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Segredo do Cofre do Tempo / Clark Darlton
Segredo do Cofre do Tempo / Clark Darlton

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Segredo do Cofre do Tempo

 

Perry Rhodan obteve mais um sucesso! Recorrendo aos seus poderes mentais, os mutantes da Terceira Potência criam tremenda confusão entre os invasores tópsidas, além de se apossarem da nave de guerra arcônida, orgulho e peça-base da frota espacial tópsida.

Agora Rhodan não precisa mais temer o adversário inumano, e tem em mãos os meios para retornar à Terra. E é o que faz; porém promete aos ferrônios, os habitantes humanóides do sistema Vega, que voltará a fim de expulsar definitivamente os tópsidas. Mas outra razão o incita a regressar a Vega: quer descobrir, a qualquer preço, o grande segredo oculto em Ferrol — o segredo da vida eterna, guardado num cofre cujas paredes são feitas de...  tempo.

 

                          

 

Em questão de segundos, a imensa nave esférica passou da quarta para a quinta dimensão, tornando-se, por conseguinte, invisível.

Ainda há pouco, ela cruzava celeremente a órbita do quadragésimo segundo planeta do sistema Vega; ultrapassando a velocidade da luz, rumou para a Terra, a vinte e sete anos-luz de distância; e de repente sumira, como se jamais tivesse existido. Simplesmente se dissolvera, desmaterializada.

No entanto, corpo algum pode subsistir conscientemente no espaço pentadimensional quando provém da quarta dimensão, pois tempo e medidas tridimensionais deixam de ter significação. O corpo deixa de ser matéria, não obedecendo mais aos preceitos de espaço e tempo. Passa a existir independente do tempo.

Portanto, a gigantesca nave esférica, com seu diâmetro de oitocentos metros, continuava a existir; apenas sob outra forma. Assim como seus passageiros.

Rhodan alimentava sérias dúvidas, por ocasião de dar ao cérebro eletrônico automático a ordem para o salto espacial. Não conhecia aquela nave, conquistada aos tópsidas num sistema solar desconhecido. Ela pertencera originariamente aos arcônidas, os legendários senhores do Universo. Porém, quanto às particularidades técnicas, se assemelhava bastante à Good Hope, a nave que trouxera Rhodan para Vega, onde acabara se envolvendo na luta contra os tópsidas, o povo reptilóide.

Mas era arriscado tentar a transição para a Terra com uma nave estranha e tripulação insuficiente. No entanto, não havia outra alternativa, caso desejasse ajudar os habitantes do oitavo planeta de Vega a se livrarem do invasor. Os ferrônios eram fracos demais para enfrentar os tópsidas sem auxilio.

Portanto, Rhodan tinha decidido se lançar ao arrojado empreendimento, que bem podia lhe acarretar a morte, e, conseqüentemente, o fim de todos os seus planos.

Uma única entidade a bordo da Stardust-III — conforme batizara em seu íntimo a nave conquistada — seria capaz de acompanhar consciente o salto no espaço e no tempo: o cérebro positrônico. Armazenava automaticamente as impressões recebidas pelos sentidos da tripulação desmaterializada, guardando-os para posterior informação. Encarregava-se igualmente da imediata reativação dos robôs após a rematerialização, a fim de prestarem assistência aos tripulantes humanos.

Perry Rhodan não tinha consciência da passagem de tempo desde que a Stardust-III se lançara ao salto. Sentiu uma dor excruciante percorrer-lhe o corpo todo, como que dilacerando os membros. Não conseguia fazer o menor movimento. Mais adiante, na central de comando, Jazia Reginald Bell, seu amigo e companheiro na primeira expedição humana à Lua.

“Meu Deus”, pensou Rhodan consigo mesmo, “há quanto tempo foi isso?”

Bell gemeu. Com os olhos muito abertos, fixava o teto da cabina, completamente atordoado.

Uma porta correu silenciosamente para o lado. Flutuando, entrou um vulto com aparência humana, brilhando metalicamente à luz difusa da cabina. Era um dos robôs especializados. Condicionados pelo cérebro positrônico, obedeciam cegamente aos novos senhores da nave.

O esparadrapo-injeção atuou instantaneamente; Rhodan sentiu a dor pungente diminuir e desaparecer em poucos segundos. Endireitando o corpo, olhou para o calendário automático. De início, julgou que ele havia parado; só aos poucos voltou a se conscientizar de que a transição através de vinte e sete anos-luz não implicava na passagem de tempo detectável.

De repente. Rhodan percebeu que, agora, os dois arcônidas extraviados, Crest e Thora, poderiam retornar a qualquer momento que desejassem ao seu planeta natal, Árcon, situado a mais de trinta e quatro mil anos-luz da Terra. Era o que eles mais desejavam, porém até então Rhodan conseguira adiar habilmente tais planos. De maneira alguma queria revelar a posição galáctica da Terra. Ela ainda não era bastante forte para se imiscuir na política cósmica.

Apoiando-se sobre os cotovelos, Bell lançou as pernas no chão, cujo piso, intocado há milênios, era de material inteiramente desconhecido. Bocejando, comentou:

— Puxa! Dormi uma eternidade, e no entanto me sinto mais cansado do que antes! A coisa funcionou?

— Sim, a transição decorreu de acordo com os planos — respondeu Rhodan. — Pelo menos por enquanto. Vamos determinar nossa posição, para saber com certeza. Dei ordem ao cérebro positrônico para nos rematerializar na órbita de Plutão.

— E os outros? Não seria bom ver como estão?

— Deixe, os robôs tratam disso — respondeu Rhodan, levantando-se. — Veja, o que nos atendeu já se retirou. Além disso, se nós superamos a experiência sem danos, deve ter sucedido o mesmo aos demais.

A tela acima do painel central de controle iluminou-se. Lentamente as cores se ordenaram em imagens definidas. A estrela de brilho intenso à esquerda da proa da Stardust-III era o Sol. Rhodan e Bell reconheceram-no imediatamente. À frente vogava um corpo celeste de fraca luminosidade, recoberto com uma alva crosta cintilante de gelo — Plutão.

O salto dera certo.

— Os ocupantes de nossa base em Plutão ainda não conhecem a nova nave — disse Rhodan. — É melhor você avisá-los. Já devem ter nos percebido através dos sensores estruturais, e quem sabe dado o alarma.

Os sensores estruturais eram invenção arcônida. Detectavam e localizavam, a distâncias fabulosas, qualquer rompimento na estrutura quadridimensional do espaço. E cada hipersalto de uma nave espacial provocava um rompimento dessa espécie, que se propagava com velocidade superior à da luz, sem implicar em decorrência de tempo. Pois gravitação, conforme os cientistas arcônidas já haviam constatado há milhares de anos, nada mais é senão radiação energética pentadimensional, que não precisa de tempo para se propagar.

Bell se dirigiu ao transmissor e chamou Plutão. Mas valeu-se de um aparelho comum, e não do hipertransmissor, a fim de não poder ser captado no âmbito dos anos-luz mais próximos. Felizmente, os ocupantes da base avançada ainda não tinham difundido a notícia do aparecimento de uma nave desconhecida. Bell suspirou, aliviado.

— Instruções de Perry Rhodan à base de Plutão: prosseguir extremamente atentos. Comunicar à cidade de Galáxia o aparecimento de qualquer outra nave. Posteriormente receberão maiores detalhes. Fim.

— Bem — disse Rhodan — agora seria aconselhável avisar a Terra. Senão poderiam se lembrar de mandar a nova frota espacial ao nosso encontro, pois é fácil imaginar que nossa aparência não é nada tranqüilizadora. A Good Hope media apenas sessenta metros de diâmetro, igualando-se, portanto, às naves auxiliares da Stardust-III, das quais dispomos de uma dúzia. Use o hipertransmissor, mas focalize com exatidão o raio direcional. A mensagem só deve poder ser captada em Galáxia.

As ondas radiofônicas mais rápidas que a luz permitiram contato instantâneo. Galáxia, a capital do domínio de Rhodan na Terra, atendeu imediatamente. Mas, mal o radioperador de plantão pronunciou a primeira palavra, Bell interrompeu:

— Desligue imediatamente seu transmissor! Rigorosa interdição para todos os hipertransmissores! Aí vão as ordens resumidas para o comandante: a Good Hope foi perdida no sistema Vega, durante as lutas de nossos aliados ferrônios, habitantes de Ferrol, o oitavo planeta, contra os invasores de Topsid, um planeta a mais de oitocentos anos-luz da Terra. Em troca, conquistamos aos tópsidas uma enorme espaçonave de guerra, de origem arcônida. Os tópsidas são inimigos dos arcônidas há milênios, e dominam três pequenos sistemas solares nos limites do império arcônida. Sua verdadeira intenção era atacar a Terra, mas parece que suas informações eram falhas, e foram parar no extenso sistema Vega. Chegamos bem a tempo de intervir na luta. Isso, para saberem por que não voltamos a bordo da Good Hope.

“Agora as ordens: alertar os governos terrestres. Pousaremos em Galáxia daqui a quatro horas. Nossa nave é esférica e tem quase um quilômetro de diâmetro. Avisar a população terrestre, a fim de evitar a ocorrência de pânico. Deixar bem claro que a nave gigante não é tripulada por invasores, mas que se trata da nova nave de guerra da Terceira Potência. Isso é tudo. Desligue, não há mais necessidade de manter a comunicação aberta. Fim!”

Um homem entrara na central de comando. Media quase dois metros de altura, e, apesar ser evidentemente muito idoso, parecia jovem e disposto. Cabelos brancos encimavam a testa excepcionalmente alta; os olhos avermelhados tinham reflexos dourados.

Crest, último descendente da dinastia reinante em Árcon, o centro do distante império estelar, obrigado a realizar um pouso forçado na Lua há anos atrás, tornara-se aliado de Rhodan. Também ele tinha superado satisfatoriamente a transição.

— Só com esta nave, os tópsidas poderiam ter conquistado todo o sistema solar — disse Crest, com um ligeiro sorriso. Falara no idioma arcônida, que, graças ao aprendizado hipnopédico, Rhodan compreendia bem. — Tivemos muita sorte em conseguir nos apossar dela sem avariá-la.

— Até bombas atômicas têm seu lado bom! — interveio Bell, secamente.

Crest fitou-o, surpreso:

— Que quer dizer com isso?

— Por acaso existiriam mutantes se não tivessem ocorrido aquelas explosões atômicas na Terra? Gente capaz de ler pensamentos e atravessar metade do mundo num só pulo? Existiriam pessoas com dons telecinéticos? Afinal, as explosões atômicas nos revelaram que a mente possui capacidades latentes insuspeitadas, adormecidas há milhares de anos, e que despertaram de repente. E temos a bordo dezoito desses mutantes, sem os quais não estaríamos ocupando agora esta nave.

O sorriso de Crest acentuou-se:

— Seu raciocínio é convincente, Bell. Curvo-me a ele sem restrições — mais sério, prosseguiu: — Só espero que ele funcione igualmente bem em circunstâncias mais graves. Os tópsidas ainda não foram derrotados no sistema Vega, não se esqueça disso. De lá à Terra é um pulo de gato, como se diz em sua língua. Se não voltarmos a tempo...

— Ora, não se preocupe desnecessariamente, Crest! — interrompeu Rhodan, com um sorriso significativo. — Mandei pelo menos cinco mensagens radiofônicas de Vega à Terra, todas elas recebidas em Galáxia. Estou certo de que todas as minhas disposições foram cumpridas. Ao aterrissar, encontraremos uma tripulação devidamente treinada à nossa espera, a fim de ocupar a Stardust-III; e as esquadrilhas dos minicaças espaciais, mais velozes do que a luz, estarão prontas para entrar em ação. Dentro de poucos dias, semanas no máximo, varreremos os tópsidas para os confins do universo.

— Espero que não esteja enganado! — disse uma voz fria, vinda da porta.

Thora, a ex-comandante da expedição arcônida fracassada, entrara sem ser percebida. Também era de estatura elevada; os cabelos brancos formavam contraste estranho com a cútis levemente bronzeada. Nos olhos vermelho-dourados chamejava um misto de gélido menosprezo e silenciosa admiração. E era justamente aquele conflito de sentimentos que renovava sempre o interesse de Rhodan por ela.

Os dois tinham se aproximado bastante no decorrer dos últimos anos, porém jamais seria possível ultrapassar o imenso abismo posto entre ambos pelo tempo e pelo espaço. Eram milênios, e mais de trinta mil anos-luz. Porém Rhodan já se contentava em vê-la aceitar os homens como seres pensantes; e não como selvagens primitivos, merecendo ser destruídos, conforme ela julgava no início de suas relações. E, no entanto, Rhodan tinha plena consciência de que nova crise se aproximava. Pois Thora só tinha concordado em se aliar aos homens na esperança de obter, por intermédio deles, um meio de retornar a Árcon. E este meio surgira agora: com a Stardust-III Thora poderia realizar seu sonho.

— Não, não creio que me engane — respondeu Rhodan, encarando os luminosos olhos dourados. — Confesso que alimentava dúvidas quanto ao êxito do salto para a quinta dimensão. Mas deu tudo certo. O retorno será pelo mesmo processo; só que estaremos bem equipados. Os tópsidas não terão oportunidade de atacar a Terra. Nem sequer imaginam onde fica.

— No entanto, deve concordar que se encontra em situação muito pouco confortável, não é? — continuou Thora, com sua voz melodiosa, na qual se percebia uma leve animosidade. — Mal seu mundo se apresta a dar os primeiros passos vacilantes no cosmo, você se vê às voltas com os problemas mais inesperados. No decurso de poucos anos, o homem já deparou com quatro espécies diferentes de seres extraterrenos inteligentes. Conseguiram repelir invasores perigosos de seu planeta natal porque dispunham de nossos poderes. E agora Vega! Pela primeira vez na história, a Terra se imiscui na política interestelar, pisando, portanto, em território até então exclusivo dos arcônidas. Acha isso certo?

— Claro! — disse Rhodan, imperturbável. — Certíssimo!... Pode me dizer o que os degenerados arcônidas teriam feito em meu lugar? Vocês não conseguiram nem se despregar da fraca gravidade lunar quando se viram forçados a pousar nela com o cruzador avariado! A primeira nave espacial da Terra, um míssil experimental primitivo, propulsionado com combustível líquido, teve que ir resgatá-los. Jamais esqueça isso ao criticar as circunstâncias presentes. Sem mim, Thora, você estaria na Lua até hoje, olhando para padrões abstratos e sem sentido nas telas de televisão.

— Não devia falar desta maneira, Thora! — repreendeu Crest, colocando-lhe um braço sobre o ombro. — Rhodan e nós somos amigos e aliados, em luta contra um ambiente adverso. Ele nos ajudou, assim como nós o ajudamos. Se algum dia tornarmos a rever Árcon, o mérito pertencerá exclusivamente a Rhodan.

Por instantes Thora se manteve imóvel, depois baixou os olhos. Como tantas outras vezes, desistia de lutar contra Rhodan. A força daquele homem superava a sua. No entanto, não era apenas o raciocínio lógico que lhe dizia aquilo: havia outro sentimento em jogo.

Já estavam longe da órbita de Saturno. A base avançada de Titã não dera por eles; pelo menos era o que Rhodan esperava, para evitar sobressaltos desnecessários. Júpiter apareceu de um lado, desaparecendo logo abaixo do horizonte, no rastro da nave.

Só após cruzar a órbita de Marte a Stardust-III começou a reduzir drasticamente sua velocidade. Perry Rhodan preparava-se para pisar novamente na Terra.

Os primeiros contatos radiofônicos foram trocados. O coronel Freyt, substituto de Rhodan, na ausência deste, na direção suprema da Terceira Potência, confirmou o recebimento das mensagens hiper-radiofônicas emitidas em Vega. Comunicou igualmente que todas as instruções haviam sido executadas.

Os olhares de Rhodan e de Thora se cruzaram brevemente. Ele lhe fez um breve aceno, sem deixar transparecer sua sensação de triunfo. Bell, no entanto, foi menos discreto:

— Eu não dizia sempre que ia dar tudo certo?! — exclamou, convicto, batendo no ombro de Rhodan. — Quer que prepare o pessoal para o pouso?

— Sim, por favor — replicou Rhodan, alheio — encarregue-se disso.

Seus pensamentos já pairavam na Terra.

 

Na cidade de Galáxia, a movimentação era intensa.

A imensa capital da Terceira Potência, domínio de Rhodan na Terra, erguia-se junto ao lago salgado Goshun, no meio do deserto de Gobi. O território cuidadosamente isolado do mundo exterior era formado por um quadrado com duzentos quilômetros de lado. Em seu centro geométrico ficava a invisível cúpula energética, alimentada pelos inexaustíveis reatores arcônidas. Debaixo dela encontrava-se o ponto vital da nova nação: o gigantesco cérebro positrônico. Fora das zonas residencial e administrativa, bem isoladas, ficavam as instalações industriais, onde se atarefavam mais de cinqüenta mil especialistas. Sem aquele exército de infatigáveis robôs, seriam necessários cerca de quinhentos mil operários. A população humana de Galáxia somava duzentos e trinta mil habitantes, todos eles cuidadosamente selecionados.

A cidade contava ainda com dois aeroportos comuns e um espaçoporto, guardados por um grupo de robôs relativamente reduzido. Havia três esquadrilhas de caças espaciais, de fabricação terrena, prontos para entrar em ação; eram, ao todo, cento e sessenta e duas aeronaves de guerra supermodernas.

Quando a imensa esfera apontou no firmamento, até os iniciados chegaram a reter por instantes a respiração. Duma pequena bola, cujo volume aumentava rapidamente, ela se transformou num globo enorme que encobria o próprio sol. Um novo corpo celeste parecia ter surgido no céu, acima da Terceira Potência. A sombra do cruzador arcônida cobriu Galáxia.

A nave pairou durante alguns minutos por sobre a cúpula energética. Depois afastou-se lentamente, como um balão levado pelo vento, em direção do espaçoporto.

Perry Rhodan foi o primeiro a desembarcar; um homem isolado vinha ao seu encontro no velho e familiar solo da Terra. Era tão alto e esbelto quanto Rhodan, com os mesmos cabelos escuros, e aparentava relativa juventude. A fisionomia deixava entrever que aquele homem era dotado de um profundo e saudável senso de humor. Parando diante de Rhodan, estendeu-lhe a mão.

— Bem-vindo de volta à Terra, Rhodan! É um prazer tornar a vê-lo!

— Obrigado, coronel Freyt! — sorriu Rhodan. Porém logo seu rosto assumiu um ar sério: — Receio que o prazer não seja duradouro...

Freyt não ocultou sua consternação:

— Que quer dizer com isso?

Voltando-se, Rhodan apontou para a gigantesca massa de ligas metálicas desconhecidas que se erguia contra o horizonte, como um imenso arranha-céu.

— Ainda não me perguntou o que é isso, Freyt. Admiro seu autocontrole.

As rugas do coronel se acentuaram; sorrindo, respondeu:

— A curiosidade não consta entre minhas virtudes. Sei que vai me contar tudo em breve. Portanto, para que apressar as coisas?

— Isso mesmo! E eu estou tão ansioso por suas novas quanto você pelas minhas. Bell supervisiona o desembarque da tripulação, e sua condução à cidade. Eu sigo com você. A conferência será daqui a duas horas, sob a cúpula. Providencie para que todas as pessoas pertinentes estejam à mão, para consulta imediata, se for necessário. Diga-me só uma coisa, Freyt: está tudo em ordem?

— Na melhor das ordens! — assegurou Freyt, alegremente.

Os planadores já os aguardavam; Rhodan, Crest e Thora seguiram para o centro da cidade, onde a população os recebeu entusiasticamente.

Às duas horas até o início da conferência passaram voando. No salão de conferências já se encontravam à espera as figuras mais representativas da Terceira Potência, conforme era denominada a coalizão entre os terrestres e os arcônidas. Perry Rhodan abriu a sessão:

— Sensibiliza-me constatar que se alegram com minha volta. No entanto, quero comunicar desde logo que regressamos apenas para tornar a partir no mais curto prazo possível, devidamente equipados. Antes de dar um resumo das experiências pelas quais passamos, gostaria que o coronel Freyt apresentasse seu comunicado. Pigarreando, Freyt começou:

— Recebemos com clareza as mensagens radiofônicas enviadas de Vega; portanto, estamos a par dos acontecimentos. Foi dado início imediato ao treinamento dos duzentos e cinqüenta especialistas do corpo de guarda, conforme determinado; a tarefa foi levada a cabo com êxito. Com isso, a nova tripulação requisitada para a nave se encontra à disposição. Da mesma forma damos por concluída a formação dos mutantes em Vênus. Com exceção de Nomo Yatushin, cujas capacidades telepáticas ainda não correspondem às nossas exigências, o corpo de mutantes está pronto para entrar em ação. Já dei ordem para transferir todos eles de Vênus para a Terra.

— Muito bem! — exclamou Rhodan, satisfeito. — Tripulação e mutantes a postos; e os robôs?

— Alguns deles foram trazidos do cruzador arcônida descido na Lua. Trata-se, principalmente, de consertadores e atendentes. Não sei se terá aproveitamento para eles...

— Mas claro, coronel! A nova nave é imensa. Aliás, em que ponto está a construção de nossos veículos espaciais?

— Necessitamos de mais um ano para aprontar o cruzador que está sendo construído segundo os planos arcônidas. Só que não chegará nem aos pés da esfera que trouxe de Vega, em tamanho...

— Uma nave e tanto, não é? — interrompeu Bell, envaidecido, como se ele próprio a tivesse planejado e construído.

Sem se deixar perturbar, Rhodan prosseguiu no metódico interrogatório:

— E quanto à Terra, que temos de novo? Como vai a atividade política? Temos finalmente um governo mundial?

O coronel Freyt sacudiu lentamente a cabeça:

— Lamentavelmente não, senhor. Não se pode esperar que a tradição de milênios seja anulada em poucos anos. Com as armas recebidas dos arcônidas, você conseguiu evitar uma guerra atômica e unificar as nações do mundo. O que representa um grande passo avante. Porém ainda é cedo para um governo mundial. Em troca, sucedeu algo que considero de importância quase equivalente: Allan D. Mercant conseguiu reunir, num só, todos os serviços secretos e de defesa da Terra. Foi fundada a FDT, a Federação de Defesa da Terra.

Allan D. Mercant era chefe do Conselho Internacional de Defesa, o serviço de defesa ocidental, e, portanto, um dos mais poderosos homens do mundo livre. Simpatizara com Rhodan, e, levado pela lógica, aliara-se a ele.

