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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SEGREDOS NA AREIA - P.2 / Barbara Erskine
SEGREDOS NA AREIA - P.2 / Barbara Erskine

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

 

Segunda Parte

 

O ímpeto da água impedia grandes conversas. Deixando-a a tirar as tintas do cesto sozinha, Carstairs foi pôr-se de pé à beira da rocha, a olhar para o rio na direcção do local onde o barco iria aparecer. Ele ficou ali durante muito tempo, aparentemente absorto em pensamentos. Depois, por fim, voltou para junto dela. Colocando a sombrinha atrás de si, ela tinha aberto o bloco e estava a desenhar um esboço do desfiladeiro. O spray provocado pelas quedas-d’água tinha ensopado uma ponta da saia, mas ela não reparara.

 

Ela ergueu o rosto:

 

- Importa-se, meu senhor, de me trazer um pouco de água? - perguntou ela, estendendo-lhe o recipiente com um sorriso. Carstairs pegou nele e, por um momento, os seus olhos cruzaram-se. À luz luminosa do sol, as íris dele eram incolores como vidro e a sua expressão indecifrável. Ela não conseguia desviar os olhos dele. Por um instante, sentiu-se como se fosse cair, depois, abruptamente, desviou o olhar. Quando baixou os olhos para a água que rodopiava à volta da rocha, ela viu de relance um sorriso enigmático que teve a duração de apenas um segundo, depois desapareceu... tão rapidamente que ela perguntou a si própria se o tinha imaginado.

 

Ficou a observá-lo enquanto ele se agachava à beira de uma poça no meio das rochas que os salpicos de água enchiam constantemente e mergulhava o recipiente na água; depois, ele pôs-se novamente de pé e entregou-lho.

 

Ela pegou nele com um aceno de cabeça.

 

- Receio que se vá aborrecer, meu senhor. Ele abanou a cabeça.

 

- Com certeza que não. Está muito enganada a respeito dos meus níveis de aborrecimento. Eu tenho uma paciência infinita. - Para surpresa dela, ele sentou-se numa almofada a seu lado e cruzou as pernas. Ela encolheu os ombros. Molhando o pincel na água que ele lhe trouxera, seleccionou cores da sua caixa, misturou-as e começou a pintar o papel com a cor resultante.

 

Quando voltou a olhar para ele, o sol tinha-se movido ligeiramente. As sombras atrás dela eram mais profundas que antes. Ainda não havia sinal do dahabeeyah nem da sua escolta. Carstairs estava sentado exactamente na mesma posição em que se encontrava na última vez que ela erguera o olhar, com os olhos focados no desenho, mas ela tinha a certeza de que ele não estava realmente a vê-lo. Ela deixou de pintar e pousou suavemente o pincel. Ele não se moveu. Retirando o bloco de desenho dos joelhos, ela pôs-se silenciosamente de pé e ficou a olhar para ele. Ele continuou sem dar sinal de ter reparado nela.

 

- Meu senhor? - disse ela em voz baixa ao ouvido dele. - Meu senhor? Roger? Está bem? - Os olhos dele estavam abertos, as pupilas eram minúsculos pontos pretos nas estranhas íris claras. Tinha as costas totalmente direitas e as mãos pousadas descontraidamente nos joelhos. Tanto quanto ela conseguia ver, ele encontrava-se nalgum tipo de sonho.

 

Ela endireitou-se com um arrepio. Depois de o observar durante mais alguns segundos, voltou-lhe as costas. Foi até à beira da água e ficou a olhar para as rochas, perguntando a si própria se deveria tentar acordá-lo. Nesse preciso momento, ela viu as primeiras figuras surgir na entrada do desfiladeiro, com cordas por cima dos ombros. Poucos segundos depois, o rio era um tumulto de homens aos gritos e às gargalhadas; havia cerca de uma dúzia em cada uma das quatro cordas, e ela viu-os arrastar o pesado barco contra as torrentes de água em direcção a ela.

 

- Uma visão esplêndida, não é verdade?

 

Ela deu um salto ao ouvir a voz ao seu lado. Carstairs estava próximo dela, com os olhos fixos na actividade que se desenrolava à sua frente.

 

- De facto, é - respondeu ela, olhando-o de lado. A aba do capacete fazia sombra sobre o rosto dele, e ela não conseguia ver-lhe os olhos.

 

- Quer fazer mais alguns desenhos? Eu vou tirar a nossa comida do cesto, e tenho de encontrar baksheesh para os rapazes. Assim que nos virem, eles vão querer mergulhar para nós. - Subitamente, enquanto ela se sentava novamente a desenhar, ele era todo eficiência, abrindo o cesto do piquenique, estendendo a pequena toalha, deitando vinho nos copos.

 

Com um rugido de triunfo, os homens arrastaram o barco para mais perto, e Louisa conseguia agora ver Sir John e Louisa no telhado do camarote da frente. Quando ela ergueu o rosto, eles começaram a acenar.

 

-Vamos ter com eles assim que passarem o primeiro rápido-disse Carstairs, passando-lhe um copo de vinho. - Então poderá ter a experiência do outro lado da corda, por assim dizer. Vamos fazer um brinde? - Ele estendeu o copo e ela sentiu-se na obrigação de retribuir. Por um segundo, as suas mãos tocaram-se, depois ele ergueu o seu copo e levou-o aos lábios. - Saluté, bela dama.

 

Por mais que tentasse resistir, ela não conseguiu deixar de erguer o rosto para olhar para os olhos dele. Desta vez, não conseguiu desviar o olhar. Estava demasiado cansada. Sentiu-se descontrair, recostada nas almofadas. O homem aproximou-se e debruçou-se sobre ela.

 

- Louisa, minha querida, posso pegar-lhe no copo? Não vamos querer que ele se entorne, pois não? - A sua boca estava próxima da dela, e os seus olhos, fixos nos dela, eram tão grandes que pareciam dois enormes redemoinhos, ameaçando atraí-la e afogá-la. - Quer que desloque a sua sombrinha, minha querida, para a proteger melhor do sol? Já está.

 

Os olhos dela começavam a fechar-se. Ela não conseguia evitá-lo. Sentiu a boca dele na sua. Era firme, autoritária. Um arrepio de excitação percorreu-lhe as veias, depois, subitamente, ele endireitou-se.

 

- Ya-ífl - rugiu ele. - Inshi! Vai-te embora!

 

Um rapazinho, vestido apenas com uma tanga, estava em cima da rocha ao lado deles, a pingar.

 

Enquanto se endireitava com dificuldade, sentindo-se sonolenta, ela viu o rapaz dar meia volta e saltar da rocha para as águas espumosas.

 

- Oh, meu Deus, ele vai afogar-se. - Ela ouviu a sua própria voz, estridente e assustada.

 

- Claro que não se vai afogar. Como é que pensa que ele chegou aqui? Ele só anda atrás de baksheesh. - Carstairs levou a mão ao bolso e tirou de lá uma mão-cheia de moedas. Atirando-as bem alto no ar, viu-as cair na água à volta de uma pequena cabeça oscilante. Num segundo, o sorriso malicioso tinha sido substituído por um par de pequenos pés castanhos.

 

- O seu vinho, minha querida.-Ele estava a estender-lhe outra vez o copo.

- E deixe-me passar-lhe um pouco de comida.

 

Foi como se nunca tivesse acontecido. Ela roçou a mão pelos lábios, confusa. Ele estava agora de joelhos, em frente do cesto, tirando de lá pão, ovos cozidos, queijo fresco e fruta.

 

Ela abanou a cabeça, confusa.

 

- Como é que vamos voltar para o Ibis? - Subitamente, isso parecia-lhe muito importante. Queria voltar para junto dos outros.

 

- Já vai ver. Quando ele passar, será fácil. - Ele encheu-lhe o prato de comida como se ela fosse uma criança e sentou-se a cerca de um metro de distância. Não voltou a olhar directamente para ela.

 

Louisa olhou para a sombrinha. Esta tinha sido deslocada e estava colocada entre o rio e o local em que ela estivera deitada. Ninguém no barco poderia ter visto o que acontecera, se é que acontecera. Olhou, confusa, para o prato. Qualquer apetite que tivesse sentido tinha desaparecido.

 

Carstairs olhou finalmente para ela.

 

- Que é? Não está a gostar?

Ela encolheu os ombros.

 

- Desculpe. Perdi o apetite.

 

Pousando a garrafa com que estivera a encher o seu próprio copo, ele aproximou-se outra vez.

 

- Espero que não esteja demasiado sol para si.

 

- Não - disse ela, abanando a cabeça. - O sol faz-me bem.

 

Será que ela tinha sonhado? Se o acusasse de se aproveitar dela, ele chamar-lhe-ia mentirosa?

 

Ele estava novamente ao seu lado, a sorrir e a pegar-lhe na mão. Ela tentou desviar o olhar.

 

- Louisa? - A voz dele, nítida, sobrepunha-se ao rugido da água. - Não ofereça resistência. Olhe para mim. Eu sei que quer olhar.

 

Ela respirou fundo e olhou para o reflexo do sol na água, tentando resistir.

 

- Roger, por favor...

 

- Olhe para mim, Louisa. Por que há-de resistir? Olhe para mim. Agora.

- A mão pousada sobre a dela estava gelada. Ela sentiu um arrepio. Incapaz de o evitar, sentiu o seu rosto erguer-se na direcção do dele.

 

- Assim mesmo. - Os olhos dele eram intensamente avassaladores. Ela sentiu-se novamente arrastada por eles, os pensamentos varreram-se-lhe da mente, e o seu corpo era o de uma boneca mole, sem vida.

 

-Assim mesmo. Assim é muito fácil. - Ele percorreu-lhe levemente o braço com os dedos e pegou-lhe no queixo, erguendo um pouco mais o rosto.

 

Desta vez, os lábios dela abriram-se obedientemente sob os dele, embora o seu corpo não reagisse. Ela estava totalmente sem defesas. Teve a noção de que ele deslocara novamente a sombrinha; depois sentiu-o desabotoar a blusa de gola alta, sentiu-o meter a mão, afastando a renda macia e húmida do corpete enquanto os seus dedos gelados lhe procuravam o seio. Ela soltou uma exclamação, mas não o empurrou.

 

- O frasco de perfume, Louisa. Vais dar-mo. Vais dar-mo de presente, minha querida. - Os lábios dele estavam agora junto do seu ouvido. As palavras ecoaram-lhe na mente. O frasco de perfume. Um presente. O frasco de perfume. Um presente.

 

O presente de Hassan!

 

Abriu repentinamente os olhos.

 

- Não! - exclamou, empurrando-o violentamente. - Não! Que é que está a fazer?

 

Pondo-se atabalhoadamente de pé, deu alguns passos a correr na rocha escorregadia e sentiu os pés escorregar. Com uma exclamação de medo, atirou os braços para a frente para se segurar, conseguiu recuperar o equilíbrio e ficou a oscilar à beira da água.

 

Foi nesse momento que viu a figura alta entre ela e Carstairs.

 

Ela ficou por um momento no meio deles, de mãos estendidas, o rosto uma máscara de fúria, depois desapareceu.

 

Carstairs pareceu ficar pregado onde estava. Tinha o rosto branco como a água à volta deles, tremia violentamente, e os seus olhos brilhavam muito, mas ela não sabia se era de excitação, se era de medo...

 

- Louisa! Pronta para vir para bordo? - Ouviu subitamente uma voz por cima do rugido dos rápidos, virou-se e viu o dahabeeya a quinze metros da rocha onde estava. À volta dele, viu repentinamente dúzias de homens puxando as cordas com que arrastavam o barco contra a água ensurdecedora. Sir John levantou as duas mãos e acenou. No momento seguinte, um dos membros da tripulação estava em cima da rocha, ao pé deles. Em poucos segundos, as suas coisas foram arrumadas. Dez segundos depois, o barco estava suficientemente próximo para ela agarrar no corrimão e entrar no barco. Atrás dela, Carstairs entregou a última das almofadas ao reis e subiu ele próprio para bordo.

 

- Então? Desenhou-nos? Deixe-me ver. - Sir John estendeu a mão para o bloco. Ela entregou-lho sem dizer uma palavra.

 

Atrás dela, Carstairs inclinou-se para a frente e colocou a mão no seu cotovelo. Na pele nua, os seus dedos eram frios como borracha.

 

Anna ergueu o rosto, sobressaltada. Franziu a testa e olhou para o relógio. Tinha decorrido quase uma hora e não havia sinal de Serena. Estendeu a mão para o telefone, pegou nele e ligou para o outro camarote.

 

Charley atendeu.

 

- Quem é? - Pela voz, parecia que tinha estado a dormir.

 

- É a Anna, Charley. Quero falar com a Serena. Houve uma pausa, depois uma gargalhada seca.

 

- Azar. Ela não está aqui.

 

- Sabe quando é que ela saiu?

 

- Não faço ideia. - A voz pareceu subitamente muito enfadada. - Eu não sou a guardiã dela. - O telefone foi desligado com força.

 

Anna franziu os lábios.

 

Fechou o diário e voltou a metê-lo na gaveta. Estava a dirigir-se à porta quando ouviu bater.

 

Era Serena. Anna viu imediatamente que ela tinha estado a chorar.

 

- Que se passa? Oh, Serena! - disse ela, pegando-lhe na mão e puxando-a para dentro do quarto. Empurrou-a, obrigando-a a sentar-se na cama e ficou a olhá-la por um momento, depois sentou-se a seu lado. - Por favor, diga-me que não foi o Andy. Ele tem estado a massacrá-la por minha causa?

 

Serena encolheu os ombros, depois acenou levemente a cabeça em sinal afirmativo.

 

- A culpa não é sua, Anna. Desde que o conheço que ele anda prestes a dizer-me isto. - Ela fungou e procurou um lenço de papel no bolso da saia. Só que ele foi muito cruel. - Ela olhou em frente, com uma expressão de perplexidade no rosto amarfanhado. - Eu assim não te sirvo para nada, Anna.

 

Anna ficou a olhar para ela, horrorizada. Levantou-se, foi até ao toucador e encheu um copo de água. Deu-o a Serena, encolhendo os ombros numa expressão de impotência.

 

- Que é que ele disse? Quer contar-me?

 

- Não vale a pena. Tenho a certeza de que a sua imaginação é suficientemente boa para preencher as lacunas. Em linhas gerais, eu devo guardar a minha loucura da menopausa para mim própria e não voltar a aproximar-me de ti.

 

- Senão o quê? Que é que ele tenciona fazer a esse respeito? - Anna sentia a ira a aumentar.

 

- A si, nada, obviamente. - Serena bebeu a água rapidamente, de olhos fechados e com as duas mãos à volta do copo. - Mas ele tornará a minha vida um inferno. Ele consegue fazê-lo, pode crer. Já o fez antes. Ele aparece. Telefona. Insinua que estou a ficar maluca. Ameaça-me com psiquiatras, exorcistas e sabe Deus o quê! Não vale a pena, Anna. - Suspirando, pousou o copo e abanou a cabeça. - Mesmo que quisesse, não posso ajudá-la. Ele tirou-me todas as partículas de confiança que eu tinha. Neste estado, os seus sacerdotes fazem-me em picadinho. Suponho que a minha única consolação é que nem sequer tenho energia suficiente para lhes valer a pena tentarem possuir-me.

 

Anna fechou os olhos. A temperatura no camarote parecia ter baixado vários graus. Estava a pensar em Louisa e no seu medo.

 

- Que a faz pensar que eles tentariam possui-la?

 

- Eu sou uma iniciada. Provavelmente, tenho o tipo de energia que eles querem. Se eu me sentisse forte, concentrada, poderia fazer-lhes frente. Seria capaz de lutar contra eles no seu próprio terreno e talvez lhe fosse de alguma utilidade. - Serena abanou a cabeça.-Mas, de acordo com Andy, agora só me resta a minha paranóia obsessiva. Supliquei-lhe que tentasse ver as coisas sob o nosso ponto de vista. Que tentasse imaginar que a ameaça era real. Que tentasse pensar no que aconteceria se esses dois sacerdotes se tornassem mais fortes. Não há ninguém para lutar contra eles a não ser eu.

 

- Eu ainda posso deitar o frasco fora, Serena - interrompeu Anna.

 

- Isso não iria servir de nada! A própria Anna disse que eles a seguiram até à barragem. Eles não estão presos ao frasco, Anna. São seres verdadeiros independentes! Eu não sei por que é que eles não se mostraram antes. Talvez eles soubessem que, um dia, o traria novamente ao Egipto. Talvez em Londres eles não conseguissem encontrar a energia adequada. Mas agora que encontraram um meio de obter força suficiente, eles não vão saltar para o rio atrás do frasco e desaparecer num jacto de vapor.

 

Apesar do medo, Anna sorriu involuntariamente. A descrição evocava uma imagem maravilhosa.

 

- Então, tem de me ajudar, Serena. Tem de o fazer. Eu preciso de si. Eu penso constantemente na Louisa; em como ela estava assustada. - Ela levantou-se outra vez, subitamente decidida. - Vou falar imediatamente com Andy, vou-lhe dizer que a deixe em paz.

 

- Não, por favor! - Serena agarrou-lhe na mão.

 

- Não tente impedir-me. Estou farta da interferência dele, a sério que estou. Já dissemos as duas que ele é um tirano, e tem toda a razão, ele não tem nada que se meter nisto.

 

- Ele decidiu que tem, Anna. Ele gosta de si e, para ser sincera - ela hesitou -, eu acho que gosta ainda mais do seu diário. No íntimo, Andy é, em primeiro lugar, um negociante; amigo ou amante em segundo. Parece horrível dizê-lo, mas é provável que, no fundo da sua mente, ele já tenha um comprador e um preço. Se houver o perigo de eu me interpor entre ele e um lucro rápido, estou tramada.

 

Anna fitou-a em silêncio por um momento, seguidamente, sem dizer uma só palavra, deu meia volta e saiu de rompante do camarote.

 

Não foi difícil encontrar Andy. Ele estava sentado num banco do bar, a observar Ali com o seu misturador de cocktails.

 

- Quero falar consigo. Agora. - Anna parou à frente dele, com as mãos nas ancas, os olhos em chamas. - A sua interferência já foi suficientemente longe! Ela tem de parar.

 

Ela sentiu várias outras pessoas na sala a olhar rapidamente para ela e depois desviar o olhar. Não lhes deu importância.

 

- Então, Serena foi logo ter consigo, não? - Ele rabiscou o nome num talão, pegou no copo que Ali lhe deu e ergueu-o numa saudação trocista. - Eu só queria salvá-la de ser arrastada para as sessões teatrais dela. Devia agradecer-me, sabe. Mas - prosseguiu ele, encolhendo os ombros - se é o que quer, assim seja. - Ele bebeu um longo golo do copo.

 

- É. E não quero ouvir dizer que anda a intimidá-la. Por amor de Deus, pare de se meter onde não é chamado! O que é que o faz pensar que tem o direito de opinar sobre o que eu faço ou sobre quem são os meus amigos? Eu só o conheço há alguns dias! - Ela sabia que a sua reacção estava ser exagerada, mas, de repente, vira Felix à sua frente, a escolher os seus amigos, a mandar na sua vida. Isso acabara. A nova Anna estava livre e era uma pessoa muito mais poderosa do que a antiga.

 

- Também só conhece a Serena há alguns dias - replicou Andy, abanando a cabeça.

 

- Estou a seguir a minha intuição - respondeu ela. - Eu gosto e confio nela.

 

- Ah! Posso deduzir então que não gosta de mim, nem confia em mim? Desculpe. Por algum motivo, eu tinha a impressão de que se passava exactamente o contrário.

 

Ela olhou-o nos olhos.

 

- Eu gosto de si, Andy, e tenho a certeza de que posso confiar em si. Mas isso não significa que eu tenha de colocar toda a minha vida nas suas mãos; nem significa que possa escolher as minhas amizades por mim.

 

Andy suportou o seu olhar.

 

- Do mesmo modo - disse ele em voz baixa -, eu posso recordar-lhe que conheço Serena há anos. A Anna só a conhece há alguns dias. A minha relação com ela não lhe diz respeito.

 

Houve um minuto de silêncio.

 

Ela recuou e acenou ligeiramente com a cabeça em sinal de concordância.

 

- Muito bem! Desde que a sua relação com ela não interfira na minha! Ela deu meia volta para se afastar dele e deparou-se com Toby atrás de si. Ao lado dele estava Charley. Toby, reparou Anna subitamente, segurava Charley pelo braço.

 

- Esta é uma guerra privada? - Toby lançou-lhe um sorriso irónico. - Se não for, nós gostaríamos de entrar...

 

Ele interrompeu-se quando Charley, soltando-se, passou rapidamente por ele.

 

- Andy, seu filho da mãe! - A voz dela era arrastada. Os seus olhos estavam desfocados, vagueando pela sala como se ela não conseguisse localizá-lo. Quando Anna se afastou, ela deu um impulso para a frente, estendendo as mãos para o bar. - Andy? Eu tenho que fazer isso pela deusa Sekhmet. Ela precisa de mim, Andy. Ela quer-me. - No silêncio chocado que se seguiu às suas palavras, ela olhou em volta. - Andy, que é que está a acontecer? - A sua voz era subitamente patética. - Andy, que é que me está a acontecer?

 

Anna sentiu uma leve pressão no ombro e virou-se. Era Toby. Ele fez-lhe sinal para que o acompanhasse e, com um olhar apressado para Charley e depois na direcção de Andy, ela seguiu-o.

 

- Andy? Que se passa comigo? - Quando chegaram à porta, ela ainda conseguia ouvir a patética voz aguda.

 

-- Estás bêbada. - A resposta áspera de Andy foi provavelmente ouvida por todos os que estavam na sala.

 

- Não! - Ela desatou a chorar. - Não, não estou. Não bebi nada... - A sua voz deixou de se ouvir. Ela ficou de pé por um momento, oscilando um pouco, depois caiu lentamente aos pés dele.

 

- Deixa o Andy tratar dela. - Toby conduziu Anna na direcção da porta.

- Vamos até lá fora.

 

- Ela não parece estar bem.

 

Sekhmet. Charley tinha realmente falado em Sekhmet? Sentiu um arrepio. Enquanto seguia Toby até ao convés coberto, franziu o sobrolho.

 

- Ela não me parecia embriagada.

 

- Eu não sei se ela estava necessariamente embriagada quando fez todo aquele banzé ao almoço. - A voz de Toby era pensativa. Estavam encostados ao corrimão, a olhar para o rio. - Não havia qualquer cheiro a bebida. Eu diria que ela estava doente. Eu suponho que pode ser do calor. - Ele encolheu os ombros. - Talvez alguém devesse falar com Ornar.

 

Ele voltou-se.

 

- De uma forma ou de outra, Andy parece ter bastantes problemas, neste momento. E um deles parece ter a ver comigo. - Ao mudar de assunto, a sua voz era descontraída.

 

Ela estava a olhar para a água.

 

- Tal como diz, Andy tem problemas com muita gente. - Erguendo subitamente o olhar para ele, perguntou: - Ela disse Sekhmet, não disse?

 

Por um momento, ele pareceu não saber de que é que ela estava a falar.

 

- Quem?

 

- A Charley. A Charley estava a falar da deusa, de Sekhmet.

 

- Estava? Ela estava a arengar e a delirar como uma louca. Eu tive grande dificuldade em segurá-la o tempo suficiente para a Anna se poder atirar a ele primeiro. - Ele fez um sorriso maroto. - Não dê demasiada importância a qualquer coisa que ela tenha dito. Ela não estava realmente no seu perfeito juízo.

 

Anna mordeu o lábio. Ficou calada durante alguns momentos, e Toby aproveitou a oportunidade para lhe observar o rosto.

 

- Posso oferecer-lhe uma bebida antes do jantar? - Ele afastou-se do corrimão e olhou para a porta. - Desconfio que já se foram embora.

 

Ela abanou a cabeça.

 

- Obrigada, mas acho que vou conversar um pouco com a Serena. Eu quero que ela saiba que aquele filho da mãe não vai conseguir afastá-la de mim. - Ela fez uma pausa para observar o rosto de Toby, compreendendo subitamente que era a primeira vez que estava sozinha com ele desde a revelação de Andy. Como é que ela conseguira esquecê-la? Mas tinha acontecido tanta coisa que ela a tinha ignorado, fingido que não tinha ouvido. Certamente que não tinha acreditado. Ou será que tinha? Franziu o sobrolho, depois abanou a cabeça. Aquele não era o rosto de um assassino. Se era, ela era a pior juíza de carácter do mundo inteiro. „ Não encontrou Serena em lado nenhum. O camarote dela estava às escuras, ocupado apenas por Charley, que ressonava baixinho. Não estava no camarote de Ànna, nem no convés superior, nem na sala de jantar, ainda vazia. Intrigada, Anna voltou para o seu camarote e sentou-se na cama.

 

Onde estaria ela? Franziu o sobrolho. Certamente que não podia ter ido a terra sozinha. O barco não era tão grande que alguém pudesse desaparecer nele. Ela tinha de estar no camarote de outra pessoa. No de Ben, talvez, ou no dos Booth, ou nalgum outro.

 

Com um suspiro cansado, sentou-se na cama. Faltava meia hora para o jantar. Podia voltar para o bar e tomar uma bebida com Toby, ou podia deitar-se e talvez dar outra vista de olhos ao diário, para ver o que tinha acontecido quando Louisa voltara para o barco.

 

Louisa tirou o vestido molhado pelo spray junto ao rio e voltou para o convés, onde encontrou os Forresters a conversar com Roger Carstairs, enquanto observavam os grupos de homens a puxar o barco pelos rápidos acima. O seu rosto corou quando o viu. Tivera esperança de que ele tivesse voltado para o seu próprio barco, que os seguiria no dia seguinte.

 

Ele virou-se para olhar para ela, e Louisa ficou espantada com a expressão de divertimento triunfante que ele lhe dirigiu. Subitamente, compreendeu que conseguia lê-lo como um livro. Ele estava confiante, completamente seguro de que ela não se recordava do incidente ocorrido nas rochas nessa tarde, e vagamente trocista. Ficou arrepiada e teve a mesma sensação de antes, como um coelho a encolher-se de medo perante uma doninha, incapaz de se mover ou de fugir. Com um esforço, desviou os olhos e aproximou-se mais de Sir John, muito consciente da sua bem humorada e corpulenta solidez.

 

- Então, Lorde Carstairs - disse ela daquela posição de segurança. Presumivelmente, vai regressar ao seu barco esta noite. Tenho de lhe agradecer por ter organizado o piquenique para mim.

 

Ele fez uma ligeira vénia. Pela primeira vez, ela reparou que o seu sorriso era um pouco torto. Dava-lhe um ar vulpino que era extremamente perturbador. Sentiu outro arrepio.

 

Sir John reparou. Pôs-lhe um braço à volta do ombro e apertou-a um pouco.

 

- Está com frio, minha querida? É por causa de todo este spray. Ela sorriu-lhe.

 

- Tenho um pouco.

 

O vento nocturno do deserto ainda não se tinha levantado, e o Sol, embora prestes a desaparecer abaixo dos rochedos, ainda irradiava calor. Só no meio das rochas e das faces baixas dos rochedos é que o ar era fresco. O barco estava subitamente calmo. Os homens que tinham manejado as cordas para os puxar pelos rápidos acima durante o dia estavam a desaparecer, um a um, na direcção das suas aldeias, e o esplêndido piloto núbio que tinha ficado sentado o dia inteiro ao leme a dirigir as operações com uma dignidade quase real, tinha saudado primeiro o reis, depois Sir John e, por fim, também se fora embora para casa. Amanhã estariam todos de volta para a última etapa da viagem antes de regressarem para o fundo da catarata, para o barco seguinte.

 

- Roger aceitou o nosso convite para jantar, minha querida. - Sir John estava radiante. - Ele regressará ao seu barco mais tarde. Vamos passar o serão aqui. Segundo creio, amanhã seremos puxados pelos últimos rápidos acima, depois ficaremos em Philae um dia ou dois à espera dos Fieldings. Será agradável irmos em comboio até à segunda catarata.

 

Louisa forçou-se a si própria a sorrir; forçou-se a si própria a dizer as coisas certas, depois desculpou-se e voltou novamente para baixo. No seu camarote, estendeu-se na cama, exausta e deprimida, a pensar em Hassan, enquanto o Sol descia numa labareda dourada.

 

A pancada na porta fê-la sentar-se, sobressaltada. Devia ter adormecido. O camarote estava totalmente envolto em escuridão, e ela não conseguia ver absolutamente nada enquanto procurava o castiçal às apalpadelas. No momento em que a chama pegou, ecoou outra pancada em volta do pequeno espaço, e ela compreendeu que já devia ser Treece, que viera ajudá-la a vestir-se para o jantar. Esquecera-se de que tinha fechado a porta do camarote à chave. Enquanto se dirigia à porta e a abria, as sombras projectavam-se sobre os castanhos e dourados escuros dos tapetes e dos cortinados que decoravam o pequeno espaço.

 

Roger Carstairs estava ali, com a cabeça curvada sob o tecto baixo. Com um movimento rápido, ele empurrou-a para o interior do camarote e entrou atrás dela, fechando a porta atrás de si.

 

- Como é que se atreve!

 

Ele empurrou-a com tanta força que ela caiu de costas na cama e foi obrigada a vê-lo pegar no candelabro e a rodá-lo em volta, observando atentamente as coisas dela.

 

- Onde está? - silvou ele.

 

-- Onde está o quê? - Ela estava em desvantagem, sentada, forçada a olhá-lo de baixo, mas não havia espaço para ficar de pé sem o empurrar. Estremeceu.

- Como é que se atreve a entrar aqui? - repetiu ela. - Saia! Eu vou gritar por socorro! Se for encontrado aqui comigo vai haver muitos problemas.

 

-Não creio.-Ele riu-se. - Os Forresters não se atreveriam a aborrecer-me, minha pequena e respeitável Senhora Shelley. Especialmente quando eu lhes disser com que ansiedade recebeu as minhas atenções esta tarde. - Ele baixou-se e prendeu-lhe o queixo entre os dedos de ferro tal como fizera antes, obrigando-a a olhar para ele. - Sim, recorda-se. Terei de ser cuidadoso. A senhora é voluntariosa. Pensa que consegue resistir-me. - Ele respirava pesadamente pelo nariz. - Então, Senhora Shelley. Onde está?

 

- O frasco de perfume? - Não servia de nada fingir que não sabia do que é que ele estava a falar. - Escondi-o em terra.

 

Os olhos dele flamejaram.

 

- Hoje não. Hoje não foi possível. Ontem, então. Deixou-o em Philae? Onde?

- Ele empurrou a cabeça dela contra a parede do camarote. - Diga-me.

 

O camarote tinha-se tornado subitamente muito frio. A chama bruxuleou e emanou fios de fumo pretos. Os olhos dele, próximos dos dela, eram dois poços escuros. Ela não conseguia desviar o seu olhar. Desesperada, fechou os olhos, tentando não respirar o desagradável odor adocicado do hálito dele.

 

- Nunca lhe direi. - Ela empurrou o punho contra o rosto dele, e ele reagiu com uma ligeira gargalhada.

 

- Oh, vais dizer-me, querida. Podes crer que vais dizer-me - disse ele, segurando-lhe no pulso.

 

Com uma pequena exclamação de dor, ela sentiu os delicados ossos pequenos esmagados entre os dedos dele.

 

- Socorro! - O seu grito não era mais do que um murmúrio. - Anhotep, se existes, ajuda-me agora.

 

A chama avivou-se.

 

Carstairs soltou outra gargalhada.

 

- Com que então, a nossa viuvinha invoca o sumo-sacerdote, mas não sabe fazê-lo. - Ele empurrou-a com tanta violência contra a parede do camarote que ela ficou sem respiração.-Onde está o frasco... - Não terminou a frase. O barco baloiçava violentamente. Acima deles, no convés, o reis olhou por cima da amurada. Uma corda de ancoragem tinha-se soltado, e o íbis tinha oscilado com a corrente forte. Eles ouviram gritos e o som de pés a correr apressadamente.

 

- Porquê? - perguntou ela, ofegante. - Por que é que o quer tanto? Ele olhou para ela.

 

-Tenho de o ter. É imperativo que o tenha. Não é uma bugiganga qualquer. É uma crismeira. Contém poder. Poder que só eu sei utilizar! - Os olhos dele brilhavam febrilmente enquanto a sua mão se apertava em volta do pulso dela.

 

- Anhotep! - Louisa lutou ferozmente. - Não permitas que ele me magoe...

 

Quando a chama bruxuleou e se inclinou no diminuto camarote sem ar, ela abriu os olhos para espreitar por detrás dele, na direcção da janela. Estava lá uma figura - nebulosa, indistinta. Através dela, ela conseguia ver a parede, as portadas, o xaile que tinha atirado para cima do banquinho.

 

- Anhotep! Ajuda-me! - Desta vez a sua voz era mais forte. O medo do homem meio caído em cima dela era muito maior do que o temor de uma sombra do passado distante.

 

Carstairs moveu-se um pouco para trás, consciente da alteração do ambiente ocorrida no pequeno espaço, consciente do comportamento estranho da chama da vela. Quando reparou que o olhar dela estava focado algures por cima do seu ombro, olhou na direcção da janela e soltou uma exclamação. Num segundo, erguera-se da cama.

 

- Servo de ísis, eu te saúdo! - Ele fez uma longa vénia, ignorando Louisa, que se encolhera, tentando fazer-se o mais pequena possível.

 

O camarote ficara totalmente sem ar; a chama da vela que um momento antes flamejara violentamente e deitara fumo, estava reduzida a um minúsculo ponto brilhante. Dentro de segundos apagar-se-ia definitivamente. A figura estava a desvanecer-se.

 

Louisa saltou da cama e dirigiu-se para a porta, tentando encontrar o trinco. Procurava-o freneticamente, às apalpadelas, quando a luz se extinguiu totalmente. Quando a figura desapareceu, Carstairs virou-se novamente para ela. Ela sentiu as mãos dele a agarrarem-lhe os ombros no momento em que os seus dedos ansiosos encontraram o trinco. Puxou-o desesperadamente e sentiu-o deslizar para trás, mas era demasiado tarde. Ele arrastou-a para longe da porta e atirou-a para cima da cama. Ela respirou fundo para gritar e sentiu a mão dele a tapar-lhe a boca. Mais uma vez, ouviu-o rir. O som continha agora excitação e triunfo.

 

No preciso momento em que ele começou a rasgar-lhe a blusa, bateram à porta.

 

Homenagem te seja feita, Amon-Ré, que passas sobre o céu, todos os rostos te vêem. Os homens louvam-te em teu nome.

 

Milhões de anos decorreram no mundo.

 

Tu passas no alto e viajas através de espaços inenarráveis...

 

Mais uma vez as areias vão-se deslocando. O túmulo aberto e abandonado está novamente soterrado. As múmias perderam-se para sempre na poeira do esquecimento; só os seus nomes sobreviverão às paredes de pedra. Decorrem séculos, e os sacerdotes são sombras sem substância, nada à luz do Sol, nada sob a Lua, esquecidos os votos à hora da morte, a ira não é mais do que um suspiro no vento através das dunas.

 

Deus chegou à Terra de Kemet sob um nome novo. Os velhos deuses do Egipto dormem. Os seus servos perderam a sua glória. Passaram-se três mil anos desde que o túmulo foi selado sobre os corpos dos dois sacerdotes.

 

A mão que desenterra da duna o frasco esquecido, quando o seu pai procura tesouros maiores na noite, é a mão de uma criança. O rapaz liberta-o com dedos ávidos e ergue-o, deliciado, ao ver as cores do vidro de encontro aos raios do Sol recém-nascido. Surgindo do sopro da madrugada como a humidade na folha de um papiro, as sombras, uma após outra, olham para o rapaz e sorriem. Só o burro pressente o perigo. Ele espeta as orelhas para trás e grita o seu medo para o vento do deserto vazio.

 

Voltaram a bater. Anna ergueu os olhos, com o sobrolho franzido. Estava escuro no exterior da janela aberta, e a única luz vinha do pequeno candeeiro da mesinha-de-cabeceira. Confusa, pousou o diário, com a mente cheia do terror de Louisa. Levantou-se, dirigiu-se à porta do camarote e abriu-a, ainda a pensar na cabina escura e cheia de fumo do dahabeeyah.

 

À porta estava Ibrahim, com a bandeja vazia debaixo do braço. Ele lançou-lhe um olhar ansioso.

 

- Não se está a sentir bem, mademoiselle? Fiquei preocupado por não ter ido jantar. - Atrás dele, o corredor estava vazio.

 

Com grande dificuldade, ela conseguiu trazer-se a si própria de volta ao presente.

 

- Eu estou bem, Ibrahim. Desculpe. Estava a ler e não dei pelas horas. Não ouvi o gongo. - Esfregou o rosto com as palmas das mãos, com um ar cansado.

 

Ele observou-a atentamente e, ao fim de um momento, pareceu satisfeito com o que viu. Acenou lentamente com a cabeça.

 

- Eu vou trazer-lhe qualquer coisa para comer ao seu camarote - disse ele, e, sem esperar que ela respondesse, deu meia volta e foi-se embora. Ela ficou a olhar para o seu andar lento e majestoso. Com a galabiyya branca, o turbante e as sandálias de cabedal, ele era uma figura intemporal, quase bíblica. Voltou para dentro do camarote, deixando a porta aberta, e ficou a olhar pensativamente para a noite lá fora. Pobre Louisa. Como ela se devia ter sentido assustada. E zangada. As palavras do diário transmitiam um aglomerado de emoções contraditórias à medida que a letra miúda em tinta castanho-esmaecida se movia ao longo da página; o único indício da sua perturbação era a forma como as linhas se aproximavam cada vez mais, as palavras se tornavam cada vez mais inclinadas, aqui e ali um traço descuidado juntava as palavras à medida que a escrita acelerava, uma ou duas vezes surgia um pequeno borrão de tinta de um aparo premido com demasiada força demasiadas vezes.

 

- Mademoiselle? - Uma pancada suave, e Ibrahim estava outra vez à porta. Trazia uma bandeja com um copo de sumo de hibisco e um prato de pão com um ovo cozido e queijo. Ele colocou a bandeja em cima do toucador e esboçou um sorriso grave. - Há outra coisa, mademoiselle - disse ele, levando a mão ao bolso e tirando de lá algo preso a um fio de ouro. Ela viu-o à medida que os elos deslizavam por entre os dedos dele. - Eu gostaria que usasse isto, mademoiselle

- disse ele, estendendo a mão. - Enquanto estiver no barco. Por favor, devolva-mo no dia em que voltar para Inglaterra.

 

Ela ficou a olhar para a mão dele, depois estendeu lentamente a sua.

 

- Ibrahim, o que é?

 

Ele deixou-lhe cair o amuleto de ouro na palma da mão. Era pequeno e intricadamente trabalhado.

 

- É o Olho de Hórus. Allah yisallimak. Que Deus a proteja. Ele ajudará a mantê-la em segurança.

 

Ela sentiu que ficara com a boca seca.

 

- Em segurança de quê? - Anna ergueu o olhar que se cruzou com os olhos castanho-escuros dele. Ele olhou-a durante vários segundos, antes de encolher levemente os ombros e olhar para o chão, em silêncio.

 

- Ibrahim? Isto tem a ver com os deuses antigos? E com a cobra? perguntou ela, engolindo em seco.

 

- Inshallah! - Desta vez não houve qualquer encolher de ombros, mas sim um leve acenar de cabeça.

 

- Então, obrigada. Muito obrigada. Isto é ouro, Ibrahim. É muito generoso da tua parte confiares-mo. - Ela sorriu subitamente. - Gostava de saber o que se diz em árabe.

 

- Diz-se: kattar kheirak. - Os olhos dele brilharam.

 

- Kattar kheirak, Ibrahim. Ele fez uma vénia.

 

- Ukheeirak, mademoisele - disse ele com um sorriso rasgado. - Agora tenho de ir para o bar trabalhar. Bon appetit, mademoisele. U’i. Leilt ik saideh. Isso significa: tenha cuidado e tenha uma noite feliz.

 

Depois de o criado sair, ela olhou para o amuleto que tinha na mão. Era um olho com uma sobrancelha arqueada em cima e uma pequena espiral de ouro por baixo. Ela sabia que o Olho de Hórus era um símbolo de protecção e cura utilizado durante milhares de anos em todo o mundo para afastar o perigo, a doença e a pouca sorte. Manteve-o por um momento na mão bem fechada, depois procurou o fecho e pendurou-o ao pescoço. Sentia-se extremamente comovida por Ibrahim lhe ter confiado algo tão precioso. Isso também a assustava. O que é que ele sabia que o fazia temer por ela? Olhou para a gaveta do toucador, mas não a abriu. Mais tarde, nesse dia, certificar-se-ia de que o frasco fosse guardado no cofre. Sentiu um arrepio.

 

Pegando no copo com o aromático sumo de fruta, sentou-se na cama e pegou no diário. De manhã decidiria se queria participar no passeio de barco à vela que estava programado no placard colocado no exterior da sala de jantar, ou se aproveitaria a oportunidade para procurar Serena, enquanto Andy estivesse bem longe da vista, e conversar calmamente com ela sem correrem o risco de ser interrompidas. Mas primeiro, esta noite, ela tinha de descobrir o que acontecera à pobre Louisa às mãos do vilão Roger Carstairs. Ajeitando as almofadas à sua volta, levou a mão por um momento ao pequeno amuleto de ouro e sorriu. Este fazia-a sentir-se segura e protegida, algo, compreendeu, que há muito não sentia. Ficou durante vários minutos absorta em pensamentos, saboreando essa sensação, depois abriu novamente o diário.

 

Segurando a vela bem alto, Jane Treece olhou em volta. Era óbvio o que se passava. Louisa Shelley estivera a comportar-se como a mulher leviana que ela sempre suspeitara que ela era, a receber Lorde Carstairs no camarote, às escuras. Com um olhar desdenhoso, observou o rosto corado e a boca pisada de Louisa, a blusa rasgada e o atraente homem irado a saltar apressadamente da cama. Ele ainda estava todo vestido, por isso ela tinha chegado a tempo de frustrar a sua luxúria. Com um sorriso de auto-satisfação, Jane Treece pigarreou.

 

- Quer que a ajude a arranjar-se para o jantar, Senhora Shelley, ou volto mais tarde? - A sua voz era o mais reprovadora possível.

 

- Obrigada, Jane. Sim. Por favor, fique. Eu quero mudar de roupa. - A voz de Louisa tremia. Virou-se para Lorde Carstairs e apontou para a porta. - Saia.

 

Ele hesitou por um momento, depois, com um sorriso, foi-se embora. No corredor estreito, virou-se e ergueu a mão.

 

- Abientôt, querida. Continuaremos a nossa agradável conversa muito em breve.

 

Louisa fechou os olhos. Estava a tremer enquanto observava Treece acender a vela da mesinha-de-cabeceira e as outras que estavam em cima da mesa. Dentro de muito pouco tempo, o camarote estava cheio de luz que bruxuleava suavemente.

 

Sem dizer uma só palavra, Treece juntou as roupas que Louisa despira nessa tarde e dobrou-as. Seguidamente, pegou no jarro e retirou-se para ir buscar água quente e toalhas. Louisa olhou para o toucador. Ainda estava trancado, e a pequena chave floreada encontrava-se escondida em segurança debaixo do dedal, na sua pequena caixa de costura.

 

Com mãos trémulas, levou a mão aos ganchos e aos pentes, deixando o comprido cabelo castanho cair à volta dos ombros, pegou na escova de cabelo e começou a escová-lo com lentos gestos rítmicos, tentando fazer desaparecer o toque das mãos de Carstairs, o cheiro do seu hálito, a fria fascinação do seu olhar.

 

Ergueu o olhar quando Treece reapareceu.

 

- Obrigada, Jane. - Mordeu o lábio, tentando manter a voz firme.-Lorde Carstairs já deixou o barco?

 

- Não sei, Senhora Shelley. - Treece pousou o pesado jarro com força, numa manifestação de ressentimento, entornando água em cima do toucador. - Quer que o vá chamar?

 

Louisa fitou-a.

 

- A senhora sabe que eu não quero! Esse homem é um bruto perverso. Deu por si subitamente a tentar conter as lágrimas. - Quem me dera que ele se tivesse ido embora, para ficar em segurança.

 

Houve uma longa pausa enquanto a mulher reflectia sobre as palavras dela, e Louisa viu a expressão séria do seu rosto suavizar-se ligeiramente.

 

- Eu creio que ouvi dizer que ele ia ficar para jantar - comentou ela enquanto pegava na blusa estragada de Louisa e olhava para ela com ar de repugnância.

- Isto vai ter de ir para a ghasala para ser lavado e remendado. - Ela ergueu o olhar. - Os Forresters estão encantados por terem travado uma tão grande amizade com outro membro da aristocracia, ainda por cima com uma posição tão elevada. Eles ficariam muito decepcionados se pensassem que um dos seus convidados o tinha aborrecido.

 

- De facto, ficariam. - Com os lábios franzidos, Louisa estendeu a mão para o sabão. - Por favor, deite alguma água na bacia. - Embora o camarote ainda estivesse muito quente, ela sentia-se arrepiada. - Vou vestir o vestido de seda para o jantar, obrigada, se não se importa de o procurar, depois pode ir ajudar Lady Forrester. - Ela endireitou-se subitamente e olhou a mulher nos olhos. Por favor, não fale nisto aos Forresters. Como muito bem observou, eles ficariam aborrecidos.

 

Ela tencionava falar pessoalmente com Sir John, e muito em breve. Mas não queria que fosse Jane Treece, com o seu rosto azedo, a espalhar a história primeiro. Embora tivesse detectado um leve degelo na atitude da mulher, ela era, desconfiava Louisa, muito capaz de contar a história de uma forma indubitavelmente tendenciosa e desagradável. Com um suspiro profundo, ficou a ver Treece fechar a porta do camarote, depois sentou-se no banquinho e examinou, com um ar cansado, a sua imagem ao espelho, observando os seios cheios e arredondados, realçados pelo corpete com o seu decote grande, a cintura fina e o longo cabelo luxuriante que caía sobre os ombros. O seu rosto, apesar de todo o cuidado com o chapéu e a sombrinha, tinha apanhado um pouco de sol, e a cor pouco usual das suas faces fazia brilhar os olhos escuros. Tê-lo-ia ela, inconscientemente, encorajado? Certamente que não o fizera deliberadamente. Isso nunca. Sentiu um arrepio, mergulhou as mãos na bacia e molhou o rosto e o pescoço, sentindo o cabelo cair na água.

 

Quando voltou a erguer o olhar, não conseguia ver nada, cega pela água. Enquanto sacudia as gotas dos olhos, olhou para o espelho e soltou uma exclamação. No espelho enevoado, ela conseguia ver que havia uma figura logo atrás dela.

 

Voltou-se com um grito de terror, mas não estava lá ninguém. O que ela vira tinham sido apenas as sombras dos candeeiros de um barco que estava a atracar muito perto do deles, no ancoradouro estreito, misturadas com as sombras cruzadas das velas. Olhou em volta, com a toalha na mão. Não havia ninguém no camarote além dela. A luz que recaía nas cores luxuriantes dos cortinados que o decoravam conferiam-lhe um brilho acolhedor. Controlando com esforço a respiração, pegou no pente. Era a sua imaginação. Nada mais. Não haveria mais visitações fantasmagóricas nessa noite. Quando se vestisse, teria alguns minutos para se acalmar actualizando o seu diário, depois iria para o salão e, se necessário, enfrentaria os olhos duros e cruéis de Roger Carstairs durante o resto da noite.

 

Anna levantou-se, dirigiu-se ao toucador e partiu uma fatia de pão ao meio. Cortou um ovo, seleccionou uma fatia de queijo para fazer uma sanduíche e voltou para a cama. O Olho de Hórus estava aninhado no meio dos seus seios, e ela sentia o ouro quente de encontro à pele. Parou por um momento, à escuta, e olhou para o relógio. Eram quase onze horas. A essa hora, os outros já teriam acabado de ouvir a palestra de Ornar sobre a história moderna do Egipto que estava marcada para essa noite. Estariam a conversar e a beber calmamente no salão antes de irem finalmente para a cama.

 

Quando Louisa entrou, Sir John estava sozinho no salão. Ele pôs-se apressadamente de pé.

 

- Minha querida, está um espanto! - Ele observou a seda azul-escura e, como se não conseguisse conter-se, pegou-lhe na mão e beijou-lhe as pontas dos dedos. - Louisa, minha querida. Tenho notícias decepcionantes. Roger teve de se ir embora. Recebeu uma mensagem de que havia um problema com um membro da tripulação do seu barco e teve de regressar. Pediu-me que lhe apresentasse o seu pedido de desculpas por partir tão abruptamente.

 

- Eu acho que ele não pediu perdão por se ter ido embora - disse Louisa num tom mordaz, sentando-se numa cadeira almofadada perto dele. - A Augusta vem juntar-se a nós em breve?

 

Ele abanou a cabeça.

 

- Infelizmente, as emoções do dia foram excessivas para ela. Ela retirou-se cedo. Por isso eu pedi ao Abdul que nos servisse o jantar cedo. - Ele pegou na garrafa do vinho. - Permita-me que lhe sirva uma bebida, minha querida. E façamos um brinde à nossa subida da catarata e à sua feliz conclusão amanhã.

 

Ela bebeu um golo do copo que ele lhe deu, depois pousou-o.

 

- John, infelizmente, eu vou ter de lhe pedir que não permita que Lorde Carstairs volte a pôr o pé neste barco. Ele foi ao meu camarote esta noite e comportou-se com uma impropriedade chocante.

 

Sir John ficou a olhar para ela, com os olhos azul-claros muito abertos por cima do bigode. Ela viu-o tamborilar a mesa com os dedos.

 

- Louisa, eu tenho dificuldade em acreditar nisso. Minha querida, ele é um homem respeitado. Um cavalheiro em toda a acepção da palavra.

 

- Não, não é um cavalheiro. - Louisa cerrou os punhos. - Se Jane Treece não tivesse interrompido, ele ter-me-ia violado! Ele tem um poder estranho, uma capacidade de utilizar o hipnotismo em mim que me tornou incapaz de lutar para o afastar. E está a tentar, através de meios desleais e de ameaças, convencer-me a desfazer-me do meu frasquinho de perfume. Não, eu não posso permitir que o deixe voltar! Eu não queria falar nisto em frente a Augusta. Eu sei que ela gosta dele, mas tem de concordar que este é um comportamento escandaloso!

- Ela ficou calada enquanto pegava novamente no copo com uma mão trémula.

 

Sir John estava a olhar fixamente para ela.

 

- Está a dizer que ele tentou violá-la? Ela acenou a cabeça em sinal afirmativo. Ele lambeu os lábios.

 

- Ele entrou no seu camarote à força? Ela voltou a acenar com a cabeça.

 

- E tocou-lhe com impropriedade? - Os olhos dele deixaram o rosto dela e desceram para o decote do seu vestido. Subitamente, começou a respirar pesadamente. - Minha querida Louisa, tem de se lembrar que é uma mulher muito atraente. E, com este calor, até mesmo a pessoa mais respeitável poderá sentir o sangue a correr aceleradamente na sua companhia. - De repente, ele soergueu-se e aproximou-se mais dela. - Eu próprio já me senti muito atraído por si. Muito! - Ele estendeu a mão e tocou no pulso dela com dedos quentes.

 

- John! Que está a fazer? - A voz de Augusta a entrar no salão interrompeu-o.

 

Ele deu um salto para trás como se se tivesse escaldado.

 

- Minha querida! Não te ouvi entrar! Ainda bem que aqui estás. Louisa contou-me umas coisas terríveis. Terríveis. - Ele estava a balbuciar de terror.

 

- Minha querida, Carstairs mostrou ser um terrível hipócrita. Um patife. Uma terrível desonra para o nosso sexo.

 

Augusta tinha-se sentado à mesa. Com uma enorme calma, pegou na garrafa.

 

- Eu achei que era uma enorme tolice da sua parte sair com o homem sem uma dama de companhia, Louisa - comentou ela. - Também apareceu ao pé dele en déshabille?

 

Apesar da sua ira, Louisa deu por si a corar ligeiramente.

 

- Garanto-lhe que não. Eu achei o comportamento de Lorde Carstairs totalmente inqualificável. E espero que o proíbam de voltar a pôr os pés no tbis.

 

Augusta recostou-se na cadeira e levou pensativamente o copo à boca.

 

- Eu acho que não podemos fazer isso. O homem é um par do reino. Devo admitir que ele também me faz sentir pouco à vontade, mas pensei que ele estivesse interessado em Venetia Fielding, por isso devo dizer que estou surpreendida por ele se ter atirado a si.

 

Louisa ergueu uma sobrancelha.

 

- Fala como se eu fosse indigna das atenções dele. - Apesar de tudo, sentiu-se indignada.

 

Augusta esboçou um sorriso seco.

 

- Não é tanto indigna, minha querida, como provavelmente não suficientemente rica. David Fielding é muito rico e já fez saber que a Venetia terá um dote considerável. - Ela olhou para o marido. - Há algum motivo para o interesse dele na Louisa?

 

Sir John estava sentado com as mãos em cima da mesa à sua frente, com um ar de humildade.

 

- Ele quer o frasquinho de perfume dela - respondeu ele, encolhendo os ombros. - Só Deus sabe porquê, mas eu penso que tem a ver com os seus estudos sobre o antigo Egipto. Eu preferia que lho desse, Louisa, e pusesse ponto final no assunto. Ele deve significar muito pouco para si em termos reais, e pode pedir o preço que quiser. O homem pagará o que lhe pedir.

 

Louisa olhou para ele.

 

- Ele não está à venda. Eu já lhe disse isso. E para mim é também uma recordação de Hassan, que o comprou para mim e que Sir John despediu tão injustamente... - Ia dizer mais qualquer coisa mas conteve-se e mordeu o lábio.

 

- Ele era meu amigo, e isso torna-o duplamente precioso para mim. Garanto-vos que nunca me desfarei dele. Não enquanto for viva.

 

Anna pousou o diário. Franziu o sobrolho. Que som era aquele à porta? Olhou, nervosa, para a maçaneta, apurando o ouvido, e quase deu um salto de medo quando ouviu bater suavemente.

 

- Quem é? - perguntou, pigarreando ansiosamente.

 

- Sou eu... Toby. Não queria acordá-la, se estivesse a dormir. Só queria saber se estava bem.

 

Ela levantou-se e abriu a porta.

 

- Estou óptima, obrigada. - Ele estava encostado à parede, com um braço erguido descontraidamente atrás da cabeça, e sorriu, sem fazer menção de entrar.

- Fiquei um pouco preocupado quando vi que não tinha vindo jantar. Estava com esperança de que Andy não a tivesse arrastado para o seu covil.

 

Ela sorriu.

 

- Nem pensar.

 

- Fico contente. Bem, boa noite. Durma bem.

 

Ela deixou-se ficar à porta enquanto ele seguia ao longo do corredor e viu-o dobrar a esquina. Depois voltou, pensativa, para dentro.

 

Recusou-se a ler mais nessa noite. Exausta, tomou um duche rápido e meteu-se na cama. O seu último pensamento foi para o amuleto que tinha ao pescoço. Com ele ali, continuava a sentir-se estranhamente segura.

 

Dormiu bem até de madrugada. Depois ficou meio acordada a pensar em Louisa. Adormeceu outra vez, acordou novamente e voltou a dormir. Quando voltou a acordar, deu por si a estender a mão para o diário quase antes de abrir os olhos. Estava a tornar-se uma obsessão saber o que acontecera a Louisa.

 

Depois da desagradável conversa com os Forresters, Louisa dormiu até tarde, e Augusta estava sozinha no salão na manhã seguinte quando ela saiu do camarote, vestida com uma blusa e uma saia frescas. Augusta conduziu-a até ao convés, onde se sentaram a beber limonada à sombra da vela drapejada.

 

- Eu e Sir John estivemos a conversar, Louisa - começou ela a dizer, lançando um olhar rápido à mulher mais nova. - Nós achamos que fomos demasiado precipitados em despedir o Hassan. Eu penso que talvez tivéssemos sido induzidos em erro por Roger. Involuntariamente, claro - acrescentou ela apressadamente. - O reis pensa que Hassan talvez ainda não tenha descido o rio. Ele e Sir John foram a terra tentar encontrá-lo. Os homens estarão de volta em breve para nos puxar pelos rápidos acima, mas será fácil a Hassan encontrar-nos, se quiser, quando estivermos parados em Philae.

 

Louisa susteve a respiração. Fechou os olhos, tentando manter uma expressão de compostura. O coração estava a bater muito depressa.

 

- Isso agradar-te-ia, minha querida?

 

Ela tomou consciência de que Augusta estava a observar-lhe o rosto. Acenou afirmativamente a cabeça.

 

- Agradar-me-ia muito.

 

-John é um bom homem, sabe, minha querida. - Augusta mordeu o lábio.

- Às vezes exalta-se um pouco, mas não o faz por mal. Louisa sorriu.

 

- Eu sei. - Sentiu-se comovida. Augusta devia ter tido dificuldade, tanto em pedir perdão pelo marido como em avisá-la. Ela conseguira fazer ambas as coisas com um tacto infinito.

 

Só restava um ponto de discórdia.

 

- E Lorde Carstairs?

 

- Se Hassan aqui estiver, não haverá necessidade de ficares sozinha com ele, minha querida. Eu penso que Roger foi, provavelmente, uma criança mimada e, agora que é adulto, continua a comportar-se como tal. Se quer qualquer coisa, acredita que tem de a ter, e nada pode frustrar os seus desejos. Nós iremos mostrar-lhe que, embora ainda seja bem-vindo ao íbis, neste caso, ele não vai conseguir o que quer.

 

Louisa passou o resto da manhã a desenhar rochas e rochedos. Só ao meio-dia é que os homens começaram a regressar, prontos para arrastar o barco pela última parte da catarata acima. Com eles vieram Sir John e Roger Carstairs.

 

Louisa tinha-se retirado para o corrimão do outro extremo para poder observar os acontecimentos do barco. Não cumprimentou os dois recém-chegados e ficou a olhar para os homens que se agrupavam nas rochas, a preparar-se para elevar as enormes cordas, como equipas de luta de tracção prestes a travar uma batalha contra os elementos. Alguns minutos depois, ela viu, pelo canto do olho, Sir John e Carstairs descer para o salão, onde Augusta se resguardava do sol.

 

Demorou algum tempo até qualquer deles emergir; por fim, Augusta surgiu no convés. Os seus olhos brilhavam enquanto ela se dirigia apressadamente para ré para se sentar ao lado de Louisa.

 

- Tenho umas notícias maravilhosas! Não vai acreditar!

 

- Sir John encontrou Hassan? - Louisa sentiu uma enorme alegria e excitação.

 

- Hassan? - Por um momento, a expressão de Augusta foi vaga. - Oh, não. Eu creio que John lhe deixou uma mensagem para ele seguir o Íbis, se desejar ter o seu emprego de volta. Não, não, muito melhor do que isso. Minha querida, Roger Carstairs perguntou a John se poderá visitá-la. Minha querida, ele quer pedir a sua mão!

 

Louisa olhou-a fixamente. Por um momento, ficou demasiado espantada para reagir. Sentiu-se como se tivesse uma tenaz gelada a apertar-lhe os pulmões, de tal modo que não conseguia respirar. A boca tinha ficado seca.

 

Augusta bateu as palmas.

 

- Claro que Sir John disse que sim. Ele sabia que ficaria encantada! Roger pediu imensas desculpas por tê-la assustado ontem. Ele disse que o seu amor por si anulou a sua sanidade mental. Ele trouxe-lhe um presente belíssimo, Louisa...

 

Louisa conseguiu finalmente mover-se. Pôs-se de pé, hirta como uma boneca de madeira. Lápis e pincéis caíram em cascata para o convés e rolaram para longe, enquanto ela olhava fixamente para Augusta.

