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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SEGUNDA FUNDAÇÃO / Isaac Asimov
SEGUNDA FUNDAÇÃO / Isaac Asimov

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

SEGUNDA FUNDAÇÃO

 

O Primeiro Império Galáctico durara dezenas de milhares de anos. Incluíra todos os planetas da Galáxia num regime centralizado, algumas vezes tirânico, outras vezes benevolente, mas sempre ordenado. Os seres humanos já haviam esquecido que pudesse haver qualquer outra forma de existência.

Todos, menos Hari Seldon.

Hari Seldon fora o último grande cientista do Primeiro Império. Fora ele que levara a ciência da psicohistória ao seu integral desenvolvimento. A psicohistória era a quintessência da sociologia; era a ciência do comportamento humano reduzida a equações matemáticas.

O ser humano individual é imprevisível, porém as reações das multidões humanas, descobriu Seldon, podem ser tratadas estatisticamente. Quanto maior a multidão, tanto maior a precisão que pode conseguir-se. E a grandeza das massas humanas com que Seldon trabalhava era nada menos do que a população da Galáxia que, no seu tempo, se contava por quintilhões.

Foi Seldon, pois, quem previu, contra todo o senso comum e a crença popular, que o brilhante Império que parecia tão forte achava-se num estado de decadência e declínio irremediáveis. Previu (ou resolveu as suas equações e interpretou os seus símbolos, o que vem a dar na mesma) que, entregue a si mesma, a Galáxia viria a atravessar um período de trinta mil anos de miséria e anarquia antes de se estabelecer mais uma vez um governo unificado.

Meteu mãos à obra para remediar a situação, para provocar um estado de coisas que restaurasse a paz e a civilização num único milhar de anos. Cuidadosamente, instalou duas colônias de cientistas a que denominou "Fundações". Instalou-as, deliberadamente, "em extremos opostos da Galáxia". Uma Fundação foi estabelecida á luz plena da publicidade. A existência da outra, a Segunda Fundação, foi abafada pelo silêncio. Em Fundação (Gnome, 1 951) e Fundação e Império (Gnome, 1 952) descrevem-se os três primeiros séculos da história da Primeira Fundação. Começou como uma pequena comunidade de Enciclopédicos perdida no vazio da periferia exterior da Galáxia. Enfrentava crises periódicas a que era conduzida pelas variáveis das relações humanas e das correntes sociais e econômicas do tempo. Sua liberdade de movimentos estava restrita apenas a uma curta linha e quando se movia nessa direção abria-se diante dela um novo horizonte de desenvolvimento. Tudo fora planejado por Hari Seldon, então já morto há muito tempo.

A primeira Fundação, com a sua ciência superior, apoderou-se dos planetas bárbaros que a rodeavam. Enfrentou os anárquicos Condestáveis que deixaram o Império moribundo e derrotou-os. Enfrentou o que restava do próprio Império, sob o seu último Imperador forte e o seu último General forte, e derrotou-o.

Depois enfrentou algo que Hari Seldon não previra: o poder irresistível de um simples ser humano, um Mutante. A criatura, conhecida por O Mulo, nascera com a aptidão de moldar as emoções dos homens e de forjar as suas mentes. Os seus mais encarniçados opositores transformaram-se nos seus servos mais devotados. Os exércitos não podiam, não queriam lutar contra ele. Perante ele, a Primeira Fundação caiu e os planos de Seldon transformaram-se parcialmente em ruínas.

Restava, porém, a misteriosa Segunda Fundação, o alvo das buscas. O Mulo devia encontrá-la para tornar completa a sua conquista da Galáxia. Os fiéis ao que restava da Primeira Fundação tinham de encontrá-la por uma razão totalmente oposta. Mas onde estava ela? Isso, ninguém sabia.

Esta é, então, a história da procura da Segunda Fundação!

 

A INVESTIGAÇÃO DO MULO

DOIS HOMENS E O MULO.

O MULO - Foi depois da queda da Primeira Fundação que os aspectos construtivos do regime do Mulo assumiram forma. Depois do colapso completo do Primeiro Império Galáctico, foi ele quem primeiro ofereceu a história um volume unificado do espaço de alcance verdadeiramente imperial. O primitivo império comercial da Fundação vencida fora variado e fracamente unido, apesar do apoio impalpável das predições da psicohistória. Não tinha comparação com a "União dos Mundos" sob o domínio do Mulo, firmemente governada, que compreendia um décimo do volume da Galáxia e um quinze avôs da sua população. Particularmente durante a época da chamada Procura..."

Enciclopédia Galáctica

 

A Enciclopédia tem muito mais a dizer sobre o assunto do Mulo e do seu Império, porém nem tudo é relativo ás conseqüências próximas imediatas e, em qualquer caso, a maior parte do que tem a dizer é demasiado árida para os nossos propósitos. Neste ponto, o artigo diz respeito principalmente ás condições econômicas que levaram ao advento do ''Primeiro Cidadão da União" - o título oficial do Mulo - e às conseqüências econômicas desse advento.

Se o autor do artigo fica atônito, em qualquer ocasião, com a rapidez com que o Mulo se ergueu do nada até o vasto domínio em cinco anos, não o deixa transparecer. Se mais adiante se mostra surpreso com a cessação súbita da expansão, em favor de uma consolidação de cinco anos do território, oculta o fato.

Abandonamos, por conseguinte, a Enciclopédia, continuamos o nosso próprio caminho para os nossos próprios fins, e retomamos a história no Grande Interregno - entre o Primeiro e o Segundo Império Galáctico - no fim daqueles cinco anos de consolidação.

Politicamente, a União está calma. Economicamente, está próspera. Poucos estariam dispostos a trocar a paz, sob o pulso firme do Mulo, pelo caos que houvera anteriormente. Nos mundos que haviam conhecido a Fundação cinco anos antes, poderia haver um desgosto nostálgico, mas nada mais. Os chefes da Fundação estavam mortos, eram inúteis, porém os convertidos eram úteis.

E, de entre os convertidos, o mais útil era Han Pritcher, agora tenente-general.

Nos tempos da Fundação, Han Pritcher fora capitão e membro da Oposição Democrática clandestina. Quando a Fundação se rendeu ao Mulo sem luta, Pritcher lutou contra o Mulo, isto é, lutou até se tornar um convertido.

A conversão não era a normalmente conseguida pelo poder de uma razão superior. Han Pritcher sabia disso, muito bem. Sabia que fora modificado porque o Mulo era um Mutante com poderes mentais perfeitamente capazes de amoldar as condições dos seres humanos como lhe conviesse. Mas isso satisfazia-o integralmente. Era como devia ser. O perfeito contentamento com a conversão era o seu principal sintoma, mas Han Pritcher já nem sequer se mostrava curioso pelo assunto.

E agora que estava de regresso de sua quinta grande expedição à imensidade da Galáxia, fora da União, era com algo como alegria natural que o veterano homem do espaço e agente dos Serviços Secretos considerava a sua próxima audiência com o "Primeiro Cidadão". O seu rosto duro, esculpido numa madeira escura e sem veios, que parecia não ser capaz de sorrir sem estalar, não o denunciava, mas as indicações exteriores eram desnecessárias. O Mulo podia ver as suas emoções interiores, até a mais superficial, tal como um homem normal poderia ver o franzir dum sobrolho.

Pritcher deixou o seu carro aéreo nos velhos hangares vice-reais e penetrou na zona do palácio a pé, como era exigido. Andou um quilômetro ao longo da estrada principal, indicada com setas, que estava deserta e silenciosa. Pritcher sabia que naqueles quilômetros quadrados de terreno do palácio não havia um só guarda, um só soldado, um só homem armado.

O Mulo não necessitava de proteção.

O Mulo era o seu próprio protetor, todo-poderoso.

Os passos de Pritcher ressoavam suavemente aos seus próprios ouvidos. O palácio erguia-se diante dele nas suas cintilantes paredes metálicas incrivelmente leves e fortes, com os arcos atrevidos, de vãos imensos, quase febris, que caracterizavam a arquitetura do Último Império. Dominava altaneiramente os terrenos vazios e a cidade apinhada de gente no horizonte.

Dentro do palácio estava aquele único homem, sozinho, de cujos atributos mentais inumanos dependia a nova aristocracia, e toda a estrutura da União.

A enorme porta, lisa, rodou, maciça, abrindo-se à aproximação do general, e ele entrou. Deu um passo rumo â larga e vasta rampa, que se moveu debaixo dele, subindo. Subiu rapidamente no elevador silencioso. Parou diante da pequena porta lisa da própria sala do Mulo, na mais alta magnificência das extremidades agudas do palácio.

A porta abriu-se...

 

Bail Channis era novo e era, além disso, um Não-convertido, o que quer dizer, em linguagem do povo, que a sua caracterização emocional não fora adaptada pelo Mulo.

Permanecia exatamente como fora formado pelo molde original de sua hereditariedade, com as subseqüentes modificações do seu meio ambiente. O que satisfazia também a ele.

Não tendo ainda trinta anos, estava já maravilhosamente bem visto na capital. Era bem simpático e vivo de espírito, portanto bem sucedido na sociedade. Era inteligente e senhor de si, portanto bem sucedido com o Mulo. E agradavam-lhe plenamente estes dois êxitos.

E agora, pela primeira vez, o Mulo convocara-o para uma audiência pessoal.

Desceu a pé a longa estrada cintilante que seguia direto ás extremidades de alumínio esponjoso onde, outrora, fora a residência do vice-rei de Kalgan, que governava sob os velhos imperadores, onde fora mais tarde a residência dos príncipes independentes de Kalgan, que governavam no seu próprio nome, e onde era agora a residência do Primeiro Cidadão da União, que governava um império seu.

Channis cantarolava baixinho. Não tinha dúvidas sobre aquilo de que se tratava. Da Segunda Fundação, evidentemente! Daquele espectro que tudo abarcava, a mera consideração do qual fizera recuar o Mulo da sua política de expansão sem limites para uma cautela estática. O termo oficial era "consolidação".

Havia boatos - os boatos são livres. O Mulo descobrira a localização da Segunda Fundação e atacá-la-ia. O Mulo chegara a um acordo com a Segunda Fundação, e dividiriam a Galáxia. O Mulo decidira que a Segunda Fundação não existia, e apoderar-se- ia de toda a Galáxia.

Inútil enumerar todas as fofocas que se ouviam nas antecâmaras. Nem sequer seria a primeira vez que tais boatos haviam circulado. Mas agora apresentavam mais consistência, e todos os espíritos livres e expansivos que prosperavam com a guerra, com a aventura militar e com o caos político, e murchavam nos tempos de estabilidade e de paz estagnada, estavam eufóricos.

Bail Channis era um deles. Não temia a misteriosa Segunda Fundação. Não temia sequer o Mulo, e vangloriava-se disso. Talvez alguns, que não aprovavam alguém ao mesmo tempo tão jovem e tão bem instalado na vida, esperassem secretamente pelo acerto de contas com o alegre mulherengo que empregava a sua agudeza de espírito, abertamente, à custa da aparência física e da vida retirada do Mulo. Ninguém se atrevia a juntar-se-lhe e poucos se atreviam a rir, mas como nada lhe aconteceu, sua reputação cresceu proporcionalmente.

Channis improvisava palavras para a canção que cantarolava. Palavras sem nexo, com um estribilho repetido: "A Segunda Fundação ameaça a Nação e toda a Criação".

Chegara ao palácio.

A enorme porta, lisa, rodou, maciça, abrindo-se à sua aproximação, e ele entrou. Deu um passo rumo à larga e vasta rampa, que se moveu debaixo dele, subindo. Subiu rapidamente no elevador silencioso. Parou diante da pequena porta lisa da própria sala do Mulo, na mais alta magnificência das extremidades agudas do palácio.

A porta abriu-se...

 

O homem que outro nome não tinha senão o de o Mulo, e outro título senão o de Primeiro Cidadão, olhava através da transparência unilateral da parede para a brilhante e soberba cidade no horizonte.

No crepúsculo, que caía, as estrelas iam emergindo, e todas, sem exceção, lhe deviam obediência.

Sorriu com amargura passageira e este pensamento. A obediência que deviam era a uma personalidade que poucos chegaram a conhecer.

O Mulo não era um homem para ser visto, não era um homem para ser visto sem troça. Não pesava mais do que cinqüenta e cinco quilos, com a sua altura de 1,70m. Os seus membros eram talos ossudos que rompiam da sua magreza em ângulos desgraciosos. E a sua face magra era quase encoberta pela proeminência de um bico carnudo que se projetava à distância de sete centímetros.

Apenas os seus olhos destoavam da farsa completa que era o Mulo. Na sua suavidade, uma suavidade estranha no maior conquistador da Galáxia, a tristeza nunca predominava.

Na cidade encontrava-se toda a alegria de uma capital suntuosa de um mundo suntuoso. Poderia ter estabelecido a sua capital na Fundação, o mais forte de seus inimigos agora conquistados, porém era muito longe, nos confins da Galáxia. Kalgan, localizada num ponto mais central, com uma longa tradição de lugar de lazer da aristocracia, convinha-lhe estrategicamente.

Porém não encontrou a paz na sua tradicional alegria, realçada por uma prosperidade sem modelo.

Temiam-no, obedeciam-lhe e talvez até o respeitassem, a uma distância razoável. Mas quem podia olhá-lo sem desprezo? Só aqueles que convertera. E qual era o valor da sua lealdade artificial? Faltava-lhe gosto. Poderia ter adotado títulos e um ritual forçado, e inventado complicações, mas nem isso mudaria nada. Melhor era, ou pelo menos não seria pior, ser simplesmente o Primeiro Cidadão, e isolar-se.

Houve uma onda súbita de revolta dentro dele, forte e brutal. Nem um pedaço da Galáxia devia ser-lhe negado. Durante cinco anos mantivera-se silencioso e oculto ali em Kalgan por causa da ameaça eterna, nebulosa, propagada por todo o espaço, da nunca vista, nunca ouvida e desconhecida Segunda Fundação. Tinha trinta e dois anos. Não era velho, porém sentia-se velho. O seu corpo, fossem quais fossem os seus poderes mentais de mutante, era fraco.

Todas as estrelas! Todas as estrelas que podia ver, e todas as estrelas que não podia ver. Tudo deveria ser seu!

Vingança de tudo, de uma humanidade da qual não fazia parte, de uma Galáxia a que não se ajustava.

Por cima de sua cabeça, a luz alertadora, fria, piscou. Podia seguir o progresso do homem que entrara no palácio e simultaneamente, como se o seu sentido de mutante tivesse sido projetado e sensibilizado no crepúsculo solitário, sentiu o fluxo de conteúdo emocional tocar as fibras do seu cérebro.

Reconheceu sem esforço a identidade. Era Pritcher.

Era o Capitão Pritcher da Fundação de outros tempos, o Capitão Pritcher que fora ignorado e ultrapassado pelos burocratas daquele governo decadente, o Capitão Pritcher cuja tarefa como espião insignificante ele liquidara, tirando-o da lama, o Capitão Pritcher que fizera primeiro coronel e depois general cujo âmbito de atividade ampliara de acordo com a dimensão da Galáxia.

O agora General Pritcher que, embora rebelde indomável quando começara era inteiramente leal. E no entanto, com tudo isso, não leal por causa dos benefícios recebidos, não leal por gratidão, não leal por justa retribuição, mas leal apenas através do artifício da Conversão.

O Mulo estava consciente daquela forte e inalterável camada superficial de lealdade e amor que coloria todas as ondulações e redemoinhos da emotividade de Han Pritcher, camada que ele próprio implantara cinco anos antes. Por baixo dela, profundos, estavam os traços originais de individualismo, obstinado, de impaciência perante as regras, de idealismo, mas até ele próprio já tinha dificuldade em descobri-los.

A porta atrás de si se abriu, e ele voltou-se. A transparência da parede transformou-se gradualmente em opacidade e a luz púrpura da tardinha deu lugar ao brilho resplandecentemente branco da energia atômica.

Han Pritcher sentou-se no lugar indicado. Não havia reverências nem genuflexões, nem o uso de expressões honoríficas nas audiências privadas' com o Mulo. O Mulo era simplesmente "Primeiro Cidadão". Era tratado por "Senhor". Uma pessoa sentava-se na sua presença e podia virar-lhe as costas se lhe agradasse.

Para Han Pritcher tudo isto eram evidências do poder seguro e confiante daquele homem, o que o fazia sentir-se confortavelmente satisfeito.

O Mulo disse: - O seu relatório final chegou ontem ás minhas mãos. Não posso negar que o acho um tanto desanimador, Pritcher.

Os sobrolhos do general franziram-se. - Sim, creio que sim, mas não vejo a que conclusões diferentes podia ter chegado. Não há de fato nenhuma Segunda Fundação, Senhor.

O Mulo pensou, e depois sacudiu lentamente a cabeça, como já fizera muitas vezes. - Há o testemunho de Ebling Mis. Continua a haver o testemunho de Ebling Mis.

Não era uma história nova. Pritcher disse, sem amenizar as palavras: -Mis pode ter sido o maior psicólogo da Fundação, mas era uma criança de colo comparado com Hari Seldon. Ao tempo em que investigava os trabalhos de Seldon estava submetido ao estímulo artificial de seu próprio domínio cerebral. Pode tê-lo levado longe demais. Ele devia estar enganado, Senhor, devia estar enganado.

O Mulo suspirou, projetando para frente a sua face lúgubre sobre o caniço fino do pescoço. - Se ao menos tivesse vivido mais um minuto. Estava prestes a dizer-me onde se achava a Segunda Fundação. Ele sabia, digo-lho eu. Não teria necessidade de retroceder. Não teria necessidade de esperar e continuar a esperar. Tanto tempo perdido. Cinco anos decorridos para nada.

Pritcher não poderia ser severo para com a fraca aspiração do seu dominador; a sua caracterização mentalmente condicionada proibia-o. Ao invés disso estava perturbado, vagamente pouco à vontade. Disse: - Mas que explicação outra pode ser possível, senhor? Saí cinco vezes. Foi o senhor mesmo quem traçou as rotas. E não deixei nem um asteróide por ver. Foi há trezentos anos que se supõe ter Hari Seldon, do Antigo Império, estabelecido duas Fundações para atuarem como núcleos de um novo Império que substituiria o moribundo. Cem anos depois de Seldon, a Primeira Fundação, a que nós conhecemos tão bem, era conhecida por toda a Periferia. Cento e cinqüenta anos depois de Seldon, ao tempo da última batalha com o antigo Império, era conhecida por toda a Galáxia. E agora, passados trezentos anos, onde estaria essa misteriosa Segunda? Em nenhum movimento da corrente Galáctica se ouviu alguma vez qualquer coisa dela.

- Ebling Mis disse que se conservava secreta. Apenas o segredo pode transformar a sua fraqueza em força.

- Um segredo tão profundo como este ultrapassa a possibilidade de a considerarmos existente.

O Mulo levantou os grandes olhos, penetrantes e desconfiados. - Não. Ela existe de fato. - Um dedo ossudo apontou, cortante. - Vai haver uma pequena mudança de tática.

Pritcher franziu as sobrancelhas. - Tenciona ir pessoalmente? Não o aconselharia.

- Não, claro que não. O senhor terá que sair mais uma vez, a última vez, mas com outra pessoa em comando conjunto.

Houve um silêncio, e a voz de Pritcher era grave quando perguntou: -Quem, senhor?

- Há um jovem aqui em Kalgan, Bail Channis.

- Nunca ouvi falar dele, senhor.

- Não, creio que não, mas é possuidor de um espírito ágil, é ambicioso... e não é um convertido.

O longo queixo de Pritcher tremeu por um rápido instante. - Não consigo vislumbrar a vantagem disso.

- Há uma, Pritcher. O senhor é um homem experiente e cheio de recursos. Tem-me prestado relevantes serviços. Porém é um convertido. A sua motivação é simplesmente uma lealdade forçada e impotente à minha pessoa. Quando perdeu as suas motivações congênitas, perdeu qualquer coisa, qualquer capacidade sutil, que não me é possível substituir.

- Não sinto isso, senhor - disse Pritcher, com um timbre de voz antipático. - Sinto-me tal qual como era no tempo em que era seu inimigo. Não me sinto inferior em coisa alguma.

- Não, naturalmente - e a boca do Mulo torceu-se num sorriso - o seu julgamento neste assunto é muito pouco objetivo. Agora veja, esse Channis é ambicioso por si mesmo. É inteiramente digno de confiança, não por lealdade mas para consigo mesmo. Sabe que é nas abas do meu casaco que anda dependurado, e faria fosse o que fosse para ampliar o meu poder, para que a viagem, pendurado, pudesse durar muito e ir longe, e para que o destino pudesse ser grandioso. Se for consigo, haverá juntamente esse impulso adicional por detrás da busca dele, esse impulso por si mesmo.

- Então - disse Pritcher, ainda insistente - por que não promover a minha própria conversão, se pensa que isso me melhorará? Agora, dificilmente poderia ser indigno de confiança.

- Isso nunca, Pritcher. Enquanto estiver ao alcance do meu braço ou de desintegrador, o senhor estará firmemente mantido em conversão, mas se eu o libertasse neste instante, estaria morto no seguinte.

As narinas do General dilataram-se. - Magoa-me que possa pensar assim.

- Não tenho a intenção de magoá-lo, mas a si é-lhe impossível conceber quais seriam os seus sentimentos se fossem livres de se formar seguindo as linhas da sua motivação natural. O espírito humano ressente-se da sujeição. O hipnotizador humano normal não pode hipnotizar uma pessoa contra a sua vontade, por essa razão. Eu posso, porque não sou um hipnotizador, mas acredite-me, Pritcher, que o ressentimento que o senhor não pode mostrar e nem sequer sabe que tem, é algo que eu não desejaria enfrentar.

A cabeça de Pritcher inclinou-se. A futilidade desconcertou-o e deixou-o ofuscado e arisco por dentro. Disse com um esforço: - Mas como pode o senhor confiar nesse homem, quero dizer, confiar nele totalmente, como pode confiar em mim na minha conversão?

- Bem, suponho que não posso confiar integralmente. É por isso que o senhor deve ir com ele. Está vendo, Pritcher - e o Mulo afundou-se na larga poltrona, de encontro a cujas coisas macias parecia um palito anguloso animado de vida - que se ele viesse a encontrar a Segunda Fundação e se viesse a ocorrer-lhe que um acordo com eles poderia ser mais proveitoso do que comigo... compreende?

Uma luz de satisfação profunda brilhou nos olhos de Pritcher. - Assim está melhor, senhor.

- Exatamente. Mas lembre-se de que ele deve ter as rédeas tão livres quanto possível.

- Certamente.

- E... hum... Pritcher. O jovem é bem simpático, agradável e extremamente encantador. Não o deixe enganá-lo. Tem um caráter perigoso e sem escrúpulos. Não se meta no caminho dele, a não ser que esteja preparado para o enfrentar como deve ser. É tudo.

O Mulo estava de novo só. Deixou as luzes apagarem-se e a parede à sua frente voltou a mudar para a transparência. O céu estava agora cor de púrpura e a cidade era uma mancha de luz no horizonte.

Para que era tudo isto? E se fosse o senhor de tudo quanto havia; e depois? Isso impediria os homens como Pritcher de serem altos e desempenados, confiantes em si mesmos, fortes? Perderia Bail Channis a sua aparência? Seria ele próprio diferente do que era?

Amaldiçoou as suas dúvidas. O que pretendia realmente atingir?

Por cima da sua cabeça, a luz alertadora, fria, piscou. Podia, seguir o progresso do homem que entrara no palácio e, quase contra a sua vontade, sentiu o fluxo suave de conteúdo emocional tocar as fibras do seu cérebro.

Reconheceu sem esforço a identidade. Era Channis. Nele, não viu o Mulo uniformidade mas a diversidade primitiva de um espírito forte não tocado e não moldado senão pelas múltiplas desorganizações do Universo. Contorcia-se em fluxos e ondas. Havia cautela à superfície, uma fina capa, de efeito calmante, mas com toques de zombaria cínica nos seus redemoinhos escondidos. Por baixo havia a forte corrente do interesse próprio e do amor próprio, com um jorro de humor cruel aqui e ali, e um charco profundo e quieto de ambição no fundo de tudo.

O Mulo sentiu que podia estender e represar a corrente, arrancar o charco da sua bacia e fazê-lo seguir outro curso, secar uma corrente e começar outra. Mas para que? Se podia fazer inclinar a cabeça anelada de Channis na mais profunda adoração, modificaria isso o seu próprio aspecto grotesco que o fazia evitar o dia e amar a noite, que fazia dele um recluso dentro de um império que era incondicionalmente seu?

A porta atrás de si abriu-se, e ele voltou-se. A transparência da parede transformou-se gradualmente em opacidade, e a escuridão deu lugar á claridade artificial resplandecentemente branca da energia atômica.

Bail Channis sentou-se rápido e disse: - Esta não é uma honra inteiramente inesperada, senhor.

O Mulo esfregou o queixo com quatro dedos ao mesmo tempo, e pareceu um pouco irritado na sua resposta. - Por que, meu rapaz?

- Um palpite, creio. A não ser que eu queira admitir que tenha andado a dar ouvidos a boatos.

- Boatos? A qual das várias dúzias de boatos está se referindo?

- Às que dizem que está sendo planejada a renovação da Ofensiva Galáctica. Tenho uma esperança em mim de que isso seja verdade e de que poderia desempenhar um papel apropriado.

- Então pensa que há uma Segunda Fundação?

- Por que não? Tornaria as coisas muito mais interessantes.

- E também vê interesse nela?

- Certamente. No seu próprio mistério! Que melhor assunto pode encontrar-se para conjecturas? Os suplementos dos jornais ultimamente não vêm cheios de qualquer outra coisa, o que provavelmente é significativo. O Cosmos fez um dos seus escritores de artigos especiais compor uma mágica sobre um mundo constituído por seres de puro espírito, a Segunda Fundação, está vendo, que tinham desenvolvido a força mental até energia suficientemente grandes para competirem com tudo quanto é conhecido da ciência física. Naves do espaço poderiam ser destruídas a anos-luz de distância, planetas poderiam ser desviados das suas órbitas...

- Sim, é interessante. Mas tem pessoalmente quaisquer noções sobre o assunto? É partidário dessa noção do poder mental?

- Não pela Galáxia! Acha que criaturas assim se manteriam no seu planeta? Não, Senhor. Eu penso que a Segunda Fundação permanece escondida porque é mais fraca do que nós julgamos.

- Nesse caso, posso explicar-me muito facilmente. Gostaria de chefiar uma expedição pára localizar a Segunda Fundação?

Por um momento, Channis pareceu aprisionado pelo ímpeto súbito dos acontecimentos a uma velocidade ligeiramente maior do que aquela para a qual estava preparado. A sua língua ficara aparentemente presa a um silêncio que se demorava.

O Mulo disse, secamente: - Então?

Channis enrugou a testa. - Decerto. Mas para ir aonde? Tem alguma informação útil?

- O General Pritcher irá com você...

- Então não sou eu que chefio?

- Julgue por si mesmo quando eu terminar. Ouça, você não é da Fundação, é natural de Kalgan, não é? Pois é. Ora bem. Portanto, o seu conhecimento do plano de Seldon pode ser impreciso. Quando o primeiro Império Galáctico estava em decadência, Hari Seldon e um grupo de psicohistoriadores, analisando o futuro curso da história por meio de instrumentos matemáticos que já não existem nestes tempos degenerados, estabeleceu duas Fundações, uma em cada extremo da Galáxia, de tal maneira que as forças econômicas e sociológicas que evoluíam lentamente fá-las-iam servir como focos para o Segundo Império. Hari Seldon estabeleceu o seu plano sobre um milhar de anos para consegui-lo. Sem as Fundações, passar-se-iam trinta mil anos. Mas não pôde contar comigo. Sou um mutante e sou imprevisível para a psicohistória, que apenas pode lidar com as reações médias de números. Está entendendo?

- Perfeitamente, senhor. Mas que tem isso a ver comigo?

- Compreenderá dentro em pouco. Tenho a intenção de unificar a Galáxia agora e de atingir o objetivo de Seldon, de um milhar de anos, em trezentos. Uma Fundação, o mundo dos cientistas físicos, ainda permanece florescente, sob o meu domínio. Na prosperidade e na ordem da União, as armas atômicas que eles desenvolveram são capazes de lidar seja com o que for na Galáxia, exceto, talvez, com a Segunda Fundação.

- Portanto, tenho de saber mais sobre ela. O General Pritcher tem a opinião declarada de que ela não existe de todo em todo. Sei que não é assim.

Channis perguntou, delicadamente: - Como sabe, senhor?

Então, as palavras do Mulo foram de súbito indignação pura: - Porque tem havido interferências nos espíritos sob o meu domínio. Delicadamente! Sutilmente! Mas não tão sutilmente que eu não percebesse. E essas interferências estão aumentando e atingindo homens valiosos de uma certa discrição ao ter-me mantido quieto durante estes anos? Aqui está a sua importância. O General Pritcher é o melhor homem que me restou; por conseguinte, já não é seguro. Claro que ele não sabe disso. Mas você é um Não-convertido e, por conseqüência, não de imediato assinalável como um homem do Mulo. Pode iludir a Segunda Fundação durante mais tempo do que um dos meus próprios homens, talvez durante um tempo suficientemente mais longo. Compreende?

- Hum... Sim. Mas perdoe-me, senhor, se lhe pergunto. Como são perturbados esses seus homens, de modo que eu possa dar pela mudança no General Pritcher, no caso de acontecer qualquer coisa. Voltar a ser Não-convertidos? Tornam-se desleais? - Não. Disse-lhe que era sutil. É mais perturbador do que isso, porque é mais difícil de descobrir, e ás vezes tenho de esperar antes de agir, sem ter a certeza sobre se um homemchave está sendo normalmente excêntrico ou foi atingido. A sua lealdade mantém-se intacta, mas a iniciativa e o engenho extinguem-se. Fico com uma pessoa perfeitamente normal, aparentemente, porém completamente inútil. No ano passado, seis foram assim tratados, seis dos melhores. - Um canto da sua boca contraiu-se. - Estão agora encarregados de bases de treino, e vão para eles os meus desejos mais fervorosos de que não lhes surjam emergências sobre as quais tenham de decidir.

- Suponha, senhor... suponha que não é a Segunda Fundação. E se fosse outro, tal como o Senhor, outro mutante?

- O planejamento é demasiado cauteloso, de alcance demasiado longo. Um homem sozinho teria mais pressa. Não, é um mundo, e você vai ser a minha arma contra ele.

Os olhos de Channis brilhavam quando disse: - Estou fascinado com a oportunidade.

O Mulo, porém, captou o súbito regozijo emocional. Disse: - Sim, aparentemente ocorre-lhe que efetuará um serviço sem igual, digno de uma recompensa sem igual, talvez até a de ser o meu sucessor. É precisamente assim. Mas também há castigos sem igual, compreende? As minhas ginásticas emocionais não estão limitadas apenas à criação da lealdade.

E o pequeno sorriso dos seus lábios finos era medonho, quando Channis saltou horrorizado do seu lugar.

Pois apenas por um instante, apenas por um instante como um relâmpago, Channis sentira a agonia de uma aflição irresistível abater-se sobre ele. Abatera-se sobre ele com uma dor física que lhe obscurecera insuportavelmente o espírito, e depois levantara-se. Agora nada mais ficara senão a onda forte da cólera.

O Mulo disse: - A cólera não ajudará nada... pois é você agora que está encobrindo-a, não está? Mas eu posso vê-la. Portanto, é só lembrar-se de que essa espécie de coisa pode ser feita mais intensa e mantida. Já matei homens por domínio emocional, e não há morte mais cruel.

Fez uma pausa e disse: - É tudo!

O Mulo estava novamente só. Deixou as luzes apagarem-se e a parede à sua frente voltou a mudar para a transparência. O céu estava negro e o corpo nascente da Lenta Galáctica espalhava os seus feixes de lantejoulas através das profundidades aveludadas do espaço.

Toda aquela zona de nebulosa era uma massa de estrelas tão numerosas que se misturavam umas com as outras, e não deixavam nada senão uma nuvem de luz.

E tudo ia ser seu...

Agora era só mais um último arranjo a fazer, e poderia ir dormir.

 

PRIMEIRO INTERVALO

O Conselho Executivo da Segunda Fundação estava em sessão. Para nós são meras vozes. Nem a cena exata da reunião nem a identidade dos presentes são essenciais nesta altura.

Nem, rigorosamente falando, podemos sequer considerar uma reprodução exata de qualquer parte da sessão, a não ser que desejemos sacrificar completamente até o mínimo de compreensão que temos o direito de esperar.

Lidamos aqui com psicólogos, mas não meramente psicólogos; digamos de preferência cientistas com uma orientação psicológica, isto é, homens cuja concepção fundamental da filosofia científica está apontada para uma direção inteiramente diferente de todas as orientações que conhecemos. A "psicologia" dos cientistas, surgida no meio dos axiomas deduzidos dos hábitos de observação da ciência física, tem apenas a mais vaga relação com PSICOLOGIA.

O que é ir quase tão longe como podemos ir ao explicar a cor a um cego, sendo nós próprios tão cegos como o nosso ouvinte.

O fato primordial a ter em conta é o de que as mentes reunidas compreendiam cabalmente os trabalhos de cada uma delas, não só em teoria geral, mas também na aplicação específica dessas teorias, durante um longo período, a indivíduos particulares. A fala, tal como a conhecemos, era desnecessária. Um fragmento de uma oração gramatical equivalia quase a uma redundância fastidiosa. Um gesto, um resmungo, a curva duma linha facial, e até uma pausa significativamente demorada, produziam suco informativo.

Tomamos, por conseguinte, a liberdade de traduzir livremente uma pequena parte da conferência para as extremamente específicas combinações de palavras necessárias a mentes orientadas, desde a infância, para uma filosofia da ciência física, com risco até de se perderem as gradações mais delicadas.

Havia uma "voz" predominante, e essa pertencia ao indivíduo conhecido simplesmente por Primeiro Orador.

Disse ele: - Agora parece já estar perfeitamente definido o que deteve o Mulo na sua primeira arremetida louca. Não posso dizer que o assunto se reflita em confiança na... bem, na organização da situação. Aparentemente quase nos localizou, por meio da energia cerebral artificialmente aumentada do que chamam um "psicólogo" na Primeira Fundação. Este psicólogo foi assassinado precisamente antes de poder comunicar a sua descoberta ao Mulo. Os acontecimentos que levaram a esse assassinato foram completamente fortuitos para todos os cálculos anteriores à Fase Três. Suponho que queira continuar.

Foi o Quinto Orador que foi indicado por uma inflexão de voz. Disse, em tom antipático: - É certo que a situação foi mal conduzida. Somos, sem dúvida, altamente vulneráveis ao ataque em massa, particularmente a um ataque dirigido por um tal fenômeno mental como é o Mulo. Pouco depois de ter atingido, pela primeira vez, a eminência Galáctica com a conquista da Primeira Fundação, seis meses depois, para ser exato, estava em Trantor. Dentro de outro meio ano estaria aqui, e as probabilidades seriam estupendamente contra nós, 96,3 mais ou menos 0,05% para ser exato. Perdemos um tempo considerável analisando as forças que o detiveram; Sabemos, evidentemente, o que estava impedindo-o assim em primeiro lugar. As ramificações internas de uma deformidade física são óbvias para todos nós. Contudo, foi só com a entrada na Fase Três que pudemos determinar, depois do fato, a possibilidade da sua ação anômala em presença de outro ser humano que tivesse uma afeição sincera por ele. E desde que tal ação anômala dependia da presença desse ser humano no momento adequado, a coisa toda era fortuita nessa medida. Os nossos agentes têm a certeza de ter sido uma garota que matou o psicólogo do Mulo, uma moça em quem o Mulo confiou por via do sentimento e que, conseqüentemente, não controlou mentalmente, simplesmente por ela gostar dele. Desde esse conhecimento que nos preveniu, e para os que desejarem pormenores, foi redigido um estudo matemático do assunto para a Biblioteca Central, temos mantido o Mulo afastado por métodos não-ortodoxos com os quais arriscamos diariamente todo o esquema da história de Seldon. E é tudo.

O Primeiro Orador fez uma pausa por um instante, para permitir aos indivíduos reunidos apreenderem a totalidade das implicações. Depois disse: - A situação é, portanto, altamente instável. Com o esquema original de Seldon vergado até o ponto de fratura, e tendo de acentuar que nos enganamos inadequadamente em todo este assunto com a nossa horrível falta de previsão, estamos perante um colapso irreversível do Plano. Está nos faltando o tempo. Penso que só nos resta uma solução, e até essa é arriscada. Temos de permitir que o Mulo, em certo sentido, nos encontre.

Outra pausa, durante a qual verificou as reações, e depois: - Repito, em certo sentido!

 

DOIS HOMENS SEM O MULO

A nave estava quase pronta para partir. Nada faltava senão o destino. O Mulo sugerira um regresso a Trantor, o mundo que era a carcaça de uma incompatível metrópole Galáctica do mais vasto Império que a humanidade conhecera, o mundo morto que fora capital de todas as estrelas.

Pritcher discordava. Era um velho caminho, já totalmente explorado.

Encontrou-se com Bail Channis na sala de navegação da nave. O cabelo anelado do jovem estava apenas suficientemente desalinhado para permitir um único caracol lhe pendesse sobre a testa, como se tivesse sido cuidadosamente ali posto, e at os dentes se abriam num sorriso que condizia com ele. O rígido oficial sentiu-se vagamente endurecer contra o outro.

A excitação de Channis era evidente. - Pritcher, é demasiada coincidência.

O general disse, friamente: - Não estou a par do assunto da conversa.

- Oh. bem, então puxe uma cadeira, meu velho, e vamos a isso. Tenho observado as suas notas. Acho-as excelentes.

- Agrada-me... muito que assim seja.

- Mas pergunto a mim mesmo se chegou às mesmas conclusões que eu. Tentou alguma vez analisar o problema dedutivamente? Quero eu dizer: está tudo muito bem em passar as estrelas a pente fino, ao acaso, e fazer o que você fez em cinco expedições é saltar muito de estrela em estrela. Isto é óbvio. Mas calculou quanto tempo levaria para examinar detidamente todos os mundos conhecidos, nesta proporção?

- Sim, várias vezes. - Pritcher não sentia pressa em ir ao encontro do jovem, mas era importante empalmar a mente do outro, mente não controlada e por isso imprevisível.

- Bem, então, suponha que somos analíticos sobre isso e tentamos decidir precisamente o que é que procuramos?

- A Segunda Fundação - disse Pritcher com gravidade.

- Uma Fundação de psicólogos - corrigiu Channis - que são tão fracos em ciência física como a Primeira Fundação era fraca em psicologia. Ora bem, você é da Primeira Fundação, e eu não sou. As implicações são provavelmente evidentes para você. Temos de encontrar um mundo que governa em virtude das aptidões mentais e que, todavia, está muito atrasado cientificamente.

- É necessariamente assim? - perguntou Pritcher, calmamente. - A nossa própria "União dos Mundos" não está cientificamente atrasada, apesar de o nosso chefe dever a sua força aos seus poderes mentais.

- Porque tem á sua disposição as aptidões da Primeira Fundação - foi a resposta ligeiramente impaciente - e ela é o único reservatório de tal conhecimento na Galáxia. A Segunda Fundação deve viver entre os fragmentos esgotados do Império Galáctico destruído. Não há escolha.

- Então o senhor postula o poder mental, bem como a falta de recursos físicos, suficientes para estabelecer o seu domínio sobre um grupo de mundos?

- A falta de recursos físicos comparativa. Contra as decadentes áreas vizinhas são competentes para se defenderem. Contra as forças renascentes do Mulo, com a sua retaguarda de economia atômica amadurecida, não podem agüentar-se. Além disso, por que é a sua localização tão bem escondida, tanto ao princípio pelo fundador, Hari Seldon, como agora por eles mesmos? A sua própria Primeira Fundação não fez segredo de sua existência, nem foi feito segredo por eles, quando era uma simples cidade indefesa num planeta isolado, há trezentos anos.

Os traços regulares do rosto escuro de Pritcher crisparam-se sardonicamente. - E agora que acabou a sua profunda análise, gostaria de ter uma lista de todos os reinos, repúblicas, estados-planetas e ditaduras de uma espécie ou de outra dessa região política selvagem lá de fora, que corresponde à sua descrição e a vários fatores além disso?

- Então tudo isto já foi analisado? - Channis nada perdera do seu ímpeto.

- Não a encontra aqui, naturalmente, mas temos um guia completamente elaborado para as unidades políticas da Periferia da Oposição. Supôs realmente que o Mulo trabalharia simplesmente por mera coincidência?

- Pois bem - e a voz do jovem elevou-se numa explosão de energia -que me diz quando à Oligarquia de Tazenda?

Pritcher agarrou pensativamente uma orelha. - Tazenda? Mas... creio que a conheço. Não é na Periferia, não? Parece-me que fica precisamente a um terço do caminho que vai ao centro da Galáxia.

- Pois é. E daí?

- Os registros que temos situam a Segunda Fundação no outro extremo da Galáxia. O Espaço sabe que é a única coisa que temos para prosseguir. Seja como for, para que falar de Tazenda? De qualquer maneira, o seu desvio angular do arco radial da Primeira Fundação é apenas de cerca de cento e dez a cento e vinte graus, nada que se pareça com cerca de cento e oitenta.

- Há outro ponto nos registros. A Segunda Fundação foi estabelecida em Ponte das Estrelas.

- Nunca foi localizada tal região na Galáxia.

- Por ser um nome local, suprimido mais tarde para maior segredo. Ou talvez um nome inventado de propósito por Seldon e pelo seu grupo. No entanto, há alguma relação entre "Ponte das Estrelas" e Tazenda", não lhe parece? (star’s end – Ponte das Estrelas – N.R.)

- Uma vaga semelhança de local? Insuficiente.

- Já esteve lá alguma vez?

- Não.

- Todavia está mencionado nos seus registros.

- Onde? Ah, sim, mas foi apenas para apanhar alimentos e água. Não havia com certeza nada digno de observação sobre esse mundo.

- Desceu no planeta-líder? No centro do governo?

- Não tenho a certeza.

Channis ficou pensativo sob o olhar frio do outro. Depois: - Quer olhar comigo pela Lente por um momento?

- Decerto.

A Lente era, talvez, a característica mais recente dos cruzadores interestelares da época. Era, na realidade, uma complicada máquina de calcular que podia projetar numa tela a reprodução do céu noturno tal como se via de qualquer ponto dado da Galáxia.

Channis ajustou as coordenadas, e as luzes das paredes da sala de pilotagem foram apagadas. À débil luz vermelha do painel de instrumentos da Lente o rosto de Channis brilhava. Pritcher sentou-se no assento do piloto, com as longas pernas cruzadas, o rosto perdido na obscuridade. Lentamente, enquanto passava o período de indução, os pontos de luz iam aumentando de brilho na tela, até ficarem cerrados e resplandecentes com os grupos de estrelas generosamente povoados do centro da Galáxia.

- Isto - explicou Channis - é o céu noturno de Inverno tal como se vê de Trantor, isto é, o ponto importante que, tanto quanto sei, foi até agora negligenciado na sua procura. Qualquer orientação inteligente deve partir de Trantor como ponto zero. Trantor era a capital do Império Galáctico, mais ainda científica e culturalmente do que politicamente e, por conseguinte, o significado de qualquer nome descritivo deveria derivar, nove vezes em dez, de uma orientação Trantoriana. Recordar-se-á em ligação com isto de que, embora Seldon fosse de Helicon, na direção da Periferia, o seu grupo trabalhava precisamente em Trantor.

- O que é que tenta mostrar-me? - A voz uniforme de Pritcher mergulhou, velada, no crescente entusiasmo do outro.

- O mapa explicá-lo-á. Vê a nebulosa escura? - A sombra do seu braço caiu sobre a tela, substituindo-se á cintilação da Galáxia. O dedo, apontando, tocou uma pequena área negra que parecia um buraco no tecido salpicado de luz. - Os registros de estrelas chamam-lhe a Nebulosa de Pelot. Olhe bem para ela. Vou ampliar a imagem. Pritcher já via mais vezes o fenômeno da expansão da Imagem da Lente, porém conteve a respiração. Era como estar olhando do visor de uma nave do espaço, arrojando-se através duma Galáxia horrivelmente apinhada sem entrar no hiperespaço. As estrelas divergiam na sua direção, a partir de um centro comum, espalhavam-se para fora e desapareciam nos limites da tela. Simples pontos tornavam-se duplos e depois globulares. Áreas nebulosas dissolviam-se em miríades de pontos. E sempre aquela ilusão de movimento.

Enquanto aquilo se passava, Channis falou: - Notará que estamos nos movendo ao longo da linha reta de Trantor á Nebulosa de Pelot, de modo que, de fato, estamos ainda olhando segundo uma orientação estelar equivalente á de Trantor. Há, provavelmente, um ligeiro erro por causa do desvio da luz, para o qual eu não tenho dados matemáticos seguros para calcular, mas tenho a certeza de que não pode ser significativo.

A escuridão espalhava-se pela tela. À medida que a rapidez de aumento baixava, as estrelas escapavam-se pelas quatro margens da tela numa despedida pesarosa. Nas orlas da nebulosa que crescia, o brilhante universo de estrelas cintilou inesperadamente, em sinal da luz que estava apenas escondida atrás dos redemoinhantes fragmentos de átomos não-irradiantes de sódio e de cálcio, que enchiam muitos anos-luz de espaço.

Channis voltou a apontar: - E isto foi chamado "A Boca" pelos habitantes desta região do espaço, e isso é significativo porque é só da orientação Trantoriana que se parece com uma boca.

O que ele indicou era uma fenda no corpo da Nebulosa, com a conformação de uma boca dura e arreganhada, de perfil delineado pela auréola resplandecente da luz estelar que a enchia.

- Siga "A Boca" - disse Channis - siga "A Boca" na direção da garganta, onde ela se adelgaça até ficar uma tênue e frágil linha de luz.

Mais uma vez a tela se expandiu um pouco, até a Nebulosa se afastar da "Boca", bloqueando toda a tela exceto aquele fio delgado, e o dedo de Channis seguiu-o para baixo, silenciosamente, até onde chegava ao fim, e depois, enquanto o seu dedo continuava a mover-se para diante, até um ponto onde uma única estrela cintilava isolada.

Aí o seu dedo parou, pois, para além era o negrume inalterável.

- "Ponte das Estrelas" - disse o jovem, simplesmente. - O tecido da Nebulosa é delgado aqui, e a luz desta única estrela consegue abrir caminho através dele apenas nesta direção, para ser vista brilhando em Trantor.

- Está tentando me dizer que... - e a voz do general do Mulo morreu numa suspeita.

- Não estou tentando. Aquilo é Tazenda, "Ponte das Estrelas".

As luzes acenderam-se. A lente piscou e apagou-se. Pritcher aproximou-se de Channis em três longas passadas. - O que foi que o levou a raciocinar assim?

Channis recostou-se em sua cadeira, com uma expressão estranhamente embaraçada. - Foi acidental. Gostaria de obter crédito intelectual por isto, porém foi apenas acidental. Em todo o caso, fosse como fosse que aconteceu, ajusta-se. De acordo com as nossas referências, Tazenda é uma oligarquia. Domina vinte e sete planetas habitados. Não está evoluída cientificamente. E, sobretudo, é um mundo obscuro que aderiu a uma neutralidade estrita quanto à política local da sua região estelar, e não é expansionista. Acho que devemos visitá-lo.

- Informou o Mulo disto?

- Não. Nem vamos informar. Estamos agora no espaço, prestes a fazer o primeiro salto.

Pritcher, assaltado por um horror súbito, deu um pulo para o visor. O espaço frio veio ao encontro dos seus olhos quando o regulou. Contemplou fixamente a vista, depois voltou-se. Automaticamente, sua mão procurou a curva dura e confortável da coronha do seu desintegrador.

- Por ordem de quem?

- Por ordem minha, general - era a primeira vez que Channis usava o título do outro - enquanto o atraía aqui. Talvez não sentiu a aceleração, porque se verificou no momento em que eu estava ampliando o campo da Lente, e imaginou, sem dúvida, que era uma ilusão do movimento aparente das estrelas.

- Por quê? O que está realmente fazendo? Então qual era a razão do seu despropósito acerca de Tazenda?

- Isso não era disparate. Fui todo franqueza. Vamos para lá. Partimos porque estava planejando partir daqui a três dias. General, o senhor não acredita que há uma Segunda Fundação, e eu acredito. O senhor está apenas cumprindo por dever as ordens do Mulo; eu admito o perigo sério. A Segunda Fundação teve agora cinco anos para se preparar. Como se prepararam não sei, mas suponhamos que eles tenham agentes em Kalgan. Se eu trouxer no meu espírito o conhecimento do paradeiro da Segunda Fundação, podem descobri-lo. A minha vida poderia deixar de estar segura, e eu tenho um grande amor pela minha vida. Mesmo quanto a uma tênue.e remota possibilidade como essa, prefiro jogar na certeza. Portanto, ninguém sabe de Tazenda senão o senhor, e o senhor descobriu-o só depois de estarmos no espaço. E ainda assim, há a questão da tripulação.

Channis estava novamente sorrindo, ironicamente, num evidente domínio total da situação.

A mão de Pritcher largou o desintegrador e, por um momento, penetrou-o um vago desconforto. O que era que o impedia, a ele de agir? O que era que o entorpecia, a ele? Tempo houvera quando era um rebelde capitão sem promoção do império comercial da Primeira Fundação, em que teria sido, ele próprio, em vez de Channis que teria decidido uma ação pronta e atrevida como aquela. O Mulo teria razão? Estaria sua mente dominada interessada na obediência a ponto de perder a iniciativa? Sentiu um desânimo crescente e sufocá-lo numa estranha lassidão.

Disse: - Bom trabalho! No entanto consulte-me, no futuro, antes de tomar decisões desta natureza.

O sinal piscando chamou a sua atenção.

- É a casa das máquinas - disse Channis inesperadamente. - Terão tudo a postos para o salto passados cinco minutos do aviso, e pedi-lhes que me informassem se houvesse qualquer dificuldade. Quer assumir o comando?

Pritcher inclinou a cabeça, mudo, e ficou a cogitar, na solidão inesperada, nos males resultantes de se aproximar dos cinqüenta anos. O visor estava escassamente estrelado. O corpo principal da Galáxia estava enevoado num dos extremos. Que sucederia se estivesse livre da influência do Mulo?...

Mas estremeceu de horror só de pensá-lo.

 

O Engenheiro-chefe Huxlani olhou vivamente o jovem sem uniforme que se conduzia com a segurança de um oficial da Esquadra e parecia estar numa posição de autoridade. Huxlani, como tripulante efetivo da Esquadra quase desde a idade em que o leite lhe corria pela boca, confundia geralmente a autoridade com as insígnias específicas.

Contudo o Mulo designara aquele homem, e o Mulo tinha, evidentemente, a última palavra, a única palavra quanto a isso. Nem sequer subconscientemente o punha em dúvida. O domínio emocional era profundo. Estendeu a Channis o pequeno objeto oval, sem uma palavra. Channis pegou-o e sorriu com simpatia.

- É um homem da Fundação, não é, Chefe?

- Sim, senhor. Servia na Esquadra da Fundação dezoito anos antes de o Primeiro Cidadão tomar posse dela.

- Treino da Fundação em engenharia?

- Técnico qualificado de Primeira Classe, Escola Central de Anacreon.

- Muito bem. E encontrou isto no circuito de comunicações, onde eu lhe pedi que desse uma vista de olhos?

- Sim, senhor.

- Pertence ao circuito?

- Não, senhor.

- Então o que é?

- É um hiper-detector.

- Isso não basta. Não sou um homem da Fundação. O que é?

- É um aparelho que permite que a nave seja detectada através do hiperespaço.

- Por outras palavras, podemos ser seguidos, seja para onde for?

- Sim, senhor.

- Está bem. É uma invenção recente, não é? Foi desenvolvida por um dos Institutos de Pesquisas estabelecidos pelo Primeiro Cidadão, não foi?

- Creio que sim, senhor.

- E os seus trabalhos são segredos de Estado. Está certo?

- Creio que sim, senhor.

- Contudo, ele aqui está. É intrigante.

Channis passou o hiper-detector de uma para outra mão, automaticamente, durante alguns segundos. Depois, vivamente, estendeu-o. - Então tome-o e volte a pô-lo exatamente onde o encontrou e exatamente como o encontrou. Compreendeu? E depois esqueça-se deste incidente. Por completo!

O Engenheiro-chefe fez a continência quase automática, voltou-se rapidamente e saiu.

 

A nave saltou através da Galáxia, seguindo uma longa linha de pontos por entre estrelas. Os referidos pontos eram os escassos intervalos de dez a sessenta segundos-luz passados no espaço normal, e entre eles estendiam-se os espaços vazios de cem e mais anos-luz que representavam os "saltos" através do hiperespaço. Bail Channis sentou-se diante do painel de instrumentos da Lente e sentiu, mais uma vez, a onda de quase-adoração ao contemplá-la. Não era um homem da Fundação, e a interinfluência de forças ao girar de um botão ou ao corte de um contato não era para ele uma segunda natureza.

Não que a Lente devesse necessariamente deixar indiferente um homem da Fundação. Dentro do seu corpo incrivelmente compacto havia os circuitos eletrônicos suficientes para indicar, até á precisão de um bico de alfinete, cem milhões de estrelas separadamente, na relação exata de umas para nem'as outras. E como se isto só por si não fosse uma proeza, era capaz, além disso, de transferir qualquer parte dada do Campo Galáctico para qualquer dos três eixos espaciais, ou de proceder á rotação de qualquer parte do Campo em volta de um centro.

Era por causa disso que a Lente quase realizara uma revolução nas viagens interestelares. Nos primeiros tempos das viagens interestelares, o cálculo de cada "salto" através do hiperespaço significava uma soma de trabalho de um dia a uma semana, e a maior parte desse trabalho era o cálculo, mais ou menos preciso da "Posição da Nave" na escala de referência Galáctica. Isso significava essencialmente a observação exata de pelo menos três estrelas largamente afastadas umas das outras, cujas posições, referidas no arbitrário triplo-zero Galáctico, eram conhecidas.

E era na palavra "conhecidas" que estava a questão. Para alguém que conheça o campo das estrelas a partir de um certo ponto de referência, as estrelas são tão individuais como as pessoas. Saltemos, porém, trinta e cinco anos-luz e nem sequer o nosso próprio sol é reconhecível. Pode até nem ser visível.

A resposta era, obviamente, a análise espectroscópica. Durante séculos, o objetivo principal da engenharia interestelar era a análise do "reconhecimento de luz" de cada vez mais estrelas cada vez mais pormenorizadamente. Com isto, e com a precisão crescente do próprio "salto", foram adotadas rotas de viagem através da Galáxia, e as viagens interestelares tornaram-se menos uma arte e mais uma ciência.

E não obstante, mesmo no tempo da Fundação, com máquinas de calcular aprimoradas e um novo método de esquadrinhar mecanicamente o campo das estrelas à procura de um "reconhecimento de luz" conhecido, levava ás vezes dias para localizar três estrelas e depois calcular a posição em regiões não previamente familiares ao piloto.

Fora a Lente que modificara tudo isto. Por um lado, precisava apenas de uma simples estrela conhecida; por outro, até um novato como Channis podia manejá-la.

Nesse momento, de acordo com os cálculos do "salto", a estrela mais próxima de tamanho considerável era Vincetori; è estava agora centrada no visor uma estrela brilhante. Channis tinha esperanças de que fosse Vincetori.

O campo da tela da Lente era imediatamente posto ao lado do visor e, com dedos cuidadosos, Channis tirou as coordenadas de Vincetori. Cortou um contato, e o campo de estrelas surgiu numa visão brilhante. Também estava centrada nele uma estrela brilhante, mas parecia não haver qualquer outra característica comum. Ajustou a Lente segundo o Eixo Z e ampliou o Campo até o fotômetro mostrar que ambas as estrelas eram de igual brilho.

Channis procurou no visor uma segunda estrela de brilho considerável, e encontrou no campo da tela uma que lhe correspondia. Fez girar a tela, devagar, para uma deflexão angular semelhante. Torceu a boca e rejeitou o resultado com uma careta. Fê-la girar novamente, e outra estrela foi colocada em posição; depois uma terceira. Então sorriu, mostrando os dentes. Era aquela. Talvez um especialista com uma percepção das afinidades treinada pudesse ter acertado na primeira tentativa, porém ele conseguira-o em três.

