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Series & Trilogias Literarias
O HOMEM não era um assassino.
Repetia isso para consigo enquanto arrastava o rapaz morto pela ladeira abaixo: Eu não sou um assassino.
Os assassinos são criminosos. Os assassinos são maus. As suas almas foram engolidas pelas trevas, e eles, por numerosos motivos, acolheram e abraçaram o negrume, viraram as costas à luz. Mas ele não era mau.
Pelo contrário.
Não oferecera recentemente manifestas provas do contrário? Não pusera completamente de parte os seus pensamentos, os seus desejos, e se refreara, tudo em prol do bem-estar dos outros? Tinha oferecido a outra face – fora isso que ele fizera. A sua presença ali – naquele paul no meio de nenhures, com o rapaz morto – não dava provas adicionais de que ele pretendia fazer o que estava certo? De que tinha de fazer o que estava certo? De que jamais o tornariam a apanhar em falta? O homem parou e soltou um longo suspiro. Embora o rapaz não fosse muito crescido, era pesado. Musculoso. Muitas horas passadas no ginásio. Mas já não era preciso andar muito mais. O homem agarrou-o pelas pernas das calças, que outrora haviam sido brancas mas que agora quase pareciam negras no meio da escuridão. O rapaz tinha sangrado profusamente.
Sim, era errado matar. O quinto mandamento: Não matarás. Mas havia excepções. Na verdade, em muitos pontos da Bíblia se justificava a matança. Havia quem a merecesse. O que era errado podia estar certo. Nada era um dado absoluto.
E se a razão que estava por detrás do assassínio não fosse egoísta? Se a perda de uma vida humana salvasse outras? Lhes desse uma oportunidade? Lhes desse uma vida? Nesse caso, certamente, o acto não poderia ser classificado como maligno. Caso a intenção fosse boa.
O homem deteve-se junto às negras águas da pequena lagoa. Habitualmente, ela tinha vários metros de profundidade, mas as chuvas recentes haviam saturado o solo e agora assemelhava-se mais a um pequeno lago no meio do matagal do paul.
O homem inclinou-se para a frente e agarrou os ombros da camisola do rapaz. Com considerável dificuldade, conseguiu colocar o corpo inerte numa posição quase erecta. Por instantes, fitou os olhos do rapaz. Qual teria sido o seu último pensamento? Teria havido sequer tempo para um último pensamento? Ter-se-ia ele apercebido de que ia morrer? Teria perguntado porquê? Teria pensado em todas as coisas que não conseguira fazer durante a sua curta vida ou nas coisas que efectivamente fizera?
Não importava.
Porque estaria ele a torturar-se desta maneira, mais do que o necessário?
Não tinha escolha.
Não podia desiludi-los.
Outra vez, não.
E, contudo, hesitou. Mas não, eles não compreenderiam. Não perdoariam. Não dariam a outra face, como ele fizera.
Deu um empurrão ao rapaz e o corpo caiu dentro de água com um sonoro chape. O homem sobressaltou-se, por não estar preparado para aquele som no meio da escuridão silenciosa.
O corpo do rapaz afundou-se na água e desapareceu.
O homem que não era um assassino regressou ao seu carro, que estava estacionado no pequeno carreiro florestal, e dirigiu-se para casa.
– Polícia de Västerås, fala Klara Lidman.
– Quero participar o desaparecimento do meu filho.
Pelo tom de voz, a mulher parecia pedir desculpa, como se não tivesse a certeza de ter marcado o número correcto ou como se, na verdade, não esperasse que acreditassem em si. Klara Lidman puxou do seu bloco de notas, apesar de a conversa estar a ser gravada.
– Pode dizer-me o seu nome, por favor?
– Eriksson, Lena Eriksson. O meu filho chama-se Roger. Roger Eriksson.
– E que idade tem o seu filho?
– Dezasseis anos. Não o vejo desde ontem à tarde.
Klara tomou nota da idade e percebeu que teria de participar o caso para que se tomassem medidas imediatas. Caso o rapaz tivesse realmente desaparecido, claro.
– Desde ontem à tarde, a que horas?
– Ele foi-se embora às cinco da tarde.
Vinte e duas horas antes. Vinte e duas horas que eram importantes quando se tratava de um desaparecimento.
– Sabe para onde ele foi?
– Sim, foi ter com a Lisa.
– Quem é a Lisa?
– É a namorada dele. Hoje telefonei-lhe, mas disseme que ele tinha saído da sua casa por volta das dez da noite.
Klara riscou «vinte e duas» e substituíu-as por «dezassete».
– E onde foi ele a seguir?
– Ela não sabia. Julgou que tivesse vindo para casa. Mas ele não veio para casa. Passou toda a noite fora. E agora o dia já está quase a chegar ao fim.
E só agora é que telefonou, pensou Klara. Ocorreu-lhe que a mulher que estava do outro lado do telefone não parecia particularmente enervada. Parecia antes conformada. Resignada.
– Qual é o apelido da Lisa?
– Hansson.
Klara tomou nota do nome.
– O Roger tem telemóvel? Já tentou ligar-lhe?
– Sim, mas ninguém atende.
– E não tem nenhuma ideia acerca de onde ele poderá ter ido? Terá ficado em casa de algum amigo?
– Não, ter-me-ia telefonado.
Lena Eriksson calou-se por um instante e Klara presumiu que lhe tivesse faltado a voz, mas, quando a ouviu inspirar do outro lado, percebeu que a mulher estava a puxar uma longa baforada de um cigarro. Ouviu Lena soprar o fumo.
– Ele simplesmente desapareceu.
CAPÍTULO DOIS
O SONHO surgia todas as noites.
Não lhe dava descanso.
Sempre o mesmo sonho, que trazia consigo o mesmo medo. Isso irritava-o. Deixava-o louco. Sebastian Bergman era melhor do que aquilo. Mais do que qualquer outra pessoa, ele conhecia o significado dos sonhos; mais do que qualquer outra pessoa, tinha de conseguir elevar-se acima desses febris resquícios do passado. Mas, por mais preparado que estivesse, por mais ciente do verdadeiro significado do sonho, não conseguia evitar deixar-se apanhar por ele. Era como se estivesse tolhido entre o que sabia que o sonho significava e quem ele era e fosse incapaz de se mover entre ambos.
4h43 da manhã.
Lá fora, começava a clarear. Sebastian tinha a boca seca. Teria gritado? Era pouco provável, uma vez que a mulher deitada ao seu lado não despertara. Continuava a respirar serenamente, e ele avistou um seio nu meio encoberto pelos longos cabelos dela. Sebastian endireitou os seus dedos contraídos pelas cãibras sem sequer ter de pensar nisso – estava habituado a acordar com a mão direita completamente contraída após o sonho. Em alternativa, tentou lembrar-se do nome da pessoa que dormia ao seu lado.
Katarina? Karin?
Ela deveria ter-lho dito a certa altura durante a noite.
Kristina? Karolin?
Não que isso importasse verdadeiramente – não tinha qualquer intenção de voltar a vê-la –, mas esquadrinhar a memória ajudava a expulsar os últimos laivos do sonho que se parecia apegar a todos os seus sentidos.
O sonho que o perseguia há mais de cinco anos. O mesmo sonho, as mesmas imagens todas as noites. Todo o seu subconsciente no limite, a remoer a única coisa que ele não conseguia enfrentar durante o dia.
Lidar com a culpa.
Sebastian saiu vagarosamente da cama, reprimiu um bocejo enquanto tirava as suas roupas da cadeira onde as deixara várias horas antes. Enquanto se vestia, foi olhando de forma desinteressada ao redor do quarto: uma cama; dois roupeiros brancos feitos por medida, um deles com uma porta espelhada; uma singela mesa-de-cabeceira branca do IKEA sobre a qual havia um despertador e uma revista; uma pequena mesa onde estava uma fotografia da criança com que ela ficava em semanas alternadas; e mais algumas tralhas ao pé da cadeira de onde ele acabara de tirar as roupas. Umas estampas inclassificáveis nas paredes, que algum agente imobiliário mais habilidoso descrevera, sem dúvida, como sendo «cor de cappuccino», mas que, na realidade, tinham um tom de bege-sujo. O quarto era como o sexo que ele acabara de praticar ali: desprovido de imaginação e ligeiramente aborrecido, mas cumpria a função. Como de costume. Infelizmente, a satisfação não durava muito.
Sebastian fechou os olhos. Este era sempre o momento mais doloroso. A transição para a realidade. A inversão de marcha emocional. Conhecia isso muito bem. Concentrou-se na mulher deitada na cama, em particular no mamilo que estava à mostra. Qual era, afinal, o nome dela?
Sabia que se tinha apresentado quando oferecera as bebidas; fazia sempre isso. Nunca quando perguntava se o lugar ao lado estava livre ou se podia oferecer-lhe uma bebida, o que ela quisesse. Sempre que pousava o copo à frente da mulher.
– Já agora, o meu nome é Sebastian.
E que lhe respondera ela? Qualquer coisa que começava por K – estava razoavelmente convencido disso. Apertou o cinto. A fivela produziu um ténue som de aspereza metálica.
– Vais-te embora? – A voz ensonada dela, os seus olhos a procurarem o relógio.
– Vou.
– Pensei que íamos tomar o pequeno-almoço juntos. Que horas são?
– Quase cinco.
A mulher soergueu-se, apoiando-se num cotovelo. Que idade teria? Talvez uns quarenta? Afastou uma madeixa de cabelo do rosto. O sono estava a desaparecer, dando gradualmente lugar à compreensão de que a manhã que ela tinha imaginado não aconteceria. Não tomariam o pequeno-almoço enquanto liam o jornal e tagarelavam descontraidamente; não haveria um passeio dominical. Ele não queria ficar a conhecê-la melhor, nem lhe telefonaria, independentemente do que lhe dissesse.
Ela sabia tudo isso. Portanto, ele disse-lhe simplesmente: – Então, adeus.
Sebastian nem tentou arriscar um nome qualquer. Já nem sequer tinha a certeza de que começasse por K.
Lá fora, a rua encontrava-se silenciosa sob a luz do alvorecer. O subúrbio estava adormecido e todos os sons pareciam ocorrer em surdina, como se ninguém quisesse despertá-lo. Até o trânsito da Nynäsvägen[1], que ficava a curta distância, parecia respeitosamente atenuado. Sebastian parou junto ao letreiro da encruzilhada: Varpavägen. Algures na zona de Gubbängen. Bastante longe de casa. O metro já estaria a funcionar a esta hora da manhã? Na noite anterior tinham vindo de táxi. Pararam na loja de conveniência para comprarem pão para torradas; ela lembrara-se de que não tinha nenhum em casa. Porque ele ia ficar para o pequeno-almoço, não era? Tinham comprado pão e sumo, ele e a... Que grandessíssima chatice. Como era o raio do nome dela? Sebastian pôs-se a caminhar ao longo da rua deserta.
Tinha-a ofendido, fosse qual fosse o seu nome.
Daí a catorze horas, iria até Västerås para continuar o seu trabalho. Embora isso fosse diferente: ele já não podia ofender a mulher de Västerås.
Começou a chover.
Mas que manhã tão terrível.
Em Gubbängen.
CAPÍTULO TRÊS
TUDO CORRIA mal. Os sapatos do inspector Thomas Haraldsson deixavam entrar água, o rádio dele não funcionava, e tinha-se perdido do resto da sua equipa de buscas. O sol batia-lhe em cheio no rosto, o que o obrigava a semicerrar os olhos para evitar tropeçar no mato e nas raízes que se espalhavam de forma irregular naquele terreno alagadiço. Praguejou entredentes e olhou para o relógio. Daí a duas horas, Jenny teria o seu intervalo para almoço no hospital. Entraria no carro e iria até casa, esperando que ele lá estivesse. Mas não havia qualquer hipótese. Continuaria ali no meio daquela maldita floresta.
O pé esquerdo de Haraldsson afundou-se no solo. Sentiu a peúga absorver a água fria. O ar tinha o jovem e fugaz calor da Primavera, mas o Inverno mantinha a água presa nas suas gélidas garras. Arrepiou-se e depois conseguiu retirar o pé e encontrar terreno firme.
Olhou à sua volta. O Leste devia ser para aquele lado. Não era lá que estavam os recrutas do Serviço Nacional? Ou os escuteiros? Por outro lado, poderia ter efectuado um círculo completo e perdido totalmente a noção de onde se situava o Norte. Avistou a curta distância uma pequena colina e percebeu que isso significava terreno seco, uma mancha de paraíso naquele inferno encharcado. Começou a deslocar-se nessa direcção. O pé voltou a afundar-se. Desta vez, o direito. Fantástico! Mas que grande merda.
A culpa era da Hanser.
Ele não estaria ali ensopado até meio das pernas se não fosse o facto de a Hanser querer dar a impressão de ser forte e capaz de acções decisivas. E decerto que ela precisava disso, porque no fundo não era uma polícia a sério. Era uma daquelas licenciadas em Direito que entram por cunhas e se apoderam do lugar de chefia sem sujar as mãos – ou, como no caso de Haraldsson, sem molhar os pés.
Não: se fosse Haraldsson que mandasse, isto teria sido tratado de uma maneira muito diferente. Era verdade que o miúdo estava desaparecido desde sexta-feira e que, de acordo com os regulamentos, o procedimento correcto era o de ampliar a área de buscas, sobretudo porque alguém tinha referido «actividades nocturnas» e «luzes na floresta» nas imediações de Listakärr durante esse fim-de-semana específico. Mas Haraldsson sabia, pela experiência, que aquilo era um exercício de futilidade. O miúdo estava em Estocolmo, a rir-se das preocupações da mãe. Tinha dezasseis anos. Isso era o tipo de coisa que a miudagem de dezasseis anos fazia. Rirem-se das mães.
A Hanser.
Quanto mais molhado ficava, mais Haraldsson a odiava. Ela era a pior coisa que alguma vez lhe acontecera. Jovem, atraente, bem-sucedida, política; uma representante da nova e moderna força policial.
Tinha sido assim que entrara. Quando ela havia presidido à sua primeira reunião em Västerås, Haraldsson percebera que a carreira dele tinha travado a fundo. Candidatara-se ao cargo. Quem o obtivera fora ela. Ficaria na chefia durante pelo menos cinco anos. Os cinco anos dele. A escada que conduzia ao topo tinha-lhe sido arrebatada. Em vez disso, a sua carreira começara agora a estagnar. Sentia que era uma mera questão de tempo até entrar em declínio. Era quase simbólico que ele estivesse enfiado até aos joelhos em lama malcheirosa numa floresta a nove quilómetros de Västerås.
A mensagem de texto que recebera nessa manhã dizia ALMOÇO EM CASA HOJE, em letras grandes. Isso significava que Jenny iria a casa durante a hora de almoço para fazer sexo com ele e que depois fariam sexo mais uma ou duas vezes durante o serão. Hoje em dia, as suas vidas eram assim. Jenny andava a receber tratamento para a sua incapacidade de conceber um filho e tinha organizado, em conjunto com o médico, um horário que supostamente melhoraria as possibilidades de engravidar. Hoje era um dos tais dias óptimos. Daí a mensagem de texto. Haraldsson tinha sentimentos díspares. Por um lado, apreciava o facto de a vida sexual deles ter ultimamente aumentado várias centenas por cento. De Jenny estar sempre a querê-lo. Ao mesmo tempo, não conseguia escapar à sensação de que aquilo que ela queria não era exactamente ele: era o seu esperma. Se não andasse tão desesperada por uma criança, nunca lhe teria ocorrido ir a casa durante a hora de almoço para uma rapidinha. Havia em tudo aquilo algo que se assemelhava à criação de cavalos. Logo que o óvulo iniciava a viagem em direcção ao útero, punham-se a fornicar como os coelhos. E, para ser franco, noutras ocasiões também, só por segurança. Mas hoje em dia nunca por prazer, nunca pela intimidade. O que acontecera à paixão? Ao desejo? E agora ela iria a casa durante a hora de almoço e não encontraria lá ninguém. Talvez devesse ter-lhe telefonado a perguntar se deveria masturbar-se antes de sair de casa e deixar aquilo dentro de um boião no frigorífico. Infelizmente, não tinha a certeza absoluta de que Jenny achasse a ideia assim tão má.
Tudo começara no sábado anterior.
Por volta das 15h00, uma chamada fora reencaminhada para a polícia de Västerås através do número de emergência. Uma mãe participara o desaparecimento do seu filho de dezasseis anos. Como a queixa envolvia um menor, tinha-lhe sido dada máxima prioridade. Completamente de acordo com os regulamentos.
Infelizmente, o relatório prioritário tinha ficado por ali até domingo, quando se pedira a uma patrulha que lhe desse seguimento. Isso resultara na visita de dois agentes uniformizados à mãe do rapaz por volta das 16h00. Os agentes voltaram a tomar nota dos pormenores e o relatório fora entregue quando saíram de serviço, ao fim dessa noite. Até então, nenhuma acção fora levada a cabo, para além do facto de existirem dois relatórios idênticos acerca do mesmo desaparecimento. Ambos marcados como PRIORIDADE MÁXIMA.
Só na manhã de segunda-feira, quando Roger Eriksson já estava desaparecido há cinquenta e oito horas, é que o oficial de serviço reparou que não fora tomada qualquer medida. Lamentavelmente, uma reunião sindical por causa das propostas da Administração da Polícia Nacional a respeito dos novos uniformes tinha demorado um tempo considerável, e só na segunda-feira depois de almoço é que o caso fora passado a Haraldsson. Quando ele vira a data do relatório, agradecera às suas boas estrelas por a patrulha ter ido visitar Lena Eriksson no domingo à tarde. Ela não precisava de saber que só tinham escrito mais um relatório. Não, a investigação fora iniciada no domingo, mas ainda não produzira quaisquer resultados. Era nessa versão que Haraldsson tencionava concentrar-se.
Haraldsson percebeu que necessitaria de alguma informação nova antes de ir falar com Lena Eriksson, por isso tentara telefonar a Lisa Hansson, a namorada de Roger, mas ela ainda estava nas aulas.
Fora verificar se Lena e Roger tinham cadastro oficial nos registos policiais. Havia alguns incidentes de furtos em lojas que envolviam Roger, mas o mais recente fora há cerca de um ano e era difícil estabelecer uma ligação com o desaparecimento. Sobre a mãe, nada.
Haraldsson telefonou para as autoridades locais e descobriu que Roger frequentava o Liceu Palmlövska.
Isso não é bom, pensara ele.
O Palmlövska era uma escola de preparação para a universidade que também aceitava alunos internos e estava classificada entre as melhores do país no que dizia respeito aos resultados nos exames. Os seus alunos eram dotados e altamente motivados e tinham pais ricos. Famílias com contactos. Haveriam de procurar um bode expiatório ao qual atribuíssem a culpa pelo facto de a investigação não ter sido iniciada de imediato, e não parecia nada bom que, ao terceiro dia, a polícia ainda não tivesse feito quaisquer progressos. Haraldsson decidira adiar tudo o resto. A sua carreira já chegara a um impasse e seria pouco sensato correr riscos.
Por isso, Haraldsson trabalhara arduamente nessa tarde. Fora visitar a escola. Tanto Ragnar Groth, o reitor, como Beatrice Strand, a directora da turma de Roger, exprimiram grande preocupação e perplexidade ao ouvirem dizer que Roger estava desaparecido, mas tinham sido incapazes de o ajudar. Em todo o caso, não acontecera nada de que eles tivessem conhecimento. Roger tinha-se comportado de uma maneira perfeitamente normal, frequentara a escola como de costume, na tarde de sexta-feira tivera um importante exame de Sueco, e, segundo os seus colegas, depois disso ficara bem-disposto.
Haraldsson, porém, tinha ido falar com Lisa Hansson, a última pessoa que vira Roger na tarde de sexta-feira. Frequentava o mesmo ano, e Haraldsson pedira a alguém que lha indicasse na cafetaria da escola. Era uma rapariga bonita, mas bastante vulgar. Cabelo louro escorrido, a franja presa para trás com uma simples mola de cabelo. Olhos azuis, sem maquilhagem. Uma camisa branca abotoada quase até acima, por baixo de um colete. Quando se sentara diante dela, Haraldsson pensara imediatamente na Igreja Livre. Ou na rapariga da série A Pedra Branca, que passara na televisão quando ele era novo. Perguntou-lhe se queria comer ou beber alguma coisa. Ela abanou a cabeça.
– Fale-me de sexta-feira, quando o Roger esteve em sua casa.
Lisa olhou para ele e encolheu os ombros.
– Chegou por volta das cinco e meia, estivemos sentados no meu quarto a ver televisão, e ele foi para casa por volta das dez. Bom, pelo menos, disse que ia para casa...
Haraldsson acenou com a cabeça em sinal de assentimento. Quatro horas e meia dentro do quarto dela. Dois miúdos de dezasseis anos. A ver televisão. Boa tentativa. Ou talvez ele estivesse simplesmente corroído pela vida que levava! Há quanto tempo é que ele e Jenny não passavam um serão a ver televisão? Sem uma rapidinha durante os anúncios? Meses.
– Então não aconteceu mais nada? Vocês não discutiram, não se zangaram nem nada disso?
Lisa abanou a cabeça. Roeu a unha quase inexistente do polegar. Haraldsson reparou que a cutícula estava infectada.
– Ele já tinha desaparecido desta maneira anteriormente?
Lisa tornou a abanar a cabeça.
– Que eu saiba, não, mas nós não estamos juntos há muito tempo. Não falou com a mãe dele? – Por um instante, Haraldsson julgou que ela estivesse a acusá-lo, mas depois percebeu que, evidentemente, não era esse o caso. A culpa era da Hanser. Ela levara-o a duvidar das suas próprias capacidades.
– Os meus colegas conversaram com ela, mas nós precisamos de falar com toda a gente. Para obtermos uma ideia geral. – Haraldsson pigarreou. – Como são as coisas entre o Roger e a mãe? Alguns problemas?
Lisa encolheu os ombros mais uma vez. Ocorreu a Haraldsson que o repertório dela devia ser um pouco limitado. Abanar a cabeça e encolher os ombros.
– Eles discutiam?
– Acho que sim. Às vezes. Ela não gostava da escola.
– Desta escola?
Lisa respondeu que sim com a cabeça.
– Ela achava a escola muito emproada.
E olha que nisso não se enganou, pensou Haraldsson.
– O pai do Roger vive cá?
– Não. Não sei onde vive. Nem tenho a certeza de que o Roger saiba. Nunca fala dele.
Interessante. Haraldsson tomou nota. Talvez o filho se tivesse ido embora para procurar as suas origens. Para confrontar um pai ausente. Escondendo isso da mãe. Já tinham acontecido coisas mais estranhas.
– O que acha que lhe aconteceu?
O fio dos pensamentos de Haraldsson foi interrompido. Olhou para Lisa e percebeu pela primeira vez que ela estava à beira das lágrimas.
– Não sei – respondeu. – Mas creio que ele há-de aparecer. Talvez tenha ido uns tempos para Estocolmo. Uma pequena aventura. Uma coisa dessas.
– Porque faria isso?
Haraldsson olhou para a expressão interrogativa da jovem. Para a unha roída e sem verniz numa boca sem batom. Provavelmente, não, a Menina Igreja Livre não compreenderia porquê, mas Haraldsson estava a ficar cada vez mais convencido de que este desaparecimento era, na verdade, o caso de um rapaz que fugira de casa.
– Às vezes há coisas que na ocasião parecem ser uma boa ideia. Tenho a certeza de que ele há-de aparecer. – Haraldsson ofereceu a Lisa um sorriso reconfortante, mas, pela expressão dela, percebeu que isso não dera resultado. – Prometo – acrescentou.
Antes de ir embora, Haraldsson pediu a Lisa que lhe fizesse uma lista dos amigos de Roger e das pessoas com quem convivia. Lisa ficou sentada a pensar durante bastante tempo, depois escrevinhou qualquer coisa e entregou-lhe a folha de papel. Dois nomes: Johan Strand e Erik Heverin. Um rapaz solitário, pensou Haraldsson. Os rapazes solitários fogem de casa.
Quando entrou no carro nessa tarde de segunda-feira, Thomas Haraldsson sentia-se, apesar de tudo, muito satisfeito com o dia. Manifestamente, a conversa com Johan Strand não trouxera qualquer novidade. A última vez que Johan vira Roger fora no final das aulas de sexta-feira. Tanto quanto sabia, Roger passaria depois por casa de Lisa. Não fazia ideia sobre onde poderia Roger ter ido a seguir. Erik Heverin tinha-se ausentado da escola por um período prolongado. Seis meses na Florida. Já partira há sete semanas. A mãe do rapaz aceitara um cargo de consultora nos Estados Unidos e toda a família fora com ela. Para alguns a vida não corre mal, pensou Haraldsson, tentando lembrar-se dos locais exóticos onde a sua profissão o levara. Aquele seminário em Riga foi a única coisa que lhe veio à cabeça, mas durante a maior parte do tempo estivera doente devido a uma intoxicação alimentar e a sua recordação predominante era a de ter ficado a olhar para um balde de plástico azul enquanto os colegas se divertiam à força toda.
Apesar disso, Haraldsson estava razoavelmente satisfeito. Seguira diversas pistas e, o que era mais importante, descobrira um possível conflito entre a mãe e o filho, o que indicava que dentro em pouco este caso deixaria de ser um assunto policial. A mãe não tinha usado a expressão «foi-se embora» quando lhes telefonara? De facto, tinha. Haraldsson lembrava-se de ter reagido a isso quando ouvira a gravação. O filho dela não «fugira» nem «desaparecera» – tinha «ido embora». Isso não sugeria que ele saíra de casa zangado? Uma porta que bateu, uma mãe levemente resignada. Haraldsson estava a ficar cada vez mais convencido: o rapaz estava em Estocolmo, a expandir os seus horizontes.
No entanto, só para jogar pelo seguro, achara que poderia passar por casa de Lisa e ir bater a algumas portas. A ideia era dar nas vistas, assegurar-se de que algumas pessoas o reconhecessem no caso de alguém começar a pensar como corria a investigação. Com um pouco de sorte, até poderia haver alguém que tivesse visto Roger encaminhar-se para o centro da cidade e para a estação. A seguir iria visitar a mãe dele, exercer alguma pressão para averiguar até que ponto eles, na verdade, discutiam. Bom plano, pensou, e pôs o carro em marcha.
O seu telemóvel tocou. Uma rápida olhadela ao ecrã causou-lhe um ligeiro calafrio na espinha. Era a Hanser.
– Mas que raio quer ela agora? – murmurou Haraldsson, desligando o motor. Deveria ignorar a chamada? Era uma tentação, mas talvez o rapaz já tivesse regressado. Talvez fosse isso que Hanser lhe queria dizer. Que Haraldsson sempre tivera razão. Atendeu o telefonema.
A conversa durou apenas dezoito segundos e consistiu em sete palavras por parte de Hanser.
– Onde estás tu?– Foram as três primeiras.
– No carro – respondeu Haraldsson sem faltar à verdade. – Estive na escola do rapaz a falar com alguns dos professores e com a namorada dele.
Para seu imenso desgosto, Haraldsson percebeu que estava a adoptar uma posição defensiva. A sua voz tornara-se um pouco submissa. Um pouco mais esganiçada do que era habitual. Por amor de Deus, ele tinha feito absolutamente tudo o que devia.
– Volta já para cá.
Haraldsson estava prestes a explicar-lhe onde ia e a perguntar-lhe o que havia de tão importante, mas não teve tempo para dizer nada antes de Hanser terminar o telefonema. A maldita Hanser. Pôs o carro em marcha, deu meia-volta e regressou de novo à esquadra.
Hanser foi ter com ele. Aqueles olhos gélidos. Aqueles cabelos louros que caíam com uma perfeição ligeiramente excessiva. Aquele fato que lhe assentava tão bem, sem dúvida dispendioso. Tinha acabado de receber um telefonema de uma enervada Lena Eriksson, que queria saber o que estava a acontecer, e agora era ela que fazia a mesma pergunta: O que estava a acontecer, ao certo?
Haraldsson relatou rapidamente as actividades da tarde e conseguiu mencionar, nada menos de quatro vezes, que só lhe tinham entregue o caso nesse dia depois do almoço. Se ela queria implicar com alguém, devia começar pela equipa que estivera de serviço no fim-de-semana.
– É isso que vou fazer – disse Hanser calmamente. – Porque é que não me informaste se sabias que não tinham tratado disso? É exactamente o tipo de coisa que eu preciso de saber.
Haraldsson estava ciente de que as coisas não estavam a correr como pretendia. Tentou defender-se.
– Este tipo de coisas acontecem. Por amor de Deus, eu não posso vir a correr ter contigo sempre que há algum problema. Quero dizer, tu tens coisas mais importantes em que pensar.
– Mais importantes do que garantir que começamos imediatamente a procurar uma criança desaparecida? – Ela fitou-o com uma expressão interrogadora. Haraldsson deixou-se ficar calado. Isto não estava a correr como planeara. Nem um pouco.
?
Isso tinha sido na segunda-feira. Agora estava ali, em Listakärr, com as peúgas todas ensopadas. A Hanser tinha carregado em força, montara inquéritos porta a porta e equipas de buscas que todos os dias eram aumentadas. Até agora, sem sucesso. No dia anterior, na esquadra, Haraldsson cruzara-se com o superintendente-chefe local e indicara-lhe casualmente que isto não sairia barato. Uma quantidade significativa de agentes a cumprirem horas extraordinárias, à procura de um miúdo que andava a divertir-se na cidade grande. Haraldsson não conseguira interpretar com precisão a reacção do oficial superior, mas, quando Roger voltasse da sua pequena excursão, o chefe haveria de lembrar-se do que Haraldsson lhe dissera. Veria quanto dinheiro a Hanser gastara. Haraldsson sorriu ao pensar nisso. Uma coisa eram os procedimentos; a intuição de um detective era algo completamente diferente. Era algo que não podia ensinar-se.
Haraldsson parou. A meio caminho do outeiro. Um dos seus pés ficara de novo atolado. Desta vez até ao fundo. Puxou-o para fora. Sem sapato. Só teve tempo de ver a lama fechar-se avidamente em torno do seu número 42 enquanto a peúga do pé esquerdo se ensopava ainda mais em água fria.
Basta.
Já chegava.
Fora a última gota.
Ajoelhado, com as mãos na lama, tirou o sapato. E a seguir ia para casa. Os outros podiam continuar a correr por ali com as suas malditas equipas de busca. Ele tinha de ir engravidar a mulher.
Uma viagem de táxi e 380 coroas mais tarde, Sebastian estava à porta do seu apartamento na Grev Magnigatan, em Östermalm[2]. Há muito tempo que tencionava livrar-se dele – o local era dispendioso e luxuoso, perfeitamente adequado a um autor e conferencista bem-sucedido, com um currículo académico e uma vasta rede de contactos sociais. Todas as coisas que ele já não era e que já não tinha. Mas como a própria ideia de desimpedir o local, de embalar e separar tudo o que acumulara ao longo dos anos, era simplesmente excessiva para si, optara, em vez disso, por fechar grandes áreas do apartamento, usando apenas a cozinha, o quarto de hóspedes e a casa de banho mais pequena. O resto podia continuar sem ser usado. À espera de... bom, de uma coisa ou outra.
Sebastian passou os olhos pela sua cama permanentemente por fazer mas decidiu ir tomar um duche. Um duche demorado e quente. A intimidade da noite anterior desaparecera. Teria sido errado sair de lá à pressa daquela maneira? Poderia ela oferecer-lhe alguma coisa se ele tivesse ficado mais algumas horas? Sem dúvida, teria havido mais sexo. E pequeno-almoço. Torradas e sumo. E a seguir? A despedida definitiva era inevitável. Aquilo nunca poderia terminar de outra maneira. Por isso, o melhor era não se porem a inventar coisas. Ainda assim... Sentia a falta daquele interlúdio de companhia que o animara durante algum tempo. Já se sentia novamente pesado e vazio.
Quanto tempo dormira ele na noite anterior? Duas horas? Duas horas e meia? Olhou-se ao espelho. Os seus olhos pareciam mais cansados do que era habitual e percebeu que dentro em pouco teria de fazer alguma coisa a respeito do cabelo. Talvez cortá-lo muito curto desta vez. Não, isso fá-lo-ia lembrar-se demasiado de como fora anteriormente. E anteriormente não era agora. Não, mas podia aparar a barba, arranjar o cabelo, talvez até fazer umas madeixas. Sorriu para consigo, o seu mais encantador sorriso. É inacreditável, mas continua a dar resultado, pensou ele.
De súbito, Sebastian sentiu-se imensamente cansado. A inversão de marcha estava feita. O vazio regressara. Olhou para o relógio. Afinal, talvez devesse ir deitar-se um bocado. Sabia que o sonho haveria de regressar, mas agora estava demasiado cansado para se preocupar com isso. Conhecia tão bem esse seu companheiro que, por vezes, nas poucas ocasiões em que dormia sem ser acordado por ele, acabava por sentir a sua falta.
Ao princípio não fora assim. Quando o sonho o atormentara durante meses, Sebastian ficara muito farto da caminhada constante, farto da dança sem fim ao redor do medo e farto da dificuldade em respirar. Começara a beber uns bons copos antes de se ir deitar. A principal maneira de resolver problemas para os homens brancos de meia-idade que tinham currículos académicos e vidas emocionais complicadas. Durante algum tempo, conseguira evitar completamente o sonho durante o sono, mas o seu subconsciente encontrara com demasiada rapidez uma maneira de ultrapassar a barreira do álcool, pelo que as bebidas nocturnas se tornaram maiores e passaram a ser consumidas cada vez mais durante a tarde para atingir o efeito pretendido. Por fim, Sebastian percebera que tinha perdido a batalha. Desistira de imediato.
Pensara que, em vez disso, viveria com a dor.
Deixá-la demorar o tempo que fosse preciso.
Sarar.
Isso também não funcionara. Após mais um período em que despertava repetidamente, começara a automedicar-se. Uma coisa que ele prometera a si mesmo nunca fazer. Mas nem sempre era possível manter as promessas – Sebastian sabia isso melhor do que a maioria, devido à sua própria experiência –, sobretudo quando somos confrontados com problemas realmente grandes. Quando isso acontece, tem de se ser mais flexível. Telefonara a alguns dos seus antigos doentes menos escrupulosos e limpara o pó ao bloco de receitas. O negócio era simples: metade para cada um.
As autoridades, claro, entraram em contacto com ele fazendo-lhe perguntas sobre a quantidade de medicamentos que começava subitamente a receitar. Sebastian conseguira justificar-se com umas mentiras bem urdidas acerca de ter «retomado as suas consultas» e de uma «intensa fase introdutória» com «doentes num estado de fluxo», embora tivesse, de facto, aumentado o número de doentes para não se tornar tão óbvio o que andava a fazer.
Para começar, limitou-se sobretudo ao Propavan, Prozac e Di-Gesic, mas os efeitos eram irritantemente pouco duradouros, e pusera-se a investigar o Dolcontin e outras substâncias baseadas na morfina.
Afinal, a autoridade médica era o menor dos seus problemas. Ele conseguia lidar com isso. Os efeitos da sua experiência eram uma outra questão. O sonho tinha desaparecido, sem dúvida. Mas também o seu apetite, a maior parte das suas palestras e a sua libido – uma experiência inteiramente nova e aterrorizante para Sebastian.
O pior de tudo, porém, era a sonolência crónica. Era como se já não conseguisse ter pensamentos completos: eram-lhe arrebatados a meio do caminho. Conseguia conduzir uma simples conversa quotidiana, com uma certa dose de esforço, mas uma discussão ou um debate mais longo estavam completamente fora do seu alcance. Quanto a análises e conclusões – nenhuma hipótese.
Para Sebastian, cuja existência fora inteiramente baseada na consciência do seu intelecto, na sua auto-imagem, na ilusão da acutilância do seu espírito, isso foi terrível. Viver uma vida anestesiada – sim, aquilo entorpecia a dor, mas amortecia muito mais coisas: a vida propriamente dita, ao ponto de ele já não conseguir encontrar-lhe nexo. Foi aí que definiu a fronteira. Sabia que tinha de efectuar uma escolha: viver com medo mas conservar a capacidade de pensar ou optar por uma vida monótona, embotada, com pensamentos semiformados. Compreendeu que provavelmente detestaria a sua existência em qualquer dos casos, pelo que optou pelo medo e parou logo com a automedicação.
Desde então não voltara a tocar em álcool nem em medicamentos.
Nem sequer tomava um analgésico quando lhe doía a cabeça.
Mas sonhava.
Todas as noites.
Porque estaria a pensar nisto?, matutou ele enquanto se contemplava ao espelho da casa de banho. Porquê agora? Há muitos anos que aquele sonho fazia parte da sua vida. Estudara-o, analisara-o. Discutira-o com o seu terapeuta. Aceitara-o. Aprendera a viver com ele.
Portanto, porquê agora?
É Västerås, pensou enquanto pendurava a toalha e saía da casa de banho completamente nu. É tudo por causa de Västerås.
De Västerås e da sua mãe. Mas hoje ele encerraria esse capítulo da sua vida.
Para sempre.
O dia de hoje poderia ser bom.
Aquele era o melhor dia que Joakim tinha desde há imenso tempo, ali, na floresta dos arrabaldes de Listakärr, e tornara-se ainda melhor quando ele fora um dos três escolhidos para receber ordens directas do agente policial que viera dizer-lhes onde deveriam ir e o que fazer. Habitualmente, as actividades dos escuteiros eram muito aborrecidas, mas de repente aquilo transformara-se numa verdadeira aventura. Joakim olhou de soslaio para o agente que estava diante de si, em especial para a arma, e decidiu que um dia havia de ser polícia. Um uniforme e uma arma. Tal como nos escuteiros, mas com sérios melhoramentos. E Deus sabia como isso era necessário. Para ser honesto, Joakim não pensava que pertencer aos escuteiros fosse a coisa mais interessante do mundo. Já não. Tinha acabado de fazer catorze anos e a actividade extracurricular, que tinha sido o seu passatempo desde os seis, começara a perder o fascínio. O feitiço quebrara-se. A vida ao ar livre, a sobrevivência, os animais, a Natureza. Não era que ele achasse que aquilo não tinha graça, mesmo que todos os rapazes da sua turma pensassem isso. Não – ele sentia apenas que já superara essa fase. Obrigado, tinha sido bom enquanto durara, mas agora era tempo para outra coisa qualquer. Alguma coisa real.
Talvez Tommy, o líder deles, pensasse o mesmo.
Talvez fosse por isso que ele tinha ido ter com a polícia e os soldados e lhes perguntara o que se passava quando tinham chegado a Listakärr.
Talvez fosse por isso que lhes oferecera os seus préstimos e os do grupo.
Fosse qual fosse a razão, o agente policial – cujo nome era Haraldsson – tinha pensado no assunto e, após alguma hesitação, chegara à conclusão de que não faria mal nenhum dispor de mais nove pares de olhos na floresta. Até podiam ficar com um pequeno sector para procederem às buscas. O agente policial pedira a Tommy para os dividir em grupos de três, para escolher um líder de cada grupo e para dizer aos líderes que lhe fossem pedir instruções. Joakim sentira-se como se tivesse ganhado a lotaria. Tinha ficado num grupo com Emma e Alice, as raparigas mais bonitas do agrupamento. E fora escolhido para líder.
Joakim regressou para junto das raparigas, que o aguardavam. Haraldsson mostrara-se muito brusco, como os detectives dos filmes de Martin Beck[3]. Joakim sentia-se deveras importante. Já conseguia imaginar a maneira como decorreria o resto do seu fantástico dia. Haveria de encontrar o rapaz desaparecido seriamente magoado. O rapaz levantaria os olhos para Joakim com aquela expressão suplicante que só os moribundos conseguem alcançar; estaria demasiado fraco para falar, mas os seus olhos diriam tudo. Joakim pegaria nele e carregá-lo-ia até junto dos outros, tal como nos filmes. Os outros haveriam de avistá-lo, sorrir-lhe, aplaudi-lo, incitá-lo, e no fim tudo acabaria por se resolver.
Regressado ao grupo, Joakim organizou a sua equipa de maneira a ficar com Emma à sua esquerda e Alice do outro lado. Haraldsson dera ordens rigorosas para que mantivessem a corrente unida, e Joakim fitou as raparigas e disse-lhes, muito sério, como era importante que se mantivessem juntos. Estava na hora de assumirem as suas responsabilidades. Após o que pareceu ser uma eternidade, Haraldsson fez-lhes sinal, e a equipa de buscas começou finalmente a mover-se.
Joakim depressa notou que era muito difícil manter uma corrente unida, embora esta consistisse em apenas três grupos de três pessoas cada um. Sobretudo quando penetraram mais na floresta e o paul os forçou a fazer desvios em relação à rota traçada, uma e outra vez. Um dos grupos descobriu que lhe era difícil manter o ritmo; o outro não abrandou e não tardou a desaparecer entre os outeiros. Tal como Haraldsson dissera. Joakim ficou ainda mais impressionado com ele. Parecia saber tudo. Joakim sorriu para as raparigas e fê-las repetir as últimas palavras de Haraldsson.
– Se encontrarem alguma coisa, gritem «Achei!».
Emma disse-lhe que sim com a cabeça, mostrando-se entediada.
– Já nos disseste isso mil vezes.
Joakim não se deixou desmoralizar pela resposta dela. Continuou a avançar com o sol a bater-lhe nos olhos, tentando manter a distância e o alinhamento, embora isso se fosse tornando cada vez mais difícil. E já não conseguia avistar o grupo de Lasse, que ainda há pouco estava ligeiramente à esquerda deles.
Ao fim de meia hora, Emma quis descansar. Joakim tentou fazê-la compreender que não podiam simplesmente parar. Acabariam por ficar para trás e perder-se dos outros.
– Quais outros? – disse Alice, sorrindo com malícia.
Joakim percebeu que já não viam os outros há algum tempo.
– Pelo som, parece que estão atrás de nós.
Calaram-se, escutaram com mais atenção. Uns sons ténues à distância. Alguém gritava.
– Não, vamos continuar – disse Joakim, embora soubesse no seu íntimo que Alice talvez tivesse razão. Tinham-se deslocado com demasiada rapidez. Ou na direcção errada.
– Nesse caso, vais sozinho – respondeu Emma, com uma expressão furiosa. Por segundos, Joakim sentiu que perdia o controlo sobre a equipa e que Emma estava a escapar-lhe por entre os dedos. E ela até lhe tinha lançado um olhar apreciativo durante a última meia hora. De repente, Joakim estava alagado em suor, e não era apenas por a sua roupa interior ser demasiado quente. Tinha andado a orientá-las para a impressionar, seria que ela não conseguia perceber isso? E agora Emma comportarva-se como se tudo fosse culpa dele.
– Tens fome? – perguntou Alice, interrompendo o fio dos pensamentos de Joakim. Tirara da sua mochila um pacote com comida.
– Não – respondeu ele um pouco depressa de mais, antes de perceber que, de facto, sentia fome. Afastou-se delas e trepou a um outeiro de modo que parecesse que tinha um plano. Emma aceitou com gratidão uma bolacha mole, ignorando completamente as tentativas de Joakim para se mostrar importante. Joakim decidiu que precisava de mudar a sua linha de acção. Respirou fundo, permitindo que o ar fresco da floresta lhe enchesse os pulmões. O céu enublara-se, o Sol desaparecera e, com este, a promessa de um dia perfeito. Regressou para junto das raparigas, decidido a amaciar o seu tom de voz.
– Por acaso até me apetecia uma sanduíche, se ainda tiveres alguma – disse ele, o mais amavelmente que conseguiu.
– Claro – respondeu Alice, sacando de um embrulho que lhe entregou. Sorriu-lhe, e Joakim percebeu que esta estratégia era melhor.
– Gostava de saber onde estamos – disse Emma, tirando do bolso um pequeno mapa. Reuniram-se em redor dele, tentando distinguir onde estavam. Era bastante difícil: o terreno não tinha propriamente características marcantes, somente outeiros, floresta e um terreno alagadiço que cedia a cada passo. Mas, afinal, eles sabiam onde tinham iniciado o percurso e em que direcção se haviam deslocado.
– Temos vindo sempre a andar para norte, portanto devemos estar nesta área – sugeriu Emma. Joakim assentiu; ficara impressionado. Emma era esperta.
– Continuamos ou esperamos pelos outros? – perguntou Alice.
– Eu acho que devíamos continuar – respondeu Joakim rapidamente, acrescentando depois: – A menos que vocês queiram esperar.
Olhou para as raparigas: Emma com os seus brilhantes olhos azuis e o rosto macio, Alice com as feições um pouco mais angulosas. Eram ambas lindíssimas, pensou ele, desejando subitamente que elas lhe sugerissem ficar à espera dos outros. E os outros haveriam de demorar muito, muito tempo a chegar.
– Eu acho que podíamos continuar. Se estamos aqui, também já não estamos muito longe do sítio onde ficámos de nos encontrar – disse Emma, apontando para o mapa.
– Sim, mas tens razão, os outros estão atrás de nós, por isso talvez devêssemos esperar por eles – sugeriu Joakim.
– Julguei que querias ser o primeiro a chegar. Quero dizer, saíste de lá como se estivesses cheio de pressa – disse Alice. As raparigas riram-se, e Joakim percebeu que era bom rir-se juntamente com raparigas bonitas. Deu uma pequena cotovelada a Alice, por brincadeira.
– Tu também não te deixaste ficar para trás.
Começaram a correr uns atrás dos outros. Primeiro, ao acaso, por entre as lagoas, e depois, quando Emma tropeçou e caiu numa delas, o objectivo passou a ser molharem-se uns aos outros o máximo possível. Foi um excelente interlúdio naquela busca algo enfadonha, e era mesmo disso que Joakim estava a precisar. Correu atrás de Emma e agarrou-lhe o braço por breves instantes. Ela esbracejou e libertou-se e tentou fugir dele a correr, mas ficou com o pé esquerdo preso numa protuberante raiz de árvore e perdeu o equilíbrio. Por um instante, pareceu que ela conseguiria manter-se em pé, mas a área em torno da lagoa estava escorregadia por causa da lama e ela caiu lá dentro, ficando com água pela cintura.
Joakim riu-se, mas Emma estava a gritar. Ele calou-se e foi para junto dela. A rapariga gritou mais alto ainda. Que estranho, pensou Joakim. Não era, certamente, caso para tanto. Era só um bocadinho de água. Depois avistou o corpo pálido a uma curta distância de Emma. Era como se estivesse deitado abaixo da superfície, à espera da sua vítima. Foi o fim da sua brincadeira infantil. Não restou nada a não ser vertigem e um pânico cego. Emma vomitou; Alice começou a soluçar. Joakim ficou imobilizado no tempo, contemplando a imagem que ficaria consigo para o resto da vida.
Haraldsson estava na cama, a dormitar. Jenny encontrava-se deitada ao seu lado, com as solas dos pés apoiadas sobre o colchão, uma almofada por baixo do traseiro. Não quisera demorar as coisas.
– É melhor despacharmos isto, para depois podermos fazer outra vez antes de eu ter de voltar para o trabalho.
Despachar isto. Haverá coisa menos estimulante nalguma língua? Haraldsson duvidava. Mas pronto, tinham despachado aquilo e Haraldsson estava a dormitar. Alguém, algures, ouvia os Abba. «Trrim-trrim.»
– É o teu telefone. – Jenny deu-lhe uma cotovelada. Haraldsson acordou, muito ciente de que não deveria estar na cama com a sua mulher. Pegou nas calças que estavam no chão e tirou de lá o telemóvel. Era a Hanser. Obviamente. Respirou fundo e atendeu.
Quatro palavras desta vez.
– Onde raio estás tu?
Hanser desligou a chamada furiosamente. Torceu um tornozelo. Nem por sombras. O que lhe apetecia era ir até ao hospital, ou pelo menos enviar lá um carro, só para provar que aquele sacana lhe estava a mentir. Mas não tinha tempo. De repente, era responsável por uma investigação de homicídio. O facto de o responsável pela equipa que andava a trabalhar em Listakärr não ter estado no local não era lá grande ajuda, nem tão-pouco o facto de ele ter concordado em integrar escuteiros menores de idade na equipa de buscas. Menores para os quais ela teria agora de arranjar assistência, já que um deles caíra dentro de uma lagoa e fizera subir um cadáver à tona quando se levantara.
Hanser abanou a cabeça. Tudo o que se relacionava com este desaparecimento tinha corrido mal. Tudo. Não podia haver mais erros. Daqui em diante, tinham de começar a fazer bem as coisas. A ser profissionais. Olhou para o telefone, que continuava na sua mão. Acabara de ter uma ideia. Era um grande passo, sem dúvida. Demasiado cedo, pensaria muita gente. Aquilo poderia vir a minar a sua liderança. Mas há muito que ela tinha prometido a si mesma que jamais recearia as decisões desconfortáveis. Havia demasiado em jogo.
Tinha morrido um rapaz.
Assassinado.
Era tempo de trabalhar com os melhores.
– Tens aqui uma chamada para ti – disse Vanja, enfiando a cabeça pela porta de Torkel Höglund. O gabinete dele, como a maior parte das suas coisas, era despojado e simples. Nada de espalhafatoso, nada de dispendioso, quase nada de pessoal sequer. Com o seu mobiliário trazido de um qualquer armazém, a sala dava a impressão de estar ocupada por um mestre-escola de uma pequena vila sem grandes meios, e não por um dos principais chefes da polícia da Suécia. Alguns dos colegas dele achavam estranho que a pessoa responsável pela unidade nacional de homicídios, conhecida por Riksmord, não tivesse qualquer desejo de mostrar ao mundo o nível a que chegara. Outros interpretavam isso de forma diferente, concluindo que o sucesso não lhe subira à cabeça. A verdade era mais simples: Torkel nunca tivera tempo. O seu trabalho era exigente; andava sempre a viajar pelo país e não era o tipo de homem que pretendesse passar o seu tempo livre a embelezar um gabinete que raramente usava.
– É de Västerås – disse Vanja, sentando-se à frente dele. – O rapaz de dezasseis anos que foi assassinado.
Torkel esperou que Vanja se acomodasse. Era evidente que ele não queria atender esta chamada em privado. Fez um sinal de assentimento com a cabeça e pegou no telefone. Desde o seu segundo divórcio, parecia-lhe que os telefonemas só tinham por tema a morte súbita. Há mais de três anos que ninguém lhe perguntava se chegaria a casa a horas de jantar, ou qualquer coisa tão gloriosamente mundana.
Reconheceu o nome: Kerstin Hanser, que dirigia a equipa do quartel-general da polícia em Västerås. Tinha-a conhecido alguns anos antes, durante um curso de formação. Era boa pessoa e, sem dúvida, boa chefe, pensara ele na época, e lembrava-se de que tinha ficado contente ao saber do novo cargo que ela fora ocupar. Agora a sua voz parecia tensa.
– Preciso de ajuda. Decidi pedir a vinda da Riksmord, e ficaria muito grata se tu pudesses vir. É possível? – O tom da sua voz era quase implorante.
Por instantes, Torkel pensou esquivar-se à pergunta. Ele e a sua equipa tinham acabado de regressar de uma desagradável investigação em Linköping, mas compreendeu que se Kerstin Hanser lhe telefonara era porque precisava mesmo de ajuda.
– Nós tratámos mal deste caso desde o início. Existe um risco de que tudo venha a rebentar-nos na cara, por isso preciso mesmo da tua ajuda – disse ela, como se estivesse a aproveitar-se da hesitação dele.
– De que se trata?
– Um rapaz de dezasseis anos. Desaparecido durante uma semana. Encontrado morto. Assassinado. Brutalmente.
– Se me enviares todo o material por correio electrónico, eu dou uma vista de olhos nisso – respondeu Torkel, olhando para Vanja, que se deslocara até ao outro telefone e o levantara.
– Billy, podes vir ao gabinete do Torkel? Temos um serviço – disse ela antes de desligar.
Era como se já tivesse adivinhado qual seria a resposta final de Torkel. Aparentemente, adivinhava sempre. Torkel sentiu-se orgulhoso e, ao mesmo tempo, um pouco agastado. Vanja Lithner era a sua aliada mais íntima na equipa. Acabara de fazer trinta anos, mas, apesar da sua tenra idade, transformara-se numa boa investigadora de homicídios durante os dois anos em que trabalhara consigo – achava-a quase irritantemente boa. Se ao menos ele tivesse sido tão bom quando tinha a idade dela. Sorriu-lhe quando concluiu a conversa com Kerstin Hanser.
– Quem manda aqui ainda sou eu – disse-lhe.
– Eu sei, estou só a reunir a equipa para que possas ouvir o que nós pensamos. Depois a decisão cabe-te a ti, como sempre – disse ela com um brilho no olhar.
– Pois, como se eu tivesse escolha quando tu ferras o dente nalguma coisa – respondeu ele, pondo-se de pé. – O melhor é eu começar a fazer as malas. Vamos para Västerås.
Billy Rosén conduzia a carrinha na E18. Com demasiada velocidade, como era costume. Há muito que Torkel tinha deixado de comentar o assunto. Concentrara-se no material acerca do rapaz assassinado, Roger Eriksson. O relatório era bastante breve e esparso, e Thomas Haraldsson, o agente de investigação, não parecia ser o tipo de homem que se esforçasse muito. Provavelmente teriam de recomeçar tudo.
Torkel sabia que este era exactamente o tipo de caso de que os tablóides gostavam de se apoderar. Não ajudava que a causa preliminar da morte – estabelecida no local em que o corpo fora encontrado – indicasse uma agressão extremamente violenta, com inúmeras facadas no coração e nos pulmões. Porém, o que mais incomodava Torkel não era isso. Era a breve frase final do relatório, uma declaração feita no local pelo médico-legista.
Um exame preliminar indica que falta a maior parte do coração.
Torkel olhava pela janela, vendo as árvores desfilar. Alguém lhe retirara o coração. Para bem de todos, esperava que o rapaz não tivesse sido um fã de hard rock nem um jogador de Warcraft demasiado dedicado. Se assim fosse, a especulação na imprensa seria uma loucura completa.
Mais louca do que o habitual, corrigiu-se ele.
Vanja levantou os olhos do seu dossier. Provavelmente, acabara de deparar com a mesma frase.
– Talvez devêssemos levar também a Ursula – disse ela, lendo-lhe os pensamentos, como sempre. Torkel fez um breve sinal de concordância. Billy olhou por cima do ombro.
– Temos algum endereço?
Torkel passou-lho e Billy introduziu-o rapidamente no GPS. Na verdade, Torkel não gostava que Billy fizesse outras coisas enquanto conduzia, mas, pelo menos, enquanto teclava o destino deles abrandava. Já era alguma coisa.
– Mais uns trinta minutos. – Billy carregou no acelerador e a grande carrinha respondeu. – Talvez consigamos em vinte, dependendo do trânsito.
– Trinta está bem. Acho sempre muito desagradável quebrarmos a barreira do som.
Billy sabia exactamente o que Torkel pensava acerca da sua condução, mas limitou-se a sorrir para o chefe através do espelho retrovisor. Boa estrada, bom carro, bom condutor. Porque não tirar todo o proveito disso? Aumentou ainda mais a velocidade.
Torkel pegou no telemóvel e ligou a Ursula.
CAPÍTULO QUATRO
O COMBOIO saiu da Estação Central de Estocolmo às 16h07. Sebastian instalou-se em primeira classe. Recostou-se no seu lugar e fechou os olhos enquanto saíam da cidade.
Antigamente, nunca conseguia ficar acordado nos comboios. Mas agora, embora o seu corpo dissesse que lhe agradaria uma hora de sono, não conseguia encontrar a paz de espírito necessária.
Tirou do bolso a carta do agente funerário, abriu-a e leu-a. Já sabia o que lá dizia. Uma das antigas colegas da sua mãe telefonara-lhe e contara-lhe que ela falecera. Acontecera de modo sereno e digno, dissera-lhe. Sereno e digno – a vida da sua mãe resumida. Não havia nada de positivo nesta resposta, pelo menos para quem se chamava Sebastian Bergman; não, para ele a vida era uma batalha, desde o primeiro momento até ao último. Quem era sereno e digno não tinha lugar neste mundo. Mortos e aborrecidos – era o que ele normalmente lhes chamava. Pessoas que viviam com um pé na sepultura. Agora já não tinha tanta certeza. Como teria sido a sua vida se ele fosse sereno e digno?
Melhor, presumivelmente.
Menos dolorosa.
Pelo menos, era nisso que Stefan Hammarström, o terapeuta de Sebastian, tentava levá-lo a acreditar. Tinham discutido o assunto numa das recentes sessões, quando Sebastian mencionara que a sua mãe falecera.
– Até que ponto haverá perigo em ser como as outras pessoas? – perguntara Stefan quando Sebastian esclarecera o que pensava acerca do «sereno e digno».
– É extremamente perigoso – respondera Sebastian. – A bem dizer, letal. Evidentemente.
Tinham passado quase uma hora inteira a discutir a predisposição genética da Humanidade para o perigo. Era um tema que Sebastian adorava.
Percebera a importância que o perigo podia ter como força motivadora, em parte através da sua própria vida, em parte devido à sua pesquisa sobre os assassinos em série. Explicara ao seu terapeuta que existiam duas verdadeiras motivações para um assassino em série: a fantasia e o perigo. A fantasia é o motor a zunir: uma presença constante, mas meramente indolente.
Muitas pessoas têm fantasias. Obscuras, sexuais, brutais, que afirmam sempre o nosso próprio ego, que destroem sempre tudo ou todos os que se interponham no nosso caminho. Nas nossas fantasias somos poderosos. Muito poucas pessoas vivem verdadeiramente as suas fantasias. As que o fazem encontraram a chave.
O perigo.
O perigo de se ser apanhado.
O perigo de se fazer o inominável.
A adrenalina e as endorfinas libertadas naquele momento proporcionam o ímpeto adicional – o combustível, a explosão que faz o motor funcionar no auge da sua capacidade. Era por isso que quem procurava sensações fortes buscava novas excitações, era por isso que os assassinos em série se tornavam assassinos em série. É difícil regressar à indolência após se ter embalado o motor. Sentido a potência. Descoberto o que nos faz sentir vivos. O perigo.
– É mesmo do perigo que você está a falar? Não é da excitação? – Stefan inclinou-se para diante quando Sebastian se calou.
– Isto é alguma aula de língua?
– Não, você é que está a fazer a palestra. – Stefan encheu um copo com água de uma garrafa que estava sobre a mesa ao seu lado e passou-o a Sebastian. – Não costumava ser pago para fazer isso, em vez de pagar do seu bolso?
– Eu pago-lhe para ouvir. Tudo o que eu disser.
Stefan sorrira e abanara a cabeça.
– Não, sabe porque é que me está a pagar. Precisa de ajuda, e estas pequenas digressões significam que temos menos tempo para discutir aquilo de que na verdade deveríamos estar a falar.
Sebastian não retorquiu. Não alterou minimamente a sua expressão. Gostava de Stefan. Nada de tretas.
– Então regressemos à sua mãe. Quando é o funeral?
– Já teve lugar.
– Você esteve lá?
– Não.
– Porque não?
– Porque devia ser uma cerimónia para as pessoas que verdadeiramente gostavam dela.
Stefan ficara a olhá-lo em silêncio durante alguns segundos.
– Ora aí tem, está a ver, temos imensa coisa para conversar.
Do lado de fora da carruagem que balouçava, a paisagem era muito bonita. O comboio ia avançando através dos frescos prados verdes e das florestas a noroeste de Estocolmo. Por entre as árvores, conseguia-se obter um vislumbre do lago Mälaren em toda a sua cintilante glória. Para qualquer outro passageiro isso poderia ter suscitado meditações sobre as possibilidades da vida. Para Sebastian, a verdade era exactamente o oposto. Ele não via quaisquer possibilidades na beleza que o rodeava. Desviou o seu olhar para o tecto. Tinha andado durante toda a vida a fugir dos seus progenitores. Do pai, contra o qual batalhara desde a juventude, e da mãe, serena e digna, mas nunca do seu lado. Nunca do seu lado. Era assim que ele se sentia.
Durante um instante, os olhos de Sebastian encheram-se de lágrimas. Algo que desenvolvera nos últimos anos. As lágrimas. Que estranho, pensou ele, eu ter de descobrir nesta idade uma coisa tão simples como as lágrimas.
Emocionais.
Irracionais.
Tudo o que ele nunca quisera ser. Regressou à única coisa que sabia ser capaz de lhe atordoar as emoções: as mulheres. Mais uma promessa que Sebastian não cumprira. Mantivera-se na linha e portara-se bem desde o momento em que conhecera Lily e jurara ser-lhe fiel. Mas, com o sonho excruciante que o atormentava de noite e com os dias vazios e insignificantes, não conseguia ver outra saída. As novas conquistas e as poucas e breves horas passadas com mulheres diferentes preenchiam-lhe a vida, e os seus pensamentos conseguiam superar o sentimento de impotência – pelo menos durante algum tempo. Enquanto homem, amante, predador, constantemente à caça de novas mulheres, conseguia funcionar. Era um dote que mantivera, apesar de tudo. Isso agradava-lhe e, ao mesmo tempo, assustava-o. O facto de ele ser tudo o que era. Um homem solitário que ocupava o seu tempo com novas e velhas, alunas, colegas, casadas ou solteiras. Não discriminava ninguém. Para ele, só existia uma regra: ela seria sua. Ela provaria que ele não era inútil, que estava vivo. Sabia exactamente como o seu comportamento era destrutivo, mas acolhia-o e rejeitava a noção de que era provável que um dia tivesse de encontrar uma saída.
Começou a olhar para o interior da carruagem. Só metade dos lugares estavam ocupados. Uma morena sentada a alguma distância despertou-lhe a atenção. Cerca de quarenta anos, blusa azul-acinzentada, brincos de ouro caros. Nada má, pensou. Estava a ler um livro. Perfeito – pela sua experiência, as mulheres de quarenta anos a lerem um livro só atingiam o grau três na escala de dificuldade. Em certa medida, isso dependia do que estivessem a ler, mas mesmo assim... Levantou-se e caminhou até ao lugar dela.
– Vou ao vagão-restaurante; quer que lhe traga alguma coisa?
A mulher levantou os olhos do livro com uma expressão interrogativa. Sem perceber ao certo se ele estava a falar consigo. Evidentemente que estava, como ela percebeu quando o fitou.
– Não, obrigada. – Regressou ao seu livro.
– Tem a certeza? Nem sequer um café?
– Não, obrigada. – Ela nem olhou para cima.
– Chá? Chocolate quente? – Desta vez ela tirou os olhos do livro, erguendo-os para Sebastian com uma certa dose de irritação. Sebastian ofereceu-lhe o seu sorriso, que estava praticamente patenteado.
– Hoje em dia até servem vinho, mas porventura será demasiado cedo?
A mulher não lhe respondeu.
– Talvez esteja a pensar porque lhe pergunto isto – prosseguiu Sebastian. – Não tenho outra opção. Sinto que é meu dever salvá-la desse livro. Já o li. Um dia há-de agradecer-me. – A mulher olhou para cima e fitou-o nos olhos. Sebastian sorriu. A mulher sorriu também.
– Um café calhava bem. Sem açúcar.
– Trago já. – Mais um sorriso rápido, que se alargou quando Sebastian avançou ao longo da carruagem. Afinal, talvez a viagem até Västerås não fosse tão má.
A esquadra da polícia de Västerås fremia de actividade. Kerstin Hanser olhou para o relógio com uma expressão ligeiramente enervada. Tinha de lá ir. Apesar de não querer. Facilmente poderia inventar uma infinidade de coisas que preferiria fazer em vez de se ir encontrar com Lena Eriksson na morgue. Mas tinha de ser feito. Embora estivessem cem por cento certos de que o rapaz que tinham encontrado era Roger Eriksson, a mãe queria vê-lo. Hanser aconselhara-a a não o fazer, mas Lena Eriksson insistira. Queria ver o seu filho.
Não acontecera antes, ao princípio do dia, porque Lena o adiara por duas vezes. Hanser não sabia porquê. Nem se importava. Teria preferido que não acontecesse. Pelo menos, com ela a assistir. Esta era a parte do trabalho que mais detestava e em que, além disso, não era muito boa. Tentava evitar a situação tanto quanto possível, mas era como se as pessoas esperassem que ela se aguentasse melhor por ser mulher. Imaginavam que lhe seria mais fácil encontrar as palavras adequadas. Que os parentes, os familiares dos defuntos, se sentiriam mais confortáveis na sua presença, devido simplesmente ao seu género. Hanser pensava que isso era um disparate. Nunca sabia o que haveria de dizer. Conseguia exprimir os seus sentidos pêsames, talvez pôr um braço ao redor deles, oferecer-lhes um ombro para chorarem, dar-lhes o número de alguém com quem poderiam falar, garantir-lhes uma e outra vez que a polícia faria tudo o que pudesse para apanhar a pessoa que lhes causara tanto sofrimento. Decerto conseguia fazer tudo isso, mas tratava-se sobretudo de ficar ali especada. Uma coisa que qualquer um poderia fazer.
Hanser nem sequer se lembrava de quem lá tinha ido em representação da polícia quando ela e o marido tinham identificado Niklas. Tinha sido um homem. Um homem que se limitara a ficar ali especado.
Na verdade, ela poderia mandar outra pessoa acompanhar Lena. Era o que provavelmente teria feito se a investigação tivesse corrido de maneira ligeiramente diferente. Mas, assim, não podia correr riscos. A imprensa estava por toda a parte. Aparentemente, já sabiam que faltava o coração. Era só uma questão de tempo até descobrirem que o rapaz já estava desaparecido há quase três dias quando a polícia começara a procurá-lo. Além disso, havia os escuteiros traumatizados na floresta e o «tornozelo muito magoado» do Haraldsson. Doravante, porém, não haveria absolutamente nada que se pudesse criticar nesta investigação. Ela garantiria que assim fosse. Trabalharia com os melhores e rapidamente atiraria para trás das costas este terrível caso. O plano era esse.
O telefone tocou.
Era da recepção.
A equipa da Riksmord perguntava por ela. Hanser olhou para o relógio de parede. Tinham chegado mais cedo. Estava tudo a acontecer ao mesmo tempo. Devia ir recebê-los, isso nem se discutia. Lena Eriksson teria de esperar alguns minutos. Não se podia evitar. Hanser compôs a sua blusa, endireitou-se e encaminhou-se para a escadaria que descia até à entrada principal. Parou na porta trancada que separava a recepção das áreas interiores da esquadra. Através dos minúsculos quadrados de vidro avistou Torkel Höglund passeando-se calmamente por ali, com as mãos atrás das costas. Um homem e uma mulher estavam sentados nos sofás verdes, junto à janela que dava para a rua. Ambos eram mais novos do que Hanser. Colegas de Torkel, pensou enquanto premia o teclado numérico, e empurrou a porta já aberta. Torkel voltou-se quando ouviu o estalido da fechadura e sorriu ao vê-la.
De repente Hanser sentiu-se um pouco insegura. Qual era a coisa mais adequada a fazer? Um abraço ou um caloroso aperto de mão? Tinham frequentado alguns cursos juntos, haviam almoçado de vez em quando, encontravam-se nos corredores.
Hanser não teve de pensar muito. Torkel caminhou até ela e deu-lhe um abraço amigável. De seguida, virou-se para os outros, que se tinham levantado do sofá, e apresentou-os. Kerstin Hanser deu-lhes as boas-vindas.
– Tenho de vos pedir desculpa, mas estou com um bocadinho de pressa. Preciso de ir à morgue.
– O rapaz?
– Sim.
Hanser virou-se para a recepcionista.
– O Haraldsson?
– Deve estar a chegar. Telefonei-lhe logo depois de ter falado consigo.
Hanser aquiesceu. Mais uma olhadela ao relógio. Não se podia atrasar de mais. Olhou rapidamente para Vanja e Billy, mas voltou-se para Torkel quando falou.
– O Haraldsson tem estado a conduzir a investigação até agora.
– Sim, eu vi o nome dele no material que nos enviaram.
Hanser ficou ligeiramente surpreendida. Haveria um tom de condescendência na voz de Torkel? Se assim fosse, a expressão dele não denotava nada.
Onde estaria o Haraldsson desta vez? Hanser estava prestes a ligar-lhe do seu telemóvel quando o fecho da porta por onde ela acabara de passar soltou um estalido e Haraldsson entrou na recepção, a coxear muito. Demorou deliberadamente um certo tempo a aproximar-se dos recém-chegados e, a seguir, trocaram apertos de mão.
– O que lhe aconteceu? – Torkel indicou com um gesto de cabeça o pé direito de Haraldsson.
– Torci-o enquanto comandava a equipa de buscas que procurava o rapaz. Foi por isso que não estava lá quando o encontraram. – A última observação foi dirigida a Hanser, com um breve olhar.
Sabia que ela não acreditava nele. Por isso, era importante que se lembrasse de continuar a coxear durante os próximos dias. Teria ela contactado o hospital? Se o tivesse feito, será que lhe diriam se ele tinha lá estado? Isso devia estar sujeito a um qualquer acordo de confidencialidade com o doente. Os empregadores não estavam autorizados a verificar as consultas dos seus empregados. Ou estavam? O melhor era confirmar isso junto do sindicato. Haraldsson estava tão perdido nos seus pensamentos que, por um instante, deixara de ouvir a sua chefe. Ganhou então consciência de que ela estava a olhar para si, com uma expressão séria.
– O Torkel e a equipa dele vão passar a dirigir a investigação.
– Em vez de si? – Haraldsson mostrou-se genuinamente surpreendido. Não esperara isto. As coisas estavam a ganhar melhor aspecto. Esta era uma equipa de detectives a sério, tal como ele. Obviamente, apreciariam mais o seu trabalho do que a jurista de secretária que o chefiava.
– Não, a derradeira responsabilidade continua a ser minha, mas a Riksmord irá liderar o lado operacional da investigação a partir de agora.
– Vão trabalhar comigo?
Hanser suspirou e proferiu uma oração silenciosa para que Västerås não fosse subitamente varrida por uma onda de crimes. Estariam completamente desvalidos.
Vanja lançou a Billy um olhar divertido. Torkel ouviu a conversa, com um rosto inexpressivo. Humilhar a força local era a pior maneira de encetar uma colaboração. Torkel nunca fora uma pessoa muito dada a marcar o seu território. Havia melhores maneiras de levar toda a gente a dar o seu melhor.
– Não, eles ficam responsáveis pela investigação. Tu vais ser libertado dessa função.
– Mas claro que preferiríamos trabalhar em colaboração consigo – interrompeu Torkel, olhando seriamente para Haraldsson. – Tem conhecimentos únicos acerca do caso, que se poderão revelar fundamentais para o nosso sucesso.
Vanja olhou para Torkel com admiração. Pessoalmente, ela já tinha remetido Haraldsson para o seu ficheiro CI: um Caso Irremediável que seria autorizado a dar a sua opinião e seguidamente seria relegado para o mais longe possível da investigação.
– Portanto, vou trabalhar convosco?
– Vai trabalhar em colaboração connosco.
– O que significa isso?
– Logo se verá. Para começar, pode contar-nos tudo o que aconteceu até agora, e prosseguiremos a partir daí. – Torkel pousou uma mão no ombro de Haraldsson e conduziu-o suavemente em direcção à porta.
– Até logo – disse Torkel a Hanser por cima do ombro. Billy foi aos sofás recolher as coisas deles; Vanja permaneceu onde estava. Quase poderia jurar que o anterior líder da investigação dera aqueles primeiros passos com Torkel sem coxear.
Lena Eriksson enfiou na boca mais um rebuçado Läkerol enquanto continuava sentada na pequena sala de espera. Roubara a caixa no emprego. No dia anterior. Estavam na prateleira mesmo ao lado da caixa registadora. Sabor a eucalipto. Não eram os seus preferidos, mas pegara na embalagem mais próxima e enfiara-a no bolso quando estavam a fechar a loja.
No dia anterior.
Quando estava convencida de que o seu filho continuava vivo. Quando acreditara sem quaisquer reservas no polícia com o qual falara, aquele que lhe dissera que tudo indicava que o Roger partira por sua livre vontade. Talvez para Estocolmo. Ou para outro sítio qualquer. Uma pequena aventura adolescente.
No dia anterior.
Não somente um outro dia, mas todo um outro mundo. Quando a esperança ainda estava viva.
Agora o seu filho partira para sempre.
Assassinado.
Encontrado numa lagoa.
Sem coração.
Depois de lhe terem dado a notícia, Lena passara o dia inteiro sem sair do apartamento. Devia ter-se encontrado mais cedo com a agente policial, mas telefonara para adiar. Por duas vezes. Não conseguia levantar-se. Por momentos, receou nunca mais voltar a encontrar forças para se pôr em pé. Por isso, ficou ali sentada. Na sua poltrona. Naquela sala onde haviam passado cada vez menos tempo juntos, ela e o filho. Tentou lembrar-se da última vez em que tinham estado ali ambos sentados.
A ver um filme.
A comer.
A conversar.
A viver.
Não conseguiu lembrar-se. Devia ter sido pouco depois de Roger ter começado a ir para aquela escola horrenda. Ao fim de poucas semanas com aqueles miúdos todos emproados, ele modificara-se. Ao longo do último ano tinham levado vidas mais ou menos separadas.
Os meios de comunicação continuavam a telefonar-lhe, mas ela não queria falar com ninguém. Por enquanto, não. Acabara por desligar a ficha do telefone e o seu telemóvel. Então eles começaram a aparecer-lhe à porta, gritando-lhe através da fresta da caixa do correio, deixando-lhe mensagens em cima do tapete do vestíbulo. Mas ela nunca lhes abriu a porta. Não se levantou da sua poltrona.
Sentia-se mal. O café que tinha bebido quando chegara ficara a subir e a descer na sua garganta como se fosse um elevador. Já comera alguma coisa desde o dia anterior? Provavelmente, não. Mas tinha bebido bastante. Álcool. Por norma, não fazia isso. Já não o fazia há meses. Era extremamente moderada, coisa em que ninguém que a conhecesse acreditaria. O seu cabelo louro, pintado em casa, com as raízes escuras. O seu peso. O verniz das unhas lascado nas pontas dos seus dedos rechonchudos, ornados de anéis. Os piercings. A sua predilecção por calças de treino aveludadas e camisolões muito largos. A maioria das pessoas depressa formava uma opinião a respeito de Lena quando a conhecia. Para sermos justos, a maior parte dos preconceitos delas vinha a confirmar-se. Com uma desesperada falta de dinheiro. Saíra da escola aos quinze anos. Engravidara quando tinha dezassete.
Mãe solteira.
Emprego de baixo salário.
Mas abusar do álcool ou de drogas? Nunca.
Hoje, porém, ela tinha estado a beber. Só para silenciar aquela vozinha lá no fundo da mente, que fizera sentir a sua presença logo que lhe tinham dado a notícia acerca de Roger e cuja força fora crescendo à medida que o dia avançava. Aquela vozinha que se recusava a desaparecer.
Lena começava a ficar com dor de cabeça. Precisava de algum ar fresco. E de um cigarro. Levantou-se, pegou na sua bolsa e encaminhou-se para a saída. Os tacões gastos ecoaram desoladoramente no chão de pedra. Estava quase a sair quando viu uma mulher de cerca de quarenta e cinco anos, vestida com um fato, entrar à pressa pelas portas giratórias. A mulher caminhou muito decididamente em direcção a ela.
– Lena Eriksson? Kerstin Hanser, polícia de Västerås. Queira desculpar o meu atraso.
Desceram no elevador em silêncio. Hanser abriu a porta quando chegaram à cave e permitiu que Lena saísse antes de si. Avançaram pelo corredor até encontrarem um homem calvo, com óculos, vestido com uma bata branca. Ele conduziu-as a uma sala mais pequena, onde se encontrava uma única maca metálica, iluminada por uma lâmpada fluorescente. Sob o lençol branco, eram visíveis os contornos de um corpo.
Hanser e Lena caminharam até à maca e o homem calvo contornou-a silenciosamente até ao outro lado. Fitou os olhos de Hanser e esta fez-lhe um sinal. Ele afastou o lençol com cuidado, expondo o rosto e o pescoço de Roger Eriksson até às clavículas. Lena baixou firmemente o seu olhar para a maca, enquanto Hanser dava um respeitoso passo atrás. Hanser não ouviu qualquer súbita contenção da respiração nem nenhum choro abafado por parte da mulher ao seu lado. Nem um soluço; nem uma mão levada à boca num acto reflexo. Nada.
A atitude da mulher impressionara Hanser logo que se tinham encontrado na sala de espera. Os olhos de Lena não estavam avermelhados e inchados devido ao choro. Não parecia abalada pelo desgosto nem estar a conter-se com dificuldade. Parecia quase calma. Mas Hanser detectara no elevador um cheiro a álcool, dominado por outro, a eucalipto, e supusera ser esse o motivo da falta de emoção. Isso e o choque.
Lena permaneceu imóvel, a olhar para o filho. Do que estivera ela à espera? De nada, a bem dizer. Não se atrevera a pensar que aspecto teria ele. Não conseguira imaginar como se sentiria, ali em pé. Que impacto teria tido todo aquele tempo dentro de água? Estava ligeiramente inchado, com certeza. Como se tivesse sofrido algum tipo de reacção alérgica, mas, à parte isso, achou que ele tinha o aspecto de sempre. O cabelo escuro; a pele pálida; as sobrancelhas pretas e proeminentes; uns vestígios de buço no lábio superior. Olhos fechados. Inerte. Evidentemente.
– Julguei que parecesse que ele estava a dormir.
Hanser manteve-se em silêncio. Lena virou a cabeça para ela, como se procurasse confirmação de que não estava enganada.
– Ele não parece estar a dormir.
– Não.
– Eu já o vi dormir muitas vezes. Sobretudo quando era pequeno. Quero dizer, ele não se está a mexer. Tem os olhos fechados, mas...
Lena não concluiu a frase. Estendeu a mão e tocou em Roger. Frio. Morto. Deixou a mão pousada no rosto dele.
– Eu perdi o meu filho quando ele tinha catorze anos.
Lena manteve a mão sobre o rosto do rapaz, mas virou ligeiramente a cabeça na direcção de Hanser.
– Oh?
– Pois foi...
Silêncio novamente. Porque dissera ela aquilo? Hanser nunca falara do assunto a ninguém em situações semelhantes. Mas havia qualquer coisa naquela mulher que estava junto à maca. Hanser tinha a sensação de que ela não se permitiria entristecer. Não conseguia entristecer. Talvez nem sequer o quisesse. Por isso, a sua atitude visava ser uma espécie de consolação. Uma mão estendida para mostrar que Hanser compreendia o que Lena devia estar a atravessar.
– Também foi assassinado?
– Não.
De súbito, Hanser sentiu-se estúpida. Como se o seu comentário pretendesse ser uma espécie de comparação em matéria de sofrimento. Olhe, eu também perdi uma pessoa, portanto aí tem. Mas Lena nem pareceu voltar a pensar no assunto. Virou-se para a frente e olhou uma vez mais para o filho.
Todos aqueles anos em que ele fora a única coisa de que ela se podia orgulhar.
Ou todos aqueles anos em que ele fora a única coisa que ela tinha.
Terminados.
A culpa disto é tua?, começou a perguntar a vozinha dentro da sua cabeça. Lena retirou a mão e deu um passo atrás. A dor de cabeça era incessante.
– Acho que agora quero ir-me embora.
Hanser aquiesceu. O homem calvo puxou o lençol para cima, enquanto as duas mulheres se aproximavam da porta. Lena tirou da mala um maço de cigarros.
– Há alguém a quem possa telefonar? Talvez não devesse ficar sozinha.
– Mas eu estou. Agora estou sozinha.
Lena saiu da sala.
Hanser deixou-se ficar onde estava.
Tal como já sabia que acabaria por fazer.
A sala de conferências da esquadra de Västerås era a mais moderna do edifício. O mobiliário de madeira de bétula clara tinha apenas algumas semanas. Oito cadeiras ao redor de uma mesa oval. O novo papel que revestia três das paredes tinha um discreto e relaxante tom de verde, e a quarta parede servia ao mesmo tempo como quadro branco e ecrã. No canto ao pé da porta, a mais recente tecnologia estava ligada a um projector no tecto. No meio da sala de conferências, uma consola controlava tudo o que havia na sala. Assim que pisara aquela alcatifa acinzentada, Torkel decidira que seria aquela a base de operações da equipa.
Recolheu os papéis que tinha à sua frente sobre a superfície envernizada da mesa e esvaziou a sua garrafa de água. Até agora, a reunião para rever os progressos da investigação decorrera mais ou menos como ele esperara. Na verdade, durante o relato de Haraldsson só houvera duas ocasiões em que surgira algo de surpreendente.
A primeira fora quando eles estavam a recapitular a investigação cronologicamente. Vanja levantara os olhos dos papéis e perguntara: – O que fizeram vocês no domingo?
– A investigação foi encetada com diligência, mas não levou a lado nenhum.
A resposta chegara com uma certa rapidez. Uma rapidez ensaiada. Uma rapidez pouco convincente. Torkel reparara nisso, e sabia que Vanja sentira o mesmo. Ela era o que mais se aproximava de um detector de mentiras humano que Torkel alguma vez encontrara. Olhara-a com uma certa dose de antecipação, enquanto ela fitava Haraldsson durante bastante tempo, e a seguir tornara a olhar para os seus papéis. Haraldsson soltara um longo suspiro. Estavam do mesmo lado, claro, mas não havia nenhuma necessidade de os seus colegas saberem que poderia ter havido algum erro fortuito nas fases iniciais. Agora tinham de se concentrar no futuro. Ficou, por conseguinte, ligeiramente irritado – e um pouco preocupado – quando Vanja tornou a abanar a sua caneta. Billy sorriu; também estava ciente de que Vanja detectara na voz de Haraldsson algo que não parecia verdadeiro. Ela não tinha qualquer intenção de abandonar o assunto. Nunca o fazia. Billy recostou-se na sua cadeira confortável e cruzou os braços. Isto poderia ser divertido.
– Quando diz que «foi encetada» – prosseguiu Vanja, num tom um pouco mais acutilante –, o que é que fizeram na verdade? Não consigo encontrar entrevistas, nem com a mãe nem com mais ninguém, não há relatórios de inquéritos porta a porta, nada que estabeleça uma cronologia a partir de sexta-feira. – Levantou os olhos e fixou-os em Haraldsson. – Portanto, o que é que fizeram ao certo?
– Eu não estive de serviço nesse fim-de-semana. O caso só me veio parar às mãos na segunda-feira.
– Então o que aconteceu no domingo?
Haraldsson olhou para os dois homens que estavam na sala, como se procurasse apoio para o seu ponto de vista de que olhar para trás não era uma grande ajuda. Não lhe foi prestado nenhum apoio. Ambos o fitaram com expectativa.
– Pelo que sei, uns agentes foram falar com a mãe.
– E o que fizeram?
– Anotaram informações sobre o desaparecimento do rapaz.
– Que informações? Onde é que estão?
Vanja não tirava os olhos dele. Haraldsson percebeu que não iriam a lado nenhum antes de terem descoberto tudo o que acontecera. Por isso, contou-lhes. A verdade. A seguir, fez-se na sala um silêncio diferente. Um silêncio que Haraldsson, pelo menos, interpretou como sendo daquele tipo que talvez surgisse quando um grupo de pessoas se atarefa a digerir aquilo que poderia muito bem ser o mais belo exemplo de incompetência que jamais conheceram. Finalmente, Billy falou.
– Portanto, a única coisa que aconteceu no domingo foi que alguém escreveu mais um relatório acerca do mesmo desaparecimento?
– Bom, tecnicamente, sim.
– Está bem, portanto o rapaz desapareceu na sexta-feira às dez da noite. Quando é que vocês começaram mesmo a procurá-lo?
– Na segunda-feira. Depois de almoço. Quando me foi passado o relatório. Bom, na verdade, não foi nessa altura que começámos a procurá-lo, mas falámos com a namorada dele, com a escola, com testemunhas...
A sala voltou a cair no silêncio. A experiência dizia-lhes que havia todas as probabilidades de o rapaz já estar morto nessa altura, mas se assim não fosse... se ele tivesse estado cativo algures... Três dias! Valha-me Deus! Torkel inclinou-se para diante, olhando para Haraldsson com sincera curiosidade.
– Então porque é que você não nos disse isso quando lhe perguntámos o que aconteceu no domingo?
– Nunca é agradável admitir que se cometeram erros.
– Mas o erro não foi seu. Você só pegou no caso na segunda-feira. O único erro que cometeu foi não nos dizer. Somos uma equipa. No mínimo, temos de ser honestos uns com os outros.
Haraldsson aquiesceu. De repente, sentiu-se como se tivesse sete anos de idade e houvesse sido enviado ao reitor por se portar mal no recreio.
Durante o resto da reunião, contou-lhes tudo (excepto a rapidinha à hora de almoço com Jenny e a falsa visita às urgências), o que significou que só terminaram depois das 21h00.
Torkel agradeceu-lhe. Billy estava a espreguiçar-se e a bocejar e Vanja já tinha começado a arrumar a documentação quando chegou a segunda surpresa da noite.
– Só mais uma coisa. – Haraldsson fez uma pausa curta mas eficaz. – Não encontrámos o blusão nem o relógio do rapaz. – Torkel, Vanja e Billy endireitaram-se ao mesmo tempo; isso era interessante. Haraldsson viu Vanja a procurar o seu dossier dentro da mala.
– Não incluí isso no relatório; nunca se sabe quem os lê nem onde é que esse tipo de informação acabará por ir parar.
Vanja fez um gesto apreciativo com a cabeça. Inteligente – era precisamente esse tipo de pormenores que eles não queriam divulgar à imprensa. Durante um interrogatório, valeria o seu peso em ouro. Afinal, talvez Haraldsson não fosse completamente incompetente, mesmo que a maioria dos indicadores apontassem nesse sentido.
– Portanto, ele foi roubado?
– Julgo que não. Ainda tinha a carteira, com quase trezentas coroas. E o telemóvel no bolso das calças.
Todos os elementos da equipa consideraram o facto de alguém – presumivelmente o assassino – ter retirado à vítima objectos específicos. Isso significava alguma coisa. Isso e o coração que faltava.
– O blusão era da Diesel – prosseguiu Haraldsson. – Verde. Tenho fotos na minha secretária. O relógio era um... – Haraldsson consultou os seus apontamentos – um Tonino Lamborghini Sport. Também tenho fotografias.
Após a reunião, Torkel ficara sentado a sós na sala sem janelas, tentando pensar numa razão para não ir para o hotel. Deveria começar a desenhar a linha cronológica no quadro branco? Afixar o mapa? As fotografias? Recapitular uma vez mais aquilo que Haraldsson lhes contara? Mas Billy faria tudo isso de forma mais rápida e eficiente na manhã seguinte, provavelmente antes que mais alguém chegasse à esquadra.
Podia sair e ir comer qualquer coisa. Mas não tinha muita fome – não a suficiente para se ir sentar sozinho num restaurante. Claro que poderia pedir a Vanja que lhe fizesse companhia, mas ela iria passar a noite a ler material sobre o caso no seu quarto de hotel. Sabia que ela o faria. Extremamente ambiciosa e conscienciosa, a Vanja. Provavelmente, não diria que não se ele a convidasse a fazer-lhe companhia ao jantar, mas não era isso que ela queria e sentir-se-ia ligeiramente enervada ao longo de toda a noite. Torkel rejeitou a ideia.
Billy? Torkel achava que Billy tinha muitas qualidades excelentes, e os seus conhecimentos de tecnologia e de computadores tornavam-no um membro inestimável da equipa, mas Torkel não conseguia lembrar-se de alguma vez terem jantado juntos, só os dois. Com Billy a conversa não fluía com tanta facilidade. Billy adorava passar uma noite num hotel. Não havia um único programa televisivo em qualquer canal entre as dez da noite e as duas da manhã que Billy não tivesse visto, e gostava de falar acerca deles. Televisão, filmes, música, jogos, computadores, novos modelos de telefones e revistas estrangeiras, que ele lia na Internet. Quando estava com Billy, Torkel sentia-se um dinossauro.
Suspirou. Faria uma caminhada e a seguir comeria uma sanduíche e beberia uma cerveja no seu quarto, tendo o televisor por companhia. Consolou-se com a ideia de que Ursula chegaria no dia seguinte. Então teria companhia para o jantar.
Torkel apagou as luzes e saiu da sala de conferências. O último a sair, como de costume, pensou enquanto atravessava o escritório vazio. Não admirava que a sua mulher se tivesse fartado.
CAPÍTULO CINCO
JÁ ESCURECERA quando Sebastian pagou ao taxista e saiu do carro. O condutor também saiu, abriu a bagageira, tirou de lá a mala de Sebastian e desejou-lhe uma boa noite. Uma boa noite em casa dos seus pais? Bom, há sempre uma primeira vez, pensou Sebastian. E o facto de ambos os pais estarem mortos decerto aumentava significativamente as possibilidades.
Sebastian atravessou a estrada; o táxi, que fizera meia-volta junto à entrada dos vizinhos, passou por trás dele. Sebastian ficou parado junto à vedação baixa de madeira branca, que precisava de pintura, e reparou que a caixa de correio estava a transbordar. Quando alguém morria, não haveria uma espécie de notificação central que fizesse cessar toda a correspondência? Evidentemente que não.
Quando chegara a Västerås, algumas horas antes, Sebastian tinha ido ao escritório do agente funerário buscar a chave da casa. Aparentemente, uma das mais antigas amigas da sua mãe organizara o funeral quando ele se recusara a ter qualquer relação com esse assunto. Berit Holmberg. Sebastian não conseguia recordar-se de alguma vez ter ouvido esse nome. O agente funerário dispusera-se a mostrar-lhe uma espécie de álbum da cerimónia, que, alegadamente, tinha sido muito bonita e na qual muitas pessoas haviam participado. Sebastian recusara.
Depois, tinha ido a um restaurante. Demorara-se bastante tempo com uma boa refeição. Deixara-se ficar a tomar café, lendo um livro. Tivera na mão o cartão que a mulher do comboio lhe tinha dado, mas decidira esperar. Telefonar-lhe-ia no dia seguinte, ou no outro. Interessado, mas não desesperado – essa era sempre a melhor aproximação. Tinha ido dar um passeio. Pensara ir ver um filme, mas decidira que não. Não havia nada que lhe despertasse a atenção. Por fim, não conseguira adiar mais o verdadeiro objectivo da sua visita e chamara um táxi.
Agora estava ali, no meio da rua, a olhar para a casa de onde saíra um dia após o seu décimo nono aniversário. Canteiros de plantas bem tratadas orlavam ambos os lados do carreiro do jardim. De momento, consistiam sobretudo de coníferas baixas e devidamente aparadas, mas não tardaria que as perenes ficassem em flor. A sua mãe adorava o jardim e tratara dele com ternura. Nas traseiras havia árvores de fruto e um talhão de legumes. O carreiro empedrado conduzia a uma moradia de dois pisos. Sebastian tinha dez anos quando se mudaram para ali; a casa acabara de ser construída. Agora, mesmo sob a luz ténue dos candeeiros da rua, Sebastian percebia que eram necessárias algumas reparações. Tinham-se soltado placas de estuque da fachada, a tinta dos caixilhos das janelas estava lascada, e o telhado enegrecido em dois sítios. Provavelmente, faltavam telhas. Sebastian superou a sua pura relutância física em entrar e calcorreou a curta distância que o separava da porta da frente.
Abriu-a com a chave e entrou no vestíbulo. Cheirava a mofo. Estava abafado. Deixou cair a mala e permeneceu sob a arcada que dava acesso ao resto da casa. Passando sob ela havia uma mesa de jantar e cadeiras, e mais para a direita estendia-se a sala de estar. Sebastian notou que tinham deitado uma parede abaixo e que o piso térreo era agora aquilo a que se chamava um open space. Avançou um pouco mais para o interior. Reconheceu apenas uma parte do mobiliário. Uma escrivaninha que pertencera ao seu avô era-lhe familiar, bem como alguns dos quadros nas paredes, mas o papel que as forrava era novo para si. Tal como o soalho. Há quanto tempo ele não ia ali? Sebastian recusava-se a pensar nesta casa como sendo o seu «lar». Tinha saído dela aos dezanove anos, mas visitara-a desde então. Alimentara uma vã esperança de que ele e os pais se pudessem reconciliar quando todos tivessem crescido. Mas não. Lembrava-se de que os visitara na semana a seguir a ter feito vinte e cinco anos. Tinha sido essa a última vez? Há quase trinta anos. Não era surpreendente que quase não reconhecesse nada.
Numa das paredes da sala havia uma porta fechada. Quando Sebastian vivia com os pais, aquele era o quarto de hóspedes. Raramente utilizado. Os seus pais tinham um vasto círculo de conhecimentos, mas eram quase todos da própria cidade. Abriu a porta. Uma das paredes estava coberta de estantes de livros, e onde costumava estar uma cama havia agora uma secretária. Com uma máquina de escrever e uma calculadora antiga, que tinha um rolo de papel. Sebastian fechou a porta. Era provável que a casa inteira estivesse cheia de merdas daquelas. Que ia ele fazer com tudo aquilo?
Foi até à cozinha. Novos armários, nova mesa, o mesmo chão de linóleo ao jeito de um vendedor de carros usados. Abriu a porta do frigorífico. Cheio. Tudo podre. Tirou da porta um pacote de leite. Já aberto. Consumir antes de 8 de Março. O Dia Internacional da Mulher. Embora soubesse o que esperar, Sebastian aproximou o nariz da abertura. Com uma careta, voltou a colocar o pacote no sítio onde estava e tirou uma lata de cerveja que estava ao lado de um saco que continha qualquer coisa que ele supôs já ter sido queijo, mas que se assemelhava agora a um projecto de investigação bem-sucedido num laboratório especializado em bolor.
Abriu a cerveja e regressou à sala de estar. Pelo caminho, acendeu a luz de cima. As lâmpadas estavam dispostas no interior de uma sanca que contornava toda a sala e que proporcionavam uma iluminação regular, agradável. Um pormenor de bom gosto que quase parecia moderno. Sebastian deu por si a sentir-se relutantemente impressionado.
Sentou-se numa das poltronas e pousou os pés em cima da mesa de café baixa sem descalçar os sapatos. Em seguida, sorveu um trago de cerveja e recostou a cabeça para trás. Absorveu o silêncio. O silêncio total. Nem sequer se conseguia ouvir o trânsito. A casa situava-se quase ao fundo de um beco sem saída, e a estrada principal mais próxima ficava a algumas centenas de metros. Sebastian avistou o piano. Sorveu mais um trago de cerveja, pousou a lata em cima da mesa, pôs-se em pé e aproximou-se do instrumento negro e reluzente.
Distraidamente, premiu uma das teclas brancas. Um Lá, baço e ligeiramente desafinado, interrompeu o silêncio.
Sebastian começara a tocar piano quando tinha seis anos. Deixara de tocar quando tinha nove. Nessa altura, a professora particular chamara o seu pai de parte durante uma aula em que Sebastian se recusara completamente a tocar nas teclas e dissera ao senhor Bergman que era um desperdício do tempo dela e do dinheiro dele ir ali uma vez por semana para tentar ensinar um aluno tão pouco motivado e, tinha a certeza absoluta, sem qualquer tipo de aptidão musical. O que era incorrecto. Sebastian não carecia de aptidão musical. Nem se recusara a tocar por um gesto de rebelião contra o seu pai; isso surgira muitos anos depois. Apenas achava que aquilo era indescritivelmente aborrecido. Inútil. Não se queria envolver numa coisa que achava tão desinteressante. Não naquela altura.
Nem desde então.
Nem agora. Não havia limite para a quantidade de tempo e energia que ele outrora conseguia dedicar às coisas que o interessavam e fascinavam, mas quando isso não sucedia... Aturar alguma coisa, tolerá-la, era um conceito desconhecido para Sebastian Bergman.
Inclinou-se vagarosamente para a frente e perscrutou as fotografias que estavam sobre a tampa do piano. Ao centro, a fotografia do casamento dos seus pais; em cada lado, duas fotografias dos seus avós maternos e paternos. Um retrato de Sebastian quando ele saíra da escola e outro em que teria talvez uns oito ou nove anos, posando no seu uniforme escolar em frente dos postes de uma baliza. Com o pé apoiado na bola enquanto fitava a câmara, uma expressão séria, certo da vitória. Depois, uma fotografia dos seus pais juntos, com um autocarro turístico em fundo. De férias algures na Europa. Nesse retrato a mãe parecia ter uns sessenta e cinco anos. Há vinte anos, portanto. Embora essa tivesse sido uma escolha muito deliberada, Sebastian ficou impressionado com o pouco que conhecia das vidas dos seus pais desde que os deixara. Nem sequer sabia de que morrera a mãe.
A seguir avistou a fotografia que estava mais atrás. Pegou nela. Era o terceiro retrato dele. Estava sentado na sua nova motorizada, à porta da garagem. A mãe de Sebastian gostara muito daquele retrato. Ele tinha a teoria de que isso se devia ao facto de ser uma das poucas fotografias da sua adolescência – talvez a única – em que parecia genuinamente feliz. Mas o que lhe despertou o interesse não foi a fotografia em que estava sentado na Puch Dakota: foi um recorte de jornal encaixado na moldura. A imagem mostrava Lily com a sua bata branca de hospital, segurando nos braços um pequeno bebé adormecido. Por baixo da imagem estava escrito Eine Tochter e uma data, 11 de Agosto de 2000. E, por baixo, o nome dele e o de Lily. Sebastian retirou o recorte e examinou-o minuciosamente.
Lembrou-se de quando tirara aquele retrato e, de súbito, quase conseguiu sentir o cheiro do hospital e ouvir os sons que elas as duas faziam. Lily sorrira-lhe. Sabine estava a dormir.
– Onde raio arranjaste isto?
Sebastian ficou ali, em pé, com o recorte na mão. Não estava mesmo preparado para aquilo. Naquela casa não devia haver nada que lhe recordasse tal coisa. Mas ali estava ele, parado, com o retrato delas na mão. Não pertenciam ali. Pertenciam a um mundo diferente. Os seus dois mundos, os seus dois circuitos infernais. Já era bastante difícil lidar com cada um deles, mas juntos... Não deveriam ter nada a ver um com o outro. Fechou a mão direita num punho cerrado, repetidamente, sem sequer ter consciência disso. Ela que se foda! Embora estivesse morta, a sua mãe ainda conseguia enervá-lo. Sebastian sentiu que começara a respirar com mais esforço. Ela que se foda! Que se foda esta casa inteira! O que ia ele fazer com toda a porcaria que para ali havia?
Dobrou cuidadosamente o recorte de jornal, enfiou-o no bolso interior e regressou à cozinha. Abriu a porta do armário de limpeza e bingo – a lista telefónica estava na prateleira, exactamente onde sempre estivera. Levou-a para a poltrona e procurou agentes imobiliários nas Páginas Amarelas. Começou pelos da letra A. Ninguém atendeu, o que não era de espantar. As primeiras três agências emitiam uma mensagem acerca do horário de expediente e sugeriam-lhe que tentasse telefonar mais tarde, mas a quarta terminava com um «Se quiser deixar mensagem após o sinal, entraremos em contacto consigo».
Sebastian aguardou.
– Chamo-me Sebastian Bergman. Quero vender uma casa e todo o seu recheio. Não sei como isto funciona, mas preciso de resolver o assunto para poder sair desta maldita cidade o mais depressa possível. O dinheiro não me interessa para nada. Poderá ficar com a percentagem que quiser, desde que o assunto seja resolvido rapidamente. Se estiver interessado, telefone-me.
Sebastian deixou o seu número de telemóvel e desligou. Em seguida, recostou-se na poltrona. Sentia-se imensamente cansado. Fechou os olhos, e naquele silêncio conseguia ouvir a batida do seu próprio coração.
Havia demasiado sossego.
Estava sozinho.
Levou a mão ao bolso do peito da camisa, onde guardara o cartão que a mulher do comboio lhe dera. Que horas eram? Demasiado tarde. Se lhe telefonasse agora, seria para lhe perguntar se ela estava interessada numa aventura de uma noite. Com ela, não resultaria. Sabia-o. Perderia apenas o que conseguira até aí e teria de começar de novo com menor pontuação. Não estava assim tão interessado nela. Respirou fundo e soltou o ar vagarosamente, numa longa exalação. Outra vez. A cada inspiração, conseguia sentir a fadiga dominá-lo. Não ia telefonar a ninguém. Não faria nada.
Queria dormir.
Ia dormir.
Até que o sonho o despertasse.
CAPÍTULO SEIS
TORKEL ESTAVA a tomar o pequeno-almoço na sala de refeições do hotel. Billy já tinha ido para a esquadra montar o gabinete deles. De Vanja ainda não tivera quaisquer sinais. Do lado de fora da janela os moradores de Västerås apressavam-se a ir para o trabalho naquele enevoado dia de Primavera. Torkel passou os olhos pelos jornais da manhã, tanto nacionais como locais. Todos traziam histórias sobre o crime. Nos nacionais havia menos; esses ofereciam sobretudo actualizações. A única informação nova de que dispunham, além do facto de a Riksmord ter chegado, era que se trataria de um homicídio ritual, segundo fontes próximas da polícia, uma vez que faltava o coração da vítima. Torkel suspirou. Se os jornais da manhã especulavam acerca de um homicídio ritual, o que diriam acerca disso os tablóides vespertinos? Satanismo? Roubo de órgãos? Canibalismo? Talvez encontrassem algum «perito» alemão para informarem os seus leitores de que não era impossível que um indivíduo perturbado que sofresse de certos delírios pudesse comer o coração de alguém, a fim de absorver a energia dessa pessoa. Haveria uma referência aos Incas ou a alguma tribo extinta desde há muito que no espírito das gentes estivesse ligada aos sacrifícios humanos. E a seguir haveria o inquérito na Internet:
Consegue imaginar-se a comer outra pessoa?
Sim, afinal somos animais.
Sim, mas só se estivesse em causa a minha própria sobrevivência.
Não, preferia morrer.
Torkel abanou a cabeça. Ia ter de aturar aquilo. Estava a transformar-se no que Billy chamava um VR – um Velhote Rezingão. Embora passasse todo o dia rodeado de pessoas mais novas, tinha a consciência de que deslizava com cada vez maior frequência para um modo de pensar que sugeria que as coisas eram melhores antigamente. Nada era melhor antigamente. À parte a sua vida pessoal, mas isso também não tinha qualquer influência sobre o resto do mundo. Ele só tinha de tirar o melhor proveito das coisas. Torkel não queria transformar-se num daqueles agentes policiais velhos e cansados que se queixavam cinicamente dos tempos actuais, enquanto se afundavam cada vez mais nos seus cadeirões com um copo de uísque na mão e Puccini na aparelhagem estereofónica. Estava na hora de se recompor. O seu telemóvel emitiu um som. Uma mensagem de texto. De Ursula. Premiu a opção Ler. Ela já chegara e fora directamente para o local onde o corpo tinha sido encontrado. Poderiam ver-se lá? Torkel terminou a sua chávena de café e saiu da sala de refeições.
Ursula Andersson estava à beira da pequena lagoa. Com a sua camisola de lã enfiada dentro das calças verde-escuras à prova de água, que lhe chegavam até ao peito, parecia que andava à pesca, ou a limpar um derrame de petróleo numa praia qualquer, em vez de ser uma das agentes policiais mais argutas do país.
– Bem-vinda a Västerås.
Ursula virou-se para trás e viu Torkel cumprimentar Haraldsson antes de se baixar para passar sob a fita policial que cercava a maior parte do vale.
– Belas calças.
Ursula sorriu-lhe.
– Muito obrigada.
– Já entraste na lagoa?
– Medi a profundidade e recolhi algumas amostras da água. Onde estão os outros?
– O Billy está a tratar das coisas na esquadra, e a Vanja ia falar com a namorada. Tanto quanto sabemos, foi a última pessoa que viu o rapaz vivo. – Torkel aproximou-se e deteve-se à beira da lagoa. – Como estão a correr as coisas?
– Não há hipótese de obtermos pegadas. Já andou por aqui uma multidão a espezinhar tudo. Os miúdos que encontraram o corpo, a polícia, o pessoal da ambulância, pessoas que andaram a caminhar pelos bosques. – Ursula acocorou-se e apontou para uma concavidade informe no solo lamacento. Torkel agachou-se ao lado dela. – Além disso, quaisquer vestígios que houvesse já estão profundamente enterrados. O terreno é demasiado lamacento e alagadiço. – Ursula fez um gesto largo com a mão. – Ao que parece, há uma semana ainda estava mais molhado. A maior parte do vale encontrava-se debaixo de água. – Pôs-se em pé e olhou na direcção de Haraldsson, inclinando-se um pouco mais para Torkel. – Como é que se chama aquele fulano? – Fez um gesto com a cabeça na direcção de Haraldsson, e Torkel olhou por cima do ombro, embora soubesse perfeitamente a quem Ursula se referia.
– Haraldsson. Estava a chefiar a investigação antes de nós chegarmos.
– Eu sei. Mencionou-o três vezes durante o caminho para aqui. Como é ele?
– Tem de melhorar a primeira impressão que causa nos outros, mas julgo que é... decente.
Ursula virou-se para Haraldsson.
– Pode chegar aqui um instante?
Haraldsson passou por baixo da fita e avançou a coxear até junto de Ursula e de Torkel.
– Já dragaram a lagoa? – perguntou Ursula.
Haraldsson disse-lhe que sim com a cabeça.
– Duas vezes. Nada.
Ursula aquiesceu. Ela não estava à espera de encontrar a arma do crime. Não ali. Virou-se para trás e passou mais uma vez os olhos pela área. Tudo se encaixava.
– Conta lá – disse Torkel, que, devido a anteriores experiências, sabia que Ursula conseguia ver muito mais do que aquele alagado paul florestal que tinham diante deles.
– Ele não morreu aqui. Segundo o relatório preliminar da autópsia, as facadas foram tão profundas que o cabo da faca lhe deixou marcas na pele. Isso indica que o corpo estava deitado numa superfície dura, inflexível. Quando se esfaqueia alguém que está dentro de água, o corpo afunda-se, afasta-se de nós. – Ursula fez um gesto na direcção dos seus pés. – Se pensarmos que no passado fim-de-semana o terreno estava ainda mais molhado e enlameado, teria sido quase impossível enfiar a faca até ao cabo. Pelo menos nas partes mais moles do corpo.
Torkel olhou-a com admiração. Embora já trabalhassem juntos há muitos anos, continuava impressionado com os conhecimentos dela e com a sua capacidade para tirar conclusões. Agradeceu às suas boas estrelas por ela o ter procurado poucos dias após ele ter sido colocado na chefia da Riksmord. Aparecera por lá, simplesmente, numa certa manhã, há dezassete anos. Esperava-o à porta do seu gabinete. Não tinha marcado encontro, mas dissera-lhe que demoraria cinco minutos, no máximo. Ele deixara-a entrar.
Ela estava a trabalhar no SKL, o laboratório forense nacional; iniciara a sua carreira como agente policial, mas, pouco tempo depois, começara a especializar-se na investigação de cenas de crime e, posteriormente, em provas técnicas e ciência forense. Fora assim que acabara por ir para Linköping. Para o SKL. Não que ela não estivesse contente por trabalhar lá, como lhe explicara durante os seus cinco minutos, mas tinha saudades de andar à caça. Fora isso que ela dissera. Andar à caça. Era muito bom estar num laboratório, vestida com uma bata branca, a verificar provas de ADN e a testar armas de fogo, mas era completamente diferente de se poder analisar as evidências no local e de perseguir, depois, o suspeito, integrada numa equipa até que fosse preso. Essa actividade oferecia-lhe um estímulo e um sentimento de satisfação que a comparação de amostras de ADN jamais lhe poderia dar. Torkel conseguiria entender isso? Conseguia. Ursula fizera um gesto de concordância. Ora aí tem. Olhara para o seu relógio. Quatro minutos e quarenta e oito segundos. Gastara os últimos doze segundos a deixar-lhe o seu número de telefone e a sair da sala.
Torkel começara a indagar e, sobre Ursula, só ouvira elogios. No entanto, o que o levara a tomar uma decisão rápida fora o facto de o chefe do SKL praticamente o ter ameaçado com represálias físicas se ele se atrevesse sequer a olhar na direcção dela. Torkel fizera mais do que isso: dera-lhe emprego nessa mesma tarde.
– Portanto, o corpo foi apenas deixado aqui.
– Provavelmente. Se assumirmos que o assassino escolheu este sítio, que ele já conhecia a lagoa, então também conhece as imediações e teria estacionado o carro o mais perto possível. Ali em cima.
Ela apontou para um outeiro a cerca de trinta metros, que teria talvez uns dois metros de altura e era bastante íngreme. Como se respondessem a um sinal invisível, encaminharam-se para lá, com Haraldsson a coxear atrás deles.
– Como vão as coisas com o Mikael?
Ursula sobressaltou-se e olhou para Torkel.
– Muito bem, mas porque perguntas?
– Bom, passaram-se poucos dias desde que voltaste para casa. Ele não conseguiu ter-te por lá durante muito tempo.
– O trabalho é assim. Ele compreende. Está habituado.
– Ainda bem.
– Além disso, ia a uma feira comercial qualquer em Malmö.
Tinham chegado quase ao cimo do outeiro. Ursula olhou de novo para a lagoa. O assassino deveria ter descido até lá por ali. Começaram a examinar o talude. Ao fim de um ou dois minutos, Ursula parou. Deu um passo atrás. Olhou para ambos os lados a fim de os comparar, sentou-se para obter uma visão lateral. Mas tinha a certeza. A vegetação estava ligeiramente achatada. Grande parte já tornara a erguer-se, mas havia sinais de que alguma coisa fora arrastada por ali. Agachou-se. Alguns ramos haviam sido arrancados de um arbusto, e sobre a superfície quebrada, amarela e esbranquiçada, havia uma descoloração que poderia ser sangue. Ursula tirou da sua mala um pequeno saco para recolha de provas, partiu cuidadosamente o raminho e guardou-o.
– Creio que encontrei o sítio por onde ele desceu. Vocês os dois podem continuar a subir?
Torkel acenou a Haraldsson, e avançaram até ao cimo do outeiro. Quando atingiram o estreito carreiro de terra, Torkel olhou à sua volta. Os carros deles estavam estacionados a curta distância.
– Onde é que isto vai dar?
– Lá abaixo, à cidade, foi por este caminho que viemos.
– E na outra direcção?
– Faz algumas curvas, mas vai ter à estrada principal.
Torkel olhou para o fundo do talude, onde Ursula andava de gatas, a revirar ansiosamente cada folha. Se fora por ali que o corpo tinha sido arrastado lá para baixo, era possível que tivesse sido puxado para fora da bagageira ou da porta traseira de um carro directamente mais acima. Não havia qualquer motivo para o assassino não seguir o caminho mais curto, por assim dizer. O carreiro de terra estava compacto e endurecido, sem quaisquer marcas de pneus. Torkel olhou para os carros que os haviam transportado até ali. Tinham ficado estacionados num dos lados, para não ocuparem tanto espaço no estreito carreiro. Seria possível que...?