— Bem, já é um progresso — concedeu Rhodan. — Vamos agora aos meus planos. Acabamos envolvidos, no sistema planetário de Vega, na luta dos habitantes nativos contra um povo de invasores. Os tópsidas atacantes, nitidamente descendentes de répteis, conseguiram dominar o oitavo planeta do sistema, e radicar-se nele; os ferrônios fugiram para o nono planeta, que chamam de Rofus. Nós nos apoderamos da nave, prometendo retornar. John Marshall e o Dr. Haggard ficaram em Iridul, a lua de gelo.

— Por que deixou estes dois homens lá? — indagou Freyt, admirado.

— Instalamos em Iridul uma pequena base avançada; eles ficaram vigiando o hipertransmissor da Good Hope, que não pode mais ser reparada. Caso os tópsidas ameacem a Terra, seremos imediatamente avisados. Julguei tal providência imprescindível. Os dois homens contam com a assistência de um grupo de ferrônios, e estão em total segurança. Moram numa caverna de gelo enterrada na montanha, e estão munidos de todo o recurso necessário. Em tamanho e condições físicas, Iridul lembra Plutão.

— E tenciona retornar a Vega?

— Não me resta outra alternativa. Tanto no nosso próprio interesse, quanto no dos ferrônios. Os tópsidas podem resolver atacar a Terra; até mesmo amanhã, quem sabe? Afinal, o que representam meros vinte e sete anos-luz para seres habituados a vôos interestelares? Portanto, precisamos nos antecipar a eles. É mais um motivo para me levar a desejar ver a situação da Terra estabilizada, a fim de ter a retaguarda garantida. Expulsaremos os invasores tópsidas do sistema Vega antes que pensem seriamente em procurar a posição galáctica da Terra. Eles parecem saber que ela se localiza neste setor da Via Láctea.

— Quando parte? — perguntou Freyt, rendendo-se aos argumentos de Rhodan.

— Assim que a tripulação se familiarizar com o manejo da nave. Supervisionarei o treinamento pessoalmente. Bell receberá o comando geral. E mais uma coisa: trouxemos uma série de filmes das lutas travadas, e fotografias dos invasores. Gostaria que mandassem fazer imediatamente duzentas cópias de tudo, para distribuição no mundo inteiro. O comentário será feito por mim. Estou certo de que o documentário da guerra interplanetária vai causar impacto sobre a população terrestre.

 

O efeito superou todas as expectativas de Rhodan. Em todas as grandes cidades do mundo, a população exigia em massa a unificação definitiva das nações terrestres. Perry Rhodan era aclamado como o libertador da humanidade, e foi oficialmente reabilitado pelos governos do bloco ocidental. Sua transgressão — usar os poderosos recursos tecnológicos dos arcônidas para estabelecer uma nova nação neutra, em vez de entregá-los à Terra em geral — foi perdoada e esquecida. Rhodan sabia que agora podia contar com o apoio do mundo inteiro.

No entanto, lhe sobrou pouco tempo para cuidar dos detalhes da vitória. A missão que o esperava exigia toda sua capacidade de concentração. Bell treinava da manhã à noite os trezentos homens da tripulação, exercitando-os até a exaustão. Porém ao cabo de onze dias, declarou a Stardust-III pronta para entrar em ação; os homens seriam capazes de executar toda e qualquer tarefa a bordo de olhos fechados.

Quatro das naves auxiliares ficariam na Terra, a fim de assegurar a possibilidade de reforços, em caso de emergência. Na Stardust-III havia espaço suficiente para duas esquadrilhas de caças — cento e oito ultra-rápidas e supermodernas máquinas de guerra. O major Deringhouse e o major Nyssen seriam os respectivos comandantes. As mininaves espaciais, em forma de torpedo, capazes de acelerar em ritmo incrível, podiam atingir a velocidade da luz em dez minutos.

Perry Rhodan mandou fazer a revista final. Apesar de seguro de si, Bell se sentia nervoso. Mandou o pessoal formar diante da nave gigante; enquanto aguardava a chegada de Rhodan, se preocupava com mil ninharias sem importância, como botões soltos de uniforme, e botas empoeiradas. O major Deringhouse e o major Nyssen se conservavam em forma, ao lado de seus pilotos.

Cônscio de sua importância, Bell elevou a voz retumbante em seguidas ordens de comando. Os tripulantes perfilados assumiram rígida postura militar.

— Olhaaar à direita! — gritou Bell, pondo-se em marcha na direção do carro do qual desembarcavam Rhodan, Thora e Crest. Estacou surpreso, pois não contava com a presença de Thora. E o olhar da bela e desdenhosa mulher arcônida tinha o dom de perturbá-lo.

Os cantos da boca de Rhodan se repuxaram num leve sorriso, ao perceber a expressão de desalento de Bell. E decidiu acompanhar o jogo. Caminhou solenemente ao encontro de seu ministro da segurança, parando a alguns metros dele.

Bell sentiu o olhar dos trezentos homens cravados em sua nuca. Thora mantinha a mesma atitude fria e expectante. Crest parecia se divertir enormemente. Apenas Rhodan se mostrava sério e quase cerimonioso.

Bell empertigou-se. Não era homem de se descontrolar por causa de uma mulher. Assumindo a postura regulamentar, fez uma continência impecável e comunicou a Rhodan:

— Tripulação da nave de guerra a postos, senhor, pronta para entrar em ação!

Examinando Bell com um olhar cético, Rhodan avançou e fechou um botão desabotoado do uniforme, com ar de censura. Bell suportou estoicamente a humilhação. Bem que algum dos homens poderia ter lhe chamado a atenção para o pequenino detalhe!

— Obrigado! — disse Rhodan aos tripulantes formados. — À vontade...

Passou para a mão direita o embrulho que trazia sob o braço esquerdo.

— Conforme o senhor ministro da segurança acaba de informar, encontram-se prontos para a ação em Vega. Temos uma tarefa árdua diante de nós, tarefa que não sabemos se poderá ser cumprida. No entanto, de nosso êxito dependerá o destino da Terra. Caso nossos adversários ataquem o sistema solar, ela estará perdida. Vocês conhecem agora essa nave fabulosa, e aprenderam a manejá-la. Sabem que ela dispõe de armamento capaz de arrasar planetas inteiros. Com ela, coloco um poder inimaginável em suas mãos. É meu desejo que este poder só seja usado em prol da paz e das causas justas. No entanto, é preciso não esquecer que muitas vezes a guerra visa justamente a obtenção da paz. E agora, gostaria de solicitar à arcônida Thora que batizasse nossa nave.

Do embrulho aberto, Rhodan retirou uma garrafa de champanha. Um tanto pálida, Thora se adiantou para recebê-la. Distante deles, Crest contemplava fixamente a gigantesca esfera. Lembrando, talvez, que ela pertencera outrora a gente de sua raça, e que passava naquele momento à posse definitiva de seres terrestres.

Com passos curtos e vagarosos, Thora se encaminhou para a espaçonave, detendo-se diante dela. Ergueu o braço direito, e, após breve hesitação, lançou a garrafa com toda a força contra o casco metálico. Em seguida, a voz fria pronunciou no silêncio generalizado:

— Batizo-te com o nome de Stardust-III.

Rhodan foi ao encontro dela e lhe estendeu a mão. Era o único a compreender o quanto era duro para a altiva arcônida dar um nome terrestre à nave. Durante um longo momento, as duas mãos permaneceram entrelaçadas. Depois Thora se virou bruscamente, dirigindo-se lentamente de volta para o carro que aguardava.

Rhodan percebeu então que acabava de lançar a segunda pedra fundamental para a constituição do futuro domínio estelar da Humanidade, domínio que algum dia substituiria o império arcônida.

Voltou-se para Bell:

— Quero que a Stardust-III realize primeiro um vôo de experiência. Faremos um exercício simulado de luta no cinturão dos asteróides. Crest e eu estaremos presentes na condição de observadores. Temos que estar de volta hoje à noite. As bases avançadas em Vênus, Titã e Plutão já foram avisadas.

A tripulação saiu de forma um tanto hesitante, mas depois tudo correu celeremente. Os elevadores antigravitacionais conduziram os homens aos respectivos postos, corredores rolantes se puseram em movimento, portas blindadas se abriram e fecharam, comportas de vedação foram esvaziadas de ar, geradores zumbiam, e por fim a escotilha de entrada se cerrou atrás de Crest e Rhodan.

A Stardust-III não tardou a decolar.

Diante do intercom, Bell distribuía ordens. Espalhados pela nave, oficiais subordinados as recebiam através de aparelhos idênticos. Minúsculas telas de televisão identificavam cada um deles. Nos hangares, os pilotos embarcavam em seus aviões de caça. Fechadas as cabinas, o ar começou a ser expelido dos hangares.

Ainda enquanto a Terra mergulhava como uma pedra no oceano de ar cristalino, para ser encoberta logo após pelo negrume do espaço cósmico, Rhodan deu suas instruções:

— Suponhamos que Júpiter foi ocupado por invasores, que estabeleceram patrulhas avançadas nos asteróides. Plano do adversário: ataque à Terra. Nosso plano: aniquilar as patrulhas avançadas, e contra-atacar em Júpiter — lançando um olhar a Bell, concluiu: — passar à execução!

— É pra já! — exclamou Bell, despejando uma torrente de ordens nos microfones. Depois, enquanto a Stardust-III alcançava, em dez minutos, a velocidade da luz em incrível aceleração, recostou-se em sua poltrona. De braços cruzados, perguntou ironicamente: — Sua Excelência deseja também que desintegremos Júpiter?

— Quando nos defrontarmos com os tópsidas você certamente vai perder a vontade de fazer piadinhas bobas, Bell! — replicou Rhodan. — Como é? Que faz o pessoal neste momento?

O sorriso de Bell apagou-se.

— Não estou brincando, Perry! No curto espaço de uma hora, nossos caças transformariam alguns dos asteróides em nuvens de gases incandescentes, aniquilando, portanto qualquer inimigo potencialmente estabelecido neles. Depois rumariam para Júpiter, cortando o caminho de qualquer adversário com intenções de sair do planeta. Com a Stardust-III poderemos fazer da superfície dele um caldeirão em ebulição.

— Não é preciso, Bell... Não se deixe perturbar, sim?

Bell nem pensava nisso. Estava em seu elemento. Com uma destreza que ninguém esperara dele. Pois mesmo com a pilotagem entregue ao cérebro eletrônico automático, a iniciativa dependia das decisões humanas; no caso, Bell.

A Stardust-III avançou para o cinturão dos asteróides e reduziu a velocidade. O primeiro esquadrão de caça deixou os hangares, espalhando-se pelo espaço. Em comunicação direta com Rhodan, Deringhouse dava ordens para atacar instantaneamente os alvos imaginários que lhe iam sendo apontados. Rhodan acompanhava as operações nas telas. Crest mantinha-se ao seu lado, calado. Nos olhos dourados ardia um brilho indisfarçável, porém gesto algum revelava o conteúdo de seus pensamentos. Apenas Rhodan seria capaz de adivinhar o que se passava na mente do sábio arcônida.

Para encerrar as manobras, a Stardust-III sobrevoou celeremente, à baixa altura, a superfície morta de Júpiter, alvejando os objetivos que Rhodan apontava ao acaso. Áreas cobertas de gelo transformavam-se em fumegantes mares de lava em poucos segundos. Os caças de Deringhouse realizaram rápidas incursões às luas interiores, comunicando o suposto aniquilamento de tropas imaginárias ali estacionadas.

Rhodan colocou a mão direita no ombro de Bell:

— Basta! Pode cancelar o resto das manobras. Dou-me por satisfeito. Creio que podemos retornar tranqüilamente para o sistema Vega agora. A perda da Good Hope foi mil vezes compensada. Os tópsidas vão ter que se precaver...

Pela primeira vez Crest rompeu seu silêncio.

— Seria facílimo para vocês arrasarem os invasores — disse ele, pensativo — porém eu não o recomendaria. Algumas naves escaparão, inevitavelmente, levando as novas do ocorrido até Topsid. E existem armas para se contrapor mesmo à mais bem armada espaçonave. Os tópsidas planejariam vingança, e algum dia voltariam com reforços. O mais indicado seria entrar num entendimento com eles.

— Um tratado de paz com as lagartixas?! — reclamou Bell.

— Por que não? As raças inteligentes do Universo possuem formas externas diversas, sem serem melhores ou piores por isso. Os arcônidas têm alianças com seres semelhantes a aranhas, e seus melhores amigos pertencem a uma raça que vive nos mares de um mundo aquático. Não, meu caro, a forma orgânica pouco importa; o que conta é o caráter.

— E os tópsidas lá têm caráter?

— Qualquer ser possui caráter — afirmou Crest, com seriedade. — Às vezes ele é bom, outras bastante ruim. É nisto que reside a diferença.

— E o que deveríamos fazer? — perguntou Rhodan, interessado. — Propor-lhes um tratado de paz?

Crest deu de ombros.

— Falemos nisso mais tarde; quando estivermos frente a frente com os tópsidas. Talvez depois de uma derrota eles estejam dispostos a negociar.

— Responda-me mais uma pergunta, Crest — disse Rhodan, encarando-o com firmeza. — Que acha de meu pessoal? Crê que vou poder resistir a um conflito interestelar com esta tripulação?

— Esteja tranqüilo — replicou Crest, se esforçando para não deixar transparecer admiração exagerada em seu olhar. — O que acabei de presenciar é um sonho do longínquo passado arcônida. Nós éramos assim quando começamos a construir o Império Galático. Mas atualmente...

O arcônida calou-se, abatido; mas logo voltou a sorrir, e continuou corajosamente:

— Vocês bem poderão vir a se tornar descendentes diretos dos antigos arcônidas!

Enquanto Bell emitia as ordens para o regresso dos caças, Rhodan respondeu sonhadoramente:

— Sim, em sentido figurado talvez sejamos mesmo descendentes dos arcônidas...

 

Em torno do sol Vega gravitavam quarenta e dois planetas; apenas no oitavo surgira vida inteligente. Os ferrônios eram de estatura baixa, raramente ultrapassando a altura de um metro e sessenta. Os olhos miúdos ficavam ocultos debaixo da testa muito saliente. Os cabelos cor de cobre formavam contraste vistoso com a pele azul-clara — conseqüência da radiação do sol Vega. As bocas muito pequenas faziam-nos parecer inocentes e inofensivos como crianças. Ferrol, seu planeta nativo, possuía clima tropical quente, com gravidade equivalente a 1,4 g. Neste ponto, a estatura baixa favorecia os ferrônios.

Porém muitos deles haviam sido forçados a abandonar sua pátria quando os invasores ocuparam Ferrol, refugiando-se no planeta-colônia Rofus. Instalados nele, os ferrônios aguardavam com impaciência o regresso de seus libertadores, os arcônidas aparecidos tão inesperadamente, e em cujas mãos os tópsidas haviam sofrido humilhante derrota.

Os ferrônios possuíam transmissores de matéria pentadimensionais, com os quais se podia transpor distâncias imensas. Sua atividade espacial, no entanto, era primária, pois não dominavam a matemática de quinta dimensão. Esta flagrante contradição dera muito o que pensar a Rhodan.

O vigésimo oitavo planeta do sistema Vega era contornado por uma lua de gelo. A primitiva atmosfera se sedimentara em época imemorial, transformando o satélite num deserto gelado, com montanhas enormes. Nenhum ser vivo poderia sobreviver naquele ambiente adverso, mas Iridul não estava deserto.

Bem escondida no seio de uma montanha, existia uma vasta caverna, cujas paredes lisas ainda mostravam nitidamente os vestígios da fusão recente do gelo. Um espaçoso túnel conduzia até a superfície do satélite, provido de uma comporta que permitia a Marshall e Haggard levantar vôo, no momento que desejassem, com um dos dois caças, a fim de realizar vôos de reconhecimento. A base do hipertransmissor, muito bem camuflado, assentava sobre o gelo eterno. Logo ao lado ficavam as acomodações construídas em matéria plástica, onde se abrigavam os dois homens e o grupo de ferrônios. Geradores forneciam luz e aquecimento, instalações de renovação de ar tornavam a vida debaixo da capa de gelo suportável.

John Marshall, um telepata natural, membro do Exército de Mutantes da Terceira Potência, se preparava para uma expedição exploradora. Haggard, famoso seu patrício australiano, auxiliava-o.

— Até que sinto falta de Bell! — disse John, em tom melancólico. — Vai ser bom rever aquela cara de bolacha.

— É, a gente aceita qualquer coisa para fugir da solidão — disse o Dr. Haggard, compreensivamente. — Quando Bell puser os pés aqui, Rhodan, Crest e Thora também não devem estar longe. E sou capaz de afirmar que esses três constituem o fundamento psicológico de sua saudade por Bell.

— Acertou, doutor! Principalmente Thora... — confessou John, ajustando o transmissor do capacete. — É uma bela mulher!

— Mais fria do que o gelo de Iridul! — replicou Haggard, sacudindo-se. — Pensa acaso em...?

— Ora, que nada! Não pretendo invadir a seara de Rhodan.

Marshall saltou para a cabina do caça e fechou a portinhola. Em silêncio, Haggard se encaminhou para o painel de controle junto ao hipertransmissor e baixou uma alavanca. Simultaneamente ligou o transmissor radiofônico comum, a fim de poder ficar em comunicação com o piloto.

— Pronto? — perguntou John. Haggard acenou com a cabeça:

— Sim, pode largar. Boa sorte!

— Obrigado.

O caça deslisou sobre patins antigravitacionais, penetrando no túnel agora intensamente iluminado. A comporta por trás do avião se fechou. Bombas entraram em ação e o portão de saída se escancarou. John acionou a alavanca de partida e o pequeno aparelho se lançou ao encontro da desmaiada luz solar de Vega. Na minúscula cabina havia espaço para apenas um homem se instalar com relativo conforto.

Vega estava longe demais para fazer cintilar mais vivamente os cristais de gelo que recobriam o pequeno corpo celeste. As extensas superfícies nevadas só refletiam a luz de Vega devido à total ausência de atmosfera. As sombras se destacavam nítidas, sem transição marcada entre luz e treva.

John ganhou altura, porém ainda não acelerou. Elevou-se vagarosamente no firmamento constelado, apreciando o espetáculo. Procurava com o olhar determinada constelação muito sua conhecida; não tardou a encontrá-la. Os astros estavam um pouco fora da posição costumeira, e uma estrela nova brilhava fracamente no meio da configuração, com luz amarelada — o Sol. Ele estava a vinte e sete anos-luz dali. John começou a meditar: quando os raios solares que via agora haviam iniciado seu longo e demorado percurso, ele tinha quatro anos de idade. Tinha se adiantado à luz do sol, e naquele momento tornava a encontrá-la.

“Já vi esta mesma luz três vezes agora”, matutava John. “Será que se trata mesmo de fato insólito e único? Será que podemos enxergar a mesma luz diversas vezes?”

Não teve tempo de aprofundar mais suas cogitações filosóficas, que jamais o haviam levado a resultados palpáveis, pois algo lhe chamou a atenção. A princípio não identificou claramente do que se tratava, mas seu cérebro alertava: estrela nenhuma pode se deslocar tão depressa; muito menos planetas. E no espaço não existem meteoros incandescentes.

Seria uma espaçonave?

Manobrou o caça, executando uma curva fechada, e acelerou. Não temia ataque algum, pois sabia que podia acelerar muito mais depressa do que os tópsidas. Antes que pudessem sequer chegar perto, ele estaria longe e em segurança. Mas era bem possível que os invasores já estivessem refeitos da derrota sofrida. E, mesmo amargando a perda do grande cruzador esférico, ainda dispunham de uma frota aguerrida de espaçonaves mais velozes do que a luz.

Ali estava o objeto de novo!

John ligou o hipersensor, que emitiu imediatamente suas ondas reflexoras. Segundos após, a proa do caça se desviou ligeiramente para um lado, apontando em linha reta para a estrela ambulante.

Realmente, se tratava de uma nave tópsida. O amplificador projetou seu contorno nas telas. John reconheceu de imediato a excrescência bulbosa no meio da fuselagem longa e delgada — o modelo típico das naves tópsidas.

John raciocinava a jato. Não seria nada apropriado se meter numa escaramuça, já que Rhodan proibira terminantemente ataques aos tópsidas. A ordem era se manter à distância deles, enquanto ele próprio não chegasse com a Stardust-III e a tripulação necessária.

Mas a simples constatação de que os tópsidas voltavam à atividade já era bastante interessante. Pareciam mesmo dispostos a firmar sua posição no sistema

Vega, preocupando-se agora com a exploração dos planetas mais distantes. Mas não havia o menor perigo de que Iridul lhes parecesse suspeita.

A contragosto John tornou a alterar o rumo, e enviou um breve comunicado a Haggard: por enquanto seria prudente ninguém deixar o abrigo da caverna protetora. Depois acelerou ao máximo, a fim de atingir o mais depressa possível a velocidade da luz. Senão, em vista das proporções colossais daquele sistema, levaria dias para chegar ao nono planeta.

Rofus lembrava muito a Terra, só que lhe faltavam as grandes cidades. Os ferrônios tinham colonizado o planeta há bastante tempo, e agora servia-lhes de bem-vindo refúgio. No entanto, grande parte do povo tinha permanecido em Ferrol, principalmente os sichas, tribo ainda semi-selvagem e muito corajosa. Viviam nas montanhas do planeta-mãe, e causavam grandes dificuldades aos tópsidas.

John ultrapassou a órbita dos planetas, e reduziu a velocidade ao cruzar com o décimo primeiro. Dentro de minutos, avistou Rofus, o nono planeta. Contornou-o por diversas vezes, a fim de se certificar da ausência de naves-espiãs inimigas nas redondezas. Depois aterrizou em Chuguinor, a capital.

Não contava com manifestações especiais na chegada, pois quase diariamente ele próprio ou Haggard vinham visitar o Thort de Ferrol. O soberano exilado residia, com todos os seus ministros e colaboradores, em Chuguinor; através dos transmissores, estava em contato constante com agentes na pátria ocupada pelo invasor. As comunicações radiofônicas haviam sido suspensas, e as espaçonaves não deixavam os esconderijos subterrâneos onde se ocultavam. Porém, súditos ferrônios e cápsulas contendo notícias viajavam continuamente entre o oitavo e o nono planeta, baseados em princípios similares aos usados pela Stardust-III ao executar seu salto espacial. No entanto, e John sabia disso, ninguém conhecia o segredo daqueles aparelhos de teleportação.

Desta vez John deparou com um ambiente diverso. Ao saltar do caça, sentiu virtualmente que pairavam novidades no ar. Cerrando a portinhola da cabina, ligou o campo repulsor eletrônico. Ninguém poderia se aproximar do pequeno avião sem levar um forte choque. O campo repulsor só reagia diante do padrão cerebral de Marshall.

As ruas da cidade estavam agitadas. John notou que muitos passantes carregavam grandes fardos, mas em vão tentou sondar telepaticamente o que acontecia. As impressões que captava eram tão confusas que não conseguia interpretá-las. Pareceu-lhe reconhecer medo e terror generalizado, e começou a ficar preocupado. O que teria acontecido?