Era aquele o ajustamento. Na sua parte final, os dois campos sobrepunham-se e fundiam-se num mar de nitidez imperfeita. A maior parte das estrelas apareciam em duplicata. Porém o ajustamento perfeito não demorou muito tempo. As estrelas duplas coincidiram, ficou um só campo, e a "Posição da Nave" podia agora ser lida diretamente nos quadrantes. O trabalho todo levara menos de meia hora.

 

Channis encontrou Han Pritcher no seu alojamento privado. O general estava aparentemente se preparando para deitar. Levantou os olhos.

- Novidades?

- Nada de espacial. Estaremos em Tazenda com outro salto.

- Bem sei.

- Não quero aborrecê-lo se deseja recolher-se, mas deu uma vista de olhos ao filme que trouxemos de Cil?

Han Pritcher lançou um olhar depreciativo ao objeto em questão, que estava numa caixa preta, na estante baixa. - Dei.

- E que pensa dele?

- Penso que, se houve alguma vez qualquer conhecimento da História, se perdeu completamente nessa região da Galáxia.

Channis riu largamente. - Compreendo o que quer dizer. Bastante árido, não é?

- Não, se se gostar de crônicas pessoais de governantes. Diria que é provavelmente indigno de confiança em ambos os sentidos. Onde a história diz respeito a personalidades principais, os esboços tornam-se pretos ou brancos consoante os interesses do escritor. Acho-o todo ele simplesmente inútil.

- Mas diz algo acerca de Tazenda. Foi esse pormenor que tentei destacar quando lhe dei o filme. Foi o único que consegui encontrar que lhe fizesse alguma referência.

- Está bem. Têm bons e maus governantes. Conquistaram uns tantos planetas, ganharam algumas batalhas, perderam umas tantas. Não há nada caracteristicamente distinto neles. Não dou grande coisa pela sua teoria, Channis.

- Mas passaram-lhe uns tantos pormenores. Notou que eles nunca fizeram alianças? Mantiveram-se sempre completamente fora da política deste canto do enxame das estrelas. Como diz, conquistaram uns tantos planetas, mas depois pararam, e isso sem qualquer assustadora derrota importante. É tal qual como se se expandissem o bastante para se protegerem, mas não o bastante para atraírem a atenção.

Muito bem - veio a resposta sem emoção. - Não tenho objeção para pousarmos. No pior dos casos, é uma pequena perda de tempo.

- Oh não! No pior dos casos, é a derrota completa. Se for a Segunda Fundação. Lembre-se de que seria um mundo só o Espaço sabe de quantos Mulos.

- Qual sua intenção?

- Pousar em qualquer dos planetas menores submetidos. Descobrir primeiro tanto quanto pudermos acerca de Tazenda, e improvisar depois a partir daí.

- Está muito bem. Não faço objeções. Agora, se não se importa, gostaria de apagar a luz.

Channis saiu com um aceno.

E na escuridão de um apertado compartimento, numa ilha de metal em movimento, perdida na vastidão do espaço, o General Han Pritcher permaneceu acordado, seguindo os pensamentos que o haviam levado a percorrer distâncias tão fantásticas. Se tudo o que concluíra tão penosamente fosse verdade, e de que maneira estavam todos os fatos começando a ajustar-se, então Tazenda era a Segunda Fundação. Não havia outra solução. Mas como? Como?

Podia ela ser Tazenda? Um mundo vulgar? Um mundo sem distinção? Um bairro pobre no meio do naufrágio de um Império? Um estilhaço entre os fragmentos? Recordava, como visto à distância, o rosto enrugado e a voz débil do Mulo quando costumava falar do psicólogo da velha Fundação, Ebling Mis, o único homem que, talvez, tivesse adquirido o conhecimento do segredo da Segunda Fundação.

Pritcher lembrava-se da tensão das palavras do Mulo: - Foi como se o assombro tivesse dominado Mis. Foi como se alguma coisa acerca da Segunda Fundação tivesse ultrapassado todas as expectativas, tivesse seguido uma direção completamente diferente da que ele devia ter suposto. Se eu pudesse ter lido os seus pensamentos ao invés de suas emoções! Contudo, as emoções eram simples, e acima de tudo o mais estava sua enorme surpresa.

Surpresa era a nota tônica. Algo supremamente assombroso! E agora chegava aquele rapaz, aquele frangote de dentes à mostra, todo alegre com Tazenda e com a sua indistinta subnormalidade. E havia de ter razão. Havia de ter. De outro modo, nada fazia sentido.

O último pensamento consciente de Pritcher tinha um toque de horror. Aquele hiperdetector metido no tubo Etérico ainda estava lá. Verificara-o uma hora antes, com Channis bem longe.

 

SEGUNDO INTERVALO

Era um encontro casual na ante-sala da Câmara do Conselho, apenas poucos momentos antes de passarem à Câmara para se inteirarem do assunto do dia, e os poucos pensamentos relampejavam rapidamente aqui e acolá.

- Então o Mulo está a caminho?

- Foi também o que ouvi. Arriscado! Extremamente arriscado!

- Não será se as coisas funcionarem com as funções determinadas.

- O Mulo não é um homem vulgar, e é difícil manipular os seus instrumentos escolhidos sem detecção por parte dele. As mentes controladas são difíceis de tocar. Dizem que ele foi apanhado acompanhando vários casos.

- Sim, não vejo como isso pode ser evitado.

- As mentes não controladas são mais fáceis. Mas há tão poucas em posição de autoridade subordinadas a ele...

Entraram na Câmara. Outros da Segunda Fundação seguiram-nos.

 

DOIS HOMENS E UM CAMPONÊS

Rossem é um desses mundos marginais, habitualmente omitidos na história Galáctica, e quase nunca impondo â atenção dos homens de miríades de planetas mais felizes.

Nos últimos tempos do Império Galáctico, uns tantos presos políticos haviam habitado os seus ermos, ao mesmo tempo que um observatório e uma pequena guarnição da Esquadra serviam para evitar que permanecesse totalmente deserto. Mais tarde, nos dias negros da discórdia, ainda antes do tempo de Hari Seldon, os homens mais fracos cansaram-se das décadas periódicas de insegurança e de perigo; fartos de planetas saqueados e da sucessão fantasmagórica de imperadores efêmeros, abrindo o seu caminho para a Púrpura por uns escassos anos ruins e infrutíferos, esses homens fugiram dos centros povoados e buscaram abrigo nos recantos áridos da Galáxia.

Ao longo dos recantos frios de Rossem, as aldeias cresceram em desordem. O seu sol era um sol pequeno, vermelho e mesquinho, que conservava os seus resíduos de calor para si mesmo, enquanto a neve caía, cerrada, durante nove meses do ano. O resistente trigo nativo jazia adormecido na terra durante aqueles meses cheios de neve; depois crescia e amadurecia a uma velocidade quase de pânico, quando a relutante radiação do sol elevava a temperatura até cinqüenta graus.

Pequenos animais semelhantes a cabras tosavam as pastagens, rompendo a fina camada de neve com as pequeninas patas de três cascos.

Os homens de Rossem tinham, assim, o seu pão e o seu leite e, quando podiam dispor de um animal, até a sua carne. As florestas escuras e sinistras, que cobriam metade da região equatorial do planeta, forneciam uma madeira dura e de veio fino para as casas. Esta madeira, juntamente com certas peles e minerais, tinha até valor de exportação, e as naves do Império apareciam de vez em quando, trazendo em troca maquinaria agrícola, aquecedores atômicos e até aparelhos de televisão. Estes últimos não eram realmente incoerentes, pois o longo inverno impunha ao camponês uma hibernação solitária.

A história imperial decorreu longe dos camponeses de Rossem. As naves de comércio traziam-lhes novidades, impacientemente fornecidas; ocasionalmente, chegavam novos fugitivos - uma vez chegou um grupo relativamente grande, em conjunto, e ficou - e estes recebiam habitualmente notícias da Galáxia.

Foi então que os Rossemianos souberam de batalhas devastadoras e de populações dizimadas, ou de imperadores tirânicos e vice-reis rebeldes.

Suspiraram e abanaram as cabeças, aconchegando mais as suas golas de peles às caras barbudas, enquanto se sentavam à roda da praça da aldeia, sob um fraco sol, e filosofavam sobre a maldade dos homens.

Depois as naves de comércio deixaram de aparecer, e a vida tornou-se mais áspera. Os fornecimentos de alimentos estrangeiros, de tabaco, de maquinaria, pararam. Palavras vagas de bocados de emissões captadas pela televisão trouxeram notícias cada vez mais perturbadoras. E finalmente espalhou-se que Trantor tinha sido saqueado. O grande mundo capital de toda a Galáxia, a residência esplêndida, historicamente famosa, inacessível e incomparável dos imperadores fora despojada, arruinada e totalmente destruída depois.

Era qualquer coisa de inconcebível, e muitos dos camponeses de Rossem, esmiuçando os seus campos, pensaram que o fim da Galáxia estivesse próximo.

Depois, num dia não diferente dos demais dias, chegou outra vez uma nave. Os velhos das aldeias abanaram sabiamente as cabeças e levantaram as suas velhas pupilas, murmurando que fora assim no tempo de seus pais; porém não era, na realidade.

Esta nave não era uma nave Imperial. Faltava-lhe à proa a insígnia resplandecente da Nave Espacial e do Sol. Era uma coisa atarracada, feita de bocados de naves mais velhas, e os homens que vinham dentro dela chamavam-se a si próprios soldados de Tazenda.

Os camponeses ficaram confusos. Não tinham ouvido falar de Tazenda, mas hospedaram, todavia, os soldados segundo os usos tradicionais da hospitalidade. Os recém-chegados inquiriram apertadamente quanto à natureza do planeta, o número dos seus habitantes, o número das suas cidades - uma palavra tomada pelos camponeses como significando "aldeias", com a confusão correspondente - o seu tipo de economia, e assim por diante.

Vieram outras naves e foram espalhadas proclamações por todo aquele mundo, dizendo que Tazenda era agora o mundo dirigente, que seriam estabelecidos postos de coleta de impostos rodeando o'equador, a região desabitada, que seriam cobradas anualmente percentagens de trigo e de peles de acordo com a produção.

Os Rossemianos tinham pestanejado solenemente, incertos sobre a palavra "impostos". Quando chegou a época da cobrança, muitos pagaram ou deixaram-se ficar quietos, confundidos, enquanto os homens uniformizados do outro mundo carregavam o grão colhido e as peles nos grandes carros terrestres.

Aqui e além, camponeses indignados formaram bandos e apareceram com antigas armas de caça, porém nada aconteceu. Dispersaram-se resmungando quando chegaram os homens de Tazenda, e viram com desânimo tornar-se mais dura a sua árdua luta pela existência.

Porém atingira-se um novo equilíbrio. O governador Tazendiano vivia austeramente na aldeia de Gentri, de onde eram excluídos todos os Rossemianos. Ele e os funcionários, seus subordinados, eram obscuros seres de outro mundo que nunca eram vistos pelos Rossemianos. Os cobradores de impostos, Rossemianos ao serviço de Tazenda, apareciam periodicamente, mas agora eram pessoas habituais, e os camponeses tinham aprendido a esconder o seu trigo, a conduzir o seu gado para a floresta e a absterem-se de ter a sua cabana de modo a parecer ostensivamente próspera. Depois, com uma expressão estúpida de quem não compreende, acolhiam todas as perguntas incisivas quanto às suas disponibilidades, limitando-se a apontar o que eles podiam ver.

Mesmo isso durou pouco, e os impostos decresceram, quase como se Tazenda se houvesse cansado de extorquir uns centavos a um tal mundo.

O comércio prosperou e talvez Tazenda o achasse mais proveitoso. Os homens de Rossem já não recebiam em troca as polidas criações do Império, porém até as máquinas Tazendianas e os alimentos Tazendianos era melhores daquilo que tinham. E havia roupas para as mulheres, de tecidos diferentes dos pardacentos tecidos caseiros, o que era algo muito importante.

Assim, a história Galáctica mais uma vez fluiu bastante pacificamente, e os camponeses lá foram lutando pela vida, arrancando-a da terra áspera.

Narovi aspirou por entre a barba quando saiu da sua cabana. Estavam caindo as primeiras neves sobre a terra áspera e o céu estava encoberto, de cor-de-rosa sombrio. Olhou de revés para o alto e decidiu que não estava próxima uma verdadeira tempestade. Podia ir a Gentri sem muita dificuldade e ver-se livre do seu excedente de trigo em troca de alimentos enlatados, suficientes para o inverno.

Berrou através da porta, que abriu um pouco: - O carro foi abastecido de combustível, rapaz?

Uma voz gritou lá de dentro, e o filho mais velho de Narovi, com uma barba curta, ruiva, ainda rala, juntou-se a ele.

- O carro - disse ele, de mau humor - está abastecido e anda bem. Os eixos é que estão em más condições. Disso eu não sou culpado. Já lhe disse que precisa ser consertado por um técnico.

O homem recuou e olhou para o filho de sobrolhos franzidos; depois projetou o queixo peludo para a frente. - E a culpa é minha? Onde e de que maneira posso eu conseguir consertos de um técnico? Então a colheita não foi outra coisa senão mesquinha durante cinco anos? Os meus rebanhos escaparam da peste? As peles subiram por si mesmas?...

- Narovi! - A voz conhecida veio lá de dentro e fê-lo parar no meio da frase. Resmungou: - Bem, bem, agora sua mãe tem que se meter em assuntos entre pai e filho. Traga o carro aqui para fora e veja se os reboques estão atrelados com segurança.

Juntou as mãos enluvadas e olhou outra vez para cima. As nuvens avermelhadas sombrias, estavam se acumulando, e o céu cinzento que se mostrava pelas fendas não tinha calor. O sol estava oculto.

Estava prestes a desviar a vista, quando os seus olhos vislumbraram qualquer coisa e o seu dedo se levantou para o alto automaticamente, enquanto sua boca se abriu num grito, com desprezo total pelo ar frio.

- Oh mulher! - chamou ele com energia: - Venha cá, mulher!

Uma cara indignada apareceu à janela. Os olhos da mulher seguiram o dedo e fixaramse. Com um grito, desceu correndo as escadas de madeira, apanhando, ao sair, um velho agasalho e um lenço de cabeça. Apareceu com o lenço posto de qualquer maneira envolvendo-lhe a cabeça e as orelhas, e o agasalho pendurado nos ombros.

Ela rouquejou: - É uma nave do espaço exterior.

E Narovi observou impacientemente: - E o que é que podia ser mais? Temos visitas, mulher, visitas!

A nave descia lentamente para pousar no campo nu e gelado, na parte Norte da quinta de Narovi.

- Mas o que é que vamos fazer? - arquejou a mulher. - Podemos oferecer hospitalidade a esta gente? Vamos oferecer-lhes o chão sujo do nosso casebre e os restos do pão da semana passada?

- Então hão de ir para casa dos nossos vizinhos? - Narovi passou do tom corado produzido pelo frio ao purpúreo; os seus braços estenderam-se, na sua macia cobertura de peles, e agarraram os ombros fortes da mulher.

- Mulher da minha alma - rosnou ele - traga as duas cadeiras do nosso quarto para baixo: trate de matar uma cria agora e assá-la com batatas; coza pão fresco. Vou agora acolher estes homens poderosos do espaço exterior... e... e... - Fez uma pausa, pôs a cabeça de lado e balbuciou, hesitante: - Vou trazer também uma vasilha do meu trigo fermentado. Beber cordialmente é agradável.

A boca da mulher abrira-se em vão frente a este discurso. Nada saiu. E quando passou aquela fase foi só um guincho de discordância que se ouviu.

Narovi levantou um dedo. - O que foi que os Magistrados da aldeia disseram há umas noites atrás, mulher? Eh, puxa pela memória! Os Magistrados andaram de fazenda em fazenda, pessoalmente, imagine a importância do caso, para nos dizerem que, se pousassem quaisquer naves do exterior, devíamos informá-los imediatamente por ordem do governador. E agora não vou aproveitar a oportunidade para ficar nas boas graças dos que estão no poder? Olhe para aquela nave. Já viu alguma vez qualquer nave parecida com. ela? Estes homens dos mundos exteriores são ricos, importantes. O próprio governador manda mensagens tão urgentes a respeito deles que os Magistrados andam de fazenda em fazenda no tempo frio. Talvez tenha sido comunicado por todo o Rossem que estes homens são extraordinariamente desejados pelos Senhores da Tazenda, e é na minha fazenda que estão pousando.

Agitava-se claramente de ansiedade. - Agora, a hospitalidade como deve ser, a menção do meu nome ao governador, e o que é que não poderá ser nosso?

A mulher sentiu subitamente a aspereza do frio através de suas leves roupas caseiras. Precipitou-se para a porta, gritando por cima do ombro: - Então vá embora depressa!

Porém estava falando a um homem que já ia correndo na direção do ponto do horizonte ao encontro do qual a nave descia.

 

Nem o frio daquele mundo nem os seus espaços vazios, desolados, preocupavam o General Han Pritcher. Nem a pobreza do local, nem o próprio camponês alagado em suor.

O que o incomodava era a questão da sensatez da tática que seguiam. Ele e Channis estavam ali sozinhos.

A nave, deixada no espaço, podia cuidar de si mesma em circunstâncias ordinárias, mas ainda assim sentia-se pouco seguro. Era Channis, evidentemente, o responsável por aquele lance. Olhou de revés para o jovem e viu-o piscando o olho alegremente para o espaço da divisão de peles que apareciam, momentaneamente, os olhos de uma mulher espreitando, de boca aberta.

Channis, pelo menos, parecia completamente á vontade. Pritcher saboreou o quadro com pouca satisfação. O jogo dele já não tinha muito mais tempo para continuar, tal qual desejava. Mas entretanto, os seus transmissores-receptores de pulso, de ultra-ondas, eram a sua única ligação com a nave.

Então o camponês, seu hospedeiro, com um sorriso enorme, inclinou a cabeça várias vezes, e disse, numa voz cheia de respeito: - Nobres Senhores, suplico autorização para vos dizer que o meu filho mais velho, um rapaz bom e digno, que a minha pobreza impede de educar como a sua sensatez merece, me informou de que os Magistrados chegam daqui a pouco. Confio em que a vossa estadia aqui seja tão agradável quanto os meus humildes recursos, pois sou um pobre agricultor, embora trabalhador, honesto e humilde, como toda a gente aqui vos dirá.

- Magistrados? - disse Channis, com ligeireza. - Os homens principais desta região?

- Exatamente, Nobres Senhores, e todos eles homens honestos e dignos, porque toda a nossa aldeia é conhecida através de Rossem como um lugar reto e justo, apesar da vida ser dura e do produto dos campos e das florestas escasso. Talvez, Nobres Senhores, desejem referir aos Magistrados o meu respeito e honra pelos viajantes, e pode acontecer que eles requisitem um carro a motor, novo, para nós, pois o velho mal pode arrastar-se e a nossa subsistência depende do que dele resta.

Parecia humildemente ansioso, e Han Pritcher meneou a cabeça em assentimento com a apropriada condescendência distante, exigida pelo papel de "Nobres Senhores" que lhes fora distribuído.

- Chegará aos ouvidos dos seus Magistrados uma informação da sua hospitalidade.

Pritcher aproveitou os momentos de silencio que se seguiram para falar ao aparentemente meio-adormecido Channis.

- Não estou nada encantado com esta reunião dos Magistrados - disse ele. – Tem algumas idéias a respeito?

Channis pareceu surpreso. - Não, o que é que o preocupa?

- Parece que temos coisas mais importantes a fazer do que tornamo-nos notáveis aqui.

Channis falou apressadamente, em voz baixa e monótona: - Pode ser de utilidade tornamo-nos notáveis nos nossos próximos movimentos. Não encontraremos o tipo de homens que queremos, Pritcher, metendo simplesmente a mão dentro duma mala, às escuras, e remexendo. Homens que dominam por meio de artifícios mentais não precisam ser homens necessariamente de poder. Em primeiro lugar, os psicólogos da Segunda Fundação são talvez, uma minoria da população, tal como na sua própria Primeira Fundação os técnicos e cientistas formavam uma minoria. Os habitantes vulgares são, provavelmente, isso mesmo, muito vulgares. Os psicólogos podem até estar bem escondidos, e os homens de posição aparentemente dominante podem honestamente pensar que são os verdadeiros senhores. A nossa solução para este problema pode ser encontrada aqui, neste pedaço gelado de planeta.

- Não estou entendendo de modo nenhum.

- Ora, veja bem, que é bastante lógico. Tazenda é, provavelmente, um mundo enorme, de milhões ou centenas de milhões de homens. Como poderíamos identificar os psicólogos entre eles e ficarmos habilitados a informar corretamente o Mulo de que localizamos a Segunda Fundação? Porém aqui, neste pequeno mundo de camponeses, neste planeta submetido, todos os governantes Tazendianos, informa-nos o nosso hospedeiro, estão concentrados na sua aldeia principal de Gentri. Pode haver lá apenas umas poucas centenas deles, Pritcher, e entre eles devem estar um ou mais homens da Segunda Fundação. Iremos lá, eventualmente, mas vamos ver primeiro os Magistrados. É um passo lógico no caminho.

Afastaram-se rapidamente um do outro quando o seu hospedeiro de barba negra irrompeu novamente na sala, evidentemente nervoso.

- Nobres Senhores, os Magistrados estão chegando. Suplico autorização para pedir-lhes mais uma vez que digam, se possível, uma palavra a meu favor... - Quase se dobrou ao meio, num paroxismo de adulação.

- Lembrar-nos-emos certamente de você - disse Channis. - São estes os Magistrados?

Aparentemente eram. Eram três.

Aproximou-se um deles. Inclinou-se com um respeito digno, e disse: -Sentimo-nos honrados. Foram tomadas providências quanto ao transporte, e esperamos ter o prazer da sua companhia na nossa Sala de Reuniões.

 

TERCEIRO INTERVALO

O Primeiro Orador fitava ansiosamente o céu noturno. Nuvens amontoadas corriam através do pálido brilho das estrelas. O espaço parecia ativamente hostil. Estava, quando muito, frio e muito feito, mas agora continha aquela estranha criatura, o Mulo, e o próprio conteúdo parecia escurecê-lo e turvá-lo numa ameaça sinistra.

A reunião acabara. Não fora longa. Houvera dúvidas e perguntas, inspiradas pelo problema matemático, difícil, de lidar com um mutante mental de caracterização incerta.

Todas as permutações extremas foram levadas em consideração.

Tinham, mesmo assim, a certeza? Em algum lugar naquela região do espaço, ao alcance, considerados os espaços Galácticos, estava o Mulo. Que faria ele?

Era bastante difícil manejar os seus homens. Eles reagiam, e estavam reagindo, de acordo com o plano.

Mas quanto ao próprio Mulo?

 

DOIS HOMENS E OS MAGISTRADOS

Os Magistrados desta região particular de Rossem não eram exatamente o que deles se poderia esperar. Não eram uma mera extrapolação dos camponeses; eram mais idosos, mais autoritários, menos amigáveis.

De modo algum.

A dignidade que os caracterizara no primeiro encontro acentuara-se, até atingir o sinal de ser a sua característica predominante.

Estavam sentados á volta da sua mesa oval como se fossem outros tantos pensadores, graves e de movimentos lentos. Muitos passaram um pouco o período de maior vigor físico, embora os poucos que tinham barbas as usassem curtas e bem tratadas. Bastantes, porém, pareciam ter menos de quarenta anos, de modo a tornar-se absolutamente evidente que "Os Magistrados" era mais uma expressão de respeito do que inteiramente a descrição literal da idade.

Os dois do espaço exterior ficaram à cabeceira da mesa, e absorveram, no silêncio solene que acompanhou uma refeição frugal, que parecia mais formal do que nutritiva, a nova atmosfera contrastante.

Após a refeição, e depois de terem sido feitas uma ou duas observações respeitosas, demasiado curtas e simples para se lhes chamar discursos, por alguns dos Magistrados tidos aparentemente em maior consideração, a reunião passou a decorrer sem-cerimônia.

Foi como se a dignidade de acolhimento das personalidades estrangeiras houvesse finalmente cedido o lugar ás qualidades rústicas e amigáveis da curiosidade e da amizade.

Juntaram-se ao redor dos dois estrangeiros e o dilúvio de perguntas começou.

Perguntaram se era difícil manejar uma nave espacial, quantos homens eram precisos para fazê-lo, se podiam ser feitos motores melhores para os seus carros, para qualquer tipo de terreno, se era verdade que raramente nevava em outros mundos, como se dizia ser o caso de Tazenda, quantas pessoas viviam no seu mundo, se era tão grande como Tazenda, se era longe, como eram tecidas as suas roupas e o que era que lhes dava aquele brilho metálico, por que não usavam peles, se se barbeavam todos os dias, que espécie de pedra era a do anel de Pritcher... A torrente de perguntas não tinha fim.

As perguntas eram quase sempre dirigidas a Pritcher, como se, mais velho, lhe atribuíssem a maior autoridade. Pritcher viu-se forçado a responder cada vez a mais perguntas. Era como um mergulho numa multidão de crianças. As suas perguntas eram de extrema e desarmante admiração. A sua ânsia de saber era absolutamente irresistível e não podia deixar de ser satisfeita. Pritcher explicou que as naves espaciais não eram difíceis de manejar, e que as tripulações variavam consoante o tamanho, de um a muitos, que os motores dos seus carros para qualquer terreno lhe eram desconhecidos, em qualquer pormenor, mas podiam, sem dúvida, ser melhorados, que os climas dos mundos variavam quase infinitamente, que viviam muitas centenas de milhões de pessoas no seu mundo, mas que ele era menor e mais insignificante do que o grande império de Tazenda, que as suas roupas eram tecidas com fibras plásticas de silicone, cujo brilho metálico era produzido artificialmente por uma orientação adequada das moléculas superficiais, que podiam ser aquecidas artificialmente, de modo que as peles eram desnecessárias, que se barbeavam todos os dias, que a pedra do seu anel era uma ametista. A torrente alongava-se.

Achou-se preso àqueles provincianos ingênuos, contra sua vontade.

E, logo que respondia, havia sempre uma rápida conversa entre os Magistrados, como se debatessem a informação obtida. Era difícil seguir aquelas discussões entre eles, pois recaíam no próprio dialeto, com sotaque, da língua Galáctica universal que, em virtude do longo afastamento das correntes da linguagem viva, se tornara arcaica.

Quase poderia dizer-se que ficavam, nesses breves momentos de conversa entre si, á beira do entendimento, mas que se conciliavam de modo a evitar os laços apertados da compreensão.

Até que, finalmente, Channis interrompeu para dizer: - Meus caros senhores, devem responder-nos também a nós, pois somos estrangeiros e teríamos muito interesse em saber tudo o que pudermos sobre Tazenda.

O que aconteceu então foi reinar um grande silêncio, e os Magistrados, até ali volúveis, permaneceram calados. Suas mãos, que se tinham mexido num acompanhamento tão rápido e delicado de suas palavras, como para lhe dar maior alcance e os variados cambiantes de entendimento, caíram subitamente, abandonadas. Fitaram-se furtivamente uns aos outros, aparentemente desejando cada um deles que outro ficasse em evidência.

Pritcher interveio rapidamente: - O meu companheiro pede-lhes isto como amigo, pois a fama de Tazenda enche a Galáxia, e nós, evidentemente, informaremos o governador da lealdade e amor dos Magistrados de Rossem.

Não se ouviu nenhum suspiro de alívio, porém as caras desanuviaram-se. Um dos Magistrados cofiou a barba entre o polegar e o indicador, desfazendo o seu ligeiro ondeado com uma leve pressão, e disse: - Somos servidores fiéis dos Senhores de Tazenda.

O aborrecimento de Pritcher por causa da pergunta grosseira de Channis amenizou-se.

Era aparente, pelo menos, que a idade que ultimamente sentia pesar-lhe ainda não o privara da sua própria capacidade de atenuar os despropósitos dos outros.

Continuou: - Não conhecemos grande coisa na nossa parte longínqua do universo, da história dos Senhores de Tazenda. Supomos que governam aqui há muito tempo.

O mesmo Magistrado que falara antes, respondeu: - Nem o avô do mais idoso pode lembrar-se de algum tempo em que os Senhores estivessem ausentes.

- Foi um tempo de paz?

- Foi um tempo de paz! - Hesitou. - O governador é um Senhor forte e poderoso que não hesitaria em castigar os traidores. Nenhum de nós é traidor, evidentemente.

- Imagino que castigou alguns no passado como mereciam.

Nova hesitação. - Aqui jamais alguém foi traidor, nem os nossos pais, nem os pais dos nossos pais. Mas houve-os em outros mundos, e a morte deles seguiu-se rapidamente. Nem é bom pensar nisso, porque nós somos homens humildes, pobres agricultores, que não nos interessamos por assuntos políticos.

Eram evidentes a ansiedade da sua voz e a preocupação geral nos olhos de todos eles.

Pritcher disse, suavemente: - Pode informar-nos como podemos obter uma audiência com o governador?

E instantaneamente destacou-se da situação um indivíduo espantado, pois o Magistrado disse, após um longo intervalo: - Então não sabe? O governador estará aqui amanhã. Esteve à sua espera. Foi uma grande honra para nós. Nós... esperamos sinceramente que lhe dêem informações satisfatórias a nosso respeito, bem como quanto à nossa lealdade para com ele.

Pritcher sorriu um pouco a contragosto. - Esperavam-nos?

O Magistrado olhou admirado de um para o outro. - Mas... há uma semana que estamos à espera de vocês.

 

Os seus alojamentos eram indubitavelmente luxuosos para aquele mundo. Pritcher já vivera noutros piores. Channis não mostrava senão indiferença pelos aspectos exteriores.

Porém havia um elemento de tensão entre eles, de uma natureza diferente. Pritcher sentia aproximar-se o momento de uma decisão definida e, no entanto era ainda desejável uma espera adicional. Ver primeiro o governador seria arriscar o jogo até um ponto perigoso, contudo ganhar esse jogo podia multiplicar muitas vezes os ganhos. Sentiu uma onda de cólera ao ver a ligeira ruga entre os sobrolhos de Channis, a leve incerteza com que o jovem deixava transparecer. Detestava a representação inútil e ansiava pelo seu fim.

Disse: - Parece que se anteciparam a nós.

- Pois é - disse Channis, simplesmente.

- Só isso? Não tem mais nada a dizer? Chegamos aqui e verificamos que o governador nos espera. Provavelmente saberemos pelo governador que a própria Tazenda nos espera. Então qual a vantagem de nossa missão?

Channis levantou os olhos, sem tentar esconder o tom enfadado da sua voz: - Esperarnos é uma coisa; saber quem nós somos e porque viemos, é outra.

- Espera ocultar essas coisas a homens como os da Segunda Fundação?

- Talvez. Por que não? Está pronto a pôr as mãos no fogo? Suponha que a nossa nave foi detectada no espaço. É extraordinário que um Estado mantenha postos de observação de fronteira? Mesmo que fôssemos estrangeiros vulgares, teríamos interesse para eles.

- Interesse suficiente para um governador vir ao nosso encontro, ao invés do oposto?

Channis encolheu os ombros. - Esse problema enfrentaremos depois. Vamos ver que tal é o governador.

Pritcher fez uma carranca, uma espécie de carranca pálida. A situação estava se tornando ridícula.

Channis continuou, com uma animação artificial: - Pelo menos sabemos uma coisa. Ou Tazenda é a Segunda Fundação, ou um milhão de indícios de evidência apontam unanimemente o caminho errado. Como interpreta o terror patente que estes indígenas têm por Tazenda? Não vejo sinais de domínio político. Os seus grupos de Magistrados reúnem-se aparentemente com liberdade e sem interferência alguma. A carga tributária de que eles falam não me parece grande, nem eficientemente lançada e cobrada. Os nativos falam muito de pobreza, mas parecem vigorosos e bem aumentados. As casas são toscas e as suas aldeias são rudes, porém são adequadas ao seu fim. De fato, este mundo fascina-me. Nunca vi nenhum mais proibitivo, embora esteja convencido de que não há sofrimento entre a população e de que suas vidas, sem complicações, conseguem ter uma felicidade bem equilibrada que falta ás populações refinadas dos centros avançados.

- É, então, um admirador das virtudes campesinas?

- As estrelas me defendam! - Channis parecia divertido com a idéia. -Limito-me a apontar o significado de tudo isto. Aparentemente, Tazenda é um Estado administrador da eficiência do antigo Império ou da Primeira Fundação, ou até a nossa própria União. Todos estes puseram a eficiência mecânica á disposição dos seus súditos, á custa de valores mais intangíveis. Tazenda traz-lhes a suficiência. Não vê que toda a orientação do seu predomínio é diferente? Não é física, mas psicológica.

- Realmente? - Pritcher permitiu-se a ironia. - E o terror com que os Magistrados falaram, do castigo para a traição, pelas bocas desses bondosos psicólogos administradores? Como coaduna isso com a sua tese?

- E eles foram vítimas do castigo? Falam do castigo apenas dos outros. É como se o conhecimento do castigo tivesse sido tão bem implantado neles que nunca foi preciso utilizar o próprio castigo. As atitudes mentais apropriadas estão tão inseridas nos seus espíritos, que eu tenho a certeza de que não existe nem um soldado Tazendiano no planeta. Não está vendo tudo isto?

- Verei, talvez - disse Pritcher, friamente - quando vir o governador. E a propósito, que faremos se as nossas mentalidades forem controladas?

Channis replicou com um desprezo brutal: - Você deve estar acostumado a isso.

Pritcher empalideceu perceptivelmente e, com um esforço, voltou-lhe as costas e saiu.

Nesse dia não voltaram a falar um ao outro.

Foi no meio do silêncio da noite frígida enquanto ouvia o outro mover-se ligeiramente na cama, que Pritcher sintonizou o seu transmissor de pulso no comprimento de ultraondas para o qual o transmissor de Channis não podia ser sintonizado e, com os toques dá unha, sem rumor, entrou em contato com a nave.

A resposta chegou em pequenos períodos de vibração, sem ruído, que mal ultrapassavam o limiar da sensibilidade auditiva.

Pritcher perguntou por duas vezes: - Não houve comunicações?

Duas vezes veio a resposta: - Nenhuma. Continuamos à espera.

Levantou-se da cama. Estava frio no quarto, e ele enrolou-se no cobertor de peles, sentando-se na cadeira, fitando a multidão das estrelas, tão diferentes no brilho e na complexidade do seu conjunto de nevoeiro cerrado na Lente Galáctica, que dominava o céu noturno da Periferia de onde era natural.

Ali, em algum lugar, entre as estrelas, estava a resposta ás complicações qüe o acabrunhavam, e sentiu o desejo ardente de a solução chegar.

Mais uma vez, por um momento, perguntou a si mesmo se o Mulo tinha razão, se a Conversão lhe roubara o gume firme e afiado da confiança própria. Ou era simplesmente a idade e as flutuações daqueles últimos anos?

Na realidade, não se importava.

Estava cansado.

 

O governador de Rossem chegou com um mínimo de ostentação. A sua única companhia era o homem uniformizado que conduzia o carro terrestre por toda parte.

O próprio carro era de desenho fácil, mas parecia ineficaz a Pritcher. Manobrava desajeitadamente; mais de uma vez reagiu ao que podia ser uma mudança de velocidade demasiado rápida. Era evidente à primeira vista, pelo seu desenho, que utilizava combustível químico e não atômico.

O governador Tazendiano pisou, a fina camada de neve e avançou por entre duas filas de respeitosos Magistrados. Não olhou para eles e entrou rapidamente. Eles o seguiram.

Do alojamento que lhes haviam destinado, os dois homens da União do Mulo observavam. O governador era atarracado, bastante gordo, baixo, nada impressionante.

Mas isso que significava?

Pritcher amaldiçoou-se pela falta de coragem. O seu rosto, para ser exato, mantinha uma calma gelada. Não havia humilhação diante de Channis, mas sabia muito bem que a sua pressão sangüínea subira e a garganta secara.

Não era um caso de medo físico. Não era um desses homens broncos, sem imaginação, de carne sem nervos, demasiado estúpidos para terem medo, mas o medo físico podia ele explicar e dar-lhe o devido desconto.

Mas isto era diferente. Era o outro medo.

Volveu um rápido olhar para Channis. O jovem passava negligentemente os olhos pelas unhas de uma das mãos, revistando-as com vagar, á procura de qualquer irregularidade insignificante.

Algo no íntimo de Pritcher ficou imensamente indignado. Que tinha Channis a temer do domínio mental?

Pritcher conteve mentalmente a respiração e tentou pensar no passado. Como fora ele antes do Mulo o ter convertido, quando era um Democrata de antes quebrar que torcer? Era difícil recordar. Não podia situar-se mentalmente a si mesmo. Não conseguia romper os fios apertados que o ligavam emocionalmente ao Mulo. Intelectualmente, podia lembrar-se de ter tentado uma vez assassinar o Mulo, mas nem á custa dos maiores esforços de que era capaz podia recordar-se das suas emoções naquela contingência. Podia ser que isso fosse, no entanto, a legítima defesa do seu próprio espírito, pois só ao pensamento intuitivo do que poderiam ter sido essas emoções, sem imaginar os pormenores, mas entendendo meramente o seu impulso, o seu estômago sentiu náuseas.

Que aconteceria se o governador interferisse na sua mente?

Que aconteceria se os tentáculos insubstanciais de um homem da Segunda Fundação se insinuassem pelas fendas emocionais da sua caracterização, abrissem caminho entre elas e se lhes juntassem?...

Não houvera nenhuma sensação da primeira vez. Não houvera dor nem luta mental, nem sequer um sentimento de descontinuidade. Amara sempre o Mulo. Houvera um tempo, muito tempo antes, tão longo tempo antes como cinco curtos anos, em que pensara que não o amava, que o odiava, mas isso era apenas uma ilusão horrível. O pensamento dessa ilusão causava-lhe embaraços.

Porém não houvera dor.

Iria o encontro com o governador duplicar aquilo? Iria tudo aquilo que já passara, todos os seus serviços ao Mulo, toda a orientação da sua vida, juntar-se ao vago sonho da vida de um outro que hasteava a palavra Democracia? O Mulo também seria um sonho, e a sua lealdade apenas a Tazenda...

Voltou as costas, vivamente.

Lá estava aquele desejo forte de vomitar.

Então a voz de Channis soou nos seus ouvidos: - Penso que chegou o momento, General.

Pritcher tornou a voltar-se. Um dos Magistrados abrira a porta silenciosamente e estava no limiar, com um respeito calmo e digno.

Disse: - Sua Excelência o Governador de Rossem, em nome dos Senhores de Tazenda, tem muito prazer em conceder-lhes uma audiência e solicita a presença dos senhores perante ele.

- Caso arrumado! - Channis apertou o cinto com um puxão e enfiou na cabeça um capacete Rossemiano.

O maxilar de Pritcher endureceu. Isto era o começo do verdadeiro jogo.

O governador de Rossem não era de aparência respeitável, até porque estava de cabeça descoberta e o seu cabelo já ralo, castanho claro, tendendo para o grisalho, dava-lhe um ar de suavidade. Baixou a vista para eles, e os seus olhos, metidos no meio de uma rede fina de rugas circundantes, pareciam calculistas. Porém o seu queixo recém-barbeado era branco e pequeno. Pela convenção universal dos seguidores da pseudociência de ler o caráter pela estrutura óssea facial, parecia "fraco".

Pritcher evitou os olhos dele e fitou-lhe o queixo. Não sabia que isso seria efetivo, se alguma coisa poderia sê-lo.

A voz do governador tinha um tom alto, indiferente: - Bem-vindos a Tazenda. Acolhemo-los em paz. Já se alimentaram?

As suas mãos, de dedos longos e veias salientes, indicaram-lhe uma mesa em forma de U.

Inclinaram-se e sentaram-se. O governador sentou-se do lado de fora da base do U e eles do lado de dentro; ao longo de ambos os braços sentou-se a dupla fila dos silenciosos Magistrados.

O governador falava em frases curtas e abruptas, gabando a comida importada de Tazenda, e apresentava na realidade uma qualidade diferente, embora não fosse muito melhor do que a comida mais grosseira dos Magistrados, depreciando o clima de Rossem, referindo-se como que casualmente ás complicações das viagens no espaço.

Channis pouco falou; Pritcher absolutamente nada.

Depois chegou-se ao fim. Acabou-se a compota de pequenos frutos, os guardanapos foram utilizados e postos de lado, e o governador recostou-se na cadeira.

Os seus olhos pequenos faiscavam.

- Informei-me quanto à nave. Naturalmente, gostaria de providenciar que ela recebesse o devido cuidado e revisão. Disseram-me que o seu paradeiro é desconhecido.

- É verdade - replicou Channis, em tom delicado. - Deixamo-la no espaço. É uma grande nave, adequada para longas viagens em regiões por hostis, e sentimos que pousando-a aqui, poderiam levantar-se dúvidas quanto às nossas intenções pacíficas. Preferimos pousar sozinhos, desarmados.

- Um ato amigável - comentou o governador, sem convicção. - Disse que é uma grande nave?

- Não é uma nave de guerra, Excelência.

- Ah, sim. De onde vieram?

- De um pequeno mundo no setor de Santanni, Excelência. Pode ser que não tenha conhecimento da sua existência porque tem pouca importância. Estamos interessados em estabelecer relações comerciais.

- Comércio, hem? E que têm para vender?

- Máquinas de toda espécie, Excelência. Em troca de víveres, madeira, minerais...

- Ah, bem... - O governador parecia ter dúvidas. - Conheço pouco desses assuntos. Talvez possa conseguir-se proveito mútuo. Talvez, depois de ter examinado com tempo as suas credenciais, porque serão pedidas muitas informações pelo meu Governo antes das coisas poderem prosseguir... e depois de ter visto a nave, talvez, diria eu, fosse aconselhável dirigirem-se para Tazenda.

Não houve resposta a isto, e a atitude do Governador esfriou perceptivelmente.

- É necessário, contudo, que eu veja a nave.

Channis disse, distante: - A nave, infelizmente, está sendo reparada neste momento. Se Vossa Excelência não se opõe a dar-nos quarenta e oito horas, estaremos ao seu dispor.

- Não estou habituado a esperar.

Pritcher encontrou pela primeira vez o brilho do olhar do outro, olhos nos olhos, e o seu entusiasmo explodiu suavemente no íntimo. Durante um momento teve a sensação de estar se afogando, mas depois os seus olhos desviaram-se.

Channis não vacilou e disse: - A nave não pode pousar durante quarenta e oito horas, Excelência. Estamos aqui desarmados. Duvida de nossas intenções honestas?

Houve um longo silêncio, e depois o governador disse, de mau humor: -Fale-me do mundo de onde vieram.

E foi tudo. Acabou assim. Não houve mais coisas desagradáveis. O governador, tendo cumprido o seu dever oficial, perdeu aparentemente o interesse e a audiência teve um fim insípido.

Quando terminou oficialmente, Pritcher encontrou-se de volta ao seu alojamento e auto-analisou-se.

Cuidadosamente, contendo a respiração, "sentiu" suas emoções. Parecia, certamente, não estar diferente para consigo mesmo, mas sentiria ele qualquer diferença? Sentira-se diferente após a conversão pelo Mulo? Não parecera tudo natural? Como devia ser?

Experimentou.

Com uma fria determinação, gritou para dentro das cavernas silenciosas da sua mente, e o grito era: "A Segunda Fundação deve ser descoberta e destruída". A emoção que o acompanhou era um ódio verdadeiro. Não havia a menor hesitação envolvida com ele.

Depois estava na sua idéia substituir pela palavra "Mulo" a expressão "Segunda Fundação", contudo o seu entusiasmo suspendeu-se â mera emoção e a sua língua ficou travada.

Até ali, bem.

Mas teria sido manejado de outro modo, mais sutilmente? Teriam sido feitas pequeninas modificações, modificações que não podia detectar devido a sua própria existência vedar o seu julgamento?

Não havia maneira de dizê-lo.

Ainda sentia, porém, absoluta lealdade para com o Mulo! Se isso não estivesse alterado, nada mais realmente importava.

Voltou mais uma vez o seu espírito para a ação. Channis estava ocupado no seu lado da sala. A unha do polegar de Pritcher voltou a trabalhar com o seu emissor-receptor de pulso.

E então, â resposta que chegou, sentiu uma onda de alívio envolvê-lo e deixá-lo fraco. Os músculos imóveis da face não o atraiçoaram, mas no seu íntimo gritava de alegria, e quando Channis se voltou para enfrentá-lo soube que a farsa estava quase no fim.

 

QUARTO INTERVALO

Os dois oradores passaram um pelo outro na rua e um deles fez parar o outro.

- Recebi o aviso do Primeiro Orador.

Houve um piscar meio-apreensivo nos olhos do outro. - Ponto de intersecção?

- Sim! Oxalá estejamos vivos para ver o romper do dia!

 

UM HOMEM E O MULO

Não havia qualquer sinal nas ações de Channis de que ele estivesse consciente de qualquer modificação sutil na atitude de Pritcher e nas relações entre um e outro.

Recostou-se no banco duro de madeira e estendeu os pés para a frente.

- Que idéia fez do governador?

Pritcher encolheu os ombros. - Absolutamente nenhuma. Claro que não me pareceu um gênio mental. Um exemplar muito pobre da Segunda Fundação, se é o que se supõe que seja. Eu penso que não era, sabe? Não tenho uma idéia segura sobre ele. Suponha que o senhor fosse um homem da Segunda Fundação. - Channis ficou mais pensativo. – Que faria o senhor? Suponha que tivesse uma idéia dos nossos propósitos aqui. Como nos manobraria?

- Conversão, evidentemente.

- Como o Mulo? - Channis levantou os olhos vivamente. - Se eles nos tivessem convertido, sabê-lo-íamos? Sei lá... E se eles fossem apenas psicólogos, porém muito espertos?

- Nesse caso, se fosse eu, daria cabo de nós o mais rapidamente possível. E a nossa nave? Não! - Channis levantou o indicador. - Estamos blefando, meu caro Pritcher. Só pode ser blefe. Mesmo que eles tenham na mão o domínio emocional, nós, o senhor e eu, somos apenas testas de ferro. É o Mulo que devem combater, e estão precisamente sendo tão cuidadosos conosco como nós estamos sendo com eles. Estou partindo do princípio de que sabem quem nós somos.

Pritcher fitou-o, friamente. - Que pretende fazer?

- Esperar. - A palavra foi pronunciada entredentes. - Deixe-os vir ao nosso encontro. Talvez estejam preocupados com a nave, ou mais provavelmente com o Mulo. Blefaram com o governador. Não deu resultado. Ficamos na mesma. A próxima pessoa que nos vão mandar há de ser um homem da Segunda Fundação, e propor-nos-á um pacto de qualquer espécie.

- E depois?

- Depois faremos o pacto.

- Creio que não.

- Por pensar que isto atraiçoaria o Mulo? Eu não vou atraiçoá-lo.

- Não. O Mulo pode bem haver-se com as suas traições, com qualquer que pudesse inventar. Mas continuo a achar que não.

- Por pensar, então, que não conseguiríamos enganar os da Fundação?

- Talvez não. Mas a razão não é essa.

O olhar de Channis caiu sobre o que o outro empunhava, e disse, sombrio: - Quer dizer que é essa a razão?

Pritcher fez balançar o seu desintegrador. - Exatamente. Está sob prisão.

- Porquê?

- Por traição para com o Primeiro Cidadão da União.

Os lábios de Channis apertaram-se um de encontro ao outro. - O que é que se passa?

- Traição, como eu disse, e correção do caso efetuada por mim.

- Qual é a prova? Ou são evidências, presunções, devaneios? Você está doido?

- Eu não, e você? Supõe que o Mulo envie garotos de peito em missões ridículas para nada? Eu achava a coisa estranha. Porém perdi o meu tempo duvidando de mim mesmo. Por que ele mandaria você? Porque sorri e se veste bem? Por ter vinte e oito anos?

- Talvez por ser digno de confiança. Ou não está procurando obter razões lógicas?

- Ou por não ser digno de confiança. O que é bastante lógico, pelo caminho que as coisas tomam.

- Estamos competindo em paradoxos, ou é tudo um jogo de palavras para ver quem consegue dizer menos com mais palavras?

O desintegrador avançou, com Pritcher atrás dele. Parou, ereto, diante do jovem. - Ponha-se de pé!

Channis assim fez, sem muita pressa, e sentiu a ponta do cano do desintegrador tocar o seu cinto, sem um estremecimento dos músculos do estômago.

Pritcher disse: - O que o Mulo queria era encontrar a Segunda Fundação. Ele falhara, eu falhara, e o segredo que nenhum de nós pôde encontrar é um segredo bem oculto. Restava, portanto, uma possibilidade ainda a tentar, e que era a de encontrar um investigador que já conhecesse o esconderijo.

- E esse sou eu?

- Aparentemente foi assim. Não o sabia então, evidentemente, mas apesar do meu espírito ser menos rápido, aponta, ainda, a direção certa. Como foi fácil acharmos "Ponte das Estrelas"! Como foi miraculoso o seu exame da Região certa do Campo da Lente no meio de um número infinito de possibilidades! E tendo-o conseguido, com que facilidade observamos exatamente o ponto certo para a observação! Você foi um idiota grosseiro! Avaliou-me tão por baixo que não o chocou qualquer combinação de acasos impossíveis como sendo demasiado para eu engolir?

- Quer dizer que fui muito bem sucedido?

- Bem sucedido demais para qualquer homem leal.

- E por que não avaliar os padrões de êxito que me fixou tão baixos?

O desintegrador aumentou a pressão, embora no rosto que enfrentava Channis apenas o brilho frio dos olhos traísse a cólera crescente. - Porque você está a soldo da Segunda Fundação.

- A soldo? - E, com um desprezo infinito: - Prove-o!

- Ou sob a sua influência mental.

- Sem conhecimento do Mulo? Ridículo.

- Com o conhecimento do Mulo. É exatamente o meu ponto crucial, meu jovem tolo, com conhecimento do Mulo. Supõe que, a não ser assim, ele lhe daria uma nave para brincar? Você conduziu-nos á Segunda Fundação, como se supunha que fizesse.

- Tentar perceber alguma coisa no meio desse amontoado de disparates é como procurar agulha em palheiro. Mas posso perguntar por que se supunha que eu faria tudo isso? Se fosse um traidor, por que os conduziria á Segunda Fundação? Por que não andar de um lado para o outro através da Galáxia, pulando alegremente, sem encontrar mais do que você encontrou?

- Por causa da nave. E porque os homens da Segunda Fundação precisam, como é evidente, de armamento atômico para se defenderem.

- Deve inventar mais do que isso. Uma nave não significa nada para eles, e se pensam que poderão aprender a ciência a partir dela e construir centrais de energia atômica no ano seguinte, os homens da Segunda Fundação serão na verdade muito, mas muito ingênuos. De uma ingenuidade tão grande como a sua, diria eu.

- Terá oportunidade de explicar isso ao Mulo.

- Vamos regressar a Kalgan?

- Pelo contrário, ficaremos aqui e o Mulo juntar-se-á a nós daqui a uns quinze minutos, pouco mais ou menos. Você com a sua inteligência aguda, com a sua esperteza, pensa que não nos seguiu, seu monumento de amor próprio? Você se fez de chamariz, mas bem ao contrário. Pode não ter conduzido as nossas vítimas até nós, mas conduziu-nos com certeza até às nossas vítimas.

- Posso sentar-me - perguntou Channis - e explicar-lhe uma coisa por meio de esquemas? Por favor.

- Fique de pé.

- Pois bem, também posso explicar de pé. Pensa que o Mulo nos seguiu por causa do hiper-detector posto no circuito de comunicações?

O desintegrador podia ter oscilado, mas Channis não o juraria. Disse: -Não parece surpreso. Mas não perco tempo supondo que se sente surpreendido. Sim, sabia do caso. E agora que lhe mostrei que sabia algo que você imaginava que eu não soubesse, vou dizer-lhe uma coisa que você não sabe e que eu tenho certeza que não sabe.

- Está se permitindo utilizar muitos preliminares, Channis. Pensava que a sua capacidade de invenção estivesse melhor lubrificada.

- Não há invenção nenhuma. Houve, de fato, traidores, evidentemente, ou agentes inimigos, se prefere esse termo, porém o Mulo soube-o de uma forma bastante curiosa. Parece que alguns dos seus convertidos foram influenciados. Está vendo?

O desintegrador, dessa vez, oscilou, indubitavelmente.

- Acentuo isto, Pritcher. Era por isso que ele precisava de mim. Era um Não-convertido. Ele não lhe salientou que precisava de um Não-convertido, quer lhe tenha dado ou não a verdadeira razão?

- Experimente outra coisa qualquer, Channis. Se eu fosse contra o Mulo sabê-lo-ia. - Serenamente, rapidamente, Pritcher sondava o seu espírito. Sentia o mesmo. O homem, evidentemente, estava mentindo.

- Quer dizer que se sente leal para com o Mulo. Talvez. A lealdade não era influenciada. Detectável facilmente demais, disse o Mulo. Mas como se sente mentalmente? Apático? Sentiu-se sempre normal desde que começou esta viagem? Ou sentiu-se algumas vezes estranho, como se não fosse exatamente você mesmo? Que está tentando fazer? Abrir um buraco através do meu corpo, sem puxar o gatilho?

Pritcher recuou o seu desintegrador uns centímetros. - Que está tentando me dizer?

- Digo que foi influenciado, que foi manobrado. Você não viu o Mulo instalar aquele hiper-detector, não viu ninguém fazê-lo. Limitou-se a encontrá-lo e presumiu que fosse o Mulo, e desde então presume que estava nos seguindo. Claro que o transmissor-receptor de pulso que o senhor usa entra em contato com a nave num comprimento de onda para o qual o meu não serve. Pensa que eu não sabia disso? - Falava agora rapidamente, encolerizado. A sua capa de indiferença diluíra-se em ferocidade. - Mas não é o Mulo que vem direto a nós do espaço exterior. Não é o Mulo.

- Quem, se não ele?

- Ora bem, quem supõe que seja? Encontrei o hiper-detector no dia em que partimos. Mas não pensei que fosse o Mulo. Ele não tinha razão para usar meios de tal maneira indiretos. Não vê o contra-senso? Se eu fosse um traidor e ele o soubesse, podia ser convertido tão facilmente como você o foi, e ele obteria de meu espírito o segredo da localização da Segunda Fundação, sem me mandar correr através da Galáxia. Pode você guardar um segredo contra a vontade do Mulo? E se eu não sabia, então não podia conduzi-lo. Portanto, para que enviar-me a mim em qualquer dos casos? É óbvio que o hiper-detector deve ter sido colocado por um agente da Segunda Fundação, e é ele que vem agora direto a nós. E você teria sido enganado se o seu espírito precioso não tivesse sido influenciado? Que espécie de normalidade é a sua que pensa que uma tolice imensa seja a sensatez? Eu.trazer uma nave â Segunda Fundação? Que fariam eles com uma nave? É a você que eles querem, Pritcher. Você sabe mais sobre a União do que qualquer outra pessoa, exceto o Mulo, e não é perigoso para eles, enquanto que ele é. Foi por isso que implantaram a direção da procura no meu espírito. Claro que me era impossível encontrar Tazenda procurando-a ao acaso, através da Lente. Sabia isso, mas sabia que havia a Segunda Fundação nos seguindo e sabia que maquinaram as coisas assim. Por que não fazer o seu jogo? Era uma batalha de subterfúgios. Eles nos queriam a nós e eu queria a sua localização, e que o Espaço leve aquele que não puder iludir o outro. Mas somos nós que estamos perdendo enquanto você estiver me apontando esse desintegrador. E não é idéia sua, evidentemente; é deles. Entregue-me o desintegrador, Pritcher. Sei que lhe parece um erro, porém não é o seu espírito que fala, é a Segunda Fundação dentro de si. Entregue-me o desintegrador, Pritcher, e enfrentaremos juntos o que está para suceder.

Pritcher enfrentava, horrorizado, uma confusão crescente. Casualidade! Podia estar tão enganado? Por que esta eterna dúvida sobre si mesmo? Por que não estava ele seguro? Que fazia Channis soar-lhe tão plausível?

Razoabilidade!

Ou era o seu próprio espírito torturado que lutava contra a invasão alheia? Estaria dividido em dois?

Viu, confusamente, Channis de pé á sua frente; de mão estendida, e certificou-se, de repente, que ia entregar-lhe o desintegrador.

E quando os músculos do seu braço estavam prestes a contrair-se de modo apropriado para fazê-lo, a porta abriu-se, sem pressa, atrás de si e ele voltou-se.

Talvez haja homens na Galáxia que podem ser confundidos com outros, até por homens com todo o seu vagar. Correspondentemente, pode haver estados de espírito em que até indivíduos nada parecidos se confundam entre si. Todavia o Mulo ergue-se acima de qualquer combinação dos dois fatores.

Nem toda a agonia de espírito de Pritcher foi capaz de impedir o fluxo mental instantâneo de refrescante vigor que o inundou.

Fisicamente, o Mulo não podia dominar qualquer situação, e não dominou aquela. Era uma figura bastante ridícula no seu revestimento de roupas que o engordavam mais do que o normal, sem lhe permitir, mesmo assim, atingir dimensões normais. O seu rosto estava encoberto e o queixo habitualmente dominante ocupava o que restava com uma proeminência avermelhada pelo frio.

Não podia, talvez, existir maior incoerência do que ver nele a salvação.

Disse: - Guarde o seu desintegrador, Pritcher.

Depois voltou-se para Channis, que encolhera os ombros e se sentara. - O contexto emocional aqui existente parece bastante confuso e consideravelmente em conflito. O que é isso de alguém, a não ser eu, estar seguindo-os?

Pritcher interveio vivamente: - Foi colocado um hiper-detector na nossa nave por ordem sua, senhor?

O Mulo volveu-lhe um olhar frio. - Com certeza. É muito provável que qualquer organização da Galáxia, a não ser a União dos Mundos, tivesse acesso a ela?

- Ele disse...

- Bem, ele está aqui, General. A citação indireta não é necessária. Estava dizendo alguma coisa, Channis?

- Sim, mas aparentemente errada, Senhor. Era minha opinião que o detector fora posto por alguém a soldo da Segunda Fundação e que fôramos conduzidos aqui por qualquer propósito deles, ao que eu estava preparado para me opor. Tinha, além disso, a impressão de que o general estava mais ou menos controlado por eles.

- Fala como se já não pensasse assim.

- De fato, não. Ou não seria o senhor que entraria por essa porta.

- Ora bem. Então vamos pôr tudo isso em pratos limpos. - O Mulo despiu a camada exterior de roupa, almofadada e aquecida eletricamente. - Importa-se de que eu também me sente? Ora, agora estamos seguros e inteiramente livres de qualquer perigo de intrusão. Nenhum natural deste pedaço de gelo terá vontade de se aproximar deste lugar, asseguro-lhes - e havia uma gravidade inflexível na sua insistência em relação aos seus poderes.

Channis mostrou o seu aborrecimento. - Para que o isolamento? Vai alguém servir-nos chá e trazer umas bailarinas?

- Dificilmente. Qual era essa sua teoria, meu rapaz? Um homem da Segunda Fundação estava seguindo sua pista por meio de um dispositivo que ninguém tem senão eu e... como disse que descobriu este lugar?

- Na aparência, senhor, parecia evidente, de acordo com os fatos conhecidos, que foram incutidas certas noções na minha cabeça...

- Pelos mesmos homens da Segunda Fundação?

- Não podem ser outros, suponho eu.

- Então não lhe ocorreu que, se um homem da Segunda Fundação pudesse forçá-lo, ou atraí-lo, ou induzi-lo a ir â Segunda Fundação para os seus próprios fins, presumo que imaginou ter ele empregado métodos semelhantes aos meus, embora, lembre-se, eu possa implantar apenas emoções e não idéias, não lhe ocorreu que se o pudesse fazer havia pouca necessidade de pôr um hiper-detector para segui-lo?

Channis levantou os olhos e encontrou os grandes olhos do seu senhor com um estremecimento súbito. Pritcher resmungou, e os seus ombros mostraram uma descontração visível.

- Não - disse Channis - isso não me ocorreu.

- Ou que, se eram obrigados a segui-lo, não podiam sentir-se capazes de o dirigir, e que, sem ser dirigido, podia ter infinitamente pouca probabilidade de descobrir o caminho como descobriu? Ocorreu-lhe isso?

- Também não.

- Por que não? O seu nível intelectual terá retrocedido a tal ponto muito-menos-que-provável?

- A única resposta é uma pergunta, senhor. Está aliando-se ao General Pritcher, acusando-me de traidor?

- Tem alguma defesa no caso de ser?

- Apenas a que apresentei ao general. Se eu fosse um traidor e conhecesse a localização da Segunda Fundação, o senhor poderia converter-me e apoderar-se do conhecimento diretamente. Se sentiu a necessidade de seguir a minha pista, então eu não teria conhecimento prévio e não seria um traidor. Respondo ao seu paradoxo com outro paradoxo.

- Então qual é a sua conclusão?

- Que não sou traidor.

- Com o que tenho de concordar, dado que o seu argumento é irrefutável.

- Então posso perguntar-lhe por que é que nos seguiu secretamente?

- Porque há uma terceira explicação para todos os acontecimentos. Tanto você como Pritcher explicaram alguns fatos â sua maneira individual, mas não todos. Eu, se me derem tempo, explicá-los-ei todos. E em relativamente pouco tempo, de modo que há pouco perigo para aborrecimento.

- Sente-se, Pritcher, e dê-me o desintegra dor. Já não há perigo de sermos atacados. Por ninguém daqui e por ninguém de fora. Por ninguém, realmente, até da Segunda Fundação. Graças a você, Channis.

A sala estava iluminada de forma Rossemiana habitual, por meio de fios aquecidos eletricamente. Havia uma única lâmpada suspensa do teto e, ao seu fosco brilho amarelado, os três projetavam suas sombras individuais.

O Mulo disse: - Uma vez que achei necessário seguir a pista de Channis, é evidente que esperava lucrar alguma coisa com isso. Uma vez que ele se dirigiu para a Segunda Fundação a uma velocidade e sentido de direção espantosos, podemos supor, com toda a razão, que era isso que eu esperava que acontecesse. Uma vez que não adquiri o conhecimento diretamente dele, qualquer coisa mo deve ter impedido. Esta é a verdade. Está entendendo Pritcher?

Contudo Pritcher disse, embaraçado: - Não, Senhor.

Então eu explico. Só um tipo de homem pode ao mesmo tempo conhecer a localização da Segunda Fundação e impedir-me de sabê-lo. Channis, receio que você seja, em pessoa, um homem da Segunda Fundação.

Os cotovelos de Channis apoiaram-se nos joelhos quando ele se inclinou para diante e respondeu por entre os lábios hirtos e encolerizados: - Qual é a prova direta? A dedução provou, hoje, estar errada por duas vezes.

- Também há prova direta, Channis. Foi bastante fácil. Disse-lhe que os meus homens tinham sido influenciados. O influenciador tinha de ser, evidentemente, alguém que: a) fosse um Não-convertido e b) estivesse bastante próximo do centro das coisas. O campo era vasto mas não inteiramente ilimitado. Você era demasiado bem-sucedido, Channis. As pessoas gostavam demasiado de você. Progrediu muito. Admirei-me... E então animei-o a encarregar-se desta expedição, e isso não o fez recuar. Observava as suas emoções. Não se sentia incomodado. Você mostrou demasiada confiança, Channis. Nenhum homem de real competência poderia ter evitado uma investida de incerteza diante de uma tarefa como esta. Visto que a sua mente a evitou, ou estava louca ou dominada.

- Foi fácil pôr à prova as opções. Apoderei-me de sua mente num momento de descontração, enchi-o de aflição por um instante e depois retirei-a. Após isso, você encolerizou-se com uma arte tão consumada que eu podia ter jurado que fosse uma reação natural, se não fosse o que se passou primeiro. Pois que, quando forcei as suas emoções, só por um instante, por pequeno instante antes de você poder dominar-se, sua mente resistiu. Era tudo quanto precisava saber. Ninguém poderia ter-me resistido, nem sequer por um pequeno instante, sem um domínio semelhante ao meu.

Channis respondeu em tom baixo e amargurado: - Pois bem, e agora?

- Agora você vai morrer como um homem da Segunda Fundação que é. Absolutamente necessário, como suponho que imagina.

E mais uma vez Channis viu diante de si a ponta do cano de um desintegrador, dirigido desta vez por uma mente, não capaz como a de Pritcher de ser torcida de improviso para lhe servir, mas tão amadurecida como a sua e tão resistente à força como a sua.E tempo disponível para uma correção dos acontecimentos era exíguo.

O que se seguiu depois é difícil de descrever por alguém com o complemento normal dos sentidos e com incapacidade normal para o domínio emocional.

Essencialmente, foi isto o que Channis avaliou no pequeno espaço de tempo necessário para o polegar do Mulo se apoiar no gatilho: a caracterização emocional corrente do Mulo era de uma determinação dura e polida, não obscurecida pela mínima hesitação. Se Channis estivesse interessado, posteriormente, em calcular o tempo decorrido desde a determinação de atirar até â chegada das energias desintegradoras, poderia ter verificado que a margem de que dispunha era apenas de um quinto de segundo.

Era um tempo muito exíguo.

O que o Mulo verificou nesse exíguo espaço de tempo foi que o potencial emocional do cérebro de Channis se enrijou subitamente, sem a sua própria mente sentir qualquer impacto, e que, ao mesmo tempo, uma onda de puro ódio, de ódio impressionante, desabou sobre si, vinda de uma direção inesperada.

Foi esse novo elemento emocional que afastou seu polegar do contato. Nenhuma outra coisa poderia tê-lo conseguido. Quase juntamente com a alteração do seu modo de agir, veio a avaliação completa da nova situação.

Era um quadro que continha muito menos do que o significado dele proveniente exigiria, de um ponto de vista dramático. Lá estava o Mulo, de polegar afastado do desintegrador, fitando Channis intensamente. Lá estava Channis, rígido, não se atrevendo ainda respirar. E lá estava Pritcher, convulsionado em sua cadeira, com cada um dos seus músculos num espasmódico ponto de ruptura, com cada um dos seus tendões estorcendo-se num esforço para saltar para frente, com o rosto finalmente contorcido, abandonado á rigidez resultante da disciplina, numa irreconhecível máscara da morte, de ódio horroroso, e os seus olhos apenas fixos no Mulo.

Apenas uma ou duas palavras foram trocadas entre Channis e o Mulo, apenas uma ou duas palavras e aquela corrente extremamente reveladora de consciência emocional, que continua sendo sempre o verdadeiro intercâmbio de compreensão entre homens como ele.

Por causa das nossas próprias limitações é necessário traduzir em palavras o que se passou depois.

Channis disse, tenso: - Está entre dois fogos, Primeiro-cidadão. Não pode dominar duas mentes ao mesmo tempo, sendo uma delas a minha e, portanto, deve escolher. Pritcher agora está livre da sua conversão. Rompi os vínculos. É o antigo Pritcher, o que tentou assassiná-lo uma vez, o que pensou que o senhor é o inimigo de tudo o que é livre, justo e sagrado, e, além disso, o que sabe que o senhor o forçou a uma adulação sem par durante cinco anos. Estou dominando-o através agora da supressão da sua vontade, contudo se o senhor me matar isso acaba e, num espaço de tempo consideravelmente menor do que lhe é necessário para mover o seu desintegrador ou até a sua vontade, ele matá-lo-á.

O Mulo compreendeu claramente que assim era. Não se mexeu.

Channis continuou: - Se se voltar para colocá-lo sob seu domínio, para matá-lo, para fazer seja o que for, nunca será suficientemente rápido para voltar-se outra vez para me deter.

O Mulo permaneceu imóvel. Apenas um leve suspiro de compreensão.

Portanto - disse Channis - atire o desintegrador ao chão e permanecemos quites, e poderá voltar a contar com Pritcher.

- Cometi um erro - disse o Mulo, finalmente. - Foi um grave erro estar um terceiro presente, quando o enfrentei. Introduziu uma variável a mais. É Um erro que deverá ser corrigido, suponho eu.

Deixou cair descuidadamente o desintegrador e chutou-o para o outro canto da sala.

Simultaneamente, Pritcher caiu num sono profundo.

- Estará normal quando acordar - disse o Mulo, com indiferença.

Toda a troca de idéias, desde o momento em que o polegar do Mulo ameaçava disparar até ao momento em que deixou cair o desintegrador, durara menos de um segundo e meio. Contudo, imediatamente abaixo dos limites da consciência, por um instante imediatamente acima dos limites da detecção, Channis notou um fugitivo clarão emocional na mente do Mulo. E era ainda um clarão de triunfo seguro e confiante.

 

UM HOMEM, O MULO, E OUTRO

Dois homens, aparentemente descontraídos e inteiramente à vontade, em pólos opostos sob o aspecto físico, com todos os nervos, que serviam como detectores emocionais, tensos.

O Mulo, pela primeira vez em longos anos, não tinha confiança suficiente no seu próprio destino. Channis sabia que, embora pudesse proteger-se por ora, seria um esforço muito grande para ele, ao passo que o ataque que o ameaçava não era nada disso para o seu adversário. Numa prova de resistência, Channis sabia que perderia. Contudo seria mortal pensar nisso. Abandonar ao Mulo uma fraqueza emocional seria entregar-lhe uma arma. Há já aquele vislumbre, fosse do que fosse, fosse o que fosse de um vencedor, na mente do Mulo.

Ganhar tempo...

Por que os outros se demoravam? Seria esse o motivo da confiança do Mulo? Que sabia o seu adversário que ele não sabia? A mente que vigiava nada lhe dizia. Se pudesse ler as idéias. E ainda assim...

Channis deteve rudemente o seu rodopio mental. Havia apenas uma coisa a fazer: ganhar tempo...

Então Channis disse: - Uma vez que está decidido, e não foi negado por mim depois do nosso pequeno duelo por Pritcher, que eu sou um homem da Segunda Fundação, gostaria que me dissesse por,que vim para Tazenda.

- Oh, não - e o Mulo riu, com maior confiança - eu não sou Pritcher, não tenho necessidade de lhe dar explicações. Você lá teve o que pensou serem as suas razões. Fossem elas quais fossem, os seus atos convinham-me e, por conseguinte, não tenho mais que averiguar.

- Deve haver, contudo, lacunas como essa na sua concepção da história. Será Tazenda a Segunda Fundação que esperava encontrar? Pritcher falou muito de sua outra tentativa para descobri-la, e do seu instrumento psicológico, Ebling Mis. Tagarelou um pouco algumas vezes sob o meu... hum. ligeiro encorajamento. Lembre-se de Ebling Mis, Primeiro Cidadão.

- Para quê? - Confiança!

Channis sentiu aquela confiança emergir abertamente, como se, com a passagem do tempo, qualquer ansiedade que o Mulo pudesse ter fosse desaparecendo progressivamente.

Disse, reprimindo firmemente a arremetida do desespero: - Então falta-lhe a curiosidade? Pritcher falou-me da enorme surpresa de Mis por qualquer coisa. A sua insistência drástica na celeridade destinar-se-ia a um rápido aviso da Segunda Fundação? Por quê? Por quê? Ebling Mis morreu, a Segunda Fundação não foi avisada, e, contudo, a Segunda Fundação existe.

O Mulo sorriu com verdadeiro prazer, e num ímpeto repentino e surpreendente de crueldade que Channis sentiu com antecedência e que desapareceu subitamente. - Contudo aparentemente a Segunda Fundação foi avisada. Caso contrário, como e por que motivo chegou um tal Bail Channis a Kalgan para manobrar os meus homens e encarregar-se da tarefa bastante ingrata de levar a melhor comigo? O aviso chegou demasiado tarde, eis tudo.

- Então - e Channis permitiu que a piedade transparecesse nele - o senhor desconhece o que seja a Segunda Fundação, ou seja, o que for do significado mais profundo de tudo o que se passou.

Ganhar tempo!

O Mulo sentiu a piedade do outro, e os seus olhos estreitaram-se numa hostilidade instantânea. Esfregou o nariz, no seu gesto familiar dos quatro dedos, e retrucou, mordaz: - Então divirta-se. E daí, quanto à Segunda Fundação?

Channis falou deliberadamente mais por palavras do que por simbologia emocional. E disse: - Pelo que ouvi, foi o mistério que cercava a Segunda Fundação que mais intrigou Mis. Hari Seldon fundou as suas duas unidades de modo tão diferente! A Primeira Fundação era uma ostentação que, em dois séculos, ofuscava metade da Galáxia. E a Segunda era um abismo escuro. Não compreenderá por que foi assim, a não ser que possa sentir mais uma vez a atmosfera intelectual dos tempos do Império moribundo. Era uma época de absolutos, das grandes generalidades finais, pelo menos em pensamento. Era obviamente um sinal de cultura decadente que fossem construídas barragens contra o desenvolvimento ulterior das idéias. Foi sua revolta contra essas barragens que tornou Seldon famoso. Havia nele aquela última fagulha de criação juvenil que iluminou o Império com um brilho de pôr de sol e prefigurou obscuramente o Sol nascente do Segundo Império.

- Muito dramático. E então?

- Então criou as suas Fundações conforme as leis da psicohistória. Mas quem sabia melhor do que ele que até essas leis eram relativas? Ele nunca criou um produto acabado. Os produtos acabados são para as mentalidades decadentes. O seu mecanismo era evolutivo, e a Segunda Fundação era o momento dessa evolução. Nós, Primeiro Cidadão da sua Temporária União dos Mundos, nós somos os guardiães do Plano de Seldon! Só nós!

- Está tentando falar para você mesmo para encorajá-lo - inquiriu o Mulo, com desprezo - ou está tentando impressionar-me? Porque a Segunda Fundação, o Plano de Seldon, o Segundo Império, tudo isso não me impressiona nem um pouco, nem atinge qualquer fonte de compaixão, simpatia, responsabilidade, nem qualquer outra fonte de auxílio emocional que possa tentar obter de mim. E seja como for, pobre louco, fala da Segunda Fundação, no pretérito, pois está destruída.

Channis sentiu a potência emocional que oprimia sua mente aumentar de intensidade, enquanto o Mulo se levantava da cadeira e se aproximava. Lutou furiosamente, mas qualquer coisa avançou de rastos, dentro de si, demolindo e vergando a sua mente para trás, cada vez mais para trás.

Sentiu a parede atrás de si, e o Mulo ficou á sua frente, com os braços descarnados curvados, de mãos nas ancas, e os lábios sorrindo sardonicamente sob aquela montanha que era o seu nariz.

O Mulo disse: - Seu jogo chegou ao fim, Channis, o jogo de todos vocês, de todos os homens do que foi a Segunda Fundação. Do que era! Do que era! Para que estava aqui sentado à espera durante este tempo todo, com sua tagarelice para Pritcher, quando podia tê-lo derrubado e ter-lhe tirado o desintegrador sem o mínimo esforço físico? Estava à minha espera, não é? À minha espera para me receber numa situação que não despertaria minhas suspeitas. O pior para você é que eu não precisava despertar. Conhecia-o. Conhecia-o muito bem, Channis, da Segunda Fundação! Mas o que está esperando agora? Continua a atirar-me palavras como se o simples som da sua voz me imobilizasse na cadeira. E durante todo o tempo em que fala qualquer coisa sua mente está à espera, à espera, sempre à espera. Porém não vem ninguém, nenhum daqueles que espera, nenhum dos seus aliados. Está aqui sozinho, Channis, e sozinho ficará. Sabe por quê? - Porque a Segunda Fundação avaliou-me mal até os últimos resquícios do fim. Muito cedo conheci o plano deles. Pensaram que o seguiria aqui e seria carne para o cozinhado deles. Devia ser realmente um chamariz, um chamariz para um pobre mutante, tolo e fraco, tão obcecado pela conquista de um Império que cairia cegamente numa armadilha evidente. Mas estou prisioneiro deles? Pergunto a mim mesmo se lhes ocorreu que eu, dificilmente, viria aqui sem a minha esquadra, contra a artilharia de cada uma das unidades da qual estão inteira e lastimosamente indefesos. Ter-lhes-ia ocorrido que eu não faria uma pausa para discutir nem aguardaria os acontecimentos? As minhas naves foram lançadas contra Tazenda há doze horas e cumpriram integral e completamente a missão. Tazenda ficou em ruínas, os seus centros de população foram varridos da face do planeta. Não houve resistência. A Segunda Fundação já não existe, Channis, e eu, o animal raro, o feio, o fraco, sou o Senhor absoluto da Galáxia.

Channis não pôde fazer mais nada senão menear debilmente a cabeça. -Não... Não...

- Sim... Sim... - arremedou o Mulo. E se é você o último que está vivo, e pode ser que seja, também não será por muito tempo.

Seguiu-se depois uma pausa, curta e cheia de expectativa, e Channis quase berrou com a dor súbita daquela penetração dilacerante dos mais recônditos tecidos da sua mente.

O Mulo recuou e murmurou: - Ainda não basta. Afinal de contas, não passa no exame. O seu desespero é falso. O seu medo não é acabrunhamento total que está ligado à destruição de um ideal, mas o medo menor da destruição pessoal, como que pingando gota a gota. - E a mão fraca do Mulo agarrou Channis pela garganta num aperto muito rápido, mas que Channis era incapaz de evitar.

- Você é o meu seguro, Channis, é o meu guia e salvaguarda contra qualquer subavaliação que eu possa fazer. - Os olhos do Mulo passaram sobre ele. Insistentes... Inquisidores...

- Terei calculado bem, Channis? Terei levado a melhor sobre os seus homens da Segunda Fundação? Tazenda está destruída, totalmente destruída; então por que é falso o seu desespero? Onde está a realidade? Tenho de ter a realidade e a verdade! Fale, Channis, fale. Não terei então penetrado bastante profundamente? O perigo ainda existe? Fale Channis! Onde foi que cometi um erro?

Channis sentiu as palavras serem-lhe arrancadas da boca. Não saíram voluntariamente. Cerrou os dentes contras elas, mordeu a língua, retesou todos os músculos da sua garganta.

Todavia elas saíram arquejantes, puxadas á força e dilacerando-lhe a garganta, a língua e os dentes na sua trajetória.

- A verdade - guinchou ele - a verdade...

- Sim, a verdade. Que falta fazer?

- Seldon estabeleceu a Segunda Fundação aqui. Aqui, como eu disse. Não disse nenhuma mentira. Os psicólogos chegaram e dominaram a população nativa.

- De Tazenda? - O Mulo mergulhou mais profundamente nos conhecimentos emocionais do outro, puxando por eles brutalmente. - Foi Tazenda que eu destruí. Você sabe o que quero. Passe-me.

- Não de Tazenda. Eu disse que os homens da Segunda Fundação podiam não ser os que estavam aparentemente no poder. Tazenda é a figura de proa... - As palavras eram quase inaudíveis, formando-se por si mesmas contra cada um dos átomos da vontade do homem da Segunda Fundação. -Rossem... Rossem... Rossem... é o mundo...

O Mulo largou-o e Channis caiu, num acesso de dor e de tortura.

- E pensou enganar-me! - disse o Mulo, em voz baixa.

- E foi enganado! - Foi essa a última partícula moribunda de resistência em Channis.

- Porém não durante o tempo suficiente para você e para os seus. Estou em comunicação com a minha Esquadra. E depois de Tazenda pode vir Rissem. Mas primeiro...

Channis sentiu levantar-se contra ele uma escuridão cruciante, e o movimento automático para levar a mão aos olhos ofuscados não pôde desviá-la. Era uma escuridão que sufocava, e enquanto sentia a mente dilacerada e ferida cambaleando para trás, recuando para o negrume eterno, lá estava o quadro do Mulo triunfante, qual fantasma a rir, com o longo nariz carnudo a estremecer de riso.

O som desvaneceu-se. A escuridão abraçou-o amorosamente.

Terminou com o impacto súbito de uma sensação que era como o fulgor, em linha quebrada, de uma faísca de trovoada, e Channis voltou lentamente à realidade, enquanto a vista lhe voltava, dolorosamente, transmitindo-lhe imagens embaçadas através dos olhos arrasados de lágrimas.

Doía-lhe a cabeça de maneira insuportável, e era só com uma punhalada de dor atroz que conseguia levar uma das mãos a ela.

Era evidente que estava vivo. Levemente, como pluma apanhada por uma corrente de ar que já houvesse passado, seus pensamentos aquietaram-se e amontoaram-se para descansar. Sentiu-se embebido de conforto, vindo de fora. Lentamente, torturadamente, voltou o pescoço, e o alívio transformou-se numa angústia cortante.

É que a porta estava aberta e o Primeiro Orador estava de pé, precisamente no limiar. Tentou falar, gritar, avisá-lo, porém a língua permaneceu imóvel, e ficou sabendo que uma parte da mente poderosa do Mulo ainda o mantinha preso e sufocava toda a fala dentro de si.

Voltou o pescoço mais uma vez. O Mulo ainda estava na sala. Estava encolerizado e de olhos faiscantes. Já não ria, todavia seus dentes estavam à mostra num sorriso feroz. Channis sentiu a influência mental do Primeiro Orador descer suavemente sobre sua mente com um toque curativo, e houve depois uma sensação paralisante quando ela entrou em contato com a defesa do Mulo durante um instante de luta, e se retirou.

O Mulo disse, com mordacidade, com uma fúria que era grotesca no seu corpo: - Então temos outro me cumprimentando? - A sua mente ágil estendeu os seus tentáculos para fora da sala... para fora... para fora...

- Você está só - disse ele.

E o Primeiro Orador interrompeu-o com aquiescência: - Estou inteiramente só. É necessário que esteja só, uma vez que fui eu que calculei mal o seu futuro, há cinco anos. Teria havido uma certa satisfação para mim em corrigir essa falha sem auxílio. Infelizmente, não contei com a força do seu Campo de Repulsão Emocional que circundava este lugar. Levou-me muito tempo a atravessá-lo. Felicito-o pela habilidade com que foi construído.

- Não lhe agradeço nada - retrucou com hostilidade - não troque cumprimentos comigo. Veio até aqui para juntar o seu fragmento de cérebro ao daquele pilar partido do seu país, que ali está?

O Primeiro Orador sorriu. - Ora! O homem a quem chama Bail Channis cumpriu bem sua missão, tanto mais que não era nem de longe um rival seu. Posso ver, claramente, que o senhor o maltratou, mas pode ser que possamos deixá-lo inteiramente bom mesmo assim. É um homem valente, senhor. Apresentou-se como voluntário para esta missão, apesar de nós podermos prever, com precisão, uma enorme probabilidade de dano para a sua mente, uma alternativa mais de temer do que a do simples estropiamento.

A mente de Channis palpitava futilmente com o que queria dizer e não podia, com o aviso que queria gritar, e era incapaz de fazê-lo. Podia apenas emitir aquele fluxo contínuo de medo... medo...

O Mulo estava calmo. - Sabe, evidentemente, da destruição de Tazenda.

- Sei. O ataque da sua Esquadra esta previsto.

Com um olhar mau: - Sim, também penso que sim. Mas não prevenido, hem?

- Não, não prevenido. - A simbologia emocional do Primeiro Orador era clara. Era quase um horror de si mesmo, um desgosto de si próprio. - E a culpa é minha, mais minha do que sua. Quem poderia imaginar os seus poderes há cinco anos? Suspeitamos desde o início, desde o momento em que conquistou Kalgan, que o senhor tinha o poder do controle emocional. O que não era demasiado surpreendente, Primeiro Cidadão, como posso explicar-lhe.

- O contato emocional, tal como o senhor e eu possuímos, não é um desenvolvimento tão novo. Está, com efeito, implícito no cérebro humano. A maioria dos homens pode ler suas emoções de maneira primitiva, associando-as formalmente á expressão facial, tom de voz, etc. Um grande número de animais possui essa faculdade num grau mais elevado; utilizam, em grande parte, o sentido do olfato, e as emoções envolvidas são, obviamente, menos complexas.

- A espécie humana é, sem dúvida, capaz de muito mais, porém a faculdade de dirigir o contato emocional teve tendência para atrofiar-se com o desenvolvimento da fala, há um milhão de anos atrás. Foi o grande progresso da nossa Segunda Fundação deste sentido esquecido ter sido restabelecido em pelo menos algumas das suas potencialidades.

- Não nascemos, porém, com o seu uso total. Um milhão de anos de decadência é um obstáculo muito grande, e devemos educar o sentido, exercitá-lo como exercitamos os nossos músculos. E aqui está a diferença principal. O senhor nasceu como ele.

- Até aí pudemos nós calcular. Pudemos também calcular o efeito de um tal sentido sobre uma pessoa em um mundo de homens que não o possuíam, o homem que enxerga em terra de cegos... Calculamos a extensão em que a megalomania se apoderaria de si, e calculamos que estávamos preparados. Mas não estávamos preparados para dois fatores.

- O primeiro era a grande extensão do seu sentido. Nós podemos induzir o contato emocional apenas quanto á vista, razão por que somos mais indefesos contra as armas físicas do que o senhor imagina. A vista desempenha um enorme papel. Não é assim com você. Está definitivamente sabido que o senhor tenha tido homens sob o seu domínio, e, mais do que isso, tenha tido contatos emocionais íntimos com eles, quando estavam fora do seu campo de visão e fora do alcance auditivo. Isso foi descoberto demasiado tarde.

- Em segundo lugar, não conhecíamos seus defeitos físicos, particularmente do que lhe pareceu tão importante que adotou o nome de "O Mulo". Não previmos que era não um simples mutante, mas um mutante estéril, e o aumento da distorção psíquica devida ao seu complexo de inferioridade escapou-nos. Levamos em consideração apenas uma mania de grandezas e não uma paranóia intensamente psicopática.

- Sou eu o responsável por termos falhado, porque era eu o chefe da Segunda Fundação quando o senhor conquistou Kalgan. Quando destruiu a Primeira Fundação, descobrimo-lo, mas demasiado tarde, e por causa dessa falha morreram milhões em Tazenda.

- E vai corrigir as coisas agora? - Os lábios finos do Mulo crisparam-se; sua mente palpitou de ódio. - Que vai fazer? Engordar-me? Restituir-me o vigor masculino? Tirar do meu passado a longa infância num meio estranho? Lamenta os meus sofrimentos? Lamenta minha infelicidade? Não me entristeço com o que fiz na minha necessidade. A Galáxia que se proteja como puder; já que não se mexeu para me proteger quando eu tive necessidade.

- Suas emoções são, logicamente - disse o Primeiro Orador - filhas do passado e não devem ser condenadas, simplesmente modificadas. A destruição de Tazenda era inevitável. A alternativa teria sido uma destruição maior através da Galáxia em geral, num período de séculos. Fizemos o melhor que pudemos com os nossos recursos limitados. Retiramos tantos homens de Tazenda quantos pudemos. Descentralizamos o resto do mundo. Infelizmente nossas decisões estiveram, por força, longe de ser as necessárias. Restaram muitos milhões para morrer. Não o lamenta?

- De modo algum. Lamento-os tanto quanto os cem milhões que devem morrer em Rossem, daqui a não mais de seis horas.

- Em Rossem? - perguntou o Primeiro Orador rapidamente. Voltou-se para Channis que conseguira, à custa de muito esforço, ficar meio sentado, e a sua mente exerceu sua força. Channis sentiu o duelo das mentes que se batiam por ele. Depois houve um curto período durante o qual as cadeias cederam, e as palavras jorraram em desordem de sua boca: - Falhei completamente, senhor. Ele arrancou-me á força dez minutos antes de sua chegada. Não pude resistir-lhe e não tenho justificações a apresentar. Ele sabe que Tazenda não é a Segunda Fundação, sabe que é Rossem.

E as cadeias fecharam-se novamente sobre ele.

O Primeiro Orador franziu o sobrolho. - Estou vendo. Que tenciona fazer?

- Tem realmente alguma dúvida? Acha realmente difícil decifrar a verdade? Durante todo o tempo em que esteve me falando sobre a natureza do contato emocional, todo este tempo em que esteve dirigindo-me palavras tais como mania de grandezas e de perseguições, tenho estado trabalhando Tenho mantido contato com a minha Esquadra e ela já tem suas ordens Dentro de seis horas, a menos que eu, por qualquer razão, dê ordem em contrário, bombardeará todo o Rossem, exceto esta aldeia isolada e uma área de cento e cinqüenta quilômetros quadrados em seu redor. O senhor dispõe de seis horas e, em seis horas, não conseguirá derrubar minha mente nem salvar o resto de Rossem.

O Mulo espalmou as mãos e riu mais uma vez, enquanto o Primeiro Orador parecia encontrar dificuldades em absorver este novo estado de coisas.

Perguntou: - A alternativa?

- Há alguma razão para haver ao menos uma alternativa? Não lucrarei mais com qualquer alternativa. É a mim que me compete defender as vidas dos habitantes de Rossem? Talvez, se permitirem às minhas naves pousar e se submeterem todos os homens da Segunda Fundação ao domínio mental, suficiente para servir os meus próprios fins, possa dar contra-ordem quanto ao bombardeio. Pode valer a pena submeter tantos homens de rara inteligência ao meu domínio. Mas por outro lado seria um esforço considerável, e talvez afinal de contas não valesse a pena, de modo que não estou particularmente interessado de que concorde com isso. Que me diz homem da Segunda Fundação? Que arma tem o senhor contra a minha mente, que é pelo menos tão forte quanto a sua, e contra as minhas naves, que são mais poderosas do que qualquer coisa que tenha sonhado possuir algum dia?

- Que arma tenho eu? - repetiu lentamente o Primeiro Orador. - Ora, nada, exceto um grãozinho, um grão pequenino de conhecimento que o senhor, mesmo agora, ainda não possui.

- Fale depressa - riu o Mulo - fale com imaginação. Por muito hábil que seja, desta o senhor não escapa.

- Pobre mutante! - exclamou o Primeiro Orador. - Não tenho nada de que fugir. Pergunte a si próprio por que razão Bail Channis foi enviado a Kalgan como chamariz, Bail Channis que, embora jovem e valente, é-lhe quase tão inferior no poder mental como este seu oficial adormecido, este Han Pritcher. Por que razão não fui eu, ou outro dos nossos chefes, que seria mais capaz de medir-se com você?

- Talvez - veio a resposta muito confiante - vocês não fossem suficientemente tolos, visto que talvez nenhum de vocês seja capaz de medir-se comigo.

- A verdadeira razão é mais lógica. O senhor sabia que Channis era um homem da Segunda Fundação. A ele faltava-lhe a capacidade para lho esconder. E sabia, também, que lhe era superior, de modo que não tinha receio de fazer a jogada dele e de segui-lo como ele desejava a fim de levar a melhor sobre ele mais tarde. Se eu tivesse ido para Kalgan, o senhor ter-me-ia assassinado, porque eu teria sido um perigo real; ou teria evitado a morte ocultando a minha identidade, mas teria falhado em persuadi-lo a seguir-me no espaço. Foi só a inferioridade conhecida que o fez cair na armadilha. E se o senhor tivesse permanecido em Kalgan, nem toda a força da Segunda Fundação poderia causar-lhe dano, rodeado como estava pelos seus homens, pelas suas máquinas e pelo seu poder mental.

- O meu poder mental ainda o tenho comigo - disse o Mulo - e os meus homens e as minhas máquinas não estão muito longe.

- Na verdade assim é, porém o senhor não está em Kalgan. Está aqui, no Reino de Tazenda, que lhe foi evidentemente apresentado como a Segunda Fundação, muito logicamente apresentado. Tinha de ser assim apresentado, pois o senhor é um homem prudente, Primeiro Cidadão, e seguiria apenas a lógica dos fatos.

- Exato. E foi uma vitória momentânea para o seu lado. Porém eu tinha tempo para sacar a verdade do seu homem, Channis, e ainda tinha a prudência suficiente para considerar que tal verdade podia existir.

- De nossa parte, porém, um lado não inteiramente suficiente e sutil, havíamos considerado que o senhor podia dar mais esse passo e, conseqüentemente, Bail Channis estava preparado para você.

- Isso não estava com certeza, porque lhe despi totalmente o cérebro, como um frango depenado. Ficou tremendo diante de mim, nu e aberto, e quando ele disse que Rossem era a Segunda Fundação, era a verdade real, porque o humilhara de tal maneira, deixara-o tão liso que nem um resíduo de engano poderia ter encontrado refúgio em qualquer fenda microscópica.

- É bem verdade. E tanto melhor para a sua perspicácia. Mas já lhe disse que Bail Channis era um voluntário. Sabe que espécie de voluntário? Antes de deixar a nossa Fundação para ir a Kalgan encontrar-se com você, submeteu-se a uma cirurgia emocional de natureza drástica. Acha que ele era suficiente para enganá-lo? Acha que Bail Channis, mentalmente intacto, teria possibilidade de enganá-lo? Não, o próprio Bail Channis foi enganado, por necessidade e voluntariamente. Bail Channis acredita honestamente, até ao âmago mais recôndito de sua mente, que Rossem é a Segunda Fundação. E durante três anos, até agora, nós, os da Segunda Fundação, erigimos a aparência dela aqui no Reino de Tazenda, preparando-nos e ficando á sua espera. E conseguimo-lo, não conseguimos? O senhor chegou à Tazenda e, para além dela, até Rossem, mas não pode ir mais além.

O Mulo pôs-se de pé: - Atreve-se a dizer-me que Rossem também não é a Segunda Fundação?

Channis, no chão, sentiu as suas cadeias rebentarem de vez sob um jorro de força mental por parte do Primeiro Orador, e endireitou-se. Soltou um grito longo e incrédulo: - Quer dizer que Rossem não é a Segunda Fundação?

As lembranças de sua vida, o conhecimento do seu espírito, tudo girava obscuramente à sua volta, em confusão.

O Primeiro Orador sorriu. - Está vendo, Primeiro Cidadão? Channis está tão confuso como o senhor. Claro que Rossem não é a Segunda Fundação. Então nós seríamos tão doidos ao ponto de guiarmos ao nosso maior, mais poderoso e mais perigoso inimigo, para o nosso próprio mundo? Oh, não!

- Deixe a sua Esquadra bombardear Rossem, Primeiro Cidadão, se pretende levar as coisas assim, deixe-os destruir tudo quanto possam, porque, quando muito, podem matar apenas Channis e eu próprio, e isso não o deixará numa situação privilegiada de nenhum modo.

- E isto porque a Expedição da Segunda Fundação a Rossem, que esteve aqui durante três anos e esteve em atividades temporariamente, como os Magistrados, nesta aldeia, embarcou ontem e está a caminho de Kalgan. Evitarão a sua Esquadra, evidentemente, e chegarão a Kalgan um dia antes do senhor lá chegar, razão por que lhe digo tudo isto. A não ser que eu dê contra-ordens, o senhor, quando regressar, encontrará um Império em revolta, um reino desintegrado, e apenas os homens que estiverem consigo, na sua Esquadra que aqui está, lhe permanecerão leais. Serão evidentemente inúteis em número. Além disso, os homens da Segunda Fundação ter-se-ão apoderado da sua Esquadra Metropolitana e tomarão as precauções para que o senhor não reconverta ninguém. O seu Império chegou ao fim, mutante.

Lentamente, o Mulo inclinou a cabeça, enquanto a cólera e o desespero bloqueavam sua mente. - Sim, é demasiado tarde... demasiado tarde.. Agora estou pressentindo.

- Agora está vendo - concordou o Primeiro Orador - e já não está.

No desespero daquele momento, quando a mente do Mulo se expôs, aberta, o Primeiro Orador, preparado para esse momento e antecipadamente seguro de sua natureza, entrou nela celeremente. Foi necessária apenas uma 'fração de segundo bastante insignificante para consumar a transformação.

O Mulo ergueu os olhos e disse: - Então volto para Kalgan?

- Decerto. Como se sente?

- Muitíssimo bem. - A sua testa enrugou-se. - Quem é o senhor?

- Isso tem alguma importância?

- Absolutamente não. - Abandonou o assunto e tocou no ombro de Pritcher. - Acorde, Pritcher, vamos para casa.

Apenas duas horas mais tarde Bail Channis se sentiu suficientemente forte para andar sozinho. Perguntou: - Nunca se recordará?

- Nunca. Vai conservar os seus poderes mentais e o seu Império, mas suas motivações são agora inteiramente diferentes. A noção de uma Segunda Fundação é para ele um espaço vazio, e é um homem de paz. Será também um homem muito mais feliz daqui para a frente, durante os poucos anos de vida que o seu físico mal ajustado lhe permitir. E então, depois de ele morrer, o Plano de Seldon continuará, seja como for.

- E é verdade - inquiriu Channis - é verdade que Rossem não é a Segunda Fundação? Digo-lhe que poderia jurar que sei que é. Não estou louco.

- Não está louco, Channis, está simplesmente, como eu disse, transformado. Rossem não é a Segunda Fundação. Venha! Nós também vamos regressar para casa.

 

ÚLTIMO INTERVALO

Bail Channis estava sentado no pequeno quarto de azulejos brancos e conservava sua mente em repouso. Estava contente por viver no presente.  Via as paredes, a janela e a relva lá fora. Não tinham nomes. Eram apenas coisas. Havia uma cama e uma cadeira, e livros que se desfolhavam por si, na tela aos pés da cama. Havia a serviçal que lhe trazia a comida.

À princípio fizera esforços para juntar os bocados de coisas que ouvira. Tal como aqueles dois homens falando um com o outro.

Um deles dissera: - Agora afemia total. Está purificado, e suponho que sem danos. Será apenas necessário restituir-lhe o registro de sua caracterização original de ondas cerebrais.

Lembrava-se dos sons, e pareciam-lhe por qualquer razão sons peculiares, como se significassem alguma coisa. Mas para que se incomodava? Era melhor observar as lindas cores na tela ao pés da coisa em que estava deitado.

Depois entrou alguém que lhe aplicou uma coisa, e ele dormiu durante muito tempo.

E quando aquilo passou, a cama tornou-se de súbito uma cama, soube que estava num hospital e as palavras de que se recordava faziam sentido.

Sentou-se. - Que aconteceu?

O Primeiro Orador estava a seu lado. - Está na Segunda Fundação e voltou a ter a sua mente, a sua mente original.

- Sim! Sim! - Channis alcançou a realidade de ser ele mesmo, e havia nisso um triunfo e uma alegria incríveis.

- E agora diga-me - disse o Primeiro Orador - agora sabe onde está a Segunda Fundação?

E a verdade chegou como uma onda enorme, e Channis não respondeu. Como Ebling Mis antes dele, estava consciente de uma surpresa única, enorme, paralisante.

Até que, por fim, meneou a cabeça e disse: - Pelas estrelas da Galáxia! Agora sei.

 

INVESTIGAÇÃO EFETUADA PELA FUNDAÇÃO

ARCÁDIA

DARELL, ARKADY, romancista, nascida em 11/5/362 E.F. e falecida em 1/7/443 E.F. Embora escritora de ficção, Arkady Darell é mais conhecida pela biografia de sua avó, Bayta Darell. Baseada em informações de primeira mão, serviu durante séculos como fonte principal de informação em relação ao Mulo e aos seus tempos... Tal como "Memórias Devassadas", a sua novela "O Tempo, o Tempo, e para além do Tempo" é um reflexo emocionante da brilhante sociedade Kalganiana dos princípios do Interregno, baseada, ao que se diz, numa visita a Kalgan na sua juventude...

Enciclopédia Galáctica

 

Arcádia Darell declamou com firmeza ao microfone do seu transcritor: "O Futuro do Plano de Seldon, por A. Darell", e depois pensou obscuramente que um dia, quando fosse uma grande escritora, escreveria todas as suas obras-primas sob o pseudônimo de Arkady, apenas Arkady, sem nenhum sobrenome.

"A. Darell" era precisamente a espécie de coisa que devia colocar em todos os seus temas de Composição e Retórica, tão desenxabida. Todas as outras crianças deviam fazê-lo também, â exceção de Olynthus Dam, já que a classe se rira muito quando ele o fizera pela primeira vez. E "Arcádia" era um nome de moça pequena, que lhe tinham posto porque a bisavó também se chamava assim. Os seus pais não tinham mesmo nenhuma imaginação. Agora que tinha catorze anos e dois dias, era de pensar que reconhecessem o simples fato da idade adulta e lhe chamassem Arkady. Os seus lábios apertaram-se ao pensar no pai, desviando os olhos do visor de livros, durante o tempo apenas suficiente para dizer: - Mas se você continua fingindo que tem dezenove anos, que fará quando tiver vinte e cinco anos e todos os rapazes pensarem que tem trinta?

De onde estava estendida, atravessada na cadeira de braços especial, vislumbrava o espelho do toucador. Seu pé estorvava um pouco a vista, com a chinelo pendurado no dedo grande; portanto calçou-o e sentou-se com o pescoço bem ereto, duma maneira pouco natural que tinha a certeza, no entanto, de a aumentar em altura nada menos de cinco centímetros, dando-lhe um aspecto de realeza esbelta.

Durante um momento, considerou pensativamente seu rosto - demasiado gordo. Abriu os maxilares um centímetro, com os lábios fechados, e observou os traços resultantes da magreza forçada, sob todos os ângulos. Lambeu os lábios com um ligeiro roçar da língua e fê-los sobressair um pouco numa maciez úmida. Depois baixou as pupilas de um modo eloqüentemente aborrecido. Ora bolas! Ainda se as suas faces não fossem daquele cor-de-rosa idiota!

Tentou puxar os cantos dos olhos com os dedos, esticando um pouco as pálpebras para cima, para obter aquela languidez misteriosa e exótica das mulheres dos sistemas estelares interiores, porém suas mãos interpunham-se entre ela e o espelho, e não podia visualizar bem o rosto.

Depois levantou o queixo, admirou-se meio de perfil e, com os olhos um pouco enviesados por estar olhando pelos cantos e os músculos do pescoço a doerem-lhe levemente, disse, numa voz, uma oitava mais baixa do que o seu timbre normal: - Se o pai pensa realmente que me faz qualquer partícula de diferença, o que podem pensar alguns rapazes parvos está mesmo...

Lembrou-se, então, de que tinha ainda o microfone aberto na mão, e, com um "ora bolas!", fechou-o.

O papel ligeiramente cor-de-violeta com a margem cor-de-pêssego do lado esquerdo, apresentava escrito o seguinte:

O FUTURO DO PLANO DE SELDON

"Se o pai pensa realmente que me faz qualquer partícula de diferença o que podem pensar alguns rapazes parvos, está mesmo...

Ora bolas!"

Tirou a folha da máquina com aborrecimento, e outra folha saltou para o lugar daquela.

Sua expressão amenizou-se, no entanto, passado aquele vexame, e sua boca pequena franziu-se num sorriso de satisfação íntima. Apreciou o papel, fungando levemente. Absolutamente certo. Precisamente aquele toque apropriado de elegância e encanto. E a caligrafia era mesmo a última palavra.

A máquina fora-lhe dada havia dois dias, no seu primeiro aniversário de adulta. Dissera ela: - Pai, todos, todos mesmo os da minha classe que têm a mais ligeira pretensão de serem alguém, têm uma. Ninguém, senão alguns borra-botas usaria máquinas manuais...

O vendedor dissera: - Não há modelo ao mesmo tempo tão compacto e tão adaptável. Ortografa e faz a pontuação de acordo com o sentido da frase. É, evidentemente, de grande valia para a educação, dado que encoraja quem a utiliza a empregar uma enunciação cuidadosa e a respirar de modo a ter a certeza de soletrar corretamente, para não falar em que exige uma maneira adequada e elegante de falar para se conseguir a pontuação correta.

Ainda assim, o seu pai tentara ficar com uma equipada com caracteres tipográficos, como se ela fosse uma velha professora, antipática e solteirona.

Mas quando foi entregue, era o modelo que ela desejava, embora obtida com um pouco mais de choraminguice e de resmungos do que conviria à idade de catorze anos, e a transcrição era fornecida numa escrita encantadora e inteiramente feminina, com as mais belas e graciosas maiúsculas que alguém já vira.

Até a expressão "Ora bolas!" exalava encanto, fosse como fosse, quando escrita pelo transcritor.

Tinha, porém, do mesmo modo, que pôr aquilo em ordem. Sentou-se, portanto, ereta na cadeira, pôs o primeiro rascunho diante de si com um ar ocupado, e começou outra vez, nítida e claramente, com o abdome encolhido, o peito levantado e a respiração cuidadosamente controlada. Entoou, com um fervor dramático:

- O Futuro do Plano de Seldon.

A história da Fundação é, tenho a certeza, bem conhecida de todos nós, que tivemos a sorte de sermos educados pelo sistema escolar do nosso planeta, eficiente e provido de bons professores.

(Pronto! Aquilo poria as coisas no bom caminho com Miss Erlking, aquela velha bruxa abjeta).

Essa história é, em grande parte, a história do Grande Plano de Hari Seldon. As duas são uma só. Mas a pergunta que está hoje no espírito da maioria das pessoas é a de saber se este Plano continuará, em toda a sua grande sabedoria, ou se será vergonhosamente destruído, ou ainda, se já não o foi, talvez, assim destruído.

Para compreender isto, parece melhor recapitularmos rapidamente alguns dos tópicos principais do Plano, tal como até aqui foi revelado à humanidade.

(Esta parte era fácil porque caíra História Moderna no semestre anterior).

Há quase quatro séculos, nos tempos em que o Império Galáctico estava decaindo para a estagnação que precedeu a morte final, um homem, o grande Hari Seldon, previu a aproximação do fim. Por meio da ciência da psicohistória, cuja intrínseca matemática foi esquecida já há muito tempo,

(Fez uma pausa provocada por uma pequena dúvida. Estava certa de que "intrínseca" se pronunciava como se o s fosse c cedilha, mas a ortografia não parecia estar bem. Ora, a máquina dificilmente se enganaria...)

ele e os homens que com ele trabalhavam eram capazes de predizer o curso das grandes correntes sociais e econômicas que então predominavam na Galáxia. Era-lhe possível considerar como certo que, entregue a si mesmo, o Império se dissolveria e que, depois disso, haveria pelo menos trinta mil anos de caos, precedendo o estabelecimento de um novo Império.

Era demasiado tarde para prevenir a grande Queda, porém era ainda possível, pelo menos, observar o período intermediário do caos. O Plano foi desenvolvido, por conseguinte, de maneira que apenas um simples milênio separaria o Segundo Império do Primeiro. Estamos completando o quarto século desse milênio, e muitas gerações de homens viveram e morreram enquanto o Plano de Seldon continuou a sua obra inexorável.

Hari Seldon estabeleceu duas Fundações nos extremos opostos da Galáxia, pela forma e sob as circunstâncias que se originaram da melhor solução matemática para o seu problema psicohistórico. Numa delas, a nossa Fundação, estabelecida em Terminus, foi concentrada na ciência física do Império e, através da posse dessa ciência, a Fundação foi capaz de resistir aos ataques dos reinos bárbaros que se separaram e se tornaram independentes nos confins do Império.

A Fundação, na verdade, foi capaz de conquistar por sua vez estes reinos efêmeros por meio da chefia de uma série de homens experientes e heróicos como Salvor Hardin e Hober Mallow, que foram capazes de interpretar o Plano inteligentemente e de guiar a nossa terra através das suas

(Aqui também escrevera "intrínseca", mas decidiu não se arriscar uma segunda vez).

complicações. Todos os nossos planetas veneram ainda as suas memórias, apesar de séculos terem ficado para trás.

Eventualmente, a Fundação estabeleceu um sistema comercial que dominou uma grande parte dos setores Anacreôntico e Siweniano da Galáxia, e derrotou até os restos do antigo Império sob o comando de seu último grande general, Bel Riose. Cada uma das crises que Seldon previra surgira no seu tempo propício e fora resolvida, e a Fundação dera, com cada uma das soluções, um passo de gigante para o Segundo Império e para a paz.

E então,

(A respiração faltou-lhe neste ponto, e ela sibilou as palavras entredentes. Mas o Transmissor simplesmente as escreveu, calma e graciosamente).

tendo desaparecido os últimos vestígios do Primeiro Império, e apenas com ineficazes senhores da guerra a dominarem os fragmentos e os despojos do colosso caído, (Tirara aquela frase de um filme que vira pela televisão na semana anterior, mas a velha Miss Erlking nunca ouvia nada senão sinfonias e preleções, de modo que nunca saberia), apareceu o Mulo.

Este homem estranho não estava previsto no Plano. Era um mutante, cujo nascimento não poderia ter sido predito. Tinha o poder estranho e misterioso de controlar e manipular as emoções humanas, e desta forma, podia sujeitar todos os homens á sua vontade. Com uma rapidez de cortar a respiração, tornou-se um conquistador e construtor de um Império, até que conseguiu, inclusive, derrotar a própria Fundação.

Nunca obteve, porém, o domínio universal, uma vez que foi detido na sua primeira investida esmagadora, pela sabedoria e atrevimento de uma grande mulher

(Ali estava de novo aquele velho problema. O pai insistiria em que ela nunca deveria salientar o fato de ser neta de Bayta Darell. Todo mundo o sabia, e Bayta era talvez a mais proeminente de todas as mulheres que haviam existido, e detivera o Mulo sem auxílio de ninguém).

de forma que a verdadeira história é conhecida na sua totalidade apenas por alguns poucos.

(Pronto! Se tivesse que ler aquilo na aula, aquela parte final poderia ser dita em voz abafada, e haveria, com certeza, alguém que perguntasse qual era a verdadeira história. E então, pois bem, e então não poderia deixar de dizer a verdade se lhe perguntassem; poderia? No seu espírito estava já, sem palavras, lançando-se numa explicação ofendida e eloqüente a um pai severo e perguntador).

Passados cinco anos de domínio restrito, verificou-se outra modificação, cujas razões não são conhecidas, e o Mulo abandonou os seus planos de conquista subseqüente. Os seus últimos cinco anos foram os de um déspota iluminado.

Dizem alguns que a transformação do Mulo foi efetuada pela intervenção da Segunda Fundação. Contudo, ninguém jamais descobriu a localização exata desta outra Fundação, nem conhece a sua função exata, de modo que esta teoria se mantém não-provada.

Toda uma geração se passou desde a morte do Mulo. Qual será então o futuro, agora que ele apareceu e desapareceu? Ele interrompeu o Plano de Seldon e parecia tê-lo reduzido a frangalhos, embora, logo que morreu, a Fundação se tenha levantado de novo, como uma "Nova" das cinzas de uma estrela moribunda. (Isto era de sua autoria).

Mais uma vez o planeta Terminus constitui o centro de uma federação comercial quase tão grande e tão rica como antes da conquista, e até mais pacífica e democrática.

Estará isto previsto? Estará o grande sonho de Seldon ainda vivo e formar-se-á ainda um Segundo Império Galáctico daqui a seiscentos anos? Eu, por mim, assim o creio, porque

(Esta era a parte mais importante. Miss Erlking continuava sempre fazendo aquelas garatujas a lápis vermelho, que diziam: "Mas isto é apenas descritivo. Quais são as suas reações pessoais? Pense! Exprima-se por si mesma! Penetre na própria alma!" Penetre na própria alma... Muito sabia ela acerca de almas, com seu semblante cor de limão que nunca sorrira na vida...)

nunca, em tempo algum, a situação política foi tão favorável. O antigo Império está completamente morto e o período do domínio do Mulo pôs fim á época dos senhores da guerra que o precederam. A maior parte das extensões vizinhas da Galáxia está civilizada e pacífica.

Além disso, a situação interna da Fundação está melhor do que nunca. Os tempos despóticos das autoridades locais hereditárias anteriormente á conquista cederam lugar às eleições democráticas dos primeiros tempos. Já não há mundos dissidentes de comerciantes independentes; já não há injustiças e desajustamentos que acompanharam a acumulação de grandes fortunas nas mãos de poucos.

Não há razão, conseqüentemente, para temer o fracasso, a não ser que seja verdade que a Segunda Fundação represente por si mesma um perigo. Os que assim pensam não têm provas para confirmar sua convicção, mas apenas vagos receios e superstições. Penso que nossa confiança em nós mesmos, em nossa Nação e no grande Plano de Hari Seldon deveriam afastar dos nossos corações e dos nossos espíritos todas as incertezas e, (Hum! Isto era banal, mas esperava-se qualquer coisa assim para encerrar).

portanto, digo...

Foi aqui que parou "O Futuro do Plano de Seldon", pois houve o ruído de leves pancadas na janela e, quando Arcádia se levantou sobre um dos braços da cadeira, deu de cara com um rosto sorridente atrás do vidro, cuja simetria de traços era interessantemente acentuada pela curta linha vertical de um dedo diante dos lábios.

Com a pequena pausa necessária para assumir uma atitude de perplexidade, Arcádia desmontou do braço da cadeira, dirigiu-se ao diva que enfrentava a grande janela onde surgira a aparição, e, ajoelhando-se sobre ele, olhou para fora pensativamente.

O sorriso nos lábios do homem sumiu-se rapidamente. Enquanto os dedos de uma das suas mãos embranqueciam com a força de se agarrar ao peitoril, fez com a outra um sinal. Arcádia obedeceu calmamente e baixou a alavanca que fazia encaixar suavemente o terço inferior da janela na sua fenda da parede, permitindo ao ar quente da Primavera misturar-se com o condicionado do interior.

- Não pode entrar - disse ela, com afetação. - As janelas estão todas protegidas e dispostas de modo a abrirem-se apenas para as pessoas que moram aqui. Se entrar, desencadear-se-á toda uma série de alarmas. - Fez uma pausa, e depois acrescentou: - Parece bastante idiota equilibrando-se nessa saliência por baixo da janela. Se não for cuidadoso, cai e quebra o pescoço e uma boa quantidade de lindas flores.

- Nesse caso - disse o homem á janela, que estivera pensando aquilo mesmo, com um arranjo ligeiramente diferente dos adjetivos - quer fazer o favor de desligar a proteção e deixar-me entrar?

- Não pense nisso - disse Arcádia. - Está pensando talvez numa casa diferente, porque eu não sou o tipo de moça que deixa entrar homens estranhos nos seus... no seu quarto a estas horas da noite. - Os seus olhos, ao dizê-lo, mostravam-se pesadamente carregados de cólera, ou algo semelhante.

Todos os traços de humor haviam desaparecido do rosto do jovem estranho. Murmurou: - Esta é a residência do Dr. Darell, não é?

- Por que razão haverei de lhe responder?

- Oh, Galáxia!... Adeus!...

- Se tentar, meu rapaz, darei o alarma pessoalmente.

(Isto tinha a intenção de um golpe refinado e sofismado de ironia, uma vez que, aos olhos esclarecidos de Arcádia, o intruso era evidentemente um adulto de trinta anos, pelo menos, bastante mais velho do que ela, de fato).

Houve uma longa pausa. Depois ele disse, com energia: - Ora bem. Olhe lá, garota, se não quer que eu fique e não quer que me vá embora, que deseja que eu faça?

- Pode entrar. O Dr. Darell mora realmente aqui. Vou desligar a proteção.

Cautelosamente, após um olhar pesquisador, o jovem estendeu a mão através da janela e içou-se, entrando. Sacudiu a poeira dos joelhos com umas palmadas enérgicas, e levantou o rosto corado para ela.

- Tem a certeza absoluta de que o seu caráter e reputação nada sofrerão quando me encontrarem aqui, tem?

- Não tanto como a sua sofreria porque, logo que ouvir passos lá fora, gritarei, berrarei e direi que você forçou a entrada aqui.

- Ah, sim? - replicou ele, com uma cortesia exagerada. - E como tenciona explicar a abertura da proteção?

- Psiu! Isso seria fácil. Em primeiro lugar, não havia nenhuma proteção...

Os olhos do homem esbugalharam-se de desapontamento. - Era tudo fingido? Que idade tem, garota?

- Considero, essa pergunta muito impertinente, meu rapaz. Não estou acostumada a ser tratada por "garota".

- Não me admiro. Talvez seja a avó do Mulo disfarçada. Importa-se de que eu saia agora, antes de arrumar algum linchamento, comigo no papel principal?

- Faria melhor em não sair, porque o meu pai o espera.

O olhar do homem tornou-se cauteloso. Um dos seus sobrolhos levantou-se, quando disse: - Hein, esteve alguém com seu pai?

- Não.

- Alguém entrou em contato com ele ultimamente?

- Apenas gente metida no comércio, e você.

- Aconteceu algo extraordinário?

- Só você.

- Esqueça-se de mim, por favor. Não, não se esqueça de mim. Diga-me, como soube que seu pai me esperava?

- Oh, isso foi fácil. Na semana passada recebeu uma Cápsula Pessoal, daquelas que só podem ser abertas pela própria pessoa, com uma mensagem que se evapora por si. Sabe o que é. Atirou o invólucro da cápsula para o Desintegrador de Desperdícios, e ontem deu à Poli, que é a nossa criada, um mês de férias para ela poder visitar a irmã na cidade de Terminus, e esta tarde fez a cama do quarto dos hóspedes. Portanto, fiquei sabendo que ele esperava alguém e que eu não devia saber nada do assunto. Normalmente, conta-me tudo.

- Ah, conta? Surpreende-me que o faça. Eu pensava que você sabia tudo antes de ele lhe contar.

- Habitualmente sei. - Depois riu-se. Estava começando a sentir-se muito à vontade. O visitante era mais velho, mas tinha um ar muito distinto, com o cabelo castanho anelado e olhos azuis. Talvez pudesse voltar a encontrar alguém semelhante, alguma vez, quando fosse mais velha.

- E como foi precisamente - perguntou ele - que soube que era a mim que ele esperava?

- Bem, quem poderia ser mais? Ele esperava alguém tão secretamente, compreende-se o que quero dizer, e então você aparece por aqui, tentando esgueirar-se pelas janelas, ao invés de vir pela porta da frente, como faria se tivesse algum juízo. - Lembrou-se de um dito favorito e usou-o imediatamente: - Os homens são estúpidos!

- Está muito segura de si, não é verdade, garota? Isto é, menina. Podia estar enganada, sabe? Que sucederia se eu lhe dissesse que tudo isto é um mistério para mim e que, tanto quanto sei, o seu pai aguardava qualquer outra pessoa e não a mim?

- Oh, não acredito nisso! Não lhe disse que entrasse senão depois de o ver deixar cair a sua pasta.

- A minha que?

- A sua pasta, rapaz. Não sou cega. Não a deixou cair por acidente porque olhou para baixo, primeiro, de modo a ficar seguro de que ela cairia bem. Então deve ter imaginado que cairia mesmo atrás das sebes e não seria vista; portanto deixou-a cair e não olhou depois para baixo. Ora, desde que pulou a janela ao invés de vir pela porta da frente, isso deve significar que tinha receio de se aventurar na casa antes de investigar o local. E depois de ter tido algumas dificuldades comigo, tomou cuidado com a sua pasta antes de tomar cuidado consigo, o que significa que considera, seja o que esteja na sua pasta, mais valioso do que a sua própria segurança, e isso significa que, enquanto estiver aqui dentro e a pasta estiver lá fora, e eu sei que está lá fora, você está desamparado com toda a probabilidade.

Fez uma pausa para uma inspiração necessária, e o homem disse, corajosamente: - A não ser que eu pense em agredi-la até deixá-la semimorta, e em sair daqui com a pasta.

- A não ser, rapaz, que eu tenha um bastão de basebol debaixo da minha cama, que posso alcançar em dois segundos de onde estou sentada. E sou muito forte para uma moça!

Beco sem saída. Finalmente, com uma cortesia forçada, o "rapaz" disse: - E melhor apresentar-me, já que nos tornamos camaradas. O meu nome é Pelleas Anthor. E o seu?

- Arca... Arkady Darell. Prazer em conhecê-lo.

- E agora, Arkady, quer ser uma boa menina e chamar seu pai?

Arcádia empertigou-se.

- Não sou mocinha. Penso que é muito rude, especialmente quando está pedindo um favor.

Pelleas Anthor suspirou. - Muito bem. Quer ser uma boa, amável e querida velhinha, cheinha de alfazema, e chamar seu pai?

- Também não era isso que eu queria dizer porém vou chamá-lo. Contudo nem assim tirarei os meus olhos de você, rapaz - e desatou a bater com os pés no chão.

Ouviu-se o som de passos apressados no vestíbulo, e a porta abriu-se de supetão.

- Arcádia. - Houve uma tênue explosão de ar expirado, e o Dr. Darell perguntou: - Quem é o senhor?

Pelleas endireitou-se, mostrando-se totalmente calmo. - Dr. Toran Darell? Sou Pelleas Anthor. Creio que recebeu comunicação a meu respeito. Pelo menos, sua filha diz que recebeu.

- A minha filha diz que recebi? - Dirigiu-lhe um olhar de esguelha, de sobrolhos franzidos, que dirigiu inofensivo nos olhos bem abertos e na impenetrável teia de inocência com que ela enfrentou a acusação.

O Dr. Darell disse, finalmente: - Estive à sua espera. Quer fazer o favor de descer comigo? - Contudo deteve-se quando seu olhar captou uma sombra de movimento, que Arcádia percebeu simultaneamente.

Correu para o Transcritor, o que era inteiramente inútil, visto que o pai estava ao pé dele. O pai disse, docemente: - Você o deixou trabalhar durante este tempo todo, Arcádia.

- Pai - gaguejou ela, com autêntica angústia - é muito pouco cavalheiresco ler a correspondência privada de outra pessoa, especialmente quando é correspondência falada.

- Ah, sim - disse o pai - porém isto é "correspondência falada" com um homem, um estranho, no seu quarto! Como pai, Arcádia, devo protegê-la contra o mal.

- Ora bolas! Não era nada disso.

Pelleas sorriu. - Oh, isso é que era, Dr. Darell. A menina ia acusar-me de toda espécie de coisas, e devo insistir em que leia, mas que não seja para limpar o meu nome.

- Oh!... - Arcádia reteve as lágrimas com esforço. O seu próprio pai nem sequer confiava nela. E aquele maldito Transcritor... Se aquele idiota maluco não tivesse aparecido fazendo fosquinhas na janela, fazendo-a esquecer-se de desligá-lo. E agora o pai ia fazer longos e amáveis discursos sobre o que as moças não devem fazer. Não havia, ao que parecia, coisa nenhuma que elas devessem fazer exceto, talvez, angustiar-se e morrer.

- Arcádia - disse o pai, suavemente - não me apraz que uma menina...

Bem o sabia. Bem o sabia.

-...seja tão impertinente para com homens mais idosos do que ela.

- Ora, o que é que ele esperava vindo espreitar pela minha janela? Uma senhora tem direito a não ser molestada... Agora terei de fazer outra vez toda a minha maldita composição.

- Não lhe compete avaliar sua correção aparecendo à sua janela. Devia simplesmente não o ter deixado entrar. Devia ter-me chamado imediatamente, em especial se pensava que eu o esperava.

Ela disse, impertinente: - Era exatamente a mesma coisa se o não tivesse visto... a esse estúpido. Vai dar cabo de tudo se continuar a dirigir-se às janelas ao invés de se dirigir às portas.

- Arcádia, ninguém pediu sua opinião quanto a assuntos de que nada sabe.

- Ah, isso é que também sei. É a Segunda Fundação, é o que é.

Houve um silêncio. Até Arcádia se sentiu um pouco nervosa, encolhendo o abdome.

O Dr. Darell perguntou, suavemente: - Onde foi que ouviu isto?

- Em parte alguma, mas que mais há que seja tão secreto? E não tem que se preocupar que eu diga a alguém.

- Sr. Anthor - disse o Dr. Darell - tenho de lhe pedir desculpa por tudo isto.

- Oh, está muito bem - foi a resposta, num tom bastante surdo. - Não é culpa sua se ela está vendida às forças da escuridão. Mas importa-se de que lhe faça uma pergunta antes de irmos? Menina Arcádia...

- Que deseja?

- Por que pensa que é estúpido entrar pelas janelas ao invés de entrar pelas portas?

- Por que se apregoa tolamente o que está tentando esconder. Se eu tivesse um segredo, não poria adesivo em minha boca para deixar toda a gente sabendo que tinha um segredo. Falaria tanto como habitualmente, mas sobre qualquer outra coisa. Nunca leu nenhum dos ditos de Salvor Hardin? Foi o nosso primeiro Prefeito, sabe?

- Sim, sei.

- Pois bem, ele costumava dizer que só uma mentira que não tivesse vergonha de si mesma teria possibilidade de êxito. Também disse que nada devia ser verdadeiro, porém tudo devia soar verdadeiro. Pois bem, quando você entra por uma janela, é uma mentira que tem vergonha de si mesmo e não soa como verdade.

- Então que teria feito?

- Se fosse eu, e quisesse avistar-me com meu pai para cuidar de um assunto altamente secreto, travaria conhecimento com ele abertamente e avistar-me-ia com ele para tratar de toda a espécie de coisas estritamente legítimas. E depois, quando todo mundo soubesse tudo a seu respeito e o relacionasse com o meu pai como um assunto de rotina, poderia ser tão altamente secreto que jamais alguém pensaria em supô-lo.

Anthor olhou para a moça de modo esquisito, e depois para o Dr. Darell. E disse: - Vamos lá. Preciso apanhar uma pasta que está no jardim. Ah, um momento! Só uma última pergunta. Arcádia, tem realmente um bastão de basebol debaixo da cama, tem?

- Não, não tenho.

- Ah, pensei que tivesse.

O Dr. Darell parou à porta. - Arcádia - disse ele - quando tornar a escrever a sua composição sobre o Plano de Seldon, não seja misteriosa sobre sua avó. Não há necessidade nenhuma de mencionar essa parte.

Ele e Pelleas desceram as escadas em silêncio. Depois, o visitante perguntou, numa voz forçada: - Importa-se de me dizer, senhor, que idade tem ela?

- Catorze anos, feitos anteontem.

- Catorze anos? Grande Galáxia!... E diga-me uma coisa. Já disse alguma vez que espera casar um dia?

- Não, não disse, pelo menos a mim.

- Bem, se ela algum dia o fizer, dê-lhe um tiro, ao que estiver para casar com ela, é claro. - Fitou sinceramente nos olhos o homem mais idoso. - Estou falando sério. A vida não poderia trazer-lhe maior horror do que viver com ela, como há de ser quando tiver vinte anos. Não tenho a intenção de ofendê-lo, evidentemente.

- Não me ofende. Julgo saber o que quer dizer.

Lá em cima, o objeto da terna análise deles enfrentou o Transcritor com um enfado revoltado e disse, estupidamente: - Ofuturodoplanodeseldon. E o Transcritor, com um aprumo infinito, traduziu aquilo em elegantes e complicadas maiúsculas para:

"O FUTURO DO PLANO DE SELDON"

 

O PLANO DE SELDON

MATEMÁTICA. A síntese do cálculo de n-variáveis e de n-geometria dimensional é a base do que Seldon chamou uma vez "a minha pequena álgebra da humanidade..."

Enciclopédia Galáctica

 

Consideremos uma sala!

A localização da sala não está em questão no momento. É apenas suficiente dizer que nessa sala, mais do que em qualquer outro lugar, existia a Segunda Fundação.

Era uma sala que, através dos séculos, fora a morada da ciência pura. Não tinha, contudo, nenhuma das engenhocas a que a ciência, através de milênios de associação, acabou por ser considerada equivalente. Era, ao invés disso, uma ciência que lidava com conceitos matemáticos apenas, de modo semelhante à especulação das antigas, muito antigas raças, nos tempos primitivos, pré-históricos, antes da tecnologia vir a nascer, antes do Homem se haver espalhado para além de um só mundo, agora desconhecido.

Por um lado, havia naquela sala, protegida por uma ciência mental até então inatacável pelo poder físico combinado do resto da Galáxia, o Primeiro Radiante, que mantinha na sua vitalidade o Plano de Seldon, completo.

Por outro lado, havia também um homem nessa sala, o Primeiro Orador.

Era o décimo segundo na linha dos guardiães principais do Plano, e o seu título não tinha maior significação do que o fato de, nas reuniões dos chefes da Segunda Fundação, falar em primeiro lugar.

O seu antecessor derrotara o Mulo, porém os destroços dessa luta gigantesca ainda juncavam o caminho do Plano... Durante vinte e cinco anos, ele e a sua administração haviam tentado forçar uma Galáxia de seres humanos obstinados e estúpidos a regressar ao caminho... Era uma tarefa gigantesca.

O Primeiro Orador levantou os olhos para a porta que se abria. Até enquanto o fazia, na solidão da sala, considerava o seu quarto de século de esforço, que tão lenta e inevitavelmente se aproximava agora do seu clímax; até enquanto estivera tão ocupado, o seu espírito estivera considerando o recém-chegado com uma expectativa amável. Um jovem, um estudante, um dos que, eventualmente, prosseguiriam a tarefa.

O jovem ficou parado no limiar, de modo que o Primeiro Orador se dirigisse a ele e o encaminhasse, com uma mão amigável pousada no ombro.

O estudante sorriu com alguma timidez, e o Primeiro Orador correspondeu-lhe, dizendo: - Primeiro devo dizer-lhe por que está aqui.

Estavam agora frente á frente, um de cada lado da mesa. Nenhum deles falava de maneira que pudesse ser reconhecida como tal, por qualquer homem na Galáxia, que não fosse igualmente membro da Segunda Fundação.

A linguagem foi, originariamente, o expediente por meio do qual o Homem aprendeu, imperfeitamente, a transmitir os pensamentos e emoções do seu espírito. Erigindo sons arbitrários e combinações de sons como representação de gradação de cores mentais, desenvolveu um método de comunicação, porém um método que, na sua inabilidade e pesada inadequação, fez degenerar toda a delicadeza do espírito numa transmissão grosseira e gutural de sinais.

Os resultados podem ser seguidos profundamente e todo o sofrimento que a humanidade conheceu pode ser avaliado apenas pelo fato de nenhum homem na história da Galáxia, até Hari Seldon e muito poucos homens depois dele, ter conseguido compreender realmente outro homem. Cada ser humano vivia atrás de uma parede impenetrável de névoa sufocante, dentro da qual ninguém mais existia senão ele. Havia, ocasionalmente, os sinais sumidos das profundidades da caverna em que outro homem estava metido, de modo que cada um podia caminhar às apalpadelas na direção do outro.- Contudo, por não se conhecerem uns aos outros, não poderem compreender-se uns aos outros, não ousarem confiar uns nos outros, e sentirem desde a infância os terrores e insegurança desse isolamento definitivo, havia o medo da perseguição do homem pelo homem, a rapacidade selvagem do homem para com o homem.

Os pés, durante dezenas de milhares de anos, patinharam e arrastaram-se na lama, retendo os espíritos que, durante o mesmo tempo, estavam preparados para a companhia das estrelas.

Com uma persistência implacável, o Homem procurara instintivamente iludir as grades da prisão da linguagem comum. Semântica, lógica simbólica, psicanálise, tudo foram expedientes por meio dos quais a linguagem pudesse ser apurada ou dispensada.

A psicohistória foi o desenvolvimento da ciência mental; ou antes, a sua matematização final, que afinal obteve êxito. Através do desenvolvimento da matemática necessário para compreender os fatos da fisiologia dos nervos e da eletroquímica do sistema nervoso deviam ser investigados como forças nucleares, tornou-se primeiro possível desenvolver realmente a psicologia. E através da generalização do conhecimento psicológico do indivíduo para o grupo, a sociologia foi matematizada.

Os grupos maiores, os bilhões que ocupavam os planetas, os trilhões que ocupavam Setores, os quadrilhões que ocupavam toda a Galáxia, tornaram-se, não simples seres humanos, mas forças gigantescas suscetíveis de tratamento estatístico, de modo que, para Hari Seldon, o futuro tornou-se claro e inevitável, e o Plano pôde ser estabelecido.

Os mesmos progressos básicos da ciência mental que haviam conduzido ao desenvolvimento do Plano de Seldon, foram os que também tornaram desnecessário ao Primeiro Orador usar palavras para se dirigir ao Estudante. Cada reação a um estímulo, por muito ligeira que fosse, era completamente indicativa de todas as modificações mínimas, de todas as correntes vacilantes que percorriam a mente do outro. O Primeiro Orador não podia sentir instintivamente o conteúdo emocional da mente do Estudante, como o Mulo teria sido capaz de fazer, dado que o Mulo era um Mutante, com poderes nem sempre suscetíveis de se tornarem compreensíveis para qualquer homem normal, nem sequer para um homem da Segunda Fundação; antes o deduzia como resultado de um treino intensivo.

Uma vez, porém, que é intrinsecamente impossível em uma sociedade baseada na linguagem indicar realmente o método de comunicação dos homens da Segunda Fundação entre si, todo este assunto será ignorado daqui em diante. O Primeiro Orador será representado como falando de maneira normal, e se a tradução não é sempre inteiramente válida, é pelo menos o melhor que pode fazer-se dadas as circunstâncias.

Fingir-se-á, por conseguinte, que o Primeiro Orador disse, de fato, "Primeiro devo dizer-lhe por que está aqui", ao invés de sorrir precisamente de certo modo e levantar um dedo exatamente de certa maneira.

O Primeiro Orador disse: - Estudou ciência mental com afinco e bem durante a maior parte de sua vida. Absorveu tudo o que os seus professores podiam dar-lhe. E tempo para você e para uns quantos outros como o senhor, de começarem a aprendizagem para Oradores.

Agitação do outro lado da mesa.

- Não... Deve aceitar isto impassivelmente. O senhor tinha esperança de ser aprovado. Temia não sê-lo. De fato, tanto a esperança como o temor são fraquezas. O senhor sabia que seria aprovado e hesitou em admitir o fato porque tal conhecimento podia marcá-lo como demasiado senhor de si e, portanto, não servindo. Disparate! O homem mais estúpido é aquele que não tem consciência de ser sabedor. Faz parte de sua aprovação que soubesse que seria aprovado.

Descontração do outro lado da mesa.

- Exatamente. Agora sente-se melhor e sua guarda baixou. Está mais apto para se concentrar e mais apto para compreender. Lembre-se de que, para dar verdadeiro resultado, não é necessário manter a mente atrás de uma barreira apertada e controlada que, para a sondagem inteligente, é tão informativa como uma mentalidade nua. Deve-se, de preferência, cultivar inocência, conhecimento de si mesmo e consciência desinteressada de si mesmo, que não deixa a uma pessoa nada para esconder. A minha mente está aberta para você. Deixe que seja assim para nós dois.

E continuou: - Não é fácil ser Orador. Em primeiro lugar, não é fácil ser um Psicohistoriador, e nem o melhor Psicohistoriador deve necessariamente qualificar-se para ser um Orador. Há aqui uma distinção a fazer. Um Orador deve não só ter conhecimento das complicações matemáticas do Plano de Seldon, como deve ter simpatia por ele e pelos seus fins. Deve amar o Plano; deve ser para ele a vida e o alento. Mais do que isso, deve ser para ele um amigo vivo. Sabe o que é isto?

A mão do Primeiro Orador ondulou suavemente por cima do cubo negro e brilhante no meio da mesa. Não tinha nenhuma característica essencial.

- Não, Orador, não sei.

- Ouviu falar do Primeiro Radiante?

- Isto? - Espanto.

- Esperava algo mais nobre e inspirador de temor respeitoso? Bem, é natural... Foi criado nos tempos do Império pelos homens do tempo de Seldon. Durante quatrocentos anos tem servido perfeitamente as nossas necessidades sem precisar de reparações ou afinações. E felizmente que assim é, dado que ninguém da Segunda Fundação está habilitado a manejá-lo de qualquer forma técnica. - Sorriu suavemente. - Os da Primeira Fundação seriam capazes de fazer outro, mas é claro que jamais devem saber de sua existência.

Baixou a alavanca do seu lado da mesa e a sala ficou na escuridão. Apenas por um momento, porém, uma vez que, com um vigor gradualmente aumentado, duas das longas paredes da sala brilharam intensamente. Primeiro, um branco pérola, sem matizes, depois um traço de ligeiro negrume aqui e ali e, finalmente, as equações perfeitamente nítidas, impressas a preto, com uma ou outra linha vermelha que ondulava através daquela floresta mais escura, como um ribeirinho coleante.

- Venha cá, meu rapaz, fique aqui de pé diante da parede. Não fará sombra. Esta luz não irradia do Radiante de maneira normal. Para lhe dizer a verdade, não tenho nem a mais vaga idéia do meio por que é produzido este efeito, mas você não fará sombra. Tenho certeza que não.

Puseram-se ambos de pé, no meio da luz. Cada uma das paredes tinha dez metros de comprimento e quatro de altura. Os caracteres eram pequenos e cobriam inteiramente a superfície.

- Isto não é o Plano todo - disse o Primeiro Orador. - Para escrevê-lo todo em ambas as paredes, as equações individuais deveriam ser reduzidas a dimensões microscópicas, porém não é necessário. O que vê agora representa as partes principais do Plano. Aprendeu isto, não aprendeu?

- Sim, Orador, aprendi.

- Reconhece alguma parte?

Um pequeno silêncio. O Estudante apontou com um dedo e, quando o fez, a linha de equações desceu pela parede até a simples série de operações em que pensara (dificilmente poderia considerar-se o rápido e largo gesto do dedo como tendo sido suficientemente preciso) ficar ao nível da vista.

O Primeiro Orador riu de leve. - Há de verificar que o Primeiro Radiante está sintonizado com o seu espírito. Pode esperar mais surpresas desta pequena engenhoca. Que ia dizendo sobre a equação que escolheu?

- Que é... - balbuciou o Estudante -...que é uma integral de Rigell, utilizando a distribuição planetária de uma tendência indicadora da presença de duas classes econômicas principais no Planeta, ou talvez num setor, adicionando-lhe um padrão emocional instável.

- E que significa?

- Representa o limite de tensão, dado que temos aqui - apontou e, mais uma vez, as equações desceram - uma série convergente.

- Muito bem - disse o Primeiro Orador. - E diga-me o que pensa de tudo isto. Que é uma obra de arte acabada, não é?

- Sem dúvida!

- Errado! Não é. - Disse isto com uma voz estridente. - Esta é a primeira lição do que deve desaprender. O plano de Seldon não é nem completo nem correto. Ao invés disso, é apenas o melhor que podia ser feito na época. Mais de uma dúzia de gerações de homens esquadrinharam estas equações, trabalharam sobre elas, separaram-nas até à última parcela decimal e voltaram a juntá-las. Fizeram mais do que isso. Viram passar quase quatrocentos anos e confrontaram a realidade com as predições e equações, e assim aprenderam.

- Aprenderam mais do que Seldon alguma vez soube, e se pudéssemos repetir o trabalho de Seldon com o conhecimento acumulado desses séculos, poderíamos fazer obra melhor. Não é isto perfeitamente claro para você?

O estudante parecia chocado.

- Antes de obter a sua aptidão para Orador - continuou o Primeiro Orador – deverá fornecer uma contribuição original para o Plano. Não é assim uma blasfêmia tão grande. Cada uma das marcas vermelhas que vê na parede é a contribuição de um dos nossos homens que viveram depois de Seldon. Ora... ora. Vejamos - e olhava para cima. - Ali!

A parede toda pareceu desabar sobre ele.

- Isto - disse ele - é a minha. - Uma linha vermelha, muito fina, circundava duas setas e incluía dois metros quadrados de deduções ao longo de cada uma das direções indicadas.

Entre as duas havia uma série de equações em vermelho.

- Não parece - disse o Orador - ser muito. Está num ponto do Plano que não atingiremos senão daqui a um tempo tão longo como o que já passou. Está no período de união, quando o Segundo Império que há de vir é presa de personalidades rivais que ameaçarão dividi-lo, se a luta for equilibrada ou fixá-lo numa situação de rigidez, se a luta for desequilibrada. Ambas as possibilidades estão aqui consideradas, seguidas, e está indicado o método de evitar a ambas.

- No entanto, é tudo uma questão de probabilidades, e pode existir um terceiro curso. É um de verossimilhança comparativamente baixa, de doze ponto sessenta e quatro por cento, para ser exato, mas até contingências menores já se verificaram e o Plano está apenas quarenta por cento completo Esta terceira probabilidade consiste num possível compromisso entre duas ou mais das personalidades em conflito que foram consideradas.

- Isto, demonstrei eu, congelaria o Segundo Império num molde inútil, e depois, eventualmente, infligiria mais danos por meio de guerras civis do que os que se verificariam se um compromisso não houvesse sido feito em primeiro lugar. Felizmente, isso também pôde ser evitado. E foi essa a minha contribuição.

- Se posso interrompê-lo, Orador... Como é feita uma modificação?

- Por meio da organização do Radiante. Verá no seu próprio caso, por exemplo, que a sua matemática será rigorosamente verificada por cinco juntas diferentes, e que lhe será exigido que a defenda contra um ataque preparado e sem tréguas. Dois anos passar-se-ão, e o seu desenvolvimento será novamente revisto. Aconteceu mais de uma vez que um trabalho aparentemente perfeito tenha revelado os seus enganos só de um período de indução de meses e anos. Às vezes, o próprio contribuinte descobre a falha.

- Se, passados dois anos, outro exame, não menos pormenorizado do que o primeiro, ainda é favorável, e, melhor ainda, se no intervalo o cientista descobriu pormenores adicionais, evidência subsidiária, a contribuição será adicionada ao Piano. Foi o auge da minha carreira; será o auge da sua.

- O Primeiro Radiante pode ser ajustado à sua mente, e todas as correções e adições podem fazer-se através de conexão mental. Não haverá nada que indique que a correção ou adição seja sua. Nunca, em toda a história do Plano, houve personalização. É antes uma criação de todos nós. Compreende?

- Sim, Orador!

- Então, basta. - Alguns passos para o Primeiro Radiante, e as paredes voltaram a ficar vazias, exceção feita da zona da iluminação normal da sala, ao longo de sua parte superior. - Sente-se aqui em frente da minha secretária e deixe-me falar com você. É suficiente para um Psicohistoriador, como tal, saber a sua Bioestatística e a sua Eletromatemática neuroquímica. Alguns não sabem mais nada e estão credenciados apenas a serem técnicos estatísticos. Mas um Orador deve ser capaz de discutir o Plano sem Matemática. Se não o Plano em si mesmo, pelo menos a sua filosofia e os seus objetivos.

- Antes de tudo, qual é o objetivo do Plano? Diga-me, por favor, pelas suas próprias palavras, e não tente procurar às apalpadelas uma opinião favorável. Asseguro-lhe que não será julgado pela sua polidez e suavidade.

Era a primeira oportunidade do Estudante

para dizer mais do que um dissílabo, e ele hesitou antes de mergulhar no espaço de expectativa aberto à sua frente. Disse, com timidez: - Como resultado do que aprendi, penso que é intenção do Plano estabelecer uma civilização humana baseada numa orientação inteiramente diferente de tudo o que haja existido anteriormente, orientação essa que, de acordo com as descobertas da Psicohistória, não poderia jamais nascer espontaneamente...

- Alto! - O Primeiro Orador foi categórico. - Não deve dizer "jamais". Isso é uma preguiçosa apreciação superficial dos fatos. Na verdade, a Psicohistória prediz apenas probabilidades. Um acontecimento particular pode ser infinitesimalmente provável, contudo a probabilidade é sempre maior do que zero.

- Sim, Orador. Se posso então corrigir-me, a orientação desejada é bem conhecida como não tendo probabilidade significativa de vir a verificar-se espontaneamente.

- Melhor. Qual é a orientação?

- É a de uma civilização baseada na ciência mental. Em toda a história conhecida da Humanidade, os progressos foram feitos, em primeiro lugar, na tecnologia física, na capacidade de manejar o mundo inanimado ao redor, do Homem. Ò domínio de si mesmo e da sociedade foi deixado ao acaso ou às vagas apalpadelas de sistemas éticos intuitivos, baseados na inspiração e na emoção. Como resultado, jamais existiu uma cultura vinte e cinco por cento mais estável, e estas apenas como resultado de uma grande miséria humana.

- E por que não é espontânea a orientação de que falamos?

- Porque uma larga minoria de seres humanos está mentalmente equipada para tomar parte no progresso da ciência física, e todos recebem os benefícios visíveis e sem preparação dela resultantes. Só uma minoria insignificante, porém, é inerentemente capaz de guiar o Homem através das maiores implicações da Ciência Mental, e os benefícios dela derivados, embora mais duradouros, são mais sutis e menos aparentes. Além disso, desde que tal orientação levasse ao desenvolvimento de uma ditadura benevolente dos mentalmente melhores, virtualmente uma subdivisão mais elevada do Homem seria mal recebida e não poderia ser estável sem a aplicação de uma força que rebaixaria o resto da Humanidade ao nível dos brutos. Um tal desenvolvimento é repugnante e deve ser evitado.

- Qual é então a solução?

- A solução é o Plano de Seldon. Foram preparadas e mantidas condições de tal modo que, num milênio a partir de seu início, seiscentos anos a partir de agora, ter-se-á estabelecido um Segundo Império Galáctico no qual a Humanidade estará pronta para o domínio da Ciência Mental. Nesse mesmo intervalo, a Segunda Fundação, no seu desenvolvimento, terá produzido um grupo de Psicólogos apto para assumir a chefia. Ou, como pensei muitas vezes, a Primeira Fundação fornece a armação física de uma simples unidade política, e a Segunda Fundação fornece a armação mental de uma classe governante já feita.

- Estou vendo. Bastante adequado. Pensa que qualquer Segundo Império, ainda que formado no termo estabelecido por Seldon, servirá como cumprimento do seu Plano?

- Não, Orador, creio que não. Há vários Segundos Impérios possíveis que podem formar-se no período de tempo entre novecentos e mil e setecentos anos depois do início do Plano, mas só um deles é o Segundo Império.

- E em vista de tudo isto, por que é necessário que a existência da Segunda Fundação seja oculta, acima de tudo, da Primeira Fundação?

O Estudante procurou um sentido oculto na pergunta porém não conseguiu localizá-lo. Perturbou-se na sua resposta: - Pela mesma razão por que os pormenores do Plano, como um todo, devem ser ocultos da Humanidade em geral. As leis da Psicohistória são estatísticas por natureza e tornam-se inválidas se as ações dos homens individuais não forem casuais por natureza. Se um grupo considerável de seres humanos soubesse dos pormenores-chave do Plano, suas ações seriam governadas por esse conhecimento e deixariam de ser casuais no sentido dos axiomas da Psicohistória. Por outras palavras, deixariam de ser perfeitamente previsíveis. Desculpe-me, Orador, mas sinto que a resposta não é satisfatória.

- Está bem que o faça. Sua resposta é absolutamente incompleta. É a própria Segunda Fundação que deve ser oculta, e não apenas o Plano. O Segundo Império não está ainda formado. Ainda temos uma sociedade que receberia mal uma classe governante de psicólogos, que recearia o seu desenvolvimento e lutaria contra ela. Compreende isso?

- Sim, Orador, compreendo. Este ponto nunca foi desenvolvido...

- Não minimize. Nunca foi apresentado em aula, embora o senhor fosse capaz de o deduzir por si mesmo. Este e muitos outros pontos apresentá-lo-emos agora e no futuro próximo, durante a sua aprendizagem. Voltará a ver-me daqui a uma semana. Gostaria de ter, nessa altura, comentários seus quanto a um problema que lhe vou apresentar agora. Não exijo um tratamento completo e rigorosamente matemático. Isso levaria um ano para um perito e não uma semana para você. Mas quero uma indicação quanto a tendências e direções...

- Tem aqui uma bifurcação no Plano num período de tempo de meio século. Os pormenores necessários estão incluídos. Notará que o caminho seguido pela realidade presumida diverge de todas as predições previstas, sendo a sua probabilidade de menos de um por cento. Fará a estimativa do tempo durante a qual a divergência pode continuar antes de tornar-se incorrigível. Considere também o fim provável caso não seja corrigida, e um método razoável de correção.

O estudante mexeu o visor ao acaso e olhou insensivelmente para as passagens apresentadas na pequena tela incorporada. Disse: - Por que este problema particular, Orador? Tem evidentemente um significado que não é de modo nenhum puramente acadêmico.

- Obrigado, rapaz. É tão rápido como eu esperava. O problema não é suposto. Há perto de meio século, o Mulo irrompeu na história Galáctica e foi, durante dez anos, o maior acontecimento do universo. Não haviam sido tomadas providências quanto a ele, era imprevisto. Fez vergar o Plano com relativo perigo, mas não fatalmente.

- Para detê-lo antes de se tornar fatal, fomos, contudo, forçados a tomar parte ativa contra ele. Revelamos nossa existência e, infinitamente pior, uma parte do nosso poder. A Primeira Fundação soube de nós, e as suas ações são previstas contando com esse conhecimento. Observe no problema apresentado. Aqui, e aqui.

- Naturalmente, não falará disto a ninguém.

Houve uma pausa forçada quando a compreensão se infiltrou no espírito do estudante.

Ele disse: - Então o Plano de Seldon falhou?

- Ainda não. Pode apenas ter falhado. As probabilidades de êxito são ainda de vinte e um ponto quatro por cento, segundo o último cálculo.

 

OS CONSPIRADORES

Para o Dr. Darell e Pelleas Anthor, as noites passavam-se em conversa amigável e os dias em trivialidades agradáveis. Podia ser uma visita normal. O Dr. Darell apresentara o jovem como um primo do espaço anterior, e o interesse fora abrandado pelo clichê.

Fosse como fosse, porém, podia ser mencionado um nome no meio da conversa vulgar. Haveria uma solicitude fácil, e o Dr. Darell poderia dizer "não" ou poderia dizer "sim". Uma chamada pelo circuito aberto da Onda Comum fez um convite casual: "Quero que conheça o meu primo".

E os preparativos de Arcádia prosseguiram à sua própria maneira. De fato, os seus atos poderiam ser considerados os menos honestos de todos. Por exemplo, convenceu Olynthus Dam, na escola, a oferecer-lhe um receptor de som completo, de fabrico caseiro, por métodos que indicavam que o seu futuro prometia perigo para todos os homens com quem pudesse entrar em contato. Para evitar pormenores, diremos apenas que demonstrou um tal interesse na ocupação predileta de Olynthus, por ele mesmo reclamada - tinha uma oficina caseira - combinado com uma tão bem modulada transferência deste interesse para as feições bochechudas do próprio Olynthus, que o infeliz rapaz se encontrou: 1) discorrendo muito longa e animadamente sobre os princípios do motor de hiper-ondas; 2) tornando-se nebulosamente consciente dos grandes olhos, absortos, que pousavam tão de leve nos seus; 3) pondo à força nas mãos condescendentes dela a sua maior criação, o supracitado receptor de som.

Arcádia continuou depois a cultivar as relações com Olynthus em grau cada vez menor, precisamente durante o tempo suficiente para afastar toda a suspeita de o receptor de som ter sido a causa de sua amizade. Durante alguns dos meses que se seguiram, Olynthus tateou repetidamente, com os tentáculos do espírito, a memória daquele curto período de sua vida, até que, finalmente, por falta de suplemento, desistiu e deixou-a escapulir-se.

Quando veio a sétima noite, e se sentaram cinco homens na sala de estar de Darell fumando, depois do jantar, a escrivaninha de Arcádia, no andar de cima, estava ocupada por aquele produto caseiro totalmente irreconhecível da ingenuidade de Olynthus. Cinco homens, portanto, O Dr. Darell, obviamente com o seu cabelo grisalho e meticuloso no vestir, parecendo um tanto mais velho do que os seus quarenta e dois anos; Pelleas Anthor, perspicaz e sério, parecendo jovem e inseguro de si; e os três novos homens: Jole Turbor, produtor de televisão, volumoso e de lábios grossos; Dr. Elvett Semic, professor jubilado de física da Universidade, magríssimo e enrugado, com as roupas a dançarem-lhe no corpo; Homir Munn, bibliotecário, antipático e muitíssimo pouco à vontade.

O Dr. Darell discorreu com facilidade, num tom normal e trivial: - Este encontro foi combinado, meus senhores, por um pouco mais do que simples razões sociais. Podem tê-lo adivinhado. Dados que foram escolhidos propositadamente por causa dos antecedentes, podem também avaliar o perigo que ele implica. Não o menosprezarei, mas acentuarei que somos todos homens condenados, seja como for.

- Notarão que nenhum de vocês foi convidado com qualquer tentativa de segredo. Não foi pedido a nenhum de vocês para vir aqui sem ser visto. As janelas não estão ajustadas para não se ver aqui dentro. Não há nenhum escudo protetor de qualquer espécie ao redor da sala. Basta-nos atrair a atenção do inimigo para sermos destruídos, e a melhor maneira de atrair essa atenção é assumir uma atitude falsa e teatral de segredo.

(Ah!, pensou Arcádia, inclinada para ouvir as vozes que saíam, um pouco estridentes, da pequena caixa).

- Compreendem isso?

Elvett Semic mordiscou o lábio inferior e sorriu num tique nervoso que precedia todas as suas frases. - Ora, continue. Fale-nos do jovem.

O Dr. Darell disse: - O seu nome é Pelleas Anthor. Era aluno do meu velho colega Kleise, que morreu no ano passado. Kleise mandou-me o seu modelo cerebral até o quinto subnível, antes de morrer, modelo esse que foi confrontado por mim com o do homem que está diante de vocês. Sabem, claro, que um modelo cerebral não pode ser duplicado até esse ponto, nem por homens da Ciência da Psicologia. Se não o sabem, terão de aceitar a minha palavra quanto a isto.

Turbor disse, franzindo os lábios: - Devemos começar de qualquer maneira. Aceitaremos sua palavra quanto a isso, especialmente sendo o maior eletroneurologista da Galáxia após a morte de Kleise. Pelo menos, foi dessa maneira que o descrevi no comentário de televisão, e ainda acredito nisso. Que idade tem, Anthor?

- Vinte e nove anos, Senhor Turbor.

- Hum! E é também eletroneurologista? Um dos grandes?

- Apenas um estudante dessa ciência. Mas trabalho arduamente, e tive o benefício do aprendizado de Kleise.

Munn interrompeu. Gaguejava um pouco nos períodos de tensão. - Eu... eu queria que... que começássemos. Penso que... que estamos to... todos falando demais.

O Dr. Darell ergueu um dos sobrolhos, olhando na direção de Munn. -Tem razão, Homir. Continue, Pelleas.

- Só daqui a pouco - disse Pelleas Anthor, lentamente - porque antes de começarmos, embora eu aprecie o sentimento do Sr. Munn, devo pedir os dados das ondas cerebrais.

Darell enrugou a testa. - O que é isso, Anthor? A quais dados de ondas cerebrais se refere?

- Aos modelos de todos vocês. O senhor tirou o meu, Dr. Darell. Devo tirar-lhe o seu e os de vocês todos. E devo ser eu mesmo a fazer as medições.

Turbor disse: - Não há razão para ele confiar em nós, Darell. O rapaz está no seu direito.

- Muito obrigado - disse Anthor. - Então, se o senhor nos conduzir ao seu laboratório, Dr. Darell, prosseguiremos. Esta manhã tomei a liberdade de verificar o seu aparelho.

A ciência da eletroencefalografia era ao mesmo tempo nova e antiga. Era antiga no sentido de que o conhecimento das micro-correntes geradas pelas células nervosas dos seres vivos pertencia àquela imensa categoria do conhecimento humano, cuja origem se perdera completamente. Era um conhecimento que vinha de tão longe como os restos mais primitivos da história humana...

E contudo era também nova. O fato da existência de micro-correntes repousou através de dezenas de milhares de anos do Império Galáctico como um desses itens ativos e caprichosos, porém inteiramente inúteis, do conhecimento humano. Alguns tentaram formar classificações de ondas em acordadas e adormecidas, calmas e excitadas, sãs e doentes, mas até as concepções mais vastas haviam tido as suas hordas de exceções viciadoras.

Outros tentaram demonstrar a existência de grupos de ondas cerebrais, análogos aos bem conhecidos grupos sangüíneos, e demonstrar que o ambiente externo era o fator definidor. Esta era a gente de espírito apressado que proclamava que o Homem podia ser dividido em subespécies. Mas uma tal filosofia não podia abrir caminho contra o esmagador impulso universal causado pelo fato de existir o Império Galáctico, uma unidade política abrangendo vinte milhões de sistemas solares, envolvendo todos os homens, desde o mundo central de Trantor, agora uma memória esplêndida e impossível do grandioso passado, até o mais isolado asteróide da periferia.

E então houve novamente, numa sociedade entregue, como a do Primeiro Império, às ciências físicas e à tecnologia inanimada, um vago mas poderosamente sociológico empurrão para o estudo da mente. Era menos respeitável porque menos imediatamente útil, e era pobremente financiado uma vez que era menos proveitoso.

Após a desintegração do Primeiro Império, verificou-se a fragmentação da ciência organizada, recuando cada vez mais, até para além dos princípios básicos da energia atômica, regressando a energia química do carvão e do petróleo A única exceção a isto foi, é claro, a Primeira Fundação, onde a fagulha da ciência, revitalizada e tornada mais intensa, foi mantida e alimentada para transformar-se em chama. Mas também ali era o físico que dominava, e o cérebro, exceto para a cirurgia, era um campo abandonado.

Hari Seldon foi o primeiro a exprimir o que veio mais tarde a ser aceito como verdade. "As micro-correntes nervosas ", disse ele uma vez, " trazem em si mesmas a fagulha de cada impulso e resposta variáveis, conscientes e inconscientes. As ondas cerebrais registradas claramente em papel milimétrico, com seus trêmulos altos e baixos, são os espelhos das pulsações de pensamento combinadas de bilhões de células. Em teoria, a análise deveria revelar os pensamentos e emoções do indivíduo, até os últimos e os menores. Deveriam ser detectadas as diferenças devidas não apenas a grandes defeitos físicos, hereditários ou adquiridos, mas também a estados de emoção inconstantes, ao progresso da educação e da experiência, até a qualquer coisa tão sutil com uma modificação da filosofia da vida do indivíduo"

Mas nem mesmo Seldon pôde ir além da especulação. Agora, porém, havia cinqüenta anos que os homens da Primeira Fundação estavam penetrando naquele vasto e complicado armazém de novos conhecimentos. A aproximação era, naturalmente, segundo novas técnicas como, por exemplo, o uso de eletrodos nas suturas do crânio por um método recém desenvolvido que permitia efetuar o contato diretamente com as células cinzentas, sem sequer haver necessidade de raspar um bocado do crânio. E então apareceu um aparelho de registro que registrava automaticamente os dados da onda cerebral com um total geral e como funções separadas de seis variáveis independentes.

O que era, talvez, mais significativo era o respeito crescente em que eram tidos a encefalografia e os seus especialistas. Kleise, o maior de todos, participava dos congressos científicos em pé de igualdade com os físicos. O Dr. Darell, embora já fora de atividade científica, era conhecido pelos seus brilhantes progressos em análises encefalográfica, quase tanto como pelo fato de ser filho de Bayta Darell, a grande heroína da geração anterior.

E assim, agora, o Dr. Darell sentou-se na sua própria cadeira, com o toque delicado dos eletrodos, leves como plumas, mal sugerindo qualquer pressão sobre o seu crânio, enquanto as agulhas registradoras, encerradas no vácuo, para cima e para baixo. Estava de costas para o aparelho; de outro modo, como se sabia muito bem, a vista das curvas oscilantes induzia a um esforço inconsciente para as controlar, com resultados perceptíveis. Sabia, apesar disso, que o quadrante central estava apresentando a curva Sigma fortemente ritmada e pouco variável que era de esperar da sua mente poderosa e disciplinada. Podia ser fortalecida e purificada no quadrante subsidiário, respeitante às ondas do cerebelo. Haveria nela os saltos nítidos, quase descontínuos, do lobo frontal, e a ligeira tremura das regiões sub-superficiais, com o escasso alcance das suas freqüências...

Conhecia o seu próprio modelo de onda cerebral como um artista deveria estar perfeitamente consciente da cor dos seus olhos.

Pelleas Anthor não fez qualquer comentário quando Darell se levantou da cadeira reclinada. O jovem extraiu do aparelho os sete registros, e relanceou a vista por eles, com o olhar rápido mas abarcando tudo de quem sabe exatamente quais as pequenas facetas do quase nada que se procura.

- Se não importa, Dr. Semic.

O rosto de Semic, amarelado pela idade, estava sério. A Eletroencefalografia era uma ciência da sua velhice, da qual pouco conhecia, uma nova-rica que encarava com um leve ressentimento. Sabia que era velho e que o seu modelo de ondas o mostraria. As rugas da sua face mostravam-no, bem como o seu andar curvado, o tremor da sua mão, mas tudo isso dizia respeito apenas ao seu corpo. Os modelos de ondas cerebrais poderiam mostrar que a sua mente também estava velha. Era uma invasão embaraçosa e sem garantias da última fortaleza protetora do homem, a sua própria mente.

Os eletrodos foram ajustados. O processo não causava prejuízos, obviamente, desde o princípio ao fim. Havia apenas aquele pequeno formigueiro, muito abaixo do limiar da sensibilidade.

Depois foi a vez de Turbor, que ficou calmamente sentado e sem emoção durante os quinze minutos do processo, e de Munn, que deu um salto ao primeiro toque dos eletrodos, e passou depois a sessão revirando os olhos como se desejasse virá-los para trás e olhar através de um buraco no seu occipital.

- E agora - disse Darell, quando tudo estava preparado.

- E agora - disse Anthor, com um ar de quem pede desculpa - há mais uma pessoa na casa.

Darell, franzindo a testa, perguntou: - A minha filha?

- Pois sugeri que ficasse em casa esta noite, se está recordado.

- Para análise encefalográfica? Em nome da Galáxia, para quê?

- Não consigo prosseguir sem ela.

Darell encolheu os ombros e subiu a escada. Arcádia, avisada, tinha o receptor de som desligado quando ele entrou; depois, seguiu-o para o andar de baixo com humilde obediência. Era a primeira vez, em sua vida, exceto para tirar, em criança, o seu modelo mental básico, para fins de identificação e registro, que se encontrava sob os eletrodos.

- Posso ver? - perguntou ela quando terminou, estendendo a mão.

O Dr. Darell disse: - Jamais compreenderia, Arcádia. Não será tempo de ir para a cama?

- E, sim pai, - disse ela, modestamente. - Boa noite para todos.

Correu pela escada acima e meteu-se na cama, com um mínimo de preparação básica. Com o receptor de som de Olynthus ao lado da almofada, sentiu-se como uma personagem de um livro-filme; e apertava-o contra o peito, num êxtase de "coisa de espionagem".

As primeiras palavras que ouviu eram de Anthor, e foram: - As análises, meus senhores, são todas satisfatórias. A da criança igualmente.

Criança pensou ela, desgostosa, e revoltou-se contra Anthor na escuridão.

Anthor abriu a pasta e tirou dela várias dúzias de registros de ondas cerebrais. Não eram originais. Nem a pasta estava provida de um fecho qualquer. Se a chave tivesse sido empunhada por qualquer mão que não a sua, o conteúdo dela ter-se-ia queimado silenciosa e instantaneamente, transformando-se em cinzas indecifráveis. Uma vez tirados da pasta, os registros queimar-se-iam após meia hora.

Porém, durante sua curta duração, Anthor falou apressadamente; - Tenho os registros de vários funcionários governamentais de pouca expressão em Anacreon. Este é o de um psicólogo da Universidade de Locris; este, de um industrial de Siwena. O resto é o que vêem.

Juntaram-se apertadamente. Para todos menos Darell, eram outros tantos estremecimentos desenhados em pergaminho. Para Darell gritavam em um milhão de línguas.

Anthor mencionou por alto. - Chamo a sua atenção, Dr. Darell, para a região no planalto entre as ondas Tau secundárias no lobo frontal, a única coisa que estes registros apresentam em comum. Quer utilizar a minha Régua Analítica, senhor, para verificar a minha exposição?

A Régua Analítica era considerada um parente afastado, como um, arranha-céus é para uma cabana, desse brinquedo de jardim de infância, a Régua de cálculo logarítmica.

Darell utilizou-a com a perícia de uma longa prática. Fez desenhos à mão livre do resultado e, como Anthor declarava, havia planaltos incaracterísticos em regiões de lobo frontal onde seria de esperar fortes oscilações.

- Como interpretaria isso, Dr. Darell? - perguntou Anthor.

- Não tenho certeza e não vejo como é possível. Até nos casos de amnésia há supressão, porém não remoção. Cirurgia cerebral drástica, talvez?

- Oh, sim, qualquer coisa foi cortada! - gritou Anthor, impacientemente. - Não o foi, todavia, no sentido físico. Sabe que o Mulo poderia ter feito precisamente isso. Poderia ter suprimido toda a capacidade para uma certa emoção ou atitude de espírito, e não deixar nada além de um nivelamento semelhante. Ou, a não ser ele...

- Ou, a não ser ele, a Segunda Fundação poderia tê-lo feito. É isso que quer dizer? - perguntou Turbor, com um leve sorriso.

Não havia necessidade real de fazer aquela pergunta totalmente retórica.

- O que foi que o levou a suspeitar, Sr. Anthor? - perguntou Munn.

- Não fui eu. Foi o Dr. Kleise. Ele colecionava modelos de ondas cerebrais, um tanto como faz a Polícia Planetária, porém segundo linhas diferentes. Especializou-se em intelectuais, funcionários governamentais e empresários que, se a Segunda Fundação observa-se que é evidente o curso histórico da Galáxia, o nosso, tem de fazê-lo sutilmente e do modo mínimo possível. Se eles trabalham por intermédio das mentes, como devem trabalhar, é por meio das mentes de pessoas influentes, cultural, industrial ou politicamente. E foi por estes que ele se interessou.

- Está bem - objetou Munn - mas há alguma corroboração? Como é que esta gente atua, quero dizer, estes com o planalto? Pode ser que seja tudo um fenômeno perfeitamente normal.

Fitou os outros sem esperança, com os seus olhos azuis de algum modo parecidos com os de uma criança, mas não encontrou um eco encorajador.

- Deixo isso ao Dr. Darell - disse Anthor. - Pergunte-lhe quantas vezes viu ele este fenômeno nos seus estudos gerais ou em casos relatados na literatura sobre a geração anterior. Depois pergunte-lhe quais são as oportunidades de ser descoberto em quase um de cada mil casos entre as categorias que o Dr. Kleise estudou.

- Suponho que não haja dúvida - disse Darell, pensativamente - de que estas são mentalidades artificiais. Houve interferência com elas. Em certo sentido, já suspeitava disto...

- Eu sei, Dr. Darell - disse Anthor - e também sei que trabalhou com o Dr. Kleise. Gostaria de saber por que deixou de trabalhar.

Não havia, sem dúvida, hostilidade na pergunta dele, talvez nada mais senão cautela mas, fosse como fosse, resultou numa longa pausa.

Darell olhou de um para o outro dos seus convidados, e disse bruscamente: - Porque não havia objetivo para a batalha de Kleise. Estava competindo com um adversário demasiado forte para ele. Estava detectando o que nós, ele e eu, sabíamos que detectaria, que não éramos senhores de nós mesmos. E eu não quis saber! Tinha o meu orgulho próprio. Gostava de pensar que a nossa Fundação era senhora da sua alma coletiva que os nossos antepassados não haviam lutado e morrido por nada. Pensei que fosse mais simples voltar a cara para o lado enquanto não tivesse certeza absoluta. Não precisava de minha posição, uma vez que a pensão do Governo, concedida à família de minha mãe, chegaria para as minhas necessidades, sem complicações. O laboratório de minha casa seria suficiente para manter o tédio afastado, e a vida terminaria um dia... Depois Kleise morreu...

Semic sorriu e disse: - Esse indivíduo Kleise, não o conheço. Como morreu ele?

Anthor interrompeu. - Morreu. Pensou que morreria. Disse-me seis meses antes que estava prestes a...

- Agora nós estamos também p...perto demais, não estamos? - sugeriu Munn, com a boca seca, enquanto seu pomo-de-adão subia e descia.

- Estamos - disse Anthor, sem rodeios - mas já estivemos, fosse como fosse, todos nós. Foi por isso que foram todos escolhidos. Eu sou aluno de Kleise. O Dr. Darell foi seu colega. Jole Turbor denunciou pela televisão a nossa fé cega na mão salvadora da Segunda Fundação, até que o Governo o demitiu, mediante a intervenção, que eu poderia mencionar, de um poderoso financeiro cujo cérebro mostra o que Kleise costumava denominar Planalto de Interferência. Homir Munn tem a maior coleção privada  Muliana, se posso empregar a expressão para significar dados coligidos com respeito ao Mulo, existente, e publicou alguns ensaios contendo especulações sobre a natureza e função da Segunda Fundação. O Dr. Semic contribuiu mais do que ninguém para a matemática da análise encefalográfica, embora eu não creia que se tenha apercebido de que a sua matemática pudesse ser assim aplicada.

Semic esbugalhou os olhos e gaguejou, arfando: - Não, meu jovem amigo Eu estive analisando os movimentos intranucleares, o problema do corpo "n", como sabe. Perdi-me na encefalografia.

- Portanto, sabemos qual é a nossa posição. O Governo não pode, obviamente, fazer nada acerca do assunto. Não sei se o prefeito, ou alguém de sua administração, é conhecedor da seriedade da situação; uma coisa eu sei, e é que nós cinco não temos nada a perder e estamos em posição de lucrar muito. A cada progresso do nosso conhecimento, podemos alargar-nos segundo rumos seguros. Somos apenas um princípio, compreendem.

- Até que ponto está disseminada - interpôs Turbor - essa infiltração da Segunda Fundação?

- Não sei. É uma resposta. Todas as infiltrações que descobrimos estavam nos confins exteriores da nação. O mundo capital pode estar ainda limpo, embora, mesmo isso, não seja certo. De outro modo, não os teria posto á prova. O senhor era particularmente suspeito, Dr. Darell, dado que abandonou a pesquisa com Kleise. Este nunca lhe perdoou, como sabe. Pensei que talvez a Segunda Fundação o tivesse corrompido, mas Kleise insistiu sempre em que o senhor era um covarde. Perdoe-me, Dr. Darell, se explico isto para tornar clara a minha própria posição. Eu, pessoalmente, penso que compreendo a sua atitude e, se foi covardia, considero-a venal.

