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SEIVA DE SANGUE / Jorge Cobanco
SEIVA DE SANGUE / Jorge Cobanco

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

SEIVA DE SANGUE

 

                                         AS RAÍZES

 

             Vermelho

Na crista do monte aquela lágrima de sangue transformava-se em força com o Sol nascente. O vermelho era rosa. O fogo, sol. Dia. Tela a nascer em pinceladas que Nzambi com a fúria da pacaça ia espalhando pela mata e pela chama entre gotas de cacimbo da madrugada. A rosa sangrava lágrimas sobre as suas pétalas vestidas de cetim. Lágrimas que se libertavam e caíam em hino por Mamã-África. Pela terra castanha e negra. Na senzala adormecida aos pés do monte, Isabel Tchilombo, sulcos de dor e sofrimento na face, espinha vergada ao peso do tempo e do trabalho de lavrar a terra e de lavar a sujidade da vida, coçou a carapinha cinzenta e com a outra mão apanhou a brasa de entre as pedras queimadas por dentro, soprando-a de vida.

Vida de fogo. Fogueira onde desde sempre cozinhava o alimento do dono e amante, o branco do puto.

A brasa na mão insensível pelos anos passados a agarrar no javite, rasgando com fúria a terra da lavra onde o milho era verde, e o verde esperança. com a outra mão pegou em mato seco, que encostou à brasa, e a chama iluminou-lhe as rugas. Um rosto negro cansado de esperar a morte. As chamas irromperam, bebendo as gotas de cacimbo que a noite depositara nos paus para a queima, apanhados de véspera, na orla da mata marginal do rio.

Da cubata ao lado surgiu o antigo cipaio, esfregando os olhos raiados de sangue, com que a bebedeira de tchissângua o acolhera durante o batuque.

Isabel Tchilombo colocou sobre as pedras da fogueira a cafeteira negra para o café. Quente convite ao frio embrenhado nos ossos.

Num gesto largo Joaquim rasgou a manhã à sua volta, bocejou, coçando a barriga amparada pelo cinto que lhe suportava os calções castanhos remendados, aqui e ali, testemunhando o muito uso. com desprezo, cuspiu por entre os dentes e de lábios quase cerrados, a saliva de álcool já fermentado pela bílis, que na farra da noite anterior o golpeava por dentro. O «ecarro enrolou-se na terra. O cabire aproximou-se das pernas de Joaquim, que raivosamente lhe assestou um pontapé. Gemido de latidos a obrigarem Isabel ao protesto no olhar.

Na retina fixou-se-lhe a lágrima que a rosa deixava cair na crista do monte.

O Sol já subia. Mais tarde deixaria a fazenda. A negra esfregou as mãos no calor da fogueira e lembrou-se de tudo, antes de partir...

Olhou fixamente as chamas avermelhadas e à memória vieram-lhe outros tempos em que o século Huanhambo era guia do branco Manuel na caça, lá para os lados do Huambo.

Nesse tempo Isabel Tchilombo ensandecia a cabeça dos homens no quimbo.

Era cafeco com seios espetados, como maboque maduro, prontos a serem mordidos pelo mais atrevido rapaz da senzala. As ancas roliças mostravam que Isabel era mucaia para muitos filhos.

Os panos de cor garrida que usava à cabeça e enrolados no corpo foram comprados na loja do Sila. Várias vezes tentada pelo branco quando, a mando do pai, ia ao armazém trocar milho por sal, que à cabeça carregava depois.

Isabel Tchilombo escapava quase sempre aos apalpões com que o branco a boleava. Era donzela, a negra. O Sila, no entanto, tentava-a. Quando as mãos lhe apertavam os seios duros, um calor inundava-a. Começava no sexo. Abrasava-lhe o peito. Como se tivesse febre. Nesses momentos lembrava-se do noivo, que por ela já tinha pago parte do alembamento.

O Sila ia ao armazém com Isabel nas alturas em que os serventes não trabalhavam no enchimento do milho. Ele próprio pesava o que a negra trazia na quinda. Não o fazia com mais ninguém. Os serventes sabiam-no. Ela também. Quando podia, levava consigo os irmãos mais novos.

- Se me deres o teu cabaço, dou-te os panos do puto e as putseiras iguais às da branca.

Isabel ria-se muito. Dos lábios, um sorriso de promessa virgem. Depois encolhia os ombros num gesto que pretendia mostrar indiferença pelas ofertas do branco. O olhar traía-lhe a cobiça. Desejava ardentemente uma pulseira igual à da mulher branca. Tinha-a visto no dia em que, acompanhada pelo marido e fazendo parte da comitiva do governador, ali tinham almoçado, durante a caçada.

Nesse dia os cipaios vestiram farda de caqui e o chefe de posto avisou dias antes que todo o povo tinha de ir bater palmas ao senhor governador. Quem não fosse seria depois castigado com palmatoadas nas mãos e nas solas dos pés, conforme disse o soba.

Lembrava-se dos brancos e das senhoras que passaram a tarde a descansar enquanto se faziam os preparativos para a caçada. Foi nessa altura que mais desejou essa pulseira igual à da branca. As mulheres do quimbo tinham falado na pulseira, invejando-a. Recordava-se de ter dito às outras raparigas que ainda havia de ter uma igual.

- Eh! Me dêxa patrão. Aka!

O Sila, transmontano de boa têmpera, apertava ainda mais os negros e duros seios da rapariga, ao mesmo tempo que tentava arrebatar-lhe os lábios abertos como tabaibe. -Aka! Me dêxa patrão!

Quanto mais a negra se debatia, mais o comerciante se excitava. Agarrou-a pelos pulsos e a rapariga deixou-se vergar até sentir nas costas a sarapilheira dos sacos. Já sem forças, o peito a rebentar-lhe numa respiração apressada e sufocante, cedeu ao peso do branco. Entre as suas pernas, o correr frenético e selvagem da mão branca a acariciá-la, com fúrias de desejo há muito comido. O sexo quente do homem esmagava-lhe a barriga, trespassando-a. Dolorosamente cansada, sentiu-se atravessar por uma dor que lhe deixou na pele as marcas do fogo. Um galope inaudível varou-lhe o coração. Pulsar desenfreado, como se todas as vísceras a quisessem abandonar, deixando-a vazia. Junto aos seus, os lábios do Sila deixavam escapar o desejo animalesco, entrecortado por roucos assobios de loucura.

Às narinas chegavam-lhe odores de sexo e sangue. Olongos cavalgavam-lhe o ventre. De repente, um longo suspiro do macho branco misturou-se em suas lágrimas. Da porta do armazém uma voz chamava:

- Patrão! Eh, patrão!

Apressadamente, Sila ergueu-se, ofegante, do chão a apertar a braguilha:

- Que é? Tou aqui, Canivete, já vou!

Pelas frestas que serviam de janela, o sol da tarde projectou focos de luz. Um deles beijou o saco onde Isabel Tchilombo passou a ser mulher.

O vermelho da sua dor bailou-lhe no olhar. As lágrimas correram. Ajeitou os panos às ancas doridas e caminhou para a porta do armazém.

Naquela manhã um branco de botas altas encebadas chegou à senzala, envolto numa nuvem de pó.

Os calções de caqui e a camisa de sarja tinham sido castanhos quando novos.

Saltou do «calças-arregaçadas» a vomitar fumo branco do tampão do radiador e sacudiu-se. A poeira assentou e em seu lugar vieram as moscas. com o chapéu colonial, que noutros tempos fora amarelo e agora castanho-terra, o branco abanava-se, enxutando a moscaria zumbidora que cortava o silêncio da senzala. Crianças ranhosas e nuas e rafeiros esqueléticos esconderam-se atrás das cubatas, observando desconfiados o carro, o branco e o cipaio.

Lentamente, apoiado a um pau de goiabeira nodoso como o próprio rosto, o soba dirige-se da porta da sua cubata, acompanhado a pequena distância dos sobetas, até ao local onde se encontrava o visitante.

Em umbundo, o ajudante do branco de canhangulo a tiracolo disse ser o cipaio do posto e que vinha ali a mando do senhor chefe, para falar com as «pissoas» da senzala e com o soba, medo, surgiram de dentro e por detrás das cubatas as mulheres de filhos às costas e os homens a seu lado, deixando-se roçar pelos rafeiros.

O cipaio continuava a explicar porque tinha ido à senzala, enquanto os habitantes daquele aglomerado sub-humano se aproximavam. O soba levantou o braço. Homens, mulheres, crianças e cães pararam à distância. O cipaio aproveitou para sublinhar:

- Este branco vens no senzala para contratar os pissoa que vai no contrato do café. Senhor chefe diz para tu arranjar os patrício para ele. Os patrício vai trabalhar no Norte mas os branco paga bem. Dá mesmo os vinte e cinco angolares por cada um que tu mandar no contrato.

Os olhos do soba brilharam de excitação. Pela face, um rito de cobiça mal disfarçada pelo sorriso largo que a boca desenhou e donde espreitaram alguns dentes amarelecidos pelo fumo da sua mutupa.

Sem que um só músculo lhe alterasse a face, o branco descobriu de novo a cabeça, sacudindo as moscas com o capacete colonial. Sentiu os olhos do século atirados à ilharga de onde lhe pendia em cinturão de pele de onça o estojo que ostentava uma faca de mato de cabo de marfim.

Nessa altura, incomodado pelo olhar do negro, pousou o capacete no capot do carro e com as duas mãos aconchegou o cinturão à barriga. Do bolso dos calções tirou um lenço vermelho.

Gotas de suor bailavam-lhe na testa. Abriu-o e enxugou a cabeça, Do alto do seu metro e oitenta, os cabelos fortes e negros sublinhavam uns olhos azuis e perfurantes. Os lábios finos deixavam calcular a indiferença que sentia por toda aquela gente que o rodeava. Na face esquerda, a cicatriz que partia do fim da sobrancelha em direcção ao lóbullo inferior da orelha assoberbava. Era o seu segredo. A amarga recordação, sempre viva, da traição de uma mulher. Uma mulher que fora sua. Ganhara a cicatriz, no momento em que, apanhando-a em flagrante, lhe matara o amante. Ela atacou-o com uma tesoura. Fora o preço da traição. Depois, o adeus para sempre à mulher que o enlouquecera de amor e o cativeiro das Áfricas.

A bofetada quente do sol transportou-o de novo à presença do soba, que nesse momento perguntava, passando a língua pelos lábios ressequidos:

- Quantos patrício precisa, patrão?

- Duzentos. Isso rápido! Daqui a dois dias carrego o teu povo! Pegou no capacete e enfiou-o na cabeça. Acariciou a Vinte-e-dois-

-longo que repousava entre os bancos da frente da cabina aberta. O cipaio saltou para a carroçaria e lá de cima disse ao soba:

- Não esquece. Arranja depressa os pissoa para ir no contrato! As últimas palavras misturaram-se com o ruído do motor e o velho levantou o braço na indecisão de enxutar as moscas que agora zumbiam à sua volta e o adeus ao contratador branco. O «calças-arregaçadas» desapareceu na curva da senzala, por detrás de uma cubata, ficando no ar o pó levantado pelos rodados.

Ao volante, o angariador multiplicava mentalmente quinhentos angolares pelas duzentas cabeças.

Sorriu. Era negócio.

José Chipindo tinha dezoito anos e ombros largos. Formado na mata entre as caçadas à pacaça ou ao guelengue, conhecia os carreiros a palmo, desde a sua senzala até ao Chinguar, Bié ou Nova Lisboa.

De constituição atlética, José Chipindo era livre. Sentia-se dono dos horizontes que os seus olhos abrangiam, quando na chama procurava as manadas. Passava dias no mato seguindo o rasto dos antílopes. A caça e a pesca que o rio arrastava em correrias entre as pedras, a caminho do precipício, eram seu pão. Ajoelhava-se e, com as mãos em concha, bebia da água cristalina, espraiando os olhos em abismos de rio. A água era oferta de zambi Bebê-la assim, a sua coragem.

Nessa tarde, Chipindo abateu com a zagaia uma cabra de mato à qual não vira a cria. Doeu-lhe a morte da fêmea. Trazia agora à volta do pescoço o recém-nascido de pernas esguias e esbelto corpo para o oferecer à prometida.

Adivinhava Isabel quando lhe desse o pequeno animal. Um sorriso de gratidão e admiração pelo seu jeito de caçador hábil e livre. com dois bois, cinco peças de pano, cinco cobertores, dois garrafões de vinho e mil angolares, já José havia pago metade do alembamento de Isabel. Faltavam ainda duas nemas, três garrafões de vinho e panos iguais aos da loja do Sila. Das nemas foi o tio dela quem falou. O vinho e os panos é que custavam muito dinheiro.

Pensou procurar trabalho como criado, em casa de um branco no Chinguar ou mesmo em Silva Porto. Contudo, o apelo da mata era mais forte. O som das pacaças castigando a terra era musica para o seu ouvido. Não conseguia tomar a decisão. Mas tinha de ser. Isabel desafiava-o quando, de pés descalços, pano enrolado à cintura e pescoço torneado de missangas, atravessava a senzala ao pôr do Sol. A cabaça ao alto sobre a cabeça, pisando a relva em que passava o rio...

Um aceno de ancas pesava para ele no corpo de Isabel. Apetites de sexo. Mundos de felicidade. Esguia, como corça, provocava-lhe o desejo.

Quanto mais caminhava, mais a ideia de procurar trabalho se lhe avolumava no cérebro.

Aproximava-se da senzala, de que já via as primeiras cubatas. O sol projectava-lhe no carreiro sombras que José pisava num saltitar de miúdo. Levantou os olhos e sentiu que a tarde alaranjava no horizonte onde o rei do dia ia dormir. Semicerrou os lábios e, dobrando a (língua em círculo, expirou o ar dos pulmões, num assobio forte e agudo. Os pássaros equilibrados nos troncos da mata levantaram voo assustados. No capim, o rastejar de cobra assustou-o. Instintivamente ergueu nessa direcção a zagaia que transportava na mão direita. A esquerda segurava as quatro patas do bambi, como novo e exótico colar. Alguns passos e repetiu o assobio a afastar o medo e a chamar os irmãos. Da cubata mais próxima, em algarviada de brincadeira, os pequenos correram em direcção ao recém-chegado.

Em roda à volta de José, todos perguntavam ao mesmo tempo pela caça, explicando que nessa tarde estivera na senzala o angariador mandado pelo chefe de posto. O branco tinha ido falar ao soba para arranjar contratados. José não prestava grande atenção ao que os miúdos diziam. Os seus olhos procuravam Isabel, à porta da cubata. Dirigiu-se-lhe em passos firmes, abraçando ainda mais ao pescoço a cria da cabra de mato. A negra levantou os olhos da panela onde misturava com água a fubá para a fome e sorriu.

José estendeu-lhe o animal em oferta silenciosa. Isabel segurou-o, deixando as mãos do negro entre as dela. Um arrepio transmitiu-se ao caçador. José mandou calar os miúdos que animavam seus jogos com a visita do branco.

Nas palavras sentia-se a tristeza que antecede os momentos graves. Nem o facto de José Chipindo ter trazido o pequeno bambi despertou a atenção da miudagem.

Isabel dirigiu-se à cerca de paus, sobranceira à cubata onde pastavam duas cabras e, delicadamente, pôs no chão as tenras patas do animal. Livre, iniciou uma louca correria à volta da prisão. O cacarejar das galinhas misturou-se ao da miudagem que rodeava José. A zagaia do caçador era objecto de brincadeira em sonhos adultos, daquelas crianças nuas de dilatado ventre.

Isabel olhou-o. Que jovem era! No rosto, a angústia. O negro alertado pela tristeza. Um pressentimento desabou sobre si.

- Mano, vai gente no contrato! Branco esteve cá com o cipaio a falar no soba. Amanhã os branco vem buscar gente para ir no café. Tu também vai, mano?

José Chipindo olhou o irmão mais novo que logo lhe dera a saber, e sacudido de incómodo brusco, rouquejou:

- Tché rapaz, sai daqui! Vai embora, me dexâ!

Enquanto acariciava a carapinha do pequeno, Isabel confirmou:

- É verdade mesmo. Branco vem buscar os pessoa para ir no contrato. Soba já está a chamar!

Só então José despertou. Todas as suas esperanças desapareciam. Uma dor no estômago alertou-o para os reflexos da visita do branco e percebeu que nos seus horizontes não havia futuro. Nunca mais seguiria o desaforo das pacaças... Nunca mais sentiria o milho a crescer ou o sabor do marufo fresquinho, nem tão pouco o ácido sabor do maboque ou o doce da pitanga.

Era um peso dentro de si - o sentira quando, ainda menino, visitou a serração do Marques em Silva Porto e pediu ao menino branco que o deixasse brincar com o automóvel de lata puxado a cordel:

- Sai daqui negro. O teu lugar é na senzala. O meu carro não é para negro brincar!

Vergastava-o de novo aquela dor interior. Não era uma dor física. Ultrapassava a que sentiu quando mais tarde, ao cortar um pau, a catana lhe fugiu das mãos rasgando-lhe uma perna.

José Chipindo pressentiu que a sua vida, até aí tão livre, ia conhecer nova etapa.

Isabel percebeu-o. No segredo das suas mãos, prendeu ternamente as mãos de José. Só os olhos travavam mudos diálogos, que entendiam.

O Sol já se tinha deitado. As crianças compartilhavam agora o silêncio daqueles dois jovens. Nem sequer era ainda noite. Estavam no tempo imediatamente anterior àquele em que não tardaria que uma cortina de insectos corresse a noite.

Pela madrugada, novo dia começara a romper. Aqui e ali, pequenos fogos estalavam frente às cubatas. No centro reuniam-se homens, mulheres e algumas crianças.

Amontoavam-se as zimbambas num brique-à-braque. Malas de ferro, quindas, sacos de sarapilheira e cabaças. Galinhas, cachos de bananas, cabritos e embrulhos de fubá. Alimento para a distância...

O choro dos miúdos às costas das mães. Ladrar de rafeiros e vozes alteradas sobrepunham-se ao habitual som que vinha da mata àquela hora do fim da noite. O Sol levantou-se. Seis cipaios. Porrinho na mão. Maneliquer às costas, davam ordens e fiscalizavam os movimentos dos contratados.

Matos, o gordo e atarracado chefe de posto, retorcia os bigodes negros, conversando com o angariador de botas altas. Usava a farda amarela com divisas douradas nos ombros, sobressaindo no fundo de flanela azul e que tanto respeito e cobiça metiam aos habitantes da senzala. Na mão direita, um pingalim de pau-ferro com a cabeça de um negro esculpida no punho. Batia com ele nas calças em gestas nervosos.

O soba, amparado ao velho pau de goiabeira que lhe servia de bastão, rodeava-se dos sobetas e mulheres. Envergava farda de caqui igual à dos cipaios e nos ombros ridícula imitação de galões vermelhos.

O angariador olhou-o de frente. Sem uma palavra iniciou o pagamento. Notas de um, vinte e cinquenta angolares até perfazerem cinco mil em troca dos homens. Mentalmente, o soba tentava calcular para quantas cabeças de gado lhe daria aquele dinheiro. Ia juntá-las à sua já grande manada.

Contratados subiam para as três camionetas que se encontravam paradas, lado a lado à entrada da senzala. Os condutores fiscalizavam a carga em altos berros. Incitavam os homens a despacharem-se. Era preciso partir. José Chipindo despedia-se de Isabel. Tinha tomado a decisão na véspera. O angariador adiantou-lhe algum dinheiro para o resto do alembamento de Isabel. Durante horas interrogou a mãe-natureza. O amor por Isabel Tchilombo venceu o apelo da corrida das pacaças na mata, das águas do rio em corrida para o precipício, da zagaia atingindo a cabra de mato ou o olongo. Pelo amor, sacrificou-se no altar da Kberdade.

Desculpava-se dizendo que era por um ano. Talvez fosse possível juntar-se a Isabel antes do fim do contrato. Todos os sonhos eram legítimos.

Entregou ao tio os seiscentos angolares do adiantamento e mandou-o comprar as duas nemas. Para completar o alembamento traria os panos no regresso. Tchandombe, seu companheiro de viagem, garantiu que no Norte eram mais bonitos. Este queria os melhores para a prometida. Isabel aconchegava às costas a irmã mais nova. Excitada pela algazarra, não parava de chorar. Os outros seis irmãos comentavam entre si as armas dos cipaios e o tamanho dos camiões. Os três mais pequenos não largavam as pernas de Isabel.

José, depois de carregar a sua mala de ferro pintada de verde, aproximou-se dela e segurando-lhe nas mãos disse:

- Eu vai voltar. Me espera!

Isabel, com as suas mãos entre as do negro, abanava o corpo tentando calar a irmã que intensificara a nervosa choradeira. Os cipaios mandavam subir os retardatários para os camiões de caixa aberta, onde parecia caber sempre mais um. Eram simplesmente montes de carga. Humana.

O homem das botas altas subiu para o «calças-arregaçadas» e pôs o motor em marcha. Ao lado sentou-se o atarracado chefe de posto. Entre ambos a vinte-e-dois-longo. Para trás, dois cipaios. Os outros estavam distribuídos pelas três camionetas. A coluna iniciou a marcha.

Os contratados acenavam um adeus aos que ficavam. Uns e outros deixavam-se já envolver pela saudade.

Mulheres em berraria misturando as lágrimas na despedida:

- Aiué. Mamã ué. Tatié!

Lado a lado, uma perseguição de rodas enfraquecia os cães. José, na carroçaria do último, levantou o braço para Isabel. A negra deixou rolar pela face as lágrimas que não podia conter. Eram cristalinas e grossas. Saíam-lhe da alma e a desfocada imagem de José Chipindo quebrou-se ainda outra vez no vago olhar... Não sabia se era das lágrimas, se da poeira que os carros levantavam.

O sol esbofeteou-a com raiva.

António Sua levantou-se.

Cinco horas de uma manhã que despertou cinzenta. As copas das mulembas e o capim abundante cobriam-se com manto de cacimbo.

«Este ano os pastos vão ser bons» pensava o Sila» enquanto pela janela se fixava na paisagem.

Na varanda da casa dormiam os leões da Rodésia. Os colossos eram companhia permanente.

Às sete abriu as duas portas da loja. Cá fora, alguns homens e mulheres de quindas cheias para a troca. Panos, fubá e algum peixe seco. . .

Canivete trouxe-lhe a habitual chávena de café de sabor duvidoso, mas negro como noite passada à espera na mulemba pela visita do leão.

O café em jejum era um hábito que o pai lhe incutira quando ainda na sua aldeia natal, de Trás-os-Montes, se preparava para a jorna do dia, naquela terra gorda de misérias e avara de proventos. A aguardente também. Chamava-lhe o matabicho. Ritual que não dispensava. Levantar-se às cinco para ver nascer o novo dia e beber a chávena de café e o copo de aguardente, a queimar-lhe a língua e a garganta era um prazer. Mesmo em Angola, não abdicava do cerimonial. Bastava-lhe o que passou em Nova Lisboa durante o tempo de trabalho na casa comercial do Farinha, lá para os lados do bairro de Fátima. Eram hábitos diferentes. Na cidade levantavam-se mais tarde. Na casa do Farinha, só ele saltava da cama religiosamente àquela hora e sofria com a espera imposta pela mulher do patrão que só fazia o pequeno-almoço por volta das oito.

Sila suportou aquilo durante dois anos. Dois anos que lhe serviram para tirar o curso de comerciante do negro. Não era fácil entendêlos. Achava-os conflituosos. Desconfiados. Segundo o patrão, sempre prontos a roubar, aproveitando o mais pequeno sinal de distracção. Ainda por cima cheiravam mal A catinga.

- Você habitua-se. Ao princípio também me custava a mim. Depois habituei-me. Hoje já nem noto! - Dizia-lhe a gorda mulher do Farinha, uma das poucas mulheres brancas que viviam em Nova Lisboa naquele tempo.

Já se habituara. Na verdade, não eram tão ladrões como o patrão dizia. Havia um ou outro.

Aqueles dois anos revelaram que ele tinha vocação para o comércio. Aliás, os clientes daquele género até nem eram exigentes. Impingia-se-lhes gato por lebre. Comiam tudo. Bebiam melhor. Para trabalhar na loja bastava saber fazer contas. Nem era preciso ler e escrever muito bem. O seu patrão mal sabia ler e o comércio funcionava. Num livro apontava as dívidas dos clientes e os juros pela demora do pagamento, que na maioria dos casos ia de colheita a colheita.

Na loja, que a distância perdia no mato, Sila fazia sorrir as coisas com grandes vantagens para ele. Aguardava as colheitas para saldar as contas com a clientela. Mal circulavam os angolares. Era o milho, a ginguiba, o tomate, os ovos e a criação que serviam de moeda.

Depois invadia a vila. A riqueza, por certo.

Um tio do Sila escreveu ao Farinha, seu conterrâneo, pedindo uma carta de chamada para o rapaz poder ir para Angola. Lembrava-se como se fosse hoje. Tinha acabado de nascer mais um irmão. O nono. O mais velho vivia no Brasil. Já bem na vida. Comerciante em Bandeirantes. Casou com uma moça lá da terra. Libertara-se da escravatura. Enxada no campo do nascer ao pôr do Sol. Sila foi o segundo a abalar. Outro continente. Não para o Brasil Ele e o irmão não se davam bem. O pior, contudo, fora o martírio dos meses de espera pela carta de chamada.

À noite, quantas vezes duvidara se de facto o Farinha mandaria a tal carta de chamada. Tinha pesadelos. Via-se devorado vivo pelos pretos lá nas Áfricas. Acordava a soluçar, e pela manhã dizia ao pai que já não queria ir. Chovia tabefe. O velhote era cruel Uma boca a sustentar e os argumentos convincentes do pai, com a vitória do seu mais velho por terras de Santa Cruz. Sila calava-se e a espera continuava, naquele desenrolar dos dias de escravidão no campo.

Nesse tempo tinha dezassete anos. Era um rapaz musculoso. Moreno, de farta cabeleira negra. Olhos castanhos sempre vivos em busca do mundo à sua volta. Às vezes sorridentes. O visgo e a fisga aguçavam-lhe o ardil...

O Sila, de nome próprio António, não era alto. Aos dezassete media cerca de um metro e setenta.

Agora, ali na varanda da loja do mato, essas recordações destacavam-se na névoa ido tempo.

A lembrança da sua viagem a bordo do João Belo era um estigma. Aquele grande navio foca a sua prisão durante quase um mês.

Sentia-se enjoado pelo balançar do barco, enquanto os vómitos lhe rasgavam o ventre, numa ordem que o olfacto impunha, com aquele cheiro nauseabundo e pestilento dos porões de ferro, frios como a morte, onde dormia.

Era a terceira classe. O Sila sentia aquele lugar, onde passava as longas noites de viagem, como a antecâmara do inferno. Porão instalado à proa, qual curro para transportar gado, onde os homens acalentavam sonhos de uma vida melhor.

Por vezes, quando todos dormiam, desdobrava a carta de chamada

- o passaporte impossível, por vontade expressa do governo de Lisboa- e tentava ter o que lá estava escrito. Adivinhava mais do que lia, que esse papel delineava uma fronteira, longe da pátria.

Sofrer diariamente agruras de porão. Existia abaixo do nível das águas em que o barco navegava,

Tal como pelas paredes de pedra de masmorras medievais, também o navio ressumava humidade. O calor das fornalhas que alimentavam de energia as hélices do barco, obrigavam-no a dormir quase nu, e o ar viciado roía-lhe os pulmões.

O inferno acabou no dia em que aportaram o Lobito.

Era uma nova paisagem. Quando o barco entrou lentamente a barra, entre a Restinga e os morros da Canata, com seu casario miserável, a caminho do porto, o Sila abraçou a tristeza.

Debruçado na amurada esperava ver leões em ruidoso esgar, como lhe tinham dito na terra. Em troca, viu, ao longo daquela linha de terra, coqueiros debruçados sobre o mar e as águas limpas da baía beijando as raízes de palma, Completamente nus, os pequenos negros chapinhavam aquela paz marítima. Carros corriam ao longo da Restinga, do farol ao porto, acompanhando por terra o andamento do João Belo. Distinguia perfeitamente os condutores, de camisas de caqui, protegidos do sol pelos capacetes coloniais.

Serenaram os motores do barco, e os corredores explodiram de movimento. Brancos e negros subiam a escada do portaló. Era dia de «são-vapor». A fisionomia da cidade alterar-se-ia durante a permanência do navio. Ah, nos salões e bares, intensificar-se-ia a vida social da urbe durante esses três dias. Até da Catumbela e de Benguela vinha gente para matar saudades. A cerveja, o bom vinho, as mais espirituosas bebidas, correriam em abundância.

Um manuscrito, no quadro de avisos de bordo, informava que o comandante oferecia um baile, na primeira classe, à melhor sociedade lobitanga. Como habitualmente, os negros narizes estariam encostados aos vidros do salão para ver os brancos dançar. Naquele momento António Sila não sabia que era assim. Só o soube mais tarde.

Ouviu chamar-lhe o nome. Dirigiu-se ao tripulante que o fazia. Este indicou-lhe um velhote de calções e camisa de caqui amarelo que se apresentou como sendo o Medeiros, amigo do seu tio em Nova Lisboa. Pedira-lhe para esperar o jovem. António Sila apresentou-se e agradeceu. Ficaria hospedado em casa do velhote até apanhar o comboio mais tarde, para Nova Lisboa.

Agosto de 1928, Angola. Sila desembarcou cerca das três horas de uma tarde cheia de sol, sol de África.

Já tudo era diferente. Acariciante. Moreno.

Esforçadamente, a Garrara arrastava atrás de si oito carruagens e três vagões de carga. Subindo sempre, a composição conquistava lentamente os trilhos a caminho do planalto. O esforço. É preciso. É preciso. É preciso andar. Nova Lisboa é longe. E o fumo da máquina, soprado pêlo vento, invade os compartimentos onde os negros viajam em terceira classe. O pó levanta-se, entranha-se nos poros, suíça o nariz e a boca, de mistura com a fuligem. Na terceira é pior. Ali não pode o branco viajar. Em primeira e segunda é o negro quem não entra.

Naquela senzala rolante apinham-se, ombro a ombro, os negros, e os bancos de madeira estão cheios por todo o lado. Negrinhos brincam. Alguns olham pela janela, vendo fugir as mulembas e as lavras de milho. Fazem adeus e gritam em umbundo aos seus irmãos negros que trabalham a terra e acenam ao comboio.

À sua frente, nas outras carruagens socialmente descriminadas por segunda e primeira, crianças seguem comodamente instaladas. E não há restos de casca de cana-de-açúcar no chão. Ali, as cabinas têm mesas e cestos para lixo. Na terceira, não. A carruagem é toda ela uma cabina que alberga os que couberem - homens, mulheres, crianças, com animais à mistura.

Na primeira, viajam alguns belgas e alemães a caminho das minas de cobre no coração de África. Passam o tempo beberricando cerveja na carruagem restaurante. As portas batem e os negros do caminho-de-ferro, emprego a soldo leve, circulam ao longo da composição. De vez em quando, bandos de macacos saltam de galho em galho, assustados com a presença súbita do trem. Perdem a linha, entram na mata. Sila ria-se dos animais. Olhava a crista dos morros onde o capim verdejava. Aqui e ali, ilhas de árvores recebem nos ramos a exótica passarada, o voo, quando o «pouca-terra-pouca-terra» se aproxima, castigando os trilhos com seu peso de ferro.

Rochedos, espalhados à sorte, lembravam ameias de gigantesco castelo. Colunas de terra, da altura de um homem, abrigavam colónias de formigas salalé, que depois da chuva saciariam a avidez dos negros.

Contra o céu, o perfil da montanha que as nuvens coroavam de flocos de algodão, em contraste com as aunaras infindas que o comboio percorrera, junto ao litoral, onde a cana-de-açúcar e as bananeiras faziam túneis sobre os trilhos. Ao longe espreitavam gigantes. Imbondeiros perfilam a chana. Aqui e além, Sila descortinava uma senzala quase junto à linha. Abafava-se dentro e fora das carruagens. Neblina asfixiante. Já no planalto abrem-se, no meio da mata, clareiras de capim verde. Um ou outro riacho era transposto pelo comboio serpenteante a caminho do Huambo.

Longas extensões de eucaliptos forneciam os toros de madeira que os ajudantes do maquinista, o ébano do tronco escorrendo espessas gotas de suor, transportavam à fornalha.

No Cubai, de par em par, pára outro comboio vindo de Silva Porto. Ao lado da janela onde se encontrava, estaciona uma das carruagens onde viajavam os negros. Uma mulher de panos encarnados e turbante amarelo, encara com os olhos prenhes de mistério o jovem branco. Este inclina-se, em cumprimento. Ela cospe, já mastigadas, cascas de cana-de-açúcar que tinha na mão e deixa sair gargalhadas de cristal, começando a falar para os outros viajantes negros da terceira. Envergonhado, o jovem recolhe a cabeça para dentro. Na estação, o milho empilha-se em sacos, entre os quais passeiam, vestidas de branco, duas mulheres mestiças. Aparentam cerca de quarenta anos. Procuram alguém na segunda classe. Em bicos de pés, espreitam pelas janelas toscas, pelas cabinas. Alguns homens, na gare, conversam com passageiros do comboio. Dois deles dirigem a carga e descarga dos diversos caixotes que os negros transportam à cabeça, entre os «uhs-uhs» que a custo rumorejam. Os sons combinam o suporte sonoro de apoio ao esforço físico.

As negras vendiam ovos, galinhas, bananas e laranjas as carruagens de viajantes cercadas.

A esticar as pernas, o Sila desce. Sabe que já não falta muito para chegar a Nova Lisboa. Algumas horas apenas o separam da vida. Uma vida a inventar.

O barco e o comboio foram poucos momentos de descanso. E já o Lobito esquece. Espera-o um futuro que ainda não adivinha. Sente-o intensamente.

O negócio corria bem. O gado reproduzia-se e todos os anos aumentava a manada. A sua conta bancária reflectia-o. Comprou uma carrinha para transporte de mercadorias. com ela ia à caça. Percebeu que o dinheiro não era tudo. A solidão pesava nas suas noites. Faltava-lhe mulher. Algumas negras das senzalas próximas iam para a cama com ele. Usava-as. Demasiado passivas, só se interessavam, pelo pagamento final. Não conseguia envolver emoções no mercadejar do sexo.

O fascínio das brancas, porém, chamava-o à cidade.

A mulher do administrador excitava-o particularmente. Não tinha mais de trinta e cinco anos. Alta, de fartos cabelos ondulados, imprimia ao andar provocação. Vê-la era um convite. Ela sabia a ardente sensualidade que despertava. Secreta como um fruto. Sila levava propositadamente, a casa do administrador, criação e ovos que trazia do mato, para a sentir mais perto. A voz quente provocava-lhe arrepios. As ofertas serviam a desejada aproximação da cor.

Nunca tinha tirado partido disso, mas era sempre bom manter as melhores relações de amizade com as autoridades. A vida solitária começou quando o Farinha o mandou para o mato tomar conta da loja, trabalhando como escravo, sem domingos, durante quatro anos, no Chiumbo. Só o trespasse veio alterar esta situação. A sua maneira de lidar com os nativos levou grande parte dos habitantes das senzalas das redondezas a preferi-lo ao Cunha, proprietário de uma quitanda a alguns quilómetros da dele. A paciência do Sila e o tempo que esperava pelos pagamentos deram-lhe a amizade do gentio. Tratava-os bem. De vez em quando, oferecia rebuçados à miudagem. Quando caçava, mandava o ajudante tirar da pacaça a carne dos bifes. O resto da carcaça e as miudezas dava-os para o «pessoal» das senzalas circunvizinhas. Era uma festa.

- Aiué. Aiué. Este branco é mesmo bom para nós. Wakheto!

Depois, à volta das fogueiras, e até de madrugada, estalava o batuque, com a tchissângua e o churrasco da carne de pacaça ou guelengue. As mucaias, entre risadas tímidas, ondulavam as ancas ao ritmo do chingufo e algumas até, desafiavam o branco para dançar. Todo o mundo batia palmas.

O espectáculo entranhava-se-lhes na alma. Sob efeito da sede, Sila tentava improvisadamente esse jeito das ancas que só as negras sabiam. Inocente oferta as horas sensuais. Da fogueira, a chama alta iluminava rostos frios, que o suado esforço do batuque incansávelmente repetia. Na mata sobranceira, a bicharada que a noite silenciara. Dantescamente, embora.

Desconhecia, porém, como os extremos se tocam. E, de vez em quando, o comércio abrutalhava-lhe os modos, quando afirmava que a única maneira de tratar com um negro era evitar mostrar medo. Pão e chicote a um tempo na mão. Contudo, só uma vez fizera uso da força. Nunca o esquecera.

Era fim de mês. Em trocos na gaveta do balcão, novecentos angolares para o pagamento do pessoal que trabalhava na horta. Dia de grande movimento com o gentio a entrar e sair, fazendo compras. Ao fundo do balcão, uma pipa de vinho próxima da qual estavam quatro negros a beber. Dois deles desconhecidos na região. O Canivete, seu ajudante, homem de confiança, atendia-os. Sila prestava atenção a uma mulher que escolhia panos. A certa altura, o Canivete foi ao armazém medir ginguba e quando chegou disse:

- Patrão, os homem está lá fora para receber!

O comerciante despachou a negra e dirigiu-se à gaveta. Abriu-a. Espantado, verificou que dos novecentos angolares faltavam quinhentos. Perguntou ao empregado se lhe tinha tirado algum dinheiro, para trocos.

- Eu não, patrão. Este patrício ainda não pagaste e eu não mexeste no gaveta!

Gerou-«e burburinho na clientela, O mais alto do grupo junto à pipa pagou a conta ao Canivete, sugerindo que abalassem. Sila, atrás do balcão, dirigiu-se-lhe:

- Oli rapaz! Dá cá o dinheiro que tiraste da gaveta.

- Aka! Este branco está já a fazer os confusão. Eu não tiraste dinheiro do gaveta.

- Ouve, rapaz. Dá-me o dinheiro e vai-te embora. Não chateies!

- Eh! Você está mesmo a chatiar. Aka! Eu não tiraste os quinhento angolares. Eu não precisa do teu dinheiro!

Nessa altura o Sila, fora de si, gritava:

- Pela última vez, dá cá o dinheiro, porra!

O negro, com os olhos injectados pela fúria de que estava possuído e pelos copos que já bebera, disse a meia voz entre dentes:

-Tupariowe!

E logo na mão do branco o cavalo-marinho, feito de pele de pacaça entrelaçada em arame, estalou. De um salto passou ao exterior do balcão e, vibrando a mão, chicoteou furiosamente o negro desconhecido. Na face do homem rasgões vermelhos de sangue, muito embora se tentasse proteger cruzando os braços à frente da cara.

À parte o barulho da contenda, ninguém se manifestara, com medo de aumentar ainda mais a intolerância do branco.

Entre soluços, o negro gritou:

- Aiué, tatié, patrão! Não bate mais, fui eu mesmo. Aka! Não bate mais patrão!...

À volta dos dois homens, os clientes faziam círculo. Sila, ofegante pelo esforço dispendido, deixou cair ao longo do corpo o braço que empunhara o chicote.

Dirigiu a mão esquerda ao ladrão. Este tirou do bolso as notas e depositou-as na palma que o branco lhe mostrava, Chispava ódio no olhar.

- Desaparece, negro ordinário, e nunca mais aqui entres!

Quase a correr, os dois desconhecidos saíram porta fora, perdendo-se no capim à distância, com os sacos às costas. E tudo se restabeleceu. Canivete, falando para o branco, afirmou:

- Aka! Esses dois gajos é mesmo ladrão. Os gajo não é daqui patrão!

Dias depois, o chefe de posto, de visita à loja dele, perguntou o que se tinha passado. Sila fraseou surdamente:

- É assim mesmo. É preciso não deixar os gajos roubarem.

- Sabe que mais, amigo Sila, uns ladrões é o que eles são! Deixe-lhes ao pé um alfinete e vire as costas, que os sacanas roubam-no logo. Uns filhos de puta!

Isabel Tchilombo era agora mulher. Sila desejava-a. Tentava tudo para ficarem a sós. Isabel fugia, tentando o inadiável. O comerciante sonhava aquele corpo de ébano e por vezes despertava a meio da noite embrulhado em orgasmos.

- Olha, rapariga, se f... comigo, dou-te uma pulseira igual à da mulher do administrador!

- Não diz isso, patrão!

Fingia a negra o receio, mostrando-se ofendida pelo atrevimento do branco, ao mesmo tempo tomada pelo brilho do olhar. Desejo pela pulseira. Sila, porém, insistia, perspectivando satisfação no anseio.

Num dia em que a chuva abatera um negro céu de nuvens, Isabel ficou retida esperando que a bátega amainasse.

Na loja, o comerciante, o ajudante, ela e o irmão.

A um sinal, Canivete desapareceu e chamou a rapariga ao armazém. Ela foi. O irmão ficou por ali entretendo imitações de carro numa lata de sardinha vazia. O branco esgueirou-se a seguir. Assim que este apareceu à porta, o ajudante deixou-os a sós. Quando se viu só com o branco, adivinhou o que a esperava. Impotente, nem sequer esboçou a fuga. Agarrada pelos pulsos, sentiu-se meigamente puxada para junto dos sacos de milho. Chorava. O branco, excitado, beijou-lhe a face e os lábios, sentindo o angustiado sabor daquelas lágrimas. Pela primeira vez, o Sua. evitou magoá-la. Lentamente, desenrolou os panos e a negra ofereceu-lhe a pose da sua nudez. com o olhar, Sila acariciava-lhe o corpo. As mãos dela nas dele. Percorreu-lhe então lascivamente as formas de menina. Fixamente cuidou dos seios rijos de maboque e Isabel estremeceu. O branco baixou os olhos explorando a curva das ancas e por fim parou sobre o monte de Vénus, afagando-lhe nessa altura com uma das mãos os pêlos amodorrados do sexo.

Uma vaga de tremores invadiu lascivamente Isabel

Docemente, o macho deu-se à ternura abraçando a rapariga durante momentos, sem pressa de consumar a penetração profunda, ferocíssima da véspera.

Vergando-a sobre o leito de sacos de milho, procurou-lhe os lábios grossos que beijou, como se através deles quisesse transmitir à rapariga o sopro de sensualidade brutal que o dominava. A negra, também já dominada pelo desejo, segurou-lhe arduamente o sexo erecto, apontou-o voraz, humidamente, retirando a mão, com violência para abraçar o branco contra os seios arfantes. Um grito mordeu-lhe os lábios. E com movimentos ondulantes e lentos iniciou-se em prazer infindável

Isabel tinha nas ancas o movimento de cobra rastejando para o clímax. com os lábios, Sila percorria-lhe os olhos, a boca e a nuca. Introduzia a língua vermelha nos ouvidos daquela menina-mulher. e em resposta ela deixava sair do peito um arfar rouco, apertando-o cada vez mais.

Num tempo - mais de dentro da alma, que tão só da garganta os dois deixaram escapar um uivo como se a vida lhes fugisse em busca de nada, um nada que um e outro julgavam impossível. Queimavam-se-lhes as entranhas, e a negra explodiu:

- Tatié mamã ué! Tatié!...

Toda a força foram os corpos perdendo e o que os fizera vibrar era agora simplesmente a condição de homem e mulher.

No pulso, Isabel trazia o prémio dessa entrega. Era uma imitação ordinária de pulseira de ouro, semelhante à da mulher do administrador Fernandes. Provocava inveja às outras raparigas da senzala, com a pulseira do Sila.

Sempre que ia à loja, o comerciante conduzia as coisas de modo a ficar sozinho com ela no armazém.

- Eh, patrão. Vai já nos três meses que o sangue não vem. Eu vai ter o filho! - afirmava Isabel, chorosa.

- Isso não pode ser, rapariga. Você tem que ir no quimbanda.

- Aka! Agora mesmo não pode. Já está grande!

Dias depois apareceu na loja o tio de Isabel Quando o Canivete o avisou da presença do soba, Sila exclamou:

- Merda. vou ter chatices! Ofereceu um copo de vinho ao velho:

- Então que há?

- Eu vem falar contigo porque tu tiraste o cabaço no Isabel e agora ela vai ter os teu filho! Tu tem que pagar o alembamento!

- Mas ouve lá, século. Eu não quero casar com ela. Eu não vou pagar nada. É melhor ires-te embora, porque eu não pago porra nenhuma!

- Oia patrão, eu não quer osrmaka. Tu vais mesmo pagar senão eu faz queixa no Sr. Administrador.

- Então faz. Desaparece daqui! - berrou o Sila.

O velho, perante a atitude do branco, saiu porta fora, determinado a falar com o administrador Fernandes. O filho mais velho do soba era criado dele há cinco anos. Sabia que o agente da autoridade era justo. Já o tinha demonstrado diversas vezes, defendendo os negros e, portanto, ajudá-lo-ia a resolver o problema. A família de Isabel tinha direito ao alembamento pago pelo branco, já que o José Chipindo, noivo da sobrinha, se podia recusar a pagar o que faltava ao regressar do contrato.

Isso mesmo iria contar ao administrador, se o branco teimasse em não querer pagar pelo cabaço da sobrinha.

Na varanda da casa, sentado numa cadeira de encosto feita de aduelas de barril, Sila fumava um cigarro e beberricava uma cerveja belga das que comprara em Nova Lisboa, no vagão restaurante dos Caminhos-de-Ferro de Benguela,

Recostado na almofada do cadeirão, esperava que o Canivete, cozinheiro e ajudante na loja, lhe viesse anunciar o jantar. Da mata, o som da bicharada encomendava a noite. Progressivamente, os ruídos foram dando lugar ao ronco do motor de um Ford «calças-arregaçadas», que se aproximava da casa, perseguido por cerrada nuvem de pó.

-Levantou-se da cadeira de encosto quando o carro parou:

- Olá, senhor chefe. Boa tarde!

O Matos, atarracado, destilava suor e gordura. Tirou do bolso dos calções um lenço de cor indefinível, com que limpou a nuca e a cara. Numa caratonha que pretendia imitar um sorriso, respondeu:

-Fino. Estou fino, mas cheio de sede por causa deste pó e do maldito calor. E você, Sila, como vão as coisas por cá?

-Mais ou menos. Podia ser melhor, mas mesmo assim não me posso queixar.

O pequeno chefe de posto, dirigindo-se ao cipaio que o acompanhava, ordenou:

- Vai encher esse saco de lona com água para irmos embora. Sila, num tom de voz que pretendia ser agradável, atalhou:

- Não senhor, meu amigo. Já o não deixo ir embora. Janta comigo. Cipaio, vai à cozinha e diz ao Canivete!

Sem se fazer rogado, o Matos agradeceu:

- Bem, obrigado, amigo Sila. Realmente, se não se importa, aproveito e até passo cá a noite. Preciso de dar descanso à merda do carro que está a cair aos bocados. Já hoje andei mais de quinhentos quilómetros por essas senzalas e por esse mato fora, por causa dos contratados. Além disso, preciso de o avisar cá de umas coisas...

Mas com certeza. O chefe sabe que é um prazer tê-lo por cá. Aliás estou sempre sozinho e isso chateia um pobre de Cristo. Assim sempre podemos conversar e beber uma aguardente que me mandaram lá da terra...

Por ali se ficaram, bebendo cerveja, em conversa cujo assunto principal era a mulher do administrador. Constava que andava metida com o secretário da Administração, um rapaz ainda novo chegado há cerca de dois anos do puto.

O Matos, viscoso na maledicência, informou:

- Pois é, amigo Sila. O Fernandes já é velhote e consta que por causa das pretas com quem andou metido em velhos tempos de chefe de posto tem a gaita estragada. A mulher dele deve ser de alimento. E uma gaja nova e toda dengosa. É o que lhe digo, amigo Sila, e não sou má língua.

O comerciante já tinha ouvido uns zunzuns e se o Matos o dizia era porque sabia.

-Coitado do administrador! É um bom homem! As mulheres... Umas cabras!

Canivete avisou que o jantar estava pronto. Seis horas da tarde e a noite começava a cair. Depois do café, enquanto saboreava a aguardente, o Matos afirmava:

- Pois é como lhe disse, amigo. O administrador está disposto a apoiar o sacana do negro contra si. E das duas uma! Ou você consegue resolver o problema com a rapariga, ou então isso ainda lhe pode dar chatices.

Estupefacto, ouvia o visitante que expunha claramente a situação.

O tio de Isabel tinha-se queixado ao administrador Fernandes, que, segundo o Matos, era conhecido pelos outros colegas e pelos comerciantes da zona como «o pai dos negros», Aquilo podia trazer-lhe chatices e das grandes.

Mas ele havia de arranjar maneira de se safar daquela encrenca, pensava o Sila, depois de ouvir o chefe de posto. Aliás sabia que o Fernandes era incorruptível e um homem disposto a defender a «negralhada».

Se o tipo queria guerra, iria tê-la. Havia de inventar um processo qualquer para se livrar do problema, apesar de Isabel não lhe ser indiferente. Não era só a maneira como ela se mexia debaixo dele. Na verdade, contava ansiosamente as horas que os separavam. Todas as sextas-feiras ela deslocava-se àlíJja, a fazer compras. O inevitável então acontecia. Nos outros dias da semana sentia-lhe a falta e já chegara a propor-lhe que fugisse da senzala para viverem juntos. Dormir todas as noites na sua cama. Fazia-lhe falta aquele sorriso gaiato e atrevido quando a acariciava. Sentia que a negra gostava dele.

A barriga de Isabel ainda não se notava. Sila sentia um prazer indescritível ao passar-lhe lentamente a mão pelo ventre. Tentava afeiçoar-se ao novo ser. Ela sorria e entregava-se toda ao acto sexual como se desejasse retê-lo para sempre. O problema com o administrador preocupava-o. O Matos, parecendo adivinhar-lhe os pensamentos afirmou:

- Oh, homem, não se preocupe! Há-de haver uma solução, e de qualquer maneira estou convencido de que o administrador não o vai meter na cadeia por causa da rapariga. Que chatice! Ele será muito sacana, mas não tanto. Você, com uns angolares, resolve a coisa. Dê um boi ao tio da rapariga e verá que se cala.

- Não é a merda do boi, ou os angolares, que me afligem. É que a rapariga está prenha!

O Matos rompeu em estrondosa gargalhada.

- Você é parvo ou quê? Qual é o problema de ela estar grávida? Nasce um mulatinho e mais nada! Oh, homem, não pense nisso! Deixe-se de merdas! - Emborcou o quarto cálice de aguardente.

A sala de jantar, mobilada com pesados móveis de madeka, sem estilo definido, estava iluminada por três candeeiros a petróleo. No tecto, projectava-se a sombra ondulante dos dois brancos. Os insectos voavam loucamente à volta das chaminés, caindo, queimados, em voos suicidas contra os vidros que protegiam das chamas.

Lá fora, há muito que a noite descera, misteriosa.

Parou a carrinha à porta da residência do administrador. Uma nuvem de castanho pó cobriu gente e viatura.

- Ajudante, descarrega os dois sacos e as grades das galinhas. Pede ao cipaio que te ajude!

Na ombreira da porta recortava-se a curvilínea e loira mulher do Fernandes.

- Bons olhos o vejam, senhor Sila. Há tanto tempo... Está zangado comigo?

- Mas não, D. Lurdes! Muito trabalho, sabe...

Sila subiu as escadas de cimento, aproximando-se, sem conseguir desviar os olhos da fêmea.

O vestido azul de ramagens colava-se-lhe às formas.

- Mas entre, entre! Beba qualquer coisa. Deve estar fatigado de guiar por essas picadas fora e com sede. Sente-se naquela cadeira, enquanto lhe vou buscar uma bebida.

O comerciante, balbuciando desculpas e agradecimentos, foi entrando, enquanto revolvia nas mãos o bastão colonial. Sentou-se num sofá.

A anfitriã dirigiu-se à cozinha balouçando as ancas. Pouco depois, equilibrava num tabuleiro duas garrafas de cerveja, dois copos e uma taça com ginguba. Pousou a bandeja numa mesa em frente do convidado e serviu os copos de cerveja. Dobrou-se, deixando que lhe visse, através do decote, o vinco dos seios, erguendo o rosto num desafio. Disfarçando o embaraço que a mulher lhe provocava, o Sila emborcou de um trago metade do líquido. A mulher do administrador sentou-se em frente e, recostando-se, cruzou as pernas de tal modo que o vestido lhe subiu alguns palmos acima do joelho, dando a ver as coxas bem torneadas, ao mesmo tempo que saboreava a cerveja, olhando o Sila bem dentro dos olhos.

Sem uma palavra, Sila tentou fugir àquele olhar, mas os olhos desobedientes percorreram as pernas de Lurdes adivinhando o que escondia para além do que o vestido mostrava.

Como se tocado por uma brasa em lugares recônditos, a dor sobreveio, escorrida em gotas de suor pela testa.

O sexo endureceu, provocando repentino volume nas calças que a mulher percebeu. Quando aconchegou os olhos nessa parte, o seu desejo brilhou, transmitindo-o imediatamente ao Sila. As faces, quentes de excitação, obrigaram-no a engolir o resto da cerveja, como se com isso o fogo fosse nada.

Lurdes aproximou-se. Passou-lhe lentamente as pontas dos dedos no pescoço. Percorreu-lhe os ombros espadaúdos a um tempo, suave como serpente, escalando o ouvido com a língua rosada, febril...

- Minha senhora, o Sr. Administrador... se nos vê?

A pele do homem arrepiava-se. Não sabia se de excitação, se com receio de que o administrador entrasse. Enquanto balbuciava desatinadas palavras, sentia-se abraçado pela mulher que ardentemente lhe mordia os lábios num desejo em que a língua bailava na boca do macho danças de voluptuosidade, que ela tão-pouco conseguia controlar. Do peito arfante, a voz saiu-lhe : rouca:

- O meu marido só chega logo à noite. Foi tratar de uns assuntos à senzala do soba Munhingo.

Sila sentia-se enlouquecer, enquanto o perfume dela lhe invadia as narinas inebriando-lhe o cérebro, perfeitamente incapaz de coordenar ideias. Entre beijos e carícias, as mãos percorriam o corpo, apertando-lhe os seios de tal forma que ela soltou um gemido mesclado de dor e prazer.

A mulher do Fernandes levantou-se. Pegou na mão do recém-chegado amante e conduziu-o para o quarto que partilhava com o marido. Sila deixou-se arrastar, enquanto lhe tentava desapertar o vestido, sem o conseguir.

Já aos pés da cama, Lurdes tirou o vestido pela cabeça. Acto contínuo, desapertou o soutien e, desnudando-se, ofereceu pela primeira vez ao comerciante o espectáculo de um corpo nu de mulher branca. Comparou-o com o de Isabel e desejou-a. Deitada, a mulher do administrador esperava. Lentamente, tirou a camisa, desapertou o cinto que lhe amparava as calças de caqui e abriu a braguilha, exibindo o sexo, enquanto os olhos se fixavam na região púbica daquela mulher. A primeira branca da sua vida. com um sorriso que lhe aflorava aos lábios, pensou que entre aquela negrura começava uma onda de prazer perfeitamente definida em contraste com a cor da pele, o que não acontecia com a negra.

Esqueceu-se de Isabel. Arremessou-se contra aquele corpo de mulher por prazer exclusivo e fácil.

Sobreviera a exaustão. O comerciante deu por si a pensar que àquela mulher faltava o ardor feito sensualidade que a negra possuía. A negra emitia a força da selva, o cantar forte das águas do rio entre pedras correndo. O serpentear da cobra no capim a preparar o bote rápido e aniquilador.

À branca faltava-lhe esse cheiro de cabra do mato que a negra tinha quando se contorcia debaixo dele, em golpes de rins constantes, à procura da desejada penetração. Desejo lascivo, o seu.