Apressou-se a chegar à residência do Thort. Foi admitido imediatamente na presença do regente dos ferrônios.

O homem baixo, agora totalmente despido de sua dignidade de governante, segurou com ar suplicante os fortes punhos de John. Este era capaz de compreender as palavras do Thort sem precisar recorrer ao aparelho tradutor, graças aos seus dons telepáticos; podia também lhe responder de maneira inteligível.

— Senhor, corremos grave perigo! — começou o ferrônio, desesperado. — Caso o grande Rhodan não venha logo nos socorrer, estaremos todos perdidos!

— Rhodan já está a caminho — mentiu John, a fim de serenar o Thort. — Que aconteceu? A julgar por sua atitude, os tópsidas devem ter desencadeado um ataque...

— Pois é o que pode ocorrer a qualquer instante! Até agora eles se conservavam tranqüilamente em Ferrol; porém se avolumam as informações sobre seus preparativos de conquistar igualmente Rofus, este mundo aqui.

— Tem provas concretas disso? — perguntou John.

— Sim, tenho. Meus agentes informaram que a frota das lagartixas se apresta para atacar Rofus. Em Ferrol, muitos ferrônios foram aprisionados, jogados em cárceres, e até assassinados. Os tópsidas se recuperaram do impacto causado pelo aparecimento de Perry Rhodan. E agora tramam vingança! Nós seremos obrigados a pagar por algo que não cometemos. Os arcônidas têm obrigação de nos ajudar!

Aquelas palavras já não refletiam a gratidão pelo apoio obtido anteriormente, mas John podia compreender o desespero do Thort.

— Tem dados sobre a data provável da invasão iminente?

— Não, mas conto com ela todo dia. E só dispomos de uma frota desfalcada para enfrentar os tópsidas.

— É, não adiantaria grande coisa — concordou John, pensativo.

Percebeu que tinha chegado o momento de agir. Rhodan o encarregara da vigilância naquele posto avançado, com a missão de observar o comportamento dos tópsidas. Uma vez que eles voltavam à atividade com renovada animação, era preciso dar alarma imediato. Rhodan abreviaria a instrução de seu pessoal, decolando sem demora. John não podia calcular quanto tempo ele precisaria para abastecer a nave e ultimar os preparativos para a decolagem, mas julgava que alguns dias seriam suficientes. Seu dever era enviar imediatamente a mensagem combinada.

— Necessito de uma prova concreta, Thort, para convocar Rhodan com tal urgência.

— Não lhe basta saber que as lagartixas se mexem? Até agora estavam quietas em Ferrol. Mas agora começam a fazer vôos regulares de patrulha através do sistema inteiro.

O Thort falava a verdade. John tinha avistado pessoalmente uma das naves de patrulha, nas proximidades do vigésimo oitavo planeta. Acenando com a cabeça, levantou-se.

— Pois bem, Thort, vou me comunicar com Rhodan agora mesmo, pedindo que se apresse. Mantenha sua frota em prontidão. É provável que tenha que repelir por conta própria o primeiro ataque dos tópsidas. Organize grupos de combatentes que possam ser enviados para Ferrol através dos transmissores, a fim de criar confusão na retaguarda do inimigo. Quando Rhodan chegar, daremos o golpe decisivo contra eles. Pode crer que os tópsidas serão expulsos do sistema planetário de Vega.

— Espero que então ainda estejamos vivos! — suspirou o soberano, pouco convencido. Mas logo empertigou o corpo baixo e atarracado; a minúscula boca se contraiu, imprimindo ao rosto um ar de decisão. — Queremos e precisamos bater os tópsidas! Quero libertar o povo oprimido de Ferrol. Muitos de meus súditos vieram se refugiar em Rofus, porém os melhores deles ficaram para trás!

Minutos após, John se dirigia de volta para seu caça. Ia a pé, a fim de colher mais algumas informações, e meditar sobre a conversa tida com o Thort. Nunca conseguiria entender direito aqueles ferrônios! Lançando-se na espaçonáutica, haviam parado nos passos iniciais. E sua ambição não fora além da colonização do sétimo e do nono planeta. Não obstante, possuíam um sistema de desmaterializar pessoas ou objetos, transportando-os a longas distâncias. Através da quinta dimensão, sem gasto de tempo. O que implicava no conhecimento de princípios tecnológicos e matemáticos evidentemente ignorados pelos ferrônios. John tinha certeza de que eles nem seriam capazes de construir um daqueles transmissores. A origem destes se perdia em época imemorial, herança de um período áureo definitivamente desaparecido. Ou teriam os ferrônios mantido outrora contato com uma civilização superior, fato de que agora ninguém mais se recordava?

Sem conseguir chegar a conclusão alguma, John desistiu de suas cogitações. Sabia que Rhodan também havia tentado em vão analisar aquele mesmo problema.

Talvez ele representasse a chave para a solução de um mistério, cuja revelação significaria resposta para inúmeras perguntas.

Agora compreendia melhor as intenções dos ferrônios apressados que cruzavam com ele. Estavam fugindo, abandonando a capital ameaçada, para ir se abrigar nas montanhas; lá estariam a salvo dos invasores tópsidas.

John encontrou seu caça conforme o deixara. Desligando o campo repulsor, decolou imediatamente. Assim que se viu fora da atmosfera de Rofus, imprimiu ao aparelho a velocidade da luz, e rumou para o vigésimo oitavo planeta. Vega decresceu rapidamente, e seu brilho amorteceu.

Uma única vez os aparelhos de detecção registraram o aparecimento de outra espaçonave; porém ela passou tão longe que John não conseguiu fixar sua imagem na tela. Mas estava certo de que se tratava de uma nave-espiã tópsida.

Circulou cautelosamente em torno do vigésimo oitavo planeta, descrevendo diversas órbitas, antes de pousar em Iridul, seu satélite. O Dr. Haggard já estava à espera, e abriu a comporta. Dois minutos depois o piloto saltava da cabina do caça. Batendo no ombro de Haggard, disse:

— Precisamos mandar a mensagem radiofônica sem demora. Os tópsidas estão em atividade. Parece-me que chegou a hora de enxotá-los deste sistema planetário.

— Rhodan deu ordem para usar o hipertransmissor só em caso de emergência, pois os sinais poderiam ser interceptados, revelando nossa posição. Felizmente, ninguém será capaz de determinar o destinatário da emissão. A localização da Terra continuará sendo segredo.

— Isto é que importa. Prepare tudo, vou redigir o texto. Terá que ser breve, porém conter todo o essencial.

— Terei tudo pronto em dez minutos — concordou Haggard, serenamente. — Aliás, há cerca de duas horas nosso detector acusou a presença de uma nave tópsida. Ela sobrevoava, a pouca altura, Iridul, como se estivesse procurando algo. Será que este fato tem alguma relação com os que observou?

Só a custo John ocultou sua consternação. No entanto, sua voz era calma quando respondeu:

— E muito!... Apresse-se, não podemos desperdiçar um só instante. Espiões inimigos costumam ser o prenuncio inócuo de ocorrências bastante graves. Os tópsidas tencionam se apossar de todo o sistema Vega.

Haggard ligou a corrente do transmissor. Na ampla caverna começou a fazer-se ouvir um zumbido surdo. Luzes se acenderam, e o gigantesco transmissor vibrou de alto a baixo. Suas ondas alcançariam a Terra sem dispêndio de tempo; um ano-luz ou vinte e sete deles não lhe faziam a menor diferença. Nem trinta e dois mil anos-luz, e nisto residia o problema... No Universo inteiro, receptores similares captariam os sinais emitidos. Através de detectores, se poderia determinar que as transmissões partiam do sistema Vega, um sistema não pertencente ao Império Galático. E, por mera curiosidade, seres estranhos poderiam querer averiguar que espécie de raça ultrapassara o cume do desenvolvimento tecnológico comum, se aventurando a penetrar na quinta dimensão.

Uma lâmpada vermelha se acendeu.

— Pronto! — disse Haggard, apontando para a exígua cabina, na qual cabia apenas uma pessoa. — Entre, e dê seu recado. A mensagem será repetida automaticamente. Limitei o tempo de transmissão em trinta segundos. Chega?

— Creio que sim — disse John, com um sorriso nervoso. — Sabe, esta cabina sempre me faz lembrar os transmissores de matéria dos ferrônios; são bem semelhantes. Lá despacham gente através do hiperespaço, enquanto nós enviamos ondas de rádio. Minha impressão é que vou tocar em algum controle errado, em vez de minhas palavras quem vai dar com os costados na Terra sou eu.

Para surpresa de John, Haggard não encarou aquilo como piada.

— Isso não é tão impossível quanto julga, John. A única incógnita seria adivinhar em que lugar você se rematerializaria, pois existem inúmeras estações receptoras espalhadas pelo Universo.

Empalidecendo ligeiramente, John entrou na cabina e fechou a porta com ar decidido. O zumbido aumentou de volume e ele começou a falar.

 

Perry Rhodan recebeu a mensagem pouco antes da decolagem. O coronel Freyt, que já tinha se retirado da Stardust-III, voltou para bordo apressadamente, trazendo o texto. A notícia não trazia alteração alguma nos fatos conhecidos até então, mas contribuía para firmar o propósito de Rhodan e de sua equipe de definir no mais curto prazo possível a situação em Vega.

— Obrigado, coronel! Se tudo correr de acordo com os planos, estaremos de volta dentro de algumas semanas. Procure neste meio tempo obter a formação de um governo mundial efetivo. O tempo da diferenciação racial passou; o homem só poderá aspirar à sucessão dos arcônidas quando se tornar terrano. Compreendeu o que quero dizer?

— Sem dúvida — respondeu Freyt, gravemente. — Até a volta, e boa sorte!

Rhodan ficou contemplando o amigo que se afastava. Bell, sentado ao seu lado, observou, com rugas na testa:

— Acho bom Crest não tomar conhecimento de suas intenções tão cedo, Rhodan. Esse negócio de suceder os arcônidas, quero dizer... Ele poderia ficar chateado.

No entanto, para sua surpresa, Rhodan sorriu.

— Não, meu caro, muito pelo contrário. Pois alimenta a secreta ambição de que nos tornemos substitutos dos arcônidas no governo do Império Galático. Ele tem plena consciência de que, sem nós, todo seu poderio entraria em colapso total muito brevemente. Mas deixemos o futuro para quando sua hora chegar. Prontos para largar?

— Claro! Tudo em ordem.

— Pois então, vamos! Cada instante é precioso. A mensagem vinda de Iridul é bem alarmante. Os tópsidas se preparam para atacar Rofus. Temos que nos antecipar a eles.

— Nosso Exército de Mutantes vai lhes infernizar a vida! — prometeu Bell, enquanto manejava os controles. Ainda antes das telas esquentarem, a enorme porta de entrada da Stardust-III foi fechada automaticamente.

Imóvel na pista, o coronel Freyt viu a gigantesca esfera espacial se erguer silenciosamente, e disparar para o alto como um petardo. Segundos após, ela desaparecia de vista. Suspirando, ele tomou o planador que o conduziria de volta a Galáxia.

Tinha diante de si uma tarefa da maior responsabilidade.

 

Desta vez, a transição não implicava em risco algum. A nave deslizou para o hiperespaço, atravessou a quinta dimensão, e se rematerializou na orla do imenso sistema planetário de Vega. Por meio do rádio, entraram em contato com Haggard e Marshall, que suspiraram de satisfação ao ver o período de exílio terminar.

— Bell, mande uma esquadrilha de caças seguir na nossa frente, bem espalhados. Não há necessidade dos tópsidas saberem onde a Stardust-III vai aterrisar.

— E onde é que pousaremos? — perguntou Bell, enquanto transmitia as instruções a Deringhouse. — Em Iridul?

— Não. Em Rofus. De lá poderemos operar mais vantajosamente. E me parece que o nono planeta é justamente o mais ameaçado.

— E por que não atacamos direto em Ferrol? Com a Stardust-III temos condições para isso.

— E eu tenho motivos para não fazê-lo.

Não se estabelece uma soberania pela força. Basta forçar os tópsidas a se retirar em desordem, convencidos de que não são adversários para nós. Quero que recordem sua aventura em Vega com os corações tomados pelo pânico.

Enquanto os pequenos e ágeis caças deixavam o hangar, colocando-se na vanguarda da nave, em formação ordenada, Haggard e Marshall vieram para bordo. Os aliados ferrônios ainda iam permanecer por algum tempo em Iridul.

Rhodan recebeu os dois amigos com sincera cordialidade.

— Estou ansioso para saber detalhes — disse ele, após dar as boas-vindas aos dois homens. — A mensagem que recebi era bastante resumida. Que foi que se passou?

— Muito pouco, na verdade, porém o Thort começa a se impacientar. Julga-se traído. No entanto, aceitou minhas sugestões no sentido de organizar uma pequena unidade de combate com sua gente. Aliás, bem a tempo de repelir um ataque-relâmpago dos tópsidas, destinado evidentemente a medir a resistência com que poderiam contar em Rofus. A moral dos ferrônios foi bastante fortalecida com a vitória aparente. Porém receio que, diante de um ataque positivo dos tópsidas...

— As coisas não devem chegar a este ponto! — interrompeu Rhodan. — Os reptilóides não vão tardar a saber que estamos de volta. A missão dos caças é confundi-los, a fim de podermos pousar em Rofus sem eles perceberem. Existe lá algum hangar bastante amplo para acomodar a Stardust-III?

— Certamente — replicou Marshall. — Mas vamos nos entocar outra vez? Julguei que mostraríamos aos tais de tópsidas quem é que manda aqui.

— Pois é exatamente o que faremos... no momento apropriado — assegurou Rhodan, sorrindo, e com um olhar de entendimento para Bell. — Afinal, para que serve nosso Exército de Mutantes? E, mesmo não sendo mutante, nosso amigo Bell tem imaginação... Sob sua batuta, os mutantes vão esquentar de tal modo o ambiente para os tópsidas que eles vão preferir mil vezes a frieza do espaço cósmico. Não vai lhes restar a menor disposição para se demorar por mais tempo no sistema Vega.

— Eu vou...! — começou Bell, animado, mas Rhodan interrompeu:

— Por enquanto você não vai coisa nenhuma, velho! Depois do pouso em Rofus vamos combinar tudo detalhadamente. Por ora, trate de evitar os tópsidas. Os detectores estão todos ligados?

— Não deixam passar uma mosca! — assegurou Bell, compenetrado. A seguir se aprofundou em suas tarefas. Já nem prestava atenção ao que Rhodan ou John faziam.

Com um sorriso de satisfação, Rhodan perguntou a Marshall:

— Outras novidades?

— Eu diria que não. No entanto, há uma coisinha que me preocupa. Não, não chega a ser preocupação, propriamente... Mas dá o que pensar.

— De que se trata?

Horas-luz adiante, os caças espaciais de Deringhouse deram com as primeiras naves tópsidas. De acordo com as ordens recebidas, envolveram-nas em acirrados combates simulados, atraindo-as a toda a velocidade para o lado oposto de Vega.

— O Thort — explicou Marshall, pensativo. — Tenho conversado muito com ele, o que me proporcionou a oportunidade de sondar-lhe um pouco a mente. Ele está sendo sincero, quanto a isso não há dúvida. E também nos é grato pelo apoio recebido. Mas num único ponto se mostra reservado: os transmissores.

— Ah, é?! — exclamou Rhodan. — E o que é que ele nos esconde?

— Algo que ele próprio desconhece. Confesso que isso soa estranho, porém é o que está sucedendo. Os transmissores não são artefatos dos ferrônios.

— Bem, eu já suspeitava disso, John. Mas é bom saber que o Thort também tem consciência do fato. Que conseguiu descobrir?

— Existe em Ferrol uma urna lacrada. Fechaduras pentadimensionais impedem o acesso a ela. Apenas o Thort conhece a fórmula, porém não sabe usá-la. Trata-se de uma tradição perpetuada através das gerações. Minha impressão é que aqueles transmissores são presente de alguma raça ignota, à qual os ferrônios prestaram serviços relevantes em época imemorial. Dentro desta urna se encontram, provavelmente, os planos detalhados para a fabricação dos transmissores. O Thort considerou estudar os planos, a fim de poder construir novos transmissores.

— Também isso não me surpreende — disse Rhodan, com a maior naturalidade. Percebendo o desapontamento de Marshall, prosseguiu: — Não, não se trata disso! Suas observações constituem contribuição de inestimável valor, pois a certeza sempre é preferível a meras suposições. Os ferrônios não poderiam ter inventado aqueles transmissores, cujo funcionamento se baseia em princípios pentadimensionais. Bem que eu gostaria de saber quem foi seu criador!

— Quanto a isso, captei um indício muito vago — informou o telepata, radiante. — O Thort pensava em algo parecido com seres que vivem mais do que o sol. Isso lhe diz alguma coisa?

Rhodan estremecera. Bell, que escutava ocasionalmente trechos do diálogo, imobilizou-se de repente em sua poltrona, diante dos controles. Seu rosto cobriu-se duma palidez antinatural, depois coloriu-se de vermelho sangüíneo. Os olhos cintilavam. Voltando-se vagarosamente para Rhodan, fitou-o de frente nos olhos esgazeados.

Marshall observava divertido o efeito de suas palavras, com um sorriso de orelha a orelha.

— Até que é gostoso ver vocês dois aparvalhados, para variar! — disse ele, com uma risada pouco costumeira. — Só isso compensa a estadia solitária em Iridul. Pois é, consta que esses seres que vivem mais do que o sol cederam outrora o segredo dos transmissores aos ferrônios. É lamentável constatar que estes não têm sabido fazer grande uso deles.

— Os ferrônios raciocinam em termos de quarta dimensão; o que, sob o nosso ponto de vista, já constitui notável progresso. Porém não sabem pensar na quinta dimensão, condição básica para a construção de hiperespaçonaves e transmissores pentadimensionais de matéria. Bastou este fato para me convencer de que os ferrônios jamais poderiam ter fabricado aquelas caixas maravilhosas. Diga-me, John, descobriu alguma pista quanto à origem dos tais seres que vivem mais do que o sol?

— São naturais do sistema Vega — respondeu Marshall, e pela segunda vez teve o prazer de ver Rhodan se alterar. — Pelo menos, era aqui que viviam há milênios atrás, quando mantinham contato com os ferrônios. É pena, mas foi tudo que consegui saber a respeito. Parece-me que o próprio Thort dispõe de informações escassas.

Por longos minutos Rhodan se conservou calado em seu assento, com o olhar fixo no vazio.

“Seres que vivem mais do que o sol”, refletia ele. “Quanto tempo vive um sol? Metade de um dia, já que nasce pela manhã e se põe à tarde? Um ano, o tempo que cada planeta leva para contorná-lo uma vez? Duzentos milhões de anos, que é o espaço de tempo necessário para contornar a galáxia à qual pertence? Ou mais ainda? Uma eternidade? Será que estes seres desconhecidos vivem eternamente? Mas, então, por que jamais alguém os viu? Desconhecem a morte?”

— Precisamos falar com o Thort a respeito. Depois de resolver o presente caso. Agora o segredo dos transmissores pentadimensionais me interessa mais do que nunca. E a urna de que falou, Marshall, onde se acha?

— Nas arcadas do subterrâneo do Palácio Vermelho, em Ferrol. E somente o Thort conhece a maneira de chegar a ela.

— O Thort, então... — murmurou Rhodan. — Ele é a chave...

Bell levantou os olhos. Marshall perguntou, intrigado:

— A chave? Chave para quê, Perry?

— A chave para a vida eterna — disse Rhodan, sonhadoramente.

 

Muito mal-humorado, o almirante Crek-Orn, comandante supremo dos tópsidas no planeta conquistado de Ferrol, se encontrava diante de sua mesa de trabalho no Palácio Vermelho. A larga boca de réptil estava firmemente contraída, denotando intensa contrariedade. As notícias alarmantes se sucediam em ritmo ininterrupto, não lhe dando sossego.

Um ordenança acabava de entrar.

— No setor do nono planeta foram avistadas numerosas formações de caças, que nossas naves perseguiram. Mais uma vez não houve reação; eles simplesmente fugiam. Perdas até o presente, nenhuma.

O tópsida, dentro do vistoso uniforme de almirante, bateu com o punho sobre a mesa.

— Se o inimigo não ataca, por que é que vocês ficam parados? Não dei ordem para aniquilar todo e qualquer adversário que aparecesse?

— Eles são velozes demais, almirante! — replicou o mensageiro, cautelosamente. Não queria atrair para sua pessoa a ira do importante personagem, representante do Déspota ali naquele mundo estranho; e ele tinha o poder de impor a penalidade que julgasse cabível. — Assim que embicamos para o lado daqueles minicaças, eles aceleram de uma maneira inacreditável e somem. Ainda não conseguimos destruir um só caça, muito menos capturar algum. Bem que nossos técnicos se interessariam vivamente pelo sistema de propulsão que usam.

— É de origem arcônida — murmurou o almirante, aborrecido. — Assim como nossa nave de guerra perdida. Não acharam nenhum vestígio dela?

— Ainda não, almirante! Mesmo nossos espiões enviados para o nono planeta não conseguiram descobrir a menor pista. É como se ela tivesse desaparecido da quarta dimensão.

— É bem possível — resmungou Crek-Orn, furioso. — E neste caso, jamais tornaremos a vê-la. O que talvez seja proveitoso, pois de que maneira enfrentaríamos aquele cruzador de batalha, estando ele nas mãos de inimigos mais inteligentes? Mas quanto aos pequenos caças... — sua voz se tornou autoritária e enérgica — nesses vamos ter que dar um jeito, e urgentemente! Espero que me traga em breve notícias auspiciosas. Leve o recado aos comandantes dos esquadrões de combate. Ofereço uma recompensa.

No entanto, nem aquela medida surtiu efeito.

Em vão os reptilóides se esforçavam para agarrar os ágeis aviões. Com inaudita temeridade, estes ousavam passar quase de raspão perto dos pesados cruzadores, se esquivando a seguir em manobras rapidíssimas. E paulatinamente iam atraindo as forças inimigas para longe de Rofus.

Enquanto isso, Bell fizera a Stardust-III aterrisar tranqüilamente em Rofus, pousando com ela na imensa caverna de um hangar recém-construído, no qual caberiam facilmente esquadrilhas inteiras. Rhodan deu suas instruções, e dez minutos após o desembarque estava sentado diante do Thort, cujo alívio era evidente.

— Sinto-me satisfeito por ter atendido tão prontamente ao meu chamado — disse ele, dando início à conversa. Rhodan, Crest, Thora e Marshall defrontavam-no. — Os tópsidas se preparam para invadir este mundo, e não sabemos como repeli-los. Vocês com sua nave esférica...

— Tencionamos bater os tópsidas sem recorrer à nave — disse Rhodan, com displicência. Sem dar atenção ao ar de espanto do Thort, continuou: — Eu trouxe de meu planeta um grupo especial, que daqui por diante será destacado para combater o inimigo. Dentro de poucos dias, ou semanas, poderá regressar a Ferrol.

— Minha frota de combate está à sua disposição, como força de apoio.

— Obrigado, é para este fim que vou usá-la. Só que não conto com lutar abertamente contra os tópsidas. Claro que não fugiremos, caso formos forçados a travar batalha; no entanto, quero que o maior número possível de tópsidas retorne ao seu planeta de origem, a fim de relatar suas experiências. Isto acabará de vez com as veleidades de andar conquistando mundos. Pelo menos no sistema de Vega, ou no do Sol.

— Sol? — indagou o Thort, ávido. — É assim que se chama o astro central de seu sistema?

— Isso mesmo — concordou Rhodan, percebendo claramente o súbito interesse do ferrônio. Procurou levar o assunto para outro lado, indagando: — Os transmissores para Ferrol continuam em atividade?

— Sim, temos ligação constante com os sichas. Em Sic-Horum a situação ainda é de calma. Quequéler dirige a resistência em Ferrol.

— Ótimo — comentou Rhodan. — Então é por ali que vamos começar. A conquista da nave arcônida nos proporcionou boa soma de experiência, portanto teremos menos dificuldades desta vez. Vamos quebrar a fibra do inimigo diretamente na raiz.

— Que quer dizer com isso?

— Que vou mandar minha gente para Ferrol ainda hoje. Bell, você dirige a ação. Crest, tem mais alguma sugestão?

O arcônida sacudiu devagar a cabeça:

— Adivinho o que pretende fazer, e não vejo solução melhor. Seus mutantes são as pessoas mais indicadas para infligir aos tópsidas um choque de efeito duradouro. Concordo com seu plano.

Thora deu igualmente seu apoio, com um aceno silencioso.

— Pois bem — disse Rhodan, satisfeito. — Thort, pode nos fornecer transporte para conduzir meu grupo de mutantes até os transmissores? Eu dirijo a operação até lá, depois Reginald Bell assume o comando. Sabe o que deve fazer, não é, Bell?

— Dá para desconfiar... — disse Bell, com um sorriso de cumplicidade. — Mas se aceitam sugestões adicionais, caso Vossa Excelência...

— Pois está na hora de dá-las — concluiu Rhodan, levantando-se. Antes de dar a breve conferência por encerrada, ainda se dirigiu ao Thort: — Mais uma coisa, gostaria que me contasse o que sucedeu em Ferrol há alguns milênios. Possui registros históricos?

O soberano ferrônio empalideceu, lançando a Rhodan um olhar espantado. A boca miúda tinha se escancarado, como se as palavras lhe tivessem ficado entaladas na garganta. Os olhos piscavam nervosamente. John Marshall observava atentamente o Thort, com os sensores mentais assestados para o cérebro do ferrônio; tentava captar as imagens e impulsos que o dominavam. No entanto, só deparou com profunda consternação. Por fim, o Thort disse:

— Nossa História? Mas que lhe interessa nossa História, Rhodan? Que relação poderá ter ela com a atual guerra contra os tópsidas?

— Talvez nada, talvez muita coisa, Thort. Então, que me diz? Vou poder me inteirar do passado de seu povo, ou a História dos ferrônios deverá permanecer perpetuamente em sigilo absoluto? E, neste caso, por quê?

— Mas, de modo algum! — gaguejou o ferrônio, ainda não refeito de sua surpresa. — Que motivos teria eu para mantê-la em segredo? Afinal, somos amigos, e entre amigos não deve haver segredos. Revele-me a posição galáctica de seu sistema planetário, e em troca lhe conto a história de nosso passado.

— Também a dos seres que vivem mais do que o sol?

Desta vez até Rhodan ficou impressionado com a alteração sofrida pelo Thort. O soberano ferrônio perdeu a cor; o rosto azulado tomou uma coloração cinza esbranquiçada. Nos olhos transparecia o medo, e algo semelhante a veneração. Tremia da cabeça aos pés.

— Que sabe a respeito disso?

— Sei, ora... — disfarçou Rhodan, com um gesto displicente da mão. — Então, vai me contar quem são estes seres, e onde vivem?

O Thort sacudiu, desconsolado, a cabeça:

— Eu não poderia, mesmo que quisesse. Isso foi há muito tempo, e os relatos a respeito se perdem na origem dos tempos. Mas estou disposto a lhe obter informações a respeito para podermos discutir o assunto. No entanto, duvido que possa ajudá-lo.

— Pois eu acho que pode — disse Rhodan, aliviado, lançando um olhar a Bell. — Não percamos mais tempo. Já esperamos demais.

Dirigindo-se novamente ao Thort, continuou:

— Não vou esquecer sua promessa. E não julgue que se trata de algum capricho meu. Caso estes misteriosos seres vivam efetivamente mais do que o sol, eles devem existir ainda. Pois o sol continua existindo...

 

Convocado por uma mensagem de Rhodan, Quequéler se materializou na cabina do transmissor em Rofus, com suas costumeiras roupas coloridas. Rhodan, Bell e os mutantes já estavam à espera, cumprimentando-o alegremente.

— Prazer em rever nosso aliado! — disse Rhodan. — Como vai a luta de libertação?

— Exigindo baixas, sem nos levar um passo adiante — queixou-se Quequéler. — Os tópsidas se tornam cada vez mais desconfiados; dispensaram todos os empregados nativos, e redobraram a vigilância em todo canto. Fizemos contato com diversos outros grupos de resistência, e organizamos melhor nossas atividades; em troca, as medidas de represália dos tópsidas se tornaram mais rigorosas. Recentemente, uma aldeia ferrônia inteira foi arrasada; mataram todos os habitantes, sem exceção, por suporem que havia entre eles um guerrilheiro da resistência.

— Métodos bem parecidos com os aplicados na Terra... — murmurou Rhodan, em tom melancólico, com rugas profundas na testa. — Que mais há de novo?

— Nada de importante. Vamos continuar lutando até que o Thort possa regressar, ou até... — engolindo em seco, completou com voz sumida: — estarmos todos mortos.

— Não se preocupe, isso jamais acontecerá! — afirmou Rhodan. — Trago comigo reforços. Os sichas já tiveram ocasião de conhecer alguns dos integrantes do meu Exército de Mutantes. Tako Kakuta, por exemplo. Devem se recordar igualmente de Wuriu Sengu. Os nomes não importam, todos eles são amigos dos ferrônios, e, conseqüentemente, dos sichas. O quartel-general da resistência será transferido para Sic-Horum, a capital montanhesa. De lá, Reginald Bell comandará a ação dos mutantes conforme for conveniente.

— Temos tudo preparado para recebê-los — informou Quequéler.

— Obrigado. Combinei com Bell todos os detalhes, e ele sabe como agir. Dentro de três dias irei pessoalmente a Sic-Horum, para acompanhar a última fase da guerra de libertação. Por enquanto, adeus, e boa sorte!

Com ligeira hesitação, Quequéler falou:

— Faltam-nos armas, Rhodan. Sem armas...

— Armas? — indagou Rhodan, distraidamente. Mas logo um sorriso de compreensão lhe iluminou o rosto. — Ah, sim! Quase me esqueci de mencionar este aspecto. As armas são dispensáveis, Quequéler. A partir deste instante, a luta contra os invasores será travada com as forças da mente. Usaremos o cérebro. E acho que nossos cérebros são muito superiores aos dos tópsidas.

A cabina do transmissor se abriu, admitindo os primeiros mutantes.

 

Tequer-On estava em presença de seu chefe supremo, o almirante Crek-Orn. Estivera praticamente morto há algumas semanas, quando sua nave-capitânia foi destruída no embate com o cruzador arcônida. Uma nave tópsida extraviada o encontrara vagando no espaço, puramente por acaso, tendo-o recolhido.

O aspecto daqueles dois reptilóides, cobertos de escamas negras acinzentadas, fazia pensar num pesadelo. As fisionomias de batráquios, com bocarras imensas, os olhos negros e salientes, as cabeças achatadas e os membros de lagarto não contribuíam em nada para lhes conquistar as simpatias; nem dos homens, nem dos ferrônios. Além disso, não era só sua aparência que transmitia a impressão de crueldade, eram cruéis mesmo.

— A ofensiva terá início amanhã — declarou Crek-Orn, em tom incisivo. — Podemos assumir como bastante provável a certeza de que o cruzador arcônida roubado se acidentou. Sem saber manobrá-lo, os ferrônios devem ter sumido irremediavelmente no hiperespaço com ele. O que aumenta nossas chances de obter uma vitória rápida sobre essa raça, e tomar posse do sistema inteiro. E então encontraremos finalmente aquela nave que emitiu os pedidos de socorro, determinando nossa vinda para cá.

— Às vezes penso — comentou Tequer-On — que nos enganamos, e aterrissamos no sistema errado. Afinal, um erro de cálculo seria desculpável no cômputo de distâncias tão imensas.

— Os técnicos do Déspota jamais cometem erros! — protestou o almirante, severamente; e sua atitude arrogante relembrou ao subordinado que entre os tópsidas as ações dos superiores hierárquicos são inquestionáveis. — Este sistema é o correto! — continuou Crek-Orn. — Nós encontraremos a nave avariada, que vai compensar a que perdemos. Ou pensa, por acaso, que pode regressar a Topsid sem seu barco? Sabe muito bem o que o esperaria...

Sim, Tequer-On sabia.

— O Déspota é um imbecil! — declarou Tequer-On, com a maior naturalidade. — É um indivíduo perverso, e também muito bobo. Insisto nisso.

O almirante fitou, estarrecido, seu oficial, emitindo um assobio agudo como sinal da ilimitada surpresa que o dominava. Suas escamas arrepiadas estrelejaram nervosamente e mudaram de cor.

— O quê? — arquejou ele, inspirando com esforço. Jamais alguém ousara enunciar palavras tão ofensivas em sua presença. O jovem oficial teria que ser submetido a conselho de guerra imediatamente. E era dever iniludível do almirante recomendar sua condenação. A sentença era uma só: a morte. — Que foi que disse?

— O senhor também não passa de um idiota, almirante! Não percebe o quanto estamos sendo injustos? Afinal, os ferrônios são gente simpática e amistosa, com todo o direito de viverem em paz nos seus planetas. Não é nada correto de nossa parte querer lhes roubar a pátria e nos instalar no mundo deles. Portanto, repito: o senhor é idiota por executar as ordens do Déspota sem a menor objeção. E terá que responder por isso mais tarde, quando for julgado e chamado à responsabilidade.

O almirante procurou aquietar as escamas arrepiadas. Nunca em toda a sua carreira tinha visto um oficial se amotinar diante de seus próprios olhos. Aquilo só podia ser loucura; Tequer-On tinha perdido o juízo.

— Em nome do Déspota, considere-se preso! — berrou Crek-Orn.

Calcou o botão do intercomunicador e aguardou a entrada do ordenança.

— Soldado, chame os guardas! Tequer-On foi degradado de seu posto, e exonerado de todas as suas funções. Será colocado diante da Corte Marcial.

— Almirante, me parece que o senhor não está regulando bem! — disse o ordenança, sem se mover do lugar.

Crek-Orn se sentiu à beira de um colapso. Todo o seu mundo interior ruiu. Por tradição, sua raça só conhecia a obediência. O menor indício de rebelião sempre fora suprimido com as medidas adequadas. E agora... Fez soar o alarma. Guardas armados se precipitaram no recinto, empunhando as mortíferas pistolas de raios.

— Prendam esses dois! — grunhiu Crek-Orn, ofegante. — Eles insultaram o Déspota. Convoquem a Corte Marcial! Eles devem ser...

Não conseguiu continuar, se abateu em sua poltrona. Era idoso demais para suportar por mais tempo aquela aberração. Os dois acusados foram desarmados em silêncio pelos guardas. Deixaram-se levar sem reação; em suas faces reptilóides lia-se ilimitada surpresa e incompreensão.

— Ué, que será que aconteceu? — murmurou Tequer-On. Porém não recebeu resposta.

 

Aquilo era apenas o prelúdio da ofensiva dos mutantes.

Bell tinha posto novamente em funcionamento o transmissor individual no Palácio Vermelho. Assim poderia levar seu pessoal, um a um, diretamente para a central dos tópsidas. O receptor ficava num compartimento secreto, entre paredes falsas, e ainda não havia sido descoberto pelo inimigo. Passagens estreitas davam acesso a um sem-número de salas, gabinetes e corredores. Arranjo que permitia aos mutantes aparecer inesperadamente em qualquer ponto do palácio, no momento que escolhessem, e desaparecer rapidamente do cenário. Os construtores tinham pensado, efetivamente, em tudo. Porém na certa nunca lhes ocorrera que aquelas engenhosas providências serviriam um dia para repelir invasores estranhos.

Wuriu Sengu era mais uma vez a figura-chave. Acocorado ao lado de Bell no vão, dentro das paredes, punha em ação suas incríveis capacidades. O robusto japonês tinha um rosto redondo, com cabelos curtos e eriçados cobrindo o crânio. Era o vidente do Exército de Mutantes. Matéria sólida não representava obstáculo para seus olhos. Enxergava através de tudo, sendo capaz de focar qualquer objeto em cuja estrutura atômica se concentrasse. Assim que se desinteressava dele, o objeto voltava a ser invisível.

— Como é? — sussurrou Bell, agitado. Achava enormemente divertida aquela arriscada briga de bastidores, no próprio seio do quartel-general dos reptilóides. Vinha bem de encontro à sua natural tendência de complicar o mais possível as coisas, a fim de que o resultado final fosse mais sensacional. Por isso não tomara logo a providência mais simples: enviar sumariamente os mutantes para determinar aos soldados do exército inimigo que se amotinassem. Já que se tinha metido naquilo, queria ao menos se divertir um pouco, e resolveu agir por etapas. Os tópsidas deviam recordar o episódio pelo resto de suas vidas.

— O almirante mandou deter o oficial e o ordenança — sussurrou o japonês, em resposta. — André Noir trabalhou direitinho.

O filho de franceses radicados do Japão sorriu, lisonjeado. Era um hipno, e podia impor sua vontade a quem quisesse. Não só a pessoas, mas também a animais e a seres extraterrenos, conforme acabava de demonstrar mais uma vez.

— Que gozado! Liberei agora o tal Tequer-On de minha influência. Claro que ele não se lembra de nada, e está quebrando a cabeça para saber por que diabos o general lhe deu voz de prisão.

— Almirante — corrigiu Sengu, delicadamente.

— Ora, tanto faz, Wuriu. O essencial é que o cacique das lagartixas está vendo a disciplina de sua gente ir por água abaixo. Sem encontrar explicação para o fato, vai começar a duvidar da própria sanidade. Seria ótimo se conseguíssemos fazê-lo acreditar em fantasmas.

— Chegaremos lá! — afirmou Bell, com um largo sorriso, perceptível até à fraca luz da lanterna que os iluminava. — O exército tópsida inteiro vai acabar acreditando em fantasmas. Pois é o que Rhodan deseja.

Sengu fixou a parede. Pouco depois informava:

— Os guardas levaram os dois prisioneiros para a cadeia, trancando-os numa cela. Estou curioso por ver o que o almirante vai fazer agora. Será mesmo que vai condenar seu melhor colaborador à morte?

— A moral das lagartixas não lhe permite outra saída — disse Bell. — É uma raça bem doida essa.

— Por quê? — indagou André Noir, em tom sério. — Ainda me recordo de que na Terra houve tempos...

— Psiu! — fez Anne Sloane, que até então se mantivera calada. A frágil americana era uma telecineta. Com sua força mental podia erguer e deslocar qualquer objeto, a grandes distâncias. Sua mão direita estava entrelaçada com a de Sengu; assim ela podia também ver o que o japonês via. Aquela capacidade de combinação entre os poderes dos mutantes ampliava consideravelmente seu campo de ação.

— O almirante volta a si — continuou Sengu. — Fala qualquer coisa no comunicador. Claro que não entendo o que ele diz.

— Mas eu entendo — interrompeu André Noir, segurando a outra mão de Sengu. Isolado em seu canto, apenas o não-mutante Reginald Bell ficou sem ver nem ouvir nada. — Ele está ordenando a convocação de uma conferência extraordinária. Todos os comandantes das naves em terra devem comparecer. Ao mesmo tempo, mandou aquecer os hipertransmissores. Pretende se comunicar diretamente com o Déspota em Topsid após a conferência. Puxa, essa eu quero ver! São mais de oitocentos anos-luz...

— Ora, será que ele já entregou os pontos? — indagou Bell, com tal desapontamento que Anne Sloane foi forçada a rir involuntariamente. — Quero que ele sinta bastante medo antes de...

— Não tem por que se preocupar — interrompeu o francês, com um brilho de excitação nos olhos. Partilhava do ponto de vista de Bell. — Muito pelo contrário! Quer permissão para sacrificar o oitavo planeta, destruindo Ferrol. Na hora de desligar o aparelho ainda resmungou qualquer coisa, a meia voz, só que não entendi o que ele queria dizer.

— Que foi que ele disse? — perguntou Bell, vivamente interessado.

— Algo como o mundo errado, mas hei de descobrir o certo!

— Referia-se à Terra — resmungou Sengu.

— Lá na Terra a gente vive mais do que o sol?

Bell se levantou num pulo.

— O quê?! — perguntou, ofegante. — Repita isso!

André Noir sorriu triunfalmente.

— Até que um dia consegui abalar sua habitual fleuma, não? Sim, foi exatamente isso que o almirante murmurou: o mundo certo, onde os habitantes vivem mais do que o sol. Isso significa algo?

— Rhodan vai gostar demais dessa informação — respondeu Bell, voltando ao seu canto. — Quando é a conferência?

— Dentro de uma hora. Logo depois, a comunicação com Topsid.

Bell remexeu em seu minúsculo rádio de pulso.

— Pois eles vão ver uma coisa — resmungou, aborrecido. Parecia ter esquecido que pretendia se divertir com aquela aventura.

 

O silêncio caiu sobre a audiência quando o almirante Crek-Orn entrou na pequena sala de reuniões. Ele percebeu imediatamente a atmosfera tensa; o ceticismo e a desconfiança dos oficiais presentes era quase palpável. Com uma curta saudação, Crek-Orn pediu que ficassem à vontade. Depois, com o maior desembaraço, como se fosse a coisa mais natural do mundo, o digno almirante, de escamas descoradas pelo nervosismo, emitiu um som totalmente estranho para os presentes. Com um cocoricó sonoro, começou a bater com os braços, e singrou serenamente para o pesado lustre suspenso no teto, se aninhando entre os braços metálicos. Lá do alto, fitando seus oficiais estarrecidos, iniciou sua fala:

— Senhores oficiais! Nossos inimigos, os ferrônios, lançam mão dos recursos mais abjetos para se opor à nossa soberania. Há poucos minutos, Tequer-On insultou nosso Déspota na minha própria presença. Chamou-o de imbecil, o que, na minha opinião, é subestimar as coisas. Por isso mandei prendê-lo, e ele será condenado à morte. Não podemos admitir que...

Crek-Orn foi impedido de continuar. Com um silvo agudo um dos oficiais se levantou, deixando apressadamente a sala. Outros dos reptilóides lhe seguiram o exemplo, inteiramente abalados. Porém um oficial mais idoso aproveitou a oportunidade pela qual certamente já vinha esperando há muitos anos.

— Calma! — gritou, com voz potente. — Não se deixem perturbar. Os estranhos que ajudam os ferrônios usam de bruxaria. Mantenham-se firmes e tranqüilos como eu. O adversário deve ser...

O oficial não foi além disso. Como desta vez André Noir não interviesse, para fazê-lo ver miragens, o tópsida sofreu tudo plenamente consciente, assim como os demais militares presentes. De repente o chão lhe fugiu debaixo dos pés, e ele levitou diagonalmente para o teto, na direção do almirante medrosamente encolhido entre as lâmpadas do lustre. Estreitamente abraçados, os dois reptilóides se agarravam ao precário suporte, com as escamas eriçadas e olhando com ar esgazeado para o caos que se estabelecia abaixo deles.

Os reptilóides presentes tinham visto o quanto bastava. Seus dois superiores mais graduados tinham se aliado às forças do mal, pretendendo levar todos eles à perdição. Era preferível enfrentar os ferrônios, que pelo menos podiam ser combatidos com meios naturais. Em fuga desordenada, abandonaram a sala. Nela ficaram apenas Crek-Orn e seu oficial veterano, à espera de que alguém viesse tirá-los do lustre.

Cerca de uma hora depois, o Déspota de Topsid recebia um comunicado detalhado, porém bastante confuso, dos acontecimentos ocorridos no sistema Vega. Deu ordem para sustentar a todo o custo a ocupação do planeta, até a chegada da comissão de inquérito que seria despachada imediatamente. Foi designado um novo comandante supremo, investido de plenos poderes.

O novo comandante, Rok-Gor, iniciou sua gestão mandando preparar sem demora o ataque ao planeta Rofus; um forte contingente militar devia bater e aniquilar as tropas ferrônias lá aquarteladas.

Lamentavelmente, com isso incorreu no erro de precipitar o desenrolar de fatos que seriam funestos para os tópsidas; mas claro que não poderia ter previsto isso.

Em seu esconderijo, Bell sacudiu energicamente a cabeça.

— Não, Rhodan disse que era para deixá-los em paz. Eles que ataquem. Deringhouse está de vigia com sua esquadrilha de caças. Ras Tshubai acompanha-o. Para mim é um mistério saber como é que ambos se acomodaram na apertada cabina do caça. Mas posso imaginar mais ou menos o que vai acontecer. Afinal, minha fantasia é bastante viva...

Mas desta vez Bell superestimara o poder de sua imaginação. Pois a realidade dos fatos acabou superando até seus sonhos mais fantasiosos.

Em seu pequeno avião, Deringhouse estava atento aos controles. A exígua cabina mal oferecia espaço para um homem se acomodar com relativo conforto. Ras Tshubai, o africano, possuía estatura avantajada. Espremido por trás da poltrona do piloto, esforçava-se por espiar pela escotilha; contorcendo-se todo, conseguia avistar um bom trecho do espaço cósmico. Ras Tshubai era um dos teleportadores do Exército de Mutantes; recorrendo unicamente à sua força mental, podia se transportar para qualquer lugar, desde que o conhecesse bem, ou pudesse enxergá-lo a olho nu.

Rhodan se comunicava diretamente com Deringhouse através da estação central em Rofus. Assim ficou sabendo da aproximação da frota encarregada de atacar o planeta.

Os cinqüenta e três outros componentes da esquadrilha de Deringhouse se mantinham perto dele, sem formação rígida. De vez em quando se espalhavam, para confundir eventuais sentinelas avançadas dos tópsidas, porém ficavam sempre a uma distância média entre Rofus e Ferrol.

Tequer-On, restituído à liberdade, comandava o esquadrão tópsida. Ainda sem conseguir explicar o que lhe acontecera, se esforçava para não deixar vir à tona o terror íntimo que o dominava. Mas estava firmemente decidido a eliminar a origem de todo o mal, que para ele residia em Rofus. Jamais poderia adivinhar que tais forças funestas se haviam aquartelado exatamente em seu próprio quartel-general.

Os vinte cruzadores bojudos emergiram da sombra planetária de Ferrol para o mar luminoso de Vega. Seus detectores acusaram imediatamente a presença dos caças espaciais, e Tequer-On mandou atacá-los.

Semi-reclinado em seu assento, diante dos comandos, ele observava, através da ampla escotilha, o odiado adversário; sabia muito bem que eram mais velozes do que qualquer nave tópsida. Portanto, foi com o maior espanto que não percebeu nos cinqüenta e tantos aviões a menor intenção de fuga. Será que pretendiam enfrentar o ataque unânime dos vinte cruzadores?

Com voz esperançosa ordenou, através do telecomunicador, um ligeiro desvio de rumo aos comandantes das outras naves; agora estavam em posição para o ataque.

Mostraria àqueles amigos dos arcônidas — parentes deles, certamente, já que possuíam semelhança física — a fibra dos tópsidas. Vê lá se ia permitir que aquele bando de arcônidas dominasse o Universo. Aquilo era privilégio dos tópsidas!

O primeiro-oficial da nave-capitânia entrou na central de comando. Porém, antes que conseguisse se acercar de Tequer-On para entregar a mensagem que trazia, algo de muito estranho aconteceu. O ar em torno do primeiro-oficial começou a tremeluzir, como que submetido repentinamente a forte aquecimento. Algo empurrou o reptilóide parado para o lado... e tornou-se visível. Voltando-se para trás, Tequer-On presenciava tudo boquiaberto. Bem no meio da central de comando, Ras Tshubai se materializou. Abriu um largo sorriso ao perceber o espanto dos dois reptilóides, cujos olhos saltavam das órbitas ainda mais do que o normal. Suas escamas eriçadas, em posição quase perpendicular ao couro, estrelejavam audivelmente. A cor variava do marrom ao rosa, passando depois ao esverdeado.

Com a maior calma, Ras tirou a pistola de raios da cintura do estarrecido primeiro-oficial, apontando-a contra o painel de comando. Acionou o detonador. O delgado raio energético fez dos cintilantes instrumentos uma massa incandescente e gotejante de matéria inservível, que foi se evaporando, desprendendo tremendo calor.

Apesar de não compreender o que acontecia, Tequer-On ainda encontrou força para agir. Saltando do assento, se precipitou sobre a aparição de pele escura; mas, antes que pudesse lhe deitar as garras, ela desapareceu no ar, sem deixar o menor vestígio. Apenas a pistola de raios, indevidamente utilizada, caiu com um baque seco sobre o piso metálico. O comandante e seu primeiro-oficial se encontravam novamente sós na central demolida.

Ras Tshubai, o teleportador africano, se transferiu para outro setor da imensa espaçonave. Arrancou algumas peças de artilharia de seus suportes, correu com os reptilóides completamente atordoados, abriu a comporta de ar e se desmaterializou.

Um rápido exame mostrou a Tequer-On que o tiro do inesperado invasor destruíra apenas o equipamento secundário. O sistema de comunicação com as demais naves ainda funcionava; também a comporta de ar podia ser fechada a tempo, mediante controle do painel. Mas justamente aquele detalhe o fazia refletir. A negra aparição teria deixado a nave pela comporta? Neste caso, devia ser capaz de sobreviver no vácuo!... Um estremecimento percorreu a escamosa espinha de Tequer-On. O intruso não devia ser nenhum arcônida, portanto; talvez pertencesse a uma das raças auxiliares. E desta deviam provir aqueles inexplicáveis poderes...

Através da escotilha, constatou que os pequenos aviões inimigos mantinham o mesmo afastamento. Tanto fazia tentar se aproximar deles, ou procurar ganhar distância, o intervalo não se alterava. Tequer-On se comunicou com as demais naves de sua frota:

— Curso para o nono planeta! Nada nos impedirá de executar as ordens de Rok-Gor. A ala direita...

Interrompeu-se, literalmente engasgado. Na tela diante de si, via a cabina da nave número sete; e lá se passava algo que relembrava desagradavelmente o que sucedera a ele próprio há alguns instantes.

Por trás do comandante da número sete surgiu o fantasma negro. Tequer-On não foi capaz de alertar o desavisado tópsida, tanto o fascinava o espetáculo, que podia igualmente ser presenciado pelos comandantes das demais naves, pois Ras Tshubai aterrissara bem diante da objetiva do telecomunicador.

Com um leve toque no ombro, a aparição — ou fosse lá o que fosse — comunicou sua presença. Não habituado a comportamento tão desrespeitoso, o comandante se virou, indignado. No entanto, o gesto parou no meio, quando deu com Ras Tshubai.

Tequer-On recuperou a fala finalmente.

— A pistola! Matar imediatamente! — coaxou ele no microfone. — Depressa!

O comandante da nave número sete não deu a menor demonstração de ter escutado a ordem de seu superior. Continuava sentado em sua poltrona, semivirado para trás, fitando o intruso imóvel como um coelho hipnotizado.

Com seu costumeiro sorriso, Ras se encaminhou para o painel de instrumentos. Baixou algumas alavancas ao acaso, apertou botões e comutadores. O comandante acompanhava com o olhar sua atuação, incapaz de esboçar o menor movimento.

Enquanto Ras se desmaterializava, a nave número sete reagiu ainda à nova programação, passando a se portar de maneira estranha. Disparou obliquamente para fora da formação, descreveu algumas figuras abstratas, para seguir depois de costado, oscilando acentuadamente; com toda a artilharia abrindo fogo, se afastou em velocidade crescente, tomando o rumo da ofuscante luz de Vega. Tequer-On não tardou a perdê-la de vista, e a nave deixou de responder aos apelos do telecomunicador.

Ras Tshubai terminava, então, sua incursão à nave número três, onde espalhara o pânico entre a tripulação.

Tequer-On nem teve tempo de deter o pensamento nas incríveis ocorrências, pois algo ainda mais inaudito lhe reclamava a atenção: os minúsculos caças inimigos atacavam! Precipitavam-se contra os pesados cruzadores em velocidade insana, porém no último instante se desviavam deles sem motivo aparente. No entanto, conseguiam com isso colocar em total desordem a formação das naves tópsidas. Momentos após repetiam a arriscada brincadeira. Da parte dos caças, nenhum tiro foi disparado.

Tequer-On mandou fazer fogo com os potentes radiadores. Não tardou a constatar que o único efeito era o de desperdiçar sua preciosa energia. Os pequenos aviões eram ágeis e velozes demais; nem sequer um dos tiros chegou a atingir o alvo.

A situação se agravou ainda mais. O cruzador número treze se adiantou repentinamente de sua colocação; numa rápida manobra, se colocou de lado, impedindo o caminho da frota em avanço. Nas telas das demais naves apareceu a face do comandante do cruzador número treze.

— Assumo o comando da esquadra! Regressem imediatamente a Ferrol! Meia-volta imediata, que vou abrir fogo!

Antes que alguém pudesse compreender o que acontecia, os pálidos raios dos canhões energéticos alvejavam os demais cruzadores. Os anteparos protetores ligados absorveram sem maiores problemas o inesperado excesso de energia. No cruzador número nove, no entanto, devia ter ocorrido um descuido — os anteparos não se encontravam em função. A nave desapareceu. Em seu lugar, uma nuvem levemente fosforescente vagava no espaço, se espalhando com rapidez. Pouco a pouco ela se dissipou por completo.

O cruzador amotinado número treze, no entanto, voltou tranqüilamente às fileiras, sem qualquer comentário de seu comandante. Instantes após, ele indagava do paradeiro da nave número nove.

Tequer-On tremia da cabeça aos pés ao tentar lhe responder. Sabia que o comandante da número treze não tinha agido daquela forma por vontade própria. Havia sido subjugado pelo mesmo espírito mau que quase causara sua própria desgraça. Esses arcônidas pareciam dispor de poderes que pessoa alguma seria capaz de avaliar claramente.

No mesmo instante Tequer-On sentiu se desvanecer, enquanto percebia que uma personalidade alheia tomava conta de sua consciência. Mas, contrariamente à experiência anterior, ainda conservou uma fração de conhecimento. Perdera a capacidade: de tomar decisões, porém tinha sobrado discernimento suficiente para perceber que algo de diferente e inexplicável invadia seu cérebro, algo incompreensível.

“Podemos aniquilar vocês”, dizia uma voz que Tequer-On entendia, sem no entanto ouvi-la. “É o que faremos caso não desistam dessa guerra inútil. Voltem imediatamente! Comunique a Rok-Gor que o assalto a Rofus fracassou. Retirem-se do sistema Vega, ou nenhuma das naves tópsidas regressará à pátria.”

Tequer-On sentiu a pressão diminuir; tinha recuperado a capacidade de raciocínio. Suas mãos providas de garras avançaram para o microfone do telecomunicador; agarrando-o, ordenou com voz rascante e insegura aos seus comandados:

— Atacar e destruir o nono planeta! Não permitam interferência do que quer que seja. E caso eu der ordens em contrário...

Não chegou a concluir a frase. Sentiu a influência estranha voltar, desta vez com oclusão total de sua própria consciência. Uma vertigem lhe obscureceu a visão. Mas durou apenas um segundo. Depois, com voz gutural, Tequer-On continuou:

— ...terei razões para isso. Como agora. Regressem imediatamente para Ferrol! Esqueçam o ataque. Entendido?

Entender, ninguém entendia. Porém as naves deram volta obedientemente, rumando para o oitavo planeta. E ninguém se irritou mais com o caso, posteriormente, do que Tequer-On, que não soube explicar a Rok-Gor os motivos daquela decisão estapafúrdia.

— Muito bem — disse o chefe supremo, com os olhos cravados no teto. — Conte suas experiências à comissão de inquérito, daqui a alguns dias. A data da chegada já foi anunciada.

 

A cena fazia pensar num grotesco filme de terror. Sentado à sua mesa de trabalho, o novo comandante dos tópsidas, Rok-Gor, riscava com as afiadas garras o tampo de plástico. Os rabiscos tortuosos e embaralhados traduziam claramente seu nervosismo e confusão interior. Naquele dia devia chegar a comissão de inquérito proveniente de Topsid.

Tinha diante de si Tequer-On e Crek-Orn, o comandante deposto. E mais um parceiro invisível: através dos olhos e dos ouvidos de Crek-Orn, Ralf Marten participava da sumária reunião preparatória.

Filho de um alemão e de uma japonesa. Marten herdara do pai a estatura elevada e os olhos azul-claros; a mãe lhe legara os cabelos escuros. Mas a capacidade de assumir personalidades alheias não lhe viera dos pais; era conseqüência da crescente radioatividade na atmosfera terrestre. Naquele momento, Marten se valia dela; sem que ninguém dos presentes desse por isso, se apossara dos olhos e dos ouvidos do reptilóide, vendo e ouvindo tudo o que se passava. Seu corpo rígido e imóvel, no entanto, permanecia no compartimento secreto do Palácio Vermelho, vigiado por Bell e seus mutantes.

As três avantajadas lagartixas se portavam como seres racionais, demonstrando possuir realmente inteligência, noção esta que algum tempo atrás só era defendida por visionários, que ninguém levava a sério. No entanto, era evidente que os reptilóides não se sentiam à vontade no ambiente estranho, apesar de sua incrível capacidade de adaptação. O mobiliário em seu planeta natal devia ser bem diferente, mas ali em Ferrol se contentavam com o que haviam tomado aos ferrônios humanóides.

— Trata-se de hipnose à distância — coaxava Tequer-On, tentando justificar suas duas decisões falhas. Na primeira, insultara o Déspota; na segunda, dera ordem de retirada quando o ataque procedia satisfatoriamente. — Eu não sabia o que estava fazendo, portanto não posso ser responsabilizado. Eles devem possuir aparelhos para influenciar a mente.

— E como explica a repentina capacidade de voar de Crek-Orn, e a aparição daquele fantasma negro que demoliu as instalações internas de sua nave em pleno vôo? — perguntou Rok-Gor. — Será que também foi hipnotismo?

Tequer-On ficou devendo a resposta. O que poderia dizer? O ex-comandante supremo opinou:

— O inimigo deve possuir poderes desconhecidos para nós. Conforme já observamos durante nossas expedições de conquista, raças estranhas têm às vezes características inéditas, para as quais sempre acaba aparecendo explicação. É o que acontecerá desta vez também. Amanhã a comissão...

— Pois foi exatamente por isso que foi convocada — exclamou Rok-Gor, com severidade. — Nós todos seremos considerados culpados, caso esta guerra não apresentar resultado positivo. E ela estará perdida se a comissão optar pela retirada total, o que em hipótese nenhuma pode acontecer. Portanto, precisamos encontrar uma explicação para estes fatos, e um modo de evitar sua repetição. Aguardo sugestões, já que vocês dois colheram experiências práticas que podemos analisar.

— Não lembro de nada — confessou Tequer-On. — A gente fica totalmente inconsciente, com a memória em branco. Portanto, que quer que eu diga?

— Idiotice! — berrou Rok-Gor, exaltado, jogando longe com a pata uma cadeira desocupada ao seu lado. — Na comissão existem especialistas que sabem interpretar os menores indícios. Por medida de cautela, eles só desembarcarão da nave-correio quando a ligação direta com Topsid estiver funcionando. Com isso excluem a possibilidade de cair inadvertidamente numa cilada. O pessoal em Topsid será testemunha visual das sindicâncias, receberão a imagem gravada através do hiperespaço. Repito que precisamos encontrar uma solução satisfatória. Em caso contrário, os planos de invasão podem ser cancelados, ou então seremos substituídos. O que significaria, nas duas hipóteses, o fim de nossas carreiras. Creio que estamos entendidos!

— Foi um erro convocar a tal comissão de inquérito — observou o almirante Crek-Orn, em tom reprovador. — Eu ainda poderia estar ocupando meu posto de comandante supremo, e acabaríamos encontrando uma saída. Fantasmas não existem, e...

Crek-Orn perdeu a fala. Com os olhos saltando das órbitas, fitava a cadeira jogada num canto pelo brusco gesto de Rok-Gor. Como que conduzidas por mãos invisíveis, as peças espalhadas voltavam a se juntar; depois o móvel se alçou suavemente no ar, ficando suspenso junto ao teto, exatamente sobre a cabeça do novo comandante-em-chefe. Quando Rok-Gor, alertado pelo olhar fixo de Crek-Orn, olhou para a cadeira fantasmagoricamente pendurada no vazio, esta se desprendeu de repente. Rok-Gor não reagiu com a necessária rapidez, preocupado em interpretar o absurdo da situação. Precipitando-se para baixo como uma pedra, o móvel atingiu com violência a dura cabeça blindada do tópsida; os pés torneados se entalaram em torno de seu pescoço como um colarinho.

Crek-Orn e Tequer-On presenciavam os apuros de seu superior com um misto de medo e regozijo. Aturdido pelo susto, Rok-Gor não ousava se mover. Ralf Marten, em seu esconderijo no Palácio Vermelho, relatava com lábios semicerrados tudo que via e ouvia com os sentidos surrupiados a Crek-Orn. Encolhido em seu canto, Bell ria sozinho; não lhe era difícil visualizar a cena em imaginação. Anne Sloane suspirou de alívio quando pôde soltar a cadeira.

— Pelos deuses do Déspota! — guinchou Rok-Gor, apavorado. — Que foi isso?

— A cadeira! — murmurou Tequer-On, num fio de voz. — A cadeira se vingou porque foi chutada. Objetos inertes ganham vida, e...

— Que nada! — exclamou Crek-Orn. — Isso foi truque. Uma ilusão que...

— Chama isso de ilusão? — grunhiu Rok-Gor, arrancando os restos da cadeira do pescoço, e atirando-os longe raivosamente. — Tenho um galo na cabeça. Sabe me dizer desde quando ilusões provocam galos?

— Não foi isso que eu quis dizer — apaziguou Crek-Orn. — Claro que o acontecimento em si não pode ser classificado de ilusão. Mas é possível que exerçam influência à distância sobre nossa mente, podendo até mover coisas. Sei lá se eles fazem isso com a ajuda de máquinas, ou puramente mediante sua energia cerebral...

— Ora, isso é asneira! — protestou Rok-Gor, sacudindo desesperado a cabeçorra. — Os arcônidas não são superseres.

— Mas talvez seus aliados sejam. Pois não acha igualmente que nos defrontamos com mais de dois adversários? Para mim, são três: os ferrônios, os arcônidas, e mais alguém. E esse alguém sabe fazer mágicas.

— Impossível! Não me venha com este tipo de história! Apareça com tal versão diante da comissão de inquérito, e estaremos liquidados. Um adversário imbatível seria aceito pelos investigadores; mas magos e fantasmas? Não, meu caro, isso nunca foi desculpa para o fracasso de uma operação bélica. Além disso, ainda não achamos o cruzador arcônida que emitiu os sinais de socorro. Estou quase começando a acreditar que viemos parar no sistema errado.

— Esta estrela tem quarenta e dois planetas — observou Crek-Orn — e na certa eles ainda nos reservam muitas surpresas. Quanto ao inquérito de amanhã, tenho uma sugestão a fazer: você me substituiu no posto de chefe supremo; bem, resigno-me com isso, em vista das circunstâncias. Porém deparou com as mesmas dificuldades. Logo, não seria mais razoável entrar num acordo, a fim de não perecermos ambos? Por que não declarar à comissão, amanhã, que houve um engano, e que as assombrações cessaram? Desta forma, os investigadores se retiram, e nós podemos tratar de liquidar os ferrônios e os arcônidas, unindo nossos esforços.

— Não esqueça os mágicos! — acrescentou Tequer-On.

Rok-Gor contemplou-o com um olhar de reprovação, e esperou que Crek-Orn prosseguisse com seus comentários. Porém este nada mais tinha a dizer.

— Só isso? — perguntou Rok-Gor, desdenhosamente. — Querendo acabar esta guerra às minhas custas, é? Nada disso! A comissão vai saber a verdade, a fim de se inteirar das dificuldades que estamos enfrentando. Seu destino pessoal pouco me importa. O essencial agora é encontrar o cruzador arcônida e a raça da vida eterna.

Crek-Orn abaixou a cabeça, mas não antes de captar um fugaz olhar de esguelha de Tequer-On. Também ele não parecia estar disposto a ser sacrificado à ânsia de poder de Rok-Gor. Era evidente que a cúpula dos reptilóides entrava em dissensão.

— Até amanhã — continuou Rok-Gor — as atividades bélicas ficam suspensas. Quero que a comissão de inquérito seja recepcionada em grande estilo, com uma parada modelar. Vamos provar ao Déspota que sabemos enfrentar até circunstâncias imprevistas. Espero que executem minhas ordens com a costumeira exatidão. Mais alguma coisa?

A sessão foi encerrada, pelo menos para Ralf Marten, que voltou para junto dos companheiros. Seu corpo se reanimou; abrindo os olhos, deu com a face curiosa de Bell.

— E então?

— Esperemos até amanhã, Bell. Acho que vamos poder apresentar um espetáculo e tanto. Não esqueça que o soberano supremo dos tópsidas estará entre os espectadores.

— Vou caprichar! — prometeu Bell.

 

Em Sic-Horum, a capital dos sichas, Rhodan recebia os relatórios de seus homens, e os dos agentes ferrônios. Gloctor, chefe dos grupos de resistência contra os tópsidas no planeta ocupado, falava no costumeiro tom seco e lacônico. Sua aparência pouco diferia da dos habitantes da Terra; a boca era bastante menor, e os olhos vivos se enterravam profundamente nas órbitas.

Como seus patrícios ferrônios, tinha pele azulada, devido à radiação de Vega. Densa cabeleira lhe cobria a cabeça e parte do rosto.

— Os grupos em Thorta andam mais ativos. Só nos últimos três dias, mataram quatro patrulheiros tópsidas, prendendo pelo menos vinte deles. E dois veículos de transporte foram destruídos por explosões.

— Ótimo — aprovou Rhodan. — Qual é a reação dos tópsidas?

— Desistiram definitivamente da colaboração de auxiliares ferrônios. Não confiam mais neles. Medida que tem, naturalmente, seus inconvenientes...

— ...que saberemos compensar adequadamente — interrompeu Rhodan. — Pois deve saber que temos olhos e ouvidos em toda a parte.

— Sim, ouvi falar disso — respondeu o sicha, com um sorriso divertido. — A cidade inteira comenta as assombrações. Só que os espíritos trabalham a favor da boa causa.

— De fato, Gloctor, é isso mesmo. E, por enquanto, obrigado. Peço-lhe que continue em atividade, para que o inimigo não tenha pausas em sua inquietação. Agora gostaria de falar com Quequéler.

Quequéler era o chefe dos aguerridos sichas, que viviam na zona montanhosa de Ferrol, e sempre tinham defendido ferrenhamente a unidade do planeta. Apesar da idade avançada e da aparência de perene casmurrice, Quequéler era devotado a Rhodan; estava pronto a dar a vida para ajudar na expulsão dos invasores reptilóides.

— O inimigo começa a se inquietar — informou ele serenamente. — A ação de nossos grupos de resistência já resultou no fechamento de dois postos de vigilância dos tópsidas, situados em regiões mais afastadas. Foram imediatamente ocupados por tropas ferrônias regulares. O que representa um grande êxito. As notícias só se infiltram muito lentamente até nós, de modo que me vejo na impossibilidade de apresentar relatório mais detalhado; mas sei que os dias do inimigo em território ferrônio estão contados.

Rhodan expressou seu reconhecimento ao chefe sicha, e se voltou para Bell, que aguardava impacientemente.

— E o Exército de Mutantes, Bell?

— Está fundindo a cuca das lagartixas! — exclamou Bell, lançando em torno um olhar triunfal. — Os tópsidas atiram uns nos outros, brigam, discutem e se desentendem que é uma beleza. Amanhã chega uma comissão de inquérito de Topsid, para fazer averiguações. Já planejei um espetáculo apropriado, a fim de arrasá-los de vez. A função vai ser transmitida para Topsid, assim o Déspota pode participar dela pessoalmente. Garanto que jamais ele assistiu a um programa de televisão tão interessante.

— Que dúvida! — concordou Rhodan. — Mas não exagere, sim? Vamos repassar os detalhes daqui a pouco. Pode contar com todos os mutantes para amanhã. Sua atuação deve ser convincente, porém sem revelar de maneira alguma de onde se origina. Este ponto é muito importante. Quero despistar os tópsidas. Vou retornar a Rofus agora, e você vem comigo, Bell. Quequéler, deixe tudo preparado para a ação do dia de amanhã. E, para confundir ainda mais os tópsidas, vou lhe enviar hoje mesmo uma esquadrilha dos nossos aviões de caça. Eles passarão a operar do planeta Ferrol, mantendo ocupadas as tropas de vigilância do adversário. Ele não deve ficar com tempo para pensar.

O transmissor pentadimensional de matéria levou Rhodan e Bell de volta para Rofus. Pisar naquela cabina gradeada, e ligar a chave para acionar o misterioso mecanismo constituía sempre uma nova experiência meio perturbadora. Na realidade nada acontecia. Bastava desembarcar alguns segundos após, e milhões de quilômetros haviam sido vencidos em estado de desmaterialização. E isso através hiperespaço, uma dimensão cuja compreensão requeria raciocínio pentadimensional. Coisa que os ferrônios desconheciam, logo...

Rhodan suspirou, vendo que empacara mais uma vez no mesmo ponto daquelas cogitações. Ainda bem que o Thort se comprometera a lhe obter uma entrevista com Lossos, o mais destacado cientista ferrônio, assegurando-lhe que poderiam conversar sem testemunhas. O velho cientista fazia parte do conselho de ministros, e era tido por um dos mais brilhantes cérebros da atual geração.

— O programa do espetáculo de amanhã vai depender da entrevista com Lossos, Bell — disse Rhodan. — Receio, no entanto, que o Thort tenha estabelecido determinados limites ao que Lossos pode nos comunicar; porém a telepata Ishi Matsu vai estar presente, a fim de complementar as informações. Deve saber que a formação dela está adiantada a ponto de poder transmitir mensagens mentais até a não-telepatas. Portanto temos a possibilidade de saber, durante o decorrer da palestra, se o cientista fala a verdade ou não. Saberemos até que pensamentos ele oculta atrás de uma mentira.

— Situação besta! — resmungou Bell, enquanto se dirigiam no automóvel elétrico para o atual palácio do Thort. — A gente quebrando a cara para ajudar esse pessoal, e eles cheios de desconfiança...

— Ora, tente compreender, Bell! — disse Rhodan, defendendo o ponto de vista dos ferrônios. — O que procuro saber se relaciona a um fato histórico antiqüíssimo, relembrado apenas na tradição desta raça. Estou certo de que nem eles próprios conhecem maiores detalhes a respeito, mas sei que tem algo a ver com os transmissores pentadimensionais de matéria. E este acontecimento, ocorrido há muitos milhares de anos, deve ter se revestido de aspectos tanto agradáveis, como penosos. O Thort vai tentar evitar, de todos os modos possíveis, que eu tome conhecimento dele na íntegra; se é que alguém o conhece integralmente.

— Acha que os ferrônios ganharam os transmissores de presente?

— Isso mesmo — concordou Rhodan. — E me interessa muito saber quem foram os doadores.

O carro parou, e os dois homens desceram. Ishi Matsu, a graciosa japonesa, já estava à espera, conforme combinado. Dez minutos mais tarde, se encontravam na presença de Lossos.

Com ar circunspecto, o idoso cientista balançou a cabeça.

— O Thort, nosso grande soberano, pôs-me a par do que querem saber. Confesso que se trata de assunto bastante delicado, porém a luta em comum contra os tópsidas nos tornou amigos; e entre amigos não cabem segredos. Recebi permissão para lhes contar tudo que sei sobre a origem dos transmissores.

— Obrigado! — disse Rhodan, se concentrando para ler em seu íntimo.

Ishi lhe comunicava: “Ele está falando a pura verdade.”

— Reconheço que o Thort nos dá com isso uma prova de ilimitada confiança — continuou Rhodan. — A execução técnica dos transmissores revela a inacreditável genialidade de seus construtores; eu gostaria de saber por que os ferrônios já não constroem tais aparelhos hoje em dia. O Thort me deu alguns planos na véspera de minha última viagem ao Sol. Mas sua única utilidade foi a de indicar a existência de determinado segredo.

— Os ferrônios nunca foram capazes de construir transmissores desse tipo — declarou Lossos; observação que não surpreendeu Rhodan nem um pouco. — Foram feitos por uma raça estranha, à qual prestamos outrora valiosa ajuda; nos presentearam com uma série dos misteriosos aparelhos, nos cedendo igualmente os planos de fabricação. Mas só poderíamos fabricar os transmissores quando alcançássemos a imprescindível maturidade tecnológica e ética. Por isso, os planos autênticos foram depositados numa urna, no Palácio Vermelho de Ferrol; fechaduras e campos de proteção pentadimensionais impedem o acesso de quem quer que seja a esta urna. A não ser que uma pessoa capaz de pensar na quinta dimensão descubra a chave. Portanto, a raça que nos ofertou o valioso presente se mostrou previdente. Jamais o poder representado pela posse dos transmissores poderá ser mal empregado, pois só quem possuir maturidade para isso poderá fabricá-los.

“Ele continua falando a verdade”, comunicou Ishi mudamente.

— Quem eram esses desconhecidos? — perguntou Rhodan, sem hesitar. Pois também quanto a este particular tinha suas suposições, e queria confirmá-las.

Lossos sorriu suavemente, e seu olhar se perdeu na distância. Parecia querer retornar aos milênios passados, para conjurar mais uma vez fatos do passado longínquo.

— Ainda desconhecíamos viagens espaciais naquela época, e nossa História recém-começava. No entanto, sabíamos que não estávamos sós no Universo. Pois tínhamos recebido visitantes do espaço. Primeiro uma enorme esfera desceu entre nós, mas nem a tradição oral guardou minúcias do acontecimento, que não teve conseqüência alguma. Os desconhecidos tornaram a partir, e nunca mais retornaram. Isso deve ter sido há uns dez ou doze mil anos. Suponho que alguns de nossos deuses foram moldados à semelhança daqueles visitantes do espaço.

— Como entre nós — murmurou Bell, sem que ninguém lhe desse atenção.

— Houve uma segunda visita — continuou o sábio ferrônio. — Diferente, sob diversos aspectos, da primeira. O principal é que não foi deliberada; eles se viram obrigados a fazer uma aterrissagem de emergência em Ferrol. Do que resultou um contato talvez nem planejado. A nave dos desconhecidos, um gigantesco cilindro, se espatifou contra as montanhas dos sichas, se incendiando logo após o desembarque dos viajantes. Quase todos se salvaram. Nossos antepassados, tomando-os pelos mesmos deuses anteriormente aparecidos, receberam-nos com a maior cordialidade. De bom grado lhes forneceram, depois, as matérias-primas solicitadas para a construção de misteriosos aparelhos, que possibilitariam, aos estranhos, o regresso à pátria. Adivinhou, tratava-se de transmissores pentadimensionais de matéria. E nem tinham outro recurso, já que todos os aparelhos de bordo, e seus meios de comunicação haviam sido destruídos na catástrofe. E um belo dia, os desconhecidos desapareceram.

— Deixando para trás os transmissores?

— Exatamente. No entanto, antes de partir, o chefe da expedição malograda dera ao Thort de então todas as explicações necessárias ao seu funcionamento. Os desconhecidos provinham de nosso sistema, de um planeta de Vega cuja órbita fica logo depois da de Rofus. Do décimo planeta, portanto, conforme sempre supusemos. Estavam se iniciando na espaçonáutica, e aquela era sua primeira expedição de longo alcance. Apesar de pouco versados em questões tecnológicas, nossos antepassados adivinharam que aquela visita talvez fosse significativa no futuro. Em vista disso, prepararam registros que conservamos até hoje. É deles que retiramos nosso conhecimento dos fatos.

Rhodan relembrou fugazmente a afirmativa anterior do Thort, dizendo que já não havia quem recordasse com exatidão os acontecimentos daquela época remota. Devia ter mudado de opinião, portanto. Ishi comunicou que Lossos continuava sendo sincero.

— O chefe da expedição doou os misteriosos aparelhos ao Thort, lhe entregando igualmente os planos detalhados de fabricação; mas estes ficaram guardados no Palácio Vermelho, defendidos pelas medidas de segurança já mencionadas. Depois desapareceu também. Só nos restaram as recordações e os transmissores.

Lossos se calou. Rhodan aguardou, porém o cientista concluíra sua exposição.

— O que é que se sabe ainda, atualmente, acerca dos desconhecidos supostamente originários do décimo planeta? — perguntou Rhodan. — Segundo me consta, os ferrônios poderiam visitá-lo quando bem lhes aprouvesse; no entanto, nunca ouvi vocês dizerem que aquele mundo era habitado.

— É desabitado. E, se nossos pesquisadores não estiverem enganados, jamais houve vida nele. Neste particular, os estranhos mentiram.

Detalhe surpreendente aquele. Rhodan não escondeu seu desapontamento.

— Quer dizer que não é certo serem naturais deste sistema? Que pena! Pois eu gostaria de conhecer pessoalmente os inventores daqueles fabulosos aparelhos. Verdadeiramente lamentável... Não há pista alguma que possa apontar sua verdadeira origem? Que aparência tinham eles?

— Os registros são omissos neste ponto. Talvez se parecessem conosco, ou com vocês arcônidas. Quanto a pistas... — Lossos hesitou.

“Está considerando consigo mesmo se pode ou não falar a respeito”, sinalizou a japonesa. Rhodan e Bell aguardaram em silêncio.

— ...talvez exista uma, mas não sei se vai esclarecer grande coisa — continuou Lossos. — Nos longos anos de sua involuntária estadia em Ferrol, nenhum dos estranhos morreu. Nem um só, apesar de haver entre eles alguns de aparência bastante idosa. Em resposta às perguntas feitas por nossos antepassados, afirmaram poder viver mais do que o sol.

— Um indício bem valioso — observou Rhodan, gravemente. — Pelo menos nos permite deduzir que alcançavam idade muito avançada. Só não compreendo por que jamais tornaram a visitar este mundo; seria de esperar que no decurso de tantos milênios eles tivessem retornado uma vez ou outra.

— Sou da mesma opinião, Rhodan — disse Lossos. — Fiz-me esta pergunta por um número incontável de vezes, sem chegar a conclusões lógicas. Acabei admitindo duas hipóteses: ou os estranhos habitavam outro sistema, jamais regressando ao de Vega; ou se tornaram vítimas de um cataclisma cósmico. Na verdade, os registros indicam vagamente essa possibilidade. Pois o chefe da expedição disse certa vez ao nosso Thort: “Vivemos mais do que o sol, mas justamente ele procura impedi-lo.” Não sei que conclusões tirar disso.

Bell ia falar, porém percebeu a tempo um olhar de advertência de Rhodan, e permaneceu calado.

“Também Lossos acredita que eles emigraram”, comunicou Ishi revelando sua continuada atenção.

“Mas neste caso existiriam restos da civilização abandonada no décimo planeta”, replicou-lhe Rhodan, mentalmente.

Uma história bem estranha. Tinha existido no décimo planeta uma cultura avançada, sem que restasse dela o menor vestígio. Totalmente impossível! Mesmo núcleos populacionais reduzidos deixam traços de sua passagem, perceptíveis até depois de quinhentos séculos. Logo, o povo quase imortal que explorava o cosmo e pensava na quinta dimensão não poderia ter sumido sem deixar sinal. Que destino teria tomado?

Rhodan se ergueu abrutamente.

— Grato pelos esclarecimentos, Lossos. Foram de grande valor. Deve estar tão interessado quanto eu em obter respostas para todas estas incógnitas. Por conseguinte, convido-o a me acompanhar numa expedição ao décimo planeta; tenciono partir muito em breve, assim que tivermos expulsado definitivamente os tópsidas do sistema Vega. Talvez juntos encontremos alguma pista.

— Seu convite constitue uma honra — disse o sábio, tomando a mão estendida de Rhodan. — Representa a satisfação de um desejo longamente acalentado — apertou igualmente as mãos de Bell e de Ishi. — Segundo depreendi das informações coletadas por nossos pesquisadores, não toparemos com dificuldades, principalmente porque suas naves são bem mais velozes do que as nossas. Creio que a lacuna existente entre Rofus e o décimo planeta não vai nos atrapalhar em nada.

Por um breve instante, Rhodan permaneceu rígido. Mas logo voltou a sorrir obsequiosamente.

— Claro que não! — afirmou, empurrando Bell para a porta. — Não vai atrapalhar nem um pouco!

 

Enquanto os tópsidas ultimavam os preparativos para a aterrissagem da nave-correio, Rhodan empreendeu a primeira tentativa concreta de furtar os planos de construção dos transmissores. Levava consigo Tako Kakuta e Ras Tshubai, os dois teleportadores. O transmissor individual secreto lhes permitiu penetrar no Palácio Vermelho. Wuriu Sengu tinha preparado um roteiro exato da localização da casa-forte, de maneira a poupar a Rhodan o trabalho de procurá-la. E Sengu não deixou de anotar o ponto onde existia um obstáculo impenetrável até para seu olhar de vidente. Pela primeira vez na vida deparava com matéria que resistia às suas capacidades paranormais.

Tiveram que agir com cautela, pois o movimento no palácio era intenso. Os dois telepatas sondavam previamente o terreno, mediante saltos rapidíssimos, a fim de que Rhodan pudesse prosseguir sem correr perigo. Durante a maior parte do percurso, usaram as passagens secretas entre as grossas paredes; mas às vezes precisavam atravessar corredores e amplos salões, o que representava um possível encontro com o inimigo.

Chegaram finalmente às dependências mais afastadas e tranqüilas do imenso prédio, já no subsolo.

Retornando de um salto, Tako informou:

— Diante de nós fica um corredor, que forma um ângulo, dando depois para um salão. Caso os dados de Sengu estejam corretos, encontraremos neste recinto o que procuramos. Mas temo que terá uma surpresa inesperada, Rhodan.

Rhodan seguiu o japonês sem fazer comentário algum, enquanto o africano formava a retaguarda.

O corredor desembocava diretamente num recinto de vastas proporções, sem porta divisória. Devia medir cerca de cinqüenta metros de comprimento, por cinco metros de altura. Os três intrusos acenderam suas lanternas de mão. Os focos varriam as trevas, encontrando apenas paredes lisas e nuas. Rhodan não tardou a constatar que a sala subterrânea estava inteiramente vazia. Ligeiramente decepcionado, tirou do bolso o roteiro fornecido porSengu. Os dois telepatas se aproximaram para examiná-lo igualmente.

— Confere, o salão é este mesmo. E o cofre ou arca que guarda os planos deve se encontrar bem no meio dele. No entanto, não vejo nada. Talvez Sengu tenha calculado mal a profundidade, e exista um segundo salão abaixo deste.

— Vou verificar — ofereceu Ras, desaparecendo instantaneamente. Mas logo retornou, com ar intrigado, dizendo: — Estamos sobre rocha sólida. Não existe qualquer vão oco debaixo de nós. Lá em cima não tem cofre nenhum. Logo, ele tem que estar aqui, por trás do tal obstáculo invisível que os olhos de Sengu não conseguiram penetrar. Como ele viu a coisa, ela não pode ter sumido sem mais nem menos. Seria paradoxal.

— Muitas vezes o paradoxal é que é o verdadeiro, quando se raciocina na quinta dimensão — observou Rhodan, fitando pensativamente a parede oposta.

— Que quer dizer com isso?

— Com seus dons paranormais, Wuriu é capaz de enxergar através de qualquer espécie de matéria; basta ajustar os olhos para a respectiva estrutura atômica. Só não pôde ajustá-los à estrutura pentadimensional desta cúpula ou abóbada que recobre a arca com os planos; ela é impenetrável, apesar de Sengu poder vê-la externamente. Existe de fato, e está nesta sala. Para nós, não-videntes, ela é invisível; e seria igualmente invisível para Sengu caso ele olhasse para ela de maneira normal.

— Não entendi uma só palavra de tudo isso! — exclamou Ras Tshubai.

— Até eu só entendo mais ou menos — confessou Rhodan, sorrindo. — Vamos verificar onde começa o invólucro protetor.

Mal deram alguns passos, chocaram-se contra uma barreira invisível. Rhodan, com os braços estendidos para a frente, não se mostrou surpreso. Limitou-se a um breve aceno, como se esperasse por aquilo.

— Conforme eu supunha. Uma imagem reflexa materializada. Uma visão sólida. Fabuloso... mas inexplicável.

Meio intimidado, Tako passou a mão sobre a superfície lisa do obstáculo invisível: a barreira imaterial.

— Mas não se vê nada! Parece ar...

— E, no entanto, impede a passagem do olhar de Sengu. E do nosso também. Basicamente, trata-se de uma ilusão de ótica.

Seja qual for o ângulo de visão, o reflexo se altera constantemente, de maneira a dar sempre a impressão de que o observador está olhando do lado oposto. Ras, vá até o outro lado do salão, e me diga se pode nos ver. Vá contornando a abóbada.

Seguindo, às apalpadelas, a parede invisível, o africano postou-se num ponto diametralmente oposto ao de Rhodan e Tako. O corpo invisível ficava entre eles. Viam-se livremente.

— E no entanto, essa coisa resistiu ao olhar de Sengu — disse Rhodan. — Técnica incrível... E, uma vez que o olhar de Sengu não pode atravessá-la, você também não pode, Tako, nem mesmo em estado de desmaterialização. Experimente...

Tako não esperou segunda ordem; seu lugar ficou vazio de repente. Rhodan ainda ia acrescentar uma recomendação adicional, porém o japonês fora rápido demais. No profundo silêncio do imenso recinto, seu grito de dor ecoou tão alto que os dois outros homens estremeceram involuntariamente. Depois presenciaram uma cena bizarra.

Tako materializou-se em pleno ar, escorregando depois ao longo da parede invisível; agitando freneticamente braços e pernas, procurava apoio no vazio. A expressão do rosto denotava ilimitada surpresa e incompreensão. Atordoado, e tremendo da cabeça aos pés, deslizou para o chão.

— Que... que foi isso? — gaguejou.

— A barreira — explicou Rhodan. — Você se projetou contra ela, e escorregou para baixo, só isso. Portanto, para você também ela é impenetrável. Vou consultar o cérebro eletrônico; o problema é complexo demais para mim.

Ras voltou cautelosamente para junto deles.

— Que coisa assombrosa! — observou, impressionado. — É algum anteparo energético?

— Qualquer anteparo energético permitiria a passagem desimpedida de teleportadores, Ras; porém um campo pentadimensional, nunca. Simplesmente porque ele não se encontra aqui, porém em outro lugar. Não consigo lhe explicar direito, porque me faltam as palavras adequadas. Pode ser que eu me encontre no limiar da compreensão, mas apenas no limiar. Pressinto as conexões, o que é escassamente suficiente para fornecer dados ao cérebro eletrônico da Stardust-III. Talvez ele possa me dar uma resposta. Vamos embora! Por enquanto estamos perdendo tempo aqui.

Em silêncio, os três homens empreenderam o caminho de volta, deixando atrás de si um recinto vazio, que abrigava o maior segredo do Universo.

 

Poderia se dizer que raiara o mais belo dia da vida de Reginald Bell. Ainda de madrugada, convocou os mutantes em torno de si, mostrando-se alegre e bem disposto. E nem reclamou quando Anne Sloane, aborrecida com suas piadas sem graça, o fez flutuar para cima do telhado de uma casa sicha. Com o maior desplante, continuou a contar como tinha arrancado certo dia os botões das calças do suboficial que o comandava, tornando a costurá-los nos lugares mais absurdos. Descreveu com minúcias os locais escolhidos, o que levou Anne a retirá-lo do telhado, suspendendo-o no ar.

— Pare com isso, ou vai ver uma coisa! — ameaçou a moça.

Bell agitava os membros como se estivesse nadando.

— Pois foi exatamente o que o suboficial me disse! — berrou lá do alto. — Só que você pretende me dar um tombo, enquanto ele pretendia me reprovar no curso de formação de oficiais. E, no entanto, nem ele próprio...

— Reginald Bell! — reclamou John Marshall, o telepata. — Decididamente, seus pensamentos são altamente impróprios! Pelo menos, para ouvidos de moças... Anne tem toda a razão em deixá-lo de castigo aí em cima.

— Que bem me importa! — afirmou Bell, se bem que sua voz se mostrasse um tanto insegura. — Esses poucos metros...

— ...bastariam para lhe quebrar todos os ossos do corpo, em vista da gravidade mais intensa deste planeta — avisou Anne. — Comporte-se que o faço baixar sem perigo.

— Desço sozinho! — gritou Bell, tentando se agarrar à beirada do telhado. Mas estava longe demais. — Tama Yokida, tire-me daqui! Nós homens precisamos nos amparar mutuamente.

O japonês de porte médio, um telecineta como Anne, encarregou-se do aflito Bell, fazendo-o flutuar para mais perto da casa. Conseguindo alcançar o telhado, Bell engatinhou pelas toscas telhas de madeira.

— Tragam uma escada! — declamou solenemente, acrescentando: — Temos que provar às mulheres que somos seres independentes!

A escada se aproximou flutuando, como que conduzida por mãos imateriais, e foi colocada na posição apropriada contra a casa. Sem comentar o fato, Bell voltou a pisar solo firme, e postou-se marcialmente diante de Anne, dizendo:

— Vejo-me forçado a censurá-la, minha cara, por desperdiçar seus valiosos dons.

— É verdade — concordou Anne. — Com objetos sem valor.

Todos riram, apesar de ninguém, com exceção dos telepatas, saber ao certo se ela se referia a Bell ou à escada.

O transmissor do grupo de resistência veio interromper o divertido incidente. A nave-correio tópsida se aproximava de Ferrol. Era hora de entrar em ação.

Bell recuperou instantaneamente a seriedade. Incisivamente deu suas ordens:

— Wuriu Sengu vai primeiro; depois Anne Sloane, como telecineta, e André Noir como hipno. Quanto aos demais, conservem-se de prontidão, para seguirem assim que eu os convocar. Tudo claro?

Sem aguardar resposta, Bell entrou na pequena cabina gradeada, desaparecendo em poucos segundos. Os mutantes o imitaram, na ordem indicada.

 

Mais de duzentos dos bojudos cruzadores se alinhavam ordenadamente no imenso espaçoporto de Thorta, com as respectivas tripulações formadas diante deles. Tequer-On,. nomeado comandante da frota, retornava ao Palácio Vermelho depois da inspeção final. Rok-Gor já estava à sua espera.

— Tudo pronto para a recepção ao comissário — informou Tequer-On. — Para quando é a aterragem?

— A qualquer momento. A nave já se comunicou com o serviço de proteção ao vôo. Tem ocorrido novos... — com uma ligeira hesitação, Rok-Gor concluiu: — incidentes?

— Não. A situação está absolutamente normal. Acho que os ferrônios desistiram.

— Os arcônidas! — replicou Rok-Gor, irritado. — Se tudo correr a contento, poderemos destruir este nono planeta depois da partida da comissão. Esses imperialistas emproados merecem uma boa lição. Onde está Crek-Orn?

— Aguarda no espaçoporto.

— Muito bem. Vamos para lá.

Tudo fora preparado de acordo com o cerimonial tópsida. Diante da tropa formada se erguia uma tribuna, aparelhada com instalações para transmissão de imagem e som. Rok-Gor fazia questão de que o Déspota de Topsid, a mais de oitocentos anos-luz dali, testemunhasse o acerto das providências tomadas pelo novo chefe supremo das forças expedicionárias, em boa hora nomeado pelo Déspota. Depois disso, a ambicionada promoção a almirante do espaço seria questão apenas de tempo. E pouco se lhe dava saber que a medida implicaria na morte ou no exílio do infeliz Crek-Orn.

Portanto, era compreensível que este aguardasse a chegada do comissário com sentimentos contraditórios. Imiscuindo-se por instantes nos pensamentos de Crek-Orn, André Noir se sentiu um tanto compadecido, e decidiu que o ambicioso Rok-Gor ia pagar caro por isso.

O carro parou. O comandante-em-chefe desembarcou, seguido por Tequer-On. Aproveitou o período de espera para vistoriar as tropas. O ambiente era festivo, fazendo pensar em feriados e comemorações; não fossem as naves-patrulhas percorrendo infatigavelmente o espaço em velocidade igual à da luz, a fim de se precaver contra surpresas desagradáveis, ninguém diria que se estava no meio de uma guerra. E os tópsidas acreditavam firmemente que suas patrulhas espaciais os protegiam de todo o ataque inesperado...

No compartimento secreto, junto ao transmissor, Bell acompanhava os acontecimentos através dos comentários de Sengu. O vidente via tudo como se estivesse fisicamente presente à parada dos reptilóides.

— Ele terminou o solene desfile diante das tropas; sujeito posudo, esse novo comandante... E nem sequer ganhou o cargo por mérito seu. Se nós não tivéssemos pendurado Crek-Orn no lustre... a nave-correio está chegando. Um trambolho sem tamanho, do ponto de vista tópsida. Um canudo barrigudo, como as demais naves deles. Aterrissa agora. As tropas apresentam os fuzis energéticos. Abre-se a porta de desembarque. Uma lagartixa surge na abertura. Minha nossa, nunca na vida vi uniforme tão embandeirado! André, é sua vez. Não posso ouvir o que dizem. Você é que é o ledor de pensamentos.

André Noir tomou a palavra:

— Rok-Gor mandou os homens prestarem continência, e se aproxima do comissário. Este passou da nave diretamente para a tribuna, onde caberiam folgadamente dois batalhões. Tem uma comitiva de uns vinte reptilóides, que ficam sempre a respeitosa distância, para acentuar a importância do comissário. Dentro da nave, os aparelhos transmissores já estão funcionando. A mais de oitocentos anos-luz de distância, o Déspota testemunha visualmente os acontecimentos galácticos.

O comissário deteve-se, aguardando a aproximação de Rok-Gor. Este, perfilando-se meio a contragosto, saudou e informou:

— Em nome de minha tropa, dou as boas-vindas ao comissário do Déspota, em sua chegada ao mundo conquistado número oito de Vega, denominado Ferrol. A situação está sob controle, nossas forças são superiores, e a destruição final do inimigo é iminente.

O comissário indagou, de cenho franzido:

— E os erros imperdoáveis que têm sido cometidos? Será que Crek-Orn nada tem a declarar em sua defesa?

O ex-comandante se mantinha discretamente afastado. Ouvindo seu nome, adiantou-se com ar contrito. Nos negros olhos de réptil refletia-se tristeza e um pouco de medo.

— Não lutamos apenas contra os ferrônios — disse ele — mas também contra os odiados arcônidas. Eles se instalaram também neste sistema, conforme era de supor após aqueles pedidos de socorro que captamos. Suas armas de combate superiores...

— Superiores?! — exclamou o comissário, com ar interrogativo. — Rok-Gor, a luta não estava praticamente decidida?

Neste momento, André Noir tomou conta do desamparado Crek-Orn.

— Mas ela nem chegou a começar direito! — reclamou o almirante, em tom enérgico. — Rok-Gor esconde do eminente comissário as dificuldades que também ele não conseguiu superar. Tópsidas são encantados, objetos inertes flutuam no ar, cruzadores perdem o controle e alvejam os companheiros, a mente de nossos oficiais é perturbada, e...

— Mentira! — berrou Rok-Gor, fora de si. — Isso tudo é pura mentira! Crek-Orn quer é disfarçar sua total incapacidade. Lidamos com adversários inteiramente normais.

— Estou pronto a conceder que nosso adversário é normal — interrompeu Crek-Orn, valentemente. — Mas é indiscutivelmente superior. Recomendo o abandono imediato deste sistema!

O comissário acompanhava com extremo interesse a altercação entre os dois oficiais. Empertigando-se, falou em tom severo:

— Que significam essas contradições? Que foi que se passou aqui realmente?

— Muita coisa! — gritou Crek-Orn, sem esperar que ele acabasse de falar. — Oficiais se amotinaram...

— E foram devidamente punidos — interrompeu Rok-Gor. — Fatos como estes ocorrem periodicamente, e não constituem motivo suficiente para cancelar uma investida vitoriosa.

— Os ferrônios contam com o apoio dos arcônidas, comissário! E possuem uma nova espécie de arma, com a qual influenciam a mente de outros seres. Com ela, podem até assumir o controle de nossas espaçonaves.

Da nave-correio vinha uma voz ampliada pelo alto-falante:

— Aqui fala o Déspota! Quero esclarecimentos imediatos acerca das ocorrências em Ferrol! O adversário precisa ser derrotado, seja ele quem for! E caso Rok-Gor se mostre igualmente incapaz desta tarefa, serei obrigado a nomear um novo comandante. Onde está Tequer-On?

— Abaixo o Désposta! — berrou o comandante da frota bélica, entusiasticamente. — Abaixo o comissário!

— Que foi que ele disse? — indagou o comissário, inclinando a cabeça para o lado, como quem não escuta bem.

Tequer-On se adiantou, declarando:

— Abaixo o regime de opressão do Déspota, foi isso que eu disse. Os ferrônios nunca nos fizeram mal, e não temos nada a fazer em seu sistema. Abaixo o comissário! Não precisamos de espiões sujos por aqui!

O corpulento reptilóide de pé sobre a tribuna arquejou, com falta de ar. A garra esquerda fez um sinal aos soldados de sua comitiva. Pistolas de raios rebrilharam ao sol ao serem sacadas dos coldres.

— Motim, Déspota! — informou ele. — Revolta declarada dos oficiais. Suas ordens?

— Morte aos revoltosos! — ordenou o Déspota.

Rok-Gor levou de repente a mão à cintura, puxando sua pistola. Sem uma só palavra, apontou para o comissário e apertou o disparador. O alto dignitário caiu morto. Seus acompanhantes, momentaneamente imobilizados pelo terror, levaram alguns segundos para retribuir o fogo e abater Rok-Gor. Depois se refugiaram apressadamente na nave, sem serem molestados por mais ninguém. A passarela foi recolhida. Mais uma vez a voz amplificada do Déspota se fez ouvir:

— Crek-Orn, apresente-se com sua frota em Topsid assim que levar a bom término esta guerra. Se me vier com a notícia da derrota, sua sentença de morte estará assinada. E nem pense em não regressar; nós encontraremos tanto você quanto seus oficiais.

A voz emudeceu. Estremecendo, a enorme nave se ergueu do chão. A seguir levantou vôo em velocidade alucinante. Não tardou a desaparecer no céu sem nuvens de Ferrol. Segundos mais tarde, o derradeiro eco do ruído dos propulsores se perdia no ar, restabelecendo o silêncio anterior.

Apenas Crek-Orn não se acalmava. Com toda a força dos pulmões, bradava repetidamente:

— Viva o Déspota! Viva nosso glorioso Déspota! Três vivas para o Déspota de Topsid!

O cruzador número trinta e sete alçou-se de repente da pista com a maior suavidade, ergueu vôo verticalmente, descreveu um 8 perfeito no ar, e despejou uma salva de neutrônios sobre o local da parada. Os reptilóides se jogaram no chão, procurando cobertura. Tequer-On berrava ordens desconexas, mandando um dos oficiais perseguir o cruzador com um caça, e deter seus tripulantes. Para espanto seu, foi informado de que o cruzador decolara sem tripulação.

Instantaneamente Tequer-On compreendeu que a frota inteira poderia, a qualquer momento, imitar o exemplo do cruzador número trinta e sete.

Os ferrônios e os arcônidas eram invencíveis.

— Para os cruzadores! — bradou, apavorado. — Todo mundo a bordo! Partimos de Ferrol agora mesmo! Aguardar novas instruções!

No compartimento secreto do Palácio Vermelho, André Noir acenou apreciativamente para Bell:

— Esta decisão é dele mesmo; deu a ordem sem a menor influência alheia. Acho que as lagartixas acabaram criando juízo. E, conforme Sengu vê, nem Crek-Orn se opõe à tese da retirada imediata. Pelo contrário, apóia integralmente a idéia. Creio que estamos livres dos tópsidas. Anne, que tal uma demonstração de encerramento?

A moça segurou o braço de Sengu.

— Deixe-me ver como estão as coisas — disse ela, com um aceno afirmativo.

Bell saltitava de impaciência, louco por participar diretamente dos acontecimentos. Nem poderia vê-los, metido naquele esconderijo. Mas o palácio não fora desocupado pelo inimigo? Bem que poderia ir apreciar o espetáculo no alto do telhado...

— Aguarde dois minutos antes de dar início ao show aéreo das lagartixas — pediu a Anne, e disparou para fora do compartimento. Os mutantes ouviram seus passos apressados ecoar pelo corredor.

— Cara imprudente! — resmungou Anne, voltando às suas sindicâncias telepáticas. — Que se passa, Sengu?

— Retirada ordenada — respondeu o japonês. — Abandonam a maior parte do equipamento em Thorta. Talvez pretendam vir recuperá-lo mais tarde.

— Já vou lhes tirar a vontade de pensar nisso! — anunciou Anne, controlando no relógio os dois minutos de prazo pedidos por Bell. Só depois de Sengu avisar que ele atingira o telhado do palácio, de onde observava o espaçoporto, tremendo de antecipação, Anne se concentrou como jamais se concentrara em toda a sua vida.

 

— Eu diria que os tópsidas jamais retornarão a Ferrol a fim de buscar o equipamento abandonado — disse Perry Rhodan ao Thort. — Bell e o Exército de Mutantes lhes deram uma lição de mestre, pregando-lhes um susto que nunca esquecerão. Eu não me surpreenderia se eles se retirassem definitivamente do sistema Vega.

Thora, que participava da reunião com Crest, sacudiu a cabeça:

— O cérebro eletrônico afirma, com 99% de certeza, que eles não farão isso. Em Topsid os espera um fim inglório. Crek-Orn e Tequer-On prefeririam procurar algum planeta desabitado onde se estabelecer, do que enfrentar a ira do Déspota. E a conclusão do computador confere com a experiência que obtivemos no convívio com os tópsidas. Convém ficar de olho neles.

Bell, que tinha acabado de chegar de Thorta, deu de ombros.

— Esses estão curados. Nossa colega Anne organizou um verdadeiro baile com as naves da frota tópsida. Nem queiram saber como foi bonito ver a nave-capitânia rodopiar numa valsa com um cruzador de patrulha!

— É melhor lidar com espectros do que enfrentar a morte — comentou Thora, indulgentemente. — Principalmente quando se trata de espectros brincalhões.

— Será que fui clemente demais? — indagou Bell, zangado.

— Apesar disso, você conseguiu terminar uma guerra interplanetária, ou melhor, interestelar, com um mínimo de baixas. Uma nave foi perdida, e o comissário e Rok-Gor morreram. Não se poderia desejar maior clemência.

— Foi por ordem minha — interrompeu Rhodan, defendendo o amigo. — No presente caso, os efeitos resultantes serão mais duradouros. Deringhouse se encontra no espaço com sua esquadrilha, observando os movimentos dos tópsidas em fuga. Aguardo notícias dele a qualquer momento. Segundo seu último comunicado, os reptilóides com suas trezentas e setenta naves já ultrapassaram a órbita do trigésimo oitavo planeta.

— Em vista disso, parece que tencionam realmente fugir — comentou Thora, surpresa. — Será que o cérebro eletrônico cometeu um engano?

Rhodan não respondeu. Para ele, era bastante improvável que o computador tivesse errado. Que estariam planejando os tópsidas, agora que não tinham mais chance alguma naquele sistema?

 

Vega, a estrela de luz azulada, contava com quarenta e dois planetas em seu sistema. Os mais afastados eram mundos gelados e mortos, tão distantes do sol que este não tinha condições para lhes fornecer calor. Mesmo seus raios mal alcançavam os solitários vagantes do espaço.

O quadragésimo planeta pertencia ao grupo dos filhos pródigos do sistema Vega. De proporções gigantescas, constituía quase um sistema planetário próprio com suas seis luas, das quais a menor se igualava, em tamanho, a Plutão. As luas não apresentavam fases, permanecendo perenemente nas sombras. Qualquer delas poderia ser tomada por um planeta de porte pequeno ou médio, pois possuíam características idênticas à do mundo cujo campo gravitacional as mantinha subjugadas. Uma das luas ainda contava com satélite próprio, do tamanho de um continente.

A frota tópsida em retirada, sempre acompanhada à distância visual pelos caças espaciais de Deringhouse, cruzou a órbita do trigésimo nono planeta; descrevendo uma parábola, entraram na do quadragésimo.

A manobra surpreendeu Deringhouse. Estava certo de que os reptilóides afundariam no hiperespaço assim que saíssem do âmbito do sistema Vega. E agora aquilo!

Porém ainda lhe estava reservada surpresa maior. As naves adversárias dividiram-se em seis grupos mais ou menos iguais em número, tomando direções diversas. Deringhouse teve presença de espírito suficiente para destacar imediatamente pequenas patrulhas perseguidoras para cada grupo. Como estava em contato audiovisual com os respectivos comandantes, não tardou a ter uma visão global do que ocorria.

Os tópsidas nem pensavam em desistir dos planos concernentes a Vega. A volta à pátria lhes estava vedada, caso não regressassem vitoriosos. Necessitavam, pois, de uma opção mais imediata: recuar até a orla do sistema, de onde poderiam tentar recuperar o terreno perdido. E as seis luas do quadragésimo planeta lhes pareceram local apropriado para estabelecer uma base provisória.

Deringhouse deixou seis caças patrulhando as cercanias do quadragésimo planeta, com ordem de informar imediatamente qualquer movimento do inimigo. Voltou com o resto da esquadrilha para Rofus, a fim de apresentar relatório pessoal a Rhodan.

Decepcionado, constatou que as novidades trazidas não haviam desencadeado a esperada reação de surpresa. Rhodan apenas acenou com a cabeça, e mandou estabelecer um serviço de vigília, numa ampla órbita em torno do quadragésimo planeta; desta forma, os tópsidas não teriam a menor possibilidade de lançar um ataque inesperado. Depois acrescentou:

— Ainda preciso solucionar alguns assuntos importantes. Encarregue-se do serviço de vigilância, Deringhouse, e dê o alerta assim que perceber movimentação por parte dos reptilóides. Obrigado, é só.

Esperou que o oficial deixasse a sala, e voltou-se para Bell, acomodado em silêncio numa poltrona.

— Vá chamar o Thort, Crest e Thora. Preciso falar com eles.

— Posso assistir? — indagou Bell.

— Faço questão disso — confirmou Rhodan. — Quero a presença de John Marshall também. Preciso ter a certeza de não ser tapeado pelo Thort. E agora, mexa-se! Tenho pressa.

— Vou voando! — exagerou Bell, levantando-se com um bocejo. Com marcada displicência deixou a sala.

“Os tópsidas constituem problema secundário, que acaba se resolvendo sozinho”, refletia Rhodan. “Os ferrônios é que representam o verdadeiro problema. E, como soberano deles, o Thort personifica as dificuldades. Prestamos-lhes ajuda, logo eles deveriam se mostrar reconhecidos. No entanto, não demonstram a menor intenção de agradecer. Logo, vejo-me obrigado a forçá-los a uma demonstração de gratidão. O segredo dos transmissores...”

Crest e Thora chegaram primeiro.

Apertando a mão de Rhodan, o sábio arcônida tomou lugar ao lado dele. Thora, que naquele dia parecia mais acessível, até sorria; e conservou a mão de Rhodan entre as suas por um espaço de tempo mais longo do que o habitual. Nos olhos dela brilhava algo que tornou Rhodan pensativo, porém não eram pensamentos negativos que ocupavam sua mente. Sabia que hoje podia contar com o apoio dela, o que, Deus sabe, era bastante raro.

— Ótimo terem se antecipado — disse Rhodan, a título de introdução. — Gostaria de lhes apresentar resumidamente o plano de ação que tenho em mente. Os transmissores me interessam tanto quanto a vocês. Portanto, temos que nos apoderar, a qualquer preço, dos planos de construção deles. O Thort não os cederia voluntariamente, mesmo que pudesse. Acho, porém, que ele poderá nos fornecer uma pista. Lossos me revelou a existência de uma espécie de fórmula, conhecida pelo Thort; é segredo tradicionalmente passado de Thort a Thort, há muitas gerações. Só que os ferrônios não sabem o que fazer com ela. Penso que essa fórmula é a palavra-chave que abre as fechaduras pentadimensionais da arca onde estão trancados os planos.

— E espera que o soberano ferrônio lhe revele a fórmula? — perguntou Thora.

— Claro! — replicou Rhodan, sorrindo. — E de livre e espontânea vontade, caso não me queira ver recorrer a outros meios. Afinal, para que tenho um Exército de Mutantes? Alguém tomará conta de sua consciência, e...

Bell entrou com o Thort. John Marshall compareceu logo depois. Os cumprimentos foram breves e mudos, e todos tomaram assento. O Thort mostrava-se abatido. Parecia pressentir o que exigiriam dele.

Perry Rhodan não perdeu tempo em preliminares.

— Os tópsidas foram expulsos de Ferrol, e nada impede o restabelecimento da soberania ferrônia. Penso que chegou a hora da despedida, Thort.

O ferrônio teve um sobressalto.

— Mas os tópsidas continuam em nosso sistema! — observou, alarmado. — Foi este homem, Bell, quem me contou. Não estamos em condições de repelir nova invasão sozinhos.

Inclinando-se ligeiramente para diante, Rhodan disse, em tom incisivo:

— Gostaria de saber de onde me veio a idéia de ajudar vocês. Pois não vejo o menor indício de retribuição. É verdade que mandou Lossos me falar sobre a origem dos transmissores, mas para que me servem essas informações? Os poucos exemplares deste fabuloso invento constituem propriedade sua. Quero os planos de fabricação. Os que me deu anteriormente não passam de hábeis falsificações. Pura tapeação. Só que é impossível expressar conceitos pentadimensionais com fórmulas da terceira dimensão. Portanto, se quer continuar contando com nossa proteção, a fim de evitar a derrocada de seu reino, diga-me como se abre a arca no Palácio Vermelho.

Rhodan não poderia ter sido mais claro e franco. Agora o Thort sabia o que desejavam dele. Precisava se decidir. Marshall sinalizou que o ferrônio não contemplava traição alguma; considerava consigo mesmo a hipótese de falar finalmente a verdade. Mas demorou ainda alguns minutos antes de falar:

— Existe um indício, mas não creio que os leve para mais perto da solução do problema. Permita-me uma pergunta? Que sucederá quando puder construir os transmissores?

Crest se encarregou da resposta:

— Por que se preocupa com isso, Thort? Julga que a história do Universo sofreria modificação? Possuímos espaçonaves que, a rigor, funcionam com base em princípios idênticos aos dos transmissores. Passamos por um processo de desmaterialização, prosseguindo nossa viagem no hiperespaço. Assim como sucede nos transmissores. O que nos interessa é a simplificação do método, mais nada. Garanto que a estrutura da Via Láctea continuará inalterada.

— No entanto, aqueles que nos cederam o segredo viam mais longe. Determinaram que apenas os dotados de maturidade suficiente seriam capazes de compreender o método de construção, mesmo que demorasse milhões de anos. Por que deveria eu quebrar o trato?

Rhodan lançou o argumento decisivo:

— Se nós conseguirmos abrir a arca, usando a fórmula que não lhe serviu para nada, teríamos dado prova de nossa maturidade, não acha?

O Thort contemplou Rhodan de maneira inquisitiva. Por segundos, pareceu-lhe mergulhar irremediavelmente num insondável mar frio como aço. Depois, recorrendo a toda a sua força de vontade, conseguiu se libertar da imperiosa influência e decidir livremente.

— Bem, talvez tenha razão... Vou lhe revelar a fórmula. Ela é simples e fácil de guardar, mas seu sentido é incompreensível. Senão, veja: Dimensão X = Pentágono de Espaço-tempo-simultâneo. Só isso.

Crest e Thora trocaram um olhar, que, no entanto, não denotava nem compreensão, nem entendimento. Bell abriu a boca, tornando a fechá-la em seguida, com um audível suspiro. John Marshall sinalizou mudamente:

“De fato, é só isso.”

Rhodan nada mais fazia do que memorizar as misteriosas palavras.

— Lamento constatar que também não sabe o que fazer com ela — observou o Thort, sem disfarçar a satisfação. — Conhecemos estas palavras há milhares de anos, sem lhes perceber o sentido. Mais do que isso não posso fazer, e espero que reconheça minha boa vontade.

Rhodan fez um breve aceno, como que em transe.

— Agradeço-lhe, Thort. De todo o coração. Passemos agora aos assuntos práticos de nossa reunião. Quando pensa regressar a Ferrol?

Com evidente alívio, o Thort aceitou a mudança de tema.

— Os preparativos já foram feitos. Nossa frota está pronta para decolar. Eu retorno para minha pátria ainda hoje, com os membros de meu governo, por meio dos transmissores. Seguimos diretamente para Thorate, para onde foram transferidas as estações receptoras. Celebraremos uma grande festa comemorativa, na qual gostaria de ter a presença de todos vocês.

— Grato pelo convite — respondeu Rhodan, levemente zombeteiro. — Estaremos lá... Posso aproveitar a ocasião para solicitar que nos ponha à disposição em Ferrol uma zona reservada, onde possamos instalar uma base? Ela contribuirá para sua própria segurança.

— Não querem permanecer em Rofus? — indagou o ferrônio, admirado.