Darell tomou uma inspiração antes de replicar. - Eu fugi! Denomine a isso como quiser. Tentei, contudo, manter a nossa amizade, embora ele nunca me tenha escrito nem falado até o dia em que me mandou os dados de suas ondas cerebrais, e isso foi quando muito por uma semana antes de morrer...

- Se não se importa - interrompeu Homir Munn, com um rasgo de eloqüência nervosa - eu n...não vejo o que pensa fazer. Somos um p...pobre bando de conspiradores, se vamos limitar-nos a falar, a falar e a f...falar. E não vejo que mais possamos fazer, seja como for. Isto é m...muito infantil. Ondas ce...cerebrais e mais isto, e mais aquilo, e tudo isso. Há qualquer coisa precisa que tenha a intenção de fazer?

Os olhos de Pelleas Anthor brilharam. - Há, sim senhor. Necessitamos de mais informações sobre a Segunda Fundação. É necessário. O Mulo passou os primeiros cinco anos do seu domínio precisamente nessa procura de informação e falhou ou fomos todos levados a crer. Mas depois deixou de procurar. Por quê? Por ter falhado? Ou por ter conseguido?

- M... mais conversa - disse Munn, com azedume. - Como conseguiremos sabê-lo algum dia?

- Se quiser ouvir-me... A capital do Mulo era Kalgan. Kalgan não fazia parte da esfera de influência comercial da Fundação antes do Mulo e não faz parte dela agora. Kalgan é governado atualmente por um tal Stettin, a não ser que haja para amanhã outra revolução. Stettin denomina-se a si próprio Primeiro Cidadão e considera-se a si mesmo o sucessor do Mulo. Se existe alguma tradição naquele mundo, baseia-se na superhumanidade e grandeza do Mulo, uma tradição quase supersticiosa em intensidade. Como resultado disso, o antigo palácio do Mulo é mantido como santuário. Nenhuma pessoa não-autorizada pode entrar; nunca se tocou em nada lá dentro.

- E então?

- Então por que é assim? Em tempos como estes, nada acontece sem motivo. Suponhamos que não é só a superstição que torna o palácio do Mulo inviolado? Suponhamos que a Segunda Fundação arranjou as coisas assim? Resumindo, suponhamos que os resultados da procura de cinco anos do Mulo estão dentro...

- Ora! Conversa! f... fiada.

- Por que não? - perguntou Anthor. - Ao longo da sua história, a Segunda Fundação ocultou-se e interferiu nos negócios Galácticos apenas superficialmente. Sei que a nós parecer-nos-ia mais lógico destruir o palácio ou, pelo menos, de lá retirar informações. Mas devem considerar a psicologia desses mestres psicólogos. São Seldons, são Mulos, trabalhando de forma indireta, através da mente. Nunca destruiriam ou removeriam quando pudessem atingir os seus fins criando um estado de espírito, hein?

Não houve resposta imediata, e Anthor continuou: - E o senhor, Munn, é precisamente a pessoa que pode conseguir as informações de que necessitamos.

- Eu? - Foi um grito de espanto. Munn olhou de uns para os outros. - Não posso fazer uma coisa dessas. Não sou um homem de batalha nem herói de filme de televisão. Sou um bibliotecário. Se puder ajudá-los dessa maneira, muito bem, e expor-me-ei á Segunda Fundação, porém não irei ao espaço para qualquer coisa qui... quixotesca como essa.

- Ouça, disse Anthor, pacientemente - o Dr. Darell e eu concordamos em que o senhor é o homem ideal. É a única maneira de o fazer naturalmente. O senhor diz que é um bibliotecário. Ótimo! Qual é o seu campo principal de interesse? Muliana! Já tem a maior coleção da Galáxia de material sobre o Mulo. É natural que queira mais; mais natural para si do que para qualquer outra pessoa. O senhor poderia pedir autorização para entrar no Palácio de Kalgan sem levantar qualquer suspeita. Poderia ser-lhe recusada, mas não suspeitariam de si. Além disso, tem um cruzador individual. É sabido que tem visitado planetas estrangeiros durante as suas férias anuais. Já esteve até em Kalgan. Não compreende que precisa apenas agir como sempre o fez?

- Mas eu não posso dizer apenas - q... quer fazer-me o favor de me deixar entrar no seu santuário mais sagrado, S... Senhor Primeiro Cidadão?

- Por que não?

- Por que, pela Galáxia, ele não me deixa!

- Muito bem, então. Pois não deixa. E o senhor, então, volta para casa e pensaremos em qualquer outra coisa.

Munn olhou ao redor numa rebelião sem esperança. Sentiu-se persuadido fazer algo que detestava. Ninguém se ofereceu para ajudá-lo a livrar-se. E assim foram tomadas duas decisões na casa do Dr. Darell. A primeira foi uma decisão relutante de concordância por parte de Munn de largar para o espaço logo que as suas férias de Verão começassem.

A outra foi uma decisão altamente não-autorizada por parte de um membro inteiramente não-oficial da reunião, tomada enquanto desligava um receptor de som e se acomodava para um sono atrasado. Esta segunda decisão não nos interessa no momento.

 

CRISE PRÓXIMA

Passara-se uma semana na Segunda Fundação, e o Primeiro Orador estava mais uma vez sorrindo para o Estudante.

- Deve ter-me trazido resultados interessantes, ou não estaria tão encolerizado.

O estudante pousou a mão sobre a pilha de papel de cálculo que trouxera consigo, e disse: - Tem a certeza de que o problema é real?

- As premissas são verdadeiras. Não alterei nada.

- Então devo aceitar os resultados, o que não é meu desejo.

- Naturalmente. Mas que têm os seus desejos a ver com isso? Bem, diga-me o que é que ò perturba tanto. Não, não deixe suas deduções de lado. Sujeitá-las-ei depois à análise. Entretanto fale comigo. Deixe-me julgar sua compreensão.

- Então, Orador, torna-se muito aparente que se verificou uma grande transformação sob todos os aspectos na psicologia básica da Primeira Fundação. Enquanto souberam da existência de um Plano de Seldon sem conhecerem nenhum de seus pormenores, estavam confiantes mas incertos. Sabiam que seriam bem sucedidos, mas não sabiam quando nem como. Havia, conseqüentemente, uma atmosfera contínua de tensão e de esforço, o que Seldon desejava. Por outras palavras, podia contar-se com a Primeira Fundação para trabalhar com a potência máxima.

- Uma metáfora duvidosa - disse o Primeiro Orador - porém compreendo-o.

- Mas agora, Orador, sabem da existência de uma Segunda Fundação no que diz respeito ao pormenor, ao invés de simplesmente como uma antiga e vaga declaração de Seldon. Têm uma vaga noção de sua função como guardiã do Plano. Sabem que há uma organização que observa todos os seus passos e não os deixará cair. Portanto deixam de perseguir seu objetivo e permitem-se ser transportados de liteira. Outra metáfora, creio.

- Continue, todavia.

- E esse verdadeiro abandono do esforço, essa inércia crescente, essa tendência ao comodismo e â cultura decadente e de prazeres, significam a ruína do Plano. Eles precisam de propulsão própria.

- É tudo?

- Não, há mais. A reação da maioria é como a descrevi. Mas existe uma grande probabilidade de uma reação de minoria. O conhecimento da nossa guarda e da nossa influência despertarão entre alguns, não complacência mas hostilidade. Isto resulta do teorema de Korilov...

- Sim, sim. Conheço o teorema.

- Desculpe-me, Orador. É difícil evitar a matemática. Em qualquer caso, o efeito é o de que, não só o esforço da Fundação se atenua, como também parte dele se volta contra nós, ativamente contra nós.

- E isso é tudo?

- Resta outro fator cuja probabilidade é moderadamente baixa...

- Muito bem. Qual é?

- Enquanto as energias da Primeira Fundação estavam apenas dirigidas para o Império, enquanto os seus únicos inimigos eram destroços imensos e desatualizados que restavam das carnificinas do passado, estavam, obviamente, apenas interessados nas ciências físicas. Conosco formando uma parte nova e grande do seu ambiente, podemos impor-lhes uma mudança de opinião. Podem tentar tornar-se psicólogos...

- Essa mudança - disse o Primeiro Orador, calculadamente - já se verificou.

Os lábios do estudante comprimiram-se numa linha pálida.

- Então está tudo liquidado. É a incompatibilidade básica com o Plano. Orador, poderia eu ter conhecimento disto se tivesse vivido... fora?

O Primeiro Orador respondeu com seriedade:

- Sente-se humilhado, meu rapaz, por que, pensando que compreendia tanto e tão bem, descobre de repente que muitas coisas aparentes lhe eram desconhecidas. Pensando que fosse um dos Senhores da Galáxia, descobre de repente que está próximo da destruição. Terá, naturalmente, ressentimento contra a torre de marfim em que viveu, o retiro em que foi educado, as teorias em que foi instruído.

- Já tive uma vez esse sentimento. É normal. Era necessário, contudo, que não tivesse contato direto com a Galáxia nos seus anos de formação, que permanecesse aqui, onde todo o conhecimento é filtrado para si e a sua mente é cuidadosamente aguçada. Podíamos ter-lhe mostrado este... este fracasso parcial do Plano mais cedo e ter-lhe poupado o choque, porém o senhor não teria percebido convenientemente sua significação, como percebe agora. Então não encontra absolutamente nenhuma solução para o problema?

O estudante meneou a cabeça e disse, quase desanimado:

- Nenhuma!

- Bem, não é de espantar. Ouça, rapaz. Há um processo de ação e vem sendo seguido há mais de uma década. Não é um processo normal, mas um processo a que fomos forçados contra a nossa vontade. Envolve baixas probabilidades e perigosas suposições... Fomos forçados a lidar por vezes com reações individuais, porque era o único caminho possível e, como sabe, a psico-Estatística, por sua própria natureza, não tem significado quando aplicada simplesmente a números planetários.

- Estamos sendo bem sucedidos? - arfou o Estudante.

- Não há ainda maneira de afirmá-lo. Mantivemos até aqui a situação estável, porém, pela primeira vez na história do Plano, é possível ás ações inesperadas de um simples indivíduo destruí-lo. Ajustamos um número mínimo de estranhos a um estado de espírito necessário; temos os nossos agentes, porém os seus caminhos são previstos. Não se atrevem a improvisar. Isto deveria ser evidente para você. E não lhe ocultarei o pior... se formos descobertos, aqui neste mundo, não será apenas o plano que será destruído, mas nós próprios, os nossos seres físicos. Está vendo, portanto, que a nossa solução não é muito boa.

- Mas o pouco que descreveu não soa de modo nenhum como uma solução, mas como um palpite desesperado.

- Não, digamos antes de um palpite inteligente.

- Quando será a crise, Orador? Quando saberemos se fomos ou não bem sucedidos?

- Dentro de um ano, sem dúvida.

O Estudante considerou aquilo e meneou a cabeça. Apertou a mão do Orador.

- Bem, é bom saber-se. Rodou nos calcanhares e saiu.

O Primeiro Orador olhou para fora em silêncio quando a janela ganhou transparência. Para lá das estruturas gigantescas, para as miríades de estrelas silenciosas.

Um ano passaria célere. Estaria qualquer deles, qualquer dos herdeiros de Seldon, vivo ao final dele.

 

PASSAGEIRA CLANDESTINA

Foi um pouco mais de um mês antes de poder dizer-se ter começado o Verão. Começado, no sentido de Homir Munn ter redigido o seu relatório financeiro final do ano fiscal, cuidando de que o bibliotecário substituto, nomeado pelo Governo, estivesse ao corrente das sutilezas do lugar - o do ano anterior fora absolutamente insatisfatório – e providenciado no sentido de ter o seu pequeno cruzador, o Unimara, batizado em conseqüência de um episódio terno e misterioso de vinte anos antes, desembaraçado da sua complexa proteção de Inverno.

Deixou Terminus muito mal disposto. Não havia ninguém para vê-lo partir. Isso não seria de estranhar, uma vez que ninguém estivera também das outras vezes. Sabia muito bem ser importante que esta viagem não fosse, de maneira alguma, diferente de qualquer outra que tivesse feito anteriormente, mas sentia-se embebido de um vago ressentimento. Ele, Homir Munn, estava arriscando sua vida em façanhas muito arriscadas e contudo deixavam-no só.

Pelo menos assim pensava.

E foi por pensar erradamente que no dia seguinte foi um dia de confusão, quer no Unimara quer na casa suburbana do Dr. Darell. Atingiu primeiro, quanto ao tempo, a casa do Dr. Darell, por intermédio de Poli, a criada, cujas férias de um mês eram agora inteiramente uma coisa do passado. Desceu as escadas correndo, perturbada e balbuciante.

O bom doutor foi de encontro a ela, que tentou em vão transmitir sua emoção em palavras, mas acabou por lhe estender uma folha de papel e um objeto cúbico.

Ele pegou-os de má vontade e perguntou: - o que é que se passa, Poli?

- Ela foi-se embora, senhor doutor.

- Foi-se embora, quem?

- Arcádia!

- Que quer dizer com o seu "foi-se embora"? Foi-se embora para onde? De que é que está falando?

Então ela bateu o pé no chão. - Não sei. Foi-se embora, e há uma mala e algumas roupas que foram com ela, e deixou uma carta. Por que não a lê, ao invés de se deixar imóvel? Ai, os homens!

O Dr. Darell encolheu os ombros e abriu o envelope. A carta não era comprida e, à exceção da assinatura angulosa, "Arkady", era, na escrita enfeitada e fluente, do transcritor de Arcádia.

 

Querido Pai:

Seria simplesmente demasiado pungente dizer-lhe adeus em pessoa. Poderia chora como uma menina, e o Pai ficaria envergonhado comigo. Estou, portanto, escrevendo-lhe uma carta ao invés de dizer-lhe quanto irei sentir sua falta, apesar de ter estas férias de verão absolutamente maravilhosas com o Tio Homir. Terei muito cuidado e não demorarei a voltar para casa. Entretanto, deixo-lhe uma coisa que é muito minha. Agora pode ficar com ela.

Sua filha, que muito lhe quer, Arkady.

 

Leu-a de fio a pavio várias vezes, com uma expressão que se tornava cada vez mais desanimadora. Disse, rígido: - Leu isto, Poli?

Poli permaneceu na defensiva. - Não posso ser censurada por isso, senhor doutor. O envelope tem "Poli" escrito ao lado de fora, e eu não poderia saber que havia uma carta para o senhor lá dentro. Não sou bisbilhoteira, e durante os anos em que estive com...

Darell levantou a mão num gesto apaziguador. - Está muito bem, não importância. Queria apenas certificar-me de que compreendeu o que aconteceu.

Estava refletindo rapidamente. Era inútil dizer-lhe que esquecesse o assunto. Em relação ao inimigo, "esquecer" era uma palavra sem sentido, e a advertência, além de tornar o assunto mais importante, teria o efeito oposto.

Disse ao invés disso: - É uma menina muito original, como sabe. Muito romântica. Desde que lhe arranjamos um meio de ir a passeio pelo espaço, este verão, ficou completamente excitada.

- E por que ninguém me disse nada sobre esse passeio pelo espaço?

- Foi tratado enquanto você esteve fora, e esquecemo-nos. Não é nada mais complicado do que isso.

As emoções originais de Poli encontravam-se agora numa indignação simples e irresistível. - É simples, não é? A pobre menina foi-se embora com uma mala, sem levar consigo roupas decentemente cosidas, e sozinha ainda por cima. Quanto tempo vai permanecer fora?

- Então! Não quero que se preocupe com isso, Poli. Haverá muita roupa para ela na nave. Foi tudo tratado. Pode fazer o favor de dizer ao Sr. Anthor que desejo vê-lo? Ah, mas primeiro, é este o objeto que Arcádia me deixou? - Girou-o na mão.

Poli abanou a cabeça. - Tenho a certeza do que não sei. A carta estava em cima dele, e é tudo o que lhe posso dizer. Esquecer-se de me dizer... realmente. Se a mãe dela fosse viva...

Darell fez-lhe sinal para sair. - Chame o Sr. Anthor, me faz favor.

O ponto de vista de Anthor sobre o assunto diferia radicalmente do do pai de Arcádia. Acentuou as suas observações iniciais com os punhos cerrados e puxões de cabelos e, daí, passou para o azedume.

- Grande Espaço! Por que espera? Por que estamos ambos à espera? Ligue para o aeroporto espacial pelo visor e peça que entrem em contato com o Unimara.

- Mais devagar, Pelleas, ela é minha filha.

- Mas a Galáxia não é sua.

- Ora, espere um pouco. Ela é uma moça inteligente, Pelleas, e pensou isto cuidadosamente. Faríamos melhor em seguir os seus pensamentos enquanto o caso está recente. Sabe o que é esta coisa?

- Não, mas que importância pode ter?

- Tem, porque é um receptor de som.

- Isso?

- E de construção caseira, mas funciona. Verifiquei-o. Não está vendo? E a sua maneira de nos dizer que participou de nossas conversas sobre política. Sabe onde Homir Munn vai e por que. Decidiu que seria excitante ir também.

- Oh, Grande Espaço! - resmungou o homem mais novo. - Mais uma mente para a Segunda Fundação roubar.

- Excetuando que não há razão para que a Segunda Fundação deva, a priori, recear que uma passageira de catorze anos seja um perigo, a não ser que nós façamos qualquer coisa para chamar a atenção sobre ela, tal como fazermos voltar para trás uma nave do espaço sem qualquer outro motivo senão tirá-la de lá. Esquece-se com quem estamos lidando? Quão mínima é a possibilidade que nos separa de sermos descobertos? Como ficaremos indefesos depois?

- Mas não podemos deixar tudo dependente de uma criança desmiolada.

- Ela não é desmiolada, e nós não temos nenhuma opção. Não tinha necessidade de escrever a carta, mas fê-lo para nos impedir de nos dirigirmos á polícia á procura de uma criança perdida. A sua carta sugere que convertamos todo o assunto numa oferta amigável por parte de Munn de levar a filha de um velho amigo para umas curtas férias. E por que não? É meu amigo há quase vinte anos. Conhece-a desde os três anos de idade, quando a trouxe comigo, de regresso de Trantor. É uma coisa perfeitamente natural, e, de fato, deveria até dirimir qualquer suspeita. Um espião não carregaria consigo, de um lado para outro, uma sobrinha de catorze anos.

- Está bem. E que fará Munn quando descobri-la?

O Dr. Darell ergueu os sobrolhos. - Não sei, mas presumo que ela conseguirá maleá-lo.

De qualquer modo, porém, a casa estava muito só naquela noite, e o Dr. Darell descobriu que o destino da Galáxia fazia pouca diferença quando a vida de sua desmiolada filha corria perigo.

A excitação no Unimara, embora envolvendo menos pessoas, foi consideravelmente mais intensa.

No compartimento da bagagem, Arcádia viu-se, em primeiro lugar, auxiliada pela experiência e, em segundo lugar, embaraçada pelo inverso.

Assim, enfrentou a aceleração inicial com firmeza, e a náusea sutilíssima que acompanhava a saída para o primeiro salto através do híper-espaço, com estoicismo. Ambas tinham sido experimentadas em saltos anteriores no espaço, e ela estava tensa ao lhes fazer frente. Sabia, também, que os compartimentos de bagagem estavam incluídos nos sistemas de ventilação das naves e que até podiam ser inundados de luz. Esta última característica excluiu-a, no entanto, por ser pouco romântica. Permaneceu no escuro, como convinha a um conspirador, respirando muito suavemente e escutando a pequena miscelânea de ruídos que cercava Homir Munn.

Eram ruídos indistintos, provocados por um homem sozinho. O arrastar dos sapatos, o farfalhar de tecido de encontro ao metal, o soprar do assento de uma cadeira estofada comprimindo-se sob o peso, o estalo nítido de um interruptor de comando, ou o roçar suave da palma de uma mão por uma célula foto-elétrica.

Havia, no entanto, a falta de experiência que apanhava Arcádia desprevenida. Nos livros-filmes ou nos televisores, os passageiros clandestinos Vem pareciam ter uma capacidade ilimitada para a obscuridade. Claro que havia sempre o perigo de deslocar alguma coisa que caísse com estrondo, ou o de espirrar - na televisão era quase certo que se espirrava. Sabia tudo isto e tinha muito cuidado. Havia, também, a possibilidade de ter de encarar a sede e a fome.Estava prevenida para isso com latas de conserva tiradas da despensa. Mas restavam ainda as coisas que os filmes nunca mencionavam, e Arcádia começou a compreender, com um certo receio que, apesar das melhores intenções do mundo, poderia ficar escondida no compartimento por um tempo limitado.

Ora um cruzador individual de recreio, como era o Unimara, o espaço habitável consistia essencialmente de uma sala única, de modo que não havia sequer a possibilidade arriscada de esgueirar-se para fora do compartimento, enquanto Munn estivesse ocupado em qualquer outro local.

Esperou que chegassem até ela os ruídos do sono. Ainda se soubesse que ele ressonava. Pelo menos saberia de onde se localizava a tarimba, e poderia reconhecer o chiar do colchão quando o ouvisse. Houve um longo suspiro e depois um bocejo. Esperou o silêncio crescente, pontuado pelo ligeiro protesto da tarimba contra uma mudança de posição ou pelo mexer de uma perna.

A porta do compartimento da bagagem abriu-se facilmente á pressão do seu dedo, e o pescoço estendeu-se...

Houve um ruído definitivamente humano que soou abruptamente. Arcádia permaneceu rígida. Silêncio. O silêncio continuava.

Tentou espreitar pela porta, sem mover a cabeça, mas não conseguiu. A cabeça seguia os olhos.

Homir Munn estava naturalmente acordado, lendo na cama, banhado pela luz suave e circunscrita da cabeceira, e fitou a escuridão de olhos muito abertos, estendendo uma das mãos, furtivamente, para debaixo da almofada.

A cabeça de Arcádia recuou precipitadamente/Depois, a luz apagou-se completamente e a voz de Munn disse, com aspereza: - Tenho um desintegrador em mãos e juro pela Galáxia, que disparo.

Então Arcádia gemeu: - Sou eu. Não dispare.

E notável como o romance é uma flor frágil. Uma arma com um atirador nervoso pode estragar a coisa toda.

A luz voltou, em toda a nave, e Munn estava sentado na cama. O cabelo um pouco grisalho no seu peito estreito e a barba de um dia mal semeada no seu queixo, emprestavam-lhe uma aparência inteiramente ilusória de baixeza.

Arcádia saiu do compartimento sacudindo o seu casaco de "metalene" que se supunha ser garantido contra as rugas.

Passado um momento de espanto em que quase saltou da cama mas, lembrando-se, puxou o lençol até os ombros, Munn gaguejou: - O... o... o que...

Era completamente incompreensível.

Arcádia disse, mansamente: - Quer desculpar-me por um instante? Devo lavar as mãos. - Conhecia o interior da nave, e esgueirou-se rapidamente. Quando regressou, com a coragem voltando-lhe pouco a pouco, Homir Munn estava de pé, à sua frente, com um roupão de banho desbotado por fora e uma fúria que o remoia por dentro.

- Pelos buracos negros do Espaço, que está você... fazendo a bordo desta nave? Co...como é que chegou aqui? O que é que você p...pensa que vou fazer com você? O que é que se passa aqui?

Poderia ter feito perguntas indefinidamente, porém Arcádia interrompeu-o suavemente. - Queria apenas ir também, Tio Homir.

- Por quê? Não vou a parte alguma.

- Vai a Kalgan obter informações sobre a Segunda Fundação.

Então Munn emitiu um rugido selvagem e sucumbiu completamente. Durante um momento apavorado, Arcádia pensou que ele iria ter um ataque de histerismo ou bater com a cabeça nas paredes. Estava ainda empunhando o desintegrador, e o estômago dela ficou gelado ao observá-lo.

- Cuidado!... Tenha calma!... - foi tudo quanto pôde dizer.

Ele fez um esforço tremendo para voltar a uma normalidade relativa, e atirou o desintegrador para cima da cama com tanta violência que poderia tê-lo disparado, abrindo um buraco no casco da nave.

- Como conseguiu entrar? - perguntou ele, lentamente, como se estivesse prendendo muito cuidadosamente cada uma das palavras com os dentes, para evitar que tremessem antes de deixá-las sair.

- Foi fácil. Cheguei ao hangar com a minha mala de viagem, e disse: -"A bagagem do Sr. Munn!", e o homem de serviço limitou-se a fazer um gesto com o polegar, sem sequer levantar os olhos.

- Devo levá-la de volta, fique sabendo - disse Homir, e sentiu no seu íntimo uma súbita alegria selvagem ao pensá-lo. Pelo espaço, não era por culpa sua.

- Não pode - disse Arcádia, calmamente. - Chamaria a atenção.

- O que?

- Sabe muito bem. Toda a razão de ser da sua ida a Kalgan foi a de ser natural, para você, ir e pedir autorização para ver os registros do Mulo. E deve ser tão natural que não pode chamar a atenção de nenhum modo. Se regressasse com uma moça, passageira clandestina, poderia até chegar a figurar nas reportagens do telejornal.

- Onde foi b... buscar essas idéias sobre Kalgan? Essas... hum... criancices?... - Estava longe, evidentemente, de ser demasiado loquaz para convencer até alguém que soubesse menos do que Arcádia.

- Ouvi - não pode evitar completamente o orgulho - com um receptor de som. Sei tudo a esse respeito, e, portanto, deve me deixar ir.

- E quanto ao seu pai? - Jogou um trunfo sutil. - Tanto quanto sabe, você foi raptada... morta.

- Deixei um bilhete - disse ela, cobrindo o trunfo - e ele provavelmente sabe que não deve fazer espalhafato, ou seja o que for. Há de receber, talvez, um espacigrama dele.

Para Munn, a única explicação era feitiçaria, pois o sinal do receptor soou furiosamente dois segundos depois de ela acabar de falar.

Eu disse: - Aposto que é o meu pai - e era.

A mensagem não era longa e era dirigida a Arcádia. Dizia: "Muito obrigado pelo seu lindo presente a que tenho a certeza de ter dado boa aplicação. Divirta-se".

- Está vendo? - disse ela. - São as instruções.

Homir habituou-se a ela. Passado algum tempo, estava satisfeito com a companhia dela. Imaginava, eventualmente, como passaria sem ela. Tagarelava! Estava excitada!

Acima de tudo, não estava nada preocupada. Sabia que a Segunda Fundação era o inimigo, mas isso não a incomodava. Sabia que teria de lidar em Kalgan com circunstâncias hostis, mas dificilmente poderia esperar.

Talvez isso resultasse de ter catorze anos.

Fosse como fosse, a viagem de uma semana de duração significava agora conversa ao invés de introspecção. Para ser exato, não era uma conversa muito esclarecedora, uma vez que respeitava, quase integralmente, as idéias da moça sobre o assunto de como tratar melhor com o Senhor de Kalgan. Divertidas e disparatadas, mas expostas com acentuada deliberação.

Homir descobriu-se ser capaz de sorrir ao ouvi-la, e perguntava a si mesmo de que rebento de ficção histórica tirara ela a sua noção distorcida do grande universo.

Era a noite anterior ao último salto. Kalgan era uma estrela brilhante no vazio escassamente refulgente dos confins exteriores da Galáxia. O telescópio da nave fazia dela uma bolha cintilante de diâmetro mal perceptível.

Arcádia estava sentada de pernas cruzadas na cadeira confortável. Vestia calças e camisa não-com-muito-espaço que pertencia a Homir. O seu guarda-roupa, mais feminino, fora lavado e passado a ferro para quando pousassem.

Ela disse: - Vou escrever novelas históricas, sabe? - Estava feliz com o passeio. O Tio Homir não se importava nem um pouco de ouvi-la, e a conversa era muito mais agradável quando se podia falar com uma pessoa realmente inteligente que levava a sério o que ele dissesse.

Continuou: - Li livros e mais livros sobre todos os grandes homens da história da Fundação. Sabe, como Seldon, Hardin, Mallow, Devers e todos os outros. Li até a maior parte do que escreveu acerca do Mulo, apesar de não ser muito agradável ler aquelas partes em que a Fundação parece derrotada. Não preferia ler uma história em que saltassem as partes idiotas e trágicas?

- Sim, preferia - assegurou-lhe Munn, gravemente - mas não seria uma história honesta, não é verdade, Arkady? Jamais alcançará o respeito acadêmico, a não ser que apresentasse a história completa.

- Ora! Quem se importa com o respeito acadêmico? - Ele achava-a deliciosa. Não deixara de lhe chamar Arkady durante dias. - As minhas novelas serão interessantes e vão vender-se e ser famosas. Qual é a vantagem de escrever livros se não se venderem e não se tornarem bem conhecidos? Não quero que me conheçam apenas alguns professores velhos. Deve ser todo o mundo.

Os seus olhos brilharam de prazer a esse pensamento e ajeitou-se numa posição mais confortável. - De fato, logo que consiga que o Pai me deixe, vou visitar Trantor, de modo a colher material de fundo sobre o Primeiro Império. Nasci em Trantor, sabia?

Ele sabia, todavia disse: - Ah, nasceu? - e deu à sua voz a quantidade precisa de admiração. Foi recompensado com algo que ficava entre um raio de luz e um sorriso pretensioso.

- Minha avó... sabe, Bayta Darell, ouviu falar dela... esteve uma vez em Trantor com o meu avô. De fato, foi quando detiveram o Mulo, quando toda a Galáxia estava submetida a ele; e minha mãe e meu pai foram para lá também quando se casaram. Eu nasci lá. Vivi mesmo lá até mamãe morrer; na época tinha apenas três anos e não me lembro de muita coisa. Já esteve alguma vez em Trantor, Tio Homir?

- Não, não posso dizer que estive. - Recostou-se de encontro ao tabique e continuou a ouvi-la distraído. Kalgan estava muito perto, e sentia voltar a inquietação.

- Não é mesmo o mundo mais romântico? Meu pai diz que sob o governo de Stannel V, tinha mais população do que qualquer grupo de dez mundos hoje. Diz que era um grande mundo todo de metal, uma única grande cidade, que era a capital de toda a Galáxia. Mostrou-me cenas que filmou em Trantor. Agora está tudo em ruínas, mas ainda é estupendo. Adoraria voltar a vê-lo. Realmente... Tio Homir!

- O que é?

- Por que não irmos lá depois de deixarmos Kalgan?

Algum do seu receio reapareceu-lhe no rosto. - O que? Não vá agora começar com isso. Isto é trabalho e não recreio, recorde-se.

- Mas é trabalho - retrucou ela. - Pode haver quantidades incríveis de informações em Trantor, não lhe parece?

- Não, não me parece. - Pôs-se de pé. - Agora afaste-se do computador. Vamos realizar o último salto, e depois deitar. - Em todo caso deveria haver algo bom em pousarem; estava farto de tentar dormir em cima de um sobretudo, no chão de metal.

Os cálculos não foram difíceis. O “Manual das Rotas do Espaço" era perfeitamente explícito quanto à rota Fundação-Kalgan. Houve o empuxo momentâneo da passagem através do hiperespaço, e o ano-luz final ficou para trás.

O sol de Kalgan era agora um sol grande, brilhante e amarelo esbranquiçado, invisível atrás das vigias que se haviam fechado automaticamente, do lado iluminado.

Kalgan estava apenas á distância de uma noite de sono.

 

O SENHOR

De todos os mundos da Galáxia, Kalgan era o que apresentava, talvez, a história mais singular. A do planeta Terminus, por exemplo, era de uma ascensão quase ininterrupta. A de Trantor, outrora capital da Galáxia, era a de uma queda quase ininterrupta. Todavia a de Kalgan...

Kalgan ganhou fama inicialmente como o mundo do prazer da Galáxia, dois séculos antes do nascimento de Hari Seldon. Era um mundo de prazer, no sentido de ter montado uma indústria - uma indústria imensamente proveitosa - do divertimento.

E era uma indústria estável. Era a indústria mais estável da Galáxia. Quando toda a Galáxia perecia pouco a pouco como civilização, foi quando muito o peso de uma pluma a catástrofe que se abateu sobre Kalgan. Fosse como fosse que a economia e a sociologia dos setores vizinhos da Galáxia se modificassem, havia sempre uma "elite", e é sempre característica de uma "elite" dispor de lazeres como a maior recompensa da sua qualidade de "elite".

Kalgan esteve ao serviço, sucessivamente, dos janotas enfadados e perfumados da Corte Imperial, com suas mulheres cintilantes e libidinosas; dos condestáveis, rudes, que governavam com austeridade os mundos que conquistaram com sangue, com as suas meretrizes desenfreadas e lascivas; dos homens de negócios gordos e exuberantes da Fundação, com suas amantes apetitosas e perversas.

Não havia discriminação de espécie nenhuma, desde que tivessem dinheiro. E uma vez que Kalgan servia a todos e não excluía ninguém, uma vez que sua comodidade tinha uma procura segura, uma vez que tinha a sensatez de não interferir na política de qualquer mundo, de não avaliar a legitimidade de ninguém, prosperou quando nada mais prosperava, e manteve-se opulenta quando todos caíram na miséria.

Isto é, até o Mulo. Então, de algum modo, caiu perante um conquistador que era alheio ao divertimento ou a qualquer coisa que não fosse a conquista. Para ele todos os planetas se assemelhavam; até Kalgan.

E assim, durante uma década, Kalgan desempenhou o estranho papel de metrópole Galáctica, de senhora do maior Império após a ruína do Império Galáctico.

Então, com a morte do Mulo, tão súbita como a ascensão, veio a queda. A Fundação separou-se e, com ela e depois dela, uma grande parte do resto dos domínios do Mulo. Cinqüenta anos depois apenas permanecera a memória desorientadora daquele curto período de poder, como uma quimera. Kalgan nunca se recompôs completamente. Jamais conseguiu voltar a ser o mundo indiferente de prazer que fora, pois a fascinação do poder nunca larga inteiramente a sua presa. Viveu, ao invés, sob o domínio de uma sucessão de homens a que a Fundação chamou de Senhores de Kalgan, masque se intitulavam a si mesmos Primeiros Cidadãos da Galáxia, numa imitação do único título do Mulo, e que mantinham a quimera de também serem conquistadores.

O atual Senhor de Kalgan mantinha essa posição havia cinco meses. Ganhara-a, de início, por virtude de sua posição à frente da esquadra Kalganiana, e por via de uma lamentável falta de cautela por parte do Senhor anterior. Contudo, ninguém em Kalgan era suficientemente estúpido para se ocupar da questão da legitimidade por demasiado tempo ou demasiado perto. Aquelas coisas aconteciam, e eram aceitas.

No entanto, aquela espécie de sobrevivência dos mais aptos, além de premiar a crueldade e o mal, permitia ocasionalmente que a capacidade se evidenciasse. Lorde Stettin, o Senhor, era bastante competente e não era fácil manejá-lo.

Não era fácil para Sua Excelência, o Primeiro Ministro, que, com uma admirável imparcialidade, servira o último senhor tão bem como o atual, e que, se vivesse bastante tempo, serviria o próximo com a mesma honestidade.

Não era fácil para Lady Callia, que era mais do que amiga de Stettin mas menos do que sua esposa.

Os três estavam sós nessa noite nos aposentos privados de Lorde Stettin. O Primeiro Cidadão, volumoso e resplandecente no uniforme de almirante que adorava, franzia as sobrancelhas, ameaçador, da cadeira não estofada em que estava sentado tão rigidamente como o plástico de que era feita. O seu Primeiro Ministro, Lev Meirus, enfrentava-o com uma indiferença longínqua, afagando distraída e ritmicamente a linha profunda que se encurvava desde o nariz adunco, ao longo da face magra e encovada, até quase á ponta do queixo de barba grisalha. Lady Callia estava graciosamente reclinada sobre a coberta de peles de um sofá de espuma, com os seus lábios carnudos tremendo um pouco num amuo não observado.

- Senhor - disse Meirus. Era a única forma de tratamento utilizada para quem era intitulado apenas Primeiro Cidadão. - Falta-lhe uma certa visão da continuidade da história. Sua própria vida, com as suas tremendas reviravoltas, leva-o a pensar no curso da civilização como algo igualmente dócil a uma modificação súbita. Mas não é.

- O Mulo demonstrou o contrário.

- Mas quem pode seguir suas pegadas? Era mais do que um homem, lembre-se. E também não foi inteiramente bem sucedido.

- Meu cachorrinho - murmurou Lady Callia, encolhendo-se depois ante o gesto furioso do Primeiro Cidadão.

Lorde Stettin disse, asperamente: - Não interrompa, Callia. Meirus, estou farto de inação. O meu antecessor passou a vida preparando a Esquadra para torná-la um instrumento admiravelmente efetivo sem igual na Galáxia. E morreu com essa máquina magnífica jazendo indolentemente. Vou eu contar na mesma? Eu, um Almirante da Esquadra?

- E por quanto tempo antes da máquina enferrujar? Atualmente é um escoadouro do Tesouro e não retribui nada. Os seus oficiais anseiam por domínio e o seus homens por saque. Todo o Kalgan deseja o regresso do Império e a glória. Não pode compreender isso?

- Isso são apenas palavras que utiliza, todavia eu entendo-lhes o sentido. Domínio, saque, glória, agradáveis quando se obtêm, porém o processo de obtê-los é muitas vezes arriscado e sempre desagradável. A primeira maré favorável pode não durar. E, em toda a história, nunca foi sensato atacar a Fundação. Até o Mulo deveria ter sido mais sensato para refrear...

Havia lágrimas nos olhos azuis, vazios, de Lady Callia. Ultimamente o seu "Cachorrinho" mal a via, e agora, quando lhe tinha prometido a noite, aquele homem horrível, magro e grisalho, que olhava sempre através dela ao invés de olhar para ela, forçara a entrada. E o "Cachorrinho" deixara-o entrar. Não ousava dizer nada; até um soluço forçado a aterrorizou.

Stettin falava agora com um tom de voz que ela detestava, dura e impaciente. Dizia: - O senhor é um escravo do passado. A Fundação é maior em volume e população, todavia está mal unificada e desfar-se-á com um sopro. O que os mantém juntos atualmente é apenas a inércia, uma inércia que eu sou suficientemente forte para esmagar. O senhor está hipnotizado pelos velhos tempos em que apenas a Fundação tinha energia atômica. Foram capazes de esquivar-se às últimas marteladas do Império moribundo, e depois enfrentaram apenas a anarquia sem cérebro dos condestáveis, que teriam de opor-se às naves atômicas da Fundação com velhos cascos e restos de naves.

- Mas o Mulo, meu caro Meirus, modificou isso. Espalhou os conhecimentos que a Fundação acumulara para si mesma, através de metade da Galáxia, e o monopólio da ciência foi-se para sempre. Podemos comparar-nos a eles.

- E a Segunda Fundação? - perguntou Meirus, friamente.

- E a Segunda Fundação? - repetiu Stettin, tão friamente como ele. -O senhor conhece suas intenções? Levou dez anos para deter o Mulo, se é que foi realmente ela o fator, do que alguns duvidam. Não está no fato de uma grande maioria dos psicólogos e sociólogos da Fundação serem de opinião que o Plano de Seldon ficou completamente destroçado desde o tempo do Mulo? Se o Plano se foi, então existe um vácuo que eu posso preencher tão bem como o homem que se seguir.

- O nosso conhecimento dessa matéria não é suficientemente grande para garantir o jogo.

- O nosso conhecimento, talvez não, porém temos um visitante da Fundação no Planeta. Não sabia? Um tal Homir Munn que, segundo compreendi, escreveu artigos sobre o Mulo, e exprimiu exatamente essa opinião, de que o Plano de Seldon já não existe.

O Primeiro Ministro meneou a cabeça. - Já ouvi falar dele ou, pelo menos, dos seus escritos. O que pretende ele?

- Pede autorização para entrar no palácio do Mulo.

- Ah, sim? Seria prudente recusar. Nunca é aconselhável perturbar as superstições que mantêm um planeta seguro.

- Levarei isso em consideração, e voltaremos a falar. Meirus inclinou-se e saiu.

Lady Callia disse, lacrimosa: - Está zangado comigo, Cachorrinho?

Stettin voltou para ela ferozmente. - Não lhe disse que nunca me chamasse por esse nome ridículo na presença de outras pessoas?

- Antigamente você o admirava.

- Bem, mas agora não gosto, e que isto não volte a acontecer.

Fitava-a, carrancudo. Era um mistério para ele que ainda a tolerasse. Era uma coisa macia e de cabeça oca, agradável ao tato, com uma feição dócil que era uma faceta conveniente para uma vida áspera. Contudo, até essa afeição estava se tornando aborrecida. Sonhava com o casamento, em será Primeira Dama.

Ridículo!

Estava tudo muito bem enquanto fora apenas almirante, todavia agora, como Primeiro Cidadão e conquistador, precisava de mais. Precisava de herdeiros que pudessem unificar os seus futuros domínios, algo que o Mulo nunca tivera, razão por que o seu Império não sobrevivera á sua estranha vida não-humana. Ele, Stettin, precisava de alguém das grandes famílias históricas da Fundação com quem pudesse fundir as dinastias.

Perguntava a si mesmo, mal-humorado, por que não se livrava de Callia imediatamente. Não haveria perturbações. Ela havia de choramingar um bocado...

Deixou o pensamento de parte.. Tinha também as suas coisas boas, de vez em quando.

Callia começava a ficar mais animada. Desaparecera a influência do Barba-Grisalha, e o rosto de granito do seu "Cachorrinho" estava agora mais suave. Ergueu-se num movimento todo feminino e mostrou-se terna para com ele.

- Não vai ralhar comigo, não?

- Não. - Afagou-a, por instinto. - Agora sente-se quietinha por um bocado, sim? Quero raciocinar.

- Sobre o homem da Fundação?

- Sim.

- Isto foi depois de uma pausa.

- O que é?

- Você disse que o homem tem uma menina com ele. Lembra-se? Posso vê-la quando vier? Eu nunca...

- Para que é que você pensa que eu quero que ele traga a fedelha consigo? Então a minha sala de audiência é algum liceu? Basta de disparates, Callia.

- Mas eu cuidarei dela, Cachorrinho. Nem tem que incomodar-se com ela. É só porque raramente vejo crianças, você sabe como gosto delas.

Olhou-a com sarcasmo. Nunca se cansava daquela aproximação. Gostava de crianças, isto é, de crianças filhas dele, isto é, de crianças filhas legítimas dele, isto é, do casamento. Riu-se.

- Neste caso, esta coisinha pequena - disse ele - é uma grande moça de catorze ou quinze anos. Talvez seja tão alta quanto você.

Callia pareceu esmagada. - Bom, seja como for, posso? Ela poderia falar-me da Fundação. Sempre desejei ir lá, bem sabe. O meu avô era um homem da Fundação. Não me leva lá algum dia, Cachorrinho?

Stettin sorriu ao pensamento. Talvez a levasse como conquistador. A boa disposição que o pensamento lhe deu fez-se sentir nas suas palavras: - Levo, sim, levo. E pode ver a garota e falar com ela sobre a Fundação tanto quanto quiser. Mas não ao meu lado, entende?

- Garanto-lhe que não o incomodo. Falarei com ela nos meus aposentos. – Estava novamente feliz. Não era muito freqüente, nos últimos tempos, ser-lhe permitido levar avante seus caprichos. Deitou-lhe os braços ao pescoço e, após um ligeiríssima hesitação, sentiu os tendões dele descontraírem-se e a grande cabeça veio pousar-se suavemente no seu ombro.

 

A SENHORA

Arcádia sentia-se triunfante. Como a vida se transformara desde que Pelleas Anthor encostara a cara de idiota à sua janela, e tudo por que ela tivera a visão e a coragem de fazer o que devia ser feito.

Ali estava ela em Kalgan. Fora ao grande Teatro Central, o maior da Galáxia, e vira em pessoa alguns dos cantores, famosos até na distante Fundação. Fizera compras sozinha ao longo da Via Florida, centro da moda do mundo mais alegre do Espaço. E fizera a sua própria escolha, pois Homir não entendia absolutamente nada daquilo. As vendedoras não fizeram absolutamente nenhuma objeção aos vestidos compridos e brilhantes com aquelas riscas verticais que a faziam parecer tão alta, e o dinheiro da Fundação dava para tudo.

Homir dera-lhe uma nota de dez créditos, e quando a trocou em notas Kalganianas transformou-se num maço bastante volumoso.

Fizera até um novo penteado, meio curto atrás com dois brilhantes caracóis em cada uma das têmporas. E o cabelo fora tratado de tal maneira que parecia mais dourado do que nunca; brilhava, pura e simplesmente.

Mas isto; isto era o melhor de tudo. Para ser franco, o Palácio de Lorde Stettin não era tão grandioso e pródigo de luxo como os teatros, ou tão misterioso e histórico como o antigo palácio do Mulo, no qual até então apenas avistaram as torres solitárias lançadas para as alturas, mas era, imagine-se, o palácio de um autêntico Lorde. Sentia-se arrebatada pela glória do momento.

Mas não era só isso. Estava agora frente a frente com a Amante dele. Arcádia tinha a palavra no seu espírito com letra maiúscula, pois sabia o papel que tais mulheres haviam desempenhado na história, sabia do seu encanto e poder. De fato, pensara muitas vezes em vir a ser, ela própria, uma dessas criaturas brilhantes e todo-poderosas, mas, fosse como fosse, as amantes não estavam então na moda na Fundação e, além disso, o Pai não a deixaria se as coisas se encaminhassem para essa direção.

Com certeza Lady Callia não se ajustava perfeitamente à noção que Arcádia tinha do papel. Por um lado era ela rechonchuda e, por outro, não parecia de modo nenhum ser perversa e perigosa, antes como que míope e curta de vista. A sua voz, também, era estridente ao invés de rouca, e...

Callia disse: - Quer mais chá, minha filha?

- Tomo mais uma chávena, muito obrigada, Sua Senhoria. - (Ou seria sua majestade?).

Arcádia continuou, com a condescendência de um conhecedor: - Que lindas pérolas as que traz, Senhora. (Assim, por extenso, "Senhora", parecia melhor).

- Oh! Acha que sim? - Callia pareceu ficar vagamente satisfeita. Tirou-as e fê-las balouçar, lácteas, de um lado para o outro. - Gosta delas? Pode ficar com elas, se gosta.

- Oh!... Quer realmente dizer... - Encontrou-se com elas na mão, e então, repelindo-as pesarosa, disse: - O meu pai não gostaria.

- Não gostaria das pérolas? São umas pérolas lindas...

- Não gostaria de que as aceitasse, quero dizer. Ele diz que não se devem aceitar presentes caros das outras pessoas.

- Não se deve? Todavia... quero eu dizer, isto foi um presente do Cacho... do Primeiro Cidadão. Acha que não foi correto eu aceitar?

Arcádia corou. - Não tinha a intenção...

Callia cansara-se do assunto. Deixou as pérolas caírem no aposento, e disse: - Vai contar-me coisas da Fundação. Conte, imediatamente, por favor.

Arcádia ficou de repente sem saber o que dizer. Que pode dizer-se de um mundo enfadonho até às lágrimas? Para ela, a Fundação era uma cidade suburbana, uma casa confortável, as necessidades aborrecidas da educação, as eternidades sem interesse de uma vida calma. Disse, incerta: - E tal qual como se vê nos livros-filmes, suponho eu.

- Oh, vê livros-filmes? Eles me provocam uma dor de cabeça tão grande quando tento... Mas, sabe? Sempre gostei de histórias de amor da televisão sobre, os seus comerciantes, homens grandes e selvagens. É sempre excitante. O seu amigo, o senhor Munn, é um deles? Não parece nem de perto ser selvagem. A maior parte dos comerciantes tinham barbas e grandes vozes de baixo, e eram tão dominadores com as mulheres... não acha?

Arcádia sorriu de leve: - Isso é apenas parte da História, Senhora. Quero dizer quando a Fundação era jovem, os comerciantes eram os pioneiros que alargavam as fronteiras e levavam a civilização ao resto da Galáxia. Aprendemos tudo isso na escola. Mas esse tempo passou. Já não temos comerciantes ; apenas Companhias e coisas assim.

- Realmente? Que pena. Então que faz o Sr. Munn, se não é um comerciante?

- O Tio Homir é bibliotecário.

Callia levou uma das mãos á boca e riu-se furtivamente. - Quer dizer que cuida de livros-filmes? Ora esta! Parece uma coisa tão idiota para um adulto fazer.

- É um bibliotecário muito bom, Senhora. É uma ocupação que é muito bem vista na Fundação. - Pousou a pequena chávena de chá, brilhante, na mesa metalizada de um branco alvíssimo.

Sua hospedeira mostrou-se muito pesarosa. - Mas, minha querida filha,, tenho a certeza de que não quis ofendê-la. Deve ser um homem muito inteligente. Pude vê-lo nos seus olhos logo que o vi. Eram tão... tão inteligentes. E deve ser valente, também, para querer ver o palácio do Mulo.

- Valente? - A vigilância interior de Arcádia agitou-se. Era daquilo que estava à espera. Intriga! Intriga! Perguntou, com grande indiferença, fitando indolentemente a ponta do polegar. - Por que é preciso ser-se valente para ver o palácio do Mulo?

- Não sabe? - Os seus olhos arredondaram-se e a sua voz baixou de tom. – Está amaldiçoado. O Mulo, quando morreu, ordenou que ninguém lá entrasse até ser estabelecido o Império da Galáxia. Ninguém em Kalgan, se atreveria a entrar nem nos terrenos.

Arcádia ponderou aquilo. - Mas isso é uma superstição!...

- Não diga isso. - Callia ficou aflita. - O Cachorrinho diz sempre isso, embora diga também que é melhor dizer que não é, para manter o domínio sobre o povo. Contudo, noto que ele próprio nunca foi lá. Thallos também nunca esteve lá, ele que era Primeiro Cidadão antes do Cachorrinho. - Ocorreu-lhe um pensamento e voltou a ser toda ela curiosidade. - Mas por que deseja o Sr. Munn ver o palácio?

E foi aqui que o plano cuidadoso de Arcádia pôde entrar em ação. Sabia muito bem pelos livros que a amante de um dirigente era o poder real atrás do trono, que era ela a verdadeira mola de influência. Por conseguinte, se o tio Homir falhasse com Lorde Stettin, e tinha a certeza de que falharia, ela devia reparar essa falha com Lady Callia.

Com toda a fraqueza, Lady Callia tinha algo de um enigma. Não parecia nada esperta..Mas o certo era que toda a história provava...

Disse: - Há uma razão, Senhora, mas guardá-la-á como um segredo?

- Juro-o - disse Callia, fazendo um sinal apropriado sobre a brancura macia e encapelada do seu seio.

Os pensamentos de Arcádia mantiveram-se uma frase adiante das palavras. - O Tio Homir foi uma grande autoridade sobre o Mulo, sabe? Escreveu livros e mais livros sobre isso, e pensa que toda a História Galáctica foi modificada desde que o Mulo conquistou a Fundação.

- Oh, que pena!

- Pensa que o Plano de Seldon...

Callia bateu as palmas. - Do Plano de Seldon eu sei. Os programas de televisão sobre os comerciantes eram sempre sobre o Plano de Seldon. Supunha-se que arranjava maneira de a Fundação ganhar sempre. A ciência tinha qualquer coisa a ver com isso, embora eu nunca conseguisse ver bem como. Fico sempre tão inquieta quando tenho de ouvir explicações. Mas continue, continue, minha querida. É diferente quando é a menina a explicar. Faz parecer tudo tão claro.

Arcádia continuou: - Bem, então não vê que, quando a Fundação foi derrotada por Mulo, o Plano de Seldon não funcionou desde então? Portanto, quem estabelecerá o Segundo Império?

- O Segundo Império?

- Sim, um dia tem de ser estabelecido um, mas como? É esse o problema, está vendo? E há a Segunda Fundação.

- A Segunda Fundação? - Estava completamente perdida.

- Pois, há os planejadores da história, que estão seguindo as pegadas de Seldon. Detiveram o Mulo por ele ser prematuro, porém agora podem estar apoiando Kalgan.

- Porquê?

- Por que Kalgan pode oferecer agora a melhor oportunidade de ser o núcleo de um novo Império.

Obscuramente, Lady Callia parecia ser capaz de compreender aquilo. -Quer dizer que o Cachorrinho vai fundar um novo Império?

- Não podemos afirmá-lo. O Tio Homir pensa que sim, mas tem que ver os registros do Mulo para descobri-lo.

- É tudo muito complicado - disse Lady Callia, indecisa.

Arcádia desistiu. Fizera o melhor que pudera.

 

Lorde Stettin andava de muito mau humor. A conversa com o maricas da Fundação não fora absolutamente nada compensadora; pior, fora embaraçosa. Ser o senhor absoluto de vinte e sete mundos, chefe da maior máquina militar da Galáxia, possuidor da mais alta ambição do Universo, e ficar reduzido a debater disparates com um antiquário.

Maldição!

Iria violar os costumes de Kalgan? Iria permitir que o palácio do Mulo fosse revirado para um doido poder escrever mais um livro? A causa da ciência! O caráter sagrado do conhecimento! Grande Galáxia! Podiam ser-lhe aqueles lugares comuns atirados à cara com toda a seriedade? Além disso, e sentiu um ligeiro arrepio ao pensá-lo, havia o caso da maldição. Não acreditava nela, nenhum homem inteligente poderia acreditar, mas se a desafiasse teria de ser por uma razão melhor do que as apresentadas por aquele.

- O que é que você quer? - disparou ele, e Lady Callia encolheu-se visivelmente no vão da porta.

- Está ocupado?

- Estou. Estou ocupado.

- Mas não há ninguém,Cachorrinho. Não poderia falar contigo só por um minuto?

- Oh, Galáxia! O que quer? Apresse-se.

As palavras dela foram vacilantes. - A moça disse-me que iam ao palácio do Mulo. Pensei que podíamos ir com ela. Deve ser maravilhoso lá por dentro.

- Ah, ela lhe disse isso, não disse? Pois muito bem, nem vai ela nem vamos nós. Agora vá cuidar de sua vida. Basta de aturá-la.

- Mas, Cachorrinho, por que não? Não vai deixá-los ir? A moça disse que você iria fundar um Império!...

- Não me interessa o que ela disse... Que foi que você disse? - Deu ujn grande passo para ela e agarrou-a firmemente acima do cotovelo, de modo que os seus dedos afundaram-se profundamente na carne macia. - Que foi que ela disse?

- Está me machucando. Não consigo lembrar-me do que ela disse, se continua a olhar para mim assim.

Largou-a, e ela ficou um momento esfregando em vão as marcas vermelhas.

Lamentou-se: - A moça fez-me prometer que não diria.

- Tenho muita pena, mas diga lá! E já!

- Bom, ela disse que o Plano de Seldon estava modificado e que havia outra Fundação em algum lugar que estava trabalhando para você construir um Império. É tudo. Disse que o Sr. Munn era um cientista muito importante e que o palácio do Mulo teria provas de tudo isso. Foi tudo o que ela disse. Está zangado?

Mas Stettin não respondeu. Deixou a sala, apressadamente, seguido pelos olhos espantados de Callia que o fitavam tristemente. Foram expedidas duas ordens sob o selo oficial do Primeiro Cidadão, passada menos de uma hora. Uma teve o efeito de mandar quinhentas naves de combate para o espaço, para o que se designava oficialmente como "manobras". A outra teve o efeito de lançar um único homem na confusão.

Homir Munn cessou os seus preparativos para partir quando a segunda ordem lhe chegou às mãos. Era, evidentemente, a autorização oficial para entrar no palácio do Mulo. Leu-a e releu-a, com tudo menos alegria.

Arcádia estava deleitada. Sabia o que acontecera.

Ou, fosse como fosse, pensava que sabia.

 

ANSIEDADE

Poli pôs o almoço na mesa sem deixar de manter os ouvidos no gravador de notícias que transmitia tranqüilamente os boletins do dia. Aquele trabalho podia ser feito com bastante facilidade, sem perda de eficiência. Dado que todos os tipos de comida eram enlatados, devidamente esterilizados, em embalagens que serviam como unidades preparadoras, os seus deveres quanto ao almoço não consistiam em mais do que escolher o cardápio, colocando as diversas iguarias na mesa e recolhendo os resíduos depois.

Deu um estalo com a língua perante o que viu, e queixou-se em voz baixa, apreciando.

- Oh, as pessoas são tão ruins - disse ela, e Darell apenas pigarreou como resposta. A voz dela elevou-se para o tom estridente que empregava para deplorar o mal do mundo.

- Ora, por que é que estes terríveis Kalganianos fazem uma coisa destas? Poderia pensar-se que dessem paz às pessoas. Mas não, é só inquietação e sempre inquietação.

- Ora, olhe para aquele cabeçalho: - "Multidões em motim diante do Consulado da Fundação". Oh, como eu gostaria de lhes dar um bocado do meu espírito, se pudesse! É esse o mal das pessoas, é que nem sequer se lembram. Nem sequer se lembram, Sr. Dr., não têm memória de espécie alguma. Veja a última guerra depois do Mulo morrer... claro que eu era uma menina... mas veja o rebuliço e a aflição. O meu tio foi morto, tendo só vinte e poucos anos e só depois de casado, com uma filhinha. Ainda agora me lembro dele... tinha cabelo loiro e uma covinha no queixo. Tenho um cubo trimensional dele em algum lugar...

- E agora a filhinha dele já tem um filho na Esquadra, e o mais provável, se acontecer alguma coisa...

- E tivemos as patrulhas do bombardeio, e todos os velhos prestando serviço, em turnos, na defesa estratosférica... Posso imaginar o que seriam capazes de fazer se os Kalganianos chegassem tão longe. Minha mãe costumava falar-nos do racionamento de alimentos, dos preços e dos impostos. Uma pessoa mal conseguia sobreviver com o que tinha...

- Podia pensar-se que as pessoas, se tivessem juízo, nunca mais haveriam de querer começar outra vez a coisa, nunca mais haveriam de querer ter nada com isso. E eu suponho que também não é o povo que quer; creio que os Kalganianos também prefeririam ficar sentados em casa com as suas famílias a andarem por aí em naves, feitos doidos, arriscando-se a morrer. É aquele homem horrível, Stettin. É assombroso como se deixam viver pessoas assim. Mata o velho... qual é o nome dele?... Thallos, e agora só está ansioso por ser o senhor de tudo. E não sei porque ele quer lutar contra nós. Está condenado a ser vencido como os demais o foram. Talvez esteja tudo no Plano, mas ás vezes tenho de que deve ser um plano muito perverso para conter tantas lutas e s, embora, falando a verdade, não tenha nada a dizer de Hari Seldon por que, tenho a certeza, sabe muito mais disso do que eu, e talvez eu seja ida em pô-lo em dúvida... E a outra Fundação também é merecedora de censura. Podiam deter Kalgan agora, e pôr tudo em ordem. De qualquer maneira hão de fazê-lo no fim, e pode pensar-se que o deviam fazer antes de ter provocado qualquer dano.

- Disse alguma coisa, Poli?

Os olhos de Poli abriram-se muito e depois semicerraram-se encolerizados. - Não, nada, Sr. Dr., absolutamente nada. Não tenho nem uma palavra a dizer. É mais fácil uma pessoa sufocar-se até à morte do que dizer uma palavra nesta casa. Anda-se de um lado para o outro, numa roda-viva, mas tenta dizer uma palavra... - E foi-se embora, agitada.

A saída dela causou tão pouca impressão a Darell como lhe fizera o seu falar.

Kalgan! Disparate! Um inimigo meramente físico! Esses foram sempre batidos!

Contudo não podia divorciar-se daquela crise tola. Sete dias antes, o prefeito pedira-lhe que fosse o Diretor de Pesquisa e Desenvolvimento. Prometera uma resposta nesse dia.

Bem...

Irritou-se, inquieto. Por que ele? Poderia recusar? Pareceria estranho, e não ousava parecer estranho. Afinal de contas, que lhe importava Kalgan? Para ele havia apenas um inimigo. Sempre houvera apenas um.

Enquanto sua mulher fora viva, fora demasiado feliz para não se esquivar à tarefa, para não se esconder. Aqueles dias longos e calmos em Trantor,, com as ruínas do passado à sua volta! O silêncio de um mundo arruinado e o esquecimento de tudo!

Mas ela morrera. Haviam sido, ao todo, menos de cinco anos, e compreendeu depois disso que apenas poderia viver lutando contra aquele vago e temível inimigo que o privava da dignidade de ser humano controlando o seu destino, que fazia da vida uma luta miserável contra um fim predeterminado, que fazia de todo o universo um jogo de xadrez odioso e mortal.

Chamassem-lhe sublimação; era ele o primeiro a chamar-lhe assim, contudo a luta dera sentido à sua vida.

Primeiro fora na Universidade de Santanni, onde se juntara ao Dr. Kleise. Haviam sido cinco anos bem empregados.

E no entanto Kleise era um mero colecionador de dados. Não poderia ser bem sucedido na tarefa real, e quando Darell sentiu isso como uma certeza, viu que era tempo de deixá-lo.

Kleise tinha artífices trabalhando em segredo para ele e com ele, tinha indivíduos cujos cérebros investigava, tinha uma Universidade atrás de si. Tudo isto eram fraquezas. Kleise não podia compreender isso, e ele, Darell, não podia explicar-lho. Tornaram-se inimigos. Estava bem, assim tinha de ser. Tinha de abandonar renunciando, para o caso de alguém vigiar.

Onde Kleise trabalhava com mapas, Darell operou com conceitos matemáticos nos recessos de sua mente. Kleise trabalhava com muitos homens; Darell com nenhum.

Kleise, numa Universidade; Darell no silêncio de uma casa de subúrbio.

E estava quase atingindo o que pretendia.

Um homem da Segunda Fundação não é humano, pelo menos no que diz respeito ao seu cérebro. O fisiologista mais hábil, o neuroquímico mais sutil poderiam não detectar nada, que a diferença lá deveria estar no entanto. E desde que a diferença era da mente, era nela que deveria ser detectável.

Um homem como o Mulo - e não havia dúvida de que os homens da Segunda Fundação tinham os poderes do Mulo, congênitos ou adquiridos com o poder de detectar e controlar as emoções humanas, deduzir daí o circuito eletrônico necessário para o efeito, e deduzir dele os últimos pormenores do encefalógrafo em que não pudesse deixar de ser denunciado.

E agora Kleise voltara à sua vida, na pessoa do seu jovem e ardoroso aluno, Anthor.

Tolice! Tolice! Com os seus gráficos e mapas de gente que tinha sido influenciada. Aprendera a detectar aquilo havia anos, mas para que servia? Queria o braço; não a ferramenta. Tivera, porém, de concordar em juntar-se a Anthor, uma vez que era a maneira de agir mais tranqüila.

Tal como agora se tornaria o Administrador de Pesquisa e Desenvolvimento. Era o modo de proceder mais sossegado! E assim se mantinha como um conspirador dentro de uma conspiração.

O pensamento de Arcádia atormentou-o por um momento, e fugiu dele, estremecendo. Se o houvessem deixado entregue a si mesmo, aquilo nunca teria acontecido; se o houvessem deixado entregue a si mesmo, jamais alguém teria estado em perigo senão ele; se o houvessem deixado entregue a si mesmo...

Sentiu crescer a ira contra o falecido Kleise, contra o vivo Anthor, contra todos os tolos bem intencionados...

Bem, ela poderia tomar conta de si mesma. Era uma mocinha muito ajuizada.

Poderia tomar conta de si mesma!

Isto era um murmúrio na sua mente...

Poderia mesmo?

No momento em que o Dr. Darell dizia de si para si, pesarosamente, que poderia, estava ela sentada na antecâmara austera do Serviço Executivo do Primeiro Cidadão da Galáxia. Estava ali sentada havia meia hora, correndo os olhos lentamente pelas paredes. Havia dois guardas armados à porta quando entrara com Homir Munn. Em outras circunstâncias não permaneciam lá.

Estava só, agora, mas sentia a inimizade da própria mobília da sala. E pela primeira vez.

Por que seria?

Homir estava com Lorde Stettin. Bom, haveria algum mal nisso?

Não o saber deixava-a furiosa. Em situações semelhantes, nos livros-filmes na televisão, o herói previa a conclusão, estava preparado para ela quando chegava... e ela... limitava-se a ficar ali sentada. Tudo podia acontecer. Tudo E ela ali sentada, nada mais. Bem, voltar novamente atrás. Recordar o que se passara. Talvez surgisse alguma coisa.

Durante duas semanas, Homir passara dentro do palácio do Mulo. Levara-a lá uma vez, com autorização de Stettin. Era grande e horrivelmente maciço, fugindo ao toque da vida para jazer adormecido dentro de suas memórias, respondendo às passadas com um estalido oco ou um barulho selvagem. Não gostara dele.

Antes as grandes e alegres estradas reais da cidade-capital, os teatros e espetáculos de um mundo essencialmente mais pobre do que a Fundação, mas gastando grande parte de sua riqueza em ostentação.

Homir voltava à noite. Maravilhava-se...

- É um mundo de sonhos para mim - dizia ele. - Se pudesse ao menos demolir o palácio pedra por pedra, camada por camada de alumínio esponjoso. Se pudesse transportá-lo para Terminus. Que museu faria.

Parecia ter perdido a relutância anterior. Estava, ao invés, impaciente, inflamado.

Arcádia sabia-o pelo único sinal seguro: não gaguejava durante esse tempo.

Uma vez disse: - Há resumos dos registros do General Pritcher...

- Conheço o nome: Foi o renegado da Fundação que vasculhou a Galáxia em busca da Segunda Fundação, não foi?

- Não precisamente um renegado, Arkady. O Mulo convertera-o.

- Oh, é a mesma coisa!

- A procura a que se referiu era uma tarefa sem esperança. Os registros originais da Convenção de Seldon, estabelecendo ambas as Fundações há quinhentos anos, fazem apenas leve referência à Segunda Fundação. Dizem que está localizada "no outro extremo da Galáxia, na Ponte das Estrelas". Era tudo quanto o Mulo e Pritcher tinham para investigar. Não tinham meios de reconhecer a Segunda Fundação mesmo que a encontrassem. Que loucura!

- Há registros - Falava ele para consigo, porém Arcádia ouvia avidamente - que devem abranger perto de um milhar de mundos, não obstante o número de mundos disponíveis para estudo tenha sido de aproximadamente um milhão. E não estamos melhor quanto...

Arcádia interrompera-o ansiosamente, sibilando com rispidez: - Shhh-h! Homir ficara rígido e voltara depois, lentamente, à posição anterior. -É melhor não falarmos - resmungara ele.

E agora Homir estava com Lorde Stettin e Arcádia esperava do lado de fora, sozinha, sentindo o sangue palpitar-lhe no coração sem nenhuma razão. Aquilo era mais assustador do que qualquer outra coisa, o fato de parecer não haver razão.

Do outro lado da porta, também Homir estava em papos-de-aranha. Lutava com uma intensidade furiosa para evitar gaguejar mas, evidentemente, mal podia, como resultado, pronunciar claramente duas palavras seguidas.

Lorde Stettin estava com seu uniforme de gala, com os seus metro e oitenta de altura, queixada larga e boca dura. Os seus punhos maciços e arrogantes acentuavam poderosamente as frases.

- Muito bem, teve duas semanas e vem-me com contos da carochinha. Vamos, diga-me o pior. A minha Esquadra vai ser arrasada? Terei de combater os fantasmas da Segunda Fundação tal como os homens da Primeira?

- Eu... eu repito, Senhor, não sou a...adi...adivinho. Eu... eu estou com...completamente a... atrapalhado.

- Ou quer regressar para avisar os seus compatriotas? A sua comédia que vá para o Espaço Perdido. Quero a verdade, senão tenho de lha tirar juntamente com metade das suas tripas.

- Estou di... di... dizendo-lhe só a verdade e permito-me lem... lembrar-lhe, Se... Senhor, que sou um cidadão da Fundação. N... não pode tocar-me sem sofrer as conseqüências.

O Senhor de Kalgan riu estrepitosamente. - Uma ameaça para assustar crianças. Um horror suficiente para derrotar um idiota. Olhe, senhor Munn, olhe que eu fui paciente com o senhor. Ouvi-o durante vinte minutos, enquanto o senhor esmiuçava disparates enfadonhos que devem ter-lhe custado noites de insônia para compor. Foi um esforço perdido. Eu sei que não está aqui apenas para remexer o passado do Mulo e para se divertir com elas. Veio aqui por mais do que admitiu. Não é verdade?

Seria tão impossível Homir Munn extinguir o ardente pavor que crescia nos seus olhos, como deixar de respirar nesse momento. Stettin viu-o e deu uma palmada no ombro do homem da Fundação que ele e a cadeira em que estava sentado vacilaram com o impacto.

- Ora bem! Agora vamos ser francos. O senhor está investigando o Plano de Seldon. Sabe que ele já não existe. Sabe, talvez, que sou eu agora o vencedor inevitável; eu, e os meus herdeiros. Então, homem, que interessa quem funde o Segundo Império, desde que seja fundado? A história não tem favoritos, ou tem? Tem medo de me dizer? Está percebendo que conheço sua missão...

Munn perguntou, com dificuldade: - Que... que... que quer de... de mim?

- A sua presença. Não quero ver o Plano estragado por excesso de confiança. O senhor percebe mais destas coisas do que eu; pode descobri pequenas falhas que poderiam passar-me. Vamos, no fim será recompensado; terá um quinhão generoso no saque. Que pode esperar da Fundação? Que vire a maré de uma derrota talvez inevitável? Que prolongue a guerra? Ou é apenas um desejo patriótico de morrer pela sua terra?

Eu eu... - e mergulhou finalmente no silêncio. Não conseguia articular palavra.

- Ficará - disse o Senhor de Kalgan, confiante. - Não tem escolha. Ah é verdade... – era uma idéia quase esquecida - estou informado de que sua sobrinha é da família de Bayta Darell.

Homir proferiu um "Sim" sobressaltado. Não podia confiar em si próprio até o ponto de tecer qualquer coisa que não fosse a verdade nua e crua.

- É uma família de realce na Fundação?

Homir inclinou a cabeça num sinal afirmativo. - À qual não tolerariam certamente que... que... que se fizesse mal.

- Fazer mal! Não seja tolo, homem! Estou pensando no contrário. Que idade tem ela?

- Catorze anos.

- Ah, sim? Bem, nem sequer a Segunda Fundação, ou até o próprio Hari Seldon, poderiam impedir o tempo de passar ou as garotas de se tornarem mulheres.

Dito isto, voltou-se e alcançou a grandes passadas uma porta, que abriu violentamente.

Trovejou: - Por que cargas d'água é que trouxe sua carcaça para cá? Lady Callia pestanejou, olhando para ele, e disse com voz sumida:

- Não sabia que havia alguém com você.

- Mas há. Hei de falar com você mais tarde; agora quero vê-la pelas costas, e rapidamente.

Os passos dela eram ouvidos numa fuga precipitada ao longo do corredor. Stettin regressou.

- Ela é um dos restos de um intervalo que durou demasiado tempo. Acabará dentro em pouco. Catorze anos, foi o que disse?

Homir permaneceu olhando para ele com um horror jamais visto.

Arcádia estremeceu ao abrir-se silenciosamente uma porta, dando um salto ao aperceber-se do movimento pelo canto do olho. O dedo que a chamava ansiosamente não encontrou resposta durante uns longos momentos e, depois, como que correspondendo à precauções forçadas pela própria vista daquela figura branca e trêmula, dirigiu-se para ela nas pontas dos pés.

Os passos delas era um som abafado no corredor. Era Lady Callia, evidentemente, que lhe pegava na mão com tanta força que a magoava e, por qualquer razão, não se importava de segui-la. De Lady Callia, pelo menos, não tinha receio.

Mas por que aquilo?

Estavam agora no quarto de vestir, todo cor-de-rosa e açúcar em fios. Lady Callia encostou-se á porta, com ela.

Disse:

- Este é o caminho privado para ele vir ter comigo, do seu gabinete... ao meu quarto. Do dele, sabe? - e apontava com o polegar, como se até o pensamento dele lhe esmagasse a alma com medo.

- É uma sorte... é uma sorte... - As suas pupilas haviam ocultado o azul.

- Pode dizer-me... - começou Arcádia, timidamente. Mas Calha já estava se movendo ansiosamente.

- Não, filha, não. Não há tempo. Despe suas roupas. Por favor. Por favor. Arranjo-lhe outras e assim não a reconhecerão.

Já estava em frente do roupeiro, atirando trapos inúteis para o chão, em montes descuidados, procurando desesperadamente qualquer coisa que uma moça pudesse usar sem tornar-se um convite vivo para divertimentos amorosos.

- Aqui esta. Isto serve. Tem de servir. Tem dinheiro? Tome, leve-o todo... e mais isto - e depois despojou as orelhas e os dedos. - Vá para casa... regresse à sua Fundação.

- Mas Homir... o meu tio. - Protestou em vão através das dobras do tecido metálico finamente perfumado, luxuoso, que lhe estava sendo enfiado à força pela cabeça.

- Não sairá daqui. O Cachorrinho retê-lo-á para sempre, mas você não deve ficar. Oh, querida, não compreende?

- Não. - Arcádia forçou uma pausa. - Eu não compreendo.

Lady Callia apertou as mãos fortemente uma de encontro á outra.

- Deve voltar para avisar sua gente de que vai haver guerra. Está claro? - O terror absoluto parecia paradoxalmente ter emprestado aos seus pensamentos uma lucidez que estava inteiramente fora da sua índole. - Agora saia daqui!

Saíram por outro caminho. Passaram por oficiais que as olhavam, mas não viam razão para deter alguém que só o Senhor de Kalgan podia deter com impunidade. Os guardas batiam os calcanhares e apresentavam armas quando elas passavam pelas portas.

Arcádia mal respirou durante os anos que o percurso pareceu levar. Contudo, desde o aceno do dedo branco até chegar fora do portão exterior, com gente, barulho e trânsito à distância, haviam transcorrido apenas vinte e cinco minutos.

Olhou para trás com uma piedade súbita e amedrontada.

- Eu... eu... não sei por que está fazendo isto, Senhora, mas muito obrigada... Que vai acontecer ao tio Homir?

- Não sei - lastimou-se a outra. - Apresse-se! Vá direto ao aeroporto. Não espere. Ele pode estar â sua procura justamente neste momento.

Arcádia, porém, ainda hesitava. Abandonaria Homir e, agora que sentia o ar livre à sua volta, começava a desconfiar, embora tardiamente.

- Mas que lhe importa que ele o faça?

Lady Callia mordeu o lábio inferior e murmurou :

- Não posso explicá-lo a uma menina como você. Seria impróprio. Mas há de crescer, e eu... eu conheci o Cachorrinho quando tinha dezesseis anos. Não posso consentir que fique, entende? - Havia uma hostilidade um tanto receosa nos olhos dela.

As implicações gelaram Arcádia. Disse, num murmúrio:

- Que fará ele a você quando descobrir?

Respondeu, lamuriosa:

Não sei - e levou uma das mãos à cabeça enquanto partia, quase correndo ao longo do largo caminho de acesso ao palácio do Senhor de Kalgan.

Arcádia continuou por um segundo eterno, sem se mover, pois naquele momento, antes de Lady Callia deixá-la, vira qualquer coisa. Aqueles olhos amedrontados, frenéticos, tinham-se iluminado momentaneamente, como um relâmpago, com um divertimento frio.

Um divertimento imenso, não-humano.

Era enxergar muito num piscar tão rápido de um par de olhos, contudo Arcádia não tinha dúvidas sobre o que vira.

Corria agora, corria desesperadamente, procurando loucamente uma cabina pública desocupada onde se pudesse telefonar e pedir um transporte público.

Não estava fugindo de Lorde Stettin, não estava fugindo dele nem de todos os cães de caça humanos que pudessem lançar-lhe aos calcanhares, nem de todos os seus vinte e sete mundos enfeixados num único fenômeno gigantesco, açulado à sua sombra. Estava fugindo de uma simples e frágil mulher que a ajudara a evadir-se; de uma criatura que a carregara com dinheiro e jóias, que arriscara a sua própria vida para salvá-la; de uma entidade que sabia, com certeza e finalmente, ser uma mulher da Segunda Fundação.

Um táxi aéreo desceu suavemente com um ligeiro ruído. A deslocação do ar roçou a face de Arcádia e agitou-lhe o cabelo por baixo da leve touca que Callia lhe dera.

- Para onde, minha senhora?

Lutou desesperadamente para baixar o timbre de sua voz, para não soar como a de uma criança. - Quantos aeroportos há na cidade?

- Dois. Para qual deles quer ir?

- Qual é o mais próximo?

Ele a fitou. - Kalgan Central, minha senhora.

- Então para o outro, se faz favor. Tenho dinheiro suficiente. - Tinha uma nota de vinte na mão. A denominação da nota pouca diferença lhe fazia, porém o homem do táxi sorriu gentilmente.

- Tudo o que quiser, minha senhora. Os táxis do céu levam-na seja aonde for.

Refrescou a face de encontro ao estofo ligeiramente mofado. As luzes da cidade moviam-se vagarosamente por baixo dela.

Que havia de fazer? Que havia de fazer?

Foi nesse momento que se convenceu que era uma tolinha, uma garotinha estúpida, longe do pai, e aterrorizada. Os seus olhos estavam marejados de lágrimas e havia no fundo da sua garganta um pequeno grito sem som que a magoava por dentro.

Não tinha medo de Lorde Stettin. Disso se encarregaria Lady Callia. Lady

Callia! Madura, gorducha, estúpida, mas agarrada ao seu senhor, fosse como fosse. Agora estava tudo bastante claro. Estava tudo claro.

Aquele chá com Callia em que fora tão esperta. A esperta Arcadiazinha! Algo dentro de si a sufocou, e detestou-se. Aquele chá fora uma manobra, e Stettin fora depois manobrado de modo a Homir acabar por ser afinal autorizado a inspecionar o palácio. E ela, a tola Callia, assim o quisera, e arranjara as coisas de forma que a esperta Arcadiazinha fornecesse uma justificação indiscutível, uma justificação que não levantaria suspeitas no espírito das vítimas e envolveria, ainda, um mínimo de interferência da sua parte.

Por que razão estava então livre? Homir era um prisioneiro, evidentemente...

A não ser que...

A não ser que fosse para regressar â Fundação como chamariz.., um chamariz para levar outros a cair nas mãos de... deles.

Não devia, portanto, regressar à Fundação...

- Aeroporto, minha senhora. - O táxi aéreo parara. Estranho! Nem sequer notara. Que mundo de sonhos era.

- Muito obrigada. - Pagou-lhe com uma nota sem nada ver, bateu com a porta e pôs-se a correr ao longo do pavimento elástico.

Luzes. Homens e mulheres despreocupados. Grandes painéis brilhantes de horários, com os números móveis que seguiam toda e qualquer nave que chegava e partia.

Para onde ia? Não se importava. Apenas sabia que não ia para a Fundação! Qualquer outro lugar, fosse qual fosse, serviria.

Graças fossem dadas a Seldon por aqueles momentos de descuido, a última fração de segundo em que Callia negligenciara a sua comédia por ter de se haver apenas com uma criança, e deixara transparecer o seu divertimento!

Então ocorreu a Arcádia qualquer coisa mais, qualquer coisa que se estivera agitando e movendo na base do seu cérebro desde que o vôo começara, qualquer coisa que extinguiu nela para sempre os catorze anos.

E compreendeu que devia fugir.

Isso acima de tudo. Ainda que localizassem todos os conspiradores da Fundação, ainda que apanhassem o seu próprio pai, não podia, não se atrevia à arriscar um aviso. Não podia arriscar a sua própria vida pela salvação de Terminus... Era a pessoa mais importante da Galáxia. Era a única pessoa importante da Galáxia.

Compreendeu-o, enquanto estava parada diante da bilheteria e perguntava a si mesma para onde iria.

E era assim porque, em toda a Galáxia, ela e só ela, excetuados eles, os próprios, conhecia a localização da Segunda Fundação.

 

ATRAVÉS DA GRADE

TRANTOR. Pelos meados do Interregno, Trantor era uma sombra. No meio das mina colossais vivia uma pequena comunidade de agricultores...

Enciclopédia Galáctica

 

Não há e nunca houve nada como um azafamado aeroporto dos arrebaldes da capital de um planeta populoso. Lá estão as grandes naves repousando majestosamente nos seus hangares. Se se escolher a ocasião apropriada, ter-se-á a visão impressionante da descida de um desses gigantes, deitando-se para descansar, ou, ainda mais de eriçar os cabelos, a largada veloz de um monstro de aço. Todas as operações nela implicadas são quase sem ruído. A força motriz é a onda silenciosa dos núcleos atômicos, mudando depois para sistemas mais compactos...

Em termos de área, noventa e cinco por cento do aeroporto ficam assim descritos: Muitos quilômetros quadrados são reservados para os aparelhos, para os funcionários que trabalham neles e para os calculadores que servem ambos.

Só cinco por cento dos aeroportos são reservados para o povo, para quem são as estações de trânsito para todas as estrelas da Galáxia. É certo que muito poucos entre a multidão anônima se dão ao trabalho de considerar a engrenagem tecnológica que liga os caminhos do espaço. Talvez alguns deles se impressionem casualmente ao pensamento dos milhares de toneladas representados pelo aço que se afunda no espaço e parece tão pequeno na distância. Um desses cilindros ciclópicos poderia, concebivelmente, perder o raio de orientação e esmagar-se a um quilômetro do seu ponto de descida calculado, através, talvez, da cobertura de vidro das imensas salas de espera, de modo que só um sutil vapor orgânico e alguns fosfatos em pó assinalariam a passagem de um milhar de homens.

Isso não podia, contudo, acontecer nunca com a aparelhagem de segurança em uso, e só os neuróticos considerariam a possibilidade por mais de um momento.

No que pensam eles, então? E que não é apenas uma multidão; é uma multidão com um objetivo. Esse objetivo paira sobre o campo e torna a atmosfera densa: formam-se filas, os pais guiam os filhos, a bagagem é manobrada em massas precisas - as pessoas vão para qualquer parte.

Considere-se, então, o isolamento psíquico completo de uma simples unidade desta multidão com intenções perfeitamente definidas, que não sabe para onde ir mas que sente, mais intensamente do que qualquer dos outros pode talvez sentir, a necessidade de ir para alguma parte, para qualquer parte! Ou quase para qualquer parte!

Mesmo sem a telepatia ou qualquer dos métodos definidos de a mente contatar a mente, há num tal ambiente, numa tal intangível disposição de espírito, uma contradição suficiente que leva ao desespero.

Para levar? Mais, para ser dominado, submerso e afogado por ele.

Arcádia Darell, vestida com roupas alheias, num planeta alheio, na situação alheia do que parecia ser uma vida alheia, desejava ardentemente a segurança da caverna. Não sabia que era isso que desejava. Sabia apenas que o mundo representava um grande perigo. Desejava um sítio retirado em algum lugar, algum lugar bem afastado, um local num recanto inexplorado do universo, onde jamais alguém a procurasse.

E ali estava, com catorze anos, suficientemente cansada para oitenta, suficientemente aterrorizada para cinco anos apenas.

Qual dos estranhos das centenas que passavam por ela que na realidade roçavam por ela ao ponto de sentir tocarem-lhe, seria um homem da Segunda Fundação? Qual dos estranhos não teria outro remédio senão destruí-la instantaneamente por causa do seu conhecimento culpado e único, de saber onde estava a Segunda Fundação?

E a voz que se lhe dirigiu abruptamente foi um estrondo de trovão que gelou um grito na sua garganta.

- Ouça, garota! - dizia ele, irritado. - Vai utilizar a bilheteria ou vai ficar aí parada?

Reparou, pela primeira vez, que estava parada diante de uma bilheteria. Mete-se uma nota de valor alto numa fenda, aperta-se o botão por baixo da indicação do destino escolhido, e sai um bilhete, juntamente com o troco, feito por um aparelho eletrônico, que jamais erra. Era uma coisa muito , vulgar, e não se justificava que alguém ficasse parado diante dela durante cinco minutos.

Arcádia meteu na fenda uma nota de duzentos créditos e reparou subitamente no botão marcado "Trantor". Trantor, capital morta do Império morto, o planeta onde nascera. Apertou o botão, num sonho. Nada aconteceu a não ser começarem a acender-se e apagar-se uns algarismos vermelhos que marcavam 172,18... 172,18... 172,18...

Era a importância que faltava. Outra nota de duzentos créditos. O bilhete foi entregue pela máquina. Soltou-se quando o pegou, e o troco saiu a seguir.

Apanhou o troco e fugiu. Sentiu o homem atrás de si, tocando-a, ansioso pela sua vez de se servir da máquina; esquivou-se da frente dele e não olhou para trás.

Não havia, porém, para onde fugir. Todos era seus inimigos.

Sem dar inteiramente por isso, observava os sinais gigantescos e brilhantes que apareciam no ar: Steffani, Anacreon, Fermus... Havia até um que dizia Terminus. Era o que desejava, contudo não se atrevia...

Poderia ter alugado, por uma pequena quantia, um notificador que regulasse para qualquer destino e que, colocado na sua mala, far-se-ia ouvir apenas por ela quinze minutos antes da partida. Mas tais aparelhos são para as pessoas que estão seguras ou que podem, pelo menos, dispor de uma pausa para pensar neles.

Depois, tentando olhar simultaneamente em ambas as direções, enquanto ria foi precipitar-se de cabeça de encontro a uma barriga mole. Ouviu um resfolegar sobressaltado e um resmungo, e uma mão agarrou o seu braço.

Agitou-se desesperadamente, mas perdeu o fôlego e não conseguiu mais do e emitir um gemido abafado no fundo da garganta. O seu captor segurou-a firmemente e esperou. Os olhos dela foram focalizando-o lentamente até que conseguiu vê-lo. Era bastante baixo e gordo.

Tinha o cabelo branco e abundante, penteado para trás, num estilo pompadoriano que parecia incoerente com uma cara redonda e rubicunda que proclamava sua origem camponesa.

- O que é que há? - disse ele, finalmente, com uma curiosidade franca, pestanejando. - Parece assustada.

- Sinto muito - tartamudeou Arcádia num frenesi - porém, tenho pressa. Desculpe.

Mas ele não fez caso nenhum, e disse: - Tome cuidado, menina, vai deixar cair o bilhete. - Tirou-o sem resistência dos seus dedos brancos e olhou para ele com todas as evidências de satisfação.

- Era o que eu pensava - disse ele, e depois chamou em voz alta, num tom que se assemelhava ao de um boi: - Mama!

Imediatamente apareceu uma mulher um pouco mais baixa, um pouco mais redonda, um tanto mais rubicunda. Enrolou com um dedo um caracol rebelde do cabelo grisalho, para metê-lo debaixo do chapéu muito fora de moda.

- Papá - disse ela, repreendendo-o - por que você grita no meio de uma multidão como esta? As pessoas olham para você como se estivesse doido. Pensa que está no sítio?

Sorriu abertamente para a silenciosa Arcádia, e acrescentou: - Porta-se como um urso.

- E depois, secamente: - Papá, largue a menina. Que está fazendo?

Mas "o Papá" limitou-se a acenar-lhe com o bilhete. - Olhe - disse ele -vai para Trantor.

A cara da "Mama" mostrou imediatamente uma alegria raposa. - É de Trantor? Já disse que lhe largue o braço, Papá! - Virou de lado a mala de viagem muito usada que carregava consigo, e obrigou Arcádia a sentar-se, com uma pressão suave mas sem moleza. - Sente-se - disse ela - e descanse os seus pezinhos. Ainda falta uma hora para a nave e os bancos estão apinhados de vadios adormecidos. É de Trantor?

Arcádia inspirou profundamente e rendeu-se. Disse numa voz rouca: -Nasci lá.

A "Mama" bateu palmas alegremente - Há um mês que aqui estamos e até agora não encontramos ninguém dos nossos rincões. Que bom! Os seus pais... - e olhou vagamente em redor.

- Não estou com os meus pais - disse Arcádia, cuidadosamente.

- Sozinha? Uma menina? - A "Mama" era ao mesmo tempo uma mistura de indignação e de simpatia. - Como é que aconteceu isso?

- Mama! - O "Papá" puxou-lhe pela manga. - Deixe-me que lhe diga. Há qualquer coisa errada. Creio que ela está amedrontada. - A sua voz, embora tivesse a intenção óbvia de ser um murmúrio, era perfeitamente audível para Arcádia. - Estava a observá-la e vi que estava fugindo sem ver para onde ia. Antes de poder afastar-me do seu caminho, veio de encontro a mim. E sabe que mais? Penso que está em dificuldades.

- Então cala a boca, Papá. De encontro a você qualquer pessoa pode vir. - Mas sentou-se ao lado de Arcádia em cima da mala, que rangeu fortemente com o peso, e pôs um braço á volta dos ombros trementes da garota.

- Está fugindo de alguém, minha querida? Não tenha medo de mo dizer. Eu a ajudo.

Arcádia olhou de soslaio os bondosos olhos cinzentos da mulher, e sentiu os lábios tremerem. Uma parte do seu cérebro estava lhe dizendo que ali estava gente de Trantor com quem poderia ir, que poderia ajudá-la a manter-se nesse planeta até poder decidir o que fazer depois, para onde ir depois. E outra parte do seu cérebro estava lhe dizendo, muito mais alto, numa embrulhada incoerente, que não se lembrava de sua mãe, que estava mortalmente cansada de lutar contra o universo, que queria apenas enrolar-se num cantinho, sentindo uns braços fortes e suaves a rodeá-la, que, se a sua mãe fosse viva, poderia... poderia...

Então, pela primeira vez nessa noite, pôs-se a chorar como uma criancinha, e feliz por isso, agarrando-se apertadamente ao vestido fora de moda e molhando de lágrimas uma parte dele, enquanto uns braços macios a seguravam apertadamente e uma mão suave acariciava os seus caracóis.

O "Papá!' ficou desamparado olhando para o par, procurando futilmente um lenço de assoar que, quando apareceu, lhe foi arrancado da mão.

A "Mama" lançou-lhe um olhar feroz, advertindo-o de que devia ficar calado. As multidões ondulavam ao redor do pequeno grupo com a verdadeira indiferença das multidões desunidas de toda a parte. Estavam efetivamente sós.

Finalmente, o choro chegou ao fim e Arcádia sorriu debilmente enquanto enxugava os olhos vermelhos com o lenço emprestado. - Ora bolas! -murmurou ela. - Eu...

- Silêncio! Não fale - disse a "Mama", ruidosamente. - Fique sentada e descanse um bocado. Poupe o fôlego. Depois, diga-nos o que é que vai mal, e vai ver que colocamos tudo em ordem e tudo ficará bem.

Arcádia empenhou-se em reunir o que lhe restava de sua coragem. Não podia dizer-lhes a verdade. Não podia dizer a verdade a ninguém, todavia estava demasiado cansada para inventar uma mentira convincente.

Disse, num murmúrio: - Agora estou melhor.

- Bom - disse a "Mama". - Então agora diga porque está em dificuldades. Não fez nada de mau, não é? Claro que, seja o que for que tenha feito, ajudá-la-emos, mas digamos a verdade.

- Por um amigo de Trantor faremos tudo - acrescentou o "Papá", expansivo. - Não é verdade, Mamã?

- Cale a boca, Papá - foi a resposta sem rancor.

Arcádia vasculhou sua malinha de mão. Isso, pelo menos, era ainda seu, apesar da rápida mudança de roupas a que fora forçada nos aposentos de Lady Callia. Encontrou o que procurava e estendeu-o à "Mama".

- Estes são os meus papéis - disse, timidamente. Era um brilhante pergaminho sintético que lhe havia sido entregue pelo embaixador da Fundação no dia de sua chegada e fora visado pela autoridade Kalganiana competente. Era grande, aparatoso e impressionante. A "Mama" olhou desamparada para ele e passou-o ao "Papá", que se inteirou do seu conteúdo com um impressionante aperto dos lábios. Depois disse: - É da Fundação?

- Sou, mas nasci em Trantor. Veja que diz aí...

- Ah, sim. Parece-me em ordem. Chama-se Arcádia, hein? É um bom nome Trantoriano. Mas onde está o seu tio? Diz aqui que veio na companhia de Homir Munn, tio.

- Foi preso - disse Arcádia tristemente.

- Preso?!... - disseram os dois ao mesmo tempo. - Por quê? - perguntou a "Mama". - Fez alguma coisa?

Meneou a cabeça. - Não sei. Viemos apenas de visita. O Tio Homir tinha assuntos a tratar com Lorde Stettin, mas... - Não precisava fazer qualquer esforço para provocar um estremecimento. Ele ali estava.

O "Papá" ficou impressionado. - Lorde Stettin?! Hum, o seu tio deve ser um homem importante.

- Não sei do que se tratava, mas Lorde Stettin queria que eu ficasse... - Estava se recordando das últimas palavras de Lady Callia, que haviam sido pronunciadas com a intenção de serem para seu bem. Uma vez que Callia, como agora sabia, agira em seu benefício, a história poderia servir por uma segunda vez.

Fez uma pausa, e a "Mama" perguntou, interessada: - E por quê você?

- Não tenho certeza. Ele... ele queria jantar a sós comigo, mas eu disse que não, porque queria que o Tio Homir também fosse. Olhava para mim com um ar divertido e punha um braço ao redor dos meus ombros.

A boca do "Papá" estava um pouco aberta, mas a "Mama" ficou subitamente corada e zangada. - Que idade tem, Arcádia?

- Catorze anos e quase meio.

A "Mama" inspirou profundamente e disse: - Parece impossível que se deixe tal gente viver. Os cães das ruas são melhores. Está fugindo dele, minha querida, não está?

Arcádia acenou afirmativamente.

Então a "Mama" disse: - Papá, vá já direto às Informações e procure saber com exatidão quando é que a nave para Trantor vai partir. Depressa!

Mas o "Papá" deu um passo e parou. Ecoaram palavras metálicas em tom muito alto por cima das suas cabeças, e cinco mil pares de olhos dirigiram-se para cima espantados.

"Homens e mulheres", dizia a voz, com energia e secamente. "O aeroporto está sendo revistado á procura de um fugitivo perigoso, e está agora cercado. Ninguém pode entrar e ninguém pode sair. A busca será, no entanto, efetuada com grande rapidez, e nenhuma nave pousará ou decolará da pista durante o intervalo, de modo que não perderão suas naves. Repito, ninguém perderá sua nave. Vai ser baixada a grade. Que ninguém se mova do lugar até a grade ser retirada. De contrário, seremos forçados a usar os nossos látegos neurônicos".

Durante o minuto ou menos em que a voz dominou a vasta cúpula da sala de espera do aeroporto, Arcádia não poderia ter-se movido nem que todo o mal da Galáxia se estivesse concentrado numa bola e se atirasse de encontro a ela.

Só poderiam referir-se a ela. Nem era sequer necessário formular essa idéia como um pensamento específico. Mas por que...

Callia maquinara sua fuga, e Callia era da Segunda Fundação. Então por que a procura, agora? Teria Callia falhado? Poderia Callia falhar? Ou isto era parte do plano, cujas complicações ela não compreendia?

Por um momento vertiginoso, teve a tentação de pôr-se de pé num salto e gritar que desistia, que iria com eles, que... que...

Mas a mão da "Mama" apertou-lhe o pulso. - Rápido! Rápido! Vamos para a sala das senhoras antes de eles começarem.

Arcádia não compreendeu. Limitou-se a segui-la cegamente. Infiltraram-se pelo meio da multidão, por entre as pessoas escoradas como se fossem troncos, com a voz ecoando ainda suas últimas palavras.

A grade estava descendo, e o "Papá", de boca aberta, via-a baixar. Ouvira falar dela e lera a seu respeito, mas nunca fora de fato objeto dela. Rebrilhava no ar uma simples série de cerrados feixes de radiação cruzados, que tornava o ai incandescente numa rede inofensiva de luz deslumbrante.

Era sempre assim utilizada de modo a descer lentamente, de forma a poder representar uma rede descendo, com todas as terríficas implicações psicológicas de uma armadilha.

Estava agora ao nível da cintura, três metros entre as linhas brilhantes. O "Papá" viu-se sozinho nos seus trinta metros quadrados, porém os quadrados adjacentes estavam apinhados. Sentia-se claramente isolado, mas sabia que mover-se para a maior anonimidade de um grupo significaria atravessar uma daquelas linhas brilhantes, desencadeando um alarma e ocasionando a descida do látego neurônico.

Esperou.

Podia distinguir, por cima das cabeças da multidão timidamente calada e â espera, a agitação longínqua que seria a linha de policiais cobrindo a vasta área do pavimento, iluminado de quadrado a quadrado.

Passou-se muito tempo antes de um uniforme entrar no seu quadrado e anotar tudo cuidadosamente num livro de notas oficial.

- Documentos!

O "Papá" estendeu-os e foram-lhe tirados com as maneiras de um cavalheiro.

- Você é Preem Palver, natural de Trantor, em Kalgan há um mês, regressando a Trantor. Responda sim ou não.

- Sim, sim.

- Que veio fazer a Kalgan?

- Sou representante comercial da nossa cooperativa agrícola. Vim negociar um acordo com o Departamento da Agricultura de Kalgan.

- Hum! Sua mulher está junto? Onde está ela? Consta em seus papéis.

- Por favor. Minha mulher está no... - Apontou.

- Hanto! - gritou o policial. Outro uniforme juntou-se a ele.

O primeiro disse, secamente: - Outra dama metida na caneca. Pela Galáxia! O local deve estar apinhado delas. Tome nota do nome dela - e indicou-lho nos papéis que o mencionavam.

- Mais alguém com você?

- A minha sobrinha.

- Não está mencionada nos papéis.

- Veio sozinha.

- Onde está ela? Não se incomode, já sei. Escreva também o nome da sobrinha, Hanto.

Qual é o nome dela? Escreve Arcádia Palver. O senhor fica aqui, Palver. Ocupar-nos-emos das mulheres antes de nos irmos embora.

O "Papá" esperou um tempo infindo. Depois, passado muito tempo, apareceu a "Mama", vindo ao seu encontro, com a mão de Arcádia firmemente na sua e os dois policiais atrás dela.

Entraram no reservado do "Papá", e um deles perguntou: - Esta velha faladora é sua mulher?

- Sim, senhor - disse o "Papá", tranqüilo.

- Então é melhor dizer-lhe que vai se meter em encrencas se continuar a falar da maneira como o faz com a polícia do Primeiro Cidadão. - Empertigou-se encolerizado. – É esta a sua sobrinha?

- Sim, senhor.

- Quero os documentos dela.

Olhando para o marido, "Mama" meneou a cabeça ligeiramente, mas não menos firmemente.

Houve uma curta pausa, e o "Papá" disse, com um sorriso débil: - Penso que não posso fazer isso.

- O que é que quer dizer com isso de não o poder fazer? - O policial estendeu a mão aberta. - Passe-os para cá.

- Imunidade diplomática - disse o "Papá", suavemente.

- Que quer dizer com isso?

- Já disse que sou representante comercial da minha cooperativa agrícola. Estou acreditado junto ao governo Kalganiano como representante oficial estrangeiro, e os meus documentos provam-no. Mostrei-os e agora não quero ser mais importunado.

Durante um momento, o policial foi colhido de surpresa. - Tenho de examinar os seus documentos. São ordens.

- Vá-se embora - interrompeu a "Mama", subitamente. - Quando quisermos alguma coisa de você, chamá-lo-emos, seu... seu vadio.

Os lábios do policial se contraíram. - Mantém-nos sob as vistas, Hanto. Vou buscar o tenente.

- Não quebre uma perna! - gritou-lhe "Mama" quando ela se afastava. Alguém riu, mas depois calou-se abruptamente.

A busca aproximava-se do fim. A multidão estava ficando inquieta. Quarenta e cinco minutos haviam decorrido desde que a grade começara a descer, e isso era muito demorado para causar o melhor efeito. O tenente Dirige abriu caminho apressadamente para o centro da multidão compacta.

- É esta a moça? - perguntou ele, enfadado. Olhou-a e correspondia evidentemente à descrição. Tudo aquilo por causa de uma criança.

Depois disse: - Os seus documentos, se faz favor. O "Papá" começou: - Eu já expliquei...

- Eu sei o que foi que explicou, e tenho muita pena - disse o tenente -mas tenho as minhas ordens e não posso deixar de as cumprir. Se lhe interessar fazer mais tarde um protesto, pode fazê-lo. Entretanto, se for necessário, terei de empregar a violência.

Houve uma pausa, e o tenente esperou pacientemente. Então o "Papá" disse,abruptamente: - Dê-me os seus documentos, Arcádia.

Arcádia meneou a cabeça, em pânico, porém "Papá" insistiu. - Não tenha receio. Dê-mos.

Desamparada, estendeu a mão e deixou os documentos mudarem de mãos.

O "Papá" desdobrou-os, percorreu-os com os olhos cuidadosamente e depois passou-os ao policial.

O tenente, por sua vez, percorreu-os com a vista cuidadosamente. Levantou os olhos durante um longo momento para pousá-los em Arcádia, e fechou o livro de apontamentos com um estalo seco.

- Tudo em ordem - disse ele. - Vamos embora.

Afastou-se e, passados dois minutos ou pouco mais, a grade desapareceu e a voz vinda de cima significava a volta â normalidade. O barulho da multidão, subitamente liberada, recrudesceu.

Arcádia disse: - Mas como... como...

E o "Papá" disse: - Silêncio! Não diga nem uma palavra. É melhor irmos para a nave. Deve estar na pista daqui a pouco.

Estavam na nave. Tinham uma sala de estar privativa e uma mesa reservada na sala de jantar. Já estavam afastados dois anos-luz de Kalgan quando Arcádia se atreveu finalmente a abordar o assunto.

Então disse: - Mas eles andavam à minha procura, Sr. Palver, e tinham com certeza a minha descrição e todos os pormenores. Por que me deixaram escapar?

A cara do "Papá" abriu-se num sorriso largo sobre o seu prato de rosbife. Oh, a minha querida Arcádia! Foi fácil. Quando se passa a vida a lidar com agentes e compradores e com cooperativas competidoras, sempre se aprendi m algumas manhas. Já tive vinte anos ou mais para aprendê-las. Fique sabendo menina, que quando o tenente desdobrou os seus documentos e encontrou dentro deles, muito dobradinha, uma nota de quinhentos créditos. É simples não é?

- Devo pagar-lhe... garanto-lhe que tenho bastante dinheiro.

- Ora! - Apareceu no largo rosto do "Papá" um sorriso embaraçado, ao recusar o dinheiro. - Para uma mulher do campo...

Arcádia desistiu. - Mas se ficasse com o dinheiro e me prendesse do mesmo modo? E se me acusasse de suborno?

- E perder quinhentos créditos? Conheço essa gente melhor do que a menina.

Arcádia sabia, porém, que ele não conhecia melhor as pessoas. Não aquelas pessoas. Nessa noite, na cama, ponderou o caso cuidadosamente e concluiu que nenhuma tentativa de suborno teria impedido um tenente da polícia de prendê-la, a não ser que tivesse sido planejado. Eles não queriam apanhá-la, mas tinham tomado todas as providências para o fazerem.

Por que razão? Para terem a certeza de ela partir? E partir para Trantor? O casal obtuso e de bom coração com quem estava agora seria apenas um par de instrumentos nas mãos da Segunda Fundação, tão impotentes com ela?

Deviam ser!

Mas seriam?

Era tudo tão vago. Como poderia lutar contra eles? Fizesse o que fizesse, só poderia ser o que aqueles terríveis onipotentes queriam.

Todavia tinha de levar a melhor com eles. Tinha de ser, Tinha de ser! Tinha de ser!!!

 

INÍCIO DA GUERRA

Por razão ou razões desconhecidas dos membros da Galáxia na época em questão, o Tempo-padrão Intergaláctico define a sua unidade fundamental, o segundo, como o tempo durante o qual a luz viaja 299,776 quilômetros. 86.400 segundos são arbitrariamente considerados iguais a um Dia-padrão Intergaláctico, e 365 desses dias a um Ano-padrão Intergaláctico.

Por quê 299,776?... Ou 86.400?... Ou 365?.-..

É tradição, diz o historiador, iniciando a questão. Por causa de certas e variadas relações numéricas misteriosas, dizem os místicos, os ocultistas, os numerologistas, os metafísicos. Por que o planeta-mãe original da humanidade tinha certos períodos naturais de rotação e translação, dos quais essas relações poderiam derivar, diziam muito poucos.

Porém ninguém realmente sabia.

Fosse como fosse, a data em que o cruzador da Fundação Hober Mallow encontrou a esquadrilha Kalganiana, chefiada pelo Destemido, e em que, após a recusa de autorizar a entrada a bordo de um grupo de busca, foi atacado e desintegrado, foi a de 185-11692 E.G. Isto é, foi no 1859 dia do ano de 11692 da Era Galáctica, iniciada com o advento do primeiro Imperador da tradicional dinastia Kamble. Foi também a de 185-419 D. S., contando do nascimento de Seldon, ou 185-348 E.F., contando do estabelecimento da Fundação. Para Kalgan, foi em 185-56 P.C., contando do estabelecimento da Primeira Cidadania pelo Mulo. Em qualquer caso, evidentemente, por conveniência, o ano era arranjado de maneira a ter o mesmo número de dias independentemente do verdadeiro dia em que se iniciara a era.

Havia, além disso, para todos os milhões de mundos da Galáxia, milhões de tempos locais, baseados nos movimentos dos seus próprios vizinhos celestes.

Escolha-se, porém, a era que se escolher - 185-11692, 419-348-56, ou qualquer outra - foi esse o dia que os historiadores indicavam mais tarde quando falavam do início da guerra Stettiniana.

Para o Dr. Darell, contudo, não foi nenhum desses dias. Foi simples e precisamente o trigésimo segundo dia desde que Arcádia partira de Terminus. Quanto custou a Darell manter a impassibilidade nesses dias, nem todos podiam imaginar.

Mas Elvett Semic pensou que podia. Era um velho, e gostava de dizer que o seu sistema nervoso se havia calcificado ao ponto de tornar os seus processos de pensamento entorpecidos e pesados. Atraía e quase acolhia bem o menosprezo universal dos seus poderes em decadência, por ser o primeiro a rir-se deles. Mas os seus olhos, nem por estarem gastos, viam menos, e o seu espírito, nem por ser experiente e circunspecto, passara a ser menos ágil.

Torceu os lábios entre os dedos e disse: - Por que não faz qualquer coisa?

O som foi um choque físico para Darell, sob o qual estremeceu. Disse, de mau humor:

- Onde íamos nós?

Semic fitou-o com um olhar grave. - Faria melhor tentar qualquer coisa para sua filha. - Os seus dentes esparsos e amarelos puseram-se á mostra numa boca que estava aberta numa pergunta muda.

Mas Darell replicou, friamente: - A questão é a seguinte: pode arranjar um Ressonador Symes-Molff na escala necessária?

- Bom, já disse quê podia, mas você não estava prestando atenção...

- Desculpe, Elvett. O caso é o seguinte: o que estamos fazendo agora pode ser mais importante para todos na Galáxia do que a questão de saber se Arcádia está a salvo. Pelo menos, para todos, exceto Arcádia e eu, e por mim quero ficar com a maioria. Qual será o tamanho do Ressonador?

Semic mostrou-se indeciso. - Não sei. Pode verificá-lo nos catálogos.

- Mais ou menos de que tamanho? Uma tonelada? Um quilo? Um quarteirão de comprimento?

- Oh! Pensei que quisesse com exatidão. E do tamanho de um pequeno - Indicou a primeira articulação do seu polegar. - Mais ou menos

- Muito bem. E pode fazer qualquer coisa como isto? - Fez um esboço rápido no bloco que tinha na mão, depois passou-o ao velho físico que lhe deitou uma vista de olhos indecisa e murmurou:

- Sabe que o cérebro fica calcificado quando se é tão velho como eu. Que está tentando fazer?

Darell hesitou. Ansiava desesperadamente, nesse momento, por dispor do conhecimento físico oculto no cérebro do outro, de modo que não precisasse de pôr o seu pensamento em palavras. Porém o anseio era inútil, e explicou.

Semic meneava a cabeça. - São precisos hiperampliadores. São as únicas coisas que funcionariam suficientemente depressa. E uma quantidade tremenda deles.

- Mas pode ser construído?

- Sim, com certeza.

- Pode arranjar as peças todas? Quero dizer, sem provocar comentários? Como se fossem para o seu trabalho normal?

Semic ergueu o lábio superior. - Não posso arranjar cinqüenta hiperampliadores. Nunca utilizaria tantos em toda a minha vida.

- Estamos trabalhando num projeto de defesa. Não pode pensar em qualquer coisa inofensiva em que pudesse utilizá-los? Temos o dinheiro necessário.

- Hum... Talvez possa pensar em qualquer coisa.

- A que medida é que pode reduzir o tamanho da engenhoca toda?

- Os hiperampliadores podem ser de tamanho microscópico... fio... válvulas... Pelo Espaço, essa coisa tem algumas centenas de circuitos!

- Bem sei. Grande como?

Semic indicou com as mãos.

- Demasiado grande - disse Darell. - Tenho de o pendurar no cinto.

Amassou lentamente o seu esboço, formando uma bola que ia comprimindo. Quando se transformou numa bolinha dura, amarela, do tamanho de uma uva, atirou-o para o cinzeiro, onde desapareceu com o tênue fulgor branco da decomposição molecular.

Depois disse: - Quem está à porta?

Semic inclinou-se sobre a mesa, para a pequena tela leitosa sobre o sinal da porta. E disse: - É o jovem Anthor. E vem alguém com ele.

Darell empurrou a cadeira para trás. - Não diga ainda nada aos outros sobre isto, Semic. Se eles descobrirem, será um conhecimento mortal, e basta arriscar duas vidas.

Pelleas Anthor foi um turbilhão palpitante de atividade que entrou no gabinete de Semic, o qual, fosse como fosse, conseguia corresponder à idade do seu ocupante. No torpor lento da sala, as mangas da túnica de Anthor, soltas, pareciam ainda tremular com a brisa do exterior.

- O Dr. Darell, o Dr. Semic... Orum Dirige.

O outro homem era alto, com um nariz comprido e direito que dava ao seu rosto magro uma aparência saturnina. O Dr. Darell estendeu-lhe a mão.

Anthor sorriu levemente. - O Tenente Dirige - acrescentou. Depois, significativamente: - de Kalgan.

Darell voltou-se e encarou o jovem. - O Tenente Dirige, de Kalgan -repetiu ele, distintamente. - E trá-lo aqui. Por quê?

- Por que foi o último homem de Kalgan que viu a sua filha. Calma, amigo!

O olhar de triunfo de Anthor transformou-se subitamente num olhar de preocupação, e meteu-se entre os dois, lutando violentamente com Darell. Lentamente, e não com suavidade, obrigou o homem mais velho a sentar-se.

- Que quer o senhor fazer? - Anthor afastou um anel de cabelo castanho da testa, sentou-se ao lado sobre a mesa e começou a balançar uma perna, pensativo. - Pensei que lhe trazia boas notícias.

Darell dirigiu-se diretamente ao policial. - Que quer ele dizer ao chamar-lhe o último homem que viu a minha filha? A minha filha morreu? Por favor, diga-mo sem rodeios. - O seu rosto estava branco de apreensão.

O Tenente Dirige disse, inexpressivamente: - A frase foi do último homem de Kalgan. Ela agora não está em Kalgan. Não tenho qualquer conhecimento além disso.

- Ouça - interrompeu Anthor - deixe esclarecer o assunto. Desculpe, Dr., se exagerei um pouco o drama. O senhor é tão inumano sobre isto, que eu esqueço que tem sentimentos. Em primeiro lugar, o Tenente Dirige é um dos nossos. Nasceu em Kalgan, mas o pai era um homem da Fundação levado para aquele planeta ao serviço do Mulo. Respondo pela lealdade do Tenente à Fundação. Ora, eu entrei em contato com ele no dia seguinte àquele em que deixamos de receber o relatório diário de Munn...

- Por quê? - interrompeu Darell, ferozmente. - Pensei que estivesse inteiramente decidido que não deveríamos fazer qualquer movimento sobre o caso. Arriscou as vidas deles e as nossas.

- Porque - foi a resposta igualmente feroz - estou metido neste jogo há mais tempo do que o senhor. Por que conheço certos contatos em Kalgan dos quais o senhor não sabe nada. Por que atuo com um conhecimento mais profundo, compreende?

- Penso que está completamente doido.

- Quer ouvir ou não?

Houve um pausa, e Darell baixou os olhos.

Os lábios de Anthor franziram-se num meio sorriso.

- Muito bem, doutor. Dê-me alguns minutos. Conte-lhe, Dirige.

Dirige falou com facilidade: - Tanto quanto sei, Dr. Darell, a'sua filha está em Trantor. Pelo menos tinha um bilhete para Trantor no aeroporto do Leste. Estava com um Representante Comercial daquele planeta que dizia ser ela sua sobrinha. A sua filha parece ter um número muito grande de parentes, Dr. Aquele foi o segundo tio que teve num período de duas semanas, heim? O Trantoriano tentou até subornar-me... provavelmente pensa que foi por isso que os deixei seguir. - Sorriu numa careta ao pensamento.