Fazer amor com Lurdes era acto civilizado. com a negra era atrever-se a domar pacaça. De Isabel ele era o dono e, portanto, possuidor absoluto, possuído também. Caçador e caça, a um tempo. com ela, era mais que fazer amor. Era devorado pelo magma de um vulcão.,

Estes pensamentos invadiam-no enquanto fumava um cigarro, de olhos fechados. Voltou a sentir a cabeça dela sobre o peito. E talvez por isso não se tenha apercebido do ruído da porta, só dando pela presença do administrador quando este tossiu. Como se a vida lhe fugisse, olhou-o. Viu expresso no rosto um profundo ódio à mulher. Virou-lhes as costas e bateu a porta. Instintivamente, Sila deitou as mãos às calças caídas no chão e vestiu-as. A mulher acalmou-o:

- Não te assustes que não há problemas. Ele não faz cenas. É impotente. Sabe que nunca mais me calaria. Tem calma. Depois falo com ele!

E sentada no leito começava a vestir a roupa interior, enquanto Sila, estupefacto com a revelação da mulher, ouvia o ruído do motor do carro afastando-se.

Sentiu repulsa pelas palavras de Lurdes. Um espírito mesquinho, em suma.

Ao chegar a casa, o Canivete tinha para ele um envelope. Dentro, um ofício com o timbre da Administração, assinado pelo Fernandes. A data fixada dias antes, numa intimidação. Ali lhe era ordenada a comparência na Administração para ser ouvido em auto de averiguações. Os habituais cumprimentos, e nada mais.

Virando-se para o ajudante, quis saber quem lhe tinha trazido a mukanda.

- Era do Sr. Chefe de Posto. O branco Matos disse que era para vir ontem, mas não pudeste. Só pudeste vir hoje!

Sila confirmou a assinatura do Fernandes. Irritado, disse ao ajudante:

- Negro de merda, estás a fazer o quê, armado em parvo a olhar para mim? Vai buscar uma cerveja.

Canivete desapareceu a cumprir a ordem.

- ...Impotente o Fernandes, quem havia de dizer, meu Deus? Ao mesmo tempo, deixou-se cair na cadeira de aduelas da varanda. Apetecia-lhe embebedar-se.

O dia da grande prova chegara.

Estava sentado na secretaria da Administração e não conseguia disfarçar o nervosismo que o invadia. Parecia-lhe que o secretário do Fernandes olhava para ele com ar de gozo:

- O Sr. Administrador diz para o senhor Sila entrar! Agradeceu. E levantando-se, ajeitou o vinco das calças de caqui,

encaminhando-se para o gabinete.

- Entre. Entre, senhor Sila. Sente-se nessa cadeira - disse o administrador, com voz fria.

Sentou-se. Olhou à sua volta, enquanto o outro continuava a escrever. Reparou que o gabinete estava decorado com algumas zagaias penduradas na parede, havendo por cima da porta por onde entrara uma cabeça embalsamada de palanca. Trofeu de caça do Fernandes.

Estantes de livros, de portas envidraçadas, encostadas a uma das paredes, completavam o mobiliário, que tinha, como ponto central, a secretária de murilaonde onde o administrador trabalhava sem levantar os olhos. Na parede, pendurada por cima do agente do governo, uma velha fotografia do Carmona ostentando condecorações.

Pousando a caneta, o administrador chamou:

- Quaio!

Emoldurando a porta, o criado não hesitou: -Pronto, Sr. Administrador!

- Entrega estas cartas ao Sr. Chefe de Posto e diz-lhe que não quero que ninguém entre aqui até eu chamar!

O negro recebeu os papéis e depois de um arremedo de continência saiu a recuar e fechou a porta.

Fernandes acendeu um cigarro antes de se reclinar na cadeira de costas altas.

- Como sabe, convoquei-o para que fosse ouvido em auto de averiguações sobre uma queixa que o velho Tchilombo apresentou contra si por causa da sobrinha.

Sila esboçou um gesto, prontamente interrompido:

- Quero, no entanto, afirmar-lhe que o que se passou em minha casa em nada irá influenciar o meu juízo.

Distante, continuou:

- Sobre isso falaremos depois.

Sila adivinhou nele uma cortina de tristeza.

- O tio de Isabel Tchilombo afirma que a rapariga está grávida e que você é o pai. Como sabe, ela foi prometida a um moleque, que já pagou parte do alembamento e se encontra, neste momento, no contrato.

Sila sentiu fugir-lhe o chão debaixo dos pés. As palavras soavam-lhe como do fundo de um poço:

- Sr. Administrador, se for preciso eu caso com ela! Não quero problemas!

Enérgica e surpreendentemente o Fernandes cortou:

- Qual quê homem! Pague o alembamento e contente-lhe o tio. Casar... Você deve casar é com uma branca da metrópole! Agora prender-se à preta. Ora essa!

Sila não queria acreditar no que ouvia.

-Case com uma branca da metrópole. Ponha um anúncio num jornal de Lisboa, se de facto quer casar! Um anúncio no Diário de Notícias, que é onde normalmente se vêem. Costumo lê-los quando o meu pai mos manda da metrópole. Há montes de raparigas a quererem casar por procuração e, sobretudo, com africanistas. Não se prenda a uma negra, que depois arrepende-se. Olhe que é para toda a vida, chiça!

Sila atentava, estupefacto, no que o Fernandes lhe dizia.

Ainda por cima o tipo era um bom homem, apesar da fama que tinha de ser o pai dos negros. Pois se nem sequer se valia da autoridade para se vingar do que se passara com a mulher! Antes que mudasse de ideias, perguntou:

- Mas o Sr. Administrador acha que o problema fica resolvido se eu der uns bois e alguns angolares ao velho Tchilombo? com certeza! Depois pode ficar a viver com a negra, mas trate-a bem. Se um dia casar, ela ainda pode vir a ser criada lá de casa. Não é caso único, homem!

- É boa ideia! -disse o Sila já mais à vontade. - Essa do casamento por procuração não está mal visto, até porque um homem quando morre tem de deixar as bicuatas a alguém. vou pensar nisso do anúncio. vou pensar nisso!

com um sorriso cúmplice, Fernandes retorquiu:

- Case, Sila. Você está com quantos?

- Vinte e nove. Já cá cantam vinte e nove!

- Então está a ver. Já tem idade e situação. Os negócios parecem não lhe correr mal, segundo é voz corrente.

Depois, num tom de voz mais distante, acrescentou:

- Agora é preciso tratar desse problema da preta e do alembamento. Eu digo ao tio dela que você lhe vai dar quatro bois, dois barris, dez cobertores, dez peças de pano e mil e quinhentos angolares, além de devolver ao prometido da rapariga o que ele já tinha pago.

Sila sentiu que o administrador tirava partido da situação para lhe levar mais que o tio de Isabel esperaria, mas como não sabia o que responder, concordou com um aceno de cabeça.

Não lhe agradava o castigo, mas considerava a possibilidade de ter permanentemente na sua cama a rapariga. Além do mais ela ia ter um filho dele.

Um mulatinho.

Pior seria se quisesse casar com uma branca, no que já tinha pensado algumas vezes, mesmo sem o administrador o ter sugerido.

Essa de casar com uma branca por procuração até não Lhe parecia nada mau. Os rendimentos que tinha davam para isso.

Continuava a comprar gado e, se não houvesse nenhuma doença, dentro de um ano contava ter a manada pelo dobro.

«A negralhada» pensava ele, «continuava a preferir a sua casa comercial.»

Nesse ano a caça também abundava.

Os elefantes dar-lhe-iam bom marfim. Venderia a bom preço. O seu melhor negócio tinha sido a compra de cinquenta cabeças de gado na senzala do soba Muangunda a duzentos angolares cada uma.

O vizinho dele, de nome Manuel Oliveira, também tinha comprado algumas pelo dobro do preço.

Os negros não gostavam muito do Oliveira, talvez por ser bruto. Tratava-os mal. Roubava descaradamente na balança e nas contas.

Muita da popularidade de Sila resultava dos batuques que organizava na senzala e onde corria o vinho e abundava a carne de caça. Como adorava o som do goma e do chingufo a retorcer a negralhada toda desde o mais miúdo ao mais velho! Aquela gente gostava dele. Por isso se admirava que o velho Tchilombo tivesse feito queixa ao administrador. Grande sacana! O tipo queria era ganhar umas coroas com ele, estava bem à vista. A ele não lhe desagradava a negra na cama.

Interrompeu os pensamentos quando o administrador lhe disse:

- Sobre o que se passou, peço-lhe que não diga nada a ninguém. Poria em causa a minha reputação e isso naturalmente acarretar-me-ia perda de prestígio. Esta sociedade não perdoa. Também tenho uma história e como apesar de tudo acredito que você é um homem e gosto do que vejo, vou contar-lhe em duas palavras.

»Há uns anos durante uma caçada, fui colhido por uma palanca ferida, que me espetou uma cornada na virilha. O guia perdeu-se. Estava no chão a esvair-me em sangue, o sacana apareceu, e enfiou-lhe um tiro de maneliquer quando o antílope se preparava para me atacar de novo.» Como recordação, ficou-me a impotência e a cabeça do animal que ali está pendurada. Não deixei a mulher, porque tenho um rapaz a estudar em Portugal. É o meu calvário.

A verdade, porém era outra. Tinha perdido a potência só com a mulher. Não conseguia fazer amor com ela desde que se tomara de amores por uma cafusa que era a luz dos seus olhos. Tinha dezoito anos e dominava por completo a vida do administrador. Filha de mãe preta e de pai mulato, transportava nas veias o fogo do inferno. Mal ele sabia que essa obsessão resultava das artimanhas da mãe de Luísa, que com o quimbanda lhe enfeitiçara a existência. Às vezes, Fernandes desconfiava, mas nos braços dela esquecia o resto.

Fernandes encheu de fumo os pulmões. Apagou o cigarro e voltou à realidade.

Sila digeria a história da caça.

Uma onda de piedade na alma. Não esperava ouvir daquele homem as razões da sua desdita. Jurou a si próprio que nunca mais teria nada com a mulher do Fernandes. Evitá-la-ia. Uma cabra. Sentiu que uma grande amizade nascia por aquele infeliz.

- Amigo Sila, desculpe este meu desabafo. Somos homens, caramba! Você compreende-me.

Um silêncio caiu entre os dois. Novo cigarro e Fernandes continuou:

- Eu vou falar com o tio de Isabel e depois digo-lhe como deve ser feito o pagamento. Já sei que ele pede este mundo e o outro, mas eu meto-o na Unha.

Chamou o cipaio.

-Você conhece o soba Tchilombo?

- Sim, Sr. Administrador! - retorquiu o cipaio na posição de sentido.

-Você vai à senzala e diz-lhe que quero falar com ele amanhã de manhã!

-Sim, Sr. Administrador. -Pode ir embora!

- Sim, Sr. Administrador.

Descalço, o cipaio bateu os calcanhares, e saiu do gabinete, fechando a porta.

- Pronto, amigo Sila. O assunto com a negra fica arrumado. Espero não ter problemas consigo no futuro. É justo respeitar os hábitos desta gente. Enquanto eu for administrador desta área não quero ter problemas, percebe?

Sila compreendeu que a conversa tinha terminado. O assunto estava resolvido da melhor maneira. Despediu-se. Da fotografia pendurada na parede, o marechal olhava-o com ar solene.

O peso nos rins começava a vergar Isabel. Já percorria a custo o caminho da lavra até à loja onde vivia com o branco. À cabeça, a bacia de esmalte carregada de mandioca e goiabas. Sila gostava de mandioca assada com bifes de cabra do mato. Isabel sabia disso e, apesar das dores que a castigavam, tinha saído logo de manhã, ainda o dia não nascera, para colher a mandioca. Pela frente, uma hora de caminho e a maldita dor a morder-lhe os rins.

Agora, já no regresso, o Sol ia alto e quanto mais subia, mais a dor insistia. A barriga parecia rebentar-lhe. As outras mulheres a rir diziam-lhe que era um rapaz, se calhar para hoje.

Arrastava os pés calejados pelo carreiro. De vez em quando levava a mão à cabeça com medo de que lhe caísse a bacia ao chão. Já era difícil manter o equilíbrio.

À encruzilhada parou e encostou-se a uma acácia para tomar fôlego. Pensou dirigir-se à senzala, para o nascimento do filho. O branco não queria, mas ela tinha de o parir entre os seus. Uma dor mais forte, mil punhais no ventre, obrigaram-na a tomar a picada que levava ao quimbo onde tinha nascido e onde o seu filho nasceria.

À medida que se aproximava, a esperança aumentava. Apesar das dores em aperto maior, uma grande alegria tomava conta do seu coração.

Era o primeiro filho.

Algumas das mulheres do tio tinham dito várias vezes que uma negra não deve ter filho de branco, mas ela não se importava. Já distinguia o quimbo e o rio. No meio das cubatas, os moleques manejavam fingimentos de zagaias. Uns caçadores. Outros a caça. Como na vida.

O seu filho brincaria daquela maneira?

Os miúdos correram para ela, berrando, a chamar a atenção do povo da senzala.

Algumas mulheres vieram espreitar. A mais velha de seu tio saiu-lhe ao caminho:

- Tcholelepo?

- Tcho! - respondeu Isabel.

- Aka! Me dá os bacia. Eu leva. Você vai mesmo ter o seu filho, hoje! - afirmava a anciã, enquanto pegava na bacia.

Isabel deixou que a outra ajudasse. E pondo as mãos nos rins prosseguiu no caminho. O velho Tchilombo, sentado à sombra da mulemba, perguntou:

- Então você está mesmo muito mal, não é?

- Eu vai ter hoje o meu filho.

Dizendo isto, a negra entrou na cubata do tio, acompanhada pelas restantes mulheres do velho.

O soba virando-se para um homem que estava sentado no chão, ao seu lado, disse:

- Vai avisar os homens do batuque para vir ajudar no parto de Isabel.

Depois, acompanhado pelos dois filhos mais novos, levantou-se a caminho da fogueira, onde numa lata fervia a fubá para enganar a fome. com as mãos apanhou uma brasa de que se serviu para acender a macanha no forno do peche. Aspirou suavemente o fumo.

A noite empurrava a tarde para o horizonte.

A passarada nos arvoredos cumpria o ritual, em conversa que só os meninos e os poetas entendem. Aqui e ali, frente às cubatas, as fogueiras coziam a carne e assavam mandioca. Junto à mulemba, os marimbeiros erguiam tons dolentes da marimba, de chingufo, de goma.

Homens, mulheres e crianças aproximavam-se. Os cabires perseguiam cheiros de comida.

Isabel, acompanhada pelas mulheres do tio, ensaiava passos de dança, embalada pelo ritmo progressivamente nervoso dos tambores. com as mãos amparava a barriga.

- tum. Tumtum. tum!

A negra, suportando o peso do ventre, batia os pés no chão em resposta:

- tum. Tumtum. tum!

Fazia eco ao som dos gomas. A pele de veado respondia em surdina, quando castigada pelas exímias mãos dos tocadores. Lentamente, ainda.

Lentamente também, Isabel requebrava os rins e retorcia-se, ora sobre um pé, ora sobre o outro.

Tambores e chingufos começavam a tomar conta dos corpos e das almas. Uma a uma, as mulheres da senzala saltavam para junto de Isabel, dançando à sua volta, como se a quisessem ajudar a parir.

Já tinha corrido algum vinho e a tchissângua sobrava. Os tocadores, de cada vez que limpavam o suor da testa, bebiam um trago. Trago a trago, o ritmo crescia. O cântico em surdina, saído das gargantas, sublinhava a voz dos tambores. A floresta já se rendera por completo à vontade dos homens. A noite era dona do tempo e as nuvens corriam pelo céu na rota da Lua, em brilho alto.

- tum. Tumtum. tum! tum. Tumtum. tum. Tumtum. tum!

Cada vez mais inebriante, o ritmo toldava o ambiente. Cada vez mais rápido, o castigar das peles vergadas ao bater das calejadas mãos dos negros.

Isabel, ofegante, deixava-se vencer progressivamente pela dor, enquanto bagas de suor lhe caíam pelo rosto, à mistura com as lágrimas:

- Aiué! Aiué! Tatié, mamã ué!

As outras mulheres acompanhavam em coro as exclamações da negra, a emprestarem-lhe coragem. Algumas, já habituadas, riam-se de Isabel e comentavam o sofrimento dela insistindo em dar-lhe coragem.

Os tambores comandavam!

Cabeças vergadas. Corpos dengosos. Rins dobrados, completamente dominados pelo som pagão de um inacreditável ritual. A seiva assistia, privilegiada, àquela manifestação de dor e vida dos homens.

Isabel gritava e chorava ao mesmo tempo, no meio da clareira, enquanto os dançarinos, sublinhando os sons das marimbas e tambores, proferiam gritos de encorajamento.

Tumtumtumtumtum!

tum!

tum!

Tumtumtumtumtumtumtum!

Era agora infernal o ritmo dos tambores. Os sons já quase não se intervalavam entre si, transformando-se num monstruoso rugido. A Lua desapareceu, coberta pelas nuvens em correria, e um trovão seco juntou-se ao som do goma e do chingubo, quando Isabel sentiu a cabeça do filho rasgar-lhe as entranhas, ao mesmo tempo que a senzala gritava com ela, num coro selvagem de mil vozes, o drama da vida.

Os tambores quase se desfaziam em sonoridades, como água de rio caindo a grande altura. Como nas quedas do Ruacaná. O coração parecia querer sair-lhe pela boca. Isabel fez força, agora de cócoras em acto animal, expulsando de si, entre sangue, águas e náusea o filho do homem branco.

A mais nova mulher do seu tio segurou a criança nos braços, presa à mãe pelo cordão umbilical. com a direita, que segurava uma faca de mato, cortou a ligação ao ventre materno, ao mesmo tempo que Isabel, sorrindo e chorando, fazia força mais uma vez, expulsando os restos.

O som dos tambores foi abafado pelo rasgar do trovão abrindo caminho à bátega que não duraria mais de cinco minutos. Ninguém arredou pé. Só as chamas da fogueira sumiram, enquanto a mais velha mulher do soba limpava o recém-nascido que se fazia ouvir em choro de vida.

Um rapaz.

Os presentes sublinharam com palmas compassadas e choraram a natividade. Puseram o filho de Isabel em cima do telhado de capim da cubata do velho Tchilombo. À volta, formou-se uma roda de homens e mulheres. Os presentes deixavam sair o choro, ao princípio dolente, depois convulsivo, saudando a nova vida. Hora de nascimento é hora de tristeza. Hora da morte, hora de alegria.

O soba colocou-lhe em cima do peito um velho osso de galinha e fez as suas rezas. Era mahamba. Os tambores calaram-se e a Lua de novo surgiu no céu. Lua cheia. Prenhe de luz. Da terra exalava o perfume da vida.

No ar, o cheiro a húmus revia-se no filho do branco e da negra.

- Patrão! Patrão!

Sila virou-se, e fixando quem o chamava, deu com seu fiel ajudante e criado que, esbaforido, se aproximava correndo. Debaixo da goiabeira esperou o negro.

- Patrão, está na loja o velho Tchilombo que quer falar contigo por causa de Isabel.

- Que há com Isabel? Onde é que ela está?

Canivete, com a mão em concha, passou o indicador pela testa, e num gesto largo e seco, com um estalido dos dedos, lançou ao chão as gotas de suor.

- Isabel teve filho esta noite no quimbo! O século está lá mesmo para te avisar.

Sila não quis ouvir mais nada. Dirigiu-se para a carrinha:

- Vamos embora. O Ninhe que continue os trabalhos da colheita do milho com o resto do pessoal e depois que leve os sacos lá na loja!

Em umbundo, Canivete deu recado ao outro. Depois subiu para a carroçaria.

Nas mãos do branco, picada fora, a viatura mais parecia uma pacaça aos pinotes que um carro, saltando de buraco em buraco. Volta e meia, para fugir às chicotadas dos ramos das árvores, o negro na carroçaria baixava a cabeça:

- Aka, patrão. Tu vais mesmo muito depressa!

- Baixa-te, Canivete - diábo branco quando o carro se aproximava das árvores que marginavam a estrada.

Deu por ele a pensar como seria o filho. O seu filho! A palavra transmitiu-lhe uma nova perspectiva. Mentalmente repetiu: O meu filho!

De outra dimensão percebeu a voz do ajudante:

- Eh patrão, estás a rir de quê?

- De nada, Canivete. De nada!

A verdade é que Sua estalava de alegria à lembrança do filho. Uma nova sensação, diferente de todas as que até aí havia experimentado. Era o filho dele. Uma coisa que não sabia explicar.

Cada vez mais o pé pressionava o acelerador. Parecia-lhe que o caminho não tinha fim quando, depois de uma curva, surgiu a sua casa: de construção sóbria, tipicamente colonial, um único bloco, com um alpendre a toda a volta com pilares que serviam de suporte ao tecto. Quatro janelas de madeira, distribuídas aos pares entre as duas portas de acesso à residência e à loja. No quintal, cozinha e banho num mesmo bloco, ao jeito de carruagem de comboio.

Na varanda da frente, o velho Tchilombo aguardava a chegada do branco. Sila parou o carro junto ao negro e perguntou por Isabel.

- Está mesmo no senzala, patrão. Teve filho esta noite. O teu filho é mesmo homem.

- Sobe aqui para a frente, século. Senta ao meu lado que vamos no quimbo.

O velho não se fez rogado, e sentando-se ao lado do Sila, agarrou-se com as duas mãos ao pára-brisas. O branco meteu a primeira, arranhando a engrenagem da caixa, e venceu a inércia atirando de novo o carro para a picada a caminho da senzala.

- Nasceu como? Que horas eram? O menino está mesmo bem?

As perguntas sucediam-se sem sequer esperarem resposta. O comerciante virou a cabeça. Canivete olhava-o sorridente e meio embevecido pela cara do branco e pela maneira como as perguntas se sucediam.

Sila não pôde deixar de sorrir com a cara do negro e, desviando-se de um buraco, acelerou ainda mais o veículo. No ar, um rasto de poeira vermelha levantado pelos pneus na picada. Ao longe já se via a cobertura de capim das cubatas. Quando se aproximou da entrada do quimbo, os miúdos nus batiam palmas, vingando a alegria de ser o carro do branco.

Sila travou e a nuvem de pó que o perseguira abateu-se lentamente sobre a miudagem. Canivete fingia de zangado, correndo com eles da carroçaria.

Sila e o velho Tchilombo tinham desaparecido na sombra da cubata onde se encontravam mãe e filho.

O comerciante fechou os olhos tentando habituar-se à penumbra interior.

Um gemido de Isabel saudou-o, enquanto perguntava pelo menino. A mulher mais nova do soba mostrou-lho.

Sila viu, então, uma criatura indefesa, toda nua. só com uma ligadura de bissapas à volta do ventre. Pegou nela e saiu para a claridade. Pôde então ver.

De olhos fechados, inchados ainda, a criança tinha um tom de pele acastanhado, escuro. Os lábios mamavam em seco, à procura de peito materno. As pequeninas mãos fechadas pareciam segurar invisíveis missangas. Virando-o para si, quedou-se em muda contemplação durante algum tempo, procurando parecença. A seu lado, o tio de Isabel olhava Sila, estupefacto, não compreendendo aquela atitude.

Como era possível um branco pegar assim numa criança mestiça, que nem sequer tinha ainda um dia de vida?

Era a primeira vez que via tal coisa. E parecendo adivinhar os pensamentos do velho, Sila disse-lhe:

- Vês, Tchilombo. Este é o meu filho!

Nesse momento, o branco sentiu-se dono do mundo. Sentiu-se mais forte que o leão. Maior que o elefante. Mais esperto que a onça.

«... e digo-te, meu filho, que deves ter muito cuidado com essas mulheres pretas, porque o meu compadre disse-me aqui na aldeia que elas são más e vingam-se quando um branco lhes faz um filho e não lhes liga. Tem cuidado e olha que o teu pai que já é velho e sabe destas coisas, ouviu isso da boca do Sr. Regedor, que também tem aí um filho. Lembras-te do Sr. Pereira?...»

Como poderia a mãe julgar que Isabel lhe poderia fazer mal? Não, sua mãe não sabia realmente como era. E ainda por cima o pai ouviu as opiniões do velho Pereira, cujo filho tinha vindo condenado para o Bié. Afastando os pensamentos, Sila continuou a ler a carta da mãe.

«... Não dizes se o teu filho é parecido contigo. O que eu acho é que tu devias ter escolhido uma branca em vez de estares a fazer filhos às pretas. Tem havido muitas raparigas aqui das aldeias vizinhas que posaram com africanistas. O teu pai ficou muito satisfeito e diz que gostava de conhecer o neto!...-»

Aquela era a resposta à carta em que participara o nascimento do miúdo. com que então o pai ficara satisfeito com o nascimento da criança?

Cerrando os olhos, fez um esforço de memória tentando recordar as feições do pai. Lembrou-se de um velho, embora ainda novo na idade quando o deixara, vergado sobre a terra, de enxada na mão. Curiosamente, só se lembrava do pai assim; dobrado sobre a terra. Um carvalho forte e moreno, mas sempre vergado sobre o odor da terra adubada com estrume.

Pelas narinas dilatadas, o comerciante deixou entrar nos pulmões o cheiro desta outra terra molhada.

Levantou os pés do chão da varanda e acomodou-os sobre o caixote, frente à cadeira onde estava sentado.

Em voo rasante, os insectos, obrigavam-no de vez em quando a dar palmadas na cara e nos braços.

Dobrou a carta da mãe. Meteu-a no bolso da camisa entre o dinheiro.

Ainda não baptizara o filho. Talvez lhe desse o nome de seu pai. Era o mínimo que podia fazer em homenagem a esse velho e dobrado ancião.

Há quatro meses que o pequeno nascera, e só agora pensava no assunto pela primeira vez.

Estava decidido. O seu filho ia chamar-se José Maria como o avô, e António, como ele.

- Isabel!

- Sim, patrão! -? respondeu a negra que trazia às costas o pequeno amparado pelos panos.

- O menino chama-se António José Maria, ouviste? Fica com o nome do meu pai que está lá no puto.

- Sim senhor, patrão! - disse a negra ajeitando contra si o corpo do miúdo.

-Não te esqueças. O meu filho chama-se José Maria, António José Maria!

A negra, saindo pela porta que dava directamente da sala de jantar para a varanda, trazia nas mãos os pratos e encaminhou-se para a cozinha, nos anexos, sem sequer responder.

Sila desarrolhou a garrafa de aguardente e generosamente encheu o copo à sua frente, enquanto com a outra mão sacudia mais uma vez os insectos. Pousou no chão a garrafa.

Ergueu o copo e com a voz já entaramelada pela terceira aguardente que bebia, chamou em altos berros:

- Isabel! Canivete!

Do quintal a voz do ajudante respondeu:

- Patrão?

- Venham cá!

De um trago bebeu toda a aguardente.

Quando os dois negros chegaram, o comerciante disse:

Vão lá dentro e tragam dois copos! Vocês vão beber comigo!

pela face de Canivete passou um ar de satisfação. E desatando a correr para a cozinha, logo apareceu com duas canecas de esmalte que ele e Isabel usavam para beber. Foi mesmo Sila quem generosamente os serviu:

- Vamos lá beber à saúde do menino. Ele chama-se António... António José Maria Sila!

Toldado pelos vapores da muita aguardente, ergueu o copo cheio mais uma vez, enquanto fazia sinal aos outros para erguerem as canecas. A negra olhou-o e sem que o seu rosto revelasse o que lhe ia na alma, correspondeu ao convite. Canivete, todo aberto em sorrisos:

- Obrigado, patrão!

Todos beberam à saúde do «baptizado», filho do branco Sila e da negra Isabel.

A milhares de quilómetros num outro continente a guerra estava acesa. Os alemães arrasavam a Europa. Crianças de todas as idades morriam sob as bombas. O velho continente conhecia a mais temível das guerras que abalara a Humanidade. Para os nazis, Hitler era o deus. Para os aliados, um monstro.

Apesar disso, e praticamente no coração de Angola, entre copos de aguardente velha, o filho mulato de um comerciante era reconhecido e «baptizado».

Duas grossas lágrimas acompanharam o último suspiro de vida do velho Tchilombo. À sua volta as mulheres romperam em berraria. Cá fora, os tambores abafaram o choro do mulherio. As árvores da senzala vergaram-se ao vento impiedoso. As crianças, habitualmente barulhentas, calaram-se, pressentindo o sopro da morte. O velho partiu para um reino distante, deixando, como os bichos da selva, dente e carcaça na mata. Este mistério era cantado pelo quimbanda, rogando aos deuses que acolhessem a alma do velho caçador.

À porta da cubata onde Tchilombo exalou o último suspiro, surgiu a mais nova mulher do sooaf. As mãos sobre a cabeça foram o sinal para o redobrar da intensidade sonora dos tambores. Principiara a festa de óbito que só terminaria dois dias depois. O vinho, a tchissângua e o marufo dariam forças aos homens, mulheres e crianças para impor as danças até à exaustão.

Isabel Tchilombo era a única herdeira, por ser sobrinha do velho e este não ter herdeiros masculinos. O espólio contava com mais de trezentas cabeças de gado e arimbos.

Canivete, porta-voz das notícias da senzala, falou ao Sila da morte do tio de Isabel:

- Patrão, século moreu. O família diz para tu ires no óbito. Sila, surpreso, quis saber:

- Como foi?

- Morreu esta manhã quando o dia nasce. Isabel diz para tu ir lá!

- Ficas a tomar conta da loja. Manda o Ninhe com mais dois homens carregar três pipas de vinho. Quando estiver pronto, chama-me.

Sila sentiu uma profunda tristeza. Muitas tinham sido as vezes que caçaram juntos. Lembrava-se da primeira em que o leão, sob a árvore, esperava homem. O velho avisou-o da emboscada e com um tiro certeiro abateu-o na altura do bote. Ainda hoje ostentava em casa a pele do animal, pregada numa parede, sobre o armário.

Sila perguntou ao ajudante:

- O carro já está carregado?

- Já sim, patrão - respondeu Canivete, antevendo a noite de farra e de copos que marcariam o óbito. Vinho em abundância e batuque.

Sila divisava já as cubatas da senzala. Cá fora, a miudagem entregava-se às mais diversas brincadeiras, como habitualmente. Quando parou o carro, um mulatinho nu como as outras crianças dirigiu-se-lhe de passos hesitantes e abriu os braços.

- Olá, Toni. Anda cá ao pai!

Ao mesmo tempo, estendeu-lhe as mãos, enquanto a miudagem ranhosa fazia círculo à volta deles. O pequeno tentou correr para o pai, mas tropeçou, caindo por terra. Irrompeu em soluços que se misturavam ao choro das mulheres. Sila ajudou o filho a levantar-se, enquanto os moleques riam:

- Tchô! Fora!

No ombro dele, Toni soluçava. As narinas sujas fizeram-no tirar do bolso um lenço para as limpar, enquanto se encaminhava para a cubata do soba. Isabel veio ao seu encontro. Entretanto, os homens haviam descarregado os barris de vinho. Por detrás da mulemba desaparecera o Sol. O vento seco do leste soprou-lhe as folhas. O capim inclinou-se sobre a terra. Parecia que as plantas homenageavam pela última vez o soba Tchilombo. Vindo da mata, o riso da hiena arrepiou o comerciante.

Num soluço cuspiu a raiva vestida de sangue. Ergueu-se do chão possuida de fúria, avançou para Carlos e, de punhos cerrados, esmurrou-o ferozmente.

Sentiu-se então agarrada pelos cabelos e logo de seguida projectada novamente para o chão com o impacte do murro que o amante lhe assestou:

- Sua puta! com que então a querer ver-se livre de mim! Carlos limpava o canto do lábio de onde escorria um fio de sangue.

Dobrou o lenço e de novo o meteu no bolso das calças, ao mesmo tempo que batia a porta nas costas, deixando a amante estendida no chão do quarto.

Madalena -sacudiu no peito o ódio que a dominava:

- Chulo. Sacana. Filho da puta!

Estava farta. Exausta. Aquele homem levava-lhe tudo. Até dinheiro. Tinha de se libertar. Enquanto passava a cara por água, recordava-se dos últimos tempos da sua vida. Viera da terra sem os dezassete anos feitos. Em Lisboa, os primos tinham-lhe arranjado uma casa onde servir. Ali perdeu a virgindade nas mãos do menino Gonçalo. Depois a vergonha. O abandono. Degrau a degrau, pela escada da degradação. O último patamar tinha sido a sua própria venda e o chulo. Estava farta. Acreditava agora que aos dezanove anos surgira uma esperança na sua vida. Tinha respondido àquele anúncio publicado no Diário de Notícias; «Africanista pretende menina entre os dezanove e os vinte e três anos para fins matrimoniais. De preferência, da província. Assunto sério. Juntar fotografia à resposta para a Caixa Postal n.? 2101, Nova Lisboa-Angola».

No anúncio percebera a possibilidade de se libertar daquela vida.

Respondeu e grande foi a sua admiração quando, cerca de um mês depois, recebeu uma carta de Angola, dizendo-lhe que ela tinha sido a eleita. A proposta de casamento por procuração era o passaporte para uma nova vida. Quando o seu amante tomou conhecimento, os seus dias passaram a ser um inferno. Madalena já tinha em seu poder a documentação necessária para o casamento, marcado para dali a três dias. Tinha de fugir de casa para evitar novos confrontos com Carlos. Se Magda a recebesse até partir para Angola...

Meteu meia dúzia de trapos na mala, apressadamente, e depois de se arranjar, saiu porta fora, convencida de que tinha posto uma pedra sobre o desespero. Tinha o direito de ser feliz. Talvez que ao lado desse homem conseguisse o que queria. Era rico, comerciante e tinha uma fazenda lá para os lados de Nova Lisboa, conforme rezava na carta. Assustava-a um bocadinho ter de viver no meio de África, entre os pretos, mas isso não devia ser pior que trabalhar naquele maldito cabaré. Era uma mulher como qualquer outra, e a tantos quilómetros de distância o passado morreria. A última cena de maus tratos aconteceu quando disse ao amante que ia casar com um africanista. Carlos parecia doido quando lhe bateu. Aquele homem surgiu na sua vida ao deixar a casa dos patrões onde tinha sido desonrada. Nessa altura foi bom para ela. Acarinhou-a. Tratou-a. Protegeu-a. Como uma bênção. Por isso o amava. Também foi por amor que se prostituiu, quando Carlos lhe proporcionou encontros com senhores que pagavam bem os seus favores. A certa altura, ela percebeu a verdade. Amava Carlos e suportou. Os maus tratos. O abandono. As outras mulheres. Suportou até ao momento em que ele a quis meter numa casa de passe. O princípio do fim. Depois, a oportunidade de ir para Angola.

Madalena passou o lenço pelo rosto. A poeira da estrada tornou-o acastanhado. À sua frente, a casa onde ia viver. O seu lar. O carro foi rapidamente envolvido pelo pessoal que trabalhava para o Sila. Destacando-se do grupo, o Canivete apresentou-se:

-Fizeste boa viagem, senhora?

Senhora? Olhando para todos os lados só então percebeu que o preto falava com ela.

- Fiz sim, obrigada!

António Sila tratou da apresentação:

- Este é o Canivete. Meu ajudante e cozinheiro.

O resto do pessoal, obedecendo a uma ordem do branco, descarregava dois baús de madeira, única bagagem da mulher do Sila.

Antes de entrar em casa, Madalena olhou à sua volta. Reparou no olhar atento e sorridente dos pretos que a observavam. Havia simpatia naqueles rostos. Só as feições da rapariga negra, que a olhava atentamente, se mostravam hostis; assustou-se com o olhar. A criança que a preta tinha às costas envolta em panos desatou a chorar nesse momento. Madalena desceu as escadas e encaminhou-se para Isabel Tchilombo:

- Posso pegar no menino?

Isabel, submissa, desapertou o pano e, pegando no pequeno Toni, entregou-o à branca. A criança calou-se. Os olhos muito vivos sorriram às carícias da mulher do Sila.

Isabel pousava demoradamente os olhos no vestido comprido, castanho e com ramagens, que a branca vestia. A inveja desabou-lhe no rosto como um clarão. Sila, de respiração cortada, surpreendeu-se a observá-lo, imóvel. Tinha imaginado o momento em que a mulher conheceria o seu filho e quais as suas reacções. Já lhe tinha dito da existência de Toni. Foi dois dias depois dela ter chegado ao Lobito.

Madalena recebera bem a notícia e prometeu tratar o pequeno como se fosse seu. A expectativa, à primeira vista, não parecia lograda. Contudo, o futuro o diria,

A negra Isabel deixava vir à superfície toda a tensão que lhe ia na alma.

Não se afastava da branca e de Toni. com os olhos, parecia ordenar que lhe devolvessem o filho. Madalena, incomodada, entregou a criança à mãe e encaminhou-se para junto do marido.

O céu cinzento ameaçava com as primeiras chuvas.

Húmido, sufocante, o calor persistia.

Madalena envolvera-se numa toalha de linho, o calor insuportável obrigou-a a tomar um banho na improvisada casa de banho, de chuveiro colonial, pendurado no tecto.

Um latão assente em dois barrotes, atravessava o reduzido compartimento de parede a parede. No fundo, um chuveiro. Soubera-lhe bem, ao puxar a corda, que fazia de sistema de abertura e fecho da água, sentir a chuva miudinha a acariciar-lhe o corpo.

Esfregava lentamente o sabão pela anca aveludada, essa mesma que tinha feito as delícias do seu ex-amante. Era particularmente sensível às carícias que lhe faziam nas ancas. Demoradamente, foi subindo as mãos cheias de sabão pelo peito, até tocar ao de leve na base dos seios. Como se à frente tivesse todo o tempo do mundo. Os dedos iniciaram uma lenta carícia nos mamilos rosados e pequenos de adolescente. Esfregou-os languidamente. Sentiu um frémito de prazer a percorrê-la. Um arrepio mais forte levou-a a abrir de novo o chuveiro. A água que caía adiou a voragem.

Como seria o marido na cama! não lhe desagradava o homem com quem casara. Moreno. Entroncado. Olhos castanhos que tinham calor. Os lábios carnudos transmitiam desejo. Ainda não o conhecera como macho. Desde a sua chegada ao Lobito até aquele momento haviam-se limitado a trocar alguns beijos mais ou menos insípidos, como convinha a um casal que não se conhecia bem, apesar de marido e mulher.

Esta seria a sua noite de núpcias.

Dobrou a toalha e depô-la nas costas da cadeira.

Exausta, de tão longa viagem. À chegada, fora-se entretendo a arrumar o pouco que trazia nas malas. Agora, esperava pela noite. A primeira em que se deitaria nua.

Sila fez deslizar os lençóis para os pés da cama e com os olhos de desejo percorreu aquele corpo de mulher branca. A segunda na sua vida. A verdade é que lhe agradavam aqueles seios erectos de adolescente em que despontavam dois mamilos pequenos e tesos. Movimentavam-se as ancas. Lentamente. Nos lençóis. Como convite silencioso. Enquanto as mãos dele agarravam as suas. Em gestos rápidos. E violentos. O corpo da fêmea, desde os seios aos pêlos que enegreciam o sexo de Madalena. Achou-a bem proporcionada. Um corpo jovem e branco. Da cor do linho.

Louco de desejo, deitou-se em cima da mulher. De uma só vez introduziu-lhe o sexo. Ela gemeu. Cerrou os olhos negros e vivos. Isso serviu ao Sila como sinal para iniciar os movimentos rápidos da cópula, enquanto a alma se consumia em chamas de luxúria. Animalescamente, não sentindo a mulher a dar os primeiros passos no caminho do prazer. E tão depressa assim a abandonou. Sabia que não era virgem. Ela dissera-o. Talvez por isso, a raiva de que estava possuído.

Madalena olhou o marido com tristeza. As faces ardiam-lhe. Doíam-lhe as entranhas. Apesar de ter conhecido outros homens, nenhum tinha sido tão brutal, indiferente. Sonhara uma primeira noite de casada. Sila virou-se de costas, enquanto puxava os lençóis para a cabeça. Pensou na negra. No jeito com que faziam amor. Na sua docilidade. Paradoxalmente selvagem. Transporte para mundos inexplicáveis.

Madalena, frustrada, virou as costas ao marido. Projectou-se-lhe no cérebro a figura do amante. Sem que o quisesse, lembrou-se da primeira noite com ele. Diferente.

No quimbo, Isabel viu apagarem-se as luzes do candeeiro do quarto do patrão. Apertou ainda mais nos braços o filho, tentando adormecê-lo. Trauteou uma canção que falava do tempo em que Nzambi criou os rios e as matas. O leão e a onça. O homem e a mulher.

- Tu tem filho do branco. Tu é mesmo mulher à toa. É mesmo uma traidora da sua raça. Filho mulato! Eu um dia ainda vai matar esse filho que o branco te fez. Filho de branco não é nada. Não é preto. Não é branco. Filho mulato é pior que cobra. Nzambi só fez o preto e o branco. Não fez mulato!

José Chipindo expressava na sua língua o ódio que sentia por Isabel. A fuga da roça para onde fora contratado tinha sido a única possibilidade de escapar à escravatura em que se transformara a permanente dívida na cantina, de ano para ano. A cantina. Instituição que amarrava. Sorvedouro do dinheiro que os contratados deviam receber no final do trabalho. Na altura de fazer contas o contratado estava sempre em dívida com a cantina. Como única possibilidade de pagamento um novo contrato. O ciclo era vicioso. José Chipindo queria ganhar dinheiro para pagar o resto do alembamento por Isabel. Quatro anos de trabalho duro, na apanha do café e no tratamento do plantio, quando era caso disso. O capataz, sempre de cavalo-marinho na mão, vigiava. O negro de costas vergadas, transportando à cabeça os sacos de ouro negro para os terreiros de secagem. José não se importava com a dureza do trabalho. Era preciso conseguir o dinheiro do alembamento. Enquanto centenas de negros deixavam sair os lamentos da alma, em forma de canção, Chipindo trabalhava mais que os outros. Muitas vezes sentia-se envolver pela saudade da negra. A instantes, redobrava de esforço para que o capataz não percebesse que ele sonhava. Trabalho sobre trabalho, não havia lugar para lembranças.

Um dia, chegou à fazenda um primo de José que lhe contou tudo sobre Isabel. Falou-lhe do branco e do filho mulato. Enquanto escutava, sentia dentro de si um enorme desejo de vingança. A si próprio jurou nesse momento que mataria o comerciante. Uma tarde, cosido com as sombras, deixou-se ficar na cauda da coluna, quando vinha da apanha do café para a fazenda. Tinha nos bolsos algum dinheiro que conseguiu juntar. Deixou-se ficar para trás, quando a noite caía já. Demasiado simples para não funcionar. A verdade é que depois de muitas peripécias conseguiu chegar à senzala, ali próximo do Chinguar. Desde Nalatando até ao coração de Angola. Centenas de quilómetros a pé. Alguns meses de viagem. Muitas vezes matando pequenos animais para sobreviver. Bebendo a água dos rios e das poças da chuva. Dormindo em cima de árvores, quando sentia a proximidade do leão. Outras vezes, pernoitava em senzalas se percebia que eram amigos. Duro, carregado de ódio, José Chipindo recordava esses meses de viagem e os quatro anos de contrato. Sabia que a partir daí teria de andar sempre fugido.

Isabel, com o filho nos braços, olhava estupefacta o prometido. Chorava. De dor. De raiva. Por ela. Pelo negro. Chorava ainda por não entender o ódio de José. Nos lábios um lamento:

- Aiué. Mamã ué!

- Te mato. Um dia te mato. Mato esse mulato!

Gotas de suor escorriam-lhe pela fronte. Transpirava a dor que lhe atormentava a alma.

Isabel Tchilombo sentiu que chegava alguém à cubata onde os dois se encontravam.

- Quem está aí, Isabel? Quem é que grita?

Ao mesmo tempo, Madalena empurrava a porta da cubata e gritou quando viu o negro, assustado pela intromissão, deixar cair a catana sobre mãe e filho.

Num salto, o Canivete, que acompanhava a patroa, atirou-se à figura do ex-contratado, evitando que a catana ferisse mais fundo o pequeno Toni, protegido pelos braços da mãe, que recebeu parte de um golpe no ombro esquerdo. No chão, os corpos dos dois negros envoltos numa luta desesperada. José esgrimia a catana, procurando atingir o outro que, mais ágil e entroncado, lhe segurava o pulso, evitando assim os ferimentos. Madalena, protegendo a negra e a criança que chorava, saiu da cubata. com um pontapé nos testículos, Canivete conseguiu pôr fora de combate o agressor. A alguns metros, a catana manchada de sangue. Outros serventes acorreram e ajudaram a amarrar José Chipindo. com raiva, o auxiliar do branco deu-lhe um pontapé no estômago. Chipindo desmaiou com um urro, esvaíndo-se. No exterior da cubata, Madalena segurava Toni ao colo. A criança sangrava de um golpe que lhe traçava o peito desde o ombro esquerdo até à barriga. Isabel Tchilombo sangrava abundantemente do golpe no ombro. Toni chorava assustado. Apesar de parecer profundo, o golpe não era mortal, pensou Madalena enquanto prestava os primeiros socorros. Canivete tratava de Isabel.

Sila tinha ido nessa manhã à cidade tratar de negócios. Só a altas horas, ao regressar a casa, teve conhecimento do acontecido. Pegou na caçadeira para matar o agressor, fechado na cubata onde tudo se passou. Madalena, porém, conseguiu dissuadi-lo.

Sentado numa pedra, José Chipindo observava os outros presos. Atentamente, seguia os movimentos dos cipaios que montavam guarda.

Na mão esquerda, seguravam o porrinho. Na outra, a catana e o chicote.

Eram muitos os negros que, como ele, tinham as mãos e os pulsos amarrados. Aguardavam.

José, aterrorizado, dobrava, a cabeça entre os joelhos. Na cara, os vestígios da tareia que os ajudantes do comerciante lhe tinham dado.

Da porta que dava acesso ao pátio interior da Administração, um velho cabo dos cipaios gritou para que trouxessem José. Dois auxiliares dirigiram-se ao prisioneiro:

- Tupariowe! Põe-te de pé!

Cumprida a ordem, os três caminharam para a porta. No corredor, o contratado viu o branco Sila. Falava com o administrador Fernandes.

- Entra para ali! - disse o cipaio.

Chipindo obedeceu. Atrás, os guardas seguiam-no como duas sombras negras. Minutos depois, entrou na sala o administrador.

- Você ia matando o filho do branco e a tua patrícia. O branco Sila, porque é um branco bom, não quer que tu fiques preso. Vais voltar para o contrato, lá no norte. Se voltas a fugir, eu vou mandar-te para o Bié e ficas preso lá na colónia penal toda a vida!...

O negro quase não queria acreditar. A medo, dos lábios, saiu-lhe um agradecimento.

Voltava para o contrato. Sempre era melhor que a colónia penal do Bié onde os cipaios davam porrada de manhã à noite, conforme tinha ouvido alguns dos presos contar no pátio da Administração.

- Chama aí o branco!

O cipaio que estava à frente dele, depois de receber a ordem do administrador, dirigiu-se à porta:

- Patrão, faz favor, o Sr. Administrador está a chamar!

Na ombreira da porta do gabinete surgiu Sila. Depois de pedir licença para entrar, com os olhos raiados de sangue disse ao prisioneiro:

-Tu não devias ter feito aquilo, Chipindo. Ias matando o meu filho. Se o tivesses feito, matava-te. Toma bem cuidado: nunca mais apareças à minha porta, porque, se o fizeres, enfio-te um tiro de zagalotes na barriga. Percebeu, seu negro de merda?

Enquanto isto, Sila fechava o rosto à expressão de ódio, tentando controlar-se. O negro, a medo, prometeu:

- Sim senhor, patrão. Eu não volta mais. Mi desculpa mesmo... O Fernandes não o deixou continuar e ordenou que levassem dali

o preso. Depois olhou o Sila:

- Sou seu amigo e vou fazer de conta que não ouvi o que disse ao preto, mas pode ter a certeza de que se alguma coisa lhe acontecer, provocada por si e enquanto eu for administrador nesta zona, o meto na cadeia para toda a vida. Entendeu?

Mordendo os lábios, o comerciante fez uma pausa, enquanto os músculos dos maxilares se contraíam, alterando-lhe a expressão:

- Percebi. Compreendo perfeitamente que me tenha ódio. Só que não tenho culpa de que Isabel goste de mim e eu dela. Eu não quis fazer-lhe nenhum mal, Sr. Administrador, e devo dizer que se mandasse o punha já em liberdade. Isso não significa que eu tolere que façam mal ao meu filho. Uma vez que estamos sós, já agora também lhe quero dizer que compreendo porque lhe chamam o pai dos negros. Também compreendo que você não me grame pelo que se passou entre mim e a sua mulher, só que eu não tive culpa nenhuma. Foi ela quem me desafiou. Um homem não é de pau!

No rosto do Fernandes, a raiva de que estava possuído ao ouvir as últimas palavras do comerciante. Deu-lhe razão intimamente. Era ela quem se portava como uma puta. Talvez por culpa dele. Que merda de mundo, pensou o administrador, enquanto acendia um dos caricocos que tirou da cigarreira.

-Acho que deve ir ao hospital buscar o seu filho e a negra que já devem estar tratados.

Dizendo isto, começou a escrever, baixando a cabeça. O Sila saiu, fechando a porta atrás de si, sem se despedir.

Madalena, sentada a seu lado na carrinha, tinha nos braços o pequeno Toni. Sila, absorto em pensamentos, não tirava os olhos da estrada, desviando-se dos buracos. Na caixa de carga ia sentada Isabel ao lado de Canivete. De vez em quando, gemia com as dores provocadas pelo ferimento no ombro. O pequeno adormeceu ao colo de Madalena, que por seu turno pensava no negro Chipindo, traído por Isabel, na sua esperança mais funda. Na vida e no amor. Amor que ela ainda não tinha conseguido do marido, nem tão-pouco José Chipindo de Isabel.

Sob os rodados, uma nuvem de pó erguia tonalidades de fogo. Folha a folha, cada emoção entontecia no vento. Caindo leve. Esfriando o coração.

com orgulho, Sila indicava à mulher o limite das terras que constituíam a sua fazenda:

- Lá ao fundo passa o rio. Aí termina o meu terreno. É onde o gado vai beber!

com o braço estendido apontava a corrente de água que marginava parte da fazenda. De cima do morro a visão era imponente. À esquerda do ponto onde se encontravam, a mata, mais ou menos densa, onde a onça vivia à vontade. Para a direita, a dois quilómetros do morro onde os dois se encontravam, a casa de adoube, a cacimba e os dois armazéns para guardar milho, feijão e outros artigos.

Parado à porta de casa, o velho «calças-arregaçadas». A poucos metros, os anexos onde dormiam os trabalhadores da fazenda e a cubata. Aqui e além, manadas de bois gentios ruminavam o capim fresco que rompia do solo acastanhado. Três cães rafeiros sacudiam as caudas à volta do pastor, que na mão esquerda segurava uma longa e nodosa vara de goiabeira para tocar o gado. Na direita, porrinho e zagaia. A cabeça enrolada num pano. À volta da cintura, um outro pano de cor indefinida protegia-lhe o sexo. O tronco nu mostrava um corpo de ébano magro, mas bem constituído, habituado às lides da caça e à vida no mato.

Madalena olhava tudo isto, não conseguindo evitar a sensação do poder. A fisionomia do marido transmitia-lho também. Era o que se podia considerar um branco abastado. A loja perto da senzala onde comerciava com os negros fazia do Sila um dos comerciantes ricos daquela zona. Madalena não sabia que grande parte dos terrenos onde o gado pastava e tinha as plantações eram da negra Isabel. Herdou-os do tio quando este morreu. Alguns dos arimbos encravados no meio do terreno de Isabel foram comprados pelo comerciante aos seus proprietários. Sabia que alguns comerciantes nem isso faziam. Simplesmente apoderavam-se das terras. Quando os negros reclamavam, faziam-nos calar. Tudo servia, desde a denúncia para o contrato, até ao desaparecimento puro e simples. Sila achava isso injusto, mas sabia de alguns brancos que o tinham feito. Os negros falavam muito do Pires e do Amadeu, comerciantes que viviam a poucos quilómetros da sua fazenda, na direcção do Huambo. Talvez por ter pago bom preço pelos bocados de terra que comprara aos negros, estes o tratassem com respeito. Sabia-se respeitado nas senzalas das imediações. Eles passavam palavra sobre a sua maneira de ser, tinha a certeza. Madalena, por seu turno, sentia o poder do marido, mas não conseguia identificar-se com aquela terra acastanhada, nem com a mata, o calor ou o cacimbo, com o riso da hiena ou mesmo com o rugido do leão, coisas a que o marido parecia dar muito valor. E nem sequer suportava o cheiro a catinga que os negros exalavam. Para o Sila, tudo isso era África e não se explicava. Sentia-se.

Para Madalena tudo aquilo lhe provocava uma angústia permanentemente recalcada. Pagava esse preço pelo seu passado. No alto do morro, a mulher via as nuvens passar em louca correria por cima da sua cabeça, num eterno jogo de escondidas com o Sol. Cada vez as nuvens eram mais negras. Traziam chuva. Uma bátega caiu de repente e durante alguns minutos, sem conseguir afastar o calor que se fazia sentir.

Sua pôs-lhe na cabeça o capacete colonial e puxou-a para si, prendendo-a pela cintura. Procurou com os seus, os lábios dela. Madalena correspondeu ao beijo do marido enquanto pelas narinas lhe entrava o intenso cheiro a húmus, o suor da terra molhada. Odor vivo. Vida que também ela sentia nas entranhas. Estava grávida daquele homem com quem vivia há pouco mais de um ano, que apesar de tudo conhecia mal, mas por quem sentia gratidão. Gratidão pelo que lhe dera e pelo filho que lhe crescia no ventre.

O pequeno escutava com atenção as palavras da mãe que lhe contava a história dos Mukuanhocas.

Isabel explicava que os Mukuanhocas tinham vindo de muito longe, dos Ganguelas. Eram emigrantes que se infiltraram nas terras dos Mulondos, onde passaram muitos anos sem regalias nem prestígio, sendo escravos daquele povo. Cansados de serem mandados pelos Mulondos, e para terem os mesmos direitos deste povo que tinha muito gado, resolveram pôr, num dos locais de passagem das manadas, uma velhinha sentada, mas coberta com uma pele de onça.

Toni imaginava o tamanho da onça, que tinha dado uma pele tão grande para cobrir uma velhinha, e com este rápido pensamento aninhou-se ainda mais nos braços da mãe, enquanto esta prosseguia:

- Os boi que passava por ali assustava-se e fugia por causa do cheiro sacudido da pele de onça que cobria a velha ganguela. Então os pastores procuraram a fera, e quando descobriram o vulto com pele de onça atiraram com zagaias, matando a velha, sem saberem que se tratava de mulher.

»Os Ganguelas revoltaram-se pelo crime e exigiram uma indemnização em cabeças de gado, espaço na terra e os mesmos direitos dos que já lá estavam. Os Mulondos para evitarem uma guerra, deram-lhes o que tinha sido pedido mas puseram-lhes o nome de Mukuanhocas, que na língua dos mulondos quer dizer: espertos.

Isabel, enquanto contava a história dos Ganguelas, seguia atentamente as expressões do pequeno Toni.

- Mamã, onde ficam os Mulondos?

- É perto. É na Huíla.

Toni, com entusiasmo, voltou à carga:

- E lá tem onças?

- Tem mesmo. Grandes, do tamanho do boi - explicava a mãe que embalava nos braços o pequeno, enquanto o Sol, como ogiva de sangue, se escondia na mata para passar a noite.

Isabel estava só na varanda da casa do branco. O Sila tinha ido a Nova Lisboa levar a branca a parir.

Cinco noites haviam passado.

Isabel recordava-se do nascimento do Toni na senzala, quando o batuque era forte e a noite de dor. Teria a branca mais sorte. O filho dela nasceria no hospital do Huambo. As brancas não eram capazes de ter os filhos sozinhas na mata.

Aconchegou melhor nos braços o filho adormecido, enquanto bem lá dentro sentia raiva pela branca e desprezo pela sua fraqueza.

Nesse momento, Sila tomava conhecimento de que lhe tinha nascido um rapaz. A mãe e o filho estavam bem, dizia-lhe a enfermeira. O segundo filho do comerciante vinha à luz do dia no hospital do Huambo. Sem saber bem porquê, sentiu-se comovido. Era uma sensação diferente. Um nó no estômago. Chegou-se à janela da sala de espera e olhou. Lá fora, a chuva começava a cair levantando pó da rua, enquanto uma trovoada bem forte se fazia ouvir.