— Não, pois caso os tópsidas ataquem, seu alvo será Ferrol, e não Rofus. Também tenho outros motivos.

Evidentemente o Thort gostaria de conhecer estes motivos, porém não se animou a perguntar.

— Falaremos a respeito depois das comemorações. Não creio que haja objeções. Dão-me licença agora? Meus homens...

Após a saída do Thort, Bell não agüentou mais. Inspirou profundamente, expelindo depois o ar ruidosamente, como se temesse explodir.

— E a fórmula? — arquejou, com os olhos cintilando de incontida curiosidade.

Crest e Thora olhavam com expectativa para Rhodan. Porém este apenas levantou os olhos para o teto, com ar de pouco caso.

— Ora, por que me pergunta? Eu é que sei, por acaso?

Crest pareceu decepcionado, enquanto Thora sorria com menosprezo.

— A quem devo perguntar então? — quis saber Bell.

— Ao mesmo que eu vou interrogar — respondeu Rhodan, levantando-se. — E é pra já!

Nem chegou até a porta, pois Bell, erguendo-se afobado, reteve-o pela manga.

— Quem, Perry? Quem?

— O cérebro positrônico da Stardust-III, meu caro.

Crest agora sorria igualmente. Porém não havia ironia naquele sorriso, e sim contentamento.

 

A primeira parte das festividades tinha passado; logo se seguiriam comemorações mais amplas. O Thort tinha voltado a se instalar no Palácio Vermelho, retomando a administração do planeta. Por toda a parte em Ferrol os vestígios da ocupação tópsida iam sendo apagados. O povo voltava à rotina costumeira.

Uma sessão do conselho de ministros autorizou Rhodan a instalar sua base perto das montanhas onde viviam os sichas. Já no dia imediato a Stardust-III desceu no deserto pedregoso. Com seus raios energéticos ampliou uma caverna natural, a mais de mil metros de profundidade, a fim de acomodar a gigantesca esfera. Esta não tardou a desaparecer da superfície de Ferrol.

Operários-robôs se atarefavam na nova base galáctica de Rhodan, construindo oficinas, laboratórios, acomodações para o pessoal, e corredores de circulação. A rocha viva foi fundida para dar lugar a depósitos e hangares para os caças. Instalaram-se os elevadores. Por fim, um reator arcônida passou a alimentar uma vasta cúpula energética sobre o conjunto todo; com isso, ele se tornou inatacável.

Os ferrônios acompanhavam aqueles preparativos com sentimentos contraditórios, conforme verificavam os mutantes de Rhodan. Não lhes agradava nada ver os dominadores tópsidas serem substituídos por nova tutela, apesar de Rhodan ter assegurado repetidamente que aquela base só poderia beneficiar os ferrônios. Como poderiam adivinhar os planos de Rhodan? Nem imaginavam que este considerava Ferrol o primeiro membro de seu futuro Império Galáctico.

Além deste empreendimento, Rhodan ultimava os preparativos para arrancar do passado seu grande segredo. Manteve demorado diálogo com o computador gigante da Stardust-III; forneceu-lhe a fórmula obtida do Thort, e recebeu as indicações esperadas. Crest entrou enquanto Rhodan recebia a resposta.

— Sabia que você ia escolher o único caminho certo — disse o arcônida.

— E havia outro, Crest? O cérebro positrônico raciocina na quinta dimensão, assim como você e eu, graças ao meu treinamento hipnopédico. No entanto, nenhum de nós acertaria com a solução sozinho, por mais simples que ela possa parecer. O segredo todo reside na palavrinha simultâneo. Também pentágono é significativo. Porém só o conjunto faz sentido.

— Claro, visto que o raciocínio pentadimensional é uma coisa lógica — observou Crest, sorridente.

— Não no nosso Universo — respondeu Rhodan, sorrindo igualmente. — Mas, para ser franco, me sinto um tanto desapontado. Essa arca protegida por medidas da quinta dimensão não passa, afinal, de algo enquadrado na quarta dimensão que conhecemos. Os documentos existem realmente, mas não no presente, e é este o fator quadridimensional do segredo. Como anteparo protetor foram usadas ondas de rádio transformadas, oriundas de fontes ignoradas, no espaço, fabulosamente distantes. Acrescentem-se alguns truques técnicos, como efeitos de curvatura da luz e barreiras energéticas auto-estáveis. Todos esses empecilhos podem ser postos de lado quando diversos fatos ocorrem simultaneamente.

— E de que modo vai provocar a ocorrência desses fatos? — perguntou Crest. Sua pergunta deixava entrever a curiosidade de quem já conhece a resposta. Rhodan topou o desafio.

— Com meus mutantes. Tanaka Seiko é um detector natural. Pode captar ondas radiofônicas e interpretá-las, desde que tenham sido emitidas por seres inteligentes. Portanto poderá captar essas ondas radiofônicas cósmicas que dão origem à cúpula energética em torno da arca. Se conseguir desviá-las, teremos acesso livre aos documentos, que retornarão instantaneamente ao presente. Eis o princípio do problema todo.

— Mas como e por que se passa assim?

— Confesso que ignoro este ponto, Crest. O cérebro positrônico me forneceu apenas este indício. E a atuação de Tanaka sozinho não seria suficiente; porém com a colaboração dos demais mutantes, mais a possibilidade de combinar seus dons mediante contato físico uns com os outros, será viável. Preciso de um telecineta e de um teleportador; além de Sengu, naturalmente, para comunicar o momento do desmoronamento da cúpula energética.

— E o que pensa fazer com os planos? — a pergunta era de Thora, que acabava de entrar. Os insondáveis olhos vermelho-dourados fitavam Rhodan inquisitivamente.

— Caso Rhodan conseguir de fato se apoderar deles, tem direito aos planos — observou Crest, procurando apaziguar. — Senão, nem conseguiria abrir a arca.

— Ele se valeu da ajuda do cérebro positrônico...

— Que não existiria mais, pelo menos para nós, sem a oportuna intervenção dele outrora. Portanto...

— É, o argumento é convincente... — replicou Thora, sarcasticamente. Ainda não estava convencida, porém parecia mais reconciliada. — Que fará Rhodan com os planos dos transmissores?

Crest deu de ombros.

— Sei lá! Problema dele... Mas, por que não construiria transmissores? Talvez pudéssemos até estabelecer uma ligação direta entre a Terra e Árcon. Existem ilimitadas possibilidades.

Rhodan achou oportuno intervir.

— Não se preocupe. Thora, só construirei os aparelhos quando nós todos julgarmos conveniente. Trata-se de segredo comum, pertencente tanto a vocês quanto a mim. Gostaria de poder contar com sua confiança.

Era a primeira vez, em muito tempo, que voltava àquele tratamento cordial, porém ela não deu mostras de ter percebido. Parecia ter esquecido por completo as breves horas em que haviam chegado a um relacionamento mais íntimo. Agora encarava novamente Rhodan como o ambicioso terrano cujo ímpeto ameaçava derrubar o vacilante domínio estelar dos arcônidas.

— Tenho todo o direito de expressar minhas dúvidas, não é, Perry Rhodan? Uma vez que Crest acha acertado, deixo de opor resistência. Mas ele foi avisado...

Sem esperar resposta, ela se retirou do recinto.

Crest fitou pensativamente os controles do cérebro positrônico.

— Que tal perguntar a ele? — sugeriu.

— Para saber se mereço? — replicou Rhodan, sacudindo a cabeça. — Não, obrigado. Se ainda alimenta dúvidas, Crest, faça a pergunta na minha ausência. Não gostaria que acusassem o cérebro de se mostrar influenciável.

Com um sorriso magoado, retirou-se também.

Crest ficou olhando para o amigo que se afastava com o rosto desprovido de expressão.

 

Junto a Rhodan se encontravam Bell, Tanaka Seiko, Anne Sloane, Ras Tshubai e Ishi Matsu, que, além da telepatia, possuía outro dom surpreendente. Quando se concentrava em determinado local, fosse a que distância fosse, ela via o que sucedia lá. Rhodan contava usar suas capacidades na experiência iminente. Lamentavelmente estava escrito no livro do destino que não conservaria aquela valiosa mutante por muito tempo mais. Porém ninguém suspeitava disso naquele momento.

O japonês Tanaka comunicou:

— Sim, percebo nesta sala a presença dos raios cósmicos existentes em toda a parte; só que aqui estão enfeixados e condensados. O processo começa no teto; forma depois uma coluna, que não consigo penetrar. Mas, a meu ver, raios cósmicos se identificam com a passagem do tempo.

— Portanto, provêm da quarta dimensão — murmurou Rhodan, baixinho. — Acha que pode desviar ou neutralizar essas ondas provindas de fontes distantes no cosmo, Tanaka?

— Para que a cúpula protetora se desfaça? Não sei...

— Experimente! Sengu, concentre-se, e diga-me se vê algo dentro da arca de energia.

Tanaka fitou Anne Sloane.

— Se eu deixar Anne ver o que vejo, ela deveria ser capaz de desviar os raios. Afinal, eles são matéria, se bem que em forma diversa.

Diante deles não se via nada. A arca invisível guardava seu segredo, e não parecia disposta a entregá-lo.

Tanaka segurou o braço de Anne. A moça enrijeceu e cerrou os olhos. Sengu soltou de repente um grito de surpresa:

— Ali! — Apontava para o meio da sala vazia, cujas paredes devolviam surdamente o eco daquela única palavra. — Uma caixa! Agora sumiu. Que foi isso?

Rhodan sentiu a excitação percorrer-lhe o corpo como uma faísca elétrica. Paralisado no primeiro instante, reagiu logo:

— Uma caixa?

Tanaka soltara o braço de Anne; os dois mutantes não podiam se concentrar naquelas circunstâncias, privando-os das forças mentais indispensáveis para a continuação da experiência.

— Sim, uma caixinha cintilante. Flutuando no ar. Ficou visível por um segundo, apenas. Depois desapareceu de novo.

— Então, é assim que funciona? — murmurou Rhodan. — Tanaka e Anne, vocês vão ter que tentar de novo. Mais demoradamente, desta vez. Ras Tshubai salta assim que Sengu enxergar a caixa. Não podemos gastar mais que dois segundos ao todo. Não sei o que poderia acontecer, caso Anne não tenha persistência suficiente e fraqueje enquanto Ras se encontra no interior da arca...

O africano empalideceu visivelmente; seu rosto tomou uma coloração acinzentada.

— Não vou falar, a fim de não interromper a concentração dos colegas — observou Sengu. — Fique olhando para minha mão, e salte quando a levantar, está bem?

Ras fez um gesto afirmativo. Talvez, em seu íntimo, estivesse imaginando em que lugar iria parar, caso Anne ou Tanaka falhassem.

— Estou pronto — disse, com voz sumida.

Rhodan estava tenso de emoção. Inspirando profundamente, deu o sinal para renovação da experiência. De início não houve modificação perceptível no ambiente. Mas aos poucos, notaram uma leve ondulação do ar no meio do vasto recinto. Como se o ar estivesse se tornando visível, apesar de continuar transparente. Em seguida, ele começou a tremer, fluindo em ondas que às vezes se coloriam de pálidos reflexos luminosos. E então Rhodan viu a caixa. Emergindo do nada, e brilhando como se fosse de ouro puro. Flutuava sem qualquer apoio a pouca distância do chão de pedra, rodeada por uma deslumbrante auréola.

O sinal de Sengu foi desnecessário. Ras Tshubai saltou, pois presenciara igualmente o fenômeno. Desaparecendo de onde estava parado, reapareceu no mesmo instante ao lado da caixa. Suas mãos agarraram avidamente o cobiçado objeto, e então...

Com um grito surdo Anne desfaleceu.

Rápido como um raio Rhodan a amparou.

Ras e a caixa ficaram invisíveis.

— Que foi? — perguntou Rhodan, nervosamente, sacudindo Anne como quem sacode um trapo. — Anne, ouça-me! Que aconteceu?

Entreabrindo os olhos, ela balbuciou, como uma criança:

— Foi demais... o esforço...

— Precisa tentar novamente! Agora, entendeu! Pense em Ras! Não pode abandoná-lo. Reaja, por favor! Tanaka!

Rhodan fez Anne ficar de pé, e ela tornou a cerrar os olhos. Os traços do rosto, anormalmente contraídos, transformavam-na numa desconhecida. Bell mantinha-se de lado, a alguns passos de distância, calado e sem ousar se mover. Seus olhos esgazeados não se desprendiam do ponto onde Ras estivera ainda há pouco.

O ar tremeluziu novamente, com os mesmos reflexos coloridos. E Ras se materializou, segurando a caixa nas mãos. No mesmo instante voltou a ser invisível, reaparecendo ao lado de Rhodan. Este deixou Anne deslizar suavemente para o chão, enquanto acenava para Bell. O ministro da segurança da Terceira Potência acorreu imediatamente para assistir a esgotada telecineta.

Rhodan tomou a caixa das mãos do africano. Apertou-a fervorosamente entre as mãos por alguns instantes, antes de dizer:

— Quase que a coisa sai errada, Ras... Com um débil sorriso, o teleportador se apoiou na parede.

— Por nada no mundo eu faria isso de novo! — confessou. — Foram os momentos mais terríveis de toda a minha vida. Minutos intermináveis...

— Minutos? — indagou Rhodan, espantado. — Você não ficou mais de dez segundos dentro da arca!

Ras sacudiu a cabeça.

— Impossível! Tudo sumiu de repente à minha volta, e me precipitei através do Universo. Guardei a caixa apertada contra o peito, mas não apareceu ninguém que ameaçasse vir tomá-la. Pelo contrário. Tive a impressão de que era ela que me arrastava pela eternidade. Pois foi isso que aconteceu. Disparei galáxia a fora, mais rápido que o mais fugitivo pensamento. Em quêstão de segundos ela se transformou numa espiral nebulosa, que diminuía de tamanho rapidamente, até virar um pontinho luminoso entre milhões de outros. Eu caía ao encontro de uma abertura clara no meio do vazio, muito, muito longe de mim. Como uma janela para o infinito, a eternidade, ou... para o inferno. Não cheguei a descobrir, pois o processo se inverteu e caí de volta. A Via Láctea se ampliou, recebendo-me em seu seio, e tornei a ver este salão. Foi o que aconteceu, mas não sei explicar o que significa...

Rhodan bateu-lhe amistosamente no ombro.

— Homem algum, antes de você, passou por tal experiência, Ras. Você penetrou numa abóbada energética repentinamente ativada, o que lhe possibilitou viajar através do tempo. Depois regressou, com a caixa nas mãos, para o local onde ela se encontrava guardada anteriormente, no passado, ou no futuro... quem pode saber? E o projétil de tempo só tornou a disparar quando Anne desviou as ondas radiofônicas que Tanaka lhe permitia enxergar. E você pôde voltar, junto com a caixa.

— Projétil de tempo? — Bell e Ras Tshubai tinham feito a pergunta simultaneamente.

— Claro! Algo de concreto tem que possibilitar esta viagem no tempo, da qual, lamentavelmente, não pudemos participar. E este algo são as ondas emitidas pelas fontes localizadas no cosmo. Enquanto atuam, o objeto protegido permanece numa época previamente determinada. Quando sua influência é suspensa, se restabelece o estado normal. É tudo muito simples.

— De fato, muito simples... — comentou Bell, com ar aparvalhado. — Só que não entendi nada. Onde é que a caixa se encontra agora, então?

Rhodan apertou-a contra o peito, como se receasse vê-la arrebatada a qualquer instante por poderes invisíveis.

— Foi retirada do plano do tempo. Resta saber se vamos conseguir abri-la. Talvez Crest possa nos ajudar. Anne, como está passando?

A moça já tinha se libertado dos braços protetores de Bell; de pé, apoiava-se de leve no ombro de Tanaka.

— Tudo em ordem. Foi fatigante, mais nada.

— Ótimo — respondeu Rhodan. — Voltemos à base. Uma recomendação: bico calado! Não há necessidade de divulgar nosso sucesso pelo planeta todo.

Porém o aviso chegara tarde demais. O Thort vinha entrando, revestido de seus suntuosos trajes reais. Parando diante de Rhodan, fez uma breve reverência, dizendo:

— Permita-me lhe apresentar minhas congratulações? Conseguiu realizar o que vínhamos tentando há muitos séculos.

Rhodan não perdeu a compostura, respondendo serenamente:

— Não precisa se envergonhar por isso, Thort. Afinal, os ferrônios não possuem mutantes.

— Nem gente como Perry Rhodan! — acrescentou Bell, orgulhosamente, como se fosse o próprio genitor do personagem mencionado. De peito inflado, tomou a dianteira, se encaminhando para a saída.

 

— Até que não foi tão difícil assim — declarou Rhodan, rompendo o silêncio de expectativa.

Reunira seus amigos na cantina da Stardust-III, a fim de lhes participar o resultado de seus esforços. Dois dias haviam decorrido desde a abertura da arca.

— Realmente, impunha-se um pouco de raciocínio pentadimensional para a interpretação da fórmula; mas, daí em diante, tudo se tornou simplesmente quadridimensional — continuou ele. — Uma fechadura de tempo muito normal, funcionando com forças naturais. Confesso que a tarefa teria sido complexa, ou mesmo irrealizável, sem os dons especiais de nossos mutantes. Quem inventou os transmissores queria que o invento só se tornasse conhecido por seres de alta capacidade intelectual; gente já familiarizada com eles, ou gente que garantidamente não fizesse mau uso dos preciosos aparelhos. Espero que correspondamos a estes requisitos.

— Que dúvida! — exclamou Bell, cuja petulância provocou uma onda de gargalhadas. Porém, no íntimo, cada um dos presentes se julgava plenamente qualificado.

— Abrir a caixa não foi problema. O cérebro positrônico calculou a combinação da fechadura, de acordo com os dados gravados na caixa. E só mesmo pessoas com tendência e raciocínio pentadimensional poderiam decifrar os sinais. Portanto, está solucionado o mistério da construção dos transmissores pentadimensionais de matéria.

— Poderemos fabricá-los? — indagou o Dr. Haggard, ansiosamente.

— Claro! Na quantidade que quisermos — respondeu Rhodan. — Acho, no entanto, que a ocasião ainda não é oportuna. Futuramente, talvez, quando os numerosos planetas habitados do Universo mantiverem contatos mútuos de caráter amistoso. Então, os transmissores poderão tomar o lugar das espaçonaves, como meio de transporte. Bastará apertar um botão para percorrer milhares de anos-luz. Mas isso, por favor, não achem graça, ainda é utopia.

Apesar da observação, Bell explodiu numa gargalhada. Ainda ofegante, protestou:

— Perry, há algum tempo, uma simples viagem a Marte era utópica; e olhe só onde chegamos hoje! E ainda ousa falar em utopia? Só mesmo rindo!...

Rhodan não respondeu. Abaixando-se calmamente, apanhou sua pasta, colocada ao seu lado no chão. Devia pesar bastante, a julgar pelo cuidado com que Rhodan a suspendeu. Abrindo-a lentamente sobre a mesa, disse:

— Ainda tenho uma surpresa aqui, para Crest. E talvez para Thora também.

Retirou da pasta algumas plaquetas metálicas, delgadas como folhas de papel.

— Quando o cérebro positrônico traduziu as instruções para a fabricação dos transmissores, rejeitou estas plaquetas. Recusou traduzir as sete, alegando que o padrão de minhas ondas cerebrais não correspondia ao do senhor do Universo, a quem elas se destinavam com exclusividade. E como senhores do Universo ele se referia aos arcônidas.

Com ligeira hesitação, concluiu:

— Deve se tratar de inscrições antiqüíssimas...

Thora lhe dirigiu um rápido olhar, que continha evidentemente uma indagação. Mas Rhodan deu de ombros. Crest se aproximou, recebendo as plaquetas. Examinou-as de cenho franzido, declarando depois, impressionado:

— A escrita corresponde a um idioma que existiu há dez mil anos. Porém o texto é codificado. De que será que se trata?

— Talvez uma pista, afinal — sugeriu Rhodan. — Ou a certeza.

— Sobre o quê?

— Sobre o planeta da vida eterna, Crest.

O arcônida fitou Rhodan pensativamente, antes de concordar com um aceno da cabeça de cabelos brancos.

— Logo saberemos — murmurou. — Minhas ondas cerebrais são do padrão arcônida.

Rhodan viu Crest e Thora se afastarem. Sabia que lhe comunicariam a verdade quando fosse oportuno. De momento, havia outros problemas a resolver. Problemas mais imediatos.

— Manoli!

O ex-médico da primeira expedição lunar se aproximou.

— Sim?

— Eric, providencie imediatamente uma mensagem à Terra pelo hipertransmissor. Texto normal, não codificado, conforme segue: “Permanência em Vega ainda imprescindível. Instalamos base em Vega número oito. Acordo comercial com habitantes em negociações. Retorno à Terra segredo absoluto. Todos bem. Stardust-III.” Entendido?

— Claro — respondeu Manoli. — Quer que seja enviada imediatamente?

— Sim, imediatamente. Agradeço o comparecimento de todos, meus amigos. Ainda teremos ocasião de nos ver. O Thort programou uma grande comemoração de vitória, e quer que compareçamos. E depois...

— Os tópsidas! — interrompeu Bell, indócil. — Que fará com eles?

— Você vive me interrompendo, Bell — censurou Rhodan, com um olhar de reprovação. — Era justamente sobre isso que eu ia falar. E depois das celebrações, cuidaremos dos tópsidas. Talvez possamos chegar a um entendimento amistoso com eles. Crek-Orn parece ser um homem sensato.

— Homem? — reclamou Bell, indignado. — Como tem coragem de dar a uma lagartixa o título de homem?

— Você jamais aprenderá a raciocinar em termos galácticos — reprovou Rhodan, gravemente. — Que importa a aparência externa quando se trata de eliminar barreiras? Estou certo de que, aos olhos dos tópsidas, você não representa absolutamente o ideal da raça, e...

— Nem da humana! — interrompeu uma voz feminina, alta e clara. Pertencia a Anne Sloane. Bell se virou, furioso.

— É assim que me agradece, é? Enquanto você estava com a cabeça no meu colo, completamente desamparada... — encabulado, emendou imediatamente: — ...lá nos subterrâneos do Palácio Vermelho, quando fomos apanhar a tal caixa. Estavam pensando o quê, gente?

Ninguém disse o que estivera pensando. Apenas o telepata John Marshall sorriu maliciosamente. Bell, no entanto, se aproximando de Rhodan, indagou com um sorriso cativante:

— Até que não sou tão feio assim, não é?

Rhodan perscrutou-o da cabeça aos pés, com ar dúbio. Por fim respondeu:

— Bem, feio propriamente não, mas que você é um tipo singular, lá isso é...

O que fez Bell abandonar a cantina com passadas indignadas, sob as risadas dos presentes.

 

                                                                                            Clark Darlton

 

 

                      

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