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Noroeste deAnura, quatrocentos quilómetros a leste do SriLanka. Estava uma noite abafada, com o ar à temperatura do corpo e praticamente parado. Ao fim da tarde, ainda caíra uma chuva leve e refrescante, mas agora tudo parecia irradiar calor, até mesmo a meia-lua prateada, apenas toldada por uns farrapos de nuvens. A própria selva exalava um hálito morno e húmido, como o de um predador escondido à espera da presa.
Shyam remexia-se, nervoso, na cadeira de lona. Ele sabia que era uma noite perfeitamente normal para aquela época do ano na ilha de Anura: no começo da estação das monções, a atmosfera estava sempre pesada e agoirenta. À 1.30 da manhã, Shyam deu-se conta de que já se encontrava de serviço no posto de controle havia quatro horas e meia. Fora precisamente nessa altura que sete motoristas se tinham aproximado da barreira, composta por duas linhas paralelas de estruturas de arame farpado - apoios de faca - colocadas na estrada com um intervalo de dois metros e meio. Shyam e Arjun eram as duas sentinelas de serviço na linha da frente. Uma dupla de sentinelas de reforço estaria supostamente de serviço do outro lado da colina, mas o silêncio que por lá pairava havia já algumas horas sugeria que estavam a passar pelas brasas juntamente com os homens alojados nas casernas improvisadas, situadas uns cem metros mais abaixo, junto à estrada.
Agora, trazido pela brisa, ténue como o zumbido de um insecto, ouvia-se o ruído de um motor. Shyam levantou-se lentamente. - Arjun - chamou num tom cantante. - Vem aí um carro. Arjun esfregou os olhos.
- A esta hora?
Por entre a escuridão do terreno semiarborizado, Shyam avistou a luz dos faróis. Sobrepondo-se ao ruído do motor acelerado, ouviam-se brados de alegria.
-Jovens camponeses estouvados - resmungou Arjun.
Shyam, por seu turno, sentiu-se agradado por algo quebrar o tédio que sentia. Passara os sete últimos dias a fazer o turno da noite naquele posto de controle de veículos, uma missão que considerava bastante dura. Obviamente que o seu carrancudo chefe não se fartara de enaltecer a importância daquele serviço. O posto de controle ficava no cimo da estrada que servia o Palácio de Pedra, onde o Governo se encontrava reunido numa espécie de convenção secreta. Era a única estrada que ligava o palácio à região norte, em poder dos rebeldes. Os guerrilheiros da Frente Kagama de Libertação conheciam, contudo, a existência daqueles postos de controle e mantinham-se ao largo.
O camião fez entretanto a sua aparição; na cabina, seguiam dois jovens em mangas de camisa. A capota estava descida. Um dos rapazes vinha de pé e entornava sobre o peito uma lata de cerveja espumosa, soltando gritos de contentamento. O camião, carregado provavelmente com a colheita de nabos e cenouras de algum pobre lavrador, descrevia nesse momento a curva a mais de cento e vinte quilómetros por hora, tão velozmente quanto lhe permitia o seu motor ruidoso. O rádio tocava em altos berros uma música rock americana.
Shyam avançou para a estrada com a arma na mão, mas o camião seguiu em frente a toda a velocidade e ele recuou. Do camião, lançaram ao ar uma lata de cerveja que tombou no chão com um baque surdo. Pelo barulho, ainda devia estar cheia.
O camião contornou a primeira barreira, depois a segunda e prosseguiu na sua marcha desenfreada.
- Que Xiva lhes limpe o sebo - exclamou Arjun. - Nem vale a pena alertar o reforço. Estes tipos ouvem-se a quilómetros de distância.
- Apontou com o dedo para a lata que estava no meio da estrada e sorriu. - Pelo barulho, ainda deve ter cerveja. Bebida da melhor, meu amigo.
CERCA DE MEIO quilómetro depois da barreira, o condutor do camião abrandou a marcha, e o seu jovem companheiro, munido de uma caçadeira, sentou-se e enxugou-se com uma toalha, após o que envergou uma T-shirt preta e pôs o cinto de segurança. Ambos os guerrilheiros exibiam agora um ar sério e compenetrado.
No banco sem costas por detrás deles, ia um homem mais velho. Esse oficial da FKL encontrava-se deitado e invisível quando o camião passara a barreira. Naquele instante, premia o botão de COMUNICAR do seu walkie-talkie, através do qual transmitiu num tom rude algumas instruções.
Com um rangido metálico, a porta traseira do atrelado abriu-se, a fim de que os homens armados que jiá se encontravam dentro pudessem apanhar um pouco de ar.
EM CONDIÇÕES NORMAIS, o chefe da FKL, o homem a quem chamavam Califa, nunca se exporia à incerteza de um conflito armado. Mas naquela noite ia fazer-se história.
Como poderia o Califa não estar presente? Para mais, sabia que aquela decisão de se juntar aos seus homens no campo de batalha elevara incomensuravelmente o moral deles. Os bravos e resolutos kagamas queriam que ele testemunhasse o seu heroísmo ou o seu martírio. Contemplavam os traços do seu rosto, as suas nobres feições de ébano, o seu queixo forte, e viam nele não apenas o homem ungido pelo Profeta para os conduzir à liberdade, mas o homem que havia de inscrever os feitos deles no livro da vida para a posteridade.