Um calor opressivo fê-lo suar. A chuva desapareceu da mesma forma como tinha começado.

- Sente-se mal? - perguntou a enfermeira. Sila reencontrou-se:

- Não! Foi uma tontura por causa deste maldito calor. Se calhar é paludismo.

Sorriu, envergonhado com os seus pensamentos. Se lhe havia nascido um filho que direito tinha ele de se sentir mal disposto? Não era motivo para alegria, esse nascimento?

Depois de enxugar o rosto com o lenço, perguntou:

- Posso ver o meu filho?

A enfermeira conduziu-o em direcção ao quarto onde estava a mulher:

- Um belo rapaz. Forte como o pai. Parabéns!

Sila, olhou o berço coberto com uma rede de mosquiteiro. Levantando o fino tecido, espreitou. Palmo e meio de gente olhava na sua direcção, atentamente, como se reconhecesse aquele rosto. O comerciante estendeu-lhe um dedo e dirigiu-o à mãozita do recém-nascido. Ao contacto agarrou o dedo do pai, dando de pronto início a um choro convulsivo.

Madalena, numa voz cansada, perguntou da cama onde estava deitada o que se passava. O marido respondeu-lhe:

- Não é nada!

Ao dizer isto, sentiu uma enorme amargura. Bruscamente retirou a mão e a criança calou-se.

Sem desviar os olhos do recém-nascido, baixou a rede do mosquiteiro deu um passo atrás e perguntou à mulher:

-Como te sentes?

Madalena, com profundas olheiras num rosto macilento, informou-o numa voz cansada:

- Não muito bem. O parto não foi fácil. Estou cansada!

Respirou fundo e perguntou ao marido:

- Gostas dele?

Sila disse-lhe que sim, sem no entanto tecer comentários. Madalena percebeu que o marido não estava grandemente entusiasmado com o nascimento deste filho. Sem perceber bem porquê, veio-lhe à memória a imagem de Isabel Tchilombo e do pequeno Toni.

Os olhos humedeceram-se-lhe.

Áurea era a sua estrela. Tinha uma família, e tal como muitos dos brancos daquela sociedade também ele agora era respeitado. A burguesia branca comandava a economia naquela região. Pertencia-lhes a maioria dos estabelecimentos comerciais e armazéns. Alguns exploravam a venda de contratados para os campos de café e do algodão. Muitos impunham-se como agricultores e criadores de gado. Outros, à custa de negócios pouco claros, e que o Sila não entendia muito bem, faziam fortuna e conseguiam construir prédios em Nova Lisboa, terra que Norton de Matos acarinhara com especial interesse e dentro de um espírito renovador. Talvez por acção deste homem, uma nova mentalidade se fazia sentir entre os brancos. O administrador Fernandes, de quem o Sila era agora amigo, depois de tudo o que os separara, era um reflexo dessa maneira nova de pensar. Defendia o negro. Tentava pela sua acção conquistar uma posição mais justa para os nativos. Parte da sociedade branca não lhe perdoava. Ele dispunha-se a que o negro tivesse direitos. Intimamente, revoltava-se com as histórias que ouvia contar sobre os roubos que alguns comerciantes faziam descaradamente aos indígenas. Sila conversava muitas vezes com Fernandes sobre isso. Falavam também da miséria que assistia à vida de muitos dos portugueses lá no «puto». Lembrava-se bem dos anos da lavoura, ao lado do pai, em Trás-os-Montes. Trabalhar para os outros com a terra arrendada e a filharada a pedir o pão, sem entender que às vezes não era possível arranjá-lo com a frequência que o seu progenitor desejava. Isso mesmo o agitava constantemente. Recordava-se da vergonha que sentia a sua vizinha lá na terra, a viúva do Matias, quando pedia para lhe decifrarem os gatafunhos que o filho escrevia do Brasil. Algumas vezes ajudara a ler as cartas que a velha recebia, traduzindo-lhe as histórias e as saudades do rapaz à procura da fortuna, do outro lado do mar.

Sem entender bem porquê, achava desumano que as pessoas não soubessem ler. Não era justo devassar a intimidade da vida de cada um, só porque não percebiam as cartas que recebiam, lá na terra.

Afinal, só agora compreendia que não eram só os seus concidadãos. Também naquela terra, que ele escolhera para viver, acontecia o mesmo com os indígenas, que nem sequer cartas recebiam. Percebia que existiam diferenças entre esses seus compatriotas e os negros de Angola, muito embora se aproximassem na miséria em que viviam, se bem que de maneira diferente. Era um contraste flagrante, mas paradoxal. Pensava muito nestas coisas. Sila era um observador atento da realidade que o cercava. Admirava-se profundamente com as histórias que os negros contavam entre si e transmitiam de geração em geração, tal como na terra dele. Todas as histórias contadas pelos negros tinham um fundo moral e quase sempre as personagens eram animais da selva, que coabitavam com o homem, os rios ou até mesmo com zambi.

As histórias de caça sensibilizavam-no particularmente. Muitas tinha-as ouvido da boca fiel de Canivete, que por sua vez as conhecia, contadas pelo tio ou pela mãe. Admirava-se da organização familiar dos indígenas, que reconheciam mais importância aos sobrinhos que aos filhos, pelo menos nalgumas senzalas e povos.

Sila deu por si a pensar no filho recém-nascido e jurou que ele havia de ser alguém. Ele e o irmão mais velho. Os seus filhos conseguiam o que ele nunca alcançara: estudos! Para isso, era preciso viver numa cidade que não Nova Lisboa, de que ele não gostava! Exigia a si próprio um preço alto, porque adorava a vida no mato mas estava decidido. Quando os filhos alcançassem a idade, mudar-se-ia para a cidade. E logo a constatação de que o nascimento daquele filho já lhe exigia sacrifícios. Abdicar do que mais gostava. A vida livre. Quando Toni nasceu, nem sequer tinha encarado a possibilidade. Só agora se lembrava do seu outro filho. O primeiro. Fruto de um amor que não conseguia entender, mas que estava vivo. Aquela negra submissa, mas ao mesmo tempo orgulhosa. Aquele corpo que ele não se cansava de olhar deitado nos lençóis. As risadas nervosas que Isabel deixava sair dos lábios nessas alturas e as expressões que ele não entendia quando faziam amor. Recordava-se de algumas das coisas que compartilhavam. Dos banhos que tomavam nus, deixando os corpos secar com as carícias quentes dos raios do Sol, que também afagavam o capim onde, ofegantes, se deitavam na margem do rio.

Há quanto tempo não se deitava com Isabel?

Praticamente desde que casara com Madalena. A euforia do casamento fizera-o esquecer a companheira de outros tempos. Durante um ano aproximadamente adivinhou a negra à sua volta, sem um queixume. Entregava-se às vezes em cima dos sacos de milho do armazém, às escondidas de Madalena, e sem um protesto. Sempre que ele queria. Agora, longe, afloravam-lhe à mente os momentos de tristeza que sentia no rosto da negra, mas a que não ligara. Recordava-se também do sorriso de felicidade desenhado no rosto negro quando ele brincava com o filho mestiço. Sentiu crescer-lhe o desejo de a ter a seu lado. De repente, rodou sobre os calcanhares e dirigiu-se ao quarto do hospital onde estava a mulher e o filho recém-nascido. Comunicou-lhe que ia regressar à loja e que ela ficaria depois em casa do administrador Fernandes, por uns dias, para convalescer. Tinha-os recebido lá em casa, antes do parto. Eram amigos, e nunca o Sila nem a mulher do administrador tinham falado mais do passado. Era como se nada tivesse acontecido.

Sila percebia que as relações entre o administrador Fernandes e a mulher se pautavam simplesmente pelo conservadorismo daquela sociedade, que nunca encararia de bom grado uma separação dos dois. Fernandes era um agente do governo. Tinha de respeitar as regras do jogo e nunca poderia pôr em cheque essa maneira de viver. Ele próprio percebia que mais facilmente a sociedade perdoaria ao administrador a traição, que a coragem de deixar a mulher. Era preciso manter as aparências. Ultimamente, o administrador tinha desabafado com ele. Talvez essa dignidade demonstrada pelo homem tivesse feito com que Sila o respeitasse profundamente. Isso e uma certa dose de culpa, de que ainda se não libertara. Eram turtuosos os caminhos da consciência e da vontade. Naquele preciso momento, o seu desejo empurrava-o para bem longe. Para junto de Isabel. Queria aproveitar uns dias a sós com a negra e o filho mestiço.

As saudades atormentavam-no.

- Não entendo, D. Lurdes, por que o meu marido ainda não me veio buscar. Há mais de quinze dias que se foi embora e estou à espera dele desde ontem. É certo que tem mandado notícias, mas não percebo esta demora.

Madalena falava com a mulher do Fernandes e não conseguia esconder a raiva que a assaltava por saber que o Sila estava sozinho com a negra.

A mulher do administrador tentava consolá-la, com argumentos pouco convincentes em que transparecia algum cinismo:

- Oh, não, minha boa amiga!... Não se preocupe. São os negócios. Você sabe que não se pode deixar as coisas durante muito tempo entregue aos negros. Estragam tudo. Roubam. Embebedam-se. É preciso muito cuidado! Afinal o Sr. Sila cuida da propriedade e não lhe deve levar a mal.

Madalena sentia nas palavras da sua hospedeira alguma troça. Achava absurdo o desinteresse do marido por ela e sobretudo pelo filho recém-nascido. Sempre era o seu filho legítimo. Não o fruto de uma aventura, ou de uma ligação ilícita, como a que ele mantinha com a negra. Não lho perdoaria. Quando o voltasse a ver, dir-lhe-ia as últimas. Disso deu conta à dona da casa onde se hospedara por insistência do marido. Não que gostasse particularmente dela. Ouviu Lurdes perguntar:

- Mas tem alguma preocupação, D. Madalena?

- Não! - respondeu, dando origem a um breve silêncio. A mulher do Fernandes voltou à carga:

- Não me diga que se preocupa por causa da negra com quem o seu marido viveu?

Madalena abanou a cabeça sem responder. Lurdes insistia:

- Se é por isso, não lhe dê cuidados. As negras não contam nas vidas dos nossos homens. São coisas de que eles precisam e usam em determinada altura, mas que deitam fora depois de casar. Nós, sim. Nós é que somos as suas verdadeiras mulheres. Não pense mais nisso. Não passa de uma preta. Só que o Sr. Sila teve o azar de ter um filho dela, e como é boa pessoa não o abandonou. Vai ver que com este filho ele muda. Passa a ser diferente com a negra!

Enquanto exteriorizava os seus pontos de vista, segurava na chávena de chá pela asa, com o dedo mindinho esticado. Dando-se ares de senhora importante, sorvia o líquido a intervalos entre desagradáveis ruídos. Não resistiu à pontinha de veneno:

- Bem, eu estou convencida de que o seu marido é um homem inteligente e não se vai deixar dominar pela negra. É certo que elas são capazes de tudo. Até de feitiçarias, para os prenderem, só por serem brancos. Conheço alguns casos em que os homens chegaram a enlouquecer e de tal maneira, que adoptaram os usos e costumes dos negros e vivem com eles na senzala. Chegam a comer o pirão com as mãos como faz a negralhada...

Madalena olhava a mulher sem entender bem o significado daquilo. Seria possível?

Lurdes não deu tréguas:

- Sabe, são coisas que elas lhes fazem. Acredite, D. Madalena, apesar de eu saber que o seu marido gostou muito da negra, acredito que ainda não tenha perdido a cabeça!...

Lurdes lembrava-se agora das constantes provocações que tinha feito ao comerciante, quando este ainda era solteiro e depois da aventura que tiveram. Julgou que ele fugia por causa de Isabel Tchilombo. A realidade, porém, era outra. Sila jurara a si próprio nunca mais ter nada com aquela mulher. Bastou-lhe a tarde em que fora apanhado pelo marido. O choque fora de tal ordem que se afastara definitivamente. Para isso contribuiu a conversa que mais tarde teve com o administrador Fernandes e que progressivamente se transformou numa atitude de respeito por aquele homem.

Madalena, absorta pelos seus pensamentos e sem saber do acontecido, não dava muita atenção às palavras de Lurdes.

- Está a ouvir-me, D. Madalena? Pareceu despertar com a pergunta:

- Estou sim, D. Lurdes! Retomou o veneno:

- É como lhe digo, eles usam-nas e deixam-nas. Esta negralhada não merece outra coisa. Elas são umas porcas. Até com os feitiços que fazem. Imagine que durante a lua cheia, lhes metem no buxo, o sangue ressequido da menstruação, para os endoidecerem. Conheço alguns casos.

Surpreendida, Madalena inquiriu:

- O sangue ressequido? Mas como é isso possível? ,Que nojo! Lurdes deu-se ares:

- Bem, não é bem assim. Misturam-no com a comida sem eles perceberem. São sempre aconselhadas pelo quimbanda, ou o feiticeiro, ou lá como lhe chamam. Misturam-lhe outras coisas e em pouco tempo eles ficam perdidos de todo. Não vêem outra coisa à sua volta senão a mulher que lhes fez isso. Conheço um colega do meu marido, que vive com uma negra do piorzinho que você possa imaginar, e tudo porque a deixou cozinhar para ele. Filho de boas famílias lá do «puto». O pai até é comendador ou conselheiro, não sei bem. O coitado do rapaz perdeu-se por completo. De tal maneira, que nem de graciosa quer ir à metrópole para ver os pais e a prometida com quem estava para casar e ainda o espera, lá para os lados do Porto.

Madalena passou em revista as últimas atitudes do marido, na tentativa de adivinhar se a negra teria feito alguma coisa ao homem com quem casara e de quem começava a gostar. O choro da criança trouxe-a de novo à realidade. Levantou-se, como que estremunhada. O seu gesto brusco fê-la tombar a chávena de chá fumegante. Esticou o braço mas não conseguiu evitar que o líquido se derramasse na toalha. Esboçou um pedido de desculpas.

- Não se preocupe, eu mando limpar. Vá ver o bebé ao seu quarto. Deve estar na hora da mamada.

Madalena dirigiu-se à porta, por onde nesse momento entrava a criada que a dona da casa chamara. No rosto da negra uma expressão servil, de mistura com um sorriso provocado pelo que tinha escutado da conversa entre as duas brancas por detrás da porta entreaberta.

O comerciante fiscalizava as operações de transporte dos sacos de milho do pátio para o armazém.

Dois pares de negros, de tronco nu, revezavam-se. com as mãos, seguravam os pulsos do companheiro, formando uma espécie de arco, que suportava os cinquenta quilos de peso de cada saco. com o peito, amparavam os sacos. Acompanhavam o andamento com sons profundos, mais do peito que da boca. Dessa forma marcavam o ritmo do trabalho. Era domingo e a loja estava fechada, contrariamente ao que faziam os comerciantes vizinhos. Para o Sila, o domingo era dia de descanso, só que aqueles sacos tinham de ser arrumados porque o céu estava cinzento e podia chover. Sila não podia ir à caça como habitualmente. Sentado no degrau de pedra do armazém, seguia agora distraidamente a azáfama dos carregadores. Pano de fundo para os seus pensamentos.

Depois de ter visto o filho recém-nascido, abalara a caminho de casa, já lá iam uns quinze dias. Viagem infernal. Estradas de lama obrigaram-no a parar diversas vezes, por ficar atolado. Canivete e os outros dois negros a quem dera boleia ajudaram-no a desenterrar-se, o que no entanto o fez chegar a casa altas horas da noite. Isabel, silenciosa, esperava. Interrogou-o com os olhos. Sila participou-lhe o nascimento do menino, sem grandes explicações. A negra, depois de Lhe servir um copo de aguardente, quis saber como estava Madalena.

Cansado, informou:

-Está bem. Vai ficar em casa do Sr. Administrador e eu daqui a uns dias vou lá buscá-la.

Enquanto isto, estendia o braço, puxando a negra para junto de si. Não resistiu à tentação de lhe afagar as nádegas e as ancas perfeitas, marcadas por uma cintura que se mantinha inalterável, mesmo depois do nascimento do filho. Perguntou por ele:

- Está a dormir - disse Isabel.

Sila julgou perceber amargura no tom da mulher.

- Que foi? Está doente o menino?

- Não, patrão! Ele está mesmo bom.

Na sala fez-se silêncio que deu para escutar o zumbido dos mosquitos a rondarem o petromax em voos rasantes.

Sila levou o copo de aguardente à boca e, de um trago, acabou o líquido. Desapertou os botões da camisa. Sentia-se abafar. A noite ameaçava trovoada. Um calor húmido, que fazia colar as roupas à pele.

Isabel libertou-se do braço do branco e dirigiu-se à cozinha.

- Estrela-me uns ovos!

Dito isto, o comerciante continuou a beber a nova dose de aguardente de que se tinha servido, enquanto à memória lhe voltava o choro do recém-nascido quando, debruçado sobre o berço, lhe estendeu o dedo para que o agarrasse. Pareceu-lhe ouvir um trovão. Não tinha a certeza, mas nesse preciso momento a imagem de Toni surgiu-lhe distintamente. Levantou-se e com o candeeiro na mão encaminhou-se para os anexos onde Isabel dormia com o filho. Queria ver o miúdo e compará-lo com o recém-nascido.

Passou pela cozinha onde a negra estrelava os ovos e cá fora abriu a porta do anexo que dava para o quarto de Isabel. Erguendo a luz, encaminhou-se para o divã onde repousava o filho mais velho. Dormia com uma expressão feliz. O tronco nu demonstrava já uma larga caixa torácica, parecida com a dele. As pálpebras fechadas davam-lhe um ar de sereno repouso. Parecia uma criança feliz. O tom da pele mostrava um castanho quase igual ao do seu rosto queimado pelo sol. Toni era o que se pode considerar um mestiço claro. Sentia uma aura de amor à volta da criança. Decidiu que a partir daquele momento o filho passaria a dormir dentro de casa, no quarto ao lado do seu. Era preciso convencer Isabel. Afagou-lhe a cara. Puxou a manta e aconchegou-o, enquanto lhe depunha um beijo na fronte.

Nesse domingo, o comerciante recordava-se de tudo isso. Tinham passado quinze dias e Isabel praticamente não falara, limitando-se a ceder às exigências sexuais do patrão, na própria cama onde dormia com a branca. Passara ali várias dessas noites com Toni a seu lado também. Ia buscá-lo ao anexo depois de satisfazer o branco. Sentia que não estava tudo bem. Sila pensou de repente se não seriam saudades de Madalena. Não podia ser. Ele sentia-se tão bem com Isabel!

Levantou-se da pedra que servia de degrau e espreguiçou-se. Os serventes tinham acabado o trabalho do transporte dos sacos sem ele sequer dar conta.

Toni brincava cá fora com um cachorro e para o irritar puxava-lhe o rabo e as orelhas, sem que o animal desse sinais de revolta. Era doido pelo pequeno. Abria a boca fingindo morder e o Toni, entre gargalhadas infantis, puxava-lhe as patas para o fazer cair. O Sila olhava a brincadeira e ria-se. O céu abriu, enfim, as comportas, e o comerciante com os braços; pegou no filho e atirou-o ao ar. A criança riu satisfeita. O cão saltou, tentando agarrar o pequeno e todos se abrigaram ao mesmo tempo na porta da cozinha. Toni abriu os braços e agarrou-se ao pescoço do pai, que o apertou fortemente contra o peito.

Silenciosa, Isabel observava a cena. No rosto, uma expressão feliz.

A chuva sacudia a poeira dopátio.

O ar cheirava a terra molhada.

Com o filho nos braços, Madalena entrou em casa. Quando passou junto à cozinha, viu a negra que de volta do lume e dos tachos preparava o almoço. Olhou-a. A expressão de Isabel fê-la estremecer. Não sabia se lhe transmitia ódio ou desprezo. Sentiu-se incomodada.

-Boa tarde, senhora!

Madalena respondeu e ia continuar, quando ouviu a negra pedir:

- Aka senhora! Me mostra o minino!... Madalena parou e afastou o xaile:

- Olha!

O rosto de Isabel mudou. Uma expressão alegre, ao olhar a criança:

- Aka é mesmo como a senhora!

Madalena não percebeu se aquilo era um cumprimento ou se correspondia a uma atitude de troça. Lembrou-se que o filho da negra era parecido com o pai e talvez por isso Isabel se mostrasse satisfeita. Não. Elas não ligavam a esses pormenores. Não se preocupavam com as parecenças. Madalena, no entanto, misturou neste pensamento uma outra imagem. A sua chegada a Angola e a promessa feita ao marido. Tratar o bastardo como se fosse seu filho. Perguntou:

- Onde está o Toni?

Isabel olhou-a durante alguns segundos e com altivez respondeu: -Está a brincar com o patrão.

Assim era de facto. Lá fora escutavam-se as gargalhadas dos dois e o leão da Rodésia a ladrar.

Madalena entrou no quarto e disse para Isabel:

- Vai chamar o menino Toni Quero falar com ele.

Minutos depois entravam no quarto o Sila e o filho mais velho que correu para a branca de braços abertos. Madalena pegou-o ao colo:

- vou mostrar-te o teu irmão.

Sentou-se na beira da cama, com Toni ao colo e tirou o xaile ao recém-nascido. A criança fez uma festa na cara do irmão mais novo, que de olhos muito abertos e sorridentes consentia, calado. Sila, de pé, observava a cena e os olhos humedeceram-se. Não resistiu e passando as mãos pelos negros cabelos da mulher em jeito de carícia disse:

- O teu irmão chama-se Eduardo.

Madalena levantou os olhos para o marido e sorriu. Toni continuou a acariciar o irmão. Nesse momento, da porta chegou a voz de Canivete:

- Dá licença, patrão. Eu traz os mala do senhora.

- Põe ali!

Canivete cumpriu e olhou o bebé:

- Aka patrão, o minino é mesmo bonito. Como se chama?

- Eduardo - disse o Sila de novo. E numa voz de comando ordenou: - Manda o pessoal descarregar as caixas da carrinha e levá-las para o armazém.

Canivete saiu, de rompante, enquanto o cão que até aquele momento se mantivera deitado à entrada da porta se levantou e foi farejar o vulto na cama. A certa altura, ladrou e abanando a cauda desafiou Toni para a brincadeira. Os dois saíram do quarto em correria e quase derrubavam a negra que vinha avisar a patroa de que o almoço estava pronto.

 

                                                   A SEIVA

 

Primeiro dia de aulas Madalena esperava frente ao portão do liceu a saída do seu filho Eduardo. A algazarra enchia-lhe os ouvidos. Pela escadaria, em loucas correrias, os caloiros procuravam refúgio certo junto dos pais que esperavam cá fora. No alto da cabeça a habitual «careca» feita pelos veteranos. Era o passaporte de entrada na academia. O estatuto de aluno liceal, uma espécie de bilhete de identidade ou atestado de que eles pertenciam àquele grupo. A «careca» constituía um sinete que alguns usavam com satisfação, mas que a outros revoltava. De qualquer modo, o preço pago pela adolescência. Madalena olhava a multidão de alunos tentando divisar o filho. Eduardo, ao deparar com a mãe, correu-lhe para os braços. No alto da cabeça lá estava a tradicional marca, testemunha de que o jovem filho do Sila tinha passado pelas mãos de algum veterano de capa e batina. Espectáculo todos os anos renovado, no primeiro dia de aulas no Liceu Diogo Cão, um dos dois únicos então existentes em Angola. Os veteranos de capa e batina desciam em manchas negras as escadarias do liceu. Nas mãos, a tesoura ou a máquina de barbeiro à procura dos caloiros fugitivos. Um é agarrado e sujeita-se à praxe. Forma-se um círculo à volta do «tosquiado» e os cabelos voam, deixando a «coroa» a que nenhum escapava.

Madalena acompanhou a cena e não conseguiu evitar o gesto de carinho na cabeça de Eduardo.

- Magoaram-te, meu filho?

O pequeno, com os olhos marejados de lágrimas, respondeu:

- Sim, mamã. Puxaram-me os cabelos com a tesoura. Depois bateram-me na «careca». O Toni ajudou os outros e todos me bateram na cabeça.

Eduardo tinha feito dez anos e esse foi o seu primeiro dia de aulas no liceu. Era um rapaz débil. Cabelos castanhos. Pele muito branca. Olhos azuis. Nesse dia vestia uns calções azuis escuros e uma camisa branca de manga curta.

Toni aproximou-se dos dois, beijando a madrasta.

Madalena correspondeu e quis saber porque permitira que o irmão fosse maltratado.

Toni engoliu em seco:

- Não podia fazer nada. Os mais velhos não deixam. Eles é que mandam. Eu ainda protegi o Eduardo algumas vezes. Eles já sabem que é meu irmão e não lhe vão bater mais.

Eduardo, ainda de olhos humedecidos perguntou ao irmão:

- É verdade, Toni?

- sim. Eu não deixo, vais ver!

Eduardo convenceu-se. O irmão, com os seus treze anos, tinha um físico já bem desenvolvido e musculoso. Olhos vivos e penetrantes permanentemente atentos. Hábito resultante das idas à caça com o pai.

Perguntou a Madalena:

- O pai está em casa ou na loja?

- Está na loja - respondeu Madalena acariciando a cabeça de Eduardo. Toni prontamente informou:

- Então vou ter com ele. vou contar-lhe como foi o primeiro dia de aulas.

Desatou a correr, passeio fora, em direcção à rua principal onde ficava o estabelecimento do Sila.

Madalena ainda tentou detê-lo, mas sem o conseguir:

- Vamos para casa, Eduardo!

Obediente, o rapaz deu a mão à mãe e enquanto caminhava a seu lado recordava as emoções vividas. Sentiu-se importante. Já andava no liceu e deixara de ser o miúdo da instrução primária.

Caminhava para homem, pensou, enquanto via desaparecer ao fim da rua a figura do irmão em louca correria.

Madalena pressentia o marido preocupado. Não percebia porquê. Sila fizera a sua opção pela cidade. A educação das crianças esteve presente nessa escolha.

Elegeu Sá da Bandeira. Uma das duas cidades de Angola onde havia liceu. Para Sila era o abandonar das horas vividas na liberdade do mato, em permanente contacto com a clientela negra e a vida de criador de gado que ele adorava. Uma realidade que Madalena também compartilhara durante alguns anos. O nascimento de Eduardo tinha sido o início da opção. Desde os primeiros tempos que ela concordava com o marido da necessidade de se transferirem para um local onde os miúdos pudessem estudar. Durante a escola primária, ela vivera em Nova Lisboa com os dois rapazes, passando os fins-de-semana no mato. Agora, esta opção pela cidade de Sá da Bandeira. Sila ficara a ultimar os seus negócios e depois juntara-se à família. A cidade tinha nascido da fixação de uma colónia de madeirenses ali radicados há longos anos. Um ambiente fechado, dominado por funcionários de estado-, militares e alguns comerciantes. Agricultores e criadores de gado. Professores do liceu e da escola comercial. Nesse tempo com muito pouca vida social. Um velho cinema, bafiento, casarão com pretensões a sala de espectáculos e equipado na geral com bancos corridos. Os filmes de cowboys eram o prato forte da programação. Em cada sessão, metade da sala era ocupada pelos negros que, em algazarra permanente, vitoriavam os seus heróis preferidos, tomando parte em lutas mais ou menos violentas a preto e branco, em que o «rapaz» e os índios se defrontavam. No fim, o inevitável beijo à deslavada loura e tudo acabava em bem.

A ida ao cinema constituía de facto, para Madalena, a única distracção possível.

As suas relações com o marido desenvolviam-se numa atitude de reconhecimento. De resto, entregava-se por obrigação. Quase mecanicamente. O amor não fazia parte dessa relação. Madalena sentia-se muitas vezes magoada pela maneira distante como era tratada. Respeitosamente, mas nada mais. Por amor do filho o fazia.

Eduardo havia-se transformado num rapaz de dez anos mimado e sempre sob a protecção da mãe. Tirava partido e servia-se disso para alcançar os seus objectivos junto do pai. Madalena tinha-lhe um amor doentio" e absorvente. Sila percebia e por seu lado tentava aproximar-se do rapaz, e sempre que a oportunidade surgisse aproximava-o do irmão, encorajando essa relação entre os dois.

Toni, por seu turno, passava todos os tempos livres a ajudar o pai, trabalhando na loja. Aos fins-de-semana, iam ambos à caça, principalmente de antílope, e uma vez por outra haviam feito esperas ao elefante. Numa dessas alturas, chegaram mesmo a abater dois leões. Nas férias contavam com o apoio de Canivete e de um sobrinho dele. Um esplêndido guia de caça. Sila tinha trazido Canivete para junto de si e pusera-o a trabalhar, com um estatuto especial, como se fosse uma espécie de capataz. Ajudava a tomar conta da fazenda que adquirira e para a qual tinha grandes planos. Ali habitava Isabel Tchilombo, mãe de Toni. A fazenda ficava a cerca de vinte quilómetros da Humpata e era refúgio para o comerciante. Um mundo a que nessa altura pouca gente tinha acesso e onde iniciara a exploração de gado bovino. Explorava a criação, coelhos e algumas pocilgas. Dois bambis domesticados faziam parte da fauna.

Mandou construir uma cavalariça para dois cavalos, com os quais dava grandes passeios em companhia do filho mais velho. Toni era um excelente cavaleiro e aprendera a montar sozinho o Relâmpago, um manso descendente dos cavalos que os bóeres haviam usado na guerra.

Adorava essa vida, o rapaz. "e não menos a caça. Transformara-se num bom atirador. Canivete e o primo ensinaram-lhe a arte de atirar com zagaia.

Entre o pessoal da fazenda tinha a fama de ser um bom caçador, não só de caça grossa, como até mesmo da outra. Era frequente abater, com a espingarda do pai, pequenas cabras do mato em corrida, ou os coelhos que por ali abundavam.

Sila tinha orgulho nisso e afirmava à boca cheia que o filho tinha herdado a pontaria do avô paterno, considerado como um dos melhores caçadores de lobos na região transmontana, onde nascera.

Apesar de algum vazio na sua vida sentimental, Madalena considerava-se feliz. Uma única sombra toldava essa sua concepção de felicidade. Tratava-se de Isabel Tchilombo, que ela sabia ser a companheira de cama do marido nos fins-de-semana ou durante os dias em que ia à fazenda tratar da vida, como costumava afirmar. Não conseguia combater a negra. Mesmo ausente, impunha-se. A prova estava no Toni, a cara chapada do pai. Quando tentava falar disso, Sila furtava-se à discussão e nunca permitia que o assunto Isabel fosse abordado. Madalena aprendeu a viver com isso. Quanto ao resto, nada faltava à sua condição de mulher de fazendeiro abastado. Podia considerar-se uma pequena rainha.

Desabridamente Toni irrompeu pela loja. Sila arrumava peças de chita, chegadas da metrópole. De ramagens azuis e vermelhas, a imitarem rosas, sobre fundo amarelo. O ideal para a sua clientela. As negras usavam aqueles panos à volta do corpo, servindo de vestido. Para as clientes brancas iria expor nas montras esse domingo um lindo pano de linho para lençóis. Ao lado, cetins e veludos. Tinha a certeza de que ficariam pespegadas às montras apreciando a novidade.

A algazarra do filho distraiu-o. Olhou o relógio de pulso. Estava na hora do almoço. Beijou o pequeno na face e disse:

- Sr. António, acabe de arrumar estes tecidos nas prateleiras e depois feche para o almoço!

Toni, nesse momento, tirava rebuçados de um frasco de boca larga que estava no balcão. Fazia sempre isso todas as vezes que, saído das aulas, ia ter com o pai à loja. Estava autorizado a tirar sempre meia dúzia de rebuçados dos que mais gostava.

Sila perguntou:

- Então o teu irmão? O jovem riu-se:

- Levou uns «caldos» na careca. Foi a malta que deu, mas está bem. Chorou só um bocadinho, mas a partir de agora já pertence à malta do liceu.

Para ele tinha sido mais difícil. Ninguém para o defender. Recebera um valente pontapé nas canelas que lhe abriu um lanho. Bofetada puxou murro e os pontapés à mistura deram uma monumental cena de pancadaria entre ele e o seu contendor, mas Toni levou a melhor. com isso conquistou o respeito dos outros. O ferido era o peto, até aí o chefe. Pouco depois Toni e o Beto fizeram-se amigos. Apesar de caloiro, o jovem filho do Sila tinha-se imposto. Mateus, o filho do director do internato, era um dos veteranos. Gostava dos modos de Toni e da sua frontalidade e coragem. Tomou-o sob protecção. A partir daí ninguém desafiava Toni. Ele era um protegido do Mateus, o que lhe dava importância. Andava agora no segundo ano. Avisou os camaradas de que o seu irmão ia entrar para o 1.? ano. Mateus tomou também o irmão de Toni sob protecção. Quando saía da loja com o pai, aproveitou:

- Para o ano tem de me dar uma capa e batina. Entro para o terceiro ano e já a posso usar. Os veteranos já disseram que sim, e portanto o pai tem de me dar o fato.

Sila sorriu satisfeito, e com uma carícia na cabeça, disse-lhe:

- Cresce e aparece, rapaz. Ainda não tens idade para usares capa e batina. Isso é só para os teus colegas do quinto ano. Toni amuou. No íntimo, Sila pensava que o rapaz já tinha mesmo corpo para a capa e batina. Estava da sua altura. Era quase um homem. Pois tê-la-ia.

Isabel Tchilombo foi avisada de que o carro do patrão estava parado lá para os lados da mulola, onde o gado ia beber.

Sila aproveitara o fim-de-semana para transportar o peixe seco para a alimentação do pessoal.

Toni acompanhava-o como habitualmente. Era motivo de grande alegria para Isabel, apesar de quase não conseguir desfrutar-lhe a presença. Logo depois de um pequeno-almoço de garfo, o jovem partia para a caça, acompanhado pelo filho de Canivete. De manhã, era sempre assim e só depois do almoço ela conseguia vê-lo. De qualquer forma, para ela era muito grande o prazer de o saber por perto, já que não conseguia adaptar-se àquela permanente separação. Não percebia muito bem por que é que Toni tinha de viver na cidade em casa do pai e da branca, em vez de viver ali com ela. Quem mandava era o patrão e só lhe restava um caminho: o da obediência.

A negra tentava entender por que é que Toni gostava tanto do pai. Por vezes, tratava-a com indiferença. Da mesma maneira como lidava com o restante pessoal da fazenda. Era fácil de entender. Toni julgava a negra sua ama de leite. Tinha sido educado nessa mentira. O facto de Isabel ser sua mãe era mantido em segredo. O comerciante tinha-a ameaçado para que nunca revelasse a verdade. Naturalmente que Isabel sentia sempre esse receio. Toni sentia pela negra uma grande ternura, sobretudo nos momentos que passavam a sós, a ouvir as histórias que ela sabia.

Uma, mais que as outras, lhe ficara gravada na mente e de vez em quando pedia à negra para a repetir. Era a história da velha que se tinha escondido numa pele de onça. A história dos Mukuanhocas. A negra, embevecida, repetia-a vezes sem conta. Toni sorria aos exageros de Isabel. Quase sempre os momentos a sós com Isabel aconteciam quando o pai andava com o capataz junto do gado. O jovem tinha a sensação de que ele não gostava muito desses encontros. Não percebia bem porquê. Num dos períodos passados na fazenda por altura das férias, depois do almoço, Sila mandou chamar o capataz e ordenou-lhe que trouxesse «aquilo» que tinha comprado ao senhor alemão.

O alemão era dono de uma fazenda, a cerca de trinta quilómetros. Tinha chegado àquela região há cerca de dois anos. Dizia ser muito rico. Toni, ao chegar à varanda da casa, viu o capataz trazendo pela arreata um magnífico cavalo de pêlo castanho e com um olhar meigo. Toni abriu-se num sorriso e olhou o pai.

- É teu. Comprei-to. Gostas?

O rapaz não sabia se devia correr para o cavalo ou se devia abraçar o pai. Optou pelo cavalo. Afagou-lhe a crina.

- Podes montá-lo!

O capataz aproximou o animal do muro da varanda. Toni subiu daí para a sela. Segurou as rédeas que o homem lhe entregou. O animal aguardou o toque de rédea e pela esquerda iniciou o passo. Toni conduziu-o para o mato enquanto o capataz o acompanhava montado em outro cavalo. Os dois afastaram-se da vista do Sila.

Isabel continuou na varanda, depois de Sila se recolher, até os dois cavaleiros regressarem a meio da tarde.

Nessa altura depois de desmontar, Toni correu para a negra irradiando felicidade:

- Gosto muito do meu pai!

Isabel Tchilombo esteve quase para revelar-lhe o segredo.

Sila descansava, sentado no cadeirão de aduelas de barril, colocado na varanda da casa. Olhava os seus domínios. Corria a época das colheitas.

Mulheres carregavam às costas, da plantação até aos carros de bois, os sacos cheios de maçarocas que seriam depois transportados até ao armazém onde ficariam até à desfolhada. Do local das colheitas para o edifício o percurso era íngreme, o que obrigava os animais a um grande esforço de tracção. Cada um dos negros condutores incitava-os com estalos produzidos pela língua e também com assobios. Os animais lá subiam o pó da estrada em direcção ao grande casarão. Ali um outro grupo de negros descarregava os sacos. Um homem, um saco. Às costas. Pelos rostos, o suor, em gotas que não havia tempo para limpar. Corpos vergados ao peso. No armazém, o despejo grão a grão, até ser verde esse monte de pão. Ninguém parava. Bestas, homens e mulheres. O pó castanho fazia-se pele. Invadia narinas e pulmões.

Sila, recostado, observava o vaivém e gostava do que via. Era nas entranhas um homem da terra" Remetia-se às suas origens. Filho de camponês, não conseguia dissociar essa verdade. Ele, no entanto, construirá em Angola aquilo que o pai nunca havido conseguido em Trás-os-Montes: a sua fazenda.

O agricultor-comerciante tinha planos. Nesse ano, a colheita tinha sido excepcional. Ia conseguir moer algumas toneladas de milho no moinho do Pereira. Daí a poucos dias, carregaria o camião com sacos de milho, que, em farinha transformados, seriam vendidos na sua loja para o pirão dos indígenas, base de alimentação local.

Agora pensava que, apesar de tudo, tinha feito bem em ceder às ideias da mulher para se fixar no Lubango.

As coisas corriam-lhe bem. No entanto, tivera uma grande oportunidade, fruto de um mero acaso. A compra, por tuta-e-meia, de uma garrafa de diamantes que um primo de Isabel Tchilombo lhe ofereceu. Tudo acontecera oito anos antes e sem saber porquê essa história voltou-lhe ao pensamento, apesar de não gostar muito de se lembrar.

Custara-lhe dois barris de vinho e ganhara uma fortuna. Mais de quatrocentos contos. Estranha história, de resto. O seu momento de sorte.

José Tchiriquata entrou na loja. Pequeno e entroncado, era reconhecido pelos outros habitantes da senzala como um grande caçador.

Ausências ignoradas. Toda a gente sabia que ele andava sozinho pela mata em longas buscas, seguindo cuidadosamente as pistas dos guelengues, dos olongos ou até das pacaças. Só matava para sobreviver. José Tchiriquata não sabia ao certo a idade. Sabia, sim, que o seu constante deambular -pela selva levava os outros a considerarem-no diferente. Uma espécie de quimbanda. Ele reconhecia que os seus patrícios tinham razão. Aliás, o seu próprio aspecto e as cicatrizes que lhe marcavam a face esquerda davam-lhe um ar assustador. José Tchiriquata lembrava-se.

Ao fim do dia, apressara o passo em direcção a um monte de pedra que sobressaía no meio do capim, em plena chana. Tencionava pernoitar ali. Andava na pista dos elefantes pela zona do Huambo. Quando passava debaixo de uma acácia, a onça saltou. José sentiu o silvo no ar e baixando-se instintivamente apontou a zagaia na direcção de onde o animal pulara. A onça no final do salto espetou-se na zagaia. Na agonia, e varada de lado a lado, conseguiu com as unhas da pata direita cortar a cara do negro. Deixou-lhe gravada a aventura em dois sulcos profundos que iam da sobrancelha esquerda até ao queixo. Ainda hoje conservava a pele da onça. Usava-a. Acompanhava-o sempre como um talismã nas suas longas peregrinações pelo mato. O quimbanda da senzala a que pertencia e de que era soba um irmão do tio de Isabel Tchilombo, fizera cazumbiri na pele da onça. Quando a onça o atacou, foi Sila quem, a pedido de Isabel, tratou Tchiriquata. Conseguiu pôr fim à infecção que mantinha em carne viva o ferimento que nem o quimbanda, nem os velhos da senzala haviam conseguido curar. Foi o comerciante, ao fim de quase dois meses que o deixou completamente curado, só com aquele pozinho branco e o líquido encarnado com que molhava um pano, para depois aplicar na face cortada do negro.

Tchiriquata depressa se restabeleceu. Gostava do branco, não só por isso, mas também porque sabia que o comerciante não era mau. Tratava bem os negros, muito embora de vez em quando desse porrada, sobretudo aos que eram ladrões ou preguiçosos.

As longas horas de sofrimento passadas com a ferida infectada e a maneira como o branco tratou dele ficaram-lhe na memória e por isso nunca o esqueceu. Prometeu a si próprio pagar essa dívida, um dia.

Aquelas pequeninas pedras brilhantes, apanhadas no rio, e que os brancos tanto procuravam, poderiam saldá-lo das contas com o Sila. Quando estivera doente, ele e o branco tinham falado dessas pedras e o negro pressentiu no branco uma grande vontade de as possuir. A certa altura, o comerciante garantiu mesmo que caso as arranjasse, lhas pagaria a preceito. Tornava-se, porém, muito perigoso andar com elas. Se o administrador ou o chefe de posto soubessem, o mínimo que poderia acontecer-lhe era ser submetido a castigo severo e depois preso. Ninguém mais dele saberia. Como com outros homens a quem o mesmo já tinha acontecido. A verdade, no entanto, é que os brancos procuravam essas pedras e perguntavam por elas muito em segredo. Tão em segredo que nunca o faziam ao pé de outros brancos. Essas pedras pequeninas, de cor leitosa, falavam como os deuses.

E Tchiriquata sabia onde colhê-las. Diamantes lhes chamam. com a venda dos diamantes e com a transacção da fazenda, próspera exploração que tivera no mato, juntamente com a loja na região

do Chinguar, havia-se tornado um homem rico e particularmente

importante aos olhos da gerência bancária.

Talvez por isso, Ferreira Marcos dava as melhores informações bancárias acerca do Sila.

O comerciante usufruía dos créditos bancários para desenvolver as suas actividades.

Sila tinha a sua conta pessoal bem recheada. Para o gerente era uma garantia.

Lentamente, Sila impunha-se na sociedade local. Os outros comerciantes procuravam-no, não só para amenas cavaqueiras ao fim da tarde, mas também para falarem de negócios. Frequentemente era confrontado com pedido de favores comerciais a que o comerciante não se furtava, desde que acreditasse no interlocutor. Desta maneira investia no seu próprio prestígio.

Apercebia-se da consideração que os funcionários públicos e os seus pares nutriam por ele. Andava agora pelos quarenta anos, e a curva da prosperidade acentuava-se na largura da cintura. O seu vigor físico, porém, permitia-lhe uma grande entrega ao trabalho.

O guarda-livros da firma, e seu empregado de confiança, dava-lhe conta da ascensão vitoriosa dos lucros. Sila queria mais. Pensava montar uma salsicharia. Criar uma indústria. Falou com o Ferreira Marcos e conseguiu o capital necessário a juro baixo.

Contratou um técnico, especialista na indústria de salsicharia. Mandou vir algumas máquinas não só da metrópole, como também da América. Depois de instalada, seria a única a produzir enlatados e produtos diversos no ramo no Sul de Angola. Tudo corria bem. O estabelecimento e a montagem da fábrica iam de vento em popa. A criação de gado, igualmente. Apesar de ter inúmeras cabeças, comprava cada vez mais aos negros que as vendiam a preço vantajoso.

Nos escritórios, trabalhavam para o Sila seis brancos, sob a direcção do António Ferreira que, oriundo da metrópole, tentava a sua sorte. Percebia-se nele um homem culto. Tinha a mania dos versos. Escrevia. Por diversas vezes falava com Madalena sobre poesia e poetas quando almoçava em casa do comerciante. Madalena escutava o empregado de confiança do marido com muita atenção, deixando-se sensibilizar por tão belas palavras. Sila achava aquilo tudo muito feminino. Apenas nisso desmerecia António Ferreira da consideração de Sila, que às vezes pensava vê-lo vogar noutro mundo que não na terra.

De qualquer modo, era trabalhador e parco o seu descanso. Ia ao escritório sempre que necessário, mesmo aos fins-de-semana, caso chegasse mercadoria ou fosse preciso fazer balanços.

Vivia com uma rapariga mestiça, descendente de um antigo colono madeirense. Chamava-se Teresa. Era uma mulata linda. Aparentava cerca de vinte e cinco anos e o tom de pele moreno não era tão carregado como normalmente costumam ser os filhos de branco e negra.

O corpo bem torneado provocava ao Sila um certo erotismo, pela maneira como deixava que os vestidos se colassem às suas formas de mulher. Como todas as mulheres arraçadas, o sangue quente dotava-a de um ar provocante.

Sila sentia-se muitas vezes perdido quando ela irrompia pelo escritório à procura do companheiro:

- Olá, Sr. Sila. Está bom?

Este «olá» era sublinhado com um lânguido e convidativo olhar que percorria o Sila da ponta dos pés aos cabelos, fazendo-o vibrar. Um sorriso insinuante mostrava uns lindos dentes brancos, perfeitamente alinhados, a servir de moldura a uma língua rosa e húmida, que ela passava pelos lábios carnudos num convite permanente aos mais loucos e sensuais prazeres. Sila chamava num grito o empregado, que não respondia, e numa voz rouca:

- D. Teresa, o António saiu. Por que não se senta e espera por ele?

A rapariga aceitava o convite na ausência de António. E ali ficava, sentada numa cadeira colocada junto à porta. Cruzava as pernas de forma a deixar ver um pouco mais que os joelhos e às vezes, num gesto estudadamente descuidado, fazia com que o vestido lhe subisse de forma a evidenciar as coxas. Os olhos dela procuravam então os do comerciante e, se este estivesse a olhar-lhe as pernas, fazia de conta que só nessa altura tinha reparado no seu desalinho. Sem pressas, puxava então o tecido um pouco mais para baixo, até aos joelhos, enquanto sorria para Sila. A provocação era flagrante. O comerciante entendia-o perfeitamente. Certo dia, tentou a sua sorte. Ela foi dura ao tirar-lhe as ilusões. Ameaçou mesmo levar a queixa ao seu homem e à Madalena.

Sila desistiu da ideia por algum tempo, porque sentia aquele convite permanente. Um jogo de serpente.

Entregou-se mais tarde, tirando partido do evento. O comerciante oferecia-lhe sempre os mais bonitos vestidos que recebia da metrópole. Chegou mesmo a dar-lhe uma pulseira de oiro.

Ferreira não tinha a certeza, mas desconfiava da aventura de Teresa.

Um rugido saiu-lhe das entranhas. Bem do fundo. Toda a carga emocional que até aí suportara, escapou-lhe de repente pelas narinas e pela boca, como se nesse ronco, quase uivo, a vida lhe fugisse. Era o momento do orgasmo. Madalena sentia o macho em cima de seu peito e simultaneamente um quente rio a percorrer-lhe as entranhas. Nessa torrente, toda a emoção de um último empurrão, com um golpe de rins ainda mais para dentro dela. Dois impulsos profundos rasgaram-lhe a alma. Aquilo que sentia agora.

Todos os músculos estavam descontraídos. O seu possuidor jazia agora a seu lado.

Ao olhá-lo teve consciência de que acabara de fazer amor com o empregado de confiança do marido.

Desde há muito que tudo se encaminhava naquele sentido. Era uma atracção permanente que Madalena sentia pelo António Ferreira.

Sila estava em viagem de negócios pelo litoral há mais de oito dias. Conjugaram-se os astros para que surgisse a ocasião. Há muito que o guarda-livros tentava romper a teia que Madalena tecia à sua volta. Tão-pouco o permanente empenho no trabalho adiou o inevitável.

Madalena sentia-se profundamente atraída pela figura daquele homem. Nele encontrava uma capacidade de compreensão que Sila não tinha.

Eram também as longas ofertas e recusas. Os constantes desafios. Ambos sabiam que, mais tarde ou mais cedo, acabariam por cair nos braços um do outro. Aquela tinha sido a primeira. Madalena tinha o corpo em brasa e a pele coberta de gotas, misturas de odores que pairavam nos lençóis e se libertavam pela atmosfera que os envolvia. Os dois corpos prostrados tinham ganho aquela batalha do desejo.

António percorria com os olhos o corpo bem feito da mulher do patrão. Riam-se da festa do amor. Madalena sentia-se como se, de cima de um rochedo, olhasse o mar e um céu sem nuvens.

As saudades eram muitas e ela não resistiu. Apanhara boleia na Humpata, perto da fazenda do Sila, onde vivia.

Agora, no quintal do branco, aguardava que o filho chegasse do liceu. Sentada numa pedra, encoberta pela goiabeira viu chegar a senhora e logo a seguir o António Ferreira. Não a viram.

Os minutos diluíam-se naquele compasso de espera em que deu por si a pensar em Madalena. Nunca tinha gostado dela. Submetera-se à sua vontade, mas não lhe perdoava o casamento com o patrão.

Isabel, agora mais velha, só mantinha relações com o Sila quando este se deslocava à sua fazenda da Humpata. Ali, era dona e senhora na ausência do amante e pai do seu filho. Há mais de três semanas que não via Toni. Por isso, a sua ida a Sá da Bandeira. Encheu os pulmões com o fumo do cigarro que apertava entre os lábios. O morrão lá dentro. Olhou o Sol que percorria as estradas do poente. Tirou o cigarro da boca e cuspiu. O escarro enrolou-se na terra vermelha perante o seu olhar absorto.

Quando deu por si, percebeu que já tinha passado longo tempo, desde a entrada do Ferreira e de Madalena na vivenda.

Olhou as janelas térreas do quarto da senhora e viu acender-se a luz. Ergueu-se. Abriu os panos e enrolou-os à volta dos seios, por cima da blusa. Espreguiçou-se. Caminhou em direcção à janela. As persianas de madeira deixavam passar a luz do quarto. Por uma fresta espreitou.

Lado a lado deitados, António acariciava com sensual perfeição os seios de Madalena.

Isabel conteve a respiração e tentou escutar o que os dois diziam Nesse momento sentiu que o filho a chamava. Afastou-se indo ao encontro de Toni, que correra para ela. Abraçou-a. Beijou-a na cara:

-Olá, mamã Isabel. Já tinha pedido a meu pai que me levasse à Humpata porque tinha muitas saudades tuas. Ele agora não pode, por causa da salsicharia. Estão a montar as máquinas!

Sem permitir a Isabel qualquer resposta, prosseguiu:

- O meu cavalo?

A mãe afastava-o da janela, enquanto Toni sem perceber o gesto, desfiava perguntas, de rajada.

Alertado pela voz do pequeno, no quarto, Ferreira vestira-se apressadamente. Madalena ajeitava os cabelos, depois de vestido o roupão. Dirigiu-se à cozinha. Chegada à porta de acesso ao quintal, viu a negra e o filho em ameno cavaqueio. Chamou-o. Toni correu para ela, deu-lhe dois beijos no rosto. Madalena perguntou-lhe pelo irmão.

- Ficou no liceu. Ainda tem aulas!

De seguida correu para a goiabeira. Recolheu um fruto que trincou. Nessa altura, Madalena perguntava a Isabel o porquê da sua presença. A negra olhou-a com altivez, numa fracção de segundo. Desviou o olhar para a janela do quarto. Fixou de novo os olhos na branca. Chicoteou o cuspo.

- Vim falar com o patrão!

Madalena percebeu que a negra tinha visto tudo. Corou:

- O patrão está na loja. Se quiseres, espera aqui por ele.

- Isabel sentou-se de novo na pedra onde esperara o filho que continuava empoleirado na árvore, comendo goiabas.

Madalena regressou ao interior da residência. Ao amante, disse da sua desconfiança.

-Talvez ela não tenha percebido nada. É melhor eu

Ferreira, quando montava a sua bicicleta até aí encostada ao muro fronteiro percebeu a presença do pequeno Eduardo. Cumprimentaram-se. Ao mesmo tempo, o jovem correu para o irmão. Viu a negra.

-Olá mamã Isabel!

Esta sorriu.

Enquanto pedalava, Ferreira perdia-se em conjecturas sobre os

acontecimentos. Inevitável. Mais tarde ou mais cedo. A longa comunhão de ideias e de contactos com a mulher do patrão, só podia terminar daquela forma.

Tinham sido loucos. Nunca pela cabeça lhes passou a possibilidade de serem apanhados em flagrante, já que o Sila ultimamente andava atarefado com a instalação das máquinas na salsicharia. Até tarde se dava a acompanhar ao trabalho do pessoal Os dois amantes sabiam-no. E daí o à vontade. Que a negra os tivesse visto era impensável. Encontros na casa do patrão nunca mais. Teria de encontrar outra forma. Deu por si em casa. Teresa estava à porta, esperando-o:

-Onde esteve o meu querido toda a tarde? Procurei-o na loja sem o encontrar!

A mulher beijava-o. António irritado com a pergunta, afastou-a:

-Fui tratar de assuntos do patrão!

Teresa era ciumenta. A mistura de sangues dava-lhe uma certa impetuosidade. As dúvidas instalaram-se no espírito da mulata. Fingiu aceitar a explicação.

Madalena perdia-se em mil conjecturas.

Nunca esperou que tudo viesse a acontecer de forma tão repentina. Até aí tinha entrado num jogo de subtilezas. De avanços e recuos. De ambos os lados o receio. O medo de que a sua ligação se consumasse. Não sabia exactamente como tudo tinha acontecido nessa tarde. Só se recordou de ter percebido, num estado quase inconsciente, da presença do amante deitado a seu lado. Depois, o susto. Agora a convicção de que a negra tinha percebido tudo. O olhar que lhe deitou fora significativo. A situação tornara-se perigosa. O marido tratava-a bem. Rapidamente, veio-lhe à cabeça a imagem de Carlos, seu primeiro amante. As lágrimas. Não sabia se provocadas pela dor. Nos lábios, um sabor amargo, a desespero.

Sá da Bandeira pode contar a partir de agora com uma nova indústria. A salsicharia de A. M. Sila e Filhos Lda, entrou hoje ao serviço. A capacidade de trabalho, o dinamismo e a fé inabalável nos destinos da província de Angola e da Nação, levaram o nosso particular amigo, Sr. Manuel António Sila a montar a mais moderna unidade industrial da cidade. A partir de agora, toda a província de Angola terá ao seu dispor os produtos de salsicharia produzidos por esta empresa, que utiliza matéria-prima da melhor qualidade, proveniente das pecuárias, que pelo Sul de Angola, vão sendo, cada vez em maior número com particular incidência para a região de Pereira Deça e zonas limítrofes da Huíla...

O Sila olhava a notícia publicada no Jornal do Sul de Angola e não cabia em si de orgulho.

Tinha sido uma cerimónia simples mas cheia de significado. O governador, acompanhado pela sua comitiva, atravessou o jardim fronteiro à fábrica, entre alas de negros que enquadrados pelos cipaios o vitoriavam e batiam palmas.

Presentes diversas autoridades. Entre outras, o presidente da câmara, o administrador do concelho e o padre Freitas, que benzeu as máquinas e as instalações. O governador fez um discurso. O Sila agradeceu.

Depois de cortada a fita seguiu-se um beberete oferecido a todos os convidados. Tudo isso a notícia relatava revelando alguns pormenores na primeira página.

Ele era amigo do coronel Mota Sequeira, proprietário do jornal e cidadão importante. O Sila conjecturava como é que o coronel, sendo casado com uma negra, merecido respeito de toda a cidade, enquanto que a ele o criticavam - sabia-ó- por ter um filho de Isabel. Não era possível esconder isso, tanto mais que ele adorava o filho mais velho. Gostava do mais novo, mas o Toni era alvo de uma atenção especial. Sentira algum orgulho no rosto do filho durante a inauguração. Estava presente com outros colegas do quarto ano, vestidos de capa e batina. Toni tinha catorze anos. Era um rapaz entroncado. Cheio de força. E um grande caçador.

Eduardo, o filho mais novo, tinha doze anos e, ao contrário do irmão, calmo, não gostava da caça e vivia para os livros. Uma permanente sede de leitura. Falava pouco, mas tinha grande capacidade de observação. Aguda perspicácia. Gosto apurado pelas coisas da arte, especialmente pela música. Preenchia momentos de aventura com leitura de Júlio Verne. O Sila ofereceu-lhe vários volumes da obra, adquiridos em Luanda quando ali ia em negócios. Toni por seu turno era pouco amigo de ler. Interessava-se pelas revistas de quadradinhos. Cavaleiro Andante e O Mosquito.

António Sila engordara. O tom de pele era mais claro agora, por menor exposição ao sol. A sua vida conhecera grande reviravolta. Ganhara estatuto de respeitado empresário. Os negócios evoluíam. Socialmente afirmava-se cada vez mais. O círculo de amigos aumentou desde o governo ao poder económico...

Sentado num cadeirão da sala de estar, bebia uma aguardente velha, importada. Fazia parte da sua bem fornecida garrafeira que ia dos uísques, aos mais requintados licores, nacionais ou estrangeiros, delícia de seus amigos e de Madalena.

Madalena vivia à parte. Cada vez mais afastada do marido. Ele sentia que a mulher o evitava. Viviam lado a lado praticamente sem se falarem. Toda a conversa se resumia a questões ligadas aos filhos. Na cama, Madalena era fria, Desde há meses. Perguntou-lhe se estava doente. Disse que não.

Estava de facto doente de amores pelo empregado do marido. Descobriu o seu amor por António Ferreira. Ele tinha uma maneira terna de lhe falar. Muito meigo, dizia-lhe quanto a achava bela. Parecia um poeta. O amante sussurrava-lhe as palavras ao ouvido, enquanto deitada em cima de uns sacos no armazém, o sentia como parte dela. Evitavam produzir barulhos, com receio dos negros que no exterior trabalhavam na carga e descarga.

- Desconfio que a Isabel sabe tudo a nosso respeito.

com um beijo, o Ferreira sossegou-a.

- Que entre o «asno»!

O silêncio instalou-se depois da ordem proferida por Toni. A porta abriu-se. A luz do dia inundou a sala obrigando alguns dos presentes a semicerrar os olhos incomodados.

Toni sublinhou:

- De rastos. Os «asnos» andam de rastos!

Um vulto entrou de mãos no chão, imitando o caminhar do cão. Pendurados ao pescoço do jovem os «baraços» de condenado, quatro pares de botas de futebol; enquanto os carrascos forçavam o «asno» batendo-lhe com os instrumentos de tortura. As bolas de futebol estavam envoltas em sacos de sarapilheira ou fronhas de almofadas, fanadas em casa.

O candidato a veterano submetia-se ao julgamento académico, no ambiente sem luz daquele tribunal juvenil.

No estrado, encostado à parede, a mesa ostentava ao meio uma caveira, roubada do laboratório, com duas colheres de pau cruzadas por baixo. Das cavidades oculares irradiava cintilante luz de vela. Era fantasmagórico. À volta da secretária, os mais altos «magistrados» daquele tribunal académico. O juiz e presidente da academia, tendo à sua esquerda os jurados. À direita, sentados em dois «mochos», respectivamente os advogados de acusação e de defesa. Todos ostentavam nos ombros uma capa negra. Alguns estavam embuçados. A sala cheia. Entre o público, os carrascos encapuçados de negro infundiam respeito.

Risos e piadas, gozavam o novato que ia ser julgado. O juiz, para manter a «ordem», mandava distribuir «porrada entre a assistência». Os carrascos aproveitavam a deixa e distribuíam prodigamente e ao acaso, alguns «mimos» com as bolas de futebol nas costas da rapaziada.

- Sr. juiz...

- Carrasco, «porrada nessa besta quadrada». Não é senhor juiz. É Meretíssimo Senhor Doutor Juiz. Além disso, ninguém o autorizou a usar da palavra, nem a levantar-se. As «bestas-asnos» são quadradas, como sabe, porque andam em quatro patas!

O «carrasco» não precisou de mais nada para aplicar meia dúzia de boladas.

Pairava no ar um intenso cheiro a suor. As quatro janelas da sala, tapadas com panos negros não permitiam a entrada da luz, ajudando a criar o ambiente «solene» em que decorria o julgamento.

Os «asnos-bestas» eram os novos alunos do liceu oriundos dos mais diversos estabelecimentos particulares de ensino do Sul. Iam frequentar o último ciclo no Diogo do. Alguns desses jovens eram repetentes do quinto ano, mas também se submetiam ao julgamento, numa praxe, finda a qual seriam aceites pela Academia Huilana.

Lida a acusação em latim«macarrónico, seguiam-se os debates. Toni Sila presidia ao julgamento na sua qualidade de veterano e de presidente da academia.

- A «besta» que se prepare para se sentar no banco dos réus.

De supetão pegou aquilo que parecia ser um cilindro, objecto destinado ao martírio do novo companheiro. O réu, de olhos vendados, preparou-se. O carrasco ajudava-o. com as nádegas a um palmo do pretenso banco, aguardava a ordem final do juiz.

- Sente-se!

Acto contínuo, o traseiro do novato enfiava-se na celha de água até aí tapada com um cartão, para disfarçar o conteúdo. Era o banho e as calças molhadas por entre as gargalhadas e assobios dos presentes.

- Porrada na assistência.

Os outros carrascos estrategicamente colocados pela sala cumpriam a ordem distribuindo algumas boladas entre os jovens. Indistintamente, atingiam veteranos e novatos. No seu papel de magistrado Toni perguntava:

- A «besta» está fresquinha?

- Estou sim!

O «magistrado» acrescentava:

- Não é estou sim. É estou sim, Meretíssimo Senhor Doutor Juiz! O «réu» lá repetia a ladainha, enquanto o público calado aguardava o resto da cerimónia.

Mandavam então o novato tirar as calças e as cuecas. Faziam-no subir para um estrado onde ficava à vista de todos.

- Vamos lá a ver se tem tomates. As «bestas» não têm tomates dizia o magistrado acusador.

O carrasco entregava ao condenado dois tijolos amarrados, obrigando-o a atar a extremidade do cordel aos testículos. O jovem cumpria a ordem contrafeito e o carrasco estendia o cordel fazendo-o sentir o peso dos tijolos que a «besta» segurava com as próprias mãos. Quase sempre se encolhiam ao senti-los presos ao sexo. A luz cintilante da vela colocada na caveira iluminava a cena.

Entre a assistência, alguns morrões de cigarro. O ambiente estava saturado de fumo. Nessa altura, o carrasco tapava os olhos do novato com um pano negro.

- Encolha os braços. Quando eu disser, larga os tijolos! Risadas. Os espectadores exteriorizavam assim o gozo do momento

que se aproximava, pela hesitação e receio do «réu», de que ao largar os tijolos, que sabia amarrados, estes lhe provocassem uma dor insuportável. Pânico no rosto, de mistura com o barulho das bolas manipuladas pelos carrascos contra os que se manifestavam.

Entretanto um dos carrascos havia cortado o cordel sem que a vítima disso se apercebesse. Todos entendiam o que ia na mente do seu novo companheiro. Gotas de suor corriam-lhe pela cara. Nova ordem para que largasse os tijolos. Instintivamente o «réu» encolhia-se largando os tijolos e as gargalhadas irrompiam.

Aliviado, respirou fundo. Desvendados os olhos, percebeu o logro, pepois, a sentença:

- O réu é condenado a pagar as ajudas do processo, com dois garrafões de vinho tinto e três maços de tabaco a cada um dos membros do tribunal. Mais ainda: à saída das aulas, sob a fiscalização dos advogados de defesa e de acusação, vai medir com paus de fósforo a escadaria da entrada do liceu, ao meio-dia, no final do primeiro período de aulas.

Lida a sentença acendiam-se as luzes da sala. Todos de pé, vitoriavam e abraçavam o novo companheiro. Alguém gritou um EFE ERRE. Ainda que sujeito ao cumprimento do castigo público da medição, o jovem era, por direito próprio, novo membro da Academia.

Quinze dias depois, poderia assistir à ceia, vestindo a capa e batina, com a presença normal do rei de Maconge, dos veteranos e restante Academia.

Os que não se sujeitavam à praxe, eram considerados os proscritos. Normalmente eram marginalizados. Os novos sabiam-no e, de bom grado, submetiam-se ao julgamento académico.

Toni Sila era potencialmente um chefe. Todos o seguiam. Tinha carisma. Julieta, uma das novas alunas do sexto ano, sentiu o magnetismo que ele irradiava. Viera de Moçâmedes onde o pai tinha uma pescaria. Era alia para os seus quinze anos. Loura, de uma pele leitosa a que uns olhos azuis emprestavam encanto irresistível.

O seu jovem coração bateu mais forte quando os colegas lhe apontaram Toni como o rapaz que todas queriam. Ele havia reparado nela à saída das aulas com os livros debaixo dos braços, rodeada de um verdadeiro séquito de outras jovens.

Também ela era um chefe. O sorriso que Julieta lhe dirigiu despertou nele uma estranha sensualidade. Os lábios emolduravam uma fileira de pequenos dentes brancos. Os cabelos, cascata de ouro, caíam-lhe nos ombros. Foram esses cabelos que produziram em Toni uma forte emoção.

Apeteceu-lhe acariciá-los. Meter os dedos nas ondas daquele mar dourado.

Eduardo não compreendia spalavras do irmão.

Integrar-se naquele ambiente académico constituía um interesse a que Toni dedicava muito do seu tempo, deixando para segundo plano os estudos.

Não que Toni fosse mau estudante. Até aí não perdera nenhum ano. Não era, porém, brilhante. Estudava pouco, mas passava sempre.

Conseguia as notas necessárias e tinha agilidade no verbo, o que ele invejava, já que passava a vida agarrado aos livros tentando ser o melhor da turma. Era-o de facto. O melhor daquele terceiro ano. Ao contrário do irmão, era pouco expansivo e tinha como único amigo o Cláudio. Estudavam juntos.

Toni, por seu turno, contava como seu confidente e maior amigo o Beto Machado. bom contador de anedotas, filho de um mecânico e bate-chapas que, como grande amante dos «copos», perdia longas horas ao fim da tarde percorrendo os botequins da cidade mais frequentados pelas prostitutas.

O pai do Beto Machado andava quase sempre defato-macaco, e o rosto, de pigmentação sanguínea, testemunhava a farta absorção de álcool ao longo do dia.

Machado era simultaneamente porteiro do cinema e, muitas vezes, iniciada a projecção do filme, sub-repticiamente deixava entrar na sala os estudantes. Quando se tratava de um filme de cowboys ou de capa-e-espada.

O porteiro e mecânico era um grande admirador de Errol Flynn. O Beto herdara o mesmo gosto. Nunca perdia uma fita nessas noites e desafiava Toni. Eduardo, por sua vez, só frequentava o cinema acompanhado pelos pais ou sozinho, à matinée de domingo a que se seguia o inexplicável picadeiro.

- Ainda sou do tempo em que os cabritos e galinhas andavam na rua principal de Sá da Bandeira à procura de alimentos. Antes do asfalto em 1948 ou 1949, já não me lembro bem. Por isso amigo Sila, amo esta terra profundamente. Meu pai veio do Funchal para os barracões e viajou a bordo do índia. Eram duzentos e vinte e dois contando com Câmara Leme. Aquilo é que eram homens. Atravessaram o deserto e subiram a serra com os carros bóeres. À noite, faziam um círculo com os bois e acendiam fogo para afastar a bicharada. Imagine, amigo Sila, o que é subir aqueles mil e setecentos metros pela Tundavala, para chegarem aqui ao planalto, onde brancos, nem vê-los.

O velho Perez, patriarca da família, orgulhava-se dos seus ascendentes madeirenses. Não raras vezes, nos sulcos cravados no rosto por onde a vida lhe escorria numa teimosa lágrima de saudade, testemunhava o passado. Perez era também comerciante. De indígena. Tinha um boteco na Machiqueira e, por vezes, abastecia-se com alguns produtos nos armazéns do Sila.

As terras e gentes da Huíla caíam bem aos olhos de António Sila. Ele ouvia o descendente dos primeiros colonos contar histórias que lhe inculcavam no coração um sentimento de orgulho por ter escolhido aquela zona para viver.

-Recordo-me de ver os cipaios, de chicote na mão, tomando conta da negralhada que andava a arranjar as estradas. Todos bem amarrados uns aos outros. Nem um fugia. Os gajos não queriam ir para o contrato. Então o chefe de posto prendia-os. Cambada de mandraços!

com a maior naturalidade, o velhote falava sem perder o fio à meada. Eram histórias dos primeiros tempos da cidade. Nessa altura era um garoto. De algumas, lembrava-se. Tinha-as vivido. Outras, o pai lhas contara. Agora aparentava sessenta anos. Quando jovem acompanhava o pai que era também condutor dos carros bóeres que transportavam sal de Moçâmedes. Nesse tempo, o sal instituira-se como moeda de troca entre colono e indígenas. com o vento frio e cortante da noite do deserto, o calor tórrido e insuportável do dia pelas rotas da aventura na escalada da serra a caminho da Huíla, se temperava a fibra daqueles homens. Conhecia todos os caminhos, ainda antes do caminho de ferro ter chegado a Sá da Bandeira, em 1923.

Sila não perdia nenhuma palavra. Quis saber:

- Quem era esse Câmara Leme de que você fala, e é hoje nome de rua?

O velho Perez desfolhava a memória e prosseguia as histórias do pai:

- Era um condutor de obras públicas. Nessa altura chamava-se assim aos engenheiros. Nasceu no Funchal e veio construir para a Huíla. Lembro-me do meu pai me contar que foi ele quem construiu a primeira estrada de Moçâmedes a Sá da Bandeira. Dois mil metros, a pique pela serra. Depois foi ele que instalou os madeirenses nos barracões, nas margens do rio Lubango.

- Então não havia brancos aqui, amigo Perez?

- Lá haver, havia, na Missão da Humpata, e colonos. Mas eram bóeres que vieram do Transval na África do Sul. Portugueses na Huíla, os primeiros foram os madeirenses. O meu pai falava no padre Antunes que foi o director da escola da missão. Mas isso ainda é do tempo do rei. Eu ainda não era nascido.

Sila imaginava a cidade nesses tempos. Seria diferente, naturalmente, mas teria a mesma moldura.

Um vasto planalto enquadrado na serra da Cheia com grandes planícies de terras férteis para a agricultura. Rios e riachos por tudo quanto é sítio. Agora, encavalitada na serra, a capelinha da Senhora do Monte deixava ver a muita influência que a Igreja tinha naquela região. »

A cidade fazia-se amar à primeira vista. Ruas traçadas pela inspiração de Câmara Leme em perfeita esquadria imitando a Lisboa pombalina. Um bem cuidado jardim estendia-se feito tapete de verdura, em frente ao edifício da Câmara. Ladeavam-no a igreja de S. José e os velhos edifícios da Administração Civil. Ao fundo, podia ver-se o jardim infantil, cujo arvoredo tapava a fachada do quartel que servira de base às tropas de artilharia que o coronel Mota Sequeira comandava antes da «bilharsíase» que o ia matando. A doença levou-o para o hospital, onde viria a conhecer a enfermeira negra, mais tarde sua mulher. Sila já tinha escutado a história desse homem culto e autêntico amante das gentes e das terras Huilanas.

Mota Sequeira alarmou-se quando depois de ter urinado lhe saíram duas gotas de sangue. Apertou a glande, mais uma gota vermelha, para que não restassem dúvidas. Pela segunda vez, no mesmo dia, o oficial de artilharia urinava sangue. Sentia-se febril. Imediata consulta. O diagnóstico foi claro:

- Você tem uma bilharsíase.

- É perigoso, doutor?

O módico tentou acalmá-lo apesar de saber que a cura era difícil:

- Não. Isso vai passar, mas quero interná-lo já.

Ele sabia que o vírus se transmitia através da água. Bastava nadar em águas contaminadas e as cercarias de cauda bifurcada atravessavam a pele ou penetravam pela mucosa rectal ou uretral do homem. Ainda não sabia se era só visical ou intestinal também. Do que o médico tinha a certeza é que não havia solução garantida para a doença. O major já não saiu do hospital. Entregou o comando ao tenente Faria, o mais antigo dos três oficiais subalternos. Numa voz firme, apesar da febre alta não o deixar concentrar ideias, proibiu o Faria de informar a família na Metrópole.

- Isto é coisa de pouca monta e de rápido restabelecimento.

Mota Sequeira estava convencido disso. Também não tinha ninguém para além de uma irmã casada em Lisboa com um colega dele. Só lhe restava aquela irmã e os sobrinhos.

Arminda, no seu traje branco de enfermeira, tinha um riso alegre e cristalino. Ria-se com vontade dos convites que o major lhe fazia. Era uma negra de feições rudes e feias que contrastavam com a ternura dispensada ao oficial. Sentia por ele um carinho que não sabia justificar. Era bondosa com todos os outros doentes, mas Mota Sequeira provocava-lhe mais que interesse profissional. Por seu turno, também ele sentia o mesmo por aquela enfermeira negra que perdera longas horas à sua cabeceira, durante as noites em que a febre alta o fazia delirar. Arminda tentava aliviá-lo das dores.

Ao fim dos primeiros quinze dias, o major não apresentava melhoras. Sem ordem do médico decidiu aplicar injecções de emético de sódio. Já tinha experimentado em três doentes negros que estavam ao seu cuidado, e a verdade é que eles melhoraram para espanto do médico. Ao fim da quarta injecção o major começou a tossir. Progressivamente de dia para dia, sempre que era injectado iniciava um processo de convulsões em que a tosse e o suor o tomavam por completo. Durante a aplicação da última intravenosa, o ataque de tosse foi tão intenso que os pulmões lhe iam rebentando. O suor cobria-lhe o corpo todo como se estivesse debaixo de um chuveiro. Dores, já não sentia. A febre diminuía?-Mota Sequeira já não dispensava por nenhuma razão a companhia da enfermeira. com gestos maternais, de infinita paciência, levava-lhe as refeições obrigando-o a comê-las. A todo o momento estava presente e mesmo quando fazia a ronda pelas enfermarias não deixava de espreitar o oficial amiudadamente. Sem se impor.

O major artilheiro apaixonou-se pela enfermeira negra.

Arminda deixou que o inevitável acontecesse e dormiram juntos diversas noites. A enfermeira aguardava pelo final dessa história de amor. Ele recuperava. Para ela seria o fim. Era um branco. Ela, uma negra. Caminhos que nunca mais se cruzariam. Ele oficial e cavalheiro, deixou vir ao de cima o cavalheiro e enterrou o oficial. Casou com Arminda. O exército expulsou-o das duas fileiras. A cidade, ao princípio, escandalizou-se. Depois foi conquistada. O compromisso de duas culturas, A miscigenação. Quatro rapazes e duas raparigas. As duas civilizações coabitavam, misturavam-se sem artifícios. Os negros diziam que Deus havia feito o branco e o preto. Sila pensava que no caso do major Mota Sequeira, o amor fez o mestiço. Tal como acontecera com ele e Isabel.

De uma forma mais rude, não menos verdadeira.

Através do seu vestuário, Madalena ostentava a evolução burguesa do marido expressa em gosto duvidoso.

Habitavam a nova residência, que o Sila mandara construir, em terrenos próximos da missão. Toda ela manifestava o gosto de uma burguesia endinheirada, mas pouco culta. Entre os móveis da sala, um piano de parede que mandara vir da metrópole como oferta ao seu filho Eduardo, apaixonado pela música, e nessa altura a frequentar o terceiro ano. Toni estava no quinto. O piano era a prenda pelos bons resultados obtidos no estudo. A Toni ofereceu um segundo cavalo. Como o filho adorava montar, assim contribuía para passeios e correrias, pelas terras da Humpata, aos fins-de-semana. Muitas vezes caçava a cavalo, utilizando as armas de caça, com particular mestria, e nunca falhando um tiro. Quase sempre pequenos antílopes ou ainda coelhos que Canivete depois cozinhava com esmero. O velho empregado do Sila chefiava agora todo o pessoal doméstico da fazenda. Havia um acordo tácito entre Isabel Tchilombo e Canivete. Ela era praticamente a dona da fazenda. Sila não interferia no governo da casa e deixava-lhe essa responsabilidade. A parte da exploração agrícola e pecuária cabia ao Martins, há já alguns anos. Isabel controlava, à distância, todas as manigâncias do gerente. Tal como sabia o que se passava na fazenda, tinha artes para adivinhar o que acontecia em casa de Sila e Madalena, em Sá da Bandeira.

Eduardo, atentamente, escutava as explicações que Ema Mota Sequeira lhe dava. Repetiu o acorde agora sem falhar nenhuma das notas.

- D. Madalena, não tenho dúvidas de que o seu filho tem grande queda para a música. Aprende com espantosa facilidade.

Feliz, Madalena sorria, não cabendo em si de contente. Eduardo era objecto permanente do seu asfixiante amor maternal. Para ele, o melhor. Havia de ser músico, um grande artista. Acontecia, porém, que essa não era exactamente a pretensão do rapaz. O seu desejo era ser médico. Desde os quatro anos que todas as suas brincadeiras manifestavam tal inclinação. Em fingimentos envolvia pais e irmão. Encostava o ouvido ao peito do «doente» e dizia:

- Tosse, mano. Tosse!

Toni, que adorava o irmão, afivelava ao rosto a máscara protectora e paternal, muito embora preferisse subir às árvores ou fingisse ser o valente cawbcy da pradaria em lutas imaginárias.

Madalena escutava agora a Polanaise de Chopin, que o filho lia da pauta com extraordinária destreza. Calcava, com elevação e sensibilidade, às vezes feminina, as teclas do piano. com doze anos, possuía já uma técnica bastante segura, que D. Ema apontava como exemplo aos outros discípulos.

José Chipíndo viu o administrador Olavo pegar na nota de cem angolares e rasgá-la ao meio.

- Esta nota já não vale nada. Você tem de pagar os cem angolares do imposto com outro dinheiro! - O administrador, ao mesmo tempo, deitava para o cesto dos papéis a nota rasgada. O imposto constituía, para aqueles negros, a marca da autoridade. Não pagar o imposto significava prisão. Pelas ruas da cidade ou da vila, não raro era ver o espectáculo, de trinta a quarenta negros amarrados uns aos outros com cordas, forcados, a capinar os passeios ou as bermas da estrada, enquanto quatro ou cinco cipaios, de chicote e porrinho na mão, vigiavam. Castigo pela falta de pagamento ao Estado, de uma taxa, que permitia ao possuidor circular livremente.

José Chipindo, recuando em direcção à porta do gabinete procurava desculpar-se:

-Sim, Sr. Administrador. Eu vai arranjar outros angolares.

A caminho da senzala pensava a melhor maneira de conseguir o dinheiro. Venderia alguns cabritos. Ir capinar, não! O comerciante pagava-lhe os cabritos com notas de cem angolares. Humilde, José Chipindo pediu:

- Aka patrão, me paga com outro dinheiro. Esse eu não quero! Faz favor me dá outro...

O comerciante fez-lhe a vontade e trocou por notas de vinte, o valor da transacção:

- Não percebo porque não queres os cem angolares, mas está bem. Toma lá!

Sempre humilde, José meteu o dinheiro no sebento casaco de fardo e saiu porta fora a caminho da Administração no cumprimento do seu dever de cidadão livre, porque pagava o imposto.

Olavo, depois dos negros saírem do seu gabinete, apanhava as notas rasgadas colava as duas metades com uma tira de papel pardo e guardava-as na secretária.

O administrador tinha uma fazenda na região do Bicuar, com mais de duzentos bovinos.

com risos, à sucapa, os cipaios diziam que aquelas notas de cem angolares eram feitiço do Sr. Administrador porque ficavam outra vez boas depois de coladas com as liras de papel de embrulho. Toda a gente sabia. Só os negros pagadores de imposto é que não. José Chipindo, que durante longos anos tinha sido forçado a trabalhar, como contratado, nas fazendas de café no Norte, desconfiava das artes, o administrador.

Olavo era um dos varões mestiços do coronel Mota Sequeira.

O capataz ensinou-o a ler e a escrever. Depois do contrato, José Chipindo percorreu todas as terras do café do Amboim. Sempre quisera regressar à senzala do velho Tchilombo. Sabia que, há muitos anos, Isabel vivia com o branco no Lubango. José não lhe perdoava o filho mulato. Por isso, o tentou matar.

Sob a ameaça do administrador Fernandes, fugira à punição da colónia paneal do Bié, obrigando-se a demandar outras terras. Chipindo dera em solitário. Um dia, chegou a uma roça de café no Amboim e pediu trabalho. O capataz aceitou-o. Gostava dele. Ajudava a carregar os grãos de café em sacos e transportava-os para o armazém. No tempo do plantio, tratava das pequenas plantas. Limpava o mato que crescia entre os pés de café. O capataz gostava do trabalho dele. Nas horas vagas ensinou-o a ler e a fazer contas. Mais tarde, entregou-lhe a responsabilidade de tomar conta de vinte contratados. Como ajudante de branco. Sabia-se detestado pelos não Bailundos, mas não ligava. Obrigava-os a trabalhar enquanto ruminava muitas vezes, as mil maneiras, de, um dia, vir a matar o mulato que Isabel concebera do branco. Assim vingaria a traição.

De resto, ninguém lhe conhecia mulher. Chipindo encasulara. Para dar ordens, vivia. Nas horas de folga exercitava a sua aprendizagem nas contas e na leitura. Recebia avidamente as explicações do capataz, um branco bondoso, e que de uma maneira geral tratava bem o pessoal da fazenda. Várias vezes lhe tinha dito que era importante um homem saber ler e escrever. José Chipindo assimilara essa verdade. E já ia lendo, ainda que por vezes soletrando, diversos livros que o branco lhe emprestava.

Nos olhos de José Chipindo pairava uma vaga tristeza. É certo que, por vezes, faiscavam ódio, sobretudo quando alguns dos brancos da fazenda o tratavam mal. Obedecia prontamente ao capataz mas, apesar da bondade, também a ele odiava, enquanto igual ao que fizera um filho a Isabel. Não era capaz de perdoar. Lembrava-se de quando a atacou, sob ameaça de catana em que nessa altura lhe tinha dito que uma negra não poderia ter filho de branco. Era assim. Deus fez o preto e o branco. O branco é que fez o mulato. Por isso mesmo, acreditava que o mulato era inferior a ele. E admirava-se de ter lido num dos livros que o capataz lhe emprestara que o preto, o branco e o mulato eram filhos de Deus.

José Chipindo vivia agora na Chibia. Trabalhava na fazenda de gado do senhor Pires. Não longe da Humpata onde Isabel vivia. Uma tarde dirigira-se novamente à Administração para pagar o imposto, quando viu a carrinha do administrador Olavo parar na loja do Santos. Resolveu entrar para comprar fubá. Nesse momento, o administrador pagava um volume de caricocos com uma nota de cem angolares. O comerciante tinha na mão a nota rasgada:

- Rasgou-se. Depois cole-a! - ordenou o mestiço.

-com certeza, Sr. Administrador. Não faz mal nenhum, mas sempre lhe digo que estas notas são fracotas. Tenho aí algumas coladas. Ultimamente aparecem muitas.

O administrador pegou no tabaco e saiu. Santos ficou a colar com uma tira de papel de embrulho, as duas metades da nota. Testemunha silenciosa da cena, José Chipindo seguia o administrador. E com olhos chumbados de ódio, uma vez mais pensava:

- Mulato não é mesmo filho de Deus!

Os rostos aproximavam-se. Atraídos por uma estranha força vinda de dentro. Ela acariciava-lhe os cabelos com os longos e finos dedos. Os olhos dela mergulhavam nos dele, enquanto os lábios húmidos e entreabertos se ofereciam. Ele apertou-a ainda mais contra o peito deixando que as mãos se aventurassem pelos caminhos do desejo.

Da montanha, o Sol fora aos poucos inflamando a pradaria. A primeiro plano subiram os acordes musicais proporcionando o longo beijo. No écran surgia o The End e as imagens diluiram-se nas luzes da sala.

As mãos dos namorados apertaram-se uma vez mais, novas promessas de dedos, beijando-se enquanto a realidade caia no colo dos espectadores.

O filme tinha acabado. O espectáculo iria continuar noutro cenário depois daquela sessão da tarde de domingo.

O picadeiro.

Eram aos magotes. Novos, velhos, crianças, namorados e amantes. Maridos e mulheres. Pais e filhos. Filhas e amigas. Doutores e funcionários. Comerciantes e políticos. Agricultores, caçadores. Estudantes e polícias. Amigos e inimigos. Conhecidos e desconhecidos. Viajantes e residentes. Muitos brancos, alguns mulatos. Negros, quase nenhuns.

Todos sem excepção subiam e desciam o picadeiro. Alguns encostavam-se às montras da rua principal, de seu nome Pinheiro Chagas, assistindo ao frenético sobe e desce da multidão. Pela rua soltavam-se alegres gargalhadas da gente nova. com promessas nos olhos os Corados murmuravam ternuras. Mães de família escoltavam as futuras noivas. Todos sem excepção, interrompiam o passeio frente às montras, dando-se conta do exposto. O comentário. O desejo estampado no rosto pela exposição do vestido, ultimo grito da moda ou da mobília mais recente, ou ainda do livro acabado de sair. Em bando, negras capas, faziam do fim de tarde um mistério de namoros, e o trautear de uma cantiga de amor, ou da balada coimbrã, emolduravam a rua de vida, durante as duas horas que separavam o fim da matinée e a hora do jantar.

A cidade fizera do picadeiro uma instituição, num ritual repetido todos os domingos ao cair da tarde, enquanto os automóveis desciam a Pinheiro Chagas para depois subirem a Lobo das Neves voltando a descer o picadeiro, que ninguém sabia porque assim se chamava.

A fila de automóveis furava lentamente a mole imensa de gente que transbordava os passeios em sentido contrário. Automóveis e peões cumpriam o rito.

A Tirol abarrotava. Mesas cheias. As famílias devoravam tudo que era doce. Também o que não era. Adoráveis crianças corriam entre mesas, de rosto lambusado pelo bolo de creme. Solícitos, os empregados atendiam. Cansavam-se entre as mesas. Ouviam pedidos. Exibiam bandejas carregadas de mil doçuras e frescas bebidas ou fumegantes cafés. No ar, um permanente bulício e conversa. Aqui e ali, um par de namorados, ou grupo de jovens.

Toni não tirava os olhos da loura Julieta que, insinuante, sorria ao seu perseguidor, enquanto entre risadas abria um comentário às suas companheiras de mesa.

- Eh pá, ela grama-te!

O filho de António Sila respondeu ao seu amigo Beto Machado:

-Se isso é verdade, parece querer gozar comigo.

Toni levantou-se e dirigiu-se à porta da pastelaria. O seu inseparável amigo e confidente, companheiro de todas as horas acabara de sacrificar o pastel de nata, e seguia-o. Ambos retomavam o picadeiro, deixando-se envolver pela multidão. Toni envergava capa e batina, e puxando pelo maço de cigarros Swing, oferecia um ao amigo. Pararam para acender os cigarros. Toni olhou para trás. Divisou entre os passeantes a loira cabeleira de Julieta. Virou as costas e retomou o passeio, imediatamente seguido pelo amigo, enquanto sorria feliz.

Julieta e as amigas vinham atrás deles integrando-se também no desfile do picadeiro.

Na imensa multidão, algumas famílias de negros cumpriam também o cerimonial.

Destacava-se a do enfermeiro Barata.

A anafada mulher do popular enfermeiro, seguia de braço dado com a filha adolescente. Mantinha do marido a distância de quatro passos.

Barata ia distribuindo, à esquerda e à direita, cumprimentos a quem passava.

Encostado a uma das montras da Lello, o filho mais velho conversava com colegas brancos que como ele frequentavam o Diogo Cão.

Estrelas cintilavam na noite.

No asfalto da cidade, as montras aspergiam feixes de luz.

O ritual do picadeiro ia no fim.

A hora do jantar aproximava-se.

Tomaram a estrada do Sende em direcção ao Bambero.

Tinham percorrido cerca de duzentos quilómetros na carroçaria do jipe. tom levava a tiracolo a trezentos-e-oito. Amparado contra o suporte de ferro, seguia também o seu inseparável amigo Beto Machado armado de caçadeira.

O pai sentado à frente olhava o terreno, enquanto o Ferreira sem tirar os olhos da estrada conduzia a uma velocidade moderada. Entraram no Bambero. Uma vastidão de centenas de quilómetros quadrados, onde o terreno sem elevações de monta, perdia todas as referências. Não era deserto, nem chana tão-pouco. Aqui e ali, apareciam as chitetas, todas iguais, onde normalmente se acolhiam os antílopes à sombra do arvoredo em horas de descanso. Autênticas ilhas verdes.

Ao alvorecer, rodavam para a Anda onde se localizava a senzala do Candero. O dia despontava numa sinfónica transparência de cores. Começava já o Sol a rondar o horizonte e a noite a diluir-se no dia por nascer. No trilho, a viatura agarrava o pó da estrada. Seis horas da manhã. Não muito longe, o capim seco ocultava as cubatas da senzala onde morava o guia Candero, irmão do soba já falecido, e tio de Isabel Tchilombo. Todos os brancos caçadores daquela região da Huíla disputavam Candero, como o melhor guia da zona.

Toni pelava-se por dias de caça como estes. Sentia-se em perfeita comunhão com a natureza e nenhum momento era mais importante que as noites que antecedem a caçada. Integrava-se naquele ambiente de vozes estranhas, de sons provocados pelo rastejar dos animais, dos répteis e dos insectos que povoavam a noite. A expectativa da espera do antílope ou do leão, as vigias silenciosas das talas onde bebe o elefante, constituíam um inexplicável prazer. Mais do que o abate fascinava-o o cerimonial. A viagem. O acampamento. O cigarro cuidadosamente escondido na concha da mão. A escolha do local de espera considerando os ventos. O Sol a deitar-se na noite. A Lua, prateada de acácias, enquanto cintilante beijava a água dos rios. Um cântico erguido das entranhas da terra ou do horizonte das chanas cavalgadas pelo tropel cinzento que a massa de antílopes em longas correrias, tomava da sdk. Apelo telúrico que só um coração nascido nas fontes da montanha, areias do deserto, ou acácia em flor, podia entender. Essa voz, entoava eternos hinos de amor. Ele percebia-o e às vezes as lágrimas toldavam-lhe os olhos, extasiada contemplação de terra, de terra-mãe, de África.

Candero esperava-os. O sexo coberto pelo tchincuane. À cintura a mutunga. Nas mãos, o porrinho, o arco e a flecha. Aos pés, pardacenta mochila guardava a panela do pirão. Sem perda de tempo, o caminho foi apontado já da carroçaria em movimento:

-Os guelengue está lá longe!

O negro propunha a direcção ao condutor e, desabridamente, a caça ao antílope começou.

Uma frente de larguíssimos quilómetros cansou o dia. A noite aproximava-se. De guelengues nem viva alma. Pararam. Fizeram-se os preparativos para passar a noite. Candero apanhou alguma lenha seca e ateou a fogueira para o jantar. Toni e Beto foram buscar um tronco de árvore caído no chão para servir de banco onde se pudessem sentar junto do fogo. Candero, de cócoras, preparou o pirão.

Depois de pronto retirou a panela do fogo. Chegou-se ao tronco, ajeitou o tchincuane entre pernas, e quando ia a sentar-se, Beto divisou o que lhe pareceu um pau espetado no apodrecido tronco de acácia e alertou o guia entre risadas:

- Cuidado Candero! Vais espetar esse pau no cu!

O negro olhou e deu um salto, levando as mãos à cabeça:

- Tatié. Tatié, patrão! É o cobra! É o cobra!

Dado o alarme, todos correram para o réptil que direito e sem se mexer se confundia com um pau, espetado em direcção às nádegas do negro. Ao lusco-fusco, ninguém percebeu que se tratava de uma cobra pequena, mas cuja mordedura seria fatal. A purga para a morte. Espantado, o réptil tentou fugir, mas o Ferreira com uma paulada liquidou-o, enquanto o negro fugia espavorido com a visão do escuro e venenoso rastejante. Passado o perigo, a gargalhada foi geral, mas Candero só sossegou quando se deitou perto do fogo, já os outros dormiam.

Candero acordou os caçadores com uma caneca de café fumegante, Toni olhou o relógio de pulso. Os ponteiros marcavam seis horas. Tinham pela frente quatro horas para caçar, antes de o calor apertar. Nessa altura, seria impossível detectar guelengues que se recolhiam à sombra das árvores das chitetas.

Recomeçaram as buscas seguindo as indicações dadas pelo guia. Andaram quilómetros e nada de aparecer caça. Passadas duas horas, Sila resolveu desistir, dando ordem de regresso, o que não satisfez Candero:

- Patrão está quase a encontrar guelengues.

O guia deixava perceber a sua alma de caçador na expressão do olhar vivo que convenceu o comerciante a continuar mais algum tempo a busca o que mereceu imediata aprovação do filho e do amigo.

Nova direcção indicada, e a marcha prosseguia aos solavancos por ueje terreno desprovido de estradas e sem referências naturais. Só onegico conhecia a zona.

cerca de meia hora, depois Candero mandou parar. No horizonte uma nuvem castanha.

- Estão ali, patrão! Estás a ver, minino?

foni olhou na direcção apontada pelo negro, acotovelando o pai:

-É verdade. Devem ser os guelengues!

Retomaram a marcha na direcção indicada e cinco minutos depois já se notava a massa dos antílopes em franca correria de encontro à viatura.

Ferreira manobrou num largo círculo para se colocar no flanco da manada que corria assustada, já mais próxima agora. Não mais de duzentos metros. Tudo se desenrolava a uma espantosa velocidade. Os antílopes corriam em fuga desenfreada. Provavelmente assustados por outros perseguidores ou com os tiros escutados a longa distância. O carro saltava entre sulcos e pedras espalhadas um pouco por um lado e outro. O comerciante gritava para se fazer ouvir acima do ruído infernal dos cascos velozes.

- É melhor parar. Assim não se consegue fazer tiro.

- Não, patrão! Eu segura o minino e atira só! Impossibilitado de fazer pontaria, Toni meteu a arma à ilharga

para tiro instintivo, enquanto Candero o agarrava pela cintura evitando a queda num dos ressaltos da viatura. Começou o tiroteio. Pai e filho faziam tiro instintivo. Beto acompanhava-os. A manada corria espavorida. Mais de cem animais furiosos tentando escapar à morte. Quando feridos, abandonavam a manada e fugiam em direcções opostas. Ferreira estacou a viatura:

- Agora é urgente matar os animais feridos que ficaram para trás. Assim fizeram. De cima da carroçaria, o guia tentava descortiná-

-los. Nenhum à vista. Candero indicou ao motorista a primeira chiteta. Pararam na orla daquele oásis verde. O negro, Toni e Beto, por indicação de Sila, saltaram do carro. Entraram na pequena mata com todas as precauções, pisando o chão de modo a não provocarem ruídos. À frente, o guia olhava o terreno seguindo as pegadas do animal. Toni levava a Trezentos-e-dois com uma bala na câmara, mas em segurança. Andaram vinte metros e no chão o primeiro pingo de sangue. Mais à frente, outro. À medida que a distância percorrida aumentava, o rasto de sangue adensava.

Candero fez sinal a Toni para parar. Imóvel olhou as árvores à sua frente. Num sussurro, disse ao jovem acompanhante:

- Minino, está ali!

Toni olhou na direcção indicada. A cerca de vinte metros, divisou o gnu corpulento, sentado nas patas traseiras e de cachaço levantado, olhando os homens que se aproximavam. Beto parecia uma estátua. A arma que transportava não servia para aquela caça.

A massa de carne pesando mais de duzentos quilos confundia-se com as árvores. Calmamente, evitando os gestos bruscos, Toni cingiu a arma à cara. Meteu um ponto imaginário situado entre os olhos do animal, na mira da arma. O gnu pressentiu o que estava para acontecer. Levantou os quadris. Baixou a cabeça e exalou uma espécie de ronco que lhe veio das entranhas, sinal de que ia atacar com uma velocidade de arranque, de cerca de cinquenta quilómetros horários.

Nessa fracção de segundo, o caçador premiu o gatilho e o poder de embate da bala fez o antílope ajoelhar já morto. Nos lábios, o jovem tinha um sorriso sarcástico quando disparou. Na mente, a frase que o pai costumava dizer:

- Este rapaz, onde põe o olho, põe a bala!

Mataram mais quatro animais escondidos noutras tantas chitetas.

Ao meio da tarde, de regresso a Sá da Bandeira, carregavam dois antílopes.

Candero recebeu carne pelo trabalho e alguns angolares por recompensa.

- Sr. Sila, tem de aceitar a presidência da Câmara! ?

O comerciante, sentado num sofá ao lado do governador, esboçava um tímido sorriso. A caminho dos cinquenta, Sila ostentava porte atlético: ombros direitos, corpo musculado, as faces morenas queimadas pelo sol nas longas horas vividas na mata entre o gado da sua fazenda, ou quando nas horas de lazer se dedicava ao seu desporto favorito, a caça. O transmontano que agora era dono de um pequeno império constituído pelas salsicharias, os armazéns de venda a retalho, a loja e a empresa de camionagem, punha bastante cuidado na sua apresentação. Podia dizer-se que vestia bem.

Os grandes armazéns eram conhecidos em toda a parte e ali se abasteciam outros pequenos comerciantes. A empresa de camionagem do Sila conhecera um franco progresso, com o aumento da frota para o transporte misto de passageiros e carga. A empresa ligava as cidades e povoações do Sul de Angola. A indústria de salsicharia progredia a olhos vistos. Sila tinha o prestígio conquistado. Agora o comerciante virava-se para o mundo da política. Não pertencia ao partido único, mas tinha a confiança dos chefes políticos do tempo. A sua cordialidade, ambição e tacto para as oportunidades, faziam-no prosperar enquanto, ao mesmo tempo, era alvo da admiração dos seus pares. Nessa altura, presidia aos destinos da Associação dos Comerciantes.

O governador tinha-o chamado para lhe oferecer a presidência da Câmara Municipal. Nos últimos três anos, como vereador, a sua acção, no pelouro do abastecimento de água e luz, produziu alguns resultados que passaram pela electrificação da maior parte das ruas da cidade e pela ampliação da rede de distribuição de água. Nessa altura, já as águas da Senhora do Monte criavam fama, e disso o Sila tirou partido, montando uma fábrica de refrigerantes. A sua última realização.

Agora o convite.

- Sr. Governador, fico sensibilizado. Se me permite, vou pensar.

- Amigo Sila, pense! Mas não quero uma negativa. Estas terras e o seu progresso exigem-lhe este sacrifício pessoal, a bem da Nação!

O governador acompanhou o Sila à porta do gabinete:

- O seu filho mais velho continua a ser aquele grande caçador de que me falam?

O Sila, num largo sorriso deixou transparecer o seu orgulho de pai:

- Assim é, Sr. Governador. Além de bom caçador, é um grande atirador. Normalmente costumo dizer que onde ele põe o olho, põe a bala. Nos estudos, não vai tão bem como Eduardo, mas lá se vai safando.

- Havemos de ir a uma caçada ao elefante. Diga-lhe isso.

O Sila enquanto descia as escadas do palácio deu por si a pensar na proposta que lhe tinha sido feita. Aceitar a presidência da Câmara, por que não? Ele merecia-o. A sua vida era bem a história de como um homem se faz por si próprio. Uma história igual à de tantos outros homens que, como ele, ajudavam a construir aquela terra, para os seus filhos.

Por que não?

Madalena ouviu o marido falar do convite que lhe tinha sido feito. Deu por si a pensar que a aceitação da proposta poderia contrariar as suas intenções de ir com o filho para Portugal. Os sentimentos atropelavam-se. Um nó provocava-lhe dores no estômago. O que lhe ia na alma reflectia-se no corpo Sentia o Sila entusiasmado com a ideia de vir a ser presidente da Câmara.

O desejo dela era aliviar a pressão da sua ligação com o António Ferreira. Daí, a fuga. Não sabia como abordar a questão de forma a convencer o marido a deixá-la ir. Ninguém estava consciente da sua ligação, a não ser Isabel. Até agora, a negra remetera-se ao silêncio. Ela confiava, nada transpiraria.

Arquitectava argumentos para convencer o marido.

Eduardo estava a acabar o liceu. Depois, o curso de Medicina, só possível na metrópole. Em Angola não havia universidade. com o convite, as coisas complicavam-se. Pelo menos, durante algum tempo, teria de cumprir o seu papel de esposa do presidente. Olhou o rosto do marido à espera da oportunidade para falar dos seus projectos. Noutras ocasiões, já tinham abordado tal questão e ele parecia-lhe de acordo.

Deitado ao lado da mulher, Sila conjecturava agora sobre a possibilidade de aceitar o cargo. Gostava da cidade. Considerava-a terra sua. Madalena tinha os olhos fechados como se estivesse a dormir. Era a sua maneira de fugir à conversa naquele momento. Sila não se apercebia da intenção.

Uma dessas noites, em voz alta, não se conteve:

- Pois bem. vou aceitar!

Apagou a luz do candeeiro.

Madalena sentiu ainda mais forte a dor no estômago.

António Ferreira fechou a porta do carro evitando revelar a sua presença. Semicerrou as pálpebras tentando romper a noite escura sem estrelas. com os sentidos alerta, escutou à sua volta os ruídos nocturnos. Chegaram-lhe os sons habituais dos insectos e das folhas do arvoredo, tangidos suavemente pela brisa que soprava.

Ia encontrar-se com dois traficantes de diamantes, que o tinham procurado essa tarde no escritório, acompanhados pelo Correia. Desde há tempos que o Correia e ele falavam na possibilidade de adquirir algumas pedras.

Trabalhavam para diferentes patrões. Chapa ganha, chapa gasta. Angola era uma terra de futuro, dizia-lhe muitas vezes o Correia, quando em casa saboreavam o uísque em amenas sessões de cavaqueira. Numa dessas noites, o Ferreira desabafou:

- Podes crer, amigo Correia, que se me aparecessem umas «pedritas», ficava com elas. Não tenho dinheiro, mas sei quem mo franqueia.

O Correia, com um riso malandro, retorquiu:

- Qualquer dia arranjo-te as pedras e sempre quero ver!

- Ora, será como o meu patrão. Fico rico e passo a ser alguém. Não sabes que o Sila enriqueceu com diamantes?

- Mas isso eram outros tempos. Agora é difícil. Andam muitos ao mesmo!

- Não te preocupes. Arranja o material que eu arranjo o dinheiro sublinhou Ferreira.

Aquilo tinha-se passado há meia dúzia de dias.

Naquela tarde, aconteceu. Os dois acompanhantes do Correia eram indivíduos que não aparentavam mais de trinta anos. O mais alto era mestiço e tinha um porte atlético. Feições antipáticas, a que uns olhos escuros davam um ar de permanente desconfiança. Poucas palavras. O outro, branco, ostentava farta cabeleira negra e mal cuidada. Nos lábios um sorriso trocista. Falava pelos cotovelos. Mostrava-se simpático. Era mais baixo que o companheiro e tinha um ar frágil e efeminado.

- Cinco, de primeira água!-disse-lhe o branco. - Valem mais de mil e quinhentos contos. Deixamos por quinhentos. Temos pressa. Só por isso são mais baratas.

O encontro tinha lugar no escritório ocupado pelo Ferreira, nos armazéns do patrão. O Correia informou:

-Logo à noite podemos vê-las e fechar negócio! Os dois homens despediram-se. O mulato afirmou:

- Vão sozinhos e levem o dinheiro. O Correia sabe qual é a casa! Dito isto saíram.

- Estás a ver como consegui! Agora é contigo. Tens de arranjar a «pasta». Eu só quero dez por cento, depois de os venderes. O resto é teu!

Depois de o Correia ter saído, foi ao cofre onde guardava o dinheiro e separou quinhentas notas de mil. Tomá-las-ia «emprestadas», sem o patrão saber. Só tinha de apresentar contas no fim do mês. Dali a quinze dias. Espaço suficiente para as vender e repor o dinheiro. O patrão nem sequer saberia. Se as vendesse por mil e quinhentos ganhava mil, menos a percentagem do Correia. A grande oportunidade de ficar rico. O problema seria a venda, mas quando chegasse a altura logo se veria. Talvez até o patrão lhas comprasse. Ou o Fonseca, que se dedicava ao tráfico. Gotas de suor corriam-lhe pela cara, enquanto contava as notas. Ouviu passos e rapidamente fechou a porta do cofre. Bateram à porta. Era o encarregado dos armazéns, que sem esperar resposta foi entrando:

- Sr. Ferreira, aqueles sacos de sarapilheira vão todos para a Humpata?

- Quais sacos? - perguntou "Ferreira, limpando o suor. -Aqueles que estão lá no fundo do armazém.

- Sim, manda carregar a camioneta, O negro perguntou-lhe:

- Está doente, senhor? Está branco como aquela parede!

O Ferreira retorquiu num grito:

- Não tenho nada, .porra! Vocês passam a vida a chatear-me. Vai-te embora e manda os homens carregar a camioneta, e fecha-me a merda dessa porta!

O encarregado virou-lhe as costas e saiu rapidamente, cumprindo a ordem. Ferreira sentou-se à secretária e acendeu um cigarro. Depois de soprar o fumo deu por si a pensar se deveria fazer aquilo. Tirar dinheiro ao patrão, ainda que para repor, mesmo sem este dar por isso. A ambição prevaleceu. Abriu de novo o cofre e separou as notas que de imediato meteu numa pasta de cabedal. Da gaveta da secretária, tirou a pistola, que meteu no bolso. Depois, seguiu, para o encontro com a fortuna. Voltou à realidade. Ao seu lado, o vulto do Correia que, em voz baixa, ordenou:

- Espere aqui. vou bater à porta!

Evitando fazer barulho, dirigiu-se à porta da casa e desapareceu da vista do Ferreira, meio oculto pelas goiabeiras do quintal. A casa ficava isolada no meio de um terreno com árvores. O acesso fazia-se por uma estrada de terra batida. A fachada apresentava uma porta servida por dois degraus de pedra e duas janelas com persianas de madeira. Uma de cada lado. Abriu-se a porta e a luz de um candeeiro a petróleo rompeu a noite. Dois vultos. Um deles era o do branco que o tinha procurado essa tarde. Avançou ao sinal do Correia com a pasta bem presa debaixo do braço. Sentia no bolso das calças o volume da pistola: era reconfortante. Em passos cautelosos, transpôs o limiar da porta e entrou num quarto que servia de sala de jantar. A mesa e quatro cadeiras à volta. Numa das paredes, um aparador de espelho trabalhado. Por cima, emoldurada, uma ceia de Cristo com os Apóstolos. Cortinados nas duas janelas. Sentaram-se os quatro e o mestiço perguntou:

- Trouxe o dinheiro? Ferreira apontou para a pasta:

- Está aqui. Posso ver as pedras?

O mestiço meteu a mão nos bolsos do casaco que vestia e tirou um lenço de cor indefinida com um nó. Desatou-o e no meio as cinco pedras. Quatro delas tinham um brilho gorduroso, fazendo ressaltar a mais pequena que era, no entanto, a que mais chamava a atenção pelo seu brilho com reflexos azulados de aço. Era linda, e parecia irradiar um esplendoroso mistério. Apesar da noite fresca, os bagos de suor corriam da testa do Ferreira. Estava deslumbrado. Eram cinco pedras que deveriam ter entre os sete e os nove quilates cada uma. A de brilho azulado parecia quase lapidada. O Correia pegou nela e colocou-a no chão, entre duas moedas. com o pé carregou com toda a força, tentando fazer com que a pedra se estilhaçasse. Não se ouviu nenhum estalido. Observou as moedas. Ambas apresentavam no meio uma pequena concavidade. Repetiu a operação com as outras quatro. O resultado foi igual. Comprovou a autenticidade dos diamantes.

- São boas. Podes ficar com elas. Valem o que eles pedem.

O Ferreira abriu a pasta, ao mesmo tempo que enxugava com o lenço o suor que lhe escorria pelo rosto. Tirou as notas e entregou-as ao mulato. Segurou as pedras, entesourando-as no lenço e meteu-o no bolso junto à arma. Entretanto, o mestiço contava as notas e por fim, com um sinal de cabeça, justificou que estava tudo certo.

Sentado ao volante do carro, o Ferreira sentia ainda as pernas a tremer. Tinha a camisa completamente molhada. Queria sair dali rapidamente. O Correia ainda estava dentro da casa, falando com os traficantes.

- Polícia. Fique quieto!

Percebeu, de repente, que um homem do lado de fora da janela do carro lhe apontava uma pistola. Como se isto fosse um sinal, ouviram-se vozes próximo da casa, enquanto alguém gritava:

-Quietos. Polícia. Não se mexam. A casa está cercada!

Um tiro foi disparado do interior da casa. Resposta imediata de um dos agentes que a cercavam. Um grito de dor e de novo o silêncio, por breves instantes.

O Ferreira estava sem pinga de sangue. Saiu do carro e sentiu que lhe punham qualquer coisa à volta dos pulsos. Ao pé dele, um homem cujo rosto se perdia na noite, mostrava-lhe a identificação de polícia da Diamang. Da casa, vinham agora vozes diversas. De mãos erguidas, surgiram os dois traficantes. O branco coxeava. Parecia ferido. Em conversa com um dos polícias, o Correia:

- Estava a ver que vocês não chegavam a tempo. Tive de empatar os sacanas.

Lívido, Ferreira olhou o pretenso amigo:

- Traidor! Grande filho da puta!

O escândalo abalou a cidade.

Na pastelaria, as conversas do dia versavam o caso, e cada um tomava partido, consoante as suas simpatias. Na sua maioria, os clientes lamentavam a sorte do Ferreira. Toda a gente fazia conjecturas. Muitos garantiam que a polícia da Companhia há muito andava atrás dos traficantes. Chamavam nomes ao Correia, garantindo que desconfiavam dele, como informador.

A prisão dos três homens constituía o grande tema de conversa. Houve quem lamentasse a sorte do Sila, pela traição do seu empregado.

O Sila, nas suas declarações, garantiu que tinha a maior confiança no seu guarda-livros. Aquilo não passara de uma hora azarada. Desde que lhe devolvessem o dinheiro, não queria nada do Ferreira. Não apresentava queixa por roubo.

No íntimo, lamentava a pouca sorte do Ferreira. Lembrava-se que ele mesmo tinha conseguido a sua fortuna em tempos, graças à compra de diamantes em bruto. É certo que de forma diferente. Tivera sorte, mas também fora cuidadoso.

Aquelas pedras estavam na terra. Faziam parte da natureza. Era profundamente injusto que não pudessem ser vendidas por quem as possuía. Estando na terra deviam ser propriedade de quem as encontrasse. Não eram de ninguém em especial, portanto não se cometia nenhum crime ao vendê-las.

Tudo tinha acontecido fora dos limites da zona demarcada pela Companhia, região onde se removiam montanhas de terra para garimpar as pedras a custo do trabalho duro e quase escravo dos negros, que passavam vidas inteiras naquilo, desde crianças praticamente. Ferozmente guardados por uma segurança especial, que servia os interesses da Companhia. Um Estado, dentro de outro Estado. Apesar de tudo ter acontecido na Huíla, a companhia estendia até ali os seus tentáculos.

Não era justo.

Sila sentia-se também magoado pela atitude do Correia. Montara tudo em pormenor, para conseguir apanhar os dois traficantes, sem se importar que um pobre desgraçado ficasse arruinado, por aquele momento de fraqueza.

Agora percebia que tudo deveria ter sido montado com tempo. Uma operação cuidadosamente preparada. Ouvira falar noutras situações semelhantes. Alguém lhe contou a história de uma prisão feita numa igreja de Malanje, a uma mulher.

A polícia sabia da transacção e que ela iria ser realizada no templo e preparara tudo.

Prenderam-na quando ajoelhada recebia das mãos do vendedor o embrulho de pedras e lhe entregava o dinheiro.

Eles eram capazes de tudo para desencorajar as pessoas a transaccionarem os diamantes em bruto.

Apesar disso continuava a ser um grande negócio, sobretudo quando proporcionado por negros, que os tinham, e vendiam por tuta e-meia, ou a troco de vinho.

Muitos estavam de acordo com a repressão ao tráfico. Afirmavam alie se toda a gente comprasse e vendesse diamantes livremente, eles acabariam por perder o valor.

Sila, sem saber se o fazia para justificar o seu passado de comprador, prometeu a si próprio ajudar Ferreira. Da melhor forma. Madalena ficou abalada com a notícia. As lágrimas corriam. A partir dali, a sua vida perdia a única aura de beleza que alguma vez possuíra, exceptuando a existência do filho.

Aquele homem de quem gostava estava preso. As esperanças morriam-lhe no peito em convulsões de choro. Julgava-se culpada. Várias tinham sido as vezes em que o amante lhe falara de riqueza. Para a possuir. Só para ele. A única maneira de a ter por inteiro. Agora Madalena julgava ter sido essa a razão da aventura. O Ferreira foi condenado a dez anos de prisão, que cumpriria na Colónia Penal do Bié. O patrão não apresentou queixa sobre o roubo. Conseguiu reaver o dinheiro. Ajudou o guarda-livros pagando-lhe o patrono, mas a Companhia ganhou o processo. O Correia, entretanto, tinha desaparecido da cidade. Numa das habituais tertúlias, ficou sabido que o homem era um dos muitos informadores a quem a Companhia pagava para se introduzir nas redes ilegais de traficantes de diamantes. Uma legislação dura protegia os interesses da Companhia em todo o território.

Afirmava-se à boca cheia que a polícia da Companhia tinha poderes especiais, em alguns casos até, superiores ao restante corpo de polícia. Sabia-se que em Malanje, onde a transacção ilegal era particularmente intensa, o núcleo de informadores da polícia, muito activo, permitiu algumas prisões que deram escândalo. O Correia teve tempo para planear aquela operação que levou à prisão do empregado do Sila. Insinuou-se. Conquistou confiança, E por fim, traiu.

Beto Machado, com um brilho nos olhos, reafirmou:

- Claro que o meu pai me emprestou o jipe. Podemos ir!

- Até me custa a acreditar. Isso é bestial, pá. Canivete sabe de caça ao elefante. O primo leva-nos lá.

Ao mesmo tempo que dava a informação, Toni assumiu naturalmente o comando das operações.

- Partimos esta noite. É sextanfeira e vou pedir ao meu pai que me empreste as armas. vou dizer-lhe que vamos os dois aos guelengues. Diz o mesmo ao teu velho. O meu pai tem cá pessoas do Governo de Luanda e as suas obrigações, como presidente da Câmara, não permitem que ele os abandone. Por mim, estou descansado.

Beto fez um sinal de quem estava de acordo e perguntou:

- E as armas?

- vou levar a Nove-três, a Trezentos-e-setenta-e-cinco para os elefantes e a Sete-cinquenta-e-sete para o resto.

Vamos à Humpata buscar Canivete e seguimos para a zona. Atesta o jipe.

O Beto deu-lhe uma palmada nas costas em jeito de despedida e foi-se às ordens.

Matar sozinho um elefante! O grande sonho de qualquer um deles. Os dois eram amigos e companheiros de há muito tempo. Isoladamente já tinha abatido impalas, olongos, gueJengues, pacaças e outras peças. Elefantes nunca! Beto Machado conduzia o jipe. Ao lado, o amigo entregue aos pensamentos. Nenhum dos dois falava. Atrás, os dois negros. Canivete e o primo que era um bom pisteiro. Entraram na zona do Bicuar percorrendo as picadas indicadas pelo guia. Chegaram a uma senzala. Breve conversa com dois dos seus habitantes e a indicação:

- Minino, os elefante foi visto bem perto. Os patrício diz que viu ontem à noite o barulho dos barriga. Estão perto, mesmo!

Os jovens perceberam imediatamente. Sabiam ser possível ouvir o barulho dos intestinos daqueles colossos a dois quilómetros de distância sobretudo durante a noite. A manada deslocava-se a uma velocidade de dez quilómetros horários. Deviam estar agora a cerca de cinquenta ou sessenta quilómetros daquele local. Tudo se conjugava.

Ao longo da picada podiam observar-se algumas árvores derrubadas e ramos partidos. O mucibe e o murilaonde, cuja seiva era cor de sangue e daí o nome que os indígenas lhe davam, apresentavam pegadas da passagem dos elefantes, com lenhos diversos nas cascas, eram árvores não facilmente derrubáveis pelos animais. A tarde estava no fim. Os negros informaram da existência de uma tala não muito longe. Continuaram na direcção indicada. Sabiam que a manada estava ali para beber.

Duas horas depois avistaram o local. Um vale, com a extensão aproximada de um quilómetro, mostrava a meio bebedouro e piscina dos paquidermes.

- Eh patrão. Ali está o tala, onde os elefante vai estar amanhã a beber!

O caçador negro apontava o objectivo. Nessa altura Toni mandou parar para procurarem um local onde pudessem esconder o jipe. Dirigiram-se à orla da mata. Debaixo das acácias camuflaram a viatura. Descarregaram e Canivete iniciou a marcha carregando à cabeça uma bateria para alimentar o farolim. Os dois jovens caçadores transportavam as armas e, cada um, o saco com o equipamento pessoal. O guia, além da mutunga que transportava à cintura, trazia ao ombro a Sete-cinquenta-e-sete para os antílopes.

Desceram a encosta, não muito íngreme, em direcção a umas pedras próximas da tala. Já no leito do vale, embrenharam-se no capim, que era tão alto como os homens. Pisavam cuidadosamente o terreno tentando não provocar barulhos que pudessem assustar a manada, na hipótese de ela se aproximar.

O Sol estendia o seu manto dourado sobre a copa das árvores perfiladas no horizonte.

Rodeando-se de todas as cautelas, observaram a margem da tala. Na confusão dos sinais, a pegada de um macho. Mais funda que a das fêmeas por ser mais pesado. Toni e Beto olharam-se, felizes. Iam realizar o seu sonho de, sem o apoio de caçadores mais experientes, matarem sozinhos o primeiro elefante.

Esconderam-se atrás das pedras. A manta no chão. E prepararam-se para a noite. Não podiam fazer o mínimo ruído. Nem fumar. Ambos guardaram nos bolsos os relógios de pulso para evitar reflexos. Os elefantes eram animais atentos.

O Sol dormia já.

Vigilantes, os quatro aguardavam a aproximação da manada.

Canivete, atento aos movimentos de Toni, sentia o medo entranhar-se-lhe na pele. Os paquidermes assustavam-no. Há muito ao serviço do branco, reconhecia a afeição do seu ajudante e cozinheiro, proporcionando-lhe um tratamento diferente daquele que dispensava ao restante pessoal. Canivete era também amigo de Isabel Tchilombo. Passaram longos anos de fidelidade. O negro estava sempre disponível para os caprichos do jovem. Toni retribuía, tratando-o como se ele fosse da família.

O guia que os acompanhava, estava todo enrolado na manta, mas com os sentidos alerta aos ruídos da mata. Pensava nas pegadas do macho à beira da água e calculou que os dentes deviam pesar mais de trinta quilos. Aquele elefante já tinha mais de cem anos. No chão à sua direita, a arma. Do lado esquerdo, o farolim, pronto a ser ligado à bateria, o que permitiria focar os elefantes ao aproximarem-se da tala, para beber. Escutava distintamente os animais a partir os troncos mais altos das árvores para comerem as folhas. Beto tentava desesperadamente resistir à vontade de fumar um cigarro. O seu espírito viajava por outras paragens. Não conseguia deixar de pensar na namorada do amigo. Amava-a com toda a intensidade dos seus dezassete anos. Conhecia todas as formas do seu corpo, sem nunca as ter acariciado. Os lábios sensuais de Julieta constituíam-se no maior martírio dos seus sonhos, em que tantas vezes parecia sentir o toque daquela língua rosada na sua boca, como se fosse o aveludado das pétalas de uma rosa, onde a noite depositara minúsculas gotas de orvalho. A presença de Julieta irradiava uma doçura de alma só experimentada ao fim do dia quando o sol estendia os seus raios dourados para um afago morno da terra. Nessas alturas, os olhos humedeciam em êxtase, enchia os pulmões do perfume da natureza como se fosse o cheiro do corpo amado. Toni nem sequer calculava tal possibilidade. Para Beto, ele significava o irmão que desejava ter. Seria incapaz de lhe roubar a namorada. Escrevia na solidão do seu quarto longos versos. Remetia-os às catacumbas duma gaveta, na secretária. De todos Julieta fora a musa. Em quase todos, a frustração por um amor não correspondido. Olhou para Toni e fez-lhe sinal de que ia fumar. com a manta cobriu a cabeça e acendeu dois cigarros. Passou um deles ao amigo, encobrindo os morrões com a concha da mão. Ambos encheram os pulmões retendo a respiração por segundos a fim de saborearem o gosto do tabaco. Deixaram sair o fumo lentamente pela boca e pelas narinas.

- Eh aka, minino, apaga o cigarro! O elefante vai sentir o cheiro e não vai vir!

Obedeceram à ordem do guia e esmagaram na terra os cigarros. Sorriram. Informal pedido de desculpas, a que o negro correspondeu, com uma expressão no rosto, como se olhasse uma criança a fazer traquinices.

Beto ajeitou a arma a seu lado e a lanterna de pilhas.

Preparou-se para passar pelas brasas. Toni sentou-se encostado à pedra. Dirigiu o olhar para os dois negros deitados a seus pés e enrolados nas mantas. O rosto calmo de Canivete recordou-lhe a expressão que ele tinha, quando há algumas semanas atrás os dois conversaram durante uma caçada em que o negro lhe revelou que ele era filho de Isabel Tchilombo.

Canivete deixou fugir a verdade quando, sentados numa pedra, descansavam da caminhada e o jovem lhe perguntou há quantos anos trabalhava para seu pai. Canivete respondera:

Ainda Isabel andava contigo no barriga já eu trabalhava para o patrão.

Xoni recordava-se da revelação e do momento de angústia que o negro deixou transparecer, no rosto dilacerado pelo medo:

- O quê?-perguntou o rapaz.

Canivete tentou disfarçar, mas Toni exigiu-lhe a verdade.

Choroso, o negro contou. Então percebeu por que lhe chamavam «o mulato». Até ali pensara que isso não passava de uma alcunha devido ao facto de ele ser bastante moreno. Tinha a pele muito mais escura que a do irmão, e da que ele julgava ser sua mãe. Depois, a verdade arrancada à força a Isabel e a explicação do pai: sentiu um grande choque. Pensou que os seus amigos e colegas o poderiam marginalizar. Percebia só agora a grande ternura que Isabel sempre lhe manifestara. Falou com o Beto sobre o que ele pensava «ser mulato».

- Eu já sabia, pá. Que é que isso tem? O teu pai não é branco?

- Sim! Mas sou filho de uma negra!

- Então, minino, tu não dormes?

mãe é negra. É a Isabel. Tens mais sorte do que eu. Tens duas mães que gostam de ti. Que tem ser mulato, como tu dizes? És como eu. Não entendo qual é o teu problema!

Olhou novamente Canivete e deu por si a pensar: «Tenho sangue negro nas veias como ele...»

Nesse momento, o guia perguntou-lhe, em voz baixa:

- Então, minino, tu não dormes?

Ajeitou a manta à volta do corpo, reclinou a cabeça na pedra e fechou os olhos.

No céu, a lua destapou-se, afastando a nuvem que a cobrira durante alguns minutos.

A terra vestiu-se de prata.

Instintivamente, Toni levou a mão à Três-setenta-e-cinco, que estava a seu lado. Assacando o safanão com que o guia o brindou, silenciara. Apontava para o seu lado esquerdo.

A Lua estava de novo encoberta pelas nuvens, agora mais densas. Fixou o olhar na direcção apontada e, a menos de dez metros, um vulto ajoelhado sobre as patas da frente.

De dentes amarelos e arreganhados, a hiena olhava para eles. Toni colocou a arma à ilharga. O guia já tinha na mão a mutunga. Sabia por instinto que não havia perigo. O animal que tinha sentido vida, depois de farejar, afastar-se-ia. Assim aconteceu. A Lua voltou a pairar no céu.

Entretanto, Beto, já acordado, observava a orla da mata à sua frente. Na encosta, recortavam-se vultos de elefante. Avisou os companheiros. Ocultos pelas pedras, os homens, em número de quatro, aguardaram. Atentos. com uma frente de cerca de trezentos metros os elefantes acatavam ordens do chefe de fila da manada.

Isolado, este parecia examinar o ar volteando a tromba em todas as direcções. As presas distinguiam-se, brancas, em contraste perfeito com o resto do enorme corpo cinzento. E obedecendo a um sinal invisível movimentaram-se em direcção da água.

Toni, Beto e o guia estavam já de pé. Canivete parecia pregado ao chão como se as forças o tivessem abandonado completamente. Olhava na direcção contrária e o que via tirou-lhe a fala imobilizando-o daquela forma. De repente, apontou a encosta que ficava no contraforte oposto àquele para onde os seus companheiros olhavam. Então, todos viram o espectáculo aterrador. Outra manada, vinda desse lado, também se dirigia à tala para beber. Eram mais de cinquenta animais, a uma distância aproximada de meio quilómetro. A situação era crítica. Estavam no meio da passagem das duas manadas. Aparentemente, sem nenhum sinal, desataram a fugir na única direcção aconselhável. Aquela onde estava escondido o jipe. Deitaram mão ao que foi possível para além das armas. Beto empunhou a lanterna. E logo, desenfreada corrida de pronto pôs os caçadores na orla da mata. Ofegante, o guia negro sacudiu Toni. O disparo inesperado partiu, apontando um macho solitário atrás da manada. Enquanto Beto apontava a lanterna de cinco pilhas, focando o animal, Toni ripostou. A manada em debandada desatou em correria em direcção à tala, para onde nesse momento também se dirigiam os elefantes da manada maior. O solitário foi atingido na zona mais difícil para abater um elefante: um ponto situado no vértice de um triângulo entre os olhos. A bala que Toni disparou de sua Três-setenta-e-cinco, tinha provocado um embate de largas toneladas perfurando a cabeça do animal para se alojar no cérebro. O paquiderme de duas toneladas ajoelhou com o embate, como se antes de morrer pedisse perdão pela sua solidão. Normalmente os elefantes abatiam-se com um tiro numa zona situada sob as orelhas. Aquele tiro tinha sido quase sobrenatural. Poucos caçadores o conseguiam. Toni conseguiu-o sozinho. O seu primeiro elefante. Sem a companhia e os conselhos do pai. Era uma emoção nova mas há muito desejada. Sozinho sem o pai. Como se tal acto fosse uma espécie de cerimónia de circuncisão. A passagem de adolescente a homem. Aquele elefante significava a prova de que o seu poder fazia também parte daquela terra castanha. Era a magnífica força da Mãe África.

Beto abateu um outro macho mais pequeno, com dois tiros de precisão e que se alojaram na espádua do animal. Dirigiram-se rapidamente ao jipe, enquanto as fêmeas acompanhadas das duas crias aproximavam do animal abatido. Andaram à volta dele, como a convidá-lo a seguir viagem.

Os caçadores dirigiram-se depois à senzala por onde tinham passado. A alegria reanimava os diversos comentários que os quatro faziam sobre a experiência acabada de viver.

Esqueceram por completo o perigo que os acompanhou nessa noite de Junho. No dia seguinte, toda a senzala se pôs em movimento para esquartejar os animais abatidos, aproveitando avidamente a pele, a carne, as entranhas.

Quatro toneladas. Os dentes dos dois animais pesavam cerca de trinta quilos cada par. Marfim coroado a peso de oiro. A única parte cobiçada pelos caçadores. O resto encheu a festa que os habitantes fizeram naquela senzala, algures na região do Bicuar.

Toni ofereceu ao pai as duas presas de um elefante, não sem antes relatar a alegria do festim.

A princípio, o Sila mostrara-se zangado pelos riscos corridos, mas no íntimo orgulhava-se do rapaz.

Quando Eduardo entrou, Toni teve de repetir toda a história ao irmão que, afinal, o tinha por herói.

- Por que nunca mo disseste, mãe?

Toni interrogava Isabel Tchilombo, num tom de voz calmo e terno, como se lhe quisesse transmitir o calor que lhe abrasava o peito.

Isabel segurava-lhe as mãos e olhava-o nos olhos. Recebia do filho essa ternura. Segredo de alma. Toni queria recompensá-la por isso. Duas lágrimas impregnaram os olhos da negra. Nos lábios, o silêncio. O amor vestiu novas roupagens. E Toni deu por si a dizer:

-Mamã Isabel!...

Os dois, num gesto que vinha das entranhas do tempo, abraçaram-se. Isabel afagou os cabelos do filho. Os silêncios que a negra trazia na alma expulsava-os agora das entranhas, não sendo mais pertença sua. Sem perceber bem porquê, no momento em que o abraçava, vislumbrou nele a imagem de Sila. O branco que amava. Confirmou a cicatriz que o tempo não apagara e que José Chipindo fizera com a catana do ódio, quando na cubata os tentara matar.

Isabel retomou as palavras:

- Negra não tem filho de branco!

Tinham sido proféticas. Tendo-o parido, nunca fora seu filho.

Só agora retomaria o passado. O filho outra vez protegido pelos seus braços de mãe. Olhou-o de novo e viu nele a força do branco e o suor de sangue amassado na seiva dessa terra, para onde o parira de cócoras, entre os sons estridentes do batuque e os seus gritos de dor.

Um céu cor de sangue. Voltou a ser noite.

- Estou-me nas tintas para isso. Quero lá conhecer a metrópole!

Toni levou a chávena de café à boca e sorveu mais um gole da fumegante bebida. Beto Machado dava-lhe atenção. Estavam sentados à mesa do café onde se costumavam encontrar.

- Mas o teu pai nasceu lá!

- Quero lá saber. Eu nasci cá. Esta é a minha terra. Além disso, gostava de saber se achas que os «gajos» lá do Terreiro do Paço têm alguma coisa a ver com isto?

Beto retorquiu:

- Se o teu pai sabe, estás lixado! Imagina o filho do presidente da Câmara a falar assim. Tem juízo, Toni, sabes muito bem que esta terra é portuguesa. Sabes que eu nasci cá e gostava que Angola fosse um grande país, mas tens de concordar que sem a metrópole não somos nada...

- Porra, Beto! Já te disse que não precisamos daquilo para nada. Parece que não sabes tão bem como eu que esta terra tem tudo. Bons terrenos para a agricultura. Até o deserto de Moçâmedes produz. Já comeste azeitonas de lá, ou uvas? Sabes que nos planaltos se produzem todas as espécies frutícolas e hortícolas? Até cereais. Temos diamantes e ouro. Há petróleo em Cabinda, segundo o que ouvi dizer. Temos das mais exóticas madeiras do mundo. Falta-nos muita coisa, eu sei. Indústria pesada e ligeira, mas até isso é possível montar. Quantos países não ajudariam. A merda somos nós. Os homens. Como tu e eu que só discutimos à mesa do café e falamos em Nação única, quando os professores nos obrigam a saber na ponta da língua na instrução primária, os rios e os caminhos de ferro de Portugal, mas ninguém te obrigou a saber onde nascem os rios de Angola, ou as montanhas. É claro que me estou a referir aos «putos» da escola primária...

O Beto interrompeu a verve do amigo, que se o deixassem não Pararia.

- Espera aí. Não é bem assim. Sabes que é preciso preparar homens Para todas as actividades. Ora nem sequer temos universidades. Isto anos depois de uma guerra que «ajitou o mundo. Tu e eu, se quisermos ser alguém, temos de ir para Portugal frequentar a universidade. Ninguém te impede!

Toni atacou:

- Dizes bem. Ninguém impede agora! Sabes bem que há anos não era possível para os nascidos cá. Nem para a Escola do Exército podiam ir e hoje a malta vai. Nascido aqui eras considerado português de segunda, mesmo sendo branco. Imagina, eu que sou mulato, como é que seria considerado?

-Branco como eu! O teu pai não é branco, Toni?

- E a minha mãe não é negra? És capaz de me dizer a que terra pertenço?

Beto calou-se, mas sabia a resposta. Só podiam pertencer a uma destas classes; europeu, assimilado ou indígena, um eufemismo para definir branco, mulato e preto. Apagou o cigarro no cinzeiro. Olhou o amigo que espelhava no rosto as dúvidas que lhe devassavam a alma. Fez um gesto para o criado. O negro aproximou-se e perguntou:

- Quer alguma coisa, minino? Toni pediu:

- Traz-me outro café!

- Sim senhor, patrão!

O negro tinha estado a seguir a conversa. Logo partiu, merengando a bandeja nas mãos.

Amélia era uma mulata de dezasseis anos, natural do Bié, e filha de um comerciante daquela zona. Estudava no liceu de Sá da Bandeira e vivia em casa de uma família que hospedava raparigas-estudantes, oriundas de várias regiões do Sul de Angola. Colega de Toni Sila, nutria por ele uma paixão vigorosa de adolescente. Amélia Vasconcelos era companheira de quarto da namorada de Toni. Calava o amor que sentia sobrepondo a amizade pela amiga e colega, de quem era confidente.

Cabelos negros e olhos castanhos emolduravam um bonito rosto, de feições suaves, a que uns lábios carnudos emprestavam sensualidade. Possuía um corpo de menina-mulher, com as linhas harmoniosas em que se adivinhava o desejo quente, provocado pela mistura das duas raças. Não só os lábios ressumavam sensualidade. Também a voz. E os gestos. O ondular das ancas. Prodígios para atenção de homem.

Amélia sabia o segredo de Julieta. Uma garra cravava-se-lhe no peito, provocando a dor do ciúme, enquanto a loira, sua amiga, de lágrimas nos olhos, lhe contava da sua vergonha.

Tudo acontecera na tarde do sábado anterior em que não tiveram a última aula da manhã. Toni esperava-a junto aos portões do liceu com acesso para o campo de futebol. Dali seguiram os dois, de livros debaixo do braço, mãos dadas e o olhar vivo de amor em direcção aos «caboucos».

Os «caboucos» eram um terreno baldio, grande extensão, nas traseiras do liceu que servia de retiro para namorados, abrigo contra indiscretos olhares dos colegas e também dos sempre atentos professores. Os sulcos profundos no terreno ou as grutas naturais serviam de recanto propício à solidão de quem queria estar só. Os namorados.

A malta estudante sabia-o. Era a primeira vez que Julieta ia com o namorado para os «caboucos». Há mais de três meses que durava o namoro. Repleto de ternura, longos beijos e sensuais carícias, em escondidos recantos. De noite, às escondidas, Julieta, com a cumplicidade de Amélia, encontrava-se, de fugida, nas proximidades da casa onde morava, com Toni.

Desejavam-se. Toni falara-lhe no passeio pelos «caboucos» e Julieta já tinha ouvido contar histórias, ali acontecidas, com outras raparigas. Algumas foram descobertas pela rapaziada mais nova, que fazia das «borlas» uma festa para perseguir os namorados que ali se refugiavam. Isso não lhe saía do pensamento, mas o amor era mais forte. O desejo também cedeu às solicitações de Toni, e conforme o combinado, lá foram de mãos dadas pelo caminho do amor, sem nenhum dos dois prever o que iria acontecer. O rapaz conduziu a loira e esbelta namorada para uma das grutas, não muito afastadas dos muros que cercavam o liceu e que, protegidas por árvores de pequeno porte, as retiravam da curiosidade e do roteiro dos passantes.

Toni quando aluno do primeiro ciclo, brincava aos «castelos» com os companheiros naquela zona, imaginando-se todos cavaleiros do rei em aventuras de capa e espada, influenciadas pela leitura ou pelos filmes.

Sentaram-se atrás das muralhas naturais formadas pelos morros-, parecidos com os da formiga salalé e fecharam no espírito as portas daquele ninho de amor.

Julieta abandonou-se nos braços do amado. De carícia em carícia, Toni conquistou-lhe a sensualidade e de repente sentiu-se beijada nos rosados mamilos expostos ao terno olhar e aos quentes beijos do jovem. Um frémito percorreu-lhe a espinha e sentiu duros os seios. Entre as coxas o húmido desejo instalou-se, quando o companheiro lhe acariciou o sexo. Fechou os olhos e sem coragem para resistir abandonou-se. Viu ao seu lado o pudor que vestira essa manhã, enquanto os rins se vergavam em suave impulso dado pelo namorado. Frio contacto com a terra. Abriu-se enquanto Toni percorria em longos gestos de ternura todos os coros da sua pele. As mãos afagavam-lhe os pequenos seios e a língua moldava o endurecimento dos mamilos. Julieta sentiu quente o volume que lhe aflorava os lábios vaginais. Teve medo. O desejo venceu-a. Toni pronunciava o seu nome entre suspiros roucos. Uma dor cavalgou-lhe o sexo. Tal como o desabar repentino de uma tempestade, o prazer inundou-a e sentiu-se húmida. Uma convulsão percorreu o corpo do companheiro. À primeira, outras se seguiram. Julieta abriu-se ainda mais. Queria que o seu amado fizesse parte de si. Queria senti-lo como se fosse o seu próprio corpo. Sua própria pele. Apertou-o num forte abraço não querendo deixar fugir de si a vida que lhe batia forte no peito, incendiando as entranhas. Não soube contar o tempo. Voltou à vida quando sentiu escorrer-lhe o calor líquido da virgindade que acabara de perder. Esquecidamente ficaram na memória daquele amor.

Amélia escutava e deixou rolar pela face o desespero do ciúme pela felicidade da sua amiga e companheira de quarto. Jurou guardar segredo. Julieta acreditou.

Não muito longe, Beto prometia a Toni a mesma fidelidade. No peito o desespero pelo que acabava de ouvir. Perdera o sonho da sua vida. Aquela loura e jovem mulher que em silêncio amava, por amizade pura a Toni.

Sila observava a expressão fechada do filho. Tinham falado das origens. Da vida deles. Dos sofrimentos, das vitórias. O filho, nos últimos minutos, não o interrompera. Escutava. Pela memória do pai, viu perfeitamente os primeiros anos da sua vida atribulada. A viagem de barco. O trabalho ao balcão na loja do mato. Comparou a história do seu nascimento com a versão que a mãe lhe deu e concluiu que eram convergentes. Ouviu a justificação do casamento com Madalena a quem ele se tinha habituado a chamar mãe. Ficou a saber que só era meio irmão de Eduardo. Gostava de facto do irmão. Amava-o e protegia-o sempre. A partir dali encontrou a justificação para a forma como Madalena protegia o filho, o que não acontecia com ele. Isso às vezes provocava-lhe ciúmes, por pensar que ela gostava mais de um que do outro. Agora sabia porquê!

Reconhecia que o pai tinha por ele um apreço maior, uma afeição mais profunda que por Eduardo. Isso já lho tinha sido demonstrado inúmeras vezes.

- Sempre tive por ti um grande orgulho, apesar de também amar o teu irmão. Sabes da minha preferência. Foste sempre o meu companheiro. Na caça. Nas viagens. No quotidiano, na vida de que falamos abertamente. Conheces muitos dos meus desejos e sabes para onde quero ir e o que pretendo alcançar. Para ti!

Toni sabia-o. O pai demonstrava-o frequentes vezes. Pelo que lhe dava. Pelos projectos para ele assumir mais tarde o comando do seu já importante império económico.

Ultimamente Toni tinha outros interesses e não passava tanto do tempo em contacto com a empresa do pai. Ocupava-se no namoro na Julieta e aos fins-de-semana caçava. Começou a ler, e tudo lia.

Transformação radical na sua maneira de ser. Tentava desesperadamente entender as relações entre os homens e queria perceber o porquê das diferenças sociais. Nessa conversa disse ao pai o quanto lamentava que a mãe tivesse preferido a solidão de uma vida marcada pela diferença da cor:

- Foi um grande choque para mim saber que Isabel era minha mãe!

António Sila justificou o segredo.

- Tencionava contar-te logo que fosses mais homem. Só agora percebo que não te devia ter ocultado a verdade.

Toni não insistiu. Pediu ao pai que no período das férias o deixasse sozinho durante algum tempo na fazenda. Queria aproximar-se da mamã Isabel.

Sila concordou. Naquele momento, estava preocupado com a reunião na Câmara onde se discutiria a cedência de uns terrenos para construção de moradias.

- Não estou de acordo. Proponho o adiamento - afirmou o Sila.

A discussão arrastava-se. A reunião da edilidade verificava-se para aprovar a venda de lotes de terreno junto à Senhora do Monte. A Câmara tinha recebido oito projectos de moradias, que pretendiam construir, naquela zona, diversos funcionários superiores do Estado, professores e militares, entre outros.

Os referidos terrenos estavam ocupados por construções ilegais, onde habitavam oito modestas famílias de operários do caminho-de-ferro, contínuos de diversas repartições públicas, anónimos. Sila opunha-se a desalojar as famílias sem que primeiro fosse encontrada uma solução para a habitação dessa gente modesta. Tinham-lhe pedido ajuda. Prometeu que sim, até porque planificava nesse momento a construção de um bairro económico, planta padrão, que satisfazia as mais elementares necessidades. Casas para os mais humildes, mas de construção definitiva, com água, luz e esgotos. Já tinha escolhido o local perto do rio Mapunda, sobranceiro à estrada que dava acesso à bifurcação para Moçâmedes, Benguela e Nova Lisboa. Era preciso alojá-los rapidamente. Só depois poderiam ceder os terrenos para a construção das moradias, cujos projectos aguardavam aprovação. Os terrenos em disputa eram pertença do Município e a Câmara queria nesse local fazer um grandioso bairro residencial, que naturalmente serviria melhores bolsas.

Sila estava de acordo. Mas só depois de resolver o problema das famílias que ali tinham construído, um pouco ao sabor do acaso e sem autorização, as casas de «pau-a-pilue -

Propôs a suspensão da reunião por uma hora. Foi avisado de que ao telefone estava o secretário do governador, que lhe queria falar.

O governador recebeu-o à porta do gabinete.

- Sr. Sila muito gosto em vê-lo e obrigado por ter acedido ao telefonema que o meu secretário lhe fez. para vir aqui.

Sila desconfiado respondeu:

- Não tem de quê, Sr. Governador. -? Sente-se. Quer um café?

-Não, muito obrigado!

A mais alta. autoridade do Governo na Huíla era um homem que aparentava cinquenta anos. Bem fornecido de carnes. Raro cabelo. Não mais que um metro e setenta. Feições de traço rude. Duplo queixo. Lábios grossos. Olhos castanhos, mas alegres. Pretendia insinuar-se simpaticamente junto do presidente da Câmara. Todo atenções. Ofereceu-lhe um charuto de boa marca. Recusado. Acendeu um para si próprio e tocou a campainha.

-A família como vai?

-Bem, Sr. Governador!

Entrou o secretário e o governador pediu-lhe que lhe trouxessem café. Momentos depois era atendido, enquanto trocava banalidades com o visitante. Aquém da secretária, uma grande moldura exibia Salazar. Na parede oposta, uma outra mostrava o presidente Craveiro Lopes. Estavam frente a frente. O representante do Estado abriu o jogo. Disse do muito interesse que o Governo tinha em ver resolvido o problema dos terrenos e pediu a colaboração do presidente da Câmara, para que o processo fosse decidido a favor dos construtores das moradias.

Sila que já estava desconfiado do objectivo daquele encontro, utilizou todos os argumentos disponíveis para defender os seus pontos de vista, garantindo que a pretensão seria satisfeita, mas que em primeiro lugar ter-se-ia de alojar os mais necessitados. Só despacharia favoravelmente a pretensão, a partir do momento em que o Governo o ajudasse, conforme proposta há muito avançada: necessárias verbas para o projecto de realojamento no bairro que a Câmara queria construir e onde aquelas oito famílias teriam lugar prioritário. O governador mostrou-se agastado, mas prometeu resolver urgentemente a pretensão. Sila sabia que, pelo facto de não se ter vergado à vontade do primeiro magistrado da Huíla, arriscava-se a deslindar um conflito de interesses que teria reflexos na sua actividade camarária. A despedida foi fria. Temporariamente tinha ganho a questão. Na reunião da Câmara venceu o seu ponto de vista.

Dias depois dava-se início à construção do bairro económico.

Os humildes, os mais desfavorecidos, tinham ganho.

Eduardo regressava a casa depois de terminada a aula de piano com Ema Mota Sequeira. Apurava a técnica e já interpretava algumas peças mais simples de alguns «compositores clássicos. Era o melhor aluno de D. Ema.

Parou nas montras da livraria. Interessavam-no os títulos expostos. Satisfeita a curiosidade, retomou o caminho para casa, à beira do pasio- Olhos postos no chão, perdido em pensamentos, tentava-se pela compra de mais um novo livro à venda sobre a segunda guerra mundial.

De repente, sentiu-se empurrado. Ergueu os olhos. À sua frente o filho mais novo do enfermeiro Barata. Não eram colegas. O jovem negro frequentava a Escola Comercial. Conheciam-se de vista. Eduardo deixou cair a pasta que transportava debaixo do braço.

- Eh pá, vê lá por onde vais!

O Barata sem mais nenhuma explicação, aproveitou o momento em que Eduardo apanhava do chão a pasta que continha as partituras agora espalhadas, e deu-lhe um violento murro na cabeça.

Eduardo sentiu tudo escuro à sua volta e o sangue espirrou-lhe pelo nariz, ao segundo murro.

Tentou responder mas sem reflexos. O outro já estava em fuga. Apanhou do chão a pasta e as partituras musicais e com as lágrimas nos olhos recomeçou o percurso tentando suster, com um lenço, a forte hemorragia. Olhou para todos os lados e percebeu que ninguém testemunhara a agressão. Eduardo não gostava de lutas. Evitava sempre os conflitos, afastando-se da convivência com os colegas. Por isso, não tinha amigos. Estava envergonhado. Ao mesmo tempo, a raiva possuía-o, sobretudo por se ter deixado agredir.

Não tinha nada contra os negros e não percebia a razão de ser daquilo.

Toni olhou o irmão. Adivinhou o que se tinha passado.

-Quem foi?

Eduardo não respondeu. com o lenço limpou as lágrimas. Insistência.

- Quem te bateu? Contrafeito, Eduardo cedeu:

- Foi o mais novo dos Baratas.

Toni saiu porta fora sem atender aos chamamentos do irmão. Poucos minutos depois cruzava desabrido a porta do café. A um canto, Carlos Barata, irmão mais velho do agressor, tomava café, sentado numa das mesas. Dirigiu-se-lhe. Sem rodeios avisou-o:

- É bom que o teu irmão não repita o que fez, senão da próxima rebento-lhe as trombas!

Estupefacto, Carlos Barata ensaiou um pedido de explicações. Toni retorquiu:

- Não admito a ninguém, especialmente a um negro como tu, que bata no meu irmão!

Já de pé, o Barata explodiu:

- Porra! Parece que não tens sangue negro nas veias, como eu! Estás convencido que és branco, mulato ordinário?

Nesse mesmo instante um murro desferido por Toni dava a resposta e estendia por terra o seu antagonista.

Sentiu-se agarrado por alguns dos clientes e empurrado para a porta, enquanto Carlos ainda no chão procurava os óculos graduados que lhe tinham caído para debaixo de uma das mesas próximas.

Ajudaram-no a levantar-se. Quando chegou à rua, Toni deu de caras com o seu amigo Beto Machado que, reparando na exaltação, lhe perguntou o que se passara.

Toni contou. Por fim disse da sua mágoa:

-O gajo chamou-me mulato ordinário e isso não admito! A ninguém.

Beto acalmou-o. Deu-lhe um cigarro, enquanto o encaminhava para o jardim contíguo ao edifício da Câmara. Sentaram-se num banco do jardim. Fumaram em silêncio.

- Sabes que não te nego nada. Não permito é que o meu filho se envolva em cenas como a do café. És o filho do presidente da Câmara. Esta cidade é pequena. Tudo se sabe. Ainda por cima partiste-lhe o nariz. Não és nenhum miúdo, Toni!

- Mas pai...

Furioso, Sila não queria ouvir explicações. Tinha à sua frente a imagem do enfermeiro Barata a contar-lhe a agressão. Sila desculpou-se e prontificou-se a pagar todas as despesas com os tratamentos do rapaz. Coisas de garotos disse, à despedida, quando acompanhou o enfermeiro à porta do seu gabinete. Depois soube dos pormenores e que o acto do filho fora assumido em defesa do irmão.

Nessa altura, Toni afirmara raivoso:

- O gajo chamou-me mulato, pai, e eu não admito. Sila percebeu então a fúria do filho.

-Eu sei que sou mulato mas não admito que mo chamem. Não tenho culpa de o ser. Sila atalhou:

- Claro que não, mas creio que ser preto, branco ou mulato, não tem nenhuma importância. O que interessa é ser civilizado. Educado. Tudo o que eu te tenho ensinado. És meu filho e de Isabel e julgo que nunca ninguém te diminuiu cá em casa.

- É verdade, pai. Mas lá fora ha brancos que põem reservas por eu ser filho de uma negra. O mesmo acontece com muitos negros, por eu ser filho de um branco, com a agravante de que estes dizem que filho de Deus só o branco ou o negro. Não é justo. Afinal, pai, eu sou filho da dúvida. Tenho de ficar no meio.

Sila interrompeu:

- Tens de ficar do meu lado. Do lado do teu pai! Porque achas que me mato a trabalhar, senão para tudo deixar aos filhos em pé de igualdade? Aliás, pelo caminho que as coisas levam, acabas por ser tu a ficar à frente dos negócios. O teu irmão só vive para a música e quer ser médico. É um rapaz de ideias fixas. Tu é que me acompanhas sempre. Nas viagens. Na caça. Em longos passeios a cavalo. Porra, eu sou o teu pai. Eduquei-te melhor que o teu avô me educou a mim.

-Pai, desculpa! Nunca puderas contrariar o facto de eu ser mulato. Tenho sangue negro nas veias. Creio que isso quer dizer qualquer coisa, mas ainda não percebi bem e nem tão pouco sei definir. Amo-te muito, sabes disso. Também gosto muito da mamã Isabel. Cada vez mais. Adoro o meu irmão e não permito que ninguém o trate mal, mas a única verdade é que não sou negro nem branco.

Sila sentiu os olhos enevoar-se-lhe ante as declarações do filho. Não percebia a revolta de Toni por lhe chamarem mulato. Era seu filho. Que outra coisa tinha importância?

 

Benvinda era o que se poderia considerar uma mulher de peso. Mulata, nascida em Quilengues, vivia desde que se conhecia na Mapunda e, desde sempre, fora prostituta. Actualmente o seu corpo era uma caricatura da sua juventude. Pesava mais de noventa quilos e, por graça, os estudantes diziam que estavam distribuídos pelas mamas. A única imagem que ficava de Benvinda era o farto seio, onde muitos descansaram emoções da virgindade perdida. A todos chamava «os meus ricos filhos»!

Reunia em sua casa o mais exótico naipe de raparigas que ali se iniciavam à comissão, com a alcoviteira.

Nos seus gordos braços, Toni e o Beto tinham pela primeira vez trilhado os caminhos do sexo. Ali, Eduardo passou a primeira prova desse percurso. Foi acompanhado pelo irmão e pelo amigo. Enquanto os dois mais velhos não se ressentiram, a experiência provocou a Eduardo um trauma que se manifestou em repulsa quando meses mais tarde, depois de uma ceia da academia, a rapaziada decidiu acabar a noite em casa de Benvinda.

Eduardo tentou escapar, mas não conseguiu. Na sala, cada um dos rapazes fez a sua escolha e lá seguiu para o quarto acompanhado da eleita. Eduardo quedou-se para último.

Não conseguiu furtar-se à insistência da anafada Benvinda com receio dos futuros comentários jocosos dos companheiros. Já todos tinham cumprido «o que se esperava» como prova de virilidade. Na sala de espera, os estudantes e as prostitutas aguardavam, em cavaqueira e beberricando cerveja, que Eduardo e Benvinda saíssem do quarto, quando de repente o vozeirão da «patroa», se fez ouvir em estridente pedido de socorro.

Os clientes e as meninas invadiram, de pronto, o quarto da mulata que amparava nos braços o corpo do jovem inanimado. Da boca escorria-lhe uma espuma esverdeada, enquanto sucessivas convulsões lhe percorriam o corpo.

Ineficazes, os primeiros-socorros obrigaram o grupo a transportar Eduardo para o hospital, onde o médico lhes garantiu que se a demora fosse maior não haveria salvação.

António Sila escutava a explicação do clínico.

- Foi uma forte comoção que lhe desencadeou um processo nervoso agravado com o facto de a digestão ainda não estar completa. Alguma coisa o perturbou profundamente e entrou em estado de choque. Agora, tudo está bem!

Sila já sabia dos factos. Contara-lhos o melhor amigo de Eduardo que fazia parte do grupo. Entrou no quarto. Madalena, lavada em lágrimas, sem perceber o acontecido. Toni acalmava-a enquanto aguardava que o irmão despertasse.

Toni e o pai deixaram o quarto, tendo o filho, embaraçadamente tentado desculpar Eduardo. Sila não quis falar mais no acontecido. No dia seguinte, o doente recolheu a casa. Foi então que Madalena soube de tudo pela boca do marido.

- Malditos pretos e mulatos. São autênticos animais!

Duas bofetadas fizeram-na ver estrelas, quando se estatelou no chão. O marido com os olhos injectados de fúria gritou-lhe:

- Nunca mais repitas isso à minha frente!

Madalena abafou os soluços no peito. As lágrimas morreram-lhe, cara abaixo. Virou as costas ao marido. O ódio instalou-se-lhe na alma. O lenço de renda foi pouco para o sangue que pelo rosto lhe escorria.

Eduardo terminou os exames do quinto ano com médias elevadas. Era tudo o que Madalena queria para convencer o marido a deixá-la ir para a metrópole, onde o filho poderia acabar o curso liceal e ingressar depois na Faculdade de Medicina. Sila concordou e tratou das viagens.

Foi a Moçâmedes despedir-se da mulher e do filho mais novo, acompanhado por Toni.

A despedida dos irmãos foi triste. Eduardo insistia para que o irmão também fosse. Toni despediu-se com naturalidade de Madalena. Ficou combinado, quando Toni terminasse o liceu, Sila iria acompanhá-lo a Portugal e passaria então umas férias com toda a família. O casal acordou a separação, enquanto os dois filhos frequentassem a universidade, até ao fim do curso.

Sila não podia abandonar os negócios durante muito tempo e assim foi rápido o seu regresso a Sá da Bandeira com o filho mais velho.

Toni, ao longo da sua vida de estudante, já tinha repetido o quinto ano e agora o sexto. Quando o pai lhe perguntou se queria acabar o liceu em Portugal, não aceitou:

- Há-de chegar a altura, a faculdade. De momento, não quero sair daqui. De junto de ti.

Madalena partira com a impressão de que essa primeira separação seria definitiva.

Já não o amava. Não sentia dor. Uma nova chama acendia-se no seu espírito. Ir para Portugal representava o seu regresso às origens. Feita mulher rica, com o rótulo de mulher casada, e essa experiência ardente de amante!

Eduardo fora o único fruto que colhera em Angola. Estava acima de todas as coisas. Merecia a pena viver o resto dos seus dias para ele. Sabia que o marido também o amava. Sentira-o na altura da despedida, em que o comerciante não conseguiu evitar que as lágrimas lhe aflorassem aos olhos:

- Tem cuidado contigo, meu filho. Toma conta da tua mãe. Continua a ser um bom aluno, como até aqui. Escreve-me!

Enquanto isto, Madalena e Toni despediam-se.

- Toma conta de teu pai e de ti, meu filho!

A voz deixou transparecer a ternura que tinha pelo enteado.

-Toni, não queiras endireitar o mundo. Sozinho nada conseguirás e vais dar desgostos a teu pai. Termina o liceu e vai para junto de nós frequentar a universidade. Tirar o teu curso. Deves isso a teu pai.

Toni abraçou-a e beijou-a nas faces. Madalena retribuiu e ficou depois a conversar com o marido ultimando lembrados detalhes. Os dois irmãos afastaram-se alguns passos. Abraçaram-se e Toni com os olhos vermelhos dirigiu-se ao irmão mais novo:

- Daqui a dois anos estamos juntos outra vez. Continua como até aqui. O pai tem muito orgulho em ti e eu também. És bom estudante e bom filho. Tens uma grande sensibilidade. Adorava saber tocar piano como tu. Tens tudo o que é necessário para seres um grande homem e fazeres o nosso pai muito orgulhoso.

Toni afivelava no rosto um certo ar paternal, mas sentia profundamente o que dizia. Eduardo, abraçado ao irmão, soluçava baixinho e sentia-se protegido pelo abraço que lhe dava. Guardava nele uma certa presunção e gostava de o imitar, mas não conseguia. Sentia já uma grande saudade por esse irmão que se habituara a respeitar e a quem amava. Sentia que grandes coisas lhe estavam reservadas. Numa voz embargada respondeu:

- Prometo não te desiludir. Serás sempre o meu melhor amigo e estarás sempre presente, por muito longe que estejamos um do outro!

Os altifalantes do navio largavam o último aviso. Os visitantes abandonaram o barco. Toni apertou-o de novo.

- Eduardo, temos o mesmo pai Somos irmãos. Sejamos sempre isso ao longo da nossa vida. Dois irmãos que se amam. A mesma força. Somos homens.

- Juro-te que assim será, Toni!

Depois, debruçado na amurada do navio, divisava o vulto do irmão, do pai, até ficarem cada vez mais pequenos enquanto o Angola se afastava.

Quando deixou de os ver, lembrou-se da última frase do irmão: «Somos irmãos, filhos do mesmo pai! Sejamos sempre isso. Dois irmãos que se amam. Somos homens».

Uma cortina de névoa desceu instalando-se entre o barco e o cais.

José Chipindo foi avisado de que um mulato, vindo do Amboim, o procurara na loja do Santos. Mulato era gente, mas gente de quem ele não gostava, e ficou desconfiado.

- Você é que é o José Chipindo?

O negro antes de responder observou-o atentamente. Era um mulato que media aproximadamente um metro e setenta e vestia de ganga, calça largueirona, camisa castanha, comprida manga. As feições não revelavam nenhum traço particular. Pendurado no ombro esquerdo um saco de lona castanha onde devia transportar alguns objectos de uso pessoal.

-Sou sim!

-Eu vim da parte do teu capataz na roça do Amboim para te falar.

José acedeu:

-Fala, então!

- Não pode ser aqui. Eu vou ter contigo na tua cubata e a gente depois conversa.

À cautela, Chipindo aceitou. Marcaram encontro para o dia seguinte ao fim da tarde na fazenda onde o negro trabalhava. Então Simão, assim se chamava o mulato, falou devagar e disse ser o capataz do Amboim um grande amigo, e que Chipindo era homem de confiança. Tal como José, esse capataz também tinha ódio por muitas coisas que alguns brancos e mulatos faziam na sua terra. Chipindo recordava-se das conversas mantidas na roça, o capataz ensinara-o a ler, de muita injustiça falaram, e que ele presenciava, sem poder revelar, para não ser despedido. Sempre que podia, tratava de tornar mais fácil a vida dos negros. Quase todos gostavam do capataz e a fama dele espalhara-se.

Nas longas conversas, à noite, o capataz referia a José Chipindo, de como tudo poderia ser melhor se acabassem as desigualdades no tratamento, no contrato. De uma dessas vezes, o capataz falou-lhe mesmo do roubo das terras, que alguns brancos compravam por valor nenhum, muito abaixo do que realmente valiam, escorraçando os negros das suas terras de cultivo. Alguns nem sequer pagavam essas terras. Também havia muitos que as compravam pelo preço justo, ou trocavam por outros terrenos. De qualquer modo, os brancos tinham sempre a lei a seu lado, porque sabiam tratar com ela e assim legalmente se tornavam proprietários, enquanto que os negros, por serem incultos, muitos deles por questão tribal, nunca conseguiam ser os donos das próprias terras, sobretudo quando viviam próximo de alguma vila ou cidade. No interior do mato, esses problemas não se punham assim, porque os brancos escasseavam. O capataz falava-lhe disso. Alguns anos conversaram do mesmo. Dizia-lhe que não só os brancos como alguns mulatos faziam esses roubos. José Chipindo admirava-se muito, a princípio, por o capataz lhe falar dessas coisas e mostrava-se reservado e desconfiado, mas com o tempo compreendeu que ele de facto se interessava pelos negros, os defendia e protegia contra o excesso dos patrões. Agora, José Chipindo digeria cada palavra de Simão, verificando que o mulato pensava como esse antigo capataz. Sempre que o compreendia, abanava a cabeça em concordância até que perguntou; lembrando-se do administrador Olavo:

- Mas como é que a gente pode fazer se também há mulato que só por ser administrador ou chefe de Posto rouba o preto e faz sacanice?

Simão retorquiu:

- Claro que há. Esses são os piores. Têm sangue negro e puxam só aos braços de quem são filhos. Têm vergonha de ser filho de negra. Isto vai demorar muito, mas é preciso que cada um de nós em várias cidades, senzalas e vilas de Angola, passe a palavra. Diga aos outros que isto tem de acabar. Há muitos brancos que pensam assim. Muitos querem pôr fim a estas perseguições, roubo e maus tratos. Tu nem sabes quantos. Eu sei!

-? Mas eu não acredito nos mulatos - disse José Chipindo, olhando Simão dentro dos olhos.

Este sorriu e respondeu:

- Mas nem todos são como pensas. Há alguns que honram a mãe, mano!

- Mas mulato não é filho de Deus...

Simão compreendeu, mas sem insistir não deixou de sentir uma certa mágoa com o desprezo que embargava a voz do companheiro.

Deu por si a pensar que era preciso tempo. Muito tempo para que os filhos de branco e negra deixassem de balançar entre esses dois pólos. Se para eles era difícil, quanto não seria para os indivíduos como José Chipindo, que transportava em si o peso da dúvida sobre o comportamento dos arraçados, ao longo de tantas gerações.

Chipindo pediu tempo para pensar em tudo o que tinham falado. Simão disse-lhe que um dia passaria de novo por ali. Até lá não podia abrir-se com ninguém: muito menos falar da visita de Simão. José Chipindo deixou-se ficar junto à fogueira e passou parte da noite a fumar, enquanto pensava em tudo o que ouvira. Sem saber porquê, lembrou-se da Bíblia que o capataz lhe emprestara, várias vezes, para ele ler, e onde estava escrito que todos os homens eram irmãos.

Recordou-se de ter manifestado a sua estranheza ao capataz e de ele ter respondido:

- Eu, tu, os brancos, os mulatos, os outros homens que vivem do outro lado do mundo e são amarelos ou castanhos, todos somos irmãos.

A madrugada encontrou-o deitado junto à fogueira num sono profundo e calmo nessa noite em que o calor abrasava.

- vou interromper os estudos. Não posso continuar enquanto o meu velho estiver doente. Tenho de tomar conta da oficina durante um tempo.

Beto Machado explicava a decisão que tinha sido obrigado a assumir. Toni sabia que a verdade era outra. O pai do Beto, por causa do álcool, já tinha vendido a pequena oficina e nunca mais conseguira trabalho. Passou a beber com maior intensidade depois da morte da mulher. Da cerveja para o vinho, acabou com o resto da dignidade aos balcões dos bares, na companhia de prostitutas e de amigos alcoolizados.

As dificuldades avolumavam-se em casa de Beto Machado. Daí o abandono das aulas. Precisava de trabalhar para seu sustento. Ajudar as despesas da casa até que a irmã se casasse. Apesar disto tinha sempre uma piada para sublinhar o mais dramático e de rajada contou meia dúzia de anedotas que fizeram Toni rir, bem disposto.

-És bestial, pá! Não compreendo como consegues, mesmo cheio de problemas, ter disposição para contar anedotas. Afinal, nem o facto de seres branco te safa. Tens menos sorte que muitos negros que eu conheço. Se calhar, hoje ainda não comeste nada?!

-Comi, sim senhor. Comi a Benvinda! Fiquei cheio!...

Toni riu com vontade. Chamou o criado de mesa e pediu-lhe dois pregos e cerveja. Comeram durante alguns minutos em silêncio. Toni prometeu falar com o pai para arranjar emprego ao Beto. Este orgulhosamente, não quis nenhuma ajuda do amigo, dizendo que o problema já estava resolvido. Toni conhecia o amigo suficientemente bem para compreender que não devia insistir. Sabia também que ele ainda não tinha trabalho. Arranjá-lo-ia, porém. Disso estava certo.

- Que achas daquela revista que o Dr. Bernardo nos emprestou? Toni olhou o amigo e veio-lhe à mente essa longa conversa que

os três mantiveram sobre Angola, durante uma tarde passada no café. O Dr. Bernardo dos Santos Menezes era professor deles, desde o quinto ano, e um homem com quem merecia a pena falar. Diziam ser de sangue azul. Descendente de nobres. Devia ter cerca de quarenta anos, vivia só. E bem lhe ficâfa o porte de aristocrata. Olhos profundamente negros espreitavam num rosto quase imberbe, mas de traços duros, onde se salientava um nariz judeu. Parecia o trabalho de um escultor moderno reunindo na mesma cara as melhores peças de outras esculturas. Media cerca de um metro e oitenta. Os cabelos negros quase lhe tapavam a nuca. As alunas mais velhas andavam perdidamente enamoradas do professor misterioso.

O Dr. Bernardo jogava futebol com equipas formadas pelos alunos mais velhos e era frequentemente acusado pelos outros colegas de perverter os valores instituídos e as relações entre alunos e professores. Tinha, porém, uma auréola de mistério. Recusava falar na família e nas origens. Ensinava há cerca de um ano no liceu e tinha vindo de Portugal por essa altura. Bernardo dos Santos andava sempre com livros debaixo do braço, mesmo que só fosse tomar um café. Poetas de nomeada. Filósofos gregos. Recomendava a alguns alunos a leitura de escritores de vanguarda e não deixava de chamar a atenção para o que se publicava sobre a segunda guerra mundial. Falava com eles da verdade negra e catastrófica do nazismo e do extermínio dos judeus.

Numa personalidade tão vincada, coabitavam a poesia de Pessoa e os sonetos de Antero. A propósito de tudo o que acontecia ou das coisas à sua volta, encontrava uma referência na poesia dos dois autores. A maior parte dos seus alunos, julgava-o mártir de um grande amor. Sobre o amor entre o homem e a mulher quase nunca falava. Referia sempre o amor, em termos genericamente universalistas.

Um dia, depois de uma sessão de conversa à mesa do café em que predominava quase sempre o seu tom intimista, o Dr. Bernardo levantou-se e depois das despedidas, esqueceu numa cadeira algumas folhas de papel manuscritas e um livro de Sartre na edição francesa da Gallimard, A Idade da Razão, em que o autor de forma romanesca fala dos problemas do existencialismo, através de Mathieu, a personagem do livro.

Toni sabia que o professor guardava cuidadosamente esse primeiro volume da trilogia e falava diversas vezes da filosofia defendida pelo escritor francês. A opção em todas as situações em que os hábitos adquiridos e as estruturas sociais colocam o homem perante vários caminhos. Depois, o professor foi mais longe, teorizando como a liberdade de opção pode colocar o indivíduo perante a responsabilidade da escolha e cujas consequências, sejam elas quais forem, recaem sempre sobre o próprio. Beto e Toni ali estavam presos às palavras do professor e amigo a quem não queriam interromper. Numa dessas tardes, o Dr. Bernardo trazia exemplares de uma revista cujo título era Cultura. Quiseram saber do que se tratava. O professor emprestou-a aos seus amigos recomendando:

- Leiam atentamente e depois falaremos dela.