Parou exactamente acima da estreita área em que Ursula andava a trabalhar. Se a bagageira estivesse aqui... Torkel imaginou o carro estacionado à sua frente. Isso significaria que quaisquer marcas de pneus deveriam estar cerca de um metro mais adiante. Avançou com cautela para dentro da valeta. Agradou-lhe descobrir que o terreno era consideravelmente mais macio do que o próprio carreiro, mas que não estava tão enlameado como o vale mais abaixo. Começou a afastar com cuidado o mato e as ramagens e obteve resultados quase de imediato.
Profundas marcas de pneus.
Torkel sorriu.
Era um belo começo.
– Não mudou de ideias?
A mulher que fez a pergunta pousou uma chávena de chá quente e fumegante em cima da mesa e puxou a cadeira que estava diante de Vanja, que abanou a cabeça.
– Não, obrigada, está óptimo. – A mulher sentou-se e começou a mexer a sua bebida. O pequeno-almoço estava em cima da mesa. Leite e iogurte simples, colocados ao lado das caixas de muesli e de flocos de aveia. Um cesto feito de casca de bétula entretecida continha fatias de pão integral fofo e duas variedades de pão estaladiço. Manteiga, queijo, fiambre, rodelas de pepino em conserva e um pacote de pasta de fígado para barrar. A mesa contrastava nitidamente com o resto da cozinha, que parecia ter acabado de sair de um catálogo. Não exactamente das últimas tendências, mas o asseio era excepcional. Não havia pratos junto ao lava-louças, não havia migalhas sobre as bancadas, vazias e limpas. A parte de cima do fogão estava imaculada, tal como as portas dos armários. Vanja seria capaz de jurar que, caso se levantasse e passasse o dedo pela prateleira das ervas aromáticas e especiarias, colocada mais acima, não encontraria a mínima película de gordura. A avaliar pelo que a pequena Vanja já vira, a tolerância zero em relação ao desmazelo aplicava-se igualmente ao resto da casa.
Havia, porém, uma coisa que se destacava. Vanja tentou, mas não conseguia desviar o olhar do objecto que adornava a parede por trás da mulher que estava a beber chá. Era uma grande moldura que continha uma imagem de Jesus com os braços estendidos, a sua alva túnica pendendo. Uma auréola amarelo-dourada reluzia ao redor da cabeça, e o rosto de barba negra, com os seus intensos olhos azuis, estava virado para o alto num certo ângulo. Por cima da sua cabeça, as palavras «Eu sou a Verdade, o Caminho e a Luz» sobressaíam em contas rubras. A mulher sentada à frente de Vanja seguiu o olhar dela.
– Foi a Lisa que fez aquilo quando apanhou varicela. Tinha onze anos. Teve alguma ajuda, evidentemente.
– É muito bonito – disse Vanja. E ligeiramente assustador, acrescentou para si mesma. A mulher, que se lhe apresentara como Ann-Charlotte quando abrira a porta e a deixara entrar, fez um aceno de satisfação com a cabeça ao ouvir o elogio e sorveu mais um pouco do seu chá. Pousou a chávena.
– Sim, ela é muito talentosa, a nossa Lisa. Aquela imagem tem mais de cinco mil contas de vidro! Não é fantástico?
Ann-Charlotte serviu-se de pão estaladiço e começou a barrá-lo com manteiga. Vanja não pôde deixar de pensar em como o saberiam. Teriam-nas contado todas? Estava prestes a perguntar-lho quando Ann-Charlote pousou a faca da manteiga e olhou para ela, com o sobrolho franzido de preocupação.
– É terrível, o que aconteceu. Ao Roger. Rezámos por ele durante toda a semana em que esteve desaparecido.
E isso serviu de muito, pensou Vanja, produzindo alguns ruídos que ela esperava que indicassem concordância e simpatia, enquanto lançava ao mesmo tempo um olhar ligeiramente exagerado para o relógio. Um gesto que Ann-Charlotte pareceu entender.
– Tenho a certeza de que a Lisa irá descer a qualquer instante. Se nós soubéssemos que você vinha cá, teríamos... – Ann-Charlotte abriu as mãos em jeito de desculpa.
– Não faz mal. Estou grata pela oportunidade de falar com ela.
– Não há problema nenhum. Faremos o que for preciso para ajudar. Como está a mãe dele? A Lena, não é? Deve estar completamente devastada.
– Ainda não a conheci – disse Vanja –, mas deve ter razão, com certeza. O Roger era o único filho dela?
Ann-Charlotte disse-lhe que sim com a cabeça e, de súbito, mostrou-se ainda mais preocupada, como se a maior parte dos problemas do mundo tivesse acabado de recair sobre os seus ombros.
– A vida não tem sido fácil para eles. Durante uns tempos as coisas correram-lhes mal financeiramente, pelo que percebi, e depois houve aqueles problemas todos na escola em que o Roger andava antes. Embora, ultimamente, as coisas parecessem correr-lhe bem. E a seguir acontece uma coisa destas.
– Que tipo de problemas houve na escola anterior? – perguntou Vanja.
– Batiam-lhe e ameaçavam-no – disse alguém junto à entrada da porta.
Vanja e Ann-Charlotte viraram-se. Lisa estava ali parada. O seu cabelo liso pendia-lhe sobre os ombros, ainda molhado mas impecavelmente penteado, a franja presa no alto com uma simples mola. Vestia uma camisa branca abotoada até acima, sob um colete de malha. Ao pescoço trazia uma cruz dourada, cujo fio estava dobrado sobre um dos lados do colarinho. A saia terminava logo abaixo do joelho, e ela usava uns collants opacos. Vanja pensou na rapariga de uma série televisiva dos anos 1970, que passara em repetição quando ela era pequena. Sobretudo por causa da expressão séria e ligeiramente enfadada da moça. Levantou-se e estendeu a mão à rapariga, que entrou na cozinha e puxou de uma cadeira ao fundo da mesa.
– Olá, Lisa, chamo-me Vanja Lithner. Sou agente policial.
– Eu já falei com a polícia – respondeu Lisa enquanto tomava a mão estendida de Vanja, lha apertava brevemente e vergava os joelhos numa pequena vénia. A seguir, sentou-se. Ann-Charlotte levantou-se e foi buscar uma chávena a um dos armários.
– Bem sei – prosseguiu Vanja –, mas eu trabalho num departamento diferente e ficaria muito grata se não te importasses de falar comigo também, mesmo que eu faça as mesmas perguntas.
Lisa encolheu os ombros e estendeu a mão para a caixa de muesli. Despejou uma quantidade considerável na tigela que tinha diante de si.
– Quando dizes que o Roger era agredido e ameaçado na escola em que andava antes, sabes quem lhe fazia isso?
– Toda a gente, acho eu. Em todo o caso, ele também não tinha lá amigos. Na verdade, nem gostava de falar disso. Estava contente por ter saído de lá e ter vindo para a nossa escola. – Lisa pegou no iogurte e cobriu o muesli com uma espessa camada. Ann-Charlotte pousou uma chávena de chá à frente da filha.
– O Roger era um rapaz maravilhoso. Calmo. Sensível. Maduro para a sua idade. Não percebo como é que alguém poderia... – Ann-Charlote não concluiu a frase. Tornou a sentar-se. Vanja abriu o seu bloco de apontamentos e assentou «escola anterior – agressões». Depois, virou-se para Lisa, que enfiava na boca uma colherada de iogurte com muesli.
– Talvez pudéssemos regressar àquela sexta-feira em que ele desapareceu. Podes dizer-me o que fizeram, se aconteceu alguma coisa em especial quando o Roger aqui esteve... tudo o que te lembrares, por mais vulgar ou insignificante que pareça.
Lisa demorou o seu tempo; acabou de mastigar e de engolir antes de responder a Vanja, com um olhar firme.
– Eu já fiz isso. Com o outro agente.
– Sim, mas, como eu disse, também preciso de te ouvir. A que horas é que ele chegou cá?
– Um pouco depois das cinco. Às cinco e meia, talvez. – Lisa olhou para a mãe em busca de ajuda.
– Mais perto das cinco e meia – completou Ann-Charlotte. – O Ulf e eu tínhamos de estar noutro sítio às seis e íamos a sair quando o Roger chegou. – Vanja fez um sinal de concordância e tomou notas.
– E o que fizeram vocês enquanto ele cá esteve?
– Estivemos no meu quarto. Acabámos uns trabalhos de casa que tinham de ser entregues na segunda-feira, a seguir fizemos chá e estivemos a ver o Achas Que Sabes Dançar? Ele saiu um pouco antes das dez.
– Dissete para onde ia?
Lisa encolheu mais uma vez os ombros.
– Disse que ia para casa. Queria saber quem tinha recebido mais votos para sair do programa, e isso só é divulgado depois das notícias e dos anúncios.
– E quem recebeu mais votos para sair?
Vanja viu a colher deter-se a caminho da boca de Lisa com mais uma porção de iogurte e muesli. Não durante muito tempo. Fora quase imperceptível, mas, mesmo assim, a hesitação estava lá. Vanja estava só a fazer conversa, a arranjar uma maneira de quebrar aquela atmosfera de interrogatório. Mas a pergunta apanhara Lisa de surpresa, tinha a certeza disso. Lisa continuou a comer.
– Eu não... não...
– Não fales com a boca cheia – interrompeu Ann-Charlotte. Lisa calou-se. Mastigou mecanicamente, sempre com o olhar fixo em Vanja. Estaria a ganhar tempo? Porque não respondera à pergunta antes de enfiar a colher na boca? Vanja esperou. Lisa mastigou. E engoliu.
– Não sei. Não vi o programa depois do noticiário.
– Que danças fizeram eles? Lembras-te? – A expressão de Lisa ensombrou-se. As perguntas estavam a incomodá-la, por algum motivo. Vanja tinha a certeza.
– Não sei como se chamavam. Não estávamos a ver com muita atenção. Estávamos a conversar e a ler, a ouvir música e outras coisas assim. A ver o que havia nos outros canais.
– Não vejo como é que o conteúdo de um programa de televisão pode ter alguma importância no que respeita a descobrir quem matou o Roger – interrompeu Ann-Charlotte. Pousou a chávena diante de si com alguma irritação. Vanja virou o seu rosto para ela, sorrindo.
– Não tem. Eu estava só a fazer conversa. – Voltou-se de novo para Lisa, ainda a sorrir. Lisa não sorriu. Enfrentou o olhar de Vanja com uma expressão obstinada no rosto.
– Ao longo desse fim de tarde, o Roger mencionou alguma coisa que andasse a preocupá-lo?
– Não.
– Nem telefonemas? Nem mensagens de texto de que ele não quisesse falar ou que o deixassem transtornado?
– Não.
– Ele não tinha um comportamento diferente, não parecia ser-lhe difícil concentrar-se ou algo assim?
– Não.
– E ele não disse se ia encontrar-se com alguém quando saiu de ao pé de ti... cerca das dez da noite, foi isso que disseste?
Lisa olhou para Vanja. A quem tentava ela passar uma rasteira? Ela sabia perfeitamente que Lisa lhe dissera que Roger se tinha ido embora às dez. Estava a testá-la. Para ver se ela se contradizia. Mas não havia qualquer hipótese de isso acontecer. Lisa estava bem ensaiada.
– Sim, ele foi-se embora às dez, e não, ele disse que ia para casa ver quem tinha sido eliminado. – Lisa estendeu a mão para o cesto do pão e tirou uma fatia de pão integral. Ann-Charlotte voltou a intrometer-se na conversa.
– Mas ela já vos contou isto tudo. Não percebo porque é que tem de responder às mesmas perguntas vezes sem fim. Não acreditam nela? – Ann-Charlotte parecia quase ofendida. Como se a própria ideia de a sua filhinha poder contar alguma mentira fosse profundamente revoltante. Vanja olhou para Lisa; poderia ser revoltante para a mãe, mas ela sabia que Lisa estava a esconder qualquer coisa. Qualquer coisa que acontecera nessa noite. Algo que Lisa não tinha intenção de lhe contar. Pelo menos com a mãe ali presente. Lisa cortou um pouco de queijo e colocou as fatias dentro do pedaço de pão com movimentos vagarosos, quase exagerados, olhando para Vanja de vez em quando. Teria de ser cuidadosa. Esta agente era consideravelmente mais esperta do que o polícia com quem falara na cafetaria da escola. Tinha de se manter fiel à história que ensaiara. Continuar a repetir as horas. Não se recordaria dos pormenores daquela noite, se lhe perguntassem. Não acontecera nada de especial.
Roger tinha chegado.
Trabalhos de casa.
Chá.
Televisão.
Roger fora-se embora.
Afinal, decerto também não esperariam que ela se lembrasse de todos os pormenores de qualquer outro vulgar e aborrecido final de tarde de sexta-feira. Além disso, estava em choque. O seu namorado tinha morrido. Se ao menos conseguisse chorar, teria soltado algumas lágrimas para levar a sua mãe a pôr termo àquela conversa.
– Claro que acredito nela – disse Vanja calmamente –, mas, tanto quanto sabemos, a Lisa foi a última pessoa a ver o Roger naquela noite. Temos de esclarecer devidamente todos os pormenores. – Vanja arrastou a sua cadeira para trás. – De qualquer forma, por agora, é suficiente. Vocês têm de ir para a escola e para o emprego.
– Eu não tenho emprego. Só faço algumas horas de serviço comunitário por semana. Mas é trabalho voluntário.
Uma dona de casa. Isso explicava a casa impecável. Pelo menos no que dizia respeito à limpeza.
Vanja tirou o seu cartão-de-visita e empurrou-o na direcção de Lisa. Manteve o dedo sobre ele tempo suficiente para obrigar Lisa a olhar para cima e a fitá-la.
– Telefona-me se te lembrares de alguma coisa que não me tenhas contado acerca daquela sexta-feira. – Vanja desviou o seu olhar para Ann-Charlotte. – Eu saio sozinha. Deixo-vos com o vosso pequeno-almoço.
Vanja saiu da casa e conduziu em direcção à esquadra. Pelo caminho, pensou no rapaz morto e tomou consciência de algo que a fez sentir-se ligeiramente triste e desconfortável ao mesmo tempo.
Até agora, não encontrara ninguém que parecesse particularmente transtornado ou desgostoso por Roger ter morrido.
Fredrik achou que aquilo demoraria uns dez minutos. No máximo. Entrar, contar à polícia, sair. Soubera que Roger desaparecera, evidentemente. Toda a gente falara disso na escola. Na verdade, na Escola Runebergs as pessoas nunca tinham falado tanto de Roger como na semana anterior. Nunca lhe tinham prestado muita atenção. No entanto, no dia anterior, após o terem encontrado, fora criado imediatamente um serviço de aconselhamento de emergência no local, e pessoas que nunca haviam dado qualquer importância a Roger durante o curto tempo em que ele ali fora aluno tinham pedido dispensa das aulas, chorando copiosamente e sentando-se em grupos, dando as mãos e partilhando memórias felizes em voz baixa.
Fredrik não conhecera Roger e não andava propriamente a chorar a sua morte. Tinham passado um pelo outro nos corredores – rostos familiares, nada mais. Para ser honesto, Fredrik poderia dizer que não pensara em Roger desde que ele saíra da Runebergs, no Outono. Mas agora aparecera por lá a estação de televisão local, e algumas raparigas que não dirigiriam a palavra ao Roger nem que ele fosse o último rapaz à face da Terra acendiam velas e depositavam flores junto a um dos postes de baliza do campo de futebol situado no exterior da escola.
Talvez fosse isso que todos esperassem. Talvez fosse um sinal de que a empatia e a ternura humana ainda existiam. Talvez Fredrik estivesse apenas a ser cínico ao não ver mais do que falsidade e pessoas a explorarem um incidente trágico a fim de atraírem as atenções sobre si mesmas. A aproveitarem a oportunidade para preencherem um vazio indefinível.
Para experimentarem um sentimento de solidariedade.
Para experimentarem alguma coisa.
Lembrou-se das imagens que tinham visto na aula de Estudos Sociais, obtidas nos armazéns Nordiska Kompaniet em Estocolmo quando Anna Lindh[4] fora assassinada. Montanhas de flores. Fredrik recordou que também nessa altura havia ficado admirado. De onde vinha tudo aquilo, aquela necessidade de estar de luto por pessoas que não conhecemos? Pessoas com quem nunca sequer estivemos? Era óbvio que ela existia. Talvez houvesse algo de errado em Fredrik por ele não conseguir alimentar e partilhar essa mágoa colectiva.
Mas lera os jornais. Afinal, tinha sido a um seu contemporâneo, um conhecido, que o coração fora cortado e removido. A polícia queria ouvir todos aqueles que tivessem visto Roger depois de ele desaparecer na noite de sexta-feira. Enquanto Roger estava simplesmente desaparecido, Fredrik não vira qualquer vantagem em ir à polícia, pois na realidade tinha visto Roger antes de ele desaparecer, mas agora diziam que qualquer avistamento dele naquela sexta-feira, tanto antes como depois do desaparecimento, teria interesse. Assim, antes das aulas, Fredrik foi de bicicleta até à esquadra da polícia, empurrou as portas e pensou que, provavelmente, aquilo não demoraria muito tempo.
Disse à mulher de uniforme que estava atrás da secretária que queria falar com alguém acerca de Roger Eriksson, mas, antes que ela tivesse tempo de pegar no telefone, um agente vestido à civil que transportava uma caneca de café aproximou-se dele a coxear e disse-lhe que entrasse.
Isso tinha sido – Fredrik olhou para o relógio de parede – há vinte minutos. Já contara ao detective coxo aquilo que fora lá dizer, repetira certas coisas duas vezes, o local propriamente dito, três vezes, e à terceira tivera de o assinalar num mapa. Mas agora o detective parecia satisfeito. Fechou o seu bloco de notas e olhou para Fredrik.
– Muito obrigado por teres cá vindo. Podes esperar aqui um pouco? – Fredrik disse-lhe que sim com a cabeça e o homem afastou-se a coxear.
Fredrik acomodou-se e olhou para o escritório em open space, onde cerca de uma dúzia de agentes estavam sentados às secretárias, separados uns dos outros por uns biombos móveis, decorados aqui e acolá com desenhos infantis, fotos de família, ementas de restaurante com serviços de entrega de refeições e outros documentos relacionados com o trabalho. O som era o de uma surda mescla de teclas de computador, conversas, telefones a tocar e o zumbido da máquina de fotocópias. Fredrik pôs-se a pensar em como é que alguém conseguia fazer alguma coisa num ambiente daqueles, embora ele fizesse sempre os seus trabalhos de casa com os auscultadores do iPod firmemente colocados nos ouvidos. Como é que se podia ficar sentado à frente de alguém que estava a falar ao telefone, sem ouvir as suas conversas?
O detective foi a coxear para a porta, mas, antes que lá chegasse, uma mulher foi ter com ele. Uma mulher loura, vestida com um fato. Pareceu a Fredrik que o detective coxo fez um gesto de fatigado desalento quando a mulher se aproximou.
– Quem é aquele? – perguntou Hanser, fazendo um gesto com a cabeça na direcção do rapaz que estava sentado a olhar para eles. Haraldsson seguiu o olhar dela, embora soubesse perfeitamente a quem se referia.
– Chama-se Fredrik Hammar e tem algumas informações sobre o Roger Eriksson. – Haraldsson levantou o seu bloco de notas, como se quisesse enfatizar que estava tudo ali. Hanser fez o melhor que podia para se manter calma.
– Se é acerca do Roger Eriksson, porque não está a Riksmord a entrevistá-lo?
– Eu ia a passar pela recepção quando ele entrou e achei boa ideia falar com ele primeiro. Para ver se o que tinha para dizer possuía alguma relevância. Não vale a pena o Torkel andar a perder tempo com coisas que não contribuam para a investigação.
Hanser respirou fundo. Conseguia imaginar que devia ser difícil abdicar da responsabilidade sobre um caso. Por mais que se dourassem as circunstâncias, o que isso significava, na verdade, era que não tinham confiado nele. O facto de ter sido ela a pessoa que tomara a decisão não tornava as coisas menos sensíveis. Haraldsson tinha-se candidatado ao cargo que ela ocupava. Não era preciso uma grande intuição psicológica para perceber o que ele pensava de si. Tudo o que fazia, a cada instante, irradiava aversão e hostilidade. Talvez ela devesse estar contente por Haraldsson se interessar por aquele caso com uma obstinação lunática. Era de louvar a sua óbvia dedicação. O seu empenho genuíno. Ou talvez ainda não tivesse entendido que já não constituía uma parte activa na investigação. Hanser tendia para esta última opinião.
– Decidir o que é ou não é relevante nesta investigação já não é a tua função. – Haraldsson acenou com a cabeça de uma maneira que indicava que ele estava simplesmente à espera de que ela concluísse a frase para poder corrigi-la. E, na verdade, mal ela começou a enunciar o argumento seguinte, ele interrompeu-a.
– Eu sei que os responsáveis são eles, mas disseram muito claramente que queriam trabalhar em colaboração comigo.
Hanser amaldiçoou a diplomacia de Torkel. Agora teria de fazer o papel de má. Não que isso alterasse alguma coisa na relação deles...
– Thomas, a Riksmord ficou com a investigação a seu cargo, o que significa que tu já não fazes parte dela, de maneira nenhuma. A menos que te peçam expressamente para fazeres alguma coisa.
Pronto, já lho tinha dito. Outra vez.
Haraldsson fitou-a friamente. Sabia o que ela andava a tramar. Como julgara necessário chamar imediatamente a Riksmord, devido à sua rotina inexistente e à sua falta de liderança, naturalmente não queria ter ninguém do seu pessoal a trabalhar com eles. Teriam de resolver o caso sozinhos. Para ela provar aos seus superiores que havia tomado a decisão certa. E que a polícia de Västerås não tinha essa capacidade.
– Podemos ir falar sobre esse assunto com o Torkel. Ele disse-me expressamente que eu estava a trabalhar em colaboração com eles. Além disso, o rapaz tem informação extremamente interessante que eu ia agora mesmo transmitir-lhes. Quero dizer, eu preferia continuar a tentar resolver o caso, mas é claro que se gostares mais de ficar aqui a discutir a cadeia de comando, talvez devamos fazer isso. Tu é que sabes.
Portanto, era assim que tencionava jogar, transformando-a em alguém que ficava sentada à secretária, enquanto ele era o bom agente policial, que só se interessava pelo caso e por resolvê-lo com altruísmo. Hanser percebeu, então, que Haraldsson poderia ser um oponente mais perigoso do que ela suspeitara anteriormente.
Afastou-se para o lado. Haraldsson exibiu um sorriso triunfante e avançou a coxear, bradando no tom mais familiar que conseguiu: – Billy, tens um momento?
Vanja abriu o seu bloco de notas. Acabara de se desculpar por ter pedido a Fredrik que repetisse tudo o que tinha dito. Estava incomodada. Vanja queria ser a primeira a interrogar as testemunhas e todos os que estivessem envolvidos. Havia um risco de que, inconscientemente, eles pudessem tornar-se descuidados pela segunda vez. De que omitissem informações por julgarem que já as tinham dito. De que pudessem ter acedido à informação e decidido que ela não tinha interesse. Ocorreu-lhe que era a segunda vez que a pessoa com quem falava nesta investigação perdera parte da vivacidade por já ter contado tudo a Haraldsson. Duas em duas. Não haveria uma terceira, prometeu a si mesma. Pousou a caneta sobre o papel.
– Portanto, viste o Roger Eriksson?
– Sim, na passada sexta-feira.
– E tens a certeza de que era ele?
– Sim, nós andámos na Escola Vikinga ao mesmo tempo. Depois, ele foi para a Runebergs no início do último período.
– Vocês eram da mesma turma?
– Não, eu sou um ano mais velho.
– E onde viste o Roger?
– Num sítio chamado Gustavsborgsgatan, junto ao parque de estacionamento do liceu. Não sei se sabe onde fica...
– Nós descobrimos.
Billy tomou nota. Em situações como aquela, quando Vanja dizia «nós» referia-se a ele. O local seria acrescentado ao mapa.
– Em que direcção ia ele?
– Ia a caminho do centro da cidade. Quero dizer, não sei ao certo para onde.
– Também haveremos de descobrir isso.
Billy fez mais um apontamento.
– A que horas o viste na sexta-feira?
– Pouco depois das nove.
Vanja calou-se abruptamente pela primeira vez durante a entrevista. Olhou para Fredrik com um laivo de cepticismo. Teria ela interpretado mal alguma coisa? Voltou a baixar os olhos para os seus apontamentos.
– Às nove da noite?
– Pouco depois.
– E isso foi na passada sexta-feira?
– Sim.
– Tens a certeza disso? E das horas?
– Sim, eu acabei o meu treino às oito e meia e ia a caminho da cidade. Nós íamos ao cinema, e lembro-me de ter olhado para o relógio e percebido que tinha vinte e cinco minutos. O filme começava às nove e meia.
Vanja não disse nada. Billy sabia porquê. Ele tinha acabado de estabelecer a cronologia do desaparecimento de Roger no quadro branco do gabinete deles. Roger saíra de casa da namorada às 22h00. Segundo essa mesma namorada, ele não tinha saído do quarto dela – e muito menos da casa – durante toda a tarde. Portanto, o que estaria ele a fazer uma hora antes nesse tal Gustavsborgsgatan? Vanja estava a pensar nisso mesmo. Lisa mentira, tal como ela pensava. O jovem sentado à frente de Vanja parecia muito credível. Maduro, embora fosse relativamente novo. Não havia nada no comportamento dele a sugerir que estivesse ali por precisar de atenção, pela emoção ou por ser um mentiroso compulsivo.
– Muito bem, então viste o Roger. Porque é que reparaste nele? Deviam andar por ali muitas pessoas às nove da noite de sexta-feira...
– Reparei nele porque ia a caminhar sozinho, e andava uma motorizada a contorná-lo, sempre à roda dele, como se estivesse a provocá-lo, não sei se me entende.
Vanja e Billy inclinaram-se para a frente. A questão do tempo era importante, mas até agora a informação que haviam recebido apenas dizia respeito aos movimentos da vítima ao final da tarde, antes de desaparecer. De repente, havia mais alguém em cena. Alguém que andava a importunar Roger.
Isto estava a ficar bom. Vanja praguejou de novo entredentes, amaldiçoando o facto de estar a ouvir aquilo em segunda mão.
– Uma motorizada? – Billy antecipou-se a Vanja. Ela não só lho permitiu como até agradeceu.
– Sim.
– Consegues lembrar-te de mais alguma coisa a respeito dela? Da cor, por exemplo?
– Bom, sim, mas eu sei...
– De que cor era? – interrompeu Billy. Este era o campo dele.
– Vermelha, mas eu sei...
– Sabes qual era a marca? – interrompeu Billy de novo, ansioso por encaixar todo aquele quebra-cabeças. – Sabes que tipo de motorizada era? Consegues lembrar-te se tinha placa de matrícula?
– Sim... Quero dizer, não, não me lembro. – Fredrik virou-se para Vanja. – Mas eu sei de quem era, quero dizer, quem ia nela. Era o Leo Lundin. – Vanja e Billy entreolharam-se. Vanja levantou-se.
– Espera aqui, preciso de ir chamar o meu chefe.
CAPÍTULO SETE
O HOMEM que não era um assassino estava orgulhoso de si próprio. Embora não devesse estar. Os relatos emotivos, a escola de luto e as frequentes conferências de imprensa com agentes policiais de rosto severo contavam uma história diferente. Trágica, sombria e pesarosa. Mas ele não podia evitar. Por mais que tentasse, não conseguia impedir-se de acabar na companhia desse sentimento que se lhe impunha. Só ele se sentia assim. Mais ninguém poderia compreender.
Por mais perto que estivessem.
Independentemente do que dissessem.
O orgulho dele era entusiasmante e libertador, quase jubiloso. Tinha agido como um homem a sério. Protegera o que tinha de ser protegido. Não cedera terreno, não soçobrara quando realmente importava. O cheiro forte e adocicado do sangue e dos órgãos internos penetrara-lhe profundamente os sentidos, e todo o seu corpo lutara contra a crescente náusea. Mas ele persistira. A faca que estava na sua mão não tremera. As pernas não lhe haviam fraquejado quando ele deslocara o corpo. Tivera um desempenho no auge das suas capacidades, numa situação que a maioria das pessoas não conseguiria enfrentar. Ou com a qual a maioria das pessoas nunca se depararia. Era disso que ele se orgulhava.
No dia anterior andara tão nervoso que até lhe custara ficar sentado e quieto. Tinha ido dar um longo passeio que durara várias horas. Pelo meio da cidade, onde só se falava de uma coisa: do seu segredo. Ao fim de um bocado, passara pela esquadra da polícia. Quando vira aquele prédio familiar, o seu instinto fora voltar para trás. Estava tão perdido nos seus pensamentos que nem sequer pensara para onde ia, mas, já que ali estava, poderia muito bem passar por lá. Ele era apenas alguém que saíra para um passeio, alguém que passava ali por acaso. Os homens e as mulheres que estavam lá dentro não suspeitariam de nada. Não saberiam que a pessoa que procuravam estava tão perto. Continuou a andar. Olhando em frente. Apesar de tudo, não se atreveu a espreitar através das grandes janelas. Um carro-patrulha saiu da garagem e travou. Ele cumprimentou os agentes fardados que iam dentro do carro como se os conhecesse. E conhecia-os, claro. Eram os seus adversários. Ele era o homem que procuravam, embora não o soubessem. Havia algo de incrivelmente excitante e reconfortante em estar na posse desse conhecimento, em ter a verdade na mão. A verdade que eles procuravam com tanto frenesi. Parou e deixou que o carro passasse à sua frente. Podia permitir-se fazer essa cortesia aos adversários.
Sabia de onde lhe vinha esta força. Não era de Deus. Deus dava orientação e consolo. A força, dera-lha o seu pai. O seu pai, que o desafiara, o temperara e o fizera compreender o que era preciso. Tinha sido tudo menos fácil. De certa forma, o segredo que ele guardava, agora que era adulto, lembrava-lhe o segredo que guardara enquanto criança. Também ninguém seria capaz de o compreender.
Por mais perto que estivessem.
Independentemente do que dissessem.
Certa vez, quando se sentira triste e fraco, contara a uma enfermeira da escola, uma loura que cheirava a flores. Gerara-se logo um tumulto. O caos. A escola e os serviços sociais intervieram. Falaram, telefonaram, visitaram. Psicólogos educativos e assistentes sociais. A mãe dele chorava, e ele, o menino, de repente percebeu o que estava prestes a perder. Tudo. Porque tinha sido fraco. Porque não tivera forças para se manter calado. Sabia que o pai o amava. Só que ele era o tipo de homem que manifestava o seu amor através da disciplina e da ordem. Um homem que preferia transmitir a sua mensagem com os punhos, com o cinto e com o batedor de tapetes, em vez de usar as palavras. Um homem que andava a preparar o seu rapaz com obediência. A aprontá-lo para a realidade. Onde era necessário ser forte.
Resolvera o problema retirando o que dissera. Negando tudo aquilo. Dizendo que tinha sido mal compreendido. Restaurara a ordem. Não queria perder o seu pai. A sua família. Podia suportar a pancada. Mas não a ideia de o perder. Mudaram-se para outro sítio. O pai gostara da negação dele. Das suas mentiras. Tornaram-se mais próximos um do outro, ele sentira-o. A pancada não diminuíra – antes pelo contrário –, mas ao rapaz parecia mais fácil. E manteve-se calado. Tornou-se mais forte. Ninguém compreendia a dádiva que o pai lhe oferecera. Ele próprio mal a compreendera naquela época. Mas agora conseguia vê-la: a capacidade de se erguer acima do caos e agir. O homem que não era um assassino sorriu. Sentia-se mais próximo do que nunca do seu pai.
Sebastian acordou pouco antes das quatro da manhã numa das duras e estreitas camas do piso superior. A da mãe, supôs ele, a avaliar pelo resto do quarto. Quando Sebastian saíra de casa, os pais não dormiam em quartos separados, mas a nova disposição não o surpreendeu. Deitar-se de livre vontade numa cama ao lado do seu pai, noite após noite, não poderia ser razoavelmente descrito como um comportamento salutar. Era evidente que a mãe tinha chegado à mesma conclusão.
Por norma, Sebastian levantava-se quando era acordado pelo sonho, fosse qual fosse a hora. Mas nem sempre o fazia. Por vezes, deixava-se ficar onde estava. Fechava os olhos. Sentia a cãibra da mão direita atenuar-se devagar enquanto voltava a convidar o sonho para a sua consciência.
Às vezes ansiava por manhãs dessas. Ansiava-as e temia-as. Quando permitia que o sonho voltasse a ter um ponto de apoio, quando sugava dele o puro e não adulterado sentimento de amor, então o seu posterior regresso à realidade era significativamente mais difícil e repleto de medo do que quando se limitava a desistir disso, se levantava e ia fazer outra coisa. Geralmente, não valia a pena. Porque depois do amor vinha a dor.
A perda.
Sem falhar, todas as vezes.
Era como um vício. Ele conhecia as consequências. Sabia que, mais tarde, se sentiria tão mal que seria impossível funcionar.
Mal conseguia respirar.
Mal conseguia viver.
Mas, de tempos a tempos, precisava disso. Do núcleo puro. Do sentimento mais forte e mais verdadeiro que as suas memórias já não podiam dar-lhe. As suas memórias, afinal, eram apenas memórias. Comparadas com as emoções que ele sentia nos sonhos eram pálidas, quase sem vida. E também não eram todas reais – tinha a certeza disso. Tirara umas coisas aqui, acrescentara ali. Consciente e inconscientemente. Melhorara e robustecera certas partes, minorara e desbastara outras. As memórias eram subjectivas. O seu sonho era objectivo. Implacável.
Não sentimental.
Insuportavelmente doloroso.
Mas vivo.
Naquela manhã, em casa dos pais, ele ficou na cama e deixou-se abraçar de novo pelo sonho. Era isso que queria. Precisava disso. Foi fácil; aquilo continuava ali, dentro dele, como uma entidade invisível, e tudo o que precisava de fazer era dar-lhe alguma força renovada.
E, quando o fez, conseguiu senti-la. Não recordá-la. Senti-la mesmo. Conseguiu sentir a pequena mão dela na sua. Conseguiu ouvir a sua voz. Conseguiu ouvir outras vozes, outros sons. Mas, acima de tudo, a dela. Até conseguiu cheirá-la. Sabonete de bebé e protector solar. Ela estava ali, com ele, no seu semi-sono. Como devia ser. Outra vez. O grande polegar dele moveu-se inconscientemente sobre o anelzinho barato que ela trazia no dedo indicador. Uma borboleta. Ele encontrara-o no meio de um monte de bugigangas baratas num mercado apinhado de gente. Ela tinha gostado logo do anel. Nunca mais quisera tirá-lo.
O dia começara em câmara lenta. Já era tarde quando saíram à rua. O plano era ficarem todo o dia no hotel a relaxar junto à piscina. Lily tinha ido fazer uma corrida. Uma corrida tardia, abreviada. Quando chegaram lá fora, Sabine não quis passar o dia inteiro deitada à beira da piscina. Não – as pernas dela estavam cheias de energia, por isso ele decidira que desceriam até à praia por um bocado. Sabine adorava a praia. Adorava que ele lhe pegasse ao colo e brincasse com ela entre as ondas. Berrava de alegria quando ele lhe balouçava o pequeno corpo entre o mar e o ar, entre o molhado e o seco. Ao descer, passaram por várias outras crianças. Era o dia a seguir ao Natal e as crianças andavam a experimentar os seus novos brinquedos. Ele levava-a aos ombros. Uma menina estava a brincar com um golfinho insuflável, azul-claro e muito bonito, e Sabine estendera a mão para ele.
– Papá, quero um daqueles.
Essa tinha sido a última coisa que ela lhe dissera. A praia ficava um pouco mais adiante, após uma grande duna de areia, e ele dirigira-se para lá com rapidez, de modo que ela tivesse outras coisas em que pensar além de golfinhos azul-claros. Dera resultado, e Sabine ria-se enquanto ele avançava sobre a areia quente. Com as suas mãos macias no rosto não barbeado dele. O seu riso quando ele tropeçou e quase caiu.
A ideia de irem passar o Natal ao estrangeiro fora de Lily. Ele não discutira muito. As grandes ocasiões não eram a especialidade de Sebastian e, além disso, achava a família dela bastante difícil. Assim, quando ela sugerira uma viagem, ele tinha concordado imediatamente. Não porque gostasse verdadeiramente do sol, do mar e da areia, mas porque percebera que Lily, como sempre, estava a tentar facilitar-lhe um pouco a vida. Além disso, Sabine adorava o sol e o mar, e ele adorava tudo o que Sabine adorava. Essa era uma sensação relativamente nova para Sebastian. A de fazer coisas por outras pessoas. Descobrira-a graças a Sabine. Uma boa sensação, pensara ele enquanto ali estava na praia, a olhar para o oceano Índico. Pousara Sabine no chão e ela correra imediatamente para a água com as suas perninhas. A maré estava consideravelmente mais baixa do que nos dias anteriores, e a linha de água mais longe do que era habitual. Ele julgara que tinha sido a maré que fizera recuar tanto a água. Correra para a água com ela. O céu estava ligeiramente enevoado, mas a temperatura do ar e da água era perfeita. Sem a mínima preocupação, beijara-a uma última vez antes de a enfiar até à barriga na água morna. Ela gritara e, a seguir, rira-se, porque para ela a água era simultaneamente assustadora e maravilhosa, e por um segundo Sebastian pensara na designação psicológica para a brincadeira deles. «Exercícios de confiança.» O papá não te larga. A criança torna-se cada vez mais ousada. Uma designação simples cujo verdadeiro significado ele realmente nunca antes pusera em prática. Confiança. Sabine tinha gritado, com uma mistura de medo e de júbilo, e ao princípio Sebastian não ouvira o rugido. Estava completamente absorto na confiança entre eles. Quando ouviu aquele barulho, era tarde de mais.
Nesse dia aprendera uma nova palavra.
Uma palavra que ele, que tanto lera, nunca tinha ouvido antes.
Tsunami.
Naquelas manhãs em que ele convidava o sonho a entrar, voltava a perdê-la. E a mágoa dilacerava-o tanto que ele pensava que nunca conseguiria sair da cama.
Mas saía.
Acabava por sair.
E aquela coisa que era a vida dele prosseguia.
Leonard! Clara Lundin soube que se tratava do seu filho quando viu aquele jovem casal nos degraus da entrada. Soube antes que eles se lhe apresentassem e exibissem as suas identificações para lhe mostrarem que não eram Testemunhas de Jeová nem gente que andasse a tentar vender alguma coisa. Ela sabia que este dia haveria de chegar. Sabia, e no seu estômago formou-se uma bola de ansiedade. Ou talvez se tenha simplesmente intensificado. Clara sentia aquela pressão no seu diafragma há tanto tempo que já quase nem reparava nela. Quando o telefone tocava durante a noite. Quando ouvia sirenes aos fins-de-semana. Quando Leonard a acordava ao chegar a casa com os seus amigos. Quando ela ia verificar a caixa de correio electrónico e via que recebera uma mensagem da escola.
– O Leo está? – perguntou Vanja, guardando o seu cartão de identificação.
– Leonard – corrigiu Clara automaticamente. – Sim, está... O que lhe querem?
– Ele está doente? – perguntou Vanja, ignorando a pergunta sobre os motivos da visita.
– Não, julgo que não... Mas porquê?
– Gostaria de saber porque não está ele na escola.
Ocorreu a Clara que nem sequer tinha pensado nisso. Trabalhava no hospital com horários irregulares e pensava cada vez mais raramente no percurso escolar do seu filho. Ele entrava e saía mais ou menos como lhe apetecia. Fazia a maior parte das coisas mais ou menos como lhe apetecia.
Tudo, na verdade.
Ela tinha perdido o controlo. As coisas eram assim mesmo. O que ela podia fazer era admitir. Tinha perdido completamente o controlo. Em menos de um ano. Os livros que ela pedira emprestados e as colunas de conselhos que lera diziam que era natural. Era a idade em que os rapazes começavam a libertar-se dos pais e a explorar hesitantemente o mundo dos adultos. Era uma questão de afrouxar um pouco as rédeas, embora continuando a segurá-las com firmeza, e, acima de tudo, era preciso proporcionar-lhes segurança, mostrando-lhes que os pais estariam sempre ali à disposição deles. Mas Leonard nunca fazia nada hesitantemente. Dava saltos. De um dia para o outro. Como se estivesse a saltar para dentro de um buraco negro. De súbito, ela perdera-o, e nenhumas rédeas no mundo eram suficientemente curtas para o conter. Ela estava ali, mas ele já não precisava dela. De maneira nenhuma.
– Ele está a descansar. O que querem?
– Gostaríamos de falar com ele, se não se importa – insistiu Billy quando entraram para o corredor.
Dentro da casa, o som do baixo que tinham ouvido quando se aproximaram da moradia de piso térreo em forma de L soou ainda mais alto. Hip-hop. Billy reconheceu o estilo.
Eram os DMX. «X Gon’ Give it to Ya».
De 2002.
Coisas de antigamente.
– Eu sou a mãe e quero saber o que ele fez. – Vanja notou que ela não queria saber o que eles pensavam ou suspeitavam que o seu filho tivesse feito. Limitara-se a assumir que ele era culpado.
– Gostaríamos de falar com ele acerca do Roger Eriksson.
O rapaz que morrera. Porque é que a polícia quereria falar com Leonard acerca do rapaz que morrera? O estômago dela começou efectivamente a contrair-se numa série de cãibras. Clara limitou-se a acenar silenciosamente, em concordância, afastou-se para um lado, de modo a deixar passar Billy e Vanja, e a seguir desapareceu pelo lado esquerdo, atravessou a sala de estar e foi até a uma porta que estava fechada. A porta que ela não estava autorizada a abrir sem primeiro bater. E foi o que fez.
– Leonard. Está aqui a polícia, dizem que querem falar contigo.
Billy e Vanja ficaram à espera no vestíbulo. Pequeno e asseado. Ganchos na parede do lado direito com três casacos pendurados em cabides, dois dos quais pareciam pertencer a Leonard. Uma solitária mala de mão pendurada no quarto gancho. Por baixo, uma pequena prateleira com quatro pares de sapatos, dois deles ténis. Reebok e Eck, reparou Billy. No lado oposto, uma pequena cómoda com um espelho por cima. O tampo da cómoda estava vazio, à excepção de um pequeno napperon e de uma jarra com malmequeres de palha. A parede terminava pouco depois da cómoda e entrava-se na sala de estar. Clara estava a bater outra vez à porta.
– Leonard. Eles querem falar contigo por causa do Roger. Podes sair, por favor?
Bateu de novo. No vestíbulo, Billy e Vanja entreolharam-se e chegaram a uma silenciosa decisão. Limparam os sapatos no capacho e atravessaram a sala de estar. Junto à porta da cozinha havia uma modesta mesa de refeições sobre um tapete amarelo com um padrão de quadrados castanhos, e um dos dois sofás tinha as costas voltadas para a mesa. O outro sofá estava em frente. Entre ambos, uma mesa de centro baixa, feita de uma madeira clara. Bétula, pensou Vanja, embora não fizesse ideia. Havia um televisor na parede. Nada de filmes, embora por baixo houvesse um leitor de DVD numa prateleira mais rente ao chão. Nenhuma consola de jogos, nem jogos. A sala estava limpa e arrumada. Parecia que ninguém se sentava nos sofás há muito tempo. As almofadas estavam perfeitamente compostas, uma manta dobrada, os dois controlos remotos arrumados lado a lado. Por trás do segundo sofá, toda a parede estava coberta por estantes, com livros encadernados e brochados em filas perfeitas, aqui e acolá entremeados com bugigangas a que se havia limpado o pó. Vanja e Billy foram ter com Clara, que começava a ficar preocupada.
– Leonard, abre esta porta! – Nenhuma reacção. A música continuava no mesmo volume. Talvez até mais alto, pensou Vanja. Ou talvez fosse só por estarem mais perto. Billy bateu. Com força.
– Leo, podemos falar, por favor? – Nenhuma reacção. Billy bateu novamente.
– Que estranho. Pareceu-me que ele tinha rodado a chave.
Vanja e Billy olharam para Clara. Billy experimentou o puxador.
Exactamente.
Trancada.
Vanja olhou rapidamente pela janela da sala de estar. De súbito, viu um rapaz ruivo e bem constituído aterrar suavemente sobre a relva do exterior e começar a correr pelo relvado em peúgas, até sair do seu campo de visão. Tudo aquilo aconteceu à velocidade de um relâmpago.
Vanja correu para a porta fechada do pátio, gritando: – Leo! Pára!
Algo que Leo não tinha absolutamente nenhuma intenção de fazer. Na verdade, aumentou a velocidade. Vanja voltou-se para trás fitando um Billy algo surpreendido.
– Vai pela frente! – berrou ela da porta do pátio enquanto se esforçava por abri-la. Conseguiu avistar o rapaz em fuga a curta distância. Escancarou a porta e avançou rapidamente por cima dos canteiros de flores. Em seguida, acelerou. E tornou a gritar para o rapaz.
Às oito da manhã Sebastian levantara-se, tomara um duche e fora até à estação de serviço da Statoil, que ficava a algumas centenas de metros. Comprara o pequeno-almoço, um café com leite, e bebera-o ali enquanto via os clientes matinais a comprar cigarros, café e gasolina sem chumbo. Quando regressou ao seu aposento temporário, recolheu os jornais, as cartas, as facturas e os folhetos de propaganda que faziam transbordar a caixa do correio. Pôs tudo menos o jornal do dia dentro de um saco de reciclagem que encontrara muito bem dobrado dentro do armário dos produtos de limpeza. Esperava que o agente imobiliário não tardasse a telefonar-lhe, para que não tivesse de adquirir o hábito de ir buscar comida à Statoil. Sentindo-se entediado, saiu e foi sentar-se no exterior, nas traseiras da casa, onde o sol já tinha começado a aquecer o passadiço de madeira recentemente colocado. Quando Sebastian era pequeno, em vez do passadiço, havia ali umas lajes de pedra. As que tinham seixos formavam um padrão em relevo; naqueles tempos toda a gente as tinha, recordou. Agora parecia que todos as haviam substituído por passadiços de madeira.
Pegou no jornal e estava prestes a embrenhar-se na secção de cultura quando ouviu uma voz de mulher gritar: «Leo! Pára!», e alguns segundos depois um adolescente alto e ruivo emergiu através da sebe da casa do lado, correu através do estreito caminho para bicicletas e peões que separava as duas propriedades e, com um salto ágil, transpôs a cerca branca com um metro de altura e aterrou no quintal de Sebastian. Atrás dele vinha uma mulher com os seus trinta anos. Rápida. Ágil. Não estava muito atrás quando irrompeu através da sebe, aproximando-se cada vez mais do jovem. Sebastian observou a perseguição e apostou silenciosamente consigo mesmo que o rapaz não conseguiria chegar à vedação do outro lado do quintal. Tinha razão. Poucos metros antes da vedação, a mulher acelerou rapidamente e derrubou-o com uma placagem infalível. Para ser justo, ela tinha vantagem naquela superfície mole porque trazia os sapatos calçados, pensou Sebastian, enquanto os via rebolar várias vezes devido ao ímpeto que levavam.
A mulher agarrou rapidamente o braço do jovem e torceu-lho atrás das costas. Polícia. Sebastian levantou-se e deu alguns passos no relvado. Não que tivesse qualquer intenção de intervir; queria apenas ver melhor. A mulher parecia ter a situação sob controlo, e, caso não tivesse, um homem mais ou menos da mesma idade chegava da direcção oposta para a auxiliar. Evidentemente, também ele era um agente policial, pois sacou de um par de algemas e começou a prender os braços do jovem atrás das costas.
– Larguem-me! Eu não fiz nada, foda-se! – O rapaz ruivo torcia-se sobre a relva sem conseguir libertar-se do firme aperto da mulher.
– Então porque fugiste? – perguntou a mulher, levantando o rapaz até o pôr em pé com a ajuda do seu colega. Caminharam em direcção à entrada da casa e a um carro que os esperava, presumiu Sebastian. Durante a breve caminhada a mulher reparou que não estavam sozinhos no quintal. Olhou para Sebastian, tirou do seu bolso um cartão de identificação e mostrou-lho. À distância a que estavam, poderia muito bem ser um cartão da biblioteca. Sebastian não conseguiu ler uma única palavra.
– Vanja Lithner, Riksmord. Está tudo sob controlo. Pode voltar para dentro de casa.
– Eu não estava dentro de casa. Faz mal se eu ficar cá fora?
Mas era óbvio que a mulher não tinha mais nada para lhe dizer. Guardou o cartão de identificação e tornou a agarrar o braço do rapaz. Este parecia ser um daqueles jovens cuja vida entrara num caminho descendente desde muito cedo. Sem dúvida, esta não era a primeira nem a última vez que ele seria levado para um carro da polícia. Outra mulher avançava pelo pavimento. Parou. Levou as mãos à boca para suprimir um grito quando viu o que estava a acontecer no relvado de Sebastian. Sebastian olhou para ela. Era a mãe, evidentemente. Suaves e bonitos caracóis de cabelo ruivo. Cerca de quarenta e cinco anos. Não muito alta – talvez um metro e sessenta. Parecia em boa forma física. Provavelmente, frequentava o ginásio com regularidade. Devia ser a vizinha do outro lado da sebe. Quando Sebastian morava ali, quem ocupava aquela casa era um casal alemão que tinha dois schnauzers. Já nessa altura eram velhos. Deviam ter morrido entretanto.
– Leonard, o que é que tu fizeste? Para onde é que vocês o levam? O que fez ele? – A mulher parecia ignorar o facto de ninguém lhe dar resposta: as perguntas continuavam a escapar-se dela. Rápidas e nervosas, numa voz que se aproximava do falsete. Como a válvula de segurança de uma panela de pressão. Se tivesse guardado as perguntas dentro de si, rebentaria devido à ansiedade. A mulher avançou sobre a relva. – O que fez ele? Digam-me, por favor! Porque é que acabas sempre por te meter em sarilhos, Leonard? O que fez ele? Para onde o levam?
A agente policial soltou o braço do rapaz e deu alguns passos na direcção da mãe preocupada. O outro agente continuou a andar.
– Só queremos conversar. O nome dele apareceu no decurso dos nossos inquéritos – disselhe ela, e Sebastian notou a mão tranquilizadora sobre o braço da mulher agitada. Contacto físico. Muito bem. Profissional.
– Apareceu? Mas «apareceu» como? De que maneira?
– Agora vamos levá-lo para a esquadra. Se for lá ter daqui a pouco poderemos verificar tudo com calma e serenidade. – Vanja calou-se, garantindo que estabelecia contacto visual com a mulher antes de prosseguir. – Clara, nós, de momento, não sabemos nada. Não fique preocupada sem motivo. Vá até à esquadra, pergunte por mim ou pelo Billy Rosén. Eu chamo-me Vanja Lithner. – Vanja, evidentemente, tinha-se apresentado quando chegaram a casa dos Lundin, mas não era provável que Clara se lembrasse do seu nome ou que o tivesse sequer entendido. Por isso, Vanja tirou um dos seus cartões e entregou-lho. Clara aceitou-o com um aceno de cabeça, demasiado abalada para protestar. Vanja virou-lhe as costas e saiu do quintal. Clara viu-a desaparecer na esquina onde estava a groselheira em flor. Por instantes, limitou-se a ficar onde estava. Completamente perdida. A seguir, virou-se para o porto de abrigo mais próximo, que por acaso era Sebastian.
– Eles podem fazer aquilo? Podem levá-lo assim no carro, sem mim? Quero dizer, ainda é menor.
– Que idade tem ele?
– Dezasseis anos.
– Nesse caso, sim, podem.
Sebastian regressou ao passadiço, ao sol matinal e à secção de cultura. Clara ficou onde estava, a olhar para a esquina onde Vanja desaparecera, como se estivesse à espera de que saltassem de lá, a sorrir, a rir, dizendo-lhe que tudo aquilo tinha sido uma partida. Uma partida muito bem planeada. Isso não aconteceu. Clara voltou-se para Sebastian, que acabara de se sentar uma vez mais no seu cadeirão de verga branco.
– Não pode fazer nada? – perguntou ela num tom implorante. Sebastian fitou-a com uma expressão interrogativa.
– Eu? Mas o quê?
– É o filho dos Bergman, não é? O Sebastian? Trabalha neste tipo de coisas.
– Trabalhei. No passado. Hoje em dia não faço nada. E mesmo quando estava a trabalhar, não tinha nada a ver com a contestação de detenções. Era psicólogo criminal, não era advogado.
Na rua, o carro que levava o único filho de Clara ligou o motor e afastou-se. Sebastian olhou para a mulher que continuava no seu relvado. Completamente perdida. Abandonada.
– O que fez o seu filho? Porque é que a Riksmord está interessada nele? – Clara deu alguns passos na sua direcção.
– É qualquer coisa que tem a ver com o rapaz que foi assassinado. Não sei. O Leonard nunca faria uma coisa dessas. Nunca.
– Então o que faz o Leonard? – Clara olhou para Sebastian com uma expressão de completa incompreensão enquanto este lhe indicava a vedação. – Quando atravessou a vedação, estava a repreendê-lo por ele andar sempre a meter-se em sarilhos. – Clara pôs-se a matutar. Tinha feito isso? Não sabia. Tantas perguntas. Tanta confusão na sua cabeça, mas talvez o tivesse feito, sim. Leonard metera-se em muitos sarilhos, sobretudo nos últimos tempos, mas isto era completamente diferente.
– Mas ele não é um assassino!
– Ninguém o é antes de ter matado alguém. – Clara olhou para Sebastian, que parecia agora completamente desinteressado e insensível aos eventos que haviam ocorrido no seu quintal. Estava a tamborilar com os dedos no jornal como se nada de invulgar ou importante tivesse acontecido.
– Então não me vai ajudar?
– Tenho cá em casa uma lista das Páginas Amarelas. Posso ir procurar advogados na letra A.
A raiva juntou-se ao nó de ansiedade e de medo que Clara sentia no estômago. Ouvira algumas coisas acerca do filho dos Bergman durante os anos em que Esther e Ture tinham sido seus vizinhos. E nenhuma delas fora boa. Nunca.
– E pensar que estava convencida de que a Esther exagerava quando falava de si.
– Isso seria uma surpresa para mim, a minha mãe nunca foi mulher para gestos grandiosos.
Clara olhou brevemente para Sebastian, depois virou-se e foi-se embora sem dizer uma palavra. Sebastian pegou numa parte do jornal que tinha caído sobre o passadiço. Reparara no artigo, mas este não lhe interessara particularmente. Agora atentava nele de novo.
RIKSMORD CHAMADA A INVESTIGAR O ASSASSINATO DO RAPAZ.
CAPÍTULO OITO
– PORQUE É que fugiste?
Vanja e Billy estavam sentados diante de Leonard Lundin na sala que tinha um mobiliário impessoal. Uma mesa, três cadeiras razoavelmente confortáveis. Papel de parede de cores baças, o ocasional poster emoldurado, um candeeiro de pé ao canto, por trás de um pequeno cadeirão. Luz do dia a entrar pela janela, que era de vidro fosco, embora deixasse passar a luz do dia. Assemelhava-se mais ao quarto de um modesto albergue para viandantes do que a uma sala de interrogatórios, sem cama mas com duas câmaras de vigilância que registavam tudo numa sala contígua.
Leonard estava enterrado na cadeira, com o traseiro apoiado na beira, os braços cruzados sobre o peito, os pés descalços a aparecerem do outro lado da mesa. Não encarava os agentes policiais e mantinha o olhar fixo num ponto algures à esquerda. Todo o seu corpo ressumava falta de interesse e uma certa dose de desprezo.
– Não sei. Por reflexo.
– Quando a polícia quer falar contigo, o teu reflexo é fugir? Porquê? – Leonard encolheu os ombros. – Fizeste alguma coisa ilegal?
– Parece que vocês pensam que sim.
A ironia era que eles nem sequer haviam pensado em tal coisa quando tinham ido a casa dos Lundin para falar com ele, mas sair a correr pela janela em peúgas decerto fizera aumentar tanto o seu interesse como o grau de suspeita. Vanja já decidira que o quarto de Leonard teria de ser revistado. Sair pela janela era bastante radical. Talvez no quarto houvesse coisas que ele realmente não queria que vissem. Algo que o ligasse ao crime. Até agora tudo o que sabiam era que ele andara a contornar a vítima com a sua motorizada na noite de sexta-feira. Vanja orientou a conversa nessa direcção.
– Viste o Roger Erikson na passada sexta-feira.
– Vi?
– Uma testemunha viu-vos juntos. Em Gustavsborgsgatan.
– Nesse caso, devo ter lá estado. E depois?
– «Nesse caso devo ter lá estado.» Isso é uma confissão? – Billy levantou os olhos do seu bloco de notas e fitou o rapaz. – Viste o Roger Eriksson na passada sexta-feira? – Leonard encarou-o por breves instantes e depois disse que sim com a cabeça. Billy traduziu o gesto em palavras para o gravador que estava em cima da mesa: – A resposta de Leonard à pergunta foi sim.
Vanja prosseguiu: – Tu e o Roger frequentavam a mesma escola, mas depois ele pediu transferência para outra. Sabes porquê?
– Terão de lhe perguntar isso a ele.
Muito estúpido. Muito... desrespeitoso. Billy tinha vontade de agarrar nele e de lhe dar uns bons safanões. Vanja conseguia sentir isso e pousou discretamente a mão sobre o antebraço do colega. Sem qualquer indício de irritação ou o menor sinal de que cedera à provocação, abriu sobre a mesa o ficheiro que tinha à sua frente.
– Gostaria de o fazer. Mas ele está morto, como talvez já saibas. Alguém lhe cortou o coração e o atirou para dentro de um paul. Tenho aqui algumas fotografias.
Vanja começou a espalhar as reluzentes fotografias em alta resolução do local onde o corpo fora encontrado e da morgue. Tanto Vanja como Billy sabiam que não interessava minimamente a quantidade de mortes que uma pessoa tivesse presenciado em filmes ou em videojogos. Nenhum desses meios conseguia fazer justiça à morte. Nem mesmo o perito mais dotado em efeitos especiais conseguia recriar a sensação de se ver um cadáver autêntico. Sobretudo se tivéssemos visto aquela pessoa viva uma semana antes, como Leonard.
Leonard olhou para as fotografias. Tentou mostrar-se impassível, mas tanto Vanja como Billy perceberam que lhe era difícil, senão mesmo impossível, olhar para as imagens. Mas isso não significava nada; tanto podia ser horror como culpa. Imagens como aquelas tinham o mesmo impacto sobre os criminosos e sobre os que estavam inocentes. Quase sem excepção. Por isso, o mais importante não era a reacção. O mais importante era conseguir que ele levasse aquele interrogatório a sério. Que ultrapassasse a atitude truculenta e evasiva. Vanja foi exibindo as fotografias uma a uma, lenta e calmamente, e Billy apercebeu-se de que ela continuava a impressioná-lo. Embora tivesse menos um ano, era como se ela fosse a sua irmã mais velha. Uma irmã mais velha que tinha nota máxima em tudo e que, ainda assim, conseguia ser porreira e não uma chata. E que defendia os seus irmãos mais novos. Ela inclinou-se para a frente.
– Nós estamos aqui para apanhar a pessoa que fez isto. E vamos apanhá-la. Por enquanto, só temos um suspeito, és tu. Por isso, se quiseres sair daqui e ir gabar-te aos teus amigos de que fugiste à polícia, é melhor mudares de atitude e começares a responder às minhas perguntas.
– Já vos disse que o vi na passada sexta-feira, não disse?
– Mas não foi isso que te perguntei. Eu perguntei-te porque é que ele pediu a transferência para outra escola.
Leonard suspirou.
– Julgo que podemos ter sido um bocado desagradáveis com ele. Não sei se terá sido por isso. Mas não fui só eu. Na escola ninguém gostava dele.
– Agora estás a deixar-me desapontada, Leonard. Os tipos corajosos não atiram a culpa para outras pessoas. Tu foste um dos principais culpados, não foste? Pelo menos foi o que nós ouvimos dizer. – Leo olhou para ela e estava prestes a responder-lhe quando Billy se intrometeu na conversa.
– Belo relógio. É um Tonino Lamborghini Pilot?
A sala ficou em silêncio. Vanja olhou para Billy com uma certa surpresa. Não por ele ter identificado o relógio no pulso de Leonard, mas por subitamente ter interrompido a conversa. Leonard mudou a posição dos seus braços cruzados, de maneira que o relógio ficasse encoberto pelo braço direito. Mas não disse nada. Não era preciso. Vanja tornou a inclinar-se para a frente.
– Se não tiveres um recibo desse relógio, estás metido em grandes sarilhos.
Leonard levantou os olhos para eles.
Registou as suas expressões graves.
Engoliu em seco.
E começou a contar-lhes. Tudo.
– Ele admite que roubou o relógio. Tinha saído na sua motorizada e viu o Roger. – Vanja fez uma cruz no mapa que estava na parede. Toda a equipa estava reunida. Ursula e Torkel ouviam atentamente Billy e Vanja, que recapitulavam os principais pontos do interrogatório a Leo.
– Diz que estava só a meter-se com ele e que começou a andar com a motorizada em círculos à volta do Roger. Então, segundo o Leonard, o Roger derrubou-o. Começaram a discutir e brigaram. O nariz do Roger ficou a sangrar. Após alguns socos, o Leonard deitou o Roger ao chão e tirou-lhe o relógio como uma espécie de castigo.
Ninguém disse nada. A única coisa que, de momento, tinham contra Leonard era o relógio. Nas declarações da testemunha e nas provas forenses não havia nada que sugerisse que o que ele dizia não era verdade. Vanja continuou.
– Mas, evidentemente, isto é o que diz o Leonard. A luta poderia facilmente ter ficado descontrolada e ele ter sacado de uma faca para apunhalar o Roger.
– Mais de vinte vezes? Numa rua quase central? Sem que ninguém visse nada? – Ursula mostrou-se justificadamente céptica.
– Não sabemos que aspecto tem aquela área. Ele pode ter entrado em pânico. Um golpe com a faca, o Roger ali deitado a gritar. O Leo compreende que está metido numa grande alhada, arrasta-o para trás de uns arbustos e continua a esfaqueá-lo. Só para o calar.
– E o coração? – Ursula continuava longe de estar convencida.
Vanja compreendia as suas dúvidas.
– Não sei. Mas o que quer que seja que tenha havido, aconteceu pouco depois das nove. O Leo confirmou as horas. Ele olhou para o relógio quando o tirou do pulso do Roger. O que significa que o Roger não esteve com a Lisa até às dez, como ela insiste.
Torkel fez um aceno de concordância.
– Muito bem, bom trabalho. Alguma coisa do local em que o corpo foi encontrado? – Voltou-se para Ursula.
– Não muito. As marcas de pneus que encontrámos são de Pirelli P7. Não são exactamente pneus vulgares, mas, ainda assim, são comuns. E, como é óbvio, não temos a certeza de que as marcas pertençam ao carro que transportou para lá o corpo.
Ursula tirou da sua pasta uma folha de papel e uma foto das marcas dos pneus e entregou-as a Billy, que foi colocar a nova informação no devido sítio do quadro.
– O Leonard Lundin tem acesso a algum carro? – perguntou Torkel enquanto Billy afixava a imagem e a folha com informações sobre os pneus Pirelli.
– Tanto quanto sabemos, não. Hoje de manhã não havia qualquer viatura estacionada à porta da casa.
– Então como é que ele levou um cadáver para Listakärr? Na motorizada?
Fez-se silêncio. Claro que não. A débil teoria sobre o modo como o homicídio poderia ter sido cometido tornou-se, de repente, ainda mais fraca. Mas teria de ser investigada antes de ser completamente posta de parte.
– A Ursula e eu vamos levar uns agentes e fazer buscas em casa dos Lundin. Billy, podes ir a Gustavsborgsgatan e verificar se existe alguma possibilidade de o homicídio ter sido cometido lá? Vanja, gostaria que tu...
– Fosse falar outra vez com a Lisa Hansson. – Vanja concluiu a frase de Torkel com uma satisfação mal disfarçada.
Clara estava à porta de casa a fumar. Cerca de meia hora antes tinham aparecido mais alguns agentes da Riksmord, com dois colegas de farda. Quando Clara perguntara se podia ir à esquadra falar com Vanja Lithner, cujo cartão tinha consigo, disseram-lhe secamente que Leonard continuaria detido enquanto verificassem a informação que ele lhes prestara e fizessem buscas na casa dela. Portanto, se não se importasse... Clara ficara no quintal, expulsa da sua própria casa, a fumar e a tremer, apesar do calor primaveril, enquanto tentava ordenar os seus pensamentos. Ou, melhor, repudiar o pensamento recorrente que a assustava mais que tudo: o de que Leonard pudesse verdadeiramente ter algo a ver com a morte de Roger. Clara sabia que eles não eram melhores amigos. Ora, vamos lá, quem é que ela tentava enganar? O Leonard tinha batido em Roger. Importunava-o. De vez em quando recorrera à violência.
Quando os rapazes andavam nos primeiros anos do liceu, Clara tinha sido chamada ao reitor em diversas ocasiões; na última vez falara-se em expulsar Leonard, mas claro que a frequência da escola era obrigatória. Haveria alguma possibilidade de Clara conseguir falar com Leonard, de resolver o problema em casa, por assim dizer? Era da maior importância que aquele assunto fosse resolvido, disseram. Os pedidos de indemnização contra as escolas que não conseguiam impedir as agressões estavam a tornar-se cada vez mais frequentes e eram cada vez mais dispendiosos. E a Escola Vikinga não tinha qualquer interesse em tornar-se parte dessas crescentes estatísticas.
Contudo, tinham ultrapassado a situação. Após o período lectivo da Primavera – quando Clara sentira que não fazia mais do que ameaçar e subornar Leonard –, os rapazes terminaram as aulas, e durante as férias de Verão ela conseguira convencer-se de que as coisas acabariam por melhorar no liceu. Seria um novo começo. Não fora. Porque eles tinham acabado por ir parar à mesma escola, o Leonard e o Roger.
A Escola Runebergs. Leonard ainda lá andava; Roger fora-se embora ao fim de pouco mais de um mês. Clara sabia que Leonard era, provavelmente, uma das razões pelas quais Roger se teria mudado para outra escola. Mas haveria mais do que isso? Clara estava zangada consigo por ter sequer permitido que tal ideia lhe viesse à cabeça. Que tipo de mãe era ela? Mas não conseguia repudiá-la inteiramente. O seu filho seria um assassino?
Clara ouviu passos a aproximarem-se no caminho de acesso à casa e voltou-se para trás. Sebastian Bergman arrastava-se pesadamente na sua direcção, transportando dois sacos de plástico da Statoil. As rugas ao redor da boca de Clara acentuaram-se.
– Estou a ver que voltaram – disse-lhe ele, fazendo com a cabeça um gesto na direcção da habitação quando chegou perto dela. – Se quiser, pode esperar em minha casa; ainda hão-de demorar um bocado.
– Agora, de repente, ficou interessado?
– Não especialmente, mas tive uma boa educação. E, afinal, somos vizinhos.
Clara fungou e olhou-o com frieza.
– Eu fico bem, obrigada.
– Tenho a certeza de que ficará, mas está a tremer, e toda a vizinhança sabe que a polícia está cá. Isso significa que é só uma questão de tempo até a imprensa aparecer também. E eles não ficarão do lado de fora da vedação do jardim. Se acha que eu sou difícil, isto não é nada comparado com eles.
Clara tornou a olhar para Sebastian. Na verdade, dois jornalistas já lhe tinham ido bater à porta. Um deles, quatro vezes. Clara não sentia qualquer desejo de os atender pessoalmente. Fez um sinal de concordância e deu alguns passos na direcção dele. Juntos, encaminharam-se para o portão.
– Sebastian?
Sebastian reconheceu imediatamente a voz e voltou-se para trás, a fim de encarar um homem que não via há muito tempo. Nos degraus à entrada da casa de Clara estava Torkel, ostentando uma expressão que, no mínimo, era de perplexidade. Rapidamente, Sebastian virou-se de novo para Clara.
– Vá andando, a porta está aberta. Pode levar-me isto? – Entregou-lhe os sacos. – E, se lhe apetecer começar a preparar o almoço, esteja à vontade.
Clara pegou nos sacos, ligeiramente surpreendida. Por instantes, pareceu que estava a pensar fazer-lhe uma pergunta, mas depois mudou de ideias e dirigiu-se para a casa de Sebastian. Sebastian olhou para Torkel, que se aproximara; a expressão do rosto deste último sugeria que ele mal conseguia acreditar nos seus olhos.
– Mas que raio estás tu a fazer aqui?
Torkel estendeu-lhe a mão e Sebastian apertou-a. Torkel estreitou-a com força. – Que bom ver-te. Já lá vai tanto tempo. O que fazes tu em Västerås?
– Moro ali. – Sebastian apontou para a habitação do lado. – É a casa da minha mãe. Faleceu. Vou vendê-la, é por isso que cá estou.
– Lamento saber disso. Acerca da tua mãe, quero eu dizer.
Sebastian encolheu os ombros. Na verdade, não era nada que se devesse lamentar, e Torkel tinha obrigação de o saber; apesar de tudo, tinham sido muito íntimos durante vários anos. Há muito tempo, de facto – doze anos, para ser exacto –, mas haviam debatido em inúmeras ocasiões os pais de Sebastian e a relação que este mantinha com eles. Torkel estava, sem dúvida, apenas a ser bem-educado. Que mais poderia ser? Tinha passado demasiado tempo para que eles simplesmente retomassem do ponto em que haviam ficado. Demasiado tempo para que pudessem sequer dizer que ainda se conheciam um ao outro. Demasiado tempo para que a conversa fluísse como um ribeiro na Primavera. Consequentemente, calaram-se por um breve instante.
– Continuo na Riksmord – disse Torkel, quebrando o silêncio ao fim de alguns segundos.
– Eu percebi. Ouvi falar do rapaz.
– Pois...
Novo silêncio. Torkel pigarreou e inclinou a cabeça na direcção da casa dos Lundin. – É melhor eu voltar para lá... – Sebastian fez um gesto de compreensão. Torkel sorriu-lhe.
– É melhor manteres-te afastado, para a Ursula não te ver.
– Continuam a trabalhar juntos?
– Ela é a melhor.
– O melhor sou eu.
Torkel olhou para o homem que, muitos anos antes, teria descrito como um amigo. Não o seu amigo mais íntimo, nem sequer um bom amigo, mas certamente um amigo. Poderia deixar passar o comentário de Sebastian sem qualquer observação, fazer-lhe um sinal de concordância, sorrir, dar-lhe uma palmadinha no ombro e voltar a entrar na casa, mas isso não seria justo. Para nenhum deles. Por isso, disse-lhe: – Tu eras o melhor. Em muitas coisas. Completamente inútil noutras.
Na verdade, Sebastian não queria responder ao seu pequeno comentário. Fê-lo por reflexo. Por instinto. Durante os quatro anos em que ele e Ursula tinham trabalhado juntos, haviam competido constantemente. Em diferentes áreas. Em diferentes tarefas. Diferentes métodos. Tudo diferente. Mas, de uma forma quase comovente, haviam estado unidos numa coisa: só um deles poderia ser o melhor da equipa. Aqueles dois eram assim. Porém, Torkel tinha razão. Sebastian fora imbatível em muitas – ou pelo menos nalgumas – áreas. Noutras fora completamente inútil. Sebastian sorriu para Torkel.
– Infelizmente, o que tenho andado a cultivar é o meu lado inútil. Fica bem.
– Tu também.
Sebastian voltou-lhe as costas e encaminhou-se para o portão. Para seu grande alívio, não houve, por parte de Torkel, qualquer «Temos de nos encontrar uma noite destas» ou um «Havemos de tomar uma cerveja». Era óbvio que ele sentia tão pouca necessidade de retomar o relacionamento como Sebastian.
Quando Sebastian se voltou para ir para sua casa, Torkel reparou que Ursula tinha saído da habitação de Clara e ficara no cimo das escadas da entrada. Vira o homem desaparecer na casa do lado. Se a expressão de Torkel fora de completa surpresa ao ver Sebastian, a de Ursula transmitia algo muito diferente.
– Aquele era o Sebastian?
Torkel disse-lhe que sim.
– Mas que raio está ele a fazer aqui?
– Aparentemente, a mãe morava aqui ao lado.
– Estou a ver. E o que faz ele hoje em dia?
– Parece que anda a cultivar o seu lado inútil.
– Então não houve qualquer alteração – disse Ursula.
Torkel sorriu para si mesmo enquanto recordava como Ursula e Sebastian costumavam discutir por causa de cada pormenor, de cada análise, de cada passo de uma investigação. Na verdade, eram muito parecidos, e, provavelmente, era por isso que não conseguiam trabalhar juntos.
Voltaram-se para tornar a entrar na casa. Ursula entregou a Torkel um saco de plástico selado. Ele aceitou-o e olhou-a com um ar interrogativo.
– O que é isto?
– Uma camisola. Encontrámo-la no cesto da roupa suja da casa de banho. Está coberta de sangue.
Torkel olhou com renovado interesse para a peça de roupa que estava dentro do saco. As coisas estavam a piorar de aspecto para Leonard Lundin.
Falar com Lisa Hansson havia demorado muito mais tempo do que Vanja esperara. Tinha ido até ao Liceu Palmlövska, à saída de Västerås. Era obviamente uma escola com aspirações. Árvores plantadas em filas muito aprumadas, muros de pedra pintados de amarelo onde não havia vestígios de graffiti, sempre classificada entre as dez melhores quando se tratava dos exames nacionais. Uma escola à qual miúdos como Leonard Lundin não podiam aspirar.
Esta era a escola de Roger, situada no centro da cidade. Era para ali que ele tinha ido quando saíra da Runebergs. Vanja teve a sensação de que poderia haver nessa mudança de escola alguma coisa que ela teria de verificar. Roger transferira-se de um ambiente para outro. Teria acontecido alguma coisa relacionada com essa alteração? As grandes mudanças podem originar conflitos. Vanja decidiu investigar Roger a fundo. Seria esse o próximo passo. Antes de mais, tinha de esclarecer aquelas horas que Lisa Hansson se recusava a preencher com tanta obstinação.
Quando Vanja conseguira finalmente descobrir em que turma estava Lisa, encontrar a sala e interromper a aula de Inglês, já tinha decorrido meia hora.
Os outros alunos começaram a cochichar, cheios de curiosidade, quando Lisa se levantou e, na opinião de Vanja, se encaminhou para esta com uma lentidão quase provocadora. Uma rapariga da fila da frente levantou a mão, mas nem se deu ao trabalho de esperar que a professora ou Vanja lhe dissessem alguma coisa antes de perguntar: – Já sabem quem foi o culpado?
Vanja abanou a cabeça.
– Não, ainda não.
– Ouvi dizer que foi um rapaz da antiga escola dele.
– Sim. O Leo Lundin – disse um rapaz com um cabelo muito curto e dois enormes brincos com brilhantes. – Da antiga escola dele – esclareceu, quando Vanja não reagiu ao nome.
Ela não ficou surpreendida. Era uma cidade relativamente pequena, e os miúdos estavam em constante contacto. Claro que tinham andado a enviar mensagens de texto e a publicar no MSN que um dos seus colegas fora levado pela polícia para ser interrogado. E em circunstâncias razoavelmente espectaculares. No entanto, Vanja não tinha qualquer intenção de fazer o que quer que fosse para confirmar os boatos. Pelo contrário.
– Andamos a falar com as eventuais testemunhas e continuamos a investigar todas as vias possíveis – disse ela, antes de deixar passar Lisa e de fechar a porta da sala de aula atrás de si.
No corredor, Lisa cruzara os braços sobre o peito, olhara com ousadia para Vanja e perguntara-lhe o que queria. Vanja explicara-lhe que precisava de confirmar algumas das coisas que Lisa lhe contara.
– Está autorizada a fazer-me perguntas sem que os meus pais estejam presentes?
Vanja sentiu uma pontada de irritação, mas fez o possível para não o demonstrar. Sorriu a Lisa e disse-lhe com a máxima firmeza que conseguiu: – Eu não estou a interrogar-te. Tu não foste acusada de nada. Quero apenas conversar.
– Mesmo assim, eu preferia que a minha mãe ou o meu pai estivessem aqui.
– Mas porquê? Isto só vai demorar uns minutos.
Lisa encolheu os ombros.
– Ainda assim, eu preferia.
Vanja fora incapaz de reprimir um suspiro de enfado, mas sabia que era melhor não prosseguir a conversa contra a vontade de Lisa. A rapariga telefonou ao pai, que evidentemente trabalhava ali perto, e, após Lisa ter recusado a oferta de Vanja para um café ou uma bebida fresca na cafetaria, tinham ido para o piso térreo esperar por ele.
Vanja aproveitara a oportunidade para telefonar a Billy e a Ursula. Billy dissera-lhe que era praticamente impossível que um assassinato tão brutal tivesse ocorrido em Gustavsborgsgatan. A proximidade do Colégio Mälardalen, de uma piscina e de um terreno desportivo significava que havia uma quantidade razoável de trânsito e de transeuntes. As áreas que não estavam edificadas eram ocupadas por parques de estacionamento e terrenos vagos. Decerto que era demasiado cedo para afastar Leo Lundin da investigação, mas teriam de arranjar um cenário diferente, mais realista. A boa notícia era que Billy detectara câmaras de vigilância naquela rua. Se tivessem sorte, os acontecimentos da noite de sexta-feira ainda estariam acessíveis algures. Ele ia agora verificar isso.
Ursula não tinha muito para reportar, a não ser que a camisola ensanguentada fora enviada para análise. Havia revistado a garagem e inspeccionado a motorizada – não existiam vestígios de sangue – e estava prestes a começar a fazer o mesmo na casa. Vanja lembrou-lhe que fosse particularmente meticulosa no quarto de Leo, mas foi informada de que não era possível Ursula ser mais meticulosa do que já era, em todas as ocasiões.
Lisa ficara sentada no chão, encostada à parede, vendo Vanja deambular por ali com o telemóvel junto ao ouvido. Lisa dava a impressão de estar bastante aborrecida, mas o seu cérebro atarefava-se a tentar descobrir o que quereria desta vez aquela agente. E como haveria ela de lhe responder. Por fim, decidiu simplesmente ater-se à sua estratégia. Se lhe pedissem pormenores, diria que não se lembrava.
Roger tinha chegado.
Trabalhos de casa.
Chá.
Televisão.
Roger tinha-se ido embora.
Um banal e ligeiramente aborrecido final de tarde de sexta-feira. A questão era se isso seria ou não suficiente.
O pai de Lisa chegou ao fim de vinte minutos. Vanja não sabia se era por o gigantesco Jesus feito de contas ainda estar fresco no seu espírito ou se era por o pai de Vanja vestir um modesto fato azul-claro e ter o cabelo muito bem penteado e inspirado no namorado da Barbie, mas algo a levou a pensar nos «intrujões da Bíblia» quando o homem extremamente agitado irrompeu a toda a brida no corredor. Apresentou-se como Ulf e, depois, passou três minutos a dizer a Vanja que estava decidido a queixar-se do facto de uma agente policial ter tentado entrevistar uma menor sem a presença dos pais ou de um tutor, ainda por cima na escola em que a sua filha andava! Mais valia pendurarem-lhe ao pescoço um letreiro a dizer «suspeito»! Faria ela alguma ideia do falatório que havia entre os adolescentes? Não poderia ter sido um pouco mais discreta?
Vanja explicou-lhe, da forma mais calma que conseguiu, que Lisa não era exactamente uma menor aos olhos da lei, que ela continuava a ser a última pessoa que vira Roger vivo – para além do assassino, acrescentou por precaução – e que tudo o que Vanja pretendia fazer era verificar certos aspectos das informações. Além disso, logo que Lisa exprimira a vontade de ter o seu pai presente, Vanja concordara e até agora não fizera uma única pergunta a Lisa. Ulf olhou para Lisa em busca de confirmação, e esta aquiesceu. Vanja também se dispôs a acompanhar Lisa no regresso à aula e a explicar que ela não era de forma alguma suspeita de qualquer envolvimento no homicídio de Roger Eriksson.
Ulf pareceu satisfeito. Acalmou-se um pouco, foram para uma sala comum, asseada e arrumada, e sentaram-se nos sofás macios.
Vanja exlicou que, no decurso da investigação, tinham ficado a saber por duas fontes independentes que Roger estava na cidade pouco depois das nove da noite de sexta-feira e não em casa de Lisa, como esta declarara. Para surpresa de Vanja, Ulf nem sequer se virou para Lisa antes de comentar a sua afirmação.
– Nesse caso, estão enganadas. As suas fontes.
– Ambas? – Vanja não conseguiu disfarçar a sua surpresa.
– Sim. Se Lisa diz que o Roger esteve com ela até às dez, então foi lá que ele esteve. A minha filha não mente. – Ulf colocou um braço protector ao redor da filha como se quisesse reforçar a sua afirmação.
– Mas pode ter-se enganado a respeito das horas; essas coisas acontecem – aventou Vanja, voltando a sua atenção para Lisa, que estava sentada em silêncio ao lado do pai.
– Ela diz que o Roger se foi embora quando começou o noticiário do Canal 4. O noticiário começa às dez da noite todos os dias, a menos que eu esteja mal informado.
Vanja desistiu e optou por falar directamente com Lisa.
– Há alguma possibilidade de tu te teres enganado a respeito das horas a que o Roger se foi embora? É importante obtermos a maior exactidão possível em tudo para podermos encontrar a pessoa que o matou.
Lisa encostou-se um pouco mais ao braço do pai e abanou a cabeça.
– Pronto, então está esclarecido. Se não precisa de mais nada, eu tenho de voltar para o trabalho – disse Ulf.
Vanja não referiu que tinha esperado meia hora pela oportunidade de colocar a sua pergunta e que também tinha de cumprir o seu trabalho. Provavelmente, mais importante do que o dele. Fez uma última tentativa.
– Ambas as pessoas com quem falámos têm a certeza das horas e são completamente independentes uma da outra.
Ulf fitou-a e, quando falou, a sua voz assumiu um tom mais áspero. Vanja sentiu que ele era um homem que não estava habituado a ser contrariado.
– A minha filha também tem a certeza. Isso significa que é a palavra de uma pessoa contra a de outra, não acha?
Vanja não conseguiu ir mais além. Lisa não disse uma palavra, e Ulf deixou claro a Vanja que tencionava estar presente em qualquer interrogatório futuro. Vanja nem se deu ao trabalho de lhe dizer que o facto de estar presente ou não seria decidido por ela e pelos seus colegas, não por ele. Aguardou em silêncio enquanto Ulf se levantava, abraçava a filha e depois lhe dava um beijo no rosto, apertava a mão a Vanja e fazia um breve aceno de cabeça antes de sair da sala e do edifício.
Vanja ficou a olhá-lo enquanto ele se afastava. Era bom ter um progenitor que estivesse cem por cento ao lado da filha. No seu trabalho, Vanja encontrava com demasiada frequência o oposto. Ou antes, famílias a que os adolescentes pareciam ser mais ou menos alheios, cujos pais não tinham qualquer ideia do que os filhos andavam a fazer nem com quem. Por isso, um pai que saía a correr do seu emprego, punha o braço à volta da filha, confiava nela e a defendia deveria ser uma mudança bem-vinda no mundo de Vanja. Deveria ser. Porque ela não conseguia libertar-se da sensação de que Ulf estava a defender a imagem da família perfeita, com a sua filha bem-educada que nunca dizia mentiras, em vez de defender a Lisa. Tinha a impressão de que evitar a todo o custo o falatório e a especulação era mais importante, para ele, do que alcançar a verdade sobre o que acontecera naquela noite de sexta-feira. Vanja voltou-se para Lisa, que estava a roer a unha do dedo anelar.
– Eu acompanho-te até à sala de aula.
– Não é preciso.
– Eu sei, mas de qualquer modo vou contigo.
Lisa encolheu os ombros. Caminharam em silêncio passando pelas filas de cacifos, e, junto à porta da cafetaria, viraram à direita e subiram a ampla escadaria de pedra até ao primeiro piso. Lisa mantivera-se de cabeça baixa, e a sua franja impedia que Vanja lhe visse a expressão do rosto.
– Que aula vais ter agora?
– Espanhol.
– Qué hay en el bolso? – Lisa levantou os olhos para Vanja, sem compreender. – Quer dizer: «O que trazes na tua bolsa?»
– Eu sei.
– Tive aulas de Espanhol e essa é praticamente a única coisa de que me consigo lembrar.
– Pois. – Vanja calou-se. Com aquele breve «Pois», Lisa tornara claro que não se interessava pelos patéticos conhecimentos de espanhol de Vanja. Quando chegaram à sala de aula de Lisa, esta abrandou o passo e estendeu a mão para a porta. Vanja pousou uma mão no braço dela. Lisa ficou hirta e, mais uma vez, levantou o olhar para Vanja.
– Eu sei que tu estás a mentir – disse Vanja em voz baixa enquanto fitava a rapariga nos olhos. Lisa fitou-a, com o rosto completamente inexpressivo. – Não sei porquê, mas hei-de descobrir. Seja de que maneira for.
Vanja calou-se e esperou por uma resposta da parte de Lisa. Nada.
– Portanto, agora que tu sabes que eu sei, há alguma coisa que me queiras dizer?
Lisa abanou a cabeça.
– Que tipo de coisa?
– A verdade, por exemplo.
– Eu agora tenho de ir para a aula de Espanhol. – Lisa baixou os olhos para a mão de Vanja, que continuava pousada no seu braço. Vanja retirou-a.
– Nesse caso, sem dúvida que voltaremos a ver-nos.
Vanja avançou pelo corredor, e Lisa ficou a observá-la até ela desaparecer pelas portas de vidro, ao fundo. Lentamente, Lisa soltou o puxador da porta e afastou-se alguns passos enquanto tirava o telemóvel do bolso. Marcou rapidamente um número. Não guardava na sua lista de contactos o nome ou o número da pessoa a quem estava a ligar e apagava-o sempre da lista de chamadas efectuadas. Nunca sabia se alguém iria espiolhar o seu telemóvel. Ao fim de alguns toques, a pessoa atendeu.
– Sou eu. – Lisa tornou a olhar para o corredor. Completamente vazio. – A polícia esteve agora aqui.
Lisa revirou os olhos em resposta a uma pergunta da pessoa que estava do outro lado.
– Não, claro que eu não disse nada, mas eles vão descobrir. Uma polícia já falou comigo por duas vezes. E há-de voltar, tenho a certeza.
Lisa, que conseguira mostrar-se desinteressada ao longo de toda a conversa com Vanja, parecia agora ansiosa. Andava a esconder aquela situação há muito tempo; guardara a verdade num pequeno canto lá ao fundo e enterrara-a. Começava agora a perceber que havia muitos poderes decididos a arrebatar-lha, e começavam a faltar-lhe as forças. A pessoa do outro lado do telefone tentou dar-lhe coragem. Animá-la. Deu-lhe algumas indicações sobre o que deveria dizer. Ela concordou. Sentiu-se um pouco melhor. Provavelmente, tudo acabaria por correr bem. Terminou rapidamente a chamada quando ouviu passos no corredor atrás de si, puxou para trás uma madeixa da franja que se lhe havia prendido nas pestanas, suprimiu a ansiedade e foi para a aula de Espanhol. Mostrando-se despreocupada.
Lena Eriksson tinha passado a manhã na mesma poltrona do dia anterior. Depois começara a deambular pelo apartamento. Fumando cigarros uns atrás dos outros. Uma ténue bruma azulada de nicotina e alcatrão enchia o pequeno apartamento de quatro assoalhadas. Era como se não conseguisse permanecer no mesmo sítio durante muito tempo. Havia ficado sentada na cama ainda desfeita de Roger, mas não suportava olhar para as calças dele, as pilhas de livros escolares, os seus videojogos antigos, as persistentes evidências de que morara naquele quarto um rapaz de dezasseis anos. Tentara encontrar paz na casa de banho, na cozinha, no seu próprio quarto. Mas todos os locais a faziam lembrar-se dele com demasiada insistência, por isso mudava-se para outro, e para outro. Andava às voltas, como uma mãe enlutada.
Mas ainda havia outra coisa, a outra coisa que a fazia andar às voltas com tanto desassossego. A voz.
A ténue voz no fundo da sua alma.
A culpa seria dela? A culpa seria dela? Gostava de nunca ter feito aqueles estúpidos telefonemas. Mas estava zangada. Queria retaliar. E tudo tinha começado assim. Com o dinheiro. Os telefonemas, o dinheiro, os telefonemas. Sempre às voltas com aquilo, tal como nas suas deambulações pelo interior do apartamento. Mas poderia isso ter conduzido a isto? Não sabia; realmente não sabia. E não tinha qualquer intenção de descobrir. Mas precisava de saber. Precisava de se mentalizar de que acabara de perder o seu filho, uma pessoa inocente que sofrera a coisa mais terrível de todas. Lena acendeu outro cigarro. Hoje teriam ido às compras. Tal como habitualmente, teriam discutido por causa do dinheiro, das roupas, das atitudes, do respeito – todas aquelas palavras de que ela sabia que Roger estava tão farto. Lena começou a chorar. Tinha tantas saudades dele. Caiu de joelhos e deixou que a mágoa a dominasse. De certa maneira era uma catarse, mas por trás das lágrimas ela conseguiu ouvir a voz outra vez.
E se foste tu?
– Uma pessoa sente que é uma mãe muito má. Sente que faz tudo o que é capaz, mas que mesmo assim eles nos escapam.
Clara esvaziou a sua chávena de café e pousou-a sobre a mesa. Olhou para Sebastian, que estava sentado à sua frente. Ele fez com a cabeça um gesto de assentimento, embora não estivesse realmente a ouvi-la. Desde que tinham ali entrado, Clara não falara de mais nada senão da fraca relação que tinha com o seu filho, Leonard. Era compreensível, tendo em conta os acontecimentos da manhã, mas não tinha particular interesse para alguém que não fosse a pessoa directamente envolvida. Sebastian estava a considerar se haveria de lhe indicar que o uso da expressão «uma pessoa» em vez de «eu» quando ela se referia a si própria era um mecanismo verbal de defesa, uma maneira de tornar o seu fracasso mais universal, menos pessoal, mantendo assim à distância parte da dor. Mas percebeu que esse comentário seria entendido como desdenhoso, e se limitaria a reforçar a visão negativa que ela tinha dele. Não queria que isso acontecesse.
Pelo menos por agora.
Não enquanto não tivesse decidido se deveria tentar levá-la para a cama. Assim, ficou-se pela abordagem suave. Calmo e composto. Compreensivo, sem fazer juízos. Olhou para os seios dela; pareciam enormemente convidativos, dentro daquele pulôver castanho-amarelado.
– Com os filhos, é assim. Umas vezes resulta, outras não. Os laços de parentesco não são garantia de que um relacionamento funcione.
Por dentro, Sebastian sentia-se agitado. Boa, aquilo tinha sido mesmo incisivo! Sete anos a estudar psicologia, vinte anos a trabalhar na profissão, e eram aquelas as suas palavras de conforto para a mulher cuja vida tinha sido completamente virada do avesso em poucas horas.
– Umas vezes resulta, outras não.
Inacreditavelmente, Clara acenava com a cabeça em sinal de concordância, aparentemente satisfeita com a néscia análise dele. Até lhe lançara um sorriso de agradecimento. Havia decerto a possibilidade de sexo se ele jogasse bem as suas cartas. Levantou-se e começou a tirar da mesa os copos e os pratos. Clara já tinha começado a almoçar quando ele regressara. Um resto de batatas e ovos fritos. Ela até tinha encontrado no frigorífico um boião de beterraba em conserva que ainda estava comestível. E duas cervejas sem álcool. Sebastian comera com apetite, embora Clara tivesse passado o tempo a debicar a comida. O nó no seu estômago parecia crescer a cada minuto e sentia-se enjoada. Contudo, era bom estar sentada a uma mesa posta como devia ser. Ter alguém com quem falar.
Com quem passar as coisas em revista.
Alguém que ouvia. Que era conhecedor.
Que lhe transmitia calma. Afinal, ele era muito simpático, embora um pouco reservado.
Conversava com Sebastian enquanto este punha a louça na máquina de lavar.
– Não vinha visitá-los com muita frequência, pois não? Nós mudámo-nos para cá em 1999, e creio que nunca o tinha visto por aqui. – Sebastian não respondeu imediatamente. Se Clara tivesse falado a seu respeito com Esther, como lhe indicara pouco antes no quintal, então já conheceria a frequência das suas visitas a casa dos pais. Endireitou-se.
– Nunca cá vim.
– Porque não?
Sebastian deu por si pensando na explicação que a mãe teria dado para a sua completa ausência. A questão era saber se ela admitia ou não, mesmo para si própria, o verdadeiro motivo para aquele contacto mínimo entre eles.
– Nós não gostávamos uns dos outros.
– Porque não?
– Eles eram uns idiotas. Infelizmente.
Clara olhou para ele e decidiu calar-se. Decerto que os pais dele não lhe pareciam ser o casal mais divertido do mundo, mas achava que a mãe começara a mostrar-se um pouco mais animada após o marido ter morrido, alguns anos antes. Tornara-se uma pessoa com quem era mais fácil conversar. Até tinham tomado café juntas algumas vezes, e Clara ficara verdadeiramente transtornada no dia em que percebera que Esther não teria muito mais tempo de vida.
A campainha da porta tocou e, no instante seguinte, ouviu o som da porta a abrir-se. Torkel bradou uma saudação e entrou. Voltou-se para Clara.
– Nós já acabámos, portanto pode ir para casa. Peço desculpa se lhe causámos algum transtorno.
Era impossível detectar remorso verdadeiro nas palavras de Torkel. Correcto como sempre. Sebastian abanou a cabeça quase imperceptivelmente. «Transtorno.» Aquela palavra específica deveria estar incluída nos regulamentos ou nalgum manual sobre como um agente policial se deveria comportar em relação aos membros do público, por volta de 1950. Era evidente que ele tinha causado transtorno a Clara. Levara o filho dela para interrogatório e virara-lhe a casa do avesso. Clara, porém, não pareceu reagir. Levantou-se e voltou-se para Sebastian.
– Obrigada pelo almoço. E pela companhia. – Depois saiu da cozinha sem sequer olhar para Torkel.
Quando a porta da frente se fechou atrás de Clara, Torkel deu um passo para o interior da cozinha. Sebastian deixou-se ficar onde estava, encostado ao escorredor da louça.
– Vejo que não mudaste nem um pouco. Para as senhoras, continuas a ser o cavaleiro da armadura reluzente.
– Ela estava lá fora, a tremer.
– Se tivesse sido o pai do Leo Lundin, também estarias ali fora? Posso?
Torkel fez um gesto na direcção da máquina de café, que continuava ligada, com restos dentro do recipiente.
– Claro.
– As chávenas?
Sebastian apontou para um dos armários da cozinha e Torkel pegou numa caneca Iittala que tinha riscas vermelhas.
– É bom ver-te de novo. Passou muito tempo.
Sebastian receou que isto pudesse ser um intróito que terminaria com Torkel a sugerir-lhe um encontro, ou que fossem juntos tomar uma cerveja. Manteve a serenidade.
– Bom, de facto, passou muito tempo.
– Hoje em dia, o que é que tu fazes?
Torkel despejou o resto do café para a sua caneca e desligou a máquina.
– Vivo de rendimentos e do seguro de vida da minha mulher. E, como agora morreu a minha mãe, vou vender esta casa e viver à conta disso durante uns tempos. Mas, para responder à tua pergunta: nada. Hoje em dia, não faço nada.
Torkel imobilizou-se. Demasiada informação de uma vez só, e não o habitual «Oh, sabes como é, vai-se andando» que ele provavelmente esperava, pensou Sebastian. Mas a franqueza total combinada com as mortes na família poderiam levar Torkel a aproveitar a oportunidade para «pôr a conversa em dia». Sebastian mirou o seu antigo colega e viu nos olhos dele uma genuína tristeza. A empatia sempre tinha sido uma das qualidades mais apuradas de Torkel. Formal, mas compreensivo. Apesar de tudo o que vira no decurso do seu trabalho.
– O seguro de vida da tua mulher... – Torkel sorveu o seu café. – Eu nem sequer sabia que te tinhas casado.
– Sim, pois foi, casei e enviuvei. Em doze anos pode acontecer muita coisa.
– Lamento muito.
– Obrigado. – Instalou-se o silêncio. Torkel sorveu o seu café, fingindo que estava mais quente do que, na verdade, estava, para poder evitar reencetar a desajeitada conversa. Sebastian tomou a iniciativa e salvou-o. Torkel estava obviamente a procurar contacto e a sua companhia. Por algum motivo. Sebastian podia dispensar-lhe mais cinco minutos de interesse fingido ao fim de doze anos.
– Então e tu? Como vai isso?
– Divorciei-me outra vez. Já há mais de três anos.
– Que pena.
– Pois. Fora isso, está tudo bem, acho eu. Continuo por cá. Na Riksmord.
– Sim, já me tinhas dito.
– Pois...
Novo silêncio.
Mais um sorvo de café.
Mínimo denominador comum. O emprego.
– Então encontraste alguma coisa em casa dos Lundin?
– Mesmo que tivesse encontrado, não poderia dizer-te.
– Pois não, claro que não. Na verdade, nem estou interessado. Estava só a fazer conversa.
Teria detectado um laivo de desapontamento no rosto de Torkel? Fosse o que fosse, só durou um breve segundo, antes de Torkel olhar para o relógio e se endireitar.
– Está na hora de me pôr a mexer. – Pousou a caneca meio cheia em cima do escorredor. – Obrigado pelo café.
Sebastian acompanhou-o até ao vestíbulo. Encostou-se à parede com os braços cruzados enquanto via Torkel pegar numa calçadeira que estava pendurada na chapeleira e calçar os sapatos, que descalçara ao entrar. De repente, Sebastian viu um homem grisalho e envelhecido, um velho amigo que só lhe queria bem e com o qual Sebastian se comportara com uma brusquidão bastante desdenhosa.
– Eu podia ter enviado um postal...
Torkel deixou a meio a tarefa de calçar os sapatos e olhou para Sebastian com uma expressão quase intrigada, como se não tivesse ouvido bem.
– O quê?
– Se estás a pensar que é tua a culpa por ter passado tanto tempo sem termos mantido o contacto. Estou a dizer que eu podia tê-lo feito se julgasse que isso era importante.
Torkel demorou alguns segundos a absorver as palavras de Sebastian enquanto arrumava a calçadeira no lugar.
– Não penso que a culpa tenha sido minha.
– Óptimo.
– Pelo menos que tenha sido só minha.
– Então está bem.
Torkel hesitou por um momento, com a sua mão pousada na maçaneta da porta. Deveria dizer-lhe alguma coisa? Deveria explicar a Sebastian que quando dizemos a uma pessoa que achamos que a relação que tínhamos com ela não era importante, que não valia a pena mantê-la, isso não é uma espécie de consolo, mesmo que fosse essa a intenção? Muito pelo contrário, na verdade. Deveria dizer-lho? Rejeitou a ideia. Não era de surpreender. Tinham gracejado muitas vezes acerca do facto de Sebastian, sendo psicólogo, não entender verdadeiramente os sentimentos das outras pessoas. Sebastian sempre respondera com a asserção de que a compreensão dos sentimentos estava sobreavaliada. O que interessava eram os motivos, não as emoções – essas eram apenas produtos derivados, costumava ele dizer. Torkel sorriu para si mesmo ao perceber que provavelmente agora era apenas um produto derivado na memória de Sebastian.
– Vemo-nos depois – disse Torkel, abrindo a porta.
– Talvez.
A porta fechou-se atrás de Torkel, e este ouviu a chave girar na fechadura. Pôs-se a caminho, na esperança de que Ursula tivesse ficado à sua espera no carro.
Torkel ficou à porta da esquadra enquanto Ursula foi estacionar o carro. Não tinham falado acerca de Sebastian. Torkel fizera uma tentativa, mas Ursula esclarecera muito bem os seus sentimentos, e durante o resto da viagem discutiram o caso. Já estava pronta uma análise preliminar da camisola ensanguentada, e Ursula descobrira através do seu telemóvel que o sangue viera de uma única pessoa. Roger Eriksson. Infelizmente, a quantidade de sangue adequava-se mais à explicação que Leo dera, de que fora ali parar durante a luta, do que à teoria de que pudesse resultar de um esfaqueamento violento.
Além disso, na última ronda de interrogatórios, a truculência do rapaz fora substituída por choros e soluços, e Torkel achava cada vez mais difícil imaginar que a figura patética que estava à sua frente pudesse ser capaz de algo tão pensado e tão bem planeado como ir pôr o corpo numa lagoa. Usando um carro que não tinha. Não, era demasiado fraco. Apesar de terem descoberto aquela camisola em casa de Leo, isso simplesmente não era realista.
Não estavam, porém, prontos para largar Leo. Tinham-se cometido erros suficientes nesta investigação. Mantê-lo-iam sob custódia durante a noite, mas, se não encontrassem mais nada, seria difícil convencer o procurador a mantê-lo preso. Torkel e Ursula decidiram reunir toda a equipa para verem se entre eles conseguiam descobrir uma maneira de avançar.
Foi com essa ideia no espírito que Torkel empurrou a porta da entrada na esquadra da polícia, mas a mulher que estava na recepção fez-lhe um sinal.
– Tem uma visita – disse-lhe ela, apontando para a zona de espera perto da janela. Estava lá sentada uma mulher com excesso de peso e malvestida que se levantou quando viu a recepcionista apontar para si.
– Quem é ela? – perguntou Torkel em voz baixa, para não ser apanhado completamente desprevenido.
– Lena Eriksson. A mãe do Roger Eriksson.
A mãe, isso não é bom, foi a única coisa que Torkel teve tempo de pensar antes que ela lhe desse uma palmadinha no ombro.
– É você que chefia isto? Que anda a descobrir quem assassinou o meu filho? – Torkel virou-se para ela.
– Sim. Torkel Höglund. As minhas condolências pela sua perda.
Lena Eriksson fez-lhe um simples aceno com a cabeça.
– Então foi o Leo Lundin que o matou? – Torkel enfrentou o olhar da mulher quando ela o fitou com uma expressão desafiadora. Ela queria saber. Claro que queria saber. Saber se o assassino tinha sido identificado, apanhado e condenado significava muito no processo do luto. Infelizmente, Torkel não lhe podia dar a resposta que ela queria ouvir.
– Lamento, não posso discutir pormenores das investigações.
– Mas não o prenderam já?
– Como lhe disse, não posso discutir esse assunto consigo.
Lena nem sequer pareceu ouvi-lo. Deu mais um passo e aproximou-se de Torkel. Aproximou-se demasiado. Ele resistiu ao impulso de recuar.
– Andava sempre a meter-se com o Roger. Sempre. Foi por causa dele que o Roger pediu a transferência para aquela escola emproada.
Tinha sido mesmo por causa dele. Do Leo Lundin. Ou Leonard ou lá como se chamava. Lena não sabia há quanto tempo durava aquilo. A violência sobre ele. Tinha começado no início da escola secundária, isso ela sabia, mas ao princípio o Roger não lhe contava nada. Não lhe contara nada sobre os nomes que lhe chamavam nem sobre os empurrões no corredor, os livros rasgados e o facto de lhe terem arrombado o cacifo. Arranjava desculpas sempre que chegava a casa, depois das aulas, sem a camisola ou com os sapatos todos encharcados; não lhe dizia que lhe tinham rasgado a camisola nem que encontrara os sapatos enfiados na retrete depois da ginástica. Inventava explicações quando lhe desaparecia o dinheiro e outras coisas. Mas Lena tinha as suas suspeitas, e finalmente Roger havia admitido uma parte delas.
Mas não fazia mal.
Tinha tudo sob controlo.
Ele sabia cuidar de si. Se ela se envolvesse, as coisas só poderiam piorar. Mas a seguir começara a violência. A pancada. As nódoas negras. O lábio rachado e o olho negro. Os pontapés na cabeça. Lena entrara em contacto com a escola. Tivera uma reunião com Leo e a mãe dele e, após a reunião, que durara quase uma hora no gabinete do director, percebera imediatamente que não obteria qualquer auxílio. Não havia dúvidas sobre quem mandava em casa dos Lundin.
Lena sabia que, de um ponto de vista académico, ela não era das pessoas mais argutas, mas entendia o poder. Era boa a identificar relações de poder, a ver estruturas. O chefe não era necessariamente a pessoa que tomava as decisões. O progenitor nem sempre era aquele que detinha a autoridade. O director da escola poderia não ser o líder do seu pessoal. Para Lena era fácil dizer quem detinha realmente o poder, como era usado e como se deveria ela comportar a fim de obter o máximo possível de vantagens. Ou de evitar as desvantagens, pelo menos. Algumas pessoas, provavelmente, consideravam-na intriguista; algumas diriam que ela mudava de acordo com a direcção em que soprava o vento e outras decerto pensavam que era apenas uma bajuladora. No entanto, era assim que se sobrevivia quando se passava a vida inteira rodeada pelo poder e não se detinha nenhum.
Porém, isso não é verdade, disse dentro da sua cabeça a vozinha que a acompanhara durante todo o dia. Tu tinhas poder.
Lena mandou a vozinha embora; não queria ouvi-la. Queria ouvir o que fizera Leo. Fora ele! Sabia-o. Tinha de ser verdade. Só precisava que aquele homem bem vestido que estava à sua frente compreendesse isso.
– Tenho a certeza de que foi ele. Já antes tinha batido no Roger. Deu-lhe uma sova. Nunca nos queixámos à polícia, mas pode ir confirmar junto da escola. Foi ele. Eu sei que foi ele.
Torkel entendia a sua obstinação, a sua convicção. Estava a ver o que já vira muitas vezes antes. O desejo, não apenas de uma solução, mas de uma compreensão daquilo que sucedera. A pessoa que andava a importunar e a atormentar o seu filho passara das marcas. Isso era compreensível. Fazia sentido. Tornaria a realidade um pouco mais real de novo. Também sabia que não avançariam muito com aquela conversa. Pousou uma mão no braço de Lena e conduziu-a devagar e quase imperceptivelmente em direcção à porta.
– Teremos de ver onde nos conduzirá a investigação. Mantê-la-ei informada sobre todos os desenvolvimentos.
Lena fez um gesto de concordância e começou a dirigir-se para as portas de vidro ao seu próprio ritmo. Mas depois parou.
– Mais uma coisa.
Torkel aproximou-se dela.
– Sim?
– Os jornais continuam a telefonar-me.
Torkel suspirou. Pois claro que lhe telefonavam. Na hora mais sombria. Quando ela estava mais vulnerável. Não interessava quantas vezes a imprensa prometia pôr a casa em ordem depois de publicar entrevistas com pessoas que estavam obviamente desequilibradas, que não estavam inteiramente cientes daquilo em que se metiam. Pessoas em estado de choque e numa grande aflição.
Era como uma lei da natureza.
Um jovem é assassinado.
Os jornais telefonam.
– Pela minha experiência, a maioria das pessoas que falam com a imprensa numa situação como a sua acabam por se arrepender mais tarde – disse Torkel honestamente. – Não atenda o telefone, ou mande-os falar connosco.
– Mas eles querem uma entrevista exclusiva e estão dispostos a pagar. Estava só a pensar se saberia quanto hei-de pedir...
Torkel olhou-a com uma expressão que Lena interpretou como significando que ele não estava a entender. E, de facto, não estava, mas não da maneira que ela imaginava.
– Quero dizer, já esteve envolvido nestas coisas antes. Quanto é que eu posso pedir?
– Não sei.
– Eu nunca lidei com a imprensa, por isso de quanto estaremos a falar? Mil? Cinco mil? Quinze mil?
– Realmente, não lhe sei dizer. O meu conselho é que não fale com eles.
O olhar de Lena disse-lhe que não era isso que tencionava fazer.
– Ainda não falei. Mas agora eles querem pagar.
Torkel contemplou-a. Provavelmente, ela precisava do dinheiro. Não queria ouvir falar de escrúpulos morais nem das suas considerações baseadas na experiência. Queria um bilhete premiado. Teria ele realmente o direito de comentar? Quanto tempo passara desde que precisara mesmo de dinheiro? Alguma vez teria estado naquela situação?
– Faça o que quiser. Mas tenha cuidado, só isso. – Lena aquiesceu e, para sua grande surpresa, Torkel ouviu-se a dizer-lhe: – Atribua um preço alto a si própria.
Lena agradeceu-lhe com um sorriso, depois virou-lhe as costas e foi-se embora. Torkel ficou a olhá-la durante alguns segundos enquanto ela descia a rua sob a luz do Sol do final da Primavera. Depois esqueceu aquela visita e voltou-se para trás, pronto a regressar ao seu trabalho e aos seus colegas.
Mas as suas provações estavam longe de terminar.
Haraldsson vinha ao seu encontro a coxear. Pela expressão séria que trazia no rosto, Torkel concluiu que Haraldsson queria conversar. Sobre o assunto que Torkel adiara tanto quanto possível. O assunto que Vanja já por três vezes lhe pedira que resolvesse.
CAPÍTULO NOVE
– QUANDO ALGUÉM diz que trabalhamos em colaboração uns com os outros, o que achas tu que isso significa?
Haraldsson estava deitado de costas no seu lado da cama de casal, com as mãos entrelaçadas atrás da cabeça, a olhar para o tecto. Ao seu lado estava Jenny, com duas almofadas por baixo do traseiro e as solas dos pés firmemente apoiadas no colchão. De tempos a tempos ela empurrava a parte inferior do abdómen na direcção do tecto para o qual o seu marido olhava vagamente. Eram dez e meia.
Tinham feito amor.
Ou fornicado.
Ou nem sequer isso, se Haraldsson fosse completamente honesto. Vertera de forma diligente o seu sémen dentro da sua mulher, embora os pensamentos dele estivessem longe.
No emprego.
Na reunião com Torkel, quando Haraldsson lhe contara que Hanser – contrariando o desejo especificamente manifestado por Torkel – tentara retirá-lo da investigação.
– Julgo que significa que vão trabalhar juntos – respondeu Jenny, levantando mais uma vez as ancas a fim de facilitar a descida do sémen até ao seu útero.
– Bom, sim, era isso que se pensaria, não era? Na minha opinião, se se dissesse a um colega que ele ia trabalhar em colaboração com outro, isso significava que iriam trabalhar em conjunto. Na mesma coisa. Para o mesmo objectivo. Não era?
– Hum.
Na verdade, Jenny só o ouvia parcialmente. A situação não era propriamente desconhecida. Desde que Haraldsson tinha uma nova chefe, o seu tema de conversa principal era o emprego, e quando ele falava do emprego apenas pretendia dar largas aos seus queixumes. O facto de o alvo da sua irritação ser agora a Riksmord em vez de Kerstin Hanser não fazia na verdade grande diferença.
Novas palavras, a mesma cantiga.
– Sabes o que é que o Torkel Höglund quer dizer com trabalharmos em colaboração um com o outro? Sabes?
– Sim, tu já me disseste.
– Quer dizer que não trabalhamos juntos! Quando eu o obrigo a dizer como é que ele vê a nossa colaboração, acabo por ficar a saber que não vamos trabalhar juntos! Isso é um bocado estranho, não te parece?
– Não faz sentido nenhum.
Jenny reciclou as palavras dele ao jantar. Percebera que essa era uma boa maneira de parecer estar ao corrente do assunto, mesmo que não estivesse. Não que ela se desinteressasse pelo emprego do marido. De modo nenhum. Adorava ouvir falar de tudo aquilo, desde os falsários incompetentes aos pormenores do assalto ao veículo blindado no Verão anterior. Mas, quando Hanser chegara, as historietas do trabalho policial de Haraldsson tinham sido substituídas por demoradas diatribes sobre a injustiça de tudo aquilo.
Amargura.
Lamentações.
Ele precisava de pensar noutra coisa qualquer.
– Mas sabes de quem é que tu podias chegar muito, muito perto? – Jenny virou-se para ele e fez deslizar a mão por baixo dos lençóis, em direcção ao seu pénis flácido. Haraldsson voltou-se para ela com a expressão de alguém que obturou três dentes e acabou de descobrir a existência de uma cavidade num quarto.
– Outra vez?
– Estou na ovulação. – A mão encontrou o seu alvo e agarrou-o. Apertou-o. Com ternura, mas exigente.
– Outra vez?
– Acho que sim. Hoje de manhã a minha temperatura tinha subido meio grau. Mais vale prevenir.
Para sua surpresa, Haraldsson começou a sentir-se excitado de novo. Jenny passou para o lado da cama onde ele estava e deitou-se de costas para ele.
– Faz por trás, assim consegues chegar mais fundo.
Haraldsson colocou-se na posição indicada e penetrou com facilidade. Jenny virou-se um pouco para ele.
– Amanhã tenho de me levantar cedo, por isso não demores a noite toda. – Afagou o rosto de Haraldsson e virou-lhe as costas.
E, enquanto agarrava as ancas da mulher, Thomas Haraldsson deixou que os seus pensamentos deambulassem.
Iria mostrar-lhes.
Mostrar a todos eles.
De uma vez por todas.
Prometeu a si mesmo que haveria de resolver o homicídio de Roger Eriksson.
Enquanto Haraldsson tentava engravidar a sua mulher sem lhe prejudicar o sono nocturno, o homem que não era um assassino estava sentado, de robe, a dois ou três quilómetros de distância, numa área residencial agora apenas esporadicamente iluminada, para se manter ao corrente da investigação. Através da Internet. Encontrava-se às escuras, somente iluminado pela luz fria do ecrã, naquilo que ele referia orgulhosamente como sendo o seu escritório.
O jornal local fazia um grande espalhafato com a morte – ele não conseguia chamar-lhe «assassinato» –, embora nesta fase não actualizassem a história com tanta frequência. Naquele dia, o foco da reportagem tinha sido «uma escola em choque», com quatro páginas sobre a situação no Liceu Palmlövska. Aparentemente, toda a gente tivera a oportunidade de exprimir a sua opinião, desde os funcionários da cantina aos alunos e professores. Bem podiam ter ficado de boca calada, concluiu o homem que não era um assassino, enquanto lia todas aquelas frases banais, todas aquelas citações repletas de lugares-comuns. Era como se toda a gente possuísse uma opinião, mas ninguém tivesse nada para dizer. O jornal local também conseguia informar os seus leitores de que o procurador decidira deter um rapaz com a mesma idade da vítima, para averiguações.
Os jornais da tarde traziam mais. Sabiam mais. Davam-lhe maior destaque. O Aftonbladet sabia que, em tempos, esse rapaz andara a bater na vítima e a aterrorizá-la e fora, evidentemente, a causa directa da transferência de Roger Eriksson para uma nova escola. Um homem que tinha um grande retrato ao lado do seu nome tornava ainda mais enternecedora aquela história já trágica, escrevendo sobre o jovem perseguido que escapara aos seus algozes e que recuperara e prosseguira a sua vida, fizera novas amizades numa nova escola e começara a encarar o seu futuro com optimismo quando fora atingido pela violência sem sentido. Ninguém ficava com os olhos secos.
O homem que não era um assassino leu aquele artigo emotivo e tornou a pensar. Desejaria ele que aquilo não tivesse acontecido? Certamente. Mas não valia a pena pensar dessa maneira. Acontecera. Não podia ser desfeito. Sentia algum remorso? Na verdade, não. Para ele, o remorso significava que uma pessoa agiria de maneira diferente se fosse novamente confrontada com a mesma situação.
E ele voltaria a fazer o mesmo.
Não podia ser de outro modo.
Havia demasiado em jogo.
Mudou para a edição digital do Expressen. Na secção «Última Hora» havia um curto texto intitulado PROVAS CONTRA O SUSPEITO DE HOMICÍDIO EM VÄSTERÅS SÃO ESCASSAS. Isso não era bom. Se a polícia soltasse o jovem, começariam a procurar de novo. Recostou-se na cadeira da sua secretária. Fazia sempre isso quando precisava de pensar.
Pensou no blusão.
No blusão verde da marca Diesel que estava escondido dentro de uma gaveta atrás de si. O blusão ensanguentado de Roger. E se ele fosse encontrado em casa do jovem que a polícia prendera?
À primeira vista poderia parecer um pensamento e um acto egoísta. Colocar uma prova, a fim de fazer outro ser humano parecer culpado. Uma tentativa imoral e interesseira de evitar as consequências dos seus actos.
Mas seria realmente esse o caso?
O homem que não era um assassino podia ajudar os parentes e os amigos de Roger. Eles deixariam de matutar em quem tirara a vida ao adolescente e dedicariam toda a sua atenção ao processo de resolução do luto. Podia eliminar o ponto de interrogação. Ajudar toda a gente a seguir em frente. Isso valia muito. Além de que também melhoraria as estatísticas da polícia de Västerås. Quanto mais pensava nisso, mais lhe parecia um acto inteiramente altruísta. Uma boa acção, na verdade.
Não precisou de procurar muito na Internet para descobrir quem fora detido pela polícia. Leo Lundin. O nome dele andava a circular em diversos chats, em fóruns e em blogues. Realmente, a Internet era fantástica.
Não tardou a obter também o endereço.
Agora podia realmente ajudar.
Sebastian olhou para o relógio – quantas vezes já o fizera? Não sabia. Eram 11h11. A última vez tinha sido às 11h08. Seria possível que o tempo passasse tão devagar? Sentia a impaciência correr-lhe nas veias. Não queria estar naquela cidade, naquela casa. O que haveria de fazer? Sentar-se numa das poltronas, ler um livro e sentir-se à vontade? Impossível. Nem quando ali morava se sentira à vontade naquela casa. Percorreu os canais televisivos, sem encontrar nada de interesse. Como não bebia, o armário dos licores não lhe interessava. Nem era do tipo de ir vasculhar os óleos perfumados e os requintados sais de banho da sua mãe, antes de se enfiar num banho relaxante/refrescante/equilibrado/tonificante dentro daquela casa de banho de dimensão considerável, quase luxuosas, que fora o refúgio da sua mãe; era a única divisão que ela dissera ao marido querer organizar e decorar sozinha, se Sebastian bem se lembrava. Era a sala dela naquela casa.
Sebastian tinha passado algum tempo a deambular pela habitação e a abrir ao acaso os armários e as gavetas. Em certa medida, era motivado pela pura curiosidade, tal como abria sempre o armário da casa de banho quando ia visitar outras pessoas, mas também o motivava – admitiu ele a si próprio com alguma relutância – um desejo de ver o que acontecera naquela casa desde que saíra de lá. A impressão que persistia era: nada, na verdade. A melhor louça de Rörstrand continuava no mesmo sítio, dentro da cristaleira branca de canto; dentro dos guarda-fatos havia panos para pendurar nas paredes e toalhas de mesa para todas as ocasiões e todas as estações, lavados e meticulosamente enrolados. Claro, havia imensos novos bibelôs desenxabidos, feitos de vidro e de porcelana, juntamente com lembranças de diversas viagens e férias, todos eles partilhando o espaço das prateleiras por trás das portas fechadas dos armários com os presentes de uma vida inteira: velas, jarras e – vindos de uma outra era – cinzeiros. Objectos que raramente ou nunca eram usados, que só ali estavam guardados porque alguém os trouxera para casa e, por conseguinte, se considerara que era impossível desfazerem-se deles sem mostrar ingratidão ou – Deus nos livre – sem dar a impressão de que se tinha melhor gosto que o ofertante. Coisas que ele nunca vira antes, mas a sensação que a casa lhe provocava era a mesma. Apesar da nova mobília, das paredes deitadas abaixo e da iluminação moderna, aos olhos de Sebastian a casa era um mar de objectos inúteis que nada faziam para contrariar a sensação de que a vida em casa dos Bergman fora vivida da mesma maneira calma, pacata, tímida e convencional da classe média que ele recordava. A visão daqueles objectos que a sua mãe lhe deixara incomodava-o ainda mais, e o único sentimento genuíno que conseguia invocar era uma enorme fadiga face à perspectiva de ter de separar aquela merda toda. Livrar-se dela.
O agente imobiliário tinha telefonado por volta das três. Parecera um pouco surpreendido com a atitude de Sebastian; afinal, hoje em dia toda a gente considerava a sua casa como um investimento e, normalmente, as pessoas cuidavam dos seus bens com a abordagem capitalista dos tempos modernos. Mas Sebastian não fizera qualquer tentativa para negociar. Queria, essencialmente, vender a qualquer preço. De preferência, ainda hoje. O agente prometera passar por lá logo que pudesse. Sebastian esperava que fosse no dia seguinte.
Pensou na mulher do comboio. O pedaço de papel com o número de telefone dela estava junto à sua cama. Porque não fora ele um pouco mais ousado? Devia ter-lhe telefonado, sugerindo um jantar num restaurante agradável que ela escolhesse. Demorava-se numa boa refeição, com um bom vinho para ela. Conversava, ria, escutava. Ficava a conhecê-la durante o serão. Agora poderiam estar descontraídos nas confortáveis poltronas de um qualquer átrio de hotel, com uma bebida na mão, ouvindo uma discreta música ambiente, e ele poderia hesitantemente, como por acidente, permitir que os seus dedos roçassem nos joelhos nus dela logo abaixo da bainha do vestido.
A sedução.
O jogo.
Que ele haveria de ganhar.
A vitória.
O prazer.
Tudo fora de alcance, porque não estava a funcionar como normalmente fazia. A culpa era da casa. Da sua mãe. Do facto de Torkel ter, de súbito, emergido do passado. Havia razões, mas ele continuava a achar tudo muito incómodo. Habitualmente, as circunstâncias externas não o afectavam nem influíam nas suas acções.
A vida acomodava-se a Sebastian Bergman, e não o contrário.
Ou era assim que costumava ser.
Antes de Lily e de Sabine.
Não, ele não cederia. Não hoje à noite. Não interessava o que sucedera, quem se adaptara a quem, nem que certas pessoas pudessem classificar os dias que ele passava como sendo mais uma existência do que uma vida. Não importava que tivesse perdido ostensivamente o controlo. Continuava a ter a capacidade de tirar o melhor proveito de uma situação.
Era um sobrevivente.
Em todos os sentidos do termo.
Foi à cozinha e tirou uma garrafa de vinho da garrafeira que estava por cima do armário. Nem sequer olhou para o rótulo. Não fazia qualquer diferença. Era vinho, era tinto e cumpriria a sua função. Quando abriu a porta para o pátio ponderou qual deveria ser a sua abordagem.
Simpática.
(Julguei que talvez não quisesse estar sozinha...)
Preocupada.
(Vi que a luz ainda estava acesa. Como se sente?)
Ou firme, mas atenciosa.
(Não devia ficar sozinha numa noite destas...)
Era irrelevante; o resultado seria o mesmo.
Ele ia fazer sexo com Clara Lundin.
A pintura do tecto por cima da cama começara a estalar ligeiramente, reparou Torkel enquanto estava deitado de costas na cama de mais um anónimo quarto de hotel. Tinha passado tantas noites em hotéis ao longo dos anos que o impessoal se tornara norma. A simplicidade era preferível à originalidade. A funcionalidade era mais importante do que o conforto. Para ser franco, não havia muita diferença entre o apartamento de duas assoalhadas na zona sul de Estocolmo para onde ele se mudara após o divórcio de Yvonne e um quarto de hotel na Escandinávia. Torkel espreguiçou-se e enfiou as mãos por baixo da almofada onde repousava a sua cabeça. O chuveiro continuava a correr. Ela estava a demorar-se na casa de banho.
A investigação. O que tinham eles efectivamente conseguido até agora?
Haviam encontrado o sítio onde o corpo fora deixado, mas não a cena do crime. Tinham marcas de pneus que poderiam pertencer ao carro do assassino, mas por outro lado talvez não. Tinham um jovem sob custódia, mas parecia cada vez mais provável que viessem a libertá-lo no dia seguinte. Pelo lado das vantagens, após ter sido remetido de um lugar para outro, Billy conseguira entrar em contacto com uma mulher da empresa de segurança que sabia com quem ele teria de falar para obter as gravações das câmaras de vigilância de Gustavsborgsgatan. O homem estava na festa do seu quinquagésimo aniversário em Linköping, mas começaria a trabalhar logo que pudesse na manhã seguinte, quando regressasse. Porém, não sabia ao certo se as gravações da sexta-feira em causa ainda lá estariam. Algumas delas só eram guardadas durante quarenta e oito horas. O município local tinha opiniões acerca desse tipo de coisas. Ele verificaria quando voltasse. No dia seguinte, de manhã. Billy dera-lhe um prazo até às onze horas.
Vanja estava convencida de que a namorada de Roger mentia a respeito das horas na noite em que ele desaparecera, mas, como o pai de Lisa muito justamente indicara, era a palavra de uma pessoa contra a de outra. As gravações das câmaras de vigilância também haveriam de os ajudar no esclarecimento desse facto. Torkel suspirou. Era um pouco deprimente pensar que o progresso da investigação no futuro imediato dependia de quanto tempo a empresa de segurança de Västerås guardava as suas gravações dos locais públicos. O que acontecera ao bom trabalho policial de antigamente? Torkel repeliu de imediato essa ideia. Era o tipo de coisa que costumavam pensar aqueles detectives dos filmes de antigamente, que adoravam ópera e bebiam uísque. Utilizar a tecnologia era o novo e honesto trabalho policial. O ADN, as câmaras de vigilância, a tecnologia avançada de tratamento de dados, a partilha e o mapeamento da informação, as escutas, a localização de telemóveis, a extracção de mensagens de texto já apagadas. Era assim que se resolviam os crimes hoje em dia. Tentar lutar contra isso ou recusar adoptá-lo não era apenas inútil, era como teimar em enaltecer a lupa como sendo o instrumento de investigação mais importante para qualquer agente. Estúpido e retrógrado. E este não era o momento de ser nenhuma dessas coisas.
Tinha sido assassinado um jovem. Eles estavam sob escrutínio. Torkel acabara de ver o noticiário do Canal 4, seguido por um debate sobre o aumento da violência entre os jovens: causa -efeito-solução. Isto, apesar do facto de haver cada vez mais indicações de que Leo Lundin poderia muito bem estar inocente e de Torkel e a sua equipa fazerem questão de o enfatizar, precisamente para que Leonard não fosse condenado aos olhos do público. Mas talvez a imprensa pensasse que sempre que um jovem era vítima de violência, isso contava como violência juvenil independentemente da idade que o perpetrador pudesse ter. Torkel não sabia. Sabia apenas que a discussão não trouxera nada de novo. A culpa cabia sobretudo aos pais ausentes, aos progenitores ausentes de uma maneira geral, à violência nos filmes e, sobretudo, nos jogos, e finalmente uma mulher dos seus trinta anos com piercings enunciara aquilo que Torkel esperava vir a riscar da lista.
– Mas não devemos esquecer que hoje em dia a sociedade é muito mais agressiva.
Também as causas o eram. Os pais, os videojogos e a sociedade.
As soluções tornavam-se notórias pela sua ausência, como era habitual, a menos que se considerassem soluções a obrigação legal da licença de maternidade/paternidade em termos iguais, uma maior censura e mais abraços. Evidentemente, não era possível fazer-se nada a respeito da sociedade. Torkel desligou o televisor antes de o programa chegar ao fim e começou a falar de Sebastian. Nos últimos anos, não tinha pensado muito no seu antigo colega, mas, mesmo assim, considerava que um encontro entre eles decorreria de maneira diferente.
Com mais cordialidade.
Tinha ficado desapontado.
Isto aconteceu antes de Ursula ir tomar duche. Agora ela saía da casa de banho, nua, à excepção de uma toalha que trazia enrolada no cabelo. Torkel prosseguiu como se não tivesse havido uma interrupção de quinze minutos na conversa.
– Devias tê-lo visto. Quero dizer, ele já era muito estranho quando nós trabalhávamos juntos, há uma data de anos, mas agora... Parecia que ele estava a tentar aborrecer-me deliberadamente.
Ursula não lhe respondeu. Torkel ficou a observá-la enquanto ela ia ao toucador, pegava num frasco de loção corporal e começava a esfregar-se. Lait de Beauté Aloe Vera, ele sabia. Já a tinha visto fazer aquilo algumas vezes.
Ao longo de alguns anos.
Quando é que havia começado? Não sabia ao certo. Antes do divórcio, mas depois de as coisas terem começado a correr mal. Um período bastante longo. Em todo o caso, ele tinha-se divorciado. Ursula continuara casada. Não tinha intenções de deixar o Mikael, pelo que Torkel sabia. Mas, por outro lado, ele sabia muito pouco acerca da relação entre Ursula e Mikael. Mikael tinha passado por uns tempos muito difíceis quando bebia demasiado. Um alcoólico intermitente. Ele sabia-o, mas, se Torkel compreendera correctamente, agora esses períodos eram menos frequentes e duravam muito menos tempo. Talvez eles tivessem um casamento aberto e pudessem dormir com quem lhes apetecesse, sempre que quisessem, todas as vezes que quisessem. Talvez Ursula enganasse Mikael com Torkel. Torkel sentia-se próximo de Ursula, mas, no que dizia respeito à vida dela com o marido, não sabia praticamente nada. Ao princípio tinha feito perguntas, mas era óbvio que Ursula achava que ele não tinha nada a ver com isso. Procuravam a companhia um do outro quando trabalhavam juntos, e podiam continuar a fazê-lo. Não precisava de ser mais do que isso. Ele não precisava de saber mais do que isso. Torkel optara por desistir do assunto, abstendo-se de saber mais, por medo de a perder completamente. Não queria que isso acontecesse. Não sabia ao certo o que queria do relacionamento deles, a não ser que era mais do que aquilo que Ursula estava disposta a oferecer. Por conseguinte, aproveitava o melhor que podia. Passavam as noites juntos quando ela queria. Como agora, em que Ursula afastava as cobertas e se enfiava na cama ao seu lado.
– Estou a avisar-te. Se dizes mais uma palavra acerca do Sebastian, vou-me embora.
– É que eu julgava que o conhecia e... – Ursula colocou um dedo sobre os lábios dele e apoiou-se sobre um cotovelo. Olhou-o, com uma expressão séria.
– Estou a falar a sério. Vou para o meu quarto. Volto já para o meu quarto, e tu não queres que eu o faça.
Ela tinha razão.
Ele não queria que ela se fosse embora.
Calou-se e apagou a luz.
Sebastian despertou do sonho. Enquanto endireitava os dedos da mão direita, orientou-se rapidamente.
A casa do lado.
Clara Lundin.
Sexo inesperadamente bom.
Apesar disso acordara com uma sensação de desapontamento. Tinha sido muito fácil. Demasiado fácil para que ele acordasse com a sensação de satisfação temporária.
Sebastian Bergman era bom a seduzir mulheres. Sempre fora. Ao longo dos anos outros homens se haviam por vezes surpreendido com o sucesso que ele tinha junto do sexo oposto. Não era bem-parecido num sentido clássico. Sempre oscilara entre ter peso a mais e quase ter peso a mais e, nos últimos anos, havia-se mantido algures entre ambos; as suas feições não eram distintas nem acentuadas, mais buldogue que doberman, se quiséssemos fazer uma comparação de cães. O cabelo começara a escassear nas têmporas, e a sua escolha de roupas sempre tendera mais para o professor de psicologia do que para a revista de moda. Era bem sabido que havia mulheres que procuravam o dinheiro, a aparência e o poder. Mas isso eram apenas algumas mulheres. Caso se pretendesse ter hipótese com todas as mulheres, era preciso ser-se outra coisa. E era isso que Sebastian tinha: charme e intuição. Uma compreensão de que todas as mulheres são diferentes e uma capacidade para elaborar uma selecção de diferentes tácticas entre as quais pudesse escolher. Experimentar uma, mudar a meio do percurso, avaliar como funcionava, mudar de novo se necessário.
Sensibilidade.
Capacidade para ouvir.
Quando a estratégia funcionava, a mulher acreditava que estava a seduzi-lo a ele. Era uma sensação que aqueles homens ricos que abanavam o seu cartão Amex Platina no bar jamais compreenderiam.
Sebastian divertia-se a manobrar o curso dos eventos, a esquivar-se, a ajustar-se e, por fim, se tivesse jogado bem as suas cartas, a complementar tudo isso com o prazer físico. Mas com Clara Lundin tinha sido demasiado fácil. Fora como pedir a um chefe de cozinha de um restaurante de cinco estrelas que fritasse um ovo. Não tivera oportunidade de mostrar o que era capaz de fazer. Tinha sido aborrecido. Fora apenas sexo.
Durante o caminho para casa dela, decidira seguir a opção da simpatia e, quando ela abrira a porta, estendera-lhe a garrafa de vinho.
– Julguei que talvez não quisesse estar sozinha...
Ela deixara-o entrar e tinham-se sentado no sofá, abriram a garrafa de vinho, e ele ouvira a mesma coisa que já lhe havia sido dita ao almoço, mas numa versão mais longa e mais refinada, em que os defeitos dela enquanto mãe recebiam maior atenção. Ele emitira os sons devidos e concordara nas ocasiões adequadas, enchera-lhe o copo, continuara a ouvir e, de vez em quando, respondera a perguntas sobre os procedimentos policiais, sobre a rotina de quando uma pessoa era posta sob custódia, o que se poderia esperar que acontecesse de seguida, o significado dos diferentes graus de suspeição, e assim por diante. Quando finalmente ela já não conseguira conter as lágrimas, pousara-lhe uma mão consoladora sobre o joelho e, por simpatia, encostara-se mais a ela. Sentira o corpo de Clara ser percorrido por um frémito. O choro silencioso parara, a respiração alterara-se, tornara-se mais arquejante. Ela voltara-se para Sebastian e fitara-o nos olhos. Antes que ele tivesse realmente tempo para reagir, já estavam a beijar-se.
No quarto, ela recebera-o com uma entrega total. Seguidamente chorara, beijara-o, e quisera-o outra vez. Adormecera encostada a ele.
Quando Sebastian acordara ela ainda tinha um braço apoiado sobre o seu peito e a cabeça aninhada entre o queixo e o ombro dele. Sebastian libertara-se cuidadosamente do abraço e saíra da cama. Ela não acordara. Ele olhara-a enquanto se vestia sem fazer barulho. Por mais que estivesse interessado na fase da sedução, estava igualmente desinteressado em prolongar a relação para além do sexo. O que lhe daria isso? Nada, a não ser repetição. Mais do mesmo, mas sem a excitação. Completamente insignificante. Já deixara suficientes mulheres após estas aventuras de uma noite para saber que só em ocasiões muito raras esse ponto de vista era mutuamente partilhado e, no que dizia respeito a Clara Lundin, tinha a certeza de que ela esperaria algum tipo de continuação. Não apenas pequeno-almoço e conversa, mas algo mais.
Algo real.
Por isso, foi-se embora.
Por norma, uma consciência pesada não fazia parte do repertório de Sebastian, mas até ele compreendia que as coisas seriam difíceis para Clara Lundin quando ela acordasse. Já anteriormente percebera como ela estava sozinha, durante o dia, quando tinham estado no quintal, e o encontro deles no sofá confirmara-o. A maneira como encostara os lábios aos seus, a maneira como as mãos dela se haviam agarrado à sua cabeça, o modo como comprimira o seu corpo contra o dele. Estava quase desesperada por intimidade. A todos os níveis, e não apenas fisicamente. Ao fim de anos a ser rejeitada, ou, na melhor das hipóteses, a ver os seus sentimentos e pensamentos ignorados, ou, na pior, a ouvir gritos e ameaças, estava ávida de ternura e de consideração. Era como a areia no deserto, absorvia tudo o que se assemelhasse à banal amabilidade humana. A mão dele no joelho dela. Contacto. Um claro sinal de que ela era desejável. Tinha sido como abrir as comportas da necessidade.
De pele.
De intimidade.
De alguém.
Era esse o problema, pensou Sebastian, enquanto percorria a curta distância que o separava da casa dos seus pais. Tinha sido demasiado fácil, e ela ficara agradecida. Ele conseguia lidar com a maioria das emoções no que dizia respeito às suas conquistas, mas a gratidão sempre o revoltara ligeiramente. O ódio, o desprezo, a mágoa... eram melhores. A gratidão tornava muito óbvio que tudo acontecera nos termos dele. Sabia-o, evidentemente, mas era melhor se pudesse convencer-se de que a situação fora de algum modo idêntica. Manter a ilusão. A gratidão rompia-a. Expunha-o como o completo sacana que ele era.
Eram apenas quatro e um quarto da manhã quando chegou a casa, e não tinha vontade de voltar para a cama. Portanto, o que haveria de fazer? Embora não lhe apetecesse realmente tal coisa, e continuasse a achar que o assunto acabaria por se resolver de alguma maneira, percebeu que mais cedo ou mais tarde teria de tratar de todos os armários e gavetas. Adiar o problema não o tornaria mais fácil.
Foi à garagem e encontrou uns caixotes de papelão espalmados que estavam encostados à parede em frente do velho Opel. Tirou três e, quando voltou a entrar em casa, parou. Por onde começar? Optou pelo antigo quarto de hóspedes e escritório. Rejeitou a secretária e o equipamento antiquado, armou um dos caixotes e começou a empilhar os livros das estantes que cobriam uma das paredes. Havia uma mistura de ficção, não-ficção, livros de referência e manuais escolares. Foi tudo para o caixote. Sem dúvida que se aplicava aos livros o mesmo que ao Opel da garagem: o valor que ele tinha em segunda mão era zero. Quando o primeiro caixote ficou cheio, tentou fechá-lo. Não conseguiu, mas isso seria um problema da empresa de mudanças, pensou Sebastian, arrastando-o até à porta com alguma dificuldade. Depois armou outro caixote e prosseguiu. Às cinco da manhã tinha ido buscar mais quatro caixotes à garagem e já esvaziara quase toda a estante. Restavam apenas duas prateleiras, do lado direito. Cheias de álbuns de fotografias. Muito bem etiquetados com o ano e um apontamento sobre o respectivo conteúdo. Sebastian hesitou. Afinal, era a chamada vida dos seus pais que estava naquelas prateleiras. Deveria simplesmente enfiar tudo num caixote de cartão e mandá-lo para o lixo? Teria o direito de o fazer? Adiou a decisão; em todo o caso teriam de sair das estantes, definir para onde iriam poderia ficar para mais tarde.
Sebastian já desimpedira mais de metade, começando pela prateleira de cima e chegando até ao INVERNO/PRIMAVERA DE 1992 - INNSBRUCK, quando a sua mão tocou em qualquer coisa que estava escondida atrás dos espessos álbuns. Uma caixa. Deitou-lhe a mão, agarrou-a e tirou-a. Era uma caixa de sapatos; pequena, azul-clara, com um sol no meio da tampa. De sapatos de criança, presumivelmente. Mas aquele era um sítio estranho para se guardar sapatos. Sebastian sentou-se na cama e abriu a caixa com uma certa dose de curiosidade. O conteúdo nem sequer chegava a meio da caixa. Um brinquedo sexual da infância dos brinquedos sexuais, muito bem selado dentro da sua caixa original, que estava coberta por desenhos a lápis de qualquer coisa que poderia ter sido o Kama Sutra. A chave de um cofre e algumas cartas. Sebastian pegou nas cartas. Eram três. Duas estavam endereçadas à sua mãe. Uma caligrafia feminina. A terceira era da sua mãe para alguém que se chamava Anna Eriksson, que morava em Hägersten. Devolvida ao remetente, endereço desconhecido, tinha sido carimbado no envelope. Há mais de trinta anos, a avaliar pelas datas dos correios. De Hägersten e de Västerås. A caixa parecia conter coisas que a sua mãe não queria que o resto do mundo conhecesse. Era óbvio que tinham importância suficiente para ser guardadas, mas em segredo. O que fizera ela? De quem eram as cartas? De algum amante? Uma breve aventura amorosa longe da casa e do seu pai? Sebastian abriu a primeira carta.
Cara senhora Bergman, Não sei se estou a enviar esta carta para a pessoa certa. Chamo-me Anna Eriksson e preciso de entrar em contacto com o seu filho, Sebastian Bergman. Ele dava aulas de Psicologia na Universidade de Estocolmo, e foi aí que o conheci. Tentei entrar em contacto com ele através da universidade, mas já não é lá professor e eles não têm o seu novo endereço. Falei com alguns dos colegas dele, que me disseram que se tinha mudado para os EUA, mas não consigo encontrar ninguém que saiba onde mora. Alguém acabou por me dizer que tinha vindo de Västerås, e que a mãe dele se chamava Esther. Encontrei-a na lista telefónica e espero estar a escrever para a pessoa certa, e que me possa ajudar a entrar em contacto com o Sebastian. Se não for a mãe do Sebastian, peço-lhe desculpa por a incomodar. Mas poderia dizer-me, por favor, se é ou não? Preciso realmente de entrar em contacto com o Sebastian e de saber se enviei esta carta para o sítio certo.
Os melhores cumprimentos, Anna Eriksson
Havia um endereço. Sebastian matutou um pouco no assunto. Anna Eriksson. No Outono após ele ter ido viver para os EUA. O nome não lhe dizia nada, mas isso não era surpreendente. Fora há trinta anos, e a quantidade de mulheres que haviam passado pela sua vida enquanto ele estava na universidade era considerável. Tinham-lhe oferecido um cargo durante um ano no Departamento de Psicologia, depois de ele se ter licenciado com nota máxima. Era pelo menos vinte anos mais novo que os seus colegas e sentira-se um cachorrinho numa sala cheia de esqueletos de dinossauros. Se realmente fizesse um esforço, talvez conseguisse lembrar-se do nome de alguém com quem dormira, mas provavelmente não. Em todo o caso, não lhe ocorria nenhuma Anna. Talvez a próxima carta esclarecesse melhor as coisas.
Cara senhora Bergman, Muito obrigado pela sua pronta e amável resposta, e peço-lhe desculpa por estar a escrever-lhe e a incomodá-la de novo. Compreendo que deve ser estranho dar o endereço do seu filho a uma completa desconhecida que lhe escreve inopinadamente, mas realmente PRECISO de entrar em contacto com o Sebastian em breve. Na verdade, não parece bem estar a contar-lhe isto, mas creio ter de o fazer para que compreenda como o assunto é de vital importância. Estou grávida do Sebastian e tenho de entrar em contacto com ele. Por isso, se souber onde ele está, por favor, por favor, diga-me. Como compreenderá, isto é extremamente importante para mim.
Havia mais, qualquer coisa a respeito de ir mudar de casa e voltar a escrever-lhe, mas Sebastian continuou a ler a mesma frase uma e outra vez. Tinha um filho. Ou, pelo menos, poderia ter. Um filho ou uma filha. Poderia ser pai de novo. Talvez. Talvez. Uma breve compreensão de que a sua vida poderia de súbito ter sido completamente diferente quase o fez desfalecer. Inclinou-se para a frente com a cabeça entre os joelhos e respirou fundo. Tinha os pensamentos num turbilhão. Uma criança. Ela ter-se-ia livrado dela? Ou ainda estaria viva?
Tentou desesperadamente lembrar-se de quem era Anna. Atribuir um rosto àquele nome. Mas não vieram à tona quaisquer memórias. Estava a ter dificuldade em concentrar-se. Respirou fundo para invocar a sua memória visual. Mesmo assim, nada. As emoções contraditórias da felicidade e do espanto foram momentaneamente ensombradas por uma súbita irrupção de fúria. Era possível que ele tivesse um filho e a sua mãe nunca lhe dissera nada. Sentiu-se invadir pela sensação familiar de que ela o desiludira. Pensar que até já começara a querer perdoar-lhe. Ou, pelo menos, esperara encontrar alguma paz na batalha interior que constantemente travava com ela. Esse sentimento desaparecera. Agora, a batalha estaria sempre presente. Para o resto da sua vida, percebeu ele.
Tinha de descobrir mais. Precisava de se lembrar de quem era Anna Eriksson. Levantou-se. Caminhou pelo quarto. Lembrou-se da última carta – havia três cartas dentro da caixa. Talvez ela contivesse mais peças daquele quebra-cabeças. Pegou nela. No envelope, a caligrafia arredondada da sua mãe; por um segundo, apeteceu-lhe deitar fora a carta. Desaparecer e nunca mais olhar para trás. Abandonar aquele segredo e enterrá-lo onde ele já ficara guardado durante tanto tempo. Mas a sua hesitação não tardou a ser substituída pela acção – outra coisa seria impensável – e, com mãos trémulas, Sebastian tirou cuidadosamente a carta de dentro do envelope. Era a caligrafia da sua mãe, as frases que ela construía, as palavras dela. Ao princípio não compreendeu o que estava a ler; o seu cérebro estava demasiado sobrecarregado.
Cara Anna, O motivo pelo qual não lhe dei o endereço do Sebastian nos EUA não foi por ser uma desconhecida, mas porque, como lhe disse na minha última carta, nós não sabemos onde o Sebastian está a morar. Não temos qualquer contacto com o nosso filho. É essa a situação desde há muitos anos. Tem de acreditar em mim. Sinto-me um pouco triste por saber que está grávida. Isso vai completamente contra as minhas crenças e, no entanto, sinto que tenho de lhe dar um conselho: se ainda for possível, penso que deveria interromper a gravidez. Tente esquecer o Sebastian. Ele nunca assumirá qualquer responsabilidade, nem por si nem pela criança. Custa-me ter de escrever isto, e provavelmente ficará a pensar que tipo de mãe sou eu, mas a maior parte das pessoas ficará melhor sem o Sebastian nas suas vidas. Espero sinceramente que as coisas corram bem para si, apesar das circunstâncias.
Sebastian leu a carta mais uma vez. A sua mãe seguira à letra o guião do relacionamento deles. Mesmo depois da morte, ainda conseguia magoá-lo. Tentou serenar os seus pensamentos e concentrar-se nos factos e não nos sentimentos. Distanciar-se. Agir com profissionalismo. O que sabia ele? Há trinta anos, quando trabalhava na Universidade de Estocolmo, engravidara uma pessoa chamada Anna Eriksson. Talvez ela tivesse feito um aborto, talvez não. Em todo o caso tinha-se mudado de – olhou para a morada de Anna – Vasaloppsgatan n.º 17, a dado momento, há trinta anos. Tinha ido para a cama com ela. Seria uma das suas antigas alunas? Provavelmente. Tivera sexo com várias delas.
Era possível localizar o seu antigo director de departamento, Arthur Lindgren, através de pesquisas nos ficheiros. Arthur, que estava agora aposentado, atendeu ao fim de três telefonemas distintos; na última vez, Sebastian deixou o telefone tocar mais de vinte e cinco vezes. Arthur continuva a viver em Surbrunnsgatan, e quando ficara um pouco mais desperto e percebera quem lhe estava a telefonar às cinco e meia da manhã, fora surpreendentemente prestável. Prometera analisar os documntos e as fichas que tinha em casa e procurar uma Anna Eriksson. Sebastian agradeceu-lhe. Arthur sempre fora uma das poucas pessoas que Sebastian respeitava, e esse respeito era mútuo; sabia que Arthur o tinha efectivamente defendido quando a universidade tentara expulsá-lo. No fim, porém, a situação tornara-se insustentável até para Arthur. As aventuras amorosas de Sebastian já não se restringiam a pequenos casos discretos; havia tantos rumores a seu respeito que a administração conseguira suspendê-lo à terceira tentativa. Fora então que ele tinha ido para os EUA, para a Universidade da Carolina do Norte. Começara a perceber que os seus dias estavam contados e candidatara-se a uma bolsa Fulbright.
Sebastian estabeleceu, então, uma cronologia, tomando nota da data da primeira carta: 9 de Dezembro de 1979. A segunda carta tinha a data de 18 de Dezembro. Contou nove meses antes de Dezembro, o que o levou a Março de 1979.
Tinha chegado a Chapel Hill, na Carolina do Norte, no início de Novembro de 1979. Portanto, o período relevante era entre Março e Outubro, os oito meses possíveis. Provavelmente ela descobrira que estava grávida aquando da primeira carta, pelo que Setembro-Outubro pareciam ser os meses mais prováveis. Sebastian tentou evocar todas as memórias que conseguiu dos seus encontros sexuais durante o Outono de 1979. Não era fácil: na universidade, esse período específico fora um dos mais intensos no seu catálogo de delitos sexuais. Em parte, devia-se à tensão de as constantes investigações ao seu comportamento por parte do departamento simplesmente exacerbarem a sua necessidade de afirmação, e, em parte, era porque, após vários anos, aperfeiçoara o papel de sedutor. Desaparecera a falta de jeito, bem como o medo e a inépcia. Limitara-se a desfrutar daquilo em que era bom e ultrapassara todos os limites no decurso de vários anos febris.
Mais tarde, ao analisar esses anos, ficara espantado com o seu comportamento. Quando o pânico da sida começara a grassar no início dos anos 1980, ele percebera com horror até que ponto o seu abuso fora verdadeiramente mau. Começara a tentar encontrar maneiras de resistir e ganhara muita força graças à sua investigação mais pormenorizada dos assassinos em série nos Estados Unidos. Lembrava-se do momento em que estava em Quantico, o centro de formação do FBI, onde andava a trabalhar num projecto conjunto com o FBI e a Universidade da Carolina do Norte, e compreendera que o seu modo de agir tinha muita coisa em comum com a motivação que estava por detrás dos actos de um assassino em série. Decerto que esses actos tinham consequências completamente diferentes; era como se ele estivesse a jogar póquer com paus de fósforo e os assassinos em série com aparas de ouro. Mas a base era a mesma: uma educação com falta de empatia e de amor, baixa auto-estima e uma necessidade de mostrar a força individual. Além disso, aquele constante ciclo de fantasia-execução-angústia sempre à sua volta. O indivíduo necessita de afirmação e tem fantasias a respeito do controlo; no caso dele era sexual, no do assassino em série era uma questão da vida e da morte de outra pessoa. A fantasia torna-se tão forte que acaba por ser impossível resistir a pô-la em prática. A isso segue-se a angústia por aquilo que se fez. A afirmação, na verdade, era inútil. Ele era mau. Uma má pessoa. Com o desespero regressavam as fantasias que mitigavam a angústia. Essas fantasias depressa se tornavam tão fortes que a necessidade de encontrar um escape para elas voltava a despertar. E tudo andava sempre assim, à roda.
Essa compreensão assustara Sebastian, mas também o equipara melhor para o seu trabalho de ajudar a polícia a perseguir os assassinos em série. Fizera progressos nas suas análises. Os perfis que traçava tornaram-se mais precisos. Como se ele tivesse aquele pequeno extra que o tornava invulgarmente bem preparado para entender a psicologia de um criminoso. E era verdade, evidentemente. Lá no fundo, por trás da aparência académica, do amplo conhecimento e dos comentários inteligentes, na verdade ele assemelhava-se muito àqueles que caçava.
Arthur telefonou-lhe uma hora mais tarde. Por essa altura, já Sebastian ligara para os serviços de informações dos telefones e descobrira que na Suécia havia tantas Annas Eriksson que os computadores diziam apenas «demasiados resultados». Tentara então limitar a pesquisa a Estocolmo e disseram-lhe que havia 463 resultados, mas nem sequer sabia se ela ainda vivia em Estocolmo. Ou se se teria casado e mudado de apelido.
Arthur tinha boas e más notícias. As más notícias eram que, segundo os apontamentos que ele ainda conservava, não havia qualquer Anna Eriksson matriculada no Departamento de Psicologia em 1979. Alguém com esse nome inscrevera-se em 1980, mas, obviamente, não podia ser a mesma mulher.
A boa notícia era que ele conseguira obter acesso ao Ladok.
Pois claro – porque é que Sebastian não se lembrara disso? O sistema de armazenamento e gestão das notas do ensino superior existia há poucos anos quando ele saíra da universidade. Os endereços, as alterações de nome e outras informações semelhantes eram actualizadas automaticamente com base nos cadernos eleitorais. E a melhor parte era que essa informação era propriedade pública. Normalmente, não era fornecida pelo telefone, mas ao princípio dessa manhã um dos administradores da universidade abrira uma excepção para o antigo director do departamento. Ele tinha os endereços e os números de telefone de três Annas Eriksson que se haviam matriculado na universidade durante o período em questão.
Sebastian sentiu-se imensamente grato e, com a promessa, de um excelente jantar num dos melhores restaurantes de Estocolmo logo que ele voltasse à cidade, desligou o telefone. Tinha o coração aos saltos. Três Annas Eriksson.
Seria alguma delas a pessoa que procurava?
A primeira Anna da breve lista tinha na época quarenta e nove anos, e Sebastian rapidamente a eliminou. Não que ela não pudesse ter engravidado, mas ele nunca se sentira atraído pelas mulheres de meia-idade. Pelo menos, naquela época. Hoje em dia a idade era menos importante.
O que deixava duas. Duas possíveis Annas Eriksson. Passara-se muito tempo desde que Sebastian sentira uma mistura de energia, medo e expectativa, como a que tinha quando pegou no telefone para contactar a primeira. Vivia em Hässleholm e andara a estudar cinema. Apanhou-a quando ela ia a sair para o emprego. Sebastian decidiu ser brutalmente honesto e contou-lhe toda a história da carta que encontrara nessa madrugada. Ela ficou algo surpreendida com o telefonema inesperado e aqueles pormenores íntimos logo pela manhã, mas explicou-lhe, com muita amabilidade, que não fazia qualquer ideia de quem ele era, e que não tivera nenhum filho dele. De facto, tivera filhos, mas tinham nascido em 1984 e 1987. Sebastian agradeceu-lhe e riscou-a da lista.
Restava uma.
Telefonou-lhe. Acordou-a. Talvez fosse por isso que ela se mostrava muito mais reservada. Disse que não sabia quem ele era. Reconheceu que estudara Ciências Sociais e se licenciara em 1980, mas não dormira com nenhum dos professores do Departamento de Psicologia. Lembrar-se-ia disso. E se tivesse engravidado, decerto se lembraria também. Não, ela não tinha filhos. Se ele conseguira encontrá-la e descobrir o seu número de telefone ao fim de tantos anos, sem dúvida que também poderia confirmar o que lhe estava a dizer. Depois desligou.
Sebastian riscou da lista a última Anna Eriksson.
Expirou como se tivesse estado a conter a respiração durante as últimas horas. A energia que o vinha alimentando escoou-se. Deixou-se cair sobre uma das cadeiras da cozinha. Os seus pensamentos estavam em reboliço. Precisava de os pôr em ordem.
A Anna Eriksson que ele procurava não devia ter sido uma aluna. Isso tornava as coisas mais difíceis. Mas ela tinha alguma ligação à universidade, dado que escrevera que eles se conheceram lá. Então quem era? Seria uma professora, uma conferencista, ou somente uma amiga de alguém que andava a estudar lá? Talvez se tivessem conhecido nalguma festa...
Imensas possibilidades.
Nenhumas respostas.
Um nome, uma morada, um ano e uma ligação à época em que estivera na Universidade de Estocolmo, era só isso. Nem sequer sabia a idade dela, o que poderia ter ajudado um pouco. Mas precisava de saber. Mais. Tudo. Pela primeira vez desde há anos, Sebastian sentia algo diferente da interminável lassidão que o acompanhava há tanto tempo. Não era esperança, mas era alguma coisa. Uma pequena ligação à vida. Reconhecia a sensação. Lily tinha-lhe dado a noção de um contexto. De pertencer a algo. Antes, Sebastian sentia-se sempre sozinho, como se estivesse a passar ao lado da vida e das outras pessoas. Lily modificara esse sentimento. Encontrara o caminho para o seu interior, derrubara a muralha de arrogância e tocara-o como mais ninguém fizera. Conseguia ver através dele. Perdoava-lhe os deslizes, mas fazia exigências. Isso fora uma coisa nova para Sebastian.
O amor.
Deixara de procurar o sexo sem afecto. Tinha sido um esforço, mas Lily, de uma maneira mágica, sempre conseguira encontrar as palavras que o consolavam nos seus momentos de dúvida e de desespero. De repente, percebeu que não fora a única que lutara pela sua relação. Ele também o fizera. Antes dela, sempre procurara uma maneira de escapar; e depois quisera encontrar uma maneira de progredir. Tinha sido uma sensação maravilhosa. Deixara de ser o soldado solitário; estavam juntos. Quando Sabine nasceu, naquele dia de Agosto, ele fora envolvido pela vida. Sentira-se completo. Fazia parte de algo. Não estava só.
O tsunami viera modificar tudo isso. Rompera todas as ligações, todos os fios delicadamente tecidos que o ligavam a tudo o resto. Mais uma vez, ficara só.
Mais só do que nunca.
Porque agora ele sabia como podia ser a sensação da vida.
Como ela devia ser.
Sebastian saiu para o passadiço. Sentia-se estranhamente animado. Como se, de súbito, tivessem lançado um salva-vidas na sua direcção. Deveria agarrá-lo? Aquilo acabaria, sem dúvida, mal. Não havia dúvida alguma. Mas naquela manhã sentiu algo a borbulhar dentro de si, algo que já não sentia há muito tempo – uma energia, um desejo. Não de sexo, não de conquista, mas de vida. Iria segui-lo. Afinal, já estava condenado. Por isso, nada tinha a perder. Somente algo a ganhar. Tinha de saber. Teria ele outro filho? Precisava de encontrar aquela Anna Eriksson. Mas como? De repente, foi acometido por uma ideia. Havia alguém que o podia ajudar. Mas não seria fácil.
CAPÍTULO DEZ
TORKEL E Ursula chegaram ao mesmo tempo à sala de refeições do hotel para tomarem o pequeno-almoço, mas não tinham descido juntos. Quando Ursula passava a noite no quarto de hotel de Torkel, marcava o despertador para as 04h30, levantava-se quando ele tocava, vestia-se e regressava ao seu quarto. Torkel também se levantava e ia à porta despedir-se dela, completamernte vestido e perfeitamente correcto. Se alguém passasse no corredor àquela hora, pareceria que dois colegas tinham estado a trabalhar durante toda a noite e que um deles regressava agora ao seu quarto para algumas horas de sono bem merecido. O facto de se terem encontrado nas escadas nessa manhã e chegado em simultâneo à sala de refeições era, por conseguinte, um puro acaso. Também ouviram ao mesmo tempo o assobio estridente e olharam para uma das mesas junto à janela. Era Sebastian. Levantou a mão num gesto de saudação. Torkel ouviu Ursula suspirar enquanto saía de ao pé dele, virava nitidamente as costas a Sebastian e se servia do bufete do pequeno-almoço.
– Anda cá, Torkel! Trouxe-te um café! – A voz de Sebastian encheu a sala de refeições. Os comensais, que não tinham mostrado qualquer interesse quando ele assobiara, estavam agora a prestar-lhes atenção. Torkel caminhou até à mesa.
– O que queres?
– Quero voltar ao trabalho. Com vocês. No caso daquele rapaz. – Torkel olhou para Sebastian em busca de algum sinal de que ele estivesse a brincar. Quando viu que falava a sério, abanou a cabeça.
– É impossível.
– Porquê? Porque a Ursula não me quer por perto? Vá lá, dispensa-me dois minutos.
Torkel olhou para Ursula, que continuava de costas para eles. Puxou uma cadeira e sentou-se. Sebastian empurrou uma chávena de café na direcção dele. Torkel olhou para o relógio e pôs a cabeça entre as mãos.
– Dois minutos.
Houve um breve silêncio enquanto Sebastian esperava que Torkel prosseguisse. Fizesse alguma pergunta. Não fez.
– Quero regressar ao trabalho. Convosco. Por causa daquele rapaz. O que é que tu não percebeste acerca disso?
– Mas porque queres tu voltar ao trabalho? Connosco. Por causa daquele rapaz. – Sebastian encolheu os ombros e sorveu um trago de café da chávena que estava na mesa à sua frente.
– Razões pessoais. A minha vida está... um pouco fluida neste momento. O meu terapeuta diz que a rotina me faria bem. Preciso de disciplina. De concentração. Além disso, vocês precisam de mim.
– A sério?
– Sim. Andam completamente perdidos.
Torkel já devia estar habituado. Quantas vezes ele e os seus colegas tinham avançado uma teoria ou esboçado um cenário que depois era destruído por Sebastian? Apesar disso, Torkel deu por si a sentir-se incomodado por o seu antigo colega desdenhar de todo o trabalho que haviam feito até então. Trabalho acerca do qual ele nada sabia.
– Andamos?
– Não foi o filho da minha vizinha que matou o rapaz. O corpo foi levado para um local remoto com bastante engenho. O ataque ao coração parece quase ritualista. – Sebastian inclinou-se e baixou a voz. – O assassino é mais sofisticado e consideravelmente mais maduro do que um rufia que mal consegue ir para a escola.
Recostou-se no assento com a sua chávena de café e fitou Torkel por cima desta. Torkel arrastou a sua cadeira para trás.
– Nós sabemos, é por isso que o vamos libertar hoje. E a resposta à tua pergunta continua a ser «não». Obrigado pelo café.
Torkel levantou-se e empurrou a cadeira para junto da mesa. Viu que Ursula se tinha sentado junto à janela, mais adiante, na sala, e estava prestes a ir ter com ela quando Sebastian pousou a chávena e elevou a voz.
– Lembras-te de quando a Monica te foi infiel? Todo aquele assunto do teu divórcio. – Torkel parou e virou-se para Sebastian, que enfrentou o seu olhar com uma expressão descontraída. – Do teu primeiro divórcio, isto é.
Torkel permaneceu em silêncio, à espera do seguimento que ele sabia ser inevitável.
– Nessa altura tu estavas mesmo em má forma, não estavas?
Torkel não respondeu, mas lançou a Sebastian um olhar que tornava evidente que não queria falar do assunto. Um olhar que Sebastian ignorou por completo.
– Eu apostava que hoje não serias chefe se alguém não te tivesse protegido durante os negros dias daquele Outono. Na verdade, durante a merda do ano inteiro.
– Sebastian...
– O que achas tu que teria acontecido se alguém não tivesse entregado os relatórios a horas? Corrigido os teus erros? Procedido ao controlo dos danos?
Torkel assentou ambas as mãos sobre a mesa, abertas.
– Não sei o que andas tu a tramar, mas isto não é digno, nem sequer vindo de uma pessoa como tu.
– Não estás a compreender.
– Ameaças? Chantagem? O que é que eu não compreendo?
Sebastian não disse nada durante um momento. Teria ido longe de mais? Precisava mesmo de entrar naquela investigação. E, na verdade, gostava de Torkel – ou gostara, há muito tempo, numa vida diferente. A memória dessa vida levou Sebastian a tentar, pelo menos. Desta vez num tom mais amigável.
– Eu não estou a ameaçar-te. Estou a pedir-te. Um favor. – Sebastian levantou os olhos e enfrentou o olhar de Torkel, com uma expressão franca. Nos seus olhos também havia uma súplica honesta que Torkel não se lembrava de alguma vez ter visto em Sebastian. Mas ainda estava a abanar a cabeça quando Sebastian disse: – Um favor a um amigo. Se conheces metade do que julgas conhecer de mim, então sabes que eu nunca te pediria isto a menos que realmente precisasse.
Tinham-se reunido na sala de conferências da esquadra. Ursula lançara a Torkel um olhar particularmente desagradável quando entrara e vira Sebastian anichado numa das cadeiras. Vanja mostrara-se muito intrigada pela presença daquele desconhecido quando chegara; apresentara-se-lhe, mas Sebastian julgou ter notado que a sua expressão se transformara em franco desagrado quando ele lhe dissera o seu nome. Teria Ursula andado a contar histórias a seu respeito?
Claro que sim.
Era uma batalha desigual.
A única pessoa que não mostrara qualquer reacção à sua presença fora Billy, que estava sentado à mesa com o seu pequeno-almoço trazido da loja de conveniência. Torkel sabia que, na verdade, não havia uma boa maneira de dizer o que ele se preparava para declarar. A abordagem mais simples era muitas vezes a melhor. Por isso disse-o com toda a simplicidade.
– O Sebastian vai trabalhar connosco durante uns tempos.
Um breve silêncio. Uma troca de olhares. Surpresa. Raiva.
– Vai? – Torkel viu o maxilar de Ursula contrair-se enquanto ela cerrava os dentes. Era suficientemente profissional para não chamar idiota a Torkel e discutir com ele à frente da equipa, embora estivesse convencido de que era realmente isso que ela queria fazer. Tinha-a desiludido. Por duas vezes. Para começar, trouxera de novo Sebastian para a vida profissional dela, mas, pior do que isso, não lhe dissera nada acerca dos seus planos durante o pequeno-almoço, nem enquanto caminhavam juntos até à esquadra. Sim, ela estava zangada. Por boas razões. Ele dormiria sozinho durante o resto daquela investigação. Talvez durante mais tempo.
– Sim.
– Porquê? O que há de tão especial neste caso para precisarmos do grande Sebastian Bergman?
– Não o resolvemos, e o Sebastian está disponível. – Torkel percebeu que a afirmação soava a falso. Tinham decorrido menos de dois dias desde que o corpo fora encontrado, e poderiam esperar novidades em várias frentes ao longo desse dia se os vídeos das câmaras de vigilância revelassem o que prometiam. E disponível? Seria essa uma razão suficiente para o integrar na investigação? Claro que não. Havia muitos psicólogos disponíveis. Vários deles melhores do que Sebastian no seu corrente estado, acreditava Torkel. Então porque estava Sebastian ali sentado? Torkel não lhe devia nada. Antes pelo contrário. A sua vida seria mais fácil sem o antigo colega em cena. Mas tinha havido algo de brutalmente honesto no pedido de Sebastian. Algo de desesperado. Sebastian poderia tentar mostrar-se indiferente e insensível, mas Torkel pressentira ali um vazio. Uma mágoa. Parecia um exagero, mas Torkel tinha a sensação de que a vida de Sebastian – ou, no mínimo, a sua saúde mental – dependia de ser autorizado a participar naquela investigação. Para o dizer de uma maneira simples, o único motivo de Torkel era que isso lhe parecera correcto.
Na ocasião. Na sala de refeições do hotel.
Sentia começar a crescer dentro de si uma semente de dúvida.
– Além disso, emagreci um bocado.
Todos se viraram ao mesmo tempo para Sebastian, que estava a endireitar-se na sua cadeira.
– Como?
– A Ursula chamou-me «o grande Sebastian Bergman». Mas eu perdi um bocadito de peso. Claro, a menos que te estivesses a referir ao tamanho de outra coisa. – Sebastian lançou a Ursula um sorriso malicioso.
– Pronto! Passaram trinta segundos e tu já começaste! – Ursula virou-se para Torkel. – Estás mesmo a dizer-me que vamos trabalhar juntos?
Sebastian abriu as mãos num gesto de desculpa.
– Lamento. Peço perdão. Não percebi que uma referência a um grande intelecto causaria tamanha ofensa a esta equipa.
Ursula fungou, abanou a cabeça, e cruzou os braços sobre o peito. O modo como olhou para Torkel indicava claramente que esperava que ele encontrasse alguma solução, e que isso envolveria o desaparecimento de Sebastian. Vanja, que nunca trabalhara com Sebastian, estava a olhá-lo com uma mistura de incredulidade e de fascínio. Como se ele fosse um insecto observado ao microscópio.
– Está a falar a sério?
Sebastian abriu mais uma vez os braços.
– Tudo o que há neste corpo fantástico é a sério.
Torkel sentia a semente da dúvida a crescer. Normalmente as coisas corriam-lhe extremamente bem quando ele seguia o seu instinto. Mas agora? Quanto tempo tinha decorrido? Três minutos? E a atmosfera dentro da sala era a pior desde há muitos anos. Ou desde sempre. Torkel ergueu a voz.
– Muito bem, já chega. Sebastian, gostaria que nos deixasses agora. Vai-te sentar noutro sítio qualquer a ler o material sobre o caso.
Estendeu uma pasta a Sebastian. Este agarrou-a, mas Torkel não a largou, obrigando Sebastian a fitá-lo.
Sebastian levantou os olhos para ele com uma expressão penetrante.
– E de futuro passas a tratar-me a mim e à minha equipa com respeito. Eu trouxe-te para cá. Posso tirar-te de cá. Fui claro?
– Oh, com certeza, deve ser terrivelmente difícil lidar com a minha falta de respeito quando toda a gente fez os possíveis para me fazer sentir bem-vindo.
Torkel ignorou a ironia.
– Não estou a brincar. Se não mudares de atitude, vais-te embora. Fui claro?
Sebastian percebeu que não era o momento apropriado para enfrentar Torkel. Aquiesceu, obedientemente.
– Peço imensa desculpa a cada um de vós. Por tudo. Daqui em diante, quase nem notarão que eu estou cá.
Torkel soltou a pasta. Sebastian enfiou-a debaixo do braço e fez um pequeno aceno às quatro pessoas que estavam na sala.
– Até logo.
Sebastian abriu a porta e saiu. Ursula virou-se para Torkel, mas antes que ela tivesse tempo para iniciar a sua arenga, Haraldsson bateu à porta e entrou na sala.
– Recebemos uma mensagem por correio electrónico.
Estendeu a Torkel uma folha impressa. Vanja aproximou-se para conseguir ler por cima do seu ombro, o que se revelou desnecessário, uma vez que Haraldsson estava prestes a contar-lhes o que lá dizia.
– É de alguém que diz que o blusão do Roger está na garagem do Leo Lundin.
Torkel não precisou de dizer nada. Ursula e Billy passaram por Haraldsson, saíram pela porta e desapareceram.
Sebastian caminhou pelo escritório levando debaixo do braço a pasta que ele não tinha qualquer intenção de abrir. Até aqui, tudo bem. Estava integrado na investigação; agora tudo o que precisava de fazer era obter aquilo que viera buscar. Se realmente queria encontrar alguém, o sistema de computadores da polícia era o sítio onde deveria procurar. Para começar, havia a base de dados dos registos criminais; nem toda a gente lá estava, e em princípio Anna Eriksson também não, mas a quantidade de informação – à parte um possível registo criminal – de que a pessoa certa se conseguia apoderar através da polícia era impressionante. Era desse poder que ele precisava.
Era uma mera questão de encontrar a pessoa que iria ajudá-lo.
A pessoa certa para a função.
Permitiu que o seu olhar deambulasse sobre os vários postos de trabalho. Decidiu-se por uma mulher de cerca de quarenta anos que estava junto à janela. Corte de cabelo curto, prático. Maquilhagem subtil. Brincos pequenos, discretos. Olhos castanhos. Aliança de casada. Sebastian aproximou-se dela e sorriu.
– Olá. Chamo-me Sebastian Bergman, e a partir de hoje estou a trabalhar com a Riksmord. – Sebastian acenou com a cabeça na direcção da sala de conferências quando a mulher levantou os olhos do seu trabalho.
– Compreendo. Olá, sou a Martina.
– Olá, Martina. Ouça, preciso de ajuda numa coisa.
– Não há problema. O que é?
– Preciso de encontrar uma Anna Eriksson. Morava neste endereço em Estocolmo em 1979.
Colocou em cima da secretária, à frente de Martina, o envelope que tinha sido devolvido à sua mãe. Ela mirou-o, seguidamente fitou Sebastian com um laivo de suspeita no seu olhar.
– Ela tem alguma coisa a ver com a investigação?
– Sim, claro. Com certeza. Absolutamente.
– Então, porque não a procura sozinho?
Sim, porque não o fazia? Felizmente a verdade funcionava, desta vez.
– Só comecei a trabalhar hoje, e ainda não me deram a senha de utilizador, a palavra-passe e tudo isso. – Sebastian ofereceu-lhe o seu sorriso mais cativante, mas pela expressão de Martina percebeu que não estava a dar resultado. Ela pousou o dedo sobre o envelope que estava em cima da secretária e abanou a cabeça.
– Então porque não pede a alguém da sua equipa que o faça? Eles têm acesso a todo o sistema.
E porque é que tu não te limitas a ficar contente por poderes ajudar numa investigação de homicídio de grande importância? Porque é que não encontras o que eu procuro e páras de fazer tantas perguntas, foda-se?, pensou Sebastian enquanto se aproximava um pouco mais. Falou-lhe num tom de confidência.
– Para ser inteiramente honesto, isto é uma aposta um pouco arriscada da minha parte e, está a perceber, como é o meu primeiro dia, não quero fazer figura de parvo.
– Eu gostaria muito de poder ajudá-lo, mas primeiro tenho de pediu autorização ao seu chefe. Nós não podemos pesquisar pessoas sempre que nos apetece.
– Não é uma questão de...
Sebastian calou-se ao ver Torkel sair da sala de conferências e passar os olhos pelo escritório. Era evidente que tinha encontrado aquilo que procurava: Sebastian. Torkel caminhava na sua direcção. Sebastian pegou no envelope e endireitou-se rapidamente.
– Não se preocupe. Esqueça o assunto. Eu peço a outra pessoa da equipa. Provavelmente, até será mais fácil. Em todo o caso, obrigado.
Sebastian começou a andar antes de acabar de falar. Queria interpor distância suficiente entre si, Torkel e Martina, para que esta não decidisse perguntar a Torkel quando ele passasse se não fazia mal procurar uma Anna Eriksson de 1979. Isso levaria Torkel a perguntar porquê, a pôr em causa os motivos de Sebastian para se querer juntar à investigação e a colocar Torkel em guarda sem motivo nenhum. Por isso Sebastian continuou a afastar-se de Martina. Passo a passo. Até que...
– Sebastian.
Sebastian efectuou um rápido debate consigo mesmo. Teria de oferecer-lhe uma razão para a sua conversa com a agente policial? Talvez fosse o melhor. Decidiu optar pela explicação que provavelmente também já teria ocorrido a Torkel.
– Eu ia agora pôr-me a ler isto, mas fui distraído por um busto bem fornecido.
Torkel pensou se seria esta a ocasião para explicar a Sebastian que a partir daquele dia ele fazia parte da Riksmord. Que tudo o que fizesse se reflectia na equipa inteira. E que, por conseguinte, não era boa ideia tentar levar para a cama as colegas casadas da polícia local. Mas Torkel tinha a certeza de que Sebastian já o sabia. Sabia e não se importava.
– Recebemos uma mensagem anónima que dirige de novo a nossa atenção para o Leo Lundin. A Ursula e o Billy foram verificar, mas eu estava a pensar se quererias ir até lá para teres uma conversa com a mãe.
– A Clara?
– Sim, vocês pareciam entender-se bem.
Bom, sim, poderia dizer-se que sim. Extremamente bem. Clara era uma mulher que deixaria Torkel de sobreaviso e que faria com que Sebastian fosse expulso antes que percebesse o que lhe sucedera. Não se devia ir para a cama com a mãe de um rapaz suspeito de homicídio. Sebastian tinha a certeza de que Torkel seria firme nesse ponto específico.
– Não me parece. Provavelmente, é melhor eu inteirar-me do caso, ver se consigo averiguar algo de novo.
Por um instante pareceu-lhe que Torkel ia objectar, mas depois ele concordou.
– Está bem, então faz isso.
– Só mais uma coisa: poderias dar-me acesso aos computadores de cá, por favor? Registos criminais, tudo isso.
Torkel pareceu genuinamente intrigado.
– Porquê?
– Porque não?
– Porque tu já és conhecido por fazeres a tua corrida sozinho. – Torkel aproximou-se. Sebastian sabia porquê. Não havia qualquer motivo para permitir que ouvidos curiosos percebessem que havia desentendimentos no seio da equipa. Para o mundo exterior, eles estavam unidos. Isso é que era importante. Também significava que tudo o que Torkel estava prestes a dizer não deveria ser inteiramente positivo. E não era.
– Tu não és um membro da equipa. És um consultor. Todas as investigações que pretenderes levar a cabo e quaisquer pistas que pretendas seguir terão de passar por um de nós. De preferência, pelo Billy.
Sebastian tentou não lhe mostrar o seu desapontamento. Não o conseguiu inteiramente.
– Tens algum problema com isso?
– Não. Claro que não. A decisão é tua.
Cabrão do Torkel. Agora aquilo demoraria mais do que ele inicialmente pensara. Não tinha qualquer intenção de fazer parte desta investigação por demasiado tempo. E muito menos de ser uma parte activa. Não estava disposto a falar, a entrevistar ou a analisar nada nem ninguém. Nem começaria a propor possíveis cenários ou perfis do assassino. Conseguiria o que fora ali buscar – o endereço actual de Anna Eriksson, caso fosse esse o nome dela actualmente – e a seguir haveria de se desembaraçar da equipa com ligeireza e eficácia, sair da cidade e nunca mais voltar.
Sebastian mostrou-lhe a pasta.
– Nesse caso, vou começar a ler.
– Só mais uma coisa, Sebastian.
Sebastian suspirou. Podia ou não ir sentar-se num sítio qualquer com uma caneca de café e fingir que lia?
– Tu estás aqui como um favor a um amigo. Porque eu acreditei em ti quando disseste que precisavas de retomar a tua actividade. Não espero gratidão, mas agora cabe-te a ti garantir que eu não acabe por me arrepender da minha decisão.
Antes de Sebastian ter tempo para responder, Torkel virou-lhe as costas e foi-se embora. Sebastian ficou a olhá-lo.
Não sentia gratidão.
Claro que Torkel acabaria por se arrepender da sua decisão.
Era isso que acontecia a todos os que deixavam Sebastian entrar nas suas vidas.
Billy abriu a porta da garagem. De momento não estava lá qualquer carro, embora houvesse espaço suficiente. O que era invulgar. Ao longo dos anos Billy e Ursula tinham estado dentro de muitas garagens. A maior parte delas estava cheia de tudo menos de automóveis. Mas na garagem dos Lundin viram-se confrontados com uma vasta extensão de chão, sujo e manchado de óleo, e com um escoadouro no centro. Billy empurrou a porta toda para trás enquanto Ursula procurava um interruptor.
Entraram. As duas lâmpadas fluorescentes do tecto tremeluziram até ficarem ligadas, mas, apesar disso, acenderam as suas lanternas. Sem precisarem de dizer uma palavra, cada um começou a examinar um lado da garagem. Ursula foi para a direita, Billy para a esquerda. No lado de Ursula o chão estava praticamente vazio. Havia um velho jogo de cróquete e, a um canto, um conjunto de pinos de bólingue de plástico, ao qual faltava uma bola. E uma máquina eléctrica de cortar relva. Ursula pegou nela. Vazia. Tal como na última vez. As prateleiras que ocupavam as paredes estavam repletas, mas não havia nada que indicasse que alguma vez estivera um carro na garagem. Não havia óleo nem velas nem anticongelante nem lâmpadas. Havia, porém, muito equipamento de jardinagem: instrumentos para podar, pacotes de sementes meio cheios, luvas e pulverizadores contra as ervas daninhas. Não existia qualquer sítio onde esconder um blusão. Ursula ficaria muito surpreendida se a informação que lhes chegara por correio electrónico se revelasse correcta. Se o blusão estivesse ali, ela tê-lo-ia encontrado na primeira vez.
– Verificaste o escoadouro?
– O que achas?
Billy não respondeu. Começara a vasculhar os três sacos de adubo que estavam empilhados numa parede, ao lado do mobiliário de jardim de plástico branco. Era estúpido da sua parte perguntar-lhe aquilo. Ursula não gostava que a pusessem em causa. Sem saber muito acerca do anterior relacionamento entre eles, Billy achava que era por isso que ela detestava tanto Sebastian Bergman. O pouco que Billy ouvira dizer a respeito de Sebastian sugeria que ele punha constantemente em causa tudo e todos. Punha-os em causa e sabia mais do que eles, no mínimo. Isso não interessava a Billy, desde que Sebastian soubesse o que andava a fazer. Todos os dias Billy trabalhava com agentes que eram melhores do que ele. Não havia problema. Na verdade, Billy ainda não formara nenhuma impressão a respeito de Sebastian. Uma piada um pouco despropositada tanto se poderia atribuir aos nervos como a outra coisa qualquer. Mas Ursula não gostava dele. E Vanja também não, por isso eram bastante boas as hipóteses de que Billy acabasse por se situar no mesmo campo.
Chegou ao canto da parede no seu lado. Havia uma quantidade de ferramentas de jardinagem em cima de uma armação que estava no chão, e diversas outras penduradas em ganchos na parede.
– Ursula...
Billy parara junto às ferramentas de jardinagem. Havia um grande balde de plástico cheio de argila expandida ao lado da armação de madeira que amparava um ancinho, uma enxada, e uma coisa que se parecia com uma picareta, mas cujo nome Billy desconhecia. Ursula foi ter com ele e Billy apontou a sua lanterna para o fundo do balde. Entre as bolas de argila distinguia-se claramente qualquer coisa verde.
Ursula começou imediatamente a tirar fotografias. Ao fim de um certo tempo baixou a câmara e virou-se para Billy. Não lhe foi difícil interpretar a expressão no rosto dele como sendo de cepticismo, embora ele julgasse que era neutra.
– Eu não deixaria de reparar num blusão escondido dentro de um balde na garagem de um suspeito. Tal como te aconteceu agora.
– Eu não disse nada.
– Percebo pela expressão dos teus olhos. É quanto basta.
Ursula pegou num grande saco para recolha de provas e tirou cuidadosamente o blusão para fora do balde com umas tenazes. Ambos olharam para ele com uma expressão séria. A maior parte do blusão estava coberta de sangue coagulado. Na parte de trás, o tecido estava quase desfeito. Tornou-se muito evidente para ambos o aspecto que ele deveria ter quando era vestido por um corpo vivo. Sem mais uma palavra, Ursula enfiou-o dentro do saco e selou-o.
Na esquadra de Västgötegatan, Haraldsson estava sentado diante do seu computador à espera de mensagens. Continuava a fazer parte do jogo.
Disso não havia dúvida.
Andavam todos a fazer o que podiam para se livrarem dele, mas continuava a aguentar-se. Graças à sua previdência, à sua capacidade de compreender quem tinha acesso à maior parte da informação naquele edifício. As pessoas que a maioria dos seus colegas se limitava a cumprimentar de passagem todos os dias: o pessoal da recepção. Haraldsson compreendera logo no início da sua carreira que as pessoas que trabalhavam no átrio observavam quase tudo. Tanto no lado de dentro como no lado de fora. Por esse motivo, ao longo dos anos, fizera questão de ir tomar um café com eles de tempos a tempos, de lhes perguntar pelas suas famílias, de se interessar e, ocasionalmente, de os ajudar em caso de necessidade. Por isso, eles agora contactavam-no automaticamente se aparecesse alguém relacionado com Roger Eriksson. Quer fosse por via telefónica ou através do formulário no site da autoridade policial local, aquilo também ia parar a Haraldsson. Quando surgira a informação anónima acerca do blusão na garagem dos Lundin, tinham-lhe telefonado da recepção e, um segundo depois, a mensagem reencaminhada chegara à sua caixa de correio. Tudo o que tivera de fazer fora imprimi-la e ir entregá-la.
Bom, mas não era suficientemente bom. Qualquer pessoa poderia aparecer com uma mensagem impressa.
Isso era a função de um estagiário.
Alguém que não tivesse qualificações.
Detectar o remetente, porém – ora, isso já era trabalho policial. Não havia nada na mensagem que sugerisse que a pessoa que fornecera a informação era culpada de alguma coisa. Mas caso se verificasse que ela era exacta, então essa pessoa tinha algum conhecimento do crime; a equipa dos homicídios haveria de ficar interessada, e Haraldsson seria capaz de os conduzir na direcção certa.
O departamento de tecnologias de informação da esquadra era uma anedota. Consistia no Kurre Dahlin, um homem dos seus cinquenta anos, cuja principal aptidão era premir Ctrl-Alt-Del, abanar a cabeça e, depois, enviar a ofensiva máquina para reparação. Provavelmente Kurre Dahlin demoraria menos tempo a aprender a voar do que a detectar a origem de uma mensagem de correio electrónico.
O computador do qual ela fora enviada possuía um endereço IP, e Haraldsson tinha um sobrinho de dezassete anos. Logo que recebeu a mensagem, reencaminhou-a para o sobrinho, seguidamente enviou-lhe uma mensagem de texto e ofereceu-lhe 500 coroas se ele conseguisse descobrir o verdadeiro endereço do remetente. Sim, ele sabia que o sobrinho estava nas aulas, mas logo que possível, por favor.
O sobrinho leu a mensagem de texto, levantou a mão, pediu licença para ir lá fora e saiu da sala de aula. Dois minutos depois tinha ido buscar a mensagem à sua caixa de correio num dos computadores da escola. Logo que viu o endereço do remetente da mensagem original recostou-se na cadeira, com uma expressão perturbada. Haraldsson julgava que o sobrinho era uma espécie de rapaz-maravilha em matéria de computadores, e normalmente as coisas que lhe pedia eram muito simples, mas desta vez ele ia desapontar o tio. Não havia qualquer problema em localizar um endereço de IP, mas a mensagem poderia ter sido enviada através de um dos grandes operadores de Internet e, nesse caso, seria impossível encontrar alguma coisa realmente útil. Bom, já agora poderia fazer uma tentativa.
Ao fim de dois minutos, recostou-se de novo na cadeira, desta vez com um amplo sorriso no rosto. Tivera sorte. A mensagem tinha sido enviada de um servidor independente. Iria receber as suas quinhentas. Clicou em «Enviar».
Na esquadra, o computador de Haraldsson tilintou. Ele abriu rapidamente a nova mensagem e abanou a cabeça com satisfação. O servidor de onde tinha sido enviada a mensagem original ficava logo à saída da cidade.
Para ser exacto, era no Liceu Palmlövska.
– Na próxima à esquerda.
Sebastian estava sentado no banco do passageiro de um carro da polícia descaracterizado. Um Toyota. Quem o conduzia era Vanja. Ela mirou rapidamente o pequeno ecrã por cima do painel de instrumentos.
– O GPS diz que é sempre em frente.
– Mas se virares à esquerda é mais rápido.
– Tem a certeza?
– Tenho.
Vanja decidiu ir em frente. Sebastian afundou-se no seu assento e, através da suja janela lateral, olhou para a cidade, sem sentir por ela mais do que um grande vazio.
Tinha estado sentado na sala de conferências com Torkel, Vanja e Billy, por não ter encontrado um bom motivo pelo qual ele pudesse não estar lá, quando Torkel lhe viera dizer que havia novas informações sobre o caso. Ficara a saber que tinham encontrado o blusão da vítima. Certamente que ainda teria de ser analisado, mas nenhum deles acreditava mesmo que pudesse ser o blusão ou o sangue de outra pessoa. Isso significava que Leo Lundin era de novo uma pessoa de interesse para a investigação. Vanja interrogá-lo-ia outra vez após a reunião.
– Façam como quiserem, mas é um desperdício de tempo.
Todos se tinham virado para fitar Sebastian, que estava sentado ao fundo da mesa balouçando a sua cadeira para trás e para diante. Podia ter ficado ali sentado sem dizer nada, deixando os outros cometerem todos os erros que quisessem enquanto ele imaginava uma maneira de ganhar acesso aos computadores e à informação de que precisava. Ou, para o dizer de modo mais exacto, enquanto ele encontrava outra mulher do departamento que fosse mais susceptível aos seus encantos do que Martina. Decerto não seria muito difícil. Por outro lado, ninguém gostava dele. Mais valia que fosse fiel ao seu sabichão interior.
– Não faz sentido. – Sebastian permitiu que as pernas da frente da cadeira voltassem a entrar em contacto com a alcatifa. Ursula entrou e, sem dizer uma palavra, sentou-se numa das cadeiras mais perto da porta.
Sebastian prosseguiu.
– O Leo nunca esconderia o blusão da vítima na sua garagem.
– Porque não? – disse Billy, parecendo genuinamente interessado. Sem quaisquer reservas. Poderia ser uma pessoa que valesse a pena conhecer.
– Porque nem sequer o teria retirado do corpo.
– Ele ficou com o relógio. – O tom de Vanja também não era defensivo. Era mais uma questão de estar na ofensiva. Decidida a corrigi-lo. A desfazer o seu argumento. Ela era como Ursula. Ou, na verdade, como ele, como quando ele se interessava verdadeiramente por alguma coisa.
Competitivo.
Concentrado no triunfo.
Porém, ela não ganharia esta partida. Sebastian fitou-a tranquilamente.
– Existe uma diferença. O relógio era valioso. Temos um rapaz de dezasseis anos, uma mãe solteira que trabalha na indústria da prestação de cuidados. Ele está constantemente a tentar manter-se na corrida materialista que decorre a todo o instante ao seu redor. Porque se daria ao trabalho de tirar um blusão rasgado e manchado de sangue e de o levar consigo, se deixou ficar a carteira e o telemóvel do Roger? Não faz qualquer sentido.
– O Sebastian tem razão. – Todos se viraram para Ursula. Sebastian ostentava uma expressão que sugeria que achava difícil acreditar no que ouvia. Aquelas quatro palavras que Ursula raramente proferira na sua vida. Na verdade, Sebastian nem conseguia lembrar-se de ela alguma vez as ter dito. – Custa-me dizê-lo, mas é verdade. – Ursula pôs-se rapidamente em pé e tirou duas fotografias de dentro de um envelope. – Sei que vocês pensam que eu não reparei no blusão na primeira vez. Mas olhem para isto. – Colocou a primeira fotografia em cima da mesa, e todos se debruçaram sobre ela. – Quando ontem revistei a garagem, interessei-me particularmente por três coisas: a motorizada, por motivos óbvios; o escorredouro, para o caso de existirem vestígios de sangue, ou para o caso de alguém ter lavado a motorizada ou uma arma qualquer na garagem; e a seguir as ferramentas de jardinagem, uma vez que não encontrámos a arma do crime. Tirei esta fotografia ontem.
Colocou o dedo em cima da imagem, que mostrava as ferramentas de jardinagem empilhadas em cima da armação de madeira. A fotografia fora tirada de um ângulo superior, e o balde branco que continha a argila expandida era claramente visível a um canto.
– Tirei esta hoje. Vejam a diferença. – Ursula pousou a segunda fotografia. Quase idêntica à primeira. Desta vez, porém, o tecido verde era claramente visível em diversos sítios através da fina camada de argila. A sala ficou em silêncio por um momento.
– Alguém foi lá pôr o blusão entre ontem e hoje. – Billy foi o primeiro a articular o que todos pensavam. – Alguém quer incriminar o Leo Lundin.
– Esse não é o principal motivo. – Sebastian deu por si a olhar para as imagens com um certo interesse. Havia algo de estimulante no que acabara de acontecer. O assassino levara objectos que pertenciam à vítima e agora estava a usá-los para incriminar outra pessoa. E não ao acaso, mas em casa do principal suspeito. Isso indicava que o assassino acompanhava de perto os progressos da investigação e que agia de acordo com um plano deliberado. Estava decidido a safar-se. Provavelmente nem sequer lamentava o que fizera. Um homem que, lá no fundo, se assemelhava a Sebastian em tudo.
– O principal motivo para colocar o blusão na garagem é afastar as suspeitas em relação a si mesmo. Ele não tem nada de pessoal contra o Leo; sucede apenas que o Leo se adequa ao papel porque nós já estamos concentrados nele.
Torkel olhou para Sebastian com uma certa dose de satisfação. As suas anteriores dúvidas desvaneceram-se ligeiramente. Torkel conhecia Sebastian melhor do que este gostaria. Sabia que o seu colega era incapaz de se envolver em algo que não lhe interessasse, mas também sabia como Sebastian podia ficar absorto quando deparava com algum desafio. Sempre que isso acontecia, ele era uma verdadeira mais-valia para a investigação. Torkel tinha a sensação de que estavam no bom caminho. Agradeceu silenciosamente a mensagem de correio electrónico e a descoberta do blusão.
– Portanto, a pessoa que enviou a mensagem é, provavelmente, o assassino.
Foi Vanja que depressa chegou à conclusão correcta.
– Temos de detectar a sua origem. Descobrir de onde veio.
Como numa representação teatral, ouviu-se uma batida discreta na porta, como se Haraldsson estivesse do lado de fora a aguardar a deixa para fazer a sua entrada.
Sebastian desapertou o cinto de segurança e saiu do carro. Levantou os olhos para o edifício à sua frente e foi assolado por uma imensa fadiga.
– Então era aqui que ele andava?
– Sim.
– Coitado. Já excluímos completamente o suicídio?
Por cima das portas duplas por onde se entrava no Liceu Palmlövska estava uma grande pintura de um homem que só poderia ser Jesus. Tinha os braços estendidos, num gesto que o artista sem dúvida visara ser de acolhimento, mas que a Sebastian parecia ser distintamente ameaçador. Disposto a retirar a liberdade a quem entrasse por aquelas portas.
Por baixo da imagem lia-se: João 12:46.
– «Vim ao mundo como luz, para que todo o que crê em mim não fique nas trevas» – recitou Sebastian.
– Conhece a Bíblia?
– Conheço esta parte.
Sebastian subiu o último lance de degraus e empurrou uma porta. Com um derradeiro olhar ao enorme quadro, Vanja seguiu-o.
Ragnar Groth, o director do Liceu Palmlövska, fez um gesto largo na direcção de um pequeno sofá e de um cadeirão a um canto do seu gabinete. Vanja e Sebastian sentaram-se. Ragnar Groth desabotoou o casaco e sentou-se atrás da sua secretária rústica e antiquada. Sem sequer se aperceber do que fazia, endireitou uma caneta até que ela ficasse exactamente paralela à aresta da secretária. Sebastian reparou e deixou o seu olhar percorrer toda a secretária e, depois, o resto do aposento. O local de trabalho do director estava quase vazio. À sua esquerda havia uma pilha de pastas de plástico. Completamente alinhadas. Nenhuma se destacava das outras. Estavam no canto inferior esquerdo da secretária, com uma margem de menos de dois centímetros entre elas e o bordo da mesa. À direita, duas canetas e um lápis, dispostos paralelamente, todos a apontarem na mesma direcção. Acima deles havia uma régua e uma borracha, que não pareciam ter sido utilizadas. O telefone, o computador e um candeeiro estavam dispostos com precisão em relação às arestas da mesa e entre si.
O resto da sala estava arrumada segundo a mesma orientação. Não havia quadros tortos nem post-it à vista. No painel de parede tudo estava devidamente afixado e espaçado a intervalos regulares. Todos os ficheiros alinhados com precisão na beira da estante. Não havia vestígios de qualquer marca deixada por uma caneca de café ou por um copo de água. O mobiliário organizado com absoluta precisão em relação às paredes e ao tapete. Sebastian elaborou rapidamente um diagnóstico acerca de Ragnar Groth: um pedante com sintomas de perturbação obsessiva-compulsiva.
Ostentando uma expressão de máxima seriedade, o director aguardara Vanja e Sebastian à porta do seu gabinete, com a mão estendida tão rigidamente hirta que parecia ridícula, e embarcara de imediato numa pormenorizada narrativa sobre como era terrível que um dos alunos da escola tivesse sido assassinado. Evidentemente que toda a gente faria o melhor que pudesse para ajudar a resolver esse crime horrendo. Não seriam levantados quaisquer obstáculos ao trabalho da polícia. Cooperação total. Vanja não pôde deixar de sentir que cada palavra parecia provir do manual de alguma empresa de relações públicas especializada em gestão de crises. O director ofereceu-lhes café. Vanja e Sebastian declinaram.
– O que sabem acerca da escola?
– O suficiente – disse Sebastian.
– Não muito – disse Vanja.
– Nós começámos por ser um internato, durante os anos 1950, e agora somos um liceu privado; temos um programa de estudos sociais e de ciências da natureza, com opções em línguas, economia e liderança. Temos duzentos e dezoito alunos de toda a região de Mälardalen, e alguns chegam a vir de Estocolmo. Foi por isso que mantivemos a parte do internato.
– Para os miúdos ricos não terem de se misturar com os plebeus.
Groth voltou-se para Sebastian e, embora a sua voz permanecesse baixa e bem modulada, não conseguiu disfarçar uma ponta de irritação.
– A nossa reputação como escola da classe alta está a desaparecer. Hoje em dia os pais que vêm ter connosco são aqueles que verdadeiramente querem que os seus filhos aprendam alguma coisa na escola. Os nossos resultados estão entre os melhores do país.
– Claro que estão. Isso torna-vos competitivos e justifica as vossas propinas ridiculamente elevadas.
– Nós já não cobramos propinas.
– Claro que cobram, mas agora chamam-lhes «um donativo razoável».
Groth lançou um olhar irado a Sebastian e tornou a recostar-se no seu cadeirão ergonómico. Vanja sentia que estavam a desviar-se do assunto. Apesar do tom exageradamente formal do director, ele pelo menos mostrara-se disposto a auxiliar a investigação. As observações impróprias de Sebastian poderiam alterar essa situação ao fim de apenas três minutos, o que os levaria a terem de se debater por cada fragmento de informação junto dos alunos e do pessoal. Se Ragnar Groth não lhes desse a sua bênção, nem sequer conseguiriam olhar para uma fotografia escolar sem terem de pedir autorização. Vanja não sabia ao certo se Groth estava ciente do ponto a que poderia dificultar-lhes o trabalho, mas nesta fase não estava preparada para correr esse risco. Deslocou-se para diante no sofá e ofereceu-lhe um sorriso triunfante.
– Conte-me mais sobre o Roger. Como veio aqui parar?
– Houve problemas de violência com ele na escola intermédia e no primeiro liceu que frequentou. Um dos meus docentes conhecia-o bem, o filho era amigo do Roger, por isso intercedeu por ele e arranjámos-lhe aqui um lugar.
– E era feliz aqui? Não se metia em sarilhos com os outros alunos?
– Somos muito proactivos nos nossos esforços para prevenir os confrontos.
– Vocês têm outro termo para isso, não têm? Não lhe chamam «praxes»?
Groth ignorou o comentário de Sebastian. Vanja lançou-lhe um olhar com o qual esperava levá-lo a manter-se de boca calada. Depois, virou-se de novo para o director.
– Sabe se o Roger teve um comportamento diferente nos últimos dias ou nas últimas semanas? Se ele andava preocupado com alguma coisa, desorganizado ou algo assim?
Groth abanou a cabeça devagar enquanto pensava no assunto.
– Não, não diria isso. Mas deviam falar com a Beatrice Strand, a directora da turma dele; via-o com mais frequência do que eu.
Agora falava apenas para Vanja.
– Foi através da Beatrice que o Roger veio para cá.
– Como é que ele conseguiu o donativo razoável? – perguntou Sebastian numa voz esganiçada. Não tinha qualquer intenção de ser ignorado. Isso tornaria as coisas demasiado fáceis para o senhor Groth. O director mostrou-se um pouco surpreendido, quase como se quisesse esquecer por algum tempo que aquele homem com peso a mais e assaz deselegante estava sentado no seu gabinete.
– O Roger ficou isento do donativo.
– Então ele era o vosso pequeno projecto social? Preenchia a vossa quota de actos caritativos? Isso deve ter sabido bem.
Groth puxou muito deliberadamente a sua cadeira para trás e levantou-se. Permaneceu de pé atrás da secretária, de costas direitas e com as pontas dos dedos apoiadas na superfície em que não havia pó. Como o Calígula naquele velho filme, Torment[5], pensou Sebastian enquanto reparava na maneira como o director abotoava o casaco sempre que se levantava.
– Tenho de lhe dizer que acho muito incómoda a sua atitude em relação à nossa escola.
– Valha-me Deus. O problema é que eu passei aqui três dos piores anos da minha vida, por isso preciso de um pouco mais do que o vosso paleio comercial para aderir ao coro de aprovação.
Groth olhou para Sebastian com uma certa dose de cepticismo.
– É um antigo aluno?
– Sou. Infelizmente, o meu pai teve a ideia de fundar este templo do conhecimento.
Groth processou a informação e, quando compreendeu o que ouvira, tornou a sentar-se. Com o botão do casaco desapertado. A expressão de irritação fora substituída por uma de pura incredulidade.
– É o filho do Ture Bergman?
– Sou.
– Não são muito parecidos.
– Obrigado, essa é a coisa mais simpática que alguém me disse desde que cá cheguei.
Sebastian levantou-se e, com a mão, fez um gesto que abarcava Vanja e Groth.
– Continuem a conversar. Onde é que eu encontro a Beatrice Strand?
– De momento, ela está a dar aulas.
– Mas presumivelmente estará a fazê-lo algures no edifício!
– Eu preferia que esperasse até ao intervalo para falar com ela.
– Muito bem, encontrá-la-ei sozinho.
Sebastian saiu da sala. Antes de fechar a porta atrás de si, ouviu Vanja pedindo desculpa pelo seu comportamento. Já ouvira isso antes. Não por parte de Vanja, mas de outros colegas em relação a outras pessoas em contextos diferentes. Sebastian começava a sentir-se cada vez mais à vontade nesta investigação. Dirigiu-se rapidamente para as escadas. A maioria das salas de aula situavam-se no piso inferior. Era pouco provável que isso tivesse mudado. Em geral, as coisas tinham o mesmo aspecto de há quarenta anos; as paredes poderiam ser de cor diferente, mas, fora isso, o Liceu Palmlövska não mudara muito.
Afinal, o inferno não muda.
Provavelmente era essa a própria definição de inferno.
O tormento sem fim.
Sebastian demorou mais tempo do que esperava a encontrar o seu caminho. Deambulou pelos corredores familiares, batendo a várias portas, antes de encontrar a sala de aula em que Beatrice Strand estava a ensinar. Pelo caminho, decidira não sentir nada. A escola era apenas um edifício. Um edifício em que ele passara três anos sob protesto. O seu pai obrigara-o a frequentar o Palmlövska quando inaugurara o local, e desde o primeiro dia que Sebastian se decidira a não gostar dele. A não se adequar. Quebrara todas as regras imagináveis e, na sua qualidade de filho do fundador, desafiara todos os professores e todas as figuras de autoridade. Possivelmente, o seu comportamento dera-lhe um certo estatuto entre os restantes alunos, mas Sebastian decidira que não haveria nada de positivo nos anos que passasse nesta escola, e, por conseguinte, não hesitara em contar histórias ou em pôr os seus colegas uns contra os outros ou contra o pessoal da instituição. Isso tornara-o extremamente impopular junto de todos e colocara-o no papel do intruso, que ele acolhera de bom grado. De certa maneira julgava estar a punir o seu pai por este se alienar sistematicamente de tudo e de todos, e não se podia negar o facto de o seu estatuto de completo intruso lhe propiciar um novo tipo de liberdade. A única coisa que se esperava dele era que fizesse o que lhe apetecia em qualquer situação. Tornara-se muito bom nisso.
Durante o resto da sua vida prosseguira o rumo em que embarcara durante a adolescência.
Se não é como eu quero, vou-me embora.
Durante toda a sua vida. Não, não durante toda a vida. Não com Lily. Ele não tinha sido assim com ela. De modo nenhum. Como poderia suceder que uma pessoa – no fundo, duas – tivessem tanta influência na vida dele? O modificassem tão completamente?
Não sabia.
Sabia apenas que isso tinha acontecido.
Tinha acontecido, e a seguir fora-lhe retirado.
Bateu à porta castanho-clara e entrou sem esperar resposta. Uma mulher de cerca de quarenta anos estava sentada à secretária do professor. Um espesso cabelo ruivo, preso atrás num rabo-de-cavalo. Um rosto aberto e sardento, despido de maquilhagem. Uma blusa verde-escura que realçava os seios. Saia castanha comprida. Ela olhou para Sebastian, que se apresentou e dispensou os alunos do resto da aula. Beatrice Strand não objectou.
Quando ficaram a sós na sala de aulas, Sebastian puxou uma cadeira da fila da frente e sentou-se. Pediu que ela lhe falasse acerca de Roger e aguardou o acesso emocional que ele suspeitava que se seguiria. Absolutamente certo. Diante dos seus alunos, Beatrice tivera de se mostrar forte, a pessoa que tinha as respostas todas, a pessoa que representava a segurança e a vida vulgar, quotidiana, sempre que algo de incompreensível forçava a sua entrada. Mas agora estava a sós com outro adulto. Alguém que fazia parte da investigação e que, por conseguinte, assumia o papel da segurança e do controlo. Ela já não precisava de ser a mais forte. O dique rebentou. Sebastian aguardou.
– Eu simplesmente não compreendo... – As palavras brotavam trémulas por entre os soluços. – Despedimo-nos na sexta-feira como habitualmente, e agora... agora ele nunca mais voltará. Nós mantivemos a esperança, mas depois, quando o encontraram...
Sebastian não disse nada. Bateram à porta e Vanja enfiou a cabeça dentro da sala. Beatrice assoou-se e enxugou os olhos enquanto Sebastian apresentava as duas mulheres. Beatrice fez um gesto para o seu rosto manchado de lágrimas, depois pediu-lhes licença e saiu da sala. Vanja empoleirou-se numa das mesas.
– A escola nunca monitoriza a utilização dos computadores, nem tem câmaras em lado nenhum. É uma questão de respeito mútuo, segundo o director.
– Portanto, qualquer um poderia ter enviado a mensagem?
– Não tem de ser um aluno. Podia ser alguém que tivesse vindo da rua.
– Mas tem de ser alguém que possua um certo conhecimento da escola.
– Sim, mas, mesmo assim, isso implica duzentos e dezoito estudantes mais os pais, os amigos e todo o pessoal da escola.
– Ele sabia-o.
– Quem?
– A pessoa que enviou a mensagem. Ele sabia que seria impossível detectá-lo a partir da escola. Mas já cá esteve antes. Tem alguma espécie de ligação a esta escola. Podemos partir desse princípio.
– Provavelmente. Se for um homem.
Sebastian olhou para Vanja, com uma expressão de cepticismo.
– Eu ficaria muito surpreendido se não fosse um homem. A maneira como o homicídio foi levado a cabo, e em particular o que foi feito ao coração, indica que pertencia ao sexo masculino. – Sebastian ia dar início a um monólogo sobre a necessidade que os assassinos masculinos tinham de obter troféus, um desejo de manterem o seu poder sobre a vítima guardando qualquer coisa que pertencesse a esta, o que quase nunca ocorria no caso de uma mulher. Mas Beatrice regressou e interrompeu-o antes que ele conseguisse prosseguir. Sentou-se à sua secretária com mais um pedido de desculpas e encarou-os, parecendo muito mais composta.
– Foi a responsável por o Roger ter vindo para esta escola? – perguntou-lhe Vanja.
Beatrice disse que sim com a cabeça.
– Ele e o meu filho Johan são amigos. – Apercebeu-se do tempo verbal que usara e corrigiu-se. – Eram amigos. Ele costumava ir muitas vezes a nossa casa e eu sabia que não era feliz naquela outra escola, mas afinal veio a saber-se que as coisas eram igualmente más, senão piores, na Runebergs.
– Mas ele era feliz aqui?
– Estava a adaptar-se bem. Ao princípio, foi difícil, evidentemente.
– Porquê?
– Foi uma grande mudança para ele. Os alunos daqui são altamente motivados no que respeita ao seu trabalho. Ele não estava habituado ao ritmo e ao nível em que nós trabalhamos. Mas estava a melhorar. Ficava cá depois da hora, tinha aulas de recuperação. Realmente estava a lidar muito bem com tudo isto.
Sebastian não disse nada. A atenção de Beatrice estava concentrada em Vanja; Sebastian ficou ali sentado, a olhá-la de perfil, e deu por si pensando qual seria a sensação de passar os seus dedos por aqueles cabelos ruivos e encrespados. De beijar aquele rosto sardento. De ver aqueles grandes olhos azuis fecharem-se por prazer. Havia nela qualquer coisa que emitia um sinal sugerindo... solidão? Sebastian não sabia ao certo. Mas ela não era como Clara Lundin. Não era tão vulnerável. Beatrice era mais... segura. Mais madura. Sebastian tinha a sensação de que ela seria mais difícil de levar para a cama, mas provavelmente valeria o esforço. Desistiu da ideia. Uma mulher ligada à investigação já era suficiente. Tornou a concentrar-se na conversa.
– O Roger tinha amigos cá?
– Não muitos. Costumava andar com o Johan e por vezes com o Erik Heverin, mas o Erik está nos Estados Unidos durante este período lectivo. E depois havia a Lisa, claro, a namorada dele. Ele não era um estranho nem impopular. Era só uma espécie de lobo solitário.
– Não havia problemas sérios, então?
– Aqui não. Mas às vezes encontrava pessoas da sua antiga escola.
– Ele parecia preocupado com alguma coisa?
– Não. Quando saiu daqui, estava como habitualmente. Contente por ser sexta-feira, como todos. A turma dele teve um exame de Sueco, e ele passou por aqui para me dizer que tinha corrido bem.
Beatrice calou-se e abanou a cabeça, como se tivesse acabado de perceber o absurdo da situação. As lágrimas voltaram a alagar-lhe os olhos.
– Ele era um rapaz realmente adorável. Sensível. Maduro. Isto não faz sentido nenhum.
– O seu filho está cá?
– Não, o Johan está em casa. Isto deixou-o muito abatido.
– Nós gostaríamos de falar com ele.
Beatrice aquiesceu com uma expressão resignada.
– Eu compreendo. Estarei em casa por volta das quatro.
– Não precisa de estar presente. – Beatrice aquiesceu de novo, mostrando-se mais resignada ainda. Aquilo era-lhe familiar. Ninguém precisava dela. Sebastian e Vanja levantaram-se.
– Talvez regressemos se precisarmos de voltar a falar consigo.
– Muito bem. Espero sinceramente que encontrem quem fez isto. É tão... é tão difícil. Para todos.
Sebastian concordou, dando todas as mostras de uma sincera simpatia. Beatrice fê-los parar.
– Há mais uma coisa; não sei se será importante, mas o Roger telefonou para nossa casa. Na noite dessa sexta-feira.
– A que horas?
Aquela informação era completamente nova, e o efeito que teve em Vanja foi nítido. Aproximou-se mais de Beatrice.
– Cerca das oito e um quarto. Queria falar com o Johan, mas ele tinha saído com o Ulf, o pai dele. Eu disse-lhe que telefonasse para o telemóvel do Johan, mas, segundo diz o Johan, ele nunca chegou a fazê-lo.
– O que queria ele? Contou-lhe a si?
Beatrice abanou a cabeça.
– Queria falar com o Johan.
– Às oito e um quarto de sexta-feira?
– Por volta dessa hora.
Vanja agradeceu-lhe e saíram. Oito e um quarto.
Quando Roger estava com a namorada, Lisa.
Vanja estava a ficar cada vez mais convencida de que ele nunca estivera em casa de Lisa.
O material estava em dois discos rígidos LaCie. Tinham sido trazidos uma hora antes por um mensageiro da empresa de segurança. Billy ligou rapidamente a primeira das duas caixas de aço acinzentado ao seu computador e começou a trabalhar. O disco estava assinalado como sexta-feira, 23 de Abril, 06h00-12h00, câmaras 1.02-1.16. Segundo as instruções que Billy recebera juntamente com os discos, as câmaras 1.14 e 1.15 cobriam a Gustavsborgsgatan, ou pelo menos partes dela. O último local em que Roger estivera naquela noite fatídica.
Billy encontrou a câmara 1.14 num dos ficheiros e iniciou o vídeo com um duplo clique. A qualidade do vídeo era melhor que a habitual: o sistema de vigilância tinha menos de seis meses e a companhia não poupara nos custos. Isso alegrou Billy desmedidamente. Na maior parte das vezes, o material das câmaras de vigilância era tão pobre e tão indistinto que trazia muito pouca ajuda às investigações. Mas este era muito diferente. Praticamente lentes Zeiss, pensou Billy, enquanto fazia avançar o vídeo até às nove da noite. Ao fim de meia hora telefonou a Torkel, que veio ter com ele imediatamente.
Torkel sentou-se ao lado de Billy. No tecto, o projector ligado ao computador de Billy começou a zumbir. As imagens da câmara 1.15 estavam a ser projectadas na parede. Pelo ângulo, era fácil perceber que a câmara fora colocada cerca de dez metros acima do chão. Estava apontada para uma praça e, ao centro, uma estrada desaparecia entre dois edifícios altos. O edifício da esquerda era um colégio, o outro uma escola. A praça deserta, situada mesmo à frente da câmara, parecia fria e ventosa. Um relógio digital marcava as horas num canto do ecrã. O silêncio foi subitamente interrompido quando surgiu uma motorizada. Billy parou a imagem.
– Ali está. O Leo Lundin passa às nove e dois minutos. Pouco depois, aparece o Roger, que vem a caminhar do lado ocidental.
Billy premiu uma tecla e a gravação prosseguiu. Cerca de um minuto depois aparecia outra figura. Vestia um blusão verde e caminhava apressada e decididamente. Billy tornou a imobilizar a imagem e eles examinaram a figura. Apesar do boné de basebol, cuja pala lhe ocultava o rosto, era de certeza Roger Eriksson, sem sombra de dúvida. A altura, o cabelo de comprimento médio e aquele blusão, o blusão que estava agora no depósito de provas da polícia, acastanhado pelo sangue seco, não tinha danos nem marcas.
– Ele aparece precisamente às nove horas, dois minutos e quarenta e oito segundos – disse Billy, reiniciando o vídeo. Roger deu um pequeno salto e continuou a andar. Havia qualquer coisa de especial nas imagens em movimento de uma pessoa que só tinha poucas horas de vida. Era como se o conhecimento da catástrofe iminente significasse que todos os passos eram examinados com maior minúcia, cada movimento adquiria um maior significado. A morte acoitava-se ao virar da esquina, mas na verdade esta vulgar caminhada não mostrava nada disso. O conhecimento do que estava por vir era da pessoa que observava e não do rapaz de dezasseis anos que passava pacatamente pela câmara 1.15. Ele desconhecia o que o esperava.
Torkel viu Roger parar e levantar os olhos. Um segundo depois, a motorizada reapareceu na imagem. Pela linguagem corporal de Roger, Torkel e Billy perceberam que ele conhecia o condutor e tinha consciência de que o aparecimento da motorizada poderia causar-lhe problemas. Roger endireitou-se e olhou em redor, como se procurasse uma saída. Pareceu decidir rapidamente ignorar a motorizada, que circulava agora ao redor dele como uma vespa irritante. Roger tentou seguir caminho, mas a circulação da motorizada impedia-o de o fazer, aproximando-se cada vez mais, sempre à roda dele. Roger parou, e, após mais alguns circuitos, a motorizada também. Leo desmontou. Roger olhou para Leo enquanto o rapaz tirava o capacete e se empertigava, como se quisesse parecer maior. Aparentemente, Roger sabia que ia haver sarilho e estava a preparar-se. A robustecer-se para o que ele sabia que aconteceria.
Este era o primeiro verdadeiro encontro de Torkel com o rapaz morto, e dava-lhe uma certa ideia de quem ele fora. Não tinha fugido. Talvez não tivesse sido uma mera vítima. Parecia que também ele estava a tentar parecer um pouco mais alto. Leo disse qualquer coisa. Roger respondeu, e surgiu então o primeiro soco. Roger cambaleou para trás e Leo avançou. Enquanto Roger recuperava o equilíbrio, Leo agarrou-lhe o braço esquerdo e puxou o blusão, expondo o relógio. Supostamente, Leo disse qualquer coisa, porque Roger fez uma tentativa para retirar o braço. Em resposta, Leo deu-lhe um soco no rosto.
Rápido e forte.
Sem qualquer aviso.
Torkel viu o sangue escorrer pela mão direita de Roger quando este a levou ao rosto. Leo bateu-lhe outra vez. Roger vacilou, agarrando-se à camisola de Leo enquanto caía de joelhos.
– Foi assim que o Leo ficou com sangue na camisola – comentou brevemente Billy. Torkel fez com a cabeça um aceno de concordância; isso estava explicado. Ver o sangue na sua camisola parecia ter sido a mola, o ímpeto de que Leo precisava para justificar um crescente nível de violência. Atirou-se a Roger numa fúria. Não tardou que Roger estivesse deitado no chão, a sofrer uma chuvada de pontapés. O relógio do ecrã registava mecanicamente as horas enquanto Roger continuava no chão, enroscado na posição fetal, recebendo o que Leo achava que ele merecia. Por fim, às 21h05, Leo parou de lhe dar pontapés, debruçou-se sobre Roger e arrancou-lhe o relógio do braço. Com uma última olhadela ao rapaz deitado no chão, colocou o capacete com exagerada lentidão, como se quisesse realçar a sua superioridade, tornou a montar-se na motorizada e saiu da imagem. Roger ficou onde estava durante algum tempo. Billy olhou para Torkel.
– Ele não estava a ver o Achas Que Sabes Dançar com a namorada?
Torkel aquiesceu. Lisa mentira. Mas a informação que Leonard lhes dera durante o interrogatório também estava incorrecta. Roger não tinha começado a briga ao deitar Leo abaixo da sua motorizada.
Eles não haviam tido qualquer altercação.
Pelo que Torkel sabia, uma altercação requeria dois participantes activos.
Esticou-se para trás e pôs as mãos atrás da cabeça. Certamente poderiam deter Leo Lundin por furto com violência.
Mas não por homicídio. Pelo menos, não ali e então. E mais tarde também não, Torkel estava certo disso. Leo era um rufião. Mas cortar e extrair o coração a alguém... Não, não o fizera. Daqui a uns anos, talvez, se a sua vida fosse realmente pelo cano abaixo, mas neste momento não.
– Onde vai o Roger a seguir?
– Não sei. Olha. – Billy levantou-se e foi ao mapa que estava na parede. – Ele continua a andar a direito e chega à Vasagatan, onde pode virar à direita ou à esquerda. Se virou à esquerda foi ter a Norra Ringvägen. Há uma câmara nesse cruzamento, mas ele não aparece nela.
– Então deve ter virado à direita...
– Nesse caso teria aparecido nesta câmara. – Billy apontou para um sítio no lado de fora do terreno desportivo, uma fracção mais a norte no mapa. A algumas centenas de metros, na realidade. – Mas não aparece.
– Portanto, virou para outro sítio qualquer antes de lá chegar.
Billy concordou e apontou para uma estrada mais pequena que saía da Vasagatan.
– Provavelmente, aqui. Apalbyvägen. Vai a direito para uma área residencial. Não há câmaras. Nem sequer sabemos em que direcção ele seguiu.
– Então verifica todas. Ele pode reaparecer numa das estradas principais. Põe uma equipa a bater às portas nessa área. Alguém o deve ter visto. Quero saber aonde ele foi.
Billy fez um aceno de concordância, e ambos os homens pegaram nos seus telefones.
Billy telefonou ao ligeiramente ressacado aniversariante da empresa de segurança para lhe pedir mais imagens de câmaras de vigilância.
Torkel telefonou a Vanja. Ela atendeu imediatamente, como sempre.
Vanja e Sebastian estavam a sair do Liceu Palmlövska quando Torkel telefonou. A campainha para o almoço tocara e muitos dos alunos estavam no exterior. Torkel pô-la rapidamente ao corrente da situação; dizia apenas o essencial quando falava ao telefone, e a conversa durou menos de um minuto. Quando a chamada terminou, Vanja virou-se para Sebastian.
– Eles já viram o vídeo de Gustavsborgsgatan. O Roger estava lá pouco depois das nove.
Sebastian matutou na nova informação. Vanja defendera obstinadamente que Lisa Hansson, a namorada de dezasseis anos de Roger, mentira várias vezes quanto ao local em que estava Roger na noite do assassinato. Agora tinham provas de que era efectivamente esse o caso. Para Lisa, parecia mais importante esconder a verdade do que resolver o homicídio do namorado. Esse tipo de segredo interessava a Sebastian. Com efeito, todo aquele maldito caso começava a interessá-lo cada vez mais. Tinha de admitir que lhe soubera bem um pequeno intervalo naquilo em que andava a cismar. Seria melhor acompanhar o caso durante o tempo que fosse necessário, tirar o melhor proveito da situação. Tomar novas decisões acerca da sua colaboração e do futuro logo que surgisse a oportunidade.
– E se fôssemos ter uma pequena conversa com a Lisa?
– Estava a pensar que não me convidavas.
Regressaram novamente à escola. Lisa fora para casa depois da aula de Inglês; era o dia em que tinha um horário mais reduzido. Possivelmente, já teria chegado a casa. Vanja não tinha vontade de telefonar para confirmar; isso significaria apenas que os pais dela já estariam a postos com a sua linha de defesa. Entraram no carro e Vanja carregou no acelerador, ignorando o limite de velocidade.
CAPÍTULO ONZE
SEGUIRAM VIAGEM em silêncio, o que agradava bastante a Vanja. Não sentia qualquer desejo de conhecer melhor o parceiro que lhe fora imposto e esperava que a situação fosse temporária. Já sabia que Sebastian não faria conversa para passar o tempo. Ursula tinha-lhe chamado um «desastre social». Também dissera que era muito melhor quando ele ficava calado. Logo que abria a boca era grosseiro, sexista, crítico ou simplesmente sórdido. Desde que mantivesse a boca fechada, não enfurecia ninguém.
Tal como Ursula, Vanja tinha ficado muito irritada quando Torkel lhes apresentara Sebastian e dissera que ele ia trabalhar com a equipa naquela investigação. Não tanto por ser Sebastian. Decerto que já ouvira mais coisas a respeito dele do que acerca do resto da força policial no seu conjunto, mas o que a incomodava mais era que Torkel tomara a sua decisão sem lhe perguntar. Sabia que ele não tinha obrigação de lhe pedir opinião sobre esses assuntos, contudo... Achava que se eles trabalhavam juntos em tamanha proximidade e significavam tanto uns para os outros sob o aspecto profissional, as opiniões dela deveriam ser levadas em consideração antes de se tomar uma decisão que afectasse toda a equipa. Torkel era o melhor chefe que ela alguma vez tivera, e era por isso que tinha ficado tão surpreendida quando ele procedera a tão grandes alterações sem a consultar. Sem os consultar. Surpreendida e, para ser honesta, desapontada.
– Como se chamam os pais dela?
O fio dos pensamentos de Vanja foi interrompido. Virou-se para Sebastian, que não se mexera. Continuava a olhar para o exterior pela janela lateral.
– Ulf e Ann-Charlotte. Porquê?
– Por nada.
– Estava no dossier que lhe foi entregue.
– Não o li.
Vanja pensou que não tinha ouvido bem.
– Não o leu?
– Não.
– Afinal, porque foi integrado nesta investigação?
Vanja fazia essa pergunta a si mesma desde que ouvira a explicação de Torkel para a presença de Sebastian, que fora vaga, no mínimo. Teria ele algum tipo de influência sobre Torkel? Não, isso era impossível. Torkel nunca poria em risco uma investigação por motivos pessoais, fossem quais fossem. A resposta de Sebastian surgiu mais depressa do que ela esperava.
– Precisam de mim. Nunca resolverão o caso sem a minha ajuda.
Ursula tinha razão. Era muito fácil ficar-se irritado com Sebastian Bergman.
Vanja estacionou o carro e desligou o motor. Voltou-se para Sebastian antes de saírem.
– Tenho de lhe dizer uma coisa.
– O quê?
– Nós sabemos que ela está a mentir. Temos provas. Mas eu quero que ela fale. Portanto, não vamos entrar por ali adentro para lhe enfiarmos as provas pela boca abaixo de maneira que ela não diga uma palavra. Está bem?
– Claro.
– Eu conheço-a. Eu dirijo a conversa. Você fica calado.
– Como eu disse, quase nem notará que estou lá. – Vanja lançou-lhe um olhar que deixava claro que estava a falar a sério, depois saiu do carro e encaminhou-se para a casa. Sebastian foi atrás dela.
Tal como Vanja supusera, Lisa estava sozinha em casa. Pareceu espantada ao ver Vanja e um homem estranho à entrada da porta. Tentou algumas desculpas débeis, mas Vanja entrou antes que ela a convidasse; já tomara a sua decisão, particularmente quando soubera que Lisa estava sozinha.
– Isto só demora um minuto. Podemos falar aqui dentro. – Vanja abriu caminho até à cozinha limpa e arrumada. Sebastian permaneceu em segundo plano. Cumprimentara a rapariga com bastante afabilidade, depois calara-se. Por enquanto cumpria o acordo, observou Vanja com satisfação. A verdade é que, de momento, ele estava incapaz de falar. Avistara o retrato de Jesus com as contas de vidro e ficara completamente aturdido. Nunca tinha visto nada como aquilo.
– Sente-se. – Vanja julgou detectar uma ligeira alteração na expressão da rapariga. Parecia estar mais cansada. Não tinha o mesmo olhar desafiador; era como se as suas defesas tivessem começado a ceder. Vanja tentou mostrar-se o mais afável possível. Não queria que as suas palavras parecessem agressivas.
– Deixa-me explicar, Lisa. Temos um problema. Um grande problema. Nós sabemos que o Roger não estava aqui às nove horas da noite daquela sexta-feira. Sabemos onde se encontrava e podemos prová-lo. – Estaria ela a imaginá-lo ou os ombros de Lisa tinham-se descontraído?
Mas a jovem não disse nada.
Ainda não.
Vanja inclinou-se para a frente e tocou na mão de Lisa. Falou num tom de voz mais brando.
– Lisa, tu tens de nos dizer a verdade. Não sei porque estás a mentir. Mas já não podes continuar a fazê-lo. Não é por causa de nós, é por causa de ti.
– Quero que os meus pais estejam presentes – conseguiu dizer Lisa. Vanja manteve a sua mão sobre a da rapariga.
– É mesmo isso que tu queres? Queres mesmo que eles fiquem a saber que estás a mentir? – Pela primeira vez, Vanja viu aquela cintilação fugaz de fraqueza que normalmente antecede a verdade.
– Às nove e cinco, o Roger estava em Gustavsborgsgatan. Foi filmado pelas câmaras de vigilância. Gustavsborgsgatan é bastante longe daqui – prosseguiu Vanja. – Imagino que o teu namorado tenha saído às oito e um quarto. No máximo às oito e meia. Se de facto cá esteve.
Não continuou. Olhou para Lisa, que se mostrava abatida e resignada. Todos os vestígios de provocação e de insolência adolescente tinham desaparecido. Ela parecia simplesmente preocupada. Uma criança preocupada.
– Vão ficar muito zangados – disse por fim. – A mãe e o pai.
– Se vierem a descobrir. – Vanja apertou a mão da rapariga, que parecia estar a ficar cada vez mais quente enquanto a conversa prosseguia.
– Foda-se, foda-se, foda-se – disse subitamente Lisa, e as palavras proibidas eram o princípio do fim. As suas defesas tinham-se desmoronado. Afastou-se de Vanja e escondeu o rosto entre as mãos. Soltou um longo suspiro, quase de alívio. Os segredos são um fardo pesado, e carregá-los é uma tarefa solitária.
– Ele não era meu namorado.
– Como?
Lisa levantou a cabeça e elevou ligeiramente a voz.
– Ele não era meu namorado.
– Não?
Lisa abanou a cabeça e desviou os olhos de Vanja. Olhou para longe. Para fora da janela. Como se desejasse poder ir para o exterior. Ir-se embora dali.
– Então o que era ele? O que andavam a fazer?
Lisa encolheu os ombros.
– Não andávamos a fazer nada. Ele estava aprovado.
– O que significa isso, «aprovado»?
Lisa virou a cabeça e olhou penosamente para Vanja. Ela não percebia?
– Tu queres dizer aprovado pelos teus pais?
Lisa deixou cair as mãos e disse que sim com a cabeça.
– Eu estava autorizada a sair com ele. Ou a passar tempo a sós com ele em casa. Embora nós saíssemos sempre.
– Mas não juntos.
Lisa acenou com a cabeça – Então tu tens outro namorado? – Lisa tornou a dizer que sim com a cabeça e, pela primeira vez, o olhar que ela lançou a Vanja era puramente implorante. Uma rapariga cuja vida consistia em ser a filha perfeita, uma máscara que estava prestes a cair.
– Um namorado de que os teus pais não gostam?
– Eles matavam-me se soubessem.
Vanja tornou a olhar para a imagem das contas. Agora significava algo diferente. Eu sou o Caminho. Não quando se tem dezasseis anos e se está apaixonada pelo rapaz errado.
– Tu sabes que vamos ter de falar com esse rapaz? Mas os teus pais não têm de ficar a saber, prometo.
Lisa disse-lhe que sim. Não conseguia lutar mais. A verdade há-de libertar-nos, dizia o líder juvenil na igreja sempre que tinha oportunidade. Durante muito tempo, Lisa incluíra essas palavras na crescente teia de mentiras em que fora obrigada a viver durante muitos anos. Mas agora, neste momento particular, percebera que elas tinham de ser recatalogadas. A verdade há-de libertar-nos e há-de deixar os nossos pais muitíssimo furiosos. Sem dúvida. Mas, pelo menos, era a verdade, e isso de facto trazia uma sensação de libertação.
– Qual é o problema dele? É muito velho? Tem cadastro criminal? Drogas? É muçulmano?
As perguntas foram feitas por Sebastian. Vanja olhou-o, e ele mostrou uma expressão de quem pede desculpa. Ela fez-lhe um aceno de cabeça; não tinha importância.
– Ele não tem problema nenhum – disse Lisa, encolhendo os ombros. – Só que não é... como tudo isto. – O pequeno gesto de Lisa abrangeu não apenas a casa mas toda a área, os jardins bem tratados na frontaria das casas que tinham exactamente o tamanho certo para aquela rua pacata. Sebastian compreendeu tudo. Tinha sido incapaz de analisar a sua própria situação e de a expressar da mesma maneira quando tinha a idade de Lisa, mas reconhecia o sentimento. A segurança que se tornava uma prisão. O cuidado e a consideração que se tornavam sufocantes. As convenções que se transformavam em grilhetas.
Vanja pegou de novo na mão da jovem. Lisa permitiu ou, mais precisamente, pareceu desejá-lo.
– O Roger esteve aqui?
Lisa disse que sim com a cabeça.
– Mas só até às oito e um quarto. Até nós termos a certeza de que a minha mãe e o meu pai tinham saído.
– E aonde foi ele?
Lisa abanou a cabeça.
– Não sei.
– Ia encontrar-se com alguém?
– Julgo que sim. Normalmente, ia.
– Com quem?
– Não sei. O Roger nunca me disse. Ele fazia segredo.
Sebastian olhou para Lisa e para Vanja, sentadas perto uma da outra junto à mesa imaculada e a falarem acerca de uma noite que contivera tudo menos Roger. A cozinha arrumada lembrava-lhe a casa da sua infância e as de todos os vizinhos, pessoas que haviam ficado muito contentes por se associarem com os seus bem-sucedidos pais. Para ser honesto, sentia-se como se tivesse entrado noutra versão da sua própria maldita educação. Sempre lutara contra aquilo. Presenciara a manutenção superficial da ordem e da convenção, nunca do amor ou da coragem. A estima que Sebastian tinha pela rapariga sentada à mesa continuava a subir. Ela poderia transformar-se em algo de muito especial. Um amante secreto aos dezasseis anos de idade. Os pais estariam metidos em sarilhos quando ela fosse mais velha. Isso animou-o.
Ouviram a porta da frente abrir-se e uma voz gritar alegremente do vestíbulo: – Lisa, já chegámos!
Lisa retirou a sua mão da de Vanda e endireitou-se na cadeira em que estava sentada. Vanja empurrou rapidamente o seu cartão-de-visita na direcção dela.
– Envia-me uma mensagem de texto a dizer como posso entrar em contacto com o teu namorado e não precisaremos de falar disso agora. – Lisa fez-lhe um sinal de assentimento, pegou no cartão e conseguiu à justa guardá-lo dentro do bolso. O pai dela foi o primeiro a entrar.
– O que estão a fazer aqui? – O tom de voz prazenteiro que usara no vestíbulo desaparecera.
Vanja pôs-se em pé e enfrentou-o com um sorriso que era excessivamente alegre. Um sorriso que o fez compreender que chegara tarde de mais. Vanja estava satisfeita. Ulf fez os possíveis por reafirmar a sua autoridade.
– Julguei que tínhamos combinado que não falavam com a minha filha a menos que eu estivesse presente. Isto é completamente inaceitável!
– Não lhe cabe a si tomar essa decisão, e em todo o caso queríamos apenas confirmar alguns pormenores com a Lisa. Vamo-nos já embora. – Vanja voltou-se para trás e sorriu para Lisa, a qual não reparou porque o seu olhar estava fixado na mesa. Sebastian levantou-se. Vanja encaminhou-se para a porta, passando pelos pais de Lisa. – Não creio que precisemos de os incomodar novamente. – Ulf desviou o olhar de Vanja para a sua filha, e depois de novo para Vanja. Durante alguns segundos, ficou sem saber o que dizer, mas depois ameaçou: – Irei entrar em contacto com o vosso oficial superior, não duvidem. Não hão-de safar-se desta. – Vanja nem sequer lhe respondeu; continuou a encaminhar-se para a porta. Já tinha o que fora procurar ali. Então, de repente, ouviu a voz de Sebastian atrás de si. Parecia particularmente poderosa, como se ele tivesse estado muito tempo à espera daquele momento.
– Há uma coisa que precisa de saber – disse ele enquanto empurrava a cadeira em direcção à mesa com um movimento quase exagerado. – A sua filha tem andado a mentir-lhe.
Mas o que está ele a fazer, foda-se! Vanja voltou-se para trás, espantada, e lançou a Sebastian um olhar fulminante. Que Sebastian fosse um porco quando lidava com os colegas e com outros adultos era uma coisa, mas trair uma criança! Sem qualquer motivo. Lisa parecia ter vontade de se enfiar debaixo da mesa e desaparecer. O pai não disse nada. Todos olhavam para o homem que se tornara o centro das atenções na cozinha.
Era de momentos como este que Sebastian sentira a falta durante a ausência que impusera a si mesmo. Demorou o seu tempo; era importante tirar o maior partido da magia. Hoje em dia ela não surgia com frequência.
– Naquela sexta-feira o Roger saiu muito mais cedo do que a Lisa estava preparada para admitir inicialmente.
Os pais de Lisa entreolharam-se, e a mãe dela quebrou o silêncio.
– A nossa filha não mente.
Sebastian deu alguns passos na direcção deles.
– Mente, sim. – Ele não tinha qualquer intenção de permitir que os verdadeiros mentirosos escapassem, sobretudo quando já os agarrara pelo anzol. – Mas a pergunta que deveriam fazer é porque mente ela. Talvez exista uma razão para que não se atreva a contar-vos a verdade.
Sebastian calou-se e ficou a olhar para os pais. Na cozinha imaculada sentia-se a expectativa do que estava para vir. Quanto ao que ele diria a seguir. O cérebro de Vanja trabalhava a toda a brida. Como poderia ela encontrar terreno firme na areia movediça em que subitamente se achara atolada? A única coisa que lhe ocorreu foi um débil apelo.
– Sebastian...
Sebastian nem pareceu dar pela sua presença. Dominava a sala, detendo nas suas mãos a vida de uma rapariga de dezasseis anos. Porque daria ouvidos a mais alguém?
– A Lisa e o Roger tiveram uma discussão naquela noite. Ele saiu às oito. Discutiram e ele morreu. Como julgam que ela se sente por causa disso? Se não tivessem discutido, ele ainda hoje estaria vivo. Foi por sua culpa que ele se foi embora mais cedo. E essa culpa é um enorme fardo para uma rapariga carregar.
– Isso é verdade, Lisa? – A voz da mãe era implorante, e os olhos dela tinham começado a encher-se de lágrimas. Lisa olhou para os pais como se tivesse acabado de despertar de um sonho e já não soubesse o que era verdadeiro ou falso. Sebastian piscou-lhe um olho discretamente. Estava a divertir-se.
– O que a Lisa fez não foi bem mentir. Trata-se antes de um mecanismo de defesa, uma coisa que lhe permitiu prosseguir, lidar com a culpa. É isso que eu vos estou a dizer. – Sebastian falou adoptando uma expressão séria quando olhou para os pais de Lisa. Depois, baixou a voz para realçar ainda mais a gravidade da situação. – O que importa agora é que a Lisa perceba que não fez nada de errado.
– Pois claro que não fizeste, querida. – disse o papá Ulf. Deslocou-se para junto da filha e pôs um braço em redor desta. Lisa mostrou-se sobretudo surpreendida. A transição entre ser denunciada como mentirosa e ser envolvida em amor e preocupação tinha sido um pouco rápida.
– Oh, bebé, porque é que tu não disseste nada? – perguntou a mãe, sem conseguir dizer muito mais antes que Sebastian a interrompesse.
– Porque não queria desapontar-vos. Não compreendem? Ela sente uma culpa enorme. Culpa e mágoa. E vocês não falaram de mais nada a não ser de ela mentir ou não. Não percebem como isso a fez sentir-se sozinha?
– Mas nós não sabíamos... Nós acreditámos nela.
– Optaram por acreditar naquilo que vos agradava. Nem mais nem menos. O que é compreensível. É humano. No entanto, a vossa filha precisa agora de amor e de consideração. Tem de sentir que confiam nela.
– Mas claro que confiamos.
– Não o suficiente. Dêem-lhe amor, mas dêem-lhe liberdade também. É disso que ela precisa agora. Muita confiança e liberdade.
– Claro. Obrigada. Nós não sabíamos. Desculpe se tivemos uma reacção excessiva, mas espero que compreenda – disse a mãe de Lisa.
– Todos nós queremos proteger os nossos filhos. De tudo. Caso contrário não seríamos pais.
O rosto de Sebastian desfez-se num sorriso caloroso dirigido à mãe de Lisa. Ela retribuiu-lho com gratidão e um ligeiro aceno de cabeça. Parecia tudo tão sincero.
Sebastian voltou-se para Vanja, que passara da fúria à confusão.
– Vamos embora?
Vanja fez um gesto de concordância.
– Não vos incomodaremos mais. – Ela e Sebastian lançaram um último sorriso aos pais.
– Agora, lembrem-se de que têm uma filha maravilhosa. Dêem-lhe muito amor e liberdade. Ela precisa de saber que confiam nela.
Ditas estas palavras, saíram. Sebastian estava esfuziante por ter plantado uma pequena bomba-relógio no seio da família Hansson. Liberdade era exactamente o que Lisa precisava para poder atirar todo aquele monte de merda ao ar. E quanto mais depressa, melhor.
– Aquilo era mesmo necessário? – perguntou Vanja quando abriram o portão.
– Foi divertido, isso não chega? – Sebastian voltou-se para Vanja, cuja expressão tornava claro que o entretenimento não justificava as suas acções. Suspirou. Teria de lhe explicar tudo?
– Sim, era necessário. Mais tarde ou mais cedo surgirá na imprensa que o Roger não estava onde a Lisa disse. Ali, conseguimos explicar porquê. Ajudámo-la.
Sebastian continuou a andar. Quase lhe apetecia assobiar enquanto caminhava em direcção ao carro. Há muito tempo que não assobiava.
Há imenso tempo.
Vanja estava alguns passos atrás, tentando acompanhá-lo. Pois claro. Deixar Lisa resolver as coisas sozinha teria sido estúpido. Ela devia ter pensado nisso. Há muito tempo que não sentia que alguém levara a melhor sobre si.
Há imenso tempo.
Torkel e Hanser estavam sentados no gabinete desta última, no terceiro piso. Torkel pedira a reunião para debaterem o ponto da situação em matéria de provas. A informação das câmaras de vigilância era, com certeza, um grande avanço, uma vez que agora podiam colocar definitivamente Roger na Gustavsborgsgatan pouco depois das nove da noite daquela sexta-feira fatídica. Mas, ao mesmo tempo, essa informação implicava que as suspeitas deles a respeito de Leo se tornavam ainda mais fracas. Existia uma correlação entre as anteriores declarações dele e a realidade, e, após consultar o procurador, Torkel decidira libertar Leo, para não perder mais tempo e concentrar-se melhor naquela difícil investigação. Naturalmente, gerar-se-ia um pandemónio na imprensa. Afinal, eles já tinham julgado e condenado Leo Lundin. O rufião fora longe de mais. Não deixariam de realçar o facto de certas descobertas apontarem para Leo. O sangue da vítima na camisola dele já era do conhecimento comum. O blusão verde ainda não aparecera nos jornais, mas diversos relatos jornalísticos haviam referido que a polícia tinha feito outra descoberta na garagem dos Lundin. O facto de essa «outra descoberta» ter sido, na verdade, lá posta não era mencionado na imprensa nem viria a sê-lo. Essa informação só era conhecida pela equipa de Torkel, e assim continuaria a ser.
Torkel quisera informar pessoalmente Hanser sobre a sua decisão antes de falar com o procurador. Ela continuava a ser a responsável pela investigação e estava sob pressão para apresentar resultados. Torkel sabia que nunca era fácil libertar um suspeito sem apresentar outro. Hanser compreendia a situação e partilhava da opinião dele. No entanto, insistia que fosse Torkel a conduzir a conferência de imprensa que estava iminente. Torkel percebia porquê. Era melhor para a carreira dela que a Riksmord parecesse andar a tactear no escuro. Torkel prometeu encarregar-se dos meios de comunicação e saiu de lá para ir telefonar ao procurador.
O carro estacionou noutra rua, diante de outra casa de outra área residencial. Quantos locais destes havia em Västerås? Na região? No país?, pensou Sebastian, enquanto ele e Vanja caminhavam pelo carreiro empedrado até à casa amarela de dois pisos. Ele presumia que fosse possível ser-se feliz num local daqueles. Não o saberia por experiência própria, o que não significava que estivesse fora de causa. Bom, para ele estava. Naquele sítio havia uma sensação de «serena dignidade» que desprezava.
– Muito bem, já chega; saiam já daqui!
Sebastian e Vanja voltaram-se para trás e viram um homem com cerca de quarenta e cinco anos caminhar na sua direcção, saindo da porta da garagem, que estava aberta. Debaixo do braço, trazia um cilindro azul feito de uma espécie de tecido. Uma tenda. Avançava para eles com rapidez e determinação.
– Chamo-me Vanja Lithner e este é Sebastian Bergman. – Vanja ergueu a sua identificação. Sebastian levantou a mão numa saudação. – Somos da Riksmord e andamos a investigar o homicídio do Roger Eriksson. Falámos com a Beatrice na escola.
– Peço desculpa. Julguei que fossem jornalistas. Hoje já tive de expulsar alguns. Ulf Strand, sou o pai do Johan.
Ulf estendeu a mão. Sebastian reparou no facto de este ser o segundo progenitor de Johan que se apresentava assim. Como progenitor. Ulf, o pai de Johan, não o marido de Beatrice. Beatrice referira-se a Ulf da mesma maneira. Como pai do seu filho e não como seu marido. «Ele foi sair com o Ulf, o pai dele.» E não «o meu marido».
– Não são casados? Você e a Beatrice?
Ulf pareceu surpreendido pela pergunta.
– Sim, porquê?
– Só por curiosidade, tinha a sensação de que... não interessa. O Johan está em casa?
Ulf olhou de relance para a casa, com a testa franzida de preocupação.
– Sim, mas precisam de falar com ele hoje? Tudo o que aconteceu deixou-o muito abalado. Por isso é que nós vamos acampar. Só para nos afastarmos daqui por algum tempo.
– Lamento, mas por diversas razões estamos atrasados na maioria dos aspectos desta investigação e precisamos realmente de falar com o Johan o mais depressa possível.
Ulf compreendeu que não havia forma de recusar o pedido, pelo que encolheu os ombros, pousou o equipamento de campismo e conduziu-os ao interior da casa.
Descalçaram-se no vestíbulo, onde sapatos, ténis e chinelos estavam confusamente amontoados. Havia cotão no chão. Sobre o banco comprido de madeira preta encostado a uma das paredes estavam pelo menos três conjuntos de casacos, cachecóis e luvas. À medida que iam avançando para o interior da casa, Vanja ficava com a impressão de que esta era o absoluto oposto do lar bem arrumado de Ann-Charlotte e Ulf Hansson. Uma tábua de engomar estava montada a um canto da sala de estar, com uma pilha de roupa lavada por cima, ao lado de um sortido de cartas, facturas, um jornal diário e uma caneca de café. Havia mais duas canecas de café entre as migalhas da superfície pegajosa da mesa situada diante do televisor. Outras peças de roupa estavam espalhadas sobre as poltronas e as costas do sofá; era impossível dizer se estariam sujas ou lavadas. Seguiram para o piso de cima. Um rapaz magro, de óculos, que parecia ter menos do que os seus dezasseis anos de idade, estava no quarto a jogar no computador.
– Johan, estas pessoas são agentes policiais e querem ter uma conversa contigo acerca do Roger.
– Vou já.
Johan mantinha a sua atenção fixa no ecrã. Parecia ser um jogo de acção. Um homem que tinha um braço extremamente desenvolvido e distorcido andava a correr lutando contra inimigos que pareciam ser soldados. Usava o seu braço como arma. Billy provavelmente sabia como se chamava aquele jogo. A personagem central entrou num tanque que estava parado na esquina de uma rua e o ecrã imobilizou-se, mostrando a palavra Carregando. Quando a imagem regressou, a cena passava-se no interior do tanque e, aparentemente, era possível manobrá-lo. Johan premiu uma tecla. A imagem parou. Voltou-se para Vanja, com um ar de fadiga no olhar.
– Lamento muito a tua perda. Pelo que me disseram, tu e o Roger eram amigos íntimos.
Johan fez um gesto de assentimento.
– Presumo que o Roger te contasse coisas que não contava a mais ninguém.
– Como o quê?
Nada de novo veio, afinal, a saber-se. Johan não julgava que Roger andasse preocupado com alguma coisa, nem receoso de alguém em particular, embora de vez em quando se cruzasse com alguns rapazes da Escola Vikinga. Era feliz no Liceu Palmlövska, não devia dinheiro a ninguém, não mostrara interesse pela namorada de ninguém. Afinal, ele tinha a sua própria namorada. Johan pensava que Roger fora a casa dela naquela noite de sexta-feira. Roger passava muito tempo em casa de Lisa. Demasiado tempo, era o que Sebastian e Vanja suspeitavam que Johan realmente queria dizer. Ele também não sabia porque é que Roger lhe tinha telefonado para casa naquela noite. E não ligara para o telemóvel de Roger mais tarde. A palavra preferida de Johan parecia ser «não».
Vanja começava a desesperar. Não estavam a chegar a lado nenhum. Toda a gente continuava a dizer a mesma coisa. Roger era um rapaz pacato e bem-comportado que fazia a sua vida e não se metia com ninguém. E se este fosse um daqueles raros casos em que o assassino não conhecia a vítima? E se alguém tivesse simplesmente decidido sair à rua para cometer um homicídio na noite de sexta-feira e tivesse escolhido Roger?
Por acaso.
Só porque podia.
Era extremamente invulgar, pelo menos dadas as circunstâncias deste caso. Remover o coração. Deslocar e ocultar o cadáver. Plantar provas.
Invulgar, mas não impossível.
Ao mesmo tempo, havia algo que não batia certo em todas aquelas descrições quase idênticas de Roger; Vanja começava a senti-lo cada vez mais intensamente. O comentário de Lisa de que Roger guardava segredos permanecera no seu espírito. Sentia que aquelas palavras estavam mais perto da verdade do que tudo o resto. Era como se houvesse dois Roger Eriksson: um que passava quase despercebido e nunca se destacava da multidão, e outro que tinha imensos segredos.
– Não consegues lembrar-te de ninguém que pudesse ter motivos para estar zangado com o Roger?
Vanja já se preparava para sair da sala, convencida de que obteria mais um abano de cabeça como resposta.
– Bom, sim, claro que o Axel estava furioso com ele. Mas não assim tão furioso.
Vanja deteve-se. Quase conseguiu sentir o seu nível de adrenalina a aumentar. Um nome. Alguém que estava ressentido com Roger. Um fio a que se podia agarrar. Talvez o início de mais um segredo.
– Quem é o Axel?
– Era o contínuo da escola.
Um homem adulto. Acesso a um carro. O fio começava a engrossar.
– E porque é que o Axel estava zangado com o Roger?
– O Roger fez com que o despedissem há algumas semanas.
– Ah, sim, esse infeliz incidente.
Ragnar Groth desabotoou o casaco e sentou-se atrás da secretária, dando mostras de que poderia ter comido qualquer coisa muito desagradável. Vanja estava em pé do lado de dentro da porta, com os braços cruzados. Era-lhe difícil impedir que a fúria transparecesse na sua voz.
– Quando estivemos aqui anteriormente, eu disse que alguém nesta escola poderia estar envolvido no homicídio do Roger Eriksson. Mas não se lembrou de que um empregado tinha sido despedido por causa do Roger?
O director abriu os braços num gesto que conseguia ser ao mesmo tempo de desculpa e de desdém.
– Não, receio bem que não. Peço desculpa. Não relacionei uma coisa com a outra.
– Pode falar-nos um pouco desse «infeliz incidente»?
Groth estava a olhar com franca aversão para Sebastian, o qual se instalara numa das poltronas com uma brochura acerca da escola, que tinha encontrado num expositor à porta do gabinete do director enquanto esperavam.
Liceu Palmlövska. Onde começam as suas oportunidades.
– Não há muito para contar. Aparentemente, o nosso contínuo Axel Johansson andava a vender álcool aos alunos. A contrabandear bebidas, poderia dizer-se. Foi obviamente despedido de imediato, e o assunto ficou por aí.
– E como é que descobriram o que ele andava a fazer? – perguntou Vanja. Ragnar Groth lançou-lhe um olhar cansado enquanto se inclinava para diante e sacudia algumas marcas de pó da superfície da sua secretária.
– Suponho que é por isso que aqui estão. O Roger Eriksson, sendo o estudante responsável que era, veio ter comigo e contou-me o que estava a acontecer. Pedi a uma aluna que telefonasse ao Axel e fizesse uma encomenda. Quando ele apareceu para se encontrar com ela e proceder à entrega, apanhámo-lo com a boca na botija.
– O Axel soube que tinha sido o Roger a denunciá-lo?
– Não sei. Provavelmente. Creio que vários alunos sabiam.
– Mas não participou o caso à polícia?
– Na verdade, não vi que se ganhasse alguma coisa em fazê-lo.
– Poderia ser por a vossa reputação de «excepcional ambiente educativo que abrange a segurança, a inspiração e extensas oportunidades de desenvolvimento para cada indivíduo de um ponto de vista cristão e com os valores cristãos fundamentais» ficar, porventura, um pouco manchada? – Sebastian levantou os olhos da brochura e não conseguiu suprimir um sorriso malicioso. Ragnar Groth esforçou-se por manter a aversão longe da sua voz quando respondeu.
– Não é segredo que a nossa excelente reputação é o nosso principal recurso.
Vanja limitou-se a abanar a cabeça, incapaz de compreender.
– Então não participam os crimes cometidos nas instalações da escola?
– Era apenas bebida. Pequenas quantidades. Claro que os envolvidos eram menores, mas ainda assim... O Axel teria sido multado, não era? Se assim fosse.
– Provavelmente, mas não é isso que interessa.
– Pois não! – Groth interrompeu-a com brusquidão. – O que interessa é que a perda da confiança dos pais me teria custado muito mais. É uma questão de prioridades. – Levantou-se, abotoou o casaco e dirigiu-se para a porta. – Se é tudo, tenho outras coisas para fazer. Mas a recepcionista dar-vos-á o endereço do Axel Johansson, caso desejem falar com ele.
Sebastian estava no corredor à espera de Vanja. As paredes encontravam-se cobertas de retratos dos anteriores directores e de outros membros do pessoal que haviam conquistado o direito a serem recordados pelas futuras gerações. A meio da exposição estava pendurado o único quadro pintado a óleo. O do pai de Sebastian. Um retrato de corpo inteiro. Ele estava de pé junto a uma secretária repleta de objectos e de símbolos relativos a uma educação clássica. A pintura fora feita de modo que Ture Bergman estivesse sempre a olhar de cima para baixo a pessoa que o mirasse.
O que provavelmente lhe convinha perfeitamente, pensou Sebastian.
Um olhar superior a tudo e a todos.
Judicioso.
Situado no centro das coisas.
Sebastian deixou os seus pensamentos divagarem. Que tipo de pai fora ele durante os quatro anos que lhe tinham sido concedidos com Sabine? A resposta era provavelmente «assim-assim».
Ou antes: tinha sido um pai tão bom quanto conseguira, mas não deixava de ser «assim-assim». Nos seus momentos mais sombrios, quando Sebastian duvidava das suas capacidades enquanto pai, pensava em Sabine a ver televisão: a qualidade do programa era irrelevante. Desde que fosse um pouco colorido e se movimentasse no ecrã, ela ficava contente. Com ele sucederia o mesmo? Sabine estaria contente só porque ele estava por acaso ali? Ela não fazia exigências em matéria de qualidade. Ele tinha passado muito tempo com a filha, disso não havia dúvida. Mais do que Lily. Não fora uma decisão consciente, baseada num desejo de partilhar as coisas em termos iguais, mas antes um resultado das suas vidas quotidianas. Sebastian trabalhava muitas vezes em casa, seguindo-se períodos curtos e intensos em que trabalhava fora, e depois usufruía de um tempo de folga antes de começar a trabalhar novamente em casa. Portanto, sim, ele tinha estado lá. E, no entanto, Sabine voltava-se para Lily sempre que acontecia alguma coisa. Lily estava sempre primeiro. Decerto que isso tinha algum significado. Sebastian recusava-se a acreditar que fosse meramente genético. Algumas mulheres que ele conhecia sustentavam que era impossível substituir-se uma mãe, mas isso era um disparate. Portanto, ele pusera constantemente em causa as suas capacidades.
O que dera ele à filha, além da segurança de ter sempre alguém junto dela? Sebastian não achara os primeiros anos com Sabine muito especiais nem – para ser franco – muito divertidos. Não, isso não era verdade – tinham sido especiais. Vertiginosos. Ouvira falar de muitas pessoas que se convenciam de que nada mudaria quando tivessem filhos. Continuariam a viver as suas vidas como sempre tinham feito, com a pequena diferença de que agora eram pais. Sebastian não fora assim tão ingénuo. Ele sabia que teria de mudar toda a sua vida. Tudo o que era. E estivera disposto a fazê-lo. Por isso, aqueles primeiros anos tinham sido especiais, mas não tirara deles grande proveito. Para o dizer com crueza: Sabine dera-lhe muito pouco naqueles primeiros anos.
Fora isso que ele pensara na época.
Agora daria qualquer coisa para os ter de volta.
As coisas tinham melhorado, havia que admiti-lo. Quanto mais ela crescia, melhor ficavam as coisas, e sentia que a relação entre ambos ia-se fortalecendo, ia-se tornando mais próxima à medida que Sabine desenvolvia a capacidade para lhe retribuir o que sentia por ela. Mas o que mostrava isso, para além do facto de ele ser um egoísta? Quase nem se atrevera a pensar como seriam as coisas quando ela fosse crescida.
Quando começasse a fazer exigências.
Quando se tornasse uma pessoa e deixasse de ser criança. Quando ele deixasse de ter razão. Quando Sabine percebesse como ele era. Adorava-a mais do que a qualquer coisa no mundo. Mas teria ela sabido disso? Teria ele sido capaz de lho mostrar? Não sabia.
Também amara Lily. Tinha-lho dito.
Às vezes.
Embora não com a frequência suficiente.
Não se sentia confortável ao dizer aquelas palavras quando devia dizê-las. Presumia que ela sabia que a amava. Que ele lho demonstrava de outras maneiras. Nunca lhe tinha sido infiel durante o tempo em que estivera com ela. Poderia demonstrar-se amor através das coisas que não se faziam? Seria ele minimamente capaz de o mostrar?
E agora sabia que talvez tivesse um filho ou uma filha algures. A carta de Anna Eriksson deixara-o siderado e, desde então, tinha andado a funcionar em piloto automático. Decidira imediatamente que tinha de encontrá-la. Tinha de encontrar o seu filho. Mas fá-lo-ia, de facto? Deveria realmente procurar uma pessoa que tinha perto de trinta anos e que vivera toda a sua vida sem ele? O que lhe diria essa pessoa, se o fizesse? Anna poderia ter mentido, dito à criança que o pai era outro. Poderia ter-lhe dito que morrera. E ele poderia acabar por causar problemas.
A todos.
Mas sobretudo a si próprio.
Sebastian realmente não estava interessado em saber se era certo ou errado entrar na vida de um adulto e virá-la do avesso, mas o que tiraria ele daí? Julgaria que havia uma nova Sabine à sua espera algures? Não havia, claro. Ninguém iria pôr na sua mão uma outra mão com um anel de borboleta; ninguém adormeceria no seu ombro, numa sonolência embalada pelo calor do Sol. Ninguém iria aninhar-se junto dele na cama pela manhã, respirando quase inaudivelmente no seu ouvido. O risco iminente era o de que ele fosse rejeitado. Ou, na melhor das hipóteses, que fosse desajeitadamente abraçado por um completo estranho que nunca poderia ser mais do que um conhecido. Ou um amigo, no melhor dos cenários. Não tinha muitos amigos. E se ele não fosse autorizado de modo algum a penetrar na vida do seu filho? Conseguiria lidar com isso? Se ia embarcar em mais um curso de acção egoísta, então pelo menos deveria assegurar-se de que seria ele quem tiraria daí os maiores benefícios. E já não estava tão certo disso. Talvez devesse apenas esquecer tudo aquilo. Vender a casa, abandonar a investigação e Västerås, regressar a Estocolmo.
Os seus pensamentos foram interrompidos quando Vanja fechou a porta do gabinete ao fundo do corredor com algum estrépito; ela avançou na sua direcção em passos rápidos e irados.
– Tenho um endereço – disse ela quando passou por Sebastian sem abrandar a velocidade.
Ele seguiu-a.
– O que é preciso para que eles participem alguma coisa à polícia neste sítio? – perguntou Vanja enquanto empurrava as portas da saída e caminhava para o exterior.
Sebastian presumiu que fosse uma pergunta retórica e não lhe respondeu. Não havia qualquer necessidade de o fazer; Vanja continuou em frente.
– A sério, até onde estão eles dispostos a ir para protegerem a reputação da escola? Dez dias antes de morrer, o Roger causa o despedimento de um empregado, e o Groth nem sequer menciona o facto. Se alguma rapariga fosse vítima de violação colectiva na casa de banho, ele também manteria o assunto em segredo?
Mais uma vez, Sebastian assumiu que Vanja não estava realmente à espera de uma resposta, mas pelo menos ele podia mostrar-lhe que estava a ouvir. Além disso, achava a pergunta assaz desinteressante.
– Se ele julgasse que tinha mais a ganhar do que a perder, então sim, com certeza. Não é difícil compreendê-lo. As suas prioridades são sempre a escola e a reputação da mesma. Num certo nível, isso compreende-se: é o principal argumento de venda.
– Portanto, quando nos dizem que ali não há violência, isso também é uma aldrabice, não é?
– Claro que é. Estabelecer hierarquias faz parte da natureza humana. Logo que passamos a fazer parte de um grupo, temos de saber onde estamos e fazemos o que for necessário para manter o nosso lugar ou para subir mais. Por vezes, é óbvio, outras vezes não. Umas vezes é deliberado, outras não.
Tinham chegado ao carro. Vanja parou junto à porta do condutor e voltou-se para Sebastian, com uma expressão de cepticismo.
– Eu faço parte desta equipa há vários anos. Nós não fazemos nada que se pareça com isso.
– Porque a vossa hierarquia é estática, e porque o Billy, que está no nível inferior, não tem qualquer ambição de ser promovido.
Vanja pareceu divertida e intrigada.
– O Billy está no nível inferior?
Sebastian fez um gesto de assentimento. Demorara menos de três segundos a descobrir que Billy estava na base da hierarquia.
– E onde estou eu, segundo a sua análise?
– Imediatamente abaixo de Torkel. A Ursula permite-lhe ocupar essa posição porque não trabalham nas mesmas coisas. Ela sabe que é a melhor na área dela, por isso não estão realmente a competir uma com a outra. Se fosse esse o caso, ela já a teria relegado para um posto menos importante.
– Ou eu poderia ter-lhe feito isso a ela.
Sebastian sorriu-lhe como se ela fosse uma menina que, sem querer, tivesse dito alguma coisa muito divertida.
– Penso que toda a gente deve acreditar naquilo em que quer acreditar.
Abriu a porta do passageiro e entrou. Vanja ficou ali em pé por um instante, tentando libertar-se de um crescente sentimento de irritação. Não lhe ofereceria a satisfação de a irritar. Praguejou entredentes. Não comeces nenhuma conversa. Desde que ele mantivesse a boca fechada, não conseguiria enfurecê-la. Respirou fundo duas vezes e em seguida abriu a porta do carro e entrou. Olhou de relance para Sebastian. Ao invés do que acabara de decidir, tornou a dirigir-lhe a palavra. Em todo o caso, não ia dar-lhe o prazer de ser o último a falar.
– Não nos conhece. Está só para aí a dizer disparates.
– Ah, estou? Foi o Torkel que me trouxe para a investigação. O Billy nem sequer se incomodou. Você e a Ursula não sabem bem como lidar comigo; sabem apenas que eu sou muito bom, e ambas se distanciaram de mim muito claramente.
– E isso é por nos sentirmos ameaçadas, não é?
– Por que outro motivo seria?
– Porque você é um sacana.
Vanja pôs o carro em marcha. Ah! Vitória! Ela tivera a última palavra. E agora seguiriam de carro até casa de Axel Johansson, em completo silêncio, se tudo corresse como ela queria. Não correu.
– Para si é importante, não é?
Mas porque é que ele não conseguia ficar calado, foda-se? Vanja suspirou.
– O quê?
– Ter a última palavra.
Vanja rangeu os dentes e manteve os olhos fixos na estrada. Assim, pelo menos, não teria de ver aquele sorriso vaidoso nos lábios dele enquanto se recostava no assento e fechava os olhos.
Vanja manteve o dedo sobre o botão da campainha. O monótono tinido ecoou na escada onde ela e Sebastian esperavam. Mas esse era o único ruído que saía do interior do apartamento. Vanja empurrara a ranhura da caixa de correio e pusera-se à escuta antes de premir a campainha pela primeira vez.
Nem um movimento.
Nem um som.
Por isso Vanja mantinha agora o dedo sobre o botão. Sebastian pensou se deveria indicar-lhe que, caso Axel Johansson estivesse no apartamento, provavelmente já teria aberto a porta a dada altura durante os primeiros oito toques, mesmo que estivesse pregado no sono. Foda-se, mesmo que ele estivesse lá dentro num caixão, por esta altura já se teria levantado.
– O que é que está a fazer?
Vanja tirou o dedo do botão e voltou-se para trás. Uma velhinha acinzentada estava a espreitar por detrás de uma porta entreaberta. Foi realmente essa a primeira impressão de Sebastian: ela era cinzenta. Não era apenas o cabelo esparso, liso. A mulher vestia um casaco de malha cinzento, umas calças cinzentas de algodão e umas meias grossas. Umas meias grossas cinzentas. Usava óculos com uma armação descolorida, que realçavam a impressão de cinzentismo e de transparência. Ela espreitava os intrusos com um ar de desafio nos olhos. Que eram cinzentos, evidentemente, pensou Sebastian.
Vanja apresentou-se e Sebastian explicou que andavam à procura de Axel Johansson; teria ela alguma ideia de onde ele poderia estar? Em vez de um «sim» ou «não», a resposta foi uma inesperada pergunta.
– O que é que ele fez?
A pequena vizinha cinzenta recebeu a resposta usual.
– Gostaríamos de falar com ele.
– Mera rotina – acrescentou Sebastian. Sobretudo por divertimento. Na vida real ninguém dizia «mera rotina», mas de certa forma isso adaptava-se à situação. Foi como se a velhinha cinzenta estivesse à espera daquilo. Vanja lançou um olhar a Sebastian que mostrava que não estava divertida. Não que ele julgasse que estava. Vanja voltou-se de novo para a vizinha, verificando rapidamente o nome por cima da caixa de correio.
– Senhora Holmin, faz alguma ideia de onde ele estará? – Não, a senhora Holmin não fazia ideia de onde ele estava. Sabia que não estava em casa. Já não ia lá há mais de dois dias. Ela sabia-o. Não que se mantivesse de olho no que se passava no complexo de apartamentos, em toda a gente que entrava e saía, mas não se podia deixar de reparar em certas coisas, afinal. Como o facto de Axel Johansson ter sido despedido há uns tempos. Ou de a namorada dele, que era muito jovem, ter saído de lá uns dias antes disso. Já não era sem tempo; a senhora Holmin não conseguia entender o que vira ela em Axel. Não que ele fosse desagradável nem nada disso, mas era muito estranho. Não falava com ninguém. Um anti-social. Quase nem se dava ao trabalho de dizer «olá» quando se cruzava com alguém nas escadas. A rapariga, por outro lado, era muito conversadora. Muito simpática. Toda a gente no prédio pensava o mesmo. Não que ela andasse a espiar as pessoas, mas naquele prédio era fácil ouvir-se coisas, e tinha dificuldade em adormecer, por isso é que sabia tanto. Não existia outro motivo.
– Havia muita gente a entrar e a sair do apartamento do Axel?
– Uma quantidade razoável, sim. Muita gente nova; o telefone e a campainha estavam sempre a tocar. O que é que ele fez?
Vanja abanou a cabeça e repetiu a resposta anterior.
– Só queremos ter uma conversa com ele.
Vanja sorriu, entregou-lhe o seu cartão e pediu à vizinha para lhe telefonar se ouvisse Johansson regressar. A velhinha cinzenta olhou para o cartão que tinha o logótipo da Riksmord, o que pareceu ajudá-la a somar dois mais dois.
– Tem alguma coisa a ver com aquele rapaz que foi morto? – Os olhos cinzentos brilharam enquanto mirava Vanja e Sebastian em busca de confirmação. – Ele trabalhava na escola em que o rapaz andava, mas se calhar já sabiam... – Vanja procurava qualquer coisa no bolso interior.
– Sabe se ele esteve por cá? – Vanja tirou uma fotografia de Roger; fora fornecida pela escola e era uma das que os agentes policiais envolvidos estavam a usar. Entregou-a à velhinha cinzenta, que a examinou rapidamente e depois abanou a cabeça.
– Não sei. Para mim, eles têm todos o mesmo aspecto, com os seus bonés de basebol, os capuzes e aqueles grandes casacões. Por isso, não sei.
Agradeceram-lhe a ajuda e lembraram-lhe que entrasse em contacto no caso de Axel aparecer.
Enquanto desciam a escada, Vanja pegou no telemóvel e ligou para Torkel. Explicou-lhe sucintamente a situação e sugeriu-lhe que emitissem um mandado de captura para Axel Johansson. Torkel prometeu-lhe tratar disso imediatamente. Quando chegaram à porta que dava acesso à rua quase embateram num homem que vinha a entrar. Um rosto familiar. Haraldsson. A expressão de Vanja ensombrou-se nitidamente.
– O que estás a fazer aqui?
Haraldsson explicou que andavam a fazer inquéritos porta a porta naquela área. Roger Eriksson tinha sido detectado por uma câmara de vigilância em Gustavsborgsgatan, mas não em nenhuma das outras, o que teria sucedido se ele tivesse continuado a subir a artéria principal. Por conseguinte, devia ter virado algures, e este quarteirão situava-se na área de buscas possível. Andavam a tentar encontrar alguém que o tivesse visto na noite daquela sexta-feira.
Batendo às portas. Vanja teve a sensação de que Haraldsson estava finalmente no local devido. O apartamento de Axel Johansson situava-se na área de buscas. O fio a que eles se agarravam tornava-se um pouco mais grosso.
O grupo sentado em volta da mesa de madeira de bétula clara na sala de conferências parecia exausto. Enquanto passavam em revista os seus progressos, era-lhes dolorosamente evidente que não tinham chegado muito longe. O facto de aquela mensagem de correio electrónico ter sido enviada do Liceu Palmlövska não reduzira propriamente o número de suspeitos. Conseguirem provar que Lisa estava a mentir só viera confirmar as suspeitas de Vanja, mas não os conduzira a sítio nenhum. O mais relevante que emergira durante a entrevista com Lisa fora que Roger provavelmente escondia coisas daqueles que o rodeavam. Todos estavam convencidos de que havia algo por descobrir na vida que ele tinha fora da escola. E a sugestão de que poderia ter uma relação com alguém que ninguém conhecia era particularmente interessante. Alguém com quem ele costumava ir ter quando todos pensavam que estava com Lisa. Decidiram que parte da equipa se dedicaria a conhecer melhor Roger. Quem era ele realmente?
– Já vimos o computador dele? – perguntou Billy.
– Não tinha computador.
Billy olhou para Vanja como se tivesse ouvido mal.
– Ele não tinha computador?
– Segundo a lista que a polícia local elaborou quando foram a casa dele, não.
– Mas tinha dezasseis anos. Teria sido roubado, como sucedeu ao relógio dele?
– Nas imagens das câmara de vigilância, não levava consigo nenhum portátil – interveio Torkel.
Billy abanou a cabeça enquanto tentava imaginar o sofrimento que o pobre rapaz deveria ter suportado. Imagine-se, não ter acesso à Internet. Isolado. Sozinho.
– Evidentemente que mesmo assim ele poderia aceder à Internet – prosseguiu Torkel. – No computador da Lisa, num centro para jovens ou num cibercafé. Vê se consegues encontrá-lo em algum lado.
Billy aquiesceu.
– E depois há o Axel Johansson. – Torkel olhou em redor da mesa, e Billy disse: – Não obtivemos nada nos inquéritos porta a porta. Ninguém se lembra de ter visto o Roger naquela área na sexta-feira à noite.
– Isso não significa que ele não estivesse lá – observou Vanja rapidamente.
– Também não significa que ele estivesse lá – contrapôs Billy.
– O que temos nós sobre o Johansson, além do facto de ele residir na área em que o Roger pode ter estado ou não na sexta-feira em que desapareceu? – perguntou Sebastian.
– O Roger fez com que o despedissem do emprego na escola – disse Vanja – e até agora isso é o que nós temos que mais se aproxima de um motivo.
– Ele está desaparecido há dois dias – disse Billy. Sebastian sentiu uma pontada de impaciência. Estivera o dia inteiro com Vanja. Ouvira exactamente as mesmas coisas que ela. Estava bem ciente de que havia algo que poderia ser interpretado como um motivo e que Axel Johansson não ia a casa há uns dias.
– Para além disso, queria eu dizer.
Houve um breve silêncio ao redor da mesa. Billy folheou os seus papéis, encontrou o que procurava.
– Axel Malte Johansson. Quarenta e dois anos de idade. Solteiro. Nasceu em Örebro. Viveu em muitos sítios na Suécia. Durante os últimos doze anos morou em Umeå, Sollefteå, Gävle, Helsingborg e Västerås. Veio para aqui há dois anos. Arranjou um emprego no Palmlövska. Várias notificações por não cumprir pagamentos. Não há quaisquer ordens judiciais contra ele, mas foi referido em diversas investigações por fraude com cheques e falsificação. Todas abandonadas devido a falta de provas.
Vanja sentiu-se um pouco melhor. Pelo menos, ele estava mencionado nos registos criminais. Isso tornava definitivamente Axel Johansson mais interessante para a investigação. Uma das verdades incontroversas nos casos de homicídio era que raramente eram os que nunca tinham cometido nenhum tipo de delitos que cometiam homicídios premeditados ou involuntários. Normalmente, esses crimes extremos eram o apogeu de uma escalada de criminalidade e de violência. A estrada para a perdição estava geralmente sulcada por outros delitos, e havia quase sempre algum tipo de relação entre o homicida e a vítima.
Quase sempre.
Vanja pensou se deveria mencionar a ideia que lhe ocorrera anteriormente: a de que talvez o assassino não conhecesse Roger. De que eles andavam a perder tempo fazendo todos os esforços para elaborarem o perfil do rapaz. Talvez devessem lidar com isto a partir de um ângulo completamente diferente. Mas manteve-se calada. Até agora tinha estado envolvida na resolução de catorze homicídios. Em todos os casos o assassino e a vítima se conheciam, mesmo que não tivesse passado de um encontro fugaz. Era muito pouco provável que Roger tivesse sido assassinado por um completo desconhecido. Se fosse esse o caso, todos os que estavam ali sentados à mesa tinham plena consciência de que aquele homicídio ficaria certamente por resolver. As hipóteses de a polícia encontrar um assassino desconhecido sem qualquer ligação à sua vítima eram muito pequenas, sobretudo tendo em vista a exiguidade das provas forenses neste caso. O advento da tecnologia do ADN durante os anos 1990 fora a principal razão para que tais casos pudessem ser esclarecidos, mas quando um corpo ficava imerso na água, normalmente não havia vestígios de ADN do assassino. A tarefa que eles enfrentavam não era fácil.
– Temos a certeza de que o Axel Johansson anda a esconder-se? Quero dizer, ele poderá ter ido para outro sítio qualquer por uns dias, visitar algum parente idoso ou algo assim... – O razoável contributo de Sebastian não foi propriamente uma ajuda.
Billy verificou os seus papéis.
– Os pais dele já faleceram os dois.
– Muito bem, mas talvez ele tenha ido visitar alguém que ainda esteja vivo.
– É possível – concordou Torkel. – Contudo, não sabemos onde se encontra.
– A Ursula não pode ir analisar o apartamento dele? – Sebastian reprimiu um bocejo. A qualidade do ar naquela sala deteriorara-se rapidamente. Era óbvio que o sistema de ar condicionado não era tão recente como tudo o resto.
– Não temos o suficiente para um mandado de busca. Se conseguíssemos ligar o Roger àquela área, talvez, mas não da maneira como as coisas estão.
Um silêncio resignado invadiu a sala. Billy animou a atmosfera lúgubre; um dos seus maiores dotes era a constante capacidade para olhar em frente, mesmo quando as dúvidas começavam a acumular-se.
– Entrei em contacto com a SKL. Eles vão fornecer-nos as mensagens de texto existentes no telemóvel do Roger e estão a recuperar as que foram apagadas. Além disso, o operador também nos enviará a lista de chamadas; espero que as entreguem até ao final da tarde. – Billy calou-se quando o telemóvel de Vanja tocou. Ela olhou para o ecrã, pediu licença e saiu da sala. Torkel e Billy ficaram a olhá-la enquanto saía. Não conseguiam lembrar-se de ela alguma vez ter dado prioridade a uma chamada privada durante o trabalho. Devia ser importante.
O telefonema do pai despertara-lhe imensas sensações e Vanja saiu da esquadra para desanuviar a cabeça. Normalmente, conseguia manter a separação entre o trabalho e a sua vida privada, duas linhas paralelas que raramente se cruzavam. Mas durante os últimos seis meses as coisas tinham-se tornado muito mais difíceis. Os seus colegas não haviam notado nada – ela era demasiado disciplinada para isso –, mas tivera os seus custos.
A especulação.
A ansiedade.
No centro do turbilhão dos seus pensamentos estava o homem que ela amava mais que tudo no mundo: o seu pai, Valdemar. Quando se ignora a ansiedade, ela volta sempre. Quanto maior é a firmeza com que a repudiamos, mais forte ela é quando regressa. Ultimamente, tornara-se pior; Vanja começara a acordar cada vez mais cedo todas as manhãs, sendo-lhe impossível voltar a adormecer.
Encaminhou-se para a esquerda em direcção ao pequeno parque junto do castelo. Havia uma brisa suave que soprava do lago Mälaren, e fazia sussurrar e ondular os novos rebentos da verdura e as folhas recentemente abertas. Havia no ar um cheiro a Primavera. Vanja atravessou o terreno macio sem ter uma ideia definida sobre o sítio para onde se dirigia.
Lembrou-se novamente daquela imagem. No hospital. Oito meses antes, quando tinham recebido a notícia. A sua mãe chorara. O médico junto ao pai dela, com um ar profissional. Isso fizera Vanja pensar em todas as ocasiões em que adoptara aquele papel. Calma e concentrada diante das vítimas e da desolação. Daquela vez os papéis estavam invertidos. Ela ficara ali e deixara simplesmente que as emoções a dominassem. Era um diagnóstico muito simples de entender.
Alterações das células pulmonares.
Cancro do pulmão.
Vanja afundara-se no cadeirão ao lado do pai, com os lábios a tremer, sentindo dificuldade em que a sua voz atingisse o tom normal e equilibrado. No leito hospitalar, o pai tentara mostrar-se calmo, como sempre. Era o único membro da família que ainda conseguia desempenhar o seu papel normal.
Vanja regressara ao trabalho naquele mesmo dia, há oito meses, com as garantias do médico acerca das possibilidades oferecidas pela ciência moderna ainda a ressoarem-lhe nos ouvidos. Quimioterapia e radioterapia. Havia uma forte probabilidade de que o pai viesse a recuperar plenamente. Derrotasse o cancro. Ela tinha-se sentado diante de Billy e ouvira-o descrever o concerto a que assistira no dia anterior de uma banda qualquer da qual ela nunca ouvira falar; provavalmente desligaria o rádio se eles começassem a tocar. Ele olhara-a por um instante e calara-se. Como se tivesse percebido que lhe acontecera alguma coisa. Os olhos ternos dele fixaram-se com firmeza nos dela, só por um instante. Depois, Vanja ouvira-se a si mesma a dizer qualquer coisa sarcástica a respeito dos gostos musicais dele, indicando-lhe que no mês seguinte ele faria trinta e dois anos, e não vinte e dois, caso se tivesse esquecido disso. Trocaram gracejos durante algum tempo, como sempre faziam. Vanja decidira então que as coisas permaneceriam assim. Não era que não confiasse nele. Billy não era apenas seu colega: era o seu melhor amigo. Mas naquele momento precisava que ele fosse o mais normal que pudesse ser. Isso tornava tudo ligeiramente menos doloroso. Uma parte da vida dela poderia acabar, mas outra parte prosseguiria. Como habitualmente. Precisava de sentir isso.
Naquele dia, os seus gracejos com Billy tiveram uma energia acrescida.
Seguiu o rio até à costa; o sol da tarde cintilava sobre as águas. Alguns barcos mais ousados confrontavam-se com o vento frio. Tirou para fora o seu telemóvel, repeliu a ideia de que devia regressar para junto dos colegas e premiu o número dos pais nas teclas de acesso rápido. A mãe aceitara muito mal a doença de Valdemar. Vanja quisera chorar, gritar e sentir-se como uma menina pequena quando pensara que podia perder o pai. Mas esse papel já estava ocupado. Normalmente, era dessa maneira que ela queria as coisas. A dinâmica fora aprimorada ao longo dos anos: a mãe era sensível, a filha mais controlada, tal como o pai. No último ano Vanja compreendera pela primeira vez que existiam ocasiões em que ela desejava verdadeiramente que pudessem trocar de papéis, nem que fosse por um segundo. De repente, sentira-se como se estivesse a vacilar à beira de um abismo, sem qualquer ideia da sua profundidade. E a pessoa que sempre ali estivera para garantir que ela não caía ia subitamente abandoná-la.
Para sempre.
Mas talvez não.
A ciência médica viera introduzir a esperança. Provavelmente tudo correria bem. Vanja sorriu para si mesma. Olhou por cima das águas cintilantes e permitiu que o sentimento de felicidade a dominasse.
– Olá, mãe.
– Já sabes da novidade? – Demasiado ansiosa para dizer sequer olá.
– Sim, ele telefonou-me agora mesmo. É fantástico.
– Eu nem acredito que é verdade. Vai voltar para casa! – Pela voz da mãe, Vanja percebeu que mal conseguia conter as lágrimas. Lágrimas de alegria. Tinha passado muito tempo.
– Dá-lhe um abraço por mim. Um grande abraço, e diz-lhe que eu vou aí logo que puder.
– Quando?
– No máximo durante o próximo fim-de-semana, espero eu.
Decidiram organizar um jantar na semana seguinte, só para os três. Foi difícil convencer a mãe a desligar o telefone. Vanja, que normalmente detestava as despedidas prolongadas, adorou. Tanto ela como a mãe continuaram a tagarelar, a ansiedade que haviam acumulado derramava-se numa abundância de palavras. Como se ambas precisassem de confirmar que tudo regressara de novo ao normal.
O seu telemóvel emitiu um som. Uma mensagem de texto.
– Adoro-te, Vanja.
– E eu adoro-te a ti, mas agora tenho de ir.
– Tens mesmo?
– Tu sabes que sim, mãe, mas vemo-nos em breve.
Vanja terminou a chamada e leu a mensagem que recebera. Era de Torkel. O seu outro mundo estava a exigir a sua atenção.
«Para onde foste? A Ursula está a chegar.»
Uma resposta rápida.
«Estou a caminho.»
Pensou se deveria acrescentar um smiley, mas decidiu que não.
CAPÍTULO DOZE
BEATRICE STRAND apanhara o autocarro para casa, como era habitual. Saíra uma paragem antes. Precisava de apanhar ar. Na escola era impossível. E em casa também. A morte de Roger invadira tudo; era como se tivesse rebentado um dique e levado toda a gente consigo. O seu aluno, no qual ela investira tanto. O amigo de Johan. A pessoa com quem ele passava tanto tempo. Era o tipo de coisa que nunca acontecia.
Os amigos não morriam.
Os alunos não eram encontrados assassinados na floresta.
Normalmente, demorava oito minutos entre a paragem do autocarro e a chegada ao caminho de gravilha que conduzia à casa de dois pisos em tom amarelo-pálido. Hoje tinha demorado trinta e cinco. Não que Ulf reparasse nisso. Há muito tempo que ele deixara de se importar com as horas a que ela chegava.
A casa estava em silêncio quando entrou.
– Olá!
Nenhuma resposta.
– Johan?
– Estamos cá em cima – responderam.
Mas foi tudo. Nada de «Eu desço já», nem de «Como estás?» Só silêncio.
Estamos cá em cima.
Nós.
Ulf e Johan.
Sempre. Cada vez mais raramente os três.
Quem estava ela a tentar enganar?
Nunca os três.
– Vou fazer chá – gritou, mas uma vez mais não obteve resposta.
Beatrice ligou a chaleira eléctrica, depois ficou parada a olhar para a luzinha vermelha, perdida em pensamentos. Durante os primeiros dias esforçara-se muito por fazer com que passassem tempo juntos enquanto família, para conversarem, apoiarem-se uns aos outros. Afinal, era o que as famílias faziam. Em períodos difíceis. Apoiavam-se uns aos outros. Mas Johan não queria isso. Afastava-se dela. Nesta família, ele fazia tudo com o pai, e isso incluía o luto. Deixando-a de fora. Mas ela não tinha qualquer intenção de desistir. Tirou para fora as canecas grandes que tinham o padrão de frutas francês e colocou-as sobre um tabuleiro com mel e cubos de açúcar. Olhou pela janela para a pacata rua residencial. Daí a pouco aquelas tonalidades de rosa-pálido que ela tanto adorava viriam saudá-la. A cerejeira acabara de ficar em botão. Este ano fora mais cedo. A família plantara-a em conjunto há muito tempo; parecia uma eternidade. Johan, que só tinha cinco anos, insistira em ajudar a escavar o buraco, e eles tinham-se rido e deixaram-no fazê-lo. Ela lembrava-se do que tinha dito.
Uma família respeitável tem árvores de fruto.
Uma família respeitável. A chaleira desligou-se e ela deitou nas chávenas a água fervente. Três saquinhos de chá. A seguir subiu as escadas. Ao encontro do que restava da sua família respeitável.
Johan estava sentado ao computador a jogar um qualquer jogo violento que implicava disparar sobre o maior número possível de pessoas, cujo nome ela já sabia: First Person Shooter. Ulf estava confortavelmente sentado na borda da cama do filho, a assistir ao jogo. Quando abriu a porta e entrou, Ulf olhou para ela. O que já era alguma coisa.
– Têm fome?
– Não, já comemos.
Beatrice pousou o tabuleiro em cima do armário onde o filho guardava os seus livros de manga.
– A polícia veio cá hoje?
– Veio.
Silêncio de novo.
Beatrice deslocou-se até junto do filho e pousou suavemente a mão sobre o ombro dele. Deixou-a ficar ali, sentindo-lhe a pele quente sob a camisola. Durante um instante esperou que ele não se importasse.
– Mãe... – Um encolher de ombros que indicava claramente: «Sai daí!»
Beatrice retirou a mão com relutância, mas não estava prestes a desistir. Ainda não. Sentou-se na cama a curta distância de Ulf.
– Temos de falar sobre isto. Não se ganha nada quando se guarda tudo cá dentro – disse ela.
– Eu falo com o pai – respondeu Johan, sem sequer se voltar para trás.
– Bom, eu também preciso de falar – declarou Beatrice, numa voz ligeiramente alterada. Não era só porque precisasse de falar. Precisava da sua família. Sobretudo do seu filho. Esperara que Johan reatasse a relação com ela após Ulf ter regressado.
Apagar e rebobinar.
Perdoar, esquecer, seguir em frente.
Ela esperara que tudo acabasse por voltar ao normal. Como antes. Antes de ter acontecido tudo aquilo. Quando ela era alguém a quem Johan vinha expor os seus problemas ao serão, quando eles partilhavam as provações e as alegrias da vida em longas e íntimas conversas e ela era a pessoa que precisava de ser: uma mãe, uma mulher, uma parte de alguma coisa. Mas esses tempos pareciam agora tão distantes como aquele dia de há muito em que uma família plantara orgulhosamente a sua cerejeira. Ulf voltou-se para ela.
– Mais tarde. Com a polícia correu tudo bem. O Johan contou-lhes o que sabia.
– Ainda bem.
– Escuta, daqui a pouco vamos embora, o Johan e eu. Vamos acampar para um sítio qualquer. Longe de tudo isto.
Longe dela, foi o que Beatrice não conseguiu evitar pensar, mas limitou-se a fazer um aceno de concordância.
– Boa ideia.
Silêncio de novo. Que mais havia para dizer?
O jogo de computador de Johan prosseguia.
Ursula entrou na sala. Vinha a sorrir.
– Oh, por favor diz-me que isso significa que tens boas notícias – pediu Torkel.
– Tenho o relatório da autópsia. Está cheio de surpresas. É como um ovo Kinder!
Vanja, Sebastian e Torkel ocuparam os seus lugares. Ursula abriu a pasta que trazia consigo e começou a pregar na parede fotografias que mostravam o corpo de Roger de todos os ângulos possíveis e a várias distâncias.
– Vinte e duas facadas no tronco, nos braços, e nas pernas. Essas são as que nós conseguimos contar. Além disso, há os ferimentos sofridos quando o coração foi removido. – Ela apontou para uma das fotografias, que mostrava uma abertura profunda e assimétrica nas costas, entre as omoplatas.
Sebastian desviou os olhos. Sempre se horrorizara com os ferimentos de armas brancas. Havia qualquer coisa naquela grotesca combinação da pele lisa e pálida e das profundas lacerações que expunham o que a pele devia ocultar.
– Não há feridas defensivas nas palmas das mãos nem nos antebraços – prosseguiu Ursula. – E sabem porquê? – Não esperou por uma resposta. – Porque todas as facadas foram infligidas post mortem.
Torkel levantou os olhos do seu bloco de notas e tirou os óculos.
Ursula olhou para todos eles com uma expressão grave, como se pretendesse enfatizar a sua descoberta.
– Então ele morreu de quê?
Mais uma vez, Ursula apontou para o grande plano da ferida aberta nas costas de Roger. Com cerca de sete centímetros e meio no ponto mais largo. Nalguns pontos viam-se pedaços de costelas partidas. Fora necessária uma força considerável para infligir aqueles ferimentos. Força e determinação.
– Falta a maior parte do coração, mas isso não tem nada a ver com qualquer tipo de ritual ou de sacrifício bizarro. Alguém o fez para extrair uma bala. Só isso.
Ursula afixou outra fotografia. Ao redor da mesa ninguém disse uma palavra.
– Ele foi alvejado nas costas. Falta-nos a bala, mas encontrámos vestígios dela numa das costelas. – Ursula apontou para a ampliação da ferida de Roger que acabara de afixar. Numa das costelas era possível ver-se uma pequena marca em forma de meia-lua, deixada por uma bala.
– Estamos a falar de uma arma de calibre relativamente pequeno. Calibre vinte e dois, a avaliar pela marca.
A informação galvanizou a equipa. Começaram imediatamente a falar das armas que conheciam e que eram do mesmo calibre. Torkel extraiu logo uma lista da base de dados. Sebastian não tinha qualquer contributo a oferecer, por isso levantou-se e foi até junto da parede. Obrigou-se a olhar as fotografias mais de perto. Atrás de si, a discussão esmoreceu. A impressora ganhou vida e começou a cuspir a lista de Torkel. Torkel olhou para o seu antigo colega.
– Encontraste alguma coisa?
Sebastian continuou a olhar para a ferida aberta nas costas de Roger.
– Não creio que o Roger tivesse de morrer.
– Quando se dá um tiro em alguém que a seguir é esfaqueado vinte e duas vezes, julgo que, provavelmente, essa é uma hipótese a considerar – disse Ursula de forma seca.
– Está bem, escolhi mal as palavras. Não creio que alguém planeasse matar o Roger Eriksson.
– Porquê?
– Extrair a bala não foi uma tarefa fácil. Deve ter provocado muito sangue. Demorou tempo. Isso aumentou o risco de ser apanhado em flagrante. Mas o assassino teve de o fazer. Porque sabia que isso o identificaria.
Vanja compreendeu imediatamente o que ele queria dizer. Por um instante praguejou entredentes – porque não se lembrara ela disso? Devia ter-se lembrado. Falou, disposta a não deixar que Sebastian ficasse com todo o crédito.
– E se tivesse planeado o crime, teria usado uma arma diferente. Que não pudesse ser detectada.
Sebastian fez um gesto de concordância. Ela era perspicaz.
– Então, o que aconteceu? – perguntou Torkel em voz alta. – O Roger andava a deambular numa zona razoavelmente central de Västerås, encontrou alguém com uma arma de calibre vinte e dois, passou por ele, foi alvejado nas costas. A pessoa que disparou apercebeu-se de que «Valha-me Deus, a bala pode denunciar-me», e decidiu extraí-la, colocou o corpo no carro e foi despejá-lo em Listakärr. – Torkel olhou para os outros. – Isto parece-vos provável?
– Nós não sabemos o que aconteceu. – Sebastian olhou para Torkel com um laivo de fatigada irritação. Tinha-se limitado a apresentar uma pequena peça do quebra-cabeças e não a completá-lo inteiramente.
– Nós nem sequer sabemos onde ele morreu. Estou só a dizer que, provavelmente, não foi planeado.
– Portanto, existe a possibilidade de estarmos a falar de homicídio involuntário, e não premeditado, mas isso não nos faz chegar mais perto de quem matou o rapaz, pois não?
Silêncio. Sebastian sabia que não valia a pena responder quando Torkel reagia daquela maneira. Era evidente que os outros tinham a mesma opinião. Torkel voltou-se para Ursula.
– Essas marcas na costela... será possível compará-las com uma bala se viermos a encontrar a arma?
– Não. Infelizmente.
Torkel afundou-se na sua cadeira e abriu os braços.
– Assim, temos uma nova causa de morte, mas, quanto ao resto, continuamos fodidos.
– Não inteiramente. – Sebastian apontou para uma outra fotografia na parede. – Temos o relógio.
– O que tem o relógio?
– É caro.
Tocou suavemente nas imagens luzidias que mostravam as roupas de Roger.
– Calças de ganga Acne. Blusão Quicksilver. Ténis Nike. Tudo marcas de prestígio.
– Ele era um adolescente.
– Sim, mas onde arranjou o dinheiro? A mãe não parece ser muito abastada. E, afinal, ele era a pequena experiência de caridade do Liceu Palmlövska.
Lena Eriksson estava sentada na sua poltrona da sala de estar, a sacudir o morrão do cigarro para um cinzeiro que tinha ao seu lado. Nessa manhã abrira um novo maço, e mais outro há uma hora. Este era o terceiro cigarro do segundo maço. O que significava que era o vigésimo terceiro desse dia. Demasiados. Sobretudo, porque não comera quase nada durante o dia. Sentia-se ligeiramente entontecida enquanto pigarreava e olhava para os agentes policiais sentados no sofá do outro lado da mesa de centro. Jovens. Ambos. Os três, se contássemos com a mulher que estava no quarto de Roger. Aquela que Lena conhecera na morgue não estava ali. Nem nenhum dos que tinham vindo anteriormente falar com ela. Estes agentes andavam vestidos à civil e vinham de qualquer coisa que se chamava Riksmord. Tinham-lhe perguntade onde é que Roger arranjava dinheiro.
– Ele tinha uma bolsa para financiar os estudos.
Puxou mais uma baforada do cigarro. O movimento era muito familiar, fazia parte da sua vida quotidiana, era quase um acto reflexo. Que mais fizera ela hoje, além de se sentar na sua poltrona a fumar? Nada. Não conseguia encher-se de energia. Nessa manhã acordara ao fim de cerca de uma hora de sono e achara que era melhor sair à rua por um bocado. Ir apanhar ar fresco. Fazer algumas compras. Talvez limpar o apartamento. Dar o primeiro e pequeno passo para voltar a uma espécie de vida normal. Sem Roger.
Em todo o caso, tinha de sair para ir comprar o Aftonbladet, o jornal da tarde. Afinal, tinham sido esses que lhe haviam oferecido mais dinheiro. Quinze mil coroas para conversar com uma mulher durante algumas horas. Dinheiro na mão. Durante a primeira meia hora tinha lá estado um fotógrafo, que depois se fora embora. A rapariga de cujo nome Lena já se esquecera pousara um gravador em cima da mesa e fizera perguntas acerca de Roger – como era ele, a sua infância, o que gostava de fazer, como se sentia ela, agora que ele partira. Para sua surpresa, Lena não chorara durante a entrevista. Tinha pensado que choraria; desde que ele desaparecera, era a primeira vez que falava acerca de Roger com alguém que não fosse da polícia. Que falava a sério. Maarit, uma colega do emprego, telefonara-lhe e apresentara-lhe desajeitadamente as condolências, mostrando-se muito pouco à vontade, e Lena terminara rapidamente o telefonema. O chefe de Lena tinha-a contactado, mas fora sobretudo para lhe dizer que compreendia que Lena não pudesse cumprir a escala de serviço e que teriam de dividir os turnos dela entre o resto do pessoal, mas que seria útil que lhe telefonasse com um ou dois dias de antecedência antes de regressar. Os polícias que tinham ido visitá-la só estavam interessados no desaparecimento de Roger – ele já tinha fugido de casa antes, tinha problemas, alguém o ameaçara? Não queriam saber nada acerca dele enquanto pessoa. Enquanto filho.
Nada acerca de quem fora.
De quanto significara para ela.
Fora exactamente isso que a jornalista quisera saber. Tinham olhado para os álbuns de fotografias, e ela deixara que Lena lhe falasse de Roger ao seu próprio ritmo, fazendo apenas uma pergunta de vez em quando para esclarecer uma coisa ou outra. Quando Lena acabara de lhe contar tudo o que achava que podia e queria dizer a respeito do filho, a mulher começara a fazer perguntas mais específicas. Roger era o tipo de pessoa a quem os amigos recorriam quando precisavam de ajuda? Estava envolvido nalgum serviço de voluntariado? Ajudara a treinar alguma equipa de jovens, era o mentor de alguma criança mais nova? Alguma coisa desse tipo? Lena dissera a verdade e respondera não a todas as perguntas. Os únicos amigos que ele tinha levado lá a casa eram o Johan Strand e um rapaz da escola nova. Uma vez. Um Erik qualquer coisa. Lena julgara ter detectado um laivo de desapontamento no rosto da jornalista. Nesse caso, poderia Lena dizer-lhe um pouco mais a respeito da violência que ele sofrera? Como se sentira ela quando soubera que o rapaz que andara a atormentar o seu filho estava detido como suspeito de homicídio? Embora já fosse uma notícia antiga, a jornalista – que se chamava Katarina – achava que lhe poderiam dar mais um retoque. Com uma fotografia de dois brinquedos em cima da cama de Roger, talvez funcionasse.
Por isso Lena falara. Acerca das perseguições. Da violência. Da transferência para uma nova escola. Mas sobretudo falara acerca de como estava convicta de que Leo Lundin assassinara o seu filho, e de que jamais lhe perdoaria. Katarina desligara o gravador, perguntara se podia levar emprestadas algumas fotografias dos álbuns de família, entregara-lhe o dinheiro e saíra. Isso tinha sido no dia anterior. Lena guardara o dinheiro no bolso. Tanto dinheiro. Pensara se haveria de sair para ir buscar comida. Realmente seria bom para si sair do apartamento. E precisava de comer. Mas tinha-se deixado ficar onde estava. Na poltrona. Com os seus cigarros e o dinheiro no bolso. Sentia-o contra a sua perna sempre que mudava de posição. Sempre que aquela vozinha despertava.
Em todo o caso, não foi este dinheiro que o matou.
Por fim levantara-se e fora guardar o maço de notas numa gaveta. Não tinha ido à rua. Não comera. Sentara-se na poltrona e fumara. Tal como fizera também hoje, durante todo o dia. E agora estavam ali outros dois agentes policiais que queriam falar de dinheiro.
– O abono de família e a bolsa de estudo eram suficientes antes de ele se mudar para aquela maldita escola de gente fina. Desde que ele lá andava, estava sempre a precisar de coisas novas. – Vanja ficou surpreendida. Ela supusera que Lena só teria coisas boas para dizer acerca do Liceu Palmlövska, que afastara o filho dos que o atormentavam e lhe oferecera um lugar naquela que Vanja acreditava ser uma boa escola, independentemente da opinião que tinha acerca do director.
– Não ficou contente quando ele mudou de escola?
Lena não enfrentou o olhar de Vanja. Olhou para a grande janela. Sobre o parapeito estava um candeeiro com um quebra-luz azul e duas plantas Dieffenbachia engelhadas. Quando fora a última vez que as regara? Há muito tempo. Os lírios tinham resistido melhor, mas também eles estavam a murchar. À luz do Sol que ia desaparecendo na janela percebeu que, de facto, se poderia dizer que o apartamento estava cheio de fumo.
– Ela afastou-o de mim – disse, enquanto apagava o cigarro, se levantava da poltrona, chegava à porta da varanda e a abria.
– Quem é que o afastou de si?
– A Beatrice. Toda a gente naquele sítio emproado.
– De que maneira é que eles afastaram o Roger de si?
Lena não respondeu de imediato. Fechou os olhos e respirou o ar rico em oxigénio. Sebastian e Vanja sentiram uma bem-vinda rajada de ar fresco rodopiar-lhes em torno dos pés. Naquele silêncio, todos conseguiam ouvir Ursula a revistar o quarto do rapaz. Tinha insistido em vir com eles, em parte para evitar ficar sozinha com um Torkel rezingão – com o qual continuava furiosa –, e em parte porque o quarto só fora revistado pela polícia local. A fé de Ursula na polícia local era praticamente inexistente. Não tinham reparado no relatório sobre o desaparecimento do rapaz durante dois dias, por amor de Deus. Se ela quisesse ter a certeza de que o trabalho era devidamente feito, tinha de ser ela própria a fazê-lo. E era o que estava a fazer agora.
Lena ouviu o guarda-fatos ser aberto, as gavetas a serem puxadas para fora, as fotografias e os cartazes a serem tirados das paredes, enquanto olhava vagamente para uma árvore junto ao parque de estacionamento. Era a única vegetação que se avistava da janela. O resto estava ocupado pela fachada cinzenta do complexo de edifícios ao lado.
De que maneira tinham eles afastado Roger de si? Conseguiria ela sequer explicá-lo?
– Queria ir às Maldivas durante as férias de Natal e aos Alpes em Fevereiro e à Riviera no Verão. Não gostava de estar em casa. O apartamento já não era suficientemente bom. Já nada do que nós fizéssemos ou tivéssemos era suficientemente bom. Eu não tinha hipótese.
– Mas o Roger era mais feliz no Palmlövska, não era?
Oh, sim, claro que era. Já ninguém se metia com ele. Nem lhe batiam. Mas, nas suas horas mais sombrias, Lena pensara que isso quase teria sido preferível. Pelo menos, antigamente ele estava em casa. Quando não se encontrava no treino ou em casa do Johan, estava ali em casa. Com ela. Necessitava tanto dela como ela dele. Agora a verdade era que ninguém precisava dela.
Naquele último ano ela não estivera sozinha.
Tinha sido abandonada.
Isso era pior.
Lena ganhou consciência do silêncio na sala. Estavam à espera de uma resposta.
– Julgo que sim. – Lena assentiu com a cabeça. – Julgo que ele era mais feliz lá.
– Você tem emprego? – perguntou Vanja quando percebeu que não obteria uma resposta mais completa acerca da nova escola de Roger.
– A tempo parcial. No Lidl. Porquê?
– Estava a pensar se ele porventura lhe roubaria dinheiro. Sem que desse por isso.
– Poderia tê-lo feito, se houvesse algum dinheiro para roubar.
– Ele alguma vez falava disso? Alguma vez disse que era importante para ele ter dinheiro? Parecia desesperado? Poderá ter pedido dinheiro emprestado a alguém?
Lena empurrou a porta da varanda sem a fechar. Regressou à poltrona. Resistiu ao anseio de acender mais um cigarro. Sentia-se muito cansada. Tinha a cabeça a girar. Não poderiam deixá-la em paz?
– Não sei. Porque é tão importante saber onde é que ele arranjava dinheiro?
– Se ele o tivesse pedido emprestado ou roubado à pessoa errada, isso poderia constituir um motivo.
Lena encolheu os ombros. Não sabia onde Roger tinha ido arranjar o seu dinheiro. Deveria sabê-lo?
– Ele alguma vez lhe falou do Axel Johansson? – perguntou Vanja, tentando uma nova abordagem. Ninguém poderia acusar a mãe de Roger de ser excessivamente cooperante. Tinham de lhe arrancar cada maldita resposta.
– Não, quem é ele?
– O contínuo do Palmlövska. Antigo contínuo.
Lena abanou a cabeça.
– Quando falou com os meus colegas, disse... – Vanja folheou o seu bloco de notas algumas páginas mais para trás e leu: – ... que o Roger não se sentia ameaçado nem tinha discutido com ninguém? Continua a ser esse o caso?
Lena aquiesceu.
– Se ele tivesse sido ameaçado ou entrado numa briga com alguém, teria tido conhecimento?
Fora o homem que fizera a pergunta. Até agora ele não dissera nada. Apresentara-se quando chegaram, depois sentara-se e ficara calado, não, não fora assim, ele nem sequer fizera isso. A mulher é que os apresentara a ambos quando lhe mostrara a sua identificação. O homem não mostrara a dele. Sebastian, lembrou-se Lena. Sebastian e Vanja. Lena olhou para os calmos olhos azuis de Sebastian e percebeu que ele já sabia a resposta. Compreendia o que se passava no seu íntimo.
Ele sabia que não se tratava apenas do apartamento de quatro assoalhadas arrendado num bairro desinteressante, que o leitor de DVD deveria ter sido um leitor de Blu-ray e que era preciso arranjar um novo telemóvel a cada seis meses. Sabia que ela não tinha sido suficientemente boa – o seu aspecto, o problema de peso, o emprego muito mal pago. Ele sabia que Roger tinha vergonha da mãe. Que não queria que ela fizesse parte da sua vida, que a expulsara. O que este homem não sabia era que ela tinha encontrado uma abertura. Uma maneira de voltar para Roger. De voltarem um para o outro.
Mas depois ele morreu, disse a vozinha. Lá se foi o teu regresso.
Com mãos trémulas, Lena acendeu o vigésimo quarto cigarro antes de fornecer a resposta que Sebastian já conhecia.
– Provavelmente, não.
Lena calou-se e abanou a cabeça, como se tivesse acabado de perceber a terrível relação que tivera com o filho. O seu olhar estava perdido algures na distância.
A conversa foi interrompida quando Ursula emergiu do quarto de Roger com dois sacos e a câmara pendurada ao pescoço.
– Estou despachada. Encontramo-nos na esquadra. – Voltou-se para Lena. – Mais uma vez, as minhas condolências pela sua perda.
Lena fez um vago aceno de agradecimento. Ursula lançou um olhar significativo a Vanja, ignorou Sebastian e saiu do apartamento. Vanja esperou até ouvirem a porta exterior fechar-se.
– Seria possível falarmos com o pai do Roger? – perguntou Vanja. Nova tentativa. Mais uma abordagem. Ver se era possível obter mais de três palavras consecutivas por parte da mãe de Roger acerca de qualquer assunto.
– Não há pai nenhum.
– Ena, a última vez que isso aconteceu foi há dois mil anos!
Lena olhou com firmeza para Vanja por entre o fumo.
– Está a querer julgar-me? Você devia adaptar-se perfeitamente à nova escola do Roger.
– Ninguém está a julgá-la, mas tem de haver um pai num sítio qualquer – disse Sebastian sem cerimónia. Seria da imaginação de Vanja ou havia um tom diferente na voz dele?
Interesse?
Envolvimento?
Lena sacudiu a cinza do cigarro e encolheu os ombros.
– Não faço ideia de onde ele possa estar. Nunca estivemos juntos. Foi um encontro de uma noite. Ele nem sequer sabe que o Roger existe.
Sebastian inclinou-se para a frente. Agora estava decerto mais interessado. Enfrentou o olhar de Lena com uma expressão de franqueza no rosto.
– Como lidou com isso? Quero dizer, com certeza que o Roger lhe deve ter feito perguntas acerca do pai em dado momento...
– Quando era pequeno.
– E o que lhe disse?
– Disse-lhe que tinha morrido.
Sebastian fez um gesto de aquiescência para si mesmo. Seria isso que Anna Eriksson teria dito ao filho ou à filha dele? Que o papá tinha morrido? Nesse caso, o que sucederia se o papá aparecesse de repente? Ao fim de trinta anos? Incredulidade, por certo. Isso poderia exigir algumas provas de que ele era quem dizia ser. Presumivelmente o homem ou a mulher ficaria zangado com a mãe, ou talvez desapontado com ela. Tinha-lhe mentido. Roubara o pai àquela criança. Talvez o aparecimento de Sebastian fosse estragar a relação deles. Causar mais mal do que bem. Qualquer que fosse a maneira como ele olhava para as coisas, chegava sempre à conclusão de que seria melhor continuar simplesmente a viver como se nunca tivesse encontrado aquelas cartas. Como se nunca tivesse descoberto.
– Porque lhe disse que ele tinha morrido? Se o Roger tivesse sabido a verdade poderia ter ido à procura dele.
– Pensei nisso, mas pareceu-me melhor dizer-lhe que ele estava morto do que dizer-lhe que ele não o queria. Para a auto-estima do rapaz, quero eu dizer.
– Como pode sabê-lo? Não sabe o que ele queria! Nunca lhe deu essa oportunidade! – Vanja lançou um olhar de soslaio a Sebastian. Ele estava a deixar-se envolver pela situação. A sua voz tornara-se mais alta e mais estrídula. Deslocara-se para a beira do sofá e parecia estar prestes a pôr-se em pé a qualquer momento.
– E se ele tivesse querido o Roger? Se ao menos tivesse sabido?
Lena pareceu completamente indiferente à súbita exaltação de Sebastian. Apagou o cigarro e expeliu dos seus pulmões o resto do fumo.
– Ele era casado. Tinha outros filhos. Filhos dele.
– Como se chamava?
– O pai do Roger?
– Sim.
– Jerry.
– Se o Jerry tivesse vindo à procura do Roger quando ele fosse mais velho, como é que acha que o Roger teria reagido?
Vanja inclinou-se para diante. Mas que raio estava Sebastian a fazer? Isto não ia a levá-los a lado nenhum.
– Porque o faria? Nem sequer sabia da existência do rapaz.
– Mas se soubesse?
Vanja pousou suavemente a sua mão no braço de Sebastian para lhe chamar a atenção.
– Isso é uma discussão hipotética que na verdade não tem lugar aqui, não acha?
Sebastian calou-se abruptamente. Sentiu Vanja a fitá-lo de lado com uma expressão de perplexidade.
– É verdade... Eu... – Pela primeira vez desde há nem se lembrava quanto tempo, Sebastian ficou sem saber o que dizer, por isso repetiu simplesmente: – É verdade.
Silêncio. Levantaram-se, decidiram que tinham acabado. Sebastian dirigiu-se para o vestíbulo e Vanja foi atrás dele. Lena não mostrou quaisquer sinais de se levantar nem de os acompanhar à saída. Quando chegaram à porta que dava acesso ao vestíbulo, disse-lhes: – O relógio do Roger.
Sebastian e Vanja voltaram-se ambos para trás para fitarem Lena. Vanja não pôde deixar de sentir que havia qualquer coisa de estranho naquela mulher da poltrona puída. Algo que ela não conseguia identificar.
– O que tem?
– A jornalista com quem eu falei disse-me que o Lundin tinha roubado um relógio ao Roger antes de o assassinar. Um relógio valioso. Presumo que agora ele me pertence?
Vanja deu um passo para voltar a entrar na sala. Ficou surpreendida por Lena não saber; habitualmente, Torkel era muito escrupuloso acerca das informações dadas aos familiares.
– De momento, tudo indica que o Leonard Lundin não teve nada a ver com a morte do seu filho. – Lena recebeu a informação com desinteresse.
– Está bem, mas o relógio continua a pertencer-me, não é?
– Presumo que sim.
– Gostaria que mo entregassem.
Sebastian e Vanja estavam a regressar à esquadra para concluírem o dia. Vanja conduzia depressa. Demasiado depressa. Sentia um nó de irritação algures no seu diafragma. Lena tinha-a provocado. Vanja raramente permitia que a provocassem. Era um dos seus pontos fortes. A capacidade para manter a calma, para manter as distâncias. Mas Lena bulira-lhe com os nervos.
Sebastian tinha o telemóvel colado ao ouvido. Vanja ouvia a conversa do lado dele. Estava a falar com Lisa. Após uma última pergunta sobre como estavam a correr as coisas em casa e uma resposta aparentemente muito breve, Sebastian terminou a chamada e guardou o telemóvel no bolso.
– A Lisa andava a pagar ao Roger para que ele fingisse ser seu namorado.
– Era o que eu julgava.
– Não era muito dinheiro, não chegava para pagar o que ele comprava, mas pode haver aí alguma coisa. Ele era empreendedor.
– Ou ganancioso. Pensar só no dinheiro e em mais nada parece ser uma característica de família. Quero dizer, o filho dela foi assassinado, e ela só pensa em lucrar com isso.
– Tirar o melhor proveito da situação em que nos encontramos é uma maneira de lidar com a dor.
– É uma maneira doentia.
– Talvez ela não tenha mais nenhuma.
O típico psicólogo. Tão compreensivo. Todas as reacções são naturais. Tudo pode ser explicado. Mas Vanja não tinha qualquer intenção de permitir que Sebastian se escapasse com tanta facilidade. Estava furiosa e nem hesitava em descarregar nele.
– Vá lá, a sério. Tinha os olhos vermelhos por causa de todo aquele maldito fumo. Eu era capaz de apostar que ela nem sequer chorou, nem uma vez. Já vi pessoas em estado de choque, mas aquilo é outra coisa. Ela está mesmo no fundo do poço.
– Fiquei com a impressão de que é incapaz de exprimir os sentimentos que nós esperávamos. Mágoa. Desespero. Talvez nem sequer empatia.
– Porquê?
– Como hei-de eu saber, foda-se? Só passei quarenta e cinco minutos com a mulher. Imagino que ela os tenha desligado.
– Não se pode simplesmente «desligar» os sentimentos.
– Não?
– Não.
– Nunca ouviu falar das pessoas que ficaram tão magoadas com alguém que decidiram nunca mais se afeiçoar a ninguém?
– Há uma diferença. O filho dela morreu. Porque se haveria de optar por não reagir a isso?
– Para se conseguir continuar a viver.
Vanja continuou a conduzir em silêncio. Havia qualquer coisa.
Qualquer coisa a respeito de Sebastian.
Qualquer coisa diferente.
Em primeiro lugar, ele apegara-se à questão do pai de Roger como um cão de fila, apesar de esse tópico específico ter demonstrado não possuir qualquer interesse para a investigação ao fim de duas simples perguntas, e agora Vanja julgava conseguir detectar na voz dele um novo tom. Mais atenuado. Menos confrontador. Não tão disposto a ser espirituoso ou condescendente. Não, ali havia mais qualquer coisa. Mágoa, talvez.
– Não acredito nisso. Não chorar o filho é simplesmente doentio.
– Ela chora-o como pode.
– O tanas é que ela o chora.
– Mas como é que sabe, foda-se? – Vanja deu um salto perante a súbita impetuosidade na voz de Sebastian. – Que raio sabe acerca do sofrimento? Já perdeu alguém que tivesse algum significado para si?
– Não.
– Então como sabe o que é uma reacção normal?
– Bom, não sei, mas...
– Pois não, precisamente – interrompeu Sebastian. – Não tem a mais pequena ideia sobre aquilo de que está a falar, por isso talvez fosse melhor calar a boca daqui em diante.
Vanja olhou de soslaio para Sebastian, surpreendida pela sua intensidade, mas manteve os olhos fixos na estrada. Continuou a conduzir em silêncio. Cada um de nós sabe muito pouco sobre o outro, pensou ela. Está a esconder alguma coisa, essa é uma sensação que eu conheço. Melhor do que pensa.
O open space do escritório da esquadra estava mais ou menos às escuras. Aqui e acolá um ecrã de computador ou um candeeiro que ficara aceso por esquecimento iluminavam uma pequena área da sala; fora isso, estava às escuras, vazia e silenciosa. Torkel avançou devagar por entre as secretárias até à sala do pessoal. Não esperara que a esquadra de Västerås estivesse a fervilhar de actividade a qualquer hora do dia, mas, apesar disso, era uma surpresa que boa parte do edifício ficasse completamente deserta depois das cinco da tarde.
Chegou à sala, que era algo impessoal. Três mesas redondas, oito cadeiras em cada uma. Um frigorífico e uma arca congeladora, três micro-ondas, uma máquina de café, um lava-louças, um escorredor de louça e uma máquina de lavar louça ao longo de uma das paredes. Uma flor de plástico em cima de um napperon redondo e roxo no centro de cada mesa. O chão estava revestido a linóleo, riscado, fácil de limpar. Não havia cortinas em nenhuma das três janelas. Um único telefone em cima do parapeito. Sebastian estava sentado à mesa mais distante da porta, com um copo de papel cheio de café à sua frente. Estava a ler o Aftonbladet. Torkel também já o folheara; tinham dado quatro páginas a Lena Eriksson.
Bem escrito.
Expondo a sua vulnerabilidade.
Segundo o artigo, Lena continuava a acreditar que fora Leonard Lundin que assassinara o seu filho. Torkel pusera-se a pensar como teria ela aceitado a notícia de que o tinham libertado. Tentara telefonar-lhe diversas vezes, mas nunca atendera. Talvez ainda nem soubesse.
Sebastian não tirou os olhos do jornal, embora devesse ter ouvido Torkel aproximar-se. Só quando este puxou uma cadeira e se sentou à sua frente é que ele levantou os olhos antes de retomar a leitura. Torkel entrelaçou as mãos sobre a mesa e inclinou-se na direcção de Sebastian.
– Como correu isso hoje?
Sebastian virou uma página.
– Como correu o quê?
– Tudo. O trabalho. Tu andaste por fora com a Vanja durante algum tempo.
– Pois foi.
Torkel suspirou. Era óbvio que não obteria coisa alguma a troco de nada. Provavelmente não iria obter coisa nenhuma.
– Então, como correu?
– Muito bem.
Torkel viu Sebastian virar outra página e chegar ao suplemento desportivo. Desporto. Torkel sabia que Sebastian não tinha o mínimo interesse por qualquer tipo de desporto, quer envolvesse uma participação activa, ser espectador ou ler acerca do assunto. E, contudo, ele parecia estar a examinar as páginas com grande interesse. Um sinal tão nítido como qualquer outro. Torkel recostou-se na cadeira e observou Sebastian, em silêncio, durante alguns segundos. Depois, dirigiu-se para a máquina de café para preparar um cappuccino.
– Apetece-te ir jantar a um sítio qualquer?
Sebastian ficou hirto. Ora aí estava. Tal como era esperado. Não um «Temos de nos encontrar numa destas noites» nem um «Vamos tomar uma cerveja um dia destes». Jantar.
A mesma merda. Um nome diferente.
– Não, obrigado.
– Porque não?
– Tenho outros planos.
Uma mentira. Tal como o súbito interesse pelo suplemento desportivo. Torkel sabia-o, mas decidiu não forçar as coisas. Só obteria mais mentiras como resposta. Retirou da máquina a sua chávena, mas em vez de sair da sala, como Sebastian esperara, regressou à mesa e tornou a sentar-se. Sebastian lançou-lhe um breve olhar interrogativo e, a seguir, dirigiu novamente toda a sua atenção para o jornal.
– Fala-me da tua mulher.
Ele não estava à espera daquilo. Sebastian olhou para Torkel com genuína surpresa enquanto o seu antigo colega levava a caneca aos lábios, completamente descontraído, como se lhe tivesse apenas perguntado as horas.
– Porquê?
– Porque não?
Torkel pousou a caneca e limpou os cantos da boca com o polegar antes de enfrentar o olhar de Sebastian do outro lado da mesa e de o fixar. Sebastian analisou rapidamente as suas opções.
Levantar-se e sair.
Continuar a fingir que lia.
Dizer a Torkel que fosse para o inferno.
Ou...
Falar-lhe de Lily.
O seu instinto era o de optar por uma das primeiras três alternativas, mas que mal poderia fazer se Torkel soubesse um pouco mais? Decerto que ele lhe estaria a perguntar pela mulher por genuína preocupação, mais do que por curiosidade. Outra mão estendida. Uma tentativa de reavivar uma amizade que, se não estava morta, estava decerto profundamente adormecida. Era de admirar a persistência dele. Seria tempo de Sebastian lhe dar algo em troca? Afinal, sempre podia determinar os limites, decidir até que ponto. Era melhor do que Torkel ir pesquisar na Internet e vir a descobrir mais do que Sebastian queria que ele soubesse.
Sebastian afastou o jornal.
– Chamava-se Lily. Era alemã; conhecemo-nos na Alemanha quando eu estive a trabalhar lá e casámo-nos em 1998. Infelizmente, não sou o tipo de pessoa que anda por aí com uma fotografia na carteira.
– O que fazia ela?
– Era socióloga. Na universidade de Colónia. Era lá que nós morávamos.
– Mais velha do que tu? Mais nova? Da mesma idade?
– Cinco anos mais nova.
Torkel aquiesceu. Três perguntas rápidas, três respostas aparentemente directas. Agora as coisas tornar-se-iam um pouco mais complicadas.
– Quando é que ela morreu?
Sebastian ficou tenso. Pronto, não fazia mal. O período de perguntas estava oficialmente encerrado. Aquele era o seu limite, e Torkel já o transpusera.
– Há vários anos. Não quero falar disso.
– Porque não?
– Porque é privado e tu não és o meu terapeuta.
Torkel aquiesceu. Era verdade, mas tinha havido um tempo em que eles sabiam a maior parte das coisas a respeito um do outro. Dizer que Torkel tinha saudades desses tempos talvez fosse atribuir demasiada importância ao caso; durante vários anos não dedicara a Sebastian mais do que um pensamento fugaz. No entanto, agora que ele regressara, agora que Torkel o vira a trabalhar, percebera que o seu trabalho e, porventura, a sua vida tinham sido mais aborrecidos durante os anos em que Sebastian não estivera por perto. Existiam outros factores além da ausência de Sebastian, mas Torkel não conseguia negar a sensação de que tivera saudades do seu antigo colega. Do seu velho amigo. Mais do que imaginara. Torkel não tinha quaisquer expectativas de que o sentimento fosse mútuo, mas pelo menos podia experimentar.
– Nós éramos amigos. Quantas vezes me ouviste falar dos meus problemas, da Monica, dos miúdos e daquela trapalhada toda! – Torkel olhou directamente para o colega que estava do outro lado da mesa. – Terei muito gosto em ouvir.
– O quê?
– O que tu quiseres. Se houver alguma coisa que me queiras dizer.
– Não há.
Torkel aquiesceu. Não esperava que fosse fácil. Afinal, estava a falar com Sebastian Bergman.
– Foi por isso que tu me convidaste para jantar? Para poderes ouvir a minha confissão?
Torkel pegou na sua chávena de café, para ganhar algum tempo antes de responder.
– Tenho apenas a impressão de que não te sentes muito bem. – Sebastian não respondeu. Sem dúvida que viria aí mais. – Perguntei à Vanja como correram as coisas hoje. Para além do facto de ela pensar que tu és um sacana muito estranho, disse-me que lhe tinha parecido que... Não sei... Ela ficou com a sensação de que talvez tu andasses a carregar um fardo qualquer.
– A Vanja devia concentrar-se no trabalho. – Sebastian levantou-se, deixou ficar o jornal, mas pegou no copo de papel e amachuchou-o. – E tu não devias dar atenção a todas as tretas que ouves.
Saiu da sala, deitando o copo para o caixote do lixo que estava ao pé da porta. Torkel ficou sozinho. Respirou fundo e soltou o ar muito lentamente. O que esperara ele? Já devia saber como era. Sebastian Bergman não se deixava analisar. E ele ficara sem companhia para o jantar dessa noite. Billy e Vanja estavam a trabalhar, e não valia a pena pensar em Ursula. Porém, não lhe apetecia sentar-se para mais um jantar a sós. Sacou do telemóvel.
Sebastian passeou-se pelo escritório vazio. Estava furioso. Com Torkel, com Vanja, mas sobretudo consigo próprio. Anteriormente, Sebastian nunca dera a nenhum colega a sensação de que «andava a carregar um fardo qualquer». Nunca ninguém conseguira sequer arriscar uma conjectura sobre o que ele estaria a pensar. As únicas coisas que sabiam acerca de Sebastian eram as que ele permitia que soubessem. Fora assim que atingira a posição que ocupara.
No topo.
Admirado.
Temido.
Mas dentro do carro tinha-se denunciado. Perdera o controlo. E no apartamento de Lena Eriksson também, agora que pensava nisso. Inaceitável. A culpa era da sua mãe. Dela e daquelas cartas. Tinha de tomar alguma decisão sobre o que deveria fazer a respeito disso. Neste momento estava a afectá-lo mais do que ele podia permitir.
Havia luz na sala de conferências. Através do vidro, Sebastian viu Billy lá sentado, com o seu computador portátil aberto. Abrandou o passo. Parou. Ao longo do dia, sempre que pensara em Anna Eriksson chegara à conclusão de que devia esquecer o assunto. Havia pouco a ganhar, muito a perder. Mas poderia fazê-lo? Poderia apenas esquecer o que sabia e prosseguir como se nada tivesse acontecido? Provavelmente, não. Além disso, não faria mal nenhum obter o tal endereço, se alguém conseguisse descobri-lo. Mais tarde, poderia decidir o que fazer. Usá-lo ou deitá-lo fora. Ir até lá ou manter-se longe. Até poderia ir verificar que aspecto tinha o sítio. Ver que tipo de pessoas lá moravam. Ter uma ideia de como poderia ser recebido, caso se apresentasse. Tomou uma decisão. Era uma estupidez não manter todas as suas opções em aberto.
Empurrou a porta e abriu-a. Billy levantou os olhos do computador.
– Olá.
Sebastian cumprimentou-o com um aceno de cabeça, puxou uma cadeira e sentou-se na borda do assento, com as pernas estendidas. Puxou para si a fruteira que estava em cima da mesa e tirou uma pêra. Billy voltara-se de novo para o computador.
– O que estás a fazer?
– Estou a verificar o Facebook e mais alguns sites de redes sociais.
– O Torkel deixa-te fazer isso durante as horas de expediente?
Billy olhou-o por cima do ecrã, sorriu e abanou a cabeça.
– Nem pensar. Estou a verificar coisas sobre o Roger.
– E encontraste alguma coisa?
Billy encolheu os ombros. Dependia da maneira como se avaliasse a situação. Tinha encontrado Roger, mas nada de interesse.
– Ele não era particularmente activo. Sei que não tinha computador e que há mais de três semanas não publicava nada no Facebook. Na verdade, não é assim tão estranho, dado que só tinha vinte e seis amigos registados.
– Isso é pouco? – Sebastian sabia o que era o Facebook, evidentemente, não tinha passado os últimos anos a morar numa gruta, mas nunca sentira necessidade de averiguar como funcionava, nem de se tornar membro, ou lá como se dizia. Não tinha o mínimo desejo de se manter em contacto com os antigos colegas de escola ou com os anteriores colegas de trabalho. A mera ideia de que eles o pudessem «adicionar» como amigo e aterrorizá-lo com uma amizade artificialmente imposta e umas estúpidas trivialidades fazia-o sentir-se deveras exausto. Na verdade, ele fazia um autêntico esforço para não se associar com ninguém, fosse na vida real ou no ciberespaço.
– Vinte e seis amigos não é nada – disse Billy. – Quase se obtém mais do que isso só por nos registarmos. A mesma coisa na MSN. Ele não ia lá há mais de quatro meses, e o único contacto era com a Lisa, o Erik Heverin e o Johan Strand.
– Portanto, quase não tinha amigos virtuais.
– Parece que assim é. Mas também não tinha inimigos; não descobri nada de mau acerca dele na Internet.
Sebastian decidiu que já passara tempo suficiente a fingir-se interessado, para poder abordar o assunto que realmente o levara ali. Porque não preparar o caminho com uma pequena bajulação?
– Tu és muito bom com computadores, pelo que ouvi dizer.
Billy não conseguiu suprimir um sorriso que indicava que isso era verdade.
– Superior à média. É porreiro, eu gosto – disse ele, de forma um pouco mais modesta.
– Achas que serias capaz de me ajudar com uma coisa?
Sebastian tirou o envelope do bolso interior e lançou-o na direcção de Billy.
– Preciso de encontrar uma pessoa chamada Anna Eriksson. Ela vivia nessa morada em 1979.
Billy pegou no envelope e examinou-o.
– Está relacionada com a investigação?
– Poderá estar, sim.
– De que maneira?
Raios, porque é que naquele sítio eles se preocupavam tanto em cumprir as regras? Sebastian estava demasiado cansado para inventar uma boa mentira, por isso decidiu recorrer a algo de vago, esperando que bastasse.
– É uma coisa que eu ando a seguir por minha conta, um pouco rebuscada. Não disse nada aos outros, mas com alguma sorte pode ser que funcione.
Billy fez um gesto de concordância e Sebastian descontraiu-se um pouco. Estava prestes a levantar-se quando Billy o interrompeu.
– Mas de que maneira é que isto está relacionado com o Roger Eriksson? – Pronto, não tinha funcionado. Porque é que as pessoas não se limitavam a fazer o que lhes diziam? Se tudo aquilo corresse mal, Billy poderia sempre culpar Sebastian, o qual por seu turno alegaria que Billy o tinha entendido mal. Torkel ficaria um pouco transtornado. Começaria a falar-se numa revisão dos procedimentos. Tudo continuaria como era normal. Sebastian ofereceu a Billy a possibilidade de morder o anzol sem lhe juntar mais nenhum isco.
– É uma longa história, mas para ti também seria bom se me pudesses ajudar. Realmente penso que isto nos poderia levar a algum lado.
Billy revirou o envelope, examinou-o. Prevendo o caso de Billy não morder o anzol, Sebastian começou a inventar uma história na sua cabeça. Achou que poderia dizer que havia uma possibilidade de Anna Eriksson poder ser a mãe biológica de Roger. Não, isso não estava arrolado em nenhum registo de adopção, era informação confidencial. Não, ele não podia dizer quem lhe dera a informação. Talvez funcionasse. Se fosse biologicamente possível. Sebastian começou a fazer cálculos. Que idade teria Anna Eriksson quando dera à luz Roger, nesse caso? Cerca de quarenta anos? Funcionava.
– Está bem.
Sebastian voltou à realidade, sem ter a certeza do que ouvira, sem perceber se teria perdido alguma coisa.
– Está bem?
– Sim, mas vai ter de esperar algum tempo. Amanhã tenho de ver imensos ficheiros das câmaras de vigilância.
– Claro, não há pressa. Obrigado. – Sebastian encaminhou-se para a porta. – Só mais uma coisa.
Billy levantou os olhos do seu computador.
– Agradecia muito que pudéssemos manter isto só entre nós. Como te disse, é uma aposta arriscada, e não há nada de que as pessoas gostem mais do que regozijarem-se quando alguém se engana.
– Com certeza. Não há problema.
Sebastian sorriu-lhe com gratidão e saiu da sala.
Limone Ristorante Italiano. Ela tinha feito a reserva, mas Torkel chegou primeiro e foi conduzido a uma mesa ao canto, junto de duas janelas, com umas esferas de metal do tamanho de bolas de bólingue penduradas no tecto. Uma mesa para quatro pessoas. Dois sofás em vez de cadeiras. Rijos, de costas direitas. Estofados com um tecido roxo e escuro. Torkel beberricou uma cerveja directamente da garrafa. Teria sido má ideia? Convidar Hanser para jantar? Embora ele não a tivesse propriamente convidado. Só queria ter com ela uma discussão mais aprofundada sobre o caso; os breves encontros que tinham durante o dia não faziam mais do que arranhar a superfície, e tanto se podia fazer isso durante uma refeição como no gabinete dela. Era sabido que Hanser se retirara voluntariamente e os deixara gerir a investigação como quisessem, mas era importante lembrar que a derradeira responsável era ela, e Torkel tinha a sensação de que ultimamente a tratara com algum mau humor.
Hanser chegou, lamentou o seu atraso, sentou-se e pediu um copo de vinho branco. O chefe da polícia local procurara-a para saber o estado das coisas. Estava preocupado com a notícia de que haviam libertado Leonard Lundin e queria saber se estaria iminente mais alguma detenção. Claro, ela tivera de o deixar desapontado. Também ele estava sob pressão: o interesse da imprensa, particularmente dos tablóides, não diminuíra. Eram pelo menos quatro páginas, todos os dias. A entrevista com Lena Eriksson foi reformatada e apresentada como se fosse algo de novo. Concentravam-se na solidão de Roger, especulavam que o assassino poderia não ser um conhecido de Roger. Nesse caso poderia voltar a acontecer. Um «perito» explicava que, quando uma pessoa matava pela primeira vez – o que poderia ser o caso nesta ocasião –, transpunha uma fronteira a partir da qual não havia regresso. Era provável que essa pessoa matasse de novo. Provavelmente, dentro de pouco tempo. O belo jornalismo à moda antiga, para assustar as pessoas, da mesma categoria que a mais recente histeria acerca de uma pandemia, ou títulos como A SUA DOR DE CABEÇA PODERÁ SER UM TUMOR CEREBRAL? O Expressen conseguira farejar a trapalhada daquele primeiro fim-de-semana em que o desaparecimento do rapaz não fora averiguado, e a eficiência da polícia era posta em causa. Em ligação com esse artigo já tinham produzido painéis de informação sobre outros casos de homicídio não resolvidos, com o assassinato de Olof Palme em primeiro lugar[6]. Hanser explicara-lhe que se ia encontrar com Torkel e que esperava ter mais informações para o superintendente-chefe no dia seguinte. Ele contentara-se com isso, mas, antes de se ir embora, esclarecera que a) esperava que não tivesse sido um erro chamar a Riksmord e b) se tivesse sido um erro, então seria apenas ela, e mais ninguém, a arcar com a responsabilidade.
Quando o empregado de mesa levou o copo de vinho branco e perguntou se eles já tinham escolhido o prato, passaram alguns momentos a estudar a ementa. Torkel já fizera o seu pedido. Salmone alla calabrese: um filete de salmão frito com tomates-cereja, alho-francês, alcaparras, azeitonas e um pastel de batata. Não lhe apetecia entrada. Hanser decidiu-se rapidamente por agnello alla griglia: borrego grelhado com batatas à parmesã e molho de vinho tinto. Mais caro do que o que ele escolhera. Não que isso importasse. Quem solicitara a companhia dela fora ele. Encarava aquilo como um jantar de trabalho, e, nesse caso, evidentemente, seria ele a pagar, ou antes, a Riksmord.
Enquanto esperavam pela comida, recapitularam o caso. Sim, Torkel tinha lido os jornais. Vanja seguira a mesma linha de raciocínio, mas apenas por pouco tempo. Assassino desconhecido. Mas a descoberta de que Roger fora alvejado a tiro rejeitava essa teoria, segundo Sebastian. Uma pessoa que decidisse matar, independentemente de quem pudesse ser a vítima, não usaria uma arma que, em seguida, a obrigasse a ter de extrair a bala para evitar ser identificada. Infelizmente isso não era uma coisa que Hanser pudesse divulgar aos meios de comunicação. Não queriam que o público – e, por conseguinte, o assassino – descobrisse que eles sabiam que Roger fora alvejado a tiro. Exceptuando isso, Torkel não tinha muito para contar. Não haviam conseguido progressos significativos a não ser pelo ângulo de Axel Johansson, e muita coisa dependeria do que acontecesse no dia seguinte e dos relatórios forenses que fossem enviados pelo SKL. O telemóvel de Torkel vibrou no seu bolso interior. Ele tirou-o e leu no ecrã: Vilma.
– Desculpa, tenho de atender esta chamada.
Hanser fez um gesto de concordância e sorveu o seu vinho.
– Olá, querida. – Antes de lhe ouvir a voz, já o seu rosto se desfizera num sorriso. A filha mais nova causava-lhe esse efeito.
– Olá, papá, o que estás a fazer?
– Estou a jantar com uma colega. E tu?
– Vou a uma festa na escola. Estás aqui na cidade?
– Não, ainda estou em Västerås. Querias alguma coisa?
– Estava a pensar se poderias vir buscar-me hoje à noite. Depois da festa. Como não sabíamos se já tinhas voltado, a mamã disse-me para eu te telefonar a perguntar.
– Se eu estivesse em casa, gostaria muito de te ir buscar.
– Não faz mal. A mamã diz que vai ela. Só pensei que se estivesses em casa...
– Que tipo de festa é?
– De fantasia.
– E tu vais vestida de quê?
– Delinquente juvenil.
Torkel tinha uma vaga ideia do que isso significava. Não ficou inteiramente satisfeito com a escolha da sua filha de doze anos, mas por outro lado não estava ali para a dissuadir de tal coisa, nem para inventar alternativas criativas. Além disso, confiava que Yvonne haveria de garantir que tudo ficava sob controlo. Contrariamente à sua separação de Monica, o seu divórcio de Yvonne fora bom. Tão bom quanto um divórcio pode ser. A relação deles fora terrível. Ambos julgavam o mesmo. Ele tinha-lhe sido infiel. E ela também, tinha a certeza. A intenção de ambos fora acabar com aquilo, mas tendo os melhores interesses de Vilma e de Elin no centro das preocupações. O facto era que as coisas corriam melhor entre eles agora do que quando eram casados.
– Está bem. Dá cumprimentos meus à mãe e diverte-te.
– Está bem. Ela também te manda cumprimentos. Vemo-nos quando voltares.
– Combinado. Tenho saudades tuas.
– Eu também. Adeus, pai.
Torkel terminou a chamada e virou-se para Hanser.
– Era a minha filha.
– Foi o que eu percebi.
Torkel guardou o telemóvel no bolso interior.
– Tem um filho, não tem? Que idade tem ele agora?
Hesitação. Embora Hanser tivesse ouvido aquela pergunta muitas vezes ao longo dos últimos seis anos, quando o seu filho se tornava tema de conversa hesitava sempre. Ao princípio respondera com honestidade, dissera a verdade, mas isso deixava as pessoas extremamente desconfortáveis e, após um silêncio doloroso ou uma tentativa desesperada para fazer prosseguir a conversa, encontravam um motivo qualquer para se afastarem dela. Por isso, agora, quando lhe perguntavam se tinha filhos, costumava dizer que não. Era o mais fácil, e era verdade.
Ela não tinha filhos.
Já não.
Mas Torkel sabia que ela tinha sido mãe.
– Morreu. O Niklas morreu há seis anos. Quando tinha catorze.
– Oh, lamento imenso. Não sabia. Tenho muita pena.
– Não, como poderias tu saber?
Hanser sabia o que Torkel estava a pensar. Era o que queria saber toda a gente que descobria que Niklas tinha morrido. Na maioria dos casos os jovens de catorze anos não morrem de repente. Devia ter acontecido alguma coisa. O quê? O que acontecera, era isso que todos queriam saber. Torkel não seria excepção, Hanser tinha a certeza. Mas a diferença foi que ele lhe perguntou.
– Como morreu ele?
– Estava a atalhar caminho. A atravessar por cima de um comboio. Aproximou-se demasiado do cabo de alta voltagem.
– Nem consigo imaginar como é que tu e o teu marido se devem ter sentido. Como é que lidaram com isso?
– Não lidámos. Dizem que oitenta por cento das pessoas que perdem um filho acabam por se divorciar. Eu gostava de poder dizer que pertenço aos outros vinte por cento, mas infelizmente... – Hanser sorveu mais um pouco do seu vinho. Era fácil falar com Torkel a respeito do assunto. Mais fácil do que julgara.
– Fiquei tão zangada com ele. Com o Niklas. Ele tinha catorze anos. Não sei quantas vezes já tínhamos lido acerca de miúdos que morriam queimados no cimo dos comboios. Sempre que víamos a notícia dizíamos que eles deviam ter mais cuidado. Eram adolescentes. Alguns já quase adultos. E o Niklas sempre concordou comigo. Ele sabia que era perigoso. Mortífero. E apesar disso... Eu fiquei muito zangada com ele.
– É compreensível.
– Sentime a pior mãe do mundo. Sob todos os aspectos.
– Isso também é compreensível.
O empregado de mesa regressou com um prato em cada mão, o que poderia ter-lhes servido como desculpa para pararem. Para se concentrarem na comida em silêncio. Mas continuaram a falar enquanto comiam, e, ao fim de alguns minutos, Torkel compreendeu que quando o jantar chegasse ao fim saberiam consideravelmente mais acerca um do outro do que antes. Sorriu para si mesmo. Quando uma coisa dessas acontecia, era bom.
CAPÍTULO TREZE
NO INTERIOR do seu Toyota verde, à porta do domicílio de Axel Johansson, Haraldsson tremia, embora trouxesse ceroulas e um camisolão de feltro por baixo do casaco acolchoado. Segurava uma caneca de café. O primeiro calor autêntico da Primavera já se fazia notar durante o dia, mas as tardes e as noites continuavam frias.
Haraldsson achava que tinha desempenhado um papel importante no facto de o dia haver resultado na emissão de um alerta sobre Johansson. Um papel muito importante. O seu contributo tinha sido absolutamente crucial. Fora o seu trabalho na detecção do remetente da mensagem de correio electrónico que levara a Riksmord ao Liceu Palmlövska, e daí até ao contínuo despedido. Torkel Höglund acenara-lhe e oferecera-lhe um pequeno sorriso quando se cruzara com ele durante a tarde, mas fora tudo. À parte isso, ninguém lhe tinha atribuído o crédito que ele merecia por ter fornecido a informação que conduzira a uma nova descoberta na investigação. Não ficara surpreendido. Desapontado, mas não surpreendido. Haraldsson sabia que nunca receberia qualquer apreço pelo seu trabalho. Pelo menos, da parte de Torkel e dos colegas. Qual seria a reacção se um dos polícias locais resolvesse o caso debaixo dos narizes dos agentes da Riksmord?
Antes de ter ido para casa a coxear, Haraldsson reunira-se com Hanser para averiguar se a busca por Johansson incluíra vigilância vinte e quatro horas por dia ao local de residência do suspeito. Não incluíra. A primeira fase envolvera apenas uma mensagem a todo o pessoal, pedindo-lhes para estarem atentos durante as suas patrulhas e saídas habituais. Tinham contactado amigos, vizinhos e parentes e dito que gostariam de falar com Axel, mas haviam tido o cuidado de realçar que, de momento, ele não era suspeito de nada. Se a sua casa deveria ser mantida sob vigilância era um assunto cuja decisão cabia aos agentes da Riksmord.
Haraldsson tomara de imediato uma decisão. Era óbvio que o homem fugira dali deliberadamente. As pessoas inocentes não procediam desse modo, e o que Haraldsson fazia nos seus tempos livres e onde passava a noite era algo que só a si dizia respeito.
Por isso, estava agora ali de vigília.
Dentro do seu Toyota.
A tremer de frio.
Pensou pôr o carro em andamento e andar por ali às voltas durante um bocado só para poder ligar o aquecimento, mas corria o risco de não ver Axel Johansson se ele voltasse a casa. Ficar ali sentado e ligar o motor durante alguns minutos estava fora de questão, em parte porque o suspeito poderia reagir ao facto de estar um carro parado com o motor a trabalhar à porta do seu prédio àquelas horas da noite, e em parte porque dentro da cidade só era permitido deixar-se o motor a trabalhar durante um minuto. Isso constituiria uma infracção menor, evidentemente, mas ainda assim não o faria. As regras e as leis existiam para ser cumpridas. Além disso, era completamente injustificável do ponto de vista ambiental. Para se aquecer, Haraldsson deitou mais um pouco de café na caneca. Pôs as duas mãos à volta dela. Devia ter calçado luvas.
Soprou ar quente para as mãos e olhou para o penso. Jenny aparecera de surpresa por trás dele, enquanto estava a despejar o café da cafeteira para o termo, e fizera-o dar um pulo quando lhe pusera as mãos à volta da barriga e as deslizara rapidamente mais para baixo. Tinha ido à casa de banho pôr unguento de lidocaína e um penso na pequena queimadura com que ficara nas costas da mão. Jenny fizera-lhe companhia e, quando ele estava a atirar a embalagem vazia para o caixote do lixo de aço inoxidável, ela aparecera de novo e perguntara-lhe se ele estava com muita pressa.
Tinham feito sexo no chuveiro. A seguir, ele despira a roupa molhada e pusera mais unguento. Apesar da rapidinha, Jenny mostrara-se desapontada quando ele saíra. Perguntara-lhe quando voltaria. Talvez pudesse chegar a casa cerca de meia hora antes de ela sair para o trabalho de manhã? Esperançosa. Haraldsson duvidava. O plano era ir directamente para a esquadra. Estaria com ela na noite seguinte. Beijinho, beijinho, até logo.
Haraldsson revia os acontecimentos enquanto sorvia o seu café, que arrefecia depressa. Jenny ficara aborrecida quando ele se fora embora. Ele sabia. Agora estava ali sentado e sentia-se irritado por ela ter ficado irritada. O que lhe apetecia mesmo era... Nem pensar. Ia resolver o homicídio de Roger Eriksson, mas era como se ela não tivesse noção de como era importante para ele. O seu desejo de engravidar ofuscava tudo o mais que havia nas vidas deles. Até certo ponto, Haraldsson conseguia compreendê-la. Também queria filhos. Ansiava ser pai e afligia-o que o processo fosse tão difícil. Mas, para Jenny, era uma obsessão. Hoje em dia a relação deles consistia somente em sexo. Ele tentava convencê-la de que deviam sair, ir ao cinema ou a um restaurante, mas ela limitava-se a dizer que podiam ver um DVD e comer em casa e que a seguir também poderiam «fazer aquilo». Nas poucas ocasiões em que visitavam amigos, voltavam sempre cedo, e já nenhum deles bebia. Receber alguém em casa estava fora de questão. Os convidados poderiam demorar-se, impedindo Haraldsson e Jenny de irem tratar do assunto. Ele tentava falar-lhe do seu emprego, dos problemas, primeiro com Hanser e agora com a Riksmord, mas tinha cada vez mais frequentemente a sensação de que ela não o estava a ouvir. Dizia-lhe que sim, fazia os ruídos certos, respondia-lhe – cada vez mais repetindo as suas próprias palavras – e a seguir queria fazer sexo outra vez. A situação dele era o oposto da dos poucos colegas masculinos que de vez em quando falavam sobre a sua relação ou o seu casamento; no caso deles, o problema era sexo a menos.
Pouco frequente.
Demasiado aborrecido.
Haraldsson não se atrevera a falar da sua situação em casa. Mas pensava nisso cada vez mais. E se aquilo continuasse? Quando Jenny ficasse grávida, ele transformar-se-ia numa daquelas pessoas que liam todos os artigos acerca de todos os tipos de comida e iam à procura de estações de serviço abertas vinte e quatro horas a quilómetros de distância de casa, só para comprarem picles e gelado de alcaçuz? Afastou os seus pensamentos. Tinha um trabalho a fazer. Era por isso que estava ali. Certamente, não andava a evitar a sua mulher ou andava?
Haraldsson decidiu caminhar um pouco para se aquecer, certificando-se de que continuava a ver a porta de Axel Johansson.
Vanja estava debruçada sobre a sua secretária e olhava pela janela. A maior parte da vista estava encoberta pelo edifício em frente – uma moderna monstruosidade de vidro –, mas, pelo menos, ela conseguia ver o céu nocturno e uma faixa de árvores que conduziam ao lago Malären. Diante dela estavam vários blocos de notas, algumas folhas de papel soltas e uma quantidade de agendas de bolso pretas. Tinham vindo da secretária de Roger e eram alguns dos objectos que Ursula trouxera do quarto dele.
Uma hora antes, Vanja e Billy tinham comido uma salada no restaurante grego que lhes fora recomendado pela rapariga da recepção. A comida superara as suas expectativas, e ambos sabiam que haveriam de lá voltar. Era sempre uma estupidez correr riscos numa pequena cidade sueca. Se encontrassem um bom sítio, rapidamente se tornavam clientes habituais. No caminho de regresso, ela tinha telefonado para o hotel, a fim de tentar entrar em contacto com o pai. Pela voz, Valdemar parecia contente, mas fatigado; aquele dia fora uma espécie de montanha-russa emocional para ele, e o tratamento deixava-o sonolento. Mas para Vanja tinha sido uma conversa maravilhosa. Pela primeira vez desde há imenso tempo, não desligara o telefone, pensando que poderia perdê-lo. Estava a ferver de alegria e achou que, nesse caso, poderia dar bom uso à sua energia. Voltara para a esquadra. A verdade era que ela trabalhava sempre o máximo que podia quando a equipa andava envolvida nalguma investigação longe de casa, mas desta vez a ideia de ir fazer mais um turno à noite desde há muito tempo que não lhe sabia tão bem. Ursula terminara às seis, o que tanto Vanja como Billy haviam achado um pouco estranho. Habitualmente, Ursula trabalhava até tarde, tal como os outros, e enquanto jantavam tinham especulado que talvez o verdadeiro motivo fosse Torkel. Por mais discretos que Ursula e Torkel pudessem ser, há muito que Billy e Vanja suspeitavam que eram mais do que meros colegas.
Vanja começou pelas folhas de papel soltas. Eram sobretudo antigos exames e exercícios escolares, alguns apontamentos das aulas. Começou a catalogá-los: exames num monte, apontamentos noutro, coisas variadas num terceiro. Acabou por ficar com três pilhas de papéis, que depois tornou a classificar, separando-os por data e assunto. Por fim, tinha à sua frente doze pilhas de papéis e começou a passá-los em revista concentrando-se um pouco mais no seu conteúdo. Havia aprendido com Ursula aquele método de catalogar o material. A grande vantagem era que rapidamente se obtinha uma visão geral e se olhava várias vezes para o mesmo documento com um crescente grau de concentração. Isso tornava mais fácil detectar padrões ou acontecimentos que não parecessem fazer sentido, o que melhorava a exactidão. Ursula era boa naquele tipo de coisas. Construir sistemas. Vanja lembrou-se subitamente dos comentários de Sebastian acerca da hierarquia no interior da equipa. Tinha razão. Entre ela e Ursula existia um acordo tácito para não se intrometerem nas respectivas áreas de especialidade. Não se tratava apenas de respeito, mas também de uma consciência mútua de que noutro caso facilmente acabariam por competir, pondo assim em causa as respectivas posições. Porque elas, de facto, competiam pelo seu lugar na cadeia de comando.
E pelos resultados.
E para serem as melhores.
Vanja analisou o resto do material. Nos papéis soltos não ficara a saber nada, a não ser que Roger era pior em Matemática do que em Sueco e que realmente precisava de melhorar o seu Inglês. Pegou nas agendas de bolso pretas. Pareciam ter sido pouco usadas e estavam datadas de 2007 em diante. Agarrou na mais recente e começou pelo princípio, em Janeiro. Roger não tinha escrito muita coisa; era como se lhe tivessem oferecido uma agenda no Natal e ele tivesse gradualmente deixado de a usar. Tinham sido registados alguns aniversários, alguns trabalhos de casa, o ocasional teste, e, quanto mais ela se afastava de Janeiro, menos entradas havia.
A abreviatura PW aparecia pela primeira vez no início de Fevereiro, novamente no final de Fevereiro e na primeira semana de Março, depois em quartas-feiras alternadas, às dez da manhã. Vanja concentrou-se na que parecia ser a única entrada recorrente e folheou as páginas até chegar àquela sexta-feira fatídica. Sempre em quartas-feiras alternadas, PW. Sempre às dez horas. Quem ou o que seria PW? Uma vez que ocorria durante o horário escolar, deveria ter algo a ver com a escola. Continuou a folhear as páginas e percebeu que Roger faltara a um encontro com PW desde que morrera. Verificou rapidamente a agenda do ano anterior para ver se PW também lá estava. De facto, estava. A primeira ocorrência fora no início de Outubro e, depois, em quintas-feiras alternadas, às três da tarde, até ao fim do período lectivo em Novembro.
O círculo de amigos de Roger era muito limitado e até agora propiciara poucas informações à investigação. Mas havia, pelo menos, uma pessoa com quem ele se encontrava com regularidade – caso fosse uma pessoa e não uma actividade. Olhou para o relógio: ainda faltava um quarto para as nove. Não era tarde para fazer alguns telefonemas. Primeiro tentou a mãe de Roger. Não atendeu. Não ficou surpreendida; o telefone tocara diversas vezes enquanto ela e Sebastian lá estavam e Lena não fizera qualquer tentativa para ir atender. Decidiu telefonar a Beatrice Strand. Sendo professora dele, deveria saber o que fazia Roger às dez horas da manhã em quartas-feiras alternadas.
– Tinha uma hora livre. – Beatrice parecia um pouco cansada, mas disse que faria o que pudesse para ajudar.
– Sabe o que ele costumava fazer durante esse tempo?
– Não sei, lamento; a aula seguinte começava às onze e cinquenta e ele chegava sempre a horas. – Vanja assentiu e pegou na agenda do ano anterior.
– E no Outono passado? Às três da tarde de quinta-feira?
Fez-se silêncio.
– Creio que a essa hora as aulas já tinham acabado. Sim, exactamente, às quintas-feiras terminávamos às três menos um quarto.
– Tem alguma ideia do que poderá significar a abreviatura PW?
– PW? Não, isso ultrapassa-me completamente. – Vanja aquiesceu; isto estava a ficar cada vez melhor. Parecia que Roger tinha ocultado a Beatrice os seus encontros com PW. Sentia que era um facto importante. Afinal, não era apenas professora dele; conheciam-se fora da escola. – Ele ia encontrar-se com esse tal PW às quartas-feiras? – perguntou Beatrice ao fim de algum tempo; era óbvio que ficara a meditar sobre a abreviatura.
– Exactamente.
– Podia ser o Peter Westin.
– Quem é?
– É um psicólogo que faz aconselhamento aos alunos. Eu sei que o Roger foi ter com ele algumas vezes após ter entrado para a escola. Na verdade, fui eu que falei do Peter ao Roger. Mas não sabia que continuava a ir ter com ele.
Vanja agradeceu a Beatrice a sua ajuda e tomou nota dos contactos de Peter Westin. Telefonou-lhe, mas o atendedor automático informou-a de que o consultório abriria às nove da manhã. Uma rápida olhadela ao mapa mostrou-lhe que o consultório ficava apenas a dez minutos da escola. Roger poderia facilmente ir lá e voltar durante o seu período de horário livre, sem que ninguém soubesse onde ele ia, e se havia alguma coisa de que se falava com um psicólogo eram os segredos. O tipo de coisas que não se queria discutir com mais ninguém.
O telemóvel dela apitou. Uma mensagem de texto.
«Encontrei a ex-namorada do Axel J. Queres vir falar com ela? Billy.»
Resposta rápida.
SIM.
Desta vez, acrescentou um smiley.
A ex-namorada de Axel Johansson, Linda Beckman, estava a trabalhar quando Billy a contactara. Dissera por diversas vezes que ela e Axel já não estavam juntos e que não fazia ideia de onde ele se encontrava ou o que andaria a fazer; tinha sido necessária muita persuasão por parte de Billy para que ela acedesse a um encontro. Quando finalmente concordou, insistiu em que de maneira nenhuma iria à esquadra da polícia. Se quisessem falar com ela, teriam de ir à noite ao restaurante onde trabalhava. Faria uma curta pausa. Por isso Vanja e Sebastian estavam agora sentados à mesa de uma pizzaria em Stortorget. Nenhum deles pediu nada para comer, mas quiseram uma chávena de café.
Linda sentou-se diante deles. Era uma mulher loura de aspecto razoavelmente vulgar e que teria cerca de trinta anos. O cabelo caía-lhe até aos ombros, e a sua grande franja terminava pouco acima dos olhos azul-esverdeados. Usava uma camisola com riscas pretas e brancas e uma curta saia preta. A camisola não lhe enaltecia particularmente a figura. Trazia um coração dourado pendurado numa fina corrente ao pescoço.
– Tenho quinze minutos.
– Nesse caso, tentaremos resolver isto em quinze minutos – disse Billy, estendendo a mão para o açúcar. Punha sempre açúcar no café. E nem sequer em pequena quantidade.
– Como lhe disse ao telefone, gostaríamos de saber um pouco acerca do Axel Johansson.
– Não me disse porquê.
Vanja aproveitou a deixa. Seria uma estupidez revelar-lhe o que já sabiam acerca do pequeno negócio paralelo de Axel, pelo menos antes de terem alguma ideia sobre a atitude de Linda em relação ao seu ex-namorado. Assim, Vanja perguntou com alguma circunspecção: – Sabe porque foi despedido?
Linda sorriu para os dois agentes policiais. Já sabia do que se tratava.
– Sim. Foi a bebida.
– A bebida?
– Ele andava a vendê-la aos miúdos. Idiota! – Vanja olhou para Linda e fez um aceno de concordância. Não parecia ser membro do clube de fãs de Axel.
– Exactamente.
Linda abanou a cabeça com um ar cansado, como se pretendesse reforçar a sua visão negativa sobre as actividades de Axel.
– Eu disse-lhe que era uma estupidez. Mas ele deu-me ouvidos? Não. E a seguir foi despedido, tal como eu lhe dissera. Idiota.
– Ele alguma vez mencionou um Roger Eriksson? – aventou Vanja com optimismo.
– Roger Eriksson? – Linda reflectiu, mas o seu rosto não mostrou qualquer centelha de reconhecimento.
– Um rapaz de dezasseis anos – prosseguiu Billy, entregando-lhe uma fotografia de Roger.
Linda pegou no retrato e examinou-o. Reconheceu-o.
– O rapaz que morreu?
Vanja disse-lhe que sim. Linda olhou para ela.
– Sim, creio que foi lá uma vez.
– Sabe porquê? Ele foi comprar álcool ao Axel?
– Não, julgo que não. Estiveram a conversar. Pelo que me lembro, ele não levava nada consigo quando se foi embora.
– Quando foi isso?
– Talvez há uns dois meses. Eu saí de lá pouco depois.
– Voltou a ver o Roger? Por favor, pense com cuidado, isto é importante.
Linda ficou calada durante algum tempo, depois abanou a cabeça. Vanja mudou de táctica.
– Qual foi a reacção do Axel quando saiu de casa?
Linda tornou a abanar a cabeça; parecia ser a sua reacção normal sempre que pensava em Axel.
– Julgo que para ele era indiferente. Não pareceu ficar zangado nem transtornado nem nada. Não fez qualquer tentativa para me convencer a ficar. Simplesmente... seguiu a sua vida. Como se não se importasse que eu lá estivesse ou não. Ele era completamente inacreditável, foda-se.
Vinte minutos depois, quando Vanja e Billy agradeceram a Linda Beckman e regressaram à esquadra, não só o perfil de Axel Johansson tinha adquirido contornos, como todos os seus ínfimos pormenores eram claramente visíveis. Ao princípio, Axel era o perfeito cavalheiro. Atento, generoso, divertido. Ao fim de poucas semanas, ela mudara-se para casa dele. Inicialmente, tudo continuara a correr bem. Depois, as coisas tinham começado a transparecer. De início, nada de muito sério. A bem dizer, quase nem se dava por isso. Na sua bolsa havia um pouco menos de dinheiro do que ela julgava, esse tipo de coisas. A seguir desaparecera uma jóia de ouro que ela havia herdado da avó, e Linda começara a perceber que, para Axel, a relação deles era sobretudo uma maneira de reduzir custos. Confrontara-o, e ele tinha mostrado muitos remorsos. Tinha dívidas de jogo e receara que ela se fosse embora se ele lhe contasse, de modo que tinha feito aquilo para equilibrar as contas. Só para poder começar de novo com Linda. Sem fardos. Ela acreditara nele. Mas não tardou que lhe voltasse a desaparecer dinheiro. A última gota fora quando ela encontrara um contrato de arrendamento escondido e descobrira que, na verdade, andava a pagar a renda na totalidade e não metade, como julgava. Linda coloriu o resto do retrato. A vida sexual deles não tinha remédio. Ele quase nunca estava interessado, e nas poucas ocasiões em que isso acontecia era dominador ao ponto da violência, e queria sempre tomá-la por trás com a cabeça dela enfiada na almofada. Demasiada informação, pensou Vanja, mas fizera uns acenos de encorajamento a Linda. Axel estava sempre a sair de casa a horas estranhas, por vezes durante toda a noite; chegava a casa ao princípio ou ao fim da manhã. O resto do seu tempo, quando não estava a trabalhar na escola, gastava-o a inventar diferentes maneiras de ganhar dinheiro. Todo o mundo de Axel girava à volta de extorquir o sistema.
O seu lema era: «Só os idiotas fazem o que lhes dizem.» O único motivo por que se candidatara ao emprego no Liceu Palmlövska era o de os estudantes terem pais ricos e uma educação mais rigorosa, o que no mundo de Axel provocava menos inconvenientes. As famílias tendiam a resolver quaisquer problemas pelos seus próprios meios. Tal como o director acabara por fazer.
«Vende-se aos que puderem pagar o melhor preço e aos que tiverem mais a perder no caso de serem apanhados», dissera. Mas Linda nunca vira dinheiro nenhum. Isso era o que ela achava mais difícil de compreender. Apesar de todos os «negócios» que fazia, Axel estava sempre falido. Para onde ia o dinheiro era um grande mistério para Linda. Ele não parecia ter muitos amigos e andava sempre a amaldiçoar os que não lhe emprestavam dinheiro. Ou, se lhe emprestavam algum, amaldiçoava-os por quererem que o devolvesse.
Estava sempre insatisfeito.
Com tudo e com todos.
Para Vanja e Billy, a questão mais importante era a relação entre Roger e Axel. Roger tinha ido ao apartamento dele, sabiam-no agora. Haveria alguma ligação ao facto de Roger ter feito com que despedissem Axel algumas semanas depois? Em todo o caso, esse era um cenário possível. Quando Vanja e Billy se despediram, estavam muito satisfeitos com a última hora de trabalho. Axel Johansson estava a tornar-se ainda mais interessante. E na manhã seguinte iriam visitar um psicólogo que tinha as iniciais PW.
Torkel fez um aceno de cabeça à mulher que estava na recepção e dirigiu-se para o elevador. Depois de entrar, hesitou ao passar o seu cartão pelo leitor e, a seguir, premiu o 4. O seu quarto era o 302. Ursula estava no quarto piso. O som dos Rolling Stones saía dos altifalantes ocultos. Torkel lembrou-se de quando era jovem e os Rolling Stones produziam o rock mais duro que ele alguma vez ouvira. Agora eram música de elevador. As portas abriram-se e Torkel não se mexeu. Deveria esquecer aquilo? Nem sequer sabia se ela ainda estava zangada consigo. Supunha simplesmente que sim. Continuaria zangado com Ursula se ela lhe tivesse feito uma coisa daquelas. Mas provavelmente o melhor era ir verificar. Torkel avançou pelo corredor até ao quarto 401 e bateu à porta. Decorreram alguns segundos antes que Ursula a abrisse. A expressão neutra do seu rosto forneceu a Torkel uma boa indicação acerca do que ela achava da visita.
– Desculpa se estou a incomodar-te. – Torkel fez o possível para impedir que o nervosismo transparecesse na sua voz. Ali, diante dela, percebeu que realmente não queria que se desentendessem.
– Só queria verificar como estão as coisas entre nós.
– Como é que tu achas que estão?
Tal como ele receava. Ainda zangada. Compreensivelmente. Mas Torkel nunca achara difícil pedir desculpa quando fazia algo menos correcto.
– Desculpa, eu devia ter-te dito que tencionava trazer o Sebastian.
– Não, tu não devias tê-lo trazido. – Por um breve instante, Torkel sentiu-se irritado. Agora ela estava a ser irrazoável. Estava a pedir-lhe desculpa. Tinha admitido que lidara mal com a situação, mas o chefe era ele. Cabia-lhe a si tomar as decisões e trazer as pessoas que julgasse serem as melhores para a investigação, quer os outros ficassem contentes com isso quer não. Era uma questão de manter uma atitude profissional. Torkel decidiu rapidamente não lhe dizer nada, em parte por não querer transtornar Ursula ainda mais, mas também por não estar completamente convencido de que a presença de Sebastian fosse realmente o melhor para a investigação. Tinha a sensação de que não precisava apenas de justificar as suas acções a Ursula, também necessitava de as fundamentar para si próprio. Porque não dissera ele simplesmente a Sebastian «obrigado, mas não» naquela manhã, na sala de refeições do hotel? A sua expressão era quase implorante quando se dirigiu a Ursula.
– Ouve, eu preciso mesmo de falar contigo. Posso entrar?
– Não. – Ursula não fez qualquer tentativa para abrir a porta. Pelo contrário. Fechou-a um pouco mais, como se esperasse que ele a deitasse abaixo com um pontapé. Do interior do quarto chegou o som de três curtos apitos, depois três longos e, novamente, três curtos. SOS. O toque de chamada de Ursula.
– É o Mikael. Ele disse que me ia telefonar.
– Está bem. – Torkel percebeu que a conversa tinha chegado ao fim. – Dá-lhe cumprimentos meus.
– Podes fazer isso sozinho, ele chega amanhã. – Ursula fechou a porta. Torkel deixou-se ficar onde estava durante um segundo, a absorver aquela informação. Mikael não visitava Ursula durante uma investigação desde... bom, nunca, pelo que Torkel conseguia lembrar-se. Não compreendia o significado daquela visita. Com passos pesados, retirou-se em direcção à escada que o levaria ao seu quarto A sua vida estava agora consideravelmente mais complicada do que vinte e quatro horas antes.
Mas o que esperava ele?
Tinha admitido Sebastian outra vez.
Sebastian acordou deitado de costas em cima do sofá. Devia ter-se deixado dormir. O televisor estava ligado, quase sem som. O noticiário. Tinha a mão direita tão contraída que a dor lhe subia pelo antebraço. Fechou os olhos e vagarosamente começou a endireitar os dedos contraídos pela cãibra. O vento levantara-se; estava a soprar com força, rugindo pela chaminé da lareira aberta, mas naquele estado de semivigília o som misturava-se com o sonho que o abandonara há pouco.
O rugido.
A força.
O poder sobre-humano daquela muralha de água.
Agarrara-se a ela. Agarrara-se com firmeza. No meio de todos os gritos, de todas aquelas pessoas que gritavam. A água. A areia em turbilhão. A força. No meio de toda aquela loucura, era a única coisa de que tinha a certeza. Que estava agarrado a ela. Até conseguia ver as mãos deles. Claro que era impossível, mas, não, realmente conseguia ver as mãos deles. Ainda conseguia vê-las. A mãozinha dela. Com o anel. Agarrada à sua mão direita. Ele segurava-a com mais firmeza do que alguma coisa que tivesse agarrado anteriormente. Não tivera tempo para pensar em nada e, no entanto, sabia que estava a pensar. Um pensamento apenas. Mais importante que qualquer outro. Nunca, mas nunca, poderia soltá-la.
Tinha sido isso que pensara.
A única coisa em que pensara.
Nunca, mas nunca, poderia soltá-la.
Mas soltou.
A mão dela escorregou e largou a sua.
De repente, a filha não estava ali. Algo que vinha naquele enorme volume de água deveria tê-la atingido. Atingira-o a ele? Ou teria o pequeno corpo dela ficado preso nalguma coisa? Ou o seu? Não sabia. Sabia apenas que quando voltara a si a várias centenas de metros do que outrora fora a praia – ferido, maltratado, em choque – ela não estava lá.
Não se encontrava por perto.
Não estava em sítio nenhum.
A mão direita dele estava vazia.
Sabine desaparecera.
Nunca mais a encontrou.
Lily separara-se deles nessa manhã para ir correr na praia. Fazia o mesmo todas as manhãs. Costumava importuná-lo com os seus sermões acerca dos efeitos benéficos do exercício. Enfiando os dedos na carne flácida que fora em tempos a sua cintura. Ele tinha-lhe prometido que iria correr. A certo ponto durante as férias. Mas não lhe dissera quando. Hoje não. Passaria o dia com a filha. Lily atrasara-se a sair. Normalmente ia correr antes de fazer muito calor, mas nessa manhã tinham tomado o pequeno-almoço juntos na grande cama de casal e depois tinham-se deixado ficar, a rir-se e a divertir-se. A família toda. Por fim, Lily levantara-se, beijara-o, dera um último beijo a Sabine e saíra do quarto do hotel com uma disposição alegre. Nesse dia não correria até muito longe.
Já estava demasiado calor.
Voltaria daí a meia hora.
Também nunca mais a encontrara.
Sebastian levantou-se do sofá. Arrepiou-se. Estava frio naquela sala silenciosa. Que horas eram? Passava um pouco das dez. Pegou no seu prato, que ficara em cima da mesa de centro, e levou-o para a cozinha. Quando chegara a casa na noite anterior tinha aquecido no microondas uma coisa qualquer que estava no congelador e anunciava ser comida com qualidade de restaurante e fora sentar-se à frente do televisor com o seu prato e uma garrafa de cerveja sem álcool. Ocorrera-lhe que o restaurante que servia aquela comida provavelmente não demorara muito a fechar as suas portas. A palavra «deprimente» nem sequer chegava para a descrever. Mas a refeição combinava com a programação televisiva: insípida e com falta de imaginação e de textura. Em qualquer canal que sintonizasse, parecia haver um jovem apresentador a olhar directamente para a câmara, tentando persuadi-lo a telefonar para registar o seu voto. Sebastian tinha comido metade da refeição, recostara-se no sofá e, aparentemente, adormecera.
Adormecera e sonhara.
Agora estava de novo na cozinha, sem saber o que haveria de fazer. Pousou o prato e a garrafa sobre o escorredor da louça. Ficou ali. Não estava preparado. Normalmente não se deixava adormecer. Nunca fazia uma sesta depois de jantar nem dormia durante uma viagem de avião ou de comboio porque lhe estragava o resto do dia. Por algum motivo, descontraíra-se. Tinha sido um dia diferente.
Estivera a trabalhar.
Fizera parte de um contexto mais vasto, algo que não acontecia desde 2004. Não iria ao ponto de dizer que fora um dia bom, mas tinha sido diferente. Pensara obviamente que continuaria a ser assim, que o sonho não iria assolá-lo. O que mostrava como se enganara. Por isso, agora estava ali, em pé. Na cozinha dos seus pais.
Em desassossego.
Irritado.
Abria e fechava inconscientemente a sua mão direita. Se não queria ter uma noite de insónia, só havia um caminho possível.
Primeiro, tomaria um duche rápido.
Depois, iria foder alguém.
A casa tinha de facto um aspecto horrendo. Por toda a parte. Pilhas de roupa. Roupa suja. Pó. Louça suja. A roupa das camas precisava de ser mudada, os roupeiros precisavam de ser arejados, e durante o dia o sol primaveril tornava dolorosamente nítido que as janelas precisavam de ser lavadas. Beatrice nem sequer sabia por onde começar, por isso não fazia nada, tal como lhe sucedia todas as noites e, ultimamente, todos os fins-de-semana. Nem sequer se atrevia a pensar quanto tempo era abrangido pelo termo «ultimamente». Um ano? Dois? Não sabia. Sabia apenas que não tinha forças para nada. Dedicava toda a sua energia a manter na escola a aparência da professora e colega popular e conscienciosa. Mantendo a fachada intacta para que ninguém reparasse quão cansada ela estava.
Quão só.
Quão infeliz.
Afastou para o lado uma pilha de roupa interior lavada que não chegara a ser arrumada e sentou-se no sofá com o seu segundo copo de vinho. Se alguém olhasse lá para dentro, pela janela – e ignorasse a confusão na sala –, facilmente obteria a impressão de que ela era uma mulher profissional, esposa e mãe, que se descontraía no sofá após um dia extenuante. Os pés enfiados por baixo de si, um copo de vinho em cima da mesa de centro, um bom livro à sua espera, em fundo uma música relaxante que saía dos altifalantes ocultos. A única coisa que faltava era uma lareira crepitante. Uma mulher de meia-idade que desfrutava de algum tempo a sós. Tempo para si mesma.
Nada poderia estar mais longe da verdade. Beatrice estava sozinha. O problema era esse. Estava sozinha mesmo quando Ulf e Johan se encontravam em casa. Johan, com dezasseis anos, ia a caminho da emancipação e era o menino do papá. Sempre fora. Essa situação tinha-se intensificado desde que ele entrara para o Liceu Palmlövska. Até certo ponto Beatrice conseguia compreendê-lo: não podia ser muito divertido ter a própria mãe como directora de turma; mas sentia-se mais rejeitada do que merecia. Falara, ou tentara falar, com Ulf acerca disso. Sem chegar a lado nenhum, claro.
Ulf.
O seu marido, que saía de casa de manhã e voltava à noite. O seu marido, com quem comia, via televisão e ia para a cama. O homem com quem estava sozinha. Ele estava em casa, mas nunca estava em casa com ela. Não desde que regressara. E antes disso também não.
A campainha da porta tocou. Beatrice olhou para o relógio. Quem poderia ser? Àquela hora da noite? Foi até ao vestíbulo, empurrou um par de ténis para um lado e abriu a porta. Demorou alguns segundos para conseguir identificar o rosto com o qual tivera apenas um contacto passageiro. O agente policial que tinha ido à escola. Sebastian qualquer coisa.
– Olá, desculpe incomodá-la tão tarde, mas aconteceu passar por aqui. – Beatrice fez um aceno de aquiescência e espreitou por cima do ombro do visitante. Não havia qualquer carro estacionado à porta da casa nem na rua. Sebastian percebeu de imediato o que ela procurava.
– O que se passa é que saí para dar um passeio e pensei que a Beatrice poderia precisar de alguém com quem conversar.
– Porque precisaria eu de alguém com quem conversar?
Esse era o ponto crítico. Durante o caminho, Sebastian elaborara uma estratégia baseada no que julgava saber acerca de Beatrice Strand e do marido. O facto de eles se terem apresentado ambos como progenitores do filho e não como marido e mulher dizia-lhe que a relação provavelmente não seria nada boa. Já anteriormente vira e ouvira aquilo. Era uma maneira inconsciente de punir o outro no seio de um casal: «Não penso em mim apenas como teu parceiro.» O pai e o filho tinham ido para fora recapitular os eventos dos últimos dias, em vez de o fazerem a três enquanto família; isso ofereceu a Sebastian um claro sinal de que presentemente as coisas não corriam muito bem entre a mãe e o pai. Por conseguinte, decidira desempenhar o papel do bom ouvinte. Não importava o que tivesse de ouvir. Poderia ser acerca da morte de Roger, do infeliz casamento de Beatrice ou uma palestra sobre física quântica. Estava convencido de que um ouvinte era exactamente o que Beatrice precisava de momento. Além de um serviço de limpezas.
– Quando hoje nos conhecemos na escola, tive a sensação de que tinha de ser forte, de estar ali para os seus alunos enquanto tudo isto continua a decorrer. E em casa também, presumo eu, uma vez que o seu filho era o melhor amigo do Roger. Tem de reprimir os seus sentimentos. – Beatrice concordou com um aceno de cabeça, sem ter consciência de estar a fazê-lo, a confirmar o diagnóstico dele. Sebastian prosseguiu: – Mas o Roger era seu aluno. Um jovem. Tem de ser capaz de ultrapassar tudo isso. Precisa de alguém que a ouça. – Sebastan terminou inclinando ligeiramente a cabeça para um lado e exibindo o seu sorriso mais simpático, uma combinação que fazia com que ele parecesse ser alguém que só tinha em vista os melhores interesses da outra pessoa, sem qualquer motivo ulterior. Percebeu que Beatrice estava a assimilar o que dissera, mas que ainda não conseguira entender inteiramente o sentido das suas palavras.
– Mas eu não compreendo, quero dizer, você é um agente policial. Faz parte da investigação.
– Sou psicólogo. De vez em quando trabalho com a polícia na elaboração de perfis, mas não é por isso que estou aqui. Eu sabia que estava sozinha hoje à noite e pensei que talvez fosse nesta ocasião que os maus pensamentos a assolavam.
Sebastian considerou se havia de realçar as suas palavras com um ligeiro toque. Uma mão no braço dela. Mas não o fez. Beatrice tornou a aquiescer. Aquele brilho nos seus olhos seriam lágrimas? Ele conseguira exactamente o tom certo. Era mesmo bom, raios! Teve de se esforçar por suprimir um sorriso quando Beatrice se afastou para um lado e o deixou entrar.
O homem que não era um assassino compôs a almofada. Estava cansado. Tinha sido um dia longo e, sob muitos aspectos, extenuante. Dava por si constantemente a pensar que tinha de se comportar com naturalidade, o que por seu turno significava que ele receava estar a esforçar-se de mais e, por conseguinte, a comportar-se estranhamente. Depois tentava parar de pensar em comportar-se com naturalidade, mas, ao fim de algum tempo, isso conduzia à sensação de que estava a comportar-se de um modo estranho e, portanto, recomeçava a pensar no assunto. Era cansativo. Além disso, a polícia tinha libertado Leonard Lundin. O que significava que andavam outra vez à procura do assassino mais activamente.
Alguém.
Ele.
O homem que não era um assassino deitou-se de costas e uniu as mãos. Uma curta oração da noite. A seguir, dormir. Um agradecimento por lhe ter sido possível encontrar forças para ultrapassar mais um dia. Um desejo de que a vida voltasse ao normal o mais cedo possível. De que voltasse à rotina quotidiana. Tinha lido algures que, após um homicídio, as primeiras vinte e quatro horas eram as mais importantes para capturar o assassino. Neste caso, ninguém começara sequer a procurar o rapaz antes de decorrerem três dias. A demora só podia significar que as acções dele eram justificadas. Por fim, um pedido de que conseguisse dormir a noite inteira, sem sonhos. Ao contrário do que acontecera na noite anterior.
Tinha sido um sonho muito estranho.
Ele estava em pé atrás do talude no campo de futebol. Iluminado pelos faróis dos automóveis. O rapaz estava deitado no chão, à sua frente. Sangue por toda a parte. O homem que não era um assassino segurava na sua mão o coração danificado. Ainda quente. Estaria a palpitar? Sim, no sonho estava. Lentas palpitações.
Que se desvaneciam.
Morriam.
Em todo o caso, no sonho, ele tinha-se virado para a direita, ciente de que estava ali alguém, a poucos metros de distância. Completamente imóvel. Tinha uma razoável certeza de quem seria. De quem deveria ser. Mas enganara-se. Para sua surpresa vira o pai, observando-o em silêncio. Fora dominado por uma sensação de irrealidade, embora fosse um sonho. O pai tinha morrido há muitos anos. O homem que não era um assassino fez um gesto amplo com as suas mãos, para abranger toda aquela cena sangrenta.
– Não fiques aí parado. Não vais ajudar-me?
Falara em voz alta, esganiçada como a de uma criancinha que estivesse irritada. O pai não se mexeu; continuou a admirar a cena, com os olhos enevoados pelas cataratas.
– Às vezes a melhor coisa que se pode fazer quando se tem problemas é falar acerca deles.
– Falar acerca de quê? O que há para dizer? – gritara o homem que não era um assassino com a sua voz infantil. – O rapaz está morto! Estou a segurar o coração dele nas minhas mãos! Ajuda-me!
A seguir o pai desaparecera. O homem que não era um assassino olhara em seu redor. Confuso.
Receoso.
Abandonado.
O pai não podia simplesmente desaparecer. Não agora. O papá tinha de o ajudar. Tal como sempre fizera. Tinha de ser. Era a responsabilidade dele, foda-se. Mas o pai não reaparecera, e o homem que não era um assassino tomou consciência de que o coração que continuava a segurar ficara frio. Frio e quieto.
Depois, acordara. Não conseguiu voltar a adormecer. Tinha pensado no sonho de tempos a tempos durante o dia, imaginando o que significaria, caso significasse alguma coisa, mas à medida que as horas passavam e a vida quotidiana se impunha, a memória do sonho começara a desvanecer-se.
Mas agora... agora ia dormir. Precisava disso. Precisava de se manter um passo mais adiante. A pista que lhes enviara da escola não produzira o resultado que esperara. A polícia devia ter percebido que Leonard não escondera o blusão na garagem. Que fora lá colocado. O que haveria ele de fazer agora?
Leu tudo o que conseguiu encontrar acerca do rapaz morto, mas não havia muita informação nova. Pôs-se a pensar se conhecia alguém que trabalhasse na esquadra da polícia, alguém que lhe pudesse comunicar os mexericos internos, mas não conseguiu lembrar-se de ninguém. Claro que a equipa que andava a investigar o homicídio tinha sido ampliada. O Expressen dizia que a polícia chamara um especialista. Sebastian Bergman. Bem conhecido na sua área, aparentemente. Tinha desempenhado um papel crucial e decisivo na detenção do assassino em série Edward Hinde em 1996. O homem que não era um assassino estava ciente de que os seus pensamentos se tornavam cada vez menos nítidos; estava prestes a adormecer quando, de repente, despertou. Sentou-se muito direito. Agora já compreendia.
– Se tiveres problemas, fala acerca deles.
O seu pai tentara mesmo ajudá-lo.
Como de costume.
Como sempre.
Ele é que fora demasiado estúpido para compreender. Com quem se ia falar quando se tinha problemas? Um psicólogo. Um terapeuta.
– Mas às vezes falamos de mais.
Ele sabia. Sempre o soubera, mas nunca estebelecera a ligação. Nunca pensara que precisaria de o fazer. Havia um homem em Västerås que podia destruir tudo o que ele conseguira até aí. Tudo aquilo por que ele lutara. Um homem que era uma ameaça.
Um ouvinte profissional.
Peter Westin.
CAPÍTULO CATORZE
ERAM DUAS e vinte e fazia imenso frio. Talvez não estivesse abaixo de zero, mas deveria andar muito próximo. Em todo o caso, a expiração de Haraldsson saía-lhe pela boca como vapor branco enquanto ele estava ali sentado, de olhos fixos no prédio de apartamentos do outro lado da rua. Ouvira dizer algures que morrer gelado era uma forma de morte indolor, quase agradável. Aparentemente todo o nosso corpo se sentia quente e descontraído pouco antes de falecermos. O que significava que, de momento, a vida de Haraldsson não corria perigo algum. Estava a tremer no assento do condutor, com os braços firmemente cruzados sobre o peito. Sempre que se movia – ainda que minimamente –, estremecia de forma descontrolada e sentia a temperatura corporal descer mais um décimo de grau. Continuava a haver luzes acesas aqui e acolá no prédio que ele observava, mas a maioria dos apartamentos estavam às escuras. As pessoas dormiam profundamente. Por baixo dos seus cobertores. No calor. Haraldsson tinha de admitir que as invejava. Por uma ou duas vezes durante a noite estivera prestes a desistir e a ir para casa, mas sempre que se sentia tentado a fazer girar a chave na ignição imaginava-se a chegar de manhã ao emprego como a pessoa que resolvera o homicídio de Roger Eriksson. A pessoa que tinha apanhado o assassino. A pessoa que resolvera o caso. Tinha imaginado as reacções.
Os elogios.
A inveja.
Conseguia ouvir o superintendente-chefe a agradecer-lhe e a elogiar a sua iniciativa, a dedicação ao serviço que o fizera ir um passo além daquilo que lhe era exigido pelo dever, um passo além do que até a Riksmord julgara necessário. O passo que só um autêntico agente policial podia dar. Este último comentário seria proferido pelo superintendente-chefe com um olhar significativo para Hanser, a qual ficaria a olhar para o chão com uma mistura de vergonha e de embaraço. Talvez a notável contribuição de Haraldsson tivesse impedido a perda de mais vidas.
Haraldsson sentia-se quente por dentro só de pensar nisso, ali sentado dentro do seu Toyota gelado. Imagine-se como se sentiria caso efectivamente isso acontecesse! Ao seu redor tudo se inverteria. A espiral descendente em que a sua vida tombara seria interrompida, e ele estaria de regresso. Em todos os sentidos.
Haraldsson despertou do seu devaneio sonolento e semigelado. Alguém estava a aproximar-se da porta do edifício de apartamentos. Uma figura alta, magra. Um homem. Caminhava rapidamente, com as mãos enfiadas nos bolsos do casaco, os ombros arqueados. Era óbvio que Haraldsson não era o único que sentia frio. O homem passou por baixo de um candeeiro fixado ao exterior do edifício e, durante um breve instante, Haraldsson teve uma visão nítida do seu rosto. Olhou para a fotografia presa ao painel de instrumentos com um íman. Não havia a mínima dúvida. O homem que se dirigia para a porta era Axel Johansson.
Bem-vindo a casa, pensou Haraldsson, sentindo dissiparem-se todas as réstias da gélida lassidão. Axel Johansson chegou à entrada e introduziu o código de quatro algarismos. A fechadura deu um estalido e ele empurrou a porta para a abrir. Estava prestes a penetrar no calor e na escuridão quando ouviu um outro estalido e um som metálico que poderia ser a porta de um carro a abrir-se. Axel imobilizou-se e olhou em volta. Haraldsson ficou sentado, sem se mexer, por um momento. Fora precipitado. Devia ter deixado o suspeito entrar no edifício antes de abrir a porta do carro. O que estava Johansson a fazer agora? A porta do prédio continuava aberta, e ele olhava directamente para o Toyota. Como ficar ali sentado com a porta do carro aberta pareceria ainda mais suspeito, caso isso fosse possível, Haraldsson saiu. Vinte metros mais adiante viu Axel Johansson largar o puxador da porta e dar um passo atrás. Haraldsson atravessou a rua com determinação.
– Axel Johansson! – Haraldsson fez os possíveis para que soasse como se, sem esperar, ele tivesse avistado um velho amigo. Agradavelmente surpreendido, de modo nenhum ameaçador. Nada parecido com um agente policial. Porém, era evidente que tinha falhado.
Axel Johansson voltou-se e começou a correr.
Haraldsson partiu no seu encalço, amaldiçoando o facto de ter estado tanto tempo sentado dentro do carro e arrefecido tanto e ter ficado tão lento. Quando contornou a esquina do edifício percebeu que a distância entre si e Axel Johansson crescera. Haraldsson aumentou a velocidade, ignorando o facto de as suas pernas estarem rígidas e nada dispostas a cooperar. Movia-se à custa da pura força de vontade. Johansson corria rápida e agilmente entre os prédios. Saltou por cima da placa de madeira que dizia ESTACIONAMENTO SÓ PARA RESIDENTES, correu através do parque de estacionamento, subiu para o relvado e prosseguiu. Mas Haraldsson ia atrás dele. Sentia as suas passadas tornarem-se cada vez mais longas enquanto todo o seu corpo ia respondendo ao esforço. A velocidade aumentava constantemente. A distância entre Haraldsson e Johansson já não estava a aumentar. Nem sequer se mantinha igual. Haraldsson estava a ganhar terreno. Era um processo gradual, mas ele estava em forma e dificilmente se cansaria. Desde que não perdesse o suspeito nem escorregasse na relva molhada, acabaria por alcançá-lo, tinha a certeza disso.
Nada mau para um homem que fizera um entorse grave no pé direito.
Ora, mas de onde viera essa ideia?
Haraldsson abrandou instintivamente, praguejou, mas tornou a acelerar. Correu. Sentia o sangue a latejar nas têmporas. Recuperou o fôlego, movendo as pernas a bom ritmo. Forte. Axel Johansson não mostrava sinais de abrandar. Atravessou a Skultunavägen, dirigindo-se para a ponte sobre o rio Svartån. Haraldsson continuava atrás dele, mas não conseguia afastar aquela ideia. Oficialmente, estava lesionado. Um péssimo entorse no pé. Tivera um especial cuidado na manutenção dessa ilusão. Mal conseguia chegar à máquina de café e regressar à sua secretária sem fazer um esgar de dor. Às vezes parava a meio do caminho para conversar com um dos colegas, só por o pé lhe doer tanto. Parecia latejar. Se apanhasse o suspeito após uma perseguição nocturna de vários quilómetros, toda a gente saberia que ele andara a fingir. A mentir. Teriam provas de que abandonara o seu posto na equipa de buscas. Desertara. Mas isso teria alguma importância? Se apanhasse um assassino de crianças, ninguém poria, certamente, em causa o facto de ele ter faltado à verdade em relação a certas circunstâncias alguns dias antes!
Errado. A Hanser fá-lo-ia. Ele tinha a certeza. Jamais ouviria os discursos e os louvores. Ficaria sujeito a um inquérito interno? Talvez não, mas o que diriam os seus colegas? Dificilmente conseguiria a promoção que tão desesperadamente desejava. Tinha a cabeça a girar. Haraldsson viu Axel Johansson atravessar o rio e virar à esquerda, dirigindo-se para a ciclovia ao longo da Vallbyleden. Daí a pouco chegaria ao parque de Djäkneberget e seria impossível encontrá-lo no meio da escuridão. Haraldsson abrandou. Parou. Johansson desapareceu de vista. Haraldsson ficou ali parado a arfar, praguejando em voz alta para si mesmo. Porque se lembrara do pé torcido? Porque não dissera que Jenny ficara doente ou que ele tinha sofrido uma intoxicação alimentar ou outra merda qualquer que não durasse muito tempo? Voltou para trás e encaminhou-se para o carro.
Iria para casa ter com Jenny.
Para a acordar e fazer sexo com ela.
Para não se sentir completamente inútil.
Uma das janelas estava aberta e o ar fresco da noite tinha arrefecido o quarto desarrumado. Sebastian espreguiçou-se e endireitou cautelosamente a mão direita contraída. A sensação de Sabine permanecia na sua pele, e afagou a palma da mão só para ficar perto dela por mais algum tempo. Estava calor debaixo das cobertas, e uma parte de Sebastian pensou que seria bom ficar ali mais um bocado, adiando o momento em que teria de enfrentar o frio. Voltou-se para Beatrice. Ela estava deitada em silêncio ao seu lado, a observar-lhe o rosto.
– Um sonho mau?
Detestava que estivessem acordadas. Isso tornava sempre a partida mais difícil.
– Não.
Ela chegou-se para mais perto dele, e o calor do seu corpo nu envolveu-o. Ele deixou que isso acontecesse, embora soubesse que deveria ter optado pelo frio. Ela afagou-lhe o pescoço e as costas.
– Não te está a saber bem?
– Está, mas tenho de ir.
– Eu sei. – Ela beijou-o. Não com demasiado vigor. Não com demasiado desespero. Ele correspondeu. O cabelo ruivo de Beatrice tombou sobre as faces de Sebastian. Em seguida, ela afastou-se, compôs a almofada e instalou-se confortavelmente.
– Adoro o princípio da manhã. Faz-nos sentir a única pessoa do mundo. – Sebastian sentou-se. Os seus pés tocaram no frio soalho de madeira. Olhou-a. Tinha de admitir que ela o surpreendera. Na verdade, não tivera consciência disso anteriormente. Era uma potencial atiçadora. Esse era o termo que Sebastian usava para designar as mulheres verdadeiramente perigosas. Aquelas às quais nos afeiçoávamos. Que nos davam alguma coisa. Mais do que sexo. Aquelas de que podíamos gostar, para as quais sentíamos que precisávamos de voltar. Sobretudo se andássemos um pouco infelizes. Levantou-se a fim de interpor alguma distância entre eles. Já se sentia melhor. Para Sebastian, a maioria das mulheres eram mais bonitas quando se ia para a cama do que quando se acordava junto delas. Mas com algumas era o contrário, e uma atiçadora era mais bonita quando estávamos prestes a deixá-la. Uma atiçadora deixava uma promessa no fim, em vez de prometer algo no início. Ela sorriu-lhe.
– Queres uma boleia para casa?
– Não, obrigado, eu vou a pé.
– Eu dou-te boleia.
Ele concordou. Afinal, ela era uma atiçadora, apesar de tudo.
Foram de carro ao longo da manhã pacata. O Sol estava a descansar abaixo do horizonte, à espera de que a noite desaparecesse. Na rádio passava o «Heroes» de David Bowie. Não conversaram muito. Bowie ocupou o lugar da conversa. Sebastian sentia-se mais forte. Com a roupa vestida era sempre mais fácil. Muitas das coisas que tinham acontecido durante os últimos dias estavam a revolver-se na sua cabeça. Muitas emoções, e a seguir isto. Uma ligação emocional, embora débil. Sem dúvida que a situação era censurável; ele estava numa condição fragilizada, só isso, e não no seu estado normal.
Beatrice parou à porta da casa dos pais dele e desligou o motor. Olhou-o com uma certa surpresa.
– É aqui que tu moras?
– De momento, sim.
– Devo dizer que não parece nada o teu estilo.
– Nem sabes como tens razão. – Ele sorriu-lhe e abriu a porta. A luz interior acendeu-se, fazendo as sardas de Beatrice parecerem mais bonitas. Inclinou-se para ela. Cheirava bem. O que estava ele a fazer? Nada de beijos de boa noite ou de bom dia. Devia manter a distância, foda-se, era isso que tinha decidido. Ela agarrou-o e beijou-o nos lábios, como se quisesse tornar a despedida ainda mais difícil para ele. O carro era acanhado, havia entre eles um certo calor. Beatrice afagou-lhe o cabelo e a parte de trás do pescoço. Ele libertou-se. Suavemente, mas com firmeza. Finalmente, conseguira.
– Tenho de ir.
Fechou a porta rapidamente, extinguindo assim aquela traiçoeira luz que a tornava demasiado tentadora. Beatrice ligou o motor e engatou a marcha-atrás. Os faróis de halogéneo ofuscaram-no, mas conseguiu ver o aceno dela antes que virasse o volante e os faróis varressem a casa dos seus pais, e seguidamente a de Clara Lundin. Um par de olhos e um blusão acolchoado de tom azul-pálido cintilaram sob as luzes na casa ao lado. Clara Lundin estava sentada nos degraus com um cigarro na mão, a olhá-lo com uma expressão cheia de raiva e de dor. Sebastian cumprimentou-a com um aceno de cabeça e achou melhor esperar pela sua reacção.
– Bom dia!
Não obteve resposta. Não que estivesse à espera de alguma. Clara apagou o cigarro e, com um último olhar a Sebastian, voltou para dentro de casa. Nada bom, pensou ele. Mas estava demasiado cansado para se preocupar. Subiu o carreiro até à casa dos seus pais. Em menos de quarenta e oito horas tinha adquirido uma casa, um possível filho e um emprego; também conhecera uma atiçadora e alguém que provavelmente ia querer vingar-se. Enganara-se. Afinal aconteciam coisas em Västerås.
CAPÍTULO QUINZE
O CONSULTÓRIO estava situado a 650 metros do Liceu Palmlövska num edifício de três pisos, com escritórios no piso térreo e habitações familiares por cima. Vanja esperara por Sebastian na esquadra até às 8h25, antes de se fartar e decidir ir visitar Peter Westin sozinha. Ficara aliviada. Em circunstâncias normais, geralmente, achava melhor ter dois agentes presentes durante a entrevista, por mais trivial que ela pudesse ser, em parte porque era sempre útil ter vários pontos de vista sobre qualquer história, mas também porque a informação podia então ser partilhada de maneira mais precisa com os outros membros da equipa. Isso significava uma redução do tempo passado em demoradas reuniões, que Vanja achava cada vez mais entediantes. Mas quando se tratava de Sebastian, as coisas eram diferentes. Não eram decerto aborrecidas, mas ele tinha a capacidade de transformar a maior parte das coisas numa batalha. Por isso, não esperara muito tempo por ele.
O letreiro na porta de vidro dizia WESTIN & LEMMEL e, por baixo, PSICÓLOGOS em letras mais pequenas. Vanja entrou. Uma atmosfera tranquila e agradável, mobiliário claro e uma iluminação melhor do que na maioria dos consultórios médicos tradicionais, com pequenos candeeiros de design sobre a mesa de centro. Um belo sofá para que quem esperava se pudesse sentar. Uma porta de vidro conduzia da sala de espera ao que Vanja supunha serem os gabinetes de consulta. Experimentou-a. Fechada. Bateu com firmeza e, ao fim de pouco tempo, surgiu um homem de cerca de quarenta anos que se apresentou como Rolf Lemmel. Vanja mostrou-lhe a sua identificação e explicou porque estava ali.
– O Peter ainda não chegou, mas não deve demorar muito – disse Rolf, convidando-a a sentar-se. Vanja instalou-se no sofá e começou a examinar o Dagens Nyheter do dia anterior, que se encontrava em cima da mesa. A sala de espera estava silenciosa e tranquila. Ao fim de algum tempo, entrou uma rapariga de cerca de quinze anos. Tinha um aspecto franzino e o cabelo molhado, sinal de que o lavara há pouco. Vanja ofereceu-lhe um sorriso amigável.
– Vieste ter com o Peter Westin?
A rapariga respondeu-lhe que sim.
Ainda bem, isso significava que ele não tardaria a chegar.
– Preciso que me dispenses alguns minutos. – Sebastian compreendeu imediatamente que alguma coisa acontecera. Conhecia muito bem Torkel e o seu tom de voz. De facto, Sebastian tinha voltado a adormecer quando o despertador tocara e só conseguira chegar à esquadra depois das nove, mas aquilo não era por ele ter chegado tarde. Era algo mais grave.
– Claro – respondeu Sebastian, indo atrás de Torkel, que se encaminhou para o interior de uma das salas de interrogatório do primeiro piso, fazendo gestos com a mão para que Sebastian se apressasse a acompanhá-lo. O assunto era sério. Incitando-o a que se apressasse. Uma conversa privada. Numa sala à prova de som. Não augurava nada de bom. Sebastian abrandou um pouco; como era habitual estava a preparar-se para o pior, fingindo-se ainda mais indiferente, o que não impressionou Torkel.
– Despacha-te lá, não temos o dia inteiro.
Torkel fechou a porta e fitou Sebastian directamente nos olhos.
– No dia antes de apareceres e dizeres que querias trabalhar connosco fizeste sexo com a mãe do Leonard Lundin. É verdade?
Sebastian abanou a cabeça.
– Não, foi na noite anterior.
– Basta! Mas tu perdeste o juízo? Na altura ela era a mãe do principal suspeito!
– Que importância tem isso? Quero dizer, o Leo estava inocente.
– Tu não sabias isso na altura!
Sebastian sorriu para Torkel. Cheio de confiança. Cheio de importância, diriam alguns.
– Por acaso, sabia. Tinha absoluta certeza, como bem sabes.
Torkel abanou a cabeça, percorrendo com irritação o interior da sala acanhada.
– Isso foi um erro a todos os níveis, e tu sabe-lo. Ela telefonou-me para me contar. Ameaçou contar aos meios de comunicação social se eu não tomasse medidas apropriadas. Tens de conseguir guardar a picha dentro das calças, por amor de Deus!
De repente, Sebastian sentiu pena de Torkel. Ele levara um desordeiro para a investigação contra a vontade da maioria dos outros. Tivera sem dúvida de defender a sua decisão de diversas maneiras, sobretudo perante si próprio. Um dos seus argumentos teria sido certamente o velho clássico: «Não se preocupem, ele agora está diferente, mudou.» Mas a verdade é que ninguém muda. Sebastian sabia-o. Limitamo-nos a girar em torno do mesmo eixo, pelo que os aspectos que mostramos vão variando, mas o fundamento básico é sempre o mesmo.
– Com certeza. Mas, quando a Clara e eu acabámos por nos envolver numa situação íntima, não estava a trabalhar contigo, ou estava? – Torkel olhou para ele. Não conseguia responder. – Não voltará a acontecer nada que se pareça – disse Sebastian o mais honestamente que conseguiu, e acrescentou: – Prometo. – Como se essa promessa adicional pudesse afugentar a lembrança de uma Beatrice nua na noite anterior. Beatrice Strand, a directora de turma da vítima de homicídio. E o filho dela era o melhor amigo de Roger. Fosse qual fosse a maneira como se olhasse para a questão, tinha procedido mal. Meu Deus, era realmente um completo idiota. Até ele tinha de o admitir.
Porque é que eu tenho sempre, sempre, de testar tudo até à destruição?
Torkel olhou-o e, por um instante, Sebastian pensou que lhe ia pedir que abandonasse a investigação. Teria sido essa a decisão correcta. Mas Torkel manteve-se em silêncio; hesitou, por qualquer motivo que Sebastian foi incapaz de entender.
– Tens a certeza? – disse ele por fim.
Sebastian aquiesceu com um aceno de cabeça, ostentando ainda a sua expressão mais honesta.
– Absoluta.
– Não precisas de fazer sexo com todas as mulheres que encontras – prosseguiu Torkel, num tom de voz ligeiramente mais brando. De repente, Sebastian compreendeu. Na verdade, era muito simples. Torkel gostava dele. Sebastian decidiu fazer uma tentativa; sentia que, de alguma forma, Torkel o merecia.
– É-me difícil estar sozinho. As noites são o pior.
Torkel fitou-o.
– Deixa-me esclarecer uma coisa: não haverá mais hipóteses. Agora vai-te embora daqui. Não te quero ver durante uns tempos.
Sebastian aquiesceu e saiu. Em circunstâncias normais, ter-se-ia sentido superior, envaidecido e presunçoso. Conseguira arranjar maneira de se safar de mais uma situação desagradável. Livrara-se daquilo.
– Tu pões-me fora de mim – ouviu ele a voz de Torkel dizer atrás de si –, e não gosto disso. – Se Sebastian possuísse alguma capacidade de arrependimento ou uma má consciência, experimentaria agora tais sentimentos. Mas talvez sentisse um laivo dessas emoções enquanto se dirigia para a porta. Beatrice fora uma vez sem exemplo. Prometeu isso a si mesmo.
A rapariga com o cabelo molhado fora-se embora passados vinte minutos, uma vez que Peter Westin ainda não tinha aparecido. Ao fim de algum tempo, Vanja fora dar um passeio pelas redondezas do edifício. Ficar quieta não estava na sua natureza, e aproveitou a oportunidade para telefonar aos pais. Estavam quase a sair de casa, mas ainda tiveram tempo para conversar. Foi como nos bons velhos tempos. Primeiro, teve uma longa conversa com a mãe e, depois, outra, mais curta, com o pai. Era estranho, mas eles nunca precisavam de tantas palavras para dizerem o mesmo. Já regressara às conversas entre eles um certo nível de normalidade, após os últimos meses em que tudo girara em torno da vida e da morte. Vanja percebeu como sentira a falta dessa sensação e riu-se quando a mãe embarcou num dos seus tópicos favoritos: a vida amorosa de Vanja. Ou antes, a ausência dela. Como sempre, Vanja esquivou-se às suas perguntas, mas não tão bruscamente como antes.
Ela tinha conhecido alguém em Örebro?
Estava em Västerås, e não, não tivera tempo.
E aquele Billy tão simpático com quem trabalhava? Gostava dele, não gostava?
Sim, mas seria como ir para a cama com o irmão.
E depois regressaram evidentemente a Jonathan, o inevitável tópico de conversa da sua mãe.
Ela não ia mesmo voltar a entrar em contacto com ele? Era tão simpático!
Alguns meses antes Vanja adoptava uma postura furiosamente defensiva sempre que Jonatham era mencionado. O facto de a sua mãe continuar a tentar que ela voltasse para o ex-namorado, sem qualquer noção de como isso diminuía Vanja, costumava deixá-la louca. Agora sentia-se apenas gloriosamente normal. Até permitiu que as perguntas e os queixumes prosseguissem por mais um pouco. A mãe pareceu surpreendida por não ter encontrado o habitual contra-ataque; na verdade, pareceu perder o ímpeto ao fim de algum tempo, e concluiu com o argumento que Vanja usava tão frequentemente: – Bom, tu agora já és uma rapariga crescida. Podes tomar as tuas próprias decisões.
– Obrigada, mãe. – Pouco depois, o telefone foi passado ao pai. Tinha decidido visitá-la nessa noite. Nada de desculpas. Vanja nem sequer tentou. Normalmente, fazia um esforço para manter os dois mundos separados, mas desta vez ficou contente por se encontrarem. Ele ia apanhar o comboio das seis e vinte, e Vanja prometeu ir buscá-lo à estação. Terminou a chamada e voltou ao consultório de psicologia. Obteve o endereço de Peter Westin junto do colega, que por essa altura já estava farto de a ver por ali, mas Rolf Lemmel prometeu-lhe que quando Peter finalmente chegasse lhe diria que a polícia andava à sua procura.
Vanja entrou no carro. Rotevägen, número 12. Introduziu o endereço no GPS. Demoraria cerca de meia hora a chegar. Prometera estar na esquadra às dez, para uma reunião com o resto da equipa. Westin teria de esperar.
Torkel entrou na sala de conferências. Os outros já lá estavam reunidos, e Ursula levantou um sobrolho para eles, entrando atrás de Torkel.
– Então o que andaste a fazer com o Sebastian?
Estaria Torkel demasiado sensível nessa manhã, ou havia uma diferença entre «Onde está o Sebastian?» e «Então o que andaste a fazer com o Sebastian?». Esta última frase fazia parecer que eles eram inseparáveis. Tom e Jerry. Yogi Bear e Boo-Boo. Torkel e Sebastian. «Então o que andaste a fazer com o Sebastian?» Uma maneira passivo-agressiva de tornar claro a Torkel que Ursula tinha a impressão de que Sebastian era mais importante do que ela. Como se ele precisasse de mais algum lembrete. Se ela ao menos soubesse. Nesse preciso instante Torkel estava disposto a vender Sebastian para dolorosas experiências médicas. Mas a manhã já era suficientemente má sem encetar também uma discussão com Ursula.
Por isso respondeu-lhe simplesmente: – Ele já aí vem. – Puxou uma cadeira e sentou-se. Estendeu a mão sobre a mesa, agarrou o termo e deitou café numa chávena de polistireno. – O Mikael já chegou?
Tom de voz neutro. Conversa do dia-a-dia.
– Deve chegar hoje à tarde.
– Que bom.
– Sem dúvida.
Vanja levantou os olhos. Havia um tom de voz peculiar entre Ursula e Torkel, uma entoação que ela não se lembrava de ter ouvido antes. Um pouco como quando, durante a sua infância, a mãe e o pai não queriam denunciar o facto de terem estado a discutir. Quando faziam um esforço enorme para se mostrarem educados, a fim de que ela pensasse que estava tudo bem. Não funcionava então e não funcionava agora. Vanja olhou para Billy; ele também teria detectado? Era óbvio que não. Estava absorto no seu computador.
Sebastian entrou, cumprimentou com um aceno de cabeça a equipa ali reunida e sentou-se. Vanja olhou de relance para Ursula, que lançou um olhar acutilante a Sebastian, fez o mesmo a Torkel e a seguir fixou os olhos na mesa. O que se estava a passar ali? Torkel sorveu o seu café.
– Muito bem, Billy, queres ser tu a começar?
Billy fechou o computador portátil, pegou numa pequena pilha de papéis e levantou-se.
– Recebi a lista de chamadas do operador telefónico ontem à noite e as listas do SKL hoje de manhã, por isso juntei-as num único documento.
Contornou a mesa distribuindo uma folha de papel a cada um deles. Vanja pensou porque não teria ele posto aquilo no meio da mesa e deixado que cada um tirasse o que quisesse. Não disse nada, limitou-se a olhar para a primeira página do material que lhe fora entregue.
– A primeira página são as chamadas efectuadas. O último telefonema do Roger foi na sexta-feira às oito e dezassete, para o número de casa da directora de turma. – Billy escreveu o número na cronologia que estava afixada na parede. Sebastian levantou os olhos da sua lista.
– Sabes se ele tentou telefonar a mais alguém depois disso, mas não foi atendido?
– Sim. Essa foi a última chamada que ele fez.
– Em que estava a pensar? – perguntou Vanja, dirigindo-se a Sebastian.
– Ele disse que queria falar com Johan quando telefonou para casa dos Strands, não foi? Mas nunca tentou o telemóvel do amigo.
Billy voltou-se para eles e abanou a cabeça.
– Sim. Quero dizer, não, não tentou.
– Talvez alguma coisa o tivesse impedido – sugeriu Torkel.
– Um assassino, por exemplo – disse Ursula.
– Próxima página – prosseguiu Billy. – Chamadas recebidas. A última é da Lisa, pouco depois das seis e meia.
Acrescentou essa chamada à cronologia e prosseguiu.
– Próxima página. Mensagens de texto. Em primeiro lugar temos as mensagens que ficaram no telemóvel danificado pela água. Não há muitas; na sua maioria são de e para o Johan, o Erik e a Lisa. Já sabíamos que o Roger não tinha muitas amizades, portanto, não há surpresas. Se passarem à última página, verão as mensagens recebidas que foram apagadas, e essas têm obviamente interesse.
Sebastian passou os olhos pela folha de papel que tinha à sua frente. Sentou-se direito. «Ter obviamente interesse» era um claro eufemismo.
– Duas delas são de um telemóvel pré-pago – prosseguiu Billy. – Uma na quinta-feira e outra na sexta-feira, algumas horas antes de ele desaparecer.
Sebastian leu a primeira mensagem.
ISTO TEM DE PARAR AGORA! PARA BEM DE TODOS!
E a segunda.
POR FAVOR CONTACTA-ME! A CULPA É SÓ MINHA! NINGUÉM TE ESTÁ A RESPONSABILIZAR!
Sebastian pousou a folha impressa e voltou-se para Billy.
– As questões técnicas nunca foram o meu ponto forte; um telemóvel pré-pago significa o que eu penso?
– Se pensa que significa que nós temos um número mas não um nome de assinante, então, sim – respondeu Billy enquanto escrevia o número. – Pedi as listas de todas as chamadas e mensagens desse telemóvel, por isso logo veremos onde nos levará.
Sebastian viu Vanja levantar o braço e erguer o dedo indicador enquanto estudava as páginas que tinha à sua frente, como se estivesse a levantar a mão na aula. Durante um breve instante, Sebastian imaginou-a em uniforme escolar, depois afastou imediatamente essa imagem. Já ultrapassara os limites nesta investigação, e se havia uma coisa que aprendera em todos os anos de relacionamentos fugazes era a reconhecer mais ou menos instantaneamente quando tinha alguma hipótese e quando não a tinha.
– As mensagens estavam escritas em maiúsculas, em letras grandes, no próprio telemóvel, ou é só da impressão?
Billy olhou para Vanja com um certo enfado na sua expressão.
– Eu sei o que significam as maiúsculas.
– Desculpa.
– Estavam escritas exactamente como aparecem aí. Em maiúsculas.
– É como se estivesse a gritar.
– Ou talvez seja por a pessoa que enviou as mensagens não estar muito familiarizada com a forma como se escrevem mensagens.
– A maioria das pessoas dessa categoria são mais idosas.
Sebastian tornou a ler as mensagens e sentiu-se inclinado a concordar com Vanja. Não sabia se as letras maiúsculas significavam ou não que se estava a gritar; no entanto, a escolha das palavras sugeria que o remetente era um adulto, uma pessoa mais velha.
– Portanto não temos maneira de saber quem enviou isto? – perguntou Torkel, com um tom de resignação na voz. Billy abanou a cabeça.
– Já alguém tentou ligar para esse número?
A sala ficou em silêncio. Todos olharam para Vanja, que fizera a pergunta, depois uns para os outros, e finalmente para Billy. Ele debruçou-se para o telefone que estava no centro da mesa, ligou-o em alta voz, e marcou o número. Um tenso ambiente de expectativa dominou a sala. Não houve sinal de chamada. Ouviram apenas: «O número que tentou contactar não está disponível. Por favor, tente mais tarde.»
Billy desligou o altifalante. Torkel olhou para ele, com uma expressão séria.
– Assegura-te de que alguém continua a tentar esse número.
Billy fez um gesto de assentimento.
– E o resto disto, o que é? – Ursula apontou para os papéis que tinha na mão.
Sebastian estudou as folhas impressas.
Uma das mensagens de texto: 12 cervejas + vodca.
A próxima: 20 cervejas + gim. Seguida por um smiley.
A seguinte: 1 grf tinto & cerveja.
E assim por diante.
– São encomendas.
Os outros levantaram os olhos.
– De quê?
– Do que aí diz.
Sebastian virou-se para Billy.
– Quando é que ele recebeu a última destas mensagens?
– Há cerca de um mês.
O olhar de Sebastian cruzou-se com o de Vanja, do outro lado da mesa. Percebeu que ela sabia onde ele queria chegar, mas continuou.
– Isso foi quando o Axel Johansson foi despedido por andar a vender bebida.
Vanja levantou-se e olhou para Sebastian, que contemplou os seus papéis. Sabia onde ela queria ir. Precisamente ao local onde ele não queria.
Vanja pôs-se a caminho da casa, com Sebastian alguns passos mais atrás. Primeiro tencionara ficar no carro, mas depressa percebera que pareceria estranho. Não que realmente lhe importasse que Vanja o achasse excêntrico. Não, era antes um caso de puro instinto de sobrevivência. Tinha decidido que precisava de acompanhar esta investigação durante mais algum tempo, pelo menos até Billy conseguir localizar-lhe um endereço. Se Beatrice Strand lhe agradecesse uma noite maravilhosa isso certamente colocaria um travão na engrenagem. Vanja nem precisou de tocar à campainha, porque a porta foi aberta antes que tivesse tempo de o fazer. Era Beatrice; tinha o cabelo apanhado e vestia uma blusa simples e calças de ganga. Mostrou-se surpreendida.
– Aconteceu alguma coisa?
– Precisamos de falar com o Johan – disse Vanja.
– Não está cá, ele e o Ulf foram acampar. – Beatrice olhou para Sebastian, mas não deu a mínima indicação de que tinham estado juntos poucas horas antes.
– Nós sabemos – prosseguiu Vanja –, mas tem alguma ideia do sítio para onde foram?
Seguiram de carro para oeste pela E18. As indicações dadas por Beatrice levaram-nos a passar pela pequena comunidade de Dingtuna, indo depois para sul por estradas secundárias em direcção ao lago Mälaren e à enseada conhecida como Lilla Blacken, que era onde Beatrice julgava que eles estariam. Nem Vanja nem Sebastian falavam. Vanja tentou telefonar a Peter Westin, mas continuava a não obter resposta. Estava a ficar incomodada por o psicólogo não responder às suas chamadas; já lhe tinha deixado quatro mensagens. Sebastian fechou os olhos e tentou dormir.
– Ficou acordado até tarde?
Sebastian abanou a cabeça.
– Não, mas não dormi muito bem. – Fechou os olhos de novo para deixar claro que não estava interessado em conversar, porém, não tardou a ser obrigado a abri-los quando Vanja travou de repente.
– O que se passa?
– Aqui temos de virar à esquerda ou à direita? Você é que devia encarregar-se da navegação.
– Oh, por favor.
– Gosta de tomar decisões. Aí tem a sua oportunidade.
Sebastian suspirou, pegou no mapa, e examinou-o. Não tinha forças para resistir. Desta vez deixava-a sair vitoriosa.
Ele detestava Västerås.
Meu Deus, como ele detestava Västerås.
Sentia-se como se tivesse visto cada metro quadrado da cidade em gravações vídeo de qualidade variável. Tinha sido bom ver alguma coisa do sítio ao vivo, por assim dizer, mas a única vez em que tivera oportunidade de se libertar das gravações fora quando estava a compilar as listas de telefonemas ou... Billy sobressaltou-se. Os seus dedos voaram sobre o teclado. Parar. Retroceder. Play. Sim, finalmente. Minhas senhoras e meus senhores, entrando pelo lado direito: Roger Erikson. Parar outra vez. Billy olhou para o índice que viera com os vídeos. Que câmara era esta? 1.22. Drottninggatan. Onde ficava isso? Billy pegou no mapa de Västerås, procurou, encontrou e assinalou o local. A hora era mostrada no canto superior da imagem: 21h29.
Play.
Billy viu Roger caminhar em direcção à câmara, de cabeça baixa, arrastando os pés. Ao fim de cerca de dez metros levantou os olhos, virou para a direita, e desapareceu atrás de um carro estacionado, que estava numa rua transversal e fora da imagem.
Billy suspirou. A sua alegria durou pouco. O rapaz estava vivo e continuava a caminhar. O que significava que Billy também tinha de continuar. A ver mais Västerås, quer lhe apetecesse ou não. Roger estava a dirigir-se para norte. Billy olhou de novo para o índice, verificou o mapa. Descartou as câmaras que estavam na direcção errada e começou de novo a procurar.
Ele detestava Västerås.
Lilla Blacken era uma popular área de lazer junto a uma enseada do lago Mälaren. Pelo menos era-o durante o Verão. Naquele dia, parecia deserta. Tinham conduzido durante algum tempo por estradas de terra batida até encontrarem o sítio certo.
Um Renault Mégane estava estacionado à frente de um painel informativo em mau estado. Sebastian saiu e caminhou até ao carro vazio. Julgou reconhecê-lo da casa de Beatrice no dia anterior, quando vira Ulf por lá. No painel, um letreiro desgastado proclamava BEMVINDOS A LILLA BLACKEN - AR FRESCO E DIVERSÃO. Por baixo do letreiro tinham sido afixados avisos que anunciavam artigos para vender ou trocar, mas a humidade invernal esborratara a maior parte do texto. Informação sobre licenças de pesca. Voltou-se para Vanja.
– Julgo que é este o sítio.
Olharam em redor. Diante deles estendia-se uma mata de árvores de folha caduca que cresciam num campo aberto que conduzia à água. Lá ao fundo, junto à margem, erguia-se uma tenda azul que balouçava ligeiramente ao vento.
Avançaram até à tenda pelo meio da erva húmida. O céu estava nublado, mas o frio da noite já desaparecera. Como sempre, Vanja ia à frente. Sebastian sorriu. Sempre a primeira, sempre a última palavra. Vanja era assim. Tal como ele, quando era jovem e ávido. Hoje em dia normalmente contentava-se com a última palavra. Enquanto se aproximavam do lago viram duas pessoas sentadas num pontão frágil que se estendia sobre a água, não muito longe do acampamento. Pareciam estar a pescar. Lado a lado. Quando Sebastian e Vanja chegaram mais perto, reconheceram Ulf e Johan. Era um verdadeiro retrato de pai e filho, o tipo de coisa que Sebastian nunca experimentara.
Ulf e Johan estavam bem agasalhados e equipados com chapéus e galochas verdes; ao lado deles havia diversos baldes, uma faca e uma caixa que continha anzóis e chumbadas. Cada um empunhava a sua cana de pesca. Johan permaneceu sentado, enquanto Ulf se levantava e vinha ao encontro deles, com a ansiedade estampada no rosto.
– Aconteceu alguma coisa?
A água do lago Mälaren subira após o degelo primaveril, e a parte de baixo do pontão estava perigosamente próxima da superfície. A água fria infiltrou-se através das aberturas nas tábuas, ensopando a madeira, quando Ulf se encaminhou para eles. Sebastian recuou alguns passos a fim de evitar ficar molhado.
– Precisamos de falar com o Johan outra vez. Surgiram algumas informações novas.
– E nós julgávamos que conseguiríamos ficar em paz durante um bocado. Afastarmo-nos de tudo aquilo. Isto foi realmente muito duro para ele.
– Sim, já nos tinha dito, mas precisamos de falar com ele de novo.
– Não faz mal, papá.
Ulf fez um resignado gesto de concordância e deixou-os passar. Johan pousou a cana de pesca e pôs-se vagarosamente em pé. Vanja não conseguiu conter-se.
– Johan, o Roger andava a vender álcool com o Axel Johansson?
Johan parou e ficou a olhar para Vanja. Parecia um menino vestido com roupas grandes de mais para si. Empalideceu, disse que sim. Ulf reagiu de imediato. Para ele, isto era obviamente uma novidade.
– O que estás tu a dizer? – Os três adultos estavam agora a olhar para o rapaz de dezasseis anos, que empalidecera ainda mais.
– A ideia começou por ser do Roger. Ele é que recebia as encomendas. O Axel fazia as compras. Depois vendiam aquilo a um preço mais alto e dividiam os lucros.
Ulf olhou para o filho, com uma expressão séria.
– Tu estavas metido nisso?
O rapaz abanou logo a cabeça.
– Não, eu não queria ter nada a ver com o assunto. – O olhar de Johan era implorante, mas o pai manteve a severidade.
– Ouve, Johan. Eu compreendo que tu aches que precisas de proteger o Roger, mas tens de contar tudo o que sabes a mim e a estes agentes. – Johan avançara ao longo do pontão até ficar ao lado do pai. – Estás a compreender?
Johan disse-lhe que sim com um aceno de cabeça. Vanja decidiu prosseguir.
– Quando é que isso começou?
– No último Outono. O Roger falou com o Axel, e depois puseram o negócio em marcha. Ganharam bom dinheiro.
– O que correu mal? Porque é que o Roger denunciou o Axel?
– O Axel já não queria partilhar o dinheiro e começou a vender por sua conta. No fundo, ele não precisava mesmo do Roger. Podia receber as encomendas directamente.
– Então o Roger foi falar com o director?
– Sim.
– Que despediu o Axel Johansson.
– Sim, no próprio dia.
– O Axel não disse ao director que o Roger estava metido nisso desde o princípio?
– Não sei. Penso que o Roger pode ter contado pessoalmente ao senhor Groth. Pode ter-lhe dito que se envolvera, mas que mudara de ideias. Que já não queria fazer parte daquilo.
As últimas perguntas haviam sido feitas por Sebastian. Ele quase conseguia ver Roger em pé diante do director pedante, a representar o papel do aluno arrependido e consciencioso. Acusando o homem que o traíra. Roger era mais calculista do que Sebastian pensava. Continuava a revelar novas facetas do seu carácter. Era intrigante.
– Porque é que o Roger começou por se meter nessas vendas?
– Precisava do dinheiro.
Ulf sentiu-se obrigado a entrar na conversa, presumivelmente porque precisava de chamar a atenção para o facto de isto ser algo que afectava a sua família.
– Para quê?
– Tu não vias como era o aspecto dele, pai? Como se vestia quando entrou para a escola? Não queria de maneira nenhuma voltar a ser gozado.
Houve um curto silêncio, e depois Johan prosseguiu.
– Vocês não entendem? Ele só queria ser aceite. Fazia o que fosse preciso para que o aceitassem.
Roger, que inicialmente era uma figura anónima, ganhava forma. Os aspectos ocultos do seu carácter começavam a vir à luz e, com eles, os seus motivos. Era ao mesmo tempo triste e humano. Um jovem que queria ser outra pessoa. Outra coisa. A qualquer preço. Vanja reconheceu a situação do tempo em que era uma simples agente de uniforme. Mas surpreendeu-a que esse esforço pudesse conduzir à violência e até ao homicídio. Pegou nas folhas impressas com as mensagens de texto do telemóvel de Roger que Billy lhe dera e passou-as a Johan.
– Sabes quem lhe poderá ter enviado isto?
Johan abanou a cabeça.
– Não faço ideia.
– Não reconheces o número?
– Não.
– Tens a certeza? Pode ser realmente importante.
Johan acenou com a cabeça para mostrar que compreendera, mas não sabia. Ulf pôs o braço à volta do filho.
– Creio que tu e o Roger começaram a perder um pouco o contacto durante este último período lectivo, não foi?
Johan disse que sim.
– Porquê? – perguntou Vanja.
– Oh, já se sabe como é, nesta idade os rapazes desenvolvem-se de maneira diferente. – Ulf encolheu os ombros como se quisesse indicar que essa era uma lei natural e que ninguém podia evitá-lo.
Vanja não desistiu. Desta vez, fez questão de se voltar para Johan.
– Havia alguma razão para já não passarem tanto tempo juntos?
Johan hesitou, pensou no assunto, e depois também ele encolheu os ombros.
– Ele mudou.
– De que maneira?
– Não sei... No fundo só se interessava por dinheiro e sexo.
– Sexo?
Johan disse que sim.
– Andava sempre a falar disso. Eu não gostava.
Ulf abraçou o filho. Clássico, pensou Sebastian. A maioria dos pais sente-se obrigada a proteger os filhos logo que se menciona sexo, sobretudo para benefício de quem possa estar a observá-los. Para mostrarem a todos os outros que naquela família as crianças são protegidas do lado animalesco das coisas, de tudo o que for sujo. Se Ulf soubesse o que a mulher dele e Sebastian tinham estado a fazer na noite anterior enquanto ele tremia de frio dentro de uma tenda... Por outro lado, provavelmente isso teria destruído qualquer possibilidade de um inquérito bem-sucedido.
Falaram com Johan durante mais alguns minutos, tentando encontrar novas pistas para o verdadeiro carácter de Roger, mas Johan não parecia ter muito mais a dizer. Estava exausto – ambos se aperceberam – e tinham obtido da sua parte mais do que esperavam. Por fim agradeceram a Ulf e a Johan e dirigiram-se para o carro. Sebastian olhou para trás, para o pai e o filho, que estavam à beira da água a observá-los.
Um pai amoroso e protector.
O filho dele.
Não havia espaço para mais ninguém.
Talvez não tivesse sido Sebastian que seduzira Beatrice.
Talvez tivesse sido o contrário.
Quando regressavam de Lilla Blacken, Vanja decidiu telefonar para casa de Peter Westin, na Rotevägen. A sua irritação por ele não ter respondido às suas chamadas fora substituída por uma sensação de inquietude. Afinal, já tinha decorrido uma manhã inteira. À medida que se iam aproximando do endereço, tornou-se evidente que a ansiedade dela era justificada, pois o carro começou a encher-se de um cheiro acre a fumo. Através da janela lateral avistaram uma ténue coluna de fumo cinzento-escuro erguendo-se acima das árvores e das casas. Ela abrandou e virou à esquerda para uma rua transversal, e depois tornou a virar à esquerda para a Rotevägen. Era uma rua residencial orlada de castanheiros, mas a paz e a tranquilidade haviam sido destruídas pelo grande número de camiões dos bombeiros que bloqueavam a estrada mais adiante. Luzes azuis a cintilar. Bombeiros caminhando para trás e para diante com equipamento, sem qualquer noção de urgência. Grupos de espectadores curiosos atrás de um cordão. Até Sebastian acordou.
– É para ali que nós vamos?
– Julgo que sim.
Saíram do carro e caminharam rapidamente até à casa. Quanto mais se aproximavam, pior aspecto tinha o cenário. Faltavam grandes pedaços da parede exterior num dos lados do piso de cima, e no interior avistaram os restos calcinados do mobiliário e dos restantes bens. Água negra e fedorenta escorria pela rua para dentro das sarjetas. Quanto mais se aproximavam, mais pungente se tornava o cheiro. Um pequeno grupo de bombeiros ocupava-se do rescaldo. Sobre a vedação cinzenta – que presumivelmente era da mesma cor da casa antes do incêndio – estava um letreiro metálico que ostentava o número 12. Era a casa de Peter Westin.
Vanja mostrou a sua identificação e, ao fim de alguns minutos, conseguiu falar com Sundstedt, o oficial no comando. Era um homem dos seus cinquenta anos que tinha bigode e envergava um colete fluorescente em cujas costas estavam escritas as palavras «Chefe dos Bombeiros». Era um homem calmo com pronúncia de Norrland. Ficou surpreendido por ver a polícia à paisana já no local. Acabara de telefonar para participar que tinham encontrado um cadáver no piso superior. Vanja ficou hirta.
– Poderá ser o homem que morava aqui? Peter Westin? – perguntou.
– Não sabemos, mas é muito provável; o corpo foi encontrado no que restava do quarto – disse Sundstedt, e continuou a explicar que um dos elementos da sua equipa reparara num pé calcinado a sair de baixo do tecto que ruíra. Tentaram remover o corpo logo que puderam, mas como ainda estavam a proceder ao rescaldo e o risco de colapso estrutural era elevado, isso poderia demorar várias horas.
O incêndio tinha começado ao início da manhã, e a chamada para o serviço de bombeiros fora feita às 4h17 pelo vizinho da casa ao lado. Quando chegaram, grande parte do piso superior já estava a arder, e tiveram de concentrar-se em impedir que o incêndio alastrasse às propriedades limítrofes.
– Suspeitam de fogo posto?
– Ainda é cedo para dizer, mas o foco do incêndio e o seu rápido alastramento parecem sugerir ser esse o caso.
Vanja olhou em redor. Sebastian tinha ido falar com alguns dos vizinhos que se encontravam por ali. Vanja pegou no telemóvel e ligou a Ursula; explicou-lhe a situação e pediu-lhe que fosse ali ter o mais depressa possível. Depois telefonou a Torkel para o informar, mas não obteve resposta. Deixou-lhe uma mensagem no voice mail.
Sebastian dirigia-se para ela. Fez-lhe um sinal na direcção dos vizinhos, com os quais estivera a falar.
– Alguns deles viram o Westin ao final da tarde de ontem, e têm a certeza de que se encontrava em casa à noite. Ele estava quase sempre em casa.
Olharam um para o outro.
– Parece-me que isto é coincidência a mais – disse Sebastian. – Até que ponto tem a certeza de que o Roger era um dos pacientes dele?
– Não tenho certeza nenhuma. Sei que ele foi lá uma ou duas vezes quando se mudou para aquela escola, a Beatrice disse-mo, mas quanto a saber se ele se encontrou recentemente com o Westin, não faço ideia. Tudo o que tenho são aquelas iniciais e os horários das quartas-feiras.
Sebastian aquiesceu e tocou-lhe no braço.
– Temos de descobrir. – Caminhou na direcção do carro. – Aquela escola é demasiado pequena para que alguém consiga guardar um segredo desses. Confie em mim, porque eu também andei lá.
Fizeram meia-volta com o carro e foram novamente ao Liceu Palmlövska. Este caso parecia estar sempre conduzi-los àquele lugar.
À superfície, era a escola perfeita.
Com rachas cada vez maiores a aparecerem na fachada.
Vanja telefonou a Billy e pediu-lhe que descobrisse tudo o que pudesse acerca de um Peter Westin, psicólogo, cujo domicílio era na rua Rotevägen, número 12. Ele prometeu tratar disso o mais depressa possível. Entretanto, Sebastian telefonou a Lena Eriksson para ver se ela sabia o que costumava fazer o seu filho em quartas-feiras alternadas pelas dez horas. Tal como Vanja suspeitara, Lena não sabia nada acerca de um psicólogo educacional. Sebastian agradeceu-lhe e terminou a chamada. Vanja olhou para ele. Percebeu que durante as últimas horas se esquecera de que tinha prometido a si mesma que não gostaria de Sebastian. Na verdade, em situações críticas, ele era uma bela caixa de ressonância. Não conseguiu reprimir um sorriso. Naturalmente, Sebastian aproveitou a oportunidade para interpretar isso mal.
– Está a namoriscar comigo?
– O quê? Não!
– Bom, está aí sentada a olhar para mim como uma adolescente apaixonada.
– Vá-se foder.
– Não é vergonha nenhuma; é esse o efeito que eu causo nas mulheres. – Sebastian ofereceu-lhe um sorriso ridiculamente autoconfiante. Ela desviou o olhar e pisou o acelerador.
Desta vez, ele tivera mesmo a última palavra.
– Tens um momento? – Pelo tom da sua voz, Haraldsson compreendeu imediatamente que na verdade Hanser queria dizer: Quero falar contigo. Já! Deveras. Quando levantou os olhos do seu trabalho viu-a à sua frente com os braços cruzados, e a expressão dela era severa quando lhe indicou a porta do seu gabinete. Mas as coisas não seriam assim tão fáceis. Fosse qual fosse o motivo, Haraldsson não tinha qualquer intenção de permitir que ela fizesse o seu jogo como bem quisesse.
– Não podemos tratar disso aqui? Ando a tentar poupar o meu pé o mais possível.
Hanser olhou em volta, para o open space do escritório, como se pretendesse determinar quantos dos colegas sentados nas proximidades de Haraldsson conseguiam ouvir a conversa, e depois, com um suspiro e um movimento que indicava irritação, puxou uma cadeira de uma secretária que estava vaga. Sentou-se em frente de Haraldsson, inclinou-se para ele, e baixou a voz.
– Estiveste à porta do prédio onde mora o Axel Johansson ontem à noite?
– Não.
Puro reflexo.
Negação.
Nenhum processo de pensamento lógico.
Estaria ela a perguntar por já saber que ele tinha lá estado? Provavelmente. Nesse caso um «sim» teria sido melhor, e depois ele poderia ter tentado arranjar um bom motivo para lá ter estado, se houvesse algum problema. Provavelmente havia, porque de outro modo não teria vindo falar com ele, pois não? Ou suspeitaria simplesmente que ele tinha lá estado? Nesse caso a negação funcionaria. Talvez ela quisesse apenas elogiar a sua iniciativa. Não era muito provável. O espírito de Haraldsson estava num turbilhão. Teve a sensação de que isto iria ser um exercício de controlo de danos, e de que teria sido melhor responder «sim» à primeira pergunta. Acabara o tempo.
– Tens a certeza de que não eras tu?
Agora era demasiado tarde para modificar a sua resposta, mas não precisava de confirmar nem de negar o que já dissera.
– Porquê?
– Recebi um telefonema de uma Desiré Holmin. Mora no mesmo complexo de edifícios do Axel Johansson. Diz que o viu na noite passada, e que alguém que estava à espera dele dentro de um carro começou a persegui-lo quando chegou a casa.
– E tu pensas que era eu?
– Serias?
Haraldsson pensou freneticamente. Holmin. Holmin... Não era aquela velhota cinzenta do mesmo piso de Johansson? Sim, era. Tinha-se mostrado muito interessada quando lhe batera à porta e conversara com ela. Até pensara que nunca mais se conseguia ir embora. Era-lhe fácil imaginar que fosse o tipo de pessoa que ficava sentada de olho nas coisas. Para prestar assistência à polícia. Para trazer alguma excitação à sua monótona e cinzenta vida de reformada. Por outro lado, estava escuro, a velhota devia estar cansada e porventura deveria ver um pouco mal. Talvez fosse ligeiramente senil. Ele podia conseguir safar-se desta situação.
– Não, não era eu.
Hanser ficou sentada sem dizer nada, a examinar o rosto dele. Não sem um certo grau de satisfação. Haraldsson não sabia, mas acabara de dar um sólido início à abertura da sua própria sepultura. Ela não disse uma palavra, convencida de que ele continuaria a enterrar-se.
Haraldsson começava a sentir-se desconfortável. Detestava a maneira como ela estava a olhá-lo. Detestava o silêncio, que proclamava claramente que não acreditava em si. E não havia um sorrisinho a bailar nos lábios dela? Decidiu jogar logo o seu trunfo.
– Como poderia eu perseguir alguém, se mal consigo ir à casa de banho sem coxear?
– Por causa do teu pé?
– Exactamente.
Hanser aquiesceu. Haraldsson sorriu-lhe. Ora aí tens, está resolvido. Hanser haveria de perceber que tal sugestão era impossível e de o deixar em paz. Para sua surpresa ela permaneceu onde estava, ainda inclinada para diante.
– Que tipo de carro conduzes?
– Porquê?
– A senhora Holmin disse que o homem que perseguiu Johansson saiu de um Toyota verde.
Pronto, pensou Haraldsson, estava na altura de jogar as cartas mais fracas que tinha na mão: escuro, cansada, má visão, e senil. A que distância do edifício estava ele? Vinte ou trinta metros. Pelo menos. O seu rosto desfez-se num sorriso desarmante.
– Não é que eu queira desacreditar a senhora Holmin, mas se estamos a falar da noite passada presumo que estava escuro, por isso como poderia ela ter visto de que cor era o carro? E que idade tem; quase oitenta? Já estive a falar com ela, e devo dizer que não me pareceu merecer muita confiança. Ficaria surpreendido se ela conseguisse distinguir entre duas marcas de automóveis.
– Estava estacionado por baixo de um candeeiro de rua e ela tinha um binóculo.
Hanser recostou-se na cadeira, com os olhos fixos em Haraldsson. Praticamente conseguia ver o cérebro dele a funcionar. Como num desenho animado, com as engrenagens a girar cada vez mais depressa. Ficou um pouco surpreendida; de certeza que ele conseguia perceber onde queria ela chegar.
– Bom, dificilmente serei a única pessoa que tem um Toyota verde. Caso fosse esse o carro.
Obviamente que não, pensou Hanser. Não apenas Haraldsson continuava a cavar, como já saltara para dentro da sepultura e começara a tapá-la.
– Ela tomou nota da matrícula. E tu és a única pessoa que tem aquele número.
Haraldsson ficou sem palavras. Não conseguia dizer nada. A sua cabeça estava vazia. Hanser debruçou-se sobre a secretária.
– Agora o Axel Johansson sabe que andamos à procura dele, e provavelmente esforçar-se-á ainda mais por se manter longe.
Haraldsson tentou responder, mas as palavras não lhe saíam. Nada. As suas cordas vocais recusavam-se a cooperar.
– Terei de informar o Torkel Höglund e a sua equipa acerca disto. A investigação é deles. Estou a dizer-te isto o mais claramente possível, porque parece que ainda não entendeste a ideia.
Hanser levantou-se e baixou os olhos para Haraldsson, cujo olhar deambulava pelo espaço. Se não tivesse sido um erro de juízo tão grosseiro e, para ser franca, se não tivesse sido o Haraldsson, teria sentido alguma pena dele.
– Também vamos ter de discutir onde estavas tu quando deverias estar em Listakärr. A Desiré Holmin diz que o homem que perseguiu o Axel Johansson não coxeava. Antes pelo contrário, na verdade. Corria muito depressa.
Hanser virou-lhe as costas e foi-se embora. Haraldsson ficou a vê-la partir, com o rosto inexpressivo. Como tinha acontecido aquilo? Ele devia ter conseguido safar-se. O controlo de danos era o pior dos cenários. Isto nem sequer estava no mapa. O discurso do superintendente-chefe estava muito, muito longe. Haraldsson sentia que a espiral descendente que era a sua vida estava a rodopiar cada vez mais depressa, a tornar-se cada vez mais íngreme. E ele estava a cair. Desamparadamente.
Ursula já conhecia Sundstedt. Durante uns tempos ele pertencera à Comissão de Investigação de Acidentes da Suécia, antes de regressar à sua profissão de bombeiro. Mais tarde, quando ela estava a trabalhar no SKL, tinham-se encontrado durante uma investigação complexa que envolvia um avião privado que se havia despenhado em Sörmland; suspeitava-se que o piloto fora envenenado pela mulher. Tinham-se dado bem desde o início. Sundstedt era exactamente como Ursula: não tinha medo de se meter nas coisas. Não aceitava tretas. Avistara-a logo que ela saíra do carro e fizera-lhe um aceno amigável.
– Ena, estamos muito honrados com a tua presença!
– É muito amável da tua parte!
Um abraço caloroso, uma breve troca de palavras sobre desde há quanto tempo não se viam. Depois deu-lhe um capacete e conduziu-a até à casa em ruínas.
– Então continuas na Riksmord?
– Sim.
– Estás cá por causa daquele rapaz que foi assassinado?
Ursula confirmou. Sundstedt acenou na direcção da casa, que ainda fumegava.
– Achas que há alguma ligação?
– Não sabemos. Removeram o corpo?
Ele abanou a cabeça e fê-la contornar a casa. Abriu a porta do seu carro, tirou de lá um grande casacão à prova de fogo, e entregou-lho.
– Veste isto. Já agora mostro-te onde está o corpo; quando não te envolves nas coisas desde o início começas a gemer.
– Eu não gemo. Queixo-me. Com bons motivos. Há uma diferença.
Sorriram um para o outro e prosseguiram em direcção à casa. Entraram pela abertura onde antes estivera a porta, a qual jazia agora no chão num dos lados do vestíbulo. O mobiliário da cozinha não tinha sido atingido pelas chamas e parecia estar somente à espera que alguém se sentasse para almoçar; o soalho, porém, estava coberto por uma água imunda e cheia de fuligem que continuava a pingar do tecto e a escorrer pelas paredes. Subiram as escadas, que também estavam escorregadias por causa da água. O cheiro acre tornava-se mais forte, causando picadas no nariz de Ursula e fazendo os seus olhos lacrimejarem. Apesar de Ursula já ter visto uma boa quantidade de incêndios, ficava sempre fascinada. O fogo transformava os objectos quotidianos de uma maneira terrível e quase sedutora. Entre os destroços estava uma poltrona intacta. Atrás dela, onde existia uma parede exterior, avistava-se o jardim e a casa do lado. A efemeridade da vida confrontava-se com os resquícios da normalidade. Sundstedt abrandou o passo e começou a avançar com mais cautela. Acenou a Ursula para que esta ficasse onde estava. O chão rangeu ameaçadoramente sob o peso dele. Apontou para uma coberta branca que estava no chão ao lado do que restava da cama. Tinham desabado partes do telhado, e conseguia-se ver o céu por cima deles.
– Aí está o corpo. Temos de escorar o chão antes de podermos retirá-lo.
Ursula acenou em sinal de concordância, agachou-se, e sacou da sua câmara. Sundstedt sabia o que ela pretendia fazer, e sem dizer uma palavra baixou-se, agarrou a ponta da coberta e retirou-a. Por baixo dela havia barrotes de madeira calcinados, juntamente com telhas partidas e telhas inteiras da parte do telhado que ruíra. Mas sobressaía no meio do entulho algo que era claramente um pé. Estava enegrecido pelo incêndio, mas a carne não ficara queimada. Ursula tirou uma série de fotografias, começando pelos ângulos mais abertos. Quando se deslocou cautelosamente para fotografar mais de perto, ganhou consciência de um aroma mais adocicado que perpassava através do pungente odor do incêndio, como uma combinação de casa mortuária e de fogo florestal. Na sua profissão, era possível habituar-se a muitas coisas, mas os cheiros eram sempre o mais difícil.
Engoliu em seco.
– A avaliar pelo tamanho do pé, deve ser um homem adulto – disse Sundstedt. – Queres que te ajude a recolher uma amostra de tecidos? Há umas partes moles ao redor do tornozelo.
– Eu posso fazer isso mais tarde, se for necessário. De momento era-me mais útil ter alguma coisa para comparar com os registos dentários.
– Vou demorar algumas horas até conseguir mover o corpo.
Ursula fez um aceno de concordância.
– Está bem, se eu não estiver aqui nessa altura, telefona-me. – Tirou de um dos bolsos o seu cartão e estendeu-o a Sundstedt. Ele guardou-o, voltou a pôr a coberta sobre o corpo, e levantou-se, tal como Ursula.
Juntos, começaram a investigar a causa do fogo. Ursula não era perita nessa matéria, mas até ela conseguia ver que vários pormenores no quarto indicavam que o fogo se propagara com extrema rapidez. Demasiada rapidez para que fosse natural.
Rolf Lemmel estava devastado. Um amigo íntimo telefonara a informá-lo do incêndio em casa de Peter. No entanto, não sabia que tinham encontrado um corpo no quarto, e quando Vanja lhe disse, ficou mais pálido ainda. Deixou-se cair no sofá da sala de espera com a cabeça entre as mãos.
– É o Peter?
– Ainda não sabemos, mas é uma forte possibilidade. – O corpo de Lemmel contorceu-se, como se não soubesse para onde havia de ir. A respiração dele era pesada e esforçada. Sebastian foi buscar-lhe um copo de água. Rolf bebeu um pouco, e isso pareceu acalmá-lo um pouco. Olhou para os dois agentes. Percebeu que a mulher andara à procura de Peter ao início do dia, quando ele ainda acreditava que o colega estava meramente atrasado. Nessa altura achara-a bastante irritante. Agora sentia que não tinha compreendido a seriedade da visita.
– Porque é que veio cá hoje de manhã? Tinha alguma coisa a ver com isto? – perguntou ele, fixando intensamente os olhos de Vanja.
– Não sabemos. Eu queria saber se uma certa pessoa visitava o Peter como seu paciente.
– Quem?
– Chama-se Roger Eriksson. Era um rapaz de dezasseis anos do Liceu Palmlövska.
Vanja procurou a fotografia de Roger, mas não era necessário.
– O rapaz que foi assassinado?
– Exactamente.
Contudo, ela passou-lhe a fotografia, só por precaução. Ele olhou-a e ficou a matutar durante algum tempo; queria ter a certeza.
– Não sei. Quero dizer, o Peter tinha um acordo de aconselhamento com a escola, por isso vinham cá muitos miúdos. É possível.
– Em quartas-feiras alternadas às dez da manhã durante este período lectivo? Ele estava cá a essa hora?
Lemmel abanou a cabeça.
– Eu só trabalho aqui três dias por semana; às quartas e quintas-feiras estou no hospital, por isso não sei. Mas podemos ir verificar na sala do Peter. O caderno de apontamentos deve lá estar.
– Não têm uma recepcionista? – perguntou Sebastian enquanto passavam pelas portas de vidro e penetravam num pequeno corredor.
– Não, nós conseguimos tratar das coisas sozinhos; seria uma despesa desnecessária. – Lemmel parou na segunda porta à direita e tirou as suas chaves. Pareceu um pouco surpreendido quando tentou fazer girar a chave e a porta se abriu de repente.
– Que estranho...
Sebastian empurrou a porta para trás. Os olhos deles depararam com uma cena de completo caos, com ficheiros e papéis espalhados por todo o lado. Gavetas retiradas do sítio. Ficheiros despejados para o chão. Vidros partidos. Rolf mostrou-se atónito. Vanja calçou rapidamente um par de luvas de látex.
– Deixe-se ficar onde está. Sebastian, telefona à Ursula e diz-lhe que precisamos dela aqui o mais depressa possível.
– Julgo que era melhor seres tu a telefonar-lhe. – Sebastian tentou um sorriso.
– Diz-lhe do que se trata. Ela pode detestar-te, mas é uma profissional.
Vanja voltou-se para Lemmel.
– Ainda não tinha vindo aqui hoje?
Ele abanou a cabeça. Vanja olhou à sua volta.
– Consegue ver o caderno do Peter nalgum sítio?
Lemmel continuava em choque e a resposta dele tardou a chegar.
– Não, é um grande livro verde com capa de couro.