E, por conseguinte, o Califa estivera de vigia, juntamente com o seu pelotão de tropas especiais, num cabeço montanhoso cuidadosamente seleccionado. Sentia o terreno duro e húmido debaixo das botas de solas finas, mas o Palácio de Pedra brilhava diante dele. A parede do lado oriental, constituída por uma vasta extensão de pedra calcária desgastada pelo tempo, e o seu largo portão, recentemente pintado, encontravam-se fortemente iluminados por luzes implantadas no solo de poucos em poucos metros. O palácio reluzia. O palácio chamava a atenção.
O chefe das operações-rádio sussurrou ao ouvido do Califa. A base dos tiranos de Anura, em Kaffra, fora destruída, a sua infra-estrutura de comunicações, desmantelada.
Mesmo que conseguissem comunicar com o exterior, os guardas do Palácio de Pedra não dispunham de qualquer possibilidade de auxílio. Trinta segundos depois, o operador de rádio tinha já outra mensagem para transmitir: a confirmação de que uma segunda base do Exército fora tomada pelo povo. O Califa sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. Dentro de poucas horas, toda a província de Kenna seria arrebatada a um poder despótico e letal. A libertação nacional despontaria no horizonte juntamente com o nascer do Sol.
Nada, porém, era mais importante do que a tomada do Palácio de Pedra. Nada. O Intermediário fora bastante enfático a esse respeito, e até então cumprira escrupulosamente tudo o que prometera, a começar pelo valor das suas próprias contribuições. Fora generoso até ao esbanjamento no fornecimento de armamento e informações vitais.
Não desapontara o Califa, e o Califa não iria desapontá-lo. Mas a sua dívida para com o Intermediário era assunto para ficar entre ele e Alá. Muitos iriam morrer durante as próximas horas, mas havia uma pessoa no Palácio de Pedra que não ia ser morta - por enquanto. Era um homem especial, um homem que fora até à ilha na esperança de conseguir negociar a paz. Ele era venerado por milhões de pessoas, mas não deixava por isso de ser um agente do neocolonialismo. Ele não ia ser alvejado. Ia ser tratado com a devida delicadeza.
Depois, seria decapitado como um criminoso que era.
- AINDA ESTÁ fresca! - exclamou Arjun, verdadeiramente deleitado, ao levantar do chão a lata de cerveja. A lata estava, na verdade, bastante gelada.
- E está mesmo cheia? - perguntou Shyam, céptico.
- Está fechada ainda - respondeu Arjun. - E pesada com a bebida da saúde! - E estava mesmo pesada, mais do que seria de esperar. Arjun procurou com os seus dedos grossos a anilha para a abrir, que puxou com um gesto firme.
O disparo abafado do detonador precedeu em milésimas de segundo a explosão dos trezentos e cinquenta gramas de explosivo plástico. O rebentamento foi um momento estonteante de luz e som, que se converteu instantaneamente numa oval imensa de fogo e destruição. As ondas de choque destroçaram as duas barreiras e a guarita de madeira plantada à beira da estrada, bem como as casernas e todos aqueles que lá dormiam. Os dois guardas que supostamente estariam de serviço como reforço no outro extremo da barricada morreram antes de acordar.
Quinze minutos depois, quando um comboio de veículos de transporte de tropas de cobertuta de lona avançou por entre o que restava do posto de controle, já não foi preciso qualquer subterfúgio.
CAPÍTULO UM
ESTAVAM DUAS MULHERES de uniforme por detrás de um balcão quando Paul Janson entrou na sala do Platinum Club da Pacifica Airlines. Os uniformes e o balcão tinham
o mesmo tom cinzento-azulado. Os uniformes ostentavam nos ombros aquela espécie de dragonas tão do agrado das principais companhias de aviação. Noutros tempos e
lugares, reflectiu Janson, elas costumavam ser a recompensa dos militares com uma longa experiência de guerra.
- O seu cartão de embarque, por favor - disse uma delas. Tinha cabelo cor de cobre e um bronzeado de blush que terminava logo abaixo do queixo.
Janson exibiu o seu bilhete e o cartão de plástico com que a Pacifica presenteava os seus passageiros frequentes.
- Bem-vindo ao Platinum Club da Pacifica, Mr. Janson - exclamou a outra assistente. - Nós informá-lo-emos quando for a hora de embarque. - Fez um gesto na direcção
da zona de estar. - Entretanto, esperamos que aprecie a nossa hospitalidade.
Janson sentou-se pesadamente numa das poltronas estofadas. Os seus companheiros de viagem não revelaram qualquer interesse particular na sua pessoa. Para Janson
era motivo de orgulho que raramente olhassem para ele uma segunda vez. Embora fosse de constituição atlética e robusta, tinha uma aparência perfeitamente normal,
susceptível de passar despercebida em qualquer lugar. com a sua testa enrugada e o seu cabelo cinzento-aço curto, revelava bem as cinco décadas de vida que já levava.
E, quer fosse na Wall Street, quer na Bolsa de Paris, sabia bem como tornar-se praticamente invisível. