano. O treino da reação a incontáveis golpes de karaté permitiu que eu não enrijecesse o corpo, e rolei pela face do piano abaixo. Não foi nada divertido. O meu rosto esbarrou no chão de laje. Algo estrondeou ao meu lado, uma espécie de estaca retorcida, e subitamente estava cara a cara com Ford, o tipo assustador e enorme que inexplicavelmente parecia ter-se lançado para o chão à minha beira e de cujo canto da boca gotejava sangue.

Tinha um aspeto diferente do da última vez, mais esguio e imundo. A sua roupa estava manchada de suor, sangue velho e sexo. Mas os seus olhos, momentaneamente fixos em mim, estavam bem abertos e assustados, como os de uma criança.

Depois uma t-shirt de um roxo desbotado a cair sobre umas calças de ganga esfarrapadas e sujas, e uma longa e desgrenhada cabeleira escura, bloquearam-me a visão de Ford.

O meu protetor era demasiado magro, demasiado desleixado, porém o meu olfato de imediato me indicou que era Stefan. Estar na presença de um vampiro que não se lava é melhor do que estar na presença de um humano que não se lava, porém não deixa de ser desagradável.

— Não — disse Stefan numa voz suave, no entanto Ford gritou e Rachel soltou um guincho.

— Eu estou bem, Stefan — disse-lhe, rolando rigidamente até ficar sobre as mãos e os joelhos. Todavia ignorou-me.

— Nós não fazemos mal às nossas visitas — afirmou Stefan, e Ford pôs-se a lamuriar.

Pus-me de pé, ignorando os protestos da anca e dos ombros doridos. Amanhã teria nódoas negras, mas nada pior do que isso graças às sessões, por vezes brutais, do sensei sobre como cair. O piano, a julgar pelo aspeto, também iria sobreviver ao nosso embate.

— O Ford não teve culpa — disse-lhe bem alto. — Ele só está a tentar fazer o teu trabalho. — Não sei se isso era verdade ou não; tinha para mim a suspeita de que Ford simplesmente era louco. Porém, estava disposta a tentar qualquer coisa para atrair a atenção de Stefan.

Ainda agachado entre mim e Ford, Stefan virou a cabeça para me observar. Os seus olhos eram frios e famintos, e fitou-me como se eu fosse uma completa desconhecida.

Seres monstruosos bem piores do que ele já me tinham tentado intimidar, portanto nem sequer pestanejei.

— Devias estar a tomar conta desta gente — disparei. Ok, a verdade é que ele me estava a assustar, e essa era a razão pela qual lhe falara de forma rude. Ficar-amedrontada-e-ficar-furiosa nem sempre era a atitude mais inteligente. Eu, que fora criada num bando de lobisomens, certamente sabia isso. No entanto, olhar para Stefan e para o que acontecera à sua casa fez-me ter vontade de chorar, e eu preferia ficar amedrontada e furiosa a fazer isso. Se pela cabeça de Stefan passasse a suspeita de que sentia pena dele, jamais me deixaria ajudar.

— Olha para ela... — Gesticulei na direção de Rachel e o olhar de Stefan acompanhou a minha mão em resposta à autoridade na minha voz, uma autoridade que começava a aprender com Adam. Ser companheira do Alfa dos lobisomens trazia alguns benefícios.

Stefan voltou a colocar os olhos em mim assim que se apercebeu do que tinha feito, mostrando as presas de uma forma que me fazia lembrar mais um lobisomem do que um vampiro. No entanto, parou de rosnar e olhou para Rachel novamente.

A tensão nos seus ombros suavizou-se e olhou para baixo, na direção de Ford. Não conseguia ver o rosto do homem grande, mas, aos meus olhos treinados em dinâmica de bando, a sua linguagem corporal dizia claramente «rendição».

— Merda — disse Stefan, largando Ford.

— Stefan?

A ameaça desaparecera-lhe do rosto, mas o mesmo acontecera com qualquer vestígio de emoção. Parecia quase siderado.

— Vai tomar um duche. Penteia o cabelo e muda de roupa — disse-lhe bruscamente, usando o tom imperativo enquanto ele ainda estava fraco. — E não demores uma eternidade, deixando-me à mercê do teu rebanho durante muito tempo. Hoje à noite vou levar-te a sair para assistires a uns filmes foleiros juntamente comigo, com o Warren e com o Kyle. O Adam está fora, portanto abriu uma vaga.

Warren era o meu melhor amigo, um lobisomem, e o número três do Bando da Bacia do Columbia. Kyle era um advogado, humano, e amante de Warren. A Sessão de Cinema Foleiro era a nossa noite de terapia, mas às vezes convidávamos pessoas que entendêssemos que precisavam.

Stefan dirigiu-me um olhar incrédulo.

— Quer-me parecer que precisas que alguém te espete uma aguilhada para te pores a mexer — informei-o com um gesto largo que indicou o estado vergonhoso da sua casa e do seu rebanho. — Mas em vez disso tens-me a mim, a amigável coiote que vive perto de ti. Mais vale cederes porque te vou azucrinar o juízo até aceitares. É claro que conheço um cowboy que provavelmente tem uma aguilhada, caso venha a ser necessário.

Levantou um canto da boca.

— O Warren é um lobisomem. Ele não precisa de uma aguilhada para incitar as vacas a andar. — A sua voz soava rude e incomum. Relanceou os olhos a Ford, que ainda estava no chão.

— Tão cedo não vai fazer mal a ninguém — disse eu ao vampiro. — No entanto, tenho a capacidade de levar a maior parte das pessoas a recorrer à violência se me derem tempo suficiente para isso, portanto é bom que te despaches.

De repente, ouviu-se um estalido e Stefan tinha desaparecido. Sabia que ele tinha a capacidade de se teletransportar, embora raramente o fizesse à minha frente. As duas pessoas que ali ficaram agitaram-se de uma sacudidela, por reflexo, pelo que presumi que tão-pouco elas o tinham visto fazer aquilo muitas vezes. Sacudi o pó das mãos e virei-me para Rachel.

— Onde é que está a Naomi? — perguntei. Não conseguia imaginá-la a deixar as coisas chegarem a este estado.

— Morreu — respondeu Rachel. — A Marsilia despedaçou-a, e não conseguimos voltar a juntá-la. Acho que isso foi a gota de água para o Stefan. — Olhou para o topo das escadas. — Como é que conseguiu fazer aquilo?

— Ele não quer que eu vá buscar a aguilhada — repliquei.

Ela tinha os braços em volta do próprio corpo, a mão mutilada claramente visível. Tinha nódoas negras, marcas de mordeduras e outros vestígios de agressão física — e disse:

— Temos andado tão preocupados com ele. Não fala com nenhum de nós, não desde que a Naomi morreu.

O pobre do Stefan tentara ir desta para melhor porque Marsilia o atraiçoara — e fizera o que estava ao seu alcance para levar consigo o que restava do seu rebanho. E Rachel estava preocupada com ele.

Com ele.

— Quantos de vocês é que restam? — perguntei. Naomi era uma senhora dura. Se tinha morrido, certamente não teria sido a única.

— Quatro.

Não era de admirar que estivessem com tão mau aspeto. Quatro pessoas não tinham a capacidade de, sozinhas, alimentar um vampiro.

— Ele tem saído para caçar? — inquiri.

— Não — respondeu. — Creio que ele não saiu de casa desde que enterrámos a Naomi.

— Deviam ter-me telefonado — disse-lhe.

— Sim — interveio Ford, no chão, a sua voz de tal modo forte que ecoou. Os seus olhos estavam fechados. — Devíamos.

Agora que não me estava a atacar, consegui perceber que também ele estava magro. Isso não podia ser bom para um homem que estava no processo de transição de humano para vampiro. Os vampiros novatos famintos têm tendência para sair à procura da sua própria comida.

Stefan devia ter resolvido a situação antes que ela tivesse chegado a este ponto.

Se estivesse na posse de uma aguilhada, talvez me tivesse sentido tentada a usá-la, pelo menos até as escadas terem rangido e eu ter olhado para cima e visto Stefan a descer. Tenho um diploma poeirento de uma licenciatura em História, pelo qual aguentara ver uma série de filmes do Terceiro Reich até ao fim, e neles havia homens que tinham morrido nos campos de concentração que eram menos descarnados do que Stefan na t-shirt verde do Scooby-Doo que envergava. Servia-lhe na perfeição quando o tinha visto com ela uns meses antes. Agora pendia-lhe dos ossos. Stefan, assim asseado, tinha um aspeto ainda pior.

Rachel disse que Marsilia despedaçara Naomi. Olhando para Stefan, ocorreu-me que ela também estava muito perto de lhe fazer o mesmo. Um dia, um dia haveria de estar com Marsilia na mesma sala segurando uma estaca na mão, e, palavra de honra, faria uso dela. Isso se, claro está, Marsilia estivesse inconsciente e todos os seus vampiros estivessem igualmente inconscientes. De outro modo, era uma mulher morta, uma vez que Marsilia era muito mais perigosa do que eu. Ainda assim, a ideia de lhe espetar um pedaço de madeira afiado no peito, atravessando-lhe o coração, provocou em mim uma sensação de grande satisfação.

A Stefan, disse:

— Precisas de um dador antes de sairmos? Para que ninguém nos mande encostar e me obrigue a levar-te ao hospital ou à morgue?

Deteve o passo e olhou para baixo, na direção de Rachel e Ford. Franziu o cenho, depois pareceu intrigado e um tanto perdido.

— Não. Eles estão demasiado fracos. Os que restam não são suficientes.

— Não estava a falar deles, Shaggy — disse-lhe suavemente. — Já doei antes, e estou disposta a fazê-lo novamente.

Olhos de um vermelho-rubi fixaram-se avidamente em mim antes de ele pestanejar duas vezes, e de imediato deram lugar a olhos como cerveja de malte num copo com o sol a brilhar por trás.

— Stefan?

Pestanejou. O efeito produzido foi muito interessante: rubi, cerveja de malte, rubi, cerveja de malte.

— O Adam não vai gostar disso.

Rubi, rubi, rubi.

— Se o Adam estivesse aqui, ele próprio doava o seu sangue — repliquei de forma verdadeira, após o que puxei a manga para cima.

Estava a alimentar-se na dobra do meu braço quando o meu telemóvel tocou. Rachel ajudou-me a tirá-lo do bolso e abriu-mo. Não creio que Stefan se tenha sequer dado conta.

— Mercy, onde diabo estás tu?

Darryl, o número dois de Adam e responsável maior do bando na sua ausência, decidira que era sua função tomar conta de mim quando Adam estivesse ausente.

— Ei, Darryl — disse-lhe, tentando não soar como alguém que estivesse a servir de alimento a um vampiro.

O meu olhar recaiu em Ford, que em ocasião alguma se levantara do chão mas que estava fixo em mim com olhos que pareciam gemas amarelas polidas — citrina, talvez, ou âmbar. Não me lembrava de que cor eram os seus olhos uns minutos antes, mas acho que me lembraria daqueles olhos extraordinários caso ali tivessem estado anteriormente. Estava muito perto de se tornar vampiro, pensei. Antes de ter oportunidade de sentir medo, a voz de Darryl interrompeu-me os pensamentos.

— Foste para a casa do Kyle há uma hora e o Warren disse-me que ainda não chegaste.

— É verdade — repliquei, soando espantada. — Vê lá tu. Ainda não cheguei à casa do Kyle.

— Que espertinha — rosnou.

Darryl e eu tínhamos esta dinâmica amor-ódio. Começo a pensar que ele me odeia e faz algo simpático, como salvar-me a vida ou dirigir-me palavras de encorajamento. Concluo que ele gosta de mim e a seguir ataca-me verbalmente. Provavelmente o que acontece é que o deixo completamente confuso, o que aceito, porque o sentimento é mútuo.

Darryl, de entre todos os lobos de Adam, é o que mais odeia vampiros. Se lhe contasse o que estava a fazer, apareceria de imediato com reforços, e haveria cadáveres pelo chão. Os lobisomens tornam tudo mais complicado do que o necessário.

— Vivi trinta e tal anos sem babysitter — disse-lhe numa voz aborrecida. — Tenho a certeza que consigo chegar à casa do Kyle sem uma. — Estava a ficar um pouco tonta. À falta de outro método, dei uma palmada na cabeça de Stefan usando a mão com que segurava o telemóvel.

— O que foi isso? — perguntou Darryl, e Stefan agarrou-me o braço ainda com mais força.

Inspirei fundo porque Stefan me estava a magoar — e apercebi-me de que Darryl também ouvira isso.

— Era o meu amante — respondi a Darryl. — Dá-me licença que o ajude a terminar o serviço. — E desliguei o telefone.

— Stefan — disse. Mas era desnecessário. Soltou-me, recuou alguns passos e colocou-se sobre um joelho.

— Desculpa — rosnou. As suas mãos estavam pousadas no chão à sua frente, os punhos cerrados.

— Não há problema — disse-lhe, relanceando os olhos ao meu braço. Os pequenos ferimentos estavam fechados, sarando rapidamente com a saliva dele. Tinha aprendido mais sobre vampiros no último ano do que em toda a minha vida. Bendita ignorância, aquela em que vivera.

Sabia, por exemplo, que por causa do meu vínculo com Adam, ter permitido que Stefan se alimentasse de mim novamente não teria quaisquer repercussões. Um humano sem essa proteção que servisse de alimento para o mesmo vampiro em mais do que uma ocasião podia vir a tornar-se uma espécie de animal de estimação — que era o caso de todos os elementos do rebanho: dependentes do vampiro e dispostos a obedecer a quaisquer ordens que ele lhes desse.

O meu telemóvel tocou e, com ambas as mãos disponíveis, pude verificar o número: Darryl. Ok, é possível que o facto de ter permitido que Stefan se alimentasse de mim tivesse repercussões, mas elas teriam mais a ver com a possibilidade de Darryl me chibar a Adam do que com Stefan. Premi um botão na parte lateral do telemóvel para que parasse de tocar.

— Meti-te em sarilhos — disse Stefan.

— Com o Darryl? — perguntei. — Lido bem com os problemas que possa ter com o Darryl, e sou menina para lhe tratar da saúde caso ele se estique demasiado.

Stefan levantou-se, inclinou a cabeça e dirigiu-me um breve sorriso — e, de repente, parecia-se muito mais com o Stefan que eu conhecia.

— Tu? A Menina Coiote versus o grande lobo mau? Não me parece.

Provavelmente tinha razão.

— O Darryl não é o meu guarda — disse-lhe resolutamente.

Resfolegou.

— Não, não é. Mas se te acontecer alguma coisa enquanto o Adam estiver fora, é o Darryl que vai levar com a culpa.

— O Adam não é assim tão estúpido — retorqui.

Pôs-se à espera.

— Chiça — disse-lhe, e liguei a Darryl de volta.

— Está tudo bem comigo — informei-o. — Ocorreu-me que o Stefan pudesse precisar de sair um bocado e passei por casa dele para o vir buscar. Telefono-te quando estacionar na rampa de entrada da casa do Kyle, depois podes telefonar ao Adam e dizer-lhe que estou em segurança. Também lhe podes dizer que desde que não tenha rainhas das fadas loucas, monstros dos pântanos ou violadores megalómanos atrás de mim, sei tomar conta de mim.

Darryl inspirou fundo. Creio que terá sido por causa da menção ao violador, mas esse assunto já não me deixava apavorada. O homem estava morto, e fora eu a matá-lo. Os pesadelos tinham praticamente desaparecido, e quando apareciam, tinha a companhia de Adam para os combater. Adam é um homem muito bom para se ter ao lado num combate, mesmo que a única coisa que se está a combater seja uma memória má.

— Esqueceste-te dos vampiros possuídos pelo demónio — comentou Stefan, interrompendo o silêncio. Os vampiros, à semelhança dos lobisomens, conseguem ouvir conversas telefónicas privadas. Tal como eu, na verdade. Passei a ser uma grande adepta das mensagens escritas desde que me mudei para o Quartel-General do Bando.

— Pois esqueceu — disse Darryl. A sua voz suavizara-se num tom melífluo. — Nós tentamos dar-te o ar de que precisas para respirar, Mercy. Mas é difícil. És tão frágil e...

— Imprudente? — sugeri. — Estúpida? — Sou cinturão castanho em karaté e ganho a vida a reparar carros. Só em comparação com um lobisomem é que sou frágil.

— De maneira nenhuma — discordou, embora já o tivesse ouvido chamar-me imprudente e estúpida, entre uma série de outras coisas pouco lisonjeiras. — A tua capacidade de sobreviver a qualquer coisa que te apareça no caminho às vezes deixa-nos a engolir medicamentos para úlceras durante dias. Não gosto do sabor do Maalox.

— Estou em segurança. Estou bem. — Excetuando algumas nódoas negras resultantes do meu embate com o piano e, dei-me conta disso ao dar um passo, algumas tonturas provocadas pela perda de sangue. No entanto, Darryl não se apercebeu da minha mentirita sem importância. Apesar de ser capaz de detetar uma mentira tão bem como qualquer outro lobisomem, ele não era o Marrok, que conseguia descobrir as minhas mentiras antes de elas me saírem da boca, inclusive ao telefone. Em todo o caso, estava em segurança. Olhei para Ford um pouco a medo, mas ainda não se tinha mexido do sítio para o qual Stefan o atirara.

— Obrigado — disse Darryl. — Liga-me quando chegares à casa do Kyle.

Desliguei.

— Acho que gostava mais quando o bando me queria ver morta — confessei a Stefan. — Estás pronto para ir?

Stefan baixou uma mão e puxou Ford até este ficar de pé — e a seguir encostou-o contra uma parede.

— Não te voltas a meter com a Mercy — disse-lhe.

— Sim, senhor — replicou Ford, que não oferecera qualquer resistência quando Stefan o sacudira.

Do corpo de Stefan desapareceu qualquer indício de violência, e encostou a testa ao ombro do homem mais alto.

— Desculpa. Eu vou resolver isto.

Ford levantou o braço e deu uma palmadinha no ombro de Stefan.

— Sim — disse. — Claro que sim.

Admito que fiquei surpreendida ao constatar que Ford era capaz de dizer mais palavras além de «Esmagar».

Stefan afastou-se dele às arrecuas e olhou para Rachel.

— Há comida na cozinha?

— Sim — respondeu-lhe. Depois engoliu em seco e disse: — Posso fazer hambúrgueres e dar de comer aos outros.

— Isso seria bom, obrigado.

Rachel acenou com a cabeça, dirigiu-me um breve sorriso e desapareceu pelo interior da casa — presumivelmente rumo à cozinha, com Ford a segui-la como um cachorro grande, um cachorro mesmo muito grande com dentes afiados.

Saímos porta fora e Stefan olhou em volta para o que restava do seu relvado. Parou ao lado da carrinha, abanou a cabeça e seguiu-me até ao meu carro. Não pronunciou uma única palavra até alcançarmos a autoestrada paralela ao Columbia.

— Os vampiros velhos estão sujeitos a fugas — disse-me. — Não lidamos tão bem com a mudança como quando éramos humanos.

— Eu cresci num bando de lobisomens — lembrei-o. — Os lobos velhos também não lidam muito bem com a mudança. — Depois, não fosse dar-se o caso de ele pensar que estava apenas a ser solidária, acrescentei: — Claro que normalmente eles não arrastam consigo uma série de pessoas que depende deles.

— Ah, não? — murmurou. — Curioso. Pensava que o Samuel quase tinha arrastado consigo uma série de pessoas.

Reduzi uma mudança e ultrapassei uma avozinha que circulava a oitenta numa zona com um limite de velocidade de cem quilómetros por hora. Quando o rugido do pequeno motor a diesel do Rabbit me aliviou parte da ira, engatei a mudança seguinte e disse:

— Um ponto para ti. Tens razão. Desculpa não ter aparecido mais cedo.

— Ah — disse Stefan, olhando para as próprias mãos. — Terias aparecido se eu te tivesse telefonado.

— Se estivesses em condições para me telefonar a pedir ajuda — repliquei —, provavelmente não terias precisado de o fazer.

— Então — disse ele, mudando de assunto —, que filme é que vamos ver esta noite?

— Não sei. Desta vez é o Warren a escolher, e ele pode ser um tanto ou quanto imprevisível. Da última vez que foi ele a escolher, vimos a versão de 1922 do Nosferatu, e, antes disso, Perdidos no Espaço.

— Eu gostei de Perdidos no Espaço — disse Stefan.

— Do filme ou da série de televisão?

— Do filme? Ah, pois. Tinha-me esquecido de que havia um filme — disse sobriamente. — E preferia não me ter lembrado.

— Às vezes a ignorância é mesmo uma bênção.

Olhou para mim, depois franziu o sobrolho.

— Sumo de laranja ajuda a aliviar a dor de cabeça.

Estava à espera na fila de um restaurante drive-in, tendo pedido dois sumos de laranja e um hambúrguer, depois da insistência de Stefan, quando o meu telemóvel tocou novamente. Presumi que fosse Darryl a meter o bedelho novamente, pelo que atendi sem olhar para o ecrã. Um dia vou deixar de fazer isso.

— Mercy — disse a minha mãe —, ainda bem que te consigo apanhar. Ultimamente tem sido difícil chegar à fala contigo. Precisava de te dizer que tenho tido problemas em relação às pombas. Consigo encontrar pessoas que têm pombos, mas o homem que tinha pombas simplesmente desapareceu. Descobri hoje que pelos vistos também tinha cães de luta e está a cumprir uma pena de alguns anos atrás das grades.

A minha dor de cabeça piorou subitamente.

— Pombos? — Tinha-lhe dito que não queria pombas. Pombas e lobisomens são... Bom, tinha-lhe dito que não queria pombas.

— Para o teu casamento — disse a minha mãe impacientemente. — Sabes, aquele que vais ter em agosto? Só faltam seis semanas. Pensava que tinha o assunto das pombas controlado — estava convicta de que lhe tinha dito «nada de pombas» — mas depois, bom... Em todo o caso, não ia querer dar dinheiro a alguém envolvido em lutas de cães. Embora se calhar isso não incomodasse o Adam?

— Isso ia incomodar o Adam — repliquei. — E incomoda-me a mim. Nada de pombas. Nada de pombos, mãe. Nada de cães de luta.

— Ah, ainda bem — disse num tom animado. — Achei que ias concordar. Afinal de contas, tem origem numa lenda índia.

— O quê? — perguntei a medo.

— Borboletas — respondeu alegremente. — Vai ser lindo. Pensa nisso. Também podíamos largar balões de hélio. Talvez uns duzentos cheguem. Borboletas e balões dourados largados para o céu para celebrar a vossa nova vida em conjunto. Bem — disse numa voz apressada e determinada —, é melhor ir tratar disso.

Desligou e pus-me a olhar para o telemóvel. Stefan estava com convulsões no lugar do passageiro.

— Borboletas — conseguiu dizer entre ataques de riso descontrolado. — Pergunto-me onde terá ela arranjado borboletas.

— Ri-te à vontade — disse-lhe. — Não és tu que vais ter de explicar a um bando de lobisomens porque é que a minha mãe vai largar borboletas... — Fi-lo gargalhar novamente. Era inútil alimentar a esperança de que fossem apenas uma ou duas. Não, a minha mãe fazia sempre tudo em grande. Imaginei mil borboletas e, Deus Nosso Senhor me ajude, duzentos balões de hélio dourados.

Inclinei-me para a frente e bati com a cabeça no volante.

— Vou fugir com o Adam. Disse-lhe que devíamos fazer isso, mas ele não quis ferir os sentimentos da minha mãe. Pombas, pombos, borboletas... Ainda vamos acabar por ter um avião com uma faixa e fogo de artifício...

— Uma banda marcial — disse Stefan. — E gaitas de foles com belos gaiteiros escoceses apenas com os kilts vestidos. Bailarinas da dança do ventre... Há uma série de grupos locais de bailarinas de dança do ventre. Motards tatuados. Aposto que a conseguia ajudar a encontrar um urso bailarino...

Paguei a minha comida enquanto ele inventava novas e maravilhosas coisas para acrescentar à angústia do meu dia de casamento.

— Obrigada — disse-lhe, sorvendo um grande gole de sumo de laranja, após o que regressei para o meio do trânsito. Detesto sumo de laranja. — És uma ajuda inestimável. A minha nova ambição de vida é certificar-me de que tu e a minha mãe nunca se juntem no mesmo espaço até eu e o Adam casarmos.

Stefan reanimara-se de tal modo com as gargalhadas e o sangue que, excluindo uma observação de Kyle em que disse «Alguém precisa de ter consciência de que o look de manequim nem aos manequins fica bem», nem Kyle nem Warren pareceram notar algo de errado em Stefan. Também, revelando tato, não fizeram qualquer comentário em relação ao sumo de laranja no qual, em circunstâncias normais, não teria tocado nem com uma vara de três metros.

Pegámos em três taças de pipocas de micro-ondas e dirigimo-nos para a sala de cinema. Kyle é um advogado muito bem-sucedido; a sua casa é suficientemente grande para ter uma sala de cinema. A casa de Adam também tem uma sala de cinema — mas, no fundo, trata-se da casa não oficial de todo o bando. A todo o momento recebemos pessoas que passam lá a noite. A casa de Kyle é apenas para Kyle e Warren. Warren sentir-se-ia feliz a viver numa tenda na cordilheira. Kyle prefere tapetes persas, tampos de balcões em mármore e cadeiras de couro. É revelador — não sei bem de quê — o facto de estarem a viver naquela que é a ideia de casa de Kyle e não naquela que é a ideia de casa de Warren.

A escolha de Warren para a nossa sessão de cinema foi A Sombra do Vampiro, um filme ficcional sobre a criação de Nosferatu. Alguém tinha feito uma pesquisa aprofundada em torno das lendas sobre o filme antigo e jogara com elas.

A dada altura, ao ver o rosto sério de Stefan, disse-lhe num sussurro:

— Sabes, tu és um vampiro. Não devias ter medo deles.

— Qualquer pessoa — replicou Stefan com convicção — que tivesse conhecido o Max Schreck passaria a ter medo de vampiros para o resto da vida. E apanharam-no em flagrante.

Warren, que estava no chão, sentado na sua posição favorita — de costas encostadas às pernas de Kyle — premiu o botão de pausa, sentou-se direito e torceu o corpo para conseguir ver Stefan, que estava sentado no lado oposto do sofá. Eu, na condição de rapariga solitária, sentara-me na enorme cadeira reclinável nova.

— O filme é baseado em factos verídicos? O Max Schreck era mesmo um vampiro? — perguntou Warren. Max Schreck era o nome do homem que desempenhava o papel de vampiro em Nosferatu.

Stefan fez que sim com a cabeça.

— O seu verdadeiro nome não era Shreck, mas ele usou-o durante um ou dois séculos, portanto serve. Um velho monstro assustador. Mesmo assustador, mesmo velho. Decidiu que queria aparecer no filme, e nenhum dos outros vampiros se atreveu a dissuadi-lo.

— Espere lá — disse Kyle. — Achava que uma das queixas em relação ao Nosferatu era que todas as cenas com o Shreck eram claramente filmadas durante o dia. Vocês, vampiros, não dormem durante o dia?

Kyle, como amante de Warren, tinha um conhecimento muito mais aprofundado das coisas que vagueiam pela noite do que a maior parte dos humanos, para quem os vampiros eram monstros dos filmes, não homens que usavam t-shirts do Scooby-Doo e viviam em casas de luxo em cidades reais. No entanto, pensei, não tardaria muito até que os vampiros se dessem a conhecer. Os lobisomens tinham-no feito há um ano e meio — apesar de terem tido cuidado em relação ao que disseram publicamente. Os seres feéricos tinham-se dado a conhecer na década de 1980. As pessoas começavam a aperceber-se gradualmente de que o mundo é um sítio mais assustador do que o discurso científico dos últimos séculos as levara a crer.

— Nós morremos durante o dia — respondeu Stefan. — Mas o Max era muito velho. Ele tinha a capacidade de fazer todo o tipo de coisas, e não me surpreenderia se viesse a saber que conseguia andar de dia. Só estive com ele uma vez, muito tempo antes do Nosferatu. Ele compareceu a uma das festas do Senhor de Milão, o Senhor da Noite, sem ter sido convidado. Foi estranho ver tantas pessoas poderosas encolherem-se de medo perante um homem sujo, miseravelmente vestido e extraordinariamente feio. Vi-o matar uma vampira de duzentos anos com um olhar. Desintegrou-a em pó com um simples olhar de relance por se ter rido dele. O Senhor da Noite, que era o senhor dela, era muito velho e poderoso, mesmo nessa altura, e nem sequer abriu a boca para protestar apesar de ela ser a mais nova do seu rebanho e lhe ser muito cara.

— O Shreck ainda está vivo? — perguntou Warren.

— Não sei — respondeu Stefan, e acrescentou, quase em surdina: — E não quero saber.

— Ele foi sempre assim tão feio ou piorou com a idade? — inquiriu Kyle. Kyle era bonito, e sabia-o. Nunca tive a certeza se ele era de facto vaidoso, ou se se tratava de mais uma entre as muitas coisas que usava para camuflar a inteligência atrás da cara bonita. Suspeitava que ambas eram verdade.

Stefan sorriu.

— Essa é a pergunta que persegue os vampiros mais velhos. Não fazemos perguntas sobre a idade, mas conseguimos perceber, mais ou menos. O Wulfe é provavelmente o vampiro mais velho que já conheci, excluindo o Max. O Wulfe não é feio nem monstruoso. — Fez uma pausa, e depois continuou num tom ponderado: — Pelo menos não por fora.

— Talvez ele fosse um ser feérico ou parcialmente feérico — avancei. — Alguns deles têm uma aparência muito... invulgar.

— Nunca ouvi isso a respeito dele — disse Stefan. — Mas quem poderia saber?

Warren carregou no botão de Play e, de certo modo, o facto de saber que Max Shreck, que desempenhara o papel do verdadeiro Conde Orlok, fora um pesadelo para os vampiros, tornou o filme muito mais assustador — e antes disso já tinha elementos de sobra para o ser. Apenas Warren parecia indiferente ao efeito.

Quando o filme terminou, relanceou os olhos a Stefan.

— Vampiro — disse sem intenção de insultar —, porque é que não vem comigo lá abaixo à cozinha enquanto estes dois passam os olhos pela extraordinária coleção de maravilhas do cinema do Kyle, para ver se encontram alguma coisa que impeça a Mercy de conduzir até casa em excesso de velocidade.

— Ei! — disparei, indignada.

Exibiu-me um sorriso rasgado enquanto se levantava do chão e se esticava, o seu corpo alto e magro quase a tocar o teto sob o olhar admirador de Kyle. Warren não era tão bonito como Kyle, mas também não era o Max Shreck, e sabia que se estava a exibir para um público. Talvez Kyle não fosse o único vaidoso.

— Ei, Mercy — disse Warren. — E que tal se víssemos outro filme? O Stefan está habituado a ficar acordado até tarde e o Adam não está em casa à tua espera. Escolham um filme, vocês os dois, que eu e o Stefan vamos voltar a encher as taças de pipocas.

Kyle esperou que Warren e Stefan chegassem ao piso inferior antes de dizer:

— O Stefan parece estar com fome. Achas que o Warren o vai alimentar antes de o trazer de volta?

— Acho que isso é capaz de ser uma boa ideia. Ele já bebeu do meu sangue hoje e estava a começar a olhar para ti como se fosses o jantar dele. Não me parece que o Warren fosse permitir que o Stefan se alimentasse de ti, mesmo que ele pedisse e tu consentisses. Os lobisomens são assim, possessivos. Provavelmente é melhor se for o Warren a fazê-lo. Sendo um lobisomem com um bando, o Warren não vai acabar como o velho amigo do Stefan, Renfield14.

Kyle fez uma careta.

— Não faças uma pergunta se não quiseres ouvir a resposta — disse-lhe, pulando da cadeira e examinando cuidadosamente uma das estantes repletas de Blu-rays, DVDs e cassetes VHS.

Quando Warren e Stefan regressaram, pareceu-me óbvio que Stefan se tinha alimentado novamente. Movia-se com algo próximo da sua graciosidade habitual.

— Não têm A Noiva de Frankenstein? — perguntou Stefan, numa altura em que Kyle segurava o The Lost Skeleton of Cadavra15 como nossa escolha para o segundo filme. — Ou O Pai da Noiva? Quatro Casamentos e Um Funeral? — Desviou os olhos na minha direção. — O Efeito Borboleta, talvez? — Não havia dúvidas, estava a sentir-se melhor.

Atirei-lhe uma almofada.

— Cala-te. Ca-la-te.

Stefan apanhou a almofada, atirou-a contra mim e soltou uma risada.

— Que se passa? — perguntou Kyle.

Enterrei a cabeça na almofada.

— A minha mãe desistiu das pombas para o meu casamento e, apesar de eu não saber que essa possibilidade estava em cima da mesa, pelos vistos também desistiu dos pombos. Em vez disso, quer largar borboletas e balões.

Warren pareceu apropriadamente chocado, mas Kyle começou a rir.

— É uma moda recente, Mercy — disse. — É o ideal para ti porque supostamente se baseia numa lenda índia. A história é a seguinte: se apanhares uma borboleta e lhe sussurrares o teu desejo, e depois a largares, a borboleta levará o teu pedido até ao Grande Espírito. Uma vez que libertaste a borboleta, quando a podias ter matado ou capturado, o Grande Espírito vai sentir-se inclinado a considerar o teu pedido favoravelmente.

— Estou condenada — disse à almofada. — Condenada a borboletas e balões.

— Pelo menos não são pombos — observou Warren, pensando no sentido prático.


14 Personagem do romance Drácula, de Bram Stoker, que vive internado num manicómio e sofre de alucinações que o impelem a comer criaturas vivas na esperança de, através do sangue delas, obter a sua força. No decurso da trama, vem-se a saber que está sob a influência do Conde Drácula. (N. do T.)

15 Filme independente série B, realizado na década de 1950 pelo realizador norte-americano Larry Blamire. (N. do T.)


2

— Então o que é que fizeste ao Darryl? — perguntou-me Adam enquanto fechava a porta do condutor do meu Rabbit.

Normalmente era eu quem conduzia o Rabbit, mas os lobos Alfa não lidam bem com as viagens de avião através de companhias aéreas. O facto de se ter visto obrigado a confiar num estranho para pilotar o avião deixara Adam com uma necessidade de controlo, pelo que quando eu e a sua filha Jesse o fomos buscar ao aeroporto, ele ocupou a posição ao volante.

— Eu não fiz nada ao Darryl — protestei.

Adam olhou-me longamente antes de engatar a marcha-atrás, sair do lugar de estacionamento e conduzir em direção à saída do parque de estacionamento do aeroporto.

— Passei pela casa do Stefan a caminho da noite de cinema — disse. — Adam, o Stefan está num sarilho tremendo. Perdeu muitos dos elementos do rebanho e ainda não os substituiu. Estão a morrer; ele estava a morrer.

Adam agarrou o meu braço e virou-o para ver a dobra. Também eu olhei com interesse para a pele imaculada.

— Mercy — disse Adam, enquanto Jesse dava risadinhas no banco traseiro. — Deixa-te de palhaçadas.

— É no outro braço — disse-lhe. — São só duas marcas. Daqui a um dia já desapareceram. Sabes bem que não me vai fazer mal nenhum. O nosso vínculo de companheiros e com o bando impede-o de comunicar comigo da mesma forma que comunicaria com um humano.

— Não admira que o Darryl estivesse chateado — replicou Adam enquanto parava na cabine de pagamento de bilhetes, atrás de outro carro. — Ele não gosta de vampiros.

— O Stefan precisa de arranjar mais pessoas para o rebanho dele — disse-lhe. — Ele sabe disso, eu sei disso... mas não lho posso dizer.

— Porque não? — perguntou Jesse.

— Porque o rebanho de um vampiro é constituído por vítimas — respondeu Adam. — A maior parte delas morre muito lentamente. O Stefan é menos cruel do que o vampiro comum, mas não deixam de ser vítimas. Se a Mercy o encorajar a ir à caça, basicamente está a dizer que aprova o que ele fizer.

— O que não é verdade — intervim resolutamente. O condutor do carro à nossa frente estava a discutir com a senhora dos bilhetes. Catei o bolso das minhas calças de ganga.

— Mas acontece que se trata do Stefan — disse Adam. — Que, para um vampiro, até nem é um tipo ruim.

— Pois não — concordei sobriamente. — Mas não deixa de ser um vampiro.

A senhora na cabine de pagamento de bilhetes aparentemente ganhara a discussão, uma vez que o condutor lhe entregou o cartão de crédito. Notei que a senhora tinha um conjunto de balões de hélio ao seu lado; no centro estava um balão brilhante que dizia «Feliz Aniversário, Avó!»

— Tenho um pedido a fazer — disse a Adam enquanto ele entregava o bilhete de estacionamento à senhora na cabine.

— Qual? — Parecia exausto. Era a segunda viagem que fazia este mês à outra Washington no lado oposto do país, e isso notava-se no seu estado de cansaço. Hesitei. Talvez devesse esperar que ele dormisse uma boa noite de sono.

No banco traseiro do Rabbit, Jesse dava risadinhas. Ela era uma boa miúda, e gostávamos uma da outra. Hoje, o seu cabelo tinha a mesma tonalidade castanha-escura da do pai. Ontem estava verde. O verde não é uma boa cor de cabelo para ninguém. Após três semanas de cabelo que se parecia com espinafres em estado de apodrecimento, creio que finalmente concordou comigo. Quando me levantei esta manhã para ir trabalhar, estava a pintá-lo. De certo modo, o castanho fora mais inesperado do que o verde.

— Chiu — disse-lhe com severidade fingida. — Não te metas.

— De que é que precisas? — perguntou-me Adam.

Já me sentia melhor com ele em casa — a ansiedade ininterrupta que era a minha companhia constante quando ele estava ausente desaparecera, e levara consigo a pavorosa sensação de estar encurralada.

A senhora na cabine fez que sim com a cabeça e acenou para avançarmos porque tínhamos chegado na altura do desembarque de Adam e apenas estávamos ali há quinze minutos — ainda dentro do limite de tempo para o estacionamento gratuito.

Os balões ao lado dela provocaram-me uma sensação de aperto no estômago, especialmente os dourados.

— Quero casar — disse-lhe, enquanto Adam arrancava e os balões ficavam para trás.

Virou a cabeça bruscamente e olhou-me por breves momentos, antes de voltar a concentrar a atenção na estrada. Provavelmente o seu olfato estava a dar-lhe alguma indicação daquilo que eu sentia. A maior parte dos sentimentos fortes é vulnerável à deteção quando se vive com lobisomens. O meu olfato também era bom, mas apenas me indicava que Adam viajara com uma mulher ao seu lado, porque o cheiro dela alojara-se na sua manga. Era frequente o nosso vínculo de companheiros permitir-nos saber o que o outro estava a sentir ou, mais raramente, a pensar, mas neste momento isso não estava a acontecer.

— Eu tinha ficado com a impressão de que vamos casar — disse ele, cautelosamente.

— Agora, pai. — Jesse enfiou a cabeça entre os bancos dianteiros do meu Rabbit. — Ela quer casar agora. A mãe dela ligou na sexta e desistiu das pombas...

— Pensava que já lhe tinhas dito que não queríamos pombas? — disse-me Adam.

— ... e dos pombos — continuou a sua filha, despreocupadamente.

— Pombos? — disse Adam pensativamente. — Os pombos são bonitos. E são muito saborosos, também.

Bati-lhe no ombro. Não com muita força, apenas a suficiente para dar a entender que percebera a provocação.

— ... mas acabou por decidir que seria melhor usar borboletas — prosseguiu Jesse.

— Borboletas e balões — disse eu a Adam. — Ela quer soltar borboletas e balões. Dourados.

— Se ela quer usar balões dourados, espero que esteja a tentar encontrar borboletas-monarcas — comentou Jesse num tom prestável.

— Borboletas-monarcas — repetiu Adam. — Conseguem imaginar as pobres criaturas a tentar descobrir o trajeto de migração a partir de Tri-Cidades?

— Ela tem de ser impedida antes que destrua o ecossistema — disse-lhe, apenas meio a brincar. — E só me ocorre uma forma de fazer isso. A minha irmã fugiu com o noivo por causa da pressão dos preparativos para o casamento feitos pela minha mãe. Acho que também posso fazer o mesmo.

Gargalhou — e pareceu muito menos cansado.

— Eu adoro a tua mãe — replicou com uma satisfação honesta que lhe baixou a voz até um ronronar. — Creio que preservar o ecossistema de Tri-Cidades é uma razão válida para nos anteciparmos. Assim sendo, vamos casar-nos. Tenho o meu passaporte comigo. Tens a tua certidão de nascimento contigo para obtermos a licença, ou precisamos de ir a casa antes?

Era um pouco mais complicado do que isso, pelo que precisámos de dois dias para casar. O processo de fugir e casar não é tão rápido como fora em tempos, a menos que se viva em Las Vegas, presumo. É verdade que talvez conseguíssemos tê-lo feito mais depressa, mas insisti que fosse o Pastor Arnez a fazer as honras. E ele tinha um funeral e dois casamentos antes de poder dirigir a nossa cerimónia.

Adam perdera imensas coisas quando combatera no Vietname. A sua humanidade e crença em Deus eram apenas duas delas, dissera-me. Não estava propriamente extasiado com a ideia de um casamento pela Igreja, mas na verdade não podia objetar sem admitir que o que sentia em relação a Deus era raiva, não descrença. Sentia-me contente por ter evitado essa discussão durante uns tempos.

A nossa intenção era que a cerimónia fosse pequena: Adam, Jesse e eu própria, juntamente com duas testemunhas. Peter, o solitário submisso do bando, passou lá por casa na altura certa e portanto foi pressionado a servir de testemunha. Zee, o meu mentor, que tomaria conta do meu negócio enquanto estivéssemos ausentes na nossa lua-de-mel improvisada, foi incluído nos nossos planos quase imediatamente e reivindicou o privilégio de ser a segunda testemunha. Apesar dos rumores, as criaturas feéricas não têm qualquer problema em entrar numa igreja, seja qual for a denominação ou religião. É o aço que a Igreja Cristã dos primórdios trouxe consigo que é mortal para as criaturas feéricas, não a Cristandade — embora por vezes as criaturas feéricas também se esquecessem dessa parte.

No entanto, não sei como, a notícia espalhou-se pelo bando e a maior parte dos seus elementos estava na igreja na segunda-feira de manhã, pela altura em que eu e Jesse chegámos de carro. Adam ia noutro carro com Peter, seguindo a tradição. Tivera de parar para meter gasolina, pelo que eu e Jesse chegámos primeiro, e quando estacionámos, havia imensos carros conhecidos no parque.

— As notícias espalham-se depressa — disse eu, saindo do carro.

Jesse acenou solenemente.

— Lembras-te de quando a Auriele tentou preparar uma festa surpresa para o Darryl? Talvez tivéssemos conseguido manter o bando longe disto se tivéssemos realizado a cerimónia ontem. Importas-te muito?

— Não — respondi. — Não me importo. Mas se estiver aqui muita gente, a minha mãe vai sentir-se mal. — O meu estômago começou a apertar de ansiedade. Uma das razões para eu ter um casamento planeado era evitar ferir os sentimentos das pessoas. Bem vistas as coisas, talvez isto não tivesse sido muito boa ideia.

No entanto, quando entrámos na igreja, tornou-se óbvio que não tinha sido apenas o bando a descobrir. O Tio Mike saudou-nos à porta — presumo que Zee lhe tivesse contado. Olhando por cima do ombro dele, constatei que o velho dono de uma taberna trouxera consigo mais algumas criaturas feéricas, incluindo — para minha consternação — a Rapariga do Ioió, que na última ocasião em que a vira estava a comer as cinzas de uma rainha das fadas. «Rapariga do Ioió» não era o seu verdadeiro nome, que aliás nunca vim a saber; apenas se relacionava com o que ela estava a fazer na primeira ocasião em que a conhecera. Era perigosa, poderosa, e parecia uma rapariga de dez anos com flores no cabelo, trajando um vestido de verão. Sorriu-me. Julgo que ela sabia o quanto me apavorava e achava isso engraçado.

Não tencionara caminhar formalmente através do corredor. Porém, à medida que as pessoas começavam a chegar, Samuel — lobisomem, antigo companheiro de casa e namorado de há muito tempo — afastou-me do núcleo de pessoas e deu-me um ramo de flores brancas e douradas.

Puxou-me o cabelo para trás da orelha esquerda e curvou-se para sussurrar:

— Caramba, com a Jesse a trabalhar, isto foi sempre a andar. Em pouco mais de três dias, organizou isto tudo.

— Três? — retorqui. — Só ontem é que decidimos sair da cidade para casar.

Sorriu e beijou-me na testa.

— Eu ouvi falar disto no sábado. — Antes de Adam ter regressado da Costa Leste.

Relanceei os olhos a Jesse, que me dirigiu um sorriso animado e com a boca disse «Surpresa». Depois olhei em volta com atenção. Enquanto esperávamos por Adam, o adro da igreja começava a adquirir um ar festivo à medida que as pessoas exibiam caixas com flores e fitas brancas largas — e, se não estava em erro, algumas das criaturas feéricas estavam a fazer uso de magia para acrescentarem o seu próprio toque.

Estava enfiada no meu vestido de noiva, comprado no mês anterior. Ocorrera-me que pareceria estranho, tratando-se de uma cerimónia tão rápida, mas uma vez que já tinha o vestido — uma coisa grande e volumosa da cintura para baixo e de seda branca justa em cima, com mangas estreitas —, Jesse dissera-me que o devia usar. E Jesse optara por colocar o seu vestido de dama de honor porque «O que é que eu haveria de vestir?» Ao vê-la com ele, não desconfiara minimamente, provavelmente porque adorava o vestido e teria aceitado qualquer desculpa para o vestir.

Alguém abriu as portas da capela para que as pessoas se pudessem ir sentar, mas já havia imensas pessoas sentadas. Não apenas lobos e criaturas feéricas — consegui ver alguns dos contactos profissionais de Adam e alguns dos meus clientes habituais na oficina. Gabriel, o meu braço-direito na oficina, e Tony, meu amigo do Departamento de Polícia de Kennewick, estavam sentados lado a lado. Aproximei-me um passo da capela, tentando ver todas as pessoas que Jesse convidara para vir ao meu casamento. Eram muitas.

Samuel segurou-me enquanto o adro se esvaziava, até restarmos apenas nós, Jesse e Darryl — e o órgão começou a tocar Wagner.

Jesse, com o braço enfiado no de Darryl, conduziu a procissão em direção ao átrio da igreja. Parou aí para permitir às minhas irmãs Nan e Ruthie, que evidentemente haviam estado escondidas atrás das portas da capela para que não as visse, seguirem à frente, acompanhadas por Warren e Ben, outro dos lobos de Adam.

À frente da capela, Adam estava à minha espera ao lado do pastor.

Pestanejei para impedir que me saíssem lágrimas, após o que funguei — e Samuel largou-me o braço.

Olhei para ver o que estava a fazer, mas um outro homem tinha ocupado o seu lugar.

— O Zee queria ter a honra de te conduzir ao altar — disse Bran, pai de Samuel, o Marrok que mandava em todos os lobos de todos os sítios, e Alfa do bando de Montana que me criara. — Mas eu tinha prioridade.

— Discutiram durante um bom pedaço — sussurrou Samuel. — Pensei que viesse a haver sangue.

Passei a igreja em revista e constatei que muitos dos elementos do bando de Montana com quem crescera estavam presentes. Charles, o irmão de Samuel, sentado ao lado da sua companheira, sorriu-me. Charles raramente — ou mesmo nunca — sorria.

Nessa altura, para minha humilhação, comecei a chorar.

Bran chegou-se mais a mim enquanto caminhávamos lentamente, e num sussurro quase impercetível que mais ninguém além de nós perceberia, disse:

— Antes de ficares toda emocionada com a nossa generosidade ao prepararmos-te tudo isto, devias tomar conhecimento de algumas coisas. Tudo começou com uma aposta...

Quando nos alinhámos à beira do altar, de um modo tão gracioso que parecia ensaiado, Bran tinha razão: já não me sentia comovida. Nem estava a chorar. Nan, Ruthie e Jesse estavam postadas ao meu lado, juntamente com Bran, que ainda segurava a minha mão. Darryl, Warren e Ben estavam alinhados no lado oposto, junto a Adam.

A minha mãe, a traidora sentada na primeira fila de bancos, mandou o meu padrasto levantar-se e colocar uma borboleta-monarca feita de seda no meu ramo de flores. Ele beijou-me na face, trocou um aceno de cabeça com Bran, e depois voltou a sentar-se ao lado da minha mãe. A minha mãe dirigiu-me um sorriso satisfeito e não se parecia nada com a conspiradora perversa que era.

— Balões — disse-lhe com a boca, erguendo uma sobrancelha para mostrar o que pensava do seu subterfúgio.

Apontou para cima discretamente — e ali, encostadas ao teto, estavam dezenas de balões dourados com borboletas de seda atadas aos fios.

Ao meu lado, Bran riu-se — indubitavelmente da minha expressão estupefacta.

— Tal como as criaturas feéricas — murmurou —, a tua mãe não mente. Apenas te conduz até onde quer que tu vás, independentemente da tua vontade, e fá-lo para o teu próprio bem. Se te serve de ajuda, não estás sozinha; ela veio ter comigo com uma coiote bebé para criar, e olha para o que me aconteceu. Pelo menos tu não lhe deves cem dólares.

— É bem feito, é para aprenderes a não apostar nada com a minha mãe — disse-lhe enquanto a música chegava ao fim e ele me levava para junto de Adam.

Bran parou quase imediatamente, puxou-me para trás ao seu encontro e franziu o sobrolho a Adam — e o peso da sua autoridade sentiu-se em toda a capela. Bran conseguia disfarçar o que era, e normalmente fazia-o, parecendo um jovem franzino sem particular importância. No entanto, de quando em vez, punha a descoberto a verdade do que era. Bran era um lobo muito, muito velho e poderoso. Governava os lobos da nossa parte do mundo, e ninguém neste espaço, nem mesmo os humanos, ficaria admirado com o facto de ele ser capaz de fazer com que os lobos Alfa obedecessem às suas ordens. A música do órgão hesitou perante a sua autoridade e calou-se.

— Cachorrinho — disse, interrompendo o silêncio súbito —, hoje vou dar-te um dos meus tesouros. Vê lá se o tratas devidamente.

Adam, sem dar indícios de se sentir intimidado, acenou uma vez com a cabeça.

— Farei isso.

Depois a ameaça do que Bran era desapareceu e voltou a ser um homem banal de aparência jovem vestindo um smoking cinzento de belo corte.

— Ela vai virar a tua vida do avesso.

Adam sorriu e, do canto do olho, vi a minha mãe refrescar o rosto com um leque — Adam é muito asseado e, com um smoking, é de cortar a respiração, mesmo sem o sorriso.

— Ela tem feito isso nos últimos dez anos — disse. — Não creio que vá mudar tão cedo.

Bran permitiu que eu avançasse, e Adam pegou na minha mão.

— Perdeste dinheiro recentemente? — sussurrei.

— Tenho cara de estúpido? — sussurrou de volta, levando a minha mão aos seus lábios. — Só soube disto quando a tua mãe me ligou para o hotel depois de te ter feito o telefonema a propósito das borboletas. Pelos vistos vem falando com a Jesse há umas semanas. Eu e tu fomos os últimos a saber.

Fitei-o e depois atentei no olhar jubiloso do Pastor Arnez. Tinha de esperar por causa de um funeral... Pois, pois.

— Eu também não apostei nada — sussurrou-me o pastor.

— A maior parte das pessoas — disse Adam ponderadamente, e alto o suficiente para que até os membros da plateia sem dons sobrenaturais o pudessem ouvir — tem festas de aniversário-surpresa. Tu tens um casamento-surpresa.

E, quase como se tivessem sido instruídos para tal — algo que pelo menos meia dúzia de pessoas mais tarde me veio a garantir não ser o caso —, todos gritaram «Surpresa!»

No breve silêncio que se seguiu, um dos balões de hélio rebentou e os seus restos, incluindo uma borboleta de seda, caíram no chão atrás do pastor. Se aquilo era um presságio, não fazia a menor ideia do que queria dizer.

Na cave da igreja havia uma impressionante quantidade de comida e bebida, e aproveitei a oportunidade para chamar a minha irmã Nan, mais nova do que eu, a um canto.

— Como é que tu conseguiste casar às escondidas e a mim prepararam um casamento-surpresa? — perguntei-lhe.

Dirigiu-me um sorriso rasgado.

— Tens bolo no queixo. — Estendeu a mão e limpou-o, olhou em volta à procura de um guardanapo e depois enfiou o dedo na boca e engoliu o pedaço de bolo.

— Bhlác — disse-lhe.

Encolheu os ombros.

— Pelo menos não lambi os dedos antes. Além disso, a cobertura glacé é boa, seria uma pena desperdiçá-la. E, em resposta à tua pergunta, eu fugi para casar antes que a mãe e a minha nova sogra se matassem. Um casamento-surpresa como este teria resultado em corpos espalhados pelo chão. Prepararam-te um casamento-surpresa porque a mãe, o Bran e... mais algumas pessoas se estavam a sentir culpadas.

— Culpadas? — repliquei. — É preciso ter-se consciência para sentir culpa. Não me parece que a nossa mãe seja capaz disso.

Nan deu risadinhas.

— És capaz de ter razão. De qualquer forma, a cena da aposta não foi culpa nossa; foi tua.

Ergui uma sobrancelha, incrédula.

— Culpa minha?

— Começou quando todos reparámos que ficavas assim, com esse ar petrificado, sempre que discutíamos a questão do casamento, e começámos a engendrar isto porque foi quase impossível resistir.

De facto a minha irmã tinha-me feito alguns telefonemas em tom de comiseração. Estreitei-lhe os olhos e ela corou culpadamente.

— A aposta simplesmente acabou por surgir — continuou. — Um dia o pai disse «Aposto que ela foge com o Adam antes da data do casamento.»

— O pai alinhou nisto? — Raramente chamava «pai» ao meu padrasto. Não que não o adorasse, mas tinha dezasseis anos quando o conheci, apesar de nessa altura ele e a minha mãe estarem casados há quase doze anos. Comecei a tratar Curt pelo primeiro nome e nunca adquiri o hábito de lhe chamar outra coisa.

— É claro que não. — A minha irmã mais nova, Ruthie, apareceu repentinamente com um biscoito na mão. Nan, alta e de feições agradáveis, foi atrás do pai; Ruthie era uma miniatura da minha mãe. O que significava que era minúscula, belíssima e metediça. — O pai ficou chocado quando soube daquilo a que deu início. Eu, a Nan e a mãe fomos as primeiras a apostar, mas o Bran alinhou logo a seguir.

Pegou descontraidamente num copo de ponche da mesa e eu tirei-o das suas mãos e voltei a colocá-lo sobre a mesa.

— Ainda não tens vinte e um anos — disse-lhe.

— Faço no mês que vem — lamuriou-se.

Dirigi-lhe um sorriso afetado.

— Fizeste uma aposta relacionada com o meu casamento. Não tens direito a nenhum favor. — Endireitei-me. Tive uma súbita ideia maravilhosa. — Lobos — disse, e reforcei o meu chamamento fazendo uso dos vínculos com o bando, que só agora começava a dominar. Tão-pouco tive de falar alto. Por toda a igreja, os lobos, com os seus rostos humanos, arrebitaram as orelhas e viraram-se na minha direção. — A minha irmã Ruthie ainda não fez vinte e um anos. Nada de álcool para ela. — Depois, para o caso de ela não ter percebido, disse-lhe: — Se te aproximares daquele ponche ou de qualquer outro tipo de bebida alcoólica hoje, os meus lobos vão intervir.

Ruthie bateu com o pé no chão e olhou para Nan.

— Espera e verás. Também apostaste, tu. Ela vai vingar-se de ti e depois eu é que vou sorrir. — Pôs-se a andar com um ar ofendido enquanto eu e Nan a observávamos.

Nan abanou a cabeça.

— Pobre desgraçado aquele que um dia ficar com ela.

Soltei uma risada.

— Ele nunca vai saber no que se meteu. O Curt ainda hoje acha que a nossa mãe é um doce de pessoa que precisa da proteção dele, e sente-se perfeitamente feliz com isso. — Lembrei-me tardiamente que deveria estar zangada com ela. Franzi o sobrolho. — Já chega de falar da mãe e da Ruthie. Vais explicar-me como é que passaram de uma aposta para um casamento-surpresa.

— Bem — replicou —, tal como eu disse, a culpa é tua. Quando percebeu o quanto estavas stressada em relação ao casamento, a mãe ofereceu-se para tratar de tudo por ti. — Riu-se da expressão no meu rosto. — Eu sei. É uma ideia aterradora, não é? Mas é óbvio que tu também não ias gostar minimamente de o preparar.

Lançou um olhar pensativo a Bran, que estava a conversar animadamente com o meu padrasto. O meu padrasto era dentista. Bran governava lobisomens. Não queria saber o que tinham em comum que os excitasse tanto.

— Bom, seja como for, começámos a espicaçar-te — explicou Nan — apenas por diversão. E as apostas tornaram-se um bocadinho mais sérias. Assim que o dinheiro em jogo ultrapassou os vinte dólares, os instintos competitivos da mãe sobrepuseram-se aos maternais. A data que a mãe apontou para a tua fuga foi o dia de amanhã. Portanto planeou aquilo das borboletas e dos pombos, mas creio que por essa altura ela começou a sentir-se mal com a possibilidade de te privar de um casamento verdadeiro. Então decidiu planear o casamento, mesmo sem ti. O que prova que ela deve ter uma consciência, ainda que um pouco subdesenvolvida. Recrutou a Jesse para ser a sua mulher no terreno e organizou este casamento com a eficiência que lhe é habitual. — Nan engoliu uma grande porção de ponche alcoólico e aos seus olhos assomou água.

— Ainda bem que eu e o Todd fugimos para casar — desabafou com sinceridade. — Era impossível impedir a catástrofe. Mas acho que merecias isto, e estou muito feliz por ti. — Inclinou-se e beijou-me na face. A seguir, sussurrou: — Ele é mesmo uma brasa. Como é que conseguiste?

— Fedelha — disse-lhe, e dei-lhe um abraço. — O Todd não é nada de se deitar fora.

Sorriu com ar presunçoso e deu mais um gole.

— Não, não é.

— Podia ser — disse Ben atrás de mim, o seu sotaque britânico a conferir-lhe um ar civilizado que ele não merecia. — Queres que ele seja de deitar fora, querida?

Virei-me, certificando-me de que ficava entre Ben e Nan.

— As minhas irmãs são território interdito — lembrei-o.

Uma espécie de dor assomou-lhe ao rosto, para logo desaparecer. Quando se tratava de Ben, nunca dava para perceber bem se a emoção era genuína ou não — porém os meus instintos disseram-me que tinha sido. Portanto continuei num tom de censura fingida:

— A Ruthie é nova de mais para ti e a Nan está casada com um homem impecável. Por isso, porta-te bem.

Nan também se apercebera da dor que assomara ao rosto de Ben, pensei. Era mais branda do que a minha mãe, mais parecida com o pai em termos de temperamento, bem como de aparência. Não conseguia suportar a ideia de ter à sua frente alguém magoado sem fazer alguma coisa em relação a isso.

Suspirou dramaticamente.

— Tantos homens bonitos, e estou presa a apenas um.

Ben sorriu-lhe.

— Quando quiseres mudar isso...

Dei-lhe uma cotovelada no flanco — podia ter desaparecido, mas não o fez.

— Ok — disse, afastando-se com um medo exagerado. — Eu vou portar-me bem, prometo. Só te peço que não me voltes a magoar.

Falou alto o suficiente para que todas as pessoas à nossa volta pusessem os olhos em nós.

Adam abriu caminho por entre os elementos do bando e despenteou o cabelo de Ben enquanto se colocava ao seu lado.

— Comporta-te, Ben.

O Ben que conhecera pela primeira vez teria rosnado e feito ouvidos moucos à repreensão afetuosa. Este exibiu-me um sorriso rasgado e, virando-se para Adam, disse-lhe:

— Não se o puder evitar.

Eu gostava de Ben. Mas se o apanhasse sozinho num quarto com Ruthie ou Jesse, dava-lhe um tiro sem hesitação. Estava melhor do que quando integrara o bando de Adam, mas ainda assim não era de fiar. Havia uma qualquer parte dele que ainda odiava mulheres, que ainda nos olhava como presas. Enquanto isso não mudasse, era necessário mantê-lo debaixo de olho.

— Há uma pessoa que gostava que conhecesses — disse-me Adam, fazendo um aceno a Nan.

Pegou-me na mão e passámos pelo enorme bolo de noiva. Era uma coisa bela, com flores azuis e brancas e sinos prateados — e, apesar de ter sido encetado e servido a todos os presentes, continuava enorme. Alguém o tinha encomendado para outro casamento e não o tinha pagado, razão pela qual Jesse — segundo me dissera — conseguira o bolo. Quem quer que o tivesse encomendado originalmente devia estar a planear um casamento muito maior do que este. Percorri com os olhos a cave apinhada e tentei imaginar um casamento maior.

— Depressa — disse-me Adam, e puxou-me até à porta lateral e depois pelas escadas traseiras acima. — Vamos fugir.

Alcançámos o parque de estacionamento sem passar por mais ninguém. O SUV de Adam, ao qual estava inexplicavelmente atrelada uma gigantesca caravana com a extremidade em forma de pescoço de ganso, e que parecia muito maior do que a casa móvel onde vivera até ao último inverno — quando a rainha das fadas a fizera arder —, estava à nossa espera, preparada para uma fuga.

— Qual é a pressa? — perguntei, enquanto Adam me empurrava para o interior do SUV através da porta do passageiro. Depois, entrou e ligou o carro antes de fechar a porta.

— Alguns dos seres feéricos têm uma noção estranha da despedida das noivas — explicou, enquanto eu me acomodava no lugar do passageiro e ele guiava para fora do parque de estacionamento —, onde, segundo o Zee, se inclui o rapto. Decidimos não arriscar a possível reação do Bran no caso de tal coisa acontecer, e o Zee prometeu que ia proteger a nossa fuga até estarmos longe.

— Esqueci-me disso. — E fiquei em choque, porque tinha conhecimento de que isso acontecia. — O Bran e o Samuel provavelmente são um perigo maior do que qualquer um dos seres feéricos — disse-lhe. — Um dia conto-te alguns dos disparates mais espetaculares cometidos em casamentos que o Samuel me relatou. — Alguns deles faziam o rapto parecer suave.

Coloquei o cinto de segurança, ajudei-o a pôr o dele, e voltei a olhar para trás de nós.

— Caso não tenhas reparado, tens uma coisa muito grande presa à parte de trás do teu SUV.

Sorriu-me, os seus olhos límpidos e felizes como nunca os tinha visto.

— E essa é a minha surpresa. Eu disse-te que ia planear a lua-de-mel.

Olhando para a caravana, pestanejei.

— Trazer o quarto de hotel atrás?

Erguia-se acima de nós, mais alta do que o SUV — que já era bem alto —, mais alta e mais larga, com secções nas partes laterais obviamente concebidas para serem destacadas.

— Não tenho dúvida de que é maior do que a minha antiga caravana.

Adam olhou por sobre o ombro e deu uma risada.

— É capaz de ser. É a primeira vez que a vejo. O Peter e a Honey levaram o SUV e atrelaram-na.

— É tua?

— Não. Pedi emprestada.

— Espero que não estejamos a ir para nenhum sítio com estradas estreitas e sinuosas — disse-lhe. — Ou para algum parque de estacionamento pequeno.

— Pensei em passarmos a noite numa estação de serviço muito porreira que conheço em Boardman, Oregon — replicou Adam, metendo para a Autoestrada 395 em direção a sul. — Cheiro a diesel e barulho de grandes motores para nos acompanhar na nossa primeira noite juntos como marido e mulher. — Riu-se da minha expressão. — Confia em mim.

De facto, parámos em Boardman para tirarmos as roupas do casamento e vestirmos outras. Por dentro, a caravana era ainda mais impressionante do que por fora.

Adam desapertou o bilião de botões do fundo das minhas costas até ao meu pescoço. O bilião de botões dos meus cotovelos até aos meus pulsos teve de esperar. Eram necessárias duas mãos para desabotoar, portanto a única coisa que podia fazer era passar os olhos pela caravana com um tremendo espanto.

— É como um gigantesco bag of holding. Enorme por fora, mas ainda maior por dentro.

— O teu vestido? — retorquiu, soando intrigado.

Bufei.

— Que engraçadinho. A caravana. Conheces os bags of holding, não conheces? Os itens mágicos espetaculares onde é possível guardar mais coisas do que as que caberiam em sacos do mesmo tamanho?

— Ah, sim?

Suspirei.

— O item mágico da fantasia do Dungeons and Dragons. — Estiquei o pescoço para o lado e disse: — Não me digas que nunca jogaste ao Dungeons and Dragons. Existe alguma regra que impeça os lobisomens de se divertirem?

Encostou a testa ao meu ombro e riu-se.

— Posso ter nascido na Idade Média — na verdade, tinha nascido na década de 1950, apesar de aparentar estar na casa dos vinte; quando se é lobisomem, o processo de envelhecimento é interrompido —, mas já joguei ao Dungeons and Dragons. No entanto, posso garantir-te que o Darryl nunca cedeu ao divertimento. O jogo dele é o paintball.

Por momentos, imaginei Darryl a jogar paintball.

— Assustador — murmurei.

— Nem imaginas quanto.

Adam esfregou a sua bochecha na minha e regressou à sua tarefa.

— Podia simplesmente rasgar isto em vez de desabotoar — disse dez minutos depois. Era uma proposta séria, dita numa voz esperançosa mas condenada.

— Faz isso, e depois voltas a coser todos os botões — repliquei. — A Jesse tenciona reutilizar este vestido.

— Em breve? — perguntou.

— Que eu saiba, não.

— De certo modo, isso não é tão tranquilizador como eu gostaria — resmungou.

— O Gabriel vai para uma universidade em Seattle no outono — lembrei-o. — Acho que, por este ano, podes ficar tranquilo. — O meu braço-direito tinha sentimentos pela filha de Adam, e neste momento estava a viver na minúscula casa pré-fabricada que o seguro disponibilizara para substituir a minha velha caravana. Uma situação que os deixava a eles felizes e a Adam inquieto. Adam gostava de Gabriel, mas era um lobisomem Alfa, o que o torna desmedidamente protetor em relação à filha.

Adam acabou por conseguir desapertar os botões. Enquanto eu pendurava o vestido e o punha no roupeiro (sim, a caravana tinha um roupeiro), Adam despiu o smoking e vestiu um par de calças de ganga e uma t-shirt. Não era frequente vestir-se de forma tão informal. Excetuando as alturas em que fazia exercício físico, um par de calças de vinco e uma camisa eram, por norma, a sua vestimenta mais descontraída. A minha t-shirt lavada e as minhas calças de ganga equivaliam, para mim, a estar aperaltada. Eu era mecânica de profissão, e era coisa rara as minhas unhas estarem limpas. Ainda assim, eu e Adam encaixávamos um no outro.

Comprou batidos de leite e hambúrgueres (um para mim, quatro para ele) num restaurante ali perto, encheu o depósito de gasóleo e voltámos a fazer-nos à estrada.

— Estamos a ir para Portland? — inquiri. — Ou para as Cataratas Multnomah?

Sorriu-me.

— Vai dormir.

Esperei três segundos.

— Já chegámos?

O seu sorriso expandiu-se, e o último resquício da sua habitual tensão desapareceu-lhe do rosto. Era um sorriso pelo qual... eu faria qualquer coisa.

— O quê? — retorquiu.

Inclinei-me e encostei a minha face ao seu braço.

— Amo-te — disse-lhe.

— Sim — concordou presunçosamente. — Amas.

O Desfiladeiro do Rio Columbia é uma garganta que se estende aproximadamente quinze quilómetros através da Cordilheira das Cascatas, na base do qual corre o Rio Columbia. Constitui parte da fronteira entre Washington e o Oregon. A maior parte da viagem é feita na autoestrada principal no lado do Oregon, mas existe uma autoestrada no lado de Washington que atravessa o grosso da extensão do desfiladeiro. Embora a parte ocidental do desfiladeiro corresponda a uma floresta tropical temperada, a secção oriental é constituída por uma estepe semiárida com bromos-vassoura, artemísias e assombrosos penhascos em basalto que por vezes formam diáclases.

Adam saiu da autoestrada em Biggs e meteu pela ponte sobre o Columbia no sentido de Washington. Essa ponte é uma das minhas preferidas de sempre. O rio é largo, tem cerca de quilómetro e meio, e a ponte desenha-se graciosamente em arco até à cidade de Maryhill.

Foi fundada pelo homem de negócios Sam Hill, em inícios do século XX. Visionara uma paradisíaca comunidade agrícola assente na ideologia Quaker16 e dera à cidade o nome da sua mulher, Mary Hill. Suspeito que ela tivesse gostado mais da ideia se a cidade não ficasse no meio do deserto com cerca de cinco centímetros de solo arável. Pouco resta da cidade — alguns pequenos pomares, uma ou outra vinha e um parque de campismo gerido pelo Estado —, atributos que não fazem de Maryhill um sítio propriamente especial.

Mas Sam Hill não se ficara pela cidade. Construíra o primeiro monumento de homenagem aos mortos da Primeira Guerra Mundial, uma réplica em tamanho real do Stonehenge, visível da autoestrada do lado do rio onde fica o Oregon.

No entanto, virámos para oeste logo a seguir a atravessarmos a ponte, afastando-nos do Stonehenge e de Maryhill. Após dez ou quinze minutos em que seguimos por uma via rápida estreita que abria caminho através da estepe do Desfiladeiro do Rio Columbia, chegámos a um parque de campismo. Apesar de se encontrar impecavelmente tratado, não tinha ninguém no seu interior. Adam parou na rampa de entrada, retirou um cartão do porta-mapas e passou-o na caixa de leitura ao lado do portão. Uma luz verde piscou e o portão abriu de par em par.

— Temos o terreno só para nós — disse Adam. — Fui responsável por parte da instalação dos sistemas de segurança aqui, e eles disseram-me que podíamos ficar apesar de só abrir oficialmente na próxima primavera. Tenho a certeza que o chuveiro da caravana funciona, mas os que estão ali nos lavabos são muito maiores.

Percorri com os olhos o parque de campismo, onde carvalhos e áceres altos davam sombra aos espaços em gravilha destinados às caravanas. As árvores grandes não eram comuns nesta parte do Estado, à semelhança da erva muito verde — alguém passara muito tempo a cuidar delas.

Adam estacionou num lugar a meio caminho entre os lavabos em pedra e o rio. Dei por mim a olhar de sobrolho franzido para uma das árvores. Devia ter uns cinco metros de altura, as suas raízes enterradas bem fundo na terra onde não perturbariam o terreno bem tratado.

— Dez dias — disse-lhe.

Ele sabia como funcionava a minha mente.

— O Zee está a olhar pela oficina — replicou. — O Darryl e a companheira dele estão a tomar conta da Jesse, que antes de nós partirmos me disse que não precisava de babysitter.

— Ao que tu respondeste que eles eram guarda-costas, não babysitters — disse eu. — Mas ela argumentou que os guarda-costas não costumavam dizer às pessoas sob a sua guarda a que horas tinham de estar em casa.

— E tu nem sequer estavas presente na discussão — disse Adam, revelando admiração. — O Darryl interveio e disse «A família costuma». E a coisa acabou por ali. Portanto, o que mais te está a preocupar?

— O Stefan — respondi. — Pedi ao Warren que lhe fizesse uma visita, mas...

— Eu tive uma conversa com o Stefan — disse Adam. — Ao contrário de ti, a minha consciência não me impediu de lhe dizer que precisava de aumentar o seu rebanho. Um dos problemas dele é que não quer sair para caçar, e não pode deixar o rebanho sozinho. O Ben ofereceu-se para vigiar as pessoas à sua guarda e o Warren deverá partir amanhã para Portland juntamente com o Stefan. Mais alguma coisa?

— Dez dias — respondi, dirigindo-lhe um amplo sorriso. — Dez dias de férias contigo. Sem interrupções.

Adam inclinou-se e beijou-me — e essa foi a última vez que me preocupei com o que quer que fosse durante algum tempo.


16 Movimento criado por George Fox, em 1652, com o propósito de restaurar a fé cristã original, após séculos de apostasia. (N. do T.)

 

 

                                                   Patricia Briggs         

 

 

 

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