Vanja aquiesceu e começou a procurar cautelosamente entre os papéis espalhados. Não era uma tarefa fácil, porque ela não queria remexer muito e correr o risco de destruir quaisquer provas forenses. Ao mesmo tempo julgava ser da maior importância descobrir se havia alguma ligação entre Peter Westin e Roger Eriksson. Porque se houvesse, isso significaria que a investigação sofrera uma viragem inesperada.
Ao fim de dez minutos Vanja desistiu. Pelo que conseguia ver, não havia qualquer caderno de apontamentos na sala. Mas não podia revirar tudo e esquadrinhar todo o local. Ursula tinha-lhe telefonado para dizer que estaria ocupada na rua Rotevägen durante as próximas horas, mas falara com Hanser, a qual lhe prometera que a polícia de Västerås enviaria para o local o seu melhor técnico forense. Ursula não gostava disso, mas até que ponto seria difícil guardar uma sala? Vanja trancou a porta com a chave de Lemmel e decidiu ter outra conversa com ele. Estava de novo sentado no sofá, a falar com alguém ao telefone. Os seus olhos estavam cheios de lágrimas, o seu tom de voz era controlado mas repleto de mágoa. Avistou Vanja e tentou recompor-se.
– Tenho de ir, querida. A polícia quer falar comigo outra vez.
– Vem um técnico a caminho. Ninguém pode entrar naquela sala. Posso ficar com as suas chaves?
Ele disse-lhe que sim. Vanja olhou à sua volta.
– Onde está o meu colega?
– Ele disse que ia verificar qualquer coisa. – Vanja suspirou e pegou no telemóvel, antes de perceber que não tinha o número de Sebastian. Nunca esperara precisar dele.
Sebastian entrou na cafetaria do Liceu Palmlövska. Nos seus tempos de aluno não havia no piso térreo qualquer instalação calorosa e confortável que se assemelhasse a um café. Naquela época aquele espaço era uma sala de estudo para quem quisesse fazer trabalhos de casa adicionais. As paredes não eram brancas e dotadas de pequenos focos de luz. Nem se lembrava de cadeirões de couro preto, de mesas baixas de madeira clara, ou de pequenos altifalantes montados na parede a emitirem música ambiente. Tanto quanto se lembrava, as paredes estavam forradas com estantes de livros e havia umas mesas compridas com cadeiras duras. Nada mais.
Sebastian tinha-se fartado de fazer o papel de segundo violino no consultório do psicólogo. Esforçara-se durante todo o dia para se adaptar, para não se exceder, para jogar em equipa e tudo isso. Não tinha sido particularmente difícil, tudo o que tivera de fazer fora seguir ao sabor das circunstâncias e manter a boca fechada na maioria dos casos. Mas era aborrecido; era tão aborrecido que lhe destruía a alma e atordoava o espírito, foda-se. Embora tivesse conseguido marcar alguns pontos sobre Vanja dentro do carro, não fora suficientemente longe. Era como existir num nível de subsistência, e Sebastian não queria essa situação.
Enquanto via Vanja deslocar cuidadosamente papéis no meio do caos da sala de Peter Westin, evitando estragar as coisas para Ursula mais tarde, ele decidira actuar a solo por algum tempo. Havia informação em toda a parte. Alguém sabia alguma coisa acerca de tudo. Era apenas uma questão de se saber a quem perguntar.
E era por isso que estava ali, em pé, na cafetaria, olhando ao seu redor. Avistou Lisa Hansson sentada a curta distância e conversando com as amigas, com umas chávenas de café com leite vazias diante delas. Foi até lá. Ela não se mostrou propriamente contente ao vê-lo. Mas havia aceitação no seu olhar. Isso teria de bastar.
– Olá, Lisa. Podes dispensar-me dois segundos?
As outras raparigas olharam-no com surpresa, mas ele nem esperou por uma resposta.
– Dava-me jeito a tua ajuda.
Quando, vinte minutos depois, Sebastian regressou ao consultório de psicologia de Westin & Lemmel, tinha recebido confirmação, da parte de duas fontes distintas, de que Roger Eriksson ia encontrar-se com Peter Westin em quartas-feiras alternadas às dez da manhã. Tal como sucede em todos os grupos claramente definidos com forte controlo interno (e existem poucos grupos que possuam um sistema mais eficaz de verificação mútua do que os adolescentes), teria sido impossível que Roger fosse falar com um psicólogo sem que ninguém o soubesse. Lisa não sabia com quem ia Roger encontrar-se em quartas-feiras alternadas, mas estava familiarizada com as hierarquias dentro da escola, e fora uma grande ajuda para encontrar alguém que soubesse. Uma aluna do segundo ano tinha-o visto, e uma outra rapariga da turma de Roger confirmou-o. Tinham-se encontrado na sala de espera em duas ocasiões.
Vanja estava ao telefone. Olhou para Sebastian com uma expressão azeda enquanto este se passeava descontraidamente pela sala. Ele sorriu-lhe. Reparou num técnico que estava a colocar pó na ombreira da porta da sala de Westin para procurar impressões digitais. Tinha sincronizado aquilo perfeitamente. Esperou que Vanja terminasse a sua conversa.
– Como vai isso? Já encontraram algumas provas forenses?
– Ainda não. Onde esteve?
– Fui fazer um trabalhinho. Queria a confirmação de que o Roger vinha aqui em quartas-feiras alternadas às dez horas. De facto vinha.
– Quem lho disse?
Sebastian deu-lhe os nomes das duas alunas; até tinha apontado num papel o que elas lhe haviam dito para lhe entregar. Sabia que isso a irritaria ainda mais.
– Se quiser telefone-lhes e confirme.
Ela olhou para o papel.
– Vou fazer isso. Mais tarde. Agora vamos voltar para a esquadra. O Billy encontrou qualquer coisa.
Torkel esperava que fosse algo de bom. Precisava de progressos, alguma coisa que o fizesse sorrir. Na verdade, estava disposto a contentar-se com qualquer coisa que não estivesse a ir pela pia abaixo. Acabara de se reunir com Hanser. Após uma conversa bem-educada, nos moldes de um «obrigado pelo jantar» ou de um «foi um prazer», ela tinha-lhe falado de Thomas Haraldsson. Não interessava até que ponto os seus esforços tinham sido bem-intencionados. Aquele idiota incompetente provavelmente conseguira fazer com que o único suspeito de que eles dispunham até agora passasse à clandestinidade. Isso significava que as informações que haviam obtido a partir das listas de telefonemas e das mensagens de texto recuperadas eram agora praticamente inúteis. Para cúmulo, parecia que o psicólogo de Roger tinha sido assassinado. Bom, estava morto, era o que sabiam. Torkel já fazia aquele trabalho há demasiado tempo para pensar que se tratasse apenas de uma infeliz coincidência.
Portanto, tinham agora um assassino reincidente. Era uma fraca consolação que Sebastian não acreditasse que o primeiro crime tinha sido planeado. O segundo fora-o de certeza. Provavelmente, Westin tinha morrido por causa de algo que sabia a respeito de Roger Eriksson. Torkel praguejou entredentes. Porque não tinham eles sido mais lestos? Porque não tinham lá chegado antes? Nada lhes corria de feição nesta maldita investigação. A imprensa não tardaria a estabelecer a ligação entre aquelas mortes; era mesmo do que eles estavam a precisar para prosseguirem a história.
E Ursula estava zangada com ele.
Mikael vinha a caminho.
Empurrou a porta da sala de conferências. Ursula ainda estava na cena do crime, mas os outros já tinham chegado. Billy havia-os convocado a todos. Torkel sentou-se e fez um aceno a Billy para que começasse. O projector do tecto zumbiu enquanto se acendia, e Torkel presumiu que iriam ver mais imagens das câmaras. Correcto. Roger surgia a caminhar pelo lado direito.
– Às nove e vinte e nove Roger Eriksson estava aqui. – Billy assinalou com um círculo uma rua no mapa da parede. – A cerca de um quilómetro e meio de Gustavsborgsgatan. Como podem ver, atravessa a estrada e desaparece. Quero dizer, ele realmente desaparece. – Billy fez retroceder o vídeo e imobilizou a imagem pouco antes de Roger desaparecer atrás de um carro estacionado. – Ele vira para Spränggränd, um beco sem saída que vai dar a uns caminhos pedestres que seguem em três direcções diferentes. – Billy apontou no mapa com a sua caneta. – Verifiquei todas as câmaras a norte e a oeste de Spränggränd. Não há muitas. O Roger não aparece em nenhuma delas, por isso verifiquei se teria voltado para trás e regressado. Nada. Já vi mais ruas do que qualquer pessoa precisa de ver durante toda a vida. Esta é a última imagem do Roger Eriksson.
Todos olharam para a imagem imobilizada na parede. Torkel já estava de mau humor e sentiu que ele piorava vários graus. Ou que outros maus humores se juntavam a esse. Em todo o caso, estava definitivamente a piorar.
– Se pensarmos que ele seguiu em frente, dirigindo-se para norte, o que existe aí? – perguntou Vanja. Torkel sentiu-se grato por ainda haver alguém na equipa que tentava extrair o máximo possível de nada.
– Do outro lado da E18 fica Vallby, que consiste sobretudo em grandes áreas de complexos de apartamentos.
– Ele tem alguma ligação com essa parte da cidade? Um colega que more lá, alguma coisa assim?
Billy abanou a cabeça. Sebastian levantou-se e olhou para o mapa.
– O que é isto? – Apontou para um grande edifício a cerca de vinte metros do final de Spränggränd.
– Um motel.
Sebastian começou a deambular pela sala, falando num tom de voz calmo e razoável, como se falasse para si próprio.
– O Roger e a Lisa já há algum tempo que fingem que têm uma relação. A Lisa disse que o Roger também andava com outra pessoa, mas não sabia quem. Ele era extremamente reservado acerca disso. – Sebastian regressou ao mapa e colocou o seu dedo sobre o motel.
– Segundo Johan, o Roger falava imenso sobre sexo. Um motel é perfeito para esse tipo de encontro.
O olhar dele percorreu os outros três.
– Sim, estou a falar por experiência própria. – Lançou a Vanja um olhar expressivo. – Não desse motel específico, mas nós ainda não acabámos. – Vanja fitou-o com um olhar cansado. A segunda insinuação sexual. Se houvesse mais alguma, faria com que o expulsassem desta investigação antes que ele percebesse o que lhe acontecera. Mas não lhe disse nada; porquê avisá-lo? Torkel cruzou os braços e olhou para Sebastian, com uma expressão de cepticismo.
– A ideia de ter um encontro num motel não é um pouco... avançada quando se tem só dezasseis anos? Não se costuma ir a casa de alguém quando se tem essa idade?
– Talvez isso não fosse possível, por vários motivos.
Ninguém disse nada. Os mesmos olhares cépticos por parte de Billy e de Vanja. Sebastian abriu os braços.
– Vá lá! Temos um miúdo de dezasseis anos cheio de tesão e um motel. Com certeza que vale a pena ir verificar, não acham?
Vanja pôs-se em pé.
– Billy.
Billy fez-lhe um aceno de concordância e saíram da sala juntos.
O Motel Económico de Edin havia sido construído nos anos 1960, e tinha um aspecto sebento e desleixado. Estavam apenas três carros no parque de estacionamento. O sítio era completamente inspirado pela América e consistia em dois pisos compridos com uns lanços de escadas no exterior, para que cada quarto tivesse a sua entrada com acesso directo ao estacionamento. No centro do piso térreo havia uma pequena área de recepção com um letreiro de néon a luzir do lado de fora: temos vagas. Billy e Vanja tiveram a sensação de que não era desligado há muito tempo. Caso se quisesse um encontro com alguém pela calada, este era o sítio perfeito.
Entraram através das duplas portas de vidro, que ostentavam um aviso escrito à mão: NÃO ACEITAMOS AMERICAN EXPRESS. Estava bastante escuro dentro da recepção, que consistia num pequeno balcão de madeira escura, uma alcatifa azul-escura muito suja, e dois cadeirões ao lado de uma mesa redonda. A sala era opressiva e estava cheia de fumo; a pequena ventoinha que zunia na ponta do balcão não tinha a menor possiblidade de causar qualquer impacto na atmosfera. Atrás do balcão estava sentada uma mulher de cerca de cinquenta e cinco anos com um longo cabelo louro, que provavelmente era pintado. Estava a ler uma daquelas revistas baratas de mexericos que são editadas com o máximo possível de fotografias e muito poucas palavras. Ao seu lado encontrava-se a última edição do jornal vespertino, o Aftonbladet, aberto num artigo acerca de Roger. Vanja tinha passado os olhos por ele anteriormente. Nada de novo, a não ser uma entrevista com o director do Liceu Palmlövska em que este declarava como a sua escola era proactiva nos esforços para erradicar a violência e o isolamento, e como Roger encontrara ali um segundo lar, como ele dizia. O catálogo de mentiras que ele propagava tinha deixado Vanja quase doente. A mulher levantou os olhos para os recém-chegados.
– Olá, em que posso ajudar-vos?
– Billy sorriu-lhe.
– Esteve de serviço na passada sexta-feira?
– Porquê?
– Somos da polícia.
Billy e Vanja mostraram-lhe a identificação e ela fez um aceno de concordância, como quem pede desculpa. Vanja tirou uma fotografia de Roger e colocou-a por baixo do candeeiro que a mulher tinha à sua frente, para que ela pudesse vê-la devidamente.
– Reconhece este rapaz?
– Sim, da imprensa. – A mulher tocou no jornal aberto. – Todos os dias há qualquer coisa acerca dele.
– Mas não o reconhece de cá?
– Não; devia reconhecer?
– Pensamos que ele poderá ter estado aqui na passada sexta-feira. Pouco antes das dez.
A mulher atrás do balcão abanou a cabeça.
– Mas é claro que nós não vemos todos os hóspedes; normalmente só a pessoa que paga. Quero dizer, ele podia ter estado num dos quartos com alguém.
– Ele esteve nalgum dos quartos?
– Tanto quanto sei, não. Estou só a dizer que podia ter estado.
– Gostávamos de saber um pouco mais sobre os seus hóspedes nessa noite.
Ao princípio a expressão da mulher foi de recusa, mas pouco depois deslocou-se até ao seu computador, que era demasiado antigo. Tinha pelo menos oito anos, reparou Billy. Talvez mais. Uma antiguidade. A mulher começou a bater no teclado amarelecido.
– Tivemos nove quartos ocupados, entre sexta-feira e sábado.
– Todos ocupados por volta das nove e meia?
– Da noite?
Billy disse-lhe que sim. A mulher continuou a verificar. Ao fim de algum tempo encontrou o que procurava.
– Não, apenas sete.
– Precisamos de toda a informação que tiver acerca desses hóspedes.
A testa da mulher franziu-se num esgar de ansiedade.
– Tenho quase a certeza de que precisam de algum tipo de autorização para isso, não é? De um mandado?
Vanja inclinou-se para a frente.
– Não creio.
Mas a mulher estava decidida. Não que ela soubesse muito acerca das leis sobre a privacidade e esse tipo de coisas, mas já tinha visto na televisão: a polícia precisava sempre de um mandado para tudo. Não tinha de dar informações sobre os seus clientes só porque eles lhe pediam. Tinha de defender os seus direitos.
– Precisam, sim. Vocês precisam de um mandado.
Vanja lançou-lhe um olhar de desagrado e, depois, fitou Billy.
– Está bem, nós voltamos cá com um mandado.
A mulher fez um aceno de satisfação. Ora aí têm. Tinha protegido as vidas privadas dos seus hóspedes, e, desse modo, toda a questão da liberdade de expressão.
Vanja prosseguiu: – E também traremos connosco um auditor quando voltarmos. E talvez alguém da Saúde e Segurança Alimentar; presumo que também é responsável pelo restaurante...
A expressão da mulher mostrava alguma incerteza quando olhou para Vanja. Eles não podiam fazer isso, ou podiam?
O homem olhou à sua volta e fez um aceno de cabeça antes de acrescentar num tom de voz sério: – E não esqueçamos o agente da prevenção de incêndios. Reparo que é preciso verificar uma série de saídas de emergência. E que parece muito disposta a proteger os seus hóspedes.
Dirigiram-se para a porta. A mulher atrás do balcão hesitou.
– Esperem aí. Não quero dificultar-vos as coisas. Eu dou-vos já uma cópia.
Fez um sorriso tolo para os dois agentes. O olhar dela recaiu no jornal aberto. De repente, reconheceu-o. Foi uma sensação estranha. Excitação e triunfo. Uma oportunidade de marcar alguns pontos extra. Talvez ela pudesse esquecer aquela coisa da Saúde e Segurança Alimentar. Voltou-se para a agente, que estava a regressar ao balcão.
– Ele esteve aqui na passada sexta-feira.
O outro agente veio até junto delas, com uma expressão de curiosidade no rosto.
– O quê?
– Ele esteve aqui na passada sexta-feira – repetiu, apontando para o jornal.
Vanja sobressaltou-se quando olhou para a fotografia.
CAPÍTULO DEZASSEIS
REINAVA NA SALA grande um ambiente de excitação que faltara antes. Faziam-se muitas perguntas, o caso tinha-se expandido em diferentes direcções, e agora eles haviam começado a estabelecer prioridades. As últimas notícias eram as de que a recepcionista do motel tinha a certeza de ter visto Ragnar Groth, o director do Liceu Palmlövska, no motel naquela noite de sexta-feira. E também não fora a primeira vez. Ele ia lá a intervalos regulares. Pagava sempre em dinheiro e dizia que se chamava Robert qualquer coisa. Naquela sexta-feira, ela tinha-o visto passar a caminho dos quartos da ala ocidental, mas não fora registar-se. Sempre julgara que ele ia lá encontrar-se com uma amante. Afinal, havia muita gente que usava o motel para esse tipo de coisas; podia não se ler nada sobre isso nos anúncios, mas era um facto. Sebastian regozijava-se consigo próprio; isto estava a ficar cada vez melhor. Pensar-se que o pedante Ragnar Groth poderia afinal ter alguns esqueletos dentro do armário. Torkel olhou para Vanja e para Billy com um gesto aprovador.
– Muito bem, bom trabalho. Isto significa que o director se transforma numa óbvia prioridade. Do meu ponto de vista, existe uma forte possibilidade de ele e o Roger terem estado no mesmo local na noite em que o Roger foi assassinado.
Billy pegou numa fotografia de Ragnar Groth e passou-a a Torkel.
– Pode afixar isto? Ainda não tive oportunidade de o ir verificar, mas o interessante é que tanto o Roger como o Peter Westin tinham ligações a Groth. O Westin tinha um acordo com a escola e o Roger era aluno.
Torkel afixou o retrato de Groth e desenhou umas setas apontando para Roger e para Westin.
– Talvez devêssemos fazer outra visita ao nosso director. Com algumas perguntas novas. – Torkel virou-se para os outros. Fez-se um breve silêncio.
– Penso que temos de proceder com cuidado, e reunir mais informação antes de o confrontarmos – disse Sebastian. – Afinal, até agora ele mostrou-se muito hábil a calar-se a respeito dos pormenores relevantes. Por isso, quanto mais nós soubermos antes de irmos ter com ele, mais difícil lhe será esquivar-se e pôr-se com evasivas.
Vanja fez um gesto de concordância. Também era essa a sua opinião.
– Sobretudo quando ainda sabemos tão pouco acerca do Peter Westin. Nem sequer sabemos ao certo se é ele a pessoa que estava no quarto nem como começou o incêndio – prosseguiu Vanja. – A Ursula continua em Rotevägen e prometeu um relatório preliminar logo que possível.
– E quanto ao assalto ao consultório do Westin? Obtivemos alguma coisa no local? – interrompeu Torkel.
– Não. Nem provas forenses nem caderno algum. Portanto, estamos num impasse quanto a isso. O colega do Westin disse que ele não era do tipo de tomar extensos apontamentos. Talvez uma palavra ocasional aqui e acolá, mas costumava assentar essas no caderno, que evidentemente desapareceu.
– Parece que não estamos a ter muita sorte – disse Billy com um suspiro.
– O que significa que temos de trabalhar com mais vigor – respondeu Torkel, olhando para a sua equipa com uma expressão de encorajamento. – A sorte advém do trabalho árduo, como sabemos. De momento assumimos que o assalto está relacionada com o incêndio, e que o caderno de Peter Westin foi roubado por causa do que continha. Até descobrirmos o contrário. Pedi à Hanser que organizasse inquéritos porta a porta nas proximidades do consultório de Westin, para descobrir se alguém viu qualquer coisa suspeita na noite passada.
– E quanto ao Axel Johansson? – Billy fez um gesto com a cabeça na direcção da fotografia do contínuo que estava afixada ao canto. – Alguma coisa sobre isso?
Torkel riu-se e abanou a cabeça.
– Ah, bom, o detective favorito de todos, Thomas Haraldsson, empreendeu uma pequena vigilância privada por lá.
– O que queres dizer?
– Por onde hei-de começar...
– Podias começar por admitir que eu tinha razão. Devíamos ter-nos livrado dele logo que o conhecemos no átrio – disse Vanja com um sorrisinho. Torkel aquiesceu.
– Não posso dizer o contrário, Vanja.
Uma agente de uniforme bateu à porta, enfiou a cabeça, e perguntou por Billy e Vanja. Entregou um envelope a cada um. Billy espreitou para dentro do seu.
– Vemos isto agora? – perguntou, olhando para Torkel.
– O que é?
– Relatórios preliminares sobre os hóspedes do motel que a Vanja e eu achámos valer a pena examinar melhor.
Torkel concordou.
– Com certeza. Mas só para vos pôr ao corrente do que se passa com o Axel Johansson: não temos novas pistas. Graças ao Haraldsson, ele agora sabe que andamos à sua procura, pelo que existe o risco de que tenha saído de Västerås. A Hanser prometeu empenhar todos os recursos disponíveis para o encontrar, portanto deixaremos isso ao cuidado dela. Está um pouco envergonhada, já agora.
Enquanto Torkel falava, Billy tinha ido para junto da parede com novas fotografias. Logo que Torkel terminou, disse: – Muito bem, às nove da noite de sexta-feira tinham sido alugados sete quartos. Eliminámos três famílias com filhos e um casal de idosos que ficou até segunda-feira. É pouco provável que Roger ou Ragnar Groth tenham ido visitar alguma das famílias ou esse casal de idosos. Se os pusermos de parte, isso deixa-nos três nomes que poderão ser de interesse.
As fotografias mostravam duas mulheres e um homem.
– Malin Sten, vinte e oito anos de idade; Frank Clevén, cinquenta e três; e Stina Bokström, quarenta e seis.
Os outros aproximaram-se para verem melhor as fotografias ampliadas.
Malin Sten, cujo nome de solteira era Ragnarsson, era a mais nova dos hóspedes; era uma mulher atraente, com cabelo comprido, escuro, frisado. Segundo a informação recebida, era casada com um tal William Sten. A fotografia do meio mostrava Frank Clevén, um pai de três filhos que morava em Eskilstuna. Tinha cabelo curto e escuro, que começava a escassear e a ficar grisalho. Um rosto enrugado e batido pelas intempéries. Na fotografia mostrava um ar determinado. A última fotografia era a de Stina Bokström: rosto estreito, cabelo curto e louro, e um aspecto bastante anguloso. Solteira.
Billy apontou para a morena.
– Consegui entrar em contacto com a Malin Sten; é uma representante de vendas que pernoitou no motel após uma reunião na cidade. Diz que não se encontrou com ninguém e que se deitou cedo. Vive em Estocolmo. Ainda não falei com os outros dois, mas como vêem nenhum deles vive em Västerås, pelo menos segundo os cadernos eleitorais.
Torkel aquiesceu e chamou a atenção de toda a equipa.
– Muito bem, óptimo, temos de contactar os outros dois hóspedes. Partam do princípio de que eles têm algo a esconder. Isso também se aplica à Marin Sten.
Todos concordaram excepto Vanja. Ela estava a folhear os papéis que acabara de receber. Levantou os olhos.
– Desculpem, mas penso que isso terá de esperar.
Todos se viraram e ficaram a olhar para ela. Até Sebastian. Vanja desfrutou o seu momento como centro das atenções e fez uma pausa dramática antes de continuar.
– Ocorreu-me que a arma que foi usada para alvejar o Roger era de calibre vinte e dois. E essa é uma arma clássica das competições de tiro, não é?
A impaciência estava patente no rosto de Torkel.
– E então?
– Acabei de receber a lista de membros do Clubo de Tiro de Västerås.
Vanja fez outra pausa, e não conseguiu suprimir um sorriso envaidecido quando olhou para os outros.
– O nosso estimado director Ragnar Groth é membro desde 1992. Um membro extremamente activo, ao que parece.
O Clube de Tiro situava-se a norte, perto do aeroporto. Era um edifício de madeira que se assemelhava a uma caserna militar e que, no passado, sem dúvida pertencera ao exército. Pareciam existir carreiras de tiro tanto no interior das instalações como ao ar livre, e Vanja, Sebastian e Billy conseguiam ouvir o som abafado do tiroteio enquanto se aproximavam. Vanja telefonara primeiro e falara com o secretário do clube, que morava nas imediações; ele prometera-lhe ir até lá para responder a algumas perguntas. Um homem veio recebê-los aos degraus da entrada. Tinha cerca de quarenta e cinco anos e vestia uma camisola de manga curta e calças de ganga coçadas. Parecia um antigo soldado e apresentou-se como Ubbe Lindström. Entraram todos na caserna e foram levados para o escritório sombrio, que funcionava ao mesmo tempo como centro de administração do clube e arrecadação.
– Disseram que se tratava de um assunto relacionado com um dos nossos membros – disse Ubbe enquanto se sentava à secretária numa cadeira em mau estado.
– Exactamente: Ragnar Groth.
– Oh, o Ragnar. Bom atirador. Ganhou por duas vezes a medalha de bronze a nível nacional. – Ubbe dirigiu-se às estantes atafulhadas, tirou de lá uma pasta muito usada, e abriu-a. Passou em revista uma grande pilha de papéis até achar o que procurava.
– Ele é membro desde 1992. Porque querem saber?
Billy ignorou a pergunta.
– As armas dele ficam guardadas aqui no clube?
– Não, ele guarda-as em casa, como a maioria dos nossos membros. O que foi que ele fez?
Ignoraram novamente a pergunta. Vanja juntou-se à conversa.
– Pode dizer-nos de que armas é ele proprietário?
– Possui várias... também caça, além de competir. Isto tem alguma coisa a ver com aquele rapaz da escola dele? Aquele que morreu?
Era um homem teimoso, o Ubbe. Sebastian já estava a ficar farto e saiu do escritório. Não precisavam de estar os três a ignorar as perguntas de Lindström. Billy olhou de relance na direcção de Sebastian enquanto Vanja insistia.
– Sabe se ele tem alguma de calibre vinte e dois?
– Tem uma Brno CZ 453 Varmint.
Pelo menos Ubbe deixara de fazer perguntas e começara a dar respostas. Já era qualquer coisa. Vanja tomou nota no seu bloco.
– Como disse? Uma Bruno...?
– Uma Brno CZ. Uma espingarda de caça. Arma terrível. O que é que vocês usam? Sig Sauer P225? Glock 17?
Vanka olhou para Ubbe; realmente ele parecia acompanhar cada resposta com uma pergunta. Estava disposta a conceder-lhe esta.
– Sig Sauer. Essa é a única calibre vinte e dois a que Ragnar tem acesso?
– Tanto quanto sei. Porquê? O miúdo foi alvejado?
Sebastian caminhou pelo longo corredor e chegou a uma sala comum que continha uma máquina de café e um grande frigorífico amolgado. Dois grandes armários envidraçados cheios de troféus e de medalhas eram o centro das atenções na sala. Em frente aos armários estava uma quantidade de cadeiras e de mesas crivadas de queimaduras de cigarros, dos tempos em que os homens das armas não precisavam de ir fumar para o exterior. Sebastian deambulou pela sala. Uma rapariga de cerca de treze anos estava sentada a uma das mesas com uma lata de Coca-Cola e um bolo de canela diante de si. Lançou a Sebastian um descomprometido olhar adolescente. Ele cumprimentou-a com um aceno, e depois foi junto do armário que continha os troféus. Estava fascinado pela maneira como as pessoas insistiam em recompensar a vitória em qualquer desporto com aqueles troféus dourados e ridiculamente grandes. Era como se os participantes sofressem mesmo de uma auto-estima extremamente baixa e, no seu íntimo, tivessem plena consciência da total inutilidade daquilo que faziam.
A maneira que eles tinham de negar essa verdade e mostrar ao mundo como eram realmente importantes as suas actividades resultavam numa completa inflação de troféus. Tanto em termos de dimensões como de fulgor.
As paredes estavam adornadas com fotografias individuais e em grupo dos membros do clube. Aqui e acolá havia um cartaz noticioso ou um artigo de jornal emoldurados. Na verdade, era uma clássica sala de clube. Sebastian passou indolentemente os olhos pelas fotografias. A maioria mostrava homens orgulhosos empunhando as suas armas, de pernas afastadas, rindo-se para a câmara. Naqueles sorrisos havia qualquer coisa que tinha um ar ridiculamente falso, pensou. Seria assim tão fantástico segurar aquelas armas, aquele troféu? Sentiu os olhos da rapariga nas suas costas e voltou-se para trás. Ela ainda tinha a mesma expressão no rosto. Depois disse: – O que está a fazer?
– A trabalhar.
– Em quê?
Sebastian fitou-a de relance.
– Sou psicólogo da polícia. O que estás tu a fazer?
– Daqui a pouco vou ter uma sessão de tiro.
– Com a tua idade já tens autorização para disparar?
A rapariga riu-se.
– Nós não damos tiros uns nos outros.
– Por enquanto não... E gostas disso?
A rapariga encolheu os ombros.
– É mais divertido do que andar a correr atrás de uma bola estúpida. Gosta de ser psicólogo da polícia?
– Não é mau. Preferia dar tiros às coisas, como tu.
A rapariga olhou para ele em silêncio e regressou ao seu bolo. Era óbvio que a conversa chegara ao fim. Sebastian regressou à sua contemplação da parede. O seu olhar deteve-se num retrato de seis alegres homens dispostos ao redor de um daqueles enormes troféus. Por cima da fotografia, uma pequena placa dourada descrevia o momento como CAMPEONATOS NACIONAIS – BRONZE 1999. Sebastian examinou a fotografia mais atentamente. Em particular um dos seis homens. Aquele que estava à esquerda, e se mostrava muito contente. Grande sorriso. Imensos dentes. Sebastian retirou a fotografia e saiu da sala.
Quando Ursula saiu de Rotevägen, ela e Sundstedt estavam cada vez mais convencidos de que o incêndio em casa de Peter Westin tinha sido deliberadamente ateado. O facto de ter começado no quarto não oferecia dúvidas. A parede por detrás da cama e o soalho ao lado dela mostravam claramente os sinais de que fora ali que tivera início. Quando eclodira, as chamas haviam alastrado avidamente até ao tecto e tinham sido alimentadas por mais oxigénio quando as janelas do quarto foram estilhaçadas pelo calor. Ao redor da cama não havia nada que justificasse esse rápido alastramento. Quando examinaram a área mais minuciosamente, encontraram vestígios de um acelerante. Portanto, com certeza, era fogo posto.
A verdadeira causa da morte de Westin ainda não era conhecida, mas Sundstedt tinha conseguido retirar o corpo do meio dos destroços. Isso demorara várias horas, porque fora necessário escorar o soalho danificado. Ursula certificou-se de que o corpo era embalado com cuidado num saco para cadáveres, e decidiu acompanhá-lo pessoalmente até ao laboratório forense para assistir à autópsia. Sundstedt prometera entregar-lhe o seu relatório o mais depressa possível.
No laboratório tinham levantado ligeiramente o sobrolho perante a sua presença, mas ela nem reparou. Ursula prometera a si mesma que desta vez estaria no centro das actividades. Caso contrário, poderia transformar-se num autêntico pesadelo para eles. Uma comparação com os registos dentários que ela pedira depressa confirmou que o corpo que haviam encontrado na casa semicalcinada era o de Peter Westin, o que levou Ursula a sentir-se convicta de que um homicídio se transformara em dois e de que eles estavam agora a lidar com um assassino reincidente. Também sabia que quem é capaz de matar duas vezes poderia continuar a fazê-lo. Ser-lhe-ia cada vez mais fácil.
Telefonou a Torkel.
Billy e Vanja não adiantaram muito com Ubbe Lindström. À medida que a conversa prosseguia ele foi-se tornando cada vez mais defensivo. Tinham descoberto o mais importante: Ragnar Groth possuía uma arma que coincidia com aquela que tirara a vida a Roger, pelo menos no calibre. Ubbe continuava a tentar que eles lhe revelassem a razão do seu interesse num dos mais leais e bem-sucedidos membros do clube. Quanto menos respostas recebia, mais relutante em responder se tornava. Vanja compreendeu que Ragnar Groth e Ubbe Lindström eram provavelmente mais do que companheiros do clube; ela tinha a sensação de que eram amigos, e estava a preocupá-la cada vez mais que Ubbe fosse telefonar ao amigo e informá-lo da visita deles logo que saíssem dali.
– Como estou certa de que saberá, a vossa licença para armas tem de ser renovada a cada cinco anos. Se chegar ao meu conhecimento que esta discussão confidencial não foi tão confidencial, então... – Vanja deixou o resto da frase no ar.
– O que quer dizer com isso? – perguntou o secretário do clube, numa voz furiosa. – Está a ameaçar-me?
Billy sorriu-lhe.
– O que ela está a dizer é que esta conversa fica só entre nós. Está bem? – Os olhos de Ubbe ensombraram-se e ele disse que sim com um irritado gesto de cabeça. Pelo menos tinham tentado, e ele fora avisado. Sebastian entrou no escritório a arrastar os pés.
– Só mais uma coisa. – Colocou a fotografia emoldurada em frente de Ubbe. Apontou para qualquer coisa no retrato. – Quem é aquele? Em cima à esquerda?
Ubbe debruçou-se e olhou para a fotografia. Billy e Vanja chegaram-se mais à frente e vislumbraram o homem do grande sorriso.
– Esse é o Frank. Frank Clevén.
Vanja e Billy reconheceram-no de imediato. O retrato dele já estava na parede da esquadra. Não tinha aquele grande sorriso, é certo, mas não havia dúvida de que era o homem que havia alugado um quarto num motel decadente na sexta-feira anterior.
– Ele também é membro do clube?
– Já foi. Mudou-se para longe um ano depois de terem ganho a medalha de bronze. Agora vive em Örebro, penso eu. Ou em Eskilstuna. Ele também está envolvido?
– Ninguém está envolvido em nada. Pense só na sua licença – retorquiu Vanja de forma sucinta, e depois saiu com os outros. Caminharam os três até ao carro mais depressa do que era habitual. Aquele estava a transformar-se num dia realmente bom.
Frank Clevén morava na Rua Lärkvägen em Eskilstuna. Porém, Billy não conseguiu que atendessem o telefone de casa, e não conseguiram encontrar qualquer telemóvel registado em nome dele. Após alguma pesquisa, Billy encontrou o nome do empregador de Frank, uma empresa de construção conhecida como H&R Bygg. Ele trabalhava lá como engenheiro de obras e tinha um telemóvel de trabalho. Billy telefonou-lhe. Frank ficou muito surpreendido ao saber que a polícia andava à sua procura, mas Billy realçou o facto de que pretendiam apenas fazer-lhe algumas perguntas.
E gostariam de as fazer no seu local de trabalho.
Daí a trinta minutos.
Frisaram que teria de ser deste modo.
Vanja e Sebastian já iam no carro a meio caminho de Eskilstuna quando receberam o telefonema de Billy, que ficara na esquadra. Ele tinha lido os breves pormenores disponíveis sobre Frank Clevén. Não revelavam grande coisa. Cinquenta e três anos de idade, nascido em Västervik, mudara-se para Västerås quando era jovem. Quatro anos de estudo na variante tecnológica do liceu, serviço militar no KA3 em Gotland, licença de porte de arma para uma pistola e uma espingarda desde 1981, ainda em vigor. Nenhum registo criminal nem dívidas pendentes. Nada digno de nota. Mas conseguiram um endereço.
Nos arredores de Eskilstuna pararam junto a um estaleiro de construção onde estava a ser edificado um centro comercial. Com vigas a erguerem-se no sítio em que viriam a estar as paredes, de momento não se parecia muito com um futuro templo do consumo, mas a enorme base de betão estava quase concluída. A curta distância avistaram um grupo de trabalhadores ocupados com uma grande máquina amarela. Sebastian e Vanja dirigiram-se para as instalações dos construtores, onde encontraram alguém que parecia ser o capataz.
– Andamos à procura do Frank Clevén.
O homem aquiesceu e apontou para uma das barracas do meio. – A última vez que o vi estava ali.
– Obrigado.
Frank Clevén era uma daquelas pessoas que tinha melhor aspecto na vida real do que numa fotografia. As feições eram finamente esculpidas, apesar de a sua pele ter rugas por passar tanto tempo ao ar livre. Olhar penetrante, feições contraídas à maneira do Homem da Marlboro enquanto apertava a mão a Sebastian e a Vanja. Nem por uma vez viram aquele largo sorriso da fotografia durante a conversa. Ele sugeriu-lhes que fossem para o interior do seu pequeno gabinete numa das barracas, onde poderiam falar sem serem incomodados. Vanja e Sebastian foram atrás dele, e pareceu a Vanja que os ombros do homem se tornavam cada vez mais pesados a cada passo que fazia ranger a gravilha. Estavam na pista certa, ela sentia-o.
Finalmente.
Clevén abriu a porta e convidou-os a entrar. A pardacenta luz do dia coava-se através de duas janelas cobertas de pó quando penetraram na barraca acanhada. Havia um pungente cheiro a tanino. Uma máquina de café ocupava o minúsculo corredor que ligava duas pequenas salas. O gabinete de Clevén era na primeira. O único mobiliário consistia numa secretária impessoal coberta de desenhos, e algumas cadeiras. As paredes estavam nuas, para além de umas antigas marcas de fita adesiva e de um calendário do ano anterior. Clevén olhou para os dois agentes, que permaneceram em pé embora os tivesse convidado a sentarem-se. Também ele optou por ficar em pé.
– Eu não tenho muito tempo, por isso teremos de ser rápidos. – Clevén tentou manter a voz calma, mas falhou. Sebastian reparou que o lábio superior de Clevén estava perlado de suor. Não estava calor na sala.
– Nós temos tempo, por isso cabe-lhe a si despachar o assunto – respondeu Sebastian, deixando perfeitamente claro que aquela reunião não seria conduzida nos termos de Frank.
– Eu nem sequer sei porque é que estão aqui. O vosso colega só disse que queriam falar comigo.
– Se quiser sentar-se, a minha colega explica-lhe. – Sebastian olhou para Vanja, que aquiesceu, mas esperou que Clevén se sentasse. Após um curto silêncio ele decidiu cooperar. Sentou-se. Na borda da cadeira. Como se estivesse empoleirado em cima de agulhas.
– Pode dizer-nos porque é que ficou alojado num motel em Västerås na passada sexta-feira?
Ele fitou-os.
– Eu não fiquei num motel na passada sexta-feira. Quem é que diz que fiquei?
– Dizemos nós.
Vanja não adiantou mais nada. Em circunstâncias normais a pessoa que estavam a interrogar começaria neste ponto a falar por sua própria iniciativa. Quando era confrontado com factos. Decerto que ele compreenderia que não teriam feito todo o caminho até Eskilstuna se não possuíssem provas sólidas? Confirmar ou explicar, eram normalmente essas as opções habituais. Ou existia uma terceira escolha. O silêncio. Clevén decidiu-se pela terceira opção. Olhou para Vanja e para Sebastian, mas não disse uma palavra. Vanja suspirou.
– Com quem se foi encontrar? O que estava a fazer lá?
– Não estive lá, já lhe disse. – A expressão dele era quase implorante. – Devem ter-se enganado na pessoa.
Vanja baixou os olhos para os seus papéis. Murmurou entredentes. Demorou o seu tempo. Sebastian não tirou os olhos de Clevén. Este lambia os lábios como se tivessem ficado ressequidos de repente. Uma gota de suor começou a emergir-lhe por cima da testa, junto à raiz dos cabelos. Continuava a não estar calor na sala.
– Não é Frank Clevén, BI número 580518? – perguntou Vanja, num tom de voz neutro.
– Sou.
– Não pagou com o seu cartão de débito setecentas e setenta e nove coroas por um quarto na passada sexta-feira?
Clevén ficou branco.
– Foi roubado. O meu cartão foi roubado.
– Roubado? Participou à polícia? E, se assim foi, quando?
Ele calou-se; o seu cérebro parecia trabalhar a toda a brida. Uma gota de suor escorreu-lhe pela face, que ficara significativamente mais pálida.
– Não participei.
– Bloqueou o cartão?
– Posso ter-me esquecido, não sei...
– Ora, vá lá, certamente não espera que nós acreditemos que lhe roubaram o cartão?
Não obtiveram resposta. Vanja decidiu que estava na hora de Frank Clevén ser informado de como as coisas estavam más para si naquele momento.
– Isto é uma investigação de homicídio, o que significa que iremos analisar minuciosamente todas as informações que nos fornecer. Por isso deixe-me perguntar-lhe outra vez: Ficou num motel em Västerås na passada sexta-feira, sim ou não?
Clevén parecia espantado.
– Uma investigação de homicídio?
– Sim.
– Mas eu não matei ninguém.
– Então o que fez?
– Nada. Eu não fiz nada.
– Esteve em Västerås na noite do crime e mentiu acerca disso. O que para mim parece bastante suspeito.
Clevén fez um movimento brusco, contorcendo-se na cadeira. Era-lhe difícil olhar para as duas pessoas sentadas à sua frente. Sebastian pôs-se em pé num salto.
– Que se lixe. Vou a sua casa perguntar à sua mulher se sabe alguma coisa. Tu ficas aqui com ele?
Vanja disse-lhe que sim e olhou para Clevén; este olhava tristemente para Sebastian, que se dirigia vagarosamente para a porta.
– Ela não sabe nada – balbuciou.
– Não, talvez não, mas há-de saber se você esteve em casa ou não, não é? Normalmente as mulheres sabem se o marido está em casa. – O sorriso extralargo de Sebastian mostrava como ele estava contente por se ter lembrado de ir a casa de Clevén falar com a mulher e os filhos e fazer essa pergunta. Conseguiu dar mais alguns passos antes que Clevén o interrompesse.
– Pronto, eu estava no motel.
– Estou a ver.
– Mas a minha mulher não sabe de nada.
– Já nos disse. Com quem se foi encontrar?
Não respondeu.
– Com quem se foi encontrar? Podemos ficar aqui sentados o dia todo. Podemos chamar um carro-patrulha e levá-lo algemado. Você é que escolhe. Mas deixe-me esclarecer muito bem uma coisa: nós acabaremos por descobrir.
– Eu não posso dizer quem era. Está fora de questão. Quando isto se souber as coisas hão-de ficar bastante más para mim, mas para ele...
– Ele?
Frank calou-se e disse que sim com um gesto embaraçado. De repente tudo se tornou claro para Sebastian.
O Clube de Tiro.
O ar envergonhado no rosto de Frank.
O Liceu Palmlövska pejado de mentiras.
– Foi encontrar-se com o Ragnar Groth, não foi?
Frank disse que sim numa voz sumida.
Baixou os olhos.
E o mundo dele desabou.
Durante o regresso, Sebastian e Vanja estavam quase exultantes.
Frank Clevén e Ragnar Groth estavam envolvidos num relacionamento desde há bastante tempo. Tinham-se conhecido no Clube de Tiro. Há catorze anos. Hesitante ao princípio, a relação deles tornara-se depois completamente absorvente. Destrutiva. Clevén até se mudara para longe de Västerås a fim de tentar pôr termo ao relacionamento que tanto o envergonhava. Afinal, ele era casado. Tinha filhos. Não era um homossexual. Mas não tinha conseguido manter-se longe. Aquilo era como uma droga.
O prazer.
O sexo.
A vergonha.
Tinham continuado a encontrar-se. Era sempre Groth que telefonava e que sugeria que se vissem, mas Clevén nunca recusava. Ansiava por esses encontros. Nunca em casa de Groth. O motel tornara-se o oásis de ambos. O quarto barato. As camas fofas. Clevén fazia sempre a reserva e pagava. Tivera de inventar desculpas, tentando constantemente mitigar as suspeitas da mulher. Era mais fácil quando ele não passava lá a noite. Chegar tarde a casa era melhor do que não ir a casa. Sim, tinham-se encontrado naquela sexta-feira. Cerca das quatro da tarde. Groth fora praticamente insaciável. Clevén só deixara o motel pouco antes das dez. Groth partira cerca de meia hora mais cedo.
Pouco depois das nove e meia.
À hora a que Roger estaria provavelmente a passar pelo edifício.
CAPÍTULO DEZASSETE
TODOS ELES, os cinco, conseguiam sentir a expectativa que havia no ar. Reconheciam-na e acolhiam-na de bom grado. Era essa a sensação quando faziam uma descoberta importante, quando a investigação ganhava ímpeto, quando, no melhor dos cenários, eles conseguiam começar a pressentir o fim. Durante vários dias, cada pista, cada ideia conduzira a um beco sem saída, mas o encontro amoroso de Ragnar Groth no motel fornecera-lhes peças completamente novas do quebra-cabeças com que podiam trabalhar. Peças que pareciam encaixar-se muito bem.
– Então, o director de uma escola privada dotada de uma ética e de um conjunto de valores cristãos é homossexual. – Torkel contemplou a sua equipa. Conseguia ver e sentir nosseus olhos a nova energia que impregnava a sala. – Não é demasiado rebuscado pensar-se que ele estava disposto a muita coisa para esconder esse facto.
– Matar alguém não é estar disposto a muita coisa, é estar disposto a tudo – disse Ursula. Torkel achou que ela parecia cansada. Era verdade que estivera todo o dia ocupada com o incêndio e o presumível homicídio de Westin, mas mesmo assim não conseguiu impedir-se de pensar se teria dormido tão mal como ele.
– Nunca se pretendeu matar ninguém. – Sebastian tirou uma pêra da fruteira. Deu-lhe uma grande e ruidosa dentada.
– Não estamos a assumir que a pessoa que assassinou o Roger Eriksson também matou o Peter Westin? – perguntou Ursula. – Decerto ninguém pensa que isso também foi um acidente?
– Não, mas continuo a manter que o assassínio do Roger não foi pleaneado. – Era ligeiramente difícil distinguir as palavras enquanto mastigava a pêra. Sebastian demorou alguns segundos, acabou de mastigar e engoliu. Recomeçou.
– Continuo a manter que o assassínio do Roger não foi planeado. Estamos, no entanto, a lidar com uma pessoa que fará o que for preciso para se safar impune.
– O assassínio do Roger poderá ter sido um acidente, mas ele está disposto a matar a sangue-frio para ninguém descobrir que foi o autor?
– Sim.
– Como é que ele concilia isso? – perguntou Billy. – Com a sua consciência, quero eu dizer.
– É provável que se considere uma pessoa de suprema importância. Não necessariamente por motivos egoístas. Poderá acreditar que uma ou mais pessoas venham a ser prejudicadas se ele for apanhado. Venham a sofrer por causa dele. Poderá ter um emprego que pense que mais ninguém conseguiria desempenhar, ou uma tarefa que tenha de completar. A todo o custo.
– O director do Liceu Palmlövska encaixa-se nesse perfil? – A pergunta viera de Vanja. Sebastian encolheu os ombros. Dificilmente conseguia elaborar um diagnóstico sobre Ragnar Groth com base nos dois breves encontros que haviam tido, mas não estava disposto a eliminá-lo. A dedicação dele à escola já o levara a não participar à polícia um assunto sério. Estaria disposto a ir mais longe? Certamente. Tão longe quanto necessário? Isso teria de se ver. Sebastian deixou o caso em aberto.
– É possível.
– Sabemos se Ragnar Groth tinha conhecimento de que o Roger costumava ir encontrar-se com o Peter Westin? – Compreensivelmente, Ursula continuava a fixar-se na pista de Westin.
– Devia ter. – Billy olhou em volta, em busca de apoio. – Quero dizer, o Westin tinha um acordo com a escola, por isso deve ter-lhes dito quem recorria aos seus serviços. De alguma maneira ele deve ter sido pago.
– Havemos de descobrir. – Torkel interrompeu-os antes que o recém-descoberto entusiasmo lhes oferecesse resposta a perguntas que ainda nem sequer tinham sido feitas. O desejo de encaixar tudo no devido sítio era muito forte nesta fase de uma investigação, e era importante que se retraíssem. Analisassem aquilo que efectivamente já sabiam, o que era possível e provável, e aquilo acerca do qual não tinham qualquer pista.
– O Sebastian e a Vanja elaboraram um cenário. Vamos ouvi-los e concentrarmo-nos em encontrar situações em que os factos ou as provas forenses não façam sentido. Está bem?
Todos concordaram. Torkel voltou-se para Sebastian, o qual indicou com um pequeno gesto que Vanja podia iniciar a apresentação. Ela baixou os olhos para os seus papéis e disse: – Nós vemos isto da seguinte maneira: o Roger caminha em direcção ao motel. Está zangado e transtornado após o seu encontro com o Leo Lundin. Tem sangue na cara e a auto-estima destruída, limpa as lágrimas à manga do blusão. Vira para os terrenos do motel e vai ter com a pessoa com quem combinou encontrar-se. De repente, pára. Um movimento num dos quartos do motel desperta-lhe a atenção. Olha para lá e vê o director da escola. O Ragnar Groth vira-se para a porta de onde acabou de sair, e uma mão puxa-o para trás. Um homem que o Roger não reconhece aparece à porta, debruça-se para o exterior e beija o Ragnar nos lábios. Este parece protestar momentaneamente, mas o Roger retira-se para as sombras e vê o Ragnar descontrair-se e corresponder ao beijo quase de imediato. Quando se afastam e a porta se fecha, o Ragnar olha à sua volta, com uma expressão atenta. Se o Roger ia encontrar-se com alguém no motel, é decerto nesta altura que tem de alterar os seus planos. – Vanja olhou para Sebastian, que se pôs em pé e começou a deambular pela sala enquanto dava sequência ao discurso.
– O Roger sai à socapa para o parque de estacionamento, e, quando o Ragnar chega ao carro, o Roger está lá à espera dele, com um sorriso de desdém estampado no rosto. Confronta o Ragnar com aquilo que acabou de ver. O Ragnar nega tudo, mas o Roger mantém o que disse. Se não aconteceu nada, não importa que ele conte às pessoas, não é? O Roger percebe que o Ragnar procura freneticamente encontrar uma solução. Essa situação dá grande prazer ao Roger. Após o seu encontro com o Leo, sabe-lhe bem ser aquele que detém o poder por algum tempo. Vê o Ragnar começar a transpirar. Vê que desta vez é outro que sofre. Agora é ele o mais forte. O Roger explica que pode, evidentemente, não dizer nada acerca das pequenas aventuras amorosas do director, mas que isso não lhe sairá barato. Ele quer dinheiro. Muito dinheiro. O Ragnar recusa. O Roger encolhe os ombros; nesse caso aquilo estará no Facebook daí a quinze minutos. O Ragnar percebe que está prestes a perder tudo. O Roger volta-lhe as costas para se ir embora. O parque de estacionamento está deserto. Mal iluminado. Quando lhe vira as costas, o Roger avalia mal o que o Ragnar tem a perder. O Ragnar ataca-o e o Roger cai ao chão.
– Há muito tempo que não chove. Devíamos ir ao parque de estacionamento do motel ver se há por lá algumas provas. – Ursula fez um gesto de aquiescência e tomou notas no seu bloco. Poderia não ter ocorrido mais do que um aguaceiro ocasional desde que haviam encontrado Roger, mas imaginar-se que existiriam algumas provas físicas num parque de estacionamento algo movimentado uma semana depois de o crime ter eventualmente sido cometido era estender o optimismo muito para além dos seus limites. No entanto, ela iria lá dar uma vista de olhos. Talvez o rapaz ou o director tivessem deixado cair alguma coisa... Sebastian olhou para Vanja, a qual mirou os seus papéis mais uma vez antes de recomeçar a falar. Torkal não disse uma palavra. E não era apenas por a hipótese emergente parecer poder vir a funcionar. Sebastian estava a permitir que Vanja partilhasse a ribalta. Por norma, na órbita de Sebastian só havia espaço para uma pessoa brilhar. Ele não partilhava nada. Vanja devia ter feito alguma coisa bem.
– Com certa dificuldade, o Ragnar leva o Roger para dentro do carro. Nunca quis fazer mal ao rapaz, mas não podia simplesmente deixá-lo ir-se embora. Não podia deixar que ele fosse contar a toda a gente. Estragar tudo. Tinham de encontrar uma solução que fosse aceitável para ambos. Discutir o assunto. De uma maneira racional, adulta. O Ragnar conduz ao acaso, suado e nervoso, e vai parar a zonas da cidade cada vez mais desertas, com o rapaz inconsciente ao seu lado. Vai pensando como há-de safar-se daquela situação, o que há-de dizer ao seu aluno quando este recuperar os sentidos. Está a tentar acabar com aquele pesadelo quando o Roger subitamente desperta. O Ragnar não tem tempo para dar início ao seu discurso tranquilizador e racional. O Roger atira-se a ele, bate-lhe uma e outra vez. O Ragnar é obrigado a travar. O carro derrapa para um lado da estrada e pára. As tentativas do Ragnar para acalmar o rapaz não têm sucesso. Não só o Roger vai dizer a toda a gente que ele anda a fornicar com outros homens como também vai participar do Ragnar por rapto e agressão. O Ragnar não tem tempo para reagir quando o Roger abre a porta e salta para o exterior. Fervilhando de raiva, o Roger percorre uma rua mal iluminada, tentando perceber onde está. Onde raio estão eles? Para onde é que aquele tarado os levou? A adrenalina aumenta, impedindo o Roger de perceber até que ponto está assustado. Os faróis do carro projectam longas sombras à sua frente. O Ragnar sai do carro aos tropeções, chama-o aos gritos, mas a única resposta do Roger é um dedo médio erguido no ar. O Ragnar fica então desesperado. Vê toda a sua vida ruir. O rapaz tem de ser travado. Ele nem pensa. Age instintivamente. Vai a correr até à bagageira do carro, abre-a, e tira de lá a sua arma. Com destreza, ergue-a rapidamente até à posição correcta, coloca o fugitivo na sua mira, e puxa o gatilho. O rapaz cai ao chão.
» Não decorre sequer um segundo antes que o Ragnar se aperceba do que fez. Olha à sua volta, assustado. Não vem ninguém. Não está ali ninguém. Ninguém viu nem ouviu nada. Ainda há uma possibilidade de ele se safar desta situação. De conseguir sobreviver.
» O Ragnar corre até junto do rapaz e, quando vê o sangue jorrar do buraco da bala à luz dos faróis, percebe duas coisas.
» O rapaz está morto.
» A bala é como uma impressão digital.
» Pega no Roger e arrasta-o para fora da estrada. Para o meio dos arbustos. Vai ao carro buscar uma faca. Debruça-se por cima do rapaz e põe à mostra o buraco da bala. Agindo por instinto, sem verdadeiramente pensar, corta-lhe o coração e retira a bala. A sua expressão é quase de surpresa enquanto contempla o pequeno pedaço de metal ensanguentado que tantos estragos causou. A seguir olha para o corpo. A bala já não está lá, mas seria melhor que ele conseguisse disfarçar o facto de o rapaz ter sido alvejado. Fazer com que pareça um esfaqueamento. Por esta altura o seu instinto de sobrevivência já o dominou completamente, e o Ragnar começa a esfaquear o corpo num ataque frenético.
» Em seguida, coloca o Roger dentro do carro, conduz até Listakärr, e abandona o corpo. Já sabemos o resto.
Sebastian e Vanja tinham terminado. Era uma descrição vívida da sequência de eventos, e apimentada com especulação, mas era um relato que pareceu credível a Torkel. Olhou ao redor da sala, tirou os seus óculos e dobrou-os.
– Parece-me que está na altura de termos uma conversa com o Ragnar Groth.
– Não, não, não. Não foi nada assim.
Ragnar Groth abanou a cabeça, inclinou-se para a frente na sua cadeira e levantou as mãos bem tratadas num gesto de rejeição. O movimento lançou um ténue odor a Hugo Boss na direcção de Vanja, que estava do outro lado da secretária. A mesma loção pós-barba que Jonathan costumava usar, pensou ela fugazmente, embora devesse ser a única coisa que os dois homens tinham em comum. Vanja acabara de lhe expor a primeira parte da sua teoria acerca da noite do homicídio, sugerindo que Groth se encontrara com Roger no exterior do motel e que isso conduzira a uma altercação. A asserção dela resultara na firme negação por parte do director.
– Então, como foi?
– Isso nunca aconteceu. Não vi o Roger na noite de sexta-feira, já vos disse.
De facto dissera. Cerca de uma hora antes, quando tinham ido buscá-lo à escola. Mostrara-se extenuado e zangado quando Vanja e Billy apareceram no seu gabinete. O cansaço desaparecera logo que lhe explicaram porque estavam ali, e fora substituído por uma incompreensão ofendida. Decerto não estariam a sugerir que, de alguma maneira, ele estivera envolvido naquele trágico acontecimento. Contudo, estavam; ele percebeu-o quando lhe pediram que os acompanhasse à esquadra para ser interrogado.
Groth quisera saber se estava detido ou se era levado sob custódia, ou lá como se chamava isso, mas Vanja garantira-lhe que pretendiam simplesmente fazer-lhe algumas perguntas. O director quisera saber se não poderiam falar no seu gabinete, como tinham feito nas duas ocasiões anteriores, mas Vanja insistira que esta entrevista deveria ter lugar na esquadra.
Demorava algum tempo organizar as formalidades de uma coisa tão simples como sair do gabinete dele e da escola. Groth mostrara-se muito interessado em garantir que não parecesse que ia preso. Vanja tranquilizou-o. Não haveria algemas, não havia agentes uniformizados à espera e ele viajaria no lugar do passageiro de um carro civil. Até lhe fornecera uma história de encobrimento quando um dos colegas quisera saber aonde ele ia. Fora requerida a presença de Ragnar Groth na esquadra para ver se ele conseguia identificar diversos jovens nas imagens das câmaras de vigilância. O director agradecera-lhe a ajuda quando passavam por baixo da gigantesca figura de Cristo na frontaria da escola.
Numa das três salas de interrogatório, Groth recusara café, água, pastilhas para a garganta, e representante legal. Viu Torkel pela primeira vez, e tinham-se sentado os três; Vanja e Torkel de um lado da mesa e Groth do outro. Ela limpara o pó ao tampo com um lenço antes de permitir que os seus braços entrassem em contacto com a mesa.
– O que é isso? – perguntara ele quando Vanja pegara num pequeno pedaço de plástico moldado.
– Isto? – Vanja mostrara-o a Groth, que confirmara. – É um auscultador.
– E quem está a ouvir?
Vanja optara por não lhe responder e limitara-se a colocá-lo no ouvido. Groth voltara-se para o espelho um pouco grande de mais que havia numa das paredes, analisando-o.
– O Bergman está ali atrás? – Fora incapaz de suprimir um tom de puro asco. Mais uma vez, Vanja optara por não lhe responder. Mas Groth tinha razão: Sebastian estava na sala ao lado, a analisar a entrevista para poder fazer breves comentários directamente a Vanja sempre que fosse necessário. Tinham concordado que Sebastian não estaria na sala de interrogatórios. Já era bastante difícil levar alguém como Ragnar Groth a falar sem a presença de Sebastian a incomodá-lo.
Vanja tinha colocado o gravador em cima da mesa, enumerara as pessoas presentes, declarara as horas, seguidamente explicara como tinham seguido Roger através das câmaras de vigilância, e avançara a teoria de que Groth se encontrara com Roger no exterior do motel. De início, o director limitara-se a ouvir, com um rosto inexpressivo. A primeira vez que mostrou algum tipo de reacção foi quando se mencionou o motel. Depois abanou a cabeça em silêncio, cruzou os braços sobre o peito e recostou-se na cadeira, com uma linguagem corporal que indicava que estava a distanciar-se.
De Vanja.
De tudo o que ela dizia.
De toda aquela situação.
Quando Vanja terminou, inclinou-se para a frente e abriu as mãos.
– Não, não, não, não foi assim.
– Então, como foi?
– Isso nunca aconteceu. Eu não vi o Roger na noite de sexta-feira, já vos tinha dito.
– Mas estava no hotel à hora em causa? – Na sala ao lado, Sebastian fez um gesto de concordância. Podiam ligá-lo à hora e ao local e era óbvio que isso o incomodava.
Muito.
A tal ponto que nem sequer respondeu à pergunta de Vanja. Ela, porém, não desistiu.
– Era uma pergunta retórica; nós sabemos que estava no motel às nove e meia da noite de sexta-feira.
– Mas não vi o Roger.
– Pergunta-lhe pelo Frank – disse Sebastian ao microfone. Viu o rosto de Vanja iluminar-se no interior da sala de interrogatórios, e ela olhou para o espelho. Sebastian fez um gesto de encorajamento, como se ela conseguisse vê-lo. Vanja inclinou-se sobre a mesa.
– Fale-me do Frank Clevén.
Groth não respondeu logo. Demorou algum tempo a arranjar os punhos da sua camisa de maneira a que eles ficassem precisamente um centímetro abaixo das mangas do casaco. Depois recostou-se e olhou calmamente para Vanja e Torkel.
– É um velho amigo do Clube de Tiro. Encontramo-nos de tempos a tempos.
– Para fazer o quê? – A pergunta foi feita por Torkel, e Groth desviou a sua atenção para ele.
– Conversarmos sobre os velhos tempos. Ganhámos a medalha de bronze nos campeonatos nacionais, como talvez saibam. Habitualmente, tomamos um copo de vinho. Às vezes jogamos às cartas.
– Porque é que não se encontram em sua casa?
– Por norma, encontramo-nos quando o Frank passa por Västerås, a caminho de casa. O motel é um local mais conveniente.
– Nós sabemos que você e Frank Clevén se encontram no motel para ter sexo.
Groth voltou-se para Vanja e, por um instante, pareceu que essa simples ideia o deixava enojado. Debruçou-se para ela e sustentou o seu olhar.
– E como, deixem-me perguntar-vos, sabem isso?
– O Frank Clevén disse-nos.
– Então, está a mentir.
– Ele é casado, tem três filhos. Porque haveria de mentir acerca de viajar até Västerås para ter sexo com um homem?
– Não sei; terão de lhe perguntar.
– Não é verdade que são bons amigos?
– Eu julgava que sim, mas o que estou a ouvir leva-me a duvidar.
– Podemos relacioná-lo com o motel.
– Eu estive lá. Estive com o Frank. Não estou a negá-lo. O que certamente estou a negar é que nos tenhamos envolvido em quaisquer actividades sexuais ou que eu me tenha encontrado com o Roger no decurso da noite.
Vanja e Torkel trocaram olhares. Ragnar Groth era bom. Admitir o que pode ser provado, negar tudo o resto. Tê-lo-iam levado para ali demasiado cedo? Tudo o que tinham, na verdade, era uma sequência de provas circunstanciais. Encontros sexuais em segredo, filiação num clube de tiro, uma posição na sociedade que valia a pena proteger. Precisavam de mais?
Na sala ao lado, ocorreu o mesmo pensamento a Sebastian. Sabiam que Groth era um homem com um óbvio problema psicológico que encontrava a sua expressão através de um comportamento pedante e compulsivo. Não era uma grande ousadia imaginar que ao longo dos anos desenvolvera uma profunda e quase impenetrável defesa para se proteger contra acções que achasse indesejáveis. Sebastian tinha a sensação de que Ragnar Groth estava constantemente a sopesar as vantagens e as desvantagens para as comparar, e, logo que tomava a sua decisão, moldava a realidade de acordo com ela; tornava-se a verdade. Talvez nem sequer julgasse que estava a mentir quando dizia que ele e Frank Clevén não haviam feito sexo naquele quarto do motel. Acreditava nisso. Provavelmente precisariam de provas fotográficas para o levarem a confessar. Provas fotográficas de que não dispunham.
– O Peter Westin?
Vanja tentou uma nova abordagem.
– O que se passa com ele?
– Conhece-o.
– A escola tem um acordo com o consultório dele, sim. O que é que isso tem a ver com o resto?
– Sabe onde ele mora?
– Não, nós não temos qualquer contacto a não ser por questões profissionais. – Groth lembrou-se de qualquer coisa e inclinou-se para a frente mais uma vez. – Está a sugerir que eu também tenho alguma relação sexual com ele?
– Tem?
– Não.
– Onde é que estava às quatro da manhã de hoje?
– Estava em casa, a dormir. É um péssimo hábito que eu tenho; por volta dessa hora tento fazer uma soneca. Porque é que pergunta?
Sarcasmo. Na sala ao lado, Sebastian suspirou. Groth recuperara a autoconfiança. Percebera que não sabiam muito a seu respeito. Assim não iriam a lado nenhum. Na sala de interrogatórios, Torkel continuava a tentar salvar o que podia.
– Precisamos de dar uma olhadela às suas armas.
– Porquê? – Genuína surpresa. Vanja praguejou entre dentes. Tinham conseguido manter aquilo longe da imprensa. Além do assassino, ninguém sabia que Roger fora alvejado a tiro. Teria sido uma grande ajuda que Groth achasse o pedido razoável ou, melhor ainda, se recusasse a mostrar-lhes as suas armas.
– Porque não?
– É que não compreendo os vosso motivos. Quero dizer, o rapaz não foi atingido a tiro, pois não? – Passou os olhos de Vanja para Torkel. Nenhum deles estava disposto a confirmar ou negar.
– Está a recusar deixar-nos examinar as suas armas?
– Claro que não. Podem vê-las quando quiserem. Demorem o tempo que for preciso.
– Também gostaríamos de dar uma vista de olhos ao seu apartamento.
– Vivo numa moradia.
– Nesse caso gostaríamos de dar uma vista de olhos à sua moradia.
– Não precisam de um mandado?
– Se não obtivermos permissão do proprietário, então teremos de ir falar com o procurador. – Vanja sabia que não podiam esperar que o director cooperasse por muito mais tempo, por isso decidiu avançar uma ameaça disfarçada de preocupação.
– Obter um mandado envolve uma certa quantidade de trabalho administrativo, e claro que quanto mais pessoas virem o nosso pedido, maior é o risco de virem a ser divulgados pormenores.
Groth lançou-lhe um olhar e Vanja compreendeu que ele percebera a falsa preocupação e também que se tratava de uma ameaça.
– Pois claro. Procurem onde quiserem. Quanto mais depressa perceberem que eu não fiz mal nenhum ao Roger, melhor. – Vanja teve a sensação de que esta seria a última vez que Groth se mostrava tão cooperante.
– Tem telemóvel?
– Sim. Querem vê-lo?
– Por favor.
– Está na gaveta de cima da secretária no meu escritório. Vão agora a minha casa?
– Daqui a pouco.
Groth levantou-se. Vanja e Torkel empertigaram-se, mas ele limitou-se a enfiar a mão no bolso das calças e a tirar um pequeno molho de chaves. Três chaves. Pousou-as em cima da mesa e empurrou-as com firmeza na direcção de Vanja.
– A chave do armeiro está pendurada do lado direito dentro do armário dos produtos de limpeza. Tenho de insistir na vossa discrição. Nada de uniformes, nada de luzes azuis a faiscar. Eu sou uma pessoa respeitada na vizinhança.
– Faremos tudo o que for possível.
– Espero que assim seja. – Voltou a sentar-se, recostou-se para trás o mais confortavelmente possível, tornou a cruzar os braços. Vanja e Torkel trocaram um breve olhar. Também Vanja, por um breve instante, levantou os olhos para o espelho. Sebastian aproximou a boca do microfone.
– Não creio que consigamos avançar mais.
Vanja fez um gesto de concordância, disse as horas em voz alta e desligou o gravador. Fitou os olhos de Torkel e percebeu que estavam ambos a pensar o mesmo.
Tinham-no levado cedo de mais.
CAPÍTULO DEZOITO
SE QUISÉSSEMOS ser pedantes, na verdade Ragnar Groth vivia numa moradia geminada. O telheiro onde punha o seu carro estava ligado à casa do lado. Não era difícil detectar qual das casas lhe pertencia. Tanto Billy como Ursula perceberam instintivamente que se estavam a aproximar do endereço certo. A moradia era... mais asseada.
Todos os restos da gravilha usada no Inverno nas obras de revestimento das estradas haviam sido meticulosamente varridos da calçada e dos pavimentos exteriores à propriedade. No interior do telheiro para o automóvel tudo estava pendurado, empilhado e arrumado numa ordem impecável. Quando Billy e Ursula se encaminhavam para a casa notaram que não havia uma única folha caída do ano anterior no carreiro do jardim ou no relvado primorosamente tratado. Quando chegaram à porta da frente, Ursula passou o dedo pelo parapeito da janela mais próxima. Levantou-o, para o mostrar a Billy. Imaculado.
– Manter as coisas tão limpas deve ocupar-lhe todo o tempo que passa acordado – disse Ursula enquanto Billy inseria a chave, abria a porta e penetrava no interior.
A casa era bastante pequena: 90 metros quadrados distribuídos por dois pisos. Avançaram para um corredor estreito que conduzia a uma escada, com duas portas e dois arcos antes de lá chegar. Billy acendeu a luz do corredor e entreolharam-se. Sem dizerem uma palavra, baixaram-se e descalçaram os sapatos. Habitualmente, não se davam a esse trabalho quando revistavam a propriedade de alguém, mas nesta casa quase parecia um sacrilégio andar por ali com os sapatos da rua. Deixaram-nos em cima do tapete, embora houvesse espaço disponível na sapateira por baixo do cabide à entrada da porta. Na prateleira do cabide estava um chapéu, com um casaco pendurado por baixo. Junto ao chão encontrava-se um par de sapatos. Engraxados. Não se via neles uma mancha de relva ou um pedaço de lama. Cheiravam a limpos. Não a produtos de limpeza, simplesmente... a limpos. Isso fez Ursula pensar na casa por estrear que ela e Mikael tinham ido ver alguns anos antes. Também tinha um cheiro assim.
Impessoal.
Desabitado.
Deslocaram-se ao longo do corredor e cada um deles abriu uma das duas portas. A da direita dava para um vestiário, a da esquerda levava à casa de banho do piso de baixo. Uma rápida inspecção indicou que ambas as divisões estavam tão impecavelmente limpas e asseadas como tudo o mais na vida de Ragnar Groth. O resto da casa ofereceu confirmação adicional. A arcada do lado direito conduzia à pequena sala de estar, mobilada com bom gosto. Diante de um sofá com duas poltronas a condizer e uma mesa de centro erguia-se uma estante, onde metade das prateleiras estavam ocupadas por livros, e a outra metade por discos de vinil. Jazz e música clássica. Groth não tinha televisão. Pelo menos, na sala.
A passagem do lado esquerdo levou-os à cozinha imaculadamente limpa. As facas pendiam devidamente ordenadas numa barra magnética fixada na parede. Uma chaleira em cima da bancada. Saleiro e pimenteiro em cima da mesa. Fora isso, todas as superfícies estavam vazias. Limpas.
Subiram juntos para o piso de cima, até chegarem a um pequeno patamar quadrado com três portas. Uma casa de banho, um quarto, um escritório. Por detrás da secretária escura e pesada de madeira de carvalho, as armas de Ragnar estavam penduradas dentro de um armário trancado e aprovado oficialmente. Billy voltou-se para Ursula.
– Em cima ou em baixo?
– Tanto faz. O que é que tu preferes?
– Se eu ficar com o piso de baixo, tu podes tratar das armas.
– Está bem, e quem acabar primeiro vai tratar do telheiro e do carro?
– Combinado. – Billy fez um sinal de concordância e regressou ao piso inferior. Ursula dirigiu-se para o escritório.
Quando Vanja abraçou o seu pai, sentiu a imensa diferença. Antes e depois. Ele tinha perdido peso, mas não era só isso. Durante os últimos meses cada abraço contivera um frémito de medo engendrado pela fragilidade da vida, uma ternura desesperada em que cada toque poderia ser o último. Com os diagnósticos positivos dos médicos, de repente aquele abraço tinha um significado diferente. A ciência médica prolongara-lhes a viagem e resgatara-os da beira do abismo em que a vida deles andara ultimamente a vacilar. Agora os abraços que trocavam prometiam um futuro. Valdemar sorriu-lhe. Os seus olhos azul-esverdeados brilhavam como desde há muito não sucedia, embora estivessem a reluzir por entre lágrimas de alegria.
– Tive tantas saudades tuas.
– Eu também, pai.
Valdemar afagou-lhe uma face.
– Na verdade, é estranho. Sinto-me como se estivesse a descobrir tudo de novo. Como se fosse a primeira vez.
Vanja levantou o olhar para ele.
– Eu entendo. – Deu alguns passos para trás; não queria começar a chorar no átrio de um hotel. Fez um gesto largo na direcção da janela e do crepúsculo que começava a instalar-se lá fora.
– Vamos dar um passeio. Podes mostrar-me Västerås.
– Eu? Não venho aqui há séculos.
– Tu conheces o sítio melhor do que eu. Viveste aqui uns tempos, não foi?
Valdemar riu-se, deu o braço à filha e caminhou em direcção às portas.
– Isso foi há mil anos. Eu tinha vinte e um e acabara de conseguir o primeiro emprego na ASEA.
– Mesmo assim, conheces mais do que eu. Só estive no hotel, na esquadra da polícia, e nalguns locais de crime.
Deram início ao passeio. Falaram dos dias já longínquos em que Valdemar era um entusiasmado engenheiro estagiário em Västerås. Ambos estavam a desfrutar do tempo que passavam juntos. A sua tagarelice era apenas isso – tagarelice, e não uma maneira de evitarem a única coisa que lhes ocupava os pensamentos em cada minuto do dia.
Estava a ficar escuro; o tempo mudara e começara a cair uma chuva miudinha. Quase nem o notaram enquanto continuavam a caminhar lado a lado à beira da água. Já chovia há meia hora, com as gotas a ficarem cada vez mais grossas, quando Valdemar achou que deveriam abrigar-se nalgum lado. Vanja sugeriu que regressassem ao hotel para comerem alguma coisa.
– Tu tens tempo?
– Eu arranjo tempo.
– Não quero que te metas em sarilhos por minha causa.
– Não faz mal, a investigação pode passar sem mim durante mais uma hora.
Valdemar cedeu. Tornou a dar o braço à filha e apressaram-se a chegar ao hotel.
Vanja pediu um copo de vinho branco e uma Coca-Cola Diet enquanto o pai estudava a ementa do bar. Olhou-o. Gostava mesmo dele. Também gostava da sua mãe, mas com ela as coisas eram sempre mais complicadas, havia mais conflitos, mais disputa de espaço. Com Valdemar, sentia-se mais calma. Ele era mais flexível. Também a desafiava, evidentemente, mas em áreas onde ela se sentia mais segura.
Não por causa dos relacionamentos.
Ou das suas capacidades.
Confiava nela. Isso fazia-a sentir-se segura. Também lhe apetecia beber um copo de vinho, mas achou que era melhor não. Era provável que tivesse de trabalhar até tarde, ou pelo menos de se pôr a par de todos os desenvolvimentos do caso. Era melhor que se mantivesse alerta.
Valdemar levantou os olhos da ementa.
– A mãe mandou-te beijos. Ela queria vir comigo.
– Então porque não veio?
– Trabalho.
Vanja aquiesceu. Pois claro. Não era a primeira vez.
– Dá-lhe um abraço por mim.
A empregada de mesa levou-lhes as bebidas e eles fizeram o seu pedido. Vanja optou por um chili cheeseburger e Valdemar escolheu a sopa de peixe com aïoli e pão de alho. A empregada recolheu as ementas e afastou-se. Ergueram os copos num brinde silencioso. Ela estava ali sentada com o seu pai renascido, o mais longe das investigações e das agruras da vida quotidiana que conseguia estar, quando ouviu uma voz. Uma voz que em nenhuma circunstância teria qualquer relação com aquele momento privado.
– Vanja?
Voltou-se na direcção da voz, esperando que os seus ouvidos a tivessem enganado. Mas não. Sebastian Bergman estava a dirigir-se para eles, com o seu casaco molhado pela chuva.
– Olá, soubeste mais alguma coisa acerca do Groth?
Vanja fitou-o com uma expressão que esperava que tornasse muito claro que ele estava a importuná-los.
– Não. O que está a fazer aqui? Não tem casa para onde ir?
– Fui comer qualquer coisa e ia agora regressar à esquadra. Lembrei-me de ir ver se o Billy e a Ursula encontraram alguma coisa. Tens alguma novidade?
– Não, tirei um tempo de folga.
Sebastian olhou para Valdemar, sentado em silêncio no seu cadeirão. Vanja percebeu que tinha de intervir antes que o pai decidisse apresentar-se e, se ela tivesse mesmo pouca sorte, convidar Sebastian a tomar uma bebida com eles.
– Nós vamos só comer alguma coisa. Vá andando, que eu vou lá ter depois. Encontramo-nos na esquadra.
Uma pessoa normal não poderia deixar de perceber o tom de rejeição na voz dela, mas, quando viu Sebastian estender a mão para Valdemar com um sorriso hesitante, percebeu que se tinha esquecido. Sebastian não era uma pessoa normal.
– Sebastian Bergman. Trabalho com a Vanja.
A resposta de Valdemar foi amigável; levantou-se do cadeirão e apertou a mão a Sebastian.
– Valdemar, sou o pai da Vanja. – Vanja ficou ainda mais incomodada; sabia como o pai se interessava pelo seu trabalho e percebeu que aquele encontro poderia transformar-se em muito mais do que um breve cumprimento. Pois claro. Valdemar tornou a sentar-se e fitou Sebastian com curiosidade.
– A Vanja falou-me da maior parte dos colegas, mas julgo que não o referiu a si.
– Eu só estou ligado à equipa temporariamente. Como consultor. Sou psicólogo, não sou agente policial.
Sebastian notou uma alteração na expressão de Valdemar quando lhe disse que era psicólogo. Como se ele estivesse a rebuscar as suas memórias.
– Bergman... Não é o Sebastian Bergman que escreveu aquele livro acerca do Hinde, o assassino em série?
Sebastian apressou-se a confirmar.
– Livros. Sim. Sou eu.
Valdemar voltou-se para Vanja; parecia quase alegre.
– Mas esse foi o livro que tu me ofereceste há imensos anos, lembras-te?
– Sim.
Valdemar voltou-se de novo para Sebastian e fez um gesto para o cadeirão vazio ao lado de Vanja.
– Não se quer sentar?
– Tenho a certeza de que o Sebastian tem outras coisas para fazer, pai. Estamos no meio de uma investigação bastante complexa.
Sebastian fitou os olhos de Vanja. Era uma expressão implorante que ele estava a ver? Decerto não restavam dúvidas de que ela não o queria ali.
– Não, não, tenho muito tempo. – Sebastian desabotoou o casaco molhado, despiu-o, pendurou-o nas costas da cadeira e a seguir sentou-se. Durante todo aquele tempo continuou a olhar para Vanja com um sorriso e um olhar no rosto que só poderiam ser descritos como trocistas. Estava a gostar da situação. Ela percebia, e isso incomodava-a ainda mais do que o facto de ele permanecer ali.
– Não sabia que tinha lido o meu livro – disse-lhe Sebastian enquanto se acomodava no seu assento. – Não me disse nada.
– Se calhar não cheguei a ter oportunidade.
– Ela adorou-o – interrompeu Valdemar, sem perceber que a expressão da sua filha se ensombrava a cada palavra que ele pronunciava. – Praticamente obrigou-me a lê-lo. Julgo que foi uma das razões pelas quais decidiu ir para a polícia.
– A sério? Que maravilha! – Sebastian recostou-se no seu cadeirão com um ar satisfeito. – Pensar que tive tanta influência sobre ela!
O jogo acabara. Sebastian sorriu-lhe. Ela nunca, nunca mais voltaria a ter a última palavra. O seu querido pai acabara de o garantir.
Mikael telefonou a Ursula da estação ferroviária, por não saber se ela viria ao seu encontro ou se deveria ir sozinho para o hotel. Ursula praguejou entredentes. Não se tinha esquecido da chegada dele, mas não pensara nem um pouco no assunto durante todo o dia. Olhou para o relógio. Fora um dia muito comprido, e ainda não chegara ao fim. Estava no quarto de Groth, prestes a atacar o duplo roupeiro que continha as camisas meticulosamente dobradas, os pulôveres, a roupa interior, as peúgas e tudo o mais que Ragnar achava que não deveria ficar pendurado, com precisamente dois centímetros de distância entre os cabides.
A sua ideia inicial foi pedir ao marido que esperasse uma hora, ou perto disso. Estava com uma disposição péssima. A ausência de descobertas concretas irritava-a. Tinha começado pelas armas, mas percebera imediatamente que não levariam a parte alguma. Havia vestígios de que haviam sido disparadas recentemente, mas Groth era um atirador de competição. Sem qualquer outra bala para comparar, a informação era inútil. O resto do escritório fora igualmente uma desilusão. Nada na secretária nem no arquivador situado junto à janela ou nas estantes. Talvez pudesse haver alguma coisa no computador, mas Billy trataria disso. A casa de banho também fora uma perda de tempo. Nem sequer havia um fio de cabelo no ralo da banheira.
E agora Mikael ligara-lhe para o telemóvel e nunca mais se calava. Fora ela que lhe pedira para vir, afinal. Estava a aproximar-se a hora de jantar. Com certeza que teria de fazer uma pausa para comer... Ursula desistiu, desceu para o piso inferior e enfiou a cabeça na cozinha, onde Billy andava a revistar armários e gavetas.
– Vou sair por um bocado. Volto daqui a uma ou duas horas.
Billy olhou-a com um ar surpreendido.
– Está bem.
– Importas-te que eu leve o carro?
– Aonde vais?
– Vou só... sair para jantar.
Para Billy isso não fazia qualquer sentido. Não se lembrava de Ursula alguma vez lhe ter anunciado que ia interromper o trabalho para comer qualquer coisa. Aos seus olhos, ela era a mulher que se alimentava com as sanduíches pré-embaladas que adquiria em diversas estações de serviço e depois comia nos diversos locais de crime.
– Aconteceu alguma coisa?
– O Mikael está na cidade.
Billy fez-lhe um gesto de aquiescência com toda a compreensão que conseguiu reunir, embora toda aquela situação estivesse a tornar-se cada vez mais estranha. Mikael, o marido que Billy só vira uma vez durante dez minutos quando ele fora buscar Ursula à festa de Natal, fora a Västerås para jantar com ela.
De certeza que tinha acontecido alguma coisa.
Ursula saiu da casa e caminhou com irritação até ao carro. Quando abriu a porta percebeu de súbito que por um instante se esquecera inteiramente do motivo da viagem de Mikael até Västerås.
Não era com Mikael que ela devia estar zangada.
De modo nenhum.
Ele era uma vítima inocente. Já era bastante mau que estivesse a usá-lo para os seus próprios fins. Possivelmente ele julgava que lhe tinha telefonado porque queria vê-lo, porque sentia saudades dele e não porque a sua presença servia de lição a Torkel.
Teria de ser muito mais simpática com ele. Devia lembrar-se disso constantemente. Não castigar a pessoa errada.
Entrou no carro e pegou no telemóvel. Durante o caminho para o centro da cidade fez dois telefonemas rápidos: um para a esquadra da polícia, a fim de verificar se Torkel ainda lá estava, e outro para Mikael, para combinar onde iriam encontrar-se. Depois abrandou, para garantir que chegaria depois dele. Ligou o rádio, ouviu-o por algum tempo, deixou os seus pensamentos divagarem.
A bola tinha sido posta em movimento.
O castigo seria aplicado.
– Olá, Torkel.
Torkel voltou-se para trás e reconheceu imediatamente o homem alto e moreno que estava a levantar-se de um dos sofás da recepção. Torkel cumprimentou-o com um aceno de cabeça. Fez os possíveis por sorrir.
– Mikael, que bom ver-te. A Ursula disse que vinhas cá ter.
– Ela está aqui?
– Que eu saiba não, mas posso ir verificar.
– Não é preciso, ela sabe que estou cá. – Torkel fez um novo aceno de cabeça. Mikael tinha um ar viçoso. Havia alguns fios grisalhos entre os seus cabelos escuros e nas têmporas, mas ficavam-lhe bem. Eram mais ou menos da mesma idade, mas Torkel não conseguiu evitar sentir-se não só mais velho como também mais gasto. Decerto não envelhecera tão bem, e o facto de Mikael se ter debatido com períodos de abuso do álcool não transparecia de modo algum na sua aparência. Antes pelo contrário – parecia mais saudável e mais atlético que nunca.
Deve ser genético, pensou Torkel, mas não pôde deixar de pensar se não deveria afinal inscrever-se num ginásio. Os dois homens ficaram em silêncio por momentos. Com certeza, Torkel não queria mostrar-se inamistoso, mas por mais que se esforçasse não se lembrou de uma única coisa para dizer. Na ausência de genuíno interesse, decidiu ater-se à rotina. Jogar pelo seguro.
– Café? Posso oferecer-te um café? – Mikael disse que sim e Torkel caminhou até à entrada, passou o seu cartão, e manteve a porta de vidro aberta para que Mikael passasse. Atravessaram o open space do escritório até chegarem à sala do pessoal.
– Li as notícias sobre o crime. Parece ser um caso difícil.
– Sim, de facto é.
Torkel abriu caminho em silêncio. Ele e Mikael haviam-se encontrado em poucas ocasiões ao longo dos anos. Sobretudo no princípio, quando Ursula ainda estava há pouco tempo no departamento. Torkel e Monica tinham-nos convidado para jantar – duas ou três vezes. Nessa época ele e Ursula não eram mais do que colegas, e passavam o tempo com os seus respectivos parceiros. Isso fora antes de terem embarcado na sua relação de quarto de hotel. Há quanto tempo já durava aquilo? Quatro anos? Cinco, se contasse com aquele fim de noite em Copenhaga. No qual ele, pelo menos, pensara – com o suor frio do remorso – que seria apenas uma aventura de uma noite. Uma coisa que nunca mais se repetiria. Mas isso fora naquela época.
Agora, a relação transformara-se noutra coisa. O remorso e a certeza de que era só por uma noite tinham desaparecido e sido substituídos por um conjunto de regras tácitas.
Só no trabalho.
Nunca em terreno doméstico.
Sem planos para o futuro.
Esse último ponto fora o mais doloroso para Torkel. Quando estavam deitados lado a lado, nus e satisfeitos, tinha sido difícil – ao princípio, quase impossível – não desejar mais. Fora daqueles anónimos quartos de hotel. Mas nas poucas ocasiões em que pisara o risco e quebrara o acordo entre ambos, a expressão dela endurecera e ele ficara privado de tais encontros durante semanas. Por isso, Torkel aprendera a sua lição.
Sem planos para o futuro.
Os planos têm um custo excessivo.
E agora estava ali, naquela sala impessoal, a olhar para o café que ia enchendo a chávena. Mikael estava sentado na mesa ao lado da máquina de café, a sorver o seu cappuccino.
Como já tinham abordado tudo o que Torkel podia dizer acerca do caso, passaram à conversa de circunstância.
O tempo. (A Primavera de facto já chegou.) Como ia o trabalho de Mikael? (Na verdade, como de costume, problemas sem fim.) E como estava Bella? (Está óptima, obrigado, anda no último ano do curso de Direito.) Mikael ainda jogava futebol? (Não, o seu joelho perdera a força. Sofrera uma ruptura do menisco.) Torkel não conseguia parar de pensar no facto de ter estado na cama com a mulher de Mikael na manhã do dia anterior. Sentia que estava a ser falso.
Completamente falso.
Por que raio combinara Ursula encontrar-se com Mikael ali? Torkel suspeitava de que sabia exactamente porquê, e as suas suspeitas confirmaram-se um instante depois, quando Ursula se materializou atrás deles.
– Olá, querido. Desculpa ter-me atrasado. – Ursula passou por Torkel sem sequer olhar para ele e deu a Mikael um beijo amoroso. A seguir voltou-se para Torkel com uma expressão reprovadora.
– Tu tens tempo para ficar sentado a beber café? – Torkel ia responder-lhe quando Mikael saltou em sua defesa.
– Eu estava à tua espera na recepção, ele estava só a ser amável.
– É que nós temos imensas coisas para fazer, a tal ponto que até foi preciso trazer mais pessoas. Não foi, Torkel?
Em cheio. A presença de Mikael era o castigo de Torkel. Talvez não fosse a abordagem mais refinada, mas punha-o no seu lugar. Torkel não lhe respondeu. Não valia a pena travar aquele combate. Não com o Mikael presente. E noutra ocasião qualquer também não. Quando Ursula estava com aquela disposição ele nunca ganhava.
Torkel pediu-lhes licença para se retirar, e também fez questão de apertar firmemente a mão a Mikael antes de sair. Ao menos podia mostrar algum orgulho. Detestava a sensação de fugir com o rabo entre as pernas.
Ursula deu o braço a Mikael e saíram.
– Não conheço muito bem os restaurantes de cá, mas o Billy disse que há um bom restaurante grego não muito longe daqui.
– Parece óptimo. – Caminharam uma curta distância em silêncio e a seguir Mikael parou.
– Porque estou eu aqui?
Ursula voltou-se para o encarar, com uma expressão intrigada.
– O que queres tu dizer com isso?
– Exactamente o que disse. Porque estou eu aqui? O que é que tu queres?
– Eu não quero nada. Só pensei que como estou apenas a uma hora de Estocolmo, podíamos aproveitar a oportunidade para...
Mikael lançou-lhe um olhar penetrante. Não estava convencido.
– Já trabalhaste mais perto de Estocolmo e nunca me pediste que fosse ter contigo.
Ursula suspirou, mas fê-lo de modo que Mikael não se apercebesse.
– E foi exactamente por isso. Nunca temos tempo para nos vermos. Apeteceu-me fazer qualquer coisa diferente. Anda lá, vamos comer.
Deu-lhe o braço e arrastou-o suavemente consigo. Enquanto se encostava mais ao marido, amaldiçoou a ideia que lhe parecera tão sagaz e tão óbvia no dia anterior. O que estava ela realmente a tentar fazer? Causar ciúmes a Torkel?
Humilhá-lo?
Provar a sua independência?
Fosse qual fosse o objectivo, a presença de Mikael parecia ter cumprido a sua função. Torkel ficara claramente desconfortável com a situação, e há muito tempo que não via os ombros dele tão descaídos como quando se fora embora sem dizer uma palavra.
Por isso é que a pergunta que agora ocorria a Ursula era: O que faria ela com o marido?
CAPÍTULO DEZANOVE
AO FIM de apenas uma hora no restaurante grego, Ursula sentiu que tinha de voltar a casa de Ragnar Groth. Afinal o jantar tinha sido agradável. Melhor do que ela esperara. De facto, Mikael perguntara mais algumas vezes porque o queria ela ali. Parecia-lhe ser difícil acreditar que era apenas por querer vê-lo. O que não surpreendia, vendo bem.
A sua relação com Mikael fora árdua durante muitos anos, e era um milagre que tivesse sobrevivido, mas ao longo desse esforço os laços entre eles também se haviam tornado mais fortes. Quando se passava a conhecer as fraquezas mais íntimas do parceiro, havia algo que ou fortalecia a relação ou a aniquilava. Ambos tinham os seus defeitos. Sobretudo enquanto pais. No que dizia respeito a Bella, era como se houvesse um filtro minúsculo, uma fina película que impedia Ursula de se aproximar verdadeiramente da filha e que significava que ela punha muitas vezes o trabalho à frente da família. Noutras alturas, Ursula fora atormentada pela noção de que, subsconscientemente, parecia preferir os exames forenses e os cadáveres à sua filha viva e vibrante. Atribuía as culpas à educação que tivera, aos seus pais e ao seu cérebro, o qual dava prioridade à lógica e não às emoções. Mas algo nunca mudava: aquela fina película mantinha-se e, com ela, a mágoa devida à sua incapacidade para estabelecer ligações. Sentia sempre que devia ter estado presente mais vezes, ter-se envolvido mais. Em particular durante aqueles períodos em que Mikael reincidira no abuso do álcool. Quando isso acontecera ao longo dos anos, os avó paternos e maternos tinham ido em seu auxílio.
Apesar das fraquezas dele, Ursula não podia deixar de admirar Mikael. Jamais permitira que o seu vício destruísse a segurança financeira da família ou tornasse impossível que ela e Bella continuassem lá em casa. Em vez disso, quando as coisas se tornavam verdadeiramente más, ele retirava-se. Como um animal ferido. A pessoa que mais decepcionava a cada recaída era ele próprio. A sua vida era uma longa batalha contra as próprias insuficiências.
Era isso que Ursula considerava ser a chave do seu amor por Mikael. Ele nunca desistira. Apesar de todos os seus defeitos, dos lapsos, das esperanças desfeitas, continuava a batalhar. Mais determinado do que ela, mais forte do que ela. Caía, fraquejava, mas levanta-se e prosseguia.
Por ela.
Por Bella.
Pela família.
E Ursula era leal aos que combatiam por si. Inabalavelmente leal. Podia não ser muito romântico, não seria o sonho de uma relação perfeita para uma adolescente, mas Ursula sempre dera mais valor à lealdade do que ao amor. Era preciso que houvesse pessoas que lutassem por nós e com quem estabelecêssemos uma ligação. Elas mereciam-no. Se faltasse alguma coisa no seio da relação, havia que ir procurá-la noutro sítio.
Torkel não tinha sido o seu primeiro amante, embora ele sem dúvida julgasse que sim. Não, houvera outros. No início da sua relação com Mikael ela complementara-o com outros. A princípio tentara reprovar as suas acções, mas isso fora impossível. Por mais que tentasse. Não acreditava inteiramente que estivesse a desapontar Mikael. As suas aventuras extraconjugais tornavam possível que se mantivessem juntos. Precisava ao mesmo tempo da complexidade emocional que encontrava em Mikael e da intimidade física sem exigências junto de alguém como Torkel. Ela era como uma pilha que para funcionar precisava de ter um pólo positivo e outro negativo. Caso contrário, sentia-se vazia.
Havia, no entanto, uma coisa que exigia a ambos.
Lealdade.
E era por isso que Torkel a tinha desapontado. Era essa a simples explicação para a sua decisão de unir os dois pólos e causar um curto-circuito. Tomara uma decisão infantil e emocional e não pensara nela muito bem. Mas pelo menos funcionara.
E o jantar tinha sido agradável.
Deixou Mikael à porta do restaurante, prometendo regressar ao hotel logo que possível, mas explicando-lhe que poderia demorar um bocado. Mikael disse-lhe que levara um livro consigo, portanto não fazia mal. Ela não precisava de se preocupar.
Após o encontro com Mikael, a noite de Torkel prosseguiu a sua trajectória descendente. Billy telefonou-lhe quando regressou da casa de Groth, para reportar que não tinham encontrado nada. Nem sangue em peças de roupa nem sapatos enlameados, nenhum vestígio de que Roger – ou qualquer outra pessoa – tivesse estado lá em casa. O carro não tinha pneus Pirelli, nem havia vestígios de sangue na viatura ou no estacionamento por baixo do telheiro. Não encontrara qualquer recipiente de líquido altamente inflamável nem roupas que cheirassem a fumo. Nada que ligasse Groth aos homicídios de Roger Eriksson ou de Peter Westin.
Nada.
Rigorosamente nada.
Billy tencionava analisar o computador de Groth mais uma vez, mas aconselhou Torkel a não esperar grande coisa.
Torkel concluiu o telefonema com um suspiro. Sentou-se à mesa e contemplou, sem a ver, a parede que continha todas as fotografias e informações acerca do caso. Poderiam deter Groth por vinte e quatro horas, mas Torkel honestamente não conseguia perceber como é que de momento poderiam tornar mais forte o caso contra ele. Nenhum procurador no mundo concordaria em detê-lo com base no que tinham até agora. Por isso não fazia muita diferença que o libertassem nessa noite ou na manhã seguinte.
Torkel estava prestes a levantar-se quando Vanja entrou, apressada, na sala. Não esperava voltar a vê-la nesse dia. Ela dissera-lhe que tinha de tratar de alguns assuntos pessoais.
– Por que raio trouxeste o Sebastian Bergman para esta investigação?
Os seus olhos relampejavam de fúria. Torkel olhou-a com um ar cansado.
– Creio que já expliquei isso vezes suficientes.
– Foi uma decisão estúpida.
– Aconteceu alguma coisa?
– Não, não aconteceu nada. Mas ele tem de ir embora. Está a dar cabo de tudo.
O telemóvel de Torkel tocou. Olhou para o ecrã. Era o superintendente-chefe. Torkel lançou a Vanja um ligeiro olhar de desculpa e atendeu. Trocaram informações durante perto de um minuto.
Torkel foi informado de que o Expressen havia relacionado Peter Westin com o Liceu Palmlövska, e por conseguinte com Roger Eriksson. Estava na Internet.
O superintendente-chefe foi informado de que Torkel tencionava libertar Ragnar Groth. E porquê. Torkel foi informado de que o superintendente-chefe não estava contente. O caso tinha de ser resolvido. E depressa.
O superintendente-chefe foi informado de que eles estavam a fazer o melhor que podiam.
Torkel foi informado de que o superintendente-chefe esperava que Torkel falasse aos jornalistas que estavam reunidos à porta da esquadra antes de sair ao fim do dia.
O superintendente-chefe desligou. Torkel fez o mesmo, mas isso não significava que os seus problemas tivessem chegado ao fim; percebeu-o logo que foi confrontado com o olhar de Vanja.
– Vamos libertar o Groth?
– Sim.
– Porquê?
– Ouviste o que eu disse ao telemóvel, não ouviste?
– Sim.
– Então, aí tens.
Vanja ficou em silêncio por uns instantes, como se estivesse a processar a informação que acabara de receber. Depressa chegou a uma conclusão.
– Detesto este caso. Detesto toda esta cidade. – Virou-lhe as costas, caminhou em direcção à porta, abriu-a, depois parou e voltou-se de novo para Torkel.
– E detesto o Sebastian Bergman.
Vanja saiu da sala, fechando a porta atrás de si. Torkel ficou a vê-la atravessar o escritório vazio. Com certa fadiga, retirou o casaco das costas da cadeira. A sua súbita decisão de trazer Sebastian para a equipa tivera de facto alguns custos.
Meia hora depois, Torkel já tratara de todos os pormenores relacionados com a libertação. Ragnar Groth tinha sido bem-educado, mas dissera pouco. Repetira a sua esperança de que tivessem sido discretos e pedira um carro civil ou um táxi para o levar a casa e que devia esperar por ele na porta das traseiras da esquadra. Não tinha a mínima intenção de sair pela porta da frente e de se transformar num alvo para a imprensa. Como não era possível arranjar um carro civil àquela hora tardia, Torkel mandou chamar um táxi. Trocaram cumprimentos de despedida. Groth exprimiu a esperança de não ter de voltar a vê-los. Torkel não pôde deixar de pensar que o sentimento era mútuo. Esperou até que as luzes traseiras do táxi tivessem desaparecido. Permaneceu ali, tentando pensar em alguma coisa que fosse necessário fazer. Algo a que pudesse atribuir prioridade com a consciência limpa. Não conseguiu. Não tinha outra opção senão ir enfrentar a imprensa.
Se havia uma coisa que Torkel detestava no seu emprego era a maneira como o relacionamento entre a polícia e a imprensa se tornara cada vez mais importante. Claro que compreendia a necessidade que o público tinha de informação, mas começara a pôr seriamente em causa se era mesmo isso que hoje em dia motivava os jornalistas. Tratava-se apenas de atrair leitores, e nada parecia vender melhor do que o sexo, o medo e o sensacionalismo. Isso levava a uma tendência para assustar em vez de informar e a uma relutância em dar a alguém o benefício da dúvida. A imprensa também decidia logo numa fase inicial que era do melhor interesse do público revelar a identidade de qualquer possível criminoso. Nomes e fotografias. Antes do julgamento.
E, em cada reportagem, Torkel sentia sempre que havia uma terrível mensagem subjacente: Isto podia acontecer-te a ti.
Não estás a salvo.
Podia ser o teu filho.
Era isso que Torkel achava mais difícil. A imprensa simplificava situações complexas, chafurdava na tragédia e não criava nada a não ser medo e suspeita entre o público.
Tranca-te em casa.
Não saias à noite.
Não confies em ninguém.
Medo.
Era isso que eles andavam a vender.
Quando Ursula finalmente chegou ao hotel ao fim de duas horas, estava com uma péssima disposição.
A qual só iria piorar.
Quando regressara a casa de Groth, Billy tinha o trabalho quase concluído. Haviam-se sentado à mesa da cozinha para ele lhe poder contar o que encontrara. Não demorara muito tempo.
Nada.
Absolutamente nada.
Ursula suspirara. Ao princípio, apreciara a paixão de Ragnar Groth pelo asseio, mas agora, que todas as descobertas interessantes se faziam notar pela sua ausência, sentia que a natureza pedante dele era simplesmente prejudicial para a investigação. Groth nunca faria nada que não fosse pensado ou planeado. Nunca esconderia algo por descuido nem permitiria que as principais provas fossem descobertas por acaso. Se ele escondera alguma coisa, teria garantido que ela permanecesse oculta.
Nada.
Absolutamente nada.
Não encontraram pornografia, nem substâncias proibidas, nem cartas de amor escondidas, nem ligações suspeitas no computador, nada que confirmasse uma relação sexual com Frank Clevén ou outros homens. Não fora o telemóvel dele que enviara as mensagens de texto a Roger Eriksson. Por amor de Deus, nem sequer tinham encontrado qualquer aviso para pagar uma conta em atraso. Ragnar Groth era inumanamente perfeito.
Billy partilhava a frustração de Ursula e desligara o computador a fim de poder levá-lo para o escritório e analisá-lo uma terceira vez, com software mais avançado.
No entanto, o que faltava não era apenas algo de proibido. Nos pertences de Groth não havia nada de particularmente pessoal. Quaisquer fotos suas ou de alguém que parecesse gostar dele, nem pais, nem parentes, nem amigos, nem cartas, nem postais natalícios guardados algures, nem bilhetes de agradecimento, nem convites. A coisa mais pessoal que tinham encontrado era uma cópia das suas qualificações. Perfeitas, claro. Billy e Ursula ficaram cada vez mais convencidos de que a vida íntima do director – caso a tivesse – estaria noutro local.
Decidiram que Billy levaria o carro para a esquadra e apresentaria o relatório a Torkel. Ursula ficou mais algum tempo, para revistar outra vez o piso de cima. Decidida a confirmar que não lhe escapara alguma coisa por Mikael ter aparecido. Não encontrou nada.
Absolutamente nada.
Apanhou um táxi para o hotel e foi directamente para o seu quarto.
Mikael estava em frente ao televisor a ver o Eurosport. Ursula sentiu que havia algo de errado logo que penetrou no quarto escassamente mobilado. Mikael levantou-se um pouco depressa de mais e o seu sorriso era demasiado alegre. Sem dizer uma palavra, Ursula avançou até ao minibar e abriu-o. Vazio, exceptuando duas garrafas de água mineral e uma lata de sumo. No caixote do lixo avistou as garrafinhas de plástico proibidas. Ele nem sequer tentara escondê-las. Não era o suficiente para o deixar bêbado. Mas um pouco já era demasiado.
Um excesso.
Ursula olhou para ele e quis sentir-se zangada. Mas o que esperara verdadeiramente? Existe uma razão para que os pólos positivo e negativo se situem nas extremidades opostas de uma pilha.
Não é suposto que eles se encontrem.
Haraldsson estava bêbado.
Não acontecia com frequência. O seu consumo de álcool era normalmente modesto, mas, para surpresa de Jenny, ele tinha aberto uma garrafa de vinho para acompanhar o jantar e esvaziara-a ao fim de duas horas. Jenny tinha perguntado se acontecera alguma coisa e Haraldsson murmurara algo a respeito de estar com muito trabalho. O que podia dizer? Jenny não sabia nada acerca da mentira que ele propagara. Não sabia nada a respeito da vigilância privada que ele efectuara ao prédio de Axel Johansson nem das consequências dos seus actos. Não sabia nem nunca iria saber.
Ficaria a pensar que ele era um idiota.
Como, de facto, era.
De momento, um idiota ligeiramente ébrio. Estava sentado no sofá a percorrer os canais da televisão por cabo. Com o som desligado, para não acordar Jenny. Tinham feito sexo. Evidentemente. O espírito dele estava alheado. O que não fizera qualquer diferença. Evidentemente. E agora ela estava a dormir.
Precisava de um plano. Naquele dia sofrera um duro golpe por parte de Hanser, embora não tivesse ido ao tapete. Haveria de mostrar-lhes que não era possível derrubar Thomas Haraldsson. Quando fosse para o trabalho, no dia seguinte, teria a sua vingança. Mostrar-lhes-ia a todos. Mostraria a Hanser. Tudo o que precisava era de um plano.
Começava a parecer cada vez mais improvável que fosse ele a capturar o assassino de Roger Eriksson. De momento tinha mais hipóteses de ganhar um milhão numa raspadinha. Sem comprar o cartão. Não tinha autorização para, de futuro, se envolver na investigação,a Hanser certificara-se disso. Mas quanto a Axel Johansson – aí ainda havia uma possibilidade. Tanto quanto Haraldsson sabia, a Riksmord tinha um outro suspeito sob custódia. O director da escola do rapaz. Axel Johansson não fora eliminado, tanto quanto Haraldsson sabia, mas fora-lhe atribuída uma baixa prioridade.
Haraldsson estava irritado consigo mesmo por não ter levado para casa toda a informação disponível acerca de Johansson. Também amaldiçoava o facto de ter estado a beber, porque senão teria ido de carro buscá-la à esquadra. Apanhar um táxi para lá ir e voltar teria sido dispendioso e dado muito trabalho, entre outras coisas. Em circunstância nenhuma queria encontrar-se com os colegas naquele estado. Teria de reunir todas as informações no dia seguinte. Quando já tivesse aperfeiçoado o seu plano.
Haraldsson sabia que a equipa de Torkel tinha falado com a ex-namorada de Johansson. Precisava de saber o que ela dissera. Telefonar-lhe ou ir ter com ela e interrogá-la não era uma opção. Se o fizesse e Hanser viesse a saber, teria mais problemas ainda. Hanser fora muito clara – excessivamente clara – sobre o facto de que, se Haraldsson passasse nem que fosse mais um minuto no caso de Roger Eriksson, mandaria prendê-lo por levantar obstáculos à investigação. Uma brincadeira, claro. Ou melhor, um aviso. Uma forma de demonstrar o seu poder e de colocar Haraldsson no lugar por ter cometido um pequeno erro desta vez. Ela caíra-lhe logo em cima. A cabra da Hanser... Haraldsson respirou fundo.
Concentração.
Não valia a pena desperdiçar tempo e energia a praguejar contra a Hanser. Tinha de conceber um plano. Um plano para a colocar a ela no seu lugar. Um plano que viesse a provar qual deles era o melhor polícia. Entrar em contacto com a ex-namorada de Axel Johansson estava fora de questão, mas alguém da Riksmord tinha falado com ela, e embora Haraldsson já não pudesse aceder a tudo o que estava relacionado com a investigação, havia outros que podiam.
Pegou no telemóvel, procurou um número na lista de contactos e premiu Chamar. Era perto da meia-noite, mas o telefone foi atendido quase imediatamente.
Radjan Micic.
Essa era uma das vantagens de se ter trabalhado no mesmo sítio durante muito tempo. Faziam-se amigos. Amigos aos quais por vezes se prestava um pequeno favor, e que por conseguinte estavam dispostos a ajudar-nos quando precisávamos.
Nada de coisas estranhas.
Nada de ilegal, nada disso.
Só uma ajudinha para tornar a vida mais fácil. Redigir um relatório por alguém, quando tinham de sair à pressa para ir buscar os miúdos à creche. Passar de carro pela loja de bebidas numa tarde de sexta-feira. Dar cobertura, dar ajuda. Pequenos favores que facilitavam a vida a todos os envolvidos. Favores que implicavam que se podia pedir um favor em troca.
Quando Hanser assumira a responsabilidade de tentar localizar Axel Johansson, atribuíra essa tarefa a Radjan. Isso significava que ele tinha acesso a todo o material relacionado com o contínuo desaparecido. A conversa durou menos de dois minutos. Radjan estava na polícia de Västerås há quase tanto tempo como Haraldsson. Compreendeu perfeitamente, e claro que iria imprimir a entrevista com a namorada do Johansson. Estaria em cima da secretária de Haraldsson quando ele chegasse na manhã seguinte. Radjan era realmente um excelente colega.
Ao pousar o telefone ao seu lado sobre o sofá, com um sorriso de satisfação no rosto, Haraldsson descobriu que Jenny estava à entrada da porta, a olhar para ele, sonolenta.
– Com quem estavas a falar?
– Com o Radjan.
– A esta hora da noite?
– Sim.
Jenny foi sentar-se ao seu lado no sofá, colocando os pés por baixo dela.
– O que estás a fazer?
– A ver televisão.
– O que estás a ver?
– Nada.
Jenny apoiou o seu braço no sofá e colocou a mão na cabeça do marido. Começou a acariciar-lhe o cabelo enquanto se aninhava sob o seu ombro.
– Alguma coisa aconteceu. Conta-me.
Haraldsson fechou os olhos. Tudo estava a rodopiar ligeiramente. Sentia que queria contar-lhe. Apetecia-lhe falar-lhe sobre o trabalho. Sobre a Hanser. De uma maneira adequada. Não apenas lamuriar-se e ridicularizar-se. Queria dizer-lhe como estava assustado. Assustado por a vida estar a escoar-se entre os seus dedos. Assustado por não conseguir prever o que seria daí a dez anos. O que estaria a fazer. Quem seria. Queria dizer-lhe que o futuro o assustava. Que tinha medo de que nunca viessem a ter um filho. A relação deles sobreviveria a isso? Jenny iria deixá-lo? Queria dizer-lhe que a amava. Não lho dizia com frequência suficiente. Havia muita coisa que ele lhe queria dizer, mas na realidade não sabia como. Por isso, limitou-se a abanar a cabeça e a recostar-se com os olhos fechados enquanto a mão dela prosseguia as suas carícias.
– Anda para a cama. – Jenny beijou-lhe a face. Haraldsson percebeu como estava cansado. Cansado e bêbado.
Foram para a cama.
Deitaram-se perto um do outro. Os braços de Jenny à volta dele. Apertando-o. Sentia a suave respiração dela no seu pescoço. Intimidade. Tinha sido há muito tempo. O sexo fazia parte da vida quotidiana, mas a intimidade... Percebeu como lhe sentia a falta enquanto o sono o dominava.
Quem é culpado foge.
Um último pensamento lúcido.
São os culpados que fogem.
Havia ali uma conclusão. Um padrão. Estava ali, mas o seu cérebro toldado pelo álcool não conseguia apreendê-lo. Thomas Haraldsson adormeceu, num sono profundo e sem sonhos.
Pouco depois da meia-noite, Torkel conseguiu finalmente escapar-se da conferência de imprensa. Tinha evitado responder a perguntas específicas sobre uma possível ligação entre os homicídios. Ignorara a pessoa que queria saber se eles haviam detido algum funcionário do Liceu Palmlövska que estivesse relacionado com os homicídios, e esperava ter transmitido a impressão de que a investigação estava a fazer constantes progressos e que era apenas uma questão de tempo até o caso ser resolvido.
Caminhou rapidamente para o hotel, esperando que a cozinha não estivesse fechada. Sentia-se faminto e tencionava fazer uma ceia tardia no pequeno restaurante. Quando lá chegou percebeu que não era o único que tivera um dia mau. Mikael encontrava-se sentado no bar. Com uma bebida à sua frente. O que não era bom. Torkel estava a tentar escapar dali para fora quando Mikael o avistou.
– Torkel!
Torkel parou e acenou-lhe.
– Olá, Mikael.
– Vem tomar uma bebida comigo!
– Não, obrigado. Ainda tenho algum trabalho para fazer.
Torkel tentou despedir-se dele com um sorriso, tornando tão claro quanto possível que não estava interessado, sem ser desagradável. Não resultou. Mikael levantou-se do banco do bar e avançou em direcção a Torkel numa linha tão recta quanto conseguiu. Torkel só teve tempo para pensar, Foda-se, ele está bêbado, antes de Mikael o alcançar e ficar demasiado perto. Torkel sentiu-lhe o hálito. Uísque e algum tipo de álcool mais adocicado. Não só estava demasiado perto, como a sua voz era também demasiado alta.
– Está tudo fodido, Torkel, dei cabo de tudo. E em grande.
– Estou a ver que sim.
– Tu podias dar-lhe uma palavrinha.
– Não me parece que seja boa ideia. Isso é entre vocês os dois ...
– Mas ela gosta de ti. Ouve o que tu dizes.
– Mikael, eu realmente acho que devias ir para a cama.
– Com certeza que podemos tomar uma bebida. Só uma bebida?
Torkel abanou a cabeça com firmeza, tentando freneticamente descobrir como escapar à situação. Não tinha qualquer desejo de maior intimidade com Mikael. Já se sentia suficientemente mal, e a própria noção de ficar a conhecer melhor o homem era aterradora. De súbito compreendeu a importância das regras de Ursula.
Sempre no trabalho.
Nunca em terreno doméstico.
Isto era pior que o terreno doméstico. Mas fora ela que quebrara as regras. Fora ela que convocara o marido, o homem que estava agora encostado contra si, a precisar de alguém. Alguém com quem pudesse partilhar os seus sentimentos.
– Fiz uma grande trapalhada. Eu amo-a, tens de entender isso. Mas ela é complicada. Percebes? Quero dizer, tu trabalhas com ela. Tu sabes como é, não sabes?
Torkel decidiu agir. Levaria Mikael para o quarto de Ursula e deixá-lo-ia lá. Era essa a coisa certa a fazer. Enfiou a sua mão por baixo do braço de Mikael e conduziu-o gentilmente, mas com firmeza, para fora do bar.
– Anda lá, eu ajudo-te a chegar ao teu quarto.
Mikael cooperou. O elevador já estava à espera, dado que não demoraram muito a afastar-se da recepção e do olhar no rosto da rapariga que lá estava. Torkel premiu o botão do quarto piso. Irá ele pôr-se a pensar como é que eu sei o número do quarto da Ursula? Refutou rapidamente essa ideia. Afinal, eram colegas. Claro que sabiam os números dos quartos uns dos outros. Mikael olhou para ele.
– Tu és um bom homem. A Ursula está sempre a dizer coisas boas a teu respeito.
– É bom saber isso.
– Foi tão estranho, ela telefonar-me. Quero dizer, quando a Ursula está no trabalho, está no trabalho. Ela tem regras. Quando se está a trabalhar, está-se a trabalhar. Nunca tenho notícias dela. Foi sempre assim. Dou-me bem com isso.
Mikael respirou fundo. Torkel não disse nada.
– Mas ontem telefonou-me e queria que eu viesse cá ter. O mais depressa que pudesse. Estás a compreender?
Esta estava a tornar-se uma das mais longas viagens de elevador que Torkel alguma vez experimentara. Ainda iam só no segundo piso. Afinal talvez tivesse sido melhor deixar Mikael no bar e sair de lá sozinho.
– As coisas têm andado realmente difíceis entre nós, sabes. Por isso, pensei que ela queria dizer-me que estava tudo acabado, ou uma coisa assim. Dizer-me que tinha tomado uma decisão. Por que outro motivo haveria ela de me pedir para vir aqui, valha-me Deus? Isso nunca aconteceu antes.
– Não sei, Mikael. É melhor falares com a Ursula acerca disso.
– É que ela é assim. Pumba, e já tomou uma decisão. Que tem de ser cumprida imediatamente. Por isso, o que haveria eu de pensar?
– Não imagino que ela queira o divórcio.
Por fim tinham chegado ao quarto piso. Torkel abriu rapidamente a porta de vidro e saiu para o exterior. Mikael ficou onde estava.
– Talvez não, mas foi isso que eu pensei. Quero dizer, ela não me disse nada. Jantámos e a seguir deixou-me no quarto. Perguntei-lhe porque quisera que eu viesse até cá e ela só disse que me queria ver. Mas isso não é verdade.
– Anda lá. – Torkel acenou a Mikael, o qual saiu do elevador com certa dificuldade. Avançaram juntos pelo corredor.
– Por isso, tirei uma garrafa do minibar. Estava nervoso. Tinha a certeza de que ela me ia deixar.
Torkel não respondeu. O que podia dizer? Mikael parecia um disco riscado. Quando chegaram à porta, Torkel bateu.
– Julgo que ela não está aí. Saiu. Não gosta de me ver neste estado. Mas eu tenho a chave.
Mikael vasculhou os bolsos e após o que pareceu uma eternidade tirou de lá o cartão branco e entregou-lho. Quando o seu olhar se cruzou com o de Mikael por uma fracção de segundo, Torkel reparou que ele tinha lágrimas nos olhos.
– Por que outro motivo me convidaria ela a vir aqui?
– Não sei. Realmente não faço ideia – mentiu Torkel. Abriu a porta. O quarto cheirava a álcool e a Ursula, uma combinação que Torkel nunca experimentara antes. Entraram e Mikael deixou-se cair num dos dois cadeirões que estavam ao canto. Parecia transtornado.
– Dei cabo de tudo, foda-se.
Torkel contemplou o homem destroçado sentado no cadeirão e sentiu pena dele. Mikael estava inocente. Ele e Ursula eram culpados. Torkel queria ir-se embora, mas ao mesmo tempo não conseguia decidir-se a sair dali. Por um instante, debateu-se com a ideia de contar a Mikael.
Contar-lhe tudo.
Explicar-lhe exactamente porque é que Mikael estava sentado no canto de um quarto de hotel em Västerås, bêbado.
Dizer-lhe que a culpa era dele, Torkel.
Era ele que devia ser castigado.
Não Mikael.
De súbito Ursula estava à entrada da porta. Não disse uma palavra. Presumivelmente sentia o mesmo que Torkel: que havia muitas coisas que gostaria de dizer e de fazer, mas que nenhuma delas era apropriada de momento. O silêncio era a única melodia que ela podia tocar.
Torkel fez um breve aceno de cabeça e foi-se embora.
Sem saber que Torkel tinha saído do edifício há menos de uma hora, Billy estava sentado com os pés em cima da secretária na pequena sala em que ele mais ou menos vivia enquanto visionava os vídeos das câmaras de vigilância. Estava a comer um biscoito de chocolate para aumentar os níveis de açúcar no sangue. Exausto ao fim de um longo dia. Fechou os olhos por um instante e ficou ali sentado, absorvendo os sons do escritório deserto, às escuras. Para além do débil zunido das ventoinhas, conseguia ouvir o software mais recente da Stelar Phoenix Windows Data Recovery lutando contra o disco rígido de Ragnar Groth. O programa estava a procurar ficheiros eliminados, e aquele zumbido feroz dizia-lhe que continuava a trabalhar.
Billy sabia que havia alguma coisa em qualquer lado. Havia sempre. A questão era saber se estavam ou não a procurar no sítio certo. Normalmente os computadores escondiam mais do que as pessoas julgavam, e era por isso que ele continuava a procurar. A maioria das pessoas não tinham consciência da quantidade de informação que permanece no disco rígido mesmo após os ficheiros terem sido eliminados. Quando o utilizador premia a função Eliminar, o sistema de alocação de ficheiros que governava a área do disco rígido onde a informação estava armazenada não removia o ficheiro propriamente dito, somente a referência a ele. Isso significava que a informação continuava lá, no fundo do disco rígido. Porém, no que dizia respeito ao computador de Groth, Billy começava a sentir um certo cepticismo. Já verificara por duas vezes – embora com programas menos eficazes – e não encontrara nada de interesse. Nem havia qualquer indicação de que Groth tivesse usado os poderosos algoritmos que podiam limpar permanentemente um disco rígido, antes pelo contrário. Billy tinha encontrado uma grande quantidade de mensagens de correio electrónico e documentos apagados, que infelizmente não haviam revelado nada de interesse no que dizia respeito à investigação.
Billy espreguiçou-se. O software concluiria a sua busca dentro de quinze ou vinte minutos. Não era tempo suficiente para iniciar outra tarefa, mas era tempo demasiado para ficar ali sentado. Passeou-se pela sala para restaurar a circulação, e durante um segundo debateu-se com a ideia de ir lá abaixo comprar mais uma barra de chocolate na máquina do piso térreo. Decidiu resistir; o seu consumo de açúcar já era demasiado elevado, e sabia que, se comesse mais chocolate agora, dentro de algumas horas quereria ainda mais.
A sua atenção foi atraída por um dos monitores que estavam em cima da secretária. Mostrava uma imagem imobilizada da derradeira sequência de movimentos de Roger. O rapaz estava ligeiramente voltado para o outro lado, na direcção do motel. Pelo menos tinha sido isso que eles haviam assumido naquela manhã; agora já não parecia tão nítido. Billy deitou mãos ao teclado e começou a fazer avançar as imagens lentamente. Analisou os últimos passos do rapaz imagem a imagem. A última coisa a desaparecer era a perna direita e um dos ténis. A imagem estava agora vazia, à excepção da janela traseira do carro atrás do qual Roger desaparecera; a janela era visível num dos cantos do ecrã.
Billy teve uma ideia. Assumira desde o início que Roger tinha continuado a caminhar, e por isso andara a ver se ele aparecia nalguma outra câmara. Mas e se Roger se tivesse encontrado com alguém, tivesse ido tratar de um assunto qualquer, e ao fim de algum tempo tivesse voltado para trás e regressado ao mesmo local? Isso não ultrapassava os limites das probabilidades; em todo o caso valia a pena tentar, e era muito mais útil do que comer chocolate.
Billy instalou-se e começou. Voltou à última imagem em que Roger aparecia e começou a partir daí. Aumentou a velocidade para o quádruplo. Billy contemplou a rua vazia. O código temporal continuava a avançar: um minuto, dois, três. Billy aumentou a velocidade para o dobro, a fim de poupar tempo. Ao fim de treze minutos viu o carro atrás do qual Roger desaparecera afastar-se do local, deixando a rua completamente deserta. Billy prosseguiu, agora dezasseis vezes mais depressa. Daí a pouco surgiram duas figuras, que se moviam na imagem a dezasseis vezes a sua velocidade habitual. O aspecto era muito divertido. Billy parou e retrocedeu até tornar a ver as duas figuras. Era um casal de idosos com um cão, caminhando na direcção oposta à de Roger. Não havia nada que indicasse que eles estariam a fazer mais do que passear o cão. Mesmo assim, Billy tomou nota das horas e decidiu pedir a Hanser que os localizasse. Com alguma sorte, poderiam ter visto qualquer coisa. Reiniciou a gravação. Os minutos foram passando, mas nada aconteceu. Roger não regressou.
De repente, Billy teve uma ideia: aquele carro, o carro que se afastara cerca de treze minutos após Roger ter passado por ali... quando chegara? Com dois cliques, regressou ao ponto em que Roger podia ser visto de novo na imagem. Tinham assumido que o carro estava estacionado à beira da estrada, como um objecto inanimado. Mas esse mesmo carro fora conduzido dali para fora treze minutos depois. Billy continuou a retroceder na gravação e descobriu que o carro havia entrado na imagem em marcha-atrás somente seis minutos antes de Roger aparecer. Qualquer fadiga que Billy pudesse ter sentido foi eliminada pela compreensão de que o carro estivera parado muito perto de Roger durante uns meros dezanove minutos. Subitamente, Billy sentiu-se um idiota; cometera o pecado capital de limitar as interpretações possíveis das provas que tinha à sua frente. Deixara-se envolver na busca de um padrão particular sem deixar a porta aberta a mais nada. Até aí, Roger passara de uma câmara para outra, sempre em movimento. E fora isso que Billy continuara a procurar. Roger a mover-se. Para a câmara seguinte.
Agora que tinha aberto a porta a outras possibilidades, sabia que havia mais cenários, altamente credíveis. O carro poderia não estar vazio. Era possível que a pessoa que o estacionara seis minutos antes de Roger ali passar estivesse lá sentada durante todo o tempo. Billy só conseguia ver uma parte da janela traseira do lado esquerdo; era impossível dizer-se se alguém saíra do carro ou não, mas tornou a clicar na imagem de Roger e reiniciou o vídeo. Tentou dizer a si mesmo que estava a vê-lo pela primeira vez.
Sem ideias preconcebidas.
Roger entrou na imagem vindo da direita, deu alguns passos, depois atravessou a rua. Billy parou o vídeo e visionou-o imagem a imagem. Lá estava! Roger de repente virava a cabeça ligeiramente para a esquerda, como se alguma coisa lhe tivesse despertado a atenção. Depois continuava a atravessar a rua. Billy tornou a passar o vídeo. Agora, que deixara de ter visão de túnel, era igualmente possível imaginar que Roger caminhava por detrás do carro e o contornava para chegar à porta do lado do passageiro.
Billy respirou fundo. Nada de conclusões precipitadas. Verificar com cuidado. Concentração na imagem. No carro. Parecia ser um Volvo. Azul-escuro ou preto. Não carrinha, mas um sedan. Não o novo modelo, mas talvez de 2002 a 2006; teria de verificar. Mas era de certeza um Volvo sedan de quatro portas. Billy começou a avançar a gravação imagem a imagem, concentrando-se no carro. Só no carro, em nada mais. Cinquenta e sete segundos e seis frames após Roger desaparecer, Billy viu qualquer coisa em que não reparara antes. O carro balouçou ligeiramente, durante pouco tempo, como se uma das portas tivesse sido fechada. Não era muito nítido e talvez ele estivesse enganado. Mas poderia verificá-lo em breve.
Billy carregou a sequência num programa simples com software de estabilização de imagem. Podia partir do princípio de que a câmara de vigilância estava fixa e não se movia, pelo que qualquer movimento possível teria de vir do objecto que estava na imagem. Billy assinalou rapidamente alguns pontos de movimento no bordo metálico da janela traseira por cima do volante. Aos 00:57:06 esses pontos de facto moviam-se alguns milímetros e depois estabilizavam num nível ligeiramente inferior. Alguém abrira uma porta do carro, entrara e fechara-a com força. O facto de os pontos se estabilizarem a um nível mais baixo indicava que o carro continha agora mais peso. Alguém entrara no carro. Presumivelmente Roger.
Billy olhou para o relógio. Quase meia-noite e meia. Nunca era demasiado tarde para telefonar a Torkel. Era mais provável que Torkel ficasse incomodado se ele não lhe telefonasse. Pegou no telemóvel e carregou na tecla de marcação rápida para lhe ligar. Enquanto esperava que ele atendesse, olhou para a imagem no ecrã. O novo curso dos eventos explicaria muitas coisas.
Roger não tinha sido apanhado por outras câmaras porque não continuara a andar.
Estava dentro do Volvo de cor escura.
Provavelmente a caminho da sua morte.
CAPÍTULO VINTE
LENA ERIKSSON estava sentada na cadeira deixada vaga por Billy cerca de sete horas antes, olhando à sua volta com surpresa. Havia imensas pessoas dentro daquela pequena sala; já conhecia a maior parte delas, exceptuando o jovem agente que estava a fazer qualquer coisa com um teclado diante dos dois grandes ecrãs de computador sem imagem.
Tantos agentes policiais só podiam significar uma coisa.
Acontecera algo.
Algo de importante.
Tivera essa sensação logo que lhe tinham tocado à campainha, e ela ia-se tornando cada vez mais forte. Eram 06h45 da manhã quando se arrastara para fora da cama após a campainha tocar repetidamente durante muito tempo, e fora abrir a porta. A jovem agente que tinha ido visitá-la alguns dias antes apresentara-se-lhe outra vez, falando com rapidez e ansiedade.
Precisavam da sua ajuda.
Toda aquela situação – a hora matutina, o tom sério e o pedido conciso da agente policial, a urgência com que ela quisera que Lena a acompanhasse, tudo isso apagara dias de sono inconstante e de medo. O corpo de Lena recuperara a energia.
Tinham ido de carro, atravessando a manhã cinzenta e brumosa sem dizerem uma palavra. Estacionaram por baixo da esquadra da polícia, numa garagem que Lena nem sequer sabia que existia. Subiram vários lanços de escadas de betão e entraram por uma grande porta de aço. A agente policial deslocava-se com rapidez nos longos corredores. Cruzaram-se com alguns agentes uniformizados que pareciam estar a sair em patrulha. Iam a rir-se de qualquer coisa e a alegria deles parecera-lhe deslocada.
Tudo acontecera tão depressa que Lena achava difícil agregar as suas impressões numa única imagem. Era antes como uma série de imagens separadas e distintas: o riso, os corredores que levavam para aqui e para acolá, a agente policial que continuava a andar. Uma última curva e tinham chegado. Estava lá um grupo de pessoas em pé, à espera dela. Cumprimentaram-na, mas na verdade Lena não queria ouvir o que diziam; estava ocupada a pensar que nunca conseguiria sair dali sozinha. O homem que comandava, com quem ela falara acerca de Leo Lundin, o que já lhe parecia ter sido há uma eternidade, pousara uma mão amigável no seu ombro.
– Muito obrigado por ter vindo. Há uma coisa que gostávamos de lhe mostrar.
Abriram a porta para a sala pequena e levaram-na lá para dentro. Isto é o que se sente quando uma pessoa é presa, pensou ela.
Dizem-te olá e trazem-te para aqui.
Dizem-te olá e a seguir mostram o que tu fizeste.
Respirou fundo. Um dos agentes puxou uma cadeira para ela, e o mais novo, que era um homem bastante alto, começou a manejar o teclado que estava na secretária à frente dela.
– É essencial que aquilo que lhe dissermos agora fique dentro destas quatro paredes – dissera o mais velho. O chefe. Torsten, era esse o nome dele? Lena aquiesceu. Ele prosseguiu. – Acreditamos agora que o Roger foi recolhido por um carro. Gostaríamos de ver se o reconhece.
– Têm uma foto do carro? – Lena empalideceu.
– Não é uma grande imagem, infelizmente. Ou é muito pequena, para ser mais exacto. Está pronta?
O homem mais velho calou-se e fez um sinal ao mais novo, que estava ao computador. Este premiu a barra de espaço do teclado e de repente o ecrã encheu-se com a imagem de uma rua vazia. Um relvado à beira da estrada, uma casa pequena, e num dos cantos superiores o reflexo daquilo que era provavelmente o brilho amarelado de um candeeiro de rua.
– O que é que eu devo procurar? – perguntou Lena, algo confusa.
– Ali. – O homem mais novo apontou para o canto inferior esquerdo da imagem. A janela traseira de um carro. Um carro de cor escura. Como é que ela haveria de o reconhecer? – É um Volvo – prosseguiu o homem novo. – Um modelo de 2002 a 2004. Um S60.
Lena olhou para a imagem e viu o pisca do carro acender-se antes de ele se pôr em marcha e desaparecer.
– É só isto?
– Infelizmente, sim. Gostaria de ver outra vez?
Lena concordou. O jovem polícia premiu uma série de teclas e o vídeo regressou ao início. Lena olhou para o ecrã, tentando desesperadamente encontrar alguma coisa. Mas era só uma parte de uma imagem estática. Uma parte muito pequena. Esperou que acontecesse mais alguma coisa, com o corpo hirto devido à tensão, mas era apenas a mesma rua, o mesmo carro. As imagens pararam de se mover, e pelos rostos expectantes que a rodeavam Lena percebeu que era a sua vez de dizer qualquer coisa. Olhou para eles.
– Não o reconheço.
Eles aquiesceram. Era disso que estavam à espera.
– Conhece alguém que tenha um Volvo de cor escura?
– Talvez. É um carro muito vulgar, acho eu, mas não sei... Não me lembro de ninguém.
– Alguma vez viu alguém dar boleia ao Roger para casa num carro como aquele?
– Não.
Ninguém falou. Lena conseguiu sentir que a excitação e a expectativa entre os agentes se desvaneciam e eram substituídas pelo desapontamento. Voltou-se para Vanja.
– De onde vem este vídeo?
– De uma câmara de vigilância.
– Mas onde está ela?
– Não lhe podemos dizer.
Lena aquiesceu. Não confiavam que ela se mantivesse calada. Por isso não estavam dispostos a dizer-lho. As suas suspeitas foram confirmadas quando o chefe declarou: – Se isto viesse a saber-se a investigação ficaria comprometida. Espero que compreenda.
– Eu não vou dizer nada.
Lena voltou-se de novo para o ecrã e para a imagem imobilizada da rua deserta.
– O Roger está neste vídeo?
Billy olhou para Torkel, que fez um ligeiro gesto de concordância.
– Sim.
– Posso vê-lo?
Billy olhou de novo para Torkel e recebeu outro aceno em resposta. Estendeu as mãos para o teclado e fez retroceder o vídeo um pouco mais, depois premiu Play. Após alguns segundos, Roger apareceu no lado direito. Lena sentou-se na borda do seu assento. Nem sequer se atreveu a pestanejar, por ter tanto medo de perder alguma coisa.
Ele estava vivo.
Estava a caminhar pela rua.
Com uns passos rápidos e elásticos. Ele mantinha-se em forma. Cuidava do seu corpo. Tinha orgulho nisso. E agora jazia atrás de uma porta de aço inoxidável na morgue, frio e retalhado. Os seus olhos encheram-se de lágrimas, mas não pestanejou.
Ele estava vivo.
De repente virava a cabeça para a esquerda, atravessava a estrada e desaparecia atrás do carro.
Saía da imagem.
Saía da vida dela.
Desaparecia.
Aquilo acontecera tão rapidamente.
Lena resistiu ao impulso de tocar no ecrã. Tudo e todos estavam silenciosos e imóveis dentro da sala. O agente mais novo aproximou-se dela com cautela.
– Gostaria de ver outra vez?
Lena abanou a cabeça e engoliu em seco. Esperava que a sua voz não fraquejasse.
– Não, obrigada, já chega...
O chefe da equipa aproximou-se e pousou-lhe gentilmente uma mão no ombro.
– Muito obrigado por ter vindo. Vamos levá-la a casa.
Com estas palavras, a reunião terminou, e ela não tardou a dar por si a caminhar outra vez atrás de Vanja. Agora já não tinham tanta pressa. Pelo menos no que dizia respeito à polícia. Para Lena era diferente. A sua ansiedade abrandara e fora substituída pela fúria da compreensão. Pela energia que provinha da certeza.
Um Volvo S60.
Um modelo de 2002-2004.
Ela sabia exactamente quem tinha um carro desses.
Chegaram a uma secretária atrás da qual estava sentado um agente uniformizado. Vanja disse-lhe qualquer coisa e ele levantou-se para ir buscar o casaco. Lena abanou a cabeça. Conseguia adivinhar o que a mulher tinha dito.
– Eu não preciso de transporte, obrigada. Pode só mostrar-me como se sai daqui? Tenho de fazer algumas coisas na cidade.
– Tem a certeza? Não incomoda nada.
– Certeza absoluta. Mas agradeço-lhe.
Trocou um aperto de mão com Vanja. O polícia pendurou de novo o casaco e levou-a pelo corredor até à porta da frente.
Algumas coisas para fazer na cidade.
No mínimo.
Bom, uma coisa, sobretudo.
Vanja foi ter com os outros à sala de conferências. Antes de entrar, percebeu que Torkel tinha um ar invulgarmente frustrado e que calcorreava a sala com os punhos crispados. Se ela não estivesse já de mau humor, sem dúvida julgaria que ele tinha um aspecto bastante cómico, sempre a contornar a mesa onde Sebastian e Billy estavam sentados. Empurrou a porta para a abrir. Sebastian calou-se quando ela entrou. Recusou-se a fitá-lo.
A fúria dela não era racional. Valdemar é que falara de mais. Tinha sido ele que estragara o serão. Fora ele que convidara Sebastian a fazer-lhes companhia, oferecendo-lhe uma vantagem sobre ela. Fizera-o parecer mais poderoso, atribuíra-lhe muito mais importância do que verdadeiramente merecia. Tudo isso fora responsabilidade de Valdemar. Mas Sebastian tinha todas as intenções de fazer pleno uso dos seus conhecimentos recentemente adquiridos, ela sentia-o.
Não, ela sabia-o.
E detestava isso.
Posicionou-se próximo da porta e cruzou os braços. Torkel olhou para ela. Parecia cansada. Foda-se, todos eles estavam cansados. Exaustos. Irritáveis. Mais do que era habitual. Talvez não se devesse tudo ao efeito Sebastian. Esta investigação era invulgarmente complicada.
Torkel fez a Sebastian um sinal para que continuasse.
– Eu disse que se ele chegou em marcha-atrás por saber que estava ali uma câmara, então isso não significa apenas que é um mestre de estratégia, ocultação e antecipação. Significa que está a brincar connosco. Nesse caso deveríamos assumir que, mesmo que encontremos o carro, não encontraremos quaisquer provas.
Vanja fez um relutante aceno de concordância. Aquilo parecia-lhe razoável.
– Não podemos ter a certeza – respondeu Billy. – De que ele soubesse da câmara, quero eu dizer. Ela apenas cobre um lado da rua, que é um beco sem saída. Ele podia ter virado aqui... – Levantou-se, foi até ao mapa na parede e usou a ponta da sua caneta para indicar o local a que se referia. – E entrou em marcha-atrás para não ter de fazer meia-volta.
Torkel parou de andar em círculos e olhou para Billy e para o mapa.
– Portanto, se ele não sabia que havia aí uma câmara... Caso tivesse recuado mais dois metros, teríamos visto quem ia a conduzir.
– Sim.
Torkel nem acreditava no que ouvia. Dois metros! Estariam eles a dois metros de resolver este maldito caso?
– Por que raio não chegamos nós a lado algum?
Billy encolheu os ombros. Começava a ficar habituado aos maus humores de Torkel. Se tivesse sido por causa de alguma coisa que ele tivesse feito ou deixado de fazer, provavelmente teria reagido de modo diferente, mas isto não tinha a ver consigo. Era mais provável que tivesse alguma coisa a ver com Ursula. Nesse momento, ela abriu a porta, trazendo uma caneca de café e um saco de plástico.
– Desculpem o meu atraso. – Ursula pousou as suas coisas e puxou de uma cadeira.
– Como está o Mikael?
Seria da imaginação de Billy, ou a voz de Torkel estava um pouco mais afável? Mais simpática?
– Foi para casa.
Billy olhou para Ursula com genuína admiração. Não que aquilo tivesse alguma coisa a ver consigo...
– Julgava que ele só tinha chegado ontem à noite.
– Sim.
– Então foi só uma visita de passagem?
– Sim.
Torkel percebeu pelo tom de voz de Ursula que essa seria a última vez que ouviria falar da visita de Mikael, a menos que ela levantasse o assunto mais tarde, o que era improvável. Viu-a retirar do saco de plástico um pastel de queijo e um iogurte líquido enquanto olhava ao redor da sala.
– O que é que eu perdi?
– Ponho-te ao corrente de tudo mais tarde. Vamos avançar.
Torkel fez um aceno a Billy, que regressou à sua cadeira e aos seus papéis.
– Isto não vos vai fazer sentir melhor. Fui verificar o registo de veículos. Existem em Västerås duzentos e dezasseis Volvos S60, modelo de 2002 a 2004, pretos, azul-escuros ou cinzento-escuros. Se incluirmos as áreas circundantes, como Enköping, Sala, Eskilstuna, e assim por diante, chegamos a cerca de quinhentos.
Torkel limitou-se a cerrar os punhos um pouco mais. Sebastian levantou os olhos para Billy.
– Quantos desses estão ligados ao Liceu Palmlövska, se cruzarmos os dados do registo de veículos com os dos familiares e dos empregados?
Billy olhou para Sebastian.
– Não podemos fazer isso. Isto é, teria de ser feito manualmente. O que demoraria bastante tempo.
– Nesse caso, julgo que deveríamos começar já. Até agora tudo nos conduziu àquela maldita escola. – Billy achou que a sugestão de Sebastian era uma boa ideia, mas não era preciso ser-se qualificado em ciências comportamentais para perceber que a irritação que se instalara no seio da equipa remontava ao envolvimento de Sebastian no trabalho deles. Billy não tinha qualquer intenção de exprimir uma opinião sobre a proposta de Sebastian antes que Torkel se pronunciasse. Mas Torkel também estava a manifestar concordância.
– Boa ideia. Mas quero que vasculhemos todas as imagens de vídeo, de todas as câmaras, ao mesmo tempo. Quero encontrar aquele carro, foda-se!
Billy suspirou audivelmente ao ouvir aquelas palavras.
– Não é uma coisa que eu possa fazer sozinho.
– Não há problema. Vou falar com a Hanser. Entretanto, o Sebastian dá-te uma ajuda. Já é tempo de ele fazer autêntico trabalho de detective.
Durante um instante, Sebastian pensou em dizer a Torkel que fosse para o inferno. Cruzar as referências do registo de veículos e vasculhar as imagens das câmaras de vigilância eram as últimas coisas que ele queria fazer, mas quando estava prestes a proferir essas palavras ríspidas, conteve-se. Tinha aguentado aquilo durante todo este tempo e não tencionava ser expulso agora. Só quando o caso fosse resolvido. Só quando tivesse obtido o endereço que pretendia. Seria estúpido queimar as pontes com a única pessoa que poderia ajudá-lo na sua busca de Anna Eriksson. O verdadeiro motivo pelo qual estava ali. Portanto, Sebastian ofereceu a Billy um sorriso surpreendentemente grande.
– Claro, Billy, só tens de me dizer o que queres que faça. Eu faço.
– É bom com computadores?
Sebastian abanou a cabeça. Torkel calcorreou furiosamente a sala mais uma vez; tentara iniciar uma discussão com o seu velho amigo, em parte porque precisava de exprimir uma sensação geral de irritação e em parte porque queria mostrar a Ursula que não iria deixar Sebastian safar-se. Mas nem sequer isso funcionara. Sebastian levantou-se e deu uma palmadinha no ombro de Billy.
– Então vamos lá começar.
Torkel saiu, ainda furioso.
Lena não tinha ido directamente para lá. A determinação que ela sentira na esquadra da polícia começara a vacilar algum tempo depois de ter saído para o ar fresco. E se estivesse enganada? E se não fosse o mesmo carro? Pior ainda, e se ela tivesse razão? O que faria nesse caso?
Deu um passeio pelo novo centro comercial, que fora inaugurado no Outono anterior. A construção prolongara-se por vários anos, e por vezes os moradores de Västerås pensavam que nunca ficaria concluída. Lena deambulou ao acaso entre os reluzentes pavimentos de pedra, olhando para as enormes montras muito bem iluminadas. Era cedo, as lojas ainda não estavam abertas, e ela encontrava-se praticamente sozinha no interior da nova jóia da coroa de Västerås. As lojas começavam a anunciar as modas estivais desse ano – era isso que os cartazes proclamavam com grande convicção –, mas Lena não conseguia ver qualquer diferença em relação às tendências do ano anterior. E, em todo o caso, nada do que estava em exibição teria nela o mesmo aspecto que naquelas manequins muito magras.
Além disso, tinha realmente outras coisas em que pensar além de assuntos tão triviais como as compras. Aquela vozinha regressara. A vozinha que ela conseguira mais ou menos suprimir durante os últimos dias.
Talvez fosse por isso que era agora mais ruidosa do que nunca.
Foste tu!
Agora sabes isso!
A culpa foi tua!
Precisava de descobrir se a voz tinha razão. Mas era tão doloroso, tão angustiante sequer pensar nessa possibilidade. Especialmente agora, quando parecia não haver qualquer hipótese de a negar por mais tempo. O carro escuro que aparecia no vídeo garantia-o.
Num café do meio do centro comercial, uma rapariga atarefava-se a colocar na enorme vitrina os pastéis e os bolos acabados de fazer. Havia um doce cheiro a açúcar, baunilha e canela. Uma memória de outra vida, longe de todos os pensamentos dolorosos; Lena sentia que precisava de regressar a essa vida, nem que fosse só por um instante. Conseguiu convencer a rapariga a vender-lhe um bolo, embora o café ainda não estivesse aberto. Optou por um de baunilha excessivamente grande, que tinha demasiado açúcar por cima. A rapariga colocou-o dentro de um saco de papel e entregou-lho. Lena agradeceu-lhe e deu alguns passos em direcção à porta antes de tirar o bolo do saco. Estava fofo e ainda quente. Aquela outra vida veio-lhe ao espírito por um momento e ela deu uma grande e ávida dentada. Quando o sabor se tornou real e sentiu na boca a massa adocicada, de súbito, sentiu-se enjoada.
Como podia ela sequer estar ali? A ver montras e a comer. A tentar desfrutar de alguma coisa. Ocorreram-lhe várias imagens de Roger.
O primeiro sorriso.
Os primeiros passos.
Os tempos de escola, os aniversários, os jogos de futebol.
As últimas palavras.
– Agora vou sair...
Os últimos passos dele atrás do carro.
Lena atirou o bolo para um caixote do lixo e pôs-se a caminho. Já perdera tempo suficiente. A esquivar-se, a tentar não rebuscar mais o que já sabia que viria a descobrir.
Caber-lhe-ia alguma da responsabilidade por aquela coisa terrível que sucedera?
Mais do que isso.
Seria ela a parte culpada?
Era nisso que a vozinha continuava a insistir.
Apressou-se a atravessar a cidade. O seu corpo não estava habituado a caminhar tão depressa. Os seus pulmões trabalhavam com esforço e sentia a tensão na sua boca. Mas não abrandou. Dirigiu-se cheia de determinação para o local que detestava mais que qualquer outro.
O local que fora o princípio do fim para ela e para Roger.
O local que a fizera sentir-se tão inferior, tão absolutamente inútil.
O Liceu Palmlövska.
Lena encontrou nas traseiras da escola aquilo que procurava. Tinha andado para trás e para diante no grande parque de estacionamento da frontaria da escola sem o encontrar. Só depois decidiu contornar a escola devido à sua frustração. Deparou com um pequeno parque de estacionamento mesmo ao lado da porta da cafetaria.
E lá estava ele.
Um Volvo azul-escuro.
Tal como suspeitara.
Tal como receara.
A sensação de enjoo regressou. Os pensamentos regressaram em tumulto. Era este o carro em que ele entrara. O seu Roger. Naquela sexta-feira, que era tão recente, mas que, estranhamente, parecia ter ocorrido há uma eternidade. Só restava fazer uma coisa. Lena dirigiu-se para a parte de trás do carro e agachou-se do lado esquerdo. Não sabia se a polícia reparara – não lhe tinham falado disso – mas quando o carro do ecrã ligara o pisca e saíra da rua, via-se claramente que o vidro do farolim traseiro daquele lado fora mantido no lugar com fita adesiva.
Lena, pelo menos, vira isso. Algumas semanas antes, Roger levara para casa uma carta da escola: uma seca nota acusatória a explicar que ambos os farolins traseiros do carro haviam sido vandalizados. Tinha sido efectuada uma reparação provisória, mas esperava-se que a parte culpada assumisse as suas responsabilidades e pagasse uma reparação adequada. Depois disso, não sabia o que acontecera. Passou os dedos sobre a larga fita adesiva. Como se esperasse que o tempo parasse e nada mais acontecesse. Nunca.
Mas ia acontecer. Isto era só o início. Ela sabia-o. Levantou-se e deu alguns passos à volta do carro. Tocou no metal frio. Talvez os dedos dele também o tivessem tocado ali. Ou ali. Continuou a mover-se. Tentou determinar onde os dedos poderiam ter tocado no carro. Numa das portas, certamente. Na porta do passageiro da frente, talvez. Experimentou-a. Fria e trancada. Lena encostou-se ao carro e espreitou para o interior. Estofos escuros, simples. Nada no chão. Alguns trocos na pequena abertura entre os bancos. Nada mais.
Endireitou-se e, para sua surpresa, percebeu que toda a ansiedade desaparecera. O pior que podia acontecer já tivera lugar.
A culpa dela estava confirmada.
Para além de qualquer dúvida.
Agora sentia-se apenas vazia por dentro. Um arrepio alastrava pelo seu corpo. Como se aquela voz fria, concreta e interior finalmente se tivesse tornado parte de si.
A culpa era dela. Já não havia qualquer defesa contra essa noção em parte alguma do seu corpo. Nenhum calor.
Uma parte de Lena morrera no dia em que Roger lhe fora arrebatado.
A outra parte morrera agora.
Pegou no telemóvel e marcou um número. Escutou algumas vezes o sinal de chamada antes de ouvir a voz masculina do outro lado. Ouviu a sua própria voz. Tinha a mesma frieza gélida que as suas entranhas.
– Hoje vi uma coisa na esquadra da polícia. Vi o teu carro. Eu sei que foste tu.
CAPÍTULO VINTE E UM
HÁ MUITO tempo que Cia Edlund não tinha um cão. Na verdade nunca pensara em si mesma como uma pessoa que tivesse cães. Mas aquando do seu aniversário, há dois anos, Rodolfo aparecera com um adorável cachorrinho de pêlo encaracolado. Uma cadela cocker spaniel. Igual à que aparecia no filme A Dama e o Vagabundo, dissera Rodolfo com um grande sorriso e um brilho nos olhos como só os olhos dele podiam ter. Fora impossível a Cia dizer que não, sobretudo quando Rodolfo, sentindo a sua instintiva hesitação, lhe prometera sinceramente que a ajudaria.
– Não será apenas o teu cão. Será o nosso, prometo-te. O nosso bebezinho...
As coisas não tinham funcionado exactamente dessa maneira. Seis meses depois, quando os olhos de Rodolfo brilhavam menos vezes e as suas visitas se tornavam cada vez menos frequentes, Cia percebeu que a cadela era uma responsabilidade sua, só sua. Apesar do facto de lhe terem dado o nome da avó de Rodolfo, Lucia Almira, uma mulher do Chile que Cia nunca conhecera. Tinham planeado ir visitá-la logo que tivessem dinheiro suficiente.
O que também não acontecera. Por isso, Cia partilhava agora o seu leito com um animal que tinha o nome de uma avó chilena que ela jamais conheceria.
As questões práticas depressa se tornaram o seu principal problema. Cia tinha horários longos e irregulares como enfermeira, e os passeios de Almira haviam sofrido em resultado disso. Habitualmente, levava-a dar uma pequena volta nas imediações do sítio onde moravam. Podiam dar um passeio a meio da noite e outro na tarde do dia seguinte, dependendo dos turnos de Cia. Mas naquele dia Cia tivera um dia de folga e decidira aproveitar a oportunidade para fazerem um passeio bem longo. Isso faria bem a ela e a Almira. Desceram o carreiro em direcção ao campo de futebol, correndo paralelamente à floresta e à pista de atletismo iluminada.
Quando chegaram ao campo de futebol deserto, Cia soltou a trela de Almira, e a cadela correu em direcção ao mato e aos abetos, ladrando com grande excitação. Cia via a cauda de Almira agitar-se de vez em quando entre os arbustos baixos e emaranhados. Sorriu para si mesma. Desta vez sentia-se uma boa dona.
Almira regressou em grande algazarra. Nunca se afastava por muito tempo; queria sempre saber onde estava a dona. Após estabelecer contacto visual, corria de novo para longe e, ao fim de algum tempo, regressava. Cia fez uma careta quando viu a cadela sair do mato. Havia qualquer coisa escura ao redor do focinho de Almira. Cia chamou-a, e Almira veio aos pulos ter com ela. Cia ficou hirta. Aquilo parecia sangue. Mas a cadela estava contente. Não poderia ser dela. Cia esquivou-se às carícias e tornou a pôr-lhe a trela.
– O que é que tu encontraste? Mostra-me lá.
Ao fim de apenas quinze minutos, Sebastian já estava cansado de olhar para um monitor à procura de Volvos de cor escura. Aquilo parecia um curso avançado de futilidade. Billy tentara explicar-lhe o que iam fazer. Uma vez que sabiam quando partira o carro em que Roger tinha entrado, poderiam blá-blá-blá determinar aproximadamente onde é que ele blá-blá-blá dependendo da direcção que tomara e blá-blá-blá. Sebastian tinha desligado. Olhou para Billy, que estava sentado a curta distância com uma série de listas de endereços que acabara de receber da secretária do director do Liceu Palmlövska. Billy não parecia aborrecido; estava determinado. Levantou os olhos para Sebastian, que estava ali sentado completamente imóvel.
– Há alguma coisa que não funcione?
– Não, não, está tudo a funcionar perfeitamente. Como estás tu a lidar com isso?
Billy sorriu-lhe.
– Ainda mal comecei. Continue. Há imensas câmaras, acredite.
Billy regressou aos seus papéis. Sebastian voltou-se para o ecrã e suspirou. A situação lembrava-lhe o tempo em que fora assistente de investigação e trabalhara com o professor Erlander, há trinta anos, e tivera a incumbência de agregar os resultados de milhares de questionários. Naquela ocasião pagara a alguns estudantes para fazerem o trabalho por si e fora para um bar. Isto era ligeiramente mais complicado.
– Conseguiste alguma coisa com o nome que te dei? Anna Eriksson?
– Desculpe, tenho tido outras coisas para fazer, mas não me esqueci.
– Não há pressa, só queria saber.
Sebastian viu Billy olhá-lo com uma expressão de encorajamento, para o incitar a prosseguir a tarefa. Mais valia fazê-lo; não podia dizer-lhe que não nesta fase inicial. Sebastian premiu F5, como Billy lhe havia mostrado, e contemplou fatigadamente mais uma descolorida e aborrecida rua secundária algures em Västerås. Um telefonema salvou-o de morrer de tédio.
Chegaram ao campo de futebol em dois carros, Vanja e Ursula num, Torkel e Sebastian no outro. Torkel sentiu que estava de novo na escola, envolvido num jogo de rapazes contra raparigas. Assumira uma atitude profissional quando Ursula ficara depois da reunião, a fim de se pôr a par dos desenvolvimentos das últimas horas, mas ela continuara a ignorá-lo durante o caminho para o parque de estacionamento e encaminhara-se para o carro sem dizer uma palavra.
Já estavam no local dois carros-patrulha. Um agente uniformizado foi ao encontro deles quando chegaram e acompanhou-os enquanto atravessavam a zona de gravilha. Tinha um ar nervoso, e parecia grato por eles estarem ali.
– Foi encontrado algum sangue. Muito sangue.
– Quem o encontrou? – quis saber Ursula. Até agora, mais não era do que uma descoberta forense, e por isso era naturalmente ela que fazia as perguntas.
– Uma senhora chamada Cia Edlund; andava a passear a cadela. Está ali. – Atravessaram o campo de futebol e seguiram o colega uniformizado até penetrarem na floresta. Depois de percorrida uma curta distância, o terreno fazia um declive acentuado e quando se chegava ao fundo já não se podia ser visto a partir do campo de futebol, notou Vanja.
O carreiro curvava para a esquerda e um pouco mais adiante conduzia a uma pequena clareira. Estavam lá duas pessoas à espera: um agente que andava a colocar uma fita para isolar uma grande área rectangular, e uma mulher com cerca de vinte e cinco anos que estava em pé, a curta distância dali, com um cocker spaniel.
– Foi aquela senhora que o encontrou. Não lhe fizemos muitas perguntas, tal como vocês pediram.
– Gostaria de ver o sangue primeiro – declarou Ursula, caminhando para a clareira.
O agente apontou para um sítio a poucos metros do carreiro.
– Pode vê-lo daqui.
Ursula parou e fez um gesto para indicar aos outros que ficassem onde estavam. Diante de si, via a erva amarelada do ano anterior cobrindo abundantemente o solo. As novas folhas verdes cresciam por baixo, mas eram mais curtas e propiciavam apenas uma ténue sugestão de verdura naquele mar de amarelo-pálido. No entanto, o que se destacava dessa limitada paleta de cores eram manchas de sangue seco, vermelho-escuro. No centro das manchas dispersas ao acaso ela avistou uma grande poça de sangue coagulado.
– Aquilo parece um matadouro – não conseguiu deixar de comentar o agente que montara o cordão.
– Talvez seja – disse Ursula secamente. Avançou cuidadosamente e acocorou-se diante da poça. A maior parte do sangue já secara, mas no chão havia uma série de pequenas covas que pareciam ser pegadas e estavam cheias de uma substância avermelhada que parecia geleia. Estaria ela a imaginar ou havia no ar um forte cheiro a ferro? Fez um aceno de cabeça aos outros. – Gostaria de proceder a uma rápida análise para não perdermos tempo com algum pobre veado que tenha perdido a vida. Vou demorar uns minutos. – Abriu a sua mala branca e deitou mãos à obra. Torkel e Sebastian foram ter com a dona da cadela. Ela parecia estar há muito tempo à espera que alguém ouvisse a sua história.
– Quem o encontrou foi a Almira. Julgo que se calhar ela bebeu uma parte daquilo...
Quando Lena entrou pela porta do seu apartamento e a fechou atrás de si, os nervos tomaram conta dela. Deixou-se cair no chão do vestíbulo. Não conseguia dar mais um passo. Era mais fácil manter a máscara quando andava na rua, no meio das outras pessoas. Ombros para trás, olhar fixo em frente e sempre a andar. A fingir. Em casa era mais difícil. Impossível. Enquanto estava sentada no meio do chão, entre os sapatos e os sacos de plástico, avistou uma velha fotografia escolar de Roger que ela havia pendurado há muito tempo. Fora a primeira que ela comprara, e tinha sido tirada quando ele entrara para a escola.
Roger estava a sorrir para a câmara, vestido com um pólo azul. Faltavam-lhe dois dentes. Há muito tempo que não olhava para aquela fotografia. Tinha-a pendurado quando se mudaram para o apartamento, mas colocara-a um pouco próximo de mais do cabide, pelo que ficava escondida pelos casacos acolchoados e pelas roupas de inverno. À medida que Roger ia crescendo, tinha adquirido cada vez mais agasalhos, que eram sempre cada vez maiores, e durante uns anos esquecera-se da fotografia. Era maravilhoso descobri-la agora. Esquecida e oculta entre todos aqueles casacões e blusões durante anos. Agora não haveria mais roupas a acumularem-se para a esconderem. Ele ficaria ali sentado, com o seu sorriso desdentado enquanto ela fosse viva. Mudo. Sem nunca voltar a crescer. Com a sua expressão cheia de vida.
A campainha da porta soou. Lena ignorou-a. O mundo podia esperar. Estes momentos eram mais importantes.
Quando o homem entrou, percebeu que se tinha esquecido de trancar a porta. Olhou para ele. O que lhe pareceu mais estranho não foi o facto de estar ali no seu apartamento. Nem sequer o desespero nos olhos dele era completamente surpreendente. Não, o que a fez tremer foi a noção de que os seus olhos, que haviam acabado de admirar o rosto sorridente do seu filho de sete anos de idade, estavam agora a contemplar a pessoa que lhe tirara a vida.
Haraldsson estava atrasado. Nunca costumava dormir até tão tarde. Atribuiu as culpas ao vinho e a Jenny. O vinho fizera-o dormir mais profundamente do que era habitual, um sono sem sonhos. E Jenny só o acordara antes de sair para o hospital. Ele tinha ligado o despertador, mas devia tê-lo desligado em vez de carregar no botão para repetir o toque. Nem sequer se lembrava de o ter ouvido tocar.
Acordara pouco depois das nove e meia. Primeiro pensou que iria apenas vestir-se e sair para o trabalho, mas por qualquer motivo a manhã decorrera em câmara lenta. Demorara uma hora a tomar duche, a comer o seu pequeno-almoço e a vestir-se. Decidiu ir a pé até à esquadra e chegou lá às onze em ponto.
Radjan tinha feito o que Haraldsson lhe pedira. Quando se sentou com a sua caneca de café, já estava em cima da secretária uma pasta de arquivo. Abriu-a avidamente. Continha três folhas de papel impressas em letra miúda. Haraldsson recostou-se na sua cadeira com o café numa mão e as folhas na outra. Começou a ler com grande concentração.
Ao fim de quarenta e cinco minutos já lera três vezes a entrevista com Linda Beckman. Pousou a pasta e virou-se para o computador. Introduziu os pormenores acerca de Axel Johansson e começou a passar os resultados em revista. Tinha-se fartado de viajar, o senhor Johansson, e era óbvio que travara conhecimento com a polícia em todos os locais onde estabelecera residência.
Haraldsson passou os olhos pelos relatórios. Umeå, Sollefteå, Gävle, Helsingborg e alguns delitos menores ali mesmo, em Västerås. Perturbação da ordem pública, roubo, assédio sexual... Haraldsson parou de repente e voltou atrás. Assédio sexual também em Sollefteå. Axel nunca fora condenado por esse delito em particular, mas tinham sido feitas acusações. Ambas as investigações preliminares haviam sido arquivadas por falta de provas. Haraldsson retrocedeu mais. Axel Johansson também constava de um caso de violação em Umeå. Há onze anos. Estivera na mesma festa em que uma rapariga fora brutalmente violada no jardim quando saíra para fumar um cigarro. Todos os que estavam na festa tinham sido interrogados. Ninguém fora acusado. O caso continuava por resolver.
Haraldsson lembrou-se do pensamento do dia anterior.
Quem é culpado foge.
Deixou esse pensamento crescer. Pegou no documento que Radjan copiara para si. Um breve apontamento. Axel Johansson gostava de ser dominante na cama.
Quem é culpado foge.
Era uma aposta arriscada. Mas tendo em consideração que Haraldsson andava a aproximar-se a grande velocidade do banco dos suplentes, mais valia correr o risco. Sentou-se e pôs os dedos a trabalhar no teclado do computador. Antes de mais, foi verificar o período em que Axel Johansson vivera em Umeå, depois procurou crimes não resolvidos durante o mesmo período. Havia bastantes. Descartou todos os que não eram de natureza sexual. Eram menos, mas ainda assim muitos. Continuou a filtrar os termos da pesquisa. Em primeiro lugar, violações. Continuava a ser um número assustadoramente grande. Em seguida, mulheres que tivessem sido atacadas e violadas. Muito menos. Era um crime bastante invulgar, apesar de tudo. Na maioria dos casos de violação, a vítima e o perpetrador conheciam-se, mesmo que só tivessem travado conhecimento poucas horas antes. Durante o período em que Axel Johansson vivera em Umeå, tinha havido cinco casos de mulheres atacadas e violadas. Três delas com o mesmo modus operandi.
Mulheres que estavam sozinhas em locais isolados, embora não totalmente. Havia pessoas por perto. Era possível que o facto de conseguirem ouvir outras pessoas embalasse as mulheres numa falsa sensação de segurança. Sentiam-se suficientemente seguras para irem fumar um pouco mais ao fundo do jardim escuro, porque conseguiam ouvir o som da festa através das janelas abertas. Atravessavam o parque por atalhos porque conseguiam ouvir as conversas na paragem de autocarros do outro lado dos arbustos. Uma ilusão de segurança, afinal. Em três casos idênticos, o homem tinha-se aproximado das mulheres por detrás e deitara-as ao chão. Comprimira os rostos delas contra o solo, imposibilitando-as de gritar, e a seguir penetrara-as por trás. As três violações haviam sido consumadas. Um homem fisicamente forte. Depois desaparecera. Sem dúvida que se misturara rápida e imperceptivelmente com as pessoas das proximidades. Caminhara pelas ruas citadinas como uma pessoa vulgar. As mulheres nem sequer o tinham visto de relance. Não havia descrições nem testemunhas.
Haraldsson repetiu o procedimento, desta vez em Sollefteå. Primeiro verificou as datas entre as quais Axel Johansson lá vivera, depois procurou delitos sexuais não resolvidos. Havia duas violações que eram quase idênticas às de Umeå. Locais ermos, mas não completamente isolados. O ataque surgira por detrás. O rosto da mulher comprimido contra o chão. Nada de descrições ou testemunhas.
Haraldsson recostou-se na sua cadeira, a respirar com esforço. Sentia que isto era uma coisa em grande. Teria a sua vingança, com sinos a tocar. Um violador em série. Talvez ainda pior que o Niklas Lindgren, conhecido como o Homem de Haga[7]. E fora Haraldsson que o localizara. Já parecia ouvir de novo o discurso do superintendente-chefe.
Roger Eriksson e aquele psicólogo eram uma coisa, mas isto era grande. Realmente grande. Este era o tipo de caso a partir do qual se podia construir uma carreira. Com mãos trémulas, Haraldsson continuou a clicar nas informações. Gävle. Uma violação reportada durante o período relativamente curto em que Johansson lá vivera. O mesmo modus operandi.
Nada durante os anos que ele passara em Helsingborg.
Haraldsson parou. Foi como se tivesse estado a correr, acelerasse, e depois, de repente, parasse de forma abrupta. Estranhamente, sentiu uma vaga de desapontamento. Claro que deveria sentir-se contente por nenhuma mulher ter sofrido o horrendo trauma da violação, mas isso destruía-lhe a teoria. E ele estava muito perto de encontrar a confirmação definitiva dessas teorias. Tornou a verificar. O mesmo resultado deprimente. Axel Johansson morara em Helsingborg durante mais de dois anos, mas durante esse período não fora reportado um único ataque que correspondesse ao padrão.
Haraldsson recostou-se e bebeu o seu café, que arrefecera. Matutou no assunto. Aquilo não queria, obrigatoriamente, dizer alguma coisa. Talvez os crimes não tivessem sido participados. Nem todas as agressões sexuais eram participadas. Longe disso. Sabia-se que a maioria das violações que envolviam um ataque violento acabavam nas mãos da polícia, mas não havia garantias.
Na verdade ele não precisava de Helsingborg. Em quase todos os ataques anteriores tinham sido recolhidas amostras de ADN.
Mas era aborrecido.
Estragava a simetria de tudo aquilo.
Era como desenhar uma figura ponto a ponto e acabar por falhar alguns desses pontos. Continuava a ver-se o que a figura representava, mas o nosso olhar seria sempre atraído para aqueles locais irritantes em que as linhas não tinham sido completadas. Era aborrecido. Além disso, Haraldsson tinha a certeza de que Axel Johansson não parara durante mais de dois anos. Sobretudo quando se conseguia safar há tanto tempo.
Haraldsson levantou-se e foi à sala do pessoal buscar mais café. Quando chegara ao trabalho sentia-se lento e aturdido, na verdade ligeiramente ressacado, mas essa sensação depressa desaparecera e fora substituída por um excitado e palpitante sentimento de antecipação. Uma sensação não muito diferente da excitação que ele sentia quando era menino e ficava à espera do Pai Natal na noite da Consoada. O que ele tinha de fazer era investigar Helsingborg mais a fundo.
Regressado à secretária, foi remexer o seu próprio arquivo. Sabia o que procurava. E ali estava: duas violações que correspondiam ao modus operandi de Axel Johansson. Ambas haviam ocorrido desde que ele se mudara para Västerås.
Portanto restava apenas Helsingborg.
Agora já formara uma imagem. Conseguia ver o que era, mas queria unir aqueles últimos pontos. Certa vez, ele e Jenny tinham ficado em Helsingborg. No final dos anos 1990. Antes de a ponte ter sido construída. Umas férias em Skåne, com uma viagem à Dinamarca. Naqueles tempos, a travessia era feita por uns barcos que andavam para trás e para diante. Demorava apenas dez minutos, pelo que Haraldsson recordava. Uma cidade diferente, um país diferente. A dez minutos de distância. Encontrou um número de telefone da polícia em Helsingør, do outro lado do estreito, na Dinamarca. Explicou o que pretendia, foi transferido, deram-lhe outro número, marcou-o, desligaram, marcou de novo, não o entenderam, mas acabou por falar com uma mulher chamada Charlotte que podia ajudá-lo. O dinamarquês de Haraldsson era extremamente limitado, e após alguns minutos a reformularem e a repetirem frases, concordaram mudar para inglês.
Conhecia a linha temporal.
Conhecia o modus operandi.
Não deveria demorar muito tempo. E, na verdade, não demorou. A polícia de Helsingør tinha por resolver dois incidentes de violação que envolviam ataques violentos durante esse período. Haraldsson teve de se conter para não desferir um golpe, como se estivesse a esmurrar o ar. O caso era internacional.
E estava resolvido.
Tudo o que precisava de fazer agora era encontrar Axel Johansson. Mas primeiro iria falar com Hanser.
Hanser quase nem levantou os olhos da secretária quando Haraldsson bateu na porta aberta e entrou no gabinete dela.
– Como está o pé?
– Óptimo, obrigado.
Não tinha qualquer intenção de fazer o jogo dela. Não deixaria que o provocassem. Ou amedrontassem. Podia permitir que ela levasse a melhor sobre si durante mais alguns segundos. Dentro em pouco, ela teria de admitir que ele era um bom detective, apesar do seu pequeno erro. Muito melhor do que ela alguma vez fora, ou viria a ser.
– Disseste-me para não me aproximar da investigação do Roger Eriksson.
– Pois disse. E espero mesmo que não o tenhas feito.
– Sim e não. – Haraldsson sopesou cuidadosamente as suas palavras. Queria aproveitar ao máximo aquele momento. Não revelaria fosse o que fosse de uma vez só. Queria observar cada passo enquanto Hanser passava da descrença desconfortável à admiração relutante.
– Investiguei o Axel Johansson.
Hanser não reagiu; continuou concentrada nos papéis que tinha à sua frente. Haraldsson aproximou-se mais um passo. Baixou a voz.
Falou com grande intensidade. Decidido a despertar-lhe o interesse.
– Tive a sensação de que havia algo mais. Outra coisa, sem ser a ligação ao Roger. Uma sensação... Chama-lhe intuição, se quiseres.
– Hum.
Ela fingia não estar interessada. Poderia demorar mais algum tempo, mas não tardaria a ser forçada a reagir.
– E sucede que eu tinha razão. Ele é um violador. Um violador em série.
Hanser olhou para ele com uma expressão que só poderia ser interpretada como uma total falta de interesse.
– A sério?
Não acreditava nele. Não queria acreditar. Daí a pouco não lhe restaria alternativa. Haraldsson avançou até à secretária dela e pôs à sua frente um breve resumo do seu dia de trabalho. Cidades, períodos, mudanças, vítimas.
– Descobri uma ligação que indica que ele efectuou violações em Umeå, Sollefteå, Gävle, Helsingborg e aqui em Västerås ao longo dos últimos doze anos.
Hanser olhou de relance para a lista e depois, pela primeira vez, concedeu a Haraldsson toda a sua atenção.
– Estás a brincar?
– O quê? Não, quero dizer, é claro que vamos precisar de uma amostra do ADN dele, mas eu sei que tenho razão.
– Toda a esquadra sabe que tu tens razão.
– O quê? Mas como? Eu ainda nem sei onde ele está, mas...
– Eu sei – interrompeu Hanser. Haraldsson ficou atónito. A conversa sofrera uma viragem completamente inesperada. O que queria ela dizer?
– Sabes?
– O Axel Johansson está na sala número três. O teu colega Radjan foi buscá-lo hoje de manhã.
Haraldsson ouviu as palavras que ela proferiu, mas foi incapaz de processar a informação. Ficou simplesmente ali, em pé, de boca aberta.
Ursula tinha decidido atirar o fracasso do dia anterior para trás das costas e concentrar-se naquilo em que era realmente boa: investigar o local de um crime. O seu teste fornecera rapidamente o resultado que ela esperava, determinando para além de qualquer dúvida que o que haviam encontrado era sangue humano. Isso apurou ainda mais a sua concentração. Andava agora a caminhar por ali para obter uma impressão do local.
A demorar o seu tempo.
Nesta fase, a questão era obter um panorama, familiarizar-se com a imagem geral antes de se dedicar aos pormenores. Começar por analisar as pistas, elaborar o cenário mais provável. Sentia os olhos de Torkel nas suas costas, mas isso não a perturbava. Sabia que estava impressionado. Este era o seu momento. Não o dele. Os outros olhavam-na à distância enquanto caminhava lentamente para trás e para diante dentro do cordão, tendo o cuidado de não comprometer quaisquer provas. Ao fim de dez longos minutos, regressou para junto deles. Estava pronta.
– É difícil fazer comentários à quantidade de sangue. Estava infiltrado no solo, e os corvos e outros animais provavelmente andaram a debicar nele, mas de certeza que é de um ser humano, e existe muito. Olhem para isto.
Caminhou até uma das extremidades do cordão. Apontou para o chão macio. Vanja, sempre a mais atenta, transpôs cuidadosamente o cordão e agachou-se para ver melhor.
– Marcas de pneus.
– Provavelmente uns Pirelli P7; reconheço aquela faixa em ziguezague que têm ao centro. Estacionou aqui um carro. Foi-se embora por ali. – Ursula apontou para as marcas na erva, que levavam a um carreiro florestal estreito e muito batido. Sorriu-lhes com uma expressão que continha uma certa dose de triunfo.
– Eu diria que estamos perante uma cena de crime. O laboratório terá de confirmar se se trata do sangue do Roger, mas não creio que existam em Västerås muitas pessoas que tenham perdido recentemente vários litros. – Fez uma pausa para conseguir um efeito dramático, e olhou para além do bosque. – Mas ele não foi morto aqui.
– Julguei que tinhas dito que esta era a cena do crime – interveio Torkel.
– É uma cena de crime. Mas não é a cena de um homicídio. Ele foi arrastado para aqui. Vejam.
Com cautela, Ursula conduziu-os pelo carreiro, novamente na direcção do campo de futebol. Ultrapassaram o cordão e prosseguiram.
– Tentem manter-se de um lado do carreiro. Já basta termos andado a caminhar em cima dele uma vez. – Continuaram em silêncio e não tardaram a ver o que Ursula encontrara. Claros vestígios de sangue na erva amarelada.
Torkel fez um sinal para chamar o agente de farda. – Precisamos de alargar o cordão.
Ursula continuou a avançar entre os arbustos e o mato, subiu a ladeira e chegou ao campo.
– Alguém o arrastou. Desde ali. – Apontou para o campo, e quando eles olharam melhor viram umas ténues marcas na gravilha cinzenta que o circundava. Marcas deixadas pelo que só poderia ter sido um par de sapatos. Todos se imobilizaram, sobrecarregados com a seriedade do momento; nunca tinham estado tão perto. Havia magia no modo como um local vulgar e enfadonho podia ficar carregado de significado, só porque o viam através dos olhos de Ursula. Aquelas pequenas pintas, quase invisíveis, tornavam-se sangue; os galhos quebrados transformavam-se no rasto do cadáver, e a gravilha suja já não era apenas uns meros seixos, mas o local onde a vida de um rapaz se extinguira.
Moviam-se ainda mais devagar, dispostos a prosseguir, mas cautelosos. A sua principal preocupação era evitar destruir quaisquer provas, mas também queriam persistir naquela magia luminosa e libertadora.
Torkel pegou no telefone e ligou a Hanser. Precisava de mais recursos; tinham de alargar significativamente a área de buscas. Quando Hanser atendeu, eles estavam a chegar ao sítio onde as marcas quase invisíveis terminavam e eram substituídas por uma mancha escura e circular que só podia significar uma coisa. Estavam no local onde morrera um rapaz de dezasseis anos. Onde tudo aquilo começara e onde tudo acabara.
Torkel percebeu que estava a sussurrar quando contou a Hanser onde estavam.
Sebastian olhou em redor. Esta era uma descoberta importante. Não apenas umas pistas fortuitas, mas um evento completo. Agora precisavam de efectuar o passo seguinte. As marcas do arrastamento e os vestígios de sangue eram uma coisa, mas eles tinham de ler o significado, começar a penetrar na cabeça do assassino. A cena do crime era um dos componentes mais importantes de qualquer investigação de homicídio. Sabiam bastante acerca da última viagem de Roger. Mas o que lhes dizia a cena do crime acerca do assassino?
– É um local estranho para se dar um tiro em alguém. No meio de um campo de futebol – disse Sebastian ao fim de um certo tempo. Ursula fez um gesto de concordância.
– Sobretudo com aqueles blocos de apartamentos. – Ela apontou para três enormes torres cinzentas no alto de uma colina não muito distante.
– Isso vem ao encontro da teoria de que não foi planeado. – Sebastian afastou-se alguns passos do carreiro sombrio, ansioso por examinar as possibilidades. – O Roger é alvejado aqui. Quando está caído, já morto, o assassino percebe que precisa de retirar a bala. Para o fazer, escolhe um local mais recatado. Opta pelo sítio mais próximo; essa escolha não nos diz nada.
Os outros concordaram.
– Sabemos que o Roger foi alvejado nas costas, não é? Nesse caso, há duas alternativas. Ou o Roger sabia que estava em perigo e ia a correr para longe dele ou foi abatido sem ter qualquer ideia de que existia uma ameaça.
– Julgo que sabia – disse Ursula com firmeza. – De certeza. Ele estava a fugir.
– Concordo – interveio Vanja.
– O que te leva a pensar isso? – perguntou Torkel.
– Olha para a cena do crime – explicou Ursula. Estamos numa das extremidades do campo. Se eu me sentisse ameaçada, corria para a floresta. Sobretudo se alguém estivesse a apontar-me uma arma.
Torkel olhou à sua volta. Ursula tinha razão. O campo de futebol rectangular estendia-se diante deles. Um grande parque de estacionamento ao ar livre situava-se ao longo de um dos lados mais compridos, uma vedação alta com uma estrada que passava a uma dúzia de metros dela e um campo do outro lado. Os blocos de apartamentos ficavam em frente, no lado mais comprido do campo. Os lados mais curtos tinham uma casa de apoio numa das extremidades e a floresta na outra. Era lógico que a floresta parecesse oferecer maior protecção, caso se tivesse de tomar uma decisão rápida. Claro que se poderia dizer que Roger estaria igualmente a salvo entre os prédios de apartamentos, mas esses situavam-se no alto de uma colina e assemelhavam-se mais a uma fortaleza inexpugnável do que a um bom esconderijo. Além disso, a necessidade de subir a colina implicaria a perda de velocidade.
Sebastian estivera a observar as cercanias em silêncio e levantou a mão discretamente.
– Permitam-me que avance uma teoria diferente.
– Mas que surpresa – disse Vanja num sussurro teatral. Sebastian fingiu que não ouvira.
– Concordo com a Ursula e com a Vanja. Se o Roger viu a ameaça. Nesse caso, tenho a certeza de que ele teria corrido em direcção à floresta. Mas não vejo como poderia tê-lo feito. – Sebastian fez uma pausa. Tinha a plena atenção de todos. – Estamos a presumir que o Roger chegou aqui de carro. O parque de estacionamento fica ali. – Sebastian apontou para a casa de apoio e para o parque de estacionamento, onde estavam agora vários carros da polícia.
Uma quantidade de carros civis viraram para lá e estacionaram. Saíram deles uns homens que foram imediatamente travados pela polícia. A imprensa encontrara o local.
– O Roger teria feito este caminho todo com alguém que transportava uma arma? – prosseguiu Sebastian.
– Mas também havia marcas de pneus na floresta – disse Ursula numa voz esganiçada.
– Queres tu dizer que ele não estava a dirigir-se para a floresta, que estava, sim, a sair dela? – perguntou Torkel.
– É possível – respondeu Ursula.
– Possível, mas altamente improvável. – Sebastian abanou a cabeça. – É um sítio inacessível, remoto, isolado. Porque é que alguém conduziria o carro até lá e estacionaria, a menos que tencionasse fazer mal ao Roger? Estamos de acordo em que não foi esse o caso, não estamos?
Os outros aquiesceram. Sebastian fez um gesto abrangente.
– Olhem para este sítio. É muito isolado. Um bom local para deixar alguém sem que ninguém veja, e não é verdade que estamos perto da casa do Roger?
– Sim, julgo que sim; ele deve morar ali atrás. – Vanja apontou na direcção dos blocos de apartamentos. – Talvez a menos de um quilómetro.
– Portanto, isto é um óptimo atalho, não acham? – disse Sebastian.
Os outros tornaram a aquiescer. Torkel olhou para ele. Coçou a face e percebeu que nessa manhã se esquecera de se barbear.
– O que é que tu pensas? Que alguém deu uma boleia a Roger até aqui, e...?
Todos tinham os olhos postos em Sebastian. Tal como ele pretendia.
– A Lisa disse que o Roger se ia encontrar com alguém. O condutor, que num futuro não muito distante se transformará no assassino, está à espera no carro e dá uma apitadela quando vê o Roger a caminhar do outro lado da estrada. O Roger atravessa a rua e após uma conversa através da janela aberta, entra no Volvo, que se afasta do local. Durante a viagem têm uma discussão. Não conseguem chegar a acordo. O condutor dirige-se para o parque de estacionamento junto ao campo de futebol e o Roger sai do carro. Talvez ele tenha avaliado mal a situação e se sinta seguro da vitória. Talvez pense que o encontro foi desagradável e se apresse a chegar a casa atravessando o campo. Seja qual for a verdade, não consegue imaginar o que está a acontecer nas suas costas. O condutor avalia a situação. Não consegue ver qualquer saída. Ou melhor, só consegue ver uma saída. Toma uma decisão rápida sem a ponderar muito bem, sai do carro, abre a bagageira e tira de lá uma arma. O Roger vai a atravessar o campo de futebol, sem saber que alguém lhe está a apontar uma arma às costas no parque de estacionamento. A distância não é muito grande. Sobretudo para quem está habituado à caça ou ao tiro desportivo. O condutor dispara. O Roger cai ao chão. O condutor sabe, evidentemente, que será possível identificar a bala. Corre através do campo, arrasta o Roger para a floresta. Corre de novo para o estacionamento, conduz o carro até lá, extrai a bala, inflige múltiplas facadas no corpo, mete-o dentro do carro, e leva-o para o local em que o despejou.
Sebastian calou-se. De vez em quando passava um carro na estrada. Uma ave solitária cantava na floresta. Foi Torkel que quebrou o silêncio.
– Tu falaste em tiro desportivo? Continuas a pensar que foi o director?
– Era só uma teoria. E agora vou deixar-vos prosseguir os vossos exames forenses sem mim. – Sebastian pôs-se a caminho do complexo de apartamentos.
Torkel olhou para ele.
– Aonde vais?
– Quero ir falar com a Lena Eriksson, descobrir se o Roger usava este atalho. Se assim for, isso apoia a minha teoria e aumenta as possibilidades de que alguém possa tê-lo visto a ele e ao carro noutra ocasião.
Os outros manifestaram a sua concordância. Sebastian parou e voltou-se para trás, acenando com uma mão num gesto convidativo.
– Alguém quer vir comigo?
Ninguém se voluntariou.
Sebastian depressa encontrou o carreiro estreito de terra batida que levava ao cimo da colina onde se situava o pardacento complexo de apartamentos. O carreiro não tardava a unir-se a um caminho pavimentado que passava sinuosamente entre os prédios. Tinha quase a certeza de que estes apartamentos tinham sido construídos quando ainda era aluno do Liceu Palmlövska, mas nunca estivera tão perto deles. Estavam no lado errado da cidade e, além disso, os seus pais sentiam uma aversão típica da classe média em relação aos apartamentos arrendados. As pessoas do tipo certo moravam em casas próprias.
Atrás de si, lá em baixo, junto ao campo de futebol, conseguiu ver que chegavam ainda mais carros da polícia. Sabia que eles ficariam lá bastante tempo. Tinha sentimentos díspares acerca do lado forense do trabalho policial. Intelectualmente, reconhecia a sua importância; produzia provas sólidas, que normalmente eram cruciais em tribunal, e levava a mais condenações do que a sua própria especialidade. As provas que ele produzia – caso fosse sequer possível chamar-lhes provas – eram menos eficazes; podiam ser postas em causa, distorcidas e contrariadas, especialmente por um advogado de defesa hábil. As provas dele eram antes como uma série de hipóteses de trabalho e teorias acerca dos impulsos obscuros que motivavam as pessoas e tinham maior utilidade durante a investigação preliminar do que sob as luzes brilhantes da sala de audiências. Mas para Sebastian as provas nunca haviam sido o mais importante; ele não era motivado pelo desejo de contribuir para uma condenação. O seu objectivo era penetrar na cabeça de um assassino. A sua recompensa era a possibilidade de prever o próximo movimento de alguém.
Em tempos fora tudo em que ele pensara, tudo o que desejara, e percebia agora que tinha saudades disso. Durante os últimos dias havia experimentado novamente essa sensação, embora mal tivesse chegado a funcionar a meia velocidade. Era algo que tinha a ver com a concentração. Durante um instante quase esquecera a mágoa e a dor intermináveis. Parara, e por um momento saboreara esse sentimento. Conseguiria encontrar o caminho de regresso?
Encontrar a sua motivação.
A sua obsessão.
Alterar o seu foco.
Claro que não. Quem estava ele a tentar enganar? Nunca poderia ser como dantes.
Nunca.
Os sonhos encarregar-se-iam disso.
Sebastian abriu as portas de vidro que conduziam ao prédio de apartamentos de Lena. Em Estocolmo havia uma máquina digital a exigir um código de acesso, mas aqui podia-se simplesmente entrar. Não se lembrava em que piso morava Lena. O painel no átrio de entrada informou-o que era no terceiro. Começou a subir, e os seus passos pesados ecoaram nas deprimentes escadas branco-sujo. Quando chegou ao patamar do terceiro piso imobilizou-se de súbito. Que estranho. A porta do apartamento de Lena Eriksson estava aberta. Avançou. Tocou à campainha ao mesmo tempo que empurrava cautelosamente a porta com o pé e chamava.
– Está aí alguém?
Não obteve resposta. A porta abriu-se vagarosamente, e não tardou a ver o estreito corredor. Sapatos no chão, uma cómoda castanha com uma desordenada pilha de correio publicitário em cima.
– Olá? Está alguém em casa?
Sebastian entrou. À esquerda havia uma porta que levava à casa de banho. Em frente estava a sala com o seu mobiliário da IKEA. O local tresandava a fumo de cigarro. As cortinas estavam corridas, o que tornava o apartamento escuro, sobretudo com todas as luzes apagadas.
Sebastian entrou na sala e reparou num cadeirão revirado e em louça partida no chão. Parou, com um crescente sentimento de inquietação. Acontecera ali alguma coisa. De repente, o silêncio no apartamento pareceu-lhe sinistro. Deslocou-se com rapidez até àquilo que julgou ser a cozinha. Foi então que viu Lena. Estendida no chão de linóleo. Pés descalços, as solas viradas para ele. Uma perna sobre a outra. A mesa da cozinha caída por cima.
Sebastian correu para Lena e debruçou-se sobre ela. Viu o sangue que lhe saíra da parte de trás da cabeça. O cabelo estava pegajoso, e o sangue juntara-se por baixo dela numa pequena poça redonda e brilhante. Como uma auréola de morte. Procurou a carótida para procurar sinais de pulsação, mas o frio sob as pontas dos seus dedos só podia significar uma coisa. Chegara tarde de mais.
Sebastian endireitou-se e pegou no telemóvel. Estava prestes a a ligar a Torkel quando o aparelho começou a vibrar na sua mão. Não reconheceu o número, mas respondeu de imediato, com nervosismo.
– Estou?
Era Billy. Parecia entusiasmado, e Sebastian não teve oportunidade de lhe dizer onde estava nem o que acabara de descobrir.
– Já falou com o Torkel?
– Não, mas...
– O Liceu Palmlövska tem um Volvo – disse Billy rapidamente. – Ou, pelo menos, a fundação que gere a escola tem um. Um modelo S60 azul-escuro, de 2004. E ainda há melhor...
– Billy, ouve o que te vou dizer...
Mas Billy não estava a ouvir. Falava. Rapidamente e com grande excitação.
– Tenho a lista de chamadas do telefone que enviou aquelas mensagens de texto ao Roger. Desse mesmo telefone foram feitas chamadas para o Frank Clevén e para a Lena Eriksson. Compreende o que isto significa?
Sebastian respirou fundo e estava prestes a interromper Billy quando ouviu algo no quarto de Roger. Qualquer coisa que certamente não deveria lá estar. Foi-lhe difícil ouvir Billy enquanto dava os poucos passos que o separavam da porta do quarto do rapaz.
– Já podemos ir buscar o Groth! Apanhámo-lo! – Sebastian apercebeu-se do triunfo na voz de Billy. – Estou, Sebastian, está-me a ouvir? Podemos ir buscar o Groth!
– Não é preciso... Ele está aqui.
Sebastian olhava para Ragnar Groth, que estava pendurado no candeeiro de tecto do quarto de Roger.
Os olhos mortos de Ragnar Groth fitavam-no.
Trabalharam arduamente durante o resto do dia. Certificaram-se de que eram o mais rápidos e eficientes que podiam sem atalhar caminho. Os eventos desse dia exigiam uma grande concentração. Tinham andado muito tempo à espera de um momento de revelação, e agora pareciam ter a solução à vista. Nada devia correr mal. Nada. Era um exercício difícil. Precisavam de tempo para meditarem no que sabiam, de tempo para levar a cabo exames forenses ao que haviam descoberto e, contudo, ao mesmo tempo, precisavam dos resultados com uma rapidez vertiginosa.
Torkel tentara manter a imprensa afastada durante o máximo de tempo possível; não havia nada a ganhar caso a informação sobre a cena do crime ou sobre os dois cadáveres no apartamento se tornasse do conhecimento público. Mas, como em todas as investigações complexas que envolviam um grande número de indivíduos, a notícia acerca da morte do director Ragnar Groth não tardou a ser divulgada. Isso deu azo a uma especulação desenfreada, particularmente no jornal local, que parecia ter acesso a uma fonte bem informada na polícia, e dentro de pouco tempo era impossível adiar o inevitável.
Torkel e Hanser convocaram uma conferência de imprensa com o objectivo de restaurar uma certa aparência de paz e sossego em que se pudesse trabalhar. Por norma, Torkel era muito cuidadoso quando fazia alguma declaração à imprensa, mas após reunir uma série de resultados preliminares e de consultar Ursula e Hanser, decidiu que poderia arriscar-se a prometer uma resolução iminente da investigação. A sala estava apinhada de jornalistas quando lá chegaram, e Torkel não perdeu muito tempo com conversa de circunstância.
Tinham sido encontrados mortos mais um homem e uma mulher.
A mulher estava intimamente relacionada com Roger Eriksson e poderia ter sido assassinada pelo homem que também fora encontrado morto.
Havia diversas indicações que sugeriam que o homem, que já fora anteriormente referido na investigação, se suicidara após a morte da mulher.
Torkel, porém, queria deixar uma coisa muito clara. O suspeito não era o adolescente que fora levado para interrogatório numa fase anterior da investigação. Esse continuava fora de suspeitas. Realçou novamente esse ponto antes de concluir a sua breve apresentação.
Foi como colocar um prato de doce junto a um ninho de vespas. Ergueram-se no ar mãos ansiosas, começaram a chover perguntas. Toda a gente falava sem ouvir o que mais alguém dissesse; apenas exigiam respostas. Torkel conseguiu distinguir as mesmas perguntas, uma e outra vez.
Era verdade que o director do Liceu Palmlövska estava envolvido?
O homem que tinham encontrado era ele?
A mulher morta era a mãe de Roger?
Torkel ficou impressionado com o jogo que decorria entre aquelas duas partes no interior da sala abafada e apinhada de gente. De um lado estavam os jornalistas, que na verdade se encontravam tão bem informados como aqueles aos quais dirigiam as suas perguntas. Do outro lado, a polícia, cuja verdadeira tarefa era fornecer confirmação oficial ao que já era sabido. Um dos lados já conhecia as respostas, o outro já conhecia as perguntas.
Nem sempre tinha sido tão óbvio, mas passara-se muito tempo desde que Torkel estivera envolvido numa investigação em que os dados não fossem divulgados. Pelo menos era isso que acontecia sempre que a informação era passada para fora da sua pequena equipa.
Torkel respondeu o mais evasivamente possível, e continuou a referir o facto de a investigação estar agora numa fase sensível. No que dizia respeito às perguntas dos jornalistas, estava habituado a esquivar-se, e seria provavelmente por isso que era tão impopular junto deles. Para Hanser era mais difícil afastá-los, o que Torkel conseguia entender. Era a sua cidade, a sua carreira, e o desejo de os ter como amigos e não como inimigos tornava-se irresistível.
– Posso confirmar que certas indicações apontam, de facto, para a escola – disse Hanser antes de Torkel agradecer rapidamente a todos, e a levar para fora da sala. Percebeu que ela ficara envergonhada e que tentava justificar o seu lapso.
– Em todo o caso, eles já sabiam.
– A questão não é essa. Nós decidimos o que lhes damos, e não o contrário. O princípio é esse. Agora vai ser um pandemónio na escola.
Era exactamente isso que Torkel pretendia evitar. A escola, de facto, tinha-se tornado prioritária enquanto possível local para obtenção de mais pistas. Uma das primeiras coisas que Torkel fizera depois da dramática descoberta de Sebastian – após consultar Billy e Ursula – fora alargar a área de buscas. A casa de Groth revelara uma quase suspeita ausência de pertences pessoais e de provas. O carro estava registado em nome da fundação que geria o Liceu Palmlövska, pelo que a ideia de revistar os edifícios da escola parecia perfeitamente natural. Era o único sítio que eles conheciam ao qual Groth tinha acesso sem restrições. Torkel tomou rapidamente a decisão de enviar Ursula para lá, logo que ela tivesse concluído a investigação preliminar da nova cena de crime. Mas não sozinha. Sebastian iria com ela.
Para surpresa de Torkel, Ursula não levantara objecções. A possibilidade de resolver o caso era muito mais importante do que o seu ego quando as peças se podiam encaixar com tanta rapidez, e Sebastian era o único que conhecia bem a escola. Já se sabia que o conhecimento dele datava de há trinta anos, mas não deixava de ser importante... Ursula até o convidou a sentar-se no banco ao seu lado.
Não tinham falado durante o caminho.
Havia um limite, afinal.
Billy sentia-se completamente arredado de tudo o que ia acontecendo enquanto estava sentado a sós no escritório. Torkel tinha-lhe pedido que localizasse o Volvo S60 azul-escuro. Não estava na escola; tanto Ursula como a secretária do director haviam-no confirmado. Billy enviou um alerta para todas as patrulhas, e depois decidiu ir ao apartamento de Lena Eriksson. Tinha feito o que podia e queria formar as suas próprias impressões acerca do último local de crime.
A esquadra parecia mais vazia do que era habitual, e Billy suspeitou que Torkel tivesse mandado a maior parte do pessoal isolar as diversas cenas de crime e a escola. Agora tinham de analisar vários locais: o campo de futebol, o apartamento de Lena, a casa de Groth, uma vez mais, e a escola. Era como um trevo de quatro folhas de locais interessantes, mas ao mesmo tempo não era muito fácil de gerir. Torkel atribuíra prioridades aos sítios que deveriam ser analisados por eles e aos que deveriam ser confiados aos técnicos forenses de Västerås.
Billy estava exultante quando entrou no carro. Pela primeira vez desde há dias sentia que a solução da morte de Roger estava para breve. De momento tudo parecia estar a correr bem para eles. E assim deveria continuar. Quando Billy virou para o apartamento de Lena, recebeu uma chamada de um carro-patrulha a reportar que o veículo que ele procurava estava estacionado à porta do edifício para onde ele se dirigia. Trinta segundos depois Billy estava ao lado do Volvo e telefonava a Torkel para o informar. Torkel estava com Vanja no interior do apartamento de Lena, e acabara de encontrar as chaves de um Volvo num dos bolsos de Groth.
De momento tudo parecia efectivamente estar a correr bem para eles.
Há trinta minutos que Ursula e Sebastian percorriam a escola, e agora estavam diante de uma suja porta de aço cinzento que havia na cave. Uma porta acerca da qual nem o contínuo nem as secretárias que haviam descido com eles pareciam saber o que quer que fosse. Nos tempos de Sebastian, aquilo tinha sido um abrigo, mas agora ninguém parecia conhecer que uso tinha o espaço atrás da porta. Nenhum dos funcionários fora muito prestável, e tanto o contínuo como a secretária quiseram ir confirmar com o director antes de mostrarem alguma intenção de abrir a porta. Sebastian olhou para eles e lembrou-se de como os funcionários se mostravam ansiosos ao redor do seu pai. «Ansiosos» nem sequer era uma descrição justa, na verdade. Talvez o respeito pela autoridade – ou antes, o medo – estivesse impregnado naquelas paredes. Mas já bastava.
– Deixem-me pôr a coisa deste modo: o Ragnar Groth está-se a cagar para saber se vocês abrem a porta ou não. Ele já não tem preocupações.
Isso não ajudou. O contínuo reagiu mal àquela afirmação e disse que não tinha a chave daquela porta. Nunca a tivera. A secretária fez um aceno de concordância. Sebastian aproximou-se deles; nos olhos do contínuo havia uma centelha de dúvida. O poder de Ragnar Groth estava a dissipar-se, ambos o sabiam, e de certo modo isso dava ao contínuo uma certa confiança em si mesmo. Uma última batalha antes da queda da instituição que sempre se considerara superior à maioria.
Sebastian olhou para o homem e percebeu que nesse momento estava mais perto de destruir o sonho do seu pai do que nunca. O Liceu Palmlövska e a sua reputação irrepreensível jamais seriam os mesmos depois do que acontecera, quer o director fosse culpado ou não. Sebastian sabia-o, e o homem que estava diante dele provavelmente também. Embora o contínuo desconhecesse o que acontecera a Groth, as entrevistas e as frequentes visitas da polícia tinham-lhe infundido algumas suspeitas. Dentro de pouco tempo, o que era limpo e puro deixaria de o ser. Olharam um para o outro, fixaram-se num olhar mútuo. Para Sebastian já não era o contínuo da escola que estava à sua frente: eram as mentiras, a hipocrisia, tudo o que a criação do seu pai representava. Sebastian respirou fundo, revigorou-se e avançou mais um passo, pronto a sacudir todas as chaves que estivessem em todos os bolsos da roupa daquele homem mais pequeno. A porta seria aberta. Ursula, que raramente vira Sebastian mostrar-se tão agressivo, fê-lo parar.
– Podem ir-se embora. – Despediu os funcionários com um aceno de mão e depois virou-se para Sebastian. – Nós somos agentes policiais. Por favor não te esqueças disso. Comporta-te como deve ser.
A seguir passou por ele sem dizer mais uma palavra. Sebastian ficou a observá-la, desta vez incapaz de proferir sequer um remoque desdenhoso em que normalmente era tão bom. Mas ela estava enganada. Ele não era um agente policial. Estava ali para seu próprio bem, e para o de mais ninguém. Tinha sido assim que aquilo começara, e era assim que haveria de terminar. Ele ajudá-los-ia de bom grado a deitar abaixo o Liceu Palmlövska se pudesse, mas depois tudo terminaria e ele prosseguiria a sua vida. Ia procurar uma mulher com quem já tivesse dormido.
Só isso.
Nada mais.
Ursula regressou, ainda sem dizer nada. Trazia consigo uma caixa de ferramentas, que pousou no chão e abriu. Remexeu nela e tirou de lá um grande berbequim eléctrico. Daí a três minutos estavam a voar lascas de metal enquanto ela fazia perfurações ao redor da fechadura. Abriu a porta com a ajuda de Sebastian e espreitaram a sala, que se assemelhava a um escritório asseado e arrumado. Não tinha janelas, evidentemente, mas tinha paredes pintadas de branco, iluminação suave, e uma grande secretária de cor escura sobre a qual havia um computador. Alguns arquivadores elegantes e um cadeirão de couro inglês ao centro. A arrumação indicou a Sebastian que estavam no local certo. O mobiliário encontrava-se disposto simetricamente e dava equilíbrio à sala, embora a posição das canetas em cima da secretária praticamente berrasse o nome do director. Sebastian e Ursula olharam um para o outro, e até sorriram. O segredinho do director, fosse ele qual fosse, seria revelado.
Ursula entregou um par de luvas de látex a Sebastian e entrou na sala antes dele. Sebastian achou que aquilo parecia um das asseadas salas de interrogatório que tinha visto quando ele e Lily haviam visitado o Museu da Stasi na antiga Alemanha do Leste. Elegante e civilizada à superfície, mas por baixo daquele aprumo vibrava com segredos e acontecimentos que impregnavam as paredes, segredos que nunca deveriam ser conhecidos. Essa sensação foi reforçada pelo odor contraditório que os acolheu quando ele e Ursula lá entraram: a limões frescos e a mofo.
Com todo o cuidado, deram início à busca. Sebastian ficou com os arquivadores reluzentes e imaculados, Ursula com a secretária. Sebastian não demorou a fazer a primeira descoberta atrás de alguns ficheiros no arquivador. Ergueu uma pilha de DVD com imagens garridamente coloridas.
– Homens a Sério, Pichas Rijas. Volumes dois e três. O que terá acontecido ao Volume um?
Ursula exibiu um sorriso sinistro.
– Ainda agora começámos. Suponho que ainda o hás-de encontrar.
Sebastian continuou a percorrer os DVD soltos.
– Montanha das Costas Nuas. Ursos a Dançar e a Foder. A variedade não é grande. – Pousou os DVD e continuou a revistar o arquivador. – Olha para isto.
Ursula aproximou-se e espreitou o interior da gaveta. Atrás dos ficheiros estava uma caixa de cartão que pertencia a um telemóvel Samsung. A caixa parecia nova. Ursula estendeu a mão para a agarrar.
CAPÍTULO VINTE E DOIS
O EXAME ao apartamento de Lena Eriksson robusteceu a teoria em que Torkel e Vanja andavam a trabalhar. Por algum motivo, Groth fora confrontar Lena em casa desta. Tinham discutido. A ferida profunda na parte de trás da cabeça de Lena sugeria que ela fora empurrada ou caíra e batera com tanta força na aresta da mesa da cozinha que morrera devido aos ferimentos. Não tinham encontrado nada que sugerisse outra coisa senão que Ragnar Groth se suicidara. Vanja até encontrara uma breve nota de despedida em cima da secretária de Roger. Escrita a caneta de tinta azul numa folha de papel rasgada.
Desculpem-me.
Na sequência da investigação preliminar de Ursula ao apartamento, após ela ter ido ao Liceu Palmlövska com Sebastian, Torkel organizou a fase seguinte dos procedimentos. A dificuldade residia em impedir demasiadas idas e vindas ao apartamento, para evitar que quaisquer provas forenses fossem contaminadas. Parecia que toda a força policial de Västerås teria de ser chamada por um motivo ou outro, e Torkel não tardou a colocar ao fundo das escadas um agente bem constituído para garantir que apenas aqueles que realmente tinham de tratar de algum assunto legítimo eram autorizados a entrar.
Antes de mais, concentraram-se nos cadáveres. Fotografaram-nos de todos os ângulos a fim de poderem enviá-los para autópsia logo que possível. Vanja encontrou o telemóvel de Lena dentro da mala de mão desta, que estava no vestíbulo, e isso forneceu-lhes outras pistas sobre o curso dos eventos que haviam conduzido à tragédia.
Duas horas depois de Lena ter saído da esquadra da polícia, onde lhe tinham mostrado as imagens de um Volvo S60 azul-escuro, ela fizera um telefonema que durara apenas vinte e cinco segundos. Para o homem que estava agora pendurado no quarto do filho, o qual tinha acesso a um Volvo S60 azul-escuro. Tudo sugeria que Lena havia reconhecido o carro, mas que por algum motivo optara por não o dizer à polícia.
A questão era porquê. Por que razão optara ela por contactar Groth?
A ideia que Vanja teve imediatamente foi a de que deveria haver uma ligação entre Lena e Groth que eles não conheciam. Quando Ursula telefonou uns instantes mais tarde e lhe disse que ela e Sebastian tinham encontrado no Liceu Palmlövska uma sala secreta que estava a revelar-se um verdadeiro festim de provas circunstanciais contra Groth, Vanja percebeu que tinha razão.
O telemóvel de tarifário pré-pago, guardado dentro da respectiva caixa no fundo de um arquivador, era particularmente incriminatório. A sua lista de contactos só continha três números.
O de Frank Clevén, o de Roger Eriksson e o de Lena Eriksson. Era também o telemóvel do qual haviam sido enviadas as implorantes mensagens de texto a Roger pouco antes da morte deste. Vanja colocou o seu aparelho em alta-voz para que Torkel também pudesse ouvir. Além disso, Sebastian e Ursula tinham encontrado a contabilidade da escola e uma grande quantidade de pornografia gay. Combinaram encontrar-se os quatro na esquadra daí a uma hora.
Billy estava ligeiramente atrasado, e os outros já tinham começado quando ele chegou. A sala de conferências parecia mais quente, como se as últimas horas não tivessem apenas feito subir a temperatura da investigação, mas afectado também o ar ao redor deles. Ursula cumprimentou-o com um aceno de cabeça quando ele entrou.
– Como eu estava a dizer, o Liceu Palmlövska era na verdade a menina dos olhos do Ragnar Groth. Até era ele que tratava da contabilidade. Olhem para isto. – Ursula pegou nalgumas folhas de papel e distribuiu-as. – Andávamos à procura de uma ligação entre o Groth e a Lena Eriksson. Na contabilidade dos últimos meses havia três entradas que se destacavam. «Despesas pessoais.» Primeiro, duas mil coroas, e depois cinco mil coroas por duas vezes no mês seguinte.
Ursula calou-se. Na sala todos suspeitaram saber aonde aquilo iria levar, mas como ninguém disse nada, ela prosseguiu.
– Telefonei para o banco. Cerca de um dia depois, a Lena Eriksson fez depósitos de um montante praticamente idêntico.
Ursula acabara de ligar irrefutavelmente Lena Eriksson a Ragnar Groth.
– Chantagem? – Torkel deixou a pergunta pairar no ar.
– Por que outro motivo lhe daria ele doze mil coroas?
– Sobretudo tendo em conta o facto de o Groth enviar uma mensagem de texto ao Roger ao mesmo tempo, pedindo-lhe que aquilo parasse, independentemente do que «aquilo» pudesse ser – propôs Vanja, apontando para o telemóvel dentro da sua caixa imaculada.
– A pergunta é o que teria de parar – disse Billy, sentindo que lhe apetecia entrar no jogo. – Existem aqui algumas opções.
– Sabemos que o Ragnar gostava de homens – disse Vanja, apontando para os filmes pornográficos em cima da mesa. – Talvez a Lena tivesse descoberto.
– Tu pagarias doze mil coroas para impedir que as pessoas descobrissem que andavas a ver pornografia gay no teu computador? – Sebastian mostrou-se céptico, com bons motivos. – Quero dizer, ele podia simplesmente ter deitado fora os DVD. Para que um cenário de chantagem funcionasse seria preciso que a Lena tivesse descoberto algo muito mais incriminatório.
– Por exemplo? – perguntou Vanja.
– Estou a pensar no que a Lisa te contou. Ela disse que o Roger tinha segredos... – Sebastian deixou a frase em suspenso. Vanja percebeu instantaneamente onde ele queria chegar. Sentou-se muito direita, e disse, numa voz excitada: – E que ele dissera que ia encontrar-se com alguém. O Ragnar Groth?
Os outros olharam para Vanja e Sebastian. Era evidente que havia alguma coisa no que eles estavam a dizer. Todos tinham percebido que o segredo por trás desta tragédia deveria ser um assunto sério, senão completamente devastador, para Ragnar Groth. Uma relação sexual ilícita com um aluno de dezasseis anos decerto cabia nessa categoria.
– Se foi esse o caso, deve ter sido isso que a Lena descobriu. E em vez de participar dele, decidiu explorar aquilo que sabia para os seus próprios fins.
– Sabemos que ela precisava de dinheiro. Até vendeu a sua história pela melhor oferta, não foi? – Vanja ergueu um sobrolho para Torkel, que se dirigiu para o quadro branco. Tomara o freio nos dentes. A sua anterior irritação desvanecera-se. Juntamente com o seu colapso interior. – Muito bem, vamos lá desenvolver um pouco esta teoria. – Enquanto falava começou a escrevinhar no quadro uns apontamentos angulosos, quase ilegíveis. A sua caligrafia piorava sempre que ficava mais exaltado.
– Um mês antes de Roger Eriksson ser assassinado, o Ragnar Groth começou a fazer pagamentos à Lena. Nós supomos que isso foi para impedir que ela revelasse alguma coisa. Correcto? Talvez o filho mantivesse uma relação íntima com ele. O que sugere que era esse o caso? Pensemos nisto por um instante. – Lançou um olhar de encorajamento à equipa, ávido por ouvir o que eles pensavam. A primeira a manifestar-se foi Vanja.
– Sabemos que o Groth era homossexual. Sabemos que ele enviou mensagens de texto ao Roger, por querer que qualquer coisa fosse interrompida ou terminada. Isso sugere que andavam ambos envolvidos em algo. A Lisa disse-nos que achava que o Roger se encontrava com alguém em segredo.
– Muito bem, espera aí. – Torkel não conseguia acompanhá-la com os seus apontamentos. Vanja calou-se. Quando viu no quadro uma coisa que poderia corresponder a «encontro» e a «segredo», prosseguiu.
– Sabemos que o Groth estava no motel na noite de sexta-feira, e que o Roger andava por perto. Sabemos que o Groth tinha o hábito de usar o motel para encontros sexuais. Também sabemos que o carro que pertence à escola se encontrava no trajecto do Roger nessa noite, e que muito provavelmente o Roger entrou no carro. Existem fortes indícios de que o carro o levou até ao campo de futebol.
– Posso dizer mais alguma coisa acerca do carro, se vocês quiserem – acrescentou Billy. – Fizemos uma série de descobertas interessantes.
Torkel fez um aceno de concordância.
– Com certeza, diz lá.
– Infelizmente, não há no carro vestígios visíveis de sangue, mas de facto encontrei impressões digitais que pertencem ao Roger, ao Ragnar Groth, e a mais dois indivíduos. As impressões digitais do Roger estavam na porta do passageiro e no porta-luvas. Também encontrei na bagageira um grande rolo de plástico industrial que poderá ter sido usado para embrulhar o corpo. A Ursula terá de analisar o veículo após esta reunião para ver se consegue encontrar alguns vestígios de sangue ou de ADN. O carro também tinha pneus Pirelli P7.
Billy levantou-se e mostrou-lhes um livro muito usado com uma capa dura de cor vermelha.
– Também encontrei um livro de registos de utilização da viatura. O mais interessante é que está registada uma viagem na quinta-feira anterior ao desaparecimento do Roger, e a seguinte é na segunda-feira posterior àquele fim-de-semana. Mas entre as duas existe uma discrepância de cerca de dezoito quilómetros.
– Portanto, entre sexta-feira e a manhã de segunda-feira a certo ponto alguém usou o carro e andou dezoito quilómetros? – perguntou Torkel, ao mesmo tempo que escrevinhava freneticamente no quadro branco.
– De acordo com o registo. É possível calcular a extensão exacta da viagem, mas esse percurso de dezoito quilómetros não está registado no livro.
Sebastian olhou para o mapa na parede ao lado de Torkel.
– Com certeza que entre a escola, o motel, o campo de futebol, Listakärr e o regresso à escola devem ser mais de dezoito quilómetros, não é?
Billy concordou.
– Sim, isso é um problema, mas como eu já disse, trata-se de um registo de utilização da viatura, e é fácil manipular os números. Em todo o caso, de certeza que o carro foi usado. – Billy sentou-se. Torkel aquiesceu.
– Muito bem. A Ursula dará uma vista de olhos ao carro quando terminarmos. Há mais uma coisa que não devemos esquecer: o Peter Westin, o psicólogo.
Torkel escreveu o nome dele no quadro.
– Sabemos que o Roger foi vê-lo várias vezes ao longo do ano. Parece provável que se alguém tivesse descoberto uma possível relação com o Groth, seria o Westin. Talvez ele tivesse confrontado o Groth. Isso explicaria a ausência do seu caderno. Quero dizer, de que é que as pessoas falam com os psicólogos?
– Julgo que o Sebastian deve saber – respondeu Vanja com um sorriso. Todos sorriram menos Sebastian, que a fitou por uns instantes.
– Bom, leu o meu livro, por isso também deve saber.
Torkel olhou para ambos e abanou a cabeça.
– Podemos ater-nos ao assunto de que estamos a tratar, se não se importam? É razoável supor que se houvesse uma relação sexual secreta entre o Roger e o Groth, então o Roger poderia ter informado o Westin acerca disso.
– Não, não é bem assim – disse Sebastian. – Desculpem, o Roger queria integrar-se. Fazer parte do grupo. Para isso precisava de dinheiro. Poderia ter vendido serviços sexuais ao Groth, mas nunca teria contado o caso ao Westin. Seria o mesmo que matar a galinha dos ovos de ouro.
– Talvez andasse a ser coagido? – disse Ursula.
– Não creio. Ele saiu de casa da Lisa para se ir encontrar com alguém.
– Seja como for que olhemos para as coisas, acho difícil acreditar que o Westin não morreu devido a algo que sabia a respeito do Roger – prosseguiu Ursula. – Quero dizer, não há mais nada. Sobretudo, porque o único objecto que desapareceu foi o caderno dele.
Bateram à porta e Hanser entrou. Vestia um elegante fato roxo-escuro, que parecia novo; Torkel não pôde deixar de sentir que ela o comprara para o dia em que o crime fosse resolvido. Para ficar com bom aspecto nas fotografias. Estava obviamente a preparar-se para a próxima conferência de imprensa. O que significava que quando acontecesse lhe seria ainda mais difícil calá-la.
– Desculpem incomodar-vos – disse ela. – Estava a pensar se também poderia assistir...
Torkel fez um gesto de concordância e indicou-lhe uma cadeira vazia ao fundo da mesa. Hanser sentou-se com muito cuidado para não amachucar as roupas.
– Estamos só a analisar cenários possíveis – prosseguiu Torkel, apontando para os seus rabiscos ilegíveis no quadro branco. – Sabemos agora que o Ragnar Groth andava secretamente a entregar dinheiro à Lena Eriksson. Provavelmente devido a chantagem. Talvez porque o Roger, voluntariamente ou sob coacção, era amante do Groth. – A expressão de Hanser alterou-se e ela inclinou-se para a frente. – O carro da escola tem os pneus que procurávamos, encontrámos impressões digitais que pertencem ao Roger e ao director, e sabemos que o carro estava na rua ao pé do motel naquela noite. Ainda não encontrámos quaisquer vestígios de sangue, mas teremos de efectuar uma nova pesquisa. Continuamos a acreditar que o crime não foi premeditado, e que o Groth e o Roger foram de carro até ao campo de futebol. Enquanto lá estavam, alguma coisa correu mal. O Groth disparou sobre o Roger, depois percebeu que tinha de extrair a bala. Quando hoje de manhã perguntámos à Lena Eriksson se ela reconhecia o carro, mentiu-nos. Mas percebeu que o Ragnar Groth tinha matado o seu filho. Desta vez decidiu exercer alguma pressão sobre ele, mas o Groth confrontou-a e as coisas descontrolaram-se.
Torkel parou em frente de Hanser.
– Parece-me razoável.
– De qualquer modo, é uma cadeia de provas circunstanciais. Precisamos de encontrar provas forenses que as sustentem.
Vanja e Billy corroboraram. Havia sempre uma sensação especial naqueles momentos em que uma possibilidade se transformava numa autêntica probabilidade. Agora só precisavam de encontrar uma maneira de transformar o provável no demonstrável.
De repente, Sebastian começou a bater palmas num solitário aplauso que ecoou incomodamente pela sala.
– Bravo. Talvez prefiram que eu não diga nada acerca do facto de haver pequenos problemas que não se enquadram na vossa fantástica teoria? Quero dizer, eu não pretendo estragar o ambiente.
Vanja lançou a Sebastian um olhar irritado e recostou-se na sua cadeira com uma expressão altiva.
– É um pouco tarde para isso, não acha?
Sebastian mostrou-lhe um largo sorriso e acenou com uma mão para a pilha de DVD que estava em cima da mesa.
– Homens. Homens a sério. Homens crescidos. O Ragnar não gostava de rapazes. Gostava de músculos e de grandes pichas. Olhem para o Frank Clevén. Um homem maduro, másculo. Não era um garoto de dezasseis anos com cabelo comprido. Vocês estão a cometer o erro de pensar que os homossexuais não têm preferências. Que eles se sentem satisfeitos desde que haja um caralho.
– Contudo, há certos homens que não conseguem dizer que não ao sexo. Independentemente da sua preferência. Quero dizer, tu sabes isso melhor que a maioria, não é? – disse Ursula.
– Para mim não é o sexo, é a conquista. É um assunto completamente diferente.
– Podemos limitar-nos ao tema? – disse Torkel, apelando a ambos. – Isso torna tudo mais fácil. É claro que tu tens razão, Sebastian. Nós não sabemos se o Groth e o Roger mantinham realmente uma relação sexual.
– Há outra coisa que me incomoda em tudo isto – prosseguiu Sebastian. – O suicídio do Ragnar.
– O que queres tu dizer?
– Olhem para o nosso assassino. Ele pode não ter planeado assassinar o Roger, mas, logo que isso aconteceu, dispôs-se a tomar todas as medidas para o disfarçar. Até lhe retirou o coração para poder extrair a bala.
Sebastian levantou-se e começou a caminhar pela sala.
– Quando ele se sente ameaçado pelo Peter Westin, elimina-o imediatamente. Colocou provas na garagem do Leo Lundin, arrombou o gabinete do Westin. Sob pressão extrema ele agiu sempre com grande determinação. Tudo para evitar ser apanhado. É dotado de frieza. É calculista. Não se deixa enervar. Certamente não iria enforcar-se no quarto de um rapaz, e nunca, mas nunca, pediria perdão. Porque não sente quaisquer remorsos.
Quando Sebastian se calou, o silêncio instalou-se. Emoções contraditórias. A autoridade e os argumentos de Sebastian contra o desejo de eles terem uma solução ao seu alcance. Vanja foi a primeira a pronunciar-se.
– Está bem, Sigmund Freud, só uma pequena pergunta. Digamos que tem razão. Não é o Groth. É um assassino completamente diferente. O Groth só estava no motel por acaso. O carro dele estava parado por acaso na rua quando o Roger ia a passar. Era ele que ia a conduzir. O Roger estava dentro do carro. Foram até ao campo de futebol. Mas quem o assassinou foi outra pessoa. É essa a sua teoria? – Recostou-se na cadeira, com uma expressão ríspida mas tingida de triunfo. Sebastian deteve-se e fitou-a calmamente.
– Não, não é essa a minha teoria. Só estou a dizer-vos que isto não encaixa. Está a faltar-nos qualquer coisa. – O telemóvel de Torkel tocou. Ele pediu desculpa e atendeu a chamada. Sebastian regressou à sua cadeira e sentou-se. Torkel ouviu durante algum tempo antes de dizer, em voz firme: – Tragam-mo cá. Já. – Terminou a chamada e virou-se para Hanser.
– Os teus técnicos forenses acabaram de descobrir uma coisa nova em casa do Groth. Encontraram o caderno que pertencia ao Peter Westin dentro da salamandra.
Hanser sorriu. Agora tinham Ragnar Groth. Definitivamente.
Vanja não conseguiu evitar virar-se para Sebastian.
– Como é que isto se encaixa no perfil psicológico dele, Sebastian?
Sebastian sabia a resposta. Mas não queria incomodar-se mais.
Eles já tinham tomado a sua decisão.
Sebastian saiu da sala.
Os que ainda estavam lá dentro queriam que aquilo chegasse ao fim. Ele conseguia compreender. Aquele tinha sido um caso complexo que exigira muito deles e sentiam-se cansados. À superfície, a solução era perfeita. Mas não era a superfície que interessava a Sebastian. Ele procurava sempre encontrar a ligação subjacente. As respostas límpidas. Quando tudo o que já sabia se encaixava perfeitamente. Quando a acção, a consequência, o impulso e o motivo diziam todos a mesma coisa. Contavam a mesma história.
Isso nunca acontecia à superfície.
Porque é que ele se preocupava? As provas eram inatacáveis, e a um nível pessoal deveria estar mais do que satisfeito. Na verdade, deveria estar em êxtase. O templo do conhecimento que o seu pai edificara iria ser conspurcado, deslustrado, arrancado aos deuses, e espezinhado pela realidade.
O sol do princípio da tarde brilhava através das enormes janelas, e ele deu alguns passos no meio do escritório cheio de atarefados agentes policiais antes de voltar a olhar para Torkel e para os outros dentro da sala mais pequena. Estavam a recolher os seus pertences. O caderno de Westin dentro da salamandra de Ragnar Groth. Com a maior parte das páginas queimadas, para que todas as provas possíveis se perdessem. Mas o mero facto de ele ter sido encontrado em casa de Groth deixara Hanser ainda mais convencida.
Para Sebastian fora uma descoberta que enevoara ainda mais a imagem. O Ragnar Groth que ele conhecera jamais seria tão descuidado. Nem pensar. O homem nem sequer deixava que alguma caneta ou folha de papel ficassem desalinhadas. Aquilo não encaixava. Tinha olhado para Ursula quando ouvira dizer que haviam encontrado o caderno. Ela devia estar a pensar o mesmo; já a conhecia suficientemente bem. Embora sempre tivessem discutido por causa dos pormenores, andavam ambos à procura da mesma coisa, a profundidade. A equação pura. De facto, vira nos olhos dela a mesma dúvida que estava a sentir, mas desta vez Ursula não se comportara como era costume. Aparentemente tinha saído de lá durante um bocado e fora jantar com Mikael enquanto ela e Billy andavam a revistar a moradia. Não tinha examinado aquela parte da casa e partira do princípio de que Billy já o havia feito. Billy compreendera mal e julgara que ela já procurara ali.
Por norma, Ursula não deixava de reparar numa coisa tão simples. Toda a gente que estava na sala tinha percebido como ela ficara embaraçada, e fora aí que Sebastian tomara a sua decisão. Estava farto daquilo. Se eles se sentiam satisfeitos, então ele também. Iriam arrastar o nome de Ragnar Groth pela lama e o verdadeiro assassino escaparia ileso.