- Como estava ela?

- Ilesa, tanto quanto pude ver. Aterrorizada. Não a culpo por isso. Todo o departamento estava à procura dela. Ainda continuo a não saber por que.

Darell inspirou profundamente, parecendo que o fazia pela primeira vez em vários minutos. Tinha consciência do tremor das suas mãos, e dominou-o com esforço. – Então ela está bem. Esse Representante Comercial, quem era ele? Volte a falar dele. Que papel desempenha ele no caso?

- Não sei. Conhece alguma coisa de Trantor?

- Vivi lá algum tempo.

- Agora é um mundo agrícola. Exporta principalmente forragens e cereais. Tudo de alta qualidade! Vendem por toda a Galáxia. Há uma ou duas dúzias de cooperativas no planeta e cada uma delas tem os seus representantes no estrangeiro. Uns "caras" bem espertos. Conhecia o registro deste. Já estivera anteriormente em Kalgan, habitualmente com a mulher. Perfeitamente honesto. Perfeitamente inofensivo.

- Hum! - disse Anthor. - Arcádia nasceu em Trantor, não nasceu, Dr.? Darell acenou que sim.

- Tudo se conjuga, vê? Queria partir, rapidamente e para longe, e Trantor sugerir-se-ia por si. Não pensa que seja assim?

Darell perguntou: - E por que não haveria de regressar para cá?

- Talvez estivesse sendo perseguida e sentisse que tinha de seguir noutra direção, heim?

O Dr. Darell perdeu o ânimo de aprofundar mais. Pois bem, deixe-a a salvo em Trantor, ou tão a salvo como alguém podia estar em qualquer parte daquela obscura e horrível Galáxia. Encaminhou-se para a porta, sentiu Anthor tocar-lhe ao de leve na manga e parou, mas não se voltou.

- Importa-se que vá para casa com o senhor, Dr.?

- É bem-vindo - foi a resposta automática.

À noite, o alcance exterior da personalidade do Dr. Darell, aquele que entrava em contato imediato com as outras pessoas, havia-se solidificado uma vez mais. Recusara comer a refeição da noite e tinha, ao invés, voltado com uma insistência febril ao avanço, passo a passo, do conhecimento da intrincada matemática da análise encefalográfica.

Só perto da meia-noite voltou a entrar na sala de estar.

Pelleas Anthor ainda estava lá, manejando os botões da televisão. Os passos atrás de si levaram-no a deitar os olhos por. cima do ombro.

- Olá! Ainda não está na cama? Passei horas á volta da televisão tentando apanhar qualquer coisa que não sejam noticiários. Parece que a nave da Fundação Hober Mallow está atrasada e perdeu contato com a estação.

- Realmente? De que é que suspeitam?

- Que pensa o senhor? De alguma malandrice Kalganiana. Há informações de terem sido avistadas naves Kalganianas na zona em que a Hober Mallow foi ouvida pela última vez.

Darell estremeceu, e Anthor esfregou a testa, indeciso.

- Ouça Dr. - disse ele - por que não vai para Trantor?

- Por que haveria de ir?

- Porque não tem utilidade para nós aqui. O senhor não é o mesmo. Não pode ser. Além disso, indo para Trantor, poderia efetuar um trabalho. A velha Biblioteca Imperial, com os registros completos das Reuniões da Comissão de Seldon, é lá que está...

- Não! A Biblioteca foi completamente vasculhada e não auxiliou ninguém.

- Auxiliou Ebling Mis uma vez.

- Como o sabe? Sim, ele disse que encontrara a Segunda Fundação, e a minha mãe matou-o cinco segundos depois como única maneira de impedi-lo de revelar inconscientemente a sua localização ao Mulo. Mas ao fazê-lo, tornou impossível também, como compreende, saber ao certo se Mis conhecia realmente a localização. Apesar de tudo, nunca mais ninguém foi capaz de deduzir a verdade desses registros.

- Ebling Mis, se bem se lembra, estava trabalhando sob o impulso condutor do espírito do Mulo.

- Também sei isso, mas o espírito de Mis estava, por via precisamente dessa influência, num estado anormal. Sabemos nós, o senhor e eu, alguma coisa quanto às possibilidades de uma mente sujeita ao domínio emocional doutra, quanto às suas habilidades e limitações? E seja como for, não vou para Trantor.

Anthor franziu os sobrolhos. - Pois bem, mas por quê essa veemência? Apenas sugeri que tinha... Ora bolas! Pelo Espaço, que não o compreendo. Parece dez anos mais velho, está, evidentemente, passando horas de angústia, não está fazendo nada de valor. Se eu estivesse no seu lugar, iria e traria a garota.

- Exatamente! E é também o que eu desejo fazer. Mas é por isso que não o farei Ouça, Anthor, e tente compreender. Está lidando, estamos ambos lidando, com algo completamente para além das nossas possibilidades de luta. A sangue frio, se tem algum, sabe que é assim, seja o que for que possa pensar nos seus momentos de quixotino. - Soubemos durante cinqüenta anos que a Segunda Fundação é a descendente real e discípula da matemática Seldoniana. O que isso significa, como também sabe, é que nada acontece na Galáxia que não desempenhe um papel nos seus cálculos. Para nós, toda a vida é uma série de acidentes a serem enfrentados por meio de improvisações. Para eles, toda a vida tem um propósito determinado e deveria ser enfrentada através do cálculo prévio.

- Porém elas têm a sua fraqueza. O trabalho deles é estatístico, e só a ação de massa da humanidade é verdadeiramente inevitável. Ora, eu não sei onde desempenho um papel, como indivíduo, no curso previsto da história. Talvez não tenha um papel definido, já que o Plano deixa os indivíduos entregues à indeterminação e ao livre arbítrio. Mas eu sou importante e eles, eles, compreende, podem ter pelo menos calculado a minha reação provável. Portanto desconfio dos meus impulsos, dos meus desejos, das minhas reações prováveis.

- Prefiro presenteá-los com uma reação improvável. Ficarei aqui, apesar de ansiar muito desesperadamente por partir. Não! E não, porque anseio desesperadamente por partir.

O homem mais novo sorriu com azedume. O senhor não conhece sua própria mente tão bem como eles poderiam conhecê-la. Suponha que, conhecendo-o, contassem com o que pensa, apenas pensa que é a reação improvável, simplesmente por saberem com antecipação qual seria sua linha de raciocínio.

- Nesse caso, não há escapatória possível, porque se eu sigo o raciocínio que acaba de esboçar e vou para Trantor, eles podem ter também previsto isso. Há um ciclo infinito de jogos duplos de parte a parte. Por mais longe que vá, seguindo esse ciclo, apenas posso ir ou ficar. O ato complicado de atraírem a minha filha através da metade da Galáxia não pode ter tido a intenção de fazer-me ficar onde estou, uma vez que o mais certo seria eu ficar se eles não tivessem feito nada. Apenas pode ter a intenção de me fazer deslocar, e por conseguinte, não irei.

- E além disso, Anthor, nem tudo é produto da Segunda Fundação, nem todos os acontecimentos são os resultados do seu teatro de fantoches. Pode não ter tido nada que ver com as idas e vindas de Arcádia, e ela pode estar a salvo em Trantor quando todos nós estivermos mortos.

- Não - disse Anthor, cortante - agora está na pista.

- Tem uma interpretação opcional.

- Tenho... se quiser ouvir.

- Ora, diga! Paciência não me falta.

- Bom. Então... até que ponto conhece bem sua própria filha?

- Até que ponto pode qualquer indivíduo conhecer qualquer outro? Evidentemente, o meu conhecimento é inadequado.

- Nessa base, também o meu é, e talvez até mais, mas pelo menos vi-a com olhos desconhecidos. Em primeiro lugar, é uma romanticazinha feroz, a filha única numa torre de marfim acadêmica, crescendo num mundo irreal de televisão e de filmes de aventuras. Vive numa fantasia sobrenatural por si própria construída de espionagem e intriga. Em segundo lugar, é inteligente, suficientemente inteligente, fosse como fosse, para levar a melhor conosco. Planejou cuidadosamente escutar a nossa primeira conferência e conseguiu-o. Planejou cuidadosamente ir a Kalgan com Munn e conseguiu-o. Em terceiro lugar, tem um culto profano por uma heroína, pela avó, sua mãe, que derrotou o Mulo.

- Até aqui, tenho razão, penso eu. Pois então, muito bem. Ora eu, o que não acontece consigo, recebi um relatório completo do Tenente Dirige e, além disso, minhas fontes de informação em Kalgan são bastante completas. E todas as fontes conferem. Sabemos, por exemplo, que, em conferência com o Senhor de Kalgan, foi recusada a admissão de Homir Munn no Palácio do Mulo, e que esta recusa foi subitamente revogada depois de Arcádia ter falado com Lady Callia, a amiguinha do Primeiro Cidadão.

Darell interrompeu-o. - E como sabe tudo isso?

- Por uma razão. Munn foi entrevistado por Dirige como parte da campanha da polícia para localizar Arcádia. Temos, naturalmente, uma transcrição completa das perguntas e respostas.

- E veja a própria Lady Callia. Correm rumores de que perdeu a boa graça de Stettin, porém o rumor não nasceu dos fatos. Não só se mantém não substituída, não só é capaz de transformar a recusa do Lorde a Munn numa aceitação, como também pode maquinar abertamente a fuga de Arcádia. Assim foi, pois uma dúzia de soldados de guarda no palácio do governo de Stettin testemunharam que foram vistas juntas na última noite. Apesar disso, não foi castigada, e isto sem embargo do fato de Arcádia ter sido procurada com todas as aparências de diligência.

- Mas qual é a sua conclusão de toda essa torrente de conexão defeituosa?

- A de que a fuga de Arcádia foi arranjada.

- Tal como eu disse.

- Mas com este acréscimo: o de que Arcádia deve ter sabido que era auxiliada, o de que Arcádia, a mocinha esperta que via maquinações por todos os lados, viu esta e seguiu o tipo de raciocínio que o senhor utiliza. Queriam que ela regressasse à Fundação, e por conseguinte foi para Trantor ao invés. Mas por que Trantor?

- Sim, por quê?

- Por ter sido lá que Bayta, a avó transformada em ídolo, escapou quando estava em fuga. Consciente ou inconscientemente, Arcádia imitou isso. Pergunto a mim mesmo, então, se Arcádia estaria fugindo do mesmo inimigo.

- Do Mulo? - perguntou Darell, com um sarcasmo cortês.

- Claro que não. Entendo, pelo inimigo, uma mentalidade contra a qual não podia lutar. Estava fugindo da Segunda Fundação ou da influência dela que poderia encontrar-se em Kalgan.

- Que influência é essa de que fala?

- Espera que Kalgan seja imune a essa ameaça ubíqua? Seja como for, chegamos ambos á conclusão de que a fuga de Arcádia foi arranjada, não é verdade? Foi procurada e achada, mas deliberadamente deixada escapulir por Dirige. Por Dirige, compreende? Mas como foi isso? Por ele ser um dos nossos. Mas como sabiam eles isso? Estavam contando com ele como traidor, hein, Dr.?

- Agora está dizendo que pretendiam honestamente recapturá-la. Francamente, está me cansando um bocado, Anthor. Termine o que tem a dizer; quero ir para a cama.

- O que tenho a dizer rapidamente se acaba. - Anthor tirou um pequeno grupo de foto-registros do bolso interior. Eram sacudidelas familiares dos encefalógrafos. - As ondas cerebrais de Dirige - disse Anthor, inesperadamente - tiradas depois do seu regresso.

Para Darell era perfeitamente visível a olho nu, e o seu rosto estava lívido quando ergueu a vista. - Está Controlado.

- Exatamente. Permitiu a Arcádia escapar, não por ser dos nossos mas por ser dos da Segunda Fundação.

- Mesmo depois de saber que ela ia para Trantor e não para Terminus?

Anthor encolheu os ombros. - Tinha sido engrenado para deixá-la ir. Não havia maneira de ele poder modificar isso. Era apenas um instrumento, está vendo? Foi apenas Arcádia que seguiu o caminho menos provável, e talvez esteja a salvo, ou pelo menos a salvo até a Segunda Fundação poder modificar os planos para levar em conta este estado de coisas alterado...

Fez uma pausa. A pequena luz reveladora do aparelho de televisão estava piscando. Num circuito independente, isso significava a chegada de notícias de emergência. Darell também viu e, com o movimento mecânico do longo hábito, ligou a televisão. Estava no meio de uma frase, mas ficaram sabendo antes de ser completada que a Hober Mallow, ou os destroços que dela restavam, fora encontrada, e que, pela primeira vez em meio século, a Fundação estava de novo em guerra.

O queixo de Anthor estava esculpido numa linha dura. - Ora bem, Dr., o senhor ouviu. Kalgan atacou, e Kalgan está sob o domínio da Segunda Fundação. Quer seguir o exemplo de sua filha e mudar-se para Trantor?

- Não. Arrisco-me. Aqui.

- Dr. Darell, o senhor não é tão inteligente como sua filha. Pergunto a mim mesmo até que ponto pode confiar-se em si. - Fitou Darell por um momento, e depois, sem uma palavra, saiu da sala.

E Darell ali ficou, na incerteza e quase no desespero.

Desprezado, o aparelho de televisão era uma miscelânea de imagem e som excitados, enquanto descrevia em pormenores nervosos a primeira hora de guerra entre Kalgan e a Fundação.

 

GUERRA

O prefeito da Fundação tentou alisar, sem resultado, o cabelo eriçado em escova que lhe guarnecia o crânio. Suspirou. - Tantos anos que perdemos, tantas oportunidades que desperdiçamos! Não faço recriminações, Dr. Darell, mas nós merecemos a derrota.

Darell disse, calmamente: - Não vejo razão para" não confiarmos nos acontecimentos, senhor.

- Falta de confiança? Falta de confiança? Pela Galáxia, Dr. Darell, em que basearia o senhor qualquer outra atitude? Ora, convenhamos...

Conduziu Darell quase à força para o límpido ovóide que repousava graciosamente suportado pelo seu tênue campo de força. Brilhou interiormente a um toque da mão do prefeito. Era um mapa trimensional exato da dupla espiral Galáctica.

- Em amarelo - disse o prefeito, excitado - temos a região do Espaço sob o domínio da Fundação, e em vermelho a que está sob o domínio de Kalgan.

O que Darell viu foi uma esfera avermelhada no interior de um revestimento amarelo que a cercava por todos os lados, exceto pelo que conduzia ao centro da Galáxia.

- A Galactografia - disse o prefeito - é o nosso maior inimigo. Os nossos almirantes não fazem segredo de a nossa posição estratégica ser quase desesperadora. Ora, observe. O inimigo tem linhas de comunicação interiores. Está concentrado, pode enfrentar-nos por todos os lados com a mesma facilidade. Pode defender-se com um mínimo de forças.

- Quanto a nós, estamos espalhados. A distância média entre os sistemas habitados no interior da Fundação é quase três vezes superior à de Kalgan. Ir de Santanni a Locris, por exemplo, é uma viagem de sete mil e quinhentos anos-luz para nós, mas apenas de dois mil e quatrocentos anos-luz para eles, se nos mantivermos dentro dos nossos respectivos territórios.

Darell disse: - Compreendo tudo isso, senhor.

- E não compreende que isso pode significar a derrota?

- Na guerra, há mais coisas a considerar além das distâncias. Eu digo que não podemos perder. É absolutamente impossível.

- E por que diz isso?

- Por causa da minha própria interpretação do Plano de Seldon.

- Ora! - Os lábios do prefeito contorceram-se, e as mãos atrás das costas bateram uma na outra. - Então o senhor também se fia no auxílio místico da Segunda Fundação?

- Não, apenas na ajuda da inevitabilidade, bem como da coragem e persistência.

Por detrás, porém, da sua confiança fácil, interrogava-se.

E se...

Bem... e se Anthor tivesse razão, e Kalgan fosse um instrumento direto dos feiticeiros mentais? E se fosse sua intenção derrotar e destruir a Fundação? Não! Não fazia sentido!

E contudo...

Sorriu amargamente. Sempre o mesmo. Sempre aquela tentativa de ver através do granito opaco, que, para o inimigo, era tão transparente.

 

As verdades galactográficas da situação também não eram desconhecidas de Stettin.

O Senhor de Kalgan estava de pé diante de uma duplicata do mapa Galáctico que o prefeito e Darell haviam examinado, com a diferença de que, enquanto o prefeito franzia os sobrolhos, Stettin sorria.

O seu uniforme de almirante resplandecia imponentemente na sua figura maciça. A banda vermelha da Ordem do Mulo, com que o galardoara o Primeiro Cidadão anterior, por ele substituído seis meses antes pela força, atravessava o seu peito diagonalmente, do ombro direito à cintura. A estrela da Prata com os Cometas Duplos e as Espadas fulgurava brilhantemente no seu ombro esquerdo.

Dirigiu-se aos dois homens do seu estado-maior cujos uniformes eram pouco menos vistosos do que o seu, e igualmente ao seu Primeiro Ministro, magro e grisalho, uma teia de aranha escura perdida na claridade.

Stettin disse: - Penso que as decisões são claras. Podemos permitir-nos esperar. Para eles, cada dia de demora será mais um golpe na sua moral. Se tentarem defender todas as frações dos seus domínios, dispersar-se-ão e poderemos romper em dois ataques simultâneos aqui e ali. - Indicou as direções no mapa Galáctico, duas lanças de um branco puro atravessando a camada amarela a partir da bola vermelha que a mesma envolvia, isolando Terminus de ambos os lados por um arco apertado. - Desta maneira, cortamos a esquadra deles em três partes que podem ser derrotadas separadamente. Se se concentrarem, abandonam dois terços dos seus domínios voluntariamente, e arriscar-se-ão provavelmente à rebelião.

Apenas a voz fina do Primeiro Ministro se infiltrou por entre o silêncio que se seguiu. - Em seis meses - disse ele - a Fundação tornar-se-á seis meses mais forte. As seus recursos são maiores, como todos sabemos, a sua esquadra é numericamente superior, o seu potencial humano é virtualmente inexaurível. Talvez um assalto rápido fosse mais seguro.

Era de crer-se que a voz dele fosse a menos influente da sala. Lorde Stettin sorriu e espalmou a mão num gesto categórico. - Os seis meses, ou um ano, se necessário, não nos custarão nada. O homens da Fundação não podem preparar-se, são ideologicamente incapazes disso. É da sua própria filosofia acreditar que a Segunda Fundação os salvará. Mas não será assim desta vez, certo?

Os homens na sala agitaram-se, pouco à vontade.

- Os senhores têm falta de confiança , creio eu - disse Stettin, num tom de voz gelado. - É necessário descrever mais uma vez os relatórios dos nossos agentes nos territórios da Fundação, ou repetir as descobertas do Sr. Homir Munn, o agente da Fundação agora ao nosso... hum... serviço? Vamos adiar, meus senhores.

Stettin voltou para os seus aposentos privados ainda com um sorriso fixo na face. Interrogava-se às vezes, quanto a esse Homir Munn. Um pândego de espírito débil que não confirmava certamente o que dele esperara. Fornecia, contudo, informações interessantes e convincentes em si mesmas, especialmente quando Callia estava presente.

O seu sorriso alargou-se. Aquela maluquinha gorducha tinha, apesar de tudo, a sua utilidade. Conseguia pelo menos, com sua sedução, arrancar mais coisas a Munn do que ele, e com menos amolação. Por que não oferecê-la a Munn? Franziu o sobrolho. Callia e os seus ciúmes estúpidos. Pelo Espaço! Se tivesse ainda aquela Darell... Por que não reduziu a pó a cabeça de Callia por aquilo?

Não conseguia afirmar perfeitamente com a razão.

Talvez por ela ir conseguindo manobrar o Munn. E ele precisava de Munn. Fora Munn, por exemplo, quem demonstrava que, pelo menos na crença do Mulo, não havia nenhuma Segunda Fundação. Os seus almirantes necessitavam daquela garantia.

Gostaria de tornar públicas as provas, mas era melhor deixar a Fundação acreditar no seu auxílio inexistente. Na verdade, não fora Callia que apontara essa vantagem?

Exatamente. Dissera...

Ora, que disparate! Ela não podia ter dito fosse o que fosse.

E no entanto...

Meneou a cabeça para aclarar as idéias e passou a pensar noutra coisa.

 

FANTASMA DE UM MUNDO

Trantor era um mundo de detritos que renascia. Colocado como uma jóia embaciada no meio da multidão desorientadora de sóis no centro da Galáxia, entre os montões e os grupos de estrelas acumulados com uma prodigalidade sem desígnio, sonhava alternadamente com o passado e com o futuro.

Tempo houvera em que as faixas insubstanciais do domínio se haviam estendido desde sua capa metálica até os confins mais remotos do espaço estelar. Fora uma só cidade, albergando quatrocentos bilhões de administradores, a capital mais poderosa que jamais existira.

Até que a decadência do Império o atingira eventualmente e, no Grande Saque de um século antes, as suas forças em declínio haviam sido forçadas a dobrar-se sobre si mesmas e aniquiladas para sempre. Na ruína devastadora da morte, a cobertura de metal que rodeava o planeta enrugou-se e amarfanhou-se num escárnio dolorido da sua própria grandeza.

Os sobreviventes despedaçaram a chaparia metálica e venderam-na para outros planetas em troca de sementes e de gado. O solo ficou outra vez descoberto e o planeta regressou aos seus primórdios. Nas áreas, que foram aumentando, de agricultura primitiva, esqueceu o seu passado complicado e colossal.

Ou teria esquecido, se não fossem os fragmentos ainda imponente.s que erguiam as suas ruínas maciças de encontro ao céu num silêncio amargo e dignificante.

Arcádia fitava a orla metálica do horizonte com o coração agitado. A aldeia em que os Palvers viviam não era para ela senão um amontoado desordenado de casas, pequeno e primitivo. Os campos que a rodeavam eram de um amarelo dourado, terrenos semeados de trigo.

Mas ali, precisamente para além do ponto que a vista alcançava, estava a memória do passado, ainda brilhando num esplendor não-oxidado, e abrasando-se em fogo onde o sol de Trantor incidia nas suas fulgurantes estruturas principais. Estivera ali uma vez, durante os meses que haviam passado desde que chegara a Trantor. Subira para o pavimento liso, e sem juntas, e aventurara-se pelas estruturas silenciosas e poeirentas onde a luz penetrava pelos rasgões das paredes e divisórias arruinadas.

Era o pesar solidificado. Era uma blasfêmia.

Saíra de lá agitada, correndo até os pés lhe voltarem a pousar suavemente na terra nua. E ali, agora, apenas podia olhar, num anseio imenso. Não se atrevia a voltar a perturbar aquele sono imponente.

Sabia que nascera em qualquer parte daquele mundo, perto da antiga Biblioteca Imperial, que era o mais verdadeiro Trantor de Trantor. Era o lugar sagrado entre os sagrados, o santo dos santos! Só ela, em todo aquele mundo sobrevivera ao Grande Saque e mantivera-se durante um século completa e intacta, desafiando o universo.

Fora ali que Seldon e o seu grupo haviam tecido sua teia inimaginável. Fora lá que Ebling Mis havia penetrado o segredo e ficara sentado, paralisado pela surpresa imensa, até ser assassinado para impedir o segredo de ir mais longe.

Fora ali, na Biblioteca Imperial, que haviam vivido os seus avós durante dez anos, até o Mulo morrer e poderem voltar à Fundação renascida.

Fora ali, à Biblioteca Imperial, que seu próprio pai voltara com a noiva para tornar a encontrar a Segunda Fundação, mas falhara. Fora ali que nascera e fora ali que sua mãe morrera.

Gostaria de visitar a Biblioteca, mas Preem Palver meneara a cabeça redonda. – São milhares de quilômetros de caminho, Arkady, e há tanto que fazer aqui. Além disso, não é bom perturbar o seu silêncio. Sabe que é um santuário, não é verdade?

Todavia Arcádia sabia que ele não queria visitar a Biblioteca, que era novamente o mesmo caso do Palácio do Mulo. Havia medo supersticioso por parte dos pigmeus do presente pelas relíquias dos gigantes do passado.

Seria horrível, porém, sentir animosidade contra o engraçado homenzinho por causa disso. Estavam em Trantor havia quase três meses, e em todo esse tempo, ele e ela, o " Papá " e a "Mama", haviam sido maravilhosos para com ela...

E que recebiam em troca? Por que envolvê-los na ruína comum? Avisara-os de que talvez estivesse marcada para a destruição? Não! Deixara-os assumirem o papel mortal de protetores.

Sua consciência atormentava-a mas que escolha tinha ela?

Desceu com relutância a escada, para o desjejum. As vozes chegaram até ela.

Preem Palver colocara o guardanapo no colarinho com uma contorção de pescoço e atirara-se aos seus ovos cozidos com uma satisfação sem inibições.

- Estive ontem na cidade, Mama - disse ele, manejando o garfo e quase abafando as palavras com a grande boca cheia.

- E que há pela cidade, Papá? - perguntou "Mama", com indiferença, sentando-se, revistando cuidadosamente a mesa e voltando a levantar-se para buscar o sal.

- Oh, nada de bom! Chegou uma nave comercial de Kalgan com jornais de lá. Estão em guerra.

- Guerra! Ah, sim? Ora! Deixe-os partir as cabeças uns aos outros, se não têm mais juízo dentro delas. O cheque do seu ordenado já chegou? Volto a dizer-lhe, Papá, que avise o velho Cosker de que esta não é a única cooperativa no mundo. Já basta que lhe paguem o que eu me envergonho de dizer ás minhas amigas. Podiam pelo menos ser pontuais!

- Pontuais ou não, tanto faz - disse "Papá", com irritação. - Ouça, não me venha com conversas tolas no desjejum, que a comida não me passa da garganta - e fez um grande estrago nas torradas com manteiga enquanto o dizia. Acrescentou, um tanto mais moderadamente: - A luta é entre Kalgan e a Fundação, e estão nisto há dois meses.

As mãos esfregaram-se uma na outra no arremedo de uma luta no espaço.

- Hum... E como é que vão as coisas?

- Vão mal para a Fundação. Bem, você viu Kalgan, tudo soldados. Estavam preparados, a Fundação não estava, e portanto... pff!...

Mas subitamente a "Mama" pousou o garfo e disparou: - Idiota!

- Hein?

- Cabeça dura! A sua bocarra nunca está quieta nem calada. Apontou rapidamente, e quando "Papá" olhou por cima do ombro lá estava Arcádia, paralisada, no limiar da porta.

Perguntou:- A Fundação está em guerra?

O "Papá" olhou desamparado para "Mama"; depois inclinou a cabeça afirmativamente.

- E está perdendo?

De novo o sinal afirmativo.

Arcádia sentiu um nó horrível na garganta, e aproximou-se lentamente da mesa. – Está tudo acabado? - murmurou.

- Acabado? - repetiu "Papá", com uma sinceridade falsa. - Quem disse que estava acabado? Na guerra pode acontecer muita coisa e... e...

- Sente-se, querida - disse "Mama", carinhosamente. - Ninguém devia falar antes do desjejum. Não se está em boas condições sem comida no estômago.

Todavia Arcádia ignorou-a. - Os Kalganianos estão em Terminus?

- Não - disse "Papá", com seriedade. - As notícias são da semana passada, e Terminus ainda está lutando. Isto é sério. Estou dizendo a verdade. E a Fundação ainda está firme. Quer que lhe traga os jornais?

- Quero!

Leu-os enquanto comia o que conseguia engolir do desjejum, e os seus olhos anuviaram-se ao ler. Santanni e Korell haviam sido capturados, sem luta. Uma esquadrilha da Fundação tinha caído numa emboscada no setor de Ifni e destruída quase até à última nave.

E agora a Fundação voltara a ser constituída pelo núcleo dos Quatros Reinos, a Nação original, tal como fora construída no tempo de Salvor Hardin, o primeiro prefeito. Mas ainda lutava, podia haver ainda uma reviravolta e acontecesse o que acontecesse, devia informar o pai. Fosse como fosse havia de alcançar os ouvidos dele. Havia de conseguir!

Mas como, com uma guerra de permeio?

Depois do desjejum perguntou ao "Papá": - Vai sair brevemente em missão, Sr. Palver?

O "Papá" estava sentado na grande cadeira, no relvado fronteiro à casa, aquecendo-se ao sol. Segurava entre os dedos gordos um grosso charuto.

- Em missão? - repetiu, preguiçosamente. - Quem sabe? São uma belas férias, e a minha saída ainda não está marcada. Mas para que havemos de falar em novas missões? Está impaciente, Arkady?

- Eu? Não, gosto disto daqui. São muito bons para mim, o senhor e a senhora Palver.

Ele fez um gesto espalhando suas palavras. Arcádia disse: - Estava pensando na guerra.

- Não pense nisso! Que pode a menina fazer? Se é qualquer coisa para a qual não pode ser útil, por que se mortifica?

- Mas eu estava pensando que a Fundação perdeu a maior parte dos seus mundos agrícolas. Provavelmente estarão racionando os alimentos.

O "Papá" mostrou-se pouco à vontade. - Não se aflija, não há de haver dificuldades.

Ela mal ouviu. - Gostaria de levar-lhe mantimentos. Foi nisso que pensei. Sabe? Depois do Mulo morrer e da Fundação se revoltar, Terminus esteve quase isolado durante algum tempo, e o General Han Pritcher, que sucedeu ao Mulo, também durante algum tempo, estabeleceu-lhe um cerco. Os víveres tornaram-se escassos, e o meu pai diz que o pai dele lhe disse que tinham apenas concentrados aminoácidos secos, que tinham um sabor horrível. Um ovo chegou a custar duzentos créditos. Então romperam o cerco a tempo e as naves com víveres puderam chegar de Santanni. Deve ter sido um tempo horroroso. Talvez esteja acontecendo o mesmo agora.

Houve uma pausa, e Arcádia disse: - Sabe? Aposto que a Fundação seria agora capaz de pagar preços de mercado negro por víveres. O dobro, o triplo, e mais. Eia! Se alguma cooperativa, por exemplo, aqui de Trantor, se encarregasse do negócio, poderiam perder algumas naves mas aposto que ficariam milionários antes da guerra terminar. Os comerciantes da Fundação, nos tempos antigos, costumavam fazer isso. Havia uma guerra, lá iam eles vender o que era mais necessário, e aceitavam correr os riscos. Costumavam fazer tanto como dois milhões de lucro, em cada viagem. E conseguiam obter esse lucro do que podiam transportar só numa nave.

O "Papá" mostrou-se agitado. O charuto apagou:se sem ele notar. - Um acordo para o fornecimento de víveres, hein? Hum... mas a Fundação fica tão afastada!

- Ora, bem sei. Suponho que não poderia chegar lá partindo daqui. Se tomasse uma nave de carreira regular, provavelmente não conseguiria aproximar-se mais do que Massena ou Smushyk e, depois disso, teria de alugar uma nave pequena de patrulha ou qualquer coisa parecida para atravessá-lo por entre as linhas de combate.

A mão do "Papá" alisava o cabelo, enquanto calculava.

Duas semanas mais tarde estavam prontos os preparativos para a missão. A "Mama" insultou-o durante a maior parte do tempo, primeiro por causa da obstinação incurável com que ele procurava o suicídio, depois por causa da obstinação incrível com que recusava permitir-lhe que o acompanhasse.

O "Papá" disse: - Por que se porta como uma velha dama, Mama? Não posso levá-la. É um trabalho de homem. Que pensa que seja uma guerra? Um divertimento? Uma brincadeira de crianças?

- Então por que é que você vai? Você é um homem, meu velho tonto, com uma perna e metade de um braço na sepultura.. Deixe ir algum dos novos, não um careca gordo como você.

- Não sou careca - retorquiu o "Papá", com dignidade - ainda tenho tufos de cabelo. E por que não haveria de ser eu a ganhar a comissão? Por que um dos novos? Ouça, isto pode representar milhões.

Ela sabia isso e calou-se.

Arcádia viu-o mais uma vez antes dele partir.

Perguntou-lhe: - Vai a Terminus?

- Por que não? É a primeira a dizer que precisam de pão, arroz e batatas. Pois bem, faço um acordo com eles e hão de tê-los.

- Então está bem... só mais uma coisa. Se vai a Terminus, poderia... seria capaz de ir ver meu pai?

O rosto do "Papá" enrugou-se e pareceu dissolver-se em simpatia. - Ora, nem era preciso dizer-mo. Claro que vou vê-lo. Dir-lhe-ei que está a salvo e tudo vai bem, e que quando a guerra terminar levá-la-ei de volta.

- Muito obrigada. Vou dizer-lhe como o encontrar.

- O nome dele é Dr. Toran Darell e vive em Stanmark. É mesmo fora da Cidade de Terminus, e pode apanhar um carro aéreo de ligação que vai chegar lá. Moramos em Channel Drive, 55.

- Espere que escrevo isso.

- Não, não! - A mão de Arcádia impediu-o. - Não deve escrever nada. Tem de se lembrar, procurá-lo sem a ajuda de ninguém.

O "Papá" parecia intrigado. Depois encolheu os ombros. - Então está bem. Channel Drive, 55, em Stanmark, fora da Cidade de Terminus, e chega-se lá de carro aéreo. Está bem?

- Mais uma coisa.

- Diga.

- Diz-lhe uma coisa da minha parte?

- Claro.

- Quero dizer-lhe ao seu ouvido.

Ele inclinou a bochecha para ela, e o som murmurado passou de um para o outro.

Os olhos do "Papá" mostravam-se intrigados. - É isso que quer que eu diga? Mas não faz sentido.

Ele compreenderá o que quer dizer. Diga-lhe só que fui eu que mandei esse recado e que ele compreenderá o que quer dizer. E diga-o exatamente da maneira como eu lho disse. Sem nenhuma diferença. Não se esquece dele?

- Como posso esquecer-me? Cinco palavrinhas. Ouça...

-Não, não. - Não conseguia estar quieta, com a intensidade dos seus sentimentos. - Não o repita. Jamais o repita seja a quem for. Esqueça-se de tudo, exceto para o meu pai. Prometa-me.

O "Papá" voltou a encolher os ombros. - Está bem, prometo.

Está bem - disse ela, tristemente, e enquanto ele descia o caminho para onde o táxi aéreo o esperava para levá-lo ao aeroporto, perguntava a si mesma se não teria assinado a sentença de morte dele. Perguntava a si mesma se voltaria alguma vez a vê-lo.

Mal se atrevia a voltar a entrar em casa e encarar a boa e simpática "Mama". Talvez, quando tudo tivesse passado, fosse melhor matar-se pelo que lhes fizera.

 

FIM DA GUERRA

BATALHA DE QUORISTON. Travada em 17/9/377E. F. entre as forças da Fundação e as de Lorde Stettin de Kalgan, foi a última batalha com conseqüências durante o Interregno...

Enciclopédia Galáctica

 

No seu novo papel de correspondente de guerra, Jole Turbor viu-se num uniforme da Esquadra e gostou bastante dele. Agradava-lhe voltar ao espaço. A debandada louca na luta fútil contra a Segunda Fundação deixara-o na excitação de outra espécie de luta com naves materiais e homens normais.

Para dizer a verdade, a luta da Fundação não fora até aí notável pelas suas vitórias, mas era ainda possível ser filósofo. Passados seis meses, a parte principal da Fundação ainda permanecia intacta e a parte principal da Esquadra ainda existia. Com os novos aumentos de efetivos desde o começo da guerra, estava numericamente quase tão forte e tecnicamente mais forte do que antes da derrota em Ifni.

E entretanto, as defesas planetárias estavam sendo reforçadas, as forças armadas melhor treinadas, a eficiência administrativa libertava-se pouco a pouco da ferrugem, e uma grande parte da esquadra Kalganiana conquistadora estava sendo imobilizada pela necessidade de ocupar o território "conquistado".

De momento, Turbor estava com a Terceira Esquadra nos confins exteriores do setor de Anacreon. Na linha da sua política de fazer daquilo uma "guerra do homem comum", estava entrevistando Fenner Leemor, Engenheiro de Terceira Classe, voluntário.

- Conte-nos alguma coisa a seu respeito - pediu Turbor.

- Não tenho muito que dizer. - Leemor arrastou os pés e deixou que um sorriso tênue e acanhado cobrisse o rosto, como se pudesse ver todos as milhões de pessoas que, sem dúvida, podiam vê-lo nesse momento. - Sou Locriano. Sou empregado numa fábrica de carros aéreos, chefe de seção e bem pago. Sou casado e tenho duas filhas: Ouça, não poderia dizer-lhes qualquer coisa, para o caso de estarem ouvindo?

- Pois diga, amigo, a televisão é toda sua.

- Ai que bom! Muito obrigado. - E balbuciou: - Olá, Milla, se estiver me ouvindo. Estou ótimo. A Sunni está boa? E a Tomma? Estou sempre pensando em vocês e talvez vá de licença quando regressarmos à base. Recebi sua encomenda com comida, porém vou devolvê-la. Temos o nosso rancho normal, mas dizem que os civis estão um pouco apertados. Acho que é tudo.

- Irei visitá-la da próxima vez que for a Locris, amigo, e assegurar-me-ei de não ter falta de comida. Está bem?

O jovem sorriu abertamente e inclinou a cabeça num sinal afirmativo. –Muito obrigado, Sr. Turbor. Ficar-lhe-ia muito grato por isso.

- Muito bem. Então, vamos lá saber... É um voluntário, não é?

- Claro que sou. Se alguém procura briga comigo, não tenho que esperar que ninguém me empurre para me meter nela. Alistei-me no dia em que ouvi o que se passou com a Hober Mallow.

- Esse é o verdadeiro espírito de luta. Já entrou em ação muitas vezes? Noto que traz duas estrelas de combate.

- Em Ptah - cuspiu o jovem. - Mas isso não foram combates, foram caçadas. Os Kalganianos não combatem, a não ser que haja diferença de cinco para um ou maiores a seu favor. Mesmo assim não se aproximam muito e tentam atacar-nos nave por nave. Um primo meu esteve em Ifni, numa nave que escapou, a velha Ebling Mis. Diz que lá foi a mesma coisa. Tinham a Esquadra Principal contra uma só divisão da nossa, e quando nos restavam só cinco naves, assim mesmo eles se limitavam a rodear ao invés de combater. Ora, nesses combates nós tínhamos a metade das naves deles.

- Então pensa que vamos ganhar a guerra?

- Aposto tudo. E agora que não estamos nos retirando... Mesmo se as coisas se tornassem muito más, espero que seria a ocasião para a Segunda Fundação entrar no baile. Ainda temos o Plano de Seldon, e eles também sabem disso.

Os lábios de Turbor crisparam-se um pouco. - Está então contando com a Segunda Fundação?

A resposta veio com uma surpresa sincera. - Bem, não é com o que toda a gente conta?

O Oficial Subalterno Tipellum entrou na câmara de Turbor após a emissão. Estendeu um cigarro ao correspondente e deu um piparote no boné, que ficou em equilíbrio instável sobre a nuca.

- Fizemos um prisioneiro - disse.

- Ah, sim?

É um tipo meio maluco. Diz que é neutro e que tem imunidade diplomática, nada menos. Creio que não sabem o que hão de fazer com ele. O me dele é Palvro, Palver ou qualquer coisa assim, e diz que é de Trantor. Não sei o que diabo está ele fazendo numa zona de guerra.

Mas Turbor ergueu-se subitamente, sentando-se na tarimba, e a soneca que estava para tirar ficou esquecida. Lembrava-se perfeitamente bem de sua última entrevista com Darell, no dia seguinte àquele em que a guerra fora declarada, quando estava de partida.

- Preem Palver - disse. Foi uma declaração que fez.

Tipellum fez uma pausa e deixou a fumaça escapar-se pelos cantos da boca. - Pois é - disse - mas, pelo Espaço, como sabe?

- Isso não interessa. Posso vê-lo?

- Pelo Espaço, não posso dizer-lhe. O velhote tem-no na sua própria câmara para interrogatório. Toda gente pensa que é um espião.

- Diga ao velhote que o conheço, se é quem pretende ser. Assumo a responsabilidade.

 

O Comandante Dixyl, na nave-almirante da Terceira Esquadra, observava incansavelmente o Grande Detector. Nenhuma nave podia evitar ser uma fonte de radiação subatômica, nem sequer jazendo como uma massa inerte, e cada ponto focal dessa radiação era uma pequena fagulha no campo tridimensional.

Todas as naves da Fundação estavam avisadas e não ficava nenhuma centelha por examinar, agora que o espiãozinho que pretendia ser neutro fora apanhado. Por momentos, aquela nave estranha provocara agitação no posto do comando. A tática precisaria ser modificada de um momento para o outro.

Tal como as coisas se apresentavam...

- Está o senhor a par de todos os pormenores? - perguntou.

O Comandante de Esquadrilha Cenn abanou a cabeça em sinal afirmativo. – Vou conduzir minha esquadrilha através do hiper-espaço. Raio, 30 000 anos-luz; teta 268,52 graus; fi, 84,55 graus. Regresso ao ponto de partida às 13,30. Ausência total: 11,43 horas.

- Perfeitamente. Vamos contar com um regresso absolutamente exato no que respeita tanto ao espaço como ao tempo. Entendido?

- Sim, meu comandante. - Olhou para o relógio de pulso. - As minhas naves estarão a postos às 01,40.

- Bem - disse o Comandante Dixyl.

A esquadrilha Kalganiana não estava agora ao alcance do detector, todavia estaria em breve. Havia informações independentes para o efeito. Sem a esquadrilha de Cenn, as forças da Fundação seriam gravemente excedidas em número, mas o Comandante estava inteiramente confiante. Inteiramente confiante.

Preem Palver olhou tristemente à sua volta, primeiro para o almirante, alto e magro, depois para os outros, todos de uniforme, e finalmente para aquele último, grande e forte, com o colarinho aberto e sem gravata - diferente dos outros - que manifestou desejo de falar com ele.

Jole Turbor estava dizendo: - Tenho perfeita consciência, senhor almirante, das sérias possibilidades que aqui estão em causa, todavia afirmo-lhe que, se me for permitido falar com ele durante alguns minutos, poderei pôr termo à incerteza atual.

- Há alguma razão especial para não poder interrogá-lo na minha presença?

Turbor mordiscou os lábios e mostrou-se obstinado. - Senhor Almirante - disse ele - desde que fui destacado para suas naves, a Terceira Esquadra teve uma imprensa favorável, excelente. Pode pôr homens de guarda do lado de fora da porta, se quiser, e pode voltar dentro de cinco minutos. Mas, entretanto, condescenda um pouco comigo e as suas relações públicas não sofrerão. Está compreendendo?

E ele compreendeu.

Turbor, então, no isolamento que se seguiu, voltou-se para Palver e disse:

- Rápido! Qual é o nome da garota que raptou?

Palver limitou-se a esbugalhar os olhos e a menear a cabeça.

- Deixe-se de disparates - disse Turbor. - Se não responder, será um espião, e os espiões são mortos sem julgamento em tempo de guerra.

- Arcádia Darell! - arquejou Palver.

- Ora muito bem! Está em segurança?

Palver inclinou a cabeça afirmativamente.

- O melhor que tem a fazer é ter a certeza disso, ou não será bom para você.

- Está de perfeita saúde, absolutamente em segurança - disse Palver, num murmúrio.

O almirante voltou. - Então?

- Este homem não é um espião, senhor almirante. Pode acreditar no que ele lhe diz. Responsabilizo-me por ele.

- Ah, sim? - O almirante franziu os sobrolhos. - Então representa uma cooperativa agrícola de Trantor, que quer dizer um tratado de comércio com Terminus para fornecimento de cereais e batatas? Pois muito bem, contudo não pode partir agora.

- Por que não? - perguntou Palver, rapidamente.

- Porque estamos no meio de uma batalha. Depois de ela ter terminado, partindo do princípio de estarmos ainda vivos, levá-lo-emos a Terminus.

A esquadra Kalganiana, que girava pelo espaço, detectou as naves da Fundação a uma distância incrível e foi ela própria detectada. Como pequenos pirilampos nos Grandes Detectores uma da outra, foram-se aproximando através do vácuo.

O almirante da Fundação franziu os sobrolhos e disse: - Deve ser este o ataque principal deles. Olhe para os números. - E a seguir: - Mas não se agüentam conosco, desde que possamos contar com o destacamento de Cenn.

O comandante Cenn partira horas antes, à primeira detecção do inimigo que avançava para eles. Não havia maneira de alterar outra vez o plano. Daria ou não resultado, contudo o almirante sentia-se perfeitamente à vontade. Tal como os oficiais. Tal como os tripulantes.

Voltou a observar os pirilampos. Cintilavam, como num bailado mortal, em formações precisas.

A esquadra da Fundação voltou-se lentamente. Passaram-se horas, e a esquadra mudou lentamente de direção, provocando o inimigo que avançava, e levando-o a desviar-se ligeiramente de sua rota. Depois a esquadra voltou a fazer o mesmo mais vezes.

No espírito dos responsáveis pelo plano de batalha havia uma certa área do espaço que devia ser ocupado pelas naves Kalganianas. As da Fundação sairiam furtivamente dessa área, e as Kalganianas introduzir-se-iam nela. As que voltassem a sair seriam atacadas, súbita e ferozmente: as que permanecessem dentro dela não seriam tocadas.

Tudo dependia da relutância das naves de Lorde Stettin em tomarem a iniciativa, da sua condescendência em manterem-se onde ninguém as atacaria.

O comandante Dixyl fitava friamente o relógio de pulso. Eram 13,10.

- Faltam vinte minutos - disse.

O tenente a seu lado confirmou, tenso, meneando a cabeça. - Até aqui parece ir tudo bem, meu comandante. Temos mais de noventa por cento deles encurralados. Se conseguirmos mantê-los assim...

- Sim! Se...

As naves da Fundação estavam outra vez seguindo para frente, muito lentamente. Não avançavam com a rapidez suficiente para forçarem uma retirada Kalganiana, mas com a rapidez necessária para desencorajarem um avanço inimigo. Eles preferiram esperar.

E os minutos passavam.

Às 13,25, a campainha de sinais do almirante soou em setenta e cinco naves de linha da Fundação, que investiram com a máxima aceleração rumo ao plano frontal da Esquadra Kalganiana, composta de trezentas naves. Os escudos de defesa Kalganianos entraram em ação, deslumbrantes, e os imensos raios de energia apareceram, chicoteando o espaço. Cada uma das trezentas naves se concentrou na mesma direção, na direção dos seus loucos atacantes que arremetiam contra eles, sem precauções, e...

Às 13,30, cinqüenta naves comandadas por Cenn surgiram do nada, num único salto através do hiper-espaço para um lugar determinado, num tempo determinado, e alinharam-se numa fúria devastadora à retaguarda Kalganiana desprotegida.

A armadilha funcionou perfeitamente.

Os Kalganianos ainda tinham o número a seu favor, porém não estavam com disposição para verificar. O seu primeiro esforço foi para fugirem, e a formação, uma vez quebrada, tornou-se ainda mais vulnerável, pois as naves inimigas atravessavam-se no caminho uma das outras.

Pouco depois, aquilo tomou as proporções de uma caçada de gatos contra ratos.

De trezentas naves Kalganianas, coração e orgulho da sua esquadra, só umas sessenta, ou menos, muitas delas seriamente avariadas, conseguiram voltar a Kalgan. As perdas da Fundação foram de oito naves num total de cento e vinte e cinco.

Preem Palver pousou em Terminus no auge da celebração. Achou perturbador o entusiasmo louco, mas antes de deixar o planeta realizara duas coisas e recebera um pedido.

As duas coisas realizadas eram: 1) a conclusão de um acordo pelo qual a cooperativa de Palver entregaria vinte carregamentos de alimentos por mês durante o ano seguinte, por preço de guerra, sem haver, graças à batalha recente, o correspondente risco de guerra e, 2) a comunicação ao Dr. Darell das cinco palavras curtas de Arcádia.

Durante um momento de surpresa, Darell ficara a fitá-lo de olhos esbugalhados.  Depois fizera-lhe o pedido. Era o de levar uma resposta a Arcádia. Palver gostou dela; era uma resposta simples e fazia sentido. Era: "Agora pode voltar. Não haverá qualquer perigo".

 

Lorde Stettin estava num estado de frustração raivoso. Ver quebrarem-se-lhe nas mãos todas as suas armas, sentir o tecido sólido do seu poder militar romper-se como fio podre que, repentinamente, se verificava ser aquele de que era feito, transformaria a própria fleuma em lava ardente. Porém estava indefeso, se bem o sabia.

Não dormia realmente bem havia semanas. Não fizera a barba durante três dias. Cancelara todas as audiências. Os seus almirantes estavam abandonados a si mesmos e ninguém sabia melhor do que o Senhor de Kalgan que pouco tempo se passaria, e sem mais derrotas, antes de ter que se haver com a rebelião interna.

Lev Meirus, Primeiro Ministro, não era uma solução. Ali estava de pé, calmo e prematuramente velho, com o seu dedo magro e nervoso seguindo, como sempre, o vinco da ruga entre o nariz e o queixo.

- Então! - gritou-lhe Stettin. - Colabore com alguma coisa! Estamos derrotados, compreende? Derrotados! E por quê? Eu não sei por que. Aí tem, não sei por que. E você sabe por quê?

- Penso que sei - disse Meirus, calmamente.

- Traição! - A palavra foi pronunciada suavemente, e seguiram-se outras palavras tão suavemente como aquela. - Você teve conhecimento da traição e ficou calado. Serviu o tolo que eu expulsei da Primeira Cidadania e pensa que pode servir qualquer rato imundo que me substitua. Se assim foi, hei de tirar-lhe as entranhas por isso e queimá-las diante dos seus olhos ainda vivos.

Meirus não se perturbou. - Tentei alertá-lo com as minhas próprias dúvidas, não uma mas muitas vezes. Aturdi-lhe os ouvidos com elas, e o senhor preferiu o conselho de outros porque satisfaziam melhor o seu egocentrismo. As coisas tornaram-se, não como eu temia, porém ainda piores. Se não interessa ouvir-me agora, diga-o, Senhor, e deixá-loei. Tratarei em devido tempo com o seu sucessor, cujo primeiro ato, sem dúvida, será assinar um tratado de paz.

Stettin ficou olhando para ele com os olhos vermelhos. Os seus punhos enormes fechavam-se e abriam-se. - Fale, sua lesma cinzenta. Falei

- Disse-lhe muitas vezes, Senhor, que não é o Mulo. Pode controlar naves e canhões mas não pode controlar as mentes dos seus súditos. Tem consciência Senhor, de quem está combatendo? Está combatendo a Fundação, que nunca é derrotada, a Fundação, que está protegida pelo Plano de Seldon a Fundação, que está destinada a estabelecer um novo Império.

- Não há Plano nenhum. Já não há. Munn assim o disse.

- Então Munn está enganado. E se tivesse razão, que importava isso? O senhor e eu não somos o povo, Senhor. Os homens e mulheres de Kalgan e dos seus mundos submetidos acreditam sincera e profundamente no Plano de Seldon, tal como todos os habitantes deste extremo da Galáxia. Quase quatrocentos anos de história ensinam o fato de que a Fundação não pode ser derrotada. Nem os reinos, nem os senhores da guerra, nem o próprio antigo Império Galáctico puderam fazê-lo.

- O Mulo fê-lo.

- Exatamente, mas ele estava para além dos cálculos, e o Senhor não está. E o que é pior é que o povo sabe que o senhor não está. E assim, as suas naves entram em combate temendo a derrota por qualquer maneira desconhecida. O tecido insubstancial do Plano está suspenso sobre eles, de modo que são cautelosos, olham antes de atacar e interrogam-se muito. Enquanto que do outro lado, esse mesmo tecido insubstancial enche o inimigo de confiança, repele o medo, mantém o moral em face das primeiras derrotas. E por que não? A Fundação foi sempre derrotada no princípio e sempre venceu no fim.

- E o seu próprio moral, Senhor? Está por toda a parte no território inimigo, os seus próprios domínios não foram invadidos, não estão ainda em perigo de invasão, e não obstante o Senhor está derrotado. Não acredita sequer na possibilidade de vitória, porque sabe que não há nenhuma.

- Portanto, submeta-se, ou será derrotado até ficar de rastos. Submeta-se voluntariamente, e pode salvar alguma coisa. Ò Senhor dependia do metal e da energia e eles sustentaram-no enquanto puderam. Ignorou o espírito e o moral e estes desampararam-no. Agora, siga o meu conselho. Tem em seu poder o homem da Fundação, Homir Munn. Liberte-o e mande-o de regresso a Terminus com suas ofertas de paz.

Os dentes de Stettin rangiam por detrás dos seus lábios pálidos e cerrados. Que escolha tinha ele?

No primeiro dia do novo ano, Homir Munn partiu de Kalgan. Mais de seis meses haviam passado desde que deixara Terminus, e, nesse intervalo, uma guerra havia desencadeado a sua fúria e havia-se desvanecido.

Viera só, mas voltava escoltado. Viera como simples cidadão, e partia na qualidade de verdadeiro, embora não nomeado, embaixador de paz.

E o que mudara mais fora a sua anterior preocupação pela Segunda Fundação. Ria ao pensar nisso, e imaginava em pormenores exuberantes o quadro da revelação final ao Dr. Darell, àquele enérgico, jovem e competente Anthor, a todos eles...

Sabia. Ele, Homir Munn, sabia finalmente a verdade.

 

"EU SEI..."

Os últimos dois meses da guerra Stettiniana não levaram muito tempo a passar para Homir. No seu cargo insólito de embaixador extraordinário, encontrou-se como centro dós negócios interestelares, um papel que não podia deixar de achar agradável.

Não houve mais batalhas de importância, apenas umas tantas escaramuças acidentais que mal podiam merecer destaque, e os termos do tratado foram estabelecidos com pequena necessidade de concessões por parte da Fundação. Stettin manteve-se no seu cargo, e mais nada. A sua esquadra foi desmantelada, e suas possessões exteriores ao próprio sistema metropolitano tornaram-se autônomas, sendo-lhes permitido voltar pelo regresso ao estado anterior, pela independência completa ou pela confederação dentro da Fundação, conforme escolhessem.

A guerra terminou formalmente num asteróide do próprio sistema estelar de Terminus, local da base mais antiga da Esquadra da Fundação. Lev Meirus assinou por Kalgan, e Homir foi um espectador interessado.

Não viu, durante todo esse período, o Dr. Darell nem qualquer dos outros. Mas isso pouco importava. As suas novidades conservar-se-iam, e, como sempre, sorriu ao pensá-lo.

O Dr. Darell regressou a Terminus algumas semanas depois do Dia da Vitória contra Kalgan e, nessa mesma noite, sua casa serviu de local de reunião para os cinco homens que, dez meses antes, haviam traçado os seus primeiros planos.

Demoraram-se a jantar e a tomarem o vinho, como se hesitassem em voltar ao velho assunto.

Foi Jole Turbor que, espreitando constantemente com um só olho para as profundidades de púrpura do cálice de vinho, resmungou, mais do que falou. - Bem, Homir, estou vendo que agora você é um homem de negócios. Manejou bem as coisas.

- Eu? - Munn riu alto e alegremente. Por qualquer razão, havia meses que não gaguejava. - Não tive nada a ver com isso. Foi Arcádia, A propósito, Darell, como vai ela? Ouvi dizer que está de regresso de Trantor.

- Está certo o que ouviu - disse Darell, calmamente. - A nave dela deve chegar esta semana. - Olhou para os outros, disfarçadamente, houve apenas exclamações confusas e amorfas de prazer, nada mais.

Turbor disse: - Então está realmente acabado. Quem havia de prever isto dez meses atrás. Munn foi a Kalgan e voltou, Arcádia foi a Kalgan e a Trantor e está de regresso, tivemos uma guerra e vencemo-la. Pelo Espaço! Dizem -nos que as grandes correntes da história podem ser previstas, mas não parece concebível que tudo aquilo que acaba de passar-se, com absoluta confusão para aqueles de nós que viveram os acontecimentos, possa ter sido previsto.

- Disparate! - disse Anthor, com azedume. - Seja como for, o que é que o traz tão triunfante? Fala como se tivéssemos vencido realmente uma guerra, quando a verdade é que não vencemos nada senão uma rixa insignificante que serviu apenas para distrair os nossos espíritos do verdadeiro inimigo.

Houve um silêncio desagradável, em que apenas o ligeiro sorriso de Homir Munn deitava uma nota discordante.

Anthor bateu no braço da cadeira com um punho cerrado e cheio de fúria. - Sim, refiro-me à Segunda Fundação. Ninguém fala nela e, se julgo corretamente, fazem-se todos os esforços para não pensar nela. Será por esta atmosfera falaz de vitória que envolve este mundo de idiotas ser tão atraente que sentem dever participar? Então dêem saltos mortais, trepem pelas paredes, dêem palmadinhas nas costas uns dos outros e atirem confetes pela janela. Façam como mais lhes agradar, mas livrem-se desse estado de espírito, e quando acabarem e tornarem a ser quem são, voltem e vamos discutir esse problema que continua existindo agora tal como existia há dez meses, quando estavam sentados, a espreitar por cima do ombro, cheios de medo sem saberem de que. Pensam realmente que os Senhores da Mente da Segunda Fundação são menos temíveis por terem derrotados um esgrimista idiota de naves espaciais?

Fez uma pausa, corado e arquejante.

Munn disse, calmamente: - Agora quer ouvir-me, Anthor? Ou prefere continuar o seu papel de conspirador bombástico?

- Diga o que tem a dizer, Homir - disse Darell - mas vamos abster-nos de utilizar uma linguagem excessivamente dura. É uma coisa muito boa quando há ocasião, porém neste momento aborrece-me.

Homir Munn reclinou-se na sua cadeira de braços e voltou a encher cuidadosamente o cálice.

- Fui enviado a Kalgan - disse - para descobrir o que pudesse nos registros contidos no Palácio do Mulo. Passei vários meses tentando fazê-lo. Não pretendo tirar proveito do caso. Como indiquei, foi Arcádia que, intrometendo-se ingenuamente conseguiu a entrada para mim. Não obstante, mantém-se o fato de que, ao meu conhecimento original da vida e da época do Mulo, o qual, admito-o, não era pequeno, acrescentei os frutos de muito labor entre os testemunhos fundamentais que não haviam estado à disposição de mais ninguém.

- Estou, por conseqüência, numa posição única para avaliar o verdadeiro perigo da Segunda Fundação, em muitíssimo melhor posição do que está aqui o nosso excitável amigo.

- É - esganiçou Anthor - qual é a sua avaliação do perigo?

- Ora! É de zero.

Houve uma curta pausa, e Elvett Semic perguntou com um ar de surpreendida incredulidade: - Quer dizer que não há nenhum perigo?

- Decerto. Amigos, não há nenhuma Segunda Fundação!

As pálpebras de Anthor fecharam-se lentamente, e ficou quieto, pálido e sem expressão.

Munn continuou, monopolizando a atenção e gostando disso: - E, o mais importante, nunca houve.

- Em que fundamenta - perguntou Darell - nessa conclusão surpreendente?

- Nego - disse Munn - que seja surpreendente. Todos conhecem a história da procura da Segunda Fundação pelo Mulo. Mas que sabem vocês da intensidade dessa procura da idéia fixa dela? Tinha recursos tremendos à sua disposição e não poupou nenhum. Tinha aquela idéia fixa, e contudo falhou. Não foi localizada nenhuma Segunda Fundação.

- Dificilmente se esperaria que fosse encontrada - acentuou Turbor, impacientemente. - Tinha meios para se proteger contra as mentes investigadoras.

- Mesmo quando a mente que estivesse investigando fosse o intelecto de mutante do Mulo? Penso que não. Porém ouçam, não esperam decerto que lhes transmita a essência de cinqüenta volumes de relatórios em cinco minutos. Nos termos do tratado de paz, tudo isso fará parte, eventualmente, do Museu Histórico de Seldon, e terão todos a liberdade de proceder a uma análise tão demorada como a que efetuei. Encontrarão, porém, a conclusão a que ele chegou claramente definida, e é a que já exprimi. Não há, nunca houve, Segunda Fundação.

Semic objetou: - Bom, então o que foi que fez o Mulo parar?

- Grande Galáxia! O que é que supõe que o fez parar? Foi a morte que o fez parar, como fará parar a todos nós. A maior superstição da época é a de o Mulo ter sido detido, de qualquer maneira, numa carreira de conquistador de tudo, por entidades misteriosas superiores até a ele. É o resultado de olhar para tudo com uma falsa evidência.

- Certamente ninguém na Galáxia desconhece que o Mulo era um aborto tanto físico como mental. Morreu com trinta e tantos anos porque o seu corpo mal ajustado não podia lutar mais para manter em funcionamento a sua maquinaria rangedora. Foi um inválido durante vários anos antes de morrer. O seu melhor estado de saúde nunca foi mais do que a fraqueza de um homem normal. Pois bem, conquistou a Galáxia e, pela ordem natural das coisas, foi indo até morrer. É um assombro que se tenha mantido tanto tempo e tão bem. Amigos, isto está escrito na mais clara letra de imprensa. Apenas deverão ter paciência. Apenas deverão tentar olhar todos os acontecimentos com nova visualização.

Darell disse, pensativo: - Bom, vamos tentar, Munn. Será uma tentativa interessante e que, mais não seja, ajudar-nos-á a lubrificar os nossos pensamentos. Que diz quanto àqueles homens com os quais houve interferências ^cujos registros Anthor nos trouxe há um ano? Ajude-nos a vê-los em foco.

Facilmente. Que idade tem, como ciência, a análise encefalográfica? Ou pondo a coisa sob outro prisma, qual é o estado de desenvolvimento do estudo das ramificações neurônicas?

- Admito que estamos no inicio dessa ciência - disse Darell.

- Exatamente. Qual pode ser então a certeza da interpretação do que ouvi Anthor e você chamarem o Planalto de Interferência? Você tem as suas teorias, mas até que ponto pode ter a certeza suficiente para considerá-lo uma base firme para a existência de uma força poderosa para a qual todas as outras provas são negativas? É fácil explicar o desconhecido postulando uma vontade super-humana e arbitrária.

- É um fenômeno muito humano. Houve casos ao longo de toda a história Galáctica em que sistemas planetários isolados retrocederam ao estado bárbaro. E que aprendemos nós com eles? Que, em todos os casos, tais bárbaros atribuem as forças da natureza para eles incompreensíveis, tempestades, pestes, secas, a seres sensíveis mais poderosos e mais arbitrários do que os homens.

- Chama-se a isso antropomorfismo, creio eu, e quanto à matéria em causa somos nós os bárbaros e entregamo-nos a ele. Conhecendo pouco da ciência mental culpamos de tudo o que não compreendemos uns super-homens, os da Segunda Fundação neste caso, baseados na sugestão que Seldon nos lançou.

- Ah - interrompeu Anthor - então lembra-se de Seldon! Pensei que se tinha esquecido dele. E Seldon disse, disse de fato, que havia uma Segunda Fundação. Ora, ponha isso em evidência.

- E o senhor tem, porventura, consciência de todos os objetivos de Seldon? Sabe que necessidades estavam contidas nos seus cálculos? A Segunda Fundação pode ter sido uma espantalho muito necessário, com um fim altamente específico em vista. Como derrotamos Kalgan, por exemplo? Que disse você na sua última série de artigos. Turbor?

Turbor moveu-se. - Sim, estou vendo onde quer chegar. Estive em Kalgan quando a guerra estava para terminar, e era perfeitamente evidente que o moral do planeta era incrivelmente mau. Dei uma olhadela às notícias gravadas deles, e não há dúvida de que esperavam ser vencidos. Na realidade, estavam completamente atrofiados pelo pensamento de que, eventualmente, a Segunda Fundação deitaria mão às coisas, ao lado da Primeira, naturalmente.

- Exatamente - disse Munn. - Estive lá durante toda a guerra. Disse a Stettin que não havia Segunda Fundação alguma e ele acreditou em mim. Ele sentiu-se seguro. Mas não houve meios de fazer o povo deixar de crer no que havia crido durante toda a vida, de modo que o mito serviu eventualmente para um objetivo muito útil no jogo de xadrez cósmico de Seldon.

Os olhos de Anthor abriram-se, repentinamente, e fixaram-se, sarcásticos, no rosto de Munn. - Afirmo que está mentindo.

Homir empalideceu. - Não vejo que deva aceitar uma acusação dessa natureza, e muito menos responder.

- Não o digo com qualquer intenção de ofensa pessoal. O senhor não pode impedir-se de mentir. Não tem consciência de estar mentindo, mas mente da mesma forma.

Semic pousou a mão mirrada na manga do jovem. - Pare para respirar, meu rapaz.

Anthor sacudiu-o sem amabilidade nenhuma, e disse: - A minha paciência está esgotada com os senhores todos. Não vi este homem mais do que meia dúzia de vezes na minha vida, e no entanto vejo nele uma transformação incrível. Os senhores todos conheceram-no durante anos, contudo não notam nada. É bastante para deixar um pessoa doida. A este homem que têm ouvido dão o nome de Homir Munn? Não é o Homir Munn que conheci.

Houve uma miscelânea de exclamações de surpresa, acima da qual a voz de Munn gritou: - O senhor pretende que eu seja um impostor?

- Talvez não, no sentido vulgar - berrou Anthor, acima do alarido -porém um impostor apesar de tudo. Calem-se todos! Exijo que me ouçam!

Encarou-os de sobrolho carregado, ferozmente, levando-os a obedecer. - Algum dos senhores se lembra de Homir Munn como eu me lembro, do bibliotecário introvertido que nunca falava sem um embaraço evidente, do homem de voz tensa e nervosa que gaguejava proferindo suas frases incertas? Este homem soa-lhes como ele? É fluente, é confiante, está cheio de teorias e, pelo Espaço, não gagueja. É a mesma pessoa?

Até Munn pareceu confundido, e Pelleas Anthor continuou. - Bem, vamos submetê-lo à prova?

- Como? - perguntou Darell.

- O senhor pergunta como? Pela forma evidente. Tem o registro encefalográfico dele de há dez meses, não tem? Faça agora outro e compare.

Apontou para o carrancudo bibliotecário, e disse violentamente: - Desafio-o a recusar submeter-se à análise.

- Não me oponho - disse Munn, arrogantemente. - Sou o homem que sempre fui.

- Pode o senhor sabê-lo? - disse Anthor, com desdém. - Vou mais longe. Não confio em ninguém aqui. Quero que todos se submetam à análise. Houve uma guerra; Munn esteve em Kalgan; Turbor esteve a bordo das naves e percorreu todas as zonas de guerra; Darell e Semic estiveram também ausentes, não faço idéia onde. Só eu fiquei em isolamento e segurança; portanto não confio em nenhum de vós. Para fazer jogo limpo, submeto-me igualmente à prova. Estamos de acordo, ou vou-me embora imediatamente e sigo o meu próprio caminho?

Turbor encolheu os ombros e disse: - Não faço objeção alguma. Semic acenou num assentimento silencioso, e Anthor esperou por Darell. Finalmente, Darell inclinou a cabeça afirmativamente.

- Comece por mim - disse Anthor.

As agulhas traçaram o seu frágil caminho através das quadrículas, enquanto jovem neurologista se mantinha sentado, imóvel, no assento de recosto, com os olhos cerrados, meditando. Darell tirou do arquivo a pasta que continha o antigo registro encefalográfico de Anthor. Mostrou-o a Anthor.

- Este é o seu próprio, não é?

- É, sim. É o meu registro. Faça a comparação.

O investigador projetou na tela os dois registros, o novo e o antigo. Lá estavam todas as seis curvas de cada registro e, na escuridão, ouviu-se a voz de Munn com uma áspera nitidez. - Olhe, olhe, aí. Há uma modificação.

- Estas são ondas primárias do lobo frontal. Não quer dizer nada, Homir. Estes recortes adicionais que está apontando são apenas cólera. São os outros que valem.

Apertou um botão, e os seis pares misturaram-se par a par e coincidiram. Só a maior amplitude das ondas primárias mostrava duplicação.

- Satisfeito? - perguntou Anthor.

Darell limitou-se a inclinar a cabeça afirmativamente, e sentou-se por sua vez. Seguiu-se- lhe Semic, e depois Turbor. As curvas foram tiradas em silêncio, e em silêncio comparadas.

Munn foi o último a sentar-se. Hesitou durante um momento e, depois, com um toque de desespero na voz, disse: - Olhem lá! Sou o último e estou sob tensão. Espero que seja feito o devido desconto por isso.

- Será - assegurou-lhe Darell. - Nenhuma das suas emoções conscientes afetará senão as ondas primárias, e essas não são importantes.

Parecia terem-se passado horas, no silêncio total que se seguiu.

Depois, na escuridão em que se procedia à comparação, Anthor disse, roucamente: - Claro, claro, é apenas o ataque de um complexo. Não foi isso que ele nos disse? Não há nada disso de interferência, é tudo uma noção antropomórfica idiota... Mas olhem para isto! Uma coincidência, suponho.

-- O que é? - guinchou Munn.

A mão de Darell pousou com força no ombro do bibliotecário. - Calma, Munn!... Foi manobrado, foi ajustado por eles.

Depois a luz acendeu-se e Munn olhou à sua volta com um olhar alterado, fazendo uma tentativa horrível para sorrir.

- Não pode estar falando sério, certamente. Há um propósito nisto. Está me experimentando.

Porém Darell apenas meneou a cabeça. - Não, não, Homir. É verdade.

Os olhos do bibliotecário encheram-se subitamente de lágrimas. - Não sinto diferença nenhuma. Não posso acreditar. - E numa súbita convicção: - Estão todos metidos nisto. É uma conspiração.

Darell tentou um gesto apaziguador, porém sua, mão foi repelida. Munn rosnou: - Estão planejando matar-me. Pelo Espaço, estão planejando matar-me.

Numa investida, Anthor saltou-lhe em cima. Houve o estalar nítido de osso contra osso, e Homir ficou estendido, flácido, com aquele olhar de medo imóvel no rosto.

Anthor levantou-se, agitado, e disse: - O melhor é amarrá-lo e amordaçá-lo. Mais tarde, decidiremos que fazer. - Passou a mão pelo cabelo comprido, alisando-o.

Turbor perguntou: - Como adivinhou que havia algo nele que não estava certo?

Anthor voltou-se para ele, com um sorriso irônico. - Não foi difícil. Bem se vê, é que acontece que eu sei onde está realmente a Segunda Fundação.

Os choques sucessivos apresentam um efeito decrescente.

Foi de fato com suavidade que Semic perguntou:

- Tem a certeza? Quero dizer... como já passamos pela mesma coisa com Munn...

- Não é a mesma coisa de maneira alguma - retorquiu Anthor. - No dia em que a guerra começou, Dr. Darell, falei com o senhor muito a sério. Tentei fazê-lo deixar Terminus. Ter-lhe-ia dito então o que vou agora dizer-lhe, se tivesse sido capaz de confiar no senhor.

- Quer dizer que sabia a resposta há seis meses? - perguntou Darell, sorrindo.

- Soube-a desde o momento em que soube que Arcádia partira para Trantor.

Darell pôs-se de pé, subitamente consternado.

- Que tinha Arcádia a ver com isso? Que está insinuando?

- Absolutamente nada que não seja evidente em face de todos os acontecimentos que conhecemos tão bem. Arcádia vai para Kalgan e foge aterrorizada para o próprio centro da Galáxia, ao invés de regressar para casa. O tenente Dirige, o nosso melhor agente em Kalgan, é vítima de interferência. Homir Munn vai para Kalgan e ê vitima de interferência. O Mulo conquistou a Galáxia porém, erradamente, fez de Kalgan o seu quartel-general, e ocorre-me perguntar a mim mesmo se seria um conquistador ou, talvez, un instrumento. A cada volta que damos, encontramo-nos com Kalgan, Kalgan, só Kalgan e nada mais, só Kalgan, o mundo que, fosse como fosse, sobreviveu intacto a todas as lutas dos condestáveis por mais de um século.

- Então a sua conclusão...

- É óbvia. - Os olhos de Anthor brilhavam. - A Segunda Fundação é Kalgan.

Turbor interrompeu-o.

- Estive em Kalgan, Anthor. Estive lá na semana passada, e se havia lá qualquer Segunda Fundação eu estou doido. Pessoalmente, penso que é o senhor quem está doido.

O jovem virou-se para ele com rapidez e disse, ferozmente:

- Então o senhor é um gorducho idiota. Que espera que seja a Segunda Fundação? Um liceu? Pensa que há Campos de Radiação, em focos cerrados, a soletrarem "Segunda Fundação" a verde e púrpura, ao longo das rotas das naves que chegam? Ouça o que eu lhe digo, Turbor. Onde quer que eles estejam, formam uma oligarquia fechada. Devem estar tão bem escondidos no mundo em que existem como esse próprio mundo está na Galáxia como um todo.

Os músculos do maxilar de Turbor contorceram-se.

- Não gosto de sua atitude, Anthor.

Isso me incomoda muito, com certeza - foi a resposta sarcástica. -Dê uma vista de olhos à sua volta, aqui em Terminus. Estamos no centro, no coração, na origem da Primeira Fundação com todo o seu conhecimento da ciência física. Ora, muito bem, quantas pessoas da população são cientistas físicos? Consegue o senhor manejar uma Estação Transmissora de Energia?

- Que sabe o senhor do manejo de um motor hiperatômico? Hein? O número de verdadeiros cientistas em Terminus, até em Terminus, não chega a um por cento da população.

- E que dizer da Segunda Fundação, onde o segredo deve ser mantido? Haverá ainda menos sabedores, e esses estarão escondidos até do seu próprio mundo.

- Ouça - disse Semic, cuidadosamente - nós acabamos de liquidar Kalgan.

- Pois liquidamos, pois liquidamos - disse Anthor, com ironia. - Ah, e celebramos essa vitória! As cidades ainda estão iluminadas, ainda estão queimando fogos de artifício, ainda estão gritando pelos televisores. Mas agora, agora, quando a procura é mais uma vez a da Segunda Fundação, onde está o último lugar para o qual olharemos, onde está o último lugar para o qual olhará quem quer que seja? Exatamente Kalgan!

- Fique sabendo que não os prejudicamos, não os prejudicamos efetivamente. Destruímos algumas naves, matamos alguns milhares de pessoas, desmembramos o seu Império, tomamos conta, de seu poder comercial e econômico, mas tudo isso não quer dizer nada. Apostaria que nem um membro da classe dirigente de Kalgan foi realmente derrotado. Pelo contrário, estão agora a salvo da curiosidade. Mas não da minha curiosidade. Que diz, Dr. Darell?

Darell encolheu os ombros.

- Interessante. Estou tentando coordenar tudo isso com uma mensagem que recebi de Arcádia há alguns meses.

- Oh, uma mensagem? - perguntou Anthor. - que dizia ela?

- Bem, não tenho a certeza. Cinco palavras curtas. Mas é interessante.

- Ouça - interrompeu Semic, com um interesse preocupado - há qualquer coisa que não compreendo.

- O que?

Semic escolheu suas palavras cuidadosamente, erguendo-se o seu lábio superior a cada uma delas como para deixá-las sair. isolada e relutantemente.

- Ora bem. Homir Munn estava dizendo apenas há pouco que Hari Seldon estava fingindo quando disse que estabelecera uma Segunda Fundação. Agora estão dizendo que não é assim, que Seldon não estava fingindo, não é?

- Exato, não estava fingindo. Seldon disse que estabelecera uma Segunda Fundação e estabelecera-se de fato.

- Pois então, muito bem, porém disse também mais alguma coisa. Disse que estabelecera as duas Fundações em extremos opostos da Galáxia. Isso, meu rapaz, foi logro então? Porque Kalgan não está no extremo oposto da Galáxia?

Anthor pareceu aborrecido. - Isso é um ponto de menor importância. Essa parte pode muito bem ter sido uma cobertura para protegê-los. Mas pense bem, apesar de tudo. Qual seria a utilidade real de ter os Senhores da Mente no extremo oposto da Galáxia? Qual é a função deles? Ajudar a preservar o Plano. Quem são os jogadores das cartas principais do Plano? Nós, a Primeira Fundação. De onde podem eles, então, observar-nos melhor e servir os seus próprios fins? No extremo oposto da Galáxia? Ridículo! Estão, na realidade, a menos de cento e cinqüenta anos-luz, o que é muito mais sensato.

- Gosto desse argumento - disse Darell. - Faz sentido. Olhem cá, Munn já retomou os sentidos há algum tempo, e eu proponho que o desamarremos. Não pode realmente fazer nenhum mal.

Anthor mostrou-se discordante, mas Homir fazia sinais afirmativos inclinando a cabeça vigorosamente. Cinco segundos depois estava esfregando os pulsos da mesma forma vigorosa.

- Como se sente? - perguntou Darell.

- Podre - disse Munn, de mau humor - mas não importa. Há algo que quero perguntar a esse garoto esperto que aqui está. Ouvi o que tinha a dizer, e gostaria que me autorizassem a perguntar o que faremos a seguir.

Houve um silêncio estranho e incoerente.

Munn sorriu amargamente. - Sim, suponham que Kalgan seja a Segunda Fundação. Mas quem são eles em Kalgan? Como vão descobri-los? Como vão haver-se com eles se os descobrirem, hein?

- Bem - disse Darell - por muito estranho que pareça, posso responder a isso. Querem que lhes diga o que Semic e eu estivemos fazendo nestes seis meses passados? Isso pode dar-lhe outra razão, Anthor, porque eu estava ansioso para ficar em Terminus este tempo todo.

- Em primeiro lugar - prosseguiu ele - trabalho na análise encefalográ-fica com mais determinação do que qualquer dos senhores pode suspeitar. Detectar mentes da Segunda Fundação é um pouco mais delicado do que descobrir simplesmente um Planalto de Interferência, e na realidade não fui bem sucedido. Mas aproximei-me bastante.

- Sabe qualquer de vocês como funciona o controle emocional? Tem sido um assunto popular dos escritores de ficção desde o tempo do Mulo, e muito disparate foi escrito, dito e gravado acerca dele. Na maior parte dos casos, tem sido tratado como algo misterioso e oculto. Claro que não é. Que o cérebro seja a fonte de uma miríade de pequenos campos eletromagnéticos, toda a gente sabe. Cada emoção passageira faz variar estes campos de maneira mais ou menos complicada, e isso também toda a gente o devia saber.

- Ora, é possível conceber uma mente que possa sentir estes campos variáveis é até ressoar com eles, isto é, pode existir um órgão especial do cérebro que consiga assumir as características de qualquer modelo de campo que possa detectar, seja ele qual for. Exatamente como o faria, não tenho idéia, mas isso não tem importância. Se eu fosse cego, por exemplo, poderia aprender, apesar disso, o significado dos fótons e da energia quântica, e poderia ser racional para mim que um fóton de tal energia pudesse provocar alterações químicas em quaisquer órgãos do corpo, de modo que a sua presença fosse detectável. Contudo é óbvio que eu não seria capaz, por isso, de compreender a cor.

- Estão todos entendendo?

Houve uma inclinação de cabeça convincente de Anthor, e indecisa por parte dos outros.

- Um tal hipotético Órgão da Mente, ajustando-se por si mesmo aos Campos emitidos por outras mentes, poderia efetuar o que é popularmente conhecido como "ler as emoções", ou até "ler as mentes", o que é, na realidade, algo ainda mais delicado. Não é senão um passo fácil imaginar, a partir daí, um órgão similar que pudesse de fato forçar um ajustamento em outra mente. Poderia orientar com o seu campo mais forte o mais fraco da outra mente, tal como um ímã forte orientará os dois pólos atômicos de uma barra de ferro e a deixará magnetizada depois disso.

- Resolvi a matemática da característica dos homens da Segunda Fundação no sentido de desenvolver uma função que haveria de predizer a combinação necessária de ramificações neurônicas para permitir a formação de um órgão tal como o descrevi, mas, infelizmente, a função é demasiado complicada para resolver por meio de qualquer dos instrumentos matemáticos atualmente conhecidos. Isso é muito mau, porque significa que nunca poderei detectar um trabalhador da Mente apenas pelo seu modelo encefalográfico.

- Contudo consegui fazer mais alguma coisa. Consegui, com o auxílio de Semic, construir o que descreverei com um aparelho de Estática Mental. Não está fora das possibilidades da ciência moderna criar uma fonte de energia que duplique um modelo encefalográfico-padrão de campo eletromagnético. Além disso, pode ser feito para variar completamente ao acaso, criando, no que diz respeito a esse particular sentido da mente, uma espécie de "barulho" ou "estática" que mascara outras mentes com as quais pode estar em contato.

- Continuam a perceber?

Semic riu-se disfarçadamente. Ajudara cegamente a criar, mas imaginara o que era e imaginara corretamente. O velhote ainda tinha uma ou duas habilidades...

Anthor disse: - Penso que sim.

- O aparelho - continuou Darell - é bastante fácil de produzir, e tive sob o meu domínio todos os recursos da Fundação, ocultos da pesquisa de guerra. E agora, as repartições do Prefeito e as assembléias legislativas estão rodeadas de Estática Mental. E também assim está a maioria das nossas fábricas-chave. E este edifício também está. Eventualmente, qualquer lugar que queiramos pode ficar absolutamente a salvo da Segunda Fundação ou de qualquer futuro Mulo. E aqui está.

Terminou muito simplesmente espalmando a mão num gesto.

Turbor parecia atordoado. - Então está tudo acabado. Grande Seldon, está tudo acabado.

- Bem - disse Darell - não é bem assim.

- Como não é bem assim: Há qualquer coisa mais?

- Há, ainda não localizamos a Segunda Fundação!

Anthor rugiu: - O senhor está tentando dizer que...

- Sim, estou. Kalgan não é a Segunda Fundação.

- Como sabe o senhor?

- É fácil - murmurou Darell. - Bem vê, ê que acontece que eu sei onde está realmente a Segunda Fundação.

 

A RESPOSTA QUE SATISFAZIA

Turbor desatou a rir. Explodia em gargalhadas sonoras, tempestuosas, que ressoavam nas paredes e morriam sufocadas. Meneou a cabeça de leve, e disse: - Grande Galáxia, isto vai durar toda a noite. Um após outro, apresentamos os nossos espantalhos para serem deitados abaixo. Diverti-mo-nos, mas não chegamos a conclusão alguma. Pelo Espaço! Pode ser que todos os planetas sejam a Segunda Fundação. Pode ser que não tenham planeta, mas apenas homens-chave espalhados por todos os planetas. E que importa, uma vez que Darell diz que temos defesa perfeita?

Darell sorriu contrafeito. - Defesa perfeita não é o suficiente, é apenas algo que nos mantém no mesmo lugar. Não podemos ficar para sempre de punhos cerrados, olhando freneticamente para todos os lados à procura do inimigo desconhecido. Devemos conhecer não só como vencer, mas também quem devemos derrotar. E há um mundo específico em que o inimigo existe.

- Vamos ao ponto em questão - disse Anthor, aborrecido. - Qual é a sua informação?

- Arcádia - disse Darell - mandou-me uma mensagem e, até recebê-la, nunca vi o óbvio. Talvez nunca veria a evidência. E contudo foi uma simples mensagem que dizia: "Uma circunferência não tem fim". Estão vendo?

- Não - disse Anthor, obstinadamente, falando também, com toda a evidência, pelos outros.

- "Uma circunferência não tem fim" - repetiu Munn, pensativamente, e a sua testa enrugou-se.

Bem - disse Darell, com impaciência - para mim foi claro... Qual é o único fator absoluto que conhecemos quanto à Segunda Fundação? Eu lhes digo! Sabemos que Hari Seldon situou-a no extremo oposto da Galáxia. Homir Munn teorizou que Seldon mentiu sobre a existência da Fundação. Pelleas Anthor admitiu que Seldon disse a verdade até aí, mas que mentiu sobre a localização da Fundação. Porém eu digo-vos que Hari Seldon não mentiu em nenhum pormenor, que disse a absoluta verdade.

- Mas o que é o outro extremo? A Galáxia tem uma configuração achatada em forma de lente. Um corte longitudinal, ao longo do seu achata-mento, é um círculo, delimitado por uma circunferência, e uma circunferência não tem fim, como Arcádia compreendeu.

- Nós, nós, a Primeira Fundação, estamos situados em Terminus na circunferência desse círculo. Estamos, por definição, num extremo da Galáxia. Agora sigam a circunferência desse círculo e encontrem o outro extremo. Sigam-na, sigam-na, e não encontram o outro extremo. Regressam apenas ao ponto de partida.

- E aí encontram a Segunda Fundação.

- Aí? - repetiu Anthor. - Quer dizer aqui?

- Sim, quero dizer aqui! - gritou Darell, energicamente. - Ora, em que outro lugar poderia ser? Foi o senhor mesmo que disse que, se os homens da Segunda Fundação eram os guardiães do Plano de Seldon, era inverossímil que pudessem estar situados no assim chamado outro extremo da Galáxia, onde estariam tão isolados como concebivelmente poderiam estar. O senhor pensou que cento e cinqüenta anos-luz de distância era mais sensato. E eu digo-lhe que isso também é demasiado longe, que não haver distância absolutamente nenhuma é mais sensato. E onde poderiam estar mais seguros? Quem os procuraria aqui? Oh, é o velho princípio do lugar mais evidente ser o menos suspeito.

- Por que ficou o pobre Ebling Mis tão surpreso e desanimado com a sua descoberta da localização da Segunda Fundação? Ali estava ele, procurando-a desesperadamente para avisá-la da vinda do Mulo, apenas para descobrir que o Mulo já tinha capturado ambas as Fundações de um só golpe. E por que falhou o próprio Mulo na sua procura? Por que não? Se alguém está à procura de uma ameaça inconquistável, dificilmente poderá procurar entre os inimigos já conquistados. E assim, os Senhores da Mente puderam traçar, com toda a calma, os seus planos para deter o Mulo, e conseguiram detê-lo.

- Oh, é enlouquecedoramente simples! Aqui estamos nós com os nossos conluios e os nossos esquemas, pensando que estamos guardando segredo, quando estamos durante o tempo todo no verdadeiro coração e núcleo da fortaleza do nosso inimigo. É humorístico.

O ceticismo de Anthor não abandonou o seu rosto. - Acredita sinceramente nessa teoria, Dr. Darell?

- Acredito sinceramente nela.

- Então, qualquer dos nossos vizinhos, qualquer homem por quem passemos na rua, poderia ser um super-homem da Segunda Fundação, com a sua mente observando a nossa e sentindo a pulsação dos pensamentos dela?

- Exatamente.

- E foi-nos permitido prosseguir durante este tempo todo sem sermos molestados?

- Sem sermos molestados? Quem lhe disse que não fomos molestados? Foi o senhor mesmo quem mostrou que houve interferência com Munn. O que é que o faz pensar que o enviamos a Kalgan, em primeiro lugar inteiramente por nossa própria vontade, ou que Arcádia nos escutou e o seguiu por sua própria vontade? Ora! talvez fomos molestados sem descanso. Além disso, por que haveriam eles de fazer mais do que fizeram? É de longe mais útil para eles induzirem-nos em erro do que apenas fazerem-nos parar. Anthor mergulhou em meditação e emergiu dela com uma expressão descontente.

- Bem, então não gosto disto. A sua Estática Mental não vale um pensamento. Não podemos ficar dentro de casa para sempre, e logo que sairmos estamos perdidos, com o que pensamos agora que sabemos. A não ser que possa construir uma máquina pequena para cada habitante da Galáxia.

- Sim, mas não está inteiramente desamparado, Anthor. Estes homens da Segunda Fundação têm um sentido especial que nos falta. É a sua força e também a sua fraqueza. Por exemplo, há qualquer arma de ataque que seja efetiva contra um homem de vistas normais e que seja inútil contra um cego?

- Claro que há - disse Munn, prontamente. - Uma luz nos olhos.

- Exatamente - disse Darell. - Uma boa luz, forte e ofuscante.

- Bem, e daí? - perguntou Turbor.

- A analogia é clara! Tenho um aparelho de Estática Mental. Cria um modelo eletromagnético artificial que, para a mente de um homem da Segunda Fundação, é o que seria um raio de luz para nós. O aparelho de Estática Mental é caleidoscópico. Varia rápida e continuamente, mais depressa do que a mente receptora pode segui-lo. Pois bem, considerem-no uma luz que pisca, a espécie de luz que nos provocaria uma dor de cabeça se continuasse por tempo suficiente. Intensifiquem agora essa luz, ou esse campo eletromagnético, até ser ofuscante, e tornar-se-á um sofrimento, um sofrimento insuportável. Apenas, porém, para os que tiverem o sentido apropriado, não para os desprovidos desse sentido.

- Já experimentou de fato fazê-lo? - perguntou Anthor, começando a entusiasmar-se.

- Em quem? Claro que não experimentei, mas dará resultado.

- Bem, onde tem o senhor os comandos para o Campo que rodeia a casa? Gostaria de ver essa coisa.

- Aqui. - Darell meteu a mão no bolso do casaco. Era uma coisa pequena, mal fazendo volume na algibeira. Estendeu ao outro o cilindro negro, munido de botões de comando.

Anthor examinou-o cuidadosamente e encolheu os ombros. - Não fico mais esclarecido por olhar para ele. Ouça, Dr. Darell, o que é que não devo tocar? Não quero desligar a defesa da casa por acidente, compreende?

- Não desliga - disse Darell, com indiferença. - O comando está bloqueado. Deu um piparote na alavanca de um interruptor, que não se moveu.

- E este botão, para que é?

- Esse faz modificar o grau de variação do modelo. Este outro aqui faz variar a intensidade. Era a ele que me referia.

- Posso?... - perguntou Anthor, pondo os dedos no botão de intensidade. Os outros comprimiam-se junto dele.

- Por que não? - disse Darell, encolhendo os ombros. - Não nos afeta.

Lentamente, quase contra-vontade, Anthor rodou o botão, primeiro para um lado, depois para o outro. Turbor rangia os dentes, enquanto Munn piscava os olhos rapidamente. Era como se estivessem apurando o seu. sistema sensorial inadequado para localizarem aquele impulso que não podia afetá-los.

Finalmente, Anthor encolheu os ombros e atirou a caixa de comando para o Dr. Darell.

- Bom, suponho que devemos aceitar a sua palavra quanto a isto. Mas é decerto difícil imaginar que estivesse acontecendo qualquer coisa quando rodei o botão.

- Mas naturalmente, Pelleas Anthor - disse Darell, com um sorriso impenetrável. – A caixa que lhe dei é uma imitação. Bem vê, tenho outra. - Abriu o casaco e tirou uma duplicata da caixa de comando que Anthor estivera examinando, a qual pendia do seu cinto.

- Está vendo? - disse Darell, e, num único gesto, rodou o botão de intensidade para o máximo.

Então, com um grito não-humano, Pelleas Anthor tombou no chão. Rolava em agonia, agarrando e puxando futilmente os cabelos com os dedos crispados, embranquecidos pelo esforço.

Munn mudou de lugar apressadamente para impedir o contato com aquele corpo que se contorcia, e os seus olhos eram dois abismos de horror. Semic e Turbor eram um par de estátuas de gesso, imóveis e brancos.

Darell, sombrio, voltou a rodar o botão. E Anthor contorceu-se debilmente uma ou duas vezes e permaneceu imóvel. Estava vivo, porém com a respiração ofegante.

- Vamos levá-lo para o sofá - disse Darell, agarrando o jovem pela cabeça. – Ajudem-me.

Turbor pegou-o pelos pés. Era o mesmo que levantarem uma saca de farinha. Depois, após longos minutos, a respiração tornou-se mais calma e as pálpebras de Anthor estremeceram e abriram-se. Seu rosto estava amarelo, horrível, seu cabelo e seu corpo estavam alagados em suor, e a sua voz, quando falou, era de falsete e irreconhecível.

- Não - murmurou ele - não, não faça isso! Não faça isso outra vez! O senhor não sabe... Ai!... - Foi um lamento longo e trêmulo.

- Não voltaremos a fazê-lo - disse Darell - se nos disser a verdade. É um membro da Segunda Fundação?

- Dê-me água - suplicou Anthor.

- Vá buscá-la, Turbor - disse Darell - e traga a garrafa de uísque. Repetiu a pergunta depois de ter dado a beber a Anthor um gole de uísque e dois copos de água. Algo pareceu distender-se no jovem.

- Sim - disse ele, num tom cansado - sou membro da Segunda Fundação.

- A qual - continuou Darell - está localizada em Terminus?

- Sim, sim. Acertou em todos os pormenores, Dr. Darell.

- Muito bem! Agora explique o que se passou nestes seis meses. Conte-nos!

- Queria dormir - murmurou Anthor.

- Mais tarde! Agora fale!

Um suspiro trêmulo; depois palavras, em voz baixa e apressada. Os outros inclinaram-se sobre ele para ouvirem o som. - A situação estava tornando-se perigosa. Sabíamos que Terminus e os seus cientistas físicos estavam se interessando por modelos de ondas cerebrais e que os conhecimentos estavam amadurecidos para o desenvolvimento de algo semelhante ao aparelho de Estática Mental. E havia uma hostilidade crescente para com a Segunda Fundação. Devíamos detê-la sem arruinarmos o Plano de Seldon.

- Nós... nós tentamos controlar o movimento. Tentamos juntar-nos a ele. Desviaríamos de nós a suspeita e os esforços. Tomamos providências no sentido de Kalgan declarar a guerra como distração adicional. Foi por isso que enviei Munn a Kalgan. A suposta amante de Stettin era uma das nossas. Providenciou no sentido de Munn fazer as jogadas apropriadas...

- Callia é... - gritou Munn, mas Darell fez-lhe sinal para se calar. Anthor continuou, sem perceber qualquer interrupção: - Arcádia seguiu-o. Não tínhamos contado com isso, não podemos prever tudo, de modo que Callia a manobrou para ela ir para Trantor, para evitar a interferência. E é tudo, exceto que perdemos.

- Tentou induzir-me a ir para Trantor, não tentou? - perguntou Darell.

Anthor fez um sinal afirmativo. - Devia afastá-lo do caminho. O triunfo crescente na sua mente era suficientemente claro. Estava resolvendo os problemas da Estática Mental.

- Por que não controlou a minha mente?

- Não podia... não podia. Tinha as minhas ordens. Estávamos trabalhando de acordo com um Plano. Se improvisasse, poderia pôr tudo a perder. Um plano apenas prediz probabilidades... o senhor sabe isso... como o Plano de Seldon. - Falava arquejante e quase incoerentemente. A cabeça balançava-lhe de um lado para o outro numa agitação inquieta... - Lidávamos com indivíduos... não com grupos... implicando probabilidades muito baixas... desorientação. Além disso... se o controlasse... algum outro inventaria o aparelho... inútil... tinha de controlar os tempos... mais delicado..  plano do próprio Primeiro Orador... não conheço todos os aspectos...  exceto que... não deu resultado... Ah... - Calou-se e ficou prostrado.

Darell agitou-o asperamente. - Não pode dormir ainda. Quantos são vocês?

- Heim? Que diz?... Ah!... não muitos... fica surpreendido... cinqüenta... não precisamos de mais.

- Todos aqui em Terminus?

- Cinco... seis no Espaço exterior... como Callia... preciso dormir.

Endireitou-se de repente, parecendo fazer um esforço gigantesco, e as suas expressões ganharam nitidez. Era uma última tentativa de justificar-se, de justificar sua derrota.

- Quase que o apanhei no fim. Desligaria as defesas e apoderar-me-ia de você. Havia de ver quem é que mandava. Mas o senhor deu-me uma imitação dos comandos... suspeitou de mim...

E finalmente adormeceu.

Turbor perguntou, num tom suspeitoso: - Há quanto tempo suspeitava, Darell?

- Desde que chegou - foi a resposta calma. - Disse que vinha da parte de Kleise. Mas eu conhecia Kleise, e sei em que condições nos separamos. Era um fanático quanto à Segunda Fundação, e afastei-me dele. As minhas próprias intenções eram razoáveis, uma vez que pensava ser melhor e mais seguro seguir sozinho as minhas próprias idéias. Mas não podia dizer isto a Kleise, nem ele o quereria ouvir se lho dissesse. Para ele, eu era um covarde e um traidor, talvez até um agente da Segunda Fundação. Era um homem que não perdoava, è desde esse tempo até quase o dia de sua morte esteve afastado de mim. Então, subitamente, nas suas últimas poucas semanas de vida escreveu-me, como um velho amigo, recomendando o seu melhor aluno e mais prometedor como colaborador, para recomeçar a antiga investigação.

- Não condizia com o seu caráter. Como lhe seria possível fazer tal coisa sem estar sob influência exterior? Então comecei a perguntar a mim mesmo se o único objetivo não seria meter no meu círculo de amizade um autêntico agente da Segunda Fundação. E de fato assim era...

Suspirou e cerrou os olhos por um momento.

Semic perguntou, hesitante: - Que fazemos nós com eles todos... com estes indivíduos da Segunda Fundação?

- Não sei - disse Darell, tristemente. - Poderíamos exilá-los, suponho eu. Para Zoranel, por exemplo. Podem ser mandados para lá, e o planeta saturado de Estática Mental. Os sexos podem ser separados, ou, melhor ainda, podem ser esterilizados, e daqui a cinqüenta anos a Segunda Fundação será uma coisa do passado. Ou talvez uma morte suave para todos eles fosse mais humano.

- Acha - perguntou Turbor - que poderíamos aprender o uso deste sentido deles? Ou nasceram com ele, como o Mulo?

- Não sei. Penso que é desenvolvido através de um longo treinamento, dado que há indicações pela encefalografia de que suas potencialidades estão latentes na mente humana. Mas para que quer esse sentido? Não serviu de nada para eles.

Franziu os sobrolhos.

Apesar de não dizer nada, os seus pensamentos gritavam.

Fora demasiado fácil... demasiado fácil. Haviam caído aqueles invencíveis, haviam caído como vilões de literatura, e isso não lhe agradava.

Galáxia! Quando pode um homem saber que não é um fantoche? Como pode um homem saber que não é um fantoche?

Arcádia estava de volta, e os pensamentos dele afastaram-se receosos do que teria de enfrentar no fim.

Então, uma noite, já tarde, perguntou tão casualmente quanto pôde: -Arcádia, o que foi que a levou a decidir que Terminus continha ambas as Fundações?

Tinham ido ao teatro, para os melhores lugares, com visores trimensionais privativos.

O vestido dela era novo para a ocasião, e sentia-se feliz.

Olhou para ele durante um momento, e depois respondeu: - Ah, não sei, Pai. Ocorreu-me de repente.

Formou-se uma capa de gelo ao redor do coração do Dr. Darell.

- Pense - disse ele, com veemência. - É importante. O que foi que a levou a decidir que ambas as Fundações estavam em Terminus?

Ela franziu ligeiramente os sobrolhos. - Bem, havia Lady Callia. Percebi que ela era da Segunda Fundação. Anthor também assim o disse.

- Mas ela estava em Kalgan - insistiu Darell. O que que foi que a levou a decidir-se por Terminus?

Arcádia demorou então vários minutos antes de responder. Que fora que a levara a decidir? Que fora que a levara a decidir? Tinha a sensação horrível de qualquer coisa a escorregar-lhe por entre os dedos.

Disse: - Lady Callia sabia o que se passava, e deve ter obtido as informações de Terminus. Isso não lhe soa acertado, Pai?

Porém ele limitou-se a menear a cabeça.

- Pai - gritou ela - Eu sabia. Quanto mais pensava, mais segura estava. Fazia sentido.

Apareceu nos olhos do pai aquele olhar perdido. - Não serve de nada, Arcádia, não serve de nada. A intuição é suspeita quando relacionado com a Segunda Fundação. Percebe isso, não percebe? Devia ter sido intuição, e deve ter havido controle?

- Controle?! Quer dizer que me modificaram? Oh, não, não podiam. -Recuava pouco a pouco, afastando-se dele. - Mas Anthor não disse que eu acertara. Admitiu-o tudo. E o Pai encontrou o bando todo precisamente aqui em Terminus, não encontrou? Não encontrou? - Respirava agitadamente.

- Bem sei, mas... Arcádia, deixe-me fazer uma análise encefalográfica de seu cérebro?

Ela meneou a cabeça violentamente. - Não, não! Estou muito assustada.

- De mim, Arcádia? Não há nada a temer. Mas devemos saber. Compreende isso, não compreende?

Depois disso, ela interrompeu-o apenas uma vez. Tocou-lhe no braço, precisamente antes de ser ligado o último interruptor. - Que acontecerá se eu estiver diferente, Pai? Que deverá fazer?

- Não devo fazer nada, Arcádia. Se estiver diferente, ir-nos-emos embora. Voltaremos para Trantor, você e eu e... e não nos importamos com mais coisa nenhuma na Galáxia.

Nunca na vida de Darell uma análise fora tão lenta nem lhe custara tanto e, quando acabou, Arcádia encolheu-se toda e não se atreveu a olhar. Depois ouviu-o rir e isso foi indicação suficiente. Levantou-se e lançou-se nos seus braços abertos.

Ele balbuciava desordenadamente enquanto se abraçavam: - A casa está protegida pela Estática Mental máxima e suas ondas cerebrais são normais. Apanhamo-los realmente, Arcádia, e podemos voltar a viver.

- Pai - arquejou ela - podemos agora permitir que nos condecorem?

- Como soube que pedi para nos deixarem de fora? - Abraçou-a com todo o ardor e voltou a rir. - Não interessa, você sabe. Está bem, pode receber sua condecoração numa plataforma, com discursos.

- Ouça uma coisa, Pai.

- Sim?

- Pode chamar-me Arkady daqui em diante?

- Mas... pois sim, Arkady.

Lentamente, a magnitude da vitória ia penetrando nele e saturando-o. A Fundação, a Primeira Fundação, agora a única Fundação, era senhora absoluta da Galáxia. Já não se erguia nenhuma barreira entre eles e o Segundo Império, a realização final do Plano de Seldon.

Bastava alcançarem-no...

Graças a...

 

A RESPOSTA QUE ERA VERDADEIRA

Uma sala não-localizada num mundo não-localizado!

E um homem cujo plano dera resultado.

O Primeiro Orador levantou os olhos para o Estudante. - Cinqüenta homens e mulheres - disse ele - cinqüenta mártires! Sabiam que a coisa significava a morte ou a prisão perpétua, e nem sequer podiam ser orientados para evitar que fraquejassem, uma vez que a orientação poderia ser detectada. Não obstante, não fraquejaram. Levaram o plano avante, porque amavam o Plano maior.

- Poderiam ter sido menos? - perguntou o Estudante, indeciso.

O Primeiro Orador meneou a cabeça, lentamente. - Era o limite mais baixo. – Um número menor poderia não ter possibilidade de ser convincente. De fato, o puro objetivismo exigiria setenta e cinco, para deixar margem para o erro. Deixemos isso. Estudou o curso da ação tal como foi traçado há quinze anos pelo Conselho dos Oradores?

- Estudei, sim, Orador.

- E comparou-o com os desenvolvimentos que de fato se verificaram?

- Sim, Orador. - E, depois de uma pausa: - Fiquei absolutamente maravilhado, Orador.

- Bem sei. Fica-se sempre. Se soubesse quantos homens se esforçaram durante quantos meses, anos, para lhe darem o polimento da perfeição, ficaria menos maravilhado. Agora diga-me o que se passou, por palavras. Quero a sua tradução da matemática.

- Sim, Orador. - O jovem ordenou os seus pensamentos. - Essencialmente, era necessário que os homens da Primeira Fundação ficassem inteiramente convencidos de terem localizado e destruído a Segunda Fundação. Desse modo, haveria uma reversão à intenção original. Para todos os efeitos, Terminus voltaria a não saber de nós, a não nos incluir em qualquer dos seus cálculos. Estamos novamente escondidos, e seguros, pelo preço de cinqüenta vidas.

- E o objetivo da guerra Kalganiana?

- Mostrar à Fundação que podiam bater um inimigo físico, reparar o dano feito ao seu apreço-próprio e à sua confiança-própria pelo Mulo.

- Está sendo insuficiente na sua análise. Lembre-se de que a população de Terminus nos encarava com uma ambivalência distinta. Detestavam e invejavam a nossa suposta superioridade porém, ao mesmo tempo, confiavam implicitamente em nós para os protegermos. Se tivéssemos sido "destruídos" antes da guerra Kalganiana, isso poderia ter significado desencadear-se o pânico através da Fundação. Não teriam nunca a coragem de enfrentar Stettin quando ele, depois, atacasse; e ele voltaria a atacar. A "destruição" só poderia verificar-se com um mínimo de efeitos nocivos em pleno arrebatamento da vitória. Esperar nem que fosse um ano, depois dela, poderia significar que existia uma convicção de êxito demasiado arrefecida.

O Estudante inclinou a cabeça em assentimento. - Estou vendo. Assim o curso da história prosseguirá sem desvio na direção indicada pelo Plano.

- A não ser que - acentuou o Primeiro Orador - venham a ocorrer acidentes ulteriores, imprevistos e individuais.

- Mas para isso - disse o Estudante - nós ainda existimos. Mas... Mas...  há uma faceta do atual estado de coisas que me preocupa, Orador. A Primeira Fundação ficou dispondo do aparelho de Estática Mental, uma arma poderosa contra nós. Isso, pelo menos, não é como era antes.

- E uma boa observação. Mas não têm ninguém contra quem o utilizarem. Tornou-se um aparelho estéril, tal como, sem acicate da nossa própria ameaça contra eles, a análise encefalográfica se tornará uma ciência estéril. Outras variedades do conhecimento darão mais uma vez compensações mais importantes e imediatas. Assim, esta primeira geração de cientistas da Primeira Fundação será também a última e, dentro de um século, a Estática Mental será uma coisa do passado.

- Bem... - O Estudante estava calculando mentalmente - suponho que tem razão.

- Mas o que eu quero que essencialmente compreenda em toda a extensão, por causa do seu futuro no Conselho, é a consideração dada às pequenas nulidades que foram introduzidas à força no nosso plano da última década e meia, apenas porque estávamos lidando com indivíduos. Houve a maneira pela qual Anthor teve de criar a suspeita contra si mesmo de modo a amadurecer no devido tempo, mas isso foi relativamente simples.

- Houve a maneira pela qual a atmosfera foi de tal modo manipulada que a ninguém em Terminus ocorreria, prematuramente, que o próprio Terminus podia ser o centro do que buscavam. Esse conhecimento teve de ser fornecido à jovem Arcádia, que não seria ouvida por ninguém, exceto pelo pai. Teve de ser mandada para Trantor, depois, para haver a certeza de que não teria contato prematuro com o pai. Esses dois eram os pólos de um motor hiperatômico, permanecendo cada um deles inativo sem o outro. E o interruptor tinha de ser acionado, o contato tinha de ser feito, precisamente no momento exato. Disso eu me encarreguei!

- E a batalha final tinha de ser manobrada apropriadamente. A esquadra da Fundação devia se embebida de confiança-própria, ao passo que a esquadra de Kalgan devia ser preparada para estar pronta para fugir. Disso também eu me encarreguei!

O Estudante disse: - Parece-me, Orador, que o senhor... quero dizer, que todos nós... estávamos contando que o Dr. Darell não suspeitasse de Arcádia ser um instrumento nosso. Segundo a minha verificação dos cálculos, havia qualquer coisa como trinta por cento de probabilidades de que ele suspeitasse de fato. Que aconteceria então?

- Tomamos cuidado com isso. Que lhe ensinaram acerca dos Planaltos de Interferência? Que são eles? Não são, decerto, prova da introdução de uma tendência emocional. Isso pode ser feito, sem qualquer probabilidade de detecção possível, pela análise encefalográfica mais refinada que é concebível. É uma conseqüência do Teorema de Leffert, como sabe. É a remoção, a ablação, de tendências emocionais prévias que se revela. Deve revelar-se.

- Ora, evidentemente, Anthor adquiriu a certeza de Darell conhecer tudo quanto se referia aos Planaltos de Interferência.

- Todavia... quando pode um indivíduo ser colocado sob domínio sem revelá-lo?

- Onde não há tendência emocional prévia a remover, em outras palavras, quando o indivíduo é uma criança recém-nascida com um quadro em branco no lugar da mente. Arcádia Darell foi uma criança assim, aqui em Trantor, há quinze anos, quando foi traçada a primeira linha da estrutura do plano. Nunca saberá que foi condicionada, e ainda bem, pois o seu condicionamento implicou o desenvolvimento de uma personalidade precoce e inteligente.

O Primeiro Orador riu por um momento. - Em certo sentido, é a ironia de tudo isto que é mais de maravilhar. Durante quatrocentos anos, tantos homens cegos pelas palavras de Seldon "o outro extremo da Galáxia". Aplicaram o seu próprio pensamento peculiar da ciência física ao problema, calculando o outro extremo com transferidores e réguas, acabando eventualmente, ou num ponto da periferia a cento e oitenta graus da circunferência da Galáxia, ou voltando ao ponto de partida.

- Todavia, o nosso maior perigo residia no fato de haver uma solução possível baseada num modo físico de pensar. A Galáxia, como sabe, não é simplesmente um ovóide achatado de qualquer espécie, nem a periferia é uma curva fechada. Na realidade, é uma dupla espiral, com pelo menos oitenta por cento dos planetas habitados no Braço Principal. Terminus é o ponto extremo exterior do braço da espiral, e nós estamos no outro, uma vez que... qual é o extremo oposto de uma espiral? Claro que é o centro.

- Mas isto é ridículo, é uma solução acidental e irrelevante. A solução podia ter sido alcançada imediatamente se os investigadores se tivessem lembrado de que Hari Seldon era um cientista social, não um cientista físico, e ajustou os seus métodos de pensar de acordo com isso. Que poderia significar "extremo oposto" para um cientista social?

- Extremos opostos no mapa? Evidentemente que não. Essa é apenas a interpretação mecânica.

- A Primeira Fundação estava na periferia, onde o Império original era mais fraco, onde a sua influência civilizadora era menor, onde sua riqueza e cultura estavam quase ausentes. E onde fica o extremo social oposto da Galáxia? Claro que é no lugar onde o Império original era mais forte, onde a sua influência civilizadora era maior, onde sua riqueza e cultura estavam mais fortemente presentes.

- Aqui! No centro! Em Trantor, capital do Império no tempo de Seldon.

- E era tão evidente. Hari Seldon deixou a Segunda Fundação atrás de si para manter, melhorar e ampliar o seu trabalho. Isso era sabido, ou imaginado, há cinqüenta anos. Mas onde podia isso ser feito melhor? Em Trantor, onde o grupo de Seldon trabalhara e onde haviam sido acumulados os dados de décadas. O objetivo da Segunda Fundação era o de proteger o Plano dos inimigos. Isso também era sabido! E onde estava a fonte de maior perigo para Terminus e para o Plano? - Aqui! Aqui em Trantor, onde o Império, apesar de estar, como estava, morrendo, poderia, durante três séculos ainda, destruir a Primeira Fundação, se apenas o tivesse decidido fazer. - Depois, quando Trantor caiu, foi saqueado e totalmente destruído, há um curto século, nós estávamos naturalmente aptos a proteger o nosso quartel-general e, em todo o planeta, só a Biblioteca Imperial e os terrenos em redor ficaram intactos. Isto era bem conhecido da Galáxia, mas até essa sugestão aparentemente esmagadora lhes escapou.

- Foi aqui em Trantor que Ebling Mis nos descobriu, e foi aqui que providenciamos no sentido de não sobreviver à descoberta. Para fazê-lo, foi necessário arranjarmo-nos de modo a conseguirmos que uma garota normal da Fundação pudesse derrotar os tremendos poderes de mutante do Mulo. Evidentemente, um tal fenômeno poderia ter atraído a suspeita para o planeta em que aconteceu... Foi aqui que estudamos o Mulo pela primeira vez e planejamos sua derrota final. Foi aqui que Arcádia nasceu e que começou o encadeamento de acontecimentos que conduziram o grande regresso ao plano de Seldon.

- E todas estas fendas no nosso segredo, todos estes buracos abertos, passaram despercebidos por Seldon ter falado no "outro extremo" à sua maneira, e terem-no interpretado à maneira deles.

O Primeiro Orador já acabara há muito tempo de falar com o Estudante. Fora, na verdade, uma exposição para si mesmo, ali, de pé diante da janela, enquanto levantava os olhos para o esplendor incrível do firmamento, para a imensa Galáxia que estava agora segura para sempre.

- Hari Seldon chamou a Trantor "A Ponte das Estrelas" - murmurou ele. - E por que não essa imagem poética? Todo o universo foi em tempos conduzido deste planeta, todas as linhas de comunicação das estrelas vinham ter aqui. "Todos os caminhos levam a Trantor", diz o velho provérbio, "e é lá a ponte de todas as estrelas”.

Dez meses antes, o Primeiro Orador vira aquele mesmo amontoado de estrelas, em parte alguma tão apinhadas como no centro daquela imensa acumulação de matéria a que o Homem denomina Galáxia, cheio de receios. Porém, agora havia uma sombria satisfação no rosto nédio e rubincudo de Preem Palver, o Primeiro Orador.

 

                                                                                            Isaac Asimov

 

 

                      

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