Toni percebeu mais tarde que através dessa revista se esboçava um movimento de consciencialização. Naquelas páginas, alguns autores constatavam a existência de uma cultura própria de Angola, ao mesmo tempo que apontavam alguns aspectos da política feita por çalazar sobre aquela terra, falando naturalmente também de colonialismo- Nada daquilo lhes era referido nas aulas. Não passava pela cabeça de Toni e de Beto que pudesse existir uma cultura própria ao nível dos diversos povos de Angola. Os dois amigos queriam saber mais. O Dr. Bernardo falou-lhes de situações de injustiça e exploração, quase escravatura nalguns casos. Contou-lhes como enriqueciam brancos a angariar negros para o contrato nas roças de café, e da forma como tinham criado um sistema de crédito nas cantinas em que os contratados eram sempre devedores do patrão. Mais: eram obrigados a comprar as mercadorias por preços exorbitantes, já que cada roça ficava afastada das outras dezenas de quilómetros e as cantinas só serviam os seus próprios contratados.

- Isso acontece até com comerciantes do mato - acrescentou o Dr. Bernardo.

-Não é verdade, Sr. Doutor. Vai desculpar-me, mas o meu pai foi comerciante no mato e nunca fez isso. Olhe que não o sei pela boca dele. Na nossa fazenda da Humpata trabalha um negro de nome Canivete, que- há longos anos acompanha o meu pai, e que me contou que os negros da região, onde ele foi comerciante, gostavam dele por ser honesto.

-Claro, Toni. Existem centenas de brancos sérios. Gente da metrópole e brancos nascidos cá, há algumas gerações, que são honestos. Sei disso muito bem. Só que a diferença entre brancos e negros existe, e a maioria das pessoas nem dá por ela. Sabes porquê?

- Não sei! - retorquiu Toni.

-Porque preferem ignorar. Fazer de conta que os negros são todos mandriões. Que não gostam de trabalhar. Uns selvagens. Beto perguntou:

- E na maior parte dos casos não é assim?

- Não, meu caro. Eles tem o seu esquema social. A sua civilização própria. De séculos. Os seus quimbandas. Os seus zambis. A sua medicina. As suas leis, história e cultura. Só que nós não compreendemos, e por isso os prostituímos, quando impomos a nossa maneira «civilizada» de ser.

Beto, insistia:

- Então é por isso que os deixamos à vontade, doutor?

- Quem é que os deixa à vontade? Eu. Tu. O Toni, gente como nós! O problema é que ainda não conseguimos de facto entendê-los. Colonizámos. Misturámo-nos com eles. Amámos. Nascem os filhos. O importante, na minha opinião, é Conseguir que a nossa cultura e a deles vivam lado a lado. O importante é observarmos os seus ideais e transmitir o que de melhor lhes podemos dar. Sei que é um longo processo. Há gente que sabe que assim vai acontecer. Assim foi no Brasil, mas aí as influências também foram trazidas, por outros povos, que não só os portugueses. Foram os escravos levados daqui que se misturaram com os portugueses, os índios, e mais tarde com os italianos, os turcos, os alemães, os espanhóis eu sei lá. tom atalhou:

- Doutor, acha isso mal?

- Não. Acho bem! Só não concordo é que se imponha a lei do mais forte, do civilizado, segundo os nossos conceitos. É preciso que vocês, os jovens, sejam capazes de perceber este fenómeno e ajudem então a fazer de Angola uma grande nação em que a igualdade e a liberdade se instalem.

Toni devorava as palavras do professor. Beto tinha os cotovelos apoiados na mesa e o queixo nas mãos. Não desviavam os olhos do Dr. Bernardo sempre que este falava. Beto trocou um olhar cúmplice com o amigo a recordar-lhe as conversas que os dois mantinham sobre a independência de Angola. Nenhum dos dois se identificava com a metrópole apesar dos pais serem europeus. Toni leu no olhar de Beto essa mensagem. Lembrou-se de várias vezes ouvir o pai dizer-lhe, assim como a alguns velhos amigos, descendentes de antigos colonos madeirenses, que se estavam nas tintas para o Terreiro do Paço.

Era frequente afirmar que «eles», os do Terreiro do Paço, não percebiam nada de Angola, e acrescentava:

- Não se pode caçar o elefante nas margens do Tejo, nem matar o olongo no Rossio, ou fazer uma espera durante a noite ao leão, no Chiado.

Isso, e muito mais os separava. E todo o resto, dizia muitas vezes Sila, o presidente da Câmara, para o filho mais velho.

Nessa noite, quando regressou a casa, com o livro de Sartre e algumas folhas de papel manuscritas que o Dr. Bernardo se tinha esquecido no café, resolveu ver o que as páginas continham, e estupefacto leu um poema assinado pelo professor e dedicado aos nazis e aos ideais militares, cujo título era, «Hossanas»:

 

       Uiva no ar a metralha.

       Rostos fechados. Dentes cerrados. Olhos vidrados.

       Perdida no peito,

       a bala canalha.

       No ar a metralha.

       Mordeu a estrada

       num esgar sem dor.

       Pla cratera do corpo

       um sopro de nada.

       Rostos fechados. Dentes cerrados. Olhos vidrados.

       Derradeiro pensamento

       ao transpor a fronteira.

       Entre a vida e o além

       regresso num tempo

       às entranhas da mãe.

       Dentes cerrados. Olhos vidrados.

       Deu a vida sem sorte

       um jovem qualquer

       no campo da morte

       em nome do dever.

       Olhos vidrados.

       No ar em hossanas

       ficou a vitória

       de morrer plos sacanas

       em nome da glória.

       Perdida no peito

       a bala canalha.

       Ecoa no ar...

       O som da metralha!

 

Fim-de-semana na fazenda.

Sentada nas escadas de acesso à varanda da casa, Isabel Tchilombo aguardava a chegada do patrão e do filho. Conversava com Canivete. Sentia-se assustada com o que ele contava.

José Chipindo trabalhava numa fazenda na Chibia. Tinham-se encontrado em Sá da Bandeira. Falaram-se e o antigo noivo da negra ficou a saber onde ela se encontrava e o que era feito do filho do branco. Canivete, depois da revelação, sentiu que o medo trespassava Isabel. Garantiu-lhe que o negro já não procurava vingança. Pelo menos, isso afirmara. Na realidade, Chipindo sossegou o antigo cozinheiro de Sila, por medo que este viesse a saber da sua presença na Chibia. O objectivo dele era ajustar contas com o administrador Olavo, o mulato que roubava dinheiro dos impostos aos negros. Tinha tudo planificado para se vingar do administrador. Registou todas as informações que Canivete lhe prestou e despediu-se.

Canivete e Isabel viram ao longe levantar-se uma nuvem de pó, o que indicava a aproximação do carro de Sila.

Quando pararam, Toni correu para a mãe e deu-lhe um beijo na face. O comerciante disse a Canivete para mandar descarregar a carrinha e, depois de cumprimentar Isabel, entrou em casa dizendo que queria falar-lhe. Isabel, agora com cerca de quarenta anos, abandonara há meses os panos com que se vestia e envergava um vestido castanho de tecido barato. Calçava umas sandálias de lona. O cabelo estava envolto por um lenço branco, que não deixava ver uma nesga de carapinha. Acompanhou o filho para o interior, enquanto Canivete cumpria o que lhe tinha sido ordenado.

- Isabel, a partir de agora, mudas-te para o meu quarto. A negra ia protestar. Sila não permitiu:

- Vais fazer o que te digo, não me quero zangar!

Isabel procurou socorro no filho. Encontrou um largo sorriso e um abanar de cabeça que dava razão ao pai. Abraçou-o.

- Está bem. Eu mudas mesmo, mas não vai para esse quarto. Vai para o do minino Eduardo.

Sila compreendeu e não insistiu:

- Faz como quiseres, mas não te quero a viver nos anexos. Há anos que o digo!

Sila dirigiu-se ao móvel onde tinha as bebidas e serviu-se de um uísque.

- Também queres, Toni?

- Não, pai. Eu vou com a mamã Isabel lá para fora conversar Um pouco.

Canivete aflorou à porta da sala.

- Patrão, o teu mala e do minino está no quarto. Carrinha está jescarregado. Eu vai mandar Domingas fazer o jantar.

O branco acenou com a cabeça, sem responder, e sentou-se no sofá que ocupava habitualmente. Ligou a telefonia e dispôs-se a saborear a bebida no copo.

Isabel e o filho saíram e sentaram-se ao lado um do outro sob o alpendre. Era aí que gostavam de se ver e falar.

Evoluirá nos últimos anos por imposição do filho. Carinhosamente, Toni ensinava-a a comportar-se e a vestir. Fê-la sentir como fazendo parte da família.

--Mamã Isabel conta outra vez como foi o dia do meu nascimento.

Ela contou. Disse-lhe como tinha feito questão que ele nascesse na senzala do velho Tchilombo, onde ela também tinha nascido. Falou do batuque e da oferta que o soba tinha feito a Nzambi, quando o colocou sobre o capim que servia de tecto à cubata. Toni escutava a história pela terceira vez. Tinha pena de que o soba Tchilombo, tio de Isabel, já não fosse vivo. Gostava de o conhecer. Jurou que um dia havia de voltar ao quimbo onde tinha nascido, para conhecer os seus tios, já que o pai e a mãe de Isabel tinham morrido há muito.

Depois, a negra ganhou alento e falou do seu prometido, José Chipindo, contando porque tinha ele aquela grande cicatriz no peito. Toni sentiu pena do negro e prometeu à mãe que nunca se vingaria, se um dia estivesse frente a frente com José. Compreendia que ele devia ter gostado muito da mãe para lhe fazer o que tinha feito, com a raiva por ter sido trocado pelo comerciante. Pensou: «e se Julieta alguma vez o trocasse por outro?»

Isabel, no entanto, não revelou ao filho que o ódio de José Chipindo se manifestava simplesmente por ela ter parido um filho do branco, e só por isso.

Nenhum dos dois se compenetrou do avanço da noite.

Canivete apareceu. Estava pronto o jantar.

- Não percebo, pai. Não consigo entender o que te levou a casar com a minha madrasta.

Pai e filho, sentados na varanda, conversavam sobre o passado. Toni queria saber das razões que assistiam ao pai.

-Não sei por que o fiz. Creio que várias pressões se abateram sobre mim ao tempo. Já era um comerciante feito, mas tinha ambições. Ainda era jovem. Fiz-me a mim próprio. Já te contei que vim de Portugal para tentar fortuna. O meu pai, teu avô, fora homem do campo. Em casa éramos muitos e Trás-os-Montes é terra pobre. A vida é dura, a sobrevivência também. Meu irmão foi novo ainda para o Brasil. Meu pai adorava-o e falava nele constantemente. Era o mais velho de nós. Talvez por essa razão, o meu desejo de também ser alguém, mas só com o meu esforço, sem a ajuda desse irmão, que diversas vezes quis que eu fosse para o Brasil trabalhar com ele. Nunca quis. A minha escolha estava feita!

Uma pausa para reavivar a memória e Sila continuou:

- Sabes por que gosto tanto de ti? Toni abanou a cabeça.

- Talvez por tu seres um pouco rebelde e independente como eu. Nisso somos parecidos! Foi essa minha rebeldia que me fez partir. A rebeldia e a fome que passávamos lá em casa. Hoje, os teus avós vivem um pouco melhor, porque eu os tenho ajudado. Nesse tempo, as terras em que trabalhavam nem sequer eram deles. Eram rendeiros. Teu avô só tinha uma courelazita, quase nada crescia. Quando eu era miúdo, talvez com os meus nove anos, ia para a serra apascentar as ovelhas do Juventino, o homem mais rico lá da terra, e ainda tinha de entrar pela noite trabalhando. Não ganhava mais de noventa escudos por mês. Por única companhia tinha o velho cão. Chamava-se Fiel. Nessa altura, jurara a mim mesmo que havia de ter mais dinheiro um dia que o meu patrão. Foi preciso deixar a terra e a família. Davam-me a idade que tu tens, quando parti.

O resto da história já tu sabes. Instalou-se em mim o desejo de fazer família e foi por isso que casei por procuração com a tua madrasta. Toni perguntou:

- E a minha mãe?

- Tua mãe foi a paixão que a todos cala. A solidão em que vivia. Ela era uma mulher bonita. De formas perfeitas, esguia. Um sorriso gaiato. Seduziu-me como uma impala. Sempre que a queria agarrar fugia-me de entre as mãos, até que um dia... Depois, ficou grávida e tu nasceste. Quando te vi pela primeira vez, fiquei logo a gostar de ti, apesar de toda a gente me dizer que fazer filho a uma negra nada significava. Para mim significou sempre muito. És carne da minha carne. És meu filho. Gosto muito de ti.

Toni ficou comovido com as palavras do pai, mas voltou logo à carga:

- Mas por que não casaste com minha mãe?

Sila caiu varado. Não sabia o que responder. O filho queria uma resposta e ele não a tinha. Na verdade, ainda hoje não sabia das razões. Por que não o fizera? Deviam ser as mesmas de todos os brancos. Nessa altura, pensava que as negras só serviam para a cama, nunca para casar e constituir família. Queria encontrar uma resposta para dar ao filho. Lembrou-se das palavras do então administrador Fernandes: «Senhor Sila, case com uma branca nem que seja por procuração!» Foi o que ele fez. O que naquele tempo se fazia. Não podia dar essa resposta ao filho. Encolheu os ombros:

- Ora, a tua mãe tinha um prometido que estava no contrato e já tinha pago o alembamento. Creio que foi por isso...

Toni escutou a explicação do pai, mas no íntimo sabia que a verdade era outra. Revelou-se-lhe, como quem vê uma luz no fundo do túnel. Não tinha casado com ela por ser negra. Percebia claramente que o pai se envergonhava. Leu-lho no rosto. Ele sabia.

O Canivete aproximou-se nessa altura:

- Patrão, Domingas manda dizer que quando o patrão quiseres podes ir no comer.

Pai e filho jantaram sem trocar palavra. Isabel não estava presente. Não queria comer à mesa com o branco, apesar deste insistir diversas vezes. Nem aos rogos do filho cedeu. Comia com o Canivete e a mulher dele na cozinha.

Toni, depois do jantar, trancou-se no quarto.

Deitou-se por cima dos lençóis, vestido, e pegou no livro que nessa altura estava a ler sobre a segunda guerra mundial. Interessado pelo tema. Tratava dos judeus. O extermínio em massa feito pelos nazis. Odiava-os. Pela sua desumanidade. Pela sua pretensão de criarem uma raça pura onde só eles teriam lugar. Pela primeira vez, perguntou a si próprio se o pai não quisera casar com Isabel por razões próximas às dos alemães. Pôs de parte o livro e analisou a questão. Concluiu que não. O pai amava-o profundamente e ele não pertencia ao que se podia designar como uma raça pura. Era uma mistura. Aflorou-lhe um sorriso nos lábios. Nesse momento, viu perfeitamente o olhar de ódio que o negro Barata, filho do enfermeiro, lhe deitou, depois da cena com o irmão. No cérebro ressoaram-lhe as palavras então proferidas pelo outro:

- Não vês que tens sangue negro nas veias tal como eu!... Nessa noite, Toni dormiu mal. Teve sonhos, sentiu-se agitado. De

manhã, acordou extenuado. Não saiu de casa durante todo o dia. Nem para andar a cavalo, o que mais gostava de fazer, quando subia à fazenda.

-Tenho a impressão de que tu estás complexado! Beto levou o copo de cerveja à boca, e de um trago emborcou o líquido, sem espuma.

- Parece-me que ultimamente te sentes culpado por não seres branco nem negro. Custa-me a compreender!

Toni estava com o amigo nessa tarde de sábado, no café onde habitualmente se encontravam para conversar, embora com menos frequência que no tempo em que ambos frequentavam o Liceu.

Beto empregara-se. A subsistência da família. Interrompeu os estudos depois de ter concluído o sexto ano. Toni frequentava já o sétimo e pensava depois tirar o curso que o pai desejava: Economia.

Sentia-se tocado no íntimo pelo que Beto tinha dito acerca dos seus complexos:

- És parvo. Sou o que sou e não tenho problemas. É verdade que às vezes não consigo comunicar com os negros que conheço. Olham-me desconfiados. Não me vêem como igual. Até com a minha mãe tenho a sensação de que isso acontece. Por outro lado, alguns brancos julgam-se superiores a mim, só porque a pele é de cor diferente. É uma porra!

- Tu tens é complexos, o que francamente não entendo. Hei-de crer que te achas culpado, ou pelo menos ostentas um ar de culpado.

- Não é nada disso! É que cada vez mais eu compreendo que os negros são considerados indivíduos inferiores. Incivilizados. Marginais numa terra onde eles são a maioria.

-Tem paciência, Toni, mas não posso estar de acordo. O problema não é de marginalização por causa da cor da pele. É simplesmente uma questão social. De educação. Cultural.

Toni perguntou:

- Porquê?

- É simples! - respondeu o Beto.-Tudo não passa de um problema de classe. Tu és educado. Civilizado. Sabes comer à mesa. Tomas banho todos os dias. Mudas de roupa e sabes conversar porque tiveste acesso à educação. Sabes bem que há negros que são teus colegas, nossos colegas, e têm as mesmas oportunidades que tu ou eu. Muitos negros estudam. Outros trabalham para o Estado como funcionários públicos. Há ainda os que têm bons lugares em diversas empresas. Quantos não conheces tu que são empregados de escritório, enfermeiros, mecânicos, eu sei lá?

- E quantos não conhecemos nós, Beto, que são miseráveis selagens e, que só por não terem estudado, são considerados abaixo de

cão e não servem nas cidades senão como cozinheiros, criados de menino branco ou, se quiseres, serventes, simples serventes? Mão-de-obra baratíssima.

- É verdade - retorquiu o Beto -, mas já agora também te pergunto, quantos brancos não conhecemos nós que não têm estudos, cujo estatuto é pouco mais evoluído ou se quiseres praticamente igual? O problema não é esse. Trata-se simplesmente de diferenças sociais. Existem classes sociais. Tu és feliz. O teu pai é rico, não precisas trabalhar. Tens os teus cavalos, na fazenda. Tens as melhores armas de caça. O teu pai é, neste momento, o presidente da Câmara, uma personalidade conceituada e respeitada na cidade, e disso tu colhes alguns benefícios. Eu, por exemplo, tive de interromper os estudos porque tenho de ajudar a suportar as despesas de casa. Não sei se alguma vez conseguirei fazer um curso. Como eu, há mais brancos na mesma situação, ou muito parecida. Como vês, o problema não passa por ser branco, negro ou mulato. Trata-se de uma situação de classe. Toni olhou o amigo. No rosto, uma certa amargura reflectia o sacrifício a que se obrigava por causa do pai. Teve pena dele. Acendeu um cigarro e disse:

- Pronto, eu calo-me. De facto eu sou um parvo. Devia compreender que te ia magoar com esta conversa. Não é justo.

Beto sorriu, bebeu um novo gole de cerveja:

- Não me magoas absolutamente nada. Só quero que compreendas que há quem tenha mais ou menos sorte. É só!

Toni desembaraçou-se também da sua cerveja, enquanto pensava que o problema era mais complicado, mas ele ainda não sabia exactamente porquê, nem como. À porta da pastelaria, surgiram os vultos de Julieta e de Amélia. Aproximaram-se da mesa. Julieta irradiava um sorriso terno e sensual quando Toni a beijou na face.

Amélia e Beto cumprimentaram-se também da mesma forma e nos olhos de ambos instalou-se a cumplicidade. Ambos amavam os outros dois. Conheciam a história de Toni e Julieta, sem que eles disso suspeitassem. O casal, indiferente às reacções de Amélia e do Beto, conversava ternamente, fazendo horas para a matiné no Odeon.

Amélia pediu café.

Beto, outra cerveja.

Fixados no mostruário do átrio do liceu os resultados de exame davam Toni como «chumbado». Já contava com isso.

Eduardo tinha nesse ano feito em Lisboa o exame de admissão à Faculdade de Medicina, com aproveitamento elevado. Dois anos mais velho, Toni contava agora dezanove. O pai avisou-o. Um ano apenas para reabilitar-se no estudo. Se no final não conseguisse passar, iria trabalhar para os escritórios da empresa. Sila sentia um grande orgulho com o «seu Eduardo, como referia aos amigos. O filho mais novo do comerciante era um rapaz inteligente e estudioso. Nunca perdera um ano. Sila dizia-o com satisfação. Toni sentia alguns ciúmes quando o pai se referia daquela forma a Eduardo.

O namoro com Julieta contribuíra de alguma forma para apressar o «chumbo». Ela tinha passado com distinção. Frequentaria então a Faculdade de Direito de Lisboa. Toni amava-a e não conseguia habituar-se à ideia. Amélia, a confidente e amiga, reprovou por faltas. Motivo de saúde. Uma doença, que os médicos não conseguiram diagnosticar, reteve-a no leito durante meses seguidos, o que provocou à jovem um estado tal de fraqueza, que muitas vezes foi dada como perdida pelos pais. Amélia não tinha nada. A doença dela era meramente psíquica. Não conseguindo ignorar o namoro de Julieta com Toni, definhara ao jeito de uma conventual. Não havia lugar para a esperança, pensava. Prestes a desistir da vida. É que, apesar de confidente, nunca se abriu com Julieta. Só quando teve a notícia da partida de Julieta para Lisboa é que Amélia renasceu.

Nas férias, a titulo precário, Sila empregou o filho, na firma, interessando-o pelos negócios. Preparava Toni para ser continuador do seu projecto à frente dos destinos das empresas.

Pelos filhos, havia erguido o seu empório. Toni era dos dois irmãos o que mais à-vontade assumia no trabalho e assimilava rapidamente os negócios, congeminando ideias para que as coisas funcionassem melhor em sectores menos produtivos. Sila apercebia-se disso.

No dia em que recebeu o telegrama da mulher comunicando o êxito de Eduardo ficou feliz. Para completar essa felicidade só queria que Toni seguisse na esteira do irmão em matéria de estudo. No entanto, duvidava que o objectivo viesse a ser alcançado. Toni era rebelde por natureza. Expunha ideias próprias sobre o sentido de justiça, e sobre o modo como a sociedade se organizava, com particular incidência em Angola, o que deixava o pai perplexo.

Sila pensava que a culpa tinha sido daquele maldito professor, o pr. Bernardo dos Santos Menezes, que metera aquelas ideias «avançadas» na cabeça ao rapaz.

Por diversas vezes tentou combater as ideias do filho. Apesar de ter evoluído e de ter mesmo alguma cultura, nunca o conseguiu. Tal como os outros brancos, Sila sentia-se português em terra descoberta por portugueses, e por isso mesmo, e por direito próprio, era parte da nação portuguesa. Tudo isso era possível pelo valor heróico dos seus antepassados.

O tal Dr. Bernardo, com a sua conversa, inculcara no espírito de alguns jovens, e especialmente em Toni, que as coisas não se passavam assim. Bernardo falava do Movimento de Intelectuais de Angola que tinha um pensamento próprio e uma cultura personalizada. Afirmava também que movimentos havia que aspiravam à independência de Angola.

Toni e alguns amigos faziam serões em sua casa em que se falava disso durante horas a fio.

Numa dessas noites, Sila tinha como visita o Fernandes, recentemente promovido a Intendente do distrito da Huíla. Era um velho amigo e tinha ainda fama de ser uma espécie de «pai dos negros». A mulher do Fernandes fora a primeira branca a meter-se com ele na cama. Nessa noite, o ex-administrador Fernandes entrou na conversa dos jovens e rebateu alguns dos pontos de vista do Dr. Bernardo. Toni era o principal defensor das ideias do mestre.

Tempos depois, soube que o Dr. Bernardo tinha sido avisado pelo reitor do liceu que a polícia do Estado andara a recolher informações a seu respeito. Posteriormente, os alunos comentavam em segredo o desaparecimento repentino do professor. Levantavam-se as mais diversas conjecturas. Toni soube, pelo pai, que o Dr. Bernardo tinha sido preso pela PIDE e depois enviado para Cabo Verde.

Sila já tinha um «espírito-santo-de-orelha» de que o governador preparava uma série de acções para o demitir do cargo de presidente da Câmara Municipal de Sá da Bandeira.

Quando entrou no gabinete descobriu a verdade:

- Sr. Presidente, superiores interesses da Nação obrigam-me a ter de cumprir o doloroso dever de lhe comunicar que a União Nacional apoiará a candidatura do Dr. Emílio Barrica para o substituir. O Governo, no entanto, reconhece o estupendo trabalho que realizou à frente dos destinos do Município.

Fez-se luz no espírito de Sila.

O nome dele figurava agora na placa que baptizara o bairro económico. Mais tarde, soube que o governador nunca lhe perdoara a oposição na questão dos terrenos. E mais do que isso: a amizade do filho pela pessoa do Dr. Bernardo era do conhecimento público e certamente fora considerada. O intendente Fernandes utilizou uma expressão que lhe ficou sempre a martelar o cérebro:

-Sabe, o governador acha que você é do reviralho. O Dr. Emílio tem fortes cunhas no Governo.

Sila, no entanto, não acabou a sua vida política amargurado.

Conseguiu pelo menos concretizar uma aspiração dos mais necessitados. A construção do bairro económico. Isso fora uma grande vitória.

O Dr. Emílio Barrica, conceituado medico da cidade, deixou de lhe falar.

Sila foi brindado com um jantar de homenagem. As forças vivas da cidade fizeram pequeno o Casino da Senhora do Monte. Toni estava a seu lado na mesa de honra. Mais de trezentas pessoas, representantes das diversas forças vivas e algumas entidades. Numa das extremidades, os chefes de família que agora habitavam o bairro que ele ajudou a nascer. A rádio fez a reportagem. Discursaram alguns dos presentes. Oficialmente, nenhum representante do governador.

António Sila agradeceu a homenagem. Foram-lhe entregues lembranças. Via-se que estava profundamente comovido. Uma caneta de tinta permanente, de ouro, com o nome gravado, testemunhava o apreço dos habitantes do bairro.

Dias depois do jantar, Beto Machado revelou ao amigo a sua intenção de se oferecer como voluntário para a tropa, já que só assim conseguiria libertar-se mais cedo, continuando depois a estudar.

Toni ouviu o amigo e respondeu:

- Tenho pena. És como um irmão para mim. Se fores para Nova Lisboa isto aqui vai ser uma merda. Deixamos de ter os nossos «profundos» debates sobre a injustiça no mundo. O mundo, por seu turno, também deixa de contar com o nosso idealismo e se calhar vai passar a ter muitos mais problemas - acrescentou Toni a rir-se.

Beto também riu, e Toni aproveitou a deixa: - vou ter saudades das caçadas e das nossas farras.

- Também é só um ano e meio. Depois fico livre e vou para Lisboa. Depois continuamos lá as nossas caçadas, mas às miúdas. Em Dezembro do próximo ano, aqui o teu amigo Beto Machado está livre da tropa e pronto para voltar a estudar. Minha irmã e o meu cunhado hão-de ajudar-me.

Ambos faziam planos para o futuro. Estavam em Fevereiro de 1959. Prometeram encontrar-se em Lisboa, no início de 1961, prontos a agarrar a vida com toda a força da sua juventude.

 

                                               O SANGUE

 

Volumoso e rude, o primeiro-sargento passou-lhe para as mãos uma trouxa de caqui amarelo. Numa voz seca, enumerou os artigos do fardamento. Beto Machado entrava definitivamente no chamado mundo dos homens ao transpor a porta da caserna, seu próximo abrigo nos meses seguintes.

O primeiro contacto com a nova situação deu-se nessa manhã de Abril, quando juntamente com outros companheiros de viagem, entrou a porta de armas da Escola de Aplicação Militar, compreendendo que já não podia voltar atrás. Tinha-se alistado como voluntário. Pelas sortes, só lhe cabia ir para a tropa dali a dois anos, em 1961. A antecipação ficava a dever-se ao facto de ele querer fazer aqueles dezoito meses, prosseguindo depois a sua vida de estudante. Se tinha de ser feito, mais valia fazê-lo já, tanto mais que, há um ano, interrompera os estudos, para com o produto do seu trabalho dar uma ajuda às despesas da casa.

A irmã e o marido prometeram ajudá-lo depois da tropa, contribuindo então para os estudos do Beto. com o bêbado do pai não podia contar.

Um sargento berroulhe anunciando que ele deixara de ter nome. Na barbearia, onde se encontrava nesse momento, o cabo deu-lhe cabo das ondas do seu negro cabelo, em conformidade com os regulamentos. Pouco depois, foi rebatizado com um número. Passava a ser o quinhentos e trinta e quatro de cinquenta e nove. Recruta da Escola de Aplicação Militar de Nova Lisboa, na arma de artilharia. O Beto tinha por parceiro de fila um negro com o número quinhentos e trinta e cinco de cinquenta e nove. Depois de fazerem a recruta, todos em princípio iriam frequentar o curso de sargentos milicianos, desde que o aproveitamento a isso os conduzisse.

Beto gostaria de ter ao seu lado o Toni, de quem se lembrou, enquanto observava o quinhentos e trinta e cinco, natural do Cuanhama.

Ali, todos eram apreciados pela mesma bitola. A única vantagem do seu negro camarada de armas era a de não ter de cortar o cabelo à escovinha.

Beto colocou no chão a trouxa e tratou de se vestir conforme as indicações que lhe tinham sido dadas.

Enfiou os calções de caqui que, de tanta goma, se mantinham direitos no chão. O seu companheiro de beliche «entrou» para os calções e alçou-os até à cintura. Os dois riram com isso e logo ali compreenderam que iam ser amigos. Apresentaram-se. Beto ficou a saber que o outro se chamava Armando.

Acabaram de se fardar e depois de fechados os objectos pessoais no armário que lhes estava distribuído, foram ver-se ao espelho, nos sanitários. A imagem reflectida provocou-lhes um riso nervoso, mas saudável. Sabiam, que dali a quinze dias, as coisas seriam outras. Na parada, acenderam cigarros e a conversa surgiu espontânea.

Um e outro, então, deitaram-se a adivinhar qual seria a próxima etapa. Quando o sargento começou aos gritos de «para a formatura», tiveram consciência de que, a partir dali, esses berros fariam parte da sua vida diária. Uma corneta soou pelos cocurutos das casernas. E logo a inviesada formatura o seguiu, ao refeitório. Descompassadamente. Como num desfile de entrudo.

Beto tirou da carteira uma fotografia de (pequeno formato, um tanto delida pelo tempo.

Tinha sido tirada dois anos antes, quando passaram uns dias de férias em casa de amigos, em Moçâmedes. A foto fixava um grupo de jovens na praia, e dele fazia parte Julieta.

Aquele rosto que Beto amava sorria para a objectiva. Um fato de banho justo ao corpo revelava harmoniosas formas de rapariga. Ele estava a seu lado com uma expressão de felicidade, sem tirar os olhos da namorada do seu amigo Toni.

Naquele momento, tocou a recolher e Beto embevecido na contemplação da fotografia nem deu pelo burburinho à sua volta na caserna.

A fotografia instalou-o nas férias. Tinha ficado hospedado em casa do Mendonça que era vizinho de Julieta. Os pais dela e os Mendonças eram amigos e isso valeu-lhe uma convivência estreita com a jovem e com as irmãs do Mendonça. Os dois acompanhavam diariamente as raparigas à praia. Como Toni tinha perdido esse ano, o pai castigou-o não autorizando o gozo de férias em Moçâmedes. Assim, Julieta estava livre da sua presença, o que para Beto era uma sorte, muito embora às vezes sofresse, por pensar que a sua felicidade só era possível pela ausência de Toni. Essas horas vividas próximo de Julieta davam-lhe uma alegria que não tinha limites. Poder olhá-la e conversar. Tomar banho juntos. Fumar um cigarro, às escondidas, o que só faziam, quando ela e Amélia se encontravam com os dois em Sá da Bandeira, durante as aulas. Esse sabor proibido tinha para ele outro significado. Uma certa cumplicidade entre os dois. Beto sabia que ela pensava em tom.

Lembrou-se que, numa das manhãs de praia em que ela, deitada num colchão de ar, vogava ao sabor das calmas correntes oceânicas, não muito longe das areias, passara longos minutos a observá-la.

A determinada altura entrou para a água e nadou de costas em direcção a ela, sem perceber a eminência do choque com Julieta, assim derrubada do colchão pelo nadador distraído. A rapariga caiu à água e afundou-se. Quando veio à superfície, numa braçada, agarrou-se ao corpo de Beto que a tentava ajudar. Ali ficaram os dois, olhos nos olhos. Nada foi dito por palavras. Tudo se transmitira pelo consentimento do mar. Beto mergulhou na imensidão daqueles olhos e, num movimento suave, ao sabor da ondulação que lhes agitava os corpos vagamente, apertou Julieta contra o peito. Suavemente procurou, com os seus, os lábios dela. Mordeu-lhe o lábio inferior com ternura. Ela fez-lhe o mesmo. Colaram os lábios sôfregos e as línguas dardejaram. Foi um longo beijo, que ela calou no mais recôndito da alma. Percebeu o que Beto sentia. Viu-o também no seu olhar brilhante de ternura e desejo. E tudo foi breve. Como a espuma. Do mar.

Beto, em vigorosas braçadas, afastou-se em direcção à areia da praia, onde se encontrava o grupo, que nada percebeu.

Nessa noite, quando conseguiu estar a sós com Julieta disse-lhe do seu amor e do sofrimento porque passava quando ela e Toni estavam juntos. Contou-lhe de como a noite o remetia obsessivamente para a imagem dela. Adivinhava-lhe esse sorriso de água, o olhar transparente, e quantas as vezes, não lhe afagou os louros cabelos numa carícia breve, de onda. As lágrimas que sozinho verteu por ciúme; tantas foram. Em nome de tudo isso, pedia lhe perdoasse a ousadia na praia.

Entre os dois instalou-se o silêncio provocado pelo desespero que Beto deixava transparecer.

Ela não proferiu palavra. Beto jurou-lhe que se ela alguma vez viesse a ser de outro que não ele, se mataria.

Julieta, com as duas mãos, acariciou-lhe as faces e não disse nada.

Duas lágrimas cruzaram a noite. Levantou-se e partiu. Nos degraus de acesso ao quintal dos Mendonças ficou mais só.

Tudo isto lhe passou pelo cérebro, em fracções de segundo, sem que ele sequer se apercebesse. O que estaria Julieta nesse preciso momento a fazer, em Lisboa?

Beto saiu bruscamente das suas recordações, quando o sargento lhe perguntou:

- O menino quer que lhe puxe os lençóis e o adormeça com uma canção de embalar?

Beto não soube o que responder. O sargento também não deixou;

- Porra! Toca a dormir que já tocou a silêncio!

Por essa altura, a (e) migração para Angola aumentava.

Sá da Bandeira era considerada uma das mais promissoras cidades, um dos centros de cultura do território. Em Agosto, a cidade vibrava com as Festas da Senhora do Monte, pólo de atracção de turistas vindos de diversos pontos, e cuja prova automobilística afamada era tida como uma das melhores, senão mesmo a melhor, que se disputava em Angola.

Por outro lado, os diversos estabelecimentos de ensino desde a Escola de Regentes Agrícolas, à Comercial e Industrial e ao Liceu Diogo Cão davam à capital huilana uma vida e ambiente muito característico. Predominantemente jovem.

A cidade mudava a sua fisionomia com as construções que despontavam um pouco por toda a parte. Diversos bairros residenciais mostravam uma faceta de prosperidade. Na periferia, o muceque. Na cidade, intensa actividade sócio-económica.

Desde o princípio da década que alguns membros da geração de brancos nascidos em Angola, convivendo com os negros da cidade, faziam diluir, sem por vezes disso se dar conta, alguns traumas do passado. Muitos desses brancos estavam quase em pé de igualdade com os negros. Não possuíam meios, nem riqueza, ou privilégios. ,

Dessa vivência entre membros de um extracto social muito semelhante nos seus problemas básicos, diferentes somente na cor da pele, instalou-se um certo sentimento colectivo: a busca da liberdades! acompanhado por alguma revolta, muitos tendo evoluído numa perspectiva política. Assumidamente.

No fim da década de 50 e início da de 60 somavam-se algumas prisões um pouco por toda a parte. Entre os detidos em Luanda por; questões ideológicas encontrava-se um negro praticamente desconhecido no meio sócio-cultural, caracteristicamente europeu. Era um médico, poeta, chamado Agostinho Neto. Esta prisão, provocou uma alarmante manifestação, logo temida pelas autoridades na região do Icolo-Bengo de onde era natural.

Nalguns círculos académicos da Huíla corria a notícia de que a manifestação tinha sido reprimida, resultando dessa acção a morte de trinta pessoas e mais de duzentos feridos, e que outras prisões podiam dar-se. Esta situação era comentada por Beto e Toni muito às escondidas.

Beto tinha acabado o curso de sargentos milicianos e fora promovido a cabo miliciano, sendo colocado em Sá da Bandeira em Agosto de 1960. Beto deu conta a Toni da apreensão com que a família mestiça dos Carvalhos, que o tinham hospedado em Nova Lisboa, seguia a evolução dos acontecimentos. Fortemente preocupados com o número de prisões.

Toni tentava entender, mas quando fazia perguntas ao pai sobre a ocorrência este garantia-lhe que era mentira:

- Invenções, invenções de alguns dos colegas com quem ultimamente convives.

De facto, desde a ausência do Beto em Nova Lisboa, que ele acompanhava com Victor e Mário, dois colegas brancos vindos de Luanda. Também eles lhe falaram de prisões, algumas mortes, e da acção de vários elementos de uma polícia secreta. No meio intelectual de Luanda, diversas personalidades pertenciam a um Movimento Popular, resultante da fusão de diversos grupos, a favor da libertação de Angola.

Por vezes apareciam, escritos nas paredes da capital, apelos à independência.

Nas suas conversas, Beto e Toni faziam-se mil perguntas para as quais não encontravam resposta. Não se atreviam, porém, a falar com ninguém sobre as dúvidas. Beto, por ser militar. Toni, com medo que o pai viesse a saber do seu interesse por coisas que ele considerava desajustadas ao patriotismo e à condição de bons portugueses.

Era a regra. O fim de tarde encontrava-os a comentar os últimos acontecimentos. Tinham procurado um canto ao fundo da pastelaria donde podiam observar tudo o que se passava à volta deles.

Como sempre, Toni esperara pelos outros, depois de ter passado em revisão as matérias, que pensava, seriam risco em exame. Beto, vestido à paisana, chegou naquele momento e depois de cumprimentar a malta do seu tempo de liceu, foi sentar-se à mesa, onde já se encontravam Victor e o amigo dele. Um café e um pastel de nata. Acendeu depois um cigarro e olhou os clientes, entre os quais alguns rostos conhecidos que faziam do local ponto de encontro obrigatório. Funcionários públicos, professores, comerciantes, estudantes, donas-de-casa que à tarde conversavam ao sabor do infalível chá das cinco. Rapazes e raparigas, novos e velhos:

- Eh pá, vocês acham que estes gajos sabem o que se passa no Congo, neste momento? - perguntou, obtendo um silêncio cúmplice de ambos.

Beto acrescentou:

- Sabem que mais?, soube hoje no quartel que da artilharia de Luanda estão baterias a marchar em direcção à fronteira e a estacionar junto a Matadi, por causa da confusão no Congo Belga, desde que o Rei lhes deu a independência. A malta está acagaçada. Houve um cabo miliciano do meu curso, um gajo Cuanhama, chamado Armando que foi destacado com os obuses para lá.

Toni meteu a colherada:

- Parece que tem havido chacinas. Ouvi dizer que tropas negras se revoltaram contra os oficiais belgas e os brancos fugiram das cidades em direcção ao Norte de Angola ou atravessaram o rio Congo para o Congo Brazzaville.

Victor, de pronto, acrescentou:

- No Catanga, mais de quinhentos pára-quedistas belgas foram evacuar os compatriotas que não conseguiram fugir por falta de transporte. Meu pai ouviu na Voz da América e na BBC.

- Aí está. Independência é igual a estas merdas todas - afirmou Beto. Toni olhou o amigo e tentou perceber o significado daquelas palavras. Beto desviou a conversa:

- Então o meu amigo está quase a pirar-se, não é?

- Logo que acabem os exames, o meu velho vai comigo até Portugal. Depois encontramo-nos lá, Beto. Sabes que ontem recebi carta da Julieta?

Indiferente, Beto perguntou:

- E então?

- Está bem. Passou para o segundo ano. Daqui a três teremos mais uma advogada - informou Toni com um sorriso feliz.

Beto não respondeu. As saudades e o ciúme mordiam-no. Acendeu outro cigarro e teve uma vontade louca de mandar o amigo à fava. Conteve-se. E despediu-se com a desculpa de que ia jantar a casa da irmã. Tinha de estar lá cedo. O cunhado gostava de jantar a horas.

Os outros dois ficaram ainda na conversa, trocando impressões sobre as matérias de exame.

O Flórida começou a esvaziar-se. A mesa chamava.

Sila praticamente vivia só.

À hora das refeições apenas se encontrava com o filho. Depois de ter deixado a presidência da Câmara, ocupava todo o seu tempo com os negócios. Os fins-de-semana, passava-os na fazenda da Humpata, Ultimamente, um grande pomar de árvores de fruto prendia-lhe as atenções, assim como as experiências que fazia para o apuramento de algumas raças bovinas. Pensava ainda comprar um terreno no distrito de Moçâmedes para a criação de caraculo. A passo firme, ampliava cada vez mais o seu já grande império económico. com os filhos praticamente criados, a ideia era a de se virar totalmente para a agro-pecuária. Depositava todas as suas esperanças no filho mais velho, em quem pensava como o seu continuador. Eduardo estava a formar-se em Medicina. Segundo notícias de Madalena, parecia ser um brilhante aluno. Tinha o respeito e a admiração dos colegas e dos professores na faculdade. Sila não podia deixar de estar orgulhoso. Lamentava que Toni também não fosse um estudante da craveira do irmão, mas havia outras compensações. Parecia fadado para administrar os bens do pai. Tinha ideias e, por diversas vezes, ajudou-o a encontrar soluções para os problemas da fazenda. Gostava de animais e não perdia nenhuma oportunidade de passar os fins-de-semana na Humpata, onde dava grandes passeios a cavalo, atrás das manadas de gado, ou ajudando o pessoal a abrir poços de água ou a fazer os parqueamentos de gado. De quando em vez, pai e filho metiam-se pelo mato fora e lá iam perseguir manadas de olongos ou de pacaças. Toni continuava a ser um caçador de primeira e isso transformava-o em companhia apetecida, pelo que estava sempre a ser convidado para caçadas.

Como habitualmente, o jovem passava esse fim-de-semana com o pai na Humpata. Dessa vez preocupado, aproveitando o tempo para as derradeiras revisões da matéria, tanto mais que na semana a seguir faria o último exame. O pai aproximou-se. Toni levantou os olhos do livro e viu na expressão do Sila alguma preocupação. Perguntou-lhe o que tinha. .

- Estou preocupado com o que se passa no Congo. Tenho informações de que acontecem por lá verdadeiras monstruosidades. Brancos cortados à catanada. Autênticas chacinas que a negralhada está a provocar.

Toni enrugou a testa e retorquiu:

- Chacinas, pai?

- Sim, um autêntico vandalismo. Os negros não respeitam mulheres nem crianças!

O jovem, sem saber explicar porquê, sentiu vontade de provocar o pai:

- É bem feito. Os brancos exploraram-nos tanto tempo que eles agora vingam-se.

Sila não quis perceber à primeira e, para confirmar se o filho tinha dito de facto aquilo perguntou:

- Achas bem feito?

Pelo seu tom de voz, Toni percebeu que o pai não tinha gostado e abrandou:

- Bem feito de facto não é, mas é com certeza uma reacção natural pelos longos anos de exploração de que foram vítimas. É humano, pai.

- É desumano, Toni. É selvagem. É próprio de incivilizados. De negros!

- Porquê de negros, meu pai? As chamadas civilizações ocidentais não fizeram chacinas semelhantes? Não passaram a fio de espada mulheres, crianças e velhos? Diga-me lá, pai? Mais recentemente os alemães não exterminaram milhões de Judeus em câmaras de gás?

Sila calou-se. Toni prosseguiu:

- Claro que os alemães eram civilizados e mataram com requinte. Segundo tu dizes, pai, estes são selvagens, incultos, e matam da mesma maneira. Não é o teu ódio rácico que fala assim?

Sila, com os olhos esbugalhados, fitou o filho que lhe falava daquela maneira e perante a constatação da realidade expressa nos exemplos referidos silenciou. Toni olhava-o nos olhos e tentava encontrar uma explicação para o que tinha acabado de dizer. Não pelo conteúdo mas sim pelo modo. Tinha sentido ódio pelo pai, durante breves instantes, quando referiu a selvajaria do que, na sua opinião, só os negros podiam fazer. Não estava habituado a ouvir o pai falar assim. Dirigiu-se à janela. Sem palavras. Sila, depois de uns momentos de silêncio, aproximou-se do filho:

- Talvez tenhas razão. Talvez a culpa não seja deles e sim dos belgas, por lhes terem dado a independência tão cedo.

Toni sorriu e encolheu os ombros:

-? Meu pai, são anos e anos de opressão. Isso tinha de acontecer. É próprio dos homens. O pai atalhou:

- Não, Toni. Não é próprio de homens. É próprio de selvagens, tenham eles a cor que tiverem. Só isso!

Toni não respondeu, por não desejar alimentar a discussão.

Sila acrescentou:

- Aposto contigo que isso só aconteceu porque os belgas não são como nós, portugueses. Trataram sempre os negros à parte. Não se misturaram com os indígenas como nós. Por isso te garanto que em Angola nunca há-de acontecer nada deste género. Nós somos uma grande nação, de várias raças. Estamos espalhados pelas cinco partidas do Mundo. Não te esqueças disso!

Sila acendeu um cigarro. Fez-se um breve silêncio.

- Vamos acabar com esta conversa e promete-me que lá fora não falarás assim com ninguém. Nem sabes as chatices que podes arranjar por defender o que os negros do Congo fizeram. Promete-me isso!

Toni não pôde evitar um sorriso pelo paradoxo da argumentação paterna, mas para não agravar ainda mais as tensas relações que naquele momento se registavam prometeu o que este lhe pedia. No íntimo, ficou a bailar-lhe a última frase do pai: «nós somos uma nação de várias raças espalhada por todo o mundo». De facto, era verdade, pensou Toni, mas não compreendia bem como era possível coexistirem portugueses de primeira e de segunda. Isabel chamou para o jantar. Toni fechou o livro e foi beijar a mãe.

Bem no íntimo, Sila interrogava-se sobre as razões expostas pelo filho. Ele não tinha dúvidas. «Connosco isto nunca poderá acontecer», pensava. A sua família era bem o exemplo.

No final desse mês, embarcavam em Moçâmedes a caminho de Lisboa. Sila ia a Portugal pela primeira vez depois de ter emigrado, levando agora o filho para a faculdade e desejando simultaneamente matar saudades depois de tantos anos. Não se apoderou dele nenhuma emoção especial. Já nem sequer poderia ver os pais que tinham morrido há anos sem terem, ao menos, conhecido os netos.

A Isabel Tchilombo acudiam lembranças do filho. Estava um homem e muito parecido com o branco quando ela o conheceu anos atrás. Eram muito semelhantes no físico e na têmpera.

Antes da partida, Toni explicou à mãe que ia deixá-la durante uns anos para estudar no puto. Depois voltaria e prometeu-lhe que a partir daí nunca mais a deixaria.

Isabel percebeu que não merecia a pena protestar, porque a decisão era do patrão e não se discutia. Estava habituada a cumprir. Sabia que o filho não lhe pertencia. Era do branco. Apesar disso, manifestava alguma gratidão pelo homem que era seu dono e senhor desde há muitos anos. Isabel tomava isso como facto positivo. Mesmo sorte talvez. Era tratada com respeito pelos outros negros que viam nela não uma igual, mas sim a «mamã Isabel», sempre pronta a interceder por eles junto do patrão ou até mesmo a ajudá-los em tudo o que estivesse ao seu alcance. Para ela nunca pedira nada. Habituara-se a uma atitude de permanente resignação, pelo que tinha e pelo que não podia ter. Nunca discutia. Estava sempre presente quando precisavam dela, sem no entanto se impor. Fazia-o sem pensar. Não que alguma vez tivesse aprendido a proceder dessa maneira. SiJa, qualquer um dos filhos, até mesmo a senhora, sabiam que era assim. Isabel tomou conhecimento de que o seu filho ia viver para casa da senhora no puto e com o irmão branco, e não se preocupava muito porque tinha a certeza de que Toni seria bem tratado. Se o patrão dizia que as coisas iam ser dessa maneira é porque assim seria. Fosse feita a vontade do branco. Isabel tinha apreendido também, ao longo dos anos, a aceitar o inevitável. O filho partia. Pois bem. Esperaria o seu regresso. No íntimo, ela adivinhava grandes coisas para o filho mestiço. Por alguma razão o soba, seu tio, o tinha oferecido aos deuses, quando o colocou em cima do tecto da cubata, logo após o seu nascimento. Ela sabia que voltaria a vê-lo. Sentia isso. Tinha a certeza, porque no dia em que ele nasceu os trovões zangaram-se e falaram alto, rompendo o céu que cobria a senzala.

Toni estava em tronco nu abraçado à mãe e as lágrimas corriam-lhe pelo rosto. Isabel reviu mais uma vez, reflectida na cicatriz que o filho ostentava no peito, a cena em que José Chipindo odiosamente o ia matando.

A cicatriz era um sinal de vida. Se Zambi não quis então a morte dela e do filho, é porque tinha outros destinos para eles.

Isabel Tchilombo aceitou calmamente o que pensava como uma verdade que ninguém jamais conseguiria destruir.

Toni, filho do branco e dela, seria um homem diferente. O quimbanda que assistiu ao nascimento do mulato tinha dito o mesmo.

Toni vestiu a camisa, enxugou as lágrimas e virou as costas à mãe subindo para a carrinha. O pai esperava por ele. Antes tinha abraçado Isabel, dando-lhe todas as indicações para que tudo na fazenda continuasse a funcionar como se ele estivesse presente. Sila assistiu à despedida de ambos. Mais uma vez, a ternura tomou conta dele. Sentia que aquela negra tão amada na sua juventude fazia parte da sua vida. O amor renasceu naquele momento de despedida entre mãe e filho.

Tudo iria correr bem. Dali a cinco anos, estariam todos juntos novamente.

A carrinha iniciou o andamento, e cá fora o pessoal da fazenda acenava despedidas ao menino Toni, de quem todos pareciam gostar.

Canivete, com os olhos vermelhos de dor, sofria a partida. Também o vira chegar à vida. Acompanhou-o durante anos e agora o último adeus.

A derradeira imagem que Toni fixou foi a da mãe. Na varanda da casa, o Canivete chorava também.

Instalou-se o vento nos domínios do branco, soprando um cântico de despedida e de saudade.

Toni, ouviu as saudades da terra. Sem fim. No sopro do vento.

Dias depois, José Chipindo compareceu na fazenda. Procurava Canivete. Os dois conversavam junto à cacimba, onde o gado ia beber. Chipindo tinha sido procurado, dias atrás, pelo mestiço que lhe falou de novo de ideais de liberdade e de independência. José incansavelmente e frequentemente conversava com os padres da Missão da Huíla. Tornou-se amigo dos padres, sobretudo de um missionário novo que apreciava particularmente. Falava-lhe de outras civilizações. De racismo. Da fraternidade entre os povos. Chipindo ouvia-o, mas continuava a pensar que os mulatos não eram filhos de Deus, Nunca exteriorizou esse pensamento ao padre com medo de que ele se zangasse. Recebia todas as lições do branco e ficou a saber então que, segundo os livros, ele e o padre eram portugueses. Pensou que isso nada significava porque tudo o que os brancos faziam, a ele não era permitido. Toda a sua vida estava condicionada às ordens dos cipaios, chefe de Posto, administrador, dos angariadores de contratados e até dos próprios patrões. Tinha consciência de que se não cumprisse as ordens levava porrada. Isso não acontecia entre os brancos. Assim, como é que o padre podia afirmar que ele era igual aos outros, se eles não sofriam o mesmo?

Tinha gostado de Isabel e o branco meteu-se, fazendo-lhe um filho. Apesar de ter pago parte do alembamento, foi o comerciante quem ganhou, ficando com a negra. Ainda foi preso pelo administrador e maltratado. Então, se pretos e brancos eram iguais, por que lhe acontecera aquilo? Interrogava-se.

Esta era a terceira visita de Simão. O mulato contou-lhe o que acontecera para os lados de Malanje.

Segundo ele, os patrícios na Baixa de Kassanje eram obrigados a cultivar o algodão que a Companhia depois comprava por um preço que não dava para matar a fome.

A miséria era muito grande. Morriam crianças e velhos. No início desse ano, todo o pessoal, cerca de trinta mil, deixou cair os braços e não plantou mais algodão, enquanto Cotonang não pagasse melhor. Simão contou-lhe que, dias depois, os aviões vieram, deixando cair bombas que queimavam tudo. Homens, mulheres, velhos e crianças, em mais de vinte senzalas, foram as vítimas, tendo morrido mais de vinte mil pessoas. O mestiço disse ainda que o movimento sabia de tudo e tinha grandes coisas preparadas para vingar os que morreram e, ao mesmo tempo, fazer os brancos entender que aquela também era terra de negros. Simão afirmava que podia ser de todos, e pediu a José Chipindo para contar aos patrícios da confiança dele. Falou-lhe também da independência do Congo Belga, referindo que, mais tarde ou mais cedo, havia de acontecer o mesmo em Angola.

José Chipindo, não tinha nenhuma preparação para entender de política, mas percebera a mensagem do mestiço. E como era amigo de Canivete, estava ali, para lhe contar tudo o que sabia.

Canivete, de olhos esbugalhados pelas terríveis revelações, não queria acreditar. Para o convencer, Chipindo disse-lhe que prestasse atenção às conversas do branco e do administrador Fernandes, quando este lá fosse passar o fim-de-semana.

Despedindo-se, José Chipindo reafirmou uma vez mais o seu ódio pelos mulatos:

- Sabe você, Canivete, quando acontecer a gente ir para a independência, eu te jura mesmo que esse mulato eu vou matar.

Canivete alarmado pelas suas lembranças do passado implorou: -O menino Toni não!

- Não! Não é esse. Esse rapaz não está cá, parece até que é um mulato honesto, que gosta dos que têm sangue negro, segundo se diz.

José referia-se ao administrador Olavo. Disso deu conta ao amigo:

- Esse Olavo tem roubado os negros nos impostos e não vai escapar.

Acossado pelo medo, Canivete aconselhou:

- Toma cuidado, rapaz, qualquer dia vais-te lixar com essas coisas. Os branco tem muita força e nunca ninguém vai correr com eles. Acredita nisso, rapaz. Eles ter armas, soldados, lá do puto. Cuidado, Chipindo, vê lá no qui ti mete.

O visitante cuspiu com raiva, levantou-se, e pegou no porrinho e na catana para se pôr a caminho:

- Tá bem, deixa só que vocês vai ver. Virou-lhe as costas e perdeu-se na noite.

Beto Machado voltava agora à disponibilidade, cumprido seu tempo normal de tropa. Preparava-se para fazer o exame do sétimo, tencionando depois matricular-se na Faculdade de Direito de Lisboa. Isso permitir-lhe-ia frequentar a faculdade com Julieta, a quem continuava a amar secretamente. Tinha de a conquistar.

Conhecia a história dela com Toni. O que se tinha passado. Mas agora já não sofria tanto. O tempo encarregara-se de reduzir as coisas a cinza. No íntimo, ainda acreditava na possibilidade de Julieta vir a gostar dele. Correspondiam-se. E afigurava-se-lhe que a paixão pelo amigo se ia esbatendo aos poucos. Talvez o afastamento dos dois, enquanto Toni acabava os estudos em Sá da Bandeira, tivesse contribuído de alguma forma para arrefecer os sentimentos à rapariga. Beto cultivava a amizade com ela, através de cartas e, às vezes, falava-lhe do futuro. Um futuro que ele queria dividido com a Julieta, mas de que nunca lhe falou. Certo dia, numa carta, informava-o de que Amélia, sua companheira e confidente, lhe confessara o amor que sentia por Toni. A partir daí as duas deixaram de se falar. Terminava a carta afirmando: «serei justa ao zangar-me com a minha única amiga que ama o homem que me quer? Penso que o amor desconhece todas as regras e não se compadece com obstáculos. Não consigo sabê-la infeliz, tal como também sofro por te saber infeliz por minha causa. Talvez o destino volte a baralhar as cartas deste jogo viciado e dê, a cada um de nós, melhores trunfos».