Sebastian conseguia viver com ambas as coisas.
Por isso, tinha-se levantado e saíra da sala.
Agora estava a olhar para eles uma última vez. Vestiu o seu casaco e encaminhou-se para a rua. Já estava quase fora da esquadra quando ouviu uma voz atrás de si. Era Billy. Olhou à sua volta enquanto se aproximava de Sebastian. Baixou um pouco a voz.
– Ontem tive um bocadito de tempo livre.
– Que bom.
– Não sei para que o quer, mas consegui obter o endereço da tal Anna Eriksson.
Sebastian olhou para Billy. Já nem sabia o que sentia. De repente ela estava próxima. Vinda de nenhures. Trinta anos depois. Uma mulher que ele não conhecia. Mas estaria pronto? Quereria sequer saber?
– Na verdade, não tem nada a ver com a investigação, pois não? – Billy fixou nele o olhar.
Sebastian não tinha energia para mentir.
– Não, não tem.
– Nesse caso sabe que não lho posso dar.
Sebastian fez um aceno de concordância.
Subitamente Billy debruçou-se para ele e segredou-lhe.
– Storskärsgatan, número 2, em Estocolmo. – Sorriu e apertou a mão a Sebastian. – Gostei de trabalhar consigo.
Sebastian fez um gesto de agradecimento. Mas tinha de ser fiel a si mesmo. Sobretudo agora. Quando acabara de receber o que ali viera procurar.
– Gostava de poder dizer o mesmo.
Sebastian foi-se embora. Decidiu que nunca mais voltaria.
Nunca mais.
O homem que não era um assassino praticamente não conseguia estar sentado e quieto. A notícia estava em toda a parte. Na Internet, na televisão, na rádio. Parecia que a polícia tinha feito uma grande descoberta. Tratava-se de uma curta peça sobre as imagens televisivas da recente conferência de imprensa. A agente policial que comandava aparecia vestida com um fato elegante, ao lado do inspector da Riksmord. Estava descontraída e sorridente, e o seu sorriso era tão radiante que ele até julgara que ela tinha feito um branqueamento dentário e pretendia exibi-lo. O inspector da Riksmord não se mostrara muito diferente; fora formal e sério, como era habitual. A mulher, que aparentemente se chamava Kerstin Hanser, de acordo com uma legenda que aparecia no ecrã, dizia que a polícia tinha agora um suspeito dos homicídios. Seriam divulgados mais pormenores quando a investigação forense terminasse, mas estavam tão convictos das suas razões que tinham decidido torná-lo público. A descoberta surgira após as duas mortes trágicas dessa manhã, e o suspeito era um homem de cerca de cinquenta anos, residente em Västerås, que se suicidara. Não diziam quem era. Mas, apesar disso, toda a gente da área sabia.
Sobretudo o homem que não era um assassino.
Ragnar Groth, o director do Liceu Palmlövska.
Ele próprio deparara com esse boato no dia anterior, num site da Internet chamado Flashback; estava absolutamente repleto de má-língua e de especulação acerca de tudo e de todos. Mas também havia uma surpreendente quantidade de informação exacta. Numa conversa intitulada «Assassinato Ritual em Västerås», tinha encontrado uma publicação anónima que insistia em que o director do Liceu Palmlövska fora levado para interrogatório pela polícia. O homem que não era um assassino telefonara imediatamente para a escola e pedira para falar com o director, mas disseram-lhe que ele estaria fora em assuntos de trabalho durante o resto do dia. O homem que não era um assassino pedira dispensa no emprego e correra para o seu carro. Tinha encontrado o endereço de Ragnar Groth através de pesquisas nas Páginas Amarelas e rapidamente chegara lá de carro. Estacionara a uma certa distância, passeara-se com casualidade diante da casa de dois pisos, o mais discretamente possível, mas o carro que estava à porta dissera-lhe tudo o que precisava de saber. Claro que era um carro civil, mas ele reconheceu-o.
Era o mesmo carro que estivera à porta da casa de Leo Lundin poucos dias antes.
O homem que não era um assassino sentira-se subitamente muito excitado. Como se tivesse acabado de descobrir que tinha ganho o primeiro prémio da lotaria e mais ninguém soubesse. O prémio era seu, e poderia fazer com ele o que quisesse. Enquanto ali estava abriu-se uma porta e saiu de lá uma mulher. Começara a andar para que não reparasse nele, mas a mulher só tinha olhos para si mesma. Parecia enervada. Percebeu-o pela maneira como bateu com a porta do carro. Ele continuara a andar, mas, depois de a viatura ter passado por si, voltara para trás e regressara ao seu próprio carro.
Dez minutos para ir buscar o caderno.
Dez minutos para voltar ali.
Já só estava um agente policial dentro da casa.
Poderia funcionar.
Haveria de funcionar.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
SEBASTIAN FICARA imóvel, à porta da casa dos seus pais, a qual se encontrava às escuras. Olhava para ela. A noite estava gélida e ele não trazia roupas muito quentes, mas não se preocupava com o frio que o assolava. Isso adequava-se ao momento. Chegara a hora. De fazer o que decidira desde que ali chegara, mas que os acontecimentos dos últimos dias o haviam impedido de levar a cabo. No dia seguinte ir-se-ia embora. Partiria. Desapareceria. Até tinha conseguido obter o endereço que o levara a entrar naquela investigação.
Storskärsgatan, número 12.
A resposta poderia estar ali.
Se ele verdadeiramente quisesse saber qual era.
Enquanto permanecia ali, em pé, compreendeu que na verdade até tinham existido alguns aspectos positivos em tudo o que acontecera. Encontrar as cartas e as imensas possibilidades que elas deixavam em aberto, e o caso propriamente dito, trabalhar com a Riksmord, tinha-lhe dado energia. Tivera mais alguma coisa em que ocupar os seus dias em vez da auto-recriminação e da angústia que eram suas companheiras desde há demasiado tempo. Esses sentimentos não tinham desaparecido, evidentemente – o sonho ainda o atormentava todas as noites, e o odor de Sabine continuava a despertá-lo todas as manhãs – mas a sua perda já não o deixava mutilado. Conseguira alcançar a possibilidade de uma vida diferente. Isso era ao mesmo tempo assustador e convidativo. Havia algo de seguro na vida que ele conhecia desde há muito. Por mais negativa que pudesse ser, havia conforto na rotina. Uma situação que ele de certa forma escolhera, e que convinha ao seu ser mais íntimo.
A convicção de que não merecia a felicidade.
De que estava condenado.
Soubera isso desde criança. Na verdade, era como se o tsunami tivesse vindo apenas confirmá-lo.
Voltou-se para olhar para a casa de Clara. Estava nos degraus da entrada a olhar para ele. Ignorou-a. Talvez ele estivesse afinal num momento crítico da sua vida. Alguma coisa acontecera, decerto. Não estivera com nenhuma mulher depois de Beatrice. Nem sequer tinha pensado no assunto. Devia significar alguma coisa. Olhou para o relógio: 19h20. O agente imobiliário já devia ter chegado. Tinham combinado encontrar-se às sete para assinarem o contrato e ele poder ir apanhar o comboio das oito e meia para Estocolmo. Era esse o plano. Então porque não estava ele ali?
Sebastian entrou, de mau humor, na casa e acendeu a luz da cozinha. Telefonou a Peter Nylander, o agente, que lhe pediu desculpa quando atendeu ao fim de alguns toques; continuava ocupado numa visita e só conseguiria encontrar-se com ele no dia seguinte, logo ao princípio da manhã.
Típico.
Mais uma noite na merda daquela casa.
Lá se ia o tal momento crucial da sua vida.
Torkel despira o casaco, descalçara os sapatos e deixara-se cair sobre a fofa cama de hotel, exausto. Tinha ligado o televisor, mas desligou-o quando viu as imagens da conferência de imprensa. Não fora apenas por detestar olhar para si próprio; todo aquele caso estava a incomodá-lo. Fechou os olhos e tentou descansar um pouco, mas era impossível. Não conseguia escapar ao sentimento de inquietação. As provas circunstanciais eram fortes, tinha de admitir; afinal, fora ele que montara tudo aquilo, mas faltavam as provas forenses irrefutáveis. As provas que lhes dariam a absoluta certeza de que tinham razão.
Preocupava-o sobretudo a ausência de quaisquer vestígios de sangue. Com plástico industrial ou sem plástico industrial, o sangue era uma substância que um assassino teria dificuldade em eliminar completamente. Um fluido orgânico tão rico em elementos vestigiais que bastava uma quantidade microscópica para deixar provas. Roger sangrara profusamente. E, no entanto, não havia vestígios de sangue no Volvo. Ursula sentia o mesmo, ele sabia-o. Após a reunião, ela tinha passado algumas horas frustrantes a vasculhar o interior do carro, mas não encontrara nada. Se a conhecia tão bem quanto julgava, ainda devia estar por lá, a esquadrinhar a viatura mais uma vez. Não reparar no caderno em casa de Ragnar Groth tinha passado das marcas; agora ela não largaria nada antes de o ter verificado três vezes. Mas não tinha havido maneira de fazer parar Hanser, nem mesmo de a fazer abrandar, e ela conseguira pôr o superintendente-chefe do seu lado. Torkel e Hanser tinham ido encontrar-se com ele meia hora antes da conferência de imprensa, convocada por ela.
Torkel solicitara mais tempo; decerto que mais um dia não faria diferença... Mas depressa compreendera que as duas pessoas que tinha à sua frente queriam ganhar já. Enquanto tentava freneticamente persuadi-los a adoptar uma abordagem mais cautelosa, tornara-se evidente que eram mais políticos do que agentes policiais. Para eles era importante esclarecer o caso de modo a poderem progredir nas suas carreiras sem manchas no currículo. Para ele, a resolução era mais do que isso. Era a verdade. Era o que as vítimas mereciam, e não algo que estivesse ligado à sua carreira. Por fim, eles tinham vencido. Podia ter lutado mais, sabia-o, mas estava cansado, extenuado, e também ele queria apenas deixar este caso para trás. Não eram bons motivos, mas era essa a realidade da situação.
Em todo o caso, não era a si que competia a decisão. Era ao superintendente-chefe. Não era a primeira vez que tinha de se contentar com o que havia. Isso era algo a que uma pessoa se habituava numa organização como a polícia. De outra maneira podia-se acabar como Sebastian, um excêntrico impossível, com o qual já ninguém queria trabalhar. Torkel estendeu de novo a mão para o controlo remoto, esperando que o noticiário já tivesse acabado, mas, antes que pudesse ligar o televisor, ouviu uma hesitante batida na porta. Levantou-se, foi abri-la e deparou-se Ursula. Também ela tinha um ar cansado.
– Descobriste alguma coisa?
Ela abanou a cabeça.
– O carro não tem vestígios de proteínas nem de albúmen. Não há lá nada.
Torkel aquiesceu. Ficaram parados por um instante; nenhum deles parecia saber o que dizer em seguida.
– Então voltamos para casa amanhã, não é? – disse ela por fim.
– Acho que sim. A Hanser vai querer encerrar o caso pessoalmente, e nós estamos aqui a pedido dela. – Ursula fez um gesto de cabeça para mostrar que compreendia e voltou-se para se ir embora. Torkel fê-la parar.
– Vieste aqui para me falares do carro?
– Por acaso, não. – Ela fitou-o. – Mas teremos de ficar por aí, parece-me. Na verdade, não sei o que dizer mais.
– Em todo o caso, o Sebastian já se foi embora.
Ursula aquiesceu.
– Mas tudo o resto está uma trapalhada.
– Eu sei. Lamento muito.
– Não creio que a culpa seja só tua.
Ela olhou-o. Deu um passo na sua direcção e tocou-lhe na mão.
– Mas eu julgava que me conhecias. A sério que julgava.
– Acho que te conheço agora.
– Não, tenho de tornar as coisas ainda mais claras no futuro.
Torkel riu-se em voz alta.
– Acho que tornaste tudo perfeitamente claro. Poderei ter a ousadia de te convidar a entrar?
– Podes tentar. – Sorriu-lhe e entrou no quarto. Ele trancou a porta depois de ela entrar. Ursula pendurou a mala e o casaco nas costas da cadeira e foi tomar um duche. Torkel despiu a camisa e compôs a cama. Era assim que ela gostava. Primeiro tomava ela um duche, a seguir era a sua vez. Depois ele enfiava-se na cama ao seu lado. Era essa a rotina, era assim que ela queria. Eram as suas regras.
Só no trabalho.
Nunca em terreno doméstico.
Sem planos para o futuro.
E, pensou Torkel, ela tinha de poder contar com a sua inabalável lealdade.
Isso era algo que ele tinha de acrescentar à lista.
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
SEBASTIAN ESTAVA a ter dificuldade em adormecer. Havia demasiadas coisas a rodopiar dentro da sua cabeça. Muito tinha acontecido. Ao princípio pensara que era o endereço de Estocolmo que o atormentava, que o impedia de se descontrair. Talvez isso não fosse muito surpreendente; como poderia adormecer com uma oportunidade ou um risco tão incompreensíveis à sua espera? Mas não era apenas o endereço. Havia algo mais, algo que não eram as possíveis consequências de uma carta vinda do passado. Outra imagem. Muito mais actual, mais nítida. A imagem de um rapaz a caminhar para a sua morte no meio de um campo de futebol. Um rapaz que ele não conseguia entender. Desde o iníco que não conseguira. Era esse o problema, pensou. Juntamente com os outros, tinha começado a concentrar-se com demasiada rapidez na periferia e não no centro. Axel Johansson, Ragnar Groth, Frank Clevén. Era lógico. Andavam à procura de um assassino.
Porém, tinham-se esquecido da vítima. Sebastian teve a sensação de que fora aí que eles haviam começado a perder a imagem de conjunto. Roger Eriksson. O rapaz que estava no cerne da tragédia continuava a ser um mistério.
Levantou-se e foi à cozinha. Havia algumas garrafas de água mineral no frigorífico. Abriu uma e sentou-se à mesa. Pegou na sua pasta e tirou de lá folhas de papel, uma caneta e o material relativo à investigação que ainda estava na sua posse. Ficheiros e papéis que já deveria ter devolvido. Esquecera-se de que ainda os tinha, e não era o tipo de pessoa que devolvia umas meras fotocópias. Nunca fora. Pelo contrário, preferia ter à mão o máximo possível de material, precisamente para ocasiões como esta. Sempre trabalhara dessa maneira quando estava empregado, há muito tempo, e sentia-se contente por não ter perdido o hábito de encher a sua pasta. Infelizmente, não havia muito acerca de Roger, além de alguns documentos que tinham sido trazidos das duas escolas que ele frequentara. Sebastian pousou-os a um lado, abriu o seu bloco, pegou na caneta e começou a pensar metodicamente. No cimo da página escreveu:
Mudou de Escola
Sebastian arrancou a página e colocou-a na ponta da mesa. Gostava de trabalhar com palavras-chave em folhas de papel separadas; ajudava os seus pensamentos a fluírem com suavidade. Era uma questão de sentir a que partes do esqueleto tinha acesso, para conseguir ver como poderia revirá-las e torcê-las, arquitectar alguma coisa a partir delas. Continuou:
Sem Amigos
Para a polícia, um dos problemas era o limitado círculo de amigos de Roger. Tinha pouquíssimos companheiros que soubessem alguma coisa a seu respeito. Lisa só fingia ser sua namorada, e até Johan, o amigo de infância, começara a afastar-se dele. Roger era uma pessoa solitária. As pessoas solitárias eram sempre as mais difíceis de entender.
Sessões de Terapia
Com Peter Westin, que estava morto. Provavelmente, para ter alguém com quem pudesse falar. O que realçava ainda mais a solidão de Roger. Talvez ele também tivesse alguma coisa que precisasse de resolver e de discutir.
Precisava de Dinheiro
A venda de bebida e toda aquela negociata com Axel Johansson tinham revelado ser afinal uma distracção. Mas Roger era um rapaz preparado para ir muito longe a troco de dinheiro. Dinheiro do qual ele precisava para se adaptar. Sobretudo ao seu novo ambiente escolar, o chique do Liceu Palmlövska.
Mãe Recebe Dinheiro do Director da Escola
A atitude amoral em relação ao dinheiro parecia ser uma característica de família. O cenário da chantagem, porém, continuava a parecer credível. Lena sabia alguma coisa acerca de Ragnar Groth, e este dispusera-se a pagar-lhe para que ela se calasse. Tinha de ser alguma coisa que pudesse prejudicar a reputação da escola, pois era para isso que ele vivia. Roger era a única ligação que Sebastian conhecia entre Lena e Groth. Isso levou-o a:
Amante Gay?
Depressa riscou aquela hipótese.
Era essa proposição que mais o incomodava no que dizia respeito às provas circunstanciais. Era o tipo de pensamento que poderia tornar-se demasiado predominante e acabar por influenciar toda uma investigação. Ora ele pretendia mover-se livremente, não se encerrar num ponto de vista específico; olhar para todas as ligações e contextos sem as sobrecarregar de significado. A solução residia com frequência nos pormenores secundários. Portanto, escreveu:
Amante Secreto – Masculino /Feminino
Aquela frase também era demasiado fraca. Baseava-se numa sensação que Lisa tinha, qualquer coisa que Vanja detectara e na qual insistira. Uma sensação que ele partilhava. Mas facilmente poderia ter sido também a interpretação subjectiva que tinham dado ao termo «secreto». Se uma pessoa andava a esconder alguma coisa, provavelmente estaria relacionada com sexo. Haveria algo mais que sugerisse que eles tinham razão, além de uma sensação? Sim, de facto havia. Escreveu no título seguinte:
«No Fundo Ele Só Se Interessava por Dinheiro e por Sexo»
Fora o que Johan dissera a Vanja e a ele quando tinham estado a conversar no acampamento. Talvez fosse mais importante do que Sebastian julgara inicialmente. Segundo Johan, era esse o motivo pelo qual ele e Roger se tinham afastado. Indicava um interesse tão grande pelo sexo por parte de Roger que Johan achara difícil conviver com ele. Mas com quem é que Roger teria sexo? Não era Lisa. Então quem?
Última Conversa
Algo que também incomodava Sebastian. A última conversa de Roger. Quando Roger tentara, sem sucesso, entrar em contacto com Johan em casa na noite daquela sexta-feira, porque não tentara o telemóvel do amigo? Durante algum tempo haviam suposto que ele não tivera tempo, mas agora, que tinham detectado a sua última caminhada através das câmaras de vigilância, já nada indicava ser esse o caso. Pelo contrário, Roger andara durante muito tempo a caminhar pela cidade após o telefonema para casa de Johan antes de entrar no carro. Por isso, tivera tempo. A alternativa mais credível era que o motivo para telefonar a Johan não seria muito importante. Talvez lhe bastasse deixar uma mensagem. Talvez.
Sebastian foi buscar outra garrafa de água ao frigorífico. Havia alguma coisa de que se tivesse esquecido? Muitas, sem dúvida. Começava a sentir-se cansado, frustrado com a dificuldade de compreender Roger. Sabia que lhe estava a escapar algo. Começou a folhear os documentos da escola, o anuário escolar, os últimos relatórios sobre Roger. Não encontrou nada além do facto de o trabalho de Roger ter melhorado. Sobretudo nas disciplinas de Beatrice. Ela parecia ser uma boa professora. Foi praticamente tudo o que conseguiu encontrar.
Levantou-se, sentindo que precisava de ar fresco para desanuviar a cabeça e obter outra perspectiva das coisas. Sabia como funcionava o seu processo mental. Por vezes levava algum tempo a colocar no sítio as peças do quebra-cabeças. Por vezes não conseguia. Como sucedia com todos os processos, não havia qualquer garantia.
O agente imobiliário chegou às oito e meia. Por essa altura já Sebastian fizera a sua mala e fora dar mais um passeio. Ainda nada. O seu processo de pensamento continuava a revolver-se em torno do mesmo padrão anterior. Talvez o segredo de Roger fosse impenetrável, pelo menos com a informação de que Sebastian dispunha.
O agente conduzia um grande e reluzente Mercedes e ostentava um grande sorriso, demasiado jovial, e um casaco impecável. Sebastian detestou-o logo que o viu. Nem sequer lhe quis apertar a mão estendida.
– Então, quer vender?
– Quero sair daqui o mais depressa possível. Dê-me o contrato, que eu assino-o. Como lhe disse ao telefone.
– Bom, está bem, mas não seria melhor verificarmos os pormenores do acordo?
– Não é preciso. Ficará com uma percentagem do montante total, presumo?
– Sim...
– Portanto, quanto mais alto for o preço, mais recebe?
– Exactamente.
– É só isso que eu preciso de saber. É esse o seu incentivo para obter o melhor preço possível. Para mim é o suficiente. – Sebastian fez um aceno de cabeça ao agente imobiliário e pegou na sua caneta, pronto a assinar. O homem olhou-o com uma certa dose de cepticismo.
– Creio que primeiro devo dar uma vista de olhos.
– Nesse caso eu telefono a outra pessoa. Quer que eu assine, ou não?
O agente hesitou.
– O que o levou a escolher-nos?
– Eram a primeira agência da lista telefónica que tinha um atendedor automático de mensagens. Está bem? Agora gostaria de assinar, por favor.
O agente fez um sorriso presunçoso.
– Fico muito contente por o ouvir dizer isso. O que se passa é que aqueles atendedores automáticos que só informam do horário de expediente e pedem ao cliente que telefone mais tarde estão a tornar-se cada vez mais vulgares. Mas eu descobri que nesse caso o cliente telefona a outra pessoa. Inteligente, hem?
Sebastian presumiu que a pergunta fosse retórica. Não tinha qualquer intenção de confirmar a teoria do agente imobiliário dizendo-lhe que era exactamente isso que tinha feito.
– Quero dizer, é muito importante estar acessível ao cliente. O meu número de telefone fica dentro da sua pasta – prosseguiu o homem, sem esperar pela resposta que nunca viria. – E pode ligar-me a qualquer hora se tiver algumas perguntas; à noite, aos fins-de-semana, a qualquer hora. É assim que eu trabalho.
E, como se quisesse provar até que ponto estava sempre disponível, o telemóvel do agente imobiliário tocou antes que ele pudesse continuar. Sebastian olhou fatigadamente para o homem, desejando nunca lhe ter telefonado.
– Olá, querida. Bom, sim, é um pouco inconveniente... mas não te preocupes. – Afastou-se um pouco para conversar com mais privacidade. – Querida, vai correr tudo bem. Tu consegues fazer isso. Prometo. Agora tenho de desligar. Amo-te.
Terminou a chamada e voltou-se para Sebastian com um sorriso de desculpa.
– Desculpe, era a minha namorada. Vai a caminho de uma entrevista para um emprego e está muito nervosa.
Sebastian olhou para o homem que estava à sua frente, o homem acerca do qual ele já sabia demasiado. Tentou encontrar alguma observação que o calasse. De preferência, tão rancorosa que o agente nunca mais dissesse nada. Foi então que lhe ocorreu. Aquilo de que andara à espera.
O pensamento.
A ligação.
A quem se telefona?
Vasilios Koukouvinos achou que aquela era uma viagem muito estranha. Apanhara o homem da mala à porta de casa. O homem estava tenso. Primeiro quis ir ao Liceu Palmlövska e, logo depois, quis ir embora. Nem sequer saiu do táxi. Só quis ir-se embora. O mais depressa possível.
Quando lá chegaram, o homem pediu a Vasilios que pusesse o conta-quilómetros do percurso a zero, voltasse para trás e fosse até ao motel que ficava junto à E18, pelo caminho mais curto possível. O homem sacara de um mapa para lhe mostrar onde era o motel, mas Vasilios tranquilizara-o; conhecia bem Västerås. A partir daí viajaram em silêncio, mas quando, de tempos a tempos, Vasilios olhava para o homem, notava que ele mal conseguia estar quieto. Parecia extremamente agitado.
Quando se aproximaram do motel, o homem mudou de ideias. Deu a Vasilios o nome de uma rua e pediu que o conduzisse até lá. A Rua Spränggränd. Não apenas isso, o homem quis que Vasilios lá entrasse, em marcha-atrás, e estacionasse. Quando Vasilios o fez, o homem verificou o conta-quilómetros. Mostrava um pouco menos de nove quilómetros. O homem entregou a Vasilios o seu cartão de crédito e pediu-lhe que esperasse uns momentos. A seguir saiu do táxi e correu em direcção ao motel.
Vasilios desligou o motor e foi fumar um cigarro. Abanou a cabeça. Se o homem afinal queria ir ao motel, Vasilios podia tê-lo levado directamente para lá. Dera apenas algumas baforadas antes que o homem regressasse, parecendo ainda mais enervado, caso isso fosse possível. Quase pálido. Trazia na mão qualquer coisa que parecia ser uma brochura escolar. O taxista reconheceu a imagem. Era daquela escola finória de onde acabavam de vir. O Liceu Palmlövska.
Vasilios tornou a entrar no táxi. Desta vez o homem quis que ele fosse até ao campo de futebol que ficava junto ao complexo de apartamentos e depois tornasse a ir à escola.
Durante todo esse tempo, ficou ali sentado a olhar para o conta-quilómetros.
Tinha sido certamente uma viagem estranha.
Uma viagem muito estranha de dezoito quilómetros.
Sebastian devia ter percebido. Ele, mais do que ninguém, devia ter percebido. Havia experimentado aquilo em primeira mão. A mudança, o vigor e a potência que havia nela quando a conhecíamos. A maneira como éramos arrastados e queríamos vê-la outra vez.
Como sucedera a Roger.
Roger tinha precisado de alguém. Alguém com quem pudesse contar. Alguém que o apoiasse quando ele mudou de escola. Alguém a quem pudesse telefonar quando estava nervoso. Quando lhe batiam. Alguém que ele amasse. Roger tinha feito um telefonema.
Mas não para Johan.
Para Beatrice.
Quando Sebastian correu para o motel, só tinha um palpite. Uma sensação que ele tivera quando o táxi fizera marcha-atrás e estacionara. Uma sensação de que o motel era mais importante do que pensara. De que Roger não fora lá por acaso. Já tinha lá ido antes. Mas não com Ragnar Groth. Quando Sebastian mostrara a brochura da escola à mulher da recepção, as suas suspeitas foram confirmadas.
Oh, sim, ela tinha lá estado.
Várias vezes.
Não era apenas uma atiçadora.
Era muito mais do que isso.
CAPÍTULO VINTE E CINCO
VANJA E TORKEL estavam sentados na sala de interrogatórios, com Beatrice Strand à sua frente. Trajava a mesma blusa e a mesma saia verde-escura que usara quando Vanja e Sebastian se haviam encontrado com ela no Liceu Palmlövska. Mas agora parecia cansada. Cansada e pálida. As sardas destacavam-se ainda mais na sua pele. Talvez fosse da sua imaginação, mas Sebastian, que a observava na sala contígua, achou que até o espesso cabelo ruivo parecia ter perdido algum brilho. Beatrice amarrotava numa mão um lenço de papel, embora não fizesse qualquer esforço para limpar as lágrimas que lhe escorriam lentamente pelas faces.
– Eu devia ter-vos contado.
– Isso teria certamente facilitado as coisas. – Vanja mostrava-se seca, incomodada, quase acusadora. Beatrice olhou para ela como se tivesse sido acometida por um pensamento terrível.
– Eles ainda estariam vivos? A Lena e o Ragnar? Se eu vos tivesse contado?
Fez-se silêncio na sala. Torkel pareceu compreender que Vanja estava prestes a dizer-lhe que sim; pousou-lhe suavemente uma mão no antebraço. Vanja conteve-se.
– É impossível dizer, e não vale a pena pormo-nos a pensar nisso. – A voz de Torkel foi firme, reconfortante. – Fale-nos da sua relação com o Roger.
Beatrice inspirou e conteve a respiração por um momento, como se estivesse a robustecer-se contra o que estava prestes a enfrentar.
– Eu sei que pensam que é inapropriado. Eu sou casada e ele só tinha dezasseis anos, mas era muito adulto para a sua idade, e... aconteceu.
– Quando é que aconteceu?
– Alguns meses após ter entrado para a escola. Ele precisava de alguém, não era muito encorajado em casa. E eu... eu precisava de sentir que era necessária. Que era amada. Parece assim tão mau?
– Ele tinha dezasseis anos, e você estava num cargo de confiança. O que é que acha que parece? – disse Vanja. Ríspida.
Desnecessariamente ríspida.
Beatrice baixou os olhos, envergonhada. Ali sentada, com as mãos em cima da mesa, amarrotava o lenço de papel. Iriam perdê-la se Vanja não se acalmasse. Beatrice ia-se abaixo, e isso não os levaria a lado algum. Mais uma vez a mão de Torkel pousou suavemente no antebraço de Vanja. Sebastian decidiu intrometer-se através do auricular.
– Pergunta-lhe porque é que precisava de se sentir amada. Afinal, ela é casada.
Vanja olhou para o espelho, com uma expressão que perguntava o que é que isso tinha a ver com o assunto. Sebastian premiu o botão e tornou a falar com ela.
– Não a intimides. Limita-te a perguntar. Ela quer dizer-te.
Vanja encolheu os ombros e voltou novamente a sua atenção para Beatrice.
– Como vai o seu casamento?
– É... – Beatrice levantou o olhar. Hesitou. Pareceu procurar a palavra ou as palavras que melhor descreveriam a sua situação doméstica. A sua vida. Por fim encontrou-as. – Sem amor.
– Porquê?
– Não sei se terá conhecimento disso, mas o Ulf e eu divorciámo-nos há seis anos. Voltámos a casar-nos há dezoito meses.
– Porque se divorciaram?
– Eu tive uma relação com outro homem.
– Foi infiel?
Beatrice disse-lhe que sim com a cabeça e voltou a baixar os olhos. Envergonhada. O que a mulher mais nova pensava a seu respeito era óbvio. Ouvia-lho na voz, via-lho no olhar. Beatrice não a culpava. Agora que aquilo que fizera fora dito em voz alta, exposto naquela sala de paredes nuas, parecia ser profundamente imoral. Mas na época, apanhada no meio de tudo aquilo, experimentara um amor que se abeirava da adoração. Não havia nada que pudesse fazer. Sempre soubera que era errado. De imensas maneiras.
De todas as maneiras.
Mas como podia rejeitar o amor de que tanto necessitava, o amor que não conseguia obter em mais nenhum sítio?
– O Ulf deixou-a?
– Sim. A mim e ao Johan. Saiu pela porta fora, mais ou menos. Deve ter passado um ano até voltarmos a falar um com o outro.
– Mas agora ele perdoou-lhe?
Beatrice fitou Vanja com uma clareza invulgar no seu olhar. Isto era importante. A rapariga tinha de entender.
– Não. O Ulf voltou por causa do Johan. A nossa separação e aquele ano que se seguiu tiveram um efeito devastador no Johan. Ficou zangado e atrapalhado. Continuou a viver comigo, e tinha sido eu que desfizera a família. Era uma guerra aberta. Não encontrávamos uma solução. Muitas crianças lidam bem com a separação dos pais; pode demorar tempo, mas para a maioria delas as coisas acabam por se resolver. Para o Johan não. Nem sequer quando ele ficava com o Ulf em semanas alternadas, ou com mais frequência. Apegou-se à ideia de que nada valia a pena a menos que a família estivesse reunida. Isso transformou-se numa espécie de obsessão para ele. Adoeceu. Ficou deprimido. Durante uns tempos teve pensamentos suicidas. Começou a frequentar um psicólogo, mas isso não ajudou. Estava tudo relacionado com a família. Nós os três, juntos. Como costumava ser antes. Como sempre fora.
– E, então, o Ulf voltou.
– Por causa do Johan. Estou-lhe grata por isso, mas o Ulf e eu... Não é um casamento no sentido em que está a pensar.
Sebastian fez um aceno de concordância na sala contígua. Portanto, ele tivera razão quando sentira que fora Beatrice a seduzi-lo, e não o contrário. Mas era pior do que pensava. Ao longo dos últimos anos ela devia ter passado pelo inferno. Vivera todos os dias com um homem que a rejeitava abertamente, que tornava claro que não queria ter nada a ver com ela, e com um filho que a culpava por todos os problemas que haviam recaído sobre a família. Beatrice deve ter-se sentido abandonada. Não surpreendia que ela estivesse aberta para o amor e para a aceitação sempre que lhe eram oferecidos.
– Como é que a Lena Eriksson ficou a saber da vossa relação? – interveio Torkel. Beatrice tinha parado de chorar. Sabia-lhe bem falar com alguém. Até julgou que a rapariga que estava à sua frente a olhara com mais simpatia. Ela nunca iria defender as acções de Beatrice, evidentemente, mas talvez pudesse compreender o que a motivara.
– Não sei. De repente ficou a saber. Mas, em vez de tentar impedir-nos, começou a tentar extorquir dinheiro ao Ragnar e à escola. Foi assim que ele descobriu.
– E ele pagou-lhe?
– Julgo que sim. Ele prezava a reputação da escola acima de tudo. Eu estava autorizada a trabalhar até ao fim do período lectivo; já tínhamos ficado sem o contínuo a meio do período, se mais alguém saísse... não iria parecer bem. Mas ele fez-me terminar a relação com o Roger, claro.
– E terminou-a?
– Sim. Bom, eu tentei. O Roger recusou-se a aceitar que não podia continuar.
– Quando foi isso?
– Há cerca de um mês, creio eu.
– Tornou a vê-lo naquela sexta-feira?
Beatrice disse que sim com a cabeça e voltou a respirar fundo. Regressara alguma cor às suas faces. Ela podia ter feito uma coisa terrível, e as pessoas que estavam naquela sala tinham razão em condenarem-na, mas era um alívio falar do assunto. Contar-lhes tudo.
– Telefonou-me na sexta-feira à noite e queria encontrar-se uma última vez. Precisávamos de discutir as coisas, disse ele.
– E concordou?
– Sim. Combinámos que eu esperaria por ele num certo sítio. Disse ao Ulf e ao Johan que ia dar um passeio. Levei o carro da escola e fui ter com o Roger. Quando ele chegou estava irritado; tinha andado a lutar e vinha a sangrar do nariz.
– O Leo Lundin.
– Sim. Conversámos e eu tentei explicar-lhe. Levei-o até ao campo de futebol. Ele continuava a recusar-se a aceitar que não podíamos voltar a ver-nos. Chorámos, implorámos e zangámo-nos. Disse que se sentia abandonado.
– O que aconteceu?
– Ele saiu do carro. Furioso e transtornado. Na última vez que o vi, ia a atravessar o campo a correr.
– Não foi atrás dele?
– Não. Levei o carro para a escola.
O silêncio instalou-se de novo. Um silêncio que Beatrice interpretou de imediato como incredulidade. Julgavam que ela estava a mentir. Os seus olhos encheram-se de lágrimas.
– Eu não tive nada a ver com a morte dele. Têm de acreditar em mim. Eu amava-o. Podem pensar o que quiserem acerca disso, mas eu amava-o.
Beatrice começou a chorar, escondendo o rosto entre as mãos. Vanja e Torkel trocaram olhares. Torkel fez um breve aceno na direcção da porta, e ambos se levantaram. Torkel disse-lhe que voltariam daí a pouco, mas era duvidoso que Beatrice o tivesse ouvido.
Estavam a abrir a porta quando Beatrice os interrompeu.
– O Sebastian está cá?
Torkel e Vanja reagiram como se tivessem ouvido mal a mulher que chorava sentada na cadeira.
– O Sebastian Bergman?
Beatrice disse que sim por entre as lágrimas.
– Porquê? – Vanja tentou recordar se Sebastian e Beatrice se teriam sequer conhecido. Haviam-se visto aquela vez na escola, claro, e no dia em que tinham ido perguntar-lhe onde é que o Ulf e o Johan estavam acampados, mas foram encontros muito breves.
– Preciso de falar com ele.
– Veremos o que se pode fazer.
– Por favor. Creio que ele também há-de querer falar comigo.
Torkel abriu a porta a Vanja e saíram para o corredor.
Um segundo depois Sebastian emergiu da outra sala. Foi direito ao assunto.
– Ela não tem nada a ver com os homicídios.
– O que te leva a pensar assim? – perguntou Torkel enquanto percorriam o corredor. – Foste tu que descobriste que era ela que conduzia o carro e que tinha uma relação com o Roger.
– Eu sei, mas tirei conclusões apressadas. Comecei pela premissa de que a pessoa que conduzia o carro também era o assassino. Mas não é esse o caso.
– Tu não o sabes.
– Sei, sim. Não há nada na história ou no comportamento dela que indique que está a mentir.
– Isso realmente não chega para que possamos deixar de considerá-la suspeita.
– As provas forenses do carro coincidem com a descrição que Beatrice faz daquela noite. Foi por isso que não encontrámos quaisquer vestígios de sangue no Volvo.
Vanja voltou-se para Torkel.
– Desta vez tenho de concordar com o Sebastian.
Torkel aquiesceu. Era da mesma opinião. Beatrice parecera credível. Infelizmente. Vanja estava a pensar mais ou menos o mesmo. Não conseguiu suprimir um ar de fadiga e de desapontamento.
– Isso significa que há outro carro. Portanto voltámos de novo à estaca zero; quantas vezes são já?
– Não necessariamente – disse Sebastian. Pararam os três. – Quando se engana alguém, isso quer dizer que alguém foi enganado. O que sabemos nós acerca do marido dela?
CAPÍTULO VINTE E SEIS
HARALDSSON ESTAVA em choque.
Era impossível descrever de outra maneira o seu presente estado.
O seu plano.
A sua vingança.
Destruídos.
Estava sentado a sós na sala do pessoal, com uma caneca de café que rapidamente esfriava à sua frente enquanto tentava descobrir como podia ter-se enganado tanto. Quando telefonara a Radjan, devia ter-lhe dito mais do que se lembrava. Devia ter tagarelado. Acerca de os culpados fugirem, e de como havia mais a respeito do Axel Johansson, além do contrabando de álcool. Talvez não tivesse nada a ver com o Roger Eriksson e Peter Westin, mas de certeza que havia alguma coisa. Era a bebida a falar.
Demasiada, ao que parecia.
Radjan não só lhe copiara o ficheiro como também o lera com novos olhos. Lera-o e, tal como Haraldsson, começara a procurar toda a informação disponível acerca de Axel Johansson. Radjan Micic não era um mau agente policial. Não demorara muito a chegar à mesma conclusão que Haraldsson extrairia várias horas depois. Outros agentes em Gävle e em Sollefteå tinham notado as semelhanças entre as diversas violações, tal como alguns colegas em Västerås, e suspeitavam do envolvimento do mesmo perpetrador, mas sem um nome que desse realce à informação isso não ajudava muito.
Haraldsson tinha um nome, e dera-o a Radjan.
Radjan que, percebia agora Haraldsson, tinha na cidade uma rede de contactos consideravelmente maior do que a sua. Dizia-se na esquadra que após Radjan e o seu colega Elovsson terem saído haviam demorado quinze minutos até obterem um endereço. Tinham ido buscar Axel Johansson às dez e meia. Praticamente à mesma hora que Haraldsson saíra de casa para ir para a esquadra. Quando se tornara evidente que eles iam recolher uma amostra de ADN, Johansson tinha confessado. De um momento para o outro. E mais violações do que as que constavam dos registos. Negara, porém, ter alguma coisa a ver com os homicídios de Roger Eriksson e de Peter Westin. Até tinha um álibi para a hora do assassinato de Roger, que nas presentes circunstâncias parecia válido. Apesar disso, fora uma boa manhã para a polícia de Västerås.
Haviam sido resolvidos quinze casos de violação.
Por Micic e Elovsson.
Corria o boato de que eles iriam encontrar-se com o superintendente-chefe nessa tarde. Haraldsson sentiu os olhos a arder, e comprimiu os dedos sobre eles. Com força. Para conter as lágrimas. Surgiram cores na escuridão. Luzes faiscantes. Apeteceu-lhe ir mais fundo. Para longe da realidade. Esconder-se atrás das pálpebras. Sentia a aproximação de passos, que se detiveram ao chegarem junto da sua secretária. Haraldsson baixou as mãos e fitou a figura que estava ao seu lado.
– Vem comigo – disse-lhe Hanser de uma maneira lapidar.
Haraldsson seguiu-a obedientemente.
Tinham-se reunido os cinco novamente na sala de conferências. Billy e Ursula haviam passado a manhã a afixar de novo na parede toda a informação relativa à investigação. Havia na sala uma sensação geral de letargia. Durante algum tempo pensaram que tudo aquilo chegara ao fim, ou tinham querido convencer-se disso. De que estava tudo esclarecido. Era como se tivessem acabado de vencer uma corrida de fundo e lhes dissessem que tinham de correr mais quinze quilómetros. Na verdade não tinham forças para tal.
– O Ulf e a Beatrice Strand separaram-se há seis anos, e voltaram a casar-se há dezoito meses – disse Billy, que reunira toda a informação que conseguira encontrar acerca do marido de Beatrice no tempo disponível.
Vanja suspirou. Sebastian olhou para ela e depressa percebeu que o suspiro nada tinha a ver com aborrecimento ou com falta de interesse. Era uma expressão, senão de simpatia, então de uma certa empatia com um acto de auto-imolação que sob vários aspectos conduzira a uma vida desperdiçada, ou pelo menos assim parecia.
– Existem duas queixas contra o Ulf Strand nos nossos registos – prosseguiu Billy. – Comportamento ameaçador e agressão. Ambas de 2004, ambas feitas por um tal Birger Franzén, que na época tinha uma relação com a Beatrice Strand.
– Foi com ele que ela teve um caso? – Logo que ouviu o som da sua própria voz, Vanja compreendeu que a pergunta era totalmente irrelevante, e que só fora suscitada pela curiosidade. Também percebeu que não iria obter resposta. E tinha razão.
– Não diz aqui. Apenas que tinham uma relação, mas não que viviam juntos na altura das queixas.
– E o que aconteceu? – perguntou Torkel com impaciência. Ele queria avançar, sair dali, acabar com aquilo.
– A primeira resultou numa multa e numa pena suspensa, a segunda numa providência cautelar que o impedia de se aproximar de Franzén, mas não da Beatrice e do Johan – esclareceu Billy.
– Portanto, ele é ciumento. – Sebastian reclinou-se para trás na cadeira. – O facto de a mulher dele ir para a cama com o melhor amigo do filho poderá tê-lo deixado um bocadinho transtornado.
Torkel voltou-se de novo para Billy.
– Continua.
– Ele tem licença de porte de arma.
– Algumas armas?
– Há uma Unique T66 Match registada em nome dele.
– Calibre vinte e dois – disse Ursula, enunciando um facto em vez de efectuar uma pergunta. Billy continuou a acenar com a cabeça para confirmar.
– Pois é.
– Mais alguma coisa?
– É mais ou menos isto. Ele trabalha como administrador de sistemas para uma empresa de recrutamento e conduz um Renault Mégane de 2008.
Torkel levantou-se.
– Muito bem, vamos lá ter uma conversa com o Ulf Strand.
Vanja, Ursula e Sebastian empurraram as suas cadeiras para trás e levantaram-se. Billy permaneceu onde estava. Quando eles regressassem com o Strand iriam querer ter todo o material disponível à sua espera. Era essa a sua função. Os outros quatro estavam prestes a sair quando bateram à porta e Hanser enfiou a cabeça na sala.
– Podem dispensar-me um momento? – Entrou sem esperar que lhe respondessem.
– Nós íamos sair agora. – Torkel não conseguiu suprimir inteiramente a irritação na sua voz. Hanser notou e optou por ignorá-lo.
– Alguma novidade no caso do Roger Eriksson?
– Íamos agora buscar o Ulf Strand. O marido da Beatrice.
– Então, ainda bem que eu cheguei a tempo. Estive a falar com o superintendente-chefe e...
Torkel interrompeu-a.
– Ele deve estar muito satisfeito. Sei que apanharam o Axel Johansson. Parabéns.
Torkel fez um gesto na direcão da porta, indicando que poderiam falar enquanto caminhavam. Hanser não se mexeu.
– Obrigada. Ele está satisfeito, mas não tão satisfeito como poderia estar.
Torkel sabia para onde se dirigia a conversa e suspeitava porquê. As suas desconfianças foram imediatamente confirmadas.
– Ontem fizemos grande questão de dizer que o caso estava resolvido.
– Isso não é culpa minha. Ontem havia muita coisa a sugerir que era o Ragnar Groth, mas após um exame mais minucioso as provas não eram conclusivas. São coisas que acontecem.
– Ele está muito incomodado por tu teres trazido para cá a Beatrice Strand sem nos informares. Quer ter presente um representante da polícia de Västerås se e quando fizeres alguma detenção.
– Não tenho obrigação de o informar sobre o que eu ou a minha equipa fazemos. – A voz de Torkel endureceu. Não era uma pessoa que marcasse o seu território, mas não estava disposto a ouvir tretas daquelas só porque o superintendente-chefe estava chateado devido a uma trapalhada das relações públicas. – Se ele tem alguma coisa a dizer acerca do meu trabalho, porque não vem aqui dizê-lo pessoalmente?
Hanser encolheu os ombros.
– Mandou-me a mim.
Torkel percebeu que estava só a matar o mensageiro. Rangeu os dentes e matutou rapidamente na situação. O que se poderia ganhar e o que tinha ele a perder?
– Muito bem. De acordo. Levamos alguém connosco.
– Nós temos uma manifestação por causa de um clube juvenil que ficou ligeiramente descontrolada e um acidente na E18, por isso de momento estamos com uma certa falta de pessoal na esquadra.
– Não tenho qualquer intenção de ficar à espera, se é isso que queres dizer. Há limites.
– Não, não é preciso esperar. Só queria explicar-te porque é que vou enviar convosco este agente específico.
Torkel julgou ter visto uma fugaz expressão de simpatia antes de Hanser fazer um aceno de cabeça na direcção da sala maior do escritório. Torkel seguiu o olhar dela. Retrocedeu com uma expressão que sugeria ter sido vítima de uma partida.
– Não podes estar a falar a sério!
Nesse preciso instante, Haraldsson encostou-se a uma secretária e derrubou um copo cheio de canetas.
Os carros civis da polícia estacionaram a cerca de vinte metros da casa amarela, e as cinco pessoas que vinham dentro deles saíram. Haraldsson ia sozinho no banco traseiro de um dos carros, com Torkel e Vanja à frente. Quando saíram da esquadra tinha tentado entabular alguma conversa, mas como depressa percebera que ninguém estava interessado, calara-se.
Atravessaram a rua, com Haraldsson, Vanja e Torkel ligeiramente adiantados em relação a Ursula e Sebastian. A zona residencial estava serena sob o sol vespertino. Ao longe ouviram o som de uma máquina de cortar relva. Sebastian não sabia nada de jardinagem, mas Abril não seria um pouco cedo para andar a cortar a relva? Um entusiasta, possivelmente.
O grupo aproximou-se do acesso à casa dos Strand. Quando foram buscar Beatrice à escola, ela dissera que normalmente Ulf estava em casa quando Johan regressava à tarde. A empresa de recrutamento dissera que ele já não voltaria ao local de trabalho nesse dia. Isso parecia fazer sentido; o Renault Mégane da família estava à porta da garagem.
Vanja caminhou até ao carro e baixou-se junto a uma das rodas traseiras. Os olhos dela luziram de antecipação quando se voltou para fitar os outros.
– Pirelli.
Ursula foi rapidamente até lá. Sacou da sua câmara, agachou-se e fotografou o pneu.
– P7. Boa coincidência.
Pegou num canivete e começou a raspar a lama e a terra que estavam agarradas aos sulcos do pneu. Vanja levantou-se e foi à parte de trás do carro. Experimentou a bagageira. Não estava trancada. Olhou para Torkel, que lhe fez um sinal de assentimento. Vanja abriu a bagageira. Torkel juntou-se a ela e ambos olharam para o que era praticamente um espaço vazio. O revestimento era negro, e sem o equipamento adequado era impossível determinar se nele haveria ou não algumas manchas de sangue. O fundo estava forrado com um tapete de plástico.
Um tapete de plástico novo.
Torkel debruçou-se e levantou-o. Por baixo havia dois compartimentos cobertos, onde presumivelmente estavam alojados o pneu sobressalente, o triângulo de sinalização, os fusíveis e outros objectos sem interesse. O revestimento propriamente dito, porém, estava longe de ser desinteressante. Era feito de feltro. Feltro cinzento. Pelo menos as margens exteriores eram cinzentas. Uma grande mancha vermelho-escura alastrara para o exterior a partir do centro. Tanto Vanja como Torkel já haviam visto sangue seco vezes suficientes para terem imediata consciência do que se tratava. Caso tivessem algumas dúvidas, o cheiro ajudava a confirmar as suas suspeitas. Fecharam a bagageira com estrondo.
Sebastian viu-lhes a expressão lúgubre nos rostos. Tinham encontrado alguma coisa.
Alguma coisa vital.
Por fim, estavam no local certo. Sebastian virou-se rapidamente de frente para a casa. Julgava ter visto pelo canto do olho um movimento na janela do piso superior. Fixou o seu olhar na janela. Nada. Estava tudo sereno.
– Sebastian...
Torkel chamou-o. Sebastian deu mais uma olhadela à janela antes de dedicar a sua atenção a Torkel.
O homem que não era um assassino vira-os subir a rampa de acesso e parar. Junto ao carro. Ele sabia. Sempre o soubera. O carro era o seu calcanhar-de-aquiles.
No dia seguinte àquela sexta-feira fatídica acalentara a ideia de o mandar para a sucata, mas decidira que não. Como haveria de o explicar? Porquê mandar para a sucata um carro perfeitamente bom? Teria parecido suspeito. Assim, fez o que pôde. Lavou-o e esfregou-o, comprou um tapete novo para a bagageira, e anunciou que o carro estava à venda. Duas pessoas tinham ido vê-lo, mas ainda nenhuma lhe fizera uma oferta. Encomendara tampas novas para os dois compartimentos no fundo da bagageira e estava à espera delas. Deveriam chegar na semana seguinte.
Demasiado tarde.
A polícia estava ali.
Junto ao carro. Duas mulheres agachadas junto à roda traseira. Teria deixado vestígios? Possivelmente. O homem que não era um assassino praguejou entredentes. Podia ter feito alguma coisa a respeito disso. Pneus novos. Não seria estranho. Mas agora?
Demasiado tarde.
Só havia uma coisa a fazer. Ir até lá e confessar. Receber o seu castigo. Talvez eles compreendessem. Compreendessem, mas não perdoassem.
Nunca perdoariam.
Ninguém lhe perdoava. O perdão não exigia apenas confissão, mas também arrependimento, e ele continuava a não se sentir minimamente arrependido.
Fizera o que tinha de fazer.
Durante o máximo de tempo possível.
Mas agora chegara ao fim.
– Sabemos que ele tem acesso a uma arma, por isso tenham muito cuidado. – Torkel tinha-os reunido à sua volta e estava a falar em voz baixa, quase num murmúrio. – Mantenham-se perto das paredes. Vanja, tu vais pelas traseiras.
Todos lhe disseram que sim, com expressões sérias. Vanja sacou da sua arma e desapareceu pela lateral da casa, ligeiramente agachada.
– Ursula, fica deste lado para o caso de ele sair por uma janela e tentar fugir através do quintal do vizinho. Sebastian, tu ficas atrás.
Sebastian não tinha qualquer problema em acatar essa ordem específica. Este aspecto do trabalho policial não lhe interessava nem um pouco. Sabia que era disto que os outros estavam à espera desde que, pela primeira vez, tinham ouvido falar do rapaz de dezasseis anos chamado Roger Eriksson que desaparecera, mas a detenção propriamente dita não significava nada para ele.
Para ele, a jornada era tudo. O destino, nada.
Torkel voltou-se para Haraldsson.
– Nós dois vamos tocar à porta. Quero que saque da sua arma, mas mantenha-se de lado, com a arma em baixo. Não queremos assustá-lo. Compreende?
Haraldsson disse-lhe que sim. A adrenalina estava a subir. Isto era a sério. Isto era autêntico. Ele ia prender o assassino de Roger Eriksson, embora não sozinho. Estava ali. Fazia parte daquilo. Nos seus ouvidos havia um som tumultuoso quando sacou da arma e caminhou em direcção à porta da frente com Torkel.
Tinham dado apenas alguns passos quando viram a maçaneta da porta rodar lentamente. Torkel sacou da sua arma com uma velocidade fulgurante e apontou-a para a porta. Haraldsson olhou de relance para Torkel, percebeu que a ordem para manter a arma em baixo já não se aplicava, e apontou a sua também. A porta abriu vagarosamente.
– Vou sair – disse uma voz.
Uma voz de homem.
– Devagar! E mantenha as mãos onde eu as possa ver! – Torkel parou a quatro ou cinco metros da porta. Haraldsson fez o mesmo. Viram aparecer na fresta entre a porta e a ombreira um pé calçado, que depois empurrou a porta até a abrir. Ulf Strand saiu com as duas mãos levantadas.
– Presumo que seja a mim que procuram.
– Fique onde está!
Ulf obedeceu. Olhou calmamente para os agentes policiais que se aproximavam de armas em riste. Ursula e Vanja reapareceram na frontaria da casa; também elas estavam armadas.
– Vire-se para o outro lado!
Ulf fez meia-volta e ficou a olhar para o vestíbulo desarrumado. Torkel fez um gesto a Haraldsson para que este ficasse onde estava. Depois aproximou-se de Ulf.
– Ajoelhe-se! – Ulf fez o que lhe diziam. As duras pedras do pavimento cravaram-se nos seus joelhos. Torkel avançou até junto dele e colocou uma mão na parte de trás do pescoço de Ulf, revistando-o depois rapidamente com a outra mão.
– Fui eu. Eu matei-o.
Torkel concluiu a revista e puxou Ulf até ele ficar de novo em pé. Os outros agentes guardaram as armas.
– Fui eu. Eu matei-o – repetiu Ulf logo que estabeleceu contacto visual.
– Sim, já ouvi. – Torkel fez um sinal a Haraldsson, que avançou com um par de algemas.
– Mãos atrás das costas, por favor.
A expressão de Ulf era quase implorante quando olhou para Torkel.
– Seria possível não me algemarem? Seria bom poder sair daqui de uma maneira normal. Para o Johan não ter de me ver como um... um criminoso.
– Ele está em casa? O Johan?
– Sim. Está no quarto dele. Lá em cima.
Mesmo que o rapaz não tivesse visto nem ouvido o que acontecera, ele acabaria por sair do quarto. Não precisava de encontrar uma casa vazia. Precisaria de alguém com quem falar. Torkel chamou Vanja.
– Fica aqui com o rapaz.
– Não há problema.
Torkel voltou-se de novo para Ulf.
– Muito bem, vamos lá.
Ulf virou a cabeça e gritou para a casa: – Johan, vou sair com a polícia durante um bocado. A mãe deve estar quase a chegar a casa!
Não houve resposta. Torkel agarrou-o por um braço; Haraldsson guardou as algemas e passou para o outro lado. Com Ulf Strand entre ambos, caminharam em direcção ao carro. Sebastian juntou-se a eles.
– Há quanto tempo é que sabia?
Ulf pestanejou sob o sol vespertino enquanto olhava para Sebastian com uma expressão genuinamente intrigada.
– Há quanto tempo é que eu sabia o quê?
– Que a sua mulher andava a ter uma relação sexual com o Roger Eriksson.
Sebastian viu os olhos de Ulf arregalarem-se por um instante em completa surpresa. O espanto e a incredulidade percorreram-lhe o rosto. Antes de conseguir controlar as suas feições, Ulf baixou rapidamente os olhos.
– Hum... desde há algum tempo.
Sebastian imobilizou-se. Todo o seu corpo ficou hirto. Compreendeu o que acabara de ver. Um homem apanhado de surpresa. Completamente. Um homem que não tivera qualquer noção daquilo que a sua mulher e o melhor amigo do filho andavam a fazer, até Sebastian lho ter dito. Voltou-se para os outros.
– Isto não está bem.
Torkel parou. Ulf Strand e Haraldsson fizeram o mesmo. Os olhos de Ulf continuavam fixos no solo.
– O que é que disseste?
– Ele não fazia a mínima ideia, foda-se! – Sebastian caminhou até junto de Torkel.
– O quê? Mas que raio estás tu a dizer?
Sebastian percebeu o que as suas palavras implicavam logo que as proferiu.
– Não foi ele.
Antes que alguém tivesse tempo para reagir, ouviram um tiro, seguido de um grito. Sebastian voltou-se para Ulf e viu Haraldsson agarrar-se ao peito e cair ao chão.
– Arma!
Ursula precipitou-se para a frente e, com um único movimento, arrastou Haraldsson, que sangrava profusamente, para trás do Renault estacionado. Para um local seguro. Torkel reagiu com igual rapidez, afastando Ulf Strand com um encontrão enquanto se agachava e ia atrás dele. Para fora de alcance. Em poucos segundos, tinham saído do acesso. Segundos que Sebastian aproveitou para lançar uma rápida olhadela por cima do seu ombro. O cano de uma espingarda saía pela janela do piso superior. Atrás dele avistou um rosto jovem, empalidecido.
– Sebastian! – berrou Torkel. Sebastian sabia que os outros tinham agido instintivamente e que os anos de treino significavam que estavam fora de perigo. Ele continuava em pé no meio do acesso. Completamente visível. Olhou de novo para a janela e viu o cano da espingarda deslocar-se ligeiramente para a esquerda.
Na sua direcção.
Saiu dali.
Correu em direcção à casa e à porta aberta. Ao fim de alguns passos, ouviu o estalido de uma bala que embateu no pavimento atrás de si. Ganhou velocidade. Alguém apareceu na porta à sua frente. Vanja. Com a arma na mão.
– O que se passa?
Sebastian tinha a noção de estar suficientemente perto da casa para que naquele ângulo fosse impossível alvejá-lo da janela do piso de cima, mas não tinha qualquer intenção de correr riscos ao parar para informar Vanja. Lançou-se para o interior do vestíbulo. Vanja pôs-se ao seu lado num ápice.
– Sebastian. O que se passa?
Sebastian estava ofegante. Tinha o coração aos pulos. A pulsação latejava-lhe nos ouvidos. Não devido ao esforço, mas nos últimos quinze segundos devia ter usado toda a sua dose anual de adrenalina.
– Ele está lá em cima – respondeu Sebastian arquejando. – Com uma espingarda.
– Quem?
– O Johan. Deu um tiro no Haraldsson. – Ouviram passos no piso superior. Vanja girou sobre si mesma e apontou a arma para as escadas. Ninguém apareceu. Os passos pararam.
– Tem a certeza?
– Eu vi-o.
– Porque é que ele haveria de dar um tiro no Haraldsson?
Sebastian encolheu os ombros e pegou no telemóvel, com as mãos a tremer. Marcou um número. Ocupado. Desligou, tentou de novo. Ainda ocupado. Presumiu que Torkel estivesse a pedir apoio.
Apoio armado.
Tentou pôr as suas ideias em ordem.
O que sabia ele?
Estava lá em cima um adolescente que acabara de alvejar um agente policial. Um adolescente que, segundo a mãe dele, noutros tempos já fora mentalmente instável. Poderia ter sido um acto impulsivo quando os vira levar o pai para longe de si. Talvez estivesse envolvido de alguma maneira no homicídio de Roger Eriksson, e agora sentia que todo o seu mundo estava a desabar.
Sebastian avançou em direcção às escadas. Vanja pousou-lhe uma mão no peito para o fazer parar.
– Aonde é que vai?
– Lá acima. Tenho de falar com ele.
– Não tem, não. Esperamos pelos reforços.
Sebastian respirou fundo.
– Ele tem dezasseis anos. Está assustado, fechado no quarto. Se vir aparecer uma equipa de intervenção armada e pensar que não tem saída, acaba por virar a arma contra si próprio, foda-se.
Sebastian olhou para Vanja com uma expressão séria.
– Eu não quero ficar com esse peso na consciência. E tu?
Vanja fixou o olhar dele. Ficaram ali em silêncio. Sebastian percebeu que Vanja pesava os argumentos.
Prós e contras.
Sensatez e sensibilidade.
Contemplou-a, pensando como haveria de persuadi-la se ela se recusasse a deixá-lo subir as escadas. Seria difícil, mas ele tinha de fazer alguma coisa. Tinha a certeza de que se alguém não entrasse rapidamente em contacto com Johan, o rapaz iria morrer. Não podia permitir-se que tal coisa acontecesse. Para seu grande alívio, Vanja fez um gesto de concordância e afastou-se para um lado. Sebastian passou por ela.
– Telefona ao Torkel e diz-lhe o que eu estou a fazer. Diz-lhe que espere.
Vanja aquiesceu. Sebastian respirou fundo, agarrou-se ao corrimão, e assentou o pé no primeiro degrau.
– Boa sorte. – Vanja tocou-lhe no braço.
– Obrigado.
Sebastian começou a subir as escadas, aos poucos.
No cimo havia um pequeno patamar com acesso à esquerda. Quatro portas. Duas à direita, uma à esquerda e uma em frente, lá ao fundo. As paredes pintadas de branco estavam adornadas com cartazes, fotografias e desenhos infantis emoldurados e dispostos numa ordem indiscernível. No chão havia uma passadeira vermelha dois centímetros mais estreita do que o patamar. Estava empoeirada. Sebastian olhou para as portas fechadas e ponderou a situação. A escadaria curvava noventa graus para a esquerda. A porta da entrada ficava do mesmo lado que a janela de Johan. Portanto, isso devia significar que a porta ao fundo do patamar levaria a Johan. Sebastian avançou para ela pé ante pé.
– Johan?
Silêncio. Sebastian encostou-se contra a parede do lado direito, porque a ideia de ficar em pé diante da porta lhe causava desconforto. Não fazia ideia se uma bala de uma Unique T66 Match conseguiria atravessar alguma daquelas portas, mas não sentia qualquer desejo de descobrir.
– Johan. Sou eu, Sebastian. – Bateu hesitantemente à porta. – Lembras-te de mim?
– Vá-se embora – ouviu ele uma voz ténue dizer no interior do quarto. Sebastian expirou o ar que estivera a conter. Contacto. Um primeiro passo importante. Agora era uma questão de efectuar o segundo passo. Precisava de entrar naquele quarto.
– Quero falar contigo. Será possível?
Não houve resposta.
– Acho que seria boa ideia termos uma conversinha. Quero dizer, eu nem sequer sou agente policial, lembra-te. Sou psicólogo.
No silêncio que se seguiu, Sebastian ouviu o som de sirenes ao longe. Praguejou em voz baixa. Mas o que estavam eles a fazer, foda-se? O rapaz só ficaria mais enervado. Sebastian tinha de entrar naquele quarto.
Já.
Mudou-se para o lado esquerdo e apoiou a mão ao de leve sobre o puxador da porta. Sentiu-o frio. Sebastian percebeu que estava a transpirar. Limpou a testa com a outra mão.
– Eu só quero falar contigo. Mais nada. Prometo.
Não houve resposta. As sirenes aproximavam-se. Já deviam ter entrado na rua. Sebastian levantou a voz.
– Estás a ouvir-me?
– Vá-se embora! – A voz de Johan parecia mais resignada do que ameaçadora. Subjugada. Estaria a chorar? Estaria prestes a desistir? Sebastian respirou fundo.
– Vou abrir a porta agora. – Fez rodar o puxador. Lá dentro não houve reacção visível. A porta abria para fora, pelo que Sebastian só a abriu um centímetro. A seguir parou.
– Agora vou abrir a porta toda e depois vou entrar. Está bem? – Mais uma vez, as palavras de Sebastian não obtiveram qualquer resposta a não ser silêncio. Inseriu o seu dedo indicador na fresta, e, devagar, puxou a porta toda para trás enquanto se afastava para um lado. Protegido pela parede. Fechou os olhos. Concentração.
Em seguida, avançou e ficou à entrada, com as mãos bem visíveis.
Johan estava sentado no chão por baixo da janela, com a arma nas mãos. Voltou-se para Sebastian com uma expressão que sugeria que o aparecimento dele na entrada era uma surpresa completa.
Confuso.
Em estado de choque.
E, por conseguinte, perigoso. Sebastian manteve-se imóvel. Olhou para Johan com simpatia. Parecia muito pequeno. Muito vulnerável. A pele do rosto estava pálida e suada. Tinha umas auréolas escuras em redor dos olhos, que pareciam congestionados. Falta de sono, talvez. Independentemente do que tivesse acontecido, do que Johan tivesse feito, isso atormentava-o. Perseguira-o até chegar a este ponto, em que já não havia qualquer possibilidade de voltar para trás. O risco era o de que a pressão fosse demasiado grande. Ou de que se rompesse aquela fina superfície que o mantinha no mundo real. Sebastian conseguia ver como o rapaz estava contraído. As suas maxilas tremiam sob as pálidas faces. De súbito, Johan pareceu perder todo o interesse em Sebastian e dirigiu de novo a sua atenção para a janela e para o que estava a acontecer lá fora.
De onde estava, Sebastian viu estacionar uma ambulância, juntamente com mais alguns carros da polícia. Actividade por todo o lado. Viu Torkel a conversar com um agente daquela que devia ser a equipa local de resposta armada. Johan levantou a espingarda de cima do joelho e apontou-a para Sebastian.
– Diga-lhes para se irem embora.
– Não posso fazer isso.
– Eu só quero que eles me deixem em paz.
– Eles não se vão embora. Tu deste um tiro num polícia.
Johan pestanejou com força, e uma lágrima rolou-lhe pela face. Sebastian deu mais um passo para o interior do quarto. Johan estremeceu e levantou a arma. Sebastian parou, abrindo as mãos num gesto calmo. O olhar de Johan percorreu ameaçadoramente o quarto.
– Vou só sentar-me aqui.
Sebastian afastou-se para um lado e escorregou até ao chão com as costas apoiadas à parede, ao lado da porta aberta. Johan não tirou os olhos dele, mas baixou a espingarda.
– Queres contar-me o que aconteceu?
Johan abanou a cabeça, depois voltou-se e observou mais uma vez a actividade na rua.
– Eles vêm cá buscar-me?
– Enquanto eu aqui estiver, não. – Sebastian estendeu as pernas à sua frente, movendo-se devagar. – E eu tenho todo o tempo do mundo.
Johan fez um gesto de assentimento. Sebastian julgou ter visto os seus ombros baixarem um pouco. Começaria a descontrair-se? Parecia que sim. Mas a cabeça do rapaz continuava a torcer-se como a de um passarinho enquanto tentava ver tudo o que estava a acontecer lá fora, e a espingarda mantinha-se apontada directamente para Sebastian.
– Nós tentamos proteger aquilo que amamos. Isso é natural. Vejo que gostas mesmo muito do teu pai.
Não houve reacção por parte do rapaz. Talvez ele estivesse tão concentrado na actividade da rua que nem sequer tivesse ouvido. Talvez simplesmente não estivesse a ouvir. Sebastian calou-se. Ficaram os dois ali sentados. Pela janela aberta, Sebastian ouviu uma maca ser empurrada sobre o asfalto, e seguidamente o som das portas traseiras da ambulância a serem fechadas. Haraldsson estava em boas mãos. Vozes abafadas. Passos. Um carro a ligar o motor e a afastar-se. O cortador de relva continuava a zunir algures ao longe, onde a vida continuava a ser compreensível, a ser gerível.
– Eu tentei proteger aqueles que amava. Mas falhei.
Talvez tivesse alguma coisa a ver com o tom de voz. Talvez as coisas se tivessem acalmado lá fora, deixando de exigir a atenção dele, mas Johan voltou-se para encarar Sebastian.
– O que aconteceu?
– Morreram. A minha mulher e a minha filha.
– Como?
– Afogaram-se. No tsunami... lembras-te disso?
Johan disse que sim com a cabeça. Sebastian não desviou os seus olhos do rapaz.
– Eu faria qualquer coisa para as trazer de volta. Para que pudéssemos voltar a ser uma família.
Como Sebastian esperara, as suas palavras pareceram ressoar profundamente dentro do rapaz. Aquilo era algo com que ele se podia relacionar. A família. A sensação de perda quando ela deixava de estar presente. Beatrice contara como a mágoa de Johan o tinha feito adoecer. Sebastian começava a suspeitar dos extremos a que Johan chegaria para impedir que alguém estragasse essa imagem.
Johan não disse nada. Sebastian começou a sentir desconforto. Cautelosamente, ergueu os joelhos e apoiou neles os antebraços. Muito melhor. Johan não reagiu ao movimento. Continuaram ali sentados na mesma posição.
Diante um do outro.
Em silêncio.
Johan estava a morder o lábio inferior, com um ar de preocupação no rosto. Espreitou pela janela sem ver fosse o que fosse, como se nada no exterior tivesse agora algum interesse para si.
– Eu não queria matar o Roger.
Sebastian distinguiu as palavras com certa dificuldade. Johan estava a falar em voz baixa com os dentes cerrados. Sebastian fechou brevemente os olhos. Então era isso. Ele já suspeitara, quando se tornara evidente que Ulf não tinha qualquer motivo, mas não quisera acreditar que era assim. A dimensão da tragédia já era suficiente.
– Eu contei à Lena, a mãe dele, para que ela pudesse parar com aquilo. Mas não aconteceu nada. Continuou.
– O Roger e a tua mãe?
Johan continuou a olhar pela janela, com o olhar fixo num ponto exterior. Alhures.
– A mãe tinha conhecido outra pessoa em tempos. Antigamente. Sabia?
– Sim. O Birger Franzén.
– O pai deixou-nos.
Sebastian aguardou. Não veio mais nada. Era como se Johan estivesse a contar com o facto de Sebastian poder deslindar o resto sozinho.
– Tiveste medo de que ele te deixasse outra vez.
– E teria deixado. Isto era pior.
Johan parecia absolutamente convencido, e Sebastian não podia contrariá-lo, mesmo que quisesse.
A diferença de idades.
A relação entre professora e aluno.
O melhor amigo do filho dela.
Essa traição seria indubitavelmente entendida como mais grave. Muito mais difícil de perdoar. Sobretudo por um homem como Ulf. Um homem que nem sequer lhe começara a perdoar pelo que acontecera anteriormente.
– Como é que tu descobriste que eles andavam a encontrar-se?
– Uma vez vi-os beijarem-se. Eu sabia que ele se encontrava com alguém. Costumava falar muito disso... de quando eles o faziam. Mas eu...
Johan não concluiu a frase. Pelo menos em voz alta. Sebastian viu o rapaz abanar a cabeça, como se estivesse a prosseguir a conversa interiormente.
Sebastian esperou.
O processo estava a decorrer. Agora que o rapaz começara a abrir-se desta maneira, ser-lhe-ia muito difícil voltar a fechar-se. Ele queria contar a alguém. Os segredos eram um fardo pesado. Quando se combinavam com a culpa, podiam destruir uma pessoa. Sebastian estava bastante convencido de que Johan começava a sentir algum alívio. Julgou detectar uma alteração física no rapaz. Os ombros dele tinham descaído ainda mais. Os maxilares já não estavam tão cerrados. As suas costas, que tinham estado hirtas e empertigadas, encontravam-se mais descontraídas.
Por isso Sebastian esperou.
Parecia que Johan se tinha esquecido de que Sebastian estava dentro do quarto. Mas depois começou novamente a falar. Como se estivesse a exibir um filme na sua cabeça e a descrever o que via.
– Ele telefonou. Para aqui. A mãe atendeu. O pai estava a trabalhar. Percebi que eles iam encontrar-se. A mãe ia sair para dar um passeio. – Johan praticamente cuspiu as últimas palavras. – Eu sabia onde eles estavam. O que estavam a fazer.
As palavras vinham agora mais depressa. A voz dele era mais alta. Os seus olhos continuavam fixos num sítio onde só Johan podia ir. Como se ele lá estivesse, como se...
Ele está à espera junto ao campo de futebol. Escondido entre as árvores na orla da floresta. Sabe onde é que ela o deixa normalmente. Roger contou-lhe. Antes de perceber que Johan sabia. Vê o S60 da escola aproximar-se do parque de estacionamento. O carro pára, mas não sai ninguém. Ele nem sequer quer pensar no que poderão estar a fazer lá dentro. A espingarda que trouxe de casa está pousada no chão, e ele dá-lhe um pequeno toque com o pé. Algum tempo depois, vê a luz interior do carro acender-se quando alguém sai. É Roger. Johan julga tê-lo ouvido dizer qualquer coisa, mas não consegue distinguir o quê. Roger caminha rapidamente através do campo. Vem na sua direcção. Move-se depressa. Johan põe-se em pé e pega na espingarda. Roger dirige-se para o carreiro que o conduzirá a sua casa, quando Johan chama por ele. Roger pára. Espreita na direcção das árvores. Johan sai de lá, vê Roger abanar a cabeça quando o avista. Não está satisfeito. Não está surpreendido. Não está amedrontado. É como se Johan fosse apenas um problema que ele poderia dispensar naquele momento. Johan dá alguns passos na direcção do campo. Parece que Roger esteve a chorar. Será que ele repara na espingarda, pendurada ao lado da perna direita de Johan? Em todo o caso, não faz referência a isso. Pergunta a Johan o que quer. Johan explica-lhe exactamente o que pretende. Quer que Roger pare de ir para a cama com a sua mãe. Quer que Roger nunca mais volte a aproximar-se da casa deles. Quer que Roger se mantenha o mais longe possível de Johan e da sua família. Levanta a arma a fim de dar algum peso às suas palavras. Mas a reacção de Roger é completamente diferente daquela que Johan esperava ou ansiava. Ele começa a gritar.
Que De Qualquer Maneira É Tudo Uma Merda.
Que Toda a Sua Maldita Vida Foi Para o Inferno.
Que Johan É Um Idiota do Caralho.
Que Agora Não Pode Aturá-lo.
Ele começa a chorar. A seguir afasta-se. Para longe de Johan. Mas ele não pode fazer isso. Agora não. Não daquela maneira. Ele não prometeu que as coisas iam mudar. Não prometeu que parava. Não prometeu nada. Parece que Roger não entendeu a seriedade da situação. A importância que isto tem. Johan tem de o fazer entender. Mas, para o fazer entender, primeiro tem de o fazer ouvir. Para o fazer ouvir, tem de o fazer parar. Grita a Roger, diz-lhe que pare. Vê-o continuar a andar. Torna a gritar. Roger mostra-lhe um dedo médio por cima do ombro
Johan puxa o gatilho.
– Eu só queria que ele ouvisse. – Johan virou-se para Sebastian, com as faces húmidas, já sem energia. As mãos dele já não tinham forças nem vontade para segurar a arma, e esta escorregou para o chão à sua frente. – Eu só queria que ele ouvisse.
O seu corpo começou a estremecer com profundos soluços. Foi uma espécie de convulsão. O rapaz estava quase dobrado ao meio, com a cabeça a tocar nas pernas. Sebastian arrastou vagarosamente os pés pelo chão até chegar junto do trémulo farrapo. Com jeito, pegou na espingarda e afastou-a para um lado.
Depois envolveu Johan nos seus braços e ofereceu-lhe as únicas coisas que lhe podia dar de momento.
Tempo e proximidade.
CAPÍTULO VINTE E SETE
VANJA ESTAVA preocupada. Impaciente. Tinha passado quase meia hora desde que Sebastian subira as escadas. Ouvira-o falar com Johan através da porta fechada, mas, depois de ele ter entrado no quarto, nada ouvira para além de uns murmúrios. Um ocasional rumor quando alguém mudava de posição. Assumiu que isso era um bom sinal. Não havia gritos.
Não havia vozes agitadas.
E, acima de tudo, não tinham sido disparados mais tiros.
Haraldsson ia a caminho do hospital, ou talvez até já lá estivesse. A bala tinha penetrado por baixo da omoplata esquerda e saído do outro lado. Ele perdera muito sangue e tinha de ser operado, mas os relatórios iniciais indicavam que não corria perigo de vida.
Vanja permanecera em constante contacto telefónico com Torkel, no exterior. Seis carros da polícia estavam a postos. Doze agentes da resposta armada haviam montado um cerco intransponível em redor da casa. Mas Torkel mantinha-os do lado de fora. Os agentes uniformizados tinham isolado toda a área. Os vizinhos curiosos juntavam-se à esquina das ruas, com os jornalistas e os fotógrafos, que faziam o que podiam para se aproximarem. Vanja olhou novamente para o relógio. O que estaria na verdade a acontecer lá em cima? Esperava não ter de se arrepender da sua decisão de deixar Sebastian subir.
Então ouviu passos. Passos que se aproximavam das escadas. Sacou da arma e adoptou a postura correcta ao fundo das escadas. Pronta para tudo.
Surgiram lado a lado, Sebastian e Johan. Sebastian tinha o braço à volta do rapaz, que parecia muito mais pequeno e mais novo do que os seus dezasseis anos. Sebastian trazia-o para baixo. Vanja baixou a arma e falou com Torkel.
Após Johan ter sido entregue e levado dali, Sebastian virou as costas a tudo o que acontecia na rua e tornou a entrar na casa. Sentia um peso no coração quando entrou na sala, desviou alguma da roupa estendida sobre o sofá e se sentou. Recostou-se contra o tecido áspero, pousou os pés em cima da mesa de centro e fechou os olhos. Durante o tempo em que andara a trabalhar com a polícia, raramente permitira que os casos, os perpetradores ou as vítimas permanecessem no seu espírito. Eram simplesmente problemas que tinham de ser resolvidos, intrumentos que se podiam usar, obstáculos a transpor. No fundo, tudo e todos só existiam para lhe proporcionarem um desafio.
Para provarem como ele era inteligente.
Para alimentarem o seu ego.
Logo que cumpriam a sua função, esquecia-se deles e passava adiante. Achava o processo legal subsequente tão desinteressante quanto a detenção propriamente dita. Então porque é que os Strand continuavam consigo? Um jovem assassino. Uma família desfeita. Trágico, sim, mas nada que ele não tivesse visto antes. Nada que tencionasse carregar consigo durante mais algum tempo.
Terminara tudo com aquele caso.
Terminara tudo com Västerås. Sabia exactamente do que precisava para poder deixar de pensar nos Strand.
Sexo.
Precisava de sexo.
Fazer sexo, vender a casa, regressar a Estocolmo. Era esse o plano.
Iria ao número 12 de Storskärsgatan? Tentaria entrar em contacto com o seu filho ou filha? Da maneira como se sentia de momento, provavelmente não, mas não tinha qualquer intenção de tomar decisões definitivas antes de se sentir melhor.
Antes de fazer sexo.
Antes de ter vendido a casa.
Antes de partir de Västerås.
Sebastian sentiu os almofadões afundarem-se quando alguém se sentou ao seu lado. Abriu os olhos. Vanja estava empoleirada na ponta do sofá. Com as costas muito direitas. Mãos a apertar os joelhos. Alerta. O completo oposto de Sebastian, que estava esparramado sobre o sofá. Era como se ela quisesse assinalar a maior diferença possível entre ambos.
– O que disse ele?
– O Johan?
– Sim.
– Disse que matou o Roger.
– E disse porquê?
– Tinha medo que o pai tornasse a deixá-lo. Aconteceu.
Vanja franziu a testa, numa expressão de cepticismo.
– Vinte e duas facadas e atirado para um paul? Isso não me parece um acidente.
– De certa forma, o pai ajudou-o nisso. Terão de falar com ele. O rapaz também não matou o Westin.
Vanja pareceu satisfeita. Levantou-se e encaminhou-se para o vestíbulo. Quando chegou à porta, parou e voltou-se para Sebastian. Este enfrentou o olhar dela com uma expressão interrogativa.
– Dormiu com ela, não foi?
– O quê?
– A mãe dele. A Beatrice. Dormiu com ela.
Desta vez não era uma pergunta, por isso Sebastian não respondeu. Não era preciso; como sempre, o silêncio oferecia a melhor confirmação.
Seria uma centelha de desapontamento que ele vira no rosto da sua futura ex-colega?
– Quando subiu ao piso de cima por pensar que o rapaz poderia fazer mal a si próprio, eu julguei que talvez, talvez, não fosse completamente merdoso.
Sebastian sabia onde ia dar esta conversa. Já acontecera antes. Outras mulheres. Outros contextos. Outras palavras. A mesma conclusão.
– Obviamente, estava enganada.
Vanja foi-se embora. Ele ficou a vê-la afastar-se. Deixou-se ficar onde estava. Não disse nada. O que havia para dizer?
Afinal, ela tinha razão.
Ulf Strand estava sentado na cadeira que tinha sido ocupada pela sua mulher algumas horas antes. Parecia calmo e composto. Bem-educado, quase atencioso. A primeira coisa que perguntou quando Torkel e Vanja entraram na sala de interrogatórios e se sentaram à sua frente foi como estava Johan. Logo que lhe garantiram que o rapaz estava a ser bem tratado e que Beatrice estava com ele, perguntou por Haraldsson. Vanja e Torkel informaram-no de que Haraldsson estava livre de perigo e em seguida ligaram o gravador e pediram a Ulf que começasse pelo princípio. Pelo momento em que descobrira que Roger estava morto.
– O Johan telefonou-me para o emprego nessa noite. Estava a chorar, estava completamente fora de si; disseme que tinha acontecido uma coisa terrível no clube de futebol.
– Portanto, foi de carro até lá?
– Sim.
– O que aconteceu quando chegou?
Ulf endireitou-se na cadeira.
– O Roger estava morto e o Johan desfeito. Por isso tentei acalmá-lo o melhor que pude, e depois levei-o para o carro. – Vanja notou que não havia um vestígio de emoção na voz de Ulf. Era como se ele estivesse a fazer uma palestra para colegas e clientes. Disposto a mostrar-se formal, com uma voz bem modulada.
– A seguir fui tratar do Roger.
– E tratou dele de que maneira? – perguntou Torkel.
– Arrastei-o para longe da vista. Para o meio da floresta. Percebi que seria possível detectar a origem da bala, por isso tinha de a retirar.
– E como o fez?
– Voltei ao carro e fui buscar uma faca.
Ulf calou-se e engoliu em seco. Não admira, pensou Sebastian na sala contígua. Até aí Ulf não tinha desempenhado um papel activo, para além de deslocar o corpo. Mas não lhe causara danos. A partir daqui as coisas começariam a tornar-se difíceis.
Ulf pediu um copo de água. Torkel foi buscar-lhe um. Ulf deu dois, três goles. Pousou o copo e limpou a boca com as costas da mão.
– Foi buscar uma faca ao carro. O que aconteceu a seguir? – Vanja insistia com ele. A voz de Ulf era nitidamente mais fraca quando respondeu.
– Usei-a para retirar a bala.
Vanja abriu sobre a mesa a pasta que tinha à sua frente. Folheou várias fotografias do jovem corpo mutilado. Parecia procurar qualquer coisa. A representar para a galeria, pensou Sebastian. Ela sabia tudo o que precisava de saber para conduzir aquele interrogatório sem ter de consultar papéis ou registos. Só queria que Ulf tivesse um vislumbre daquilo que fizera.
Como se ele tivesse esquecido.
Como se alguma vez esquecesse.
Vanja fingiu ter encontrado o papel que supostamente procurava.
– Havia vinte e duas facadas no corpo do Roger quando o encontrámos.
Ulf estava a esforçar-se por desviar o seu olhar daquelas fotografias terríveis que estavam agora espalhadas sobre a mesa à volta da pasta de Vanja. O clássico dilema do acidente de viação. Não se quer olhar para lá, mas não se consegue evitar.
– Eu... Eu pensei que conseguia disfarçar o tiro como se ele tivesse morrido esfaqueado. Nalgum assassinato ritual, talvez. Um acto de um louco, não sei. – Ulf conseguiu levantar os olhos e fitar directamente Vanja. – Eu só queria esconder o facto de ele ter sido morto a tiro, nada mais.
– Muito bem, e depois de o ter esfaqueado vinte e duas vezes e de lhe ter retirado o coração, o que fez?
– Fui levar o Johan a casa, de carro.
– E onde estava a Beatrice?
– Não sei. Mas não estava em casa. O Johan devia estar em choque. Adormeceu no carro antes de chegarmos a casa. Levei-o para cima e meti-o na cama. – Ulf calou-se. Parecia estar subjugado pelos acontecimentos. Ocorreu-lhe que essa fora provavelmente a última coisa a ter algum vestígio de normalidade. Um pai a aconchegar o filho adormecido. Desde então, tudo não passara de uma longa batalha. Para guardar segredo. Aguentar as coisas.
– Continue.
– Regressei à floresta e mudei o corpo. Pensei deixá-lo num sítio onde um rapaz de dezasseis anos não pudesse levá-lo. Para ter a certeza de que ninguém viria a suspeitar de Johan.
Sebastian endireitou-se na cadeira e premiu o botão do intercomunicador. Através da janela conseguiu ver que Vanja prestava atenção quando ouvia o zumbido no seu ouvido.
– Se ele não sabia que a Beatrice e o Roger andavam enrolados, por que razão julgou que o Johan tinha alvejado o amigo?
Vanja fez um breve sinal de assentimento. Boa pergunta. Tornou a dedicar toda a sua atenção a Ulf.
– Há uma coisa que eu não compreendo: se não conhecia a relação entre a sua mulher e o Roger, então porque é que achou que o Johan lhe tinha dado um tiro?
– Não havia razão nenhuma. Tinha sido um acidente. Uma brincadeira que correra mal. Andavam a fazer tiro ao alvo e ele não tivera cuidado. Foi isso que ele me disse.
Ulf desviou os olhos de Vanja para Torkel com renovada intensidade, como se até agora tivesse acreditado que o filho era, no máximo, culpado de ter mentido, como se de repente tivesse compreendido que Johan não era inocente. Que aquilo não tinha sido um acidente. Ou não apenas um acidente, em todo o caso.
– O que vai acontecer ao Johan? – A ansiedade e a preocupação na sua voz eram genuínas.
– Ele tem mais de quinze anos, portanto já tem idade para ser responsabilizado criminalmente – disse Torkel de uma maneira muito objectiva.
– O que significa isso?
– Que ele irá enfrentar as acusações.
– Fale-nos acerca do Peter Westin. – Vanja mudou de táctica, ansiosa por ligar as coisas.
– É um psicólogo.
– Nós sabemos. Queremos saber porque está ele morto. O que o levou a pensar que aquilo que o Roger lhe tinha contado era tão perigoso que não podia continuar vivo?
Ulf mostrou-se completamente desnorteado.
– O Roger?
– Sim, o Peter Westin era o terapeuta do Roger. Não sabia?
– Não. Ele é o psicólogo do Johan. Desde há vários anos. Desde o divórcio. O Johan ficou muito mal depois do... bom, depois disto tudo. Com o Roger. O que é compreensível. Por isso fomos ter com o Peter. Mais tarde. Não sei o que ele lhe disse. Perguntei-lhe, mas ele nem se conseguiu lembrar bem. Percebi que não tinha confessado nada, porque noutro caso a polícia já nos teria ido bater à porta, mas ele poderia ter dito coisas que, numa fase posterior, permitissem que o Peter somasse dois mais dois e descobrisse o que tinha acontecido. Eu não podia correr esse risco.
Vanja recolheu as fotografias. Já sabiam tudo aquilo de que precisavam. Agora cabia ao tribunal. Devido à sua jovem idade, Johan provavelmente apanharia uma pena mais leve. Ulf, por outro lado... Passaria muito tempo até que a família Strand se reunisse de novo.
Vanja estava a estender a mão para desligar o gravador quando Torkel a impediu. Ainda faltava fazer uma pergunta. Uma pergunta que andava a incomodá-lo desde que ele ficara a saber o que efectivamente acontecera.
– Porque não chamou a polícia? O seu filho telefonou-lhe para lhe dizer que tinha dado um tiro no amigo por acidente. Porque não chamou simplesmente a polícia?
Ulf sustentou o olhar curioso de Torkel. Era simples. Se Torkel era pai, então compreenderia.
– O Johan não quis que eu o fizesse. Estava petrificado. Se tivesse telefonado para a polícia, ele ficaria desapontado. Eu já o tinha desapontado uma vez. Quando me fui embora. Desta vez tinha de o ajudar.
– Morreram quatro pessoas. Ele vai para a prisão e está completamente traumatizado. De que maneira estava a ajudá-lo?
– Fracassei, admito isso. Fracassei. Mas fiz tudo o que estava ao meu alcance. Eu só queria ser um bom pai.
– Um bom pai? – O tom de dúvida na voz de Torkel foi confrontado por um olhar que irradiava absoluta convicção.
– Eu não estava presente durante alguns dos anos mais importantes. Mas creio que nunca é demasiado tarde para se ser um bom pai.
Ulf Strand foi levado. Nessa noite seria constituído arguido. O trabalho chegara ao fim. Sebastian ficou sentado na sala contígua, a ver Torkel e Vanja recolherem as suas coisas. Cavaqueavam alegremente sobre o regresso a casa. Vanja esperava apanhar o comboio nessa noite, a menos que Billy estivesse a pensar ir de carro para Estocolmo. Torkel iria ficar mais um ou dois dias, tal como Ursula. Ele ligaria todas a peças soltas, enquanto Ursula esquadrinhava a casa dos Strand para se certificar de que todos os ângulos ficavam cobertos em matéria de provas forenses. A última coisa que Sebastian ouviu antes de a porta se fechar atrás deles foi que Torkel exprimiu a esperança de que houvesse tempo para jantarem juntos antes de Vanja partir.
Havia neles uma certa ligeireza. Nas suas vozes, nos seus movimentos. Alívio. O Bem tinha triunfado. Missão cumprida. Estava na hora de partir a caminho do Poente com uma canção nos lábios.
Sebastian não sentia vontade de cantar. Não lhe apetecia festejar. Já nem sequer lhe apetecia fazer sexo.
Só conseguia pensar em duas coisas: O número 12 de Storskärsgatan e a voz de Ulf. Creio que nunca é demasiado tarde para se ser um bom pai.
O mais estranho era que Sebastian compreendia que já tinha decidido. Não expressamente, não conscientemente, mas lá no fundo estava muito certo de que não iria procurar Anna Eriksson e o seu filho ou filha quando regressasse a Estocolmo. Tinha a certeza e estava feliz com a decisão que o seu subconsciente tomara por si.
Não conseguia ver um aspecto positivo.
O que isso lhe poderia oferecer.
Ao que poderia levar.
Anna nunca seria a Lily. A criança nunca seria a Sabine. E era delas que ele sentia saudades. Eram elas que ele queria ter de volta. Eram as únicas que o preocupavam. Lily e Sabine.
Mas, apesar de tudo, as palavras de Ulf haviam tocado algo que havia dentro de si. Não o que ele dissera, mas a maneira como o dissera.
A certeza.
A convicção. Como se fosse um facto incontroverso. Uma verdade universal.
Nunca é demasiado tarde para se ser um bom pai.
Sebastian tinha um filho ou uma filha. Tinha uma criança que, muito possivelmente, ainda estava viva. Havia alguém, algures, cuja carne era da sua carne.
Que era seu.
Nunca é demasiado tarde para se ser um bom pai.
Aquelas palavras simples levantavam questões difíceis.
Iria ele realmente deixar que outro filho lhe escapasse entre os dedos?
Poderia fazer isso?
Era o que queria?
Sebastian estava a ficar cada vez mais convencido de que a resposta às perguntas era «não».
O comboio que levaria Sebastian de regresso a Estocolmo partia daí a uma hora. Tinham passado quase três dias desde que ele saíra da esquadra da polícia com as palavras de Ulf ainda a ecoar-lhe nos ouvidos e se encaminhara para casa dos seus pais. Não tivera mais nenhum contacto com Torkel ou Ursula, embora soubesse que eles tinham ficado alguns dias na cidade. Desconhecia se ainda estariam por ali. A investigação terminara. Ninguém parecia sentir necessidade de se manter em contacto fora do trabalho. Isso convinha a Sebastian. Já tinha o que viera buscar.
Dois dias antes, o agente imobiliário regressara e haviam tratado de tudo o que era necessário para que a casa pudesse ser vendida. Nessa noite, Sebastian voltara a pegar no papel que tinha o nome e o número de telefone da mulher que vinha a ler um livro no comboio para Västerås. Um encontro que agora parecia ter ocorrido há uma eternidade. Ela mostrara-se hesitante quando ele lhe telefonara. Pedira-lhe desculpa. Explicara-lhe que tinha andado cheio de trabalho. Naquela investigação de homicídio de que ela talvez já tivesse ouvido falar. O adolescente do Liceu Palmlövska que tinha morrido. Tal como esperava, ela ficara curiosa e concordara encontrar-se com ele no dia seguinte. Na véspera. Tinham acabado a noite em casa dele. Só conseguira livrar-se dela de manhã. Queria vê-lo outra vez. Ele não fez promessas. Se não lhe telefonasse, telefonava-lhe ela, dissera-lhe a mulher com um sorriso. Não lhe escaparia, agora que sabia onde ele morava. Três horas depois, Sebastian tirara da casa tudo o que queria, trancara a porta, e fora-se embora, para nunca mais voltar.
Naquele momento, encontrava-se num sítio que jamais pensara visitar. Para dizer a verdade, havia jurado nunca lá ir. Nunca ir visitá-lo outra vez. Agora estavam ali os dois. No adro da igreja. O túmulo dos seus pais.
As flores do funeral estavam murchas. A campa tinha um aspecto de abandono. Sebastian pôs-se a pensar porque é que ninguém tinha levado as coroas de flores sem vida, os arranjos florais que já tinham sido derrubados e meio comidos pelos veados. Haveria algum impresso que ele tivesse de assinar para que a igreja tratasse disso? Certamente não seria ele a fazê-lo. Não o faria mesmo que ainda morasse em Västerås. Nas presentes circunstâncias, isso estava completamente fora de questão.
A lápide de granito rosado representava um sol-nascente, ou possivelmente poente, entre dois majestosos pinheiros. A inscrição dizia Jazigo Bergman e, por baixo, estava o nome do seu pai: Ture Bergman. O nome de Esther ainda não tinha sido acrescentado. A campa teria de assentar devidamente antes que a lápide fosse retirada para levar uma nova inscrição. Seis meses, ouvira dizer Sebastian algures.
Ture tinha morrido em 1988. Ela ficara sozinha durante vinte e dois anos. A sua mãe. Sebastian imaginou se ela alguma vez teria pensado em ir vê-lo. Ir ter com ele. Se o tivesse feito, ele ter-lhe-ia dado a mão?
Provavelmente não.
Sebastian estava de pé a alguns metros da campa mal cuidada. Irresoluto. Rodeado por imobilidade. O sol primaveril aquecia-lhe as costas através do casaco. Um pássaro solitário cantava no alto de uma das bétulas plantadas aqui e acolá entre as sepulturas. Uma mulher e um homem passaram de bicicleta ao longo do carreiro. Ela ia a rir-se de qualquer coisa. Um riso borbulhante, efervescente, que parecia deslocado enquanto se elevava para o límpido céu azul. O que estava ele a fazer ali? Na verdade não tinha qualquer desejo de se aproximar da campa mais do que isto. Ao mesmo tempo existia algo de duplamente trágico no facto de a última morada da sua mãe se assemelhar a um monte de lixo, já que ela fora uma pessoa tão asseada.
Sebastian avançou até à campa e baixou-se. Desajeitadamente, começou a recolher as flores murchas.
– Aposto que julgavas que isto nunca aconteceria, mãe. Aposto que pensavas que eu nunca cá viria.
O som da sua própria voz surpreendeu-o. Baralhou-o. Nunca pensara em si como o tipo de pessoa que limparia uma campa enquanto falava com a mãe falecida. O que lhe teria acontecido?
Era qualquer coisa que tinha a ver com aqueles números.
1988.
Vinte e dois anos.
Sozinha. Aniversários, dias de semana, Natal, feriados. Mesmo com amigos ao redor, sozinha no silêncio daquela grande casa durante a maior parte do tempo. Muito tempo para pensar.
Acerca de tudo o que sucedera.
Acerca de como as coisas tinham resultado.
O orgulho dela maior que as suas saudades.
O medo de ser rejeitada mais forte do que a sua ânsia de amor.
Mãe de um filho do qual nunca tinha notícias. Avó por alguns curtos anos de uma criança que nunca chegara a ver. Sebastian desistiu da sua disparatada tentativa de limpeza e pôs-se em pé. Levou a mão ao bolso para procurar a carteira e tirou a fotografia de Sabine e Lily que estivera em cima do piano em casa dos seus pais.
– Nunca hás-de vê-la. Assegurei-me de que assim seria. – A sua mão direita apertou a carteira. Percebeu que as lágrimas não estavam muito longe. A mágoa. Certamente não era pelo seu pai. E também não era pela sua mãe, embora conseguisse sentir uma certa amargura ao pensar quão insignificante parecia ser o conflito deles relativamente às consequências que tivera. Nem sequer estava a chorar por Lily e Sabine. Estava a chorar por si próprio. Pela percepção que tivera.
– Lembras-te do que me disseste na última vez em que nos vimos? Disseste-me que Deus me tinha deixado. Que ele tinha retirado de mim a sua mão.
Junto à lápide inacabada no adro da igreja da cidade em que ele crescera, onde ninguém o conhecia, ninguém o procurava, ninguém lhe sentia a falta, Sebastian olhou para a fotografia da sua falecida mulher e da sua falecida filha. Um estado de coisas que era verdadeiro em qualquer cidade. Sebastian limpou as faces com as costas da mão esquerda.
– Tinhas razão.
CAPÍTULO VINTE E OITO
STORSKÄRSGATAN, número 12.
Afinal ele acabara por ir até lá. Estava à porta do imponente prédio funcionalista. Sebastian não sabia nada de arquitectura nem tinha qualquer interesse em aprender, mas sabia que os edifícios a oeste de Gärdet eram exemplos de funcionalismo.
Sabia que Anna Eriksson morava no bloco de apartamentos que estava à sua frente. Anna Eriksson, a mãe do seu filho.
Esperava ele.
A sério?
Sebastian tinha regressado a Estocolmo havia já quase uma semana. Todos os dias passara a pé pelo número 12 de Storskärsgatan. Por vezes repetidamente. Até agora não entrara. O mais próximo que chegara fora para espreitar a entrada principal e ver se conseguia vislumbrar a lista de moradores que estava afixada na parede do átrio de entrada. Anna Eriksson morava no terceiro piso.
Deveria fazê-lo?
Não deveria fazê-lo?
Sebastian debatia-se com esse problema desde que voltara para casa. Em Västerås tudo lhe parecera mais abstracto, de certa maneira. Um jogo mental. Ele podia sopesar os prós e os contras. Tomar uma decisão. Mudar de opinião. Tornar a mudar de opinião. Sem quaisquer consequências.
Agora estava ali. A decisão que tomasse poderia ser irrevogável.
Virar as costas e ir-se embora. Ou não.
Dar-se a conhecer. Ou não.
Estava sempre a mudar de ideias. Várias vezes por dia. Os argumentos eram os mesmos que ele havia recapitulado uma e outra vez em Västerås. Não lhe ocorrera nada de novo. Não tinha intuições novas. Amaldiçoou a sua indecisão.
Por vezes, caminhava até Gärdet convencido de que iria entrar por ali dentro, subir as escadas e tocar à campainha. Mas depois nem sequer chegava a virar para Storskärsgatan.
Noutras ocasiões, quando não tinha qualquer intenção de se dar a conhecer, acabava por ficar durante horas do lado de fora da porta de madeira escura. Era como se uma outra pessoa estivesse a dirigir as suas acções. Como se não tivesse verdadeira autoridade naquilo que fazia. Mas não tinha entrado no edifício. Ainda não.
Hoje, porém, iria fazê-lo. Sentia-o. Tinha conseguido manter um rumo firme. Saíra do seu apartamento em Grev Magnigatan e caminhara ao longo da Storgatan. Virara à direita para Narvavägen e subira para Karlaplan, passara pelo centro comercial de Fältöversten, depois atravessara Valhallavägen, e ali estava. Uma caminhada que não demorara mais de quinze minutos. E Anna Eriksson morava ali. Pôs-se a pensar se ela já moraria ali quando a criança era mais nova. Se assim fosse, poderiam ter-se visto no centro comercial. A criança dele e a mãe poderiam ter estado à sua frente na fila para o balcão da charcutaria em Sabis. Esses pensamentos ocupavam o espírito de Sebastian enquanto ele estava na rua a olhar para o número 12 de Storskärsgatan.
O crepúsculo anunciava-se. Tinha sido um belo dia de Primavera em Estocolmo. Quase se conseguia sentir o calor do início do Verão.
Hoje dar-se-ia a conhecer.
Hoje falaria com ela.
Tinha-se decidido.
Atravessou a rua e dirigiu-se para a porta da frente. Enquanto pensava como haveria de entrar, uma mulher dos seus trinta anos saiu do elevador no átrio e encaminhou-se para a porta. Ele interpretou isso como um sinal de que realmente estava destinado a conhecer Anna Eriksson nesse dia.
Chegou à entrada quando a mulher vinha a sair para o passeio e agarrou a porta antes de esta se fechar.
– Obrigado, foi mesmo a tempo.
A mulher quase nem olhou para ele. Sebastian entrou e a porta fechou-se com um forte estrondo. Olhou de novo para a lista de moradores, embora soubesse o que lá dizia.
Terceiro piso.
Pensou apanhar o elevador, que viajava através do centro do edifício como uma gaiola metálica preta, mas decidiu que não. Precisava de todo o tempo que pudesse obter. O seu coração batia cada vez mais depressa, e tinha as palmas das mãos suadas. Estava nervoso. Isso não acontecia com muita frequência.
Vagarosamente, começou a subir as escadas.
Havia duas portas no terceiro piso. Numa delas viu Eriksson e um outro nome. Um momento para pôr as ideias em ordem. Fechou os olhos. Respirou fundo algumas vezes. Seguidamente avançou e tocou à campainha. Não aconteceu nada. Sebastian quase se sentiu aliviado. Não estava ninguém em casa. Ele tentara, mas ninguém lhe abrira a porta. Tinha-se enganado. Não estavam destinados a encontrar-se, ele e Anna Eriksson. Pelo menos, naquele dia. Sebastian estava prestes a voltar para trás e tornar a descer as escadas quando ouviu passos no interior do apartamento. No instante seguinte, a porta abriu-se.
Uma mulher alguns anos mais nova do que Sebastian estava a olhar para ele. Tinha cabelo escuro, que lhe caía até aos ombros, e olhos azuis. Maçãs do rosto salientes. Lábios finos. Sebastian nem sequer a reconhecia, agora que ela estava diante de si. Não tinha qualquer lembrança de ter ido para a cama com aquela mulher que enxugava as mãos num pano de cozinha aos quadrados vermelhos e o olhava com uma expressão interrogadora.
– Olá, é a... – Sebastian perdeu a voz. Não sabia por onde começar. O seu espírito ficara em branco. Embora rodopiassem nele mil pensamentos. A mulher manteve-se ali, a olhar para ele, sem dizer uma palavra. – Anna Eriksson? – conseguiu Sebastian dizer finalmente. A mulher confirmou com um gesto de cabeça.
– Eu chamo-me Sebast...
– Eu sei quem és – interrompeu a mulher. Sebastian ficou completamente surpreendido.
– Sabes?
– Sei. O que estás a fazer aqui?
Sebastian não sabia o que dizer. Desde que lera as cartas tinha imaginado muitas vezes aquele encontro. Mas agora os acontecimentos haviam assumido uma feição completamente diferente do que ele imaginara. Esperara que ela ficasse espantada, talvez até vacilasse ligeiramente. Seria uma surpresa total. Estava à porta dela um fantasma de há trinta anos. Ele teria de fornecer provas da sua identidade para que ela acreditasse em si. Nada que se assemelhasse a este encontro com uma mulher que enfiava uma ponta do pano da cozinha na cintura das calças, e depois ficava a fitá-lo com um olhar desafiador.
– Eu... – Sebastian calou-se. Também tinha elaborado tudo aquilo na sua cabeça. Mais valia que seguisse o plano. Que começasse pelo princípio.
– A minha mãe morreu, e quando eu estava a limpar a casa dela encontrei umas cartas.
A mulher continuou calada, mas acenou com a cabeça. Era óbvio que sabia a que cartas ele se referia.
– As cartas diziam que estavas grávida de mim. Só vim cá para saber se isso era verdade, e se era, o que aconteceu.
– Entra.
A mulher afastou-se para um lado e Sebastian entrou no estreito vestíbulo. Anna fechou a porta, e ele baixou-se para desapertar os atacadores.
– Não é preciso. Não te vais demorar.
Sebastian endireitou-se.
– Oh?
– Queria que saísses das escadas. Fazem eco. – Anna pôs-se mesmo em frente dele e cruzou os braços. – É verdade. Estava grávida e andei à tua procura, mas não te encontrei. E, para ser completamente franca, há muito tempo que deixei de te procurar.
– Eu percebo que estejas zangada, mas...
– Não estou zangada.
– Eu nunca recebi as cartas. Não sabia nada disso.
Calaram-se ambos. Ficaram ali de frente um para o outro. Por um instante, Sebastian pensou o que teria acontecido se tivesse sabido. Há tantos anos atrás. Se tivesse voltado para Anna Eriksson para ser pai. Como teria sido a sua vida com esta mulher? Era ridículo sequer pensar nisso, evidentemente. Não fazia sentido especular acerca de um futuro possível, de um presente alternativo. Além disso, nunca teria voltado para ela, mesmo que tivesse recebido as cartas. Naquele tempo não. O velho Sebastian não faria tal coisa.
– Vi-te talvez há uns... quinze anos. – A voz de Anna estava mais calma. – Quando ajudaste a apanhar aquele assassino em série.
– O Hinde. Em noventa e seis.
– Vi-te na televisão. Se eu tivesse querido entrar em contacto, tenho a certeza de que te teria encontrado nessa altura.
Sebastian absorveu a informação por um instante.
– Mas tenho algum filho?
– Não. Eu tenho uma filha. O meu marido tem uma filha. Tu não tens. Pelo menos aqui e comigo.
– Portanto, ela não sabe que...
– Ele não é seu pai? – disse Anna. – Não. Ele sabe, claro. Mas ela, não, e se eu lhe contar tu vais destruir tudo.
Sebastian aquiesceu, baixando os olhos para o chão. Não estava completamente surpreendido. Este era um dos cenários que já havia elaborado no seu espírito. O de que a criança não soubesse que tinha outro pai. Ele iria destroçar uma família feliz. Já o fizera anteriormente quando dormira com mulheres casadas e talvez nem sempre tivesse sido tão discreto quando poderia ser, mas este era um assunto diferente.
– Sebastian...
Ele levantou os olhos. Anna descruzara os braços e estava a olhá-lo com uma expressão que exigia toda a sua atenção.
– Tu irias mesmo destruir tudo. Para todos nós. Ela ama-nos. Ela adora o pai que tem. Se descobrisse que lhe andamos a mentir desde há tantos anos... Não creio que o conseguíssemos superar.
– Mas se ela é minha, então... – Uma débil tentativa final. Condenada desde o início.
– Não é. Talvez tenha sido. Durante uns tempos. Poderia ter sido, se tu tivesses voltado. Mas agora não é.
Sebastian aquiesceu. Conseguia entender a lógica do que ela dizia. Qual seria o objectivo? O que retiraria ele daí? Quase parecia que Anna lhe conseguia ler os pensamentos.
– O que podes tu dar-lhe? Um completo desconhecido aparece ao fim de trinta anos e diz que é o pai dela. O que se ganha com isso, além de destruir a nossa família?
Sebastian fez um aceno de concordância e deslocou-se na direcção da porta.
– Vou-me embora.
Quando estava prestes a abrir a porta, Anna tocou-lhe no braço. Ele voltou-se.
– Eu conheço bem a minha filha. Tu ias destruir a nossa família, e ela acabaria por te odiar.
Sebastian aquiesceu.
Ele compreendia.
Saiu do apartamento e da outra vida que poderia ter sido sua, que se poderia ter tornado sua. Anna fechou a porta, e ele ficou ali, no cimo das escadas.
Então, era assim.
Estava feito.
Ele tinha uma filha. Uma filha que nunca veria. Nunca chegaria a conhecer. Toda a tensão que se acumulara desde há tanto tempo dissipou-se, e ele sentiu-se completamente exausto. Com as pernas quase tolhidas. Avançou para as escadas que seguiam para o piso de cima, e sentou-se.
Ficou a olhar para o espaço.
Vazio.
Completamente vazio.
Ao longe ouviu a pancada surda da porta da entrada a fechar-se três pisos mais abaixo. Pôs-se a pensar como haveria de chegar a casa. Não era longe, mas de momento parecia-lhe um obstáculo intransponível.
Demorou alguns segundos a perceber que o elevador à sua esquerda começara a mover-se. Levantou-se. Se o elevador parasse ali, desceria nele. Pelo menos esse seria um primeiro passo na longa jornada de regresso ao seu apartamento vazio.
Estava com sorte. O elevador parou no terceiro piso. Na verdade, Sebastian não queria ver ninguém. Nem sequer para trocar sorrisos corteses à entrada de um elevador. Quando a pessoa que vinha dentro do elevador puxou para trás a porta metálica, Sebastian subiu mais alguns degraus. A pessoa saiu e Sebastian vislumbrou-a através do gradeamento por cima da caixa do elevador.
Havia qualquer coisa.
Familiar.
Extremamente familiar.
– Olá, mãe, sou eu – ouviu ele. Era Vanja. Deixou a porta aberta enquanto se descalçava, e Sebastian conseguiu avistar Anna antes que Vanja voltasse a fechar a porta.
Agora lembrava-se. Dos nomes. Na porta. Estava tão concentrado em Eriksson que nem sequer atentara no outro nome.
Lithner.
Vanja Lithner.
Vanja era sua filha.
Nada o poderia ter preparado para aquela informação.
Nada.
Sebastian sentiu as suas pernas cederem e teve de se sentar.
Demorou bastante tempo a levantar-se outra vez.
Notas
[1] Nome pelo qual é conhecida a Estrada Nacional 73 da Suécia, entre Estocolmo e Nynäshamn. (N. do T.)
[2] Bairro da zona leste de Estocolmo. (N. do T.)
[3] Martin Beck é um detective fictício que serve de personagem central a dez novelas policiais dos autores suecos Maj Sjöwall e Per Wahlöö, adaptadas ao cinema entre 1967 e 1994. (N. do T.)
[4] Ministra dos Negócios Estrangeiros da Suécia, assassinada a 11 de Setembro de 2003. (N.doT.)
[5] Filme realizado por Alf Sjöberg (1944), que em português recebeu o título Tortura. (N. do T.)
[6] Olof Palme, primeiro-ministro sueco, foi assassinado à porta de um cinema de Estocolmo a 28 de Fevereiro de 1986. A identidade do assassino continua desconhecida. (N. do T.)
[7] Kurt Niklas Lindgren, a quem a imprensa sueca chamou «O Homem de Haga» por referência à zona da cidade de Umeå onde efectuou os seus crimes, é um violador em série que em 2006 foi condenado por nove crimes. (N. do T.)
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