 

- Como é que ele se atreve! - A sua voz era tão seca que lhe arranhou a garganta. - Como é que ele se atreve a utilizar mentiras para tentar entrar no barco? Por que é que ele tinha de perguntar a Sir John? Ele não é meu pai! Como é que alguém se atreve a presumir que eu ficaria satisfeita?

 

Augusta pareceu espantada. Por momentos, pareceu não saber o que dizer. Ergueu as mãos e deixou-as cair ao lado do corpo, num gesto de total perplexidade.

 

- Ele perguntou a John porque ele é o seu anfitrião. Este barco é dele. Nós estamos a tomar conta de si, minha querida. - Ela parecia prestes a desatar a chorar. - Pensámos que ficaria muito satisfeita. Pense nisso. O título dele...

 

- Eu não quero o título dele, Augusta! - retorquiu Louisa, secamente. E certamente que não o quero a ele nem ao seu presente. Não o vou receber. Por favor, diga-lhe que se vá embora. - Ela virou-se e encostou-se ao corrimão, a olhar para a água.

 

- Louisa...

 

- Não. - Ela não olhou em volta. - Por favor. Mandem-no embora.

 

- Eu não posso fazer isso, Louisa. - Augusta parou, por um momento, a olhar para ela, depois, com um suspiro, deu meia volta e afastou-se. Quando, com um grito, as cordas de atracagem foram soltas e o barco levado, a balouçar, para o canal, Louisa encontrou-se sozinha no convés.

 

Foi talvez uma hora depois que ela se dirigiu, um tanto cautelosamente, para o seu camarote. Quando passou à porta do salão, olhou para o interior. Augusta e Sir John estavam lá sozinhos. Não havia sinal de Carstairs. Com um suspiro de alívio, virou-se na direcção da sua porta e abriu-a com um pequeno empurrão. Ele estava sentado na cama. Em cima da colcha, ao seu lado, estava o diário e a malinha de toilette.

 

Ao ouvir a exclamação de surpresa e medo dela, Cairstairs sorriu.

 

- Por favor, não grite, Louisa. Seria embaraçoso ter de dizer a Sir John e a Augusta que o que eles ouviram era apenas a voz da sua paixão. Dê-me a chave desta estúpida caixa e ficaremos despachados.

 

- Tem estado a ler o meu diário! - Ela sentiu-se avassalada pela ira.

 

- Estive, sim. E que leitura interessante. Não pareces gostar da minha companhia, minha querida. Estou a ver que a tua queda é para os nativos - disse ele, desdenhosamente. - Felizmente, não estou particularmente preocupado com as tuas opiniões. A chave, por favor, senão vou ver-me obrigado a quebrar a fechadura.

 

- Saia já do meu camarote! - Louisa sentia a sua ira aumentar. O calor inundava-lhe o corpo. - Saia já! - Ela dirigiu-se a ele e arrancou-lhe o diário da mão. - Quer que evoque novamente o sumo-sacerdote para me ajudar? Quando o chamei, ele veio. Lembra-se? Quem sabe o que ele poderá fazer para me proteger.

 

Carstairs soltou uma gargalhada.

 

- Evocar espíritos, minha querida, é o que eu faço e não tu. Há anos que eu me dedico a práticas ocultas que fazem surgir os guardiães do teu frasquinho. É isso que realmente queres? - Ele pôs-se subitamente de pé e ela caiu para trás, assustada. No pequeno camarote, ele parecia muito alto. Embora se esforçasse por disfarçar, a sua coragem estava a desaparecer tão rapidamente como surgira, deixando-a paralisada de medo.

 

Carstairs olhou-a sem ocultar o seu desprezo, depois ergueu a mão e respirou fundo.

 

- Anhotep, sacerdote de ísis, aqui eu te evoco. Agora. Anhotep, sacerdote de ísis, mostra-te perante mim, agora. Anhotep, sacerdote de ísis, surge à luz do dia! - Ele abriu os braços e a sua voz ecoou no silêncio.

 

Louisa soltou um pequeno gemido.

 

Ela já conseguia ver a figura transparente junto da janela, o rosto magro e arrogante, os ombros quadrados, os estranhos olhos claros, muito parecidos com os do próprio Carstairs, com o seu olhar intenso, penetrante. Louisa fechou os olhos.

 

- Chamou, Senhora Shelley? - A voz de Jane Treece, mesmo atrás dela, fê-la soltar uma exclamação.

 

Por momentos, ela não conseguiu mexer-se, depois virou-se para a recém-chegada.

 

- Chamei, sim! - Ela agarrou no braço da mulher. - Importa-se de acompanhar Lorde Carstairs até lá fora? Ele já estava de saída. - Ela começara a tremer violentamente.

 

Enquanto Treece acompanhava Carstairs para o exterior, ela fechou os olhos e afundou-se na cama, incapaz de se mexer. Quando voltou a abri-los, a figura junto da janela ainda lá estava...

 

-Oh, meu Deus! - disse Anna em voz alta. Fechou o livro e respirou fundo. Tinha as mãos a tremer. Olhou para o outro lado do camarote, para a gaveta fechada do toucador. Obrigou-se a si mesma a pôr-se de pé e estava prestes a atravessar o camarote quando uma tosse no exterior da sua porta a fez dar um salto.

 

Era Toby.

 

Quando ela abriu a porta, ele observou a camisa-de-noite curta e o seu aspecto desalinhado. Seguidamente, ele concentrou-se no seu rosto.

 

- Fiquei preocupado quando não apareceu ao pequeno-almoço, depois de não ter jantado ontem à noite. Tem a certeza de que está bem? Está com um péssimo aspecto.

 

Ela soltou uma pequena gargalhada.

 

- É essa a sua conversa de engate habitual?

 

- Não. No que diz respeito a conversa de engate, eu sei fazer melhor respondeu ele, sorrindo novamente. - Que se passa, Anna? Tem as mãos a tremer.

 

Ela cruzou os braços sobre o peito e encolheu os ombros, embaraçada.

 

- Eu estou bem.

 

- Não. Não está bem. Foi o facto de me ver ou é outra vez esse maldito diário? - Ele vira-o em cima da cama. - Anna, desculpe-me por dizer-lhe isto, mas se ele a perturba, se está a ocupar-lhe tanto tempo que está a perder as visitas por que pagou milhares de libras, acha que é sensato continuar com isto? - Ele fitou-a nos olhos por um momento, com uma expressão grave. - Por que é que não o deita para o lixo? Não, não é isso que eu quero dizer, ele é demasiado valioso. Guarde-o. Leia-o quando chegar a casa, sentada no jardim.

 

- Não posso. Preciso de saber o que aconteceu. - As palavras saíram como um lamento.

 

- Precisa? - Subitamente, a voz dele era ligeiramente mais suave. Porquê? Por que é que é assim tão importante?

 

- Tem a ver com o frasco de perfume. Havia alguém a tentar roubar-lho. Ela pensava que ele tinha uma maldição - respondeu ela, calando-se de repente. Estava a divagar.

 

Toby ainda estava a olhar para o diário.

 

- E pensa que o frasco poderá estar amaldiçoado?

 

Ela ergueu o olhar, esperando vê-lo a rir-se dela, mas o seu rosto estava perfeitamente sério.

 

- Quer mostrar-mo, Anna? Watson pensa que ele é falso, não é verdade? Ele não guardou segredo a esse respeito. Eu não sou um perito, mas tenho sensibilidade para as coisas.

 

Ela hesitou, depois, subitamente, decidiu-se, dirigiu-se ao toucador e abriu a gaveta. Deu-lhe o frasco embrulhado no lenço. Ele retirou o pedaço de seda e deixou-o cair em cima da cama, depois aproximou o frasco do rosto e observou-o com um olho semicerrado e o outro fechado. Ela ficou a vê-lo passar suavemente os dedos pela superfície, sentindo-se estranhamente fascinada pela forma como ele acariciava o vidro e percorria o selo com o polegar. Depois, ele segurou-o na palma da mão com o braço estendido, como se estivesse a calcular-lhe o peso.

 

- Parece-me bem - disse por fim, levantando os olhos para ela. - Soprado à mão. Superfície áspera com muitas imperfeições, tosca, de certo modo, mas muito mais do que isso. - Ele franziu o sobrolho, passando outra vez os dedos por ele. - Consigo sentir a sua idade. Não me pergunte como, mas consigo.

 

- Andy diz que o topo foi acabado à máquina - comentou ela em voz baixa.

 

- Que disparate. Se ele diz isso, é porque não percebe nada de vidro. E intitula-se ele negociante de antiguidades! Não - prosseguiu ele, passando o indicador pelo selo -, não, não foi feito à máquina. Não posso datar-lho. Teria de ser um museu a fazê-lo.

 

- Mas é egípcio? - perguntou Anna, erguendo os olhos para ele.

 

- Louisa Shelley diz que é?

 

- Diz. - Ela mordeu o lábio.

 

- Então, é egípcio. - Ele lançou-lhe um sorriso tranquilizador. - Anna, por que é que não procura uma parte agradável do diário para ler? - sugeriu ele, repentinamente. - Qualquer coisa alegre. Deve ter bocados agradáveis. Depois guarde-o e venha passear de barco à vela. Posso tentar encontrar-lhe uma parte agradável?

 

Ela hesitou.

 

- Não vou danificá-lo, juro. Só vou folheá-lo e olhar para a letra. Eu consigo ver muita coisa pela letra, sabe?

 

Ela ficou a observá-lo sem dizer uma palavra, a perguntar a si própria por que motivo lhe permitira, por que é que o convidara para entrar, por que é que lhe mostrara o frasco. Por que razão se sentia mais à vontade com ele, apercebeu-se agora, do que com Andy. Apesar das acusações deste último, acusações em que, reconheceu pensativamente, não acreditara nem por um segundo!

 

Ele ergueu subitamente o olhar.

 

- Aqui. Veja. Esta parece ser uma parte boa. Repare, a letra é leve e até mesmo a pintura é alegre. Posso lê-la para si?

 

Encolhendo os ombros, ela sentou-se no banquinho.

 

Hassan regressara no dia em que atracaram em Philae. O Escaravelho tinha atracado a pouca distância deles, e o dahabeeyah dos Fieldings alguns metros mais adiante.

 

Com uma dignidade tranquila, Hassan tinha aceite a explicação de Sir John de que tudo não passara de um mal entendido, e voltara a integrar-se na vida do barco como se nunca tivesse estado ausente; mas Louisa sabia que, agora, os Forresters deviam ter adivinhado que a sua relação com ele era mais amigável do que qualquer deles desejaria admitir publicamente.

 

Estava escuro quando Louisa saiu para o convés e encontrou Hassan à espera para a levar a terra.

 

- Eu disse aos Forresters que queria pintar o rio à luz da Lua - disse ela em voz baixa. - Eles já não tentam impedir-me, e eu creio que Lorde Carstairs está a bordo do Lotus, a conversar sobre fotografia com Mr. Fielding, que trouxe uma câmara com ele, por isso ninguém nos deve incomodar.

 

- Excepto os rapazes do baksheesh, - disse Hassan com um sorriso. - Eles estão aqui dia e noite.

 

- E é possível comprá-los?

 

- Sim, é possível comprá-los - respondeu ele, acenando afirmativamente com a cabeça.

 

Uma enorme Lua brilhava através da água, projectando sombras negras na areia. Caminharam lentamente, admirando a beleza intensa da noite. À sua volta, os pilares do templo, as colinas distantes, as dunas, a areia, tinham-se transformado de ouro em prata-cintilante.

 

- Vamos subir a parede - murmurou Hassan. - Eu mostro-lhe. Subiram cuidadosamente os degraus gastos, negros como breu na escuridão

 

da pedra, e emergiram novamente ao luar. Estava mais fresco lá em cima, e Louisa aconchegou o xaile à volta dos ombros. Conseguiam ver toda a ilha por baixo deles, bem como três barcos ancorados ao longe, como pequenos brinquedos. A norte, viam-se as ilhas das cataratas com os rápidos e a espuma, tudo prateado à luz da Lua. Para sul, o rio largo, a correr vagarosamente, descrevia uma curva e desaparecia de vista. Imediatamente abaixo deles, o enorme templo permanecia em silêncio e misterioso, enormes lagos negros semeados de colunas prateadas.

 

- Quer pintar aqui, Sitt Louisa? - o murmúrio de Hassan foi, de certo modo, chocante no silêncio.

 

Ela acenou com a cabeça.

 

- Estamos seguros aqui, Hassan?

 

Ele não teve a certeza se ela queria dizer de Carstairs ou dos espíritos. Talvez de ambos.

 

- Estamos seguros. Vou tirar as coisas do cesto. - Ele começou a estender o tapete.

 

O rio era completamente silencioso abaixo deles. No íbis, os Forresters já se encontravam no seu camarote. No Lotus, os Fieldings e o seu convidado, tendo esgotado as complexidades da nova máquina fotográfica, estavam sentados no convés a deliciar-se com uma bebida fresca, enquanto Venetia lhes lia uma passagem de um dos romances de Jane Austen.

 

Louisa desenhou a cena durante muito tempo, sentindo-se por vezes tão deslumbrada pela beleza envolvente que por vezes ficava simplesmente sentada, fascinada, com o lápis imóvel sobre o papel. Hassan estava sentado, de pernas cruzadas, a pouca distância dela. Ele parecia reservado, desde que voltara. Mais silencioso. Mais pensativo.

- Tu pensas muito, meu amigo - observou ela por fim.

 

- Estou a ver a noite. E vejo-a a si - disse ele com um sorriso.

 

- E eu a ti. Olha. - Ela mostrou-lhe o bloco de desenhos. Havia um pequeno retrato dele. Pensativo, atraente, o sorriso irónico à volta dos seus olhos era inconfundível.

- Honra-me muito, Sitt Louisa.

- Só mostro a verdade. - Ela inclinou-se para a frente. - Eu disse a Sitt Augusta que, se ficássemos demasiado cansados da Lua, dormiríamos no interior do templo.

 

Ele acenou, com um ar grave. - Eu tenho almofadas e mantas. Depois pode ver o nascer do Sol.

 

- Vê-lo-emos juntos. - Ela estendeu o braço e tocou-lhe na mão, o mais suave dos movimentos. Ele aproximou-se mais.

 

- Quando me mandaram embora, senti-me tão infeliz que pensei que o meu coração ia parar de bater - disse, finalmente. - A Sitt Louisa tem sido o meu sol, a minha lua e as estrelas do meu céu.

 

Ele inclinou-se lentamente e tocou os lábios dela com os seus. Louisa fechou os olhos. A onda de calor e felicidade que a invadiu fez desaparecer da sua mente tudo a não ser o homem atraente e meigo que a tinha abraçado.

 

- Mantém-nos em segurança, grande ísis, e escondidos de olhos curiosos, suplico-te. - A oração dela elevou-se na escuridão e rodou na direcção da Lua

 

no preciso momento em que, lá em baixo, no rio, Lorde Carstairs, no salão dos Fieldings, se pôs de pé e se espreguiçou, se despediu e emergiu no convés, ficando, por um momento, a olhar, através das palmeiras da margem, na direcção do templo que se erguia serenamente na sua ilha à luz do luar.

 

Fez-se um longo silêncio. Toby fechou o diário e colocou-o em cima da mesinha-de-cabeceira.

 

- Com que então Louisa Shelley encontrou o amor no Egipto - disse ele, finalmente. - Isso agrada-lhe? Agora já consegue pôr o livro de lado, descontrair-se e divertir-se? Naquela passagem não houve qualquer referência a maldições. Nem a espíritos malignos.

 

Ela sorriu.

 

- Tem razão. Vou pô-lo de lado.

 

- E vem passear no barco à vela?

Ela olhou para o relógio.

 

- Se não for demasiado tarde.

 

- Não é demasiado tarde - disse ele, pondo-se de pé. - Vá-se vestindo, que eu vou verificar se ainda há um barco para nós e ver se consigo convencer Ali ou Ibrahim a dar-nos umas sanduíches. Não posso prometer tapetes persas nem encontros ao luar, mas faremos o melhor possível. - Ele estava a virar-se para a porta quando parou. - Anna, desculpe fazer-lhe uma pergunta pessoal, mas o que é esse amuleto que tem ao pescoço? Eu ainda não o tinha visto, pois não?

 

Ela colocou a mão rapidamente sobre ele.

 

- É para me manter em segurança - disse ela com um leve sorriso. Chama-se o Olho do Hórus.

 

Ele acenou a cabeça.

 

- Bem, certamente que está a cumprir a sua tarefa. Até já.

 

Ela encontrou-se com ele no convés e viu que, de facto, ainda restava uma feluca do conjunto à volta da popa do barco que, nessa manhã, levara os outros passageiros a dar os seus passeios individuais.

 

Toby ajudou-a a instalar-se no barco, depois voltou duas vezes ao Garça Branca, uma para ir buscar o seu bloco de desenho e outra para pedir a Ali mais duas latas de sumo, antes de se instalar junto dela e deixar que o barqueiro fizesse o barco navegar lentamente, dirigindo-se para a margem distante onde as canas se reflectiam na água parada. Era uma sensação maravilhosa, deixar-se ficar recostada nas almofadas usadas a olhar para a enorme vela triangular, branca de encontro ao azul-intenso do céu, com os seus remendos mais escuros. Com um suspiro de enorme prazer, Anna procurou a máquina fotográfica no saco.

 

- Feliz? - perguntou Toby, lançando-lhe um ar divertido quando ela se inclinou para trás para fotografar a vela.

 

- Muito. Obrigada por me ter desenterrado do camarote.

 

Ele estava sentado com um braço estendido ao longo do lado do barco, com a mão perto do ombro dela. Tinha o saco no chão, junto dos pés deles. Tinha-se descalçado, reparou ela, e os seus pés eram tão escuros como os do timoneiro.

 

Ele sorriu.

 

- E estava a precisar de ser salva. Como Rapunzel.

 

- Acha que já me descontraí? - perguntou ela com uma gargalhada.

- Acho que está no bom caminho.

 

Houve uma ligeira ondulação da água debaixo da proa quando o barco virou e apanhou o vento. A vela adejou uma vez e depois encheu-se como uma asa branca de encontro ao azul. Ela pegou outra vez na máquina fotográfica. O barqueiro, sentado tranquilamente na proa perto do mastro, olhava através da água para a margem distante, com a mão a proteger os olhos. O seu perfil de encontro à vela tinha, pensou ela, saído directamente de um baixo-relevo de um templo - a testa alta, os enormes olhos amendoados, os traços das faces, o ângulo dos lábios e do queixo. Ela apontou a câmara para ele, perguntando a si própria se o homem se importaria que ela lhe tirasse a fotografia, mas eleja vira o que ela estava a fazer. O seu rosto tinha-se aberto num enorme sorriso, e ele fez uma pose, equilibrando-se com um braço à volta do mastro.

 

- Tire outra quando ele não estiver a ver. - O conselho em voz baixa de Toby fê-la sorrir. Em parte, ele tinha razão. A graciosidade descontraída tinha sido boa, mas esta pose também fazia parte da cena. A constante interacção com os turistas, o jogo jogado por ambas as partes: as gentes do Nilo a tentar satisfazer as expectativas dos visitantes; os visitantes a trazer divisas muito necessárias e raramente fazendo grandes exigências. De um modo geral, a relação parecia funcionar muito bem. A natureza afável e o humor dos egípcios permitia-lhes manter o equilíbrio. Se havia algum ressentimento ou sensação de estarem a ser explorados, isso era bem disfarçado.

 

Anna fechou os olhos e deixou a cabeça cair para trás, permitindo que o sol penetrasse por baixo da aba do chapéu. O calor no seu rosto foi súbito e intenso, e ela conseguia ver o escarlate-violento das suas pálpebras. Recuou rapidamente e, no momento em que o fez, o timoneiro colocou a cana do leme atravessada, o seu companheiro afastou-se do mastro e sentou-se em frente dela para endireitar a vela, o barco rodou, e a sombra da vela caiu sobre o rosto de Anna. A nova figura na proa do barco, equilibrada sem dificuldade em cima das tábuas com as suas sandálias douradas, olhava para a água com os braços abertos e ergueu a cabeça para fitar directamente o sol. Ela soltou uma exclamação e os três homens que estavam no barco olharam para ela.

 

- Anna? - Toby tocou-lhe no braço. - Está bem?

 

Ela engoliu em seco. A figura tinha desaparecido. Claro que tinha desaparecido. Nunca lá tinha estado. Era a sombra do barqueiro ou uma miragem passageira na transparência do ar quente por cima do barco.

 

Ela abanou a cabeça.

 

- Desculpe, apanhei sol nos olhos.

 

- Isso não é bom, minha senhora. - O barqueiro abanou o dedo na direcção dela. - Muito perigoso.

 

Ela encolheu os ombros, acenou com a cabeça e pôs um ar de arrependimento, puxando a aba do chapéu para baixo. Não viu Toby franzir o sobrolho, nem reparou na forma como ele se inclinou e olhou para a frente do barco.

 

Quando regressaram, foram servidas bebidas no bar antes do almoço, e Andy já lhe tinha pago uma.

 

- Especialmente para si! - entregou-lhe a bebida com um floreado. - Para pedir desculpa. Não vou interferir mais na sua vida e não vou ser autoritário. Lá estava, bem firme, o encanto pueril.

 

Anna olhou por cima do ombro para Toby e viu o sorriso mordaz rapidamente disfarçado. Ele piscou-lhe o olho, depois ergueu as mãos num gesto de rendição.

 

- Inshallah - murmurou ele, juntando as mãos num gesto de saudação trocista. - Bebe com o effendi. - Ele deu meia volta e dirigiu-se ao bar, e ela viu Ali pegar numa garrafa de cerveja egípcia.

 

Anna virou-se para Andy.

 

- Não é uma questão de perdão, Andy. Eu só quero poder falar com Serena sempre que me apetecer sem a sua interferência. Onde está ela agora?

 

Ele encolheu os ombros.

 

- Não sei. A sério que não sei. Talvez a feluca em que ela estava não tenha regressado ainda, mas, quando regressar, eu ofereço-lhe uma bebida, beijo-lhe os pés, faço-lhe festas na mão, tudo o que quiser.

 

Anna sorriu.

 

- Bastaria ser simpático.

 

- Então, vou ser simpático - disse ele com um sorriso rasgado. - Eu sou simpático. Eu sou sempre simpático para toda a gente. - Ele deu uma palmada nas costas a Ben quando este passou por ele. - Não sou, Ben?

 

- Tu pareces que estás com uma pedrada qualquer, meu amigo, - respondeu Ben num tom jovial. - Mas se isso significa que também me vais pagar uma bebida, então, o que quer que seja, sou todo a favor.

 

Andy sorriu-lhe com ar entendido.

 

- É a luz do Sol, Ben, meu velho. É tudo. - Ele deu subitamente meia volta.

 

- E aqui está Serena. E Charley vem com ela.

 

As duas mulheres tinham surgido juntas à porta.

 

- O Andy paga, raparigas. Se fosse a vocês, pedia uma coisa exótica e cara - disse Ben com um ar malicioso.

 

- Cocktails para as duas senhoras? - Ali tinha seguido atentamente a conversa e agora sorria esperançosamente. - O Ali faz cocktails muito bons. Muitas coisas. Muito caros.

 

Serena abanou a cabeça.

 

- Não, obrigada. Um sumo de fruta seria óptimo.

 

- Eu bebo um - disse Charley, subindo para o banco do bar. - Um cocktail com todas as coisas que puderes imaginar, Ali. - Ela tinha os olhos febris, brilhantes, e o sol tinha-lhe queimado o rosto, polvilhando-o de pequenas sardas. Usava um vestido de algodão muito decotado e um colar de contas cor de turquesa.

 

Serena pegou no seu sumo de goiaba e retirou-se para um sofá. Um minuto depois, Anna seguiu-a, deixando os outros reunidos à volta do bar.

 

- Precisamos de conversar muito em breve. - Anna sentou-se ao lado dela. Quando se afastara do bar, reparara que Toby não estava em lado nenhum.

 

- Então, onde é que foi? - Serena olhava para o seu copo com um ar sombrio.

 

- Fui andar de feluca com Toby. - Anna olhou para ela, consciente de que corara um pouco. Serena não reparou. - Hoje voltei a ver o sacerdote Anhotep

- prosseguiu ela. - Pelo menos... - hesitou - ... penso que o vi. Na feluca.

 

Serena ergueu o olhar, surpreendida.

 

- Levou o frasco consigo?

 

- Não. Ainda está no meu camarote. O que quer que eu faça, não parece fazer qualquer diferença. Continuo a vê-lo.

 

Serena fez uma careta e encolheu os ombros, - Espero que ele não se tenha colado a si.

 

- Colado a mim? - Anna obrigou-se a si própria a baixar a voz. - Espero que esteja a brincar. Meu Deus! Quer dizer que estou possuída?

 

- Não! - Serena inclinou-se para a frente. - Não, é exactamente isso que eu não quero dizer! - Os seus olhos fixavam-se em Charley, que estava sentada ao bar, e franziu o sobrolho. Depois encolheu os ombros e virou-se novamente para Anna. - Não, não deve ficar com a impressão errada. Não está, de modo algum, possuída, mas ele pode ter-se ligado a si em termos de energia. Isso significa que ele... - ela olhou em volta acenando com a mão num gesto de impotência -... ele está a usá-la como um tanque de gasolina. Ele tem pouco combustível porque não tem um corpo próprio, por isso tem de usar o de outra pessoa que lhe dê energia para se poder deslocar e se mostrar. Ele pôs uma espécie de tubo de aspiração no seu campo de energia para poder utilizar a sua, e isso significa que está junto de si o tempo todo.

 

Anna estremeceu.

 

- Espero sinceramente que esteja enganada. - Ela bebeu um golo do copo e, sem querer, voltou a estremecer violentamente.-Como é que me posso livrar dele?

 

- Se for voluntariosa, a sua intenção poderá ser suficiente.

 

- Eu sou voluntariosa.

 

- Então, na próxima vez que o vir, diga-lhe que se vá embora.

 

- Eu já tentei isso! Gritei com ele, disse-lhe que levasse o frasco e me deixasse em paz. Ele não apareceu. Não aconteceu nada.

 

-Aguarde até o ver, Anna. Depois fale com ele. Não tenha medo, nem fique zangada, isso enfraquecê-la-á. Seja apenas forte e afectuosa.

 

- Afectuosa! - Anna ficou a olhar para ela. - Não pode ser! Como é que eu posso gostar dele? - perguntou ela, indignada.

 

-O amor tudo vence, Anna. - Serena sorriu melancolicamente.-Especialmente o ódio e o medo.

 

- Não. Não. Desculpe, mas eu não acredito nisso. Infelizmente. - Anna bebeu outro golo. - E acho que o nosso amigo veria isso como uma fraqueza.

 

- Ela olhou para os pés calçados com sandálias. - Havia dois sacerdotes, não havia - prosseguiu ela num tom pensativo. - Que aconteceu ao outro? - Ela ergueu o olhar.

 

Serena estava de novo a olhar atentamente para o bar, a ver Charley atirar a cabeça para trás com uma risada alta, e franziu o sobrolho.

 

- Não sei - respondeu, finalmente. - Não sei o que aconteceu ao outro - prosseguiu ela, recostando-se no sofá e fitando Anna. - Não, tem razão. Não seria fácil gostar de Anhotep. Mas eu creio que ele não lhe deseja mal nenhum. Eu acho que deve fazer o possível por enfrentá-lo. Quando tiver estabelecido um diálogo com ele, pode perguntar-lhe por que é que ele quer tanto o frasco, o que deve fazer com ele, como o poderá ajudar, e depois pode pedir-lhe que se vá embora.

 

- Nessa altura, já seremos amigos íntimos e eu vou convidá-lo para jantar!

 

- retorquiu Anna. Fez uma pausa. Louisa fizera isso. Tinha invocado Anhotep para a proteger de Lorde Carstairs. Talvez Serena tivesse razão. Talvez conseguisse estabelecer contacto. Por outro lado... estremeceu. - Receio que as suas expectativas sejam demasiado elevadas. Basta-me ver uma sombra nebulosa do sujeito para que as minhas pernas fiquem sem acção. - Fez uma pausa. - Não acredito que esteja a ter esta conversa! - Inclinou-se para a frente e colocou a cabeça entre as mãos. - Eu quero livrar-me do frasco, Serena. Não consigo lidar com a situação. Estas férias deviam ser umas férias alegres. Em vez disso, estão a transformar-se num pesadelo!

 

Houve uma pausa, depois Serena inclinou-se para a frente e tocou-lhe no braço.

 

- Quer que tome conta dele por si?

 

- A Serena? - Anna ergueu o ar com uma expressão de cansaço. A outra acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

 

- Levo-o para o meu camarote. Posso dizer algumas orações. Efectuar uma invocação e um repúdio. Queimar incenso.

 

- Não ao pé de Charley, suponho!

 

- Não, com a Charley presente, não. Deixe-me fazê-lo, Anna. Eu sei do que estou a falar. - Uma nota de urgência tinha-se infiltrado na sua voz.

 

Anna recostou-se no sofá e fechou os olhos, cansada.

 

- Por que é que eu fiz isto? Por que é que o trouxe para cá? Era desnecessário. Foi apenas um estúpido gesto romântico.

 

- Não sabia o que ia acontecer. Além disso, talvez não conseguisse evitá-lo. Talvez Anhotep tenha posto a ideia na sua cabeça.

 

Anna estremeceu.

 

- Obrigada. Ele não está apenas a sugar-me a energia, está também dentro do meu cérebro! - Ela massajou as têmporas com os punhos.

 

Serena pôs-se de pé.

 

- Vamos fazê-lo agora. Enquanto Charley e os outros estão no bar. Depois, podemos mudá-lo calmamente, levá-lo para o meu camarote e dizer as primeiras orações antes de alguém saber alguma coisa a esse respeito. - Ambas sabiam que, ao dizer a alguém, ela estava a referir-se a Andy. - Farei o resto quando Charley estiver a curar a bebedeira no convés. - Ela lançou um olhar por cima do ombro a Charley, cujas risadas estavam a tornar-se cada vez mais estridentes.

 

Anna fez um aceno em sinal de concordância. Pondo-se de pé, saiu da sala atrás de Serena.

 

Andy viu-as desaparecer através das portas de vaivém e franziu o sobrolho.

 

Anna tirou a chave do saco e abriu a porta do camarote. Depois fez uma pausa.

 

- Esteve aqui alguém.

 

Entrou cautelosamente no pequeno quarto e olhou em redor. A cama tinha sido feita e tinham sido deixadas toalhas limpas em cima da colcha, mas isso acontecia todas as manhãs. Isto era diferente. Olhou em volta, sentindo os pêlos dos braços a mexer-se.

 

- É Anhotep? - perguntou ela num murmúrio.

 

Foi até à casa de banho e empurrou a porta. Não estava lá ninguém. Serena tinha entrado atrás dela. Também olhou em volta e depois abanou a cabeça.

 

- Não consigo sentir Anhotep. Eu acho que ele não está cá.

 

- Então, o que é? - Anna dirigiu-se ao toucador e abriu a gaveta. O frasco estava onde o tinha deixado, embrulhado no lenço. Pegou nele com relutância e deu-o a Serena. - É todo seu.

 

Serena acenou com a cabeça.

 

- Venha ao meu camarote. Queremos ter a certeza de que Anhotep nos segue. - Ela calou-se. - O que é?

 

Anna estava a olhar para a mesinha-de-cabeceira. Com uma exclamação de desânimo, avançou rapidamente e abriu a gaveta. Esta estava vazia. O diário tinha desaparecido.

 

Tornei-me a mim próprio inteiro e completo; renovei a minha juventude; Eu sou Osíris, o senhor da Eternidade...

 

Na casa feita de tijolos de lama situada na orla da aldeia, uma mulher varre o chão mantendo a areia sempre afastada. Debaixo do tapete de dormir do filho, ela encontra um pedaço de tecido e, dentro dele, ainda incrustado com a areia do deserto de onde ele tinha vindo, um pequeno frasco. Ela segura-o por um momento na mão, curiosa, zangada com ele por a ter enganado, escondendo-o para ficar com ele. Ela sente-o formigar e ficar quente e, subitamente, sente um arrepio de frio, volta a embrulhá-lo e esconde-o outra vez debaixo do tapete.

 

Quando regressa à cabana vindo dos campos, ele sente-se feliz. Tomou uma decisão. O frasco não vale nada - pelo menos é o que o seu pai diz -, por isso vai oferecê-lo à mãe e ganhar bênçãos pela sua generosidade. Desembrulha-o e leva-o até ao rio, onde o lava nas águas lamacentas à beira dos campos. O vidro agora é brilhante, luminoso e limpo, mas a sua idade está escrita nas imperfeições da sua superfície.

 

A mãe aceita a prenda e sorri. Disfarça o novo arrepio de repulsa que sente quando o segura na mão e enfia-o num canto, fora de vista. Agora, cada vez que passa por aquele local, ela estremece e faz o sinal contra o mau-olhado. Ela pressente as sombras que o guardam e tem medo. Tal como o seu irmão, o rapaz é jovem e forte. Os sacerdotes conseguem alimentar-se da sua força vital e, todas as manhãs, com o renascer do deus sol, eles ficam mais poderosos. As crianças ficam mais fracas.

 

- Que aconteceu? - Serena tinha o frasco apertado contra o peito.

 

- O diário. Alguém o levou!

 

- Oh, Anna! Não pode ser. Eu sei que ele é valioso, mas ninguém no barco seria capaz de o tirar, nem sequer a Charley. Tem a certeza de que não o pôs noutro lado qualquer? No seu saco? Costumava levá-lo consigo para todo o lado. Ou noutra gaveta, numa mala ou qualquer coisa.

 

- Não. Desapareceu. - Anna cerrou os lábios com um ar severo. Quando começou a revistar sistematicamente o pequeno camarote, tinha as mãos a tremer. Não era no valor do diário que ela estava a pensar, mas sim na história que ele continha. Como é que ela iria suportar não saber o que tinha acontecido a Louisa e a Hassan!

 

Ela sabia que não valia a pena tirar a mala de cima do guarda-vestidos, desfazê-la, procurar no meio do papel de seda, mas, mesmo assim, fê-lo. Foi quando estava a fechá-la outra vez e a colocá-la no seu lugar que bateram à porta e esta se abriu.

 

Andy espreitou para o interior do quarto.

 

- Está tudo bem, minhas senhoras?

 

- Não, não está - respondeu Anna, angustiada. - O diário desapareceuF

 

- O diário de Louisa Shelley? - perguntou ele, franzindo o sobrolho.

 

- Que outro diário existe?

 

- Anna, eu disse-lhe que tomasse bem conta dele! Sabia como ele era valioso! - comentou ele, entrando no quarto. - Tem a certeza de que não caiu atrás do guarda-vestidos, debaixo da cama ou qualquer coisa do género?

 

- Tenho a certeza absoluta. - Ela estava imóvel no centro do camarote. Alguém o tirou.

 

- Nesse caso, acho que todos nós podemos adivinhar quem é esse alguém.

 

- Andy encolheu os ombros. - Eu avisei-a, Anna.

 

- Se quer dizer Toby, esqueça. Fui andar de feluca com ele esta manhã. Andy ergueu uma sobrancelha.

 

- E esteve com ele todos os segundos?

- Estive. - Hesitou. - Bem, suponho que não exactamente todos os segundos.

 

Ele tinha-a deixado sentada no barco antes de partirem. Qual tinha sido a desculpa? Ir buscar o bloco de desenho. Franziu o sobrolho, com tristeza. Como se ele não andasse sempre com o bloco. E depois tinha saído outra vez para ir buscar latas de sumo à sala de jantar. E, no regresso, ele tinha-a deixado no bar. Onde é que tinha ido com tanta pressa? Na altura, dada a sua antipatia por Andy, ela não tinha atribuído qualquer importância a esse facto, mas agora...

 

Ao vê-la franzir o sobrolho, Andy sorriu.

 

- Exactamente. Quer que fale com ele?

 

- Não! - A reacção dela foi instantânea. - Não, não diga nada. Se alguém o fizer, serei eu.

 

Ela não acreditava que tivesse sido Toby. Não era possível? E, no entanto, ela tinha de o admitir, ele tivera várias oportunidades para tirar o diário.

 

- Anna - disse Serena em voz baixa.-Ainda não sabe se foi Toby. Poderia ter sido facilmente um dos membros da tripulação. Ou um desconhecido, alguém que tivesse vindo a bordo enquanto andávamos de feluca esta manhã.

 

-Mas como é que um desconhecido havia de saber do diário? - disse Anna num tom sombrio. - Se tivesse sido um ladrão, ele teria levado o meu colar de lápis-lazúli ou a minha bracelete de prata. Eu deixei-os em cima do toucador. Devem valer qualquer coisa. - Ela abanou a cabeça. - Não, foi alguém que só queria isso. Graças a Deus que não levou o frasco. Que ironia isso teria sido!

 

Andy, seguindo o seu olhar, olhou para o embrulho de seda nas mãos de Serena.

 

- É aquilo? - perguntou ele secamente. - Por que é que a Serena o tem?

 

- Porque eu dei-lho para ela tomar conta dele - respondeu Anna com firmeza.

 

-Eu não concordo. - Andy deu um passo em frente e, com uma autoridade calma, tirou-o da mão de Serena. - Acho que vou eu tomar conta dele, se não se importa. Não é genuíno, mas tem um certo valor como raridade, e, dadas as circunstâncias, estará mais seguro comigo. Além disso, eu não vou permitir que a Serena continue a perturbar a Charley com as suas superstições. Tanto quanto me apercebo, o barco inteiro já está cheio de superstições e histeria.

 

Ele voltou a embrulhar o frasco no lenço e enfiou-o no bolso, depois começou a dirigir-se para a porta.

 

- Não se preocupe com ele. Eu vou mantê-lo em segurança.

 

- Andy! Devolva-mo imediatamente! - Anna conseguiu finalmente falar.

 

- Devolva-mo já!

 

Mas ele tinha-se ido embora, caminhando a passos largos ao longo do corredor e, ao dobrar a esquina, desapareceu de vista.

 

- Eu não acredito que ele tenha feito isto! - Anna virou-se para Serena, que se tinha afundado na cama. - Viu o que ele fez? Ele simplesmente levou-o!

 

- Eu vi. Lamento muito, Anna.

 

- Ele é um verdadeiro filho da mãe! - Anna deu por si a bater o pé de raiva.

 

- E está tão satisfeito consigo próprio. Viu? Porque o Toby, afinal, é um ladrão.

 

- Ela fez uma pausa. - Ou, pelo menos...

 

- Exactamente. - Serena levantou os olhos para ela. - Por favor, Anna, não tire conclusões precipitadas só porque Andy o diz. Utilize o seu próprio raciocínio a respeito do diário. Ou fale com Ornar e pergunte-lhe o que deve fazer. - Ela hesitou. - Eu acho que, se ele é assim tão valioso, se devia chamar a Polícia.

 

Anna sentou-se ao lado dela.

 

- Eu vou falar com Toby e pergunto-lhe directamente. Se ele o levou, foi só para o ler. Ele estava a lê-lo, e ficámos ambos muito envolvidos na história. Ele nunca o roubaria. Nunca!

 

- E o frasco? - Os olhos de Serena estavam muito brilhantes.

 

- Oh, não se preocupe com o frasco. Eu vou reavê-lo. - Anna cruzou os braços. - Se Andy pensava realmente que, oferecendo-me uma bebida de vez em quando, eu concordaria tranquilamente com tudo o que ele fizesse, vai ter uma surpresa. Como é que ele se atreve a falar comigo... e consigo... desta forma!

 

-Andy é assim-disse Serena com um sorriso irónico. - Ele faria qualquer coisa para me magoar. Finalmente, está a começar a conhecê-lo.

 

Anna levantou-se.

 

- Por que é que ele o faz? Serena encolheu os ombros.

 

- Eu penso que ele tem medo de mim, ou talvez mais exactamente daquilo que eu represento. Uma mulher com poder. - Ela abanou a cabeça numa atitude de autodesvalorização. - Eu vejo através dele. Não me deixo levar pelo seu encanto. Eu tenho, ou tinha, influência sobre a Charley. Por conseguinte, sou um inimigo a abater e humilhar.

 

- Isso é horrível.

 

Serena acenou a cabeça. - Mas ele tem razão a respeito de uma coisa. Já se fala em todo o barco que se está a passar algo estranho, e temos de ter cuidado para que a superstição a histeria, como ele lhes chama, não afectem o nosso raciocínio.

 

Com um aceno de cabeça irónico, Anna dirigiu-se para a porta.

 

- Estou a perceber. Escute, vou falar agora com Toby, antes do almoço. Não se preocupe com o frasco. - Ela sorriu. - Vamos ver o que Anhotep faz a esse respeito. Estou mais do que satisfeita por não o ter comigo de momento, e pode ser que Andy seja uma boa pessoa com quem o deixar!

 

Serena levantou-se da cama e abanou a cabeça.

 

- Duvido. Vou-me embora para poder ir falar com Toby, a não ser que queira que eu vá consigo. - Fez uma pausa. - Não. Então, até logo. Espero sinceramente que ele não seja ladrão. Para dizer a verdade, gosto bastante dele.

 

”Eu também.” Anna empurrou o pensamento da mente enquanto se dirigia ao camarote de Toby. Cerrou os punhos. Quem mais poderia ter tirado o diário? Quem mais sabia da sua existência? Quem mais estaria interessado nele?

 

Ela sabia qual era o camarote; tinha-o visto sair dele quando visitara Serena. À porta dele, respirou fundo. O barco estava totalmente silencioso, com excepção dos ecos das conversas oriundas do bar ao longe. Erguendo a mão, bateu suavemente à porta. Não houve resposta. Bateu com mais força. Mais uma vez, não houve resposta, por isso, olhando para a direita e para a esquerda ao longo do corredor deserto, experimentou suavemente a maçaneta. A porta abriu-se; ele não a tinha fechado à chave.

 

Espreitou para o interior e susteve a respiração. O camarote era idêntico ao dela na sua disposição; era o único camarote simples que havia para além do seu, e devia ficar directamente por baixo dele, enfiado num canto dianteiro do barco. Mas a semelhança terminava no mobiliário básico. Ele tinha transformado o camarote num estúdio. No meio do chão estava um cavalete com um bloco de desenho grande em cima, aberto, de modo a revelar um desenho da margem do rio que se avistava da janela. Em todas as paredes estavam pendurados esboços e pinturas. Em cima do toucador e da mesinha-de-cabeceira havia caixas de tintas, carvão e lápis. A porta aberta da casa de banho mostrava um esboço molhado, aparentemente pendurado para pingar para o chuveiro. Ela olhou em volta, espantada, e deu um passo para o interior. O quarto era uma caverna de Aladino de cores. Por um momento, esqueceu-se do motivo por que ali fora. Quando é que ele tinha feito tudo aquilo? Como é que tivera tempo? Devia pintar durante toda a noite e em todos os segundos livres entre as viagens a terra.

 

Deu outro passo para o interior e a porta fechou-se atrás de si.

 

As pinturas eram belíssimas. Vibrantes. Deixou-se ficar em frente do cavalete a olhar para a margem movimentada com os enormes barcos de cruzeiro e o seu próprio pequeno barco, atracado ao lado de um grandioso hotel flutuante.

 

Só ao fim de alguns minutos é que ela se recordou do que estava à procura e desviou a sua atenção dos quadros para os haveres pessoais. As gavetas debaixo do toucador estavam cheias com uma mistura de camisas, duas camisolas e alguma roupa interior. O saco próximo continha mais lápis. Abriu o guarda-vestidos. Dois pares de calças, calças de ganga e um casaco. Na gaveta da mesinha-de-cabeceira havia uma lanterna, papel de carta, postais e uma caneta de tinta permanente. Era tudo. Dois livros de bolso, ambos intactos, tanto quanto ela conseguia ver, completavam os seus haveres, juntamente com uma guia de viagem do Egipto muito manuseado e as coisas da barba e os artigos de toilette que estavam na prateleira de vidro da casa de banho.

 

Ela puxou a colcha para trás, olhou debaixo das almofadas, depois baixou-se e passou a mão por baixo do colchão. Nada. Com um suspiro, pôs-se novamente de pé, afastando o cabelo do rosto.

 

Em que outro lugar podia ele tê-lo escondido? Estava a virar-se para revistar outra vez o camarote quando um leve som vindo da porta a fez dar meia volta: Toby estava ali a observá-la, com um braço encostado à ombreira e o outro no bolso das calças de ganga. Parecia que ele já lá estava há algum tempo. O seu rosto era duro, os olhos frios.

 

- Já terminou a inspecção?

 

- Toby! Todas as outras palavras morreram-lhe na garganta à medida que ele entrava no camarote e, fechando a porta atrás de si, corria o trinco. Por que é que fez isso? - A boca tinha ficado seca.

 

- Porque quero ter a oportunidade de falar consigo sem Andrew Watson meter o nariz. Presumivelmente, tem uma razão para estar aqui?

 

Ela hesitou. Sentiu-se percorrida por uma onda de verdadeiro pânico.

 

- Estava à sua procura. Queria agradecer-lhe o passeio. Perguntei a mim própria onde estaria.

 

- E pensou que poderia estar escondido numa gaveta do toucador. - Ele ergueu sarcasticamente uma sobrancelha. - Ou debaixo do colchão, talvez.

 

Ela dominou-se, com esforço.

 

- Desculpe, Toby. Eu vim à sua procura. Bati à porta. A porta abriu-se. Vi os quadros e... - Fez uma pausa, encolhendo os ombros. - Entrei para olhar para eles.

 

- E, já que aqui estava, resolveu dar uma espreitadela nas minhas coisas.

- A voz dele ainda era dura.

 

- Eu não estava a espreitar! - Ela sentiu-se picada. - Se quer saber, eu estava à procura do meu diário.

 

- O seu diário? - repetiu ele.

 

- O meu diário desapareceu da gaveta da minha mesinha-de-cabeceira. E o Toby era a única pessoa que sabia que ele lá estava.

 

- Então, resolveu vir ver na gaveta da minha mesinha-de-cabeceira! Por outras palavras, pensou que eu o tinha roubado! - Havia incredulidade na sua voz.

- Não. - Ela teve consciência de ter respondido demasiado depressa. - Não, eu não pensei isso.

 

- Então, quem pensou? - perguntou ele suavemente. - Não me diga. Foi o Watson.

Ela encolheu os ombros.

 

- E acreditou nele - disse ele, cruzando os braços.

 

- Era uma possibilidade - disse ela, inflamada. - Podia tê-lo levado por empréstimo. Podia ter querido estudá-lo.

 

- Sem lhe pedir? - Ela conseguia ouvir a indignação, bem como a ira, na voz dele.

 

- Sim! Que outra coisa poderia eu pensar? Nós estivemos a vê-lo. Estivemos a conversar sobre ele. Há pouco ajudou-me a entrar na feluca e depois deixou-me lá sozinha, recorda-se? E voltou aos camarotes. Como é que eu hei-de saber se não fez isso para poder entrar no meu camarote, diga lá!

 

- Primeiro, diga-me uma coisa - respondeu ele, secamente. - Se não confia em ninguém, por que raio não fechou o camarote à chave?

 

- Aí é que está o problema, não é? - retorquiu ela. - Eu confiava em toda a gente!

 

- Em toda a gente excepto em mim. - Ele baixou a voz. - Mas por que é que deixou de confiar em mim? Por que é que Andrew Watson não confia em mim? O que é que eu fiz para merecer toda esta desconfiança?

Ele fitou-a subitamente nos olhos e ela sentiu-se corar.

-Não sei.

 

- Não sabe. - Ele respirou fundo. - Ou não tenciona dizer. Eu suponho que Watson tem andado a meter o nariz onde não é chamado e a meter veneno. - Ele esfregou o queixo, ainda a examinar-lhe o rosto. - Estou a ver que tenho razão. Não lhe veio à ideia perguntar-me qual era a verdade? Não duvidou dele, nem um pouco? Eu pensava que éramos amigos. Obviamente, estava enganado.

Ele sentou-se pesadamente na cama depois de pegar nalgumas das suas coisas e de as atirar ao chão para arranjar espaço.

 

Anna mordeu o lábio. O seu medo tinha-se evaporado.

 

- Está bem, eu digo-lhe o que aconteceu! Não acreditei nele, não acreditei nele nem por um segundo! Até isto ter acontecido. E depois... desculpe. - Ela deixou pender a cabeça. - Eu fiquei tão perturbada por causa do diário que não estava a pensar claramente. - Ela endireitou os ombros. - Para ser sincera, eu tinha esperança de que o tivesse. Se não tem, onde é que ele está? Ele reflectiu por um momento.

 

- Quer saber realmente a minha opinião?

 

Ela acenou afirmativamente com a cabeça, mas o seu sorriso triste foi desperdiçado. Ele estava a olhar para o quadro que estava no cavalete.

 

- Eu estou disposto a apostar forte no próprio Watson. Anna abanou a cabeça.

 

- Ele não o faria. Além disso, ele estava lá... - Ela calou-se.

 

- Estava lá. Manifestou a sua solidariedade e apontou-me o dedo a mim. Eu consigo ver a cena, Anna. Consigo vê-la muito nitidamente. - Subitamente, ele sentou-se inclinado para frente. - Por que é que eu havia de querer o diário, diga-me lá? Ele é que é o negociante. Ele é que tem os contactos. - Ergueu o olhar para ela. - Então? Fiz-lhe uma pergunta. Por que é que eu havia de o querer?

 

Ela encolheu os ombros.

 

- Ele é desejável. É um artefacto histórico. Tem os desenhos da Louisa. Vale muito dinheiro... - Ela parou de falar.

 

- Vale muito dinheiro! - repetiu ele. - Eu não preciso de dinheiro, Anna. E não quero o diário da Louisa. Fiz-me entender? - perguntou ele, olhando para a janela do camarote. - Agora é melhor ir-se embora.

 

- Toby, desculpe.

 

- Vá-se embora! - A frieza implacável estava novamente reflectida nos seus olhos.

 

Ela fez um esgar e virou-se na direcção da porta. Enquanto a abria, voltou-se para ele.

 

- Lamento muito - disse ela.

 

- Eu também.

 

- Podemos continuar amigos?

 

Houve um momento de silêncio, depois ele abanou a cabeça.

 

- Acho que não, Anna.

 

No corredor, ela parou e respirou fundo; para seu desalento, estava quase a chorar. Dando meia volta, desatou a correr ao longo do corredor.

 

Atrás dela, a porta do camarote de Toby voltou a abrir-se. Ele saiu e olhou para ela.

 

- Anna! - chamou.

 

Ela ignorou-o, subiu apressadamente as escadas e dirigiu-se para o seu próprio camarote.

 

Correu para o seu interior, abrindo a porta com tanta força que esta bateu na parede e voltou para trás, fechando-se atrás dela. Com uma exclamação frenética, ela estancou.

 

O camarote não estava vazio. O ar estava impregnado do cheiro enjoativo a resina e mirra.

 

De pé, no meio do quarto, estava uma figura nebulosa, alta, insubstancial mas inconfundível no seu porte. Anhotep virou-se um pouco para ela, e ela sentiu os olhos dele procurar os seus, ao mesmo tempo que ele começava a erguer lentamente uma mão magra e fina na sua direcção.

 

Anna gritou. Todo o seu corpo tinha ficado frio. Não conseguia respirar. Desesperada, tentou dirigir-se à porta, mover-se, tirar os olhos dele, mas não conseguiu. Algo a prendia onde estava. Sentia as pernas começar a fraquejar, e luzes vermelhas estranhas a começar a cintilar atrás dos seus olhos.

 

Quando começou a cair, a porta abriu-se e Toby entrou no camarote.

 

- Que foi? Que se passa? Ouvi-a gritar. - Ele olhou freneticamente em volta, ao mesmo tempo que lhe segurava na mão e a puxava para si. - Anna, que se passa? Estava alguém aqui?

 

Atrás dela, o camarote estava vazio.

 

- É o Watson? - Ele afastou-a de si, agora mais suavemente, e, atravessando o camarote, abriu a porta do chuveiro. Não estava lá ninguém e não havia lugar nenhum onde alguém se pudesse esconder.

 

- Não, não é o Andy. É Anhotep, o sacerdote. - Ela estava a tremer violentamente. - Leu sobre ele no diário. O sacerdote que assombra o meu frasquinho de perfume. Ele estava aqui. Estava ali de pé! - disse ela, apontando para um local no chão cerca de meio metro à sua frente. - Mas o frasco não está cá. Andy levou-o consigo.

 

Ela estava a tremer tão violentamente que batia os dentes. Lentamente, deixou-se cair na cama e sentou-se a olhar para ele.

 

Houve uma longa pausa, e ela perguntou subitamente a si própria se ele ia desatar à gargalhada e ridicularizar todas as suas palavras.

 

Ele franziu os lábios.

 

- O nome Andy Watson parece aparecer muito nas nossas conversas, não parece? - Olhou novamente em redor do quarto. - Já teve essa aparição antes? Viu alguma coisa no barco esta manhã? Foi isso que viu? O sacerdote?

 

Uma onda de alívio inundou-a. Ele acreditava nela! Não pensava que ela era louca. Acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

 

- Disse-me uma vez que o frasco estava amaldiçoado. Mas nunca me disse como nem porquê. Por que é que não mencionou tudo isso quando lemos sobre o assunto no diário?

 

- Para ficar a pensar que eu sou maluca? Que é que julga que aconteceria se uma história destas se espalhasse pelo barco? «Passageira vê sacerdote do antigo Egipto!» Ou entrariam todos em pânico e voltariam para casa, ou isolar-me-iam, ou, no mínimo, rir-se-iam todos de mim. - Ela levou as mãos à cabeça. - Não consigo suportar muito mais isto.

 

- Alguém mais sabe disto?

 

Ela fez um aceno afirmativo.

-Serena.

- E o que é que ela pensa?

- Ela acredita. Ela sabe bastante sobre o antigo Egipto. Estudou a religião e os rituais. Sabe o que fazer. Ela ia levar o frasco e abençoá-lo, ou qualquer coisa do género, mas, depois, Andy levou-o.

 

- Por que diabo é que o deixou? Ela encolheu os ombros.

 

- Ele simplesmente pegou nele e foi-se embora. Suponho que fui apanhada de surpresa. Não podia exactamente tentar arrancar-lho. Ele disse que ia guardá-lo em segurança para mim.

 

Toby sentou-se ao seu lado.

 

- Eu acho que é mais provável que esteja a planear vendê-lo - disse ele cinicamente.

 

- Ia ter de mo comprar primeiro. - Anna abanou a cabeça e esboçou um leve sorriso. - E ele pensa que é falso, não iria oferecer muito dinheiro!

 

- A não ser que o vendesse como genuíno. - Toby suspirou. - E, entretanto, ainda não resolvemos o problema do paradeiro do diário. - Ele olhou para o relógio. - São quase horas de almoço. Talvez uma refeição numa sala cheia de gente fosse uma coisa boa para os dois. Proporcionaria uma boa ligação à terra. E nenhum fantasma se mostraria lá. Podemos acalmar-nos, repensar a situação e observar o comportamento do Watson. Não vai acontecer nada de mal ao seu frasco de perfume nem ao diário, onde quer que eles estejam. Não enquanto forem potenciais angariadores de dinheiro. Eu acho que ele tem ambos em sua posse e que vai tomar conta deles. - Fez uma pausa, à espera da concordância dela. - E depois temos uma tarde livre antes de irmos todos a Abu Simbel amanhã. Por isso, sugiro que conversemos com a Serena durante a tarde. Se o seu fantasma for genuíno, e eu não tenho qualquer motivo para desconfiar que não seja, obviamente que precisamos de a consultar a respeito dos passos que poderão ser tomados para a manter a salvo de quaisquer repercussões paranormais. Talvez, ao mesmo tempo, possamos ter um conselho de guerra sobre como reaver o diário e - ele fez uma pausa e esboçou um sorriso irónico

- limpar o meu nome de uma vez por todas.

 

Anna, Toby e Serena reuniram o seu conselho de guerra no Old Cataract Hotel, sentados na varanda com um bule de chá Earl Grei. Só quando estavam instalados nas suas cadeiras, de frente para o Nilo, é que mencionaram o motivo por que tinham saído do barco.

 

- Viram a cara do Andy quando viemos a terra juntos? - Serena estava a mexer distraidamente o chá. - Ele perdeu o sangue-frio. Pareceu-me decididamente preocupado.

 

- Como muito bem deverá estar. - Toby inclinou-se um pouco para a frente e observou o rosto de Serena durante alguns momentos, depois acenou a cabeça.

- A Anna disse-me que tem conhecimentos sobre os rituais egípcios antigos. Suponho que isso quer dizer que estudou magia e técnicas espirituais modernas baseadas em textos egípcios?

 

Serena olhou-o com firmeza.

 

- Estudei com a Anna Maria Kelim, não sei se já ouviu falar nela. Toby encolheu os ombros.

 

- Eu interessei-me um pouco por essas coisas quando era mais novo. Não sou um perito, mas certamente que esse nome me diz qualquer coisa. O importante é que saiba o que está a fazer. Eu desconfio que o fantasma ou fantasmas da Anna não vão ser desviados por cântigos da New Age. - Ele recostou-se na cadeira. - Anna diz-me que é boa. É da mesma opinião?

 

Serena ficou calada por um momento, claramente surpreendida pela maneira directa com que ele abordava o assunto. A sua instantânea indignação inicial desapareceu tão rapidamente como surgira. Depois de reflectir durante alguns segundos, acenou lentamente com a cabeça em sinal afirmativo.

 

- Desde que Andy não esteja por perto. Ele é bom a anular o meu poder. Eu nunca tinha trabalhado no Egipto. Nunca cá tinha estado. A única coisa que eu posso dizer é que tenho alguma experiência em trabalho de salvamento efectuado em Inglaterra... sabe o que é trabalho de salvamento, não sabe? - Ela ergueu os olhos para Toby enquanto este pegava na sua chávena, e foi a tempo de o ver fazer um breve aceno em sinal afirmativo.

 

- Ele pode saber, mas eu não - comentou Anna, tranquilamente.

 

- Refere-se a alguém que trabalha com espíritos presos à terra e os ajuda a prosseguir o seu caminho. A maior parte dos ”fantasmas”, se quiser utilizar essa palavra, perdem-se. Ficam encurralados. Infelizes. Eles não querem estar aqui. Alguns deles, se tiveram uma morte violenta, súbita, nem sequer compreendem que estão mortos. Ninguém veio buscá-los ou tomar conta deles. Eu já trabalhei com um ou dois casos do género e ajudei-os a prosseguir o seu caminho. Agora que tinha uma audiência que respeitava o que ela tinha a dizer, Serena parecia mais confiante. - No entanto, eu nunca trabalhei com um espírito que tenha decidido permanecer ligado à terra porque tem questões cá por resolver.

 

- Esses são os mais assustadores. Querem vingar-se. Fazer mal. Ainda se sentem envolvidos com o mundo que deixaram. Não conseguem libertar-se. Anhotep e o seu colega são desse género. E eles não são simplesmente fantasmas vulgares.

São sacerdotes treinados, com conhecimento de um dos mais poderosos sistemas ocultos jamais conhecidos. Eles decidiram, provavelmente, não morrer.

 

Houve um breve silêncio. Anna sentiu um arrepio. O calor da varanda, os animados grupos de pessoas a conversar languidamente enquanto bebiam as suas chávenas de chá, os empregados de mesa, a espantosa vista do Nilo, tudo isso pareceu subitamente distanciar-se, adquirindo uma estranha sensação de irrealidade.

 

- E o que aconteceu ao colega? Ao segundo sacerdote? - perguntou Toby.

- Não falou nele.