Beto sentiu-se renascer.

Depois de pôr uma carta no correio, em que mais uma vez lhe falava de projectos, foi sentar-se na pastelaria. A certa altura, Sérgio, que trabalhava no Rádio Clube, e era seu amigo aproximou-se, e pedindo um café, sentou-se ao lado de Beto:

- Então, pá, já sabes do pandemónio de ontem em Luanda? Beto Machado, apreensivo, manifestou ignorância. Sérgio desfechou:

- Foi um inferno. Uma data de negros assaltou as cadeias de Luanda e fartaram-se de matar polícias. Dizem que a esquadra de Catete e a fortaleza de S. Paulo foram os grandes alvos. Cortaram à catanada sete polícias para libertarem uma data de gajos que estavam presos. Houve tiroteio toda a noite, nos muceques. Foi o fim da macacada. Isto é uma merda! Os gajos estão a seguir o exemplo dos negros no Congo.

Beto não conseguia fazer parar o amigo, embalado pelas próprias palavras, perdido em conjecturas, e afirmando que sabia como resolver a situação:

- Encostá-los à parede. São criminosos, gatunos de muceque e vadios.

Sem saber explicar porquê, Beto teve um sobressalto e deixou-se invadir pela tristeza. Uma grande amargura tomou conta dele e não prestou mais atenção às palavras do amigo.

No café, alguns grupos comentavam os acontecimentos da véspera, e nos rostos podia ver-se ansiedade. De um grupo de clientes, uma voz pediu:

- Ó Martins, ponha aí o rádio mais alto para ouvir as notícias. Segundo a versão oficial, tinha sido um acto de banditismo isolado, mas que provocou a morte de sete agentes da autoridade. Beto fixou no quadrante o marcador de datas.

4 de Fevereiro de 1961.

A rebelião andava agora em todas as bocas.

Não se falava noutra coisa. Sila ouviu as notícias pela rádio. Sintonizava, como era seu hábito, em ondas curtas, a BBC, que falava do ataque como um golpe montado por um Movimento Popular para libertar presos políticos das cadeias de Luanda. As autoridades portuguesas, por seu turno, informavam que tudo não passava de um acto praticado por bandidos, um grupo de criminosos de delito comum, e que para fugirem das cadeias estavam a ser ajudados do exterior por outros marginais. A BBC, no entanto, afirmava que se tratava de facto da tentativa de libertar alguns chefes políticos angolanos.

Sila interrogava-se. Como era possível a existência de presos políticos em Angola? Não podia acreditar, já que nunca ouvira falar de tal coisa e muito menos em movimentos organizados para a independência. Apesar de, às vezes, entre amigos, se afirmar que Angola poderia vir a ser uma espécie de Brasil, porque todas as potencialidades daquela terra eram magníficas. Custava-lhe a acreditar que alguém pretendesse separar-se da metrópole. Então Portugal não era um império? Um nome respeitado nos quatro cantos do mundo?

Diziam-no todos os governantes, em discursos de Estado. Ele também acreditava nisso, muito embora a política não fosse o seu forte. Sila estava habituado a que as decisões fossem tomadas pelos governantes e não pelos cidadãos, como bom português, a sua política era o trabalho.

No seu círculo de amigos insistia-se com frequência:

- Qualquer dia damos com os pés no Terreiro do Paço e depois sempre vamos ver como é que os «gajos» vivem!

Tudo isso não passava de conversa principalmente quando o governo tomava algumas medidas que desagradavam. Contudo, no íntimo, estava sempre presente um certo orgulho nacional.

Sila comovia-se quando Salazar falava à Nação. Escutava pela rádio, atentamente, essas transmissões em que ele se referia ao orgulho de uma Nação tão grande e espalhada por todo o mundo, com povos de diversas etnias, mas sob a "mesma bandeira. Nessas alturas, o velho estadista era escutado com todo o respeito. Sila deu por si a pensar nos actos oficiais, em que tomara parte, como presidente da Câmara e muitas vezes com a presença dos governadores, nas grandes manifestações de massas que exacerbavam seu nacionalismo.

Eram multidões de negros, vindos de todas as partes do distrito para gritar vivas a Portugal, a Salazar e ao Sr. Governador. Como seria possível esses negros não sentirem como ele essa euforia de ser português?

Não havia dúvida de que essas emissoras estrangeiras mentiam!

Sila bebeu mais um uísque. O terceiro.

E se a veracidade dos factos fosse confirmada?

Se de facto aquele assalto às cadeias de Luanda tivesse sido para libertar presos políticos?

Não! Não podia ser!

Tinha chegado há dias a Lisboa e as pessoas pareciam pensar como ele. As conversas entre ele e os empresários com quem lidava demonstravam a aceitação geral da política salazarista no país. É certo que alguns deles até desaprovaram umas greves universitárias, considerando-as como garotice de estudantes. Ouviu falar em crises académicas, mas não prestou grande atenção. Decididamente, as pessoas estavam-se nas tintas e achavam tudo bem.

Deu um saltinho à terra à procura de velhos amigos, mas não encontrou praticamente ninguém do seu tempo. Muitos tinham emigrado para França, dizia-se. Emigrava-se para diversos países. O despovoamento atingia aldeias e vilas do interior. Mas ao que parece sempre tinha sido assim. Nunca porém, a monte, como se dizia na terra. Era emigração clandestina por Espanha, para França. Isso é que não conseguia entender. Por que razão as pessoas emigravam ilegalmente, em vez de migrar para as colónias, terras de futuro, com lugar para todos? Para lá é que deviam fazê-lo. Falou disso com o Eduardo que frequentava agora o segundo ano de Medicina, conseguindo assim ultrapassar o irmão. O filho falou-lhe na crise académica, deixando bem claro que sempre evitara dar cobertura a esses movimentos estudantis, já que o seu interesse era fazer o curso e uma especialização no estrangeiro. Madalena apoiava. A mulher recebeu-o com ternura. A ele e a Toni. Deram mesmo alguns passeios. E depois de visitar a terra é que foram ao Porto e a Coimbra. Toni mostrou-se maravilhado. Gostou especialmente da aldeia do pai. Convenceu-o a mandar construir sepulturas de mármore para os avós. Sila também desejava isso e contratou com uma firma especializada. Encarregou o filho mais velho de voltar ao aldeamento para ver como tinham ficado as obras.

Madalena alugara um apartamento nas Avenidas. Uma casa luxuosa, com quatro grandes assoalhadas e todas as comodidades. O comerciante gostou da casa e prometeu-a à mulher. Poderia adquiri-la. Depois tratou de diversos assuntos no Banco de Angola e abriu uma conta para cada um dos filhos, além da que estava em nome da mulher, dando ordem para que todos os meses fosse feita uma substancial transferência.

O tempo passou depressa. Sila queria voltar. Oito dias depois de estar em Lisboa, morria já pelo regresso a Sá da Bandeira. Não conseguia adaptar-se à grande cidade, contrariamente a Madalena. A mulher rejuvenescera. Sentia-se feliz, apesar de saber que só ficaria em Portugal enquanto os rapazes, estivessem a estudar. Era esse o desejo do marido. Vivia exclusivamente para o filho, mas no entanto conseguiu fazer amigas, entre as vizinhas. Dava-se particularmente bem com uma, cujo marido era industrial em Moçambique. Ambas tinham a África em comum. A vizinha acompanhava uma filha que também estudava em Lisboa na Faculdade de Farmácia. A família era a dos Castros. Eduardo manifestava um certo interesse pela jovem Paula de Castro. As mães viam a amizade dos jovens com bastante simpatia. Sila foi informado e não falou disso com o filho. Toni, por seu turno, acicatou o irmão.

Madalena, em conversa com o marido, sobre o futuro do casal, tentou convencê-lo a investir na metrópole, comprando terras em Trás-os-Montes, ou mesmo uma quinta em qualquer ponto do país. O sonho dela era ter uma residência na linha do Estoril, de preferência em Cascais. Sila disse que, de momento, não estava para aí virado nem sequer tencionava investir em Portugal, Só em Angola, e muito particularmente na Huíla. A metrópole não lhe dizia nada. As irmãs casadas, os pais mortos, o irmão mais velho no Brasil. Nada o prendia ao passado. Depois de os filhos concluírem os cursos prometeu à mulher rever a sua posição. Madalena ficou triste com as desculpas do marido, sobretudo porque sabia não serem só as razões apresentadas as que contavam. Compreendia. Pela negra Isabel o fazia. Mas tinha tempo. Por intermédio do filho e talvez até quem sabe, com o apoio do Toni, conseguisse fazê-lo mudar de ideias.

Nos últimos dias de Fevereiro, Sila despediu-se da mulher e dos filhos e embarcou no Império., atracado à Rocha do Conde de Óbidos. Quando o navio saiu a barra, respirou, aliviado.

Voltava à terra que amava. Duas semanas depois, desembarcava. Em Moçâmedes.

A bordo, soube do ataque às fazendas, no Norte de Angola.

Pela UPA.

Isabel Tchilombo interrogava-se. À memória afluíam os factos mais importantes da sua vida. Imagens distantes em que aquele negro, ao tempo tão novo como ela, pagara parte do alembamento a seu tio, indo para as terras longínquas do café, enquanto contratado, como única forma de a ter por mulher. Uma vida tocada pela mácula do homem. Apodrecida. Como um fruto.

José Chipindo procurou-a na Humpata, ao saber que o branco tinha ido ao puto. Quando o viu, no primeiro minuto, Isabel sentiu manifestar-se o receio de ter chegado a hora da vingança, não acabada, na altura em que a tinha atacado e ao filho, com uma catana, já lá iam muitos anos. O negro acalmou-a. Tinha passado muito tempo. Não procurava vingança. Fora ali para a ver e para falar do presente. Na africana cabeça de Chipindo, alguns cabelos brancos apesar de ainda não ser suficientemente velho para isso. Era um homem bem constituído, ainda que de pouca estatura. Um corpo seco, rijo de músculos, mas ágil. Apesar de já ter passado os cinquenta. A sua vida moldara nele o corpo e o espírito. Isabel pensou que aquele devia ter sido o seu homem. Assim o branco não tivesse aparecido, fazendo-lhe um filho. Falaram longas horas. Da família e do passado. Chipindo contou-lhe das suas andanças e surpreendeu-a ao dizer que sabia ler. A negra trouxe-lhe um livro da estante da sala e ele leu-lhe algumas páginas. Isabel estava maravilhada e a ternura por aquele homem invadiu-lhe a alma.

José Chipindo procurara a negra para lhe falar dos ataques às fazendas dos brancos, no Norte de Angola. Insistiu na fúria dos atacantes, na fé que eles tinham, gritando que as balas dos brancos não matavam, mesmo que fossem atingidos. Disse a Isabel que aquilo há muito estava para acontecer. Falou-lhe da independência do Congo, no arrasamento das senzalas na Baixa de Kassanje, onde teriam morrido milhares de negros, e do ataque às cadeias de Luanda para libertar presos políticos. Falava de tudo isso com uma expressão de ódio pelo branco, o que assustara a negra. Garantia a Isabel que agora tudo iria ser diferente para eles. O tempo dos brancos tinha chegado ao fim. Queria levá-la dali. Isabel teve medo. Esforçava-se por entender tudo aquilo. Achava que os negros tinham enlouquecido por se revoltarem contra os brancos. E disse ao visitante que não sairia dali. O seu dever era esperar na fazenda que o filho voltasse do puto. Manifestou então o seu horrível pressentimento de que muitos da sua raça iriam morrer. Chipindo tentava convencê-la do contrário. Isabel recusava-se a acreditar na fé do antigo noivo. E temeu pelo filho. Se fosse verdade o que ele contava, os negros matariam todos os mulatos, só por serem filhos de branco. José tentou convencê-la mais uma vez e disse-lhe que entre os seus havia mulatos, e que mandavam até.

Isabel já tinha ouvido falar de tudo isso e dos massacres do Norte. O capataz da fazenda garantiu como certa a morte de muitos negros, por causa do que tinham feito, e isso não a deixava acreditar no que José Chipindo contava, acerca dos mulatos e mostrou-se descrente das palavras dele.

À despedida, o negro ameaçou:

- Agora, você não diz a ninguém que eu te contei estas coisas. Se disseres, venho aqui e te mato. Se não for eu vem outro. Presta muita atenção, Isabel, não fala nisto com ninguém, nem mesmo com o teu branco ordinário.

Deu-lhe as costas e desapareceu à distância, enquanto Isabel, sentada na cadeira da varanda, não conseguiu conter as lágrimas. Tinha medo que, naquelas confusões, um dia, lhe matassem o filho, por ser filho de branco. E nunca mais sorriu a partir desse dia quando Canivete fazia graça com ela. Vestiu mesmo tecido negro. Sem saber bem porquê.

Desembarcado em Moçâmedes, Sila inteirou-se dos acontecimentos. Os negros avançavam em desvairadas ondas humanas, armados de catanas contra residências de brancos e tudo dizimavam implacavelmente. Desfaziam as pessoas, esquartejando-as como peças de carne expostas no talho. Ou pior ainda: o sexo das mulheres varado com paus e elas violentadas por negros, às dezenas.

Eles avançavam para as espingardas gritando que a bala do branco não mata. Na cabeça a palavra dos quimbandas inchando. As plantações destruídas, queimadas. Mulheres e crianças em fuga. Para Luanda. E todos foram apanhados. De surpresa. Dizia-se que estavam a tentar evacuar das cidades do Norte a população. No aeroporto de Luanda o espectáculo fora terrível. As pessoas aludiam a um autêntico inferno. No governo da província,, reinava a confusão. O governo central, em Lisboa, não sabia ainda o que fazer. O número de militares, de tão reduzido, nem sequer conseguia enfrentar a situação, apesar de algumas unidades, quase todas constituídas na sua maioria por soldados negros enquadrados por alguns oficiais e sargentos brancos terem partido já para a frente de combate. Só havia notícia de ataques no Norte mas o pânico estendeu-se a todo o território. Milícias de brancos, começavam a organizar-se, armados para guardarem as cidades. Sila ouvia da boca do seu velho amigo, o Dr. Jorge Mota Sequeira, os relatos sangrentos.

- Quando houve o ataque às cadeias de Luanda, eu tive o pressentimento do que ia acontecer. Acredite, amigo Sila, que não vejo razão nenhuma para isto. Penso tratar-se de um acto tresloucado, fanático. Essa UPA só pretende lançar a confusão e instalar o terror.

O comerciante olhou o módico mestiço e filho do coronel Mota Sequeira:

- Não acredito, doutor. É certo que a confusão é enorme, mas tenho a impressão de que eles lutam pela independência.

Sila informou-se de que os comboios continuavam a circular e comprou bilhete para Sá da Bandeira.

Estava profundamente preocupado com Isabel, sem saber exactamente o que teria acontecido na fazenda. Talvez tudo estivesse bem. Não havia notícia de ataques do rio Cuanza para o Sul e isso inspirou-lhe alguma calma. Depois do navio chegar, enviou, com beijos para Madalena e filhos, um telegrama informando que estava bem e que depois daria notícias, já de Sá da Bandeira.

Em Sá da Bandeira, percebeu que os ânimos não estavam serenos. A rádio apelava a todos os homens válidos no sentido de se apresentarem na Administração, a fim de se organizarem milícias para patrulhamento. Informaram-no de que na Humpata nada acontecera. Apesar disso, na Administração solicitou o P-19 para contactar o chefe de Posto. O Matos, seu velho conhecido, respondeu que não havia problemas na fazenda. Isabel estava bem. Pediu para a informar de que a iria buscar dali a dois dias. Alistou-se nas milícias e procurou depois o intendente Fernandes, por quem soube que o governo de Lisboa preparava medidas urgentes no sentido de fazer face à situação.

-Diga-me, Fernandes, como foi isto possível?

O representante do governo, intendente do distrito e velho amigo de Sila, guardou um breve silêncio, e num tom de voz que deixava transparecer alguma mágoa, informou:

- Fomos nós que criámos o problema. Ódios acumulados. A incapacidade de dialogar com a maioria dos negros, homens iguais a nós, afinal. Alguma escravatura disfarçada, à mistura com leis prefeitamente obsoletas, levaram a isto. Sabe que mais, amigo Sila? Fico triste porque nós, os portugueses, somos um paradoxo. Temos um sentido humanitário e humanista como nenhum outro povo, fomos capazes de grandes feitos e os primeiros a abolir a escravatura e não conseguimos entender o que está mesmo diante dos nossos olhos. A pressão foi muita e a panela explodiu. No meio de tudo isto, o oportunismo de chefes tribais levou aqueles negros do Norte a ensandecer, perdendo por completo a noção das coisas.

Sila interrompeu:

- Meu caro amigo, isso é puro fanatismo, ódio rácico. Um ódio de morte pelos brancos. E eu não consigo entender. Só selvagens matam desta forma e torturam como eles.

O intendente não respondeu, porque naquele momento não tinha resposta para dar.

À boca cheia, corriam os pormenores. As atrocidades cometidas por um alferes miliciano que, à frente dos seus homens, patrulhava o Norte em missão de combate. A sua filosofia era olho por olho, dente por dente. Pagavam aos negros do mesmo modo. Tratamento igual: cabeças de negros empunhadas em varas, sexos cortados como trofeu à entrada das senzalas atacadas. Para servir de exemplo. A outra face de um inferno dantesco, em que os homens passavam da sua condição de racionais para enfileirar com as bestas. Fotografias das barbaridades cometidas de ambas as partes, eram passadas em revista pelo Sila residindo agora na sua casa em Sá da Bandeira onde também vivia Isabel Tchilombo. O comerciante tinha entregue a fazenda aos cuidados do capataz e trouxera consigo todas as armas que possuía. À noite, fazia as rondas da milícia para a defesa da cidade. Até ali, quer em Sá da Bandeira quer em toda a região limítrofe não se havia registado a mais pequena desordem. Isso devia-se ao facto de todos os negros terem sido devidamente identificados e de só poderem circular com uma autorização, espécie de salvoconduto, fornecido pelas autoridades. Por enquanto só havia notícias dos combates do Norte e qualquer coisa de grave na Gabela, no Cuanza Sul. Não havia pormenores. Tudo se teria passado em fazendas da Cada.

A metrópole veio em socorro de Angola. Num discurso à nação, Salazar informou que ia enviar tropas rapidamente e em força. E logo os primeiros contigentes caíram em Luanda. Eram batalhões. De caçadores especiais. As tropas incorporadas em 1959, especialmente oficiais e sargentos, receberam ordem para se apresentarem de novo nas suas unidades.

Beto Machado, promovido a furriel, foi novamente colocado no Grupo de Artilharia de Sá da Bandeira. À porta de armas, ficava a esperança de vir a continuar os estudos. O futuro, uma incógnita. E não só para ele, mas para todos. Centenas de jovens regressavam às fileiras do exército, a partir dali envolvido numa guerra que ninguém em Angola previra.

Nesse Março de 1961, muita água correra sob as pontes do Cuanza.

O mar que os portugueses venceram séculos antes, espalhando a fé e o império, voltava a agitar-se.

O império entrava na sua hora derradeira. Sob agonia lenta, longo estertor.

A morte do administrador Olavo Matos Sequeira caiu na cidade como uma bomba. Apareceu decepado na fazenda que possuía nos arredores da Chibia.

Olavo era um dos filhos do coronel Matos Sequeira. Os despojos foram encontrados debaixo de uma acácia, numa zona da fazenda bem afastada da residência.

A cidade alarmou-se com o que pensava ser já as primeiras acções da UPA na região da Huíla. Fizeram-se conjecturas. Correram boatos. As milícias redobraram a cautela à espera do que poderia vir a ser o primeiro ataque em massa. Entretanto, os dias foram passando e não houve registo de semelhantes represálias em nenhuma região do distrito da Huíla.

A bem da verdade, a polícia e as autoridades investigaram, mas sem muita convicção.

Sila tomava café como habitualmente na pastelaria com um grupo mais próximo. Um deles alvitrou:

- Aquilo foi um crime isolado e que nada tem a ver com a acção dos terroristas.

Algumas vozes apoiaram. Uma delas lembrou:

- Não esqueçam que se contava a história de que ele ficava com as notas de cem angolares do imposto dos negros dizendo-lhes que não prestavam.

O velho Perez discordou:

- Não acredito nisso. Houve um inquérito e não se provou nada! Sila recordou-se das palavras do seu amigo Fernandes:

-O processo foi abafado, pela interferência de um padrinho. Daí que se tenha dado a transferência. Evitaram assim desprestigiar a autoridade administrativa.

Transportado ao presente, Sila informou:

- Quanto a mim tratou-se de uma vingança. Somente isso. Nesta altura, atingem já graves proporções, mas é necessário um certo sangue-frio para não perder a cabeça. Já passou uma semana e não há notícia de caso semelhante.

Ignorava o comerciante que o negro que lhe ia matando o filho e Isabel à catanada é que tinha sido o autor do crime.

Sila pensava mesmo num acto de justiça.

José Chipindo aproveitou a situação de medo que se instalara entre a população branca e friamente planificou a morte do administrador.

Emboscou-se no sítio da fazenda, onde o corpo foi mais tarde encontrado, percurso obrigatório do cavaleiro.

Atingiu-o com a zagaia que se cravou no peito do mulato, fazendo-o cair do cavalo. Chipindo, depois saltou-lhe em cima e acabou com ele à catanada.

Vingava assim irmãos de raça e quando o atacou sentiu-se contribuir para bem do seu povo.

A seguir, Chipindo quis fugir para se integrar nas fileiras do movimento, mas decidiu refugiar-se no mato durante uns tempos à espera dos acontecimentos.

Talvez por causa do ambiente que nessa altura se vivia, as autoridades não fizeram muitas investigações e bem depressa se deixou de falar no assunto.

José Chipindo reapareceu na fazenda onde trabalhava, dando a desculpa ao patrão de que tinha ido visitar a família, porque nada sabia dela, a partir do momento em que estalara a insurreição.

Beto Machado foi transferido para Luanda e integrado numa Unidade de Intervenção. Aguardava ordem de marcha para a zona de São Salvador.

Antes, Beto tinha feito escoltas às colunas que transportavam mantimentos para as unidades instaladas em diversas regiões do Norte.

A guerra já durava há mais de um ano. O seu baptismo de fogo deu-se quando, escoltando uma coluna entre Nambuangongo e Quiteche, caíram numa emboscada montada na estrada que ligava as duas povoações, ou o que delas restava. Havia tropas no Quixico e era preciso alimentá-las. Por isso, a coluna da manutenção.

O cenário habitual. Curva na estrada. Barreira alta de um lado com cerca de dois metros. Mata cerrada relativamente perto e dos dois lados da estrada. Um pequeno morro à distância. A viatura da frente fora atingida por uma bazuca, ou granada, enquanto se ouvia um estrondo. A coluna parara. E logo o tiroteio. Quatro viaturas ficaram dentro da zona de morte. Toda a gente saltara das viaturas. Beto não conseguiu saltar do jipão, colocado em terceiro lugar na coluna. Essas viaturas tinham sido equipamento do exército americano na guerra da Coreia e foram adaptadas, para o serviço que desempenhavam em Angola, com chapas blindadas colocadas nos taipais laterais, o que naturalmente dificultava a evacuação dos homens. Nessa fase da guerra, as blindagens davam alguma protecção contra o poder de fogo da guerrilha. Beto deitou-se na plataforma do carro enquanto ouvia as balas passarem por cima. Aguardara a oportunidade de saltar para a estrada, quando o fogo abrandou. O tiroteio fora intenso. De ambas as partes. Do lado da estrada, marginado pela barreira, ouvira-se o som de uma metralhadora de tripé Madsen.

Próximo do local onde estava imobilizado, Beto ouviu o disparo de uma metralhadora ligeira FBP. Depois da primeira descarga, alguém disse:

- Foda-se! Esta merda está encravada!

Em resposta mais uma salva de tiros vindos da mata. Uma voz de comando fez-se ouvir acima do barulho:

- Fogo, à vontade. Os gajos estão próximos. Metam os cornos no chão! Beto sentiu-se aterrorizado, por estar forçado àquela imobilidade em cima da viatura. Olhou o banco da frente. O condutor estava todo encolhido no assento, pálido, como se estivesse morto, e tremia açoitado pelo terror, apesar de protegido pelas blindagens ja porta.

Como começara, o tiroteio acabou.

Ouviam-se agora os gritos dos feridos. Beto saltou então da viatura e numa cambalhota, enrolado sobre si próprio, ficou na berma da estrada. O capacete de aço saltou-lhe da cabeça para o meio da estrada, rodando depois para debaixo da viatura. Os gritos dos feridos no silêncio do espaço. Olhou o relógio convencido de que tinha passado uma eternidade. Constatou que não. Desde a explosão até saltar do carro tinham-se passado cerca de cinco minutos. Uma voz mandou avançar ao reconhecimento. Os atacados fizeram fogo para a mata cobrindo a progressão dos seus camaradas. Não houve resposta. Cerca de vinte minutos depois de terem entrado na mata regressaram e o capitão foi informado:

- Só vimos o local onde os gajos montaram a metralhadora. Estão lá cartuchos vazios.

O alferes apontava na direcção onde fizera a descoberta e acrescentou:

- Escolheram um sítio bestial!

A secção que tinha partido em direcção oposta regressou nessa altura. O furriel que a comandava informou:

- Meu capitão, só vimos cápsulas vazias. Pela observação que fiz fiquei com a certeza de que os tipos tiveram tempo de preparar abrigos individuais e estavam bem camuflados. Por isso não os vimos da estrada. Estavam lá ramos de árvores, cortados há poucas horas. Havia sangue. Deve ter ficado algum cabrão de algum terrorista ferido!...

Beto ouvia aquilo tudo como se se tratasse de um sonho.

Tinha sido o seu baptismo de fogo e o instinto obrigara-o a ficar assim: rente à chaparia. Como um verme.

Ouvira, então, o capitão ordenar ao alferes:

-Meta os nossos três mortos na viatura da retaguarda e os sete feridos na penúltima.

O comando do Batalhão foi posto ao corrente, pela rádio, sobre o ataque e sobre o número de baixas. Como resposta, que se mantivesse no local. Uma coluna iria ao seu encontro para evacuar os feridos e transportar os mortos. Eram cerca de cinquenta quilómetros e dentro de hora e meia contavam estar no local, levando todos os socorros. Os enfermeiros que acompanhavam a coluna prestaram assistência imediata aos feridos, aguardando a chegada da coluna. Duas horas depois, apareciam os reforços vindos de Nambuangongo, constituídos por vinte viaturas, entre as quais se encontravam camiões GMC Q jipões com metralhadoras montadas em tripés. Na coluna vinha o médico da unidade.

As duas colunas retomaram depois o andamento, em sentidos opostos.

O condutor, um soldado e o furriel da primeira viatura atingida por uma granada de bazuca estavam feridos com gravidade. O condutor não devia escapar, já que a explosão se registou do seu lado, mesmo junto à roda esquerda. Essa parte da viatura estava desfeita numa amálgama de ferros.

Depois disso, Beto jurou a si próprio nunca mais se arriscar. Era preciso sobreviver. Ao retomar a marcha, sentou-se no chão da viatura comendo o pó da estrada, mas a balançar as pernas e pronto a saltar. Chegou ao aquartelamento todo partido e com a sensação de ter levado uns açoites. As nádegas estavam cheias de manchas negras. Reparou nisso quando tomava banho no chuveiro improvisado de campanha.

Foi a sua primeira experiência como combatente e dela não guardava boas recordações. Depois disso, seguiram-se outros ataques perpetrados contra as colunas a que montava escolta. Numa dessas viagens, Beto escapou à morte por uma unha negra. Uma emboscada imobilizou a coluna e quando estava deitado por terra, na berma da estrada, respondendo ao fogo que vinha da mata, uma rajada fez levantar o pó à sua frente. Uma das balas, encontrou no seu percurso a cabeça de um primeiro cabo que fazia parte do seu pelotão. Teve morte imediata. Beto recordava-se ainda da expressão do olhar. A surpresa no rosto. E nítida, a imagem. A de um homem surpreendido pela morte inesperada e para a qual não há disfarce. Os olhos ficaram cobertos pelo sangue, e ele golpeado pela ferida na cabeça. Beto sentiu-se profundamente atingido, não conseguindo evitar o vómito que lhe rompeu as entranhas. A raiva toda à sua frente. De vez em quando, essa recordação atormentava-o e tirava-lhe o sono. Nem sempre Beto conseguia ficar indiferente, e quando isso acontecia, apesar de tudo, o ódio instalava-se no seu coração e irracionalmente pressionava o gatilho da arma, virada para a mata. Descarregava assim a fúria, já que nunca tinha conseguido até ali ver os «turras», como os camaradas diziam. Tinha nessas alturas uma secreta esperança de conseguir atingir um desses guerrilheiros, vingando a honra. Aquela guerra era também uma injustiça.

Beto descansava em Luanda aguardando nova viagem ao Norte. Quase todas as noites visitava os cabarets da cidade, que nessa altura proporcionavam aos jovens combatentes verdadeiras noites de loucura. Mulheres para todos os gostos.

Beto teve algumas durante as suas noites de solidão.

Três meses passaram sobre a notícia do destacamento de uma bateria para São Salvador e a verdade é que nunca mais surgia a ordem de marcha. Faltava completar o quadro de oficiais. Aguardava-se a chegada de dois alferes mobilizados da metrópole, a quem só depois seria viabilizada a partida para o mato.

Beto Machado cumpria serviço de sargento da guarda. Seria rendido dali a algumas horas.

Acabara de preencher o seu relatório e preparava-se para fazer dele entrega ao oficial de dia. Olhou o relógio para confirmar a hora mais próxima de chegada do comandante. Os ponteiros indicavam oito e meia.

Um vulto cortou-lhe a luz do exterior. Beto já ia mandar um palpite, porque julgava tratar-se do cabo da guarda, quando reparou que o soldado negro "que estava ao seu lado se tinha posto em sentido e feito a continência. Levantou a cabeça e olhou os ombros do militar que estava à sua frente, em contra-luz.

Reparou que se tratava de um alferes e quando fez a continência, reconheceu o seu velho amigo e companheiro de sempre, Toni Sila. Um abraço sem cerimónias, e a alegria tomou conta deles perante o olhar estupefacto do soldado negro que ora olhava para o oficial, ora para o furriel. O oficial mulato devia ser muito amigo do branco, para fazer aquilo à frente dos soldados, pensou o negro. Lembrava-se de que na recruta lhe tinham ensinado que as praças não podiam acamaradar com sargentos e oficiais, assim como eles entre si. Por isso, não percebera aquela do alferes mulato.

- Porra, pá. Mal advinhava eu que vinha para a mesma unidade em que tu estás. O Farinha é que me disse que estavas aqui.

Toni referia-se a um antigo colega de ambos do liceu. O Farinha também era alferes e andava muitas vezes com o Beto Machado, nos copos e nas longas noites de farra. Toni prosseguiu:

- Cheguei ontem de Lisboa. vou apresentar-me e depois preciso de arranjar quarto.

Beto atacou de imediato:

- Vais para a pensão onde eu estou. Arranja-se lá um quarto, ou se quiseres ficas no meu.

- OK! Depois falamos disso. Vamos almoçar juntos! Tenho de me ir apresentar ao comandante e depois vou procurar-te.

Despediram-se. Beto disse esperá-lo na sala de sargentos para saírem, logo que estivesse despachado.

Rendeu-se a guarda. E meia hora depois saíam aqueles dois homens a renovar a amizade.

Almoçaram juntos, depois de Toni optar pela mesma pensão do amigo.

- Já que os gajos me lixaram a vida, meti o requerimento para ficar na tropa, mais dois ou três anos. Perdi toda a vontade de continuar a estudar. Devo estar a ser promovido a sargento e, afinal, a merda da tropa é uma profissão como outra qualquer. Beto contava ao amigo o que tinham sido os últimos anos da sua vida. Falou-lhe da convocação dos oficiais e sargentos da classe de 1959, para aguentarem o primeiro embate e como tudo isso deitou por terra a esperança até ali acumulada. Casualmente falou-se de Julieta e Toni contou-lhe dos últimos meses desse namoro atribulado:

- Acabámos tudo há cerca de um ano. Ela perdeu-se naquele ambiente da universidade. Quando lá cheguei, andava com um colega. Ainda nos namorámos durante algum tempo, depois as coisas foram arrefecendo e a determinada altura mandou-me dar uma curva. Adaptou-se à maneira de ser daquela malta e parece que agora muda de gajo como eu de camisa. Paciência!...

Beto teve a sensação de ter levado um murro no estômago. Não lhe passava tal coisa pela cabeça. Ela nunca tinha dito nada nas cartas que lhe escrevia, de vez em quando.

Ao saber que tudo estava acabado entre ele e Toni, sentiu renascer a esperança e disfarçadamente fez algumas perguntas sobre o seu amor de sempre, mas de forma a Toni não desconfiar dos seus sentimentos:

- Achas que ela é leviana, ou namora algum gajo a sério?

-Não! Penso simplesmente que deixou de gostar de mim. ou se calhar nunca gostou a sério. Sabes o que aconteceu entre nós, mas apesar disso ela nunca se mostrou presa por essas questões. A princípio sofri um bocado, mas depois compreendi perfeitamente que a vida em Portugal é diferente e nós, os jovens, temos outras solicitações, completamente diferentes daquelas que sentíamos nos nossos tempos de liceu. Tornamo-nos adultos. Chega a maturidade. Nos meios universitários existe um espírito mais aberto, contrariamente ao que nós tínhamos, por exemplo, em Sá da Bandeira, onde as pessoas são perfeitamente conservadoras. Hoje, as raparigas que frequentam a universidade não dão importância praticamente nenhuma ao facto de serem virgens ou não. Pelo menos, há um grande número delas que pensa assim, sem que isso signifique leviandade. São coisas distintas. Entretanto aproximei-me imenso da Amélia. Lembras-te dela? Beto fez um sinal de assentimento com a cabeça, mas não quis interromper o amigo que prosseguiu:

- Amélia Vasconcelos, a melhor amiga de Julieta, mostrou-se grande amiga minha, e foi ela quem me abriu os olhos em relação à Julieta e ao que ela andava a fazer. A Amélia começou a ser minha companhia permanente e deu-me todo o seu apoio. Frequentávamos juntos as diversões, o cinema e muitas vezes íamos dançar. Só muito mais tarde é que fiquei a saber que há muito ela gostava de mim. As coisas aconteceram naturalmente e comecei a afeiçoar-me. Nunca fui com ela para a cama, acredita! Dois meses antes de eu ser mobilizado, ela fugiu de Lisboa. Andava metida em movimentos de contestação ao governo e arrastava-me para reuniões, onde se falava de Angola, desta guerra e da independência do ultramar. A certa altura comecei a sentir que me andavam a vigiar. Cheguei mesmo a ser perseguido por tipos que eu nunca tinha visto e, dias depois. Amélia fugiu para França. Deixou-me uma carta em que me explicava o grande amor que me tinha, mas o que sentia pela nossa terra era maior e por isso fugia, juntando-se aos estudantes angolanos no exílio. Prometia que nos voltaríamos a ver, quando a nossa pátria fosse livre e incitava-me a fazer o mesmo.

Toni tirou da carteira uma carta que entregou ao amigo, dizendo-lhe:

- Está aí tudo se quiseres ler.

Beto agradeceu, devolvendo a carta. Toni parecia recordar esses momentos, pela expressão distante que o seu rosto transmitia. Beto, curioso:

- Então e depois tu como reagiste?

- Eu passei por maus bocados e estou convencido de que os gajos da polícia secreta andavam sempre atrás de mim. Como chumbei no segundo ano, tive de vir para a tropa. Penso que os tipos não me impediram de fazer o serviço militar porque perceberam que eu não estava envolvido. A verdade é que estou de acordo com algumas das coisas que Amélia escreveu. Tenho a impressão de que nesta altura se está a assistir a um processo histórico que há-de culminar com a independência dos nossos territórios ultramarinos. Afinal Beto, aquilo de que tantas vezes nós falávamos nas conversas dos nossos tempos de liceu: merda para os gabardo Terreiro do Paço.

Beto atalhou:

-Olha que muitas coisas se passaram e eu também já vi muita porcaria por essas senzalas do Norte que foram atacadas. Espectáculos filhos da puta, a princípio. Mais: puro terrorismo. Hoje já não é bem assim, já se trata de uma guerra de guerrilhas, mas nessa altura as coisas eram lixadas...

Toni, com um tom de irritação na voz, cortou a frase ao amigo;

- Da parte deles, mas também da nossa, e não digas que não foi assim porque eu vi fotografias, Beto.

Beto Machado engoliu o fumo do cigarro e fez uma pausa antes de voltar a falar por entre o fumo azulado.

- Tudo isso é verdade, mas de uma coisa podes estar certo. Os tipos agora estão bem armados. Têm bom material, fornecido pelos russos e pelos israelitas. As minas de estrada tem feito muita merda entre a nossa tropa. Mortos e feridos...

Toni interrompeu de novo:

- Vim no avião com um alferes do quadro. Um desses meninos da escola, que fazem carreira da tropa e que regressava da licença, que tinha ido gozar ao puto. Sabes o que me disse?

Beto manifestou a sua ignorância e Toni prosseguiu:

- Confidenciou-me que levou umas coisas para os pais e para a namorada e depositou as economias que tinha feito ao longo de um ano de comissão, tendo o desplante de me dizer que era preciso que esta guerra durasse mais uns anitos, para ele conseguir juntar o dinheiro que precisava para comprar um apartamento. Será possível pensar-se desta maneira, Beto? Será possível haver indivíduos, que até têm uma certa formação académica e alguma cultura e que desejem que a guerra dure, para poderem comprar o que ambicionam? Tudo isto à custa desta guerra?

Beto conhecia oficiais como aquele e também sargentos:

- com alguns sargentos, meu caro, passa-se o mesmo. Se falares com os soldados que vêm de lá vais ver até que ponto muitos deles estão satisfeitos, porque conseguem economizar algum que mandam para a terra pelos companheiros que vão de férias. Muitos pela primeira vez na vida compraram um rádio portátil e alguns já me confessaram que lá no puto nunca os conseguiriam comprar. Mas, no meio disto tudo, o que me lixa é que os gajos que vêm de lá em grande parte odeiam os colonos. Sobretudo os que têm alguma formação como é o caso dos sargentos milicianos e dos oficiais. Se virmos bem, têm as suas razões. Aos milicianos ainda posso entender, mas os do quadro..., os que fazem carreira e profissão na tropa não entendo que odeiem a malta de cá. Todos eles, de um modo geral, transferem quase todo o ordenado, que eu bem os oiço. Estão a ganhar com a guerra como nunca imaginaram.

Toni digeriu as explicações que Beto lhe dava. Vinham ao encontro daquilo que ele já sabia. Estabeleceu-se o silêncio. Estava perdido nos seus pensamentos. Nessa altura, entrou no restaurante uma morena de passo firme.

A anca, uma verdadeira melodia de sensualidade. Cabelos negros sobre o ombro emolduravam-lhe um rosto bonito a que os olhos escuros emprestavam certo mistério. Um prodígio de lábios. Ela sabia que a sua entrada prendera a atenção dos homens presentes e provocara a inveja às mulheres. O nariz revelou que se tratava de uma mestiça, muito embora o tom da pele não o deixasse adivinhar. Sentou-se ao balcão e pediu café. Toni apreciando a bonita mulher:

- Senti muito a falta das nossas mulheres lá em Portugal. Há qualquer coisa que as distingue das europeias. A sensualidade que emana naturalmente da sua pose! Uma mulher como esta em Lisboa, num café da baixa, à hora do lanche, fazia parar o trânsito. E olha que eu, apesar de tudo, não me posso queixar da sorte com as mulheres de lá. Quase todas as que eu conheci quiseram saborear este fruto tropical e aí nunca me fiz rogado!

Beto deixou escapar uma sonora gargalhada pela expressão do seu amigo de sempre que se ria também.

- Vais a Sá da Bandeira ver o teu pai, Toni?

- Se conseguir uns dias de licença. Gostava de ir ver a minha mãe. Se não me engano muito o velho vai" aparecer por aí, aposto.

Beto sorriu. Sabia que isso era quase certo.

Toni falou-lhe depois da madrasta e do irmão.

Eduardo estava lançado no seu curso de Medicina. Sempre com altas classificações. Um ano para se formar, embora quisesse tirar uma especialização, em Londres. Cumpriria o serviço militar mais tarde, informou Toni.

Uma semana depois, Toni e Beto partiam para substituir a Bateria de Artilharia aquartelada nas proximidades de São Salvador do Congo.

Quarenta por cento dessa unidade era formada por soldados negros oriundos de diversos pontos de Angola.

Comandos, oficiais e sargentos eram também na sua maioria naturais de vários pontos da Província. Apenas o capitão e o primeiro-sargento haviam sido mobilizados a partir da metrópole.

Sila recebeu o telegrama de Madalena informando da partida de Toni para Luanda.

Quis ir esperá-lo, mas uma forte crise de paludismo, segundo o médico, imobilizou-o na cama com altas temperaturas, durante alguns dias. Mais tarde, respondeu à carta que Toni lhe escrevera convidando o filho a deslocar-se a Sá da Bandeira na primeira licença. Isabel estava saudosa do filho e mandou-lho dizer.

A negra sentiu uma grande alegria quando o branco lhe transmitiu que as notícias tinham sido entregues. Exteriorizou ao branco o receio por Toni ir para o mato fazer a guerra. O branco acalmou-a, mas apesar disso, ao visitar a fazenda num fim-de-semana, procurou o quimbanda pedindo protecção e sorte para Toni.

O velho feiticeiro revelou-lhe coisas que a deixaram triste. Aquele filho ia trazer-lhe muitas lágrimas. Livre morte, porém. Muitos desgostos, a ela e ao branco, mas Nzambi estava com ele, concluiu o velho, depois de fazer mahamba.

Isabel teve a sensação de que os cazumbiris andavam por ali, acompanhando o quimbanda.

Canivete soube da conversa de Isabel com o quimbanda e tentou acalmá-la, dizendo-lhe que Toni era esperto e um grande caçador e, como tal, havia de voltar para a ver. Isabel não estava convencida. A partir daí passou a viver num estado de permanente ansiedade, sempre à espera que o seu «minino» lhe aparecesse em casa. Queria vê-lo. Abraçá-lo e dar-lhe os amuletos do quimbanda. Passava a vida perguntando ao branco quando é que o filho viria à fazenda.

Sila não tinha resposta. Vivia preocupado, não só pelo rapaz, mas também pela sua vida de empresário. Tencionava reduzir a dinheiro parte do património pessoal, excepto a fazenda da Humpata.

Faltava-lhe já paciência para os negócios. A sua conta bancária era tida como uma das maiores de Sá da Bandeira. Uma grande fortuna. Já pensara em vender tudo, mas os apelos do governo iam em sentido contrário. Pediam a todos em condições de o fazer que investissem em Angola. Ninguém deveria transferir dinheiro para a metrópole e foram criadas leis especiais para essa limitação. Só os militares em comissão de serviço o podiam fazer. Algumas firmas, com contas abertas no estrangeiro, iam conseguindo por vias tortuosas depositar grossas maquias. Normalmente os sócios dessas firmas deslocavam-se ao estrangeiro e faziam o contrabando de divisas. Ele não se sentia capaz disso. A única maneira de ajudar o desenvolvimento de Angola e de acabar com a guerra, era investir, melhorando assim a economia.

Transferir dinheiro para Portugal era uma espécie de traição. Os jornais e a rádio diziam isso, em artigos de opinião, assinados por personalidades ou mesmo por alguns jornalistas ligados ao mundo das finanças.

Na verdade, faziam-se nessa altura grandes fortunas. O poder de compra aumentava. Uma pequena burguesia negra, constituída por funcionários públicos de nível médio, empregados de escritório e noutros ramos de actividade, estava em franca ascensão económica. Os negros eram tratados com mais consideração. As autoridades protegiam agora muito mais a população indígena, mas isto acontecia devido à guerra.

com mais frequência, os negros adquiriam automóvel próprio e o acesso aos bens de consumo e ao mundo do branco vulgarizava-se. Falava-se em desenvolvimento socieconómico de Angola para vencer os que a combatiam.

Importavam-se tractores e máquinas agrícolas de todo o género, para equipar o parque angolano. Asfaltavam-se estradas ao longo de toda a Província. Reconstruiram-se os portos de pesca, levantaram-se fábricas.

No Sul, arrancava um grande projecto de exploração mineira em Kassinga, em cujo terminal seria construído num grandioso porto de mar em Moçâmedes.

A estrada da Leba marchava para a sua efectivação.

Afirmava-se ser uma das maiores obras da engenharia portuguesa de todos os tempos.

Sila não cessava de reflectir em tudo isto e olhava a sua cidade. Sá da Bandeira trilhava a senda do progresso, tal como muitas das outras cidades, daquelas terras de Angola, em extensão catorze vezes e meia maior que o território continental. Sila pensava também que os empresários daquela terra imensa tinham uma visão que estava à escala do território. Grande. Por vezes até demasiado grande.

Continuava como comerciante, a ganhar bom dinheiro, mas estava de facto cansado.

Gerir as suas empresas não era exactamente o mesmo que vender em loja de mato. O seu interesse virava-se inteiramente para a agro-pecuária. Agora também se tinha dedicado à criação do caraculo, adquirindo terrenos no distrito de Moçâmedes com algumas dezenas de caraculos. Trabalhava para ele em tempo inteiro um médico veterinário que dava assistência não só às cabeças de gado da sua agro-pecuária em Humpata, como até mesmo aos caprinos que produziam magníficas peles de caraculo. Por essa altura teve notícia de que António Ferreira, antigo empregado, tinha sido posto em liberdade. Viu-o uma vez em Sá da Bandeira, mas como ele não se dirigíu ao antigo patrão, fez de conta que não o reconhecera.

O Ferreira, nessa data, tentava cumprir a sua vingança na pessoa do Correia e recolhia informações que pudessem levar ao homem que o tinha desgraçado. Não sabia ainda que o seu denunciante tinha sido morto à catanada na fatídica noite de 15 de Março de 1961, numa das fazendas do Uíle quando ali se encontrava na peugada de um chefe de Posto que contrabandeava em diamantes, junto dos donos das roças de café. Correia foi decapitado pelos negros, na sua fúria, e ficou de tal forma que ninguém o conseguiu identificar.

A sua memória diluiu-se no tempo.

O denunciante morreu da mesma forma como tinha vivido. Violentamente. Miseravelmente.

António Ferreira ainda prosseguiu o seu calvário durante mais um ano, mas, apesar de tudo, a tentativa de se reintegrar socialmente falhou. As diversas diligências que fez não produziram resultados e, cansado, depois de saber que o seu antigo amor, a mulher do Sila, não vivia em Sá da Bandeira, tentou a sua sorte junto de Teresa, a mulata com quem tinha vivido.

O sangue quente da mestiça não podia viver sem homem e já tinha percorrido a estrada de outro amor, um funcionário público de um qualquer departamento de Estado que, ao ser transferido para Luanda, a levou com ele.

O passado de Ferreira desfazia-se-lhe diante dos olhos e um dia desapareceu da cidade. Nunca mais ninguém soube dele.

Antes disso, ainda pensou por duas ou três vezes procurar ajuda junto do Sila. Teve medo, porém, que ele soubesse da antiga relação com Madalena, pela boca de Isabel Tchilombo, que uma tarde os havia apanhado em flagrante em casa do comerciante.

A cobardia sobrepôs-se.

- O seu amigo pirou-se!

O atarracado e gordo primeiro-sargento Carneiro falava com Beto, num tom confidencial.

-Qual meu amigo?

-O alferes Toni Sila. Pirou-se. Fugiu. Desertou!

Sentiu um vómito enrolar-se-lhe nas vísceras, não só pela notícia, como pelo ar de gozo do primeiro-sargento, ao dar-lhe a notícia.

- Não acredito, meu primeiro!

- Oh homem, garanto-lhe. Pírou-se esta noite juntamente com o quatrocentos e vinte e sete, o Jacob...

Beto quis saber mais.

- O negro estava de sentinela, no posto junto à cozinha. De manhã, o furriel Amadeu, quando fez a ronda, admirou-se por não notar sinais de vida no posto da cozinha que, você sabe, é o que fica mais perto da mata. Foi avisar o oficial de dia e os dois aproximaram-se com todas as precauções, pensando que alguma coisa de anormal se estava a passar. O Jacob podia estar morto, eu sei lá. Quando entraram no posto não viram ninguém. Só lá estavam as armas do alferes Sila e as do Jacob, assim como as fardas dos dois, e um bilhete assinado pelo Sila. O nosso capitão está a organizar um grupo, para ver se os apanha. Se você quer a minha opinião estou convencido que nunca mais ninguém lhes põe a vista em cima. O Jacob conhece bem esta zona e deve ter recebido apoio externo.

Beto ficou a saber do resto, mais tarde. Foi chamado ao gabinete do capitão, que lhe fez inúmeras perguntas e lhe mostrou o bilhete:

Cheguei agora à conclusão de que o meu lado não é este. Devo combater sim, mas do lado a que pertenço. Regresso ao ventre materno, à mãe África. Sem ressentimentos. Alferes Toni Sila. P.S. O soldado Jacob pensa como eu.

Beto não queria acreditar ao que acabava de ler. Tudo estava posto em causa, achava ele. Respondeu ao capitão por monossílabos. Informou-o de que o alferes Sila nunca lhe dera a entender tal propósito.

- Sei que vocês eram amigos, há muitos anos, e que estudaram juntos. Alguma vez o alferes Sila lhe demonstrou a intenção de desertar, ou acha que isto pode ter sido um acto de loucura?

- Não sei, meu capitão. O nosso alferes nunca falou de tal coisa. Custa-me a crer que tenha acontecido. É absurdo, meu capitão. Quando o pai souber...

Beto sentiu os olhos húmidos e não conseguiu evitar que a voz lhe saísse embargada pela comoção. Adivinhava o profundo desgosto do velho comerciante. Era de mais. O filho em que ele depositava todas as esperanças.

O capitão fez-lhe mais uma série de perguntas. Respondeu conforme sabia. Ao chegar ao quarto ocupado com Antero, outro furriel que fazia parte do seu pelotão deitou-se em cima do beliche e fechou os olhos, permitindo que lhe aflorassem à mente as mais recentes imagens da sua vida em comum com Toni.

Recordou-se então da chegada da Bateria a que ambos pertenciam, ao aquartelamento de casernas de madeira, nos arredores de São Salvador. Toni comandava o primeiro pelotão, enquanto ele pertencia ao terceiro, sob o comando do alferes Baptista. O capitão não os colocara juntos, talvez por saber da amizade que os unia e com receio de tal situação alguma vez provocar a violação do RDM, o alcorão dos militares.

Sempre que podiam acamaradavam e de alguma forma isso acontecia com quase todos os oficiais e sargentos e até mesmo alguns cabos da unidade, quase exclusivamente constituída por militares incorporados em Angola. Por isso mesmo, a percentagem de negros era excessiva.

Entre todos havia um espírito de união, diferente daquele que reinava entre os militares metropolitanos. A camaradagem era latente, mas isso não impedia o normal funcionamento da instituição. compreendiam-se melhor. Quase todos tinham nascido em Angola.

Recordou-se da primeira acção que fizera a nível de artilharia, numa grande operação na zona de Bessa Monteiro.

O aparato era enorme com a presença da infantaria, comandos, pára-quedistas e grupos especiais de negros bem treinados.

A aviação também actuou. Um verdadeiro inferno, Toni, porém aguentou bem e foi sempre um excelente camarada.

Nessa operação morreu um dos soldados do pelotão com o estilhaço de uma granada de obus que rebentou por defeito, mesmo à boca da peça de artilharia.

Recordou-se das suas viagens a Luanda quando tinham ido tratar de assuntos relacionados com abastecimentos e pessoal. As noites loucas vividas nas boites de Luanda. À memória veio a aventura de Toni com a bela bailarina do Choupal e de origem sul africana. Uma mulata com o nome artístico de Dila, que fazia streap-tease todas as noites nessa casa. Aí afluíam os militares de licença e em vésperas de partida para o mato, vivendo intensamente todos os minutos da noite, na incógnita do regresso. O repouso do guerreiro, antes da próxima batalha. Ali se prostituíam igualmente as mais bonitas mulatas que os seus olhos tinham visto. Brancas acompanhavam-nas na recolha das pequenas fortunas que a angústia pagava. Chegavam da metrópole atrás dos militares. Apoio de rectaguarda. O moral das tropas. As autoridades fechavam os olhos e de certa forma até colaboravam. Muitas vezes, ele e Toni falaram disso. Aquelas mulheres ajudavam a diminuir o desespero em troca de fúlfido e mascarado amor. Não importava, porque nenhum deles sabia se nova oportunidade viria a despontar na manhã de suas vidas.

Toni sofria em nome das raparigas negras que, pelas ruas do muceque se entregavam à soldadesca. Essas pobres mulheres.

Até nisso as regras mandavam que os oficiais e sargentos para seu deleite usufruíssem as raparigas dos cabarets, enquanto os soldados se socorriam das negras prostitutas do muceque. Toni dizia-lhe muitas vezes ser capaz de dar um braço para que assim não fosse.

Desesperava no olhar daquelas mulheres a oferecerem-se pelas esquinas do Prenda ou noutro muceque qualquer onde queimavam os anos da ilusão. Quadro a quadro, interminável sucessão de factos foi-se-lhe avivando na memória, até o almoço que os dois tiveram com o velho Sila, quando este fora visitar o filho a Luanda. As saudades relembradas, dos tempos corridos atrás dos guelengues e da pacaça. Do primeiro elefante que mataram sozinhos e em que Toni descobrira as suas negras origens.

Falaram do Canivete, esgotando as recordações nessa tarde de grande repasto. Relembrou as lágrimas que o amigo deixou correr pela face quando o Sila lhe entregou o saquinho enviado por Isabel, onde a mãe colocara a fé do quimbanda, posto no amuleto que o havia de proteger da guerra. Não pôde deixar de recordar o rosto daquele jovem companheiro de adolescência e dos seus tempos de encontro, com a vida e com o desejo de uma pátria grande de que tanto falaram nos seus tempos de estudante. Nessa altura, Toni prometeu ao pai aproveitar a primeira oportunidade para visitar a mãe, na Humpata. Assim ficou prometido. Quando nas suas almas escreveram o reencontro com os seus dias felizes.

O liceu. Os professores. Os negócios do pai. As caçadas. O sacana do governador da Huíla. A honestidade do intendente Fernandes. Os negócios escuros e fabulosos que alguns conhecidos tinham feito, enriquecendo da noite para o dia. A libertação do António Ferreira. A vida de Madalena, em Lisboa. O percurso seguro e rigorosamente cumprido pelo seu irmão Eduardo. As vitórias sucessivas do futuro médico já na fase final do curso. A grande admiração dos professores e a maneira apaixonada como Madalena falava do filho. Beto recordou-se que o velho Sila também falou orgulhosa e acaloradamente de Eduardo e reparou que a expressão do Toni se modificava. Ciúmes do irmão ou inveja?

Beto nunca o soube porque se esqueceu de perguntar no final do almoço. Agora, já não podia. Toni tinha virado as costas a tudo isso. Do outro lado vivia. Enxugou uma lágrima, dando por si a perguntar-se:

- E o meu lado, de que lado fica?

Fechou os olhos. E o rosto de Julieta surgiu, nítido como o sol.

Toni Sila tivera tempo para tudo pensar e combinar com Jacob. Jacob tinha sido educado numa missão protestante para os lados do Bié, aproximando-se com frequência do alferes com quem conversava longamente. A determinada altura, Toni convenceu o capitão, a dar-lhe o Jacob como adido e a partir daí sintonizaram cada vez mais as suas maneiras de pensar. Tinham muito em comum. Fazia tempo que Toni arquitectava o plano para desertar. Queria passar para o lado onde acreditava estar a verdade. Na faculdade fundamentou os seus conhecimentos sobre os ideais da libertação e da independência de Angola com outros estudantes oriundos do ultramar. Tomou parte nas reuniões a que Amélia Vasconcelos o levava e ficou então a saber, dos projectos daqueles jovens sonhadores sobre uma pátria que pretendiam sua.

Soube dos pormenores da prisão de Agostinho Neto e do afastamento de Mário de Andrade. Ficou a saber que o MPLA tinha resultado da fusão de diversos movimentos políticos para a independência e acabou por compreender que o processo só começava de facto, quando depois dos acontecimentos de Kassanje, tentaram libertar os presos políticos das cadeias em Luanda. A UPA adiantou-se e em Março começou a guerra contra os portugueses. Tudo isso o fez perder longas horas de sono tentando analisar qual seria o seu lugar. De que lado?

Perdido o ano na faculdade, a chamada para as fileiras do exército. Fez o curso de oficiais milicianos e ao de cima vieram todas as suas capacidades. Preparação física excelente. Inteligência acima da média. O instinto de caçador permitiu-lhe congeminar sobre o fenómeno da guerra, aproveitando bem as lições que lhe foram ministradas. A sua excepcional pontaria fez dele atirador especial, enriquecendo-lhe as notas no curso de oficiais, conseguindo o primeiro lugar da classificação. Não constavam informações da PIDE acerca da sua pessoa. Sabia que muitos estudantes, sobretudo os de cor nascidos no ultramar, eram objecto de investigação por parte daquela polícia.

Apto para a guerra, quis embarcar rapidamente. Nada o prendia. Julieta deixara-o. Amélia tinha fugido para o estrangeiro e só mais tarde ele soube que estava na Checoslováquia, ida de França, para onde fora estudar, segundo o que circulava entre os colegas da faculdade. No íntimo ficou-lhe a promessa de um amor que sentia ter-se cumprido noutras paragens. Ficou a saudade. Depois o reencontro com Angola, a vivência com o seu amigo de sempre. Parecia que Beto fazia parte dele, mas não era capaz de avançar ao encontro da esperança. Demasiado frouxo para arriscar o sonho de sempre; uma pátria em que todos tivessem lugar. Todos os que nasceram em Angola, fosse qual fosse a sua cor. O tamanho do coração angolano é que importava. Toni decidiu-se pelo coração. Deixou o bilhete e a arma no posto da sentinela. O Jacob fez o mesmo e, à civil, meteram-se pelo mato. Protegidos pela noite escura, procuraram os apoios que tinham em São Salvador. Um guia levou-os até à base de guerrilheiros na serra da Kanda.

Sila foi apanhado de surpresa. A notícia tinha caído entre os amigos como uma bomba. A deserção de Toni tornara-se tema de conversa em todos "os círculos onde era conhecido. O comerciante envelheceu dez anos no curto espaço de uma semana. Avisado pelas autoridades militares foi também alertado para a possibilidade de vir a ser procurado pelo filho. Se isso acontecesse, deveria informá-los. Sentiu-se vigiado. A sua casa em Sá da Bandeira, os escritórios, a fazenda foram visitadas por dois brancos desconhecidos, e Isabel foi interrogada sobre o filho. Se sabia onde poderia estar. Nem sequer sonhava nessa altura que Toni já se encontrava numa base de guerrilheiros no Norte, próximo da serra da Kanda, onde outrora existiram fazendas da CUF.

Sila passou a fechar-se em casa. Raramente saía e ao fazê-lo, evitava os sítios habituais. Frequentava mais assiduamente a Humpata, tratando mais de perto das coisas da fazenda. Deslocava-se várias vezes à sua demarcação no distrito de Moçâmedes. Gastava os dias andando de carro de um lado para outro.

Nessa altura, Beto Machado foi passar uma licença a Sá da Bandeira e Sila convidou-o para a fazenda. Queria saber os pormenores da deserção do filho. Não conseguia perceber as razões que o tinham levado a fugir. Beto contou-lhe tudo o que sabia. Sossegou-o garantindo que Toni não era cobarde. Se o fosse, nunca teria passado para o outro lado. Os ideais do seu amigo tinham sido outros e daí a opção.

À despedida, Beto chamou a si a profunda tristeza do velho. Eduardo, por essa altura, acabava a sua especialização em Londres. Era o sonho da sua vida e Sila acompanhava-o, dando o apoio necessário. Compensado agora com Eduardo fazia os possíveis por ignorar a existência de Toni, muito embora o amasse.

Um dia, no seu café habitual, sentiu-se profundamente magoado ao escutar próximo da sua mesa uma conversa em que falavam dele e de Toni. Captou algumas frases entre o barulho do ambiente:

-... e o filho desertou. Era alferes miliciano. É o que dá ter um filho mulato.

A vontade do velho foi desfechar dois murros nos intrusos, mas optou por fazer de conta que não tinha percebido. O intendente Fernandes, que estava com ele, percebeu o que se passava e tentou acalmá-lo.

- Deixe, Sila. Eles não entendem o seu desgosto. Não ligue. Afinal o rapaz teve dignidade. Fez a sua opção e de alguma forma foi um cavalheiro, porque explicou as razões que lhe assistiam.

Fernandes tinha-se aproximado ainda mais do seu amigo, quando este foi atingido por tão duro golpe. com a sua atitude, quis demonstrar socialmente que Sila merecia o respeito daqueles que o conheciam há longos anos e com ele mantinham relações privilegiadas. O antigo administrador nutria uma grande admiração pelo comerciante.

- Você não tem de ficar eternamente amargurado pelo que o Toni fez. Sei que o ama profundamente. Respeite-o por isso e pela coragem dele. Orgulhe-se também pelo seu filho mais novo. Você educou-os correctamente. O mais velho preferiu optar pelas origens da mãe. É com ele. Não se martirize.

Sila não conseguia entender a opção do seu filho mais velho. Durante uns tempos, chegou a odiá-lo e à mãe, por julgar traída a sua confiança. Evitou mesmo a presença de Isabel Tchilombo. Sentia-se derrotado pela negra. Achava que os cromossomas dela tinham ganho a batalha.

Era verdade. De facto, Toni, ao optar por Isabel, escolheu África. Ao desertar do exército, foi à procura de respostas, tentando saber se a terra o adoptara. Era muito difícil ser mulato, no meio dos seus irmãos negros. Olhavam-no sempre com desconfiança. Toni precisava constantemente de impor o seu patriotismo alistando-se como voluntário nas mais arriscadas missões.

Um dia montou uma emboscada. Caiu nela um pelotão da sua antiga unidade.

Uma curva na estrada marginal de uma antiga plantação de café no acesso ao planalto da serra foi o local escolhido.

De um dos lados, o precipício natural que caía escarpado pela montanha até ao fundo onde corriam as águas do rio. Do outro lado.

uma alta barreira. Todo o ambiente era dominado por denso arvoredo que em alguns casos substituía os antigos pés de café.

Os soldados vinham a pé. Três secções armadas de espingardas metralhadoras G-3 prontas a fazer fogo. Calmamente, Toni, agora conhecido pelo nome de comandante Wátha-Wanha, fez sinal aos outros elementos da sua secção para deixarem os soldados entrarem na zona de morte. Toni estava armado com uma espingarda .375 para o elefante. A sua preferida. com ela fazia verdadeiros estragos. Divisou no meio da coluna o alferes Mendonça que comandava. Fixou-lhe a mira da arma entre os olhos e seguiu o oficial na sua cuidadosa progressão pelas bermas da estrada. Os soldados olhavam a mata à sua esquerda. Do lado direito, só tinham a temer o precipício. Na cauda, seguiam as viaturas engrenadas em segunda velocidade, e ouvia-se o ronronar dos motores. Toni sabia que os seus homens, equipados com metralhadoras Kcdashnikov, só abririam fogo depois dele disparar a sua arma para abater elefantes.

O silêncio inchava, apenas quebrado pelo abrasar dos motores.

A passarada assistia dos ramos ao bárbaro espectáculo de guerra. A própria natureza vergava-se, entre a copa das árvores, à vontade da morte. Wátha-Wanha via distintamente na sua mira, a cerca de setenta metros, o ponto entre os olhos do oficial português por onde iria entrar a bala de calibre .375. Lentamente, como se tivesse à sua frente todo o tempo do mundo, foi pressionando o gatilho tirando a folga que antecedia o disparo. A zona de morte ficou cheia de fardas, Toni fez a última pressão no gatilho e viu nitidamente a cabeça do alferes Mendonça destroçada em cima dos ombros sob o impacto terrível da bala de ponta sólida.

Simultaneamente, os guerrilheiros abriram fogo e a resposta fez-se sentir imediatamente, por banda dos soldados portugueses que até há bem pouco tempo haviam sido seus companheiros de armas.

Tal situação não provocou nenhuma espécie de remorsos a Toni, que ordenou a retirada dos guerrilheiros.

O propósito daquela acção tinha sido provocar o terror através da flagelação seguida de fuga. A ordem era matar o maior número possível de comandos nas fileiras portuguesas. Toni, o comandante Wátha-Wanha, fazia-o da forma mais cruel, usando aquela terrível arma de caça. Espalhava o terror na zona e assinava sempre os seus ataques deixando escrito num papel: com os cumprimentos do comandante Wátha-Wanha. Vão-se embora seus tugas, filhos da puta!

Já tinha deixado quatro bilhetes e outras tantas vítimas ao longo dos seis meses decorridos desde a sua fuga do exército português.

Das suas acções abolira completamente o sentimento. Os seus próprios homens não passavam de rodas daquela engrenagem de guerra. O único homem que o acompanhava nessa frieza era o negro que com ele havia desertado.

Esse tipo de ataques obrigava o exército a constantes operações na tentativa de apanhar o tal comandante Wátha-Wanha que em quimbundo queria dizer «terra queimada». Designação que correspondia à filosofia adoptada por Toni para fazer a guerra. Pela sua acção, conseguiu vencer a desconfiança inicial que os outros tinham pelo facto de ser mulato. Progressivamente conquistou-os. Eles seguiam-no como cães. Fiéis até onde fosse necessário. No seu íntimo, porém, Toni desejava nunca vir a ter na sua mira Beto Machado.

Estavam em campos opostos, mas ele acreditava nos valores da amizade e acreditava também que um dia talvez fosse possível os dois abandonarem as armas e abraçarem-se como cidadãos da pátria tantas vezes por ambos sonhada. Seria isso possível? Toni tinha algumas dúvidas. Nesse momento, vivia exclusivamente para a guerrilha, pondo ao seu serviço toda a experiência como caçador para atingir objectivos.

De momento, isso bastava. Se Beto tivesse de ser abatido, paciência...

Depois da emboscada em que o pelotão tinha caído, Beto Machado, tendo em conta a descrição avançada pelos seus camaradas de armas, ficou com a certeza de que tal tiro tinha a assinatura de Toni. Era o quarto cadáver de outros tantos homens atingidos com balas disparadas por armas para caçar elefantes e isso deu-lhe tal convicção.

Deu por si a associar o nome de guerra do comandante Wátha-Wanha, com o seu velho companheiro Toni Sila e pela memória passaram-lhe cenas das caçadas em que ambos tinham participado. Cada vez mais se convencia de que tinha de existir uma relação entre as duas coisas.

À sua comissão naquela zona estava praticamente a terminar e, na verdade, nenhuma das operações montadas com intenção de capturar aquela força terrorista obtivera êxito.

Naturalmente que os seus sentimentos acerca do antigo condiscípulo eram afectados e com a morte do alferes Mendonça, deu por si a desejar a morte de Toni.

Possuído de um sentimento de revolta, jurou a si próprio que, se a oportunidade surgisse, o faria. Do amigo de ontem desaparecia a memória para ficar o retrato do monstro de hoje. Ofereceu-se como voluntário para tomar parte na próxima operação montada para tentar abater o tal comandante Wátha-Wanha.

Estavam há oito dias acampados numa fazenda agora abandonada e que fora pertença da CUF, situada no sopé da serra, quando uma noite o cabo encarregado das comunicações captou no rádio uma voz estranha.

Beto era o sargento responsável pelas transmissões naquela operação, e foi avisado. Pelos auscultadores ouviu uma voz que lhe parecia familiar. Sintonizou melhor a frequência do aparelho e reconheceu nitidamente a voz de Toni:

- Daqui comandante Wátha-Wanha... Beto interferiu.

- Daqui fala Beto Machado. És tu, Toni? O diálogo estabeleceu-se.

- Olá meu amigo - disse o comandante dos guerrilheiros -, como vais tu? Deixa esses tugas e vem juntar-te a nós. Aos que amam Angola a que tu pertences...

Beto interrompeu-o com raiva:

- Não te reconheço. Eras um ser humano e agora fazes a guerra como um selvagem. Reconheci a tua forma de atirar. É bárbaro matar homens com armas de caça. Por que não te entregas?

Interferências na emissão, não deixaram ouvir a resposta, mas Beto voltou à carga:

-Tu és dos nossos... Deixa essa estúpida quadrilha, e entrega-te. Deixa os turras!

Como resposta o silêncio, enquanto Beto olhava os seus companheiros de armas que tinham os olhos postos nele, como se aguardassem a notícia de que o tal Wátha-Wanha se ia entregar. O alferes que entretanto tinha chegado junto do rádio escutava num dos auriculares a conversa, enquanto escrevia alguns apontamentos que ia entregando para Beto ler: «Diga-lhe que se entregue que prometemos não lhe fazer mal. Fale-lhe na família. Recorde-lhe os amigos».

Beto premiu a patilha do microfone:

- Toni, sabes da amizade que nos une. Em nome disso, escuta-me com atenção.

Beto tentava empregar um tom de voz conciliador:

- Lembra-te do teu pai e da tua mãe... Toni interrompeu:

- É por ela que eu estou aqui. Tive a capacidade de perceber que devia regressar às minhas origens. Ser solidário com o povo da minha terra.

Vamos acabar com isto. Não estou interessado em discutir princípios. Dou-vos três dias para abandonar a zona ou então ofereço-vos fogo de artifício que nunca mais esquecerão!

Beto não conseguiu responder. Tão depressa como começou, assim acabou a transmissão do comandante Wátha-Wanha.

Quatro dias depois, a viatura da frente onde seguia a secção de Beto Machado fez explodir uma mina colocada ao princípio de uma rampa que saía dum riacho seco e marginado por bambus. Um estrondo enorme fez com que a coluna -parasse. Na estrada ficaram desfeitos pela explosão os corpos de dois soldados negros. Beto foi atingido por alguns estilhaços nas pernas, sem que isso lhe provocasse ferimentos profundos. Os soldados tomaram posição deitados na berma da estrada aguardando o início do tiroteio, enquanto alguns deles prestavam os primeiros socorros aos feridos. Da mata não se registou qualquer reacção, ouvindo-se ao longe um som peculiar, o sopro feito pelo homem em corno de antílope. A voz da natureza repudiando o hediondo acto ou o grito de vitória do comandante Wátha-Wanha?

Beto fez então um relatório em que dava conta da conversa pela rádio e informava qual era a verdadeira identidade do comandante terrorista Wátha-Wanha.

O capitão louvou-o.

Beto viu indeferido o seu requerimento em que pedia a passagem à disponibilidade. Estava farto da guerra.

Nessa manhã, deslocou-se ao Quartel-General, para entregar uma exposição dirigida ao comandante-chefe, e em que requeria, pela segunda vez, a sua saída da tropa. Sabia não ser fácil pelas dificuldades em preencher o quadro de sargentos.

Quando saiu a porta de armas, viu saltar de um jipe um alferes cujo rosto lhe lembrou alguém. Parou a observar, enquanto o oficial se dirigia ao seu encontro. Reconheceram-se. Era Eduardo Sila. Abraçaram-se e as palavras saíam em torrente.

- Fui mobilizado - disse Eduardo, e julgo que vou durante algum tempo para São Salvador do Congo.

Beto viu-lhe na boina as insígnias de médico dos serviços de saúde. Reparou que tinha uma aliança no dedo. Eduardo confirmou o casamento.

- vou entregar uns papéis aqui no Q.G., mas depois vamos almoçar!

Assim fizeram. Eduardo contou-lhe então que tinha casado com uma moça sua vizinha em Lisboa, nascida em Moçambique e formada em Farmácia. Começou como um namoro entre vizinhos e acabou em casamento, do qual já existia um filho com seis meses.

Beto deu-lhe os parabéns:

- E a tua mãe, a D. Madalena?

O filho mais novo do Sila emudeceu e o rosto revelou uma expressão de tristeza.

-?Então, não sabes? A minha mãe morreu há uns meses, com um problema cardíaco.

- Lamento muito, mas não sabia. Tenho imensa pena, Eduardo!

- É verdade. Há uns três anos atrás teve um ataque, mas um professor meu assistiu-a e sobreviveu. Nunca mandei dizer nada do ataque ao meu pai, porque ela mo fez jurar. Hoje, estou profundamente arrependido.

Caiu entre eles um pesado silêncio. Eduardo reavivava a memória da mãe. Beto aguardou uns minutos e retomou a conversa:

- Sabes, já não vou a Sá da Bandeira há muito tempo, e não sabia de nada. Penso que o teu pai deve ter sofrido muito.

- Não sei. Julgo que sim. Nessa altura mandei-lhe um telegrama mas ele não se deslocou à metrópole, o que me magoou. Mas não falemos mais disso.

Beto perguntou-lhe se ele tinha tido notícias recentes do pai:

- Avisei-o ontem de que já estava em Luanda e julgo que deve aparecer por aí, mais dia menos dia. Não sei como aguenta tudo aquilo por que tem passado.

Tacitamente evitaram falar de Toni. Era como se o irmão de Eduardo nunca tivesse existido.

Beto, a determinada altura, falou da sua experiência recente na zona de combate:

- Não percebo como é que tu és colocado em São Salvador, até porque um médico da tua especialidade devia ficar a prestar serviço no Hospital Militar, aqui em Luanda.

- vou substituir um colega que vai à metrópole de licença. Depois é que devo ser colocado no corpo de cirurgiões, creio eu. Entretanto, como vai haver uma grande operação naquela zona, não podem ficar desfalcados de pessoal de saúde. Será por pouco tempo. Quero ver se depois, quando vier para Luanda, arranjo casa e mando vir a mulher e o meu puto.

Eduardo mostrou nessa altura a fotografia do filho. Acabaram de tomar o café e, na sequência da conversa, Beto perguntou-lhe por antigos colegas do liceu e levou a conversa para Julieta, inquirindo também se ultimamente a tinha visto.

- Formou-se há cerca de um ano, casou depois com um colega meu. Também já tem um filho, é uma menina, e loira como a mãe.

Para Beto a revelação foi um choque. Ficou pálido e teve a nítida sensação de que a vida lhe fugia. Não esperava aquela notícia. Como se viessem de muito longe, ouviu as palavras de Eduardo:

- Que tens, sentes-te mal?

- Não, não é nada! - respondeu, vacilante, parecendo que tudo à sua volta era irreal. Por momentos, ficou sem saber onde estava e recusou-se a admitir a verdade. Todas as suas esperanças se diluíam no tempo. Sentiu no peito uma forte dor que lhe dificultava a respiração.

Despediu-se do amigo e abandonou o restaurante. Meteu-se num táxi e seguiu para a pensão onde vivia, junto ao estádio dos Coqueiros. Ao passar pela recepção, avisou o empregado de que não queria ser incomodado.

- Eh, nosso sargento, você está amarelo, está doente? - perguntou o negro.

- Não! Não é nada. Estou bem. Não é nada!...

Cerca da meia-noite ouviu-se o som de um disparo... num dos quartos do primeiro andar da pensão.

Quando arrombaram a porta, Beto Machado estava parcialmente caído de borco. Da mão direita, escapara-se-lhe uma pistola Walther, de guerra, de nove milímetros, cujo projéctil lhe abrira um buraco na têmpora direita, por onde escorria um fio de sangue. Não longe do suicida, sobre a bagagem uma fotografia... uma fotografia amarelecida pelo tempo, onde se via um grupo de jovens na praia,

O sorriso amargo de Julieta, fixado pela câmara.

Sila ficou em estado de choque, quando recebeu o telegrama do filho anunciando a morte de Madalena. Durante uma semana isolou-se completamente na fazenda da Humpata, que considerava o seu refúgio.

De manhã montava a cavalo, percorrendo as centenas de hectares da propriedade, onde as cabeças de gado bovino e caprino pastavam enquadradas por pastores. Sila conversava com eles, tomava conhecimento dos últimos nascimentos e ficava pesaroso quando morria algum dos animais.

Regressava a casa ao fim da tarde. Nos últimos tempos tudo acontecera com demasiada rapidez.

O filho mais velho ao desertar, tinha-o feito sentir pela primeira vez o amargo gosto de viver, lançando sobre o seu nome uma mancha de vergonha. Agora a mulher morria, sem que nada o fizesse prever. Nem sequer estava doente, segundo julgava. A única coisa boa que lhe acontecera nos últimos tempos fora o casamento de Eduardo e o nascimento do neto.

Não fora assistir ao funeral da mulher porque detestava as pessoas desde que o filho tinha desertado. Também o amor que sentia por ela não era suficiente ao ponto de o obrigar à deslocação. Além do mais, sempre desconfiara da sua fidelidade. Isabel sentia pena do branco. Fazia os possíveis por lhe proporcionar tudo o que estava ao seu alcance tentando amenizar as suas dores de pai e de marido.

O periódico de maior expansão da Huíla deu a notícia do falecimento de Madalena, e talvez por isso, foram inúmeros os telegramas de condolências que o ex-presidente da Câmara recebeu.

Mais uma vez o intendente Fernandes esteve a seu lado, naquela hora de dor, tentando confortá-lo e convidando-o para sua casa. Apesar do seu amigo estar separado da mulher há algum tempo, por ela viver na metrópole, Sila lembrava-se bem da fugaz aventura que com ela tivera nos seus tempos de jovem e nunca aceitou os convites. Passaram juntos diversos fins-de-semana na Humpata. Os dois homens caminhavam progressivamente para a velhice. O tempo fora aos poucos algodoando a cabeça de Sila. O ex-administrador Fernandes também. Davam os dois longos passeios a pé e o Fernandes aproveitava todas as oportunidades para minimizar-lhe o desgosto. com eles passeava às vezes uma negrinha, filha de Canivete, que tinha sete anos. Isabel Tchilombo era madrinha da miúda. Sila afeiçoara-se à criança, tratando-a como filha. A mãe da miúda morrera durante o parto. Canivete estava velho e não quis tomar nova mulher.

Como vivia num estado de apatia, Sila não lhe exigia trabalho. O velho negro todos os dias tratava da montada. Vivia para isso. A filha já tinha nascido muito tarde e como, na prática, era Isabel que a criava desde a morte da mãe, a pequena Luísa adorava a «Mamã-Isabel».

Quando Sila recebeu a notícia da mobilização de Eduardo para Angola, sentiu um aperto no coração. Passou a noite sentado na varanda da sua casa da fazenda, olhando as estrelas.

Quando alvoreceu, as lágrimas rolaram-lhe pela face, tocado pela comoção. Foi deitar-se. Longe de adivinhar a presença de Toni, o filho, oculto no capim, e que passara parte da noite a vê-lo sentado na cadeira de aduelas de barril, com uma vontade louca de correr para ele e de o abraçar.

Toni havia percorrido longos quilómetros desde o Norte, para cumprir uma missão perto dali. Não resistiu à perspectiva de ver a mãe. Passou parte da manhã escondido nas cavalariças à espera de Canivete.

Cerca das dez horas, o negro cumpria o ritual de tratar do cavalo. Viram-se e abraçaram-se sem palavras. Depois, mandou chamar a mãe. Ao vê-la, tomaram conta dele todas as emoções por que tinha passado. Aquele homem duro não evitou comover-se. Isabel também chorou destroçada. Toni explicou tudo à velha mãe.

Disse-lhe que não tivesse medo, porque ele voltaria, mas só depois de Angola ser independente.

Não a autorizou, porém, a dizer nada ao pai. Toni tinha a barba crescida e estava vestido com umas calças de ganga e um blusão que parecia de cabedal.

Seu corpo musculado em nada desfazia o comerciante quando da mesma idade. A mesma forma de andar. O mesmo olhar vivo e sempre atento a tudo que o rodeava.

Naturalmente que naquela altura redobrava de cuidados com medo de ser surpreendido.

A uma pergunta feita pela mãe, explicou-lhe por que tinha decidido combater contra os brancos, mas disse-lhe que amava muito o pai.

com palavras simples, falou da sua opção pelo que considerava justo, apesar de a guerra ser horrível e injusta. Depois lembrou-lhe a oferta que o velho soba Tchilombo tinha feito a Nzambi, quando ele nascera. A oferta tinha sido aceite, por isso ele lutava agora contra os portugueses. Disse à mãe que só queria mais justiça para evitar no futuro, que as pessoas tivessem desgosto por serem pretas ou mulatas. Todos eram homens. Nesse preciso momento, Canivete abraçou-se a Toni, manifestando-lhe o receio pelo perigo em que vivia. Profundamente comovido, o mulato abraçou-o durante algum tempo. Isabel olhava-os e dizia, em voz baixa, quase num lamento:

- Aiué, Tatié meu filho. Aiué Tatié... Numa voz seca, Toni perguntou a Canivete:

- Sabes onde posso encontrar um tal José Chipindo?

Isabel arregalou os Olhos. Canivete também. Nenhum articulou palavra. Toni voltou à carga.

- Tu conheces, deve ser o mesmo José Chipindo que pagou alembamento pela minha mãe e me fez esta cicatriz no peito quando eu era pequeno!

Canivete não sabia que dizer.

- Não te assustes, só vim cá para falar com ele. Não para lhe fazer mal. O que se passou não interessa. Sei que ele vive próximo da Chibia, mas não sei exactamente onde, e tenho umas coisas para falar com ele.

Isabel acalmou. Toni não lhe podia explicar que se tratava de organizar uma célula do movimento naquela zona. Fora encarregado de tratar esse assunto com José Chipindo.

Escolheram-no por ter vivido sempre na Huíla. Por essa razão, seria mais fácil o contacto. Estava ali acompanhado por outro guerrilheiro, que tinha ficado escondido nas proximidades da casa, vigiando e montando segurança. Canivete explicou onde ficava a fazenda em que trabalhava José Chipindo. Entretanto, Isabel foi confirmar se o branco continuava a dormir e buscar comida para o Toni e seu companheiro. Ao despedir-se, beijou a mãe no rosto e nas mãos e voltou a ordenar-lhe que não dissesse ao pai absolutamente nada sobre a sua visita. Nessa altura ficou a saber da morte da madrasta, e que seu irmão Eduardo estava na tropa, em Luanda, segundo a negra pensava. Toni meteu-se ao caminho com o companheiro e deu graças por Eduardo estar em Luanda, e não no mato.

Sila acordou em sobressalto nesse preciso momento. Parecia-lhe ter sonhado, mas não sabia o quê. Levantou-se e foi à janela. Abriu as cortinas e quando olhou o horizonte reparou que dois vultos se afastavam ao longe, em direcção oposta àquela em que ele se encontrava, como se se dirigissem para os lados da Chibia. Na varanda, Isabel Tchilombo viu o filho afastar-se e não conteve as lágrimas.

Canivete caiu em si Estarrecido. Por um raio.

Eduardo esperava no aeroporto a chegada do avião da DTA, vindo de Sá da Bandeira, e onde viajava o pai. Comprou A Província de Angola desse dia e sentou-se no bar. Distraidamente foi lendo as notícias, página a página. Na última, os seus olhos ficaram presos a uma notícia a duas colunas onde se falava do suicídio de um sargento. Estupefacto, viu que se tratava de Beto Machado. Inteirou-se dos pormenores.

O jornalista especulava com um mistério qualquer relacionado com a fotografia que o suicida tinha na mão, ao ser encontrado. A fotografia estava publicada à largura de duas colunas, sob um título onde se perguntava quem seria o grupo de jovens. Avidamente, Eduardo absorvia os factos. Outras informações davam conta que o suicida era natural de Sá da Bandeira, onde vivia com familiares. Por fim, conjecturava-se sobre a possibilidade de tal atitude ter sido provocada por um desgosto de amor.

Eduardo sentiu-se profundamente chocado e, de alguma forma, perguntou-se se não teria contribuído para o estranho acto de Beto. Identificou na fotografia o sorriso bonito de Julieta que, por essa altura, tinha namorado o seu irmão. Deu por si a pensar em Toni e recordava-se que durante o almoço com Beto nem sequer falaram da deserção. Sabia que Beto pertencera à mesma unidade. Quis fazer-lhe perguntas, mas como não tivera coragem, ficava agora definitivamente sem resposta para as dúvidas que o assaltavam. Jamais teria possibilidades de saber os pormenores não oficiais da fuga do irmão. Muitas vezes tinha perguntado a si próprio das razões que tinham levado Toni a proceder daquele modo. Lembrou-se de ter discutido o assunto com a mãe, mas Madalena fugia sempre à questão, escudando-se atrás de algumas frases piedosas, sobretudo em relação ao pai.

Eduardo calculava como deveria ser grande o sofrimento dele, até porque o velho Sila tinha depositado muita esperança em Toni.

Pessoalmente, não condenava o irmão. Amava-o suficientemente para perceber que ele, ao assumir tal gesto, deveria ter procedido com consciência plena. Conhecia de há muito as suas ideias. Soubera do seu envolvimento na cidade, pela mão de Amélia, com os grupos de estudantes contestatários. A ele, essas questões não o absorviam. Vivia em exclusivo para a sua profissão. Humanitariamente. A política não era o seu affaíre. No fundo, adorava a terra angolana e, em princípio, era ali que tencionava estabelecer a sua vida. Achava que poderia dar um forte contributo como médico cirurgião. Para ele, Angola era parte integrante do seu país. Sentia-se português e ao mesmo tempo angolano. Filho de uma nação multirracial. Enquanto continuava a aguardar a chegada do avião, os seus pensamentos cavalgavam no tempo e recordou-se de quando era rapaz e a mãe desejava que viesse um dia a ser músico. Um grande pianista. O seu lazer, afinal.

Não raras vezes assistia a concertos. Em Londres, enquanto lá estivera, sempre que podia frequentava as grandes salas. Devorava apaixonadamente todos os festivais. Em Lisboa ia com certa assiduidade ao S. Carlos, quando ali se exibiam não só companhias nacionais como estrangeiras. Ficar em Angola era a quase total ausência de uma actividade cultural a este nível.

Quando estudante, preparava as lições ouvindo todos os discos de clássicos que comprava. Tinha uma discoteca bastante apreciável, em títulos de obras e nomes de autores.

A mulher acompanhava-o nas suas preferências. Os dois estavam prontos para conquistar a vida, depois de ele ter cumprido o seu tempo de tropa. Através de alguns conhecimentos, podia-se ter furtado a isso, mas como futuro cirurgião tinha todo o interesse em trabalhar no Hospital Militar, em Luanda, já que mercê da guerra havia muita possibilidade de ali recolher larga experiência. No entanto, isso só aconteceria dali a algum tempo.

Para já, ia substituir um colega que entrava de licença durante um mês. Sabia que estava preparada uma grande operação militar, o que exigia a presença dos médicos na zona de acção. Aliás ele queria viver também essa sensação, conforme havia afirmado a Beto durante aquele fatídico almoço.

Os altifalantes do aeroporto arrancaram-no às cogitações. Acabara de aterrar um avião da carreira da DTA, proveniente de Sá da Bandeira. Eduardo tentou divisar a figura do pai na placa do aeroporto. Viu-o, de repente, descendo as escadas do aparelho. Sila vergava-se ao peso dos anos. Dos acontecimentos também. Parecia ter mirrado.

Eduardo sentiu um grande carinho pelo pai. Correu para o abraçar. Sila não conteve as lágrimas e acariciou-o nas faces como lhe fazia em menino.

Para passageiros desembarcados e para o pessoal do aeroporto aqueles dois homens instalavam a dúvida. Ninguém sabia se o oficial partia ou chegava da guerra.

Para Eduardo o encontro com o pai fora doloroso. Sofria com ele todas as amarguras dos últimos tempos. A deserção de Toni. A morte da mulher.

Almoçaram juntos. O velho Sila só ficaria em Luanda vinte e quatro horas. Tinha ido expressamente para se encontrar com Eduardo e matar saudades. Fez mil perguntas. Eduardo falou-lhe da mulher e do filho. Contou-lhe o que tinham sido os últimos momentos de Madalena. Sila quis saber mais pormenores sobre a vida do filho, e então Eduardo falou dos seus sonhos profissionais, dos seus êxitos como estudante, do seu momento presente como militar. Depois, tentou falar do irmão, mas sentiu que o pai evitava pronunciar o nome de Toni. Apesar disso, arriscou:

- Pai, não deves condenar o meu irmão. Ele assumiu a sua condição de angolano. Toni era assim. Acaso deixou de ser um homem de corpo inteiro?

Sila olhou o filho mais novo, bem dentro dos olhos:

- O teu irmão para mim, deixou de existir. É simplesmente um traidor, porque não se trata apenas de um desertor, mas também a mim mesmo traiu. Vendeu a minha dignidade de homem e de pai. Atraiçoou as suas raízes ao entregar-se à guerrilha. Eu dei-lhe a vida. Criei-o. Eduquei-o. Tentei fazer dele um homem. Virou-me as costas. Escolheu sangue negro. Sinto que me renegou, por ódio. Não é justo. Nunca pesou para mim, nem para ninguém, o facto de ele ser filho de Isabel. Toda a gente o estimava e ele cobardemente traiu a sua própria civilização. Por isso, morreu para mim. Além do mais, sei agora que é desumano e selvagem na maneira como faz a guerra. Não combate, assassina os nossos soldados utilizando uma arma de bala para matar elefantes. Se calhar, a que eu lhe dei. Isto é perfeita barbaria!

Sila calou-se durante alguns segundos, para tomar fôlego.

- As autoridades chamaram-me, e de tudo deram conta. Não tenho vergonha de te dizer, Eduardo, que nessa altura chorei. Infelizmente falta-me a coragem, senão já teria dado cabo de mim por ter gerado um monstro.

Eduardo interrompeu, comovido:

-Meu pai, não diga isso. As malditas leis da guerra, se é que a guerra tem leis, levaram a tudo isto. Toni também tem o seu sangue. O pai é um homem simples, mas bom. Penso poder afirmar que também sou um exemplo dessa verdade. Também por si, estou a seu lado. No entanto, tem de reconhecer ao meu irmão o direito de afirmar-se. Infelizmente, a política e os ideais em nome dos quais os homens se destroem é que dão origem a situações como esta. Sabe tão bem como eu que sempre ouvimos o Toni defender o direito a uma pátria que ele considerava dele e de todos os homens fosse qual fosse a cor da pele, desde que aqui tivessem nascido. Deve respeitá-lo por isso!

Sila, numa voz cansada, discordou:

-Não, Eduardo! Já te disse que o teu irmão para mim morreu. Dias antes de ter vindo ter contigo, ele esteve na fazenda, segundo me contou Isabel, apesar de ter prometido guardar segredo. Eu estava lá, mas não cheguei a saber da sua presença porque se o soubesse tinha ido buscar a 9.3 e tinha-lhe dado o mesmo «tratamento», que ele dá aos nossos soldados. Matava-o e acabava com a minha vergonha. Matava-o. Queria saber e ouvir que palavras diria no momento da verdade. Muitas vezes pedi a Deus que me dê essa oportunidade.

Eduardo não respondeu. Sentiu naquele momento quão profunda era a dor do pai. Calmamente, acendeu um cigarro, enquanto o velho Sila se perdia nos seus pensamentos, olhando em frente sem nada ver do que à sua volta se passava. Eduardo tinha a sensação de que o pai perdera os olhos. E cego fosse.

Nem sequer pestanejava.

Os dois almoçavam num restaurante, frente à baía de Luanda, quase junto ao farol, que sinalizava à navegação o termo da ilha.

Havia o mar. Azul. E o sol, um sol dolente acariciava os corpos nus estendidos na areia.

Sila interrompeu o silêncio:

- No meio de tudo isto, ainda tenho a sorte de ter um filho como tu. Quando eras miúdo vivias próximo da tua mãe, enquanto as minhas atenções se viravam para teu irmão. Espero que me perdoes o carinho que ficou por te dar, mas prometo compensar-te disso tudo. A ti, ao meu neto, e à tua mulher, afinal a família que me resta.

Sila obrigou o filho a prometer que, quando a mulher chegasse, iriam todos gozar um mês de licença à fazenda, na Humpata. Eduardo prometeu, e depois falou da mamã Isabel. A certa altura, a conversa desviou-se para outras questões que se prendiam com a fazenda, os negócios do pai, os conhecimentos mútuos, os velhos amigos afinal.

O suicídio de Beto Machado foi também abordado. Eduardo contou-lhe os pormenores do seu encontro com o amigo e o choque da notícia. Falaram da fotografia encontrada na mão do suicida e nenhum dos dois se atreveu a tecer considerandos sobre a relação que poderia existir entre ela e os factos. Lamentaram também a sorte do velho Machado. No dia seguinte, António Sila despediu-se do filho, depois de o ter feito prometer que teria muito cuidado durante a operação militar, em substituição do outro colega, na zona de São Salvador.

- Eu sou médico, pai, e não há perigo, esteja descansado. Tudo irá correr bem, e de qualquer forma ainda faltam uns dias para eu seguir.

Sila embarcou. Eduardo perfilou-se ao ver o avião desaparecer, rumo ao Sul, no horizonte de águas.

Como um luto, sobreveio a tristeza.

José Chipindo olhava agora as feições do mulato e teve a impressão que lhe eram familiares. A barba não permitiu essa certeza, mas lembrava-lhe alguém que ele conhecia. Atrás do seu interlocutor, a cerca de uns dez passos, estava um negro. Não fosse o movimento dos olhos observando minuciosamente o ambiente à sua volta seria tido por uma estátua. Chipindo estava sentado à beira de uma fogueira onde cozinhava o pirão, numa panela de cor indefinida pelo muito uso. Evitava os gestos bruscos, sem desviar o olhar dos seus visitantes.

A expectativa instalou-se. O mulato, de barba comprida, inquiriu:

- Você é que é o José Chipindo?

Não respondeu imediatamente, ajeitando à combustão os paus da fogueira. Assoou-se com os dedos e sacudiu-os para o chão, limpando depois a mão às calcas sebentas.

- Sou, sim!

- Venho da parte do Simão e vim explicar a você o que tem de fazer para dar passagem aos nossos!

José Chipindo, sem responder, ofereceu-lhes alimento. Os visitantes aceitaram e sentaram-se junto à fogueira. Toni disse o que esperavam dele. Por ali iriam passar homens a caminho do Moxico. Ele devia recebê-los, dando-lhes protecção. Mais tarde, viriam armas para serem escondidas naquela região. Encarregou José Chipindo de descobrir um esconderijo seguro, informando, por seu turno, de que ali havia homens dispostos a combater e a seguir para a zona de guerra. De momento, seriam apenas cinco jovens. Toni recomendou-lhe toda a cautela com as autoridades daquela zona e ficou a saber da inexistência de tropas portuguesas na região. Depois, pediu que lhe indicasse onde poderia tomar banho.

José Chipindo acompanhou-o ao local do rio onde ele normalmente fazia o mesmo. Toni despiu-se, enquanto o seu companheiro montava a guarda. No bolso do blusão, tinha uma pistola. Quando o mulato entrou na água, Chipindo viu-lhe a cicatriz no peito e não conseguiu evitar um gesto de surpresa.

- Aka, você é o filho de Isabel Tchilombo e do branco Sila! Toni percebeu o embargo na voz dele e, para o acalmar sorriu:

- Sou, e foste tu que me fizeste esta cicatriz no peito, quando eu era pequeno. Não tenhas medo, isso já lá vai, e tu tinhas razão.

Depois do banho, despediram-se. Toni recomendou novamente o maior segredo. Meteu-se a caminho acompanhado do mudo guarda-costas. José Chipindo, sentado no alto do morro sobranceiro ao rio, vendo os dois vultos sumirem na picada, deu por si a pensar:

- Aiué, afinal nem todos os mulatos são filhos do diabo. Aquele era filho de Deus, tal como eu!

Naquele preciso momento, José Chipindo ainda não fazia ideia do aparecimento da polícia especial na sua cubata, daí a quinze dias. Prenderam-no. Não aguentou o interrogatório e as torturas. O seu velho coração rendeu-se, sem que ele tivesse contado a verdade sobre a visita do comandante Wátha-Wanha.

No último minuto, sentiu a presença invisível de Isabel Tchilombo por quem pagou alembamento, mas que nunca foi sua. Partiu com ela nos olhos e na alma, entre soluços e vómitos. Ajustariam contas na terra dos Cazumbiris.

Sobre a floresta, uma abóboda de nuvens não deixava agora vislumbrar sequer uma nesga de céu. Nuvens de cor estanhada, prenúncio forte de bátega. O ambiente estava carregado de humidade tornando-se peganhento, enquanto o calor obrigava os guerrilheiros a render-se à saturação dos poros, colando-lhes ao corpo as ramagens do dólman. A marcha forçada decorria com todos os cuidados. Era preciso não revelar os seus movimentos. O comandante Wátha-Wanha fez sinal de alto. Em voz baixa, disse:

- Jacob, com os teus homens monta o morteiro naquele morro para fechares a zona de fuga dos tugas. Ao mesmo tempo, apontava o morro sobranceiro à estrada, por onde deveria surgir a coluna motorizada.

Jacob atravessou, levando consigo os municiadores do morteiro e dois guerrilheiros. Dali iriam flagelar o inimigo. Escolheu o sítio e montou o prato e o tubo de morteiro. Preparou as granadas e, depois de um olhar atento, viu que tudo se aprontara. Próximo da berma, ocultos entre as árvores, mais dois guerrilheiros. Todos estavam armados de Kalashnikovs. Jacob cumpria cegamente as indicações que o comandante lhe dava. Seguiria aquele mulato até ao fim do Inferno. Quando desertaram do exército português, a jornada percorrida em busca de um acampamento de guerrilheiros tinha cimentado um inesgotável espírito de camaradagem entre os dois. Os momentos passados no acampamento, enquanto investigados, trouxe-lhes a certeza de que percorreriam um longo caminho de lutas, lado a lado. Nunca Jacob teve a mínima incerteza acerca da profunda amizade que os unia, apesar de o outro ser mulato. Os dois tinham sido enviados para Brazzavilie, numa jornada que não mais esqueceram, pela fuga empreendida para não serem apanhados, não só pelos soldados portugueses, como também pelos homens do Holden. Jacob era kimbundo do Songo e as outras etnias a princípio desconfiavam dele. Só começaram a respeitá-lo depois de ter tomado parte nas primeiras cinco ou seis operações e sempre ao lado do agora comandante Wátha-Wanha que se conseguiu também impor pela sua acção em combate. Faziam uma parelha perfeitamente coesa. Chegou a convencer-se de não estar ainda catalogada bala portuguesa que o matasse. Bastava um simples pestanejar de Toni para ele adivinhar o que o outro queria que fosse feito.

Para se afirmar, o mulato oferecia-se sempre como voluntário para as operações mais perigosas. com o seu esforço e a grande falta de combatentes, rapidamente passou a comandante.

Toni colocou os outros nove homens nas posições pretendidas criando assim uma zona que seria mortal para os emboscados, não lhes dando a mínima hipótese de fuga. Os seus homens estariam colocados de forma a garantir esse propósito. Ocupavam posições dos dois lados da estrada por onde deviam passar as viaturas.

Tinha tempo. Olhou a copa das árvores daquela zona. Concluiu estar garantida a protecção contra a aviação. Difícil, porém, era detectarem-nos do ar, se por acaso os aviões tomassem parte em algum ataque contra a guerrilha. O aspecto físico do terreno e a distribuição do arvoredo permitiam-lhes uma boa camuflagem. Fixou os possíveis ângulos de fuga, indicando-os aos homens sob seu comando. Por entre as frestas das folhas das árvores divisava o azul do céu, agora que tinha parado de chover. O único óbice era o terreno alagado. A temperatura era mais agradável e calculou que a coluna só deveria regressar ao cair da tarde, pelo que ainda dispunha de muito tempo. Recordou então o que tinham sido os últimos anos da sua vida.

A faculdade. O curso de oficiais milicianos. A ida com Beto Machado para o Norte. A deserção com Jacob. A recente missão à Humpata onde vira a mãe e, antes disso, o que tinha sido o seu reencontro em Brazzavilie, com Amélia.

Amélia Vasconcelos intercedeu junto dos comandos e do comissário político por ele. Contou-lhes tudo o que sabia e que fora entre eles vivência comum. Na verdade, a acção dele em combate veio criar esse prestígio que, aliado às informações dadas pela rapariga, o tornaram credor de toda a confiança da parte dos chefes.

Temperamentalmente, sentia-se um guerrilheiro que combatia, acreditando nos seus objectivos traduzidos para ele na independência de Angola. Não se misturava com as coisas do partido. De forma alguma era capaz de fazer política. Para ele, nessa fase, só a guerra contava e os jogos de bastidores que os políticos enfeudados ao socialismo apoiado pelo Leste, faziam, não o entusiasmavam. Jacob, tal como ele, também não passava senão de um guerrilheiro. Os dois, ao longo das conversas que travavam, identificavam-se com um certo romantismo. O seu encontro com Amélia ajudou-o a completar-se. Nunca lhe passara pela cabeça voltar a encontrar-se com ela. E a ela tão pouco. Depois de ter fugido de Lisboa para França e daí para o Leste Europeu, aderiu ao movimento. Politizada e treinada, foi mais tarde colocada na base de Brazzaville, no apoio a camaradas e refugiados. Ninguém lhe conhecia homem, apesar de tentada pelos seus camaradas. Amélia vivia para o seu ideal: a independência de Angola.

O aparecimento de Toni veio modificar tudo isto. A sua primeira noite com ele reacendeu-lhe as lembranças do passado e acreditou ainda mais que havia um futuro a conquistar. Foi uma longa noite, em que ambos exploraram todos os segredos da sexualidade. Em alguns momentos ultrapassaram essa atitude, para um estado de contemplação em que lhes parecia ouvir o som das mais belas melodias, como se se tratasse da voz da natureza em cânticos ao longo das estradas do êxtase e do amor.

Amélia sentia-se recompensada de todo o passado, e Toni, pela primeira vez, compreendeu que o amor em África se podia traduzir pela perfeita harmonia da alma e do corpo daquela mulher. Ninguém jamais havia conseguido entrar nesse fantástico mundo, povoado de mistérios e de sensualidade. Só o amor por Angola e o odor da terra transmitia a Toni sensações semelhantes quando simultaneamente contemplava embevecido o Sol iluminando o pasto dolente e livre de uma manada de pacaças ou ainda o ágil bailado das impalas. A força magnífica de uma manada de elefantes em correria desenfreada era comparável ao esforço que os dois empenharam nessa noite de amor. Os seus olhos ternos choraram pela partida que se adivinhava. Mais tarde, Amélia alegrara-se pelas vitórias do seu amado e desejou que os dois viessem a conhecer uma pátria livre onde construiriam a sua felicidade. Cada um, à sua maneira, lutava por isso.

A fama de Toni como atirador implacável espalhava-se por ambos os lados. Vitoriavam-no os seus camaradas. Odiavam-no os portugueses, acusando-o de cruel e selvagem pela maneira como matava. Por isso, moviam-lhe uma perseguição tenaz e ele sabia que o seu grupo de guerrilheiros tinha sido Detectado naquela zona, próxima de São Salvador. Tinha quase a certeza de que a operação montada pelos portugueses era para o aniquilar.

Eduardo depressa se adaptou à vida de médico de uma unidade combatente. As consultas diárias aos elementos da companhia e, ao mesmo tempo, o serviço no dispensário local, dando consultas à população indígena. Aí chegou a efectuar pequenas cirurgias, na mal apetrechada unidade hospitalar.

Dias depois de ter chegado a São Salvador, o comandante daquela zona de intervenção mandou chamá-lo:

- Doutor, preciso de um favor seu. Gostaria que acompanhasse uma coluna para evacuar feridos de um acampamento na Serra da Kanda, de homens nossos apanhados numa emboscada montada pelos turras. Há três mortos e, segundo o rádio que recebi, cerca de doze feridos, entre os quais se contam quatro em estado grave. Não há possibilidades de os evacuar daquela zona por via aérea. Tenha paciência, vá buscá-los para depois os mandarmos para Luanda.

Eduardo fez a continência e, despedindo-se do comandante, dirigiu-se ao seu quarto para cuidar dos preparativos.

Integrou-se na coluna, constituindo essa a sua primeira acção de guerra. Seguia em quarto lugar num jipe, sentado ao lado do condutor. No banco de trás ia o sargento enfermeiro armado de G-3. Atrás do jipe, rodava uma Berliet devidamente equipada para prestar os primeiros socorros até regressarem a São Salvador. Encontrar-se-iam numa picada com o pelotão que nessa altura levava os feridos até meio caminho. Essa unidade regressaria depois ao local onde estava a desenrolar-se a operação militar que tentava aniquilar o grupo de guerrilheiros do comandante Wátha-Wanha. Este deixava sempre no local do ataque um bilhete, dirigido às tropas portuguesas. Eduardo tinha ouvido falar das proezas desse comandante e quis saber o significado da expressão Wátha-Wanha. Um soldado negro explicou-lhe que queria dizer «terra queimada». Eduardo Sila pensou que esse homem deveria ser um verdadeiro selvagem não só pela forma como matava, utilizando uma arma para elefantes, como até por ter adoptado o nome de «terra queimada».

Tentou traçar o perfil aproximado de tal criatura, enquanto o jipe, aos solavancos, lá seguia integrado na coluna de doze carros, com homens armados até aos dentes. Ele próprio levava uma pistola no coldre, à cintura, que pensava nunca vir a utilizar. Salvava vidas e achava que só seria capaz de matar numa situação extrema estando em causa a sua própria sobrevivência. Mesmo assim, não tinha a certeza de ser capaz.

Continuava perdido nos seus pensamentos tentando definir o guerrilheiro. Não conseguia de modo nenhum encontrar uma ponta da meada que o ajudasse. Do bolso do camuflado, tirou um maço de cigarros e acendeu um. Enquanto deixava sair dos pulmões o fumo, sem saber bem porquê, lembrou-se do irmão e sentiu um arrepio. «Onde estaria Toni? Provavelmente no Congo». De repente veio-lhe à memória uma frase do sargento enfermeiro a propósito do tal «Wátha-Wanha»:

- Sr. Doutor, o gajo é cruel. Abate sempre um dos nossos com uma bala de ponta sólida para matar elefantes e isso constitui o sinal que dá início ao ataque. As nossas tropas andam aterrorizadas. O sacana tem abalado o moral da rapaziada, muito embora até hoje só tenha atirado na maior parte dos casos a oficiais e sargentos. Parece que os conhece a todos, já que nenhum de nós traz galões. Num dos ataques, abateu um primeiro cabo que, segundos antes, tinha dado uma ordem a um gajo qualquer. É um filho da puta, este terrorista Wátha-Wanha. Desculpe a minha maneira de falar, Sr. Doutor, mas isto é lixado. Porra, que é de mais! Andamos por aí às voltas e nunca mais o apanhamos!

Eduardo, aos solavancos, pensava no que o pai lhe tinha contado sobre Toni. Seria o irmão e o comandante Wátha-Wanha a mesma pessoa? Deu por si a admitir a possibilidade de isso ser verdade, até porque a maneira como actuava demonstrava tratar-se de um indivíduo habituado à vida da selva e com o espírito de um caçador profissional. Sabia emboscar-se aguardando a presa e só disparava depois de ter a certeza do êxito.

Toni ouviu à distância o ruído das viaturas. Fez o sinal combinado e todos colocaram as armas em posição de fogo, confundindo-se cada um deles com o meio ambiente que os rodeava.

Todos sabiam que só podiam abrir fogo depois do tiro feito por ele. Jacob segurou a granada de morteiro, pronto a largá-la no tubo. Esperou o sinal. Progressivamente, as viaturas aproximavam-se da zona de morte. Toni reconheceu a mesma coluna que tinha por ali passado horas antes. Julgava terem ido buscar os feridos do ataque feito pelo outro grupo que actuava naquela zona. Deixou entrar a primeira Berliet, que servia para «tetonar as minas na zona de morte. Logo a seguir vinham mais duas, com soldados sentados num banco ao meio da carroçaria, costas com costas. A maioria eram negros. A seguir ao terceiro camião, vinha um jipe com três homens; escolheu-o como alvo. Calmamente apontou o vulto sentado ao lado do condutor. Suavemente foi tirando a folga do gatilho, enquanto colocava na mira a cabeça do homem, a quem não distinguia as feições. O alvo tinha nesse momento um lenço no rosto que lhe servia de máscara contra o pó. O coice da arma deu-lhe o momento exacto do disparo. O vulto sentado no jipe caiu de bruços sobre o capot. Imediatamente começou o tiroteio, enquanto próximo da primeira viatura caía uma granada de morteiro disparada por Jacob.

Nesse preciso momento, ouviu na picada uma voz que se sobrepunha ao ruído da metralha:

- Meu tenente, o filho da puta do terrorista desfez a cabeça ao Dr. Sila, grande cabrão!

O troar da metralha intensificou-se. Toni parou de fazer fogo e estupefacto sentia nos ouvidos o grito do tuga.

«... arrancou a cabeça ao Dr. Sila». E tudo ressoava de novo como um eco no seu cérebro.

«... ao Dr. Sila!... ao Dr. Sila... ao Dr. Sila».

Toni perdeu o controlo da situação e, quando se apercebeu de que o poder de fogo dos soldados tinha subido de intensidade, ordenou a retirada. Quando olhou para o morro onde estava Jacob, viu o corpo do seu camarada ser atirado ao ar com um tiro de bazuca.

Quatro fugiram do local da emboscada. Os outros ficaram estendidos no terreno. Toni sangrava abundantemente, atingido por uma rajada. Entre névoas, distinguiu à sua frente uma árvore que também sangrava, rasgada pelas balas, deixando que a seiva lhe escorresse. Era vermelha, cor de sangue. Como a do Murilaonde.

Jazendo no chão, ficara uma arma para abater elefantes com um bilhete:

com os cumprimentos do comandante Wátha-Wanha.

António Sila sentiu as rodas do avião tocarem a pista. Sulcos profundos marcavam-lhe o rosto envelhecido. Parecia ter minguado ainda mais com a passagem dos anos. A cabeça inclinada.

Olhou para o lado e viu no rosto da negra, agora também com a carapinha quase toda branca, uma expressão que não conseguiu identificar. Não sabia se Isabel estava a seu lado ou se se tratava de um fantasma que viajava com ele.

Luísa, a filha do falecido Canivete, tinha agora catorze anos e prometia tornar-se uma negra bonita. Sila tinha-lhe amor e tratava-a como se fosse da família. Chamava-lhe carinhosamente Maria-Negra.

O avião parou. No interior, o drama espelhava-se nos rostos daqueles homens e mulheres. As crianças na sua maioria não entendiam nada. Algumas dormiam extenuadas. Os assistentes de bordo deram indicações acerca do que era preciso fazer no aeroporto para regularizarem a sua situação de expoliados.

O velho comerciante ajudou Isabel a levantar-se do banco. Luísa amparou-a e pegaram nas bicuatas que transportavam na cabinet Não mais do que três sacos de plástico. Isabel Tchilombo parecia apática como se de um autómato se tratasse. Obedecia às ordens do pessoal da cabine e não demonstrava perceber as indicações que o branco lhe transmitia.

Lentamente, os três aproximaram-se da porta do avião. Sila, tal como Isabel, seguia o caminho em direcção à saída como se o tivessem drogado. Luísa absorvia por inteiro o espectáculo à sua volta.

Sila pestanejou ao deparar com a luminusidade exterior. O Sol brilhava intensamente nesse dia de Outono. Olhou o relógio. Eram dez horas daquele bonito dia 11 de Novembro de 1975. Amparando Isabel, desceu as escadas, e por fim sentiu sob os pés o chão de cimento do aeroporto de Lisboa, precisamente quarenta e sete anos depois de ter embarcado para Angola, agora terra estrangeira.

Na carteira trazia meia dúzia de notas de mil. Como família, e única fortuna Isabel Tchilombo e Luísa. Essa a quem chamava carinhosamente Maria-Negra.

 

                                                                                Jorge Cobanco  

 

                      

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