 

Anna estremeceu ao recordar-se do terror de Louisa, bem como do medo que ela própria sentira com a aparição de Hatsek, o sacerdote da deusa com cabeça de leão. - Eu já o vi. E a Louisa também o viu, no templo. Ele parecia ser o mais poderoso, o mais maléfico dos dois.

 

Toby fez uma careta.

 

- Continua a acreditar em nós? - perguntou Anna, olhando para ele. Não pensa que estamos doidas?

 

- Não, eu não penso que estão doidas. Eu já vi fantasmas. - Toby não sorriu. - A nossa cultura é idiota por negar à partida qualquer coisa que não consegue provar através de uma fórmula algébrica ou de um tubo de ensaio. Felizmente, a maior parte das outras culturas do passado e muitas da actualidade são muito mais sábias do que nós, no Ocidente. O truque é ignorar os materialistas do nosso mundo e seguir os nossos instintos e a nossa intuição. E aqueles de nós que têm a coragem das suas convicções, porque têm essa intuição ou porque viram qualquer coisa com os seus próprios olhos, têm, por enquanto, que se arriscar a ser ridículos e suportar o resto.

 

Serena pousou a chávena com um pequeno tinido e abanou a cabeça.

 

- Não imagina como me alegra ouvi-lo dizer isso!

 

- E a mim - disse Anna com um pequeno sorriso de esperança.

 

- Óptimo. Bem, agora que reunimos as tropas, é melhor decidirmos o que vamos fazer. - Toby inclinou-se para a frente, concentrando-se. - Só temos algumas horas antes de partirmos para a visita a Abu Simbel. Como sabem, o autocarro parte de madrugada para atravessarmos o deserto antes da hora de maior calor. Quando voltarmos, ainda temos alguns dias de cruzeiro de regresso a Luxor, mas eu suponho que a Anna gostaria de resolver este assunto antes de irmos a Abu Simbel, não depois. E não se esqueçam que há duas coisas a resolver. Além de Anhotep, nós temos o problema, demasiado material, do diário desaparecido.

 

- Não está a pensar que eles possam estar relacionados? Não está a pensar que foi Anhotep que tirou o diário? - perguntou Serena pensativamente, ainda a mexer o chá.

 

- Não, não estou. Por que é que ele havia de o fazer? Eu penso que foi Andy Watson que o tirou. Talvez pudéssemos assaltar o camarote dele como assaltou o meu - disse ele, olhando para Anna.

 

Ela corou.

 

- Ele partilha um camarote com Ben. Não seria fácil.

 

- Não tão fácil como revistar o meu, é o que quer dizer? - Ele sorriu maliciosamente. - Estou de acordo. Mas tenho a certeza de que nós três podíamos arranjar algum tipo de distracção. Seria muito desagradável para toda a gente no barco termos de dizer a Ornar e talvez envolver a Polícia, por isso eu acho que, se for possível, seria melhor resolvermos nós próprios o assunto. Ele fez uma pausa e olhou para Serena. - Se está disposta a fazer um exorcismo ou o que quer que lhe chama, quando é que acha que isso deveria acontecer e de que é que iríamos precisar?

 

Serena reflectiu durante um momento.

 

- Precisaríamos mesmo do frasco de perfume, para servir de ponto central. Para além disso, preciso de algum tempo para me preparar. Eu trouxe comigo as coisas de que necessito para a minha própria prática espiritual. Incenso. Velas. Uma campainha. - Ela abanou a cabeça. - Com a Charley no mesmo camarote que eu, não tenho podido usá-las, claro. Fá-lo-ei no camarote da Anna, e sugiro que seja esta noite. Se vamos partir amanhã de madrugada, toda a gente irá para a cama cedo, e não seremos incomodadas. E, Toby, não fique zangado, mas eu acho que não devia estar presente. Acho que isto é apenas para mim e para a Anna. - Ela olhou-o com um ar apologético. - Posso estar errada, mas tenho a sensação de que estaríamos mais seguras se estivéssemos só as duas. Só mulheres. As mulheres são, de facto, servas de ísis. É menos provável que nos aconteça algum mal.

 

Toby acenou com a cabeça.

- Não vou discutir. Desde que ache que estás em segurança.

Serena encolheu os ombros.

 

- Estou com esperança de que estejamos em segurança - disse ela com um suspiro. - Estou com esperança em muitas coisas.

 

Houve um momento de silêncio.

 

- Por conseguinte, o próximo passo é assaltar o camarote do Andy para recuperar o diário e o frasco. - Toby acabou de beber a chávena. - Um de nós pode procurar. Os outros podem certificar-se de que Andy e Ben não aparecem e o encontram lá. - Olhando para Anna, prosseguiu. - Eu sugiro que seja a Anna a procurar. Já tem prática nisso.

 

- Eu já lhe pedi desculpa, Toby! - exclamou Anna, subitamente impaciente. - Durante quanto tempo vou ter de continuar a ouvir as suas piadas? Desculpe. Eu fiz mal em dar ouvidos a Andy, mas estava em pânico por causa do diário. Não tinha qualquer motivo para pensar, por um único segundo, que ele pudesse tê-lo tirado...

 

- Mas não se importou de desconfiar de mim...

 

- Não é verdade, importei-me. Importei-me bastante. Tal como não gostei sequer de pensar que as acusações que Andy fez pudessem ser verdadeiras! Era óbvio que ela tocara num ponto fraco. - Eu não consegui pensar em nenhuma outra possibilidade. Era a única pessoa que tinha conhecimento dele.

 

- Além do próprio Andy.

 

- Além do Andy.

 

- E da Charley, da Serena e de quase toda a gente neste barco. Anna fechou os olhos com um suspiro profundo.

 

- Está bem. Peço-lhe desculpa a duplicar. Ponho-me de joelhos. Por favor, Toby, nós precisamos da sua ajuda. Não torne as coisas tão difíceis para mim.

 

Sem dúvida que um dia ele se sentiria capaz de lhe contar tudo. Até lá, ela teria apenas que confiar nele e aguardar.

 

Ele fitou-a durante um longo momento, depois baixou o olhar.

 

- Não, tem razão. Eu é que devia pedir-lhe desculpa. Sou um pouco sensível a respeito de alguns assuntos. Pronto. Vamos. Já agora, podemos começar agora mesmo. Se Andy veio a terra, podemos revistar imediatamente o seu camarote sem problemas.

 

A porta estava fechada à chave.

 

- Que raio! - disse Toby, abanando a maçaneta.

 

- Experimente a sua chave - sugeriu Anna, olhando por cima do ombro. Andy e Ben tinham ido passear de barco à vela.

 

Toby procurou a chave no bolso e acabou por encontrá-la. Não servia.

 

- A sua?

 

Anna já a tinha na mão quando Ali apareceu ao fundo do corredor e se dirigiu a eles.

 

- Algum problema? - perguntou ele com um enorme sorriso.

 

- Precisamos de entrar neste camarote. - Anna sabia que não valia a pena fingir. Era óbvio que ele os tinha visto.

 

- Está bem. - Ele enfiou a mão no bolso da sua galabiyya e tirou de lá um porta-chaves com várias chaves. - Esta abre todas as portas. Muito útil. Não devem perder as chaves. - Ele abriu a porta do camarote e escancarou-a, depois virou-se e seguiu ao longo do corredor a arrastar os pés nas suas sandálias soltas.

 

Toby suspirou e olhou para ela a sorrir.

 

- Ele não quis saber por que é que precisávamos de entrar!

 

- Provavelmente, pensou que era nosso. - Anna entrou no camarote e olhou em volta. Este estava alegremente desarrumado, com roupa e sapatos espalhados por todo o lado. Havia uma máquina fotográfica em cima de uma das mesinhas-de-cabeceira, uma garrafa de água e vários artigos de toilette na outra. Em cima de uma cama estavam dois livros de viagem e, em cima da outra, uma camisola virada do avesso e uma toalha húmida amarrotada.

 

- Devem estar bem escondidos. Gavetas. Malas. Atrás de qualquer coisa.

 

- Ela estava a abrir a gaveta da mesinha-de-cabeceira e não reparou no olhar intrigado que Toby lhe lançou. Eles procuraram metodicamente em todos os lugares óbvios, viram debaixo do colchão, no guarda-vestidos, na casa de banho e até mesmo por detrás das reproduções de David Roberts emolduradas, penduradas nas paredes.

 

- Não há sinal deles em lado nenhum - disse Anna, abanando a cabeça.

 

- Têm de estar aqui. Ele não os ia levar para andar de barco. Seria um risco demasiado grande.

 

- Então, têm que estar num sítio em que não pensámos. - Ela deu meia volta, tentando pensar num último lugar, num sítio subtil. Num sítio óbvio. Não está aqui. Nenhum deles está aqui. - Ela abanou a cabeça com um ar infeliz.

 

- Procurámos em todo o lado.

 

- Procuraram?

 

A voz à porta fê-la dar um salto. Ela e Toby deram meia volta. Andy estava à porta, a olhar para eles.

 

- Posso perguntar de que é que andam à procura, exactamente?

 

- Acho que não precisa de perguntar! - Toby, que estivera a procurar na gaveta de uma das mesinhas-de-cabeceira, desta vez inserindo os dedos na parte de trás, tinha-se endireitado. - Anna quer o diário de volta, bem como o frasco de perfume.

 

- E vocês pensam que eu os tenho? - Andy estava muito corado. O seu hálito cheirava a cerveja.

 

- Eu sei que tem o frasco, Andy, e eu quero-o de volta. E desconfio que também tem o diário. - Anna esforçou-se por manter a voz calma. - Eu penso que esta manhã acusou o Toby para me despistar, e, durante algum tempo, isso funcionou. Mas agora não. Por favor, devolva-mos.

 

- Eu pus o frasco num local seguro, que é o que devia ter sido feito logo de início! Mas atrever-se a vir aqui acusar-me de ter tirado o seu diário! Isso é escandaloso! - Andy estava a provocar em si próprio uma raiva hipócrita. Saia daqui! Já! - Ele pegou no braço de Anna e empurrou-a na direcção da porta.

- Rápido! Saia daqui!

 

- Deixa-a em paz, filho da mãe! - Atrás dele, Toby deu um passo em frente. Enquanto ele se virava, Toby agarrou-o pelo ombro e fê-lo rodar de modo

 

a ficar virado para ele.

 

- Não lhe toques! - A agressividade no interior do camarote era palpável.

 

- Toby! - gritou Anna. - Não! - Ela agarrou-o pelo braço. - Não. Pare! Que é que se passa com vocês todos? Por que é que há tanta ira neste barco?

 

A expressão de Toby era de fúria. Ele afastou Anna, com os punhos cerrados.

 

- Toby! - gritou Anna outra vez. - Toby! Por favor! Não faça isso! Por favor!

 

Toby parou. Durante vários segundos, ficaram os três imóveis, como se estivessem paralisados num palco, num quadro vivo, depois o fogo desapareceu lentamente dos olhos de Toby, ele deixou cair o punho e afastou Andy com um empurrão.

 

Andy sentou-se na cama. O seu rosto estava branco.

 

Anna olhou para Toby.

 

- Acho que é melhor irmo-nos embora.

 

Ele acenou a cabeça em sinal de concordância. Com um último olhar furioso a Andy, saiu do camarote.

 

- Vai ficar bem? - Anna seguiu Toby, mas parou à porta, olhando para trás. Andy acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

 

- A culpa foi sua. Não devia ter-me tocado. E não devia ter tirado as minhas coisas.

 

Andy ergueu o olhar.

 

- Desculpe, Anna. Não sei o que me deu. Eu não sou assim, realmente não sou. Mas agora acredita em mim, não acredita? Ele é um assassino! Tenha cuidado, Anna. Por favor, tenha cuidado.

 

Anna deu meia volta e, ao sair do camarote, fechou a porta atrás de si. Toby tinha desaparecido.

 

Afastou-se, trémula, das escadas, dirigiu-se ao camarote de Serena e bateu à porta.

 

Serena abriu-a.

 

- Encontrou-o... - ela parou no meio da frase. - Anna, que foi? Que é que aconteceu? Foi Anhotep?

 

- Não, não foi Anhotep. Andy voltou e apanhou-nos no camarote. Ele e Toby quase tiveram uma briga.

 

- Uma briga a sério? - Os olhos de Serena ficaram muito redondos.

 

- Uma briga a sério. Com punhos. Serena mordeu o lábio.

 

- Bem, para ser sincera, não posso dizer que esteja surpreendida. Entre disse ela, puxando Anna para o interior e fechando a porta atrás dela. - Andy está bem? - perguntou ela subitamente, quase como um pensamento tardio.

 

- Vai sobreviver.

- E Toby?

 

Anna encolheu os ombros.

 

- Ele foi assustador, Serena. Por momentos, quase perdeu o controlo. Eu vi isso nos olhos dele. Se eu não estivesse lá, ele podia ter batido no Andy. Ela mordeu ansiosamente o lábio, abanando a cabeça. Não acreditava que Toby fosse um assassino, claro que não! Mas agora tinha visto um lado dele que a assustara, e subitamente ficou cheia de dúvidas.

 

Serena observou-lhe o rosto.

 

- Encontrou o frasco? - perguntou ela em voz baixa.

- Não.

 

- É pena. - Ela ficou pensativa por um momento, depois abanou a cabeça.

- Anna, eu tenho uma teoria. Espero que esteja errada. - Hesitou. - Espero desesperadamente que ela esteja errada. - Houve outra longa pausa. - O problema é o outro sacerdote, Hatsek, o sacerdote de Sekhmet. Ele está aqui. No barco. Há algum tempo que eu desconfio que a Charley, quando roubou o frasco, estava, de alguma forma, afectada por ele; que ele talvez esteja a usar a energia dela, e que é por isso que ela está a ficar cada vez mais fraca. Não existe qualquer dúvida de que ela está a ficar ligeiramente desequilibrada. Ela nunca bebeu como está a beber agora. E mencionou o nome de Sekhmet várias vezes enquanto dormia, e disse-o em voz alta. - Ela estremeceu. - A Charley não é uma estudiosa do antigo Egipto, Anna. Ela nunca tinha ouvido falar de Sekhmet. Ela não está interessada em nada das coisas que eu faço. Na verdade, ela detesta tudo isso.

 

Anna acenou afirmativamente a cabeça.

 

- E há dias, no bar, a Charley falou em Sekhmet.

 

- Sim, e agora há mais outra coisa - prosseguiu Serena. - Toby e Andy, eu penso que ele pode estar a alimentar-se da ira deles. Há este ambiente no barco. Eu consigo senti-lo a intensificar-se. Está a afectar-nos a todos. Toby tocou no teu frasco? - Anna acenou novamente em sinal afirmativo.

 

- E Andy também, claro. - Serena dirigiu-se pensativamente à janela e ficou a olhar para o exterior. Estavam atracados junto de um barco de cruzeiro muito maior, e a única coisa que ela conseguia ver era a pintura branca e brilhante do casco a cerca de metro e meio da sua janela. - E depois temos-te a ti. Anhotep anda a seguir-te. Ele deve estar a usar as tuas energias. - Ela suspirou. - Andy não te devolveu o frasco, suponho?

 

- Não, e não conseguimos provar que o tinha - disse Anna, sentando-se na cama.

 

- Embora ele o tivesse levado abertamente e nós saibamos que o tem em sua posse. Esse não é o género dele. Não é nada o género dele. Conforme já reparou, eu não me dou bem com ele. Não gosto dele, mas ele não é um ladrão, Anna.

 

- Pode fazer o ritual sem o frasco? - Anna ergueu o olhar com um ar esperançoso. - Podemos fazê-lo rapidamente?

 

Serena acenou lentamente a cabeça. Não parecia convencida.

 

- Podemos tentar. - Ela levou a mão ao saco de lona que tinha ao lado da cama e tirou de lá uma agenda com uma lombada em espiral. Estava escrita numa letra apertada, intercalada aqui e ali com diagramas. - Eu tenho estado a pensar numa forma apropriada para as palavras e para o ritual a utilizar. Temos de os evocar, chamá-los a ambos e mandá-los embora de tal forma que eles não regressem.

 

- E sabe fazê-lo? - Os olhos de Anna estavam cravados na agenda.

Serena ergueu os olhos para ela com ar de dúvida.

- Em teoria, sei.

 

- Se falharmos, qual é a opção? Serena encolheu os ombros.

 

- Terei piorado as coisas. Dando-lhes toda esta atenção, tornamo-los mais fortes.

 

- Mas se fizermos as coisas bem, podemos ajudar a Charley? Serena esboçou um esgar.

 

- Se nos livrarmos deles, isso ajudar-vos-á a ambas. Isso, se eu fizer bem as coisas.

- Vamos fazê-lo agora. No meu camarote.

 

- Agora? Anna, eu não sei se estou pronta.

 

- Tem de estar. - Anna agarrou-lhe na mão. - Vai correr tudo bem. Tem de correr. Por favor.

 

Serena respirou fundo.

 

- Está bem. Farei o melhor que conseguir. Será um pouco semelhante ao que fizemos em Kom Ombo, mas melhor. Mais poderoso. Teremos tempo e privacidade e podemos montar bem as coisas. - Ela olhou em redor do camarote como se estivesse a verificar que tinha tudo aquilo de que necessitava, depois, enfiando a agenda debaixo do braço, pegou no saco. - Vamos.

 

Anna seguiu-a.

 

- Precisamos que a Charley lá esteja? Serena fez uma pausa.

 

- Tenho estado a pensar nisso. Acho que, nesta fase, provavelmente não. Se estivesse presente, ela seria demasiado perturbadora e não poderíamos fazer o ritual, além disso, as energias estão em todo o lado. Tenho esperança de ser tão meticulosa que as diversas ligações a ti, à Charley, talvez ao Andy e ao Toby... até mesmo a mim... sejam destruídas e fiquemos todos libertos ao mesmo tempo. - Ela passou a língua pelos lábios com nervosismo.-Oh, meu Deus, Anna, eu espero estar certa a respeito de tudo isto.

 

Fecharam as portadas e, puxando a mesinha-de-cabeceira para o centro do quarto, cobriram-na com um lenço de seda de Anna. Em cima do altar improvisado, Serena colocou velas em pequenos castiçais de vidro colorido, um queimador de incenso de bronze e uma estatueta minúscula de ísis. Ela olhou em volta e sacudiu a cabeça.

 

- Não está suficientemente escuro. As cortinas são finas e entra demasiada luz pelas frechas. Temos de pôr qualquer coisa por cima das portadas. Cobriram a janela com uma toalha de banho e, por cima desta, o pashmina de Anna. O camarote ficou finalmente às escuras. Serena acendeu a luz e depois procurou no saco. Tirou de lá uma ankh, a cruz com um laço que é o símbolo egípcio da vida eterna, colocou-a ao lado da estatueta e, finalmente, pegou num elaborado amuleto vermelho com um fio de cabedal preto e pendurou-o ao pescoço.

 

- Que é isso? - perguntou Anna, que, até esse momento, tinha ficado a observar os preparativos em silêncio, e agora se inclinava para a frente olhando o amuleto com os olhos semicerrados.

 

- Chama-se tyet. Representa o nó da faixa de ísis. Ou o seu sangue sagrado, é por isso que é esculpido em jaspe vermelho. É um símbolo muito poderoso.

 

Inconscientemente, Anna levou a mão ao amuleto que tinha pendurado ao pescoço. Serena reparou nesse gesto e fez um ligeiro aceno de cabeça de aprovação.

 

Meteu a mão no saco e retirou de lá uma caixa de fósforos.

 

- Antes de começar, vou invocar a protecção de ísis. Depois vou chamar os dois sacerdotes perante o altar. Fiz este incenso antes de sair de Londres. É o mais próximo que consegui chegar de uma coisa chamada kyphi, que era sagrada para ísis. Era usada nos templos durante os rituais. - Ela deu uma pequena gargalhada de desvalorização. - Fi-lo por graça. Tem imensos ingredientes. Passas. Mirra. Mel. Vinho. Resina. Nardo indiano. Bagas de junípero. Muitas outras coisas. Nunca imaginei que iria utilizá-lo assim.

 

Anna mordeu o lábio.

 

- Tens a certeza de que isto é seguro? Serena acenou em sinal afirmativo.

 

- O pior que pode acontecer é que ele não surta qualquer efeito ou que eles ouçam mas se recusem a vir. É possível que precisemos que o frasco de perfume esteja aqui no altar, mas vou tentar. - Ela acendeu as velas e apagou a luz. Ficou calada por um momento, de olhos fechados, depois levou a mão ao saco pela última vez e tirou de lá um pequeno embrulho envolto num quadrado de seda branca. Desembrulhou-o e pegou num objecto de metal com cerca de trinta e cinco centímetros de altura, com uma forma semelhante à da ankh e com quatro pedaços de arame esticados sobre o laço. Nos arames estavam pendurados pequenos címbalos. - Isto é um sistro, o instrumento sagrado dos deuses - disse ela, enquanto o colocava em cima do altar e dobrava cuidadosamente a seda branca. - É abanado para evocar, purificar, proteger.

 

- E precisamos de vinho? - Anna sentou-se na cama, tão longe do centro de actividades de Serena quanto era humanamente possível.

 

- Desta vez não. Se... - Ela fez uma pausa imperceptível. - Quando. Quando formos bem sucedidas, farei uma oferenda a dar graças. - Tirou o pequeno cone de incenso do queimador e segurou-o à luz da vela. - Vou abençoar-te e proteger-te, Anna. Deixa-te ficar aí e mantém-te quieta, aconteça o que acontecer. Se tiveres medo, imagina-te rodeada por um círculo impenetrável de fogo azul.

 

Anna acenou com a cabeça. Tinha ficado com a boca seca.

 

À medida que o intenso cheiro a especiarias começou a elevar-se, em espiral, do queimador, as velas bruxulearam.

 

Serena começou a entoar em voz baixa. Depois pegou no sistro e começou a sacudi-lo na direcção dos quatro cantos do quarto, após o que rodou para ficar em frente de Anna e sacudiu-o na sua direcção.

 

-Salve, ísis, protectora das tuas filhas. Acompanha-nos. Salve, ísis, zela por nós. Salve, ísis, mantém-nos em segurança. Salve, ísis, rodeia-nos com o teu fogo protector, de modo que as tuas servas, Anna e Serena, possam servir-te e falar com os teus sacerdotes. Anhotep e Hatsek!

 

Anna sentia as palmas das mãos a transpirar no camarote escuro. As chamas das velas não se moviam; a última espiral de fumo azul do incenso endireitou-se e elevou-se na direcção do tecto. Ela reconheceu o incenso com um arrepio de náusea. Era semelhante ao cheiro estranho e enjoativo que por vezes sentia no camarote.

 

Serena estava outra vez a falar, e a sua voz erguia-se e baixava numa entoação rítmica. À luz das velas, Anna conseguia ver-lhe a testa coberta de transpiração. Os olhos estavam muito abertos e a olhar fixamente, e os dedos apertavam-se em volta da pega do sistro como tensas garras brancas.

 

- Salve, Anhotep. Saudações. Gostaríamos de falar contigo...

 

A litania foi repetida várias vezes, erguendo-se no camarote sem ar, encurralada pelo tecto, crescendo como uma presença tangível, estimulando inexoravelmente a tensão no interior do quarto. Anna deu por si a suster a respiração; sentia os músculos do corpo tensos, e os seus olhos disparavam de um lado para o outro à procura, em todos os cantos, da figura sombria de Anhotep, até que, subitamente, com um suspiro quase imperceptível, as velas se apagaram.

 

Anna engoliu em seco, dominando o impulso de gritar. O chocalhar do sistro parou e o silêncio intensificou-se. Anna tomou subitamente consciência de que sentia as pulsações a martelar nos ouvidos. Seguidamente, ouviu um estranho som gorgolejante vindo do meio do quarto. Conseguiu ver Serena de pé, imóvel, na escuridão, a olhar para o altar. O sistro caiu-lhe da mão com estrépito, depois ela ajoelhou-se lentamente. Durante vários segundos, oscilou, vacilante, para a frente e para trás, depois deslizou para o chão.

 

Anna ficou petrificada. Estava demasiado assustada para se mexer, mas o som da respiração agonizante na garganta de Serena fê-la agir. Saltando da cama, correu para a janela e arrancou a toalha que a tapava, abriu as portadas, depois virou-se e agachou-se ao lado de Serena, sentindo-lhe o pulso.

 

- Serena! Serena, fala comigo! - Sacudiu-lhe a mão, depois bateu-lhe suavemente no rosto. - Acorda! Por favor, acorda! Tens de falar comigo! - O rosto de Serena era de um vermelho-escuro, lívido, as pálpebras abriam-se e fechavam-se descontroladamente; as pupilas por baixo delas estavam dilatadas.

 

- Serena! - gritou-lhe Anna ao ouvido, seguidamente, deixando o rosto de Serena cair para o chão, pôs-se de pé e correu para a casa de banho. Encheu um copo com a água tépida da torneira de água fria, levou-o para o quarto e atirou-o ao rosto de Serena.

 

Serena soltou uma exclamação. Por um momento, todo o seu corpo pareceu contrair-se num enorme espasmo, depois voltou a deitar-se no chão e fechou os olhos. Anna viu a cor desaparecer-lhe do rosto, e toda a tensão pareceu abandoná-la.

 

- Serena? - chamou Anna, fitando-a, aterrorizada. - Serena? - Ela agarrou novamente no pulso de Serena e sentiu-lhe as pulsações. Estavam lá, irregulares, fracas, mas tornando-se cada vez mais regulares. Serena respirou fundo uma, duas vezes, depois os seus olhos abriram-se e fitaram Anna com um ar impassível.

 

-Estás bem? - Anna pegou na toalha que tinha atirado para cima da cama e utilizou um canto para limpar o rosto e o cabelo de Serena. - Deixa-me ajudar-te a sentar. Que é que aconteceu? - Ela colocou um braço à volta dos ombros da outra mulher e ajudou-a a sentar-se.

 

- Tenho sede. - A voz rouca de Serena mal se ouvia. Encostou-se à cama e fechou novamente os olhos. As suas mãos tinham começado a tremer.

 

Anna levantou-se e foi buscar a garrafa de água que tinha em cima do toucador. Encheu um copo e deu-o a Serena, segurando nas mãos trémulas e ajudando-a a levá-lo à boca. Serena bebeu um golo, depois outro, depois soltou um suspiro profundo.

 

- Que é que aconteceu? - perguntou, erguendo para Anna os olhos que já estavam a concentrar-se melhor.

 

- Não sei. Estava com esperança de que me dissesses. - Anna sentou-se no chão ao lado dela. - Estavas a entoar à luz da vela e subitamente o camarote ficou muito quente e sem ar, depois as velas apagaram-se e tu começaste a fazer uns sons estranhos. Pensei que estivesses a ficar estrangulada. Fiquei aterrorizada.

Serena estendeu a mão para o copo e bebeu outro golo.

 

- Importas-te de abrir a janela? Não consigo respirar.

Anna ergueu o olhar.

 

- Está aberta, Serena. Queres ir para o convés? Serena abanou a cabeça.

 

- Ainda não. Alguma coisa correu mal? - perguntou, esfregando os olhos.

- Eu não consigo apanhá-lo... Na minha cabeça... Parece um sonho. Está ali, mas fora do meu alcance. Aconteceu qualquer coisa. - Ela bebeu o resto da água e estendeu a garrafa para Anna.

 

Sem dizer uma palavra, Anna pegou no copo e voltou a enchê-lo.

 

- Anhotep não veio. Serena franziu o sobrolho.

 

- Anhotep - repetiu ela.

 

- Anhotep. Esse nome... - Abanou outra vez a cabeça. - O nascer do Sol. Eu vi o nascer do Sol. E o pôr do Sol.

 

Anna franziu o sobrolho. Estava a observar o rosto de Serena.

 

- Eras de areia, a vaguear. - Ficou silenciosa por um minuto, depois fechou os olhos. - Eu morri ontem, mas reapareço hoje. A Senhora poderosa que é a guardiã da porta deixou-me entrar. Eu surgi de dia para enfrentar o meu inimigo e obtive domínio sobre ele. - Ficou novamente calada enquanto Anna olhava para ela. Só ao fim de alguns segundos é que falou. - Isso é do Livro dos Mortos,

 

Anna ergueu uma sobrancelha e fez uma careta.

 

- Que é isso?

 

- São instruções. Escritas nas paredes dos túmulos. Textos antigos. Hinos. Orações. Invocações. Eu não tinha a mínima ideia de que sabia algum excerto de cor. - Estremeceu subitamente. - Eu protegi-me, Anna. Fiz tudo certo.

 

- Ele não veio, Serena. Eu não o vi.

 

- Então, quem é que veio? - Serena encostou a cabeça à cama. O seu rosto estava branco e tenso, e ela parecia totalmente exausta.

 

- Não sei-respondeu Anna, pondo-se de pé e puxando o cabelo para trás.

 

- Eu penso que talvez o tenha afugentado. Tive tanto medo! Pensei que estivesses a morrer.

 

- A morrer? - Serena abriu muito os olhos.

 

- Estavas com dificuldade em respirar. Tinhas os olhos esquisitos. Caíste, e as tuas pulsações eram fraquíssimas. Isso aconteceu quando as velas se apagaram. Foi estranho. Elas não pareceram ir esmorecendo. Simplesmente apagaram-se. De repente.

 

Serena abanou a cabeça.

 

- E o incenso?

 

Anna virou-se para o pequeno altar. O queimador de incenso ainda se encontrava no meio das velas. Estava frio.

 

- Não compreendo o que provocou isso. Suponho que as energias existentes no camarote estavam a flutuar. É provável que tenhas, de facto, impedido que acontecesse. Fosse o que fosse. - Serena pôs-se de pé, trémula.

 

- Eu penso que ele está a tentar possuir-te - exclamou Anna, subitamente.

 

- Eu penso que, por apenas um momento, ele esteve dentro de ti. O teu rosto alterou-se. Não parecias nada tu. Oh, Serena, o que fizemos foi perigoso! Eu acho que quase aconteceu uma coisa horrível aqui. E se ele tivesse conseguido? E se ele te tivesse possuído?

 

Houve um longo silêncio enquanto Serena reflectia, depois, finalmente, encolheu os ombros.

 

- Suponho que é possível que a minha protecção não tivesse sido suficientemente forte. - Ela suspirou, depois deu uma pequena gargalhada constrangida. - Presumivelmente, ele sabe mais a respeito de tudo isto do que eu!

 

- Ela inclinou-se e, apanhando o sistro do chão, colocou-o suavemente no altar improvisado. Depois esticou os braços por cima da cabeça.

 

- Anna, eu acho que vou um pouco até ao convés. Importas-te que vá sozinha? Preciso de pôr as minhas ideias em ordem.

 

Depois de ela ter saído, Anna olhou em redor do camarote e começou lentamente a arrumá-lo. Serena tinha deixado tudo tal e qual como estivera, o altar ainda estava montado com as velas, a estatueta e a ankh. Anna meteu-os, um a um, no saco, voltando a embrulhar o sistro no quadrado de seda branca. Depois dobrou o pashmina e colocou a mesinha-de-cabeceira novamente no seu lugar. A aparência de ordem fê-la sentir-se melhor, mas ainda se sentia pouco à vontade no camarote - ao mais leve ruído, olhava, nervosa, por cima do ombro. E havia barulho por todo o lado. Barulho do convés do barco ao lado; barulho oriundo da cidade; música que entrava pela janela vinda algures do cais, risos e conversas súbitas lá fora, no corredor. Então, de onde viera o silêncio? Aquele silêncio extraordinário antes de as velas se terem apagado? O silêncio profundo que Louisa sentira no templo de ísis? Sentiu um arrepio e dirigiu-se para a porta.

 

Quando chegou ao salão, Ben estava no bar a beber, pensativo, um sumo de fruta. Ela viu várias pessoas sentadas lá fora, às mesas protegidas do sol, a ler, escrever postais, ou apenas a conversar e a observar os que tinham ido andar de barco à vela.

 

- Pronta para madrugar?-perguntou Ben com um sorriso.-Eu acho que um despertar às quatro da manhã é um desafio para a maior parte de nós.

 

Anna fez um sinal afirmativo. Tinha-se esquecido da visita a Abu Simbel.

 

- Ouvi dizer que houve uma discussão entre Andy e o seu amigo Toby? Ben ergueu uma sobrancelha. - Será que foi provocada pelo ciúme?

 

Anna franziu o sobrolho.

 

- Não estou a compreender aonde quer chegar.

 

- Oh, não se faça de novas. Eles estão os dois caídos por si! - Ben sorriu.

 

- O poder que vocês, as senhoras, têm.

 

Anna abanou a cabeça.

 

- Eu penso que o meu diário foi mais uma tentação do que eu - disse ela com um suspiro. - Sabia que ele desapareceu? Alguém o tirou do meu camarote. Andy e Toby estavam a acusar-se um ao outro.

 

Ben pareceu chocado.

 

- Isso é péssimo. Já disse isso a Ornar? Ela encolheu os ombros.

 

- Eu não quero fazer grande alarido. Desde que ele seja devolvido. Isso é o mais importante.

 

- Eu vou fazer uma investigação discreta - disse Ben, piscando o olho. Se Andy o tiver, ele acabará por me dizer.

 

Ela sorriu.

 

- Obrigada. Ele é valioso, mas a sua importância transcende esse valor. Em muito. - Tal como saber o que acontecera a Louisa e a Hassan.

 

Quando Anna foi ter com Serena, esta estava no convés superior, encostada ao corrimão, a olhar para o rio. Anna deixou-se ficar um pouco afastada, hesitante, mas Serena olhou para ela e sorriu.

 

- Eu já estou bem. Desculpa tudo aquilo.

 

- Tens a certeza?

 

Serena acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

 

- O que quer que tenha sido, desapareceu. Já estou bem. - Olhou para Anna. -Decidi ir a Abu Simbel amanhã. Não quero deixar isto incompleto, mas preciso de sair um pouco do barco. Colocar algum espaço à minha volta; distanciar-me de tudo isto. Tu vais? Devias ir.

 

Anna encolheu os ombros.

 

- Acho que sim. É o ponto alto da excursão, não é? Atravessar o deserto, ver o templo de Ramsés.

 

Serena sorriu.

 

- Óptimo. Acabaram-se os fantasmas. Dois dias longe daqui. Muita coisa para ver, para nos distrairmos.

 

Anna franziu o sobrolho.

 

- Desculpa. Foi por minha culpa que te envolveste em tudo isto.

 

- Não. Não é culpa de ninguém. Afinal de contas, eu estou interessada na magia e na religião do Egipto. E, além disso, fui eu que me ofereci. - Serena sorriu novamente. - Mas tornou-se um pouco pesado, e eu quero afastar-me por um dia ou dois. Desculpa. Não quero que penses que eu não me preocupo. Só que me sinto esgotada. Nunca me senti assim antes. Se acontecer alguma coisa no autocarro ou no deserto, eu estarei lá. Mas espero que não aconteça. E já pensei que, talvez, quando regressarmos, temos um dia para ver Philae antes de voltarmos a Luxor, podemos tentar outra vez qualquer coisa em Philae. Afinal de contas, Philae é o templo de ísis.

 

- Tens sido maravilhosa - comentou Anna. - Tens-me ensinado muito.

- Ela levou a mão ao amuleto que tinha ao pescoço. - Achas que ele não nos vai seguir até Abu Simbel?

 

Houve um breve silêncio. Serena estava a olhar para uma feluca que passou por elas a deslizar pela corrente, com o timoneiro sentado ao leme com um ar sonhador e o braço por cima da cana do leme. O barco estava cheio de caixas grandes, e subitamente ocorreu-lhe que ele fazia um enorme contraste com o seu congénere, o homem das entregas de mercadorias que conduzia a sua carrinha nas movimentadas ruas de Londres. Ela sorriu, depois olhou novamente para Anna.

 

- Não, eu acho que ele não irá connosco a Abu Simbel. Espero que não disse ela por fim. - Gostava muito de saber o que aconteceu a Louisa Shelley. Ela ultrapassou o problema.

 

Anna acenou com a cabeça em sinal de concordância, com um ar de tristeza.

 

- Eu acho que não consigo suportar não saber o que aconteceu. Eu penso constantemente nela. Mas, conforme tu dizes, ela ultrapassou o problema. Voltou para casa e prosseguiu com a sua vida.

 

Mas que aconteceu a Hassan? A pergunta ecoava cada vez mais na sua mente. E aos sacerdotes Anhotep e Hatsek? Eles tinham perseguido Louisa, tal como perseguiam a sua trineta. Como é que ela tinha conseguido que a deixassem em paz? Uma nova onda de frustração e fúria percorreu-a ao pensar no diário. Quando ouvira a história, Andy dissera que queria saber o que tinha acontecido a seguir. Agora era óbvio que ele não estava a ser sincero. Suspirou. Ficaram em silêncio durante alguns minutos, perdidas em pensamentos, e só quando Serena se virou, à procura de uma cadeira, é que Anna compreendeu que tinha tomado uma decisão. Não iria no autocarro no dia seguinte. À última hora ia mudar de ideias e ficaria sozinha no barco. Isso dar-lhe-ia dois dias para procurar sem qualquer interferência.

 

Poderia sempre ia a Abu Simbel noutra altura.

 

Por momentos, esqueceu-se que os sacerdotes de ísis e Sekhmet ficariam provavelmente com ela.

 

Salve, seres divinos, senhores divinos

das coisas que existem

e que viveram para sempre e cujos períodos duplos

de um ilimitado número de anos é a eternidade...

Concedei-me um caminho que eu possa percorrer

em paz.

 

As crianças adoecem. As suas forças desvaneceram-se no vento do deserto. Elas não têm vontade de escavar à procura de mundos antigos, na busca de tesouros de túmulos há muito mortos. A mãe observa-os e mantém o sofrimento escondido no seu coração.

 

O frasco é esquecido - no canto escuro da cabana dos camponeses, ele não reflecte qualquer luz. Os seus guardiães são invisíveis, sem tempo nem espaço que os defina, sem carne nem ossos, sem túmulos, objectos funerários ou nomes.

 

O rapaz mais novo morre primeiro com a alma seca. O seu corpo é sepultado na areia e regado com lágrimas. Depois, o mais velho adoece pela última vez e vê os sacerdotes pairar sobre ele, sente-os alimentar-se com o sopro da sua vida e sabe que foi ele que os trouxe para sua casa. Ele tenta murmurar um aviso, mas as palavras são-lhe sugadas pelos lábios secos da morte.

 

Dentro em breve, a sua mãe sentirá o beijo nocturno dos servos dos deuses, e também ela dará a sua vida para lhes conceder a eternidade, deixando numa casa vazia um homem pesaroso que, pouco tempo depois, pega nos seus haveres e deixa o local entregue às sombras e à areia. Ele não vê o frasco ao fundo da prateleira, e este permanece onde estava.

 

O telefone ao lado da cama de Anna tocou poucos minutos depois das três e meia da manhã. Sentou-se, sobressaltada, perguntando a si própria onde estava. O seu sonho ficou por um segundo a flutuar, insubstancial. Depois desapareceu. Ela nem sequer se lembrava do som de uma sandália nem do murmúrio de uma túnica de linho. Desorientada, olhou em volta, depois recordou-se. Estavam a levantar-se para percorrer cerca de duzentos quilómetros através do deserto para sul de Assuão, até Abu Simbel. A chamada telefónica para a acordar foi seguida por uma pancada na porta e uma chávena de chá. Vestiu rapidamente umas calças de ganga e uma t-shirt e enfiou uma camisola para se proteger do frio da noite. Depois foi à procura de Ornar. Este limitou-se a encolher os ombros quando ela explicou que não queria ir com eles. Inshallah! Isso era com ela. Teria de dizer a Ibrahim que ela ia precisar de refeições, e bom descanso.

 

Andy estava junto ao balcão da recepção onde os passageiros se estavam a juntar em grupos sonolentos, prontos para ir para terra. Quando a viu, ele lançou-lhe um olhar irado e virou-lhe as costas. Bem, ainda bem que ele a vira. Partiria do princípio de que ela ia para o autocarro juntamente com os outros. Quando descobrisse que, afinal, não tinha ido, seria demasiado tarde para mudar de ideias e ficar também no barco.

 

Quando encontrou Serena a pegar, com um ar cansado, na malinha de fim-de-semana para a pôr ao ombro, comunicou-lhe a sua decisão em voz baixa. Serena acenou com a cabeça num gesto de concordância. Anna perguntou a si própria se ela não teria ficado um pouco aliviada. Não conseguiu ver Toby, mas os passageiros já estavam a atravessar a prancha de acesso ao barco silencioso ao lado do deles, onde atravessariam salões e corredores desertos a cheirar a fumo de cigarro frio e a cerveja, na direcção da segunda prancha de desembarque que os levaria a terra. Ali, uma pequena carrinha estava à espera deles para os levar ao ponto de encontro onde os autocarros e os táxis se juntavam todas as manhãs para a viagem através do deserto, que era também uma zona militar.

 

Depois de todos terem partido, Anna ficou parada por um momento a ouvir o silêncio, perguntando a si própria, com alguma melancolia, se tinha tomado a decisão certa. Era demasiado tarde para mudar de ideias. Com um encolher de ombros, voltou para o camarote.

 

À porta, hesitou um pouco, com medo do que pudesse ver quando o abrisse. Respirou fundo e, com uma mão a agarrar bem o amuleto de ouro que tinha ao pescoço, empurrou-a cautelosamente. O camarote estava vazio.

 

Quando acordou, estava deitada na cama, completamente vestida. Franziu o sobrolho, momentaneamente desorientada, consciente de que alguma coisa no barco se tinha alterado. Depois compreendeu o que era. Sentia o vazio à sua volta, os camarotes desertos, a falta de azáfama distante. Ornar dissera-lhe que apenas dois ou três membros da tripulação permaneceriam a bordo, os outros aproveitariam para passar dois dias em terra antes da viagem de regresso a Luxor. Tanto quanto sabia, ela fora o único passageiro a tomar a decisão de não fazer a viagem a Abu Simbel e ficar a bordo.

 

Levantou-se lentamente da cama. Não tinha a certeza por onde ia começar a procurar o diário, mas o camarote de Andy parecia ser o lugar óbvio. Ou não o tinha visto na primeira vez, ou talvez nem sequer se encontrasse lá nessa altura e agora já estivesse.

 

Ela iria precisar de uma chave para lá entrar. Tal como antecipara, o barco estava completamente deserto. Era simplesmente uma questão de ir até ao balcão da recepção, entrar lá dentro e tirar a chave de Andy do gancho onde Ornar colocara todas as chaves antes da partida. Enfiando-a no bolso, dirigiu-se, pela segunda vez, ao camarote de Andy.

 

Quando chegou à porta, parou subitamente. Imagine-se se ela estava enganada. Imagine-se se ele tinha mudado de ideias e voltado para trás, tal como ela fizera, e estava lá? Fechou os olhos e respirou fundo para dominar os nervos. Depois introduziu a chave silenciosamente na fechadura e abriu a porta.

 

Desta vez, o camarote estava mais arrumado. Presumivelmente, ele e Ben tinham chegado à conclusão de que era mais fácil fazer uma mala se algum tipo de ordem prevalecesse no camarote.

 

Fechando a porta no trinco atrás de si, para ter a certeza de que, desta vez, não seria interrompida, revistou o camarote sistemática e implacavelmente, verificando e voltando a verificá-lo centímetro a centímetro até que, por fim, se viu obrigada a desistir.

 

Olhou em volta, imóvel, com uma enorme sensação de derrota. Não havia sinal do diário nem do frasco, e não havia nada a fazer a não ser sair do camarote, verificando, antes de sair, que não deixava atrás de si quaisquer provas da sua busca, e voltar a colocar a chave no gancho. Depois, pensativa, dirigiu-se novamente para as escadas. Não lhe ocorrera que ele podia ter levado o diário e o frasco com ele. A única coisa em que podia ter esperança era que os tivesse escondido algures no barco.

 

Empurrou a porta do salão e entrou. Ibrahim estava atrás do bar a limpar os copos. Cumprimentou-a com um sorriso rasgado.

 

- Misr il khir. Bom dia, mademoiselle.

 

Ela reparou que ele a fitava atentamente e calculou que fosse para verificar se estava a usar o amuleto. Viu-o acenar a cabeça obviamente satisfeito por ter visto o fio de ouro no pescoço dela,

 

- Bom dia, Ibrahim. Parece que vou estar sozinha durante algum tempo. Ele abanou a cabeça.

 

- Ornar disse três pessoas para as refeições, mademoiselle. Sou eu que vou cozinhar para todos vós.

 

- Três pessoas? - perguntou ela, franzindo o sobrolho. - Sabe quem são os outros dois?

 

Ele encolheu os ombros. - Ainda não acordou ninguém. Eu vou fazer o almoço daqui a pouco e deixá-lo na sala de jantar numa bandeja quente. Sopa. Arroz. Vou fazer frango grelhado com banana assada. Gosta? Ela sorriu.

 

- Parece óptimo. Não sabia que era cozinheiro, Ibrahim.

 

- O verdadeiro cozinheiro é núbio e foi visitar a mãe em Sehel. Mas o Ibrahim também é um cozinheiro maravilhoso. Inshallah! - disse ele, desatando à gargalhada. - Gostaria de tomar uma bebida agora?

 

Ela pediu uma cerveja e foi até ao convés. Já estava calor e o ar cintilava nas tábuas polidas enquanto ela observava mais um enorme barco de cruzeiro a fazer manobras para se dirigir para a margem, com o convés superior orlado de espectadores curiosos, vestidos com calções e camisas de cores garridas. A colina do outro lado do rio, com a sua arredondada capela fatimida, ficava quase oculta pela neblina de calor, e as poucas felucas que ela via a vender as suas mercadorias no troço largo de água seguiam ao sabor da corrente, com as velas descaídas, sem um sopro de vento. Atrás de si, as plantas coloridas flamejavam e o convés à volta delas há muito que tinha secado depois da rega matinal.

 

Estava demasiado calor para ficar no convés superior. Deu meia volta, desceu as escadas e sentou-se debaixo do toldo, com o copo em cima da mesa à sua frente. Enquanto Ibrahim estivesse a fazer o almoço, aproveitaria para procurar no salão. Era possível, pensou, que Andy tivesse escondido o diário algures por ali. Claro que também era possível que não tivesse sido ele, que outra pessoa o tivesse tirado e que ela nunca mais o voltasse a ver.

 

- Anna!

 

A voz baixa atrás dela apanhou-a completamente de surpresa. Deu meia volta. Toby estava de pé, à sombra, com o bloco de desenho debaixo do braço.

 

Ficaram a olhar um para o outro com embaraço durante algum tempo, depois ele disse:

 

- Pensei que tivesse ido a Abu Simbel com a Serena.

 

- Eu não podia ir sem saber o que aconteceu ao diário - disse Anna, levantando os olhos semicerrados para ele. - Como é que está? Fiquei preocupada, depois da cena no camarote de Andy.

 

Ele encolheu os ombros.

 

- Fui para o convés acalmar. Caso contrário, era capaz de matar aquele filho da mãe!

 

Ela franziu o sobrolho.

 

- Defendeu-me e eu nem sequer tive oportunidade de lhe agradecer.

Ele abanou a cabeça, erguendo as mãos.

 

- Não era necessário.

Ela esboçou um sorriso inseguro.

 

- Por que é que ficou? Eu pensava que gostaria de ver o templo de Ramsés. Ele voltou a encolher os ombros.

 

- Eu achei que era melhor não estar perto de Watson durante algum tempo. Posso sempre ver o templo noutra altura. Não se esqueça de que vou voltar ao Egipto. - Ele puxou uma cadeira para junto dela. - Posso?

 

Ela acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

 

- Ibrahim disse que podíamos servir-nos do bar. Só temos de anotar no bloco. Ele está a fazer o almoço.

 

Toby sorriu.

 

- Óptimo. - Começou a dirigir-se para a porta do salão, depois parou. Suponho que já revistou outra vez o camarote dele?

 

Ela fez um sinal afirmativo. -De facto, já.

- Sem êxito?

 

Ela abanou a cabeça.

 

- Seria uma ironia se, afinal, ele o tivesse levado consigo, não acha?

 

- Sem dúvida. - Ele passou a porta e reapareceu um momento depois com duas cervejas, uma para si e a outra para ela.-Quando se sentou, tinha o sobrolho franzido. - Temos de ser sistemáticos, claro. Temos de procurar em todos os lugares possíveis, um de cada vez, e ir riscando-os da lista. Ele não o deve ter levado, seria demasiado arriscado. Deve tê-lo deixado no barco, num lugar seguro.

 

Depois de pensar durante um momento, ela percebeu que gostava da maneira como ele partia do princípio de que iria ajudá-la. Ele fitou-a por cima do copo.

 

- Claro, o cofre! Que acha do cofre? Já pensou nisso? É o lugar óbvio. Encontraram Ibrahim a colocar três pratos numa das mesas da sala de jantar.

 

Através da porta aberta, vinha da cozinha um cheiro maravilhoso a alho e cebola.

 

- É possível procurar uma coisa no cofre? - Anna sentou-se à mesa e olhou-o com ar de súplica. - Emprestei o diário da minha avó a Andrew Watson e acho que ele pensou que eu ia com eles esta manhã e deve tê-lo posto no cofre. Eu preciso urgentemente dele.

 

- O seu livro com pequenas gravuras? - Ibrahim endireitou-se, franzindo a testa.

 

- Lembra-se dele? Deve tê-lo visto no meu camarote.

Ele fez um aceno.

 

- Eu tenho a chave. Vou ver.

 

Seguiram-no até ao balcão da recepção e aguardaram enquanto ele mexia na fechadura, murmurava baixinho para si próprio, mexia outra vez e finalmente abria a pequena porta do cofre. Este estava cheio de envelopes e embrulhos.

 

- Passaportes. Dinheiro. Jóias - disse ele, encolhendo os ombros. - Tanta coisa. Hei-de encontrá-lo. Inshallah!

 

Ele procurou no meio dos embrulhos, olhando para os envelopes maiores, lendo com aparente facilidade os nomes neles rabiscados.

 

- Andrew Watson! - Tirou um para fora.

 

- É demasiado pequeno. - Anna olhou para ele, decepcionada, e abanou a cabeça. - O diário não cabia aí dentro.

 

Ibrahim tacteou cuidadosamente o envelope.

 

- Passaporte e traveller’s cheques. - disse ele com um sorriso. - Eu procuro outra vez.

 

Alguns minutos depois, ele trouxe-lhe, com um ar triunfante, um segundo envelope. Este era muito mais volumoso.

 

- É isso! Tem a forma e o tamanho certos! - exclamou Anna, radiante. Ibrahim entregou-lho.

 

-Veja.

 

Ela passou o polegar por baixo da aba colada do envelope e tirou o diário para fora.

 

- Óptimo! Óptimo! - Ibrahim estava encantado. - Agora podemos ir almoçar.

 

- Espere - disse Anna, estendendo a mão. - O meu frasco de perfume. Ele também ficou a tomar conta dele. Se estiver aí pode ficar, mas eu gostaria de verificar.

 

- Frasco? - perguntou Ibrahim, franzindo o sobrolho.

 

- O frasquinho. - Ela fitou-o nos olhos. - O frasco que foi guardado pela cobra.

 

Ibrahim abanou a cabeça.

 

- Isso não está aqui - disse ele com firmeza.

 

- Mas não procurou.

 

- Não. Aqui não está. Ibrahim tem a certeza. - Ele fechou a porta do cofre com força e rodou a chave.

 

Ela olhou para Toby, que tinha erguido uma sobrancelha.

 

- Pelo menos já tem o diário. E o envelope com ”Andrew Watson” escrito, presumivelmente, pelo seu próprio punho. - Ele sorriu. - Isso é prova suficiente para si? Estou totalmente ilibado para sempre?

 

Ela acenou afirmativamente com a cabeça, abraçando o diário contra o peito.

 

- Prova suficiente. Se quiser, humilho-me perante si durante o resto dos meus dias.

 

O sorriso dele alargou-se.

 

- Um ou dois dias será suficiente.

 

Esperaram até depois do almoço para voltarem a ler o diário. O terceiro passageiro não aparecera e acabaram por sair da sala de jantar sem saberem quem era, tendo decidido, com entusiasmo, aceitar a sugestão de Ibrahim para irem de feluca até à Ilha de Kitchener fazer um piquenique; e foi ali, no meio das árvores, dos hibiscos e das buganvílias, que se sentaram com o diário e Anna começou finalmente a ler em voz alta.

 

À tarde, Hassan tomou pessoalmente conta do leme enquanto se afastavam do íbis em direcção a sul. Colocaram o barco na areia, longe da vista dos aldeões aos gritos e às gargalhadas, suficientemente longe para evitar a multidão de núbios que lhes tinha acenado quando passaram, e subiram, vacilantes, a margem até às dunas. Fazia um calor intenso. Louisa olhou em volta, segurando a sombrinha por cima da cabeça. Numa direcção, ela via a cordilheira árida, noutra, no horizonte longínquo, cintilava um enorme lago mágico, completo com palmeiras. Ela olhou-o com tristeza e abanou a cabeça.

 

- Está demasiado calor para pintar. A tinta secaria no pincel.

 

- E está demasiado calor para fazer amor? - Hassan sorriu. Ela estendeu o braço para lhe tocar na mão.

 

- Está demasiado calor para respirar.

 

Deslizaram pela areia escaldante abaixo e Louisa voltou a subir para o pequeno barco. Ao longe, num banco de areia, havia dois crocodilos estendidos ao sol, com a boca aberta. Havia uma garça perto deles, sem medo algum.

 

- Podíamos parar perto daquelas palmeiras. - Louisa apontou para um conjunto de árvores distante. Hassan acenou com a cabeça e pegou na cana do leme, virando o barco na direcção da margem oposta. Ali não havia crocodilos. A areia estava deserta quando Hassan saltou pela borda e puxou o barco. Ele ajudou Louisa a desembarcar e dirigiram-se os dois para as palmeiras. Ela pintou durante cerca de uma hora, até que o calor os obrigou a voltar para a água e a fazer um novo plano. Regressariam ao íbis mas, à noite, quando refrescasse, voltariam a terra e iriam até ao deserto acampar sob o enorme céu aberto.

 

Hassan tinha mandado o rapaz dos burros embora. Ele voltaria logo a seguir ao nascer do Sol para poderem regressar ao íbis antes de o Sol atingir a sua força plena. Agora, à medida que o Sol se punha, eles sentiam os primeiros sopros frios do vento do deserto.

 

- Tens a certeza de que ele conseguirá encontrar-nos? - Louisa olhou à sua volta. Tanto quanto ela conseguia ver, as enormes distâncias não eram quebradas em nenhuma das direcções. No horizonte longínquo havia uma linha de colinas douradas, ainda banhadas pela luz do Sol, e, no outro lado do rio, via-se a suave neblina negra que era a noite a aproximar-se. Em frente deles havia uma colina encimada por um planalto rochoso, semeado de ravinas e fendas suaves, cheias de areia.

 

Hassan sorriu.

 

- Ele virá. Não há nada a temer. Estamos à vista do rio. Ele está sempre aqui. Só percorremos alguns quilómetros desde o local onde o íbis está atracado. Vem

- ele estendeu a mão e começou a puxá-la pelo estreito vale acima no meio das dunas. - Vamos seguir este wadi, depois mostro-te a minha surpresa.

 

Começaram finalmente a subir, com os pés a escorregar na areia que se deslocava constantemente e se reorganizava em curvas, faixas e parábolas ondulantes de luz e sombra, até terem atingido o cimo rochoso da pequena colina.

 

- Ali! O topo! - Com um ar triunfante, ele içou-a finalmente ao longo dos últimos metros e recuou de modo a ela conseguir ver o que tinham vindo visitar.

 

No cimo do planalto havia um pequeno e belíssimo templo, semelhante ao pavilhão que tinham visto em Philae. Louisa olhou, encantada, para as delicadas folhas esculpidas e para as cabeças da deusa. O templo estava em ruínas, mas, à luz do sol-poente, adquirira um belo tom vermelho-dourado e, atrás dele, viam-se as águas profundas, quase escuras, do rio, já envolto na sombra da noite. Louisa ficou a olhar para ele, emudecida de alegria.

 

- Que é isto? - perguntou ela por fim.

 

- É o templo de Kertassi. - Ele fez um gesto em volta com a mão. - Este templo também é dedicado a ísis. É muito belo, não é? Eu sabia que ias gostar

- disse ele com um sorriso.

 

Louisa olhou para os pilares cujas longas sombras negras desciam até à água, onde os reflexos cintilantes já estavam envoltos em escuridão, enquanto o enorme rio adormecido corria resolutamente em direcção à sua origem distante no coração de África, depois virou-se para olhar para o deserto, onde conseguia ver o enorme Sol carmim desaparecer rapidamente de vista. Ela deu outra meia volta, sentindo a beleza da vista a cortar-lhe a respiração, deu um passo atrás, escorregou na areia suave e constantemente movediça que se infiltrava por todos os lados e quase caiu; agarrou-se ao braço de Hassan e riu-se, deliciada. Ela via agora ao longe o rapaz dos burros, as sombras dos animais projectadas à sua frente enquanto ele regressava à sua aldeia. Ao longe, as figuras não eram maiores do que brinquedos minúsculos e, enquanto observava, elas desapareceram na escuridão do vale do rio.

 

- O Sol vai pôr-se em breve. - Hassan colocou o braço à volta dos ombros dela. - Olha, ele vai entrar no mundo dos deuses. - O segmento que ainda permanece acima da linha do céu estava a ficar cada vez mais pequeno, e o carmim escurecia imperceptivelmente.

 

Louisa observava. Deu por si a suster a respiração à medida que o crescente invertido se tornava cada vez mais pequeno, até restar pouco mais do que uma fina lasca e, finalmente, desaparecer.

 

Os seus olhos encheram-se de lágrimas ao ver o arrebol da tarde desaparecer, depois ficou finalmente escuro e surgiram as estrelas. Louisa tinha tirado o chapéu. Sacudiu o cabelo e olhou para cima, deliciada.

 

- Eu consigo ver todas as estrelas do firmamento. Se me pusesse em bicos de pés, conseguiria tocar-lhes. O céu parece um manto de veludo preto incrustado de diamantes!

 

Hassan ficou calado. Também estava a olhar para cima, embrenhado em pensamentos. Ficaram os dois ali de pé, juntos, durante muito tempo, até que um arrepio súbito os fez lembrar que o ar estava a ficar bastante mais frio.

 

Hassan tinha carregado um dos sacos aos ombros. Agora ele deixou-a começar a tirar de lá as coisas enquanto descia até ao local onde o rapaz dos burros os tinha deixado e trazia para cima os outros dois sacos com tudo o que necessitavam para acampar.

 

- Tenho medo de adormecer e perder o nascer do Sol. - Louisa tinha-se embrulhado num cobertor enquanto, sentada no centro do templo, o observava a tirar as coisas do saco à luz de um pequeno candeeiro.

 

Hassan sorriu. Ele tinha Annado a tenda e, deixando os cestos, foi sentar-se ao lado dela.

 

- Não tenhas medo. Eu velarei por ti.

 

- Toda a noite? - Ela sentia o calor do corpo dele próximo do seu e, de uma forma quase hesitante, estendeu a mão para lhe tocar no braço. Perto deles, a chama do candeeiro bruxuleou e fumegou debaixo dos pilares do templo.

 

- Toda a noite, minha Louisa. - Ele pegou-lhe na mão e levou-a para o interior da abertura da camisa que tinha debaixo do albornoz de lã vermelha, premindo-a contra o peito. - Estás com frio?

 

Ela acenou afirmativamente com a cabeça. O seu coração batia muito depressa.

 

- O deserto é muito frio depois de o Sol se pôr. Depois, durante o dia, é muito quente. E em breve virá o vento do sul, o khamsin, com tempestades de areia. Não vais querer estar no deserto quando isso acontecer. - Ele acariciava-lhe suavemente o cabelo. Aninhando-se contra Hassan, ela ergueu o rosto e sentiu o toque dos seus lábios no escuro.

 

Como num sonho, Louisa deixou que ele a conduzisse para o interior do abrigo e para a pilha de almofadas que ali colocara. Ela sentiu-o puxar um cobertor e depois, com suaves carícias, fazer-lhe deslizar o vestido de cima dos ombros e tirá-lo até ela se encontrar nua nos seus braços. Ela fechou os olhos e sentiu o corpo a descontrair-se até se sentir arrastada num sonho. As mãos e os lábios dele moviam-se delicadamente ao longo da sua pele, e ela sentiu-se como se fosse um instrumento que, sob o comando daquele homem, produzia uma música selvagem.

 

Ao longe, pelo deserto, um chacal uivava. Ela ficou tensa, mas as mãos dele abraçaram-na e acalmaram-na, e quando a sua boca desceu sobre a dela, Louisa abandonou-se ao êxtase que estava a crescer dentro de todas as partes do seu corpo.

 

Depois adormeceu, segura nos braços dele. Fiel à sua promessa, ele ficou acordado, a olhar de debaixo do abrigo para as estrelas.

 

Algum tempo antes do amanhecer, ele dormitou, depois acordou subitamente. A areia ali próxima suspirava e silvava sob o toque suave do vento. Ele abriu os olhos e olhou para a escuridão. Já se via um tom cinzento a oriente, de onde viria o amanhecer.

 

Houve outro leve movimento na areia e ele ficou tenso. Havia alguém, ou alguma coisa, perto dos seus haveres. Um chacal, atraído pelo cheiro a comida, embora ele a tivesse embrulhado bem, ou um rapaz da aldeia com a intenção de fazer uma diabrura.

 

Ele retirou cuidadosamente o braço de debaixo dos ombros dela. Ela mexeu-se e pestanejou.

 

- Já está a amanhecer? - A sua voz era suave e rouca, o seu corpo nu, quente e descontraído sob o cobertor.

 

- Está quase a amanhecer, meu amor. - Ele falou num murmúrio. - Fica quieta. Não te mexas.

 

Ele deslizou de debaixo do cobertor e pôs-se de pé, olhando em volta no escuro enquanto se vestia, a tremer de frio. O ar era cortante e gélido.

 

Agora nada se movia. O deserto estava silencioso. A leste, a mancha cinzenta estava mais clara. Pelo canto do olho, ele viu Louisa sentar-se e rastejar até à entrada do abrigo. Ela não era mais do que uma silhueta sombria enquanto esfregava os olhos como uma criança, com o cabelo caído sobre os ombros. Subitamente, as estrelas estavam menos brilhantes.

 

Ele deu dois passos na direcção dos cestos e estancou outra vez. Um sexto sentido disse-lhe que havia alguém, alguma coisa, atrás do pilar. Olhou em volta à procura de uma Anna. No meio das ruínas, havia pilhas de pedras por todo o lado, e ele baixou-se cautelosamente e pegou em duas, sentindo-as tranquilizadoramente pesadas nas palmas das mãos.

 

Louisa esforçou os olhos. Estava ligeiramente mais claro, mas ela já não conseguia vê-lo. No local onde, um momento antes, identificara a silhueta indistinta dele, não havia agora nada. Teve vontade de o chamar, mas algo a avisou para que ficasse calada. Procurou cautelosamente o vestido e, com todo o cuidado, tentando não fazer barulho, puxou-o por cima da cabeça e, pondo-se de joelhos, fê-lo cair sobre as ancas.

 

Subitamente, algo se moveu na direcção do cesto da comida, e ela susteve a respiração, ficando imóvel no silêncio.

 

O grito súbito de Hassan fê-la pôr-se de pé, e ela viu um movimento violento perto do pilar mais distante, ouviu uma exclamação e depois o barulho de homens a brigar.

 

Hassan estava a lutar com outro homem, um homem envergando roupas europeias. Quando se aproximou, soltou uma exclamação de espanto. No estranho crepúsculo que antecede o amanhecer, ela teve dificuldade em ver, mas soube quem era. Reconheceu a sua forma, o seu cabelo, e agora, enquanto ele gemia a sua fúria, a sua voz. Era Carstairs.

 

Quase no mesmo segundo em que o reconheceu, ela ouviu o grito agudo de Hassan, e este caiu ao chão e ficou imóvel. Louisa ficou imóvel, depois desatou a correr em direcção a ele.

 

- Que é que o senhor fez? Hassan, meu amor, estás bem? - Caiu de joelhos e tocou-lhe na cabeça com os olhos fixos em Carstairs, de pé junto deles. A ferida na cabeça de Hassan estava molhada e pegajosa. Sem olhar, ela soube que era sangue.

 

Carstairs tinha uma faca na mão.

 

- A âmbula sagrada. Senão eu mato-o! - Os seus olhos brilhavam enquanto se aproximava dela.

 

- Está louco! - Ela tentava proteger Hassan com as mãos.

 

- É muito possível. - Carstairs recuperava rapidamente a respiração. A minha sanidade mental não a deve preocupar, Senhora Shelley. Dê-me o frasco e eu deixo-a em paz, caso contrário serei obrigado a matá-lo. A senhora está louca, a vir para o deserto sozinha com um camponês para a proteger. Nunca ouviu falar dos bandidos que assaltam os viajantes?

 

- O único bandido que aqui há é o senhor! - gritou ela, desesperada. - E vai responder perante a lei.

 

Hassan estava a tentar mexer-se. Gemeu, e ela empurrou-o suavemente para trás.

 

- Não te mexas, meu amor.

 

- Não, não te mexas. - disse Carstairs com um sorriso. Subitamente, ela viu que estava mais claro. Conseguia ver o seu rosto com nitidez. - E quanto à lei, quem é que iria acreditar em si, enlouquecida como ficaria com o horror, a sede e as violações dos homens que a capturaram, a levaram para o deserto e a deixaram sob o sol do meio-dia? - Ele enfiou lentamente a faca no cinto. Ela reparou que ele usava uma faixa larga, bordada, por cima das calças inglesas.

- Dentro de um minuto o Sol vai nascer e com ele virá o calor. - Ele colocou as mãos sobre as ancas. - A âmbula, Senhora Shelley.

 

- Não a tenho.

 

- Oh, não brinque comigo.

 

- Claro que não a tenho. Acha que eu ia trazê-la para o deserto? Ele sorriu.

 

- Estou a ver que vou ter de a convencer a levar-me mais a sério - disse ele, recuando dois passos.-Já reparou nas decorações do templo, Senhora Shelley? Viu, ao longo da parede, as esculturas das uraei, as cobras sagradas do Egipto? Viu as áspides ali no altar por cima da deusa? Este é um templo do deserto, Senhora Shelley. Um templo onde a leoa segue o wadi para sair do deserto e vir beber ao rio, e onde o rei cobra está à espera para a proteger! - Ele virou o rosto para leste, com os braços erguidos. - Grande Sekhmet, ouve-me! Irmã de ísis e de Hathor, Olho de Ré, a poderosa, deusa da guerra, sopro do vento do deserto, soberana da serpente Apophis, que combate o deus sol quando este nasce, envia-me Uraeus, a tua serva que cospe chamas, para que ela proteja os teus sacerdotes e o recipiente que contém a sua magia! Envia-ma agora! - A voz dele ecoava por entre os pilares, fazendo-os ressoar. Louisa fitava-o, incapaz de desviar o olhar, com a cabeça de Hassan no seu colo e o sangue dele a ensopar-lhe a saia.

 

Atrás deles, do outro lado do rio, o primeiro segmento fino e cor de sangue do sol, a imagem de si próprio na noite anterior reflectida ao espelho, apareceu, lançando raios horizontais de vermelho e ouro através da areia em direcção a eles, tornando pretas as sombras das suas ondulações, reflectindo carmesim e ouro na água aos seus pés.

 

- Meu Deus, por favor, salva-nos. - Louisa ouviu as palavras murmuradas pelos seus próprios lábios como se tivessem vindo de outra pessoa.

 

Ela viu uma sombra mover-se aos pés de Carstairs. Estava a surgir uma forma na areia. Ela via-a agora claramente, o longo corpo acastanhado, as escamas cintilantes, os pequenos olhos salientes. Moveu-se em direcção a ele com um ou dois movimentos sinuosos, depois parou. Parecia estar a observá-lo e, quando o homem fez um gesto na direcção deles, ela levantou-se e abriu o seu capelo, oscilando suavemente de um lado para o outro, com os olhos fixos nos dele.

 

Ela ouviu Hassan gemer.

 

- Recua, devagar. Move-te muito devagar, minha Louisa. Deixa-me.

 

Carstairs sorriu.

 

- A Senhora Shelley não corre perigo, seu cachorro. A serva de ísis nunca faria mal a uma mulher. Só aos homens. Os homens são diferentes. Nenhum homem, a não ser um sacerdote, pode tocar naquele frasco. Se o fizer, a serva de ísis e de Ré matá-lo-á. Por isso és tu, seu miserável filho de uma cadela, és tu que vais morrer.

 

Hassan estava a tentar sentar-se, mas Louisa empurrou-o para trás. Deu um passo em frente, recusando-se a olhar para a cobra que oscilava aos pés de Carstairs.

 

- Se matar Hassan, nunca mais vai ver o frasco. Ele escondeu-o algures nos campos ao longo do Nilo. Ninguém mais sabe onde está, nem mesmo eu. Não a deixe tocar-lhe, meu senhor, senão vai arrepender-se muito.

 

Carstairs sorriu, mas ela viu um vestígio de incerteza nos seus olhos.

 

- Por que é que eu hei-de acreditar em si?

 

- Porque é verdade. - Com os ombros para trás, os punhos cerrados, ela fitou-o nos olhos durante alguns segundos.

 

Ele foi o primeiro a desviar o olhar.

 

- Assim seja. Mas o que foi chamado não pode ser devolvido - disse ele em voz baixa. - Para onde quer que vá, a minha serva segui-la-á. - Ele fez um gesto na direcção da cobra. - Até eu ter as lágrimas sagradas de ísis em minha posse, ela guardá-las-á. Não pense que este cão me vai escapar. Ficarei de olho nele. - Ele esboçou um sorriso sombrio. - Para toda a eternidade, se necessário.

 

O livro caiu das mãos de Anna, e ela ficou a olhar em frente com um ar inexpressivo.

 

- A cobra que estava no camarote da Charley. Foi Carstairs que a evocou, não foram os sacerdotes!

 

Toby estendeu a mão e, tirando o diário de cima do colo dela, fechou-o e pô-lo de lado.

 

- Possivelmente. Por outro lado, ainda há cobras no Egipto.

 

- Mas no camarote de um barco de cruzeiro? Numa gaveta de um camarote de um barco de cruzeiro?

 

Ele abanou a cabeça.

 

- Concordo que parece ser mais do que uma mera coincidência. Ficaram em silêncio durante algum tempo a olhar para o rio. Foi Anna quem

 

finalmente falou.

 

- As lágrimas de ísis. Parece romântico, não parece? Acho que é a primeira vez que há uma referência específica ao que o frasco, de facto, contém. Eu já o coloquei de encontro à luz, claro, mas o vidro é completamente opaco. É impossível ver se existe alguma coisa dentro dele.

 

- Até que ponto acredita na ciência? - perguntou Toby, deitando-se para trás e colocando o braço por cima dos olhos. Às sombras das palmeiras por cima das cabeças deles caíam-lhe sobre o rosto. - Quando regressar a Londres, pode levá-lo ao Museu Britânico, contar-lhes a história toda e pedir-lhes que o abram. Eles podiam fazê-lo em condições esterilizadas e descobrir o que há lá dentro, se é que há alguma coisa.

 

Anna estava a olhar para longe com um ar sonhador.

 

- A ciência em oposição ao romance. Essa parece-me uma solução muito moderna para o problema. Vamos ler mais um pouco?

 

Toby olhou para o relógio e abanou a cabeça.

 

- Prometemos a Ibrahim que estaríamos de volta antes do pôr do Sol para ele nos fazer o jantar e depois sair de serviço. Podemos ler mais tarde. - Ele franziu o sobrolho. - Ibrahim sabe que a cobra é mágica, não sabe? Vê só como ele reagiu quando lhe perguntámos se o frasco estava dentro do cofre. Achas que lhe devemos contar a história de como ele cá veio parar?

 

Anna acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

 

- Ele sabe muita coisa. Eu acho que ele sabe bastante sobre este tipo de coisas; muito mais do que deixa transparecer. - Ela sentiu um arrepio. - Não sei se é melhor ou pior descobrir que a cobra foi lá posta por um praticante do ocultismo do século XIX ou pelos próprios sacerdotes.

 

- Eu penso que essa é uma questão técnica que, nesta fase, é relativamente pouco importante. - Toby sorriu e sentou-se. - O Egipto é um local mágico. O seu passado está constantemente em todo o lado. Alguém que saiba o que está a fazer pode, provavelmente, com muita facilidade, evocar coisas do passado, seja um sacerdote ou uma serpente. Já me disse que Serena quase conseguiu fazê-lo ontem à noite.

 

Anna fez um aceno afirmativo. Puxou os joelhos para o queixo, abraçando-os com um ar pensativo e com os olhos postos nas colinas cor de café distantes.

 

- Vamos. - Toby levantou-se e estendeu a mão para ela. - Vamos chamar um táxi para nos levar de volta.

 

Ela deu uma gargalhada. A facilidade com que conseguiam chamar um barco encantava-a. Ficou a ver Toby pegar nas coisas deles e metê-las na mochila.

 

- Então, pensa que Serena é genuína?

 

- Penso. - Ele fez uma pausa e depois franziu o sobrolho. - Acha que não? Ela acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

 

- Ela vai fazer outra cerimónia. Em Philae. No templo de ísis - disse ela, sentindo um arrepio. - Mas ela quase que tem medo de Andy.

 

- E quem não tem? - Subitamente, ele ficou muito sério. - No caso dela, é porque Andy a intimida. Se quer a minha opinião, eu acho que existe qualquer coisa freudiana ali, porque Charley vive com Serena e é óbvio que a respeita e gosta dela. E eu desconfio que Serena já disse a Charley, em mais de uma ocasião, que pensa que ele é um cretino! Anna, que vai fazer a respeito do diário? Quando ele voltar?

 

Ela tirou o chapéu e abanou o rosto com ele durante alguns minutos.

 

- Não sei. Seria embaraçoso fazer muito barulho. Eu não quero envolver a Polícia. Só Deus sabe o que aconteceria, e eu tenho a sensação de que não seria sensato levantar problemas. Ele só iria negar e dizer que eu lho tinha emprestado, ou qualquer coisa do género, e seria muito difícil provar que eu não o fizera. Vou mantê-lo sempre fechado à chave e, provavelmente, deixar as coisas como elas estão. Ele fitou-a.

 

- Anna, ele tentou roubar algo que pode valer milhares de libras.

 

- Mas eu já o recuperei - disse ela com firmeza. - E ele vai ter de viver com o facto de que eu, Toby e Serena sabemos que ele é um ladrão. E não saberá se dissemos a mais alguém. Vai ficar nervoso.

 

- E é só isso que vai fazer? Vê-lo ficar nervoso. Ela acenou com a cabeça.

 

- Enquanto estivermos no Egipto, é. Ele expirou com força e abanou a cabeça.

 

- Está bem. Se é isso que decidiu. O diário é seu.

 

Eles tinham descido o caminho na direcção do embarcadouro. Quando lá chegaram, já havia alguns barcos pequenos junto à margem e, no embarcadouro, dúzias de homens e rapazes vendiam recordações e bugigangas turísticas de todas as formas e tamanhos. Anna e Toby conseguiram abrir caminho por entre a multidão e fizeram sinal a um dos barcos. Toby, após uma rápida e bem humorada troca de números e muitos gestos, conseguiu chegar a acordo sobre o preço da viagem de regresso ao Garça Branca e eles subiram para bordo, repelindo até ao último momento possível os deuses de cabeças de Ramsés de plástico e os gatos Bast de lata que os vendedores, com água até às coxas, lhes punham à frente, tentando seduzi-los.

 

- Quando cá chegámos eu detestava isto, mas já me estou a habituar comentou ela, encolhendo os ombros e virando as costas à ilha e aos homens que tinham desistido de os seguir e voltavam para trás para cercar outro grupo de turistas. - Eu tenho a certeza de que as pessoas comprariam mais se conseguissem olhar calmamente. Assim, temos de fugir. Até mesmo olhar duas vezes é uma catástrofe!

 

Toby recostou-se no banco a olhar para a vela. Parecia haver um pouco de vento, pois eles estavam a seguir a boa velocidade na direcção do Garça Branca, embora a vela alta, pendurada do mastro, mal estivesse enfunada.

 

- É tudo feito de bom humor. Eu gosto das pessoas daqui. - Ele olhou para o homem ao leme que, depois de os capturar à concorrência, se tinha dedicado calmamente e, ao que parecia, com indiferença, à sua tarefa, sem olhar duas vezes para eles. - Eu desconfio que só é assim tão mau à volta dos boiões de mel turísticos. É provável que, no resto do Egipto, se possa andar de um lado para o outro sem que andem atrás de nós. Afinal de contas, na ilha em si ninguém nos seguiu, pois não?

 

Jantaram sozinhos com todo o requinte, à luz das velas; comeram a especialidade de Ibrahim, um prato a que ele chamou mulukhiyya, uma sopa de ervas aromáticas deitada por cima de arroz branco, seguida de perca frita com vegetais. Para sobremesa, tiveram tâmaras com queijo fresco e depois café egípcio. Só quando garantiram a Ibrahim que não conseguiam comer mais é que este lhes deu as boas-noites e se foi embora.

 

- Por conseguinte - Toby virou-se para Anna e sorriu. - Temos o barco todo só para nós.

 

Ela acenou com a cabeça em sinal de concordância.

 

- Não se esqueça de que o comandante ainda está a bordo.

 

- Mas nós não o vemos. Ele é a éminence grise. - Toby sorriu. - Talvez não exista. Ou talvez ele seja também o Ibrahim, com outro chapéu. - Olhou para ela e, lentamente, o seu rosto tornou-se pensativo. Ele seguiu à frente até ao convés e foi encostar-se ao corrimão. Houve um longo silêncio depois de Anna ir ter com ele, e ela perguntou a si própria se Toby estava a decidir se devia ou não dizer-lhe qualquer coisa. Encostada ao corrimão ao seu lado, aguardou tranquilamente, a ver a noite aproximar-se.

 

Só ao fim de alguns minutos é que ele finalmente falou.

 

- Que é que Andy lhe disse a meu respeito? - perguntou, sem olhar para ela.

 

Ela mordeu o lábio. Por um momento não respondeu, depois voltou-se para ele.

 

- Ele parece pensar que esteve envolvido num escândalo qualquer respondeu ela, encolhendo os ombros. - Dadas as circunstâncias, eu não lhe prestei muita atenção.

 

Ele esboçou um esgar.

- Por que é que não me perguntou se era verdade? Ela hesitou, observando o perfil dele.

 

- Porque eu achei... tive esperança... de que não fosse.

 

Ele ainda não se tinha virado para ela. Houve outro longo silêncio, depois ele olhou-a, finalmente.

 

- É verdade. Anna, eu não quero que haja segredos entre nós.

 

Ela ficou à espera, consciente de ter ficado subitamente com um nó de ansiedade algures no estômago. Quando, finalmente, conseguiu perguntar, tinha a boca seca de medo.

 

- Que é que aconteceu?

 

- Matei alguém.

 

Houve um longo silêncio. Ela mordeu o lábio.

 

- Porquê?

 

O maxilar dele ficou tenso.

 

- Ele violou a minha mulher.

 

Anna fechou os olhos. As suas mãos tinham agarrado o corrimão com tanta força, que ela ficara com os nós dos dedos brancos.

 

A seu lado, Toby endireitou-se, a olhar para além dos grupos de luzes ao longo da orla do rio, na direcção da escuridão das colinas.

 

- Não estou arrependido. Se eu não o tivesse feito, ele ter-se-ia safado. Foi uma justiça que os deuses do Egipto teriam aprovado.

 

Houve um longo silêncio.

 

- Esteve preso? - perguntou ela por fim.

 

- Estive, por homicídio involuntário.

 

- E a sua mulher?

 

Ela observou o seu perfil no escuro.

 

- A minha mulher morreu.

 

- Morreu! - Anna ficou a olhar fixamente para ele.

 

-Suicidou-se enquanto eu estive preso. O Estado resolveu castigar-me. Não fez nada a respeito do homem que a atacou e atormentou. Escolheu não acreditar na história dela. Não a ajudou enquanto eu estive preso; deixou-a sozinha a lidar com a sua infelicidade e a sua vergonha. Ela estava grávida quando morreu, aparentemente dele. Ela não tinha ninguém. Não tinha família. O meu pai já tinha morrido. A minha mãe estava no estrangeiro. Não conseguiu chegar a tempo. - Ele respirou fundo e, dando meia volta, afastou-se dela. Subiu ao convés superior, e ela viu-o desaparecer na escuridão. Deixou-se ficar onde estava durante muito tempo, depois virou-se e foi atrás dele.

 

- Obrigada por me ter contado.

 

- Se não contasse, sem dúvida que Watson acabaria por fazê-lo. Embora tudo isto tivesse acontecido há anos, as pessoas lembram-se sempre desse tipo de coisas. - Ele virou-se finalmente para ela. - Quer tomar uma bebida? - Ela reparou, com embaraço, na emoção espelhada no rosto dele que foi imediatamente disfarçada. - Se quiser tomar uma bebida com um assassino.

 

- Se lhe disseram que foi homicídio involuntário, não é um assassino. E, sim, obrigada, gostaria muito. - Teve vontade de lhe tocar, de o tranquilizar e confortar, mas sentiu que isso seria errado. Aquela não era a altura certa. Em vez disso, obrigou-se a si própria a sorrir, e foi ela que se virou e se dirigiu primeiro ao bar.

 

Toby deitou uísque em dois copos, assinou um talão do bloco ao lado da caixa fechada e empurrou um dos copos na direcção dela.

 

- Slainte!

 

Ela ergueu uma sobrancelha. Ele encolheu os ombros.

 

- Então, à sua saúde, à minha e aos mistérios do Egipto, Inshallah! Ela tocou com o seu copo no dele.

 

- Toby... - hesitou. Como conseguiria colocar em palavras a estranha mistura de sensações que a percorriam? Raiva com a injustiça da vida. Simpatia. Dor por ele, pela mulher, pela criança ainda por nascer que fora a vítima inocente de tanta infelicidade. Ira contra o homem que arruinara tantas vidas. Era impossível, e, quando ergueu o olhar e os seus olhos se cruzaram, ela viu subitamente que ele compreendia.

 

- Vamos ler mais um pouco sobre Louisa? - perguntou ele em voz baixa. Era um sinal para mudarem de assunto.

 

Ela acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

 

O diário estava no camarote dela, tinha-o deixado lá fechado na mala, quando fora tomar um duche e mudar de roupa para o jantar. Anna levantou-se.

 

- Quer que o traga para aqui, ou vamos lê-lo no meu camarote?

 

Ele estudou-lhe o rosto.

 

- Que é que prefere? - Ele pareceu hesitante.

 

Ela não tivera a intenção de lhe fazer um convite, mas subitamente compreendeu que as suas palavras eram isso mesmo. Sorriu e estendeu a mão. No camarote, acendeu o candeeiro da mesinha-de-cabeceira.

 

- O diário está fechado à chave. Um exemplo clássico de ”casa roubada, trancas à porta” - disse ela com uma gargalhada. Teve subitamente um nó de excitação no estômago ao senti-lo muito perto atrás de si. Tirou a chave do saco e virou-se na direcção da mala.

 

Toby estendeu o braço e segurou-lhe no pulso.

 

- Anna?

Ela ficou imóvel. Depois virou-se e ergueu o olhar para ele. Ficaram abraçados durante muito tempo antes de Anna se afastar suavemente.

 

- Tens a certeza de que é isto que queres? - Ela ficou espantada por estar a tomar a iniciativa, a dar o primeiro passo, dominada como estava por um desejo tão grande que quase a paralisava. Nunca se sentira assim antes. Se alguma coisa provava que o que quer que ela sentira por Felix não tinha sido amor, era aquele desejo incrível, inegável, que a inundava.

 

Toby sorriu.

 

- É exactamente isto que eu quero. - Ele estendeu a mão e segurou-a pelos ombros. Enquanto a puxava novamente para si, ela sentiu-o procurar o fecho do vestido. Este deslizou para o chão e ela sentiu as mãos dele, frescas e firmes, na sua pele escaldante, à medida que ele lhe acariciava os ombros e lhe percorria a garganta com um dedo em direcção aos seios. Ela soltou uma exclamação, erguendo a boca para a dele ao mesmo tempo que Toby desapertava os colchetes do soutien, deixando-o cair ao chão, e a puxou na direcção da cama.

 

Foi muito mais tarde, quando estava a dormir nos braços dele, que Anna foi acordada por uma violenta pancada na porta.

 

Ficou imóvel, a suster a respiração, sentindo-o mexer-se ao seu lado. Por um momento, ficaram a olhar um para o outro.

 

- Deve ser Ibrahim. -Anna sentou-se. Agarrou no robe de algodão, vestiu-o, atou o cinto e, seguidamente, dirigiu-se para a porta no momento em que uma nova saraivada de pancadas ecoava pelo camarote. Puxando o trinco, abriu-a.

 

Charley quase caiu ao entrar no quarto.

 

- Anna! Tem de me ajudar! - As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto. - Oh, meu Deus! - Ela olhou para trás, para o corredor, depois, entrando a cambalear no camarote, fechou a porta e correu o trinco. Parecia não ter visto Toby, que tinha estendido o braço para a beira da cama para pegar nas calças e estava disfarçadamente a vesti-las. Charley tremia violentamente quando Anna pôs o braço à volta dos seus ombros e a conduziu para o banquinho em frente ao toucador.

 

- Que foi? Que é que aconteceu? Pensei que tivesse ido com os outros. Charley abanou a cabeça. Tinha segurado as mãos de Anna e agarrava-se a elas como se a sua vida dependesse disso.

 

- Não o deixe entrar. Não o deixe aproximar-se de mim.

 

Toby estava a vestir a camisa. Ele franziu o sobrolho.

 

- Quem? Quem é, Charley? Que aconteceu?

 

- Eu estava a dormir. No meu camarote. - Ela abanou a cabeça. - Eu pensava que estava a sonhar. Estava a sonhar. - A sua respiração era ofegante e a sua mão, agarrada à de Anna, tremia violentamente. - Depois acordei. Eu tinha fechado a porta à chave. Eu sei que fechei a porta à chave. Mas ele estava lá. - Ela começou novamente a soluçar.

 

Toby ajoelhou-se em frente dela e pegou-lhe numa das mãos.

 

- Escute, Charley. Aqui está em segurança. Nós não vamos permitir que lhe aconteça nada de mal. - Ele fez uma pausa.

 

Os soluços tinham abrandado. Ela olhou para ele, com o rosto branco como um lençol, raiado de rímel, os olhos inchados e vermelhos.

 

- Tem a certeza? - Subitamente, agarrada às duas mãos dele, ela parecia pateticamente uma criança.

 

- Tenho. Agora, com calma, conte-nos o que aconteceu. Quem é que estava no seu camarote?

 

- Era um homem. Com uma galabiyya verde.

 

- Um egípcio?

 

- Sim, claro que era um egípcio.

 

- Ele fez-lhe mal? Que é que ele fez? Ela abanou a cabeça.

 

- Não, não me fez mal. Acho que não. Mas ele tinha os braços estendidos para mim.

 

- Como é que ele era? Era um dos empregados de mesa?

 

- Não. Não. Era muito alto. Tinha uma pele de animal à volta dos ombros...

 

- Uma pele de leão? - Anna tinha-se sentado na cama. Charley ergueu o olhar e encolheu os ombros.

 

- Não sei. Acho que sim. Podia ser. Toby olhou para Anna.

 

- Precisamos de Serena, não é verdade?

 

Anna fez uma careta e acenou com a cabeça em sinal de concordância.

 

- Charley? - Toby tentou outra estratégia. - Por que é que não foi com os outros?

 

- Eu era para ir. Eu queria ir - disse ela, abanando a cabeça. - Lembro-me de ter acordado cedo e de eu e Serena nos vestirmos. Ali trouxe-nos chá. Depois ela ficou pronta, mas eu não me senti muito bem. Fui à casa de banho... - Ela voltou a abanar a cabeça, premindo as pontas dos dedos contra as têmporas. Eu disse que ia logo ter com ela. Tinha muito frio. Sentia-me muito cansada. Sentei-me na cama por um minuto. Serena voltou, penso que ela me perguntou como estava, e acho que respondi que queria dormir.

 

Anna pôs-se de pé. Procurou a caixa de lenços de papel, tirou alguns e colocou-os na mão de Charley.

 

- Isso deve explicar a terceira pessoa no barco. Serena deve ter dito a Ornar, e este disse a Ibrahim que a Charley ia ficar. Que aconteceu a seguir?

 

- Não me recordo de mais nada até ter acordado e o ter visto ali de pé. Charley começou novamente a soluçar, com as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto e a caírem no seu colo.

 

- Depois, que aconteceu?

 

- Eu gritei. Sentei-me na cama e gritei, e ele deu alguns passos na minha direcção. Depois, ele começou a tremer. - Ela abanou a cabeça, confusa. - Ele estava a tremer violentamente e... - Ela parou e encolheu os ombros. - E já não estava lá.

 

- Quer dizer que ele saiu do camarote ou que desapareceu? Ela encolheu novamente os ombros.

 

- Ele não abriu a porta. Fui eu que a abri. Eu não fiquei à espera para ver. Saí a correr do camarote e não vi ninguém. Estava tudo muito silencioso. Eles não se foram já embora, pois não?

 

- Quem? - Anna abanou a cabeça. - Quer dizer os outros? Eles partiram ontem. - Ela olhou para o relógio. - Isso foi há vinte e quatro horas, Charley.

 

Os olhos de Charley concentraram-se no rosto de Anna.

 

- Não. - Voltou a fazer o beicinho infantil. - Eu só dormitei durante um minuto.

 

- Está a dormir desde que eles partiram, Charley, a Anna tem razão-disse Toby, olhando-a com um ar de preocupação.

 

- Não. - Ela abanou a cabeça. - Não. Não pode ser. Não. - Subitamente, ela começou a balouçar para a frente e para trás. - Não.

 

- Charley! - Toby levantou-se e colocou as mãos nos ombros dela.-Ouça.

- Ele fez uma pausa. - Está a ouvir? Óptimo. Esteve a dormir. Mas não tem importância. Devia estar exausta. Precisava desse sono.

 

- Eu não estive a beber. - Ela não parecia ter ouvido o que ele dissera. Não estive a beber. Eu sei que tenho sido idiota, invejosa e infantil. Eu sei isso. Mas não estive a beber. Andy disse que eu não devo beber mais. Eu não bebi. Juro. - Ela estava a abanar novamente a cabeça, para a frente e para trás, para a frente e para trás, como um autómato.

 

- Quando foi a última vez que comeu, Charley? - Toby tinha-lhe pegado outra vez nas mãos e olhou para Anna. - Vês como ela emagreceu? - perguntou ele em voz baixa. - Não posso acreditar. Numa semana.

 

Anna acenou com a cabeça em sinal de concordância. Ela tinha estado a observar o rosto de Charley enquanto Toby falava com ela.

 

- Charley, tem a certeza absoluta de que esse homem não lhe tocou?

 

A pergunta pareceu desconcertar Charley, que parou de baloiçar e franziu o sobrolho.

 

- Tem a certeza de que ele não lhe tocou enquanto estava a dormir? Charley estremeceu.

 

- Eu estava vestida. Com isto-respondeu ela, apontando para as calças de ganga e para a t-shirt preta. - Eu tinha-me vestido para ir no autocarro. Nunca me despi. Eu tinha feito a malinha de fim-de-semana. Estava pronta para ir.

 

- Sentou-se por um momento e, quando acordou, tinham decorrido vinte e quatro horas. - Anna estava a desejar fervorosamente que Serena tivesse ficado. - Charley, disse que estava a sonhar quando o homem a acordou. Consegue lembrar-se do que estava a sonhar? Charley encolheu os ombros e abanou a cabeça.

 

- Acha que alguém lhe tocou no seu sonho?

 

- Quer dizer...? Não! Oh... ah, não!

 

-Eu não quero dizer sexo.-Anna olhou subitamente para Toby e sentiu-se aliviada ao vê-lo piscar o olho. O seu despertar tinha sido tão súbito e tão traumático que ela não pensava nele nem no seu corpo desde que Charley tinha batido à porta. Sentiu-se corar levemente e abanou rapidamente a cabeça. - Eu quero dizer se o sentiu a tocar-lhe aqui. - Ela levou a mão à barriga. - Ou na boca, na garganta ou na cabeça?

 

Charley encolheu os ombros.

 

- Não sei. Dói-me aqui. - Levou a mão à barriga. - Eu pensei que tinha comido qualquer coisa estragada.

 

- A maldição do faraó. - Toby esboçou um esgar. - É possível. Mas Anna está a pensar noutra coisa. - Ele olhou para ela. - Tenho razão? O incubo? A sugar-lhe a energia?

 

Anna acenou afirmativamente a cabeça.

 

- Foi o que Serena pensou.

 

- O quê? Que é que ela pensou? - Os olhos de Charley estavam outra vez redondos, e Anna reparou que ela tinha começado novamente a tremer.

 

- Andy vai ficar muito zangado. Ele ia sentar-se ao meu lado. E agora já está com este... - disse ela, acenando com a cabeça na direcção de Toby -... não anda atrás do meu Andy. Ou será que quer os dois? - Ela lançou um olhar de patético desafio a Anna. - Sabe que ele tinha o seu estúpido frasquinho com ele? Por isso, se o perdeu outra vez, já sabe que não fui eu.

 

Houve um momento de silêncio no camarote. Depois:

 

- Ele levou o frasquinho? - Anna ficou a olhar para ela. - Tem a certeza? Charley fez um sinal afirmativo.

 

- Muito popular, não é?

 

O rosto de Anna tinha ficado imóvel. Estava a olhar para a mala em frente do guarda-vestidos. No seu interior estava o diário onde, algumas horas antes, apenas ela e Toby tinham lido sobre a cobra. A cobra rei, programada para matar qualquer homem que tocasse na âmbula sagrada.

 

Ela olhou para Toby.

 

- A cobra - murmurou ela. - O guardião do frasco de perfume. O frasco só tem pertencido a mulheres. A Louisa. À minha trisavó. À minha tia-avó. A mim.

 

- Oh, merda! - Toby esfregou o queixo. - Que é que havemos de fazer? Não me diga que vamos atrás dele.

 

- Temos de o fazer. Pode não ser demasiado tarde. Se conseguirmos avisá-lo. Reavê-lo.

 

- Que é? Que é que se passa? - Charley agarrou no braço de Toby.

 

- A cobra que encontrou no seu camarote - disse Anna, secamente. - Ela não lhe fez mal porque é mulher. Se fosse homem, ela tê-la-ia matado.

 

Charley ficou a olhar para ela.

 

- Porquê? Que é que quer dizer com isso?

 

- Ela está a guardar o frasco. Olhe, não faça perguntas, Charley. Limite-se a acreditar. Vá à procura de Ibrahim - disse Anna a Toby num tom de urgência.

- Ele sabia a respeito da cobra. Ele há-de saber o que fazer. Talvez possamos telefonar a Ornar para ele avisar Andy.

 

- Não! Não me deixem sozinha! - Charley agarrou-se a Toby quando este se voltou para a porta. - E o homem no meu camarote?

 

- Nós não a vamos deixar sozinha, Charley.-Toby suspirou e empurrou-a na direcção de Anna. - Fiquem as duas aqui. Eu vou ver se consigo encontrar Ibrahim.

 

Quando ele desapareceu, Anna fechou os olhos e respirou fundo.

 

- Se não conseguirmos contactar com Ornar, vamos ter de ir à procura dos outros. Andy é um filho da mãe, mas não merece morrer. Vamos ter de encontrar uma forma de o avisar. Apanhar um autocarro ou um táxi. Quanto dinheiro tem, Charley? Vamos precisar de dinheiro.

 

Ela procurou os sapatos debaixo da cama e agarrou no saco. Abriu a mala, tirou de lá o diário e meteu-o no saco.

 

- Quer as suas coisas? Apanhamo-las no caminho. Onde é que Toby se meteu?

 

-Mandou-o ir à procura do Ibrahim-protestou Charley, agarrando seguidamente o estômago. - Acho que vou vomitar.

 

- Casa de banho - disse Anna, apontando para a porta.

 

Tentando ignorar os ruídos oriundos da casa de banho, pegou automaticamente no chapéu, nos óculos-de-sol e no guia de viagem e atirou-os para dentro do saco, juntamente com uma garrafa de água. Quando Toby voltou, Charley tinha reaparecido, mais branca do que nunca, e Anna estava pronta.

 

- Falei com o comandante. Ele não sabe nada. Nem onde eles estão, nem onde Ibrahim poderá estar, embora pense que tenha ido a uma das aldeias visitar amigos. Mas ele tinha o contacto que nos pode arranjar um táxi. Este estará junto da prancha de desembarque dentro de dez minutos.

 

-Não me deixem sozinha! - Charley tinha-se agarrado aos dois.-Eu não quero ir para o meu camarote. Não podem obrigar-me. Ele mata-me!

 

- Nós não a vamos deixar sozinha, Charley - disse Toby suavemente, tentando que as mãos dela lhe largassem a manga. - Pode vir connosco ou podemos deixá-la num hotel antes de partirmos. Lá estaria em segurança.

 

Charley abanou a cabeça.

 

- Eu detesto tudo isto. Quero voltar para casa.

 

- O hotel pode tratar disso, se realmente quer fazê-lo. - Toby olhou para Anna, por cima da cabeça dela. - Eu penso que esta é decisão correcta. Ela não pode ficar no barco, nem pode vir connosco. São cerca de duzentos e cinquenta quilómetros. Vai levar horas.

 

Anna foi ao camarote de Charley enquanto esta continuava agarrada a Toby no corredor. O camarote estava vazio. Ela deixou-se ficar por um momento a olhar em volta, à escuta. Como se tudo o que tinha acontecido lhe tivesse apurado os sentidos, deu por si a prestar atenção à sua intuição de uma forma que nunca fizera. A intuição disse-lhe que não havia nada ali; nada a recear, pelo menos de momento. Agarrando na malinha de fim-de-semana de Charley, apagou a luz e fechou a porta atrás de si, rezando fervorosamente para que o sacerdote de Sekhmet permanecesse onde quer que vivesse e não os seguisse.

 

Um carro preto aguardava-os à beira da água. O jovem ao volante vestia roupas ocidentais e cumprimentou Toby com alguma deferência enquanto entravam nele. Em poucos segundos, ele tinha girado o volante e arrancado, dirigindo-se para sul ao longo da Corniche.

 

Parou à porta do Old Cataract Hotel.

 

- Espera aqui - disse Toby a Anna. Ele pegou no braço de Charley e fê-la sair do carro. - São cinco minutos.

 

Enquanto eles desapareciam na entrada do hotel, Anna franziu o sobrolho. Depois encolheu os ombros. Estava demasiado cansada para pensar. Se Toby conseguisse que tomassem conta de Charley ali, e àquela hora, tudo bem. Perguntou a si própria o que faria ele depois.

 

Ele demorou quinze minutos e ela adormeceu. Acordou quando ele abriu a porta do carro e entrou, dando instruções rápidas ao motorista. Parecia satisfeito consigo próprio quando arrancaram.

 

- Charley fica bem. Vão tomar conta dela, e eu fiz algumas chamadas. De manhã, alguém virá vê-la, para saber se ela está bem. Ela pode ficar cá até voltarmos para Luxor, ou eles arranjam-lhe uma passagem para regressar mais cedo a casa. E também resolvi o nosso problema. A sul de Assuão é uma zona militar. Achei melhor verificar, para o caso de precisarmos de passes ou qualquer coisa para atravessar o deserto. - Ele recostou-se no banco ao lado dela.

 

- E precisamos.

 

- Está tudo tratado. Não há qualquer problema. Ela lançou-lhe um olhar de soslaio.

 

- Tens a certeza?

 

- Absoluta. Agora, vê se consegues dormir. Eu acordo-te quando lá chegarmos.

 

-Toby? - Ela sentiu um arrepio e aconchegou-se mais na camisola. O carro tinha ficado muito frio enquanto esperavam. - Que acontecerá se o sacerdote de Sekhmet se tiver apoderado dela? E se ele voltar quando ela estiver sozinha?

 

- O pessoal do hotel vai vigiá-la. Se acontecer alguma coisa, eles chamam um médico.

 

- E o que é que um médico pode fazer? Ele encolheu os ombros.

 

- Nós estaremos de volta a Assuão muito em breve, Anna. Provavelmente, ainda esta noite. E podemos telefonar de Abu Simbel. Não é como se fossem os confins da terra. Assim que encontrarmos Andy e lhe tirarmos o frasco, a urgência terminará.- Houve um momento de silêncio.- Desde que não estejas à espera que eu lhe toque!

 

Anna esboçou um sorriso sombrio.

 

- Não, não estou à espera que lhe toques. - Ela soltou uma pequena exclamação de sobressalto quando o carro passou por um buraco, atirando-a contra ele. - Não gostaria nada que fosses engolido por uma cobra.

 

Ele pôs o braço à volta dela e puxou-a para si.

 

- Podes ter a certeza de que eu também não.

 

Houve um grande silêncio enquanto o carro chocalhava ao longo das ruas, virando aqui e ali em direcção à orla sul da cidade. As ruas principais estavam muito iluminadas, as laterais encontravam-se envoltas em escuridão, e as casas tinham as persianas corridas como protecção contra o ar frio da noite.

 

- Toby? - Anna estava agora completamente acordada.

 

- Que é? - perguntou ele, segurando-lhe na mão.

 

- E se chegarmos tarde de mais?

 

- Não havemos de chegar. - Ele apertou-lhe os dedos com força. - Partindo do princípio de que vai acontecer alguma coisa, chegaremos lá a tempo. Tenho a certeza disso.

Hinos de louvor te sejam cantados, oh, deus, que fazes o momento avançar,

Tu que habitas entre todos os tipos de mistérios, guardião da palavra que fala...

 

A casa ficou vazia. Todos conheceram a sua maldição: todos os que viveram ali morreram. Mas o tempo passa. As próprias aldeias desaparecem. No ar do deserto, os tijolos de areia estão espalhados. Os poucos haveres deixados para trás são abandonados, perdem-se e sucumbem à areia.

 

Os sacerdotes ficam fracos, espectros insubstanciais sem o sangue vital da energia do homem. Eles buscam a sua existência no céu, na Lua e na força do vento, e pairam no ar, alimentados apenas pelo seu ódio mútuo.

 

Mais uma vez, homens e rapazes passam por ali, sempre atentos, sempre conscientes dos detritos de milénios que podem significar riqueza e fama para os poucos afortunados. Um homem baixa-se e pega num fragmento de barro aqui, num pote ali. Ele vê o brilho do vidro e dá um pontapé na areia para libertar o pequeno frasco que aí está. Este é atraente. É interessante. Quem sabe, talvez seja antigo. O homem pega nele, esfrega-o na camisa da sua gallabiyya e guarda-o. Somente uma vez, enquanto se desloca de um lado para o outro, ele olha por cima do ombro e sente um arrepio.

 

Os deuses zelam por ti, homem do deserto, para que a tua hora não chegue demasiado cedo...

 

Foram acordados algum tempo depois, quando o táxi parou no meio da estrada. O motorista virou-se, debruçou-se sobre as costas do seu banco e tocou num joelho de Toby.

 

- Querem ver o nascimento do deus sol Ré?

 

Toby olhou pela janela com um sorriso irónico. Era óbvio que, desde o início dos tempos, todos os turistas tinham pedido para parar ali. Era, provavelmente, uma paragem obrigatória.

 

- Amanhecer! Vamos, Anna. Cinco minutos não fará muita diferença e vale a pena ver isto. O nascer do Sol no deserto.

 

Abriram as portas e saíram do carro. O ar era fresco e cortante; ficaram de pé, no meio da auto-estrada deserta, e olharam em volta. No frio amanhecer, o alcatrão estendia-se através do deserto, direito como uma serra, à frente e atrás deles, aqui e ali disfarçado pela areia, cascalho e pedregulhos espalhados. A luz era fria, incolor e imóvel. O único som que se ouvia era o tiquetaque do motor do carro a arrefecer. O motorista não se tinha dado ao trabalho de sair do automóvel. Ficara sentado ao volante e, ao fim de alguns segundos, os seus olhos tinham-se fechado.

 

A luz que surgia a leste era muito brilhante, aumentando a cada segundo que passava. Por cima deles, as estrelas, que há algum tempo tinham parecido tão próximas que quase lhes podiam tocar, tinham praticamente desaparecido. Por um momento, duas ou três pequenas nuvens planas que pairavam, imóveis, acima deles, reflectiram um toque de vermelho, depois, primeiro a cor e depois as nuvens desapareceram.

 

Anna pegou na mão de Toby. Estava a tremer.

 

- É como se o mundo inteiro estivesse com a respiração suspensa. Ele acenou com a cabeça.

 

- Olha. Deve ser agora.

 

Ficaram em silêncio com os olhos fixos na luminosidade crescente, à medida que, à sua volta, as características do deserto eram cada vez mais nítidas e a luz mais forte. Havia algo inexorável, quase ameaçador, na inevitabilidade de tudo aquilo e, subitamente, a orla do Sol irrompeu, ofuscante, acima do horizonte.

 

Anna susteve a respiração e, inexplicavelmente, enquanto o Sol subia, sentiu-se prestes a chorar de comoção com a beleza do momento. Ao fim de alguns segundos, deixou de poder fitá-lo e virou-se para olhar em volta, à medida que a luz jorrava em direcção a eles e prosseguia o seu caminho através do deserto em direcção ao horizonte distante.

 

Quando chegaram a Abu Simbel, Anna estava outra vez a dormir. Acordou quando entraram no parque de estacionamento e o motorista desligou o motor.

 

- Boa velocidade, não? - Ele voltou a debruçar-se sobre o seu banco e sorriu-lhes.

 

Toby acenou com a cabeça.

 

- Boa velocidade. Bom bónus. - Enquanto ele tirava um maço de notas sujas do bolso e começava a contá-las para a mão do homem, Anna saiu do carro e sentiu o calor atingi-la como uma martelada. Ficou a olhar para as filas de automóveis e camionetas. - Como é que havemos de encontrar os outros?

 

Toby ergueu uma mão para o motorista e ficou a ver o táxi fazer marcha atrás.

 

- Ele vai-se embora? - perguntou Anna, olhando para ele.

 

- Não se souber o que é melhor para ele. Só lhe paguei a viagem até cá. Se quiser o resto, vai ter de esperar por nós - respondeu Toby com um sorriso. Não, ele só vai procurar um lugar para estacionar. Depois vai dormir até estarmos prontos para nos irmos embora. Bem, eu acho que os outros já devem estar num dos templos, ou talvez à beira da água. Vamos tentar primeiro o templo principal. Há lá muito para se ver.

 

- Anna e Toby juntaram-se à fila para entrar, que já era considerável, e, rodeados de fragmentos de todas as línguas existentes ao cimo da terra, avançaram lentamente, procurando rostos conhecidos no meio da multidão.

 

Toby franziu o sobrolho, concentrando-se, tentando compreender as palavras, as gargalhadas e os gritos à sua volta.

 

- Eu acho que, se alguém tivesse sido atacado por uma cobra, já teríamos ouvido dizer qualquer coisa. Desconfio que deve ser bastante raro haver cobras aqui, e este é o tipo de boato que se espalharia muito depressa. - Ele sorriu-lhe, encorajador. - Anima-te. Chegámos a tempo, tenho a certeza de que chegámos.

 

Ela estava tão cansada que mal conseguia manter os olhos abertos enquanto se dirigiam lentamente para a entrada, compravam os bilhetes e entravam. Seguiram o trilho ao longo de uma pequena colina e, subitamente, encontraram-se em frente ao que devia ser um dos mais famosos monumentos do mundo, as quatro estátuas colossais de Ramsés II, esculpidas na face da rocha, a olhar para as águas azuis do lago Nasser.

 

Apesar da altura das estátuas, o mar de gente em frente ao templo ameaçava dominar a fachada, e Anna estava espantada com o volume da multidão.

 

- Nunca havemos de os encontrar!

 

- Claro que encontramos - disse Toby, olhando em volta. - Espero que Andy tenha noção do esforço que estás a fazer para o proteger. Ele não o merece.

 

Abriram caminho através dos grupos de turistas, cada um dos quais parecendo ter o seu próprio guia a gritar uma história concisa do grandioso templo do sol e do seu vizinho mais pequeno, erigido por Ramsés para a sua mulher favorita, Nefertari, antes de se dirigirem ao templo propriamente dito.

 

- Nem sequer sabemos se Carstairs não terá retirado a maldição. Anna abanou a cabeça.

 

- Esqueces-te de que a Charley viu a cobra - disse ela, avançando na direcção da fachada do templo, a olhar desesperadamente para a esquerda e para a direita enquanto passava por entre a multidão.

 

Toby apressou-se a apanhá-la.

 

- Não nos podemos perder um do outro! Meu Deus, eu nunca pensei que estivesse cá tanta gente. Quando o Ornar nos disse que a viagem era opcional, imaginei que só algumas pessoas eram suficientemente intrépidas para virem até cá e que seríamos poucos.

 

- Os outros podem estar lá dentro - disse ela, olhando na direcção da porta.

 

- É o lugar mais provável.

 

Ainda a observar os rostos à sua volta a cada passo, passaram a entrada e penetraram na escuridão daquilo a que o seu guia de viagem chamara pronaos, uma enorme sala escavada na pedra com duas filas de quatro enormes colunas. Ficaram juntos a olhar para o escuro, conscientes das multidões de gente à volta dos pilares. Só perto da entrada era possível ver alguma coisa. As paredes estavam cobertas com baixos-relevos das vitórias de Ramsés. Mais no interior, a escuridão era quase total.

 

- Nunca conseguiremos vê-los! - Demasiado cansada e preocupada para se aperceber da escala das cenas à sua volta, Anna estava quase a chorar.

 

De repente, sentiu tocarem-lhe no ombro.

 

- Anna? - Era Serena. Ela abraçou Anna. - Que diabo estás tu a fazer aqui? Por que é que mudaste de ideias? Como é que vieste?

 

Anna retribuiu o abraço, aliviada.

 

- É uma longa história. Onde é que está Andy? - perguntou ela, olhando freneticamente em volta.

 

Serena encolheu os ombros.

 

- Não faço a mínima ideia. Como ele é a pessoa de quem menos gosto neste momento, é pouco provável que ande à procura dele!

 

- Mas ele está bem?

 

- Tanto quanto sei. Vi-o ao pequeno-almoço, no hotel. Parecia estar bem. Porquê?

 

- E ele está aqui?

 

- Está algures por aí, sim. Acho que estamos todos aqui. Ontem fomos andar de barco no lago Nasser e à noite vimos os templos iluminados e tivemos uma das palestras do Ornar. Foi bastante boa, com um filme sobre o modo como deslocaram os templos quando o vale foi inundado e como o partiram aos pedaços e construíram uma colina artificial para os colocar. Hoje vamos ver os dois templos propriamente ditos e a seguir devemos partir de regresso ao barco.

- Ela fez uma pausa por um momento. - E a que se deve todo esse pânico a respeito de Andy?

 

- Ele deixou o diário no cofre do Garça Branca, mas trouxe o frasco para cá. E provavelmente também a cobra. E esta vai matá-lo.

 

- Por que é que ela o há-de matar? - Serena desviou-se quando uma italiana decidida lhe deu uma cotovelada nas costelas e a empurrou com a máquina fotográfica, ignorando o guarda que estava a gritar com ela por tirar fotografias comflash.

 

- Vai matá-lo porque Carstairs a evocou para matar o Hassan! É essa a tarefa dela; ela existe para proteger a âmbula. Temos de recuperar o frasco antes que a malfadada criatura lhe morda. Não teve nada a ver com os sacerdotes. Foi evocada para matar Hassan e qualquer homem que toque no frasco! Homem, não mulher. É por isso que eu e Charley... e tu... estamos em segurança.

 

Serena ergueu uma sobrancelha.

 

- Nesse caso, eu não me importaria nada que ela o fizesse - disse com uma careta. - Está bem, não estou a falar a sério. Claro que tens de levar a ameaça a sério. Então, querem que vos ajude a encontrá-lo para o avisar? Toby acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

 

- Seremos mais bem sucedidos se nos separarmos, assim podemos procurar numa área maior. Encontramo-nos todos daqui a meia hora junto da porta principal, e espero que um de nós o tenha encontrado.

 

- Ele não vai acreditar em nós - disse Serena, dando meia volta. - Só Deus sabe como o vão convencer sequer a admitir que o tem consigo, quanto mais que corre o risco de ser envenenado por uma cobra mágica se não o devolver! Ainda estava a abanar a cabeça quando ela e Anna se separaram e tentaram abrir caminho, uma de cada lado do enorme pronaos, na direcção das entradas que conduziam à escuridão do interior.

 

Depois de terem passado da enorme sala de colunas para as câmaras mais pequenas, as multidões tornaram-se menos densas. Anna, que seguira lentamente por trás da coluna de pilares à direita, entrou na primeira e observou, de olhos semicerrados, as poucas pessoas que estavam a olhar para os baixos-relevos ali existentes. No escuro, eram apenas silhuetas, mas nenhuma delas tinha a altura e a largura de ombros de Andy. Ela deslocou-se para a entrada seguinte e estava olhar para a segunda câmara, mais pequena, quando uma voz junto dela a fez dar um salto.

 

- Anna, minha querida. Como é que cá chegou? - Ben sorriu-lhe. Tinha o chapéu no seu lugar, o velho saco de lona ao ombro, e os seus olhos brilhavam.

- Não é um lugar extraordinário? Que grande feito de engenharia! Só de pensar que tudo isto foi cortado em blocos, deslocado e montado como um enorme jogo de lego. - Ele hesitou. - Passa-se alguma coisa, minha querida?

 

- Ben, eu preciso de encontrar Andy. Eu só vou conseguir concentrar-me e ver alguma coisa depois de o encontrar. Sabe onde é que ele está?

 

Ben abanou a cabeça.

 

- Para ser sincero, acho que não o vejo desde ontem à noite. Não me lembro de reparar nele ao pequeno-almoço. - Ben fechou o seu guia de viagem, deixando o indicador no meio das páginas para marcar o lugar. - Se o vir, quer que lhe diga que anda à procura dele?

 

Anna fez uma careta.

 

- Isso pode fazer com que ele fuja na direcção oposta. Importa-se de o levar até à entrada? Nós vamos encontrar-nos todos lá fora daqui a meia hora. É realmente importante. Uma questão de vida ou morte.

 

Ben acenou com a cabeça, com um ar um pouco distraído. Já estava a abrir novamente o livro.

 

- Vou manter os olhos abertos, prometo.

 

A pequena câmara em que procurou a seguir estava vazia. Ela ficou por um momento à porta a espreitar para o interior, impressionada com a estranha sensação de súbita quietude. Em muito poucos lugares que visitara no Egipto ela sentira que uma pessoa podia perder-se nos seus pensamentos e absorver o ambiente, mas, naquele templo, mais do que em qualquer outro, o barulho e a azáfama tinham sido avassaladores, e isso não era surpreendente. Reconstruído para ser salvo das águas depois da construção da barragem, tinha sido, desde então, invadido pelas multidões. Agora, no entanto, naquela pequena sala lateral, sentiu subitamente um arrepio. O silêncio era intenso. Talvez os deuses antigos ou os seus servidores estivessem ali, afinal de contas. Sentiu as palmas das mãos a transpirar, à medida que a quietude da sala a invadia e, por um momento, a envolvia em silêncio.

 

Depois, subitamente, um grupo de pessoas apareceu atrás dela. Conversando animadamente em francês em voz alta, empurraram-na, entraram na câmara e, quase de imediato, umflash proibido iluminou a sala durante uma fracção de segundos com uma chocante luz branca. Ouviram-se gargalhadas, uma excitada troca de comentários e uma gargalhada rouca. Anna afastou-se.

 

Havia quatro outras pessoas no santuário no interior do templo. Era ali, duas vezes por ano, que o raio de sol penetrava através da entrada nas profundezas da rocha e recaía sobre o altar, iluminando três das quatro estátuas sentadas que o guardavam. O templo tinha sido alinhado exactamente como fora no seu local original, de modo que esse milagre pudesse continuar a acontecer e a quarta estátua, a do rei Ptah, o deus da criação, o deus dos mortos, o senhor das trevas, permanecesse para sempre na escuridão, sem nunca ser tocado pelo sol.

 

Ptah, claro, era marido de Sekhmet.

 

Anna estancou. As palavras que flutuaram até ela na escuridão tinham vindo, compreendeu ela, do grupo de pessoas que se encontrava perto das estátuas.

 

Sekhmet.

 

Sentiu o estômago dar uma volta com um medo súbito. Será que Hatsek viria até ali? Reconheceria ele aquele templo, mesmo reconstruído e cheio de infiéis de uma época diferente?

 

Nesse preciso momento, ela soube que ele o faria e que, de um minuto para outro, estaria ali, como se tivesse sido evocado pelos processos da sua mente. Andando de lado, ela dirigiu-se para o canto do santuário, a olhar em volta.

 

- Andy? - Só quando um membro do grupo que estava à volta da estátua se virou e olhou para ela é que compreendeu que tinha chamado em voz alta.

 

Andy não estava lá. Os visitantes que saíram da sala, ainda a olhar em redor com ar de admiração, e um ou dois a fitá-la ao passar, eram desconhecidos. Havia mais duas pessoas na câmara, a observar as estátuas sentadas. Perto delas, o ar cintilou por um momento e arrefeceu.

 

Anna tentou voltar para trás, mas os seus pés estavam pregados ao chão. O santuário estava a ficar mais escuro e, no estranho frio que a rodeava, ouvia vozes algures ao longe, numa espécie de canto.

 

Num dos lados das estátuas, a luz bruxuleou. Vinha de um candeeiro, reparou ela, colocado num nicho da parede. Em primeiro plano, no que ela pensara ser um altar, viu a forma escura de um barco em miniatura.

 

E depois viu-o, um homem alto, muito escuro, com um rosto de linhas duras e braços nus musculosos. Estava nu, com excepção de uma saia curta à volta das ancas e da pele castanha de um leão do deserto à volta dos ombros. Calçava sandálias douradas e tinha na sua mão um bastão comprido, encimado por uma escultura - a cabeça formal, irada e feroz de uma leoa.

 

O olhar dele passou por Anna, aparentemente não a vendo, enquanto se virava lentamente na direcção da entrada do santuário. O tom do canto era cada vez mais alto. Ela teve consciência das cadências pentatónicas da melodia, da subida e descida do som como se ele tivesse origem numa distância inestimável e fosse transportado pelo vento do deserto. Ela conseguia sentir o cheiro estranho, doce e condimentado do incenso. E ele estava em frente da estátua de Ptah, a fazer uma vénia, colocando algo à frente dela, curvando-se perante cada uma das outras estátuas.

 

Petrificada de medo, Anna teve consciência de estar alguém a seu lado junto da porta. A figura deu alguns passos em frente, passando por ela, e dirigiu-se ao centro do santuário. Ela conseguia ver as sombras que se moviam através da câmara, duas pessoas a falar em voz baixa. Por um momento, as duas cenas, as duas eras, pareceram coexistir dentro do mesmo local. As pessoas não pareciam ver o sacerdote que estava ao pé delas. Não davam qualquer sinal de estar ouvir algo fora do normal. Eram elas que pareciam transparentes; fantasmas saídos de tempos longínquos. Naquele estranho local, que ainda tinha o poder de evocar ecos antigos, o sacerdote de Sekhmet a efectuar o seu ritual sagrado é que era real.

 

-Sente-se bem? - Foi o toque no seu braço que levou Anna, com um choque, de volta ao presente. Reconheceu uma das mulheres do seu barco... o marido dela era, segundo se recordava, o vigário reformado, e os seus dez netos tinham-se juntado para lhes oferecerem as férias com que sempre tinham sonhado.

 

Anna cambaleou ligeiramente, levando a mão à cabeça, e a mulher aproximou-se mais, colocando-lhe um braço à volta dos ombros.

 

- Quer que a ajude a sair, minha querida? - perguntou ela. - Aqui dentro está abafado, não está, e aquele cheiro estranho não ajuda.

 

- Cheiro? - Anna ficou a olhar para ela, ainda tonta e confusa.

 

- É parecido com o interior de uma catedral italiana. Incenso. - A mulher sorriu. Célia Greyshot. Era o nome dela. Subitamente, Anna lembrou-se.

 

- Incenso? Como é que pode haver incenso aqui dentro? - A estátua de Ptah estava outra vez sozinha. Não havia quaisquer oferendas aos seus pés. Não havia qualquer sacerdote.

 

- Bem, não sei. - Célia pareceu intrigada e fungou ruidosamente. - Tem razão. Desapareceu. Devia ser o perfume de alguém. Ou talvez eu o tenha imaginado. - Ela estremeceu. - Este é um local muito poderoso, muito estranho, não é?

 

Anna tentou sorrir.

 

- Eu acho que vou lá para fora. Estou a sentir-me um pouco esquisita. Olhou para o relógio que tinha no pulso, semicerrando os olhos na quase obscuridade. Já passava da hora em que ela e Serena tinham ficado de se encontrar com Toby.

 

Serena estava sentada num banco, no exterior. Pôs-se de pé com um salto, consternada, quando Anna e a sua acompanhante apareceram.

 

- Anna, que foi? Que é que se passa? Anna abanou a cabeça.

 

- Demasiado calor e sono a menos, acho eu. Célia teve a amabilidade de tomar conta de mim. - Deixou-se cair num banco. - Não há sinal de Andy? Nem de Toby ou Ben?

 

Serena abanou a cabeça.

 

- Nada. - Ficaram a ver Célia desaparecer no meio da multidão com uma palavra amável e um aceno de mão, para ir à procura do marido.

 

- Eu vi Hatsek! No templo - disse Anna, voltando-se para Serena assim que Célia se encontrou suficientemente longe para não conseguir ouvir. - Ele estava no santuário, ao lado da estátua de Ptah. Alguém disse que Ptah era marido de Sekhmet!

 

Serena ficou pensativa por um momento.

 

- Sentiste-te ficar sem energia?

Anna encolheu os ombros.

- Acho que sim. Quase desmaiei, foi por isso que Célia me ajudou. Mas foi de medo, Serena. Um medo frio, duro, total!

 

Serena acenou novamente com a cabeça.

 

- Enquanto aqui estava, tomei uma decisão, Anna. Eu quero tentar evocar novamente os sacerdotes. Mas de acordo com as minhas condições. Eu acho que, desta vez, conseguirei fazê-lo. Se quiseres, tentaremos em Philae, esta noite, como eu sugeri. E dará tudo certo, eu prometo. - Ela agarrou nas mãos de Anna.

- Então, continuamos à procura de Andy?

 

Anna fechou os olhos, com um ar cansado.

 

- Eu e Toby fizemos duzentos e cinquenta quilómetros para salvar Andy! Temos de ir à procura dele. Temos mesmo. E se ele for mordido pela cobra?

 

- Tens a certeza de que a cobra vai tentar matá-lo?

 

- Foi para isso que Carstairs a chamou: para matar Hassan.

 

- E matou-o? Anna encolheu os ombros.

 

- Não sei. Ainda não li até aí. Acho que não.

 

- Trouxeste o diário contigo?

Anna acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

 

- Não vou voltar a perdê-lo de vista!

 

- Nesse caso, posso sugerir que procuremos um lugar à sombra, tomemos uma bebida e vamos dar-lhe uma vista de olhos? Pode ser que Louisa tenha arranjado uma forma de resolver o assunto. Todo este pânico pode não ter qualquer fundamento.

 

Anna acenou lentamente com a cabeça.

 

- Acho que isso faz sentido.

 

’” - Faz, sim, Anna. E a seguir, se Andy não tiver já aparecido com Toby, Ben ou qualquer outra pessoa, teremos de ir outra vez à procura dele. Anda. Serena pôs-se de pé e estendeu-lhe a mão. - Vamos sair do sol.

 

- Eu escondi-o debaixo das tábuas. - Hassan mostrou a Louisa um painel solto no lado da superestrutura do camarote. - Vês? Aqui. - Ele olhou em volta para se certificar de que não estavam a ser observados, depois tirou de lá o pequeno embrulho e deu-lho. - Que é que vamos fazer com ele? - A nódoa negra na sua cabeça tinha desaparecido e a ferida estava quase sarada.

 

Nessa manhã, o íbis tinha ancorado no meio de vários outros barcos, em frente ao templo de Abu Simbel. Entre os seus vizinhos, ela tinha reconhecido o Escaravelho de Carstairs.

 

Depois de a equipa de salvamento ter trazido Hassan do pavilhão de Kartassi para o íbis, Louisa, sozinha e a tremer de ira, tinha exigido que um membro da tripulação a levasse até ao barco de Carstairs, mas, quando lá chegou, não o encontrou. O reis encolheu os ombros quando ela perguntou por ele.

 

-Ele disse que ia estar fora três, talvez quatro dias. Não disse onde.-O negro rosto núbio manifestava grande preocupação. - Talvez eu possa ajudar a Sitt?

 

Louisa abanou a cabeça.

 

- Não, obrigada. Tenho a certeza de que o verei em breve.

 

A seguir, deu instruções ao barqueiro para que a levasse ao Lotus, onde via David Fielding e as suas duas damas com as suas sombrinhas. Venetia cumprimentou-a com um olhar carrancudo. Nem David nem a sua mulher se mexeram.

 

- Katherine está a descansar. Acho que ela não tem forças para receber visitas - disse Venetia do alto, num tom gélido.

 

Louisa inclinou ligeiramente a cabeça. Era difícil manter uma pose digna, a flutuar num barquinho e a olhar para a outra mulher acima da sua cabeça.

 

- Então, não a vou incomodar. Era consigo ou com o seu irmão que eu queria falar. Sabe onde é que Roger Carstairs foi?

 

O rosto de Venetia corou perceptivelmente.

 

- Não faço a mínima ideia. Eu pensava que quem tinha conhecimento de todos os seus movimentos era a senhora.

 

- Como penso que já devem saber, ele atacou o meu dragomano Hassan e bateu-lhe ferozmente - disse Louisa, levantando o rosto para a outra mulher; as suas palavras ecoaram através da água e foram, presumivelmente, ouvidas com nitidez por David e pela mulher. - Se o vir, quero que torne bem claro que ele já não é bem-vindo a bordo do íbis. Nunca mais quero voltar a vê-lo, e Sir John proibiu-o de voltar a pôr os pés no barco. - Ela sorriu friamente. - Não tenho qualquer dúvida de que essa notícia lhe agrada, uma vez que deixa o campo livre para si, Venetia, mas tenha cuidado. O homem é mau.

 

Enquanto remavam na direcção do íbis, Louisa sentiu os olhos da outra mulher nas suas costas durante todos impulsos dos remos do barqueiro. Quando subiu novamente para bordo, Venetia ainda estava junto do corrimão a olhar para ela.

 

- Sitt Louisa? - Hassan, ligado e a recuperar visivelmente, estava à sua espera no convés. - Não devias ter ido vê-lo. - Ele parecia muito zangado.

 

Louisa encolheu os ombros.

 

- Estás à espera que eu não faça nada? Ele tentou matar-te! É um homem perigoso... - Ela abanou lentamente a cabeça. - De qualquer forma, ele não estava lá. Vai estar ausente durante alguns dias. Ninguém sabe aonde foi. - Ela estendeu a mão e tocou-lhe no braço. - Não precisamos de pensar nele durante algum tempo. Podemos ser felizes. - Sorriu-lhe com um ar de súplica. - Vamos ficar aqui durante alguns dias para eu poder pintar o Templo do Sol. E depois podemos dar muitos mais passeios para eu pintar enquanto navegamos em direcção à segunda catarata. Espero nunca mais voltar a vê-lo.

 

Ele acenou com a cabeça em sinal de concordância.

 

- Com certeza, minha Louisa. Faremos o que tu quiseres.

 

Foi então que ele lhe mostrou o esconderijo do frasco, e agora estava a olhar para ela, com o objecto na mão.

 

- Que é que havemos de fazer com ele?

Louisa encolheu os ombros.

 

- Não haverá um lugar seguro? - perguntou ela, pegando no frasco. Enquanto Carstairs estiver ausente, vou mantê-lo junto dos meus apetrechos de pintura. - Ela suspirou. - Um presente tão precioso, meu amor, e tão perigoso. Tenciono estimá-lo bem o resto da minha vida. Esse homem não vai ficar com ele.

 

- O resto da tua vida? - repetiu Hassan em voz baixa. Olhou para ela. Então, vais levá-lo para Inglaterra contigo?

 

Louisa mordeu o lábio. O futuro era algo em que não queria pensar, mas sabia que em breve não poderia fugir-lhe.

 

Ele prosseguiu, abanando a cabeça como se não conseguisse suportar o conteúdo das palavras que estava a obrigar-se a si próprio a dizer.

 

- Em breve estará demasiado calor para se ficar no Alto Egipto. Sir John seguirá todos os outros visitantes e voltará novamente para norte. Que vais fazer quando regressares ao Cairo ou a Alexandria?

 

Louisa afastou-se dele. Foi até ao fundo do convés, depois voltou para trás.

 

- Tenho de voltar para Inglaterra, Hassan. - Ele hesitou. - Para os meus filhos. Mas como é que eu posso deixar-te? Não sei o que fazer! - A sua voz tremeu subitamente. - Nunca senti tanto amor por um homem! - Fechou os olhos, consciente da traição contida nas suas palavras, consciente de estar quase a chorar.

 

Sentiu um movimento atrás de si e compreendeu subitamente que Augusta tinha aparecido à porta do salão. Tentou desesperadamente readquirir a sua compostura, enquanto Hassan se afastava discretamente alguns passos. - Minha Louisa, não chores -- murmurou ele. - Eu e tu estaremos juntos nos nossos corações, se essa for a vontade de Deus. Esta tarde vou levar-te ao Templo do Sol. Podemos passear pelas colinas atrás dele.-Ele sorriu com tristeza.

- Seremos felizes enquanto pudermos. Eu posso ir contigo até Alexandria, se assim quiseres, e se Sir John o permitir. Depois, no ano que vem, virás novamente ao Egipto e o teu Hassan estará à tua espera.

 

Ela estava a olhar para além do rio e do deserto.

 

- Inshallah! - murmurou ela.

 

- Louisa, minha querida. Não pode estar cá fora sem a sombrinha! exclamou a voz de Augusta que se dirigia a ela. Trazia na mão a sombrinha com franjas de Louisa. Hassan fez uma vénia e afastou-se, ao mesmo tempo que Louisa limpava apressadamente os vestígios das lágrimas.

 

- Eu vi-a regressar há pouco do barco dos Fieldings. Não me disse que ia visitá-los. Se soubesse, teria ido consigo.

 

Louisa conseguiu esboçar um sorriso cansado.

 

- Eu tinha uma mensagem para Lorde Carstairs. Não sabia que ele se tinha ausentado.

 

- Ausentado?! - exclamou Augusta, franzindo o sobrolho. - Como é que ele se podia ter ausentado? Onde é que ele foi?

 

- Eu desconheço a resposta a qualquer dessas perguntas. Pedi ao barqueiro que me levasse ao barco dos Fieldings para saber se ele lá estava, mas Venetia disse que não.

 

Houve algo na expressão dos seus lábios que fez Augusta erguer uma sobrancelha.

 

- Ela não está muito satisfeita com o interesse de Lorde Carstairs em si. Ela tem esperança de ficar com ele.

 

- Sim? Bem, pode ficar com ele à vontade.

 

- Ainda está irredutível, minha querida? Ele seria um óptimo partido. Título. Dinheiro. E é um homem muito atraente.

 

- E detestável.

 

Augusta suspirou. Olhou para a popa do barco onde Hassan conversava com o reis, enquanto fumava um hookah à sombra da vela.

 

-Quando estiver novamente em Inglaterra há-de ver as coisas de um modo diferente - disse ela suavemente. - E muito em breve será altura de regressarmos. - Ela abanava-se enquanto conversava. - Sir John decidiu não ir mais para sul. O calor está a tornar-se insuportável, e David Fielding disse-nos que tomou a mesma decisão. Ele quer chegar a Alexandria antes de Katherine ter a criança. Ela também está a achar o calor intolerável. Independentemente do que Roger faça, os nossos dois barcos viajarão juntos à maior velocidade que conseguirmos. Iniciaremos a viagem para norte ainda esta tarde.

 

Louisa seguiu-a até ao salão.

 

- Mas Hassan vai levar-me a terra esta tarde para eu desenhar o grande templo de Ramsés. - Ela fez um gesto na direcção das quatro figuras gigantes, meio escondidas pela areia, esculpidas na face da rocha que dominava a linha da costa.

 

Augusta suspirou.

 

- Minha querida, já viu tantos templos... Suficientes para uma vida inteira, para a maior parte das pessoas - disse ela com firmeza. - Se quer levar um retrato daqueles montros, certamente que pode desenhá-los daqui! Não precisa de ir a terra.

 

- Mas claro que preciso! - Louisa sentiu-se invadida por uma onda de pânico. O desejo de estar sozinha com Hassan dominava-a.

 

- O que foi, que é que se passa? - Sir John entrou no salão e olhou em volta.

 

- O que é que precisa de fazer, minha querida?

 

- Ela quer ir ver aquele templo esta tarde - respondeu Augusta por ela.

 

- Eu disse-lhe que não podia. Vamos voltar para casa.

 

- Não, não. Temos de ver o templo antes de nos irmos embora. Esta é uma das maravilhas do mundo, Augusta, ou, se não é, devia ser; eu irei a terra com a Louisa. Por que é que não vens também?

 

Augusta estremeceu.

 

- Certamente que não. Eu não visitei nenhum desses lugares pagãos e não tenciono começar agora. Eu fico no íbis.

 

- Muito bem. - Ele acenou com a cabeça em sinal de concordância. - Não demoramos muito. Eu creio que, apesar de haver tanta areia à volta, pode-se entrar e ver a enorme sala dos pilares e o santuário interior dos deuses. Depois disso, voltamos e dizemos ao reis que se prepare para partir assim que pusermos os pés no barco. Segundo creio, a viagem para norte levar-nos-á bastante tempo, mesmo que não paremos ao longo do caminho. É provável que tenhamos o vento contra nós, mas, pelo menos, teremos a corrente a nosso favor. - Ele sorriu para Louisa. - Minha querida, ficou muito séria. O meu plano não lhe agrada?

 

Louisa abanou a cabeça.

 

- Desculpe - respondeu. - Eu imaginei que teria tempo para pintar esta tarde. Não fazia ideia que quisesse vir connosco.

 

Ele franziu o sobrolho.

 

- Não pode fazer esboços rápidos, minha querida? Já o fez antes. Depois terá o tempo que quiser para pintar a bordo no caminho de regresso.

 

- Eu sei que John vai querer voltar muito cedo, Louisa - comentou Augusta, erguendo uma sobrancelha. - Se quiser ficar mais tempo em terra, tenho a certeza de que isso seria possível. Mesmo que o íbis parta rio abaixo, estou certa de que não terá qualquer problema em nos apanhar. As pequenas felucas parecem andar muito mais depressa com pouco vento do que um barco maior. Poderá passar mais algumas horas com... - ela hesitou -... com o seu pincel e a sua musa.

 

Louisa lançou-lhe um olhar de gratidão, mas Augusta não olhou para ela. Tinha-se sentado na cadeira perto da porta aberta e estava a abanar-se vigorosamente.

 

Passaram uma hora no interior do templo a observar as esculturas e a olhar por cima das pilhas de areia na direcção dos cantos ainda por escavar; depois Hassan levou Sir John de volta para o íbis, deixando Louisa sozinha a desenhar as quatro enormes cabeças de Ramsés que espreitavam do seu pálio arenoso. Quando regressou, Hassan vinha sozinho e trazia um saco ao ombro.

 

-Tenho autorização para a acompanhar onde quiser ir, desde que regressemos ao barco antes do crepúsculo. Eles vão partir em breve, mas o vento está contra eles. Apanhá-los-emos com facilidade. - Sorriu. Depois estendeu a mão. Vem. Arruma as tuas pinturas. Quero mostrar-te as colinas atrás do templo.

 

Em breve deixaram de ver o rio e os outros barcos ancorados ao longo da margem. Ali, sob um calor escaldante, estavam completamente sós. Hassan sorriu.

 

- Estive a falar com um dragomano de outro dahabeeya. Ele falou-me numa entrada secreta no outro lado do templo, onde podemos abrigar-nos do calor e estar sozinhos.

 

Ela parou. Estavam os dois ofegantes, e ela sentia a pele pegajosa do calor abrasador.

 

- Esta pode ser a última vez. Hassan abanou a cabeça.

 

- Não, haverá outras vezes. Eles não podem manter-te prisioneira no barco. Quando as coisas acalmarem, eu e tu poderemos voltar a dar passeios.

 

- Mas nos templos não há possibilidade de estarmos sozinhos.

 

- Há sempre possibilidade, minha Louisa. Sempre. Nós criaremos uma possibilidade. - Ele sorriu e pegou-lhe na mão.

 

Não tiveram qualquer dificuldade em encontrar a entrada escura no rochedo de pedra calcária e espreitaram para o interior.

 

- É como o Vale dos Túmulos - murmurou Louisa. As colinas arenosas atrás deles estavam desertas, com excepção de um abutre solitário que circulava lá no alto.

 

Ele sorriu e estendeu-lhe a mão.

 

- Vamos explorar?

 

Penetraram nas sombras e Hassan poisou as coisas no chão. Procurou uma vela no saco.

 

- Queres ir ver o interior?

 

Ela franziu o sobrolho, pouco à vontade, e abanou a cabeça. - Não precisamos de ir mais para dentro, pois não? Vamos ficar aqui, perto da luz.

 

Ele soltou uma gargalhada.

 

- Não me digas que a minha Louisa já está cansada do escuro? Ela acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

 

- Só por agora. Vamos estender o tapete e sentar-nos aqui. Ninguém nos pode ver, a não ser que venha mesmo até à face da rocha, e não existe ninguém por perto.

 

Ele encolheu os ombros e fez o que ela disse, estendendo o tapete e pegando no saco que continha sumo de fruta, água e copos de viagem de cabedal. Depois franziu o sobrolho.

 

- Que é isto, minha Louisa?

 

- É o frasco de perfume. Não sabia onde escondê-lo. Até mesmo o teu lugar no barco parecia demasiado óbvio, e eu não conseguia chegar perto dele sem ser vista.

 

Hassan estremeceu.

 

- Ele foi amaldiçoado três vezes, minha Louisa. Não devias voltar a tocar-lhe.

 

- Eu sei. - O frasquinho estava embrulhado em seda e atado com uma fita. Ela ficou a olhar para ele, na palma da mão de Hassan. - Uma coisa tão pequena e a causar tantos problemas.

 

Atrás deles, na escuridão, algo se moveu. Nenhum deles reparou. Estavam ambos a olhar para o pequeno embrulho.

 

- Foi o teu presente para mim - disse Louisa, abanando a cabeça. - Logo no início.

 

Ele fez um aceno com a cabeça.

 

- Eu amei-te, minha Louisa, desde o primeiro momento em que te vi. Mas tu eras uma dama inglesa e eu sou um mísero guia.

 

- Mísero não, Hassan. Porquê mísero? Ele encolheu os ombros.

 

- É assim que o teu povo vê o meu, minha Louisa. - Ele sorriu. - E talvez, se formos sinceros, o modo como o meu povo vê o teu. Inshallah!

 

As sombras na caverna eram muito escuras. Atrás deles, havia um corredor que acabava por desaparecer no centro da colina.

 

- Independentemente do que os nossos povos possam sentir, foste meu amigo e agora és meu amante. - Ela aproximou-se dele e os seus lábios tocaram-se. Lentamente, deitaram-se no tapete. Com olhos apenas um para o outro, não viram o movimento sinuoso no chão arenoso, cheio de pedras, da caverna, nem ouviram o farfalhar seco de escamas.

 

A cobra era jovem, talvez apenas com um metro e vinte de comprimento, e capaz de atingir uma grande velocidade. Ignorando Louisa, foi direita ao homem que tinha o frasco de perfume na mão.

 

Quando sentiu a súbita dor agonizante provocada pelas presas cheias de veneno, Hassan pôs-se de pé num salto e deu meia volta. O frasco de perfume voou no ar e rolou para a orla do tapete. Por um momento, ficou a olhar para a ferida no braço, perto do ombro, depois soltou um grito de angústia, com o rosto contorcido de dor e pesar ao olhar para Louisa.

 

- Hassan! - Ela vira a cobra durante apenas um segundo. Esta já desaparecera no meio das pedras. - Hassan, o que é que eu posso fazer? - perguntou, agarrando-se a ele. - Diz-me depressa! Que é que eu posso fazer?

 

O rosto dele tinha ficado cinzento, a pele ficou coberta de suores frios. Ele estava a fitá-la com uma expressão subitamente concentrada, os olhos fixos nos dela enquanto respirava com dificuldade com a mão agarrada ao peito.

 

- Louisa! Minha Louisa! - As palavras eram arrastadas à medida que os músculos do lado da boca ficavam tensos e paralisados. Ele caiu de joelhos e depois dobrou-se. Quando tombou de lado no chão da caverna, a pele estava a ficar azul à volta da boca.

 

- Hassan! - Ela baixou os olhos para ele, incrédula.-Hassan, fala comigo!

- Tocou-lhe levemente no ombro com um dedo, mal se atrevendo a respirar.

 

- Hassan, meu amor. Fala comigo... - A sua voz foi-se sumindo enquanto ela se ajoelhava ao lado dele. Hassan caiu para trás no tapete, ofegante, incapaz de se mover. Uma paralisia lenta parecia invadi-lo enquanto olhava para ela através dos olhos cada vez menos luminosos. Depois, entre dois sopros angustiados, o seu coração parou de bater.

 

- Hassan! - O tom do murmúrio de agonia de Louisa foi tão baixo que mal agitou as sombras quentes da caverna.

 

Não soube quanto tempo ficou ali sentada ao pé do corpo dele. O sol moveu-se e deixou de brilhar na entrada da caverna. O calor continuava intenso. Ela chorou um pouco, depois ficou sentada a olhar para o espaço. Não tinha medo que a cobra voltasse. A serva dos deuses tinha feito o seu trabalho e desaparecido novamente nos reinos de onde viera.

 

Por fim, ela moveu-se. Inclinou-se e beijou o pobre rosto torturado e a ferida que já estava a ficar preta e infectada, depois dobrou o tapete por cima do rosto dele e murmurou uma pequena oração. Pôs-se de pé e ficou parada por um momento, dominada pela dor, antes de dar meia volta e voltar, cambaleante, para o sol impiedoso.

 

Mal se recordou da caminhada através das colinas até à frente do grandioso templo, ou da lacrimosa súplica aos outros visitantes que ali encontrou e ao dragomano de outro iate, alto, vestido com uma túnica azul, que tomou conta dela e mandou homens buscar o corpo de Hassan, chamou um barco para a levar ao íbis e convocou mulheres da aldeia para carpir e chorar pelo homem que elas não conheciam. Ela não seria autorizada a voltar a vê-lo, a ir ao seu funeral, que se realizaria antes do anoitecer, nem conhecer sequer o local da sua sepultura.

 

Teve vagamente consciência dos braços de Augusta à sua volta, de Jane Treece a ajudar a despir o vestido manchado, cheio de pó, e de se deitar no camarote escuro. Ouviu a âncora a ser içada, o rangido do massame e o suave ruído da água do rio; depois, aquietada por uma bebida com uma boa dose do láudano de Augusta, adormeceu finalmente.

 

Anna ficou a olhar para Serena. Ambas as mulheres tinham os olhos rasos de lágrimas.

 

- Pobre Louisa. Ela amava-o tanto! - Anna tinha o diário apertado contra o peito.

 

- Achas que os Forresters sabiam que eles eram amantes? - Serena levou a mão à lata de sumo, depois afastou-a, sem lhe tocar.

 

Anna encolheu os ombros.

 

- Eu tenho a sensação de que Augusta desconfiava. Acho que nunca passaria pela cabeça de Sir John que uma coisa dessas pusesse acontecer. Se ao menos eles não tivessem ficado sozinhos. Se ela tivesse desenhado o templo do barco!

 

Deixaram-se ficar sentadas durante um momento, perdidas em pensamentos, depois Serena virou-se para ela.

 

- Acho que é melhor irmos à procura de Andy, não concordas?

 

Anna acenou com a cabeça em sinal afirmativo. Depois abanou violentamente a cabeça.

 

- Eu quero que tudo isto seja uma lenda! - exclamou ela, subitamente. Uma história! Não quero que tenha realmente acontecido.

 

- Aconteceu. E Hassan morreu algures por ali. - Serena acenou com a cabeça na direcção da água brilhante do lago. - As colinas baixas à volta do templo estão agora submersas debaixo daquele enorme mar interior. A sepultura dele, onde quer que estivesse, desapareceu.

 

Uma sombra caiu sobre as mulheres por um momento e elas olharam para cima. Toby e Ornar estava de pé, a olhar para elas.

 

- Estás bem? - perguntou Toby, tocando suavemente no ombro de Anna. Ele tinha visto lágrimas nos seus olhos.

 

- Estávamos a ler sobre a morte de Hassan - respondeu Serena por ela. Toby suspirou.

 

- Então, o filho da mãe matou-o, foi? Pobre Hassan. Eu contei a Ornar o motivo por que pensamos que temos de encontrar urgentemente Andy. - Ele olhou para o outro homem. - Ele está disposto a dar o benefício da dúvida à história, embora não acredite nela, não é verdade?

 

Ornar acenou afirmativamente com a cabeça.

 

- Basta uma pessoa acreditar que está amaldiçoada para a maldição começar a entrar-lhe na cabeça - disse ele. - Eu já disse ao Toby que penso que Andy foi dar a volta para ver as traseiras do templo. Pode-se entrar para ver como a colina artificial foi construída. É interessante. Querem que vos mostre?

 

Seguiram-no na direcção das grandiosas estátuas do templo, onde havia tanta gente como sempre. Ao lado das estátuas, uma pequena entrada ia dar à face da rocha. Ornar fez um gesto na direcção dela.

 

- Se entrarem por ali, penso que o encontrarão. Eu vou procurar por aí, para o caso de ele ter mudado de ideias e ter ido a outro local. Seguir-vos-ei daqui a pouco. - Ele fez uma vénia e desapareceu no meio da multidão.

 

- Ele não acredita que haja qualquer perigo, pois não? - perguntou Anna, seguindo Toby na direcção da entrada.

 

Ele abanou a cabeça.

 

- Claro que não. Ele pensa que somos doidos. Ele diz que aqui não há cobras. As cobras são seres tímidos, nunca viriam para um local destes, cheio de gente. Mas é um bom guia turístico. Está disposto a fazer-nos a vontade. E não quer que nenhum de nós se sinta infeliz, por isso ele esforçar-se-á o melhor que puder. É o que interessa.

 

Mergulharam da luz do sol para a escuridão e penetraram na enorme zona oca por baixo da colina artificial que tinha sido construída para suportar o templo reconstituído. Anna olhou em volta para a enorme abóbada por cima das suas cabeças, por um momento demasiado espantada com aquela estranha justaposição de tecnologia da era espacial com o templo com milhares de anos, que tinha sido colocado no seu centro sem qualquer outro objectivo a não ser ficar ali, imóvel, a olhar.

 

Enquanto subiam as escadas, os seus olhos foram-se habituando à pouca luz depois da clara luz do sol no exterior. Também ali havia muita gente, exposições, uma banca de refrescos e, no topo das escadas, um enorme passadiço.

 

- Não vamos conseguir encontrá-lo - disse Anna, olhando freneticamente em volta. - Eu consigo ver os rostos cá dentro, mas eles são demasiados.

 

- Havemos de o encontrar - Serena foi enfática. - Juro que havemos. Toby estava à frente delas, semicerrando os olhos enquanto olhava em volta das plataformas de observação. Abanou a cabeça.

 

- Acho que ele não está aqui. Provavelmente, já saiu. Ornar disse que ficou combinado encontrarem-se todos daqui a cerca de uma hora para voltarem para o autocarro.

 

- Vai acontecer aqui. Em Abu Simbel. Eu sei que vai. - Subitamente, Ana ficou desvairada. - Temos de o encontrar. - Voltou-se e começou a empurrar na direcção da entrada. - Temos mesmo! Andy! - O seu grito perdeu-se nos enormes espaços à volta deles.

 

- Deixa-a! - disse Toby a Serena. - Eu acho que ele não está aqui, mas é melhor sermos sistemáticos.

 

Mas Serena já tinha dado meia volta para ir atrás de Anna. Ele deixou-se ficar onde estava, de sobrolho franzido. Seguidamente, virou-se para examinar mais atentamente os rostos na multidão.

 

Anna estava a abrir caminho para passar a entrada, olhando com cada vez mais ansiedade à sua volta. Não se conseguia libertar da imagem de Hassan deitado no chão com o rosto contorcido pela rápida passagem do veneno da cobra, se é que era uma cobra, a deslizar silenciosamente na direcção dos amantes enquanto estes se beijavam na sombra da caverna; do desespero e da dor de Louisa ao afastar-se do corpo do seu amado, sabendo que nunca mais o veria.

 

Por mais zangada com Andy que ela estivesse, não podia desejar que isso lhe acontecesse. A sua própria ira estava a contribuir para que se sentisse culpada. Se lhe acontecesse alguma coisa, seria porque ele lhe tinha tirado o frasco; se ela não o tivesse trazido para o Egipto, se não tivesse falado sobre ele, se não lhe tivesse mostrado o diário, lido alguns excertos para ele, se não o tivesse, de certo modo, encorajado, ele não estaria agora naquela situação.

 

Virou cegamente para o único lugar onde não tinha procurado - o templo mais pequeno que Ramsés construíra para a sua mulher, Nefertari. Havia lá muito menos gente do que no Templo do Sol.

 

Um friso guardava a porta do templo. Um friso de cobras. Anna parou e ficou a olhar para ele. Sentiu um nó na garganta. Por momentos, hesitou, tentando dominar-se, depois mergulhou na escuridão para além da entrada quadrada.

 

Quando os seus olhos se habituaram à obscuridade no interior, a primeira pessoa que viu foi Andy, a observar um dos capitéis dos pilares, no extremo mais próximo do pronaos. Ficou a olhar para ele, sem acreditar no que os seus olhos viam, depois, quase de um modo hesitante, aproximou-se e tocou-lhe no braço. Serena, alguns passos atrás dela, parou e ficou a observar.

 

- Andy?

 

Ele deu um salto.

 

- Anna! Que é que está a fazer aqui? Não veio no autocarro!

Ela abanou a cabeça.

 

- Não me estava a sentir bem. Vim mais tarde, com Toby, num táxi. Subitamente, ela não teve a certeza do que dizer. Viu que Serena tinha parado ao lado dela e olhou-a com um ar de impotência. - Eu preciso do frasco de perfume, Andy. - Disse ela finalmente. - Tem que mo devolver. Agora.

 

Ele inclinou ligeiramente a cabeça.

 

- Que frasco de perfume?

 

- Oh, por favor, Andy. Não brinque comigo - disse ela, erguendo a mão. Ele encolheu os ombros. O seu rosto tinha uma expressão fria.

 

- Eu deixei-o num sítio seguro. No barco. Não pensa que o trouxe comigo, pois não?

 

Ela sentiu-se extremamente aliviada.

 

- Em que lugar do barco é que o deixou?

 

- Dei-o a Ornar, que o pôs num local seguro.

Ela abanou a cabeça.

 

- Bem, não está no cofre do barco. Eu procurei.

 

Os olhos deles estreitaram-se, e ela viu o ângulo do seu maxilar endurecer.

 

- Procurou? Então, ficou lá para bisbilhotar.

 

- Andy, tive de o fazer. - Ela não conseguia acreditar que estava a justificar-se perante ele. - Tinha levado duas coisas minhas. Duas coisas que não tinha o direito de me tirar. - Ela olhou-o resolutamente nos olhos. -

 

Encontrei o diário. - Ela fez uma pausa. A expressão dele não se alterou.

 

- Estava no cofre, num envelope com o seu nome, mas o frasco não estava lá, e eu quero-o de volta.

 

- Muito bem. Por conseguinte, eu não o deixei no cofre.

 

- Então, onde é que ele está?

 

- Noutro sítio, no meu camarote. Está perfeitamente seguro.

 

- Não está no seu camarote. Eu também procurei lá.

O rosto dele tornou-se sombrio.

 

- Não tinha o direito de fazer isso.

 

- E o Andy não tinha o direito de roubar as minhas coisas. - Ela deu um passo em frente e ficou surpreendida ao vê-lo recuar, numa atitude defensiva.

- Foi um roubo, Andy. - Ela fez-lhe ver que estava em vantagem. - Eu perguntei-lhe se tinha o diário e disse-me que não. Como várias vezes me disse, ele vale muito dinheiro.

 

- Espere aí! - interrompeu ele. - Eu levei-o para ter a certeza de que ele estava em segurança. Tenha cuidado com as acusações. - Uma mancha vermelha tinha surgido por cima das maçãs do rosto.

 

- Nesse caso, devia ter-me dito o que tinha feito com ele e não acusar Toby.

 

- Ela sentia a sua própria ira a aumentar.

 

- Ah, Toby. O herói do táxi através do deserto! - Ele cruzou os braços. Bem, eu tinha razão a respeito dele!

 

Houve um minuto de silêncio. Um grupo de turistas italianos passou por eles e desapareceu nas profundezas do templo. Ouviu-se uma torrente de conversas excitadas e um uivo de risos enquanto eles penetravam no interior da enorme sala e paravam, agrupados, em volta de um pilar distante.

 

- Toby já pagou pelo que fez no passado.

 

- Ah, ele já pagou, Anna? Foi isso que lhe contou? - Andy olhou para Serena. - Bem, parece que não aprendeu com o passado. Como não veio no autocarro, eu fiquei sentado ao lado de um sujeito chamado Donald Denton. É um médico reformado que vivia perto de Toby. Ele recordou-se da história toda. Toby matou um homem que, segundo ele afirmava no tribunal, tinha violado a mulher dele, mas, na realidade, a mulher e esse fulano tinham um caso e ela estava prestes a fugir com ele! E Toby também matou a mulher. - O seu rosto suavizou-se. - Lamento muito, Anna. Eu sei que vai ficar decepcionada...

 

- Não é verdade! Ela suicidou-se.

- Foi isso que ele lhe contou?

 

- Ele contou-me tudo, sim.

 

- E acreditou, claro - disse ele com um suspiro. - Suponho que, nesse caso, não posso fazê-la mudar de ideias. - Ele enfiou as mãos nos bolsos e pôs-se a olhar para a enorme cabeça de vaca da deusa Hathor por cima das suas cabeças.

 

- Gosta mesmo dele, não gosta? - Ele olhou para Serena. - E suponho que tu também? Nunca hei-de compreender as mulheres! - Ele sorriu. Tinha-se descontraído, obviamente confiante de que o diário e o frasco tinham sido esquecidos.

 

- Por que é que não fala com o próprio Toby? Ele anda algures por aí. Anna fez um gesto na direcção da entrada. - Eu gostaria de saber o que é que ele tem a dizer sobre as suas acusações.

 

- Oh, não. Não nos vai fazer ter outra sessão de boxe, minha querida. Ele olhou subitamente para o relógio. - De qualquer modo, o autocarro vai partir dentro de pouco tempo. Desconfio que são horas de começarmos a dirigir-nos a ele. - E passou por ela, avançando para a entrada.

 

Anna olhou para Serena.

 

- Eu acho que ele não tem o frasco com ele. Afinal de contas, estava bem. Serena acenou afirmativamente com a cabeça.

 

- Com que então, Andy continua vivo para enfrentar mais uma batalha disse ela, sucintamente. - De várias formas.

 

Anna encolheu os ombros.

 

- Eu não acredito nele. Não a respeito de Toby.

- Óptimo. Ele é um mentiroso congénito. - Serena enfiou a mão no braço de Anna. - Anda. Volta connosco no autocarro.

 

Anna hesitou.

 

- Nós viemos de automóvel. Toby mandou o motorista esperar.

Serena franziu o nariz.

 

- Este ex-presidiário deve ser muito rico!

 

- Acho que não. - Foi a vez de Anna corar. - Ele fê-lo por mim. Ele gosta de mim. Podes ver como ele gosta.

 

Saíram do templo e olharam em redor. Não havia qualquer sinal de Andy. Ornar estava a cerca de cinquenta metros com um grupo de pessoas à sua volta. Ele viu-as emergir para a luz do Sol e ergueu a mão para as chamar.

 

- Temos de partir em breve, pessoal. O autocarro está à espera. - Sorriu para Anna. - Eu vi o Andy. Ele diz que a encontrou.

 

Anna acenou com a cabeça.

 

- Encontrei, sim.

 

- E não havia cobra nenhuma?

Ela abanou a cabeça.

 

- Óptimo! - O sorriso de Ornar tornou-se ainda mais rasgado. - Agora por favor, juntemo-nos todos e vamo-nos embora.

 

Anna estava a olhar em volta.

 

- Serena? Onde é que Toby foi?

 

- Ele ficou na colina quando fomos procurar no templo de Nefertari. Serena fez uma pequena careta. - Tenho a certeza de que nos vai encontrar.

 

- Eu não sei o que fazer. Ele deve estar à espera que eu regresse com ele. Tenho de encontrar o automóvel.

 

- Bem, isso não vai ser problema. Presumivelmente, estará no parque de estacionamento, perto do autocarro. - Serena suspirou. - Está bem, vamos à procura dele e depois vais ter de escolher, Anna. Eu também gosto de Toby. Confio nele, e nunca confiaria em Andy, mas tem cuidado. Afinal de contas, nós não sabemos nada a respeito dele, tal como não sabemos realmente nada a respeito uma da outra

 

As duas mulheres olharam uma para a outra durante um momento. Anna sorriu e, encolhendo os ombros numa atitude de impotência, deu meia volta para seguir Ornar.

 

Andy estava à espera deles no parque de estacionamento com um enorme sorriso no rosto.

 

- Bem, vejam lá se adivinham o que acabou de acontecer aqui.

 

Anna franziu o sobrolho. Ele estava a olhar para ela. Quase, desconfiou ela, como se estivesse a regozijar-se com a desgraça alheia. Sem saber porquê, o coração caiu-lhe aos pés.

 

- Então? Que é que aconteceu?

 

- O seu amigo, Toby. A Polícia esteve aqui. Levaram-no e o carro desapareceu. Vai ter de se contentar em viajar com a gentinha do autocarro - disse ele, fazendo uma pequena vénia.

 

- Toby foi preso! - repetiu Anna. Olhou-o fixamente. - Está a mentir!

 

- Quem lhe dera! Não, não estou a mentir. - Ele parou e o seu rosto ficou sério. - Oh, meu Deus, estou a ver que foi um grande choque. Ele enganou-a, não foi? Enganou-nos a todos. A história da pintura devia ser uma capa para qualquer coisa. Para o fazer parecer respeitável.

 

- Mas o que é que ele terá feito? Não compreendo. Ele deixou-me alguma mensagem?

 

Andy encolheu os ombros.

 

- Sem dúvida que saberemos tudo muito em breve!

 

Serena tocou no braço de Anna.

- Vamos para o autocarro - disse ela. - Não há nada a fazer aqui. Andy estava a observar atentamente o rosto de Anna.

 

- Não pense mais nele, Anna. Agradeça a Deus não ter ficado envolvida na sua teia. - Ele ergueu uma mão, num gesto de cumprimento, quando viu Joe aproximar-se, e, dando meia volta, subiu para o autocarro passando por Ornar que estava à porta a contar as pessoas.

 

Anna sentou-se na parte de trás com Serena, sentindo-se demasiado chocada e infeliz para falar enquanto as portas se fechavam e o autocarro saía do parque de estacionamento e voltava para a estrada poeirenta. Ao fim de alguns minutos, tinham saído da cidade de tijolos cinzentos de Abu Simbel e encontravam-se no deserto, isolados do calor escaldante pelo ar condicionado, pelas persianas das janelas e pela voz suave de uma cantora egípcia na aparelhagem do autocarro.

 

Pararam duas vezes no caminho de regresso. Uma para ver uma miragem particularmente espectacular que todos, com excepção de Anna, que não trouxera a máquina consigo, fotografaram, ofegantes no abrasador calor seco do início da tarde, e outra para ver uma fila de camelos a sair do deserto. Dessa vez, ela deixou-se ficar no autocarro, vendo os pobres animais a serem carregados para cima de camiões e espancados até se ajoelharem debaixo das pesadas redes de corda que os manteriam no seus lugares, perguntando a si própria se as poucas fotografias de jovens audaciosos a pinotear nos seus camelos de corrida compensavam o desespero nos olhos daqueles orgulhosos animais a caminho dos mercados de Assuão.

 

- Estás bem? - Serena voltou a subir para o autocarro e sentou-se ao lado dela.

 

Ela acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

 

- Acho que já estou farta do Egipto. Como férias destinadas a animar-me e a restaurar a minha segurança e auto-estima, falharam completamente.

 

Serena recostou-se no banco, a olhar para o tecto.

 

- Toby significa muito para ti, não significa?

 

- Significa.

 

-Lamento muito. Andy é um sacana. Aposto que ele está enganado. Eu vou verificar tudo o que ele te disse.

 

Por detrás dos óculos escuros, havia lágrimas nos olhos de Anna.

 

- Eu não compreendo nada disto - disse ela, suspirando profundamente.

- Mas deve haver alguma coisa que possamos fazer para o ajudar.

 

Era como regressar a casa. Os membros da tripulação, com os seus sorrisos cordiais, estavam de volta com as toalhas perfumadas para os refrescar e limpar o pó do deserto, e a limonada morna acabada de fazer.

 

Anna estava sentada na apinhada zona de recepção a beber o seu refresco quando se encontrou com Andy, que se dirigiu a ela e colocou as mãos levemente nos seus ombros.

 

- Anna, desculpe. A forma brusca como lhe dei a notícia foi uma grande estupidez da minha parte. E perdoa-me por ter tirado o diário? Nunca tive a intenção de a preocupar. Fui extremamente insensível. Venha ter comigo ao bar depois de se ter refrescado para tomarmos uma bebida. Por favor. - Os seus olhos, fixos nos dela, eram sinceros e muito amáveis.

 

- Andy, eu estou muito cansada. Só me apetece descansar...

 

- E vai descansar. Depois de comermos. Vamos almoçar, depois podemos descansar e, quando anoitecer, estaremos prontos para ir a Philae ver o espectáculo de luz e som. Por favor, Anna. Eu quero que fiquemos amigos. - Ele fez uma pausa e olhou, com um ar de interrogação, para Ornar, que tinha parado ao lado deles.

 

- O seu saco, Andy. Deixou-o no autocarro. - Ornar deu-lhe uma palmada nas costas. - Felizmente que o motorista o viu. - Entregou-lhe o saco e prosseguiu o seu caminho, à procura do dono de um outro item de bagagem que tinha sido deixado no autocarro.

 

Andy colocou automaticamente o saco ao ombro.

 

- Pode ser daqui a meia hora? No bar? - perguntou ele a Anna. - Por favor.

 

Ela estava a olhar para o saco. Quando ele se levantou, o bolso lateral tinha-se aberto e ela tinha visto um pedaço de seda escarlate. Pousando o copo de limonada com força em cima do balcão da recepção, ela estendeu a mão e agarrou na alça larga de lona que ele tinha pendurado ao ombro, puxando-a para si.

 

- É estranho, esse lenço é muito parecido com o meu. - Antes de ele conseguir afastar-se, ela tinha tirado o pequeno embrulho do bolso, desembrulhara-o e pegara no frasco de perfume. - Teve-o sempre consigo o tempo todo? - Ela cuspiu-lhe as palavras. - Tinha o frasco no autocarro! Compreende o que isso podia ter significado? Por que é que me mentiu, Andy? - Ela abanou o frasco debaixo do nariz dele. - Por que é que os homens têm sempre que mentir?

 

O meu esconderijo foi aberto, o meu esconderijo foi revelado.

 

Existe um comércio de tudo quanto é antigo. Vem gente de longe comprar tudo o que é da época dos túmulos. O frasco atravessa as águas do Nilo numa caixa de fragmentos de barro, contas e amuletos, e é levado a um comerciante de Luxor. Moedas mudam de mãos.

 

Durante meses, a caixa permanece intacta num Annazém; quando é aberta, o comerciante pega imediatamente no frasco. Não reparara nele antes, e agora sente um nó de excitação na garganta. O vidro do início do Novo Reino é raro. Ele leva-o até à sua mesa de trabalho e pega na lupa.

 

A rolha está bem encaixada e selada. Pega numa faca para a destapar, hesita e muda de ideias. Em vez disso, envia uma mensagem a um amigo.

 

A casa ficou fria, o ar cintila com relâmpagos do deserto e um brilho irreal percorre as prateleiras, e a. mesa.

 

O recém-chegado, com a cabeça e os ombros embrulhados num xaile branco, toca no peito, na boca e na testa num gesto de saudação e avança para a mesa. É venerável e culto, e estudou as artes mágicas. Permanece em silêncio a olhar para o pequeno recipiente de vidro. O silêncio alonga-se. Lá fora, o sol move-se ao longo do céu e entra pelas janelas com gelosias, projectando sombras no chão. O homem ergue o olhar, com o rosto branco.’ ...

 

- Existe poder neste frasco sagrado. Um poder incalculável. E está guardado por sacerdotes antigos que nunca o abandonaram. – Ele abana a cabeça. - Traz-me papel e tinta para eu poder anotar os seus desejos. Aqueles que tocaram neste objecto com mãos sacrílegas pagaram com o sangue das suas vidas.

Anna estava sentada na cama, no seu camarote, quando Serena bateu à porta e a abriu.

 

- Estás bem?

 

Anna acenou com a cabeça em sinal afirmativo. O frasco estava ao lado dela, em cima da colcha.

 

- Falei com Ornar. - Serena sentou-se e, pegando nele, virou-o suavemente nas mãos várias vezes. - Ele ficou um pouco surpreendido com a tua explosão há bocado e eu tentei explicar. - Ela encolheu os ombros. - Ele não sabe nada sobre a prisão de Toby. Ficou espantado quando lhe contei. Ele falou imediatamente com o comandante porque o barco ficou sob a sua responsabilidade enquanto Ornar esteve ausente, e ele disse que não viera ninguém à procura de Toby. E o passaporte dele ainda está no cofre.

 

- Que é que isso significa? Serena ergueu uma sobrancelha.

 

- Significa que existe uma forte possibilidade de Andy estar a mentir, como eu desconfiava. - Ela pegou no frasco. - É estranho Louisa ter guardado isto depois da morte de Hassan. Eu pensaria que ela havia de querer ver-se livre dele.

 

Anna abanou a cabeça. Pegou no frasco e acariciou-o suavemente com o dedo mindinho.

 

- É tão pequeno e causou tanta infelicidade. Suponho que o guardou porque Hassan lho tinha oferecido. Será que ela voltou a ver o Carstairs?

 

Serena fez um gesto na direcção do saco de Anna.

 

- Acho que estou tão viciada nesta história como tu. Não temos tempo de ler um pouco antes do almoço? - perguntou ela num tom esperançoso. - E isso far-te-ia deixar de pensar em Toby...

 

Sir John bateu à porta do camarote de Louisa e abriu-a.

 

- Como se sente, minha querida? - Ela estava deitada no divã, embrulhada num robe de seda. - Doía-lhe a cabeça e sentia a pele quente como fogo. - Não podemos persuadi-la a comer um pouco? Mohammed está a fazer petiscos cada vez mais maravilhosos para si. - Ele estava a olhar para o prato intacto ao lado dela.

 

Louisa virou-se para ele e obrigou-se a si própria a esboçar um sorriso cansado.

 

- Desculpe. Não tenho fome.

 

- Está bem. Vou dizer-lhe que continue a tentar. - Ele acenou com a cabeça.

- Um grupo de núbios veio ao barco esta manhã, Louisa. Eles trouxeram as suas tintas; as coisas que deixou na caverna. - Olhou subitamente para os pés. Esta gente é muito honesta. Recompensei-os bem. - Voltou a olhar para ela. Eu achei que ia querer as suas coisas. - Dirigiu-se à porta, mexeu em algo no exterior e voltou com o saco dela. - Quer que o deixe aqui? - Ficou à espera de uma indicação sobre o que ela queria. Não obtendo resposta, encolheu os ombros e colocou o saco junto da parede, debaixo da pequena mesa.

 

Após algum tempo, ele foi-se embora, fechando a porta suavemente atrás de si. Quando voltou, estava escuro. Tinham atracado acima da catarata, perto de Philae. Lá fora, o rio brilhava à luz do luar.

 

- Louisa. Lorde Carstairs está no salão. Julgo que ele veio até Assuão no barco a vapor. Está suficientemente bem para o receber?

 

Ela sentou-se lentamente, tirando o cabelo dos olhos.

 

- Ele está cá? Neste barco? Eu pensava que o tivesse proibido de voltar a pôr cá os pés!

 

Sir John encolheu os ombros, pouco à vontade.

 

- Ele soube o que aconteceu e quer vê-la.

 

Por um momento, ela ficou imóvel, como se estivesse a ganhar forças, depois pôs-se de pé.

 

- Eu vou ter com ele ao salão.

 

- Quer que chame Treece para ajudá-la a vestir-se, minha querida?

 

- Não, não há necessidade. - Ela passou por ele, empurrando-o para o lado. - O que eu tenho a dizer a Roger Carstairs não exige um trajo formal.

 

Quando Louisa irrompeu no salão, ele estava sentado a beber um refresco com Augusta. Viraram-se os dois para ela, e ela viu os olhos de Carstairs ficarem muito abertos. Com o seu robe azul-escuro, o cabelo despenteado, o rosto branco e manchado de lágrimas, ela devia ter realmente um aspecto muito estranho.

 

- Por favor, deixe-nos a sós, Augusta! - O seu pedido foi tão peremptório que Augusta se pôs de pé sem qualquer comentário e desapareceu no convés. O salão ficou silencioso.

 

Louisa ficou de pé em frente de Carstairs, com os olhos fixos no seu rosto.

 

- Então, meu senhor, está satisfeito? Ele fitou-a com frieza.

 

- O que aconteceu foi lastimável. A senhora teve o meio de o impedir.

 

- Por conseguinte, a culpa foi minha? - A voz dela foi muito calma.

 

- De facto, foi. - Ele cruzou os braços. - Eu não permito que as pessoas me contrariem. E agora, para evitar mais tragédias, sugiro que me dê o frasco sagrado.

 

- Nunca! - Os olhos dela chamejaram. - Nunca o há-de ter. Todos os deuses do Egipto viram o que fez, Roger Carstairs, e eles amaldiçoá-lo-ão por isso O sacerdote que guarda o frasco, o sacerdote de ísis, despreza-o! - A sua voz tinha subido de tom e tornara-se um lamento.

 

Carstairs sorriu desdenhosamente. Ele não tinha recuado um centímetro.

 

- ísis não é a deusa do amor. Está a julgá-la mal, minha querida Louisa. Ela é a deusa da magia e a sua serva, a minha serva, é a cobra. - Ele sorriu. - Onde está o frasco?

 

- Eu já não o tenho comigo. Ele perdeu-se na caverna onde Hassan morreu e ali ficará, enterrado na areia e guardado pela sua cobra! - Subitamente, ela soltou uma gargalhada, um som baixo e amargo que o fez parar, como nada do que ela dissera anteriormente tinha feito. - Se for à procura dele, espero que a cobra de ísis o mate com a mesma determinação com que matou Hassan!

 

Ele descruzou os braços e fez uma vénia rápida.

 

- Não me tinha ocorrido que talvez o tivesse deixado em Abu Simbel. Para seu próprio bem, eu espero que ele esteja em segurança!

 

Ele dirigiu-se para porta, mas ela barrou-lhe o caminho.

 

- Não volte a pôr os pés neste barco. Nunca mais! Os Forresters apoiam-me a este respeito; e não mostre o seu rosto em qualquer lugar onde as pessoas decentes vão. Eu vou dizer a toda a gente como é maléfico. Em Luxor. No Cairo. Em Alexandria. Em Paris. Em Londres. Eu certificar-me-ei de que o nome Carstairs é injuriado em todo o mundo!

 

Por um momento, ele franziu o sobrolho, surpreendido com a força das palavras dela, depois sorriu.

 

- Ninguém acreditará em si.

 

- Oh, acreditarão, sim. Certificar-me-ei disso. - Ela deu meia volta, afastou-se e ficou imóvel, de costas para ele. Durante um momento, ele hesitou, depois ela ouviu-o sair do salão e dirigir-se ao convés soalheiro. No silêncio que se seguiu, ouviu a voz de Augusta claramente através do tombadilho. Esta tinha, obviamente, ouvido tudo o que Louisa dissera.

 

- Por favor, não volte cá, meu senhor. Louisa tem razão. O senhor já não é bem-vindo entre pessoas decentes!

 

Ele não respondeu. Louisa dirigiu-se para a porta do salão a tempo de o ver saltar para o bote em que um dos seus criados núbios o tinha trazido ao íbis. O seu próprio barco estava atracado no outro extremo do rio, perto do dos Fieldings. Ela sorriu ironicamente. Havia uma família que ainda o receberia bem.

 

Saiu para a luz do Sol, consciente dos olhares de simpatia do reis e dos outros membros da tripulação. Augusta estava a olhar, através do rio, para as costas do visitante que se retirava.

 

- Homem detestável! - disse ela.

 

Louisa acenou com a cabeça. Sentia-se grata a Augusta por compreender, por lhe dar finalmente o benefício da dúvida. A história que lhe contara estava para além de toda a credibilidade normal.

 

- Sir John apoiar-nos-á na proibição de ele vir a bordo - disse Augusta suavemente.

 

- Obrigada.

Augusta olhou para ela.

 

- Ele foi visitar David Fielding. Não tenho qualquer dúvida de que os informará sobre os nossos sentimentos.

 

- Eles gostam dele.

 

- Eles gostam do título dele, minha querida. Quando espreitarem por baixo do título e descobrirem a criatura detestável que ali se esconde, tenho a certeza de que irão concordar connosco. - Ela semicerrou os olhos por causa do sol. Olha! Ele mudou de ideias e vai directamente para o seu barco, e já estão a preparar-se para navegar.

 

Louisa sorriu.

 

- Ele vai remexer a areia de Abu Simbel, à procura do frasco de perfume que lá deixei.

 

Augusta ergueu uma sobrancelha.

 

- Que homem ridículo! Ele acredita realmente em toda esta magia, não acredita?

 

- É verdade.-Louisa acenou afirmativamente, com tristeza. - Ele acredita realmente nela.

 

Deu meia volta e dirigiu-se lentamente ao seu camarote. Pegou na escova do cabelo e estava a escovar o cabelo comprido, todo emaranhado, quando os seus olhos recaíram sobre o saco que estava no chão, debaixo da mesa, onde Sir John o deixara. Fez uma pausa e, franzindo o sobrolho, pousou a escova. Baixou-se, agarrou no saco e despejou-o em cima da cama, pegando nos cantos e sacudindo-o, de modo que uma cascata de lápis e blocos de desenho caísse em cima da colcha. Estava lá a sua pequena caixa de aguarelas, o recipiente para a água e a garrafa, embora não soubesse bem por que é que os levara para um local onde as tintas secavam na ponta do pincel antes de conseguir levá-lo ao papel. Havia o carvão para desenhar, embrulhado em papel de seda, uma borracha, uma faquinha para afiar os lápis e, debaixo de tudo aquilo, o embrulho de seda atado com fita que era o frasco de perfume dos sacerdotes. Pegou nele, segurou-o na mão durante longos minutos, depois começou a chorar baixinho.

 

- Então, foi assim que ele voltou. - Serena abanou a cabeça. - E Carstairs já tinha partido. E foi injuriado, claro. O seu nome ainda é conhecido pelos seus actos. Eu acho que ele nunca regressou a Inglaterra.

 

- E nunca conseguiu obter o frasco sagrado. - Anna estava a olhar para ele. - Acho que devia atirá-lo ao Nilo.

 

Serena esboçou um esgar.

 

- Não! Não, não faças isso. Eu quero fazer outro ritual. Falar com os sacerdotes. - Pôs-se de pé, foi até à janela e ficou a olhar para o rio. - O frasco pertencia-lhes, Anna. Ou, pelo menos, a um deles. Eles não descansarão até tudo isto estar resolvido. Temos de descobrir o que eles querem que façamos. Por favor, deixa-me fazer mais uma tentativa.

 

- E a cobra?

 

- A cobra não nos fará mal.

 

- Como é que sabes? Como é que sabes que Carstairs não ficou tão furioso que deu ordens para ela matar qualquer pessoa que se aproximasse do frasco?

 

- Não sabemos. Mas, com as provas que temos, parece que não o fez. Afinal de contas, ninguém morreu. Podemos fazê-lo, Anna? Depois do almoço... enquanto as pessoas estiverem a dormir a sesta. Podemos voltar a evocar os sacerdotes? Eu quero falar com Anhotep.

 

Anna ficou de boca aberta.

 

- Pensei que fôssemos esperar até logo à noite, em Philae. - Ela sentiu um arrepio.

 

Serena acenou a cabeça em sinal de concordância.

 

- Eu ia esperar, mas não há motivo para isso. Por favor, Anna. Na última vez quase resultou. E tenho a sensação de que agora vai funcionar. - Ela acenou com a cabeça excitadamente. - Mas primeiro temos de descobrir o que se passa com a Charley. Podemos pedir a Ornar que averigúe o que lhe aconteceu?

 

Ornar telefonou para o hotel do seu telemóvel. Ele ouviu e acenou com a cabeça, falou rapidamente e, por fim, cortou a ligação.

 

- Ela está de regresso ao barco. Disseram que ela descansou, que se está a sentir bem e que vão metê-la num táxi. - Olhou para elas. - Disseram que a conta foi paga por Toby Hayward e que ele esteve lá esta tarde.

 

- Ele esteve lá? - Anna olhou-o, espantada. - Ele esteve no Old Cataract Hotel?

 

Ornar acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

 

- E ele viu a Charley?

 

- Falou com ela e pagou a conta.

- Então, onde é que ele está?

Ornar encolheu os ombros.

 

Dois minutos depois, Anna e Serena estavam à porta do camarote de Toby. Anna bateu à porta. Não houve resposta, por isso ela levou a mão à maçaneta. A porta abriu-se e elas espreitaram para o interior. O camarote parecia perfeitamente normal, talvez mais arrumado do que quando Anna o vira. Os quadros e as tintas estavam bem arrumadas, a bagagem ainda lá estava.

 

Serena entrou no camarote atrás dela.

 

- Pelos vistos, ele não se foi embora.

 

- Por que é que ele havia de se ir embora? Para onde é que ele iria? Nós estávamos a planear regressar juntos. - Anna mordeu o lábio com um ar infeliz.

- Se ele esteve no hotel, então, não podia ter sido preso. - Ela ficou a olhar em volta para o toucador, a cama bem feita, os toalheiros na casa de banho com as toalhas brancas limpas. - Ornar disse que o passaporte dele ainda cá está - disse ela num tom melancólico, sentando-se na cama.

 

- Talvez a Charley saiba onde ele está - sugeriu Serena.

 

Houve um som no corredor e ergueram ambas o olhar quando Andy apareceu à porta aberta.

 

- Horas de almoço, minhas senhoras.

 

- Suponho que não ouviu dizer onde está Toby, pois não? - Anna tentou refrear a hostilidade que sentia crescer dentro de si.

 

Ele abanou a cabeça.

 

- Presumivelmente, ainda está nas mãos da Polícia.

 

- Ele não está preso, Andy, ele está em Assuão. Ou pelo menos estava, há pouco tempo.

 

Por um momento, Andy pareceu surpreendido, depois refez-se rapidamente. Passava o peso do corpo de um pé para o outro.

 

- Tudo isto me ultrapassa. Por que é que não vamos almoçar e deixamos de nos preocupar com Toby Hayward? - Ele afastou-se rapidamente na direcção da sala de jantar.

 

A refeição foi muito calma, e Ibrahim e Ali, como se pressentissem como todos estavam exaustos depois da longa viagem através do deserto, serviram-na com o mínimo de demora. Só cerca de quarenta minutos mais tarde é que Anna e Serena, depois de se terem certificado sub-repticiamente de que Andy, depois de muito bocejar e espreguiçar, se tinha retirado para o seu camarote, subiram para o de Anna.

 

Desta vez, os preparativos foram muito mais rápidos. Anna prendeu o xaile por cima das portadas das janelas enquanto Serena preparava o altar. As velas, o incenso e a estatueta foram colocados no seu lugar, depois Anna pegou no frasco de perfume, desembrulhou-o e colocou-o reverentemente ao pé do sistro de Serena.

 

- Pronta? - murmurou ela. Tinha as mãos a tremer.

 

Serena acenou afirmativamente com a cabeça. Tirou a caixa de fósforos do saco e acendeu o primeiro cone de incenso e depois as velas.

 

Atrás dela, Anna aproximou-se da cama e, puxando as pernas para debaixo de si, sentou-se o mais longe que conseguiu de Serena no espaço apertado do camarote. Estava a observá-la, ofegante, quando Serena se voltou para ela.

 

- Aconteça o que acontecer, não tentes interferir. Não tentes parar nada e, se eu entrar em transe, não me acordes. Pode ser perigoso para mim. Mantém-te apenas em segurança e observa.

 

À medida que a primeira entoação em voz baixa começou a encher o quarto, subindo e descendo ao acompanhamento do chocalhar do sistro, Anna sentiu o ambiente ficar perceptivelmente mais tenso. Os seus olhos estavam fixos no frasco. Uma pálida luz ondulante recaía sobre ele, oriunda das velas, entrelaçada em arcos bruxuleantes. Do incenso, uma espiral de fumo erguia-se na direcção do tecto, enrolando-se preguiçosamente e dispersando-se na escuridão. O frasco estava à frente da estátua de ísis, com as suas cores garridas esbatidas e iridescentes à luz das velas. Quando o reflexo da chama caiu sobre o vidro, o que havia no interior do frasco pareceu mover-se.

 

Anna cerrou os punhos. Sentia a transpiração escorrer-lhe pelas têmporas e no meio dos seios. A voz de Serena estava a tornar-se mais forte e ou estava agora menos tímida, ou se tinha esquecido completamente de Anna e se perdera nas frases da sua evocação. Quando parou, o camarote pareceu ecoar por um momento com as palavras de poder, depois as chamas das velas começaram a brilhar de lado, como se houvesse uma forte corrente de ar. Anna engoliu em seco. Levou a mão ao peito e procurou o amuleto, segurando-o com força entre os dedos.

 

Ela conseguia vê-lo - a figura alta -, tão transparente que pouco mais era do que um vislumbre no ar perto da janela.

 

Serena atirou a cabeça para trás e chocalhou o sistro à sua frente.

 

- Vem! Oh, Anhotep, servo de ísis, vem! Mostra-te perante mim e perante este frasco de lágrimas sagradas!

 

Agora era mais fácil vê-lo, com os seus traços mais distintos e os contornos da sua forma nítidos nas sombras da luz das velas.

 

Serena caiu de joelhos, com as mãos sobre o altar. Com a cabeça atirada para trás e os olhos fechados, ela chocalhou o sistro uma última vez e pousou-o. Anhotep estava subitamente mais perto dela. O seu corpo, uma sombra transparente, estava tão próximo que conseguia tocar-lhe e, lentamente, quando ela se pôs de pé, os contornos das suas duas formas pareceram fundir-se e tornar-se uma só.

 

Ela sacudiu-se, a tremer, inclinando-se para a frente, depois, lentamente, voltou a endireitar-se e abriu os olhos.

 

- Saudações. - A sua voz era completamente diferente de tudo o que Anna ouvira antes. Profunda e semelhante a um sino, continha os ecos de três mil sóis do deserto. - Eu sou Anhotep, servo dos servos dos deuses. Eu vim tomar posse do que é meu.

 

A boca de Anna tinha ficado seca. Aterrorizada, olhou para a figura à sua frente, à medida que compreendia lentamente que estava sozinha com ele no quarto. O corpo que era de Serena estava, de certo modo, inerte, vazio. Era como se a própria Serena se tivesse afastado e lhe tivesse emprestado a carne, os músculos, os órgãos de que ele precisava para funcionar mais uma vez na terra.

 

Ela pigarreou nervosamente e ficou alarmada ao aperceber-se de que a figura que estava em frente do altar a tinha ouvido. O rosto virou-se na direcção do dela.

 

- Quem se dirige ao altar da deusa? - As palavras pareceram preencher o ar à volta dela.

 

- Eu sou Anna. - Ela obrigou-se a si própria a falar alto. - Fui eu que trouxe o frasco sagrado outra vez para o Egipto. Eu... preciso de saber o que quer que lhe faça.

 

À luz da vela, ela conseguia ver uma mão estender-se e ficar a pairar sobre o pequeno frasco, e Anna reparou, com um arrepio, que, embora fosse a mão da Serena, ela não projectou qualquer sombra ao passar entre o frasco e a chama da vela.

 

Quando a porta do camarote se abriu abruptamente, durante um momento nada se alterou. A luz que jorrou do corredor não atingiu o altar nem a figura à frente deste e, por um instante, as sombras tornaram-se mais escuras.

 

- Ajudem-me! - A voz de Charley era inconfundível. - Ajudem-me! Está a acontecer outra vez. Não sei o que hei-de fazer... - Ela cambaleou ligeiramente, depois caiu para a frente, para dentro do camarote.

 

A figura junto do altar virou-se, com um silvo de raiva.

 

-Hatsek!

 

Charley pôs-se de pé, vacilante, e deixou-se ficar onde estava, a tremer Violentamente. Anna olhou de uma para a outra, paralisada de medo.

 

”Aconteça o que acontecer, não interfiras!!” Por um momento, as palavras de Serena pareceram ficar suspensas no ar.

 

- Hatsek! Eu amaldiçoo-te e à tua vil traição! - Quando as palavras encheram o camarote, Anna tomou consciência de que havia uma segunda figura à porta.

 

Tirou os olhos de Charley e de Serena e viu que era Toby.

 

- Amaldiçoo-te pelas mães a quem fizeste chorar pelos seus filhos! Amaldiçoo-te pelas trapaças e pelos morticínios, amaldiçoo-te pelas palavras maléficas que pronunciaste.

 

Charley deu um passo atrás e pareceu recompor-se. Endireitou-se.

 

- Sempre foste um idiota, Anhotep! - Ela deu um passo em frente e estendeu o braço para o altar, onde as chamas das velas se inclinavam, a pingar cera colorida. Quando a sua mão se moveu através do incenso na direcção do pequeno frasco, Anhotep soltou um enorme grito de raiva e atirou-se a ela.

 

Quando as duas mulheres chocaram, Charley soltou um grito e lançou-se novamente na direcção da porta. Atrás dela, Serena caiu ao chão. Os dois sacerdotes tinham desaparecido.

 

- Acende a luz, Anna, por amor de Deus! - Toby tinha agarrado Charley pelos pulsos. Ela lutava freneticamente enquanto ele a empurrava novamente para o interior do quarto e a colocava na cama ao lado de Anna.

 

Anna pôs-se de pé num salto e, levando a mão ao xaile, tirou-o das janelas e depois abriu as portadas.

 

- Serena! - Ela caiu de joelhos ao lado da forma sem vida tombada no chão.

 

- Serena, estás bem?

 

Na cama, Charley soluçava histericamente. Agarrou na colcha e puxou-a para cima da cabeça, oscilando para a frente e para trás.

 

- Serena está bem? - Toby apagou as velas, depois sentou-se na cama ao lado de Charley e pôs o braço à volta dela.

 

- Ela está a respirar. Está inconsciente. Oh, meu Deus!

 

- Ela vai ficar bem. Põe-lhe uma almofada debaixo da cabeça. Toma - disse ele, tirando uma da cama. - Vai buscar um pouco de água para ela beber.

 

- Que é que ela tem?

 

- Não sabes? Tu ouviste-a. Ela é aquilo a que se chama uma médium. Um canal. Ela deixou o sacerdote falar através dela, mas sem permitir que ele a possuísse. Ela foi apenas um veículo, e obviamente que sabe proteger-se. Tem de saber, se já efectuou trabalhos de salvamento anteriormente. Tens de esperar que volte a si. Ela vai ficar bem.

 

- E Charley? Que é que ela é? - perguntou Anna, erguendo os olhos para ele.

 

- A mesma coisa, talvez. Não, não aconteceu voluntariamente. Talvez esteja possuída. Hatsek usou a energia dela e agora usou também o seu corpo. Eu não a devia ter trazido outra vez para o barco.

 

- Não, não devias! - Subitamente, ela estava a tremer de medo e de raiva.

 

- Onde estiveste? Que é que te aconteceu? Por que é que desapareceste daquela forma? Nós precisámos de ti!

 

Ele tinha Charley nos braços e embalava-a como a um bebé.

 

- Mais tarde, Anna. Desculpa ter-te deixado. Não consegui evitá-lo. Mais tarde eu explico. Primeiro, vamos resolver esta trapalhada.

 

Ouviu-se um gemido de Serena e Anna voltou-se para ela. Pegou-lhe na mão e acariciou-a suavemente.

 

- Serena? Consegues falar comigo? Estás bem? - Ela pôs-se de pé e, conforme Toby sugerira, foi buscar um copo de água. Com algum esforço, ajudou a outra mulher a sentar-se e, com um braço à volta dos seus ombros, levou-lhe o copo aos lábios.

 

- Que é que aconteceu? - A voz de Serena era rouca. Ela franziu o sobrolho e esfregou os olhos, movendo a cabeça de um lado para o outro.

 

Ao ouvir a voz dela, Charley gemeu e agarrou-se mais a Toby.

 

- Anhotep veio? - Serena tirou o copo a Anna e começou a beber sofregamente a água.

 

- Sim, ele veio.

 

- Ele disse o que queria que se fizesse?

 

- Não teve oportunidade.

 

Serena deixou o copo vazio cair-lhe das mãos e ficou de cabeça baixa por um momento. Tinha a pele pálida e húmida, e os olhos estavam desfocados e estranhamente raiados de sangue.

 

- Por que não?

 

- Hatsek chegou.

 

- Como? - Ela não parecia ter reparado nas outras duas pessoas que estavam no quarto.

 

- Charley entrou. Ele parece tê-la possuído. Foi aterrador.

 

Serena virou finalmente a cabeça na direcção da cama. Viu Toby com Charley nos braços e franziu a testa.

 

- Tu? Tu trouxeste a Charley de volta?

Ele acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

 

- Desculpa. Escolhi o momento errado.

 

- Pensei que estivesses preso. - Serena levantou-se com dificuldade. Ficou por um momento de pé, a oscilar ligeiramente, depois sentou-se no banco em frente do toucador.

 

Toby fez uma careta.

 

- Ultimamente, não.

 

- Então, onde é que estiveste?

 

- Estive com um amigo. Eu hei-de contar a história toda, mas agora não. Está bem? Vamos resolver isto tudo. Que é que vamos fazer com a Charley? Empurrou-a suavemente de forma a ela ficar sentada.

 

Charley ergueu o rosto manchado de lágrimas.

 

- Eu quero ir para casa.

 

- Então, é isso que vamos fazer. - Toby afastou-se lentamente dela e pôs-se de pé. - Eu tenho um amigo no Consulado do Cairo. Já falei com ele hoje ao telefone. Vou pedir-lhe que arranje um bilhete de regresso e perguntar se há alguém que possa ir com ela. Pobre Charley. Vais ficar bem. Queres voltar para o hotel e passar lá a noite?

 

Charley acenou com a cabeça.

 

- Eu gostei do hotel. - Ela estava novamente a balouçar.

 

- Como é que conseguiste arranjar um quarto para ela? - perguntou Serena num tom cansado. - Eu pensava que o Old Cataract estava esgotado com meses de antecedência.

 

Toby sorriu, batendo com o dedo no nariz.

 

- Preocupa-te com o Egipto antigo. Deixa-me lidar com a versão moderna. Ficaram a vê-lo conduzir Charley para fora do camarote e ao longo do corredor. Anna fechou a porta e encostou-se a ela. No alegre camarote, o leve cheiro a incenso era o único vestígio da cena que tivera lugar pouco tempo antes. Serena encolheu os ombros.

 

- Então, isto foi um êxito ou outro acto falhado? Anna abanou a cabeça com um sorriso forçado.

 

- Eu acho que foi um êxito. Se não fosse a Charley talvez tivesse funcionado. Ele veio. Ele esteve, de facto, aqui no camarote. Ele esteve dentro... - Ela hesitou repentinamente. - Eu ia dizer dentro de ti, mas não esteve. Ele como que se encaixou por cima de ti como uma luva. - Ela estremeceu. - Oh, Serena, tens a certeza de que este tipo de coisa é segura? Sim, ele estava a comunicar, mas suponhamos que não conseguias libertar-te dele? - Ela sentou-se, subitamente dominada pela exaustão.

 

- Eu não fui possuída, Anna. - Serena estava a embrulhar o sistro no seu pedaço de seda. - Eu permiti que ele me utilizasse.

 

- Isso não é posse?

 

- Não. A posse é como o estupro. Não é voluntária. É uma violação. Um roubo.

 

- Foi isso que aconteceu a Charley? Serena mordeu o lábio.

 

- Sim, eu acho que foi o que aconteceu a Charley. Hatsek tem estado a utilizar a energia dela, sugando-a como uma sanguessuga. E, quando precisou de invadir a sua personalidade, teve facilidade em entrar, simplesmente.

 

- E ela agora já se libertou dele?

 

- Não sei. - Guardando a última vela, Serena afastou-se do seu saco e foi colocar-se em frente ao espelho do toucador. Examinou o rosto durante alguns momentos. - Na realidade, eu não sei. Eu devia falar com ela antes de ela se ir embora, mas será que isso irá piorar as coisas?

 

- Seguramente que ele não vai voltar com ela para Inglaterra?

 

- Isso também não sei. Neste momento, eu não sei nada. - O rosto que Anna via reflectido no espelho pareceu subitamente envelhecido. - Sinto-me muito mal a respeito de tudo isto. Se eu não tivesse interferido...

 

- Se não tivesses interferido, provavelmente, eu já teria sido levada aos gritos para um hospital psiquiátrico.

 

Serena sentou-se no banco.

 

- Algumas das coisas que Andy diz sobre mim são verdadeiras, sabes. Eu brinquei com tudo isto. Era divertido. Romântico. Louco. Senti que era um pouco perverso para mim como velha... bem a caminhar para lá. - Ela sorriu. – Uma viúva muito respeitável, filha de um clérigo, por amor de Deus. - Ela soltou uma gargalhada sem alegria. - Meditação. Orações a ísis. Rituais à luz da vela. Não me punha nua, nem nada do género, mas era um segredo. Algo com que me podia regozijar. Não era real, mas conduziu a outras coisas que eram: o trabalho de salvamento, ser médium, canalizar. Mas esta coisa egípcia... isto começou como um jogo.

 

- Até vires ao Egipto.

 

- Até vir ao Egipto.

 

- E, então, descobriste que era tudo real, incluindo os teus poderes como uma espécie de sacerdotisa.

 

Serena mordeu o lábio durante um momento.

 

- Uma sacerdotisa - repetiu ela. - Parece tão exótico. Tão poderoso. Eu adorei a ideia de ser sacerdotisa de ísis.

 

- Óptimo.-Anna levantou-se. - Porque tu és o único trunfo que eu tenho.

 

- Então, que queres fazer?

 

Olharam uma para a outra com um ar sombrio e depois Anna encolheu os ombros.

 

- Tens forças para tentar outra vez? Nós não temos a certeza se Hatsek seguirá Charley até Londres. E se ele for atrás de ti ou de mim? E se a cobra também for? Por algum motivo, a minha vinda cá activou toda esta estúpida charada. Sabes, quando eu estava a dormir no carro, a atravessar o deserto, sonhei que tudo isto fazia parte das férias, organizado pela agência de viagens para nos manter entretidos no barco, e que o desenlace final ocorrerá na noite antes de chegarmos a Luxor ou na festa do Paxá que nos vão oferecer, ou, sei lá, talvez aconteça no aeroporto antes de voltarmos para casa!

 

- Quem me dera que fosse um sonho. - Serena abanou a cabeça. - Mas não é, e nós temos que fazer qualquer coisa. Acho que devíamos tentar outra vez esta noite. Em Philae, conforme eu planeei no início. No templo de ísis.

 

Anna ficou boquiaberta.

 

- Tão cedo?

 

- Sim - respondeu Serena, acenando com a cabeça. - Seria perfeito. Nós vamos ao espectáculo de luz e som, não vamos? Talvez seja difícil, mas teremos de tentar escapar para as zonas escuras enquanto estiverem todos distraídos. Tenho a certeza de que estarão lá centenas de pessoas, mas vão estar todas a ver o espectáculo. Teremos de fazer votos para que ninguém nos veja.

 

- Mas Philae é como Abu Simbel. Não é o local verdadeiro. Foi deslocado para uma zona mais elevada.

 

- Eu sei. O solo sagrado de ísis está agora submerso, mas acho que isso não tem importância. Afinal de contas, os sacerdotes vieram cá e estiveram em Abu Simbel. Seria mais fácil concentrar-me se estivéssemos perto do templo e, claro, se eles quisessem que lhes desses o teu frasco, esse seria o local perfeito. Eras capaz de te separar dele, Anna, se assim o exigissem?

 

- Claro que sim. - Anna olhou para o pequeno frasco, a única coisa que restava em cima da pequena mesa que tinha servido de altar. Pegou nele e virou-o nas mãos. - Que aconteceria se ele se partisse?

 

Serena fechou os olhos e abanou a cabeça.

 

- Acho que não vamos querer saber. - Ela pôs-se de pé e pegou no saco.

- Vou dormir. Estou completamente exausta. Encontramo-nos mais tarde, está bem?

 

Anna fez um aceno.

 

Depois de Serena se ter ido embora, ela deixou-se ficar onde estava durante muito tempo, depois finalmente deitou-se na cama e fechou os olhos.

 

Vinte minutos mais tarde, desistiu de tentar adormecer. Pegou no diário e segurou-o na mão durante alguns minutos, a pensar. O marcador estava quase no fim. Só lhe faltavam ler algumas páginas.

 

Louisa tinha, finalmente, adormecido. Quando acordou, deixou-se ficar quieta, a olhar, como tantas vezes fizera, para o tecto escuro do pequeno camarote. O barco estava silencioso, mas ela sentia o cheiro a comida oriundo do alojamento da tripulação e, ao longe, algures em terra, ela ouvia o lamento de um instrumento musical, um som misterioso que se sobrepunha ao leve sussurro das palmeiras.

 

Quando moveu ligeiramente a cabeça, viu as tintas e os blocos de desenho empilhados em cima da mesa, onde Jane Treece os tinha deixado quando os retirara de debaixo da cama de Louisa. À frente deles estava o pequeno embrulho de seda atado com uma fita. Louisa fechou os olhos e uma lágrima escorreu-lhe pelo rosto.

 

A pancada na porta foi hesitante. Por um momento, ignorou-a, depois, com um suspiro, mandou entrar. Augusta espreitou para o interior do camarote, com uma vela na mão.

 

- Por favor, Louisa, venha jantar connosco. Os homens ficariam muito felizes. O reis diz que Mohammed se sente angustiado por não poder ser confortada. Se não comer vai adoecer, minha querida.

 

Louisa sentou-se na cama. Sentia a cabeça a andar à roda. Augusta tinha razão. Não fazia sentido matar-se à fome. Afinal de contas, ela tinha de voltar para Inglaterra, para os seus filhos.

 

- Posso pedir a Treece que venha ajudá-la vestir-se? - Augusta baixou-se e apanhou o robe azul que tinha caído ao chão.

 

Louisa acenou com a cabeça em sinal de concordância.

 

- Sim, por favor, eu gostaria muito. Já vou ter convosco. - Ela conseguiu esboçar um sorriso pálido enquanto Augusta pousava a vela e desaparecia para chamar Treece.

 

Louisa ficou sentada no camarote silencioso e sombrio, sem se mexer, com a cabeça pousada nas mãos. Ainda ouvia música, mas esta agora parecia mais distante.

 

A madeira escura do camarote e os tecidos que forravam as paredes eram uma mistura de cor e sombra à luz da chama da vela e, quando ela finalmente ergueu o olhar, a figura sombria ao pé da mesa era apenas isso, uma sombra inclinada sobre a mesa, com a mão estendida.

 

- Hassan? - Por um momento, ficou confusa. Não reagiu. Só ao fim de alguns segundos é que se pôs de pé num salto, abrindo os braços, mas a figura tinha desaparecido.

 

Atrás de si, a porta abriu-se, e Treece apareceu com uma bacia e um jarro de água fumegante. Cheirava a rosas, e Louisa viu a fina camada de óleo de rosas a flutuar à superfície.

 

Com uma sensação de infelicidade, permitiu que Treece lhe lavasse o rosto e as mãos, depois o pescoço. Deixou-a ajudá-la a vestir o vestido solto verde-escuro e depois apanhar o cabelo num nó na nuca. Foi quando estava a sair do camarote que ouviu a outra mulher fungar, exasperada. Ela tinha aberto as portadas e atirado a água para a escuridão.

 

- Tanto alvoroço! - Falou de propósito num tom suficientemente alto para ela ouvir. - E tudo por causa de um indígena!

 

A sua ira acompanhou-a através do salão e até ao convés onde os outros estavam à sua espera, a tomar as suas bebidas. Foi quando se sentou na cadeira que Sir John lhe ofereceu que ela se virou e olhou para o rio. Este era largo, naquele local, descrevendo uma curva ampla; as palmeiras cresciam até à beira da água em ambas as margens, e as copas oscilavam graciosamente de encontro ao céu estrelado. Junto da outra margem, ela viu dois barcos atracados lado a lado.

 

O barco dos Fieldings e o de Lorde Carstairs estavam muito iluminados com candeeiros, e a música, compreendeu ela subitamente, provinha de um grupo de músicos que se encontrava no convés do Escaravelho.

 

Ela passou por Sir John e dirigiu-se ao corrimão, olhando através da água. Ele seguiu-a.

 

- Ignore-os, minha querida. Venha, vamos tomar uma bebida e depois podemos todos jantar.

 

- Eles estão a fazer uma festa? Uma soirée? - As suas mãos fecharam-se sobre o corrimão; os nós dos dedos estavam brancos.

 

- Tenho a certeza de que não é nada disso. Eles apenas pediram a um grupo de músicos que tocasse para eles. Eles têm todo o direito, Louisa...

 

- Eles estão no barco de Roger Carstairs!

 

- Sim. - Ele estava sentir-se pouco à vontade. Ela viu-o passar o dedo por dentro do colarinho.

 

- Mas eu pensava que ele tinha voltado para Abu Simbel!

 

Sir John abanou a cabeça com um ar sombrio.

 

- Aparentemente, não.

 

- Por que não?

 

- Minha querida, eu não sei por que é que ele havia de querer lá voltar. O barco dele acompanhou o nosso desde a catarata até Assuão. Tal como o dos Fieldings.

 

- Eu disse-lhe que se fosse! - A voz dela era profunda e zangada. - Eu disse-lhe, e ele não prestou atenção.

 

- Louisa, ele sabe que não é bem-vindo a bordo neste barco. Ele não fez qualquer tentativa de cá vir. Mas eu não posso impedi-lo de navegar perto de nós!

 

- Não, mas eu posso! - Ela deu meia volta e correu na direcção do alojamento da tripulação. - Mohammed! Chama o rapaz. Eu quero o bote agora. Quero que ele me leve ao outro lado do rio.

 

- Louisa, não! - Sir John seguiu-a apressadamente.

 

- Não pode impedir-me! - disse ela, virando-se para ele. - Nem sequer tente. Eu não preciso que venha comigo. Só preciso que o rapaz me leve até lá.

 

Atrás deles, os membros da tripulação tinham-se levantado todos das suas cadeiras à volta da braseira onde a refeição estava a ser preparada. Mohammed deu alguns passos em frente; o seu rosto era um retrato de preocupação.

 

- Se a dama Louisa deseja navegar no rio, eu próprio a levarei.

 

- Obrigada, Mohammed. Fico-te muito grata. Eu quero ir agora.

 

O seu rosto estava branco como a cal enquanto o via colocar o pequeno bote ao lado do barco depois de ela ter ido buscar o seu xaile ao camarote. Ele manteve o pequeno bote imóvel enquanto ela se instalava e, dando habilmente a volta com um remo, começou a remar através da água escura.

 

Foi David Fielding que a ajudou a subir para o convés. Atrás dele, ela viu Venetia e Katherine refasteladas em enormes almofadas de seda, a observar, com um ar sonolento, o espectáculo à sua frente enquanto bebiam chá persa. Roger Carstairs estava sentado ao pé delas.

 

Quando Louisa apareceu, ele pôs-se de pé. Usava um turbante branco e uma túnica preta, com uma faixa multicor com franjas, da qual pendia a sua comprida e curva faca de caça.

 

Katherine sorriu e estendeu os braços num amável gesto de boas-vindas, mas Louisa não o viu. Os seus olhos estavam fixos no rosto de Carstairs. Katherine hesitou. O seu sorriso apagou-se, e ela colocou as mãos ansiosamente sobre a barriga.

 

- Boa noite, Senhora Shelley! - disse Carstairs com uma vénia. Atrás dele, os músicos tinham ficado em silêncio.

 

- Boa noite, meu senhor. - Ela apercebeu-se de que Mohammed também tinha subido e estava imediatamente atrás dela. Quando ela deu um passo em frente, ele fez o mesmo. A sua presença era reconfortante.

 

Carstairs acenou com a cabeça.

 

- Estou a ver que continua a ter um indígena ao seu lado, Senhora Shelley. Ele pode ir ter com os outros criados, se a senhora tiver a bondade de se sentar para ver o espectáculo.

 

-Eu não vim ver espectáculo nenhum! - retorquiu Louisa. - E Mohammed ficará aqui ao meu lado, se assim quiser. Ele é amigo do meu amigo. - Ela semicerrou os olhos. - Por que é que decidiu não voltar à caverna?

 

Ele sorriu.

 

- Porque fui informado de que o frasco já lá não estava. Tentou enganar-me, Senhora Shelley.

 

- O objecto que desejava tanto, que estava a disposto a matar um homem para o obter! - A voz dela era inexpressiva.

 

Katherine soltou um pequeno gemido.

 

- Oh, sim, Senhora Shelley. Eu estava disposto a matar um homem. - Ele sorriu.

- Embora, afinal, não tivesse tido necessidade de o fazer. A cobra fê-lo por mim.

 

Ela deu uma gargalhada.

 

- A cobra fê-lo por si! - repetiu ela. - Já contou aos seus amigos com que intensidade desejou o meu frasquínho de perfume? E contou-lhes o que fez para tentar ficar com ele? Contou-lhes como é maléfico?

 

- Oh, Louisa! - O gemido de Katherine era de angústia. - Por favor, minha querida, não!

 

- Não tente impedir-me de contar o que aconteceu! - Louisa virou-se para ela durante apenas um segundo, mas a força das suas palavras fez Katherine encolher-se nas almofadas. - Este homem que vos recebe como um amigo é um demónio, um praticante da magia negra. Vocês não estão em segurança neste barco. Ninguém está!

 

Ela viu os rostos dos músicos e dos membros da tripulação de Carstairs virados para ela. Não sabia quantos deles falavam inglês, mas pareciam estar todos com medo.

 

- Vocês estão em perigo! - gritou-lhes ela. - Não compreendem isso?

 

- Louisa, minha querida - disse David Fielding, colocando-lhe a mão no braço. - Todos nós sabemos que está aborrecida. Por um bom motivo. Mas isto não vai ajudar em nada. O que aconteceu no deserto não foi culpa de ninguém. Foi um acidente trágico. Ali as pessoas são constantemente mortas por cobras e escorpiões.

 

- Não. - Louisa abanou a cabeça. - Não foi um acidente. Hassan percebia de cobras e de escorpiões. Era esse o trabalho dele! Acompanhar-me e manter-me em segurança. - Os seus olhos encheram-se de lágrimas. - Não compreendem? Foi ele. Tão seguramente como se tivesse mergulhado uma faca no peito do Hassan uma segunda vez! - Ela estendeu o braço na direcção de Carstairs.

 

Este abanou lentamente a cabeça.

 

- Isso é imaginação de um cérebro sobreaquecido.

 

- É? - Ela limpou as lágrimas dos olhos. - Portanto, já não quer o frasco? Ele ficou subitamente tenso. Ela viu os seus olhos ficarem atentos.

 

- A senhora sabe que eu gostaria muito de adquirir o seu frasco de perfume, Senhora Shelley. Eu já me ofereci para lho comprar. Eu disse-lhe que pode estabelecer o seu preço.

 

- Está bem. O meu preço é o Hassan! Se a sua magia é assim tão poderosa, então, pode ressuscitá-lo! - Ela deu mais um passo em direcção a ele e sentiu Mohammed a segui-la mais uma vez como uma sombra. - A sua magia é assim tão poderosa? - Ela dirigiu-lhe um enorme sorriso.

 

Ele semicerrou os olhos.

 

- A senhora sabe que não é. Ninguém consegue ressuscitar um morto.

 

- O quê, nem sequer os sacerdotes que guardam o frasco? - Ela cruzou os braços. - Eu já os vi. Eles têm poder. E eles não estavam mortos?

 

Ele tinha os olhos quase fechados e Louisa não conseguia ver se ele estava ou não a olhar para ela por baixo das pestanas. Ele estava tão imóvel que parecia ter parado de respirar.

 

- Os sacerdotes não são seres vivos. Continuam mortos, mesmo quando caminham sobre a terra.

 

Atrás dele, ouviu-se uma inspiração súbita, e Louisa viu uma expressão de espanto nos olhos de alguns dos homens que se encontravam perto deles no convés. Alguns deles, pelo menos, estavam a seguir a conversa.

 

- Então, não pode pagar o meu preço?

 

- Eu ofereci-lhe dinheiro, Louisa. Qualquer quantia que proponha. - A voz dele estava a adquirir um tom de impaciência.

 

Ela abanou a cabeça.

 

- O dinheiro não me serve de nada.

 

- Então, qualquer coisa que esteja em meu poder dar. Jóias. Terras. - Ele franziu o sobrolho. - Já lhe ofereci o meu título e a minha própria mão!

Venetia, atrás dele, soltou um pequeno grito.

 

- Roger! Tu prometeste-me!

 

Ele ignorou-a; os seus olhos estavam fixos no rosto de Louisa.

 

- Bem, então, o que é que quer?

Ela abanou a cabeça.

 

- Acho que não quero nada que me possa dar, meu senhor. - A sua voz tornou-se subitamente num murmúrio. - Excepto vingança.

 

Venetia tinha-se lançado a chorar na direcção de Katherine, que se inclinou para a frente para receber a cunhada nos braços. Ao ouvirem as palavras de Louisa, que se sobrepuseram às lágrimas de Venetia, viraram-se ambas para ela e ficaram subitamente caladas.

 

O barco estava completamente silencioso. O único som que se ouvia era o suave sussurrar das canas ao longo da margem. Louisa olhou-o nos olhos. Depois, por fim, acenou com a cabeça.

 

- Eu tenho o frasco aqui - disse ela em voz baixa. Enfiou a mão no bolso do vestido e tirou de lá o embrulho envolvido em seda.

 

Os olhos dele abriram-se gulosamente.

 

- E vai dar-mo! - disse ele com um sorriso de triunfo. Ela baixou pensativamente os olhos para a mão.

 

- Não - disse por fim. - Ergueu novamente os olhos para ele. - Não, não lho vou dar. Vou dá-lo aos deuses que afirma servir. Nunca mais vai voltar a pôr os olhos nele, Lorde Carstairs. Nunca!

 

Com um movimento rápido e com toda a força que conseguiu, ela lançou o frasco para a escuridão. Houve uma pausa enquanto todos os ocupantes do barco sustinham a respiração, depois ouviu-se ao longe o som de algo a cair ao rio.

 

- Não! - Carstairs lançou-se na direcção do corrimão. Ficou debruçado sobre ele, a olhar desvairadamente para a água. - Tem a noção do que fez? Ele virou-se subitamente, e os seus olhos flamejavam de raiva. - Tem? Tem a noção do que fez? - Ele agarrou-a pelo ombro e abanou-a com força.

 

- Eia! Espere aí! Tire as mãos de cima dela! - David Fielding agarrou-lhe no braço, ao mesmo tempo que Mohammed dava um passo em frente, com um ar grave e com a sua própria faca na mão.

 

- Não! - gritou Katherine. - Não! Alguém ainda se vai magoar! David, tem cuidado! Deixe-a, Roger. De que é que serve? O frasco desapareceu! - Ela pôs-se de pé. - Por amor de Deus! Esta cena já durou tempo suficiente, Louisa. Acho que é melhor ir-se embora. Já disse o que tinha a dizer! - Ela interrompeu-se subitamente e agarrou-se à barriga com um gemido.

 

- Kate? - O grito de David Fielding era angustiado. - Meu amor, o que é? Com o rosto pálido, ela endireitou-se e voltou, vacilante, para as almofadas.

 

- Eu estou bem. - Ela estava a respirar pesadamente. - Louisa, acho que é melhor ir-se embora.

 

Louisa tinha recuado na direcção do corrimão, libertando-se das mãos de Carstairs.

 

- Eu vou. - Ela atirou as palavras por cima do ombro enquanto se voltava para o seu acompanhante. - Mohammed, importas-te de me ajudar a entrar no barco...

 

As suas palavras foram interrompidas por um grito agudo. Katherine tinha-se dobrado de novo.

 

- O meu bebé! É o meu bebé! - Ela tentou pôr-se de pé, estendendo freneticamente a mão na direcção do marido.

 

Louisa parou ao cimo das escadas e, quando se virou, viu com horror uma mancha vermelha a espalhar-se pela saia de Katherine. Durante um momento, ninguém se mexeu. Depois, Venetia levou a mão à cabeça e desmaiou para cima das almofadas de seda. Ninguém lhe prestou atenção. Louisa olhou em volta, horrorizada, para os homens que ali estavam, paralisados, a olhar para a mulher agonizante e para a poça de sangue que aparecera no convés do barco, por baixo das suas saias.

 

- Levem-na para baixo, para o camarote! - Ela deu alguns passos em frente, empurrando Carstairs para o lado. - Agora! Depressa!

 

- Nós vamos voltar para o Lotus! - David Fielding olhou em volta com um ar desvairado, à procura dos seus criados. - É lá que ela deve estar.

 

- Não há tempo. Leve-a para baixo, David. Meu senhor - ela virou-se para Carstairs com um olhar de desprezo -, mande os outros homens sair do barco. Presumivelmente, eles podem ir para o Lotus. Mohammed, importas-te de ir buscar Lady Forrester para me ajudar? Venetia, controle-se. Também tem de ficar para ajudar. Vamos! - gritou ela para os rostos espantados à sua volta, ao mesmo tempo que Katherine soltava outro grito. O som fez com que os homens disparassem em todas as direcções e foi o próprio Carstairs que acabou por empurrar David, que parecia paralisado de choque, pegar em Katherine e levá-la para o salão, onde a deitou no divã almofadado.

 

Quando se afastou da mulher que soluçava e gemia, ele viu-se cara a cara com Louisa, que os tinha seguido, e lançou-lhe um olhar frio, depois passou por ela e voltou para o convés.

 

Venetia, chorosa e branca como a cal, estava de pé à porta, nitidamente aterrorizada com a perspectiva de entrar no camarote.

 

- Diga a alguém que aqueça água para nós - pediu Louisa. - E arranje lençóis limpos.

 

Katherine soltou outro gemido quando David apareceu à porta, muito pálido.

 

- Que posso eu fazer? Louisa ergueu o olhar para ele.

 

- Ajude a Venetia a trazer a água.

 

Ela voltou para junto de Katherine e, com palavras tranquilizadoras, começou a tentar torná-la mais confortável. Conseguiu ajudá-la a sentar-se para lhe desapertar o vestido extremamente apertado e para o despir por cima da cabeça, antes de a fazer recostar-se novamente nas almofadas. O medo de Katherine era contagioso. Louisa sentiu-se lutar contra ondas de pânico enquanto puxava cuidadosamente o cabelo da mulher para trás, depois embrulhou a roupa manchada de sangue e colocou-a longe da vista.

 

- Vai correr tudo bem, Katherine. Vai ficar bem. - Pegou-lhe nas mãos e segurou-as com firmeza.

 

- E o bebé? E o bebé? Só devia nascer daqui a dois meses! - Katherine desatou novamente a chorar. - A culpa é do David. Ele não quis ouvir. Insistiu em vir a este malfadado país. Eu supliquei-lhe que não viesse, mas ele queria trazer Venetia. Ele queria tentar encontrar um homem para ela. - Ela calou-se, sustendo a respiração, e, antes de conseguir dizer mais qualquer coisa, gritou de dor.

 

Louisa ainda lhe estava a segurar nas mãos com força. Quando a contracção seguinte começou a formar-se, ela sentiu os dedos de Katherine a apertá-la com cada vez mais força, até os seus próprios dedos gritarem de dor. Houve um movimento à porta.

 

- Aqui estão os lençóis. - Venetia entrou no camarote e empurrou-os na sua direcção, evitando olhar para a mulher deitada no divã.

 

- Guarde-os para mais tarde. Vá buscar uma bacia de água morna e um toalhete para a podermos lavar. - Louisa levantou os olhos para ela. Subitamente, teve pena de Venetia. Nenhuma mulher solteira devia ver uma cena daquelas, especialmente se o bebé fosse morrer. Mordeu o lábio. Katherine arfava, quieta entre as contracções, com o rosto branco manchado de lágrimas. Louisa inclinou-se para a frente para lhe limpar a testa, mas já outra dor vinha a caminho.

 

- A culpa é sua! - Subitamente, Katherine estava a gritar com ela. - Se não tivesse cá vindo e brigado com Carstairs, isto não teria acontecido! - Ela agarrou-se mais à mão de Louisa. - Não devia ter vindo! Por que é que veio?

- Ela arfava freneticamente, e o suor escorria-lhe pelo rosto e pelo corpo.

 

Quando a dor passou, Louisa ouviu um ruído à porta. Olhou em volta e viu Mohammed à entrada. Ele tinha virado a cabeça para evitar olhar directamente para o salão.

 

- Lady Forrester não virá, Sitt Louisa. Ela diz que não percebe nada de partos. Maleesh! Não tem importância! Eu trouxe uma mulher da aldeia que sabe destas coisas.

 

Atrás dele, uma mulher coberta com um véu espreitava ansiosamente para o interior do camarote. Tinha uns olhos escuros enormes que olharam timidamente em volta por cima do véu e pousaram em Katherine com um ar preocupado.

 

Louisa sorriu-lhe, recordando-se de Hassan lhe ter dito que as mulheres mais velhas da aldeia tinham muitas vezes bons conhecimentos de medicina simples e de partos.

 

Mohammed murmurou rapidamente qualquer coisa para a mulher, e esta entrou na cabina e aproximou-se de Louisa com uma vénia.

 

- Sabe inglês? - perguntou Louisa.

 

A mulher encolheu os ombros. Trazia um pequeno cesto que colocou em cima da mesa ao pé delas.

 

Katherine agarrou na mão de Louisa.

 

- Não a deixe aproximar-se de mim! - gritou ela. - Meu Deus, eu vou morrer e traz-me uma indígena! Onde está David? Oh, meu Deus!

 

Quando a porta se fechou atrás dela, a mulher tirou a capa e o véu. Era mais velha do que a princípio parecera e, quando olhou para Katherine, avaliou imediatamente a situação. Acenou afirmativamente com a cabeça e, dando alguns passos à frente, colocou uma mão fria na barriga de Katherine.

 

Katherine encolheu-se, mas a mulher acenou com a cabeça e sorriu.

 

- Bom. Bom - disse ela. - Bebé bom. Inshallah!

 

- Mande-a embora! - Katherine empurrou a mão da mulher, mas as dores já começavam outra vez.

 

Quando a porta do camarote se abriu alguns minutos depois, as três mulheres que rodeavam Katherine ergueram o olhar. A princípio, não conseguiram ver quem ali estava. Desenhada em silhueta contra o céu nocturno, a figura era alta e escura, e impossível de distinguir na noite à sua volta. Foi a mulher da aldeia que o reconheceu primeiro e se virou com um gemido, tentando esconder o rosto.

 

- Roger? És tu? Que é? - Venetia afastou-se da cunhada com um alívio óbvio, ao mesmo tempo que a mulher da aldeia pegava no seu lenço e o colocava por cima da cabeça e à volta do rosto.

 

- Eu trouxe ajuda. - Ele inclinou-se e espreitou para o interior do camarote.

- Eu evoquei o sacerdote de Sekhmet, a deusa da cura, e, por intermédio dele, ela concederá ajuda a esta mulher! - A sua voz soou em redor do camarote.

 

Katherine gemeu.

 

- Afasta-o de mim! Não o deixes aproximar-se de mim! - A sua voz estava rouca de tanto gritar. Ela agarrou-se a Louisa. - Não o deixe entrar.

 

- O senhor ouviu o que ela disse! Não entre. Mantenha a sua magia maligna longe de nós! - Louisa ergueu os olhos para ele. - A sua presença não é desejada aqui!

 

- Nem sequer para lhe salvar a vida? - A voz de desdém ecoou no quarto.

- Pode acreditar, minha senhora, que só a magia a pode salvar!

 

- O seu tipo de magia não pode fazer nada por ela! É uma magia destrutiva, assassina! - gritou Louisa.

 

- Atreve-se a correr esse risco? - A voz estava a tornar-se cada vez mais trocista. - Acho que é melhor deixar-me entrar.

 

- Não! - Os soluços de Katherine eram cada vez mais histéricos. - Não, por favor, fá-lo ir-se embora! David! - O seu último grito foi tão estridente que a mulher da aldeia se esqueceu do medo que sentia de Carstairs. Colocou a mão em cima da barriga de Katherine e murmurou algumas instruções incompreensíveis a Louisa, seguidas de uma sequência de gestos mais facilmente compreendidos enquanto tentava puxar Katherine e pô-la de pé, indicando que ela devia agachar-se, pronta para dar à luz.

 

Coube a Venetia empurrar Carstairs para fora do quarto, para o convés deserto do barco onde David estava sozinho. Alguns minutos depois, ouviram claramente o choro ténue de um bebé. Ao ouvir o som, David virou-se.

 

- Que foi aquilo? Foi o meu bebé? - Ele estava a tremer.

 

Quando David foi autorizado a entrar no camarote, este tinha sido arrumado, os unguentos de feno grego e mel, acácia e tamarisco tinham sido colocados novamente dentro do cesto, e Katherine estava deitada no divã apoiada em almofadas, com o bebé minúsculo deitado entre os seus seios. David olhou para ele, alAnnado.

 

- Ele está bem, David. - Katherine estava a tocar na cabecinha com um dedo. - Ele está aqui para se manter quente. É muito pequenino, mas Mabrooka diz que ele está bem. - Ela sorriu para a mulher da aldeia, que fez uma vénia e já estava novamente a colocar o véu à volta do rosto. - Tens de lhe dar baksheeh, David - prosseguiu Katherine. A sua voz estava muito fraca. - Ela provavelmente salvou-me a vida.

 

Louisa foi até ao convés, deixando-os sozinhos, e inspirou o ar da noite. Devia ser quase manhã.

 

Um som atrás de si fê-la dar meia volta. Carstairs estava ali, de braços cruzados. Quando o viu, ainda vestido com a túnica preta com a faixa vermelha e dourada e a cabeça envolta no elaborado turbante, ela sentiu-se percorrida por uma súbita sensação de repulsa. Ele olhou-a num silêncio desdenhoso, reparando no vestido manchado de sangue, no cabelo despenteado, na sua exaustão, e ela sentiu imediatamente a ira flamejar.

 

- Não quer saber como estão?

Ele encolheu os ombros.

 

- Sem dúvida de que está prestes a dizer-me.

 

- Estão ambos bem.

 

- Inshalah! - Ele inclinou ligeiramente a cabeça.

 

- E agora vou-me embora.

 

- Vá. - Ele deu meia volta sem dizer mais uma palavra.

 

Ela dirigiu-se para a proa do barco, onde Mohammed estava sentado de pernas cruzadas, à sua espera. Ao lado dele, o cabo de ancoragem do bote que balouçava atrás de dahabeeyah estava atado ao corrimão.

 

- Sitt Fielding está bem?

 

- Ela está bem, Mohammed, graças a ti. E o bebé também. Importas-te de me levar ao íbis e depois vir buscar a Mabrooka, por favor? - Ela esfregou os olhos, cansada. - É quase dia, e eu estou muito cansada.

 

Ele virou-se para puxar o bote, depois, subitamente, soltou um grito. Enrolada nas tábuas ao seu lado estava uma cobra grande. Quando ele se moveu, ela silvou. Ergueu a cabeça, com o capuz aberto e oscilou o pescoço de um lado para o outro, com os olhos fixos no rosto dele.

 

- Não! - Louisa ficou a olhar para ela por um momento, depois virou-se para Carstairs. - Mande-a embora! O senhor é tão mau que está disposto a matar outro homem inocente?

 

Ele estava a sorrir.

 

- Eu não a evoquei, Senhora Shelley, garanto-lhe.

 

- As suas garantias não valem nada. - Ela deu um passo na direcção da cobra, com o coração na boca. - Mohammed, entra no bote.

 

- Não, minha senhora. Não posso deixá-la. - O rosto dele estava branco como a cal.

 

- Vai! Ela não me vai fazer mal. - Ela bateu o pé e a cobra silvou. Mohammed moveu-se cautelosamente para trás, dando um passo de cada vez, enquanto Louisa pegava na sombrinha que Venetia deixara em cima de uma cadeira. A cobra estava agora a observá-la. - Mande-a embora, meu senhor. Ela sorriu. - Ou prefere que eu morra também, para ir para junto de Hassan?

 

Ele abanou lentamente a cabeça.

- Eu não a chamei!

 

- Então, os seus poderes estão a ficar fracos. E são ainda mais fracos se não consegue desmaterializar o maléfico produto do seu próprio cérebro! - Ela sentiu Mohammed atrás de si, a subir lentamente para a amurada do barco e para o primeiro degrau da pequena escada. Quando chegou ao bote, ele murmurou:

 

- Por favor, Sitt Louisa. Por favor. Agora salve-se. Louisa esboçou um pequeno sorriso.

 

- Então, Lorde Carstairs, vai enviar-me para o Paraíso juntamente com Hassan?

 

Carstairs silvou. Quando a cobra oscilou e se virou para ele, Louisa correu para a amurada e subiu para a escada. Ao fim de poucos segundos, ela estava no bote, e Mohammed remava freneticamente na direcção do íbis.

 

Atrás deles, eles ouviam as gargalhadas azedas de Carstairs ecoando na escuridão.

 

A meio do caminho, Mohammed apoiou-se no remo.

 

- Sitt Louisa. Eu tenho uma coisa para si. - Ele procurou na túnica, tirou de lá uma coisa pequena e branca e entregou-lha. - Quando fui buscar Lady Forrester, vi-o a flutuar na água. A seda em que o embrulhou tinha apanhado ar. Ele não se afundou.

 

Louisa ficou a olhar para o pequeno embrulho molhado que tinha na mão, depois olhou de novo para o Escaravelho com um sorriso amargo. Afinal, a cobra tinha sido muito mais sábia do que qualquer deles tinha imaginado. O frasco de perfume estava no barco de Mohammed. Os deuses não o tinham levado.

 

O cepo da matança está pronto, como sabes, e tu enfraqueceste... salva os teus sacerdotes dos observadores

que têm facas e que têm dedos cruéis e que matam...

 

O homem sábio pega num pedaço de papel. Nele coloca os nomes dos dois sacerdotes, Anhotep e Hatsek, e escreve a sua história. Seguidamente, ele escreve um aviso para o mercador e para os homens de Luxor. Esta é a história de dois djinn que, se pudessem, se matariam um ao outro e matariam qualquer pessoa que tocasse no seu frasco sagrado. Esta é um âmbula sagrada, tirada do santuário do templo. As mãos que a profanarem transformar-se-ão novamente em pó; as mãos dos sacerdotes estão manchadas de sangue.

 

Quando o papel acabou de ser escrito já o Sol se pusera e a escuridão descia sobre a casa do mercador. O sábio faz uma vénia e vai-se embora. O mercador debate-se com o que acabou de lhe ser dito. Na sua mão existe uma valiosa relíquia de uma era antiga. Deverá ele devolvê-la aos deuses de outrora, embrulhada em honra e respeito, ou deverá levá-la para o bairro de Frangee e vendê-la por mais dinheiro do que alguma vez viu?

 

Ele estuda o papel, embrenhado em pensamentos. Os sacerdotes ficam

impacientes. Eles alimentam-se da sua força vital e da dos seus filhos, das suas mulheres e dos seus criados, e tornam-se mais fortes do que alguma vez foram desde que saíram do túmulo que era o seu esconderijo.

 

Havia vários barcos à espera no cais, para levar as filas de espectadores ao espectáculo de luz e som no templo de Philae. Os passageiros do Garça Branca ocuparam os seus lugares na fila juntamente com todos os outros turistas e subiram para as lanchas, já a olhar, com animada antecipação,, através da água com os seus milhares de reflexos.

 

Anna e Serena sentaram-se na popa do barco, e a primeira ficou sentada ao lado de Andy. Ela franziu o sobrolho quando ele pôs o braço à volta dos seus ombros e disse:

 

- Amigos como dantes, hem, Anna? Trouxe um agasalho quente? Parece que o vento do deserto pode ser muito frio à noite, quando se está a assistir a estas coisas.

 

Ela afastou-se imperceptivelmente.

 

- Obrigada, Andy. Estou bem preparada para a noite. - E olhou para Serena. No saco de Anna estavam guardados o frasco e o diário e, no de Serena, a estatueta, a ankh, o queimador de incenso e velas. Nenhuma delas sabia como iam conseguir afastar-se da multidão e entrar no santuário do templo no escuro, nem mesmo se, na realidade, isso seria possível. Anna olhou em volta à procura de Toby e viu-o mais à frente no barco. Ele estava a falar com o homem ao volante. Estavam os dois a rir e a gesticular como se se conhecessem há muitos anos, e ela apercebeu-se pela primeira vez de que Toby estava a falar árabe. Ela ainda não sabia bem o que acontecera em Abu Simbel, mas isso não a preocupava. Toby tinha certamente uma boa explicação para a sua ausência e, no momento certo, dar-lha-ia. Era a única coisa que interessava.

 

- Portanto, estou perdoado? - Andy estava a falar-lhe ao ouvido. - Eu só estava interessado no seu bem, sabe.

 

Ela não sabia se ele estava a falar do diário e do frasco ou se ainda se referia a Toby, e, subitamente, isso não teve qualquer importância. Quando os barcos começaram a sair do ancoradouro para o rio, ela inclinou-se para a frente, afastando-se do braço dele.

 

O templo estava iluminado, reflectindo toda a sua serena beleza nas águas à volta. Ao lado dele estava o Pavilhão de Trajano, que Louisa tinha descrito de uma forma tão eloquente no seu diário, com as suas colunas delicadas, quase etéreas, contra o azul-escuro do céu, formando um espantoso contraste com a severidade dos pilones do templo propriamente dito. A magia da visão fez Anna suster a respiração.

 

- Que importa que ele já não esteja na ilha de Philae? Que o tenham deslocado para Aglike? - murmurou ela para Serena. Que importância tinha? Parecia tão perfeito! Como se ali estivesse há milhares de anos.

 

Serena encolheu os ombros.

 

- O lugar realmente especial é a Ilha de Biga, que era sagrada para Osíris. Eu penso que deve ser ali. - Ela apontou para a escuridão. - Eu acho que vai ser como Abu Simbel. Aí ainda havia qualquer coisa de sagrado, não havia? Ela estava a olhar através da água. - Mesmo que seja apenas o facto de nós, os turistas, lá irmos com uma sensação de admiração e respeito. Isso deve criar de novo um ambiente especial, não achas?

 

- Eu não acho que toda a gente que lá vai hoje em dia vá adorar ísis. – Anna sentiu um arrepio ao olhar para o saco que Serena levava ao colo. - Estou com medo.

 

Serena sorriu para a escuridão.

 

- Eu acho que a deusa ainda cá está. Ela virá. Não há nada a recear.

 

- E ela vai mandar os seus sacerdotes embora?

 

Serena abanou lentamente a cabeça, com os olhos fixos na pedra iluminada que se elevava acima da água.

 

- Sabe-se lá o que ela vai fazer.

 

Enquanto os barcos faziam fila para o desembarcadouro abaixo do templo, os passageiros puseram-se de pé e começaram a avançar, trepando por cima dos bancos, passando pela ruidosa casa do motor ao mesmo tempo que os dois membros da tripulação conduziam suavemente o barco para o ancoradouro. Agora, eles conseguiam cheirar o óleo e os fumos do escape. O barulho fazia-os cerrar os dentes.

 

Anna e Serena ficaram tranquilamente para trás, a ver Andy avançar lentamente ao longo do barco.

 

- Ele vai andar à nossa procura! - disse Anna, abanando a cabeça. O rosto de Serena tinha um ar inexpressivo, e ela teve de repetir as palavras, gritando ao ouvido de Serena para se fazer ouvir acima do barulho do motor.

 

Serena acenou com a cabeça.

 

- Onde está Toby?

 

Anna fez um gesto na direcção da multidão à sua frente.

 

- Se nos vir com Toby, talvez Andy desista - gritou Serena. Estavam agora perto da frente e, uma a seguir à outra, foram ajudadas a subir para o desembarcadouro de madeira.

 

Serena, que desembarcara primeiro, deixou-se ficar afastada dos outros, à espera de Anna. Reparou, aborrecida, que Andy tinha feito o mesmo.

 

- Temos de nos livrar dele, caso contrário não teremos possibilidade de nos afastarmos. - Ela estava a olhar em volta, para as sombras. Havia alguns arbustos, algumas árvores pequenas, mas a zona estava bem iluminada e o caminho para as cadeiras onde os espectadores se iriam sentar estava bem assinalado.

 

- Venham, vocês as duas. Queremos ficar perto da frente! - chamou Andy. Anna olhou para Serena.

 

- Vá andando, Andy. - Ela cruzou os braços. - Eu vou sentar-me ao pé de Toby.

 

Ela viu a raiva espelhada no seu rosto. - Deve estar a brincar?

 

- Não, não estou a brincar. - Ela retribuiu-lhe friamente o olhar. - Não acredita na história dele, pois não?

 

- Eu não sei em que é que hei-de acreditar, Andy. E, de qualquer modo, não tem nada a ver com isso. Por favor, vá andando, Vá com os outros.

 

Por momentos, ela pensou que ele se fosse recusar, mas, subitamente, viu Toby à espera dela à beira do trilho. Andy olhou para ele com um ar de desdém e deu meia volta. Ao fim de alguns segundos, ele tinha desaparecido no meio da fila que avançava lentamente. Toby foi ter com elas.

 

- Suponho que o espantei?

 

- Espantaste. - Anna sorriu. - E isso era importante porque nós vamos escapar-nos. Queremos entrar no santuário enquanto estiverem todos distraídos e tentar chamar os sacerdotes.

 

Toby olhou por cima do ombro.

 

- Não temos sorte nenhuma. Olha para as luzes. E ali há homens a acompanhar as pessoas até aos seus lugares. - Ele ficou a observar os homens, as mulheres e as crianças que passavam por eles. - Certamente que não tem de ser dentro do santuário? Perto do templo serve. E ali? - Ele apontou para a direita, por baixo do Pavilhão.

 

- Vens connosco? - Era óbvio que Serena estava a ficar agitada. Toby abanou a cabeça.

 

- Não, a não ser que queiram que eu vá. Esta é uma coisa feminina, não é? Mas, se quiserem, eu ajudo-vos a encontrar um lugar e ficarei de guarda.

 

- Temos de agir rapidamente. Quando estiverem todos sentados, não vamos conseguir escapar-nos. - Serena estava a olhar freneticamente em volta.

 

- Está tudo bem iluminado. Eu não sabia que a ilha era tão pequena. Vai ser muito difícil encontrar um sítio privado!

 

- Havemos de arranjar um. - Toby lançou-lhe um sorriso tranquilizador.

 

- Sigam-me por aqui. - Ele saiu subitamente do trilho e baixou-se no meio de dois arbustos. - Estão a ver? - perguntou ele em voz baixa. - Nos sítios onde a luz não chega, as sombras são incrivelmente negras, É o contraste. Aqui, à beira da água, ninguém vos vai ver. É o local perfeito.

 

Com os pés a escorregar no caminho arenoso, seguiram o trilho estreito que ele encontrara ao longo do lado da ilha, para longe das filas de cadeiras iluminadas. Agarrando-se à orla de pedra por baixo do Pavilhão de Trajano, encontraram uma faixa de arbustos e uma pequena praia. Toby agachou-se no escuro.

 

- A não ser que tenham azar e que um foco de luz venha nesta direcção, aqui ninguém vos vê. Eles estão todos ofuscados pelos projectores e, uma vez iniciado o espectáculo de luz, toda a gente se vai concentrar nele. Certo? Têm cerca de uma hora, suponho. Eu vou colocar-me atrás dos espectadores e manterei os olhos bem abertos. No fim, venho ter convosco aqui. - Ele olhou em volta. - Boa sorte. Tenham cuidado. - Ele beijou rapidamente Anna nos lábios e deu meia volta. Ouviu-se um sussurro de folhas secas e ele desapareceu.

 

Serena já se tinha ajoelhado na areia e estava a remexer no saco.

 

- Com todas as luzes que há por aí, acho que ninguém vai reparar numa vela. Acendo-a mais tarde juntamente com o incenso. Preciso disso para chamar a deusa. - Ela estava a falar sozinha. Respirou fundo e mordeu o lábio. - Eu trouxe um lenço para colocar as coisas em cima. - As suas mãos tremiam enquanto ela dispunha a estatueta, o ankh, o incenso e o castiçal. Anna levou a mão ao seu próprio saco e tirou de lá o frasco de perfume. Desembrulhou-o e colocou-o aos pés de ísis. Depois ficou imóvel. Ouviram subitamente vozes por cima delas. Uma gargalhada soou através da água.

 

- Eles não conseguem ver-nos - murmurou Serena. - Vamos esperar até o espectáculo começar. - Ela olhou para o relógio no escuro e encolheu os ombros. - Não deve faltar muito. - Estava a mexer na caixa de fósforos e praguejou quando a caixa se abriu ao contrário e os fósforos lhe caíram no colo.

 

- Tem calma. - Anna estendeu a mão e tocou-lhe no braço. - Não há pressa. E aqui estamos em segurança. Toby tem razão. Ninguém nos pode ver, mesmo que estejam a olhar directamente para nós. - Ela fez uma pausa, olhando para cima. - Escuta, vai começar!

 

Subitamente, as luzes apagaram-se em toda a ilha. Serena susteve a respiração. A escuridão que as envolvia era tangível. O espectáculo tinha começado.

 

Era difícil ignorar o barulho atrás delas - as vozes dispersas, a música que ecoava através da água, o jogo de luzes a tecer a história -, mas as duas mulheres ajoelhadas ao lado uma da outra estavam concentradas no minúsculo quadrado de seda à sua frente. Serena riscou um fósforo e a chama acendeu-se, tremendo ligeiramente quando ela a segurou por cima do cone de incenso. Foram precisos três fósforos para o acender até que, por fim, o fino farrapo de fumo começou a elevar-se no ar. Ela virou-se para a vela. A sua chama ardeu por um momento, tremeu e moveu-se lateralmente, ameaçando apagar-se. Depois, finalmente, estabilizou e começou a arder bem.

 

- ísis, grande deusa, eu evoco-te! - Serena estava a falar num murmúrio.

- Ouve-me, grande deusa, aqui na ilha, perto do teu templo, ouve-me e vem em nosso auxílio. Chama os teus servos Anhotep e Hatsek; deixa-os vir à nossa presença resolver as suas discórdias e decidir sobre futuro desta âmbula sagrada com o seu conteúdo de lágrimas.

 

Ela estendeu a mão para a frente e, pegando no frasco, segurou-o na direcção do veludo azul da noite. Atrás delas, os sons da música e de estranhas vozes irreais aumentavam e ecoavam através da água até às rochas vulcânicas pretas ao longe. Anna tremeu violentamente.

 

- ísis, envia os teus servos até cá! Protege-nos, guarda-nos com a tua magia e manda-os falar aqui, esta noite, no teu chão sagrado! - A voz de Serena tinha-se erguido dramaticamente. Atrás deles, houve uma pausa no som e as luzes apagaram-se. A ilha susteve a respiração. Uma ligeira brisa tocou no rosto de Anna e ela viu a vela bruxulear. Levou a mão ao amuleto que tinha ao pescoço.

 

Os olhos de Serena estavam fechados. Ela pousou o frasco no chão e depois ergueu novamente os braços para o céu.

 

Algures, através da água, um pássaro soltou um grito agudo. Elas conseguiam sentir o cheiro do ar limpo e frio do deserto, misturado com a mirra, o zimbro e o mel do cone de incenso aceso.

 

Uma pequena luz tinha aparecido na praia a alguns metros delas. Anna susteve a respiração. Olhou para Serena e depois, em silêncio, por cima do ombro, para o templo. Conseguia ver os holofotes a traçar arcos no céu. Nenhum deles estava a apontar naquela direcção.

 

A luz perto delas tornou-se maior. Alongou-se na forma de uma figura e pareceu ficar mais sólida. Ela susteve a respiração. Serena tinha baixado os braços e cruzou-os sobre o peito. Estava ajoelhada, de cabeça baixa, à espera.

 

Ela está à espera que eu fale. Anna tinha a boca seca de medo. Ela tinha de falar, de perguntar ao sacerdote o que ele pretendia. Olhou para a figura na praia. Esta tinha-se aproximado. Estava junto de Serena. Ela viu a sombra passar pelo rosto de Serena.

 

Os olhos de Serena abriram-se subitamente com uma expressão de grande angústia.

 

-Traidor! - gritou ela.-Traidor malvado! - Atrás delas, a música atingia um crescendo. - As lágrimas de ísis pertencem ao rei-menino. Elas vão salvar-lhe a vida!

 

Anna soltou uma exclamação. Sentiu uma dor de cabeça intensa. Não conseguia respirar. Sentia o seu corpo a ficar quente e repentinamente pôs-se de pé. Teve a sensação de ser muito mais alta do que Serena.

 

- Elas pertencem aos deuses! As lágrimas pertencem aos deuses e eu certificar-me-ei de que não servirão mais ninguém! - As palavras estavam a ser arrancadas à sua própria boca.

 

Ela viu Serena erguer os olhos. A sombra nebulosa era fina e imperfeita. Houve outra rajada de vento vinda do deserto e, quando a chama da vela diminuiu e emitiu fumo preto, Serena pôs-se de pé.

 

- Anna! - A sua voz vinha de muito longe. - Anna, sê forte! Pensa na luz! Oh, grande ísis, protege a Anna. Dá-lhe força! Anna! Anna, consegues ouvir-me?

 

Mas Anna estava muito longe. Erguendo o olhar na direcção do sol, ela conseguia vê-lo a subir no céu, uma gloriosa bola de fogo num oceano azul de eternidade. Ela conseguia ver as rochas altas douradas, a entrada do templo, oculta e secreta, onde a deusa tinha a sua casa na terra.

 

Lentamente, aproximou-se mais dele, deixando-se levar pelo vento quente do deserto, ouvindo as areias que murmuram ao longo de distâncias imensas. Naquele templo escondido estavam os segredos da eternidade, guardados por apenas dois sumo-sacerdotes que tinham jurado servir os deuses ao longo da vida após a vida, durante toda a eternidade. Ela aproximou-se mais, pressentindo o chacal predador, o leão sagrado do deserto que, tal como ela, tinha jurado servir. E aos seus pés, as serpentes do deserto, a cobra, a víbora e a áspide. Na mão, ela tinha uma faca cuja lâmina de ouro puro tinha sido trazida do coração mais profundo de África para reflectir a chama do deus sol e transformá-la em fogo.

 

- Anna!

 

Uma voz a milhares de anos de distância ecoou no silêncio. O rio em toda a sua beleza lambeu as praias do deserto, subiu, inundando-as e trazendo grande abundância, baixou e voltou a subir.

 

Por amor de Deus. O único Deus, todos os deuses. Uma coisa tão simples. Algumas gotas de um líquido sagrado seladas num recipiente de vidro minúsculo, banhado no sangue de um amigo.

 

- Anna! Por favor, consegues ouvir-me? Anna!

 

Anna sorriu e abanou a cabeça. Agora ela conseguia ver o rio aos seus pés. As águas são frias, revigorantes; alimentam o lótus sagrado e lambem as areias para que a leoa consiga beber...

 

- Anna! - Subitamente, foi como se a cabeça de Anna tivesse descaído para trás, sobre os ombros. Um jorro de água gelada atingiu-a no rosto.

 

Serena abanava-a violentamente. Largou-a para apanhar outra mão-cheia de água e atirou-lha, depois agarrou-a e voltou a sacudi-la.

 

- Tu não te protegeste, sua tola! Ele possuiu-te. Hatsek esteve dentro de ti! Eu vi o rosto dele no teu. Vi os seus traços. Vi o seu ódio. Tu podias ter-me matado, Anna! - Serena empurrou-a com tanta força que Anna cambaleou e caiu. - Tens alguma noção do perigo que corremos? - Ela estava de pé à beira do rio, junto de Anna, com o cabelo desgrenhado. Atrás delas, o altar improvisado tinha-se espalhado, a vela e o incenso tinham caído e a estátua estava deitada de lado.

 

Anna esfregou o rosto molhado com água do Nilo. Sentiu um arrepio.

 

- Que é que eu fiz? - perguntou ela, olhando em volta, confusa. Atrás delas, uma luz recaiu subitamente sobre o Pavilhão de Trajano iluminando as elaboradas colunas altas. Serena agarrou nela e puxou-a para as sombras. - Tu eras Hatsek, não compreendes? Ele possuiu-te, Anna. Ele dominou-te.

 

- Ele usou a minha voz? Tal como Anhotep usou a tua?

 

A areia. O vento do deserto. O sol escaldante. Eles ainda lhe enchiam a cabeça, embora o céu acima dela estivesse preto e semeado de miríades de estrelas.

 

- Ele usou os meus olhos. Mas não estava a ver isto. - Ela fez um gesto em volta, confusa. - Eu vi o templo. O templo onde Anhotep o enganou. Estava escondido nas rochas, algures no deserto ocidental na orla das montanhas. Anhotep queria a água sagrada da vida para o faraó, para a usar como medicamento. Mas isso era um sacrilégio. De qualquer modo, nada poderia tê-lo salvo. Não podia ser. A história já estava escrita. - Ela abanou lentamente a cabeça de um lado para o outro. - O servo da deusa era servo do único Deus. De Aton. O traidor foi Anhotep. - Ela levantou o olhar para Serena, confusa. Já não sabia o que significavam as palavras que jorravam da sua boca.

 

- Não. - Serena abanou a cabeça. -- Não, Anna. Isso não é verdade. Eles zangaram-se. Houve traição. Houve um assassínio que teve de ser ocultado. Ela olhou para o chão e, seguidamente, com uma exclamação de desânimo, caiu de joelhos. - O frasco? Onde está? Desapareceu!

 

Anna encolheu os ombros.

 

- Deixa. Os sacerdotes levaram-no. Não tem importância. É melhor que ele tenha desaparecido. Morreu tanta gente...

 

Serena parou de escrevinhar na areia e olhou para ela.

 

- Que é que queres dizer com tanta gente? Quantas pessoas?

 

- Muitas. Não foi só Hassan. Houve gerações de pessoas ao longo de milhares de anos. O que quer que estivesse dentro do frasco, quer eles fossem sacerdotes de ísis e de Sekhmet, ou de Amon, ou de Aton, o líquido era algo que não deveria estar em nossa posse. Deixa-o voltar para os deuses.

 

Ela virou-se e olhou para o templo. O som tinha parado. Os holofotes estavam novamente acesos. Uma onda de aplausos percorreu o ar da noite.

 

- Terminou. Temos de ir. Deixa. Deixa isso tudo aqui na ilha da deusa. Ela baixou-se e apanhou o lenço. - A estatueta, o ankh, o frasco. Que fiquem enterrados na areia e desapareçam. - Ela virou-se na direcção das palmeiras no momento em que uma figura aparecia, saída da escuridão. Era Toby.

 

- Como é que correu? Funcionou? - Ele olhou de uma para outra e ergueu uma sobrancelha. - Então? Que é que aconteceu?

 

Serena encolheu os ombros.

 

- Perdemos o frasco. Desapareceu. - Ela baixou-se e começou a meter as outras coisas no saco. Limpou a areia da pequena estatueta de íris sentada no trono e guardou-a. Não ia deixar as coisas para trás, talvez voltasse a precisar delas. A sua oferenda a ísis, uma pequena pregadeira de ouro, tinha sido colocada silenciosamente na água enquanto Anna e Toby conversavam. Aquelas eram as ferramentas do seu ofício.

 

- Anna? - Toby tocou-lhe no ombro. - Estás bem?

 

Anna acenou com a cabeça, sem dizer nada. Estava a olhar para a escuridão e não olhou para ele.

 

Ele franziu o sobrolho, depois virou-se para Serena.

 

- Temos de ir. Têm tudo? - Ele olhou em volta. Depois parou e apontou.

- Ali está o teu frasco. Estão a ver? Rolou para aquela cova no cascalho. - Ele baixou-se e apanhou-o. - Anna?

 

Ela não parecia tê-lo ouvido. Na sua mente, ainda estava a observar os enormes espaços do deserto. Ele encolheu os ombros e olhou para Serena. Ela tirou-lhe o frasco.

 

- Eu tomo conta dele. - Enfiou-o no saco que tinha ao ombro e tocou no braço de Anna. - Pronta?

 

Anna acenou lentamente com a cabeça em sinal afirmativo. Virou as costas ao rio e, quando Toby lhe estendeu a mão, pegou nela.

 

Atrás deles, o silêncio à beira da água era intenso. Os sons da noite tinham cessado. Durante algum tempo, aquela pequena parte da ilha susteve a respiração, depois, lentamente, os sons regressaram e a água voltou a lamber a praia.

 

Andy estava à espera delas perto do desembarcadouro.

 

- Então, que é que acharam? - Ele sorriu para Anna. - Fabuloso, não? Anna fez um sinal afirmativo.

 

- Foi fabuloso, sim. - Por um momento, ela levou as mãos ao rosto e esfregou-o com um ar cansado, tentando acordar. Ainda se estava a sentir estranhamente distante, desligada.

 

- Só que não o viu, claro. - Andy inclinou-se mais para ela. - Imagina que eu não reparei que desapareceu?

 

Ela deu um passo atrás franzindo o sobrolho. Conseguia cheirar álcool no hálito dele.

 

- Andy!

 

- Teve de se esconder no meio dos arbustos com o seu namoradinho, suponho! Não acredita em mim, pois não? Não acredita que ele seja um vigarista.

 

- Andy! - Toby largou o braço de Anna e deu um passo em direcção a ele.

- Já estou farto disto! Exactamente, que é que estás a tentar dizer?

 

- Que és um filho da mãe mentiroso, um assassino, e que devias manter-te afastado das mulheres decentes! - Andy tirou uma garrafa da mochila que trazia ao ombro e bebeu um golo.

 

- Toby, não! - Anna regressou à realidade com um sobressalto. Agarrou na manga de Toby. - Deixa. Não lhe batas. É isso que ele quer...

 

Ela parou a meio da frase e abanou a cabeça. Levou as mãos às têmporas e olhou-o com um ar inexpressivo. Estava a acontecer-lhe qualquer coisa outra vez. Agora havia gente à volta deles. Ela viu-os a olhar e a murmurar uns para os outros ao verem Andy acenar a garrafa no ar. Viu Ben estender o braço para Andy e tirar-lha calmamente da mão, viu Ornar colocando-se entre ele e Toby, a gesticular, mas, ao mesmo tempo, ela viu o enorme sol branco, o deslumbrante deserto vermelho-dourado; era a cena vista através dos olhos de um homem, sobreposta a todo o resto. As vozes afastaram-se. Ficaram abafadas.

 

Os pés dela moviam-se lentamente na direcção dos barcos. No rio, havia outros barcos a chegar, trazendo turistas para a segunda sessão do espectáculo de luz e som que deveria ter início muito em breve. Não viu Serena. Nem Toby. Começou a olhar freneticamente em volta. Os seus olhos não conseguiam focar-se. Via dunas; o vento atirava-lhe areia para os olhos, picando-lhe o rosto; o céu distante era de um azul-luminoso. Depois viu Andy ao seu lado. Ele estava a sorrir e a estender uma mão para ela.

 

- Por favor, pessoal. Temos de voltar para o barco. O cozinheiro tem um jantar maravilhoso à nossa espera. - Ornar reuniu o seu rebanho. - Por favor, despachem-se. Se chegarem atrasados para o jantar, Ibrahim mata-me! - Ele sorriu e afastou-se, juntando mais o seu grupo de turistas, ansioso por não perdê-los no escuro.

 

Anna ficou para trás. Voltou a abanar a cabeça, tentando concentrar-se.

 

- Onde está Toby? Andy deu uma gargalhada.

 

- Provavelmente, a Interpol veio buscá-lo. A ele e à louca da Serena, aos dois. - Ele estendeu o braço e pegou-lhe na mão. - Charley já voltou para casa. Sabia? Foi evacuada por estar doente. Não conseguiu aguentar. Por isso agora eu posso prestar-lhe toda a minha atenção, querida. A si e ao seu belo diário. Olhou para o saco dela. - Por favor, não me diga que o trouxe consigo.

 

Ela tentou retirar a mão.

 

- Andy, por favor, deixe-me em paz! Eu não gosto que me esteja sempre a tocar. - Ela estava a ter novamente dificuldade em focar o olhar. Mais difícil ainda era concentrar-se no que estava a acontecer à sua volta.

 

Estavam agora todos parados, uma pequena multidão na orla do pátio do templo a descer lentamente os degraus que iam dar ao desembarcadouro onde se encontrava o primeiro barco a motor. Em frente deles, no outro extremo do canal onde as luzes de Aglika não chegavam, as enormes pedras da ilha de Biga eram cavernas negras nas sombras da noite.

 

- Anna! - Serena surgiu subitamente ao seu lado. - Estás bem? Estavam quase na frente da fila.

 

- Claro que está bem. - Andy ainda estava ao lado dela. - Eu estou a tomar conta dela.

 

Serena franziu os lábios.

 

- Que é que te deu para trazeres uma garrafa de vodka?

- Ele encolheu os ombros.

 

- Noite fria. Pareceu-me uma boa ideia. Eu dei-a a Ben. Se quiseres um golo, é melhor pedires-lhe a ele.

 

- Pedir-lhe a ele! - Serena fitou-o, escandalizada. - Fazes alguma ideia de como ofendes os egípcios ao embriagares-te assim? És um idiota!

 

O homem que supervisionava o embarque ergueu a mão. O barco estava cheio. Afastou-se do desembarcadouro e virou para o rio, ao mesmo tempo que um segundo barco se aproximava em direcção a eles.

 

Anna tomou subitamente consciência de que Toby estava ao seu lado. Olhou para ele e sorriu.

 

- Parece que Andy está empenhado em nos envergonhar a todos.

 

- Que grande surpresa! - A voz de Toby era severa. - Bem, se ele quer fazer figura de tolo, eu sugiro que o faça noutro local, onde tenha menos probabilidades de cair ao rio! - Ele agarrou no braço de Andy e levou-o até à beira do ancoradouro, onde Ben estava sentado. - Importa-se de tomar conta dele, Ben? Ele não está exactamente sóbrio e começa a ser bastante maçador. Deixou-o e voltou para junto de Anna. - E tu, Anna, não estás com muito bom aspecto. Que é que aconteceu ali na praia? - Ele estava a falar-lhe baixinho ao ouvido.

 

Ela fitou-o, franzindo o sobrolho.

- Foi uma coisa muito estranha.

 

O barco bateu suavemente contra a plataforma e um membro da tripulação desprendeu a corrente do corrimão para eles poderem subir para bordo. Seguiram por entre as filas de assentos, passando pelo motor e chegaram à zona larga da popa. Anna sentou-se num canto, com Serena de um lado e Toby do outro. Abanou a cabeça.

 

- Acho que devo estar cansada, é tudo. Sinto-me muito estranha. - Ela ergueu os olhos. Andy estava a dirigir-se a eles com um sorriso e sentou-se num lugar à frente dela.

 

Ben tinha-o seguido e sentou-se ao lado dele com um encolher de ombros.

 

- Eu penso que este sujeito precisa de comer qualquer coisa - comentou ele num tom bem disposto. - Depois de jantar, ele fica bem. Então, que acharam do espectáculo, minhas senhoras? Gostaram? - Ele aproximou-se mais de Andy à medida que cada vez mais pessoas se agrupavam à volta deles.

 

- Foi bom. - Anna acenou afirmativamente com a cabeça e sorriu.

 

- Nada bom. - Andy inclinou-se para a frente e tocou-lhe nos joelhos. Ela não o viu, a malandreca. Estava na marmelada com o nosso ex-presidiário aqui.

 

O rosto de Toby ficou tenso e Anna agarrou-lhe no braço.

 

- Não reajas. Por favor, ignora-o.

 

Andy estava imparável. Virando-se para Anna, ergueu a voz para se fazer ouvir acima dos risos, das conversas e do ruído do motor em ponto-morto atrás deles, no poço central do barco.

 

- Então, trouxe aquele belo frasco de perfume consigo para o espectáculo? Parece que não consegue andar sem ele.

 

- Trouxe-o, sim. - Ela sorriu. O tom do motor alterou-se. O homem que estava no embarcadouro ergueu a mão e o barco começou a afastar-se da ilha. Atrás deles, o templo iluminado era totalmente visível, parecendo flutuar na água enquanto eles se dirigiam ao canal largo e viravam em direcção a terra.

 

- E ele fez magia para si? Os seus sacerdotes assistentes manifestaram-se na ilha de ísis? - perguntou ele com um enorme sorriso.

 

- Sim, manifestaram-se. - Anna tinha os lábios cerrados.

 

- Então, a sua magia funcionou. Esfregou-o uma, duas, três vezes, e o génio da garrafa apareceu. - Ele atirou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada, imensamente divertido.

 

-Apareceu, sim.-Anna virou-lhe as costas, na tentativa de o desencorajar.

 

- Então, que vai acontecer a seguir? - Ele sentou-se mais à frente do banco e bateu-lhe no joelho. - Eles vão mostrar-se no barco? Quando voltarmos a Luxor, pode pedir-lhes que apareçam na festa do paxá e façam um número de variedades para nós? Ouviram isto? - Ele pôs-se de pé e levantou a voz. - Os fantasmas do antigo Egipto da Anna vão fazer um número de variedades para nós. - Ele ergueu os braços acima da cabeça e sacudiu sugestivamente as ancas.

 

- Senta-te, Andy. Estás a portar-te como um imbecil! - Ben puxou-o pelo braço.

 

- Eles não vão voltar a aparecer, Andy - disse Anna em voz baixa. - Pela simples razão de que eu deixei o frasco na ilha. Ficou enterrado na areia. Desapareceu para sempre. - Ela olhou-o com um ar irónico. - Felizmente para si, ninguém voltará a vê-lo. Nem a ver quem o guardou, por isso vamos colocar uma pedra sobre o assunto. Por favor. - Doía-lhe outra vez a cabeça. Enquanto olhava para ele, parecia ter uma gaze sobre os olhos. Pestanejou desesperadamente.

 

Andy deu uma gargalhada.

 

- Eu sabia que acabarias por perdê-lo. De qualquer modo, o estúpido do frasco era falso.

 

- Não era falso, Andy. - Serena virou-se subitamente para ele. - Quem é falso aqui és tu. Um cretino pedante, estúpido e fala-barato! Não imaginas como estou farta da tua voz, das tuas opiniões, dos teus comentários trocistas!

- Ela baixou-se e meteu a mão no saco. - Para tua informação, a Anna não perdeu o frasco. Eu peguei nele e trouxe-o comigo. Ele merece uma sorte melhor do que ficar enterrado na areia! - Ela estava a remexer no saco. - E se alguma coisa consegue provar como tu és estúpido, é isto. Tu és um ignorante. Não percebes nada de antiguidades. Isto tem mais de três mil anos! - Ela pegou no pequeno frasco e acenou-o na direcção dele.

 

- Serena! Eu tinha-o devolvido aos deuses! - Anna estava furiosa. Dá-mo!

 

- Porquê? Tu não o queres, deitaste-o fora! Eu vou certificar-me de que ele é preservado em segurança.

 

- Não, Serena! Esse frasco provocou a morte de dezenas de pessoas, talvez centenas...

 

- Só porque elas não sabiam o que ele era. Nós sabemos! Nós vamos tratá-lo com o respeito que ele merece. Nós tomaremos conta dele.

 

-Três mil anos? Isso? - Andy sentou-se pesadamente. Libertou o seu braço de Ben com um encolher de ombros petulante.

 

- Sim, Andy. Isto. - Serena segurou-o na palma da mão. - Isto é muito sagrado. Muito especial. - Ficou sentada a olhar para ele, sentindo pelo menos uma dúzia de pares de olhos fixos nela à medida que os passageiros à volta aguardavam para ver o que aconteceria a seguir. O tom do motor alterou-se quando o homem ao volante alterou o rumo e, por um momento, foram atingidos pelos fumos de gasóleo, depois estes desapareceram e o ar frio da noite fez-se sentir novamente ao longo do barco. Serena estremeceu e ergueu os olhos para Andy. - Se eu to der, sabes o que irá acontecer? - Ela estava a gritar acima do ruído do motor e do som da água a bater nas tábuas do barco.

 

- O quê? - Andy sorriu. Ele estendeu a mão. - Mostra-me.

 

- Se eu to der, aparecerá uma cobra aqui no barco. Uma cobra maléfica, venenosa, mortífera. - Ela sorriu. - E ela mata-te.

 

- Basta! - Anna inclinou-se para a frente e arrancou-lhe o frasco da mão.

- Isto já foi suficientemente longe.

 

- Mostra-me! - Andy estendeu a mão na direcção dela. - Vamos. Mostra-me a cobra mágica! Eu quero vê-la! Não queres que eu a veja? - Ele fez um gesto na direcção dos outros passageiros. - Isso seria excitante, não seria? Ele pôs-se novamente de pé e equilibrou-se instavelmente em frente de Anna, estendendo a mão.

 

- Andy, não seja estúpido! - Anna teve de erguer a voz para se fazer ouvir.

 

- Devolve-mo! - Serena agarrou no pulso de Anna.

 

- Não. Não, Serena. Desculpa. - Anna afastou-se um pouco dela. - Isto pertence a outra era e a outra gente. Eles querem-no para os seus deuses. Louisa tentou dá-lo ao Nilo. Agora é a minha vez!

 

Ela pôs-se de pé e virou-se para a água.

 

- Não! - O grito de Serena ecoou através da água. - Não o deites fora!

 

- Tudo bem. Eu apanho-o! - Andy lançou-se para a frente, na direcção de Anna, quando esta levantou os braços e, com toda a força que tinha, atirou o frasco para a esteira do barco.

 

Andy falhou o braço dela, cambaleou e desequilibrou-se e, ao mesmo tempo que ela caía sobre o seu assento, ele agarrou-se ao corrimão, oscilou por um momento e mergulhou de cabeça.

 

- Andy! - O grito de Serena foi repetido por outros no barco, e a tripulação olhou para trás, compreendeu o que tinha acontecido, reduziu as mudanças e rodou o volante, descrevendo um pequeno círculo.

 

- Conseguem vê-lo? - Toby e Ben estavam a olhar para água escura.

 

- Lanternas! Alguém tem uma lanterna? - Toby descalçou-se e já estava de pé em cima do assento, a olhar para o rio. Ao mesmo tempo que vários feixes de luz fracos atingiam simultaneamente a água atrás do barco que agora andava à deriva, ele mergulhou.

 

Ben estendeu o braço para o lado, esforçando-se por libertar um dos velhos cintos salva-vidas de cortiça pendurados dos lados do barco.

 

- Aqui tens, Toby! - Ele atirou-o quando a cabeça de Toby reapareceu. Seguiram-se dois outros cintos que caíram na água perto dele.

 

- Andy! Andy, onde estás? - Serena estava debruçada sobre o corrimão, ao mesmo tempo que um dos membros egípcios da tripulação saltava para a água, próximo de Toby.

 

Subitamente, outros barcos começaram a sair da escuridão, descrevendo círculos à volta deles, com dúzias de passageiros debruçados sobre o lado, a olhar para o escuro. Ainda não havia sinal de Andy quando uma lancha rápida apareceu e um holofote brilhou subitamente sobre a cena. Dois, depois três homens, estavam agora na água, todos eles a mergulhar.

 

- A água é negra como breu! - Toby reapareceu, sacudindo gotas de água dos olhos. - Não se consegue ver nada. - Ele estava a mexer as pernas para se manter à tona de água, observando os reflexos à sua volta.

 

Anna afastou-se do corrimão e sentou-se. Pousou a cabeça nas mãos.

 

- Ele morreu, não foi? E a culpa é minha! Os deuses levaram-no! Eu matei-o. Ela ergueu o olhar para o rosto branco de Serena e as lágrimas corriam-lhe pelo rosto abaixo.

 

Serena voltou-se para olhar através da água.

 

- Se alguém tem culpa, esse alguém sou eu - murmurou ela. - Eu provoquei-o. Eu mostrei-lhe o frasco.

 

Havia agora vários homens a nadar com Toby, mergulhando à volta do barco. Mais adiante, tinha aparecido outra lancha e, desta vez, eles viram que os homens que se aglomeravam à volta da proa vestiam uniformes da Polícia.

 

- Eles hão-de encontrá-lo! - Ben sentou-se ao lado de Anna e colocou a mão sobre a dela. - Ele nada bem, que é uma coisa que eu não faço, senão estaria ao pé deles.

 

- Mas ele estava tão embriagado! - Serena abanou a cabeça.

 

- Eu sei. Mas será preciso mais do que um mergulho no Nilo para derrotar Andy. - Ben não parecia acreditar nas suas próprias palavras tranquilizantes. Por um momento, deixou-se ficar ali sentado, depois pôs-se novamente de pé e juntou-se aos olhos que perscrutavam desesperadamente a água.

 

- Eles não vão conseguir encontrá-lo. - Anna olhou para Serena. O barco estava agora surpreendentemente silencioso, sem o ruído motor nem o da água a bater alegremente na proa.

 

Os outros passageiros estavam sentados em silêncio, a olhar em volta, paralisados de choque. Serena abanou a cabeça.

 

- Tal como dizes, os deuses levaram-no. Ele estava a troçar deles, Anna, e pagou o preço. - Ela mordeu o lábio.

 

Uma ligeira onda de choque percorreu o barco quando uma lancha se aproximou e dois agentes da Polícia de Turismo subiram para bordo. Houve uma excitada troca de palavras com o comandante do barco, depois eles dirigiram-se para a ré, onde Anna e Serena estavam sentadas. Um dos agentes sentou-se ao lado delas.

- Este cavalheiro tinha estado a beber álcool?

Ambas as mulheres acenaram afirmativamente com a cabeça.

 

- Ele estava muito embriagado? - O homem mais alto, obviamente com uma patente superior, falava fluentemente inglês, embora com um sotaque bastante acentuado.

 

Anna ergueu o olhar.

 

- Sim, ele estava muito embriagado. Por qualquer motivo, tinha trazido consigo uma garrafa de vodka. Ele pôs-se de pé e... - ela fez uma pausa, sentindo as lágrimas a voltar - ... e mergulhou de cabeça.

 

- A água está muito fria. - O homem abanou a cabeça. Olhou com um ar de desalento para o rio. - Ele sabe nadar?

 

- Sabe. - Ben tinha-se juntado a eles. - Ele nada bem.

 

- Nesse caso, as notícias não são boas. Ele devia ter vindo à superfície e gritado. - O polícia encolheu os ombros. - Yallahl - Ele virou-se para o seu companheiro e, após uma breve troca de palavras em tons rápidos e eloquentes, os dois homens voltaram para junto do comandante, que se encontrava ao leme do barco a abanar a cabeça e a limpar repetidas vezes as mãos com um trapo cheio de óleo.

 

Um a um, os nadadores estavam a subir novamente para os seus barcos. Anna viu Toby a manter-se outra vez à tona de água, a olhar para um dos homens da lancha da Polícia. Abanou a cabeça, mas o homem debruçou-se e ela viu Toby ser içado para fora de água. Alguns minutos mais tarde, ele estava de novo no barco, embrulhado num cobertor. Quando chegou ao pé dela, estava a tremer de frio.

 

- Ele simplesmente desapareceu. Na escuridão, a água parece tinta. Se erguermos os olhos, conseguimos ver as luzes, mas nada abaixo de nós. Nada!

 

- Foi muito corajoso da tua parte ir atrás dele. - Anna inclinou-se para a frente para lhe tocar na mão. Esta parecia gelo.

 

Ele abanou a cabeça.

 

- Eu não parei para pensar. Devia ter esperado. Para ver onde é que ele vinha à superfície da água.

 

- Ele não veio à superfície, Toby. - Serena tinha lágrimas no rosto. Estivemos todos a ver.

 

Só muito mais tarde é que os passageiros regressaram ao barco. Os membros da tripulação estavam à espera deles com uma expressão solene no rosto e foi-lhes pedido que se dirigissem imediatamente para a sala de jantar. Enquanto Toby era levado por Ornar para ser visto por um médico depois da sua longa imersão no Nilo, os outros seguiram obedientemente para a sala de jantar e sentaram-se. Ninguém tinha grande apetite, e não demorou muito até se começarem a dirigir, em grupos de dois ou três, para os seus camarotes. Serena foi até ao camarote de Anna e sentaram-se as duas em cima da cama.

 

- Foi um acidente estúpido, Anna. - Serena abraçou a sua amiga. - Ele estava embriagado.

 

- Foi culpa nossa. Nós demos-lhe corda. Se eu não tivesse deitado o frasco fora, isto não teria acontecido. - Anna estava a olhar para a parede com os olhos semicerrados. Havia qualquer coisa errada com os seus olhos. Ela conseguia ver novamente o sol; a areia, os ramos de uma palmeira alta movendo-se interminavelmente.

 

- Não. Podia ter acontecido em qualquer momento. Ele podia ter caído daqui, deste barco! Andy era assim! - Serena encolheu os ombros. - Ele era um idiota. Um grande idiota estúpido, maldoso, mentiroso... - Subitamente, ela estava a soluçar violentamente.

 

Anna pôs-se de pé. Abanou a cabeça e esfregou os olhos.

 

- Vou buscar qualquer coisa ao bar para nós. - Hesitou, depois dirigiu-se à porta e saiu para o corredor deserto.

 

Ibrahim estava atrás do bar. Havia várias pessoas no salão sentadas em grupos nos sofás, a conversar em voz baixa. Ele ergueu o olhar quando Anna entrou e franziu o sobrolho.

 

- Usou o amuleto?

 

Ela acenou com a cabeça em sinal afirmativo. Ibrahim encolheu os ombros.

 

- Os deuses ainda são poderosos, mademoiselle. Tenho pena de Monsieur Andrew, mas estas coisas acontecem. Inshallah!

 

- Ele não merecia morrer, Ibrahim. - Ela subiu para um banco e apoiou-se nos cotovelos com um ar cansado.

 

- Não nos compete a nós decidir, mademoiselle.

 

- Eu podia tê-lo salvo? - Ela ergueu o olhar e os seus olhos cruzaram-se com os dele.

 

- Não se estivesse escrito que aquele era o seu destino.

 

- Eu continuo a pensar que vamos ouvir a voz dele; que ele nadou debaixo de água e que subiu para as rochas algures. Que o vão encontrar com vida.

 

Ibrahim inclinou ligeiramente a cabeça.

 

- Tudo é possível.

 

- Mas não provável.

 

Ele encolheu os ombros.

 

- É a vontade de Alá, mademoiselle.

 

- Que irá acontecer? O cruzeiro será cancelado? Ele voltou a encolher os ombros.

 

- A Polícia virá amanhã. E o representante da agência de viagens. Ornar vai falar com eles. Suponho que vão perguntar por si. Este barco é muito pequeno. Toda a gente conhecia Monsieur Andrew. Toda a gente está triste.

 

Ela acenou lentamente a cabeça.

 

- Só me apetece deitar e dormir.

 

- Quer levar uma bebida para a cama?

- Sim, por favor. E uma para Serena.

Ele fez um sinal afirmativo.

 

- Eu levo-as ao seu camarote. Pode ir andando. - Ele virou-se para a prateleira, depois olhou outra vez rapidamente para ela.-Mademoiselle, não tire o seu amuleto. Nem sequer por um segundo. Ainda há perigo perto de si.

 

Ela franziu o sobrolho. Levou automaticamente a mão à garganta. Teve vontade de perguntar por que é que ele tinha dito aquilo. Mas o homem já estava ocupado, de costas para ela, e Anna compreendeu subitamente que não queria saber. Agora não. Já não conseguia suportar mais.

 

Serena estava deitada na cama com o diário de Louisa na mão.

 

- Espero que não te importes. Deixaste o teu saco aberto na mesinha e apeteceu-me ler as últimas páginas. Pensei que talvez me ajudasse a distrair.

 

Anna sentou-se ao lado dela.

 

- Boa ideia. - Ela suspirou. - Ibrahim vai trazer-nos uma bebida ao camarote. Desconfio que ele vai preparar uma bebida que nos vai pôr knock out.

- Ela esboçou um sorriso cansado. - Então, que é que aconteceu a Louisa?

 

Serena sentou-se.

 

- Eu acho que deves lê-lo tu mesma. - Ela inclinou a cabeça quando ouviu bater suavemente à porta, abriu-a e recebeu a bandeja de Ibrahim.

 

- Aí tens. A bebida para te pôr knock out. - Ela colocou um copo em cima da mesa ao lado da cama para Anna e cheirou cautelosamente a sua. - Para um muçulmano e um abstémio, ele prepara cocktails bastante fortes. Anos de prática a satisfazer os desejos dos infiéis, sem dúvida. - Ela fez uma pausa e sorriu melancolicamente. - Não penses mais no assunto, Anna. Tu não tiveste culpa nenhuma. A culpa foi dele, por se ter embriagado.

 

Anna acenou com a cabeça em sinal de concordância. Sentia que estava quase a chorar.

 

-Eu deixo-te a ler - murmurou Serena.-Voltamos a conversar de manhã.

 

Depois de ela se ter ido embora, Anna ficou imóvel durante vários minutos. Seguidamente, pegou no copo. Descalçou-se, recostou-se nas almofadas e pegou no diário. Serena tinha razão. Só faltavam algumas páginas, e isso serviria para a distrair do presente, ao longo do que seria inevitavelmente uma noite de insónia.

 

Os três barcos permaneceram nos seus ancoradouros vários dias após o parto de Katherine. Depois, quando ela se sentiu suficientemente forte para ser transferida para o Lotus, os Fieldings e os Forresters partiram novamente, um atrás do outro, para a longa viagem para norte, deixando o Escaravelho para trás. Não havia sinal de Lorde Carstairs desde que Louisa deixara o barco dele no dia do nascimento da criança. As perguntas que Sir John fizera ao reis não tinham produzido mais do que um encolher de ombros e um eloquente olhar na direcção do céu. Uma busca não produziu sinais de qualquer tipo de cobra.

 

Foi em Luxor que ela tomou uma decisão.

 

- Vou apanhar o barco a vapor de regresso ao Cairo - disse ela aos Forresters depois do jantar, na noite em que levantaram amarras. - Ambos têm sido muito amáveis e hospitaleiros, mas eu quero ver os meus filhos.

 

No seu camarote, ela começou a arrumar os apetrechos de pintura. Treece trataria da roupa, mas eles eram especiais. Tinham sido arrumados e tirados do cesto por Hassan. Abriu um dos seus blocos de desenho e ficou muito tempo a olhar para o rosto dele, os afectuosos olhos escuros, a boca suave, as mãos que eram ao mesmo tempo fortes e sensíveis.

 

Estava muito calor no camarote e ela abriu as portadas. No outro lado do rio, uma fila de dahabeeyahs estava atracada junto da margem orlada de palmeiras. A maior parte apontava para norte. Para a maioria dos europeus, a temporada estava a terminar e chegara a altura de descerem o Nilo até ao Cairo, depois Alexandria, a costa mediterrânica e as rotas de regresso à Europa.

 

Ela pousou o bloco de desenho e ficou à janela a olhar para o crepúsculo. O sol era uma bola carmesim pendurada por cima das colinas de Tebas e projectava uma esteira vermelha ao longo da água.

 

Ouviu um som atrás de si no camarote, uma sensação, nada mais, de que não estava sozinha. Sem se voltar, ela soube o que era.

 

- Eu tentei devolver o frasco aos deuses - disse ela em voz baixa. - Ele volta sempre para mim. Que queres que faça? - Não tinha medo. Continuou a olhar através da água. Algures ao longe, onde as montanhas ficavam da cor do sangue antes de se cobrirem com o manto da escuridão, estava o templo onde aqueles sacerdotes tinham adorado os deuses a quem tinham dedicado as suas almas eternas.

 

O frasco, ainda embrulhado na sua seda manchada de água, estava algures no meio das tintas e dos pincéis em cima da mesa ao seu lado. O camarote estava a ficar escuro, à medida que o Sol se escondia atrás das colinas e o primeiro sopro do ar da noite murmurava através da água. Fechou os olhos.

 

”Leva-o. Por favor, leva-o.”

 

As palavras ecoaram com tanta força na sua cabeça que pensou que as tinha gritado em voz alta.

 

No outro lado do rio, nos barcos atracados ao longo da margem; os candeeiros estavam a ser acesos; as montanhas tinham desaparecido, e, uma a uma, as estrelas começavam a aparecer.

 

Atrás dela, bateram à porta com força e Treece entrou com um maço de velas. Pousou-as bruscamente em cima da mesa.

 

- Quer que a ajude a vestir-se, Senhora Shelley? - O rosto da mulher era azedo. Zangado. Alguns segundos depois, Louisa soube porquê.

 

- Sir John diz que o barco a vapor está cheio. Não existem camarotes disponíveis até à próxima semana, por isso vai ter de ficar connosco mais alguns tempos. - Ela fungou, num gesto de reprovação, depois deu meia volta para ir buscar um jarro de água.

 

Louisa ficou a olhar para ela com um ar de desânimo. Queria ir-se embora do Egipto. Queria fechar aquele capítulo da sua vida onde todos os sopros do ar do deserto a faziam pensar no homem que amara e que morrera por causa dela.

 

O seu olhar recaiu sobre a mesa. Por um segundo, o coração parou de bater. Ela pensava que o frasco tinha desaparecido. Depois viu-o, pequeno, embrulhado na seda suja, meio escondido por uma caixa de carvão. Quando Treece tinha arrumado as velas, a cera caíra sobre a mesa. Um pequeno pedaço pendia da seda suja como uma estalactite em miniatura, parecendo já tão antigo como o vidro debaixo do seu invólucro.

 

Enquanto olhava para ele, soube o que tinha a fazer. No dia seguinte, pediria a Mohammed que a levasse outra vez ao Vale dos Túmulos e enterraria o frasco na areia por baixo da imagem da deusa, e esta é que decidiria o seu destino.

 

As pestanas de Anna estavam a fechar-se. Bebeu outro golo do copo. Ibrahim tinha posto brande na bebida, mas também outras coisas. Coisas estranhas, amargas, que ela não conseguia identificar. O diário tornou-se subitamente pesado nas suas mãos e ela deixou-o cair em cima da colcha e ficou a olhar, sonolenta, para a janela do camarote. Até mesmo com o candeeiro ao lado da cama aceso, ela conseguia ver as estrelas acima da linha do horizonte. Com um suspiro, estendeu o braço e apagou a luz. Iria descansar os olhos por um momento, antes de se meter debaixo do chuveiro para suavizar a rigidez e a dor da noite.

 

À medida que adormecia mais profundamente, as sombras foram-se aproximando e os murmúrios da noite tornaram-se mais altos.

 

Foi acordada pelo sol. Quente. Vermelho. Escaldante atrás das suas pálpebras. Ela sentia o calor abrasador no rosto, as picadas nos pulmões cada vez que respirava, a areia como lixa nas suas sandálias. Caminhou lentamente na direcção do templo, sacudindo a cabeça contra a neblina que parecia rodeá-la, ora a rastejar através da areia sobre a barriga como uma cobra, ora a pairar no ar com o falcão e o sempre vigilante abutre aos círculos.

 

Ela vagueava, sem raízes, dominada pela ira, depois gelada de medo, à medida que os deuses se aproximavam, abanavam a cabeça e se afastavam.

 

- Anna? Anna!

 

As vozes ecoaram na sua cabeça, depois morreram, levadas pelo vento do deserto vindo do sul.

 

- Anna? Estás a ouvir? Oh, meu Deus, que é que lhe aconteceu?

 

Ela sorriu ao sentir os doces aromas de flores e frutos flutuar através da areia, oriundos dos edifícios dos templos. Anis e canela, endro e tomilho, figos e romã, azeitonas, uvas e doces e sumarentas tâmaras. Ervas aromáticas de jardins cuidadosamente irrigados e, das salas de incenso, resina e óleos.

 

As suas mãos estenderam-se na direcção da luz ofuscante. Sentia o vinho e o mel pegajosos nas palmas das suas mãos. Oh, terra bem-amada, Ta-Mera, terra de inundações e de fogo.

 

- Anna! - Era a voz de Toby, as mãos de Toby nos seus ombros, nos seus braços. - Anna, que é que se passa? - Ele estava muito distante, a sua voz era um eco através do tempo. Depois houve outras vozes, luzes brilhantes nos seus olhos, dedos no seu pulso. Encolheu os ombros. Eram distantes e pouco importantes. O Sol estava a pôr-se numa chama carmesim. Em breve as estrelas iriam brilhar ao longo do deserto: o enorme rio do céu, a via láctea, reflexo do rio lá em baixo, e, mais brilhante do que qualquer outra, a estrela sagrada, Sept, a estrela aos calcanhares de Osíris.

 

Depois ficou tudo escuro. Ela adormeceu. Quando acordou, sentiu as águas doces e frias do Nilo nos seus lábios. Ouviu novamente vozes que ecoavam ao longo de distâncias incalculáveis, outra vez o silêncio e a escuridão.

 

- Anna! - Era Serena. - Anna, tu vais voltar para casa.

 

Mas aquela era a sua casa. A casa dos deuses, a terra do deus sol, Ré.

 

Estranho. Estava num automóvel. Sentia as rodas a chocalhar, ouvia as buzinas, cheirava os fumos de tubos de escape, mas era tudo muito ao longe. Houve um braço forte à volta dos seus ombros e apoiou-se nele com gratidão, com o corpo absolutamente exausto enquanto o seu cérebro desejava ainda o deserto e o sol.

 

Voltou a adormecer. O ruído dos motores a jacto era o rugido das cataratas dentro da sua cabeça, com a água iluminada por arcos-íris debaixo da escura rocha nilótica, e as rodas a elevarem-se da pista eram o voo livre do enorme falcão cujos olhos conseguiam ver toda a terra do Egipto.

 

Obedientemente, bebeu sumo de fruta e mordiscou um pedaço de pão. As suas pálpebras fecharam-se. A cabeça encheu-se novamente com o grito do vento, a fúria de uma tempestade de areia e o feroz golpe de espada do relâmpago do deserto por cima das nuvens que nunca produziriam chuva.

 

Por cima da sua cabeça, Serena e Toby trocaram olhares e franziram a testa. Quando a hospedeira trouxe mais comida, eles recusaram.

 

O ar de Inglaterra era gelado e agreste. No táxi, Anna mexeu-se. A voz no interior da sua cabeça tornou-se rabugenta. O ser que olhava através dos seus olhos tornou-se irrequieto. Onde estava o sol?

 

Cada segundo que passava, Anna ficava mais fraca.

 

- Desculpa tê-la trazido para cá, mãe. Não sabíamos para onde a levar. Subitamente, a voz de Toby era clara, e ele ainda tinha o braço à volta dela, conduzindo-a, dando-lhe força. - Ela vive sozinha e, como dissemos, a Charley está em casa de Serena, por isso lá não há espaço, e eu não sei como é que hei-de contactar a família dela.

 

- Leva-a para cima, querido. - A voz que lhe respondeu era amável e profunda, culta e tranquilizadora. - Deixa-a dormir. O médico já vem a caminho.

 

Ela afundou-se na cama quente e macia e sentiu o abraço do edredão e o apoio das almofadas fofas na escuridão fresca de um quarto inglês.

 

Pouco a pouco, as suas garras foram-se soltando, e o domínio parasita sobre a sua força vital tornava-se mais fraco a cada momento que ela passava a dormir sob os céus frios do norte. O Egipto estava muito longe.

 

O sacerdote de Sekhmet olhou através dos olhos da mulher inglesa para um mundo desconhecido e estranho e sentiu-se subitamente dominado por um medo enorme.

 

Eu sou Ontem e Hoje; e tenho o poder

de nascer uma segunda vez.

Que a sentença de Amon-Ré, o rei dos deuses,

o grande deus, o príncipe do que existe

desde o início, seja cumprida

 

A febre que mata todos os ocupantes da casa do mercador choca os vizinhos e os seus amigos. O sobrinho dele vem buscar os seus tesouros e encaixota-os para os levar para o bazar. Ao longo das semanas e dos meses que se seguem, muito dinheiro troca de mãos. O bonito frasco, um presente apropriado para uma dama, com o pedaço de papel que conta a sua lenda, está em cima da prateleira, convidativo. Os sacerdotes, fortes e irados, lutam um contra o outro nas salas dos céus e rasgam as cortinas da escuridão com as suas lanças.

 

O mercador que toma conta da banca do bazar adoece. A sua última venda é a um jovem atraente com os olhos a brilhar de amor que procura um presente para a sua dama especial.

 

- Anna, está acordada? - Francês Hayward pousou a bandeja perto da porta e, atravessando o quarto até à janela, puxou as pesadas cortinas para trás, de modo que a luz aguada do sol de Inverno jorrasse ao longo da colcha de retalhos. Virou-se para olhar para a pessoa que estava sob o seu cuidado. A mulher que viu recostada nas almofadas estava pálida e muito magra, tinha o comprido cabelo escuro espalhado sobre a almofada e grandes olheiras de cansaço e tensão nos seus enormes olhos verdes, que se abriram devagar para ver nitidamente o quarto pela primeira vez.

 

Há dias que a estranha amnésia que lhe tinha coberto a mente e a impedira de funcionar a qualquer nível que não fosse o mais básico se fora tornando mais ligeira. Ela sorriu para Francês enquanto se sentava, apoiada nas almofadas. O quarto, que já tinha sido perfumado por uma jarra de jacintos cor-de-rosa colocada na mesa em frente da janela, ficou subitamente cheio do odor a café e torradas.

 

- Então, como é que se sente? - Francês colocou a bandeja em cima dos joelhos de Anna, depois sentou-se ao seu lado. Havia uma segunda chávena de café na bandeja e ela serviu-se, com os olhos postos no rosto de Anna.

 

Anna abanou a cabeça.

 

- Confusa. Baralhada. A minha memória está muito turva. Não parece estar a voltar. - Ela olhou rapidamente para Francês. A sua anfitriã era uma mulher alta com cabelo branco encaracolado. Tinha ossos fortes e um rosto bonito. A semelhança com Toby estava lá, oblíqua, mas inconfundível.

 

Ela olhou Anna com firmeza e sorriu.

 

- Quer que lhe diga outra vez? Eu sou Francês, a mãe de Toby. Está aqui há três semanas. Lembra-se de quem é o Toby? - Ela ergueu uma sobrancelha, num ar de interrogação.

 

Anna estava a brincar com um pequeno pedaço de torrada. Quando ela não respondeu, Francês prosseguiu:

 

- Conheceu-o num cruzeiro no Nilo. Adoeceu nos últimos dias que lá esteve. Toby e a sua amiga Serena não sabiam o que fazer, por isso trouxeram-na para aqui.

 

- E a Francês tem estado a tomar conta de uma perfeita desconhecida. Anna esmigalhou o pedaço de torrada entre os dedos.

 

- Tem sido um prazer para mim. Mas eu estou preocupada, minha querida. Deve ter amigos e familiares que deverão estar aflitos com a sua ausência.

 

Anna pegou na chávena de café e soprou suavemente o vapor quente. O cheiro penetrou-lhe profundamente no cérebro e ela franziu o sobrolho, tentando estimular a memória. Havia tanta coisa ali, mesmo fora do seu alcance, como um sonho que desaparece quando acordamos. Havia retratos de dunas de areia e calor cintilante, do azul-luminoso do rio e do verde das palmeiras, mas não havia quaisquer rostos, nem nomes, nada com que conseguisse identificar qualquer coisa. Bebeu outro golo de café e franziu a testa.

 

- Toby esteve a pensar que a sua memória talvez se avivasse se a levássemos a sua casa. Se se sentir com forças suficientes, claro. - Francês estava a observar o rosto de Anna.

 

Anna ergueu o olhar. A sua expressão ficou subitamente mais animada do que estivera até esse momento.

 

- Vocês sabem onde é que eu moro? Francês sorriu.

 

- Sim, isso nós sabemos! Mas não podíamos deixá-la lá sozinha, pois não? E não conhecemos ninguém a quem telefonar para tratar de si. Contou ao Toby algumas coisas sobre a sua família, mas ele não se recordava de quaisquer nomes, nem endereços.

 

Apanharam um táxi nessa tarde. Anna vestiu um par de calças emprestado e uma elegante camisola do guarda-vestidos de Francês para se proteger do vento frio de Março. Toda a roupa que tinha na mala era de tecidos leves de Verão destinados a ser usados num cruzeiro. Não havia lá nada que a protegesse do vento de sudeste que chicoteava as ruas, fazendo chocalhar placards, espalhando lixo ao longo dos passeios e assobiando nas antenas de televisão muito acima da rua.

 

O táxi parou à porta de uma bonita casa de Notting Hill e apearam-se todos. Anna ficou a observar os tijolos cinzentos, as janelas quadradas rainha Ana com jardineiras estreitas de ferro forjado, a porta azul com uma clarabóia em forma de meia-lua e um minúsculo jardim à frente. Parecia familiar e, no entanto, estranhamente desligada dela.

 

- Parece bonita - disse ela com um sorriso irónico. - Tens a certeza de que eu moro aqui?

 

- Eu não tenho a certeza de nada. - Toby colocou levemente um braço à volta dos seus ombros. - Vê se tens a chave.

 

Ela olhou bruscamente para ele, depois procurou no saco a tiracolo e tirou de lá um molho de chaves.

 

A casa cheirava a gelo e a vazio, e havia uma pilha de cartas atrás da porta. Anna baixou-se para as apanhar, dirigiu-se para sala de estar situada à direita do corredor estreito e olhou em volta. A sala estava mobilada com antiguidades, e as sóbrias madeiras envernizadas eram realçadas por almofadas, tapetes coloridos e cortinas vermelhas drapejadas que estavam meio corridas sobre a janela que dava para o jardim das traseiras.

 

Toby levou a mão ao interruptor.

 

- Bonita casa - disse ele com um sorriso.

 

Em cima de uma mesa ao lado de um pequeno sofá, a luz do atendedor de chamadas piscava, anunciando cinco chamadas.

 

- Só cinco, e estive ausente semanas. - Anna ficou a olhar para ele.

 

- Suponho que todos os teus amigos sabiam que estavas ausente. Só recentemente é que chegaram à conclusão de que já deverias estar de volta comentou Toby, sensatamente. - Não vais ouvi-las? - Ele estava de costas para a lareira, de braços cruzados. - Pode ser que nos dêem uma pista.

 

Anna encolheu os ombros. Estendeu a mão e carregou no Play. i -... Anna, querida, daqui fala a tua tia-avó Phyl! - Na sala silenciosa, a voz soava alta e indignada. - Onde é que andas? Disseste que virias visitar-me assim que voltasses. Estou morta por saber como é que te correram as coisas. Telefona-me. -... Anna? A tua tia-avó parece pensar que estás a evitá-la. Telefona-lhe a ela ou a mim, por amor de Deus! - Era uma voz masculina, zangada. O pai dela. Reconheceu-a sem hesitar um momento.

 

-... Anna, daqui é o Felix. Recebi o teu postal. Estou muito satisfeito por estares a divertir-te. Adeus. -Aquela também era familiar. Ela começou a sorrir. -... Anna? Anna, estás aí? - Silêncio, depois uma praga reprimida. Feminina. Desconhecida.

 

- ... Anna? É novamente a Phyllis. Minha querida, estou preocupada contigo. Por favor, diz qualquer coisa.

 

Toby estava a observar o rosto dela.

 

- Reconheceste as vozes?

 

Anna acenou afirmativamente com a cabeça.

 

- E esta casa. É tudo familiar. Mas não sinto que seja minha. - Ela abanou a cabeça e levou a mão aos olhos.-Sinto-me uma desconhecida. Mas reconheço tudo.

 

- Vou telefonar à tua tia. - Toby pegou no telefone e marcou 14711. Após uma pausa, ela viu-o carregar no 3 para retribuir a chamada.

 

O telefone tocou durante bastante tempo antes de ser atendido. -Queres falar com ela? - Toby estendeu-lhe o auscultador. Anna encolheu os ombros e pegou nele.

 

- Anna? Anna, graças a Deus, minha querida! Estava a começar a pensar que te tinhas apaixonado pelo Egipto ou que tinhas encontrado um belo xeque, ou qualquer coisa do género, e tinhas decidido não voltar mais para casa! - A voz no outro extremo fez uma pausa. - Anna?

 

Anna abanou a cabeça. As lágrimas caíam-lhe pelo rosto. Não conseguia falar.

 

Toby tirou-lhe o auscultador da mão.

 

- Menina Shelley? - disse ele, dirigindo um sorriso tranquilizador a Anna.

- Desculpe interromper. Eu chamo-me Toby Hayward. Estive no cruzeiro com a Anna. Ela não tem passado muito bem. Há alguma possibilidade de vir a Londres, ou posso levar Anna até aí? Ela quer muito conversar consigo.

 

Ele escutou durante alguns segundos, apressou-se a responder às perguntas ansiosas de uma forma tranquilizadora e acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

 

- Está bem. Eu levo-a a Suffolk amanhã. Estou muito contente por termos estabelecido contacto.

 

Ele pousou o auscultador.

 

- Ela queria que fosses hoje, mas eu pensei que talvez estivesses demasiado cansada. Vamos amanhã de manhã cedo. - Ele olhou para a mãe, que ficara em silêncio à porta, a observar a sala. - Enquanto aqui estamos, queres ajudar a Anna a procurar alguma roupa quente?

 

Anna passava distraidamente os olhos pelo correio que estava ao lado dela no sofá. Pegou num postal, observou a fotografia e depois leu a parte de trás. Depois outro. Ao que parecia, pelo menos dois dos seus amigos também tinham estado de férias recentemente. Havia várias contas que ela pôs automaticamente de parte sem abrir os envelopes, o que fez com que Toby, bastante divertido, comentasse que o seu bom senso não a abandonara juntamente com a memória.

 

1 Número que, em Inglaterra, permite identificar o número da última chamada recebida. (N. da T.)

 

- Foi apenas a memória das férias que desapareceu completamente-disse ela num tom cansado. - O resto parece estar cá, intacto. Reconheci a voz do meu pai e do Felix, o meu ex. Reconheci a de Phyllis.-Abanou a cabeça.-Não consegui lembrar-me deles espontaneamente; quando tu e o médico me fizeram perguntas, eu não me lembrei de nada; mas quando ouvi as vozes e os procurei na minha cabeça, eles estavam lá! - Calou-se. Estava a olhar para uma carta que tinha na mão. Tinha selos egípcios. O seu rosto ficou pálido.

 

Toby olhou para Francês e levou o dedo aos lábios. Ficaram ambos a observar Anna a abrir lentamente o envelope.

 

- É de Ornar - disse ela, lentamente. - Ele quer saber como é que estou. Ela endireitou a cabeça e os seus olhos abriram-se muito. As comportas

 

tinham-se aberto. Uma torrente de recordações, ruídos, imagens, gritos, jorraram subitamente para a sua cabeça. Anna sentou-se abruptamente e ficou a olhar para eles com um ar desvairado.

 

- Oh, meu Deus! Andy! Já me lembro. Andy morreu!

Toby sentou-se ao lado dela e colocou um braço à volta dos seus ombros.

- Recordas-te de mais alguma coisa? - perguntou ele, suavemente.

 

Ela estava a olhar fixamente para a carta que tinha nas mãos.

 

- O frasco de perfume. O frasco de perfume do sacerdote de Sekhmet! Subitamente, ela começou a soluçar, com as lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto. Levantou os olhos para Toby. - Lembro-me de Andy ter caído ao Nilo. Tínhamos ido a Philae.

 

Toby acenou afirmativamente com a cabeça.

 

- Depois o corpo desapareceu. Não havia sinal dele...

- Encontraram-no no dia seguinte, Anna...

 

- E Ibrahim deu-me um amuleto. - Ela levou a mão à garganta como se só naquele momento tivesse tomado consciência do amuleto que trazia ao pescoço, pendurado num fio. -Ainda o tenho! Mas ele é valioso. Eu devia ter-lho devolvido.

 

-Não, ele quis que ficasses com ele. Ele fez questão de me dizer que te pedisse que ficasses com ele para sempre, Anna. - Toby tirou a carta de Ornar das mãos de Anna e colocou-a em cima da mesa.

 

- Que aconteceu a Andy? - Ela virou-se para ele, cega pelas lágrimas.

 

-O corpo foi trazido para Londres e sepultado na aldeia-natal da família dele, em Sussex. Serena, Charley e Ben foram ao funeral.

 

- E a Charley? - Anna repetiu o nome. - Ela agora está bem?

 

Toby acenou afirmativamente com a cabeça.

- Está óptima.

 

- Então, sou só eu. - Ela olhou para as mãos. - Não foi choque, sabes. Subitamente, estava tudo claro na sua mente. - Ele precisou de mim. O sacerdote precisou de mim quando Charley deixou o Egipto e eu deixei-o entrar. A Serena evocou-o em Philae, e eu fiquei a olhar, a sorrir, ansiosa por ver o que acontecia, e ele saltou para dentro da minha cabeça! Serena sabia que ele era perigoso. Ibrahim sabia. Mas eu simplesmente abri-me e deixei que isso acontecesse! Onde está Serena? Que é que lhe aconteceu?

 

- Serena já te veio ver várias vezes, Anna - respondeu Toby. - Ela tem estado muito preocupada contigo. Tentou explicar ao médico que pensava que tinhas sido possuída, mas ele não esteve disposto a ouvi-la. Foi horrivelmente paternalista para com ela. Se eu próprio não tivesse visto, não acreditaria no modo como ele se comportou. Eu não teria ficado surpreendido se ela não tivesse voltado, mas voltou e trouxe outra pessoa para tentar ajudar-te. Só que, nessa altura, tu já não querias mais ninguém a bisbilhotar-te a cabeça e decidimos que era melhor esperarmos que a tua memória voltasse por si só. A minha mãe queria chamar um clérigo, mas a Serena disse que o sacerdote ficaria zangado.

 

Anna estremeceu.

 

- Tenho-vos causado tantos problemas assim? - perguntou ela, olhando-o com um ar infeliz. - E é tudo culpa minha.

 

- Não foi culpa sua. - Francês ajoelhou-se em frente dela. - Nada foi culpa sua. Como é que alguém podia saber que estas coisas terríveis iam acontecer?

- Ela sentiu um arrepio. - Venha. Deixe-me ajudá-la a meter algumas roupas quentes numa mala. Depois vamos para casa. Amanhã vai ver a sua tia-avó e as coisas começarão a voltar ao normal.

 

- Nada voltará a ser normal. - Anna abanou a cabeça. - Eu matei Andy. Com a ajuda daquele frasco estúpido.

 

- Não. - Toby foi firme. - O que matou Andy foi uma garrafa grande de vodka num estômago vazio! Nunca, mas nunca te culpes a ti própria, Anna.

 

Nessa noite, ocorreu-lhe pela primeira vez perguntar onde é que Toby ia depois de os três terem jantado juntos à pequena mesa redonda da cozinha de Francês, situada na cave. Ela só perguntou a Francês depois de ele se ter despedido de ambas com um beijo na face e de ter subido os degraus a correr, a brincar com as chaves do carro, desaparecendo na fria noite de Londres.

 

Francês deu uma gargalhada.

 

- Ele não lhe disse? Ele está a dormir em casa de alguém chamado Ben Forbes. Acho que o conheceu no vosso famoso cruzeiro. - Ela hesitou. - Toby vive na Escócia, Anna. Sabia isso, não sabia? Depois da morte da mulher, ele não quis viver mais em Londres e deu-me esta casa. Normalmente, quando vem a Londres, ele dorme lá em cima, no seu quarto, mas agora não quis roubar-lhe espaço.

 

- Ele tem sido muito amável para comigo - disse Anna num tom pensativo.

 

- Não sei o que me teria acontecido se ele lá não estivesse. - Ela ergueu o olhar.

 

- E nunca a teria conhecido a si.

 

Francês sorriu.

 

- Eu fiquei muito satisfeita por ele a ter trazido para cá. - Ela estava ocupada a preparar uma bebida para as duas. - Suponho que já percebeu que sou viúva. E Toby é filho único. Sinto-me muito contente por eu e ele sermos amigos. Suponho que ele lhe deve ter contado sobre aquele tempo horrível, há dez anos atrás? - Ela ergueu o olhar e, quando Anna acenou com a cabeça em sinal afirmativo, prosseguiu. - Depois da morte de Sarah, ele tornou-se muito reservado; cortou com muitas pessoas da sua vida.

 

Era o momento de fazer perguntas. De descobrir mais sobre o que acontecera. Anna hesitou, e o momento passou.

 

- Vem connosco a Suffolk amanhã? - perguntou. Francês abanou a cabeça.

 

- Não, minha querida. Eu adorava conhecer a sua tia-avó um dia, mas não desta vez. - Ela hesitou. - Toby disse que está divorciada?

 

Anna acenou com a cabeça.

 

- Deve ter sido triste para si.

 

- Não verdadeiramente. Ao princípio foi um choque descobrir que as coisas não eram como eu julgava. Depois, no fim, foi um alívio. Aquele ao telefone lá em casa era Felix, o meu marido. Ainda nos falamos.

 

- E enviou-lhe um postal.

 

Anna acenou novamente com a cabeça. Aceitou a caneca de chocolate quente que Francês lhe deu e bebeu-o lentamente.

 

- Toby contou-lhe toda a história da viagem? Francês abanou a cabeça.

 

- Tenho a certeza que não. Para ser sincera, à luz fria do Inverno londrino, pareceu tudo um pouco fantasioso. Não! - Ela estendeu a mão para Anna quando esta abriu a boca para protestar. - Não estou a dizer que não tenha acontecido. É óbvio que algo terrível aconteceu. Eu só estou a dizer que tenho dificuldade em imaginar tudo isso. Para mim, a morte de Andy foi suficientemente terrível. Talvez, nesta fase, seja tudo com que eu consiga lidar.

 

Anna acenou lentamente com a cabeça. Os seus dedos procuraram no interior do colarinho da blusa e fecharam-se à volta do amuleto de Ibrahim.

 

- Eu gostava de visitar a sepultura dele. Levar-lhe flores. Pedir-lhe desculpa.

 

Francês fitou-a. Hesitou, tentando decidir como reagir.

 

- Anna, minha querida, não estava apaixonada por Andy, pois não?

 

- Apaixonada por ele! - Anna ficou chocada. - Não, claro que não.

 

- Eu só queria ter a certeza.

 

Houve um grande silêncio. Anna estava à procura de palavras, sem ter a certeza do chão que pisava, subitamente consciente de uma enorme lacuna nebulosa na sua memória.

 

- Toby não lhe contou sobre mim e Andy? Sobre o modo como ele estava a tentar apoderar-se do diário da minha trisavó?

 

Francês fez um sinal afirmativo.

 

- Contou. Ele contou-me muitas coisas, mas também deixou algumas de fora.

 

- Sim? - Anna ficou a olhar para a sua caneca de chocolate.

 

- Coisas com as quais eu não tenho nada a ver, tal como o que vocês sentem um pelo outro.

 

Anna sentiu-se corar.

 

- Eu sei o que sinto por ele.

 

- Gosta dele? - Francês ergueu o olhar e sorriu. - Está apaixonada por ele? - Ela acenou com a mão em frente dela, com os dedos cruzados.

 

- Acho que talvez esteja. - Anna encolheu os ombros. - Mas tivemos tão pouco tempo juntos, e esse tempo foi difícil!

 

Francês soltou uma exclamação trocista.

 

- Isso parece-me uma maneira muito branda de colocar a questão! Não vou perguntar mais nada, minha querida. Mas fique a saber que estou muito satisfeita por Toby a ter conhecido. - Ela estendeu o braço por cima da mesa e apertou a mão de Anna.

 

Anna pensou repetidas vezes naquela breve conversa enquanto tomava banho com uma mistura de óleos de rosa e alfazema que encontrara numa prateleira por cima da banheira, e um sorriso assomou-lhe lentamente aos lábios. Embrulhada numa enorme toalha macia, subiu novamente para o seu quarto no sótão e andou algum tempo de um lado para o outro, a pensar na visita que ia fazer à sua tia-avó no dia seguinte com Toby.

 

O diário estava em cima da mesinha em frente da janela. Ficou a olhar para ele, de sobrolho franzido. Tinha prometido que o daria a Francês para esta o ler no dia seguinte enquanto eles estivessem ausentes, mas, entretanto, ainda lhe faltava ler algumas páginas.

 

A última coisa que se recordava de fazer no barco tinha sido pousar o diário em cima da cama do seu camarote e ficar a olhar para o tecto, dominada pelo medo e por uma ira estranha, desconhecida.

 

Pegou pensativamente no diário. O sacerdote que invadira a sua cabeça teria realmente desaparecido ou estaria apenas à espera de outra oportunidade? Ela estremeceu e moveu cautelosamente a cabeça de um lado para o outro, como se estivesse a testá-la, depois olhou para o livro que tinha nas mãos. Na última parte que lera, Louisa planeava ir ao Vale dos Túmulos enterrar o frasco de perfume que era, afinal, uma âmbula sagrada, aos pés de ísis.

 

Foi ao amanhecer que Louisa e Mohammed montaram os seus burros e, virando as costas ao rio, se dirigiram para oeste através dos campos férteis, densamente cultivados. Seguiram em silêncio, sem animais de carga nem companheiros para os atrapalhar, a ver a baça luz clara tornar-se mais forte a cada minuto que passava. Quando os primeiros dardos do sol projectaram longas sombras no chão à frente deles, já tinham chegado à orla do campo fértil e estavam a dirigir-se para o calor luminoso do deserto.

 

- Onde pôs o frasco, Sitt Louisa? - Mohammed olhou finalmente para ela.

- A que túmulo quer ir?

 

Louisa encolheu os ombros.

 

- Quero ir a um sítio tranquilo e escondido, para que o frasco possa descansar em paz. Preciso de encontrar um retrato da deusa ísis para ele poder ficar perto dela. - O burro de Louisa tropeçou e ela agarrou-se à sela para se equilibrar. - É só isso que eu quero fazer. Depois podemos voltar logo para o barco e esquecê-lo.

Ele acenou gravemente com a cabeça. Quando chegaram à entrada do vale, o trilho tinha-se estreitado. Ele olhou em volta para as entradas escuras nas rochas. Não era um dragomano. Não tinha os conhecimentos e a experiência de Hassan sobre o vale. Puxando as rédeas do burro, abanou a cabeça.

 

- Recorda-se de onde quer ir?

 

Ela olhou em redor, fazendo votos para que Mohammed atribuísse as lágrimas dos seus olhos ao brilho do sol matinal a reflectir-se nas rochas cintilantes. As suas recordações daquele local estavam tão intimamente ligadas a Hassan que todas as pedras, todas as sombras, tinham a marca do seu rosto, todos os ecos o som da sua voz.

 

Por fim, ela incitou o burro a prosseguir caminho. Desta vez, havia outros visitantes no vale, grupos de viajantes com os seus dragomanos a olhar em volta ou a emergir para a luz do dia, maravilhados com o que tinham acabado de ver.

 

Pararam os burros perto de uma das entradas. Mohammed desceu da sela e ajudou Louisa a desmontar, depois procurou as velas no saco da sela. Ele sentiu um arrepio.

 

-Eu não gosto destes lugares, Sitt Louisa. Há espíritos maus aqui. E escorpiões.

 

”E cobras.”

 

A palavra pairou, silenciosa, entre eles. Louisa mordeu o lábio e obrigou-se a si própria a avançar, seguindo à frente.

 

- Não estaremos aqui muito tempo, Mohammed, prometo. Tens a pá? Tinham trazido uma pá pequena presa à sela dum burro, para ela poder enterrar o frasco na areia. Ele acenou com a cabeça em sinal afirmativo. Passou rapidamente à frente dela e a mulher reparou que ele colocara a mão sobre o cabo da faca que trazia enfiada no cinto, e, subindo o trilho na direcção do quadrado escuro situado na pedra ofuscante, ela sentiu algum conforto no facto de ele estar Armado e preparado para usar a faca para os proteger.

 

Quando chegaram à entrada estavam ofegantes. Mohammed espreitou para dentro.

 

- Este é o lugar certo? - Ela viu-o fazer sub-repticiamente o gesto contra o mau-olhado.

 

Ela fez um sinal afirmativo. Algures, no interior, ela encontraria uma representação da deusa com o seu estranho e característico toucado com o disco solar e o trono, e as mãos a segurar o ankh, símbolo da vida, e o bastão.

 

Ela levou a mão ao saco que trazia ao ombro para tirar o frasco, ainda embrulhado na seda manchada de água.

 

- Não vai demorar muito - repetiu ela. Avançou para a escuridão, ouviu o raspar de um fósforo atrás dela quando ele acendeu a vela na sua pequena lanterna e viu as sombras projectadas na parede. Ali estavam elas, as gravuras de que ela se recordava tão claramente, as cores alegres, as densas e intermináveis histórias contadas em estranhos hieróglifos indecifráveis, as filas de deuses e deusas alongando-se para a escuridão sombria.

 

- Sitt Louisa! - O grito estrangulado dele ecoou nas profundezas silenciosas do túmulo.

 

Ela deu meia volta.

 

Ele estava parado à entrada, ainda ao sol, encostado à parede, quase onde ela o deixara, paralisado de terror. À frente dele, ela viu a cabeça oscilante de uma cobra.

 

- Não! - O grito rasgou as sombras enquanto ela corria novamente para a entrada. - Deixa-o em paz! Não! Não! Não...

 

No momento em que a cobra atacou, Louisa atirou-lhe com o frasco, depois lançou-se sobre ela, agarrando-a com as mãos nuas. A cobra agitou-se por um momento nas suas mãos-morna, macia, pesada e depois desapareceu. Ela ficou a olhar para os seus dedos vazios.

 

Mohammed caiu de joelhos, a soluçar.

 

- Sitt Louisa, a senhora salvou-me a vida!

 

- Mordeu-te? - De repente ela estava a tremer tão violentamente que também não conseguia manter-se de pé e caiu de joelhos ao lado dele.

 

- Não. - Ele fechou os olhos e respirou fundo. - Não, Lillah! Não me mordeu. Veja! - Ele mostrou-lhe a perna das calças, e ela viu a marca das presas e o longo rasto de veneno que tinha escorrido pelo algodão, por baixo do buraco.

 

Houve um chocalhar de pedras abaixo deles e eles olharam e viram dois homens a subir apressadamente o trilho. Um deles, envergando trajes egípcios, tinha uma faca desembainhada na mão. O outro era europeu.

 

-Ouvimos os vossos gritos. - Pela fala, tornou-se óbvio que o homem mais alto era inglês. Ele olhou em volta da entrada do túmulo enquanto os dois egípcios falavam entre si num árabe rápido e agitado.

 

- Foi uma cobra. - Louisa olhou-o com um ar de gratidão. - Acho que desapareceu. - Pôs-se de pé, ainda trémula.

 

- Ela mordeu alguém? Ela abanou a cabeça.

 

- Falhou, graças a Deus! - respondeu, fechando os olhos.

 

O frasco tinha desaparecido. Não havia sinal dele no trilho, na entrada do túmulo, no caminho que descia a colina íngreme na base da rocha. Tinha desaparecido com a cobra.

 

Louisa aceitou a sugestão dos salvadores para que descansasse um pouco e tomasse um refresco, e depois ela e Mohammed foram buscar os burros e dirigiram-se novamente para o rio.

 

Chegaram cheios de calor e de pó e encontraram o barco em alvoroço. Um dos viajantes que planeava regressar ao Cairo adoecera e tinham arranjado um beliche para Louisa no barco a vapor do dia seguinte. Se o quisesse aproveitar, tinha muito pouco tempo. Tinha de fazer as malas, despedir-se, mandar colocar as malas na lancha e mudar-se sem demora para o barco maior.

 

Mais tarde, ela ficou satisfeita por tudo ter acontecido tão rapidamente. Não houve tempo para reflexões. Mal houve tempo para despedidas. Mohammed e o reis choraram quando ela deixou o barco pela última vez, o mesmo acontecendo com Katherine Fielding que, para grande alegria sua, dera o nome de Louisa ao bebé, em sua honra. Venetia ofereceu uma face fria com uma simulação de sorriso, e David Fielding e Sir John deram-lhe um grande abraço. Augusta pegou-lhe nas mãos e apertou-as.

 

- O tempo sara todas as feridas, minha querida. Vai esquecer os piores tempos e recordar os bons.

 

Era estranho viajar com o som constante de um motor e o chapinhar das pás como ruído de fundo para os seus pensamentos. Não havia necessidade de estarem sujeitos aos caprichos do vento. As margens do rio com o seu panorama móvel de palmeiras e campos luxuriantes, o shaduf, elevando interminavelmente a água do rio para os campos enquanto eles passavam, o búfalo de água caminhando pesadamente, os burros, os barcos de pesca - ela observava-os a todos do convés, com os olhos vermelhos escondidos atrás de óculos de vidro fumados, desenhava, escrevia uma ou duas linhas no seu diário para terminar o relato da viagem ao Egipto e dormia.

 

Chegou a Londres no dia 24 de Abril. Uma semana depois, reencontrou-se com os filhos. Só em 29 de Julho, numa tarde quente, quando trabalhava na sala fresca das traseiras da sua casa de Londres que utilizava como estúdio, é que abriu a primeira caixa de telas e blocos de desenho egípcios e começou a tirá-los, um a um, para fora. Empilhou-os cuidadosamente em volta das paredes e examinou-os com um olho crítico, permitindo-se a si própria, pela primeira vez desde o seu regresso, recordar o calor e o pó, as águas azuis do Nilo, o brilho ofuscante da areia, os templos e os monumentos com as suas esculturas, pinturas e vestígios de um passado há muito desaparecido. Parou para olhar pela janela para o jardim público à porta da sua casa. O seu mundo, o mundo inglês, era predominantemente verde, até mesmo ali em Londres. O deserto e o Nilo já não eram mais nada senão recordações.

 

Baixou-se para tirar as últimas telas da caixa e franziu o sobrolho. A sua mala velha ainda lá estava. Devia tê-la usado para manter as pinturas no seu lugar. Tirou-a para fora e ficou a olhar para ela com tristeza. A mala tinha-a acompanhado em todos os passeios que dera para pintar. Mesmo agora ainda havia alguns pincéis e tintas lá dentro. Pô-la em cima da mesa e procurou no interior. O frasco de perfume ainda estava embrulhado na seda manchada. Ela atirara-o à cobra. Tinha a certeza de o ter feito. Recordava-se de o ter na mão. Recordava-se de olhar para ele quando saíra do sol e penetrara na sombra do túmulo.

 

Deixou cair a seda ao chão e ficou a olhar para ele na palma da sua mão. Depois sentiu um arrepio. Mais uma vez, o objecto tinha-lhe sido devolvido. Alguma vez se libertaria dele?

 

- Hassan. - Murmurou o nome em voz baixa. - Ajuda-me. - Havia lágrimas nos seus olhos quando se sentou à escrivaninha Davenport em que habitualmente se sentava a tratar da correspondência. Abriu a tampa, tirou uma das gavetas e procurou a pequena alavanca que activava o compartimento secreto. Colocou o frasco no interior, ficou a olhar para ele por um momento, depois levou um dedo aos lábios e premiu-o levemente contra o vidro. Ela tinha deixado o pedaço de papel que contava a história dentro do diário, que ainda estava na sua caixa de escrever e para que ela não olhava há meses. Um último olhar, um último pensamento dedicado a Hassan, e empurrou a gaveta secreta. Esta deslizou para o seu lugar, e ela fechou rapidamente a tampa da escrivaninha.

 

Nunca mais voltaria a tocar na gaveta, nem no diário.

 

- Tu sabias tudo isto quando me deste o diário? - Anna estava sentada ao lado de Toby na soalheira sala de estar de Phyllis.

 

Phyllis abanou a cabeça.

 

- Eu sempre tive a intenção de tentar lê-lo, mas, com a minha vista fraca, acabei por nunca o fazer.

 

- Então, quando me deste o frasco, não sabias nada a respeito dele?

Phyllis abanou a cabeça.

 

- Se eu soubesse a história dele, minha querida, certamente que não to teria dado! - Ela estava indignada. - Tu eras uma criança. Tanto quanto eu sabia, ele estivera naquela gaveta desde que a Louisa o colocara lá. Eu herdei a Davenport do meu pai, claro, e desconhecia a existência do papel que estava dentro do diário. Mas mesmo que conhecesse, ele não teria significado nada para mim. Nenhum de nós sabe ler árabe.

 

Ficaram os três sentados em silêncio durante alguns minutos. Na lareira, o lume crepitava alegremente, enchendo a sala com o aroma a madeira de macieira.

- Que é que aconteceu a Louisa? - perguntou, finalmente, Anna.

 

Phyllis acenou lentamente com a cabeça.

 

- Eu sei algumas coisas. O meu avô, como tu sabes, era o filho mais velho dela, David. - Ela fez uma pausa, com um ar pensativo. - Ela não voltou a casar. Tanto quanto eu sei, nunca voltou ao Egipto. Foi viver para fora de Londres por volta de 1880, quando devia ter perto de sessenta anos, suponho. Comprou uma casa em Hampshire, que deixou a David quando morreu. Eu lembro-me de lá ir quando era muito pequena, mas a casa deve ter sido vendida antes da última guerra. Ela continuou a pintar, claro, e tornou-se uma artista muito conhecida, mesmo em vida.

 

- E voltou a escrever algum diário? - perguntou Toby, subitamente.

Phyllis encolheu os ombros.

 

- Que eu saiba, não.

 

- Eu adorava saber se ela alguma vez pensou em voltar ao Egipto - disse Anna num tom melancólico. - Que teria ela sentido quando descobriu que ainda tinha o frasco de perfume depois de tudo o que passara para se livrar dele? E por que é que o escondeu? Por que é que não o destruiu imediatamente? Por que é que não o atirou ao Tamisa? Ao mar? Qualquer coisa! Mas ela manteve-o perto dela. Será que teve medo que os sacerdotes voltassem? Ou a serpente?

 

Phyllis recostou-se na cadeira e olhou pensativamente para o lume. O gato em cima dos seus joelhos espreguiçou-se e amassou a fazenda grossa da saia dela durante um momento antes de voltar a adormecer.

 

-Deixa-me dizer-te uma coisa. Lá em cima há uma caixa com cartas antigas do meu avô. A maior parte são cartas dele para a família e do seu irmão John para ele. Não me recordo de haver nada particularmente entusiasmante, mas, se quiseres, podes ficar com elas. Toby, importas-te de ir lá acima buscá-las para a Anna? - Ela deu-lhe instruções sobre onde ele as poderia encontrar e ficou a vê-lo sair da sala. Depois sorriu.

 

- Não o deixes fugir, querida. É muito simpático. Estás apaixonada por ele? Anna corou.

 

- Gosto dele.

 

- Gostas? - Phyllis abanou a cabeça. - Não chega. Eu quero ouvir-te dizer que adoras alguém. E que alguém te adora. Ele adora-te, sabes. Não consegue tirar os olhos de ti. - Ela ficou subitamente séria. - Que é que realmente te aconteceu no Egipto? Acho que não me contaste tudo. Lamento muito que aquele desgraçado se tenha afogado. Mas há mais, não há? Suponho que estiveste doente?

 

Anna acenou com a cabeça lentamente em sinal afirmativo.

 

- Não exactamente doente. Eu conto-te o que aconteceu. Sabias que o frasco de perfume estava assombrado? Eu sei que isto parece uma loucura. Impossível. Mas é verdade. Estava a ser guardado por dois sacerdotes do antigo Egipto que eram rivais pela sua posse. Eles apareceram no barco e assustaram-me, por isso fiz uma coisa muito estúpida. Tornei-me amiga de uma mulher chamada Serena Canfield. Ela é iniciada numa forma actual de culto a ísis. Evocou os sacerdotes para tentar mandá-los embora. Uma espécie de desinfecção de espíritos. Mas eu permiti que um entrasse na minha cabeça. Depois da morte de Andy, fiquei um pouco louca durante algum tempo. Se Toby não tivesse tomado conta de mim, não sei o que teria acontecido.

 

- Anhotep e Hatsek - Phyllis repetiu os dois nomes em voz baixa.

 

Por um momento, Anna perguntou a si própria se tinha ouvido correctamente. Abriu muito os olhos.

 

- Então, tu leste o diário? - acusou ela.

 

- Não. - Phyllis abanou lentamente a cabeça. - Existe um quadro deles aqui, nesta casa. Os nomes estão escritos atrás.

 

Anna ficou a olhar para ela. Tinha ficado completamente gelada.

 

- Onde está ele?

 

- Eu nunca gostei do quadro, mas sabia que devia ser valioso. Aos preços actuais, ele vale provavelmente uma fortuna, por isso guardei-o, mas deixei-o na despensa. Ela virou-se quando Toby reapareceu trazendo nos braços uma caixa antiga. - Podes pô-la ali. Obrigada. - Ela franziu o sobrolho quando Anna se dirigiu à porta. - Espera, querida. Tem cuidado! Toby, vai com ela.

 

- Onde? Onde é que nós vamos? - Toby apressou-se a seguir atrás dela ao longo do corredor, deixando Phyllis sentada junto da lareira, com o rosto enterrado no pêlo do gato.

 

- Ela tem um quadro deles! Na despensa. Não acredito! Ela tem um quadro dos sacerdotes! - Anna abriu a porta da cozinha e entrou à frente. Era uma cozinha grande, aquecida por um Aga antigo de cor creme, com uma mesa de carvalho cheia de livros e papéis e um louceiro com canecas coloridas e chávenas de chá rachadas antigas. Por momentos, ficou imóvel, a olhar para a porta entre o louceiro e o lava-louças. - Está ali dentro. - Engoliu em seco. Levou a mão ao amuleto que tinha ao pescoço.

 

- Não há necessidade de olhares para ele.

 

- Há. Eu tenho de o ver. Não compreendes que tenho de ver se Louisa os viu da mesma maneira! - Ela olhou em volta da cozinha, concentrando-se no vaso de jasmim de Inverno em cima do louceiro. Instintivamente, pegou na mão de Toby, tentando acalmar as pulsações que sentia nos ouvidos.

 

- Tu estás em segurança, Anna. O frasco está no fundo do Nilo. - Toby colocou um braço à volta dos ombros dela. - É apenas um quadro. Podemos ignorá-lo. Voltar para junto da lareira e ler as cartas. Ligar a chaleira e encher novamente o bule. Ir para casa.

 

Ela abanou a cabeça.

 

- Tenho de o ver. - Respirando fundo, dirigiu-se à porta, abriu-a e estendeu a mão para o interruptor. A divisão era pequena, com prateleiras cheias de latas, frascos e caixas em três das paredes e uma arca congeladora horizontal na quarta. Por cima desta havia ganchos com sacos de rede, cebolas, alhos, panelas e cestos antigos. Olhou em volta e, por um momento, não viu o quadro. Depois descobriu-o, meio encoberto por uma rede com batatas. A moldura media cerca de sessenta centímetros de altura por quarenta e oito de largura. Mostrava dois homens altos de pele escura, de pé no deserto contra um céu cor de safira e emoldurados por uma enorme acácia. Um deles vestia uma túnica de linho branco, o outro usava uma pele de animal drapejada por cima do ombro e à volta da cintura. Ambos tinham penteados estranhos e bastões compridos, e estavam a olhar para o espectador com uma expressão de intensa concentração. Toby parou de observar o quadro e virou-se para Anna. Ela ficara branca como a cal.

 

- São eles - murmurou ela -, tal como eu os vi.

 

- Pronto. Já chega.-Toby puxou-a para fora da despensa. - Anda. Vamos para ao pé da lareira. - Ele apagou a luz e fechou a porta atrás deles.

 

- Por que é que eu não o vi antes? - perguntou ela, abanando a cabeça. Fui àquela divisão centenas de vezes. Abri o congelador, fui buscar coisas às prateleiras. Desde pequena!

 

- Talvez não estivesse lá antes. Ou, como estava meio escondido, talvez não tivesses reparado. Afinal de contas, nessa altura, ele não significava nada para ti. - Ele seguiu-a ao longo do corredor até à sala.

 

Phyllis estava sentada numa almofada, em cima de um tapete em frente da lareira, com a caixa aberta ao seu lado. O gato tinha-se apoderado da sua cadeira. Ela ergueu o olhar quando eles entraram.

 

- Viram-no?

 

- Há quanto tempo é que ele está ali pendurado? - Anna ajoelhou-se ao lado da tia-avó.

 

- Oh, minha querida, não sei. Trinta anos? Não me consigo lembrar de quando o pusemos lá. Ele provocava-me arrepios, por isso um dia pendurei-o lá, longe da vista!

 

- Então, por que é que eu não o vi antes?

 

- Viste. Simplesmente nunca reparaste.

 

- Mas não está a compreender? Se o tivesse visto, eu tê-los-ia reconhecido. Teria sabido quem eles eram. - Ela sentou-se em cima dos joelhos, com as mãos na cabeça.

 

Toby sentou-se ao lado dela.

 

- Anna, muita gente consegue ver uma coisa todos os dias e não olhar bem para ela - disse ele suavemente. - Especialmente se não o achaste importante. Afinal de contas, não tinhas qualquer motivo para reparar nele, tinhas? Ele não significou nada para ti até ires ao Egipto.

 

-A não ser que eu tivesse reparado e o tivesse Annazenado na minha memória, tal como um pesadelo escondido, para o trazer de volta mais tarde. A ida ao Egipto fez-me recordá-lo, de um estranho modo subliminar. Como é que isso se chama? Memórias ocultas? Talvez eu tivesse inventado tudo. Criptomnésia? Talvez fosse tudo um produto na minha imaginação. - Ela olhou para os dois com um ar esperançoso.

 

Phyllis encolheu os ombros.

 

- Encontrei as cartas mais antigas - disse ela em voz baixa. Ela mostrou alguns envelopes atados com uma fita branca. - Vê se há alguma coisa interessante.

 

Com mãos trémulas, Anna tirou a primeira do envelope. Leu-a em voz baixa e passou-a a Phyllis.

 

- São muito antigas. Aqui, o teu avô ainda andava na escola.

 

Abriu outra, depois mais outra, indo relaxando pouco a pouco à medida que ia mergulhando nas tranquilas actividades do dia-a-dia de uma família vitoriana. Foi ao fim de dez minutos que soltou um pequeno grito de surpresa.

 

- Não! Oh, meu Deus, ouçam! Esta carta tem a data de 1873. É do John. Esse é o filho mais novo de Louisa.

 

Querido David. A mãe está outra vez doente. Chamei o médico, mas ele não faz a mínima ideia do que ela tem. Mandou-a deitar-se e deu-nos instruções para que a mantivéssemos quieta e quente. Fui ao estúdio buscar um bloco de desenho, na esperança de que, desenhando, ela se mantivesse na cama. Imagina o meu espanto quando me deparei com uma cobra enorme! Não soube o que fazer! Bati com a porta e chamei o Norton.

 

Ela ergueu o olhar.

 

- Quem era o Norton?

 

Entrámos muito cautelosamente e não encontrámos nada. Ela deve ter passado pela janela que estava aberta e saído para a rua! Deve ter fugido do Jardim Zoológico.

 

Ela pousou a carta e ficou a olhar para a lareira.

 

-A cobra veio para Inglaterra - disse ela num tom de desolação. - Seguiu o frasco.

 

- Ele diz mais alguma coisa? - Toby franzira o sobrolho. Ela abanou a cabeça.

 

Não dissemos nada à mãe para não a alarmar.

 

Ela soltou uma pequena gargalhada.

 

- Que sensato! - Folheou mais algumas cartas. - Não. Nada. Estas são de Cambridge. Da tropa. Não há qualquer referência à casa. Não, esperem. Pegou noutra carta, excitada. - Esta é a letra de Louisa. - Desdobrou as folhas com reverência e ficou surpreendida ao sentir um nó na garganta. Foi como voltar a encontrar um velho amigo.

 

Houve um longo silêncio enquanto ela passava os olhos pelas folhas. Quando ergueu o olhar, tinha o rosto pálido e apreensivo.

 

- Lê - disse ela, entregando-a a Toby. - Lê-a em voz alta.

 

Pintei um retrato dos meus perseguidores, na esperança de que eles saiam da minha cabeça. Tantos anos depois da minha viagem ao Egipto, eles ainda perseguem os meus sonhos.

- A quem está ela a escrever a carta?

 

- Está dirigida a Augusta. Os Forresters viviam em Hampshire. Talvez fosse por isso que ela se mudou para lá. - Anna sentiu um arrepio. Abraçando os joelhos, ficou a olhar para a lareira. - Continua.

 

Ontem à noite sonhei com Hassan. Ainda tenho muitas saudades dele. Não há um único dia em que ele não surja nas minhas recordações. Mas tenho medo dos seus dois companheiros nos meus pensamentos. Será que eles nunca me deixarão em paz? Eles suplicam-me que leve o frasco de volta para o Egipto. Se tivesse forças, talvez o fizesse. Talvez um dos meus filhos ou netos o faça um dia por mim.

 

Toby calou-se, olhando para Anna.

 

- És tu. A bisneta dela. Levaste-o de volta. Ela acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

 

- Mas algo correu mal. Eu não sabia o que devia fazer. Não fiz as coisas bem.

 

- Deixaste o frasco no Egipto. - Phyllis desatou outro maço de cartas. Isso é que foi importante.

 

- E sacrifiquei a vida de um homem.

 

- Não, Anna. O facto de Andy ter morrido quando o frasco caiu ao Nilo foi uma coincidência. Ele estava perdido de bêbado. - Toby dobrou a carta e voltou a colocá-la no envelope. - De facto, embora isso não seja provavelmente consolação, eu li há pouco tempo que morrer no Nilo era afortunado, pois era-se transportado directamente para junto dos deuses. Mas lembra-te de que não havia sacerdotes nem cobras naquela lancha.

 

- Não? - Anna sorriu tranquilamente. - O sacerdote de Sekhmet estava dentro da minha cabeça.

 

Phyllis franziu o sobrolho.

 

- Ainda não conversámos sobre ti, Toby - disse ela, mudando habilmente de assunto. - Vamos. Quero saber tudo. Que é que fazes?

 

Toby sorriu. Endireitou-se na cadeira e fez jocosamente uma saudação militar.

 

- Também sou pintor - disse, encolhendo os ombros num gesto de impotência. - Não tão famoso como Louisa, mas já fiz várias exposições e consigo viver da pintura. Também tive a sorte de herdar algum dinheiro quando o meu pai morreu, por isso tenho estado muito mal habituado. Sou viúvo. Ele hesitou, olhando para Anna. Depois abanou a cabeça e prosseguiu. - Tenho uma mãe, sou filho único, infelizmente, mas tenho um tio que está no consulado do Cairo, daí eu ter os meus contactos lá. Não trabalho para a CIA nem para a Mafia. Não sou procurado pela Polícia como o nosso pobre falecido amigo parecia pensar. Tenho uma casa na fronteira da Escócia e outra em Londres, que é onde a minha mãe vive. A minha paixão, pelo menos até recentemente, era viajar e pintar. A maior parte das vezes vou sozinho, mas já fiz coisas loucas como viajar no Expresso do Oriente ou fazer um cruzeiro no Nilo. Já aumentei o meu rendimento com dois livros de viagens, ambos bastante bem recebidos. Ele sorriu. - Mas, se escrever sobre o meu último cruzeiro, terá de ser um livro de ficção, senão ninguém vai acreditar! - Ele encolheu os ombros. - E é tudo, realmente. Só tenho ainda que pedir desculpa à Anna por a ter abandonado em Abu Simbel. Nunca tive oportunidade de lhe explicar o que aconteceu, nem por que razão não estava lá quando ela precisou de mim. - Ela abanou a cabeça.

- Encontrei uma amiga da minha mãe, que vinha noutro cruzeiro. Ela estava sozinha e, pouco depois de termos conversado, ela sentiu-se mal. Foi por isso que a Polícia de Turismo foi à minha procura. Foi a pedido dela. Quando resolvi o problema dela, a Anna já tinha ido para o autocarro e desaparecido.

 

Anna sorriu.

 

- Mais uma vez a ser amável para com senhoras com problemas. É uma boa desculpa. Estás perdoado.

 

- Óptimo. - Phyllis pôs-se de pé com um gemido. - Bem, meus queridos, são horas de uma bebida bem forte. Se quiseres, leva estas cartas contigo. E o quadro. - Ela fez uma pausa. - Não? Está bem. Eu vou manter os sacerdotes no gelo, como até agora. - Ela deu uma gargalhada. À porta, parou e olhou para trás. - Ainda não te disse, Toby? Passaste no exame. Acho que serves.

 

Anna sorriu.

 

- Ela detestava o meu ex-marido - disse, em voz baixa. - E a maior parte dos meus namorados, por isso deves sentir-te honrado.

 

- Ainda bem. - Ele baixou-se para lhe dar um beijo no topo da cabeça. Mas isto está a ir um pouco depressa, Anna. Eu não estou a propor-te casamento. Pelo menos, ainda não...

 

- E eu não estou à procura de casamento. Nunca! - retorquiu ela, secamente. - Eu sou uma mulher independente, à procura de uma carreira como fotógrafa. Lembras-te?

 

Ele acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

 

- Mas não digas nada a Phyllis. Ainda não. Não lhe estragues o divertimento. - Ela olhou para ele e ergueu uma sobrancelha. - Certo?

 

- Certo - respondeu ele, acenando com a cabeça. - Por mim, tudo bem.

 

Regressaram muito tarde a Londres, mas, quando abriram a porta, as luzes ainda estavam acesas na cave da casa. Francês estava sentada à mesa da cozinha a ler. Ela ergueu o olhar para eles.

 

- Tiveram um dia agradável? Estou deserta por saber tudo. Mas primeiro...

- Ela parou por um momento e ambos repararam que tinha a testa ligeiramente franzida. Depois prosseguiu. - Tenho estado pregada ao seu diário, Anna. Mal me mexi daqui o dia inteiro.-Espreguiçou-se com um ar cansado. - E eu tenho uma coisa muito estranha para lhe contar. Não sei como é que vai reagir.

 

Ela ficou a ver Toby trazer a caixa para dentro e colocá-la no chão.

 

- Sentem-se os dois. - Fechou o diário e ficou a olhar durante vários segundos para a capa antiga e gasta que tinha à sua frente. Sentaram-se, um de cada lado da senhora, olhando um para o outro com um ar preocupado, e depois para ela, com expectativa. Anna sentiu uma inquietação súbita. O rosto atraente de Francês, geralmente tão tranquilo, mostrava grande preocupação.

 

- O vilão da história. Roger Carstairs. Sabe o que é que lhe aconteceu? Anna encolheu os ombros.

 

- Ele não voltou a ser referido no diário depois do nascimento do bebé. Eu creio que foi bastante famoso no seu tempo. Serena sabia um pouco sobre ele. E até mesmo o Toby tinha ouvido falar no homem.

 

Francês olhou para o filho e acenou com a cabeça em sinal de concordância.

 

- Ele foi famoso. Deixou o Egipto em 1869 e viajou para a índia e para o Extremo Oriente. Esteve ausente durante cerca de cinco anos, depois apareceu outra vez em Paris. Vivia perto do bosque de Bolonha, numa enorme casa antiga que já pertencera a um duque.

 

Toby franziu o sobrolho.

 

- Como é que sabes tudo isso? Francês ergueu a mão.

 

- Ele casou-se com uma francesa, Claudette de Bonville, e teve duas filhas. Uma delas foi a mãe da minha avó.

 

Houve um silêncio de espanto enquanto Toby e Anna olhavam para ela.

 

- Francês é descendente de Roger Carstairs! - disse Anna, incrédula.

 

- É verdade. - Francês encolheu os ombros. - Ele teve dois outros filhos do primeiro casamento, claro. Eles permaneceram na Escócia. O mais velho, James, herdou o título, mas este desapareceu porque nem ele nem o irmão tiveram filhos.

 

- E que aconteceu a Roger? - Anna estava a olhar fixamente para Toby. Ele estava tão espantado como ela.

 

- Desapareceu. - Francês encolheu os ombros. - Pensou-se que ele tivesse voltado para o Egipto. Eu estive a ver os papéis e os registos da família esta tarde. Cinco anos depois de se ter casado com a Claudette, ele saiu de França em dificuldades e foi para Constantinopla. Seguidamente mudou-se para Alexandria, onde ficou dois anos. Depois saiu de lá. Tanto quanto eu saiba, nunca mais se ouviu falar dele. - Ela voltou-se para Toby. - Antes de perguntares por que é que nunca soubeste nada disto, em primeiro lugar, tu nunca te interessaste pela história da família e em segundo, os meus pais não permitiam que o seu nome fosse mencionado em casa. Eu tinha-me esquecido dele até ele aparecer no diário de Louisa. Claudette levou os filhos para a Escócia, numa tentativa de conseguir que os herdeiros dele a ajudassem. Ela ficara na miséria depois de ele se ter ido embora. Os irmãos recusaram-se a ajudá-la e ela veio para sul, para Inglaterra, para falar com a irmã de Roger. Esta parece ter sido uma pessoa muito simpática. Ajudou-as a instalarem-se em Inglaterra e, no fim, ambas as raparigas se casaram com ingleses.

 

Anna estava a olhar para Toby em silêncio.

 

- Ainda bem que deitaste o frasco fora. - Ele ergueu uma sobrancelha. Senão desconfiarias mesmo que eu o cobiçava.

 

- Espero que não tenhas herdado os seus poderes. - Anna obrigou-se a si própria a sorrir. Estremeceu.

 

- Não, não herdei. - Ele estava a observá-la atentamente. - Para além de gostar de cobras. Isto perturbou-te, não foi? Anna, estas coisas passaram-se há mais de cem anos!

 

- Eu sei. Eu sei que é uma coincidência estranha. Eu sei que não é lógico. Só que eu vivi na cabeça da Louisa durante tanto tempo. - Ela fechou os olhos, espantada com a sensação de desespero que a invadira.

 

- Desculpe, talvez eu não devesse ter-lhe dito nada. - Francês olhou-a com um ar de preocupação. - Mas tive de o fazer. Não queria que houvesse segredos entre nós. Eu pensei... tive esperança... de que ficasse espantada. É uma reviravolta tão estranha na nossa história!

 

Anna pôs-se de pé. Foi até ao pequeno sofá de bambu situado debaixo da janela e sentou-se pesadamente.

 

- Serena diz que as coincidências não existem. Toby olhou para a mãe.

 

- Nesse caso, talvez esta seja a nossa oportunidade para remediar a situação, ”alvez o meu karma seja tentar compensar a infelicidade que ele causou a Louisa.

 

- E as outras coisas maléficas que ele fez? - Anna tinha os braços cruzados sobre o peito para se proteger do frio que a envolvera, embora a cozinha estivesse quente. Ela estava a tremer.

 

- Houve antepassados de muita gente que fizeram coisas maléficas, minha querida - disse Francês, suavemente. - Na história, tem de haver lugar para o perdão. É isso que Cristo nos ensina. E embora Roger Carstairs possa ter sido um homem mau, o meu avô, que também é antepassado do Toby, foi vigário de uma aldeia no centro de Inglaterra, um homem muito amado e respeitado, que fez muito bem no mundo. Ele teve dificuldade em viver com a recordação do seu avô. Segundo nos disseram, rezava pela sua alma todos os dias. Por conseguinte, existe um equilíbrio. O nosso sangue não está totalmente manchado. - Ela levantou-se e sorriu com um ar cansado. - Agora, se me desculpam, é muito tarde. Vou para a cama. Boa noite, meus queridos.

 

Toby e Anna ficaram calados a vê-la sair da cozinha. Foi Toby quem falou primeiro quando a porta se fechou atrás dela.

 

- Bem, isto é que foi uma machadada. De todas as coisas no meu passado que eu achava que talvez tivesse que te explicar e justificar, descender de Roger Carstairs não era uma delas. - Ele levantou-se e, dirigindo-se ao armário debaixo da bancada, tirou de lá uma garrafa de uísque. - Neste momento, acho que preciso de qualquer coisa mais forte do que chocolate quente. Queres um?

- perguntou ele, tirando dois copos da prateleira por cima do lava-louças. A minha mãe tem razão, sabes. Não tem importância. - Ele deitou uma dose de uísque em cada copo e passou um a Anna. - Não, eu não quero dizer que não tenha importância. Claro que tem importância. Mas não nos afecta. Não afecta, pois não?

 

Anna abanou lentamente a cabeça.

 

- Claro que não. É só que, de momento, a memória dele ressoa com muita força na minha cabeça. Tem tudo a ver com o medo e a angústia que eu senti. Tem a ver com a morte de dois homens que viveram há três mil anos! Tem a ver com Serena e Charley. Tudo. - Ela pousou o copo sem lhe tocar e apoiou a cabeça nas mãos.

 

- Então, não foram umas boas férias. - Toby olhou-a com um ar perplexo. Ela deu uma gargalhada.

 

- Não, não foram. Embora fossem memoráveis e eu tivesse visto coisas maravilhosas e conhecido pessoas maravilhosas.

 

- Eu gostaria de pensar, com toda a confiança, que fui uma delas.

Ela observou-lhe o rosto durante alguns segundos.

- Tu és uma delas.

 

- Mesmo que agora me estejas a ver com uma capa preta, um chapéu bicudo e uma varinha mágica que decreta a morte, com um cesto de cobras que matam sob as minhas ordens?

 

- Mesmo que eu esteja ver tudo isso! - Ela levantou-se. - Vou-me deitar, Toby. Vou levar a minha bebida comigo. Foi um dia cansativo, com a viagem a Suffolk e tudo mais.

 

- Está bem. Talvez possamos ler mais algumas cartas amanhã? - Ele acenou com a cabeça na direcção da caixa.

 

- Talvez. - Foi até à porta, depois virou-se. - Toby, eu quero voltar para casa amanhã. A tua mãe tem sido incrivelmente amável e hospitaleira, mas eu já estou boa e quero estar sob o meu próprio tecto. Compreendes isso?

 

- Claro. - Ele não conseguiu ocultar a sua expressão de desânimo.

 

- Não é por causa de Carstairs. Eu preciso de retomar os fios da minha vida. Ele acenou com a cabeça em sinal de concordância.

 

- Será que eu vou fazer parte dessa vida? Ela hesitou.

 

- Tenho a certeza que sim, se é isso que queres. Mas preciso de tempo. Aconteceram demasiadas coisas.

 

- Com certeza. Terás todo o tempo de que precisares. - Ele levantou-se para lhe abrir a porta. Quando ela passou por ele, Toby inclinou-se e deu-lhe um beijo no rosto. - Conhecer-te foi a melhor coisa que me aconteceu de há muito tempo para cá, Anna.

 

Ela sorriu.

 

- Fico contente em sabê-lo.

 

Só depois de Anna se ter ido embora é que ele tomou consciência de que ela não dissera que sentia o mesmo.

 

O seu pequeno quarto no sótão era muito reconfortante, à luz do candeeiro da mesinha-de-cabeceira com o seu abat-jour florido. Ela descalçou-se e ficou a olhar em volta, a beber o uísque. Sentia-se segura ali. Tinha sido tratada como há muito não lhe acontecia, talvez desde que era criança. Gostava imenso de Francês e confiava nela. Gostava de Toby. Talvez até o amasse. Então, por que é que, de repente, tinha tantas dúvidas?

 

Dirigiu-se à pequena cómoda que também servia de toucador e olhou para o espelho. O seu rosto estava magro e tinha um ar pálido, mesmo aos seus próprios olhos. O rosto estava na sombra, claro, com a luz atrás dela. Franziu a testa.

 

O Sol aparecera. Estava agora muito brilhante, perpassando obliquamente os seus traços, pelo que ela teve de semicerrar os olhos para se proteger da luminosidade. O reflexo aclarou-se um pouco. Ela conseguia ver rochedos; um pássaro a voar lentamente contra o céu; uma palmeira a bater na janela...

 

- Não! - deu rapidamente meia volta, fazendo voar o copo de uísque. Este bateu no canto da cómoda e estilhaçou-se, salpicando de uísque a escova do cabelo e os artigos de maquilhagem. Ela fechou os olhos e respirou fundo. Quando voltou a abri-los, o quarto estava como dantes. Quente. Nas sombras. Seguro. Com mãos trémulas, apanhou o vidro e colocou os pedaços no cesto dos papéis. Estava a limpar o uísque com lenços de papel quando ouviu bater suavemente à porta.

 

- Anna? Estás bem? - perguntou Toby em voz baixa.

 

Ela mordeu o lábio. As lágrimas começavam a arder por baixo das pestanas. Deitando fora silenciosamente os lenços molhados, foi para a cama e deitou-se, puxando a almofada por cima da cabeça.

 

- Anna? Estás a dormir? - Houve uma pausa, depois ela ouviu os passos dele a descer as escadas. Dez minutos depois, ouviu o carro começar a trabalhar na rua calma e afastar-se.

 

Quando acordou, ainda estava escuro lá fora. O candeeiro ficara aceso e ela estava abraçada à almofada. Estava completamente vestida e o quarto cheirava repugnantemente a uísque. Levantou-se da cama com um gemido e olhou para o relógio. Eram quatro da manhã. Despiu-se, desceu para a casa de banho, deitou os lenços de papel encharcados de uísque na retrete, puxou o autoclismo e encheu a banheira de água quente. Fez votos para que o som da água a correr não acordasse Francês, mas ela tinha de se livrar do fedor a medo que parecia estar grudado à sua pele, do suor quente e arenoso do deserto, da tristeza que se colava aos seus poros. Deixou-se ficar durante muito tempo na banheira a olhar para os azulejos cor-de-rosa-pálido atrás das torneiras, depois saiu finalmente da água e embrulhou-se numa toalha. O patamar à porta da casa de banho estava silencioso e Francês tinha a porta do quarto fechada. No quarto, abriu bem a janela, deixando entrar uma rajada do ar frio da noite, depois apagou finalmente a luz e meteu-se na cama.

 

Passava das dez quando acordou. Vestiu-se rapidamente, desceu as escadas a correr e encontrou a casa vazia. Na cave, havia um bilhete em cima da mesa da cozinha.

 

Achei melhor deixá-la dormir. Estarei de volta à hora do almoço. F.

 

Pensativa, preparou um café, depois voltou para a sala de estar do rés-do-chão. Não havia sinal de Toby. Nem mensagem. Pegou na lista telefónica e procurou o número de Serena.

 

-Tinha esperança de te apanhar. Queria agradecer-te por me teres vindo ver.

 

- Como estás? - Serena parecia bem disposta. Anna ouvia música distante ao fundo. Reconheceu o indicativo da Classic FM, depois os primeiros acordes da Sexta Sinfonia de Beethoven.

 

- Serena. Eu vou voltar para casa esta tarde. Podes ir visitar-me lá? Eu dou-te o endereço.

 

- Alguma coisa ainda está errada, não é verdade? - A voz de Serena era afectuosa. Preocupada. Reconfortante.

 

- É. - Anna conseguiu engolir as lágrimas. - Alguma coisa ainda está muito errada.

 

Toby e Francês regressaram juntos à hora do almoço com patê, queijo, pão e uma garrafa de Merlot. Não ficaram surpreendidos ao ver a mala de Anna já feita à entrada.

 

- Eu levo-te lá depois do almoço. - Toby passou-lhe um copo de vinho.

- Vamos ter saudades tuas.

 

Ela sorriu.

 

- Eu não vou para longe. E espero que ambos me vão visitar com frequência.

- Ela não tivera a intenção de parecer tão definitiva, e só quando Francês olhou para o filho é que ela compreendeu até que ponto as suas palavras tinham soado formais. O rosto dele reflectiu tristeza.

 

Ele forçou um sorriso.

 

- Não vais conseguir manter-nos à distância - disse, não parecendo acreditar no que dizia.

 

Nenhum deles comeu muito e, menos de uma hora depois, ela estava a atravessar Londres no carro dele, com a mala na bagageira, e o saco, a máquina fotográfica e os guias de viagem no assento de trás do automóvel.

 

Ele conseguiu encontrar lugar para estacionar quase à porta dela.

 

- É o destino a dar uma ajuda - disse ele num tom irónico. - Ele está decidido a ajudar-te a voltar para a tua própria vida o mais depressa possível.

 

- Toby...

 

- Não. - Ele ergueu a mão. - Eu acredito muito no destino. O que será, será, e essa conversa toda. Anda. - Ele abriu a porta e deu a volta até à parte de trás do automóvel.

 

Anna saiu do carro e dirigiu-se lentamente para a porta de casa. Toby seguiu-a com a mala. Campainhas brancas tardias e os primeiros crocos enchiam o canteiro estreito debaixo da janela da frente, e o jasmim de Inverno era uma mancha amarela ao longo dos tijolos londrinos. A jardineira da janela tinha alguns amores-perfeitos de Inverno, agora quase no fim, mostrando claramente que a sua dona não tinha lá estado para tomar conta deles.

 

Ela pegou nas chaves.

 

- Isto não é uma despedida, Toby - disse, virando-se à entrada para olhar para ele. - Há coisas que eu tenho de resolver por mim própria. - Ela pegou-lhe nas mãos. - Por favor, diz-me que posso contar contigo se precisar.

 

- Tu sabes que sim.

 

Ela esticou-se e beijou-o nos lábios. Depois deu meia volta e, levando a mala para dentro sozinha, fechou a porta atrás de si.

 

Ele ficou alguns segundos a olhar para a porta sem a ver e, depois, foi-se embora.

 

No outro lado da porta, Anna também parou. Deixou cair a mala e o saco ao chão e respirou fundo, tentando conter as lágrimas. Estava lá outra vez. A luz do Sol por detrás dos olhos. No corredor estreito de uma casa da zona ocidental de Londres, ela conseguia sentir o calor do Sol do deserto e cheirar o fumo do kyphi, o incenso dos deuses.

 

Olhou para o relógio, mordendo o lábio. Serena deveria chegar dentro de pouco tempo e talvez as duas juntas conseguissem expulsar o intruso de vez da sua cabeça.

 

Baixou-se para apanhar algumas cartas do tapete. Entre elas estava um pequeno embrulho. Atirou as cartas para a mesinha e ficou a olhar para o embrulho. Tinha selos egípcios. Virou-o várias vezes nas mãos, depois levou-o para a sala e abriu-o. Lá dentro estava uma carta dactilografada e um pequeno embrulho envolto em plástico acolchoado. A carta era da Polícia de Luxor.

 

Junto enviamos o artefacto que foi encontrado na mão do falecido Sr. Andrew

 

Watson, quando o seu corpo foi retirado do Nilo. Foi mais tarde esclarecido que

 

o item lhe pertence e que tinha sido importado sem licença. Não existe agora qualquer dúvida de que ele lhe pertence... Assim, devolvemo-lo... Agradecemos que acuse a recepção do mesmo...

 

- Não. - Ela abanou a cabeça. - Não. Por favor, não!

 

Ela colocou o embrulho em cima da mesa e ficou a olhar para ele. Depois deu meia volta e correu para a porta.

 

-Toby!

 

Deu freneticamente a volta à chave e abriu a porta.

 

- Toby, espera!

 

O carro dele estava a afastar-se do passeio.

- Toby!

 

Ela correu para o portão, mas ele, olhando rapidamente por cima do ombro, já rodara o volante e, com uma mão no ar para agradecer ao carro que tinha parado para o deixar entrar no fluxo de trânsito, arrancou. Ele não olhara uma única vez na direcção dela.

 

-Toby!

 

Ela ficou a olhar para o carro, sentindo-se mais perdida e assustada do que alguma vez se sentira na vida.

 

- Toby, volta. Por favor. Eu preciso de ti!

 

Deixou cair a mão ao lado do corpo, depois virou-se lentamente e voltou para dentro de casa.

 

Enquanto subia os degraus, já conseguia ouvir as entoações cantadas através da areia, cheirar o typhi, sentir o calor do deus sol, Ré, a erguer-se no horizonte.

 

No semáforo de Notting Hill Gate, Toby franziu o sobrolho. Tamborilou o volante com os dedos. Tinha a cabeça cheia de sons estranhos, sons que nunca ouvira antes: o lamento de vozes distantes, ecoados por uma harpa e pelo que pareciam ser as notas baixas, obsessivas, de um oboé, a flutuar através de enormes distâncias.

 

Ele abanou a cabeça, perplexo.

 

”Toby!”

 

O grito veio de muito longe.

 

”Toby, volta para trás! Por favor!”

 

Ele franziu o sobrolho.

Era a voz de Anna.

 

Deu um salto quanto o carro atrás dele buzinou furiosamente. As luzes do semáforo tinham mudado e ele não as vira. Olhou, aturdido, para o espelho, depois, subitamente, decidiu-se. Rodou o volante trezentos e sessenta graus e fez inversão de marcha com um chiar irado de pneus.

 

Segundos depois, seguia velozmente na direcção da casa dela.

 

- Anna! Anna? - Deixou o automóvel no meio da estrada, com a porta aberta e o motor a trabalhar.

 

- Anna! Abre a porta! - Deu uma corrida e bateu com os punhos. Ouviu-se um leve ruído e a porta abriu-se. Ela não a tinha fechado devidamente quando voltara para dentro de casa.

 

- Anna? - Toby olhou para o interior. - Onde estás?

 

A entrada estava deserta, a porta da sala estava aberta. Empurrou-a e precipitou-se para dentro do compartimento.

 

- Anna! - Ele parou subitamente. A sala cheirava a Egipto. A calor, areia e incenso exótico.

 

A sombra envolvia-a totalmente.

 

- Anna, luta, querida! Eu não vou permitir que ele te possua. Anna, olha para mim! Eu amo-te!

 

Agarrou-lhe nas mãos e fê-la rodar de modo a ficar de frente para ele.

 

Ela pestanejou, franzindo a testa.

 

- Toby?

 

- Estou aqui, querida. Está tudo bem.

Ela estava a voltar para ele. A sombra estava a desaparecer.

 

Ele tomou-a nos braços e beijou-lhe o topo da cabeça.

 

- Ele voltou, Toby - gaguejou ela. - O frasco. Louisa não conseguiu livrar-se dele e eu também não. Eu atirei-o ao Nilo mas Andy apanhou-o. Ele tinha-o na mão, Toby. Andy trouxe-o de volta! - Ela olhou, a soluçar, para a mesa em cima de cujo tampo de mogno envernizado estava o frasquinho ainda embrulhado. - Eu nunca me libertarei.

 

Ele olhou para o frasco com um ar pensativo.

 

- Podemos fazer muita coisa, Anna. Podemos oferecê-lo ao Museu Britânico. Podemos mandá-lo de volta para o Egipto. Podemos atirá-lo ao Tamisa. Mas, aconteça o que acontecer, nós vamos enfrentar isto juntos.

 

Ela levantou os olhos para ele.

 

- Estás a falar a sério?

 

- Estou. Tu não estás sozinha. Nunca mais vais estar sozinha, a não ser que seja isso que tu queiras, e vais libertar-te de Anhotep e de Hatsek. Isso eu garanto-te.

 

Quando a beijou no topo da cabeça, ele ergueu o olhar. Em cima da madeira brilhante da mesa viu, espalhado sobre o embrulho, fragmentos de resina seca, e sentiu o seu cheiro enjoativo. Enquanto olhava, apareceram mais pedaços na carpete aos seus pés.

 

Anna ergueu o rosto para ele.

 

- Serena vem a caminho - murmurou ela. - Ela vai ajudar-nos, eu sei que vai.

 

Toby abraçou-a com mais força.

 

- Claro que vai. - E não te esqueças que eu tenho o sangue de Roger Carstairs e do meu avô reverendo nas veias. Isso deve dar-me alguma vantagem em questões espirituais.

 

Ela olhou para Toby e ele sorriu.

 

- Coragem, minha querida, estas deram-me uma ideia. Se eu me aproximar daquele frasquinho com um martelo grande na mão, acho que, para variar, os sacerdotes do antigo Egipto vão começar a escutar o que temos para lhes dizer, não achas?

 

A deusa ísis está contigo e nunca te deixará; Não serás derrubado pelos teus inimigos..

 

Que os servos dos deuses descansem em paz...

 

                                                                                Barbara Erskine  

 

                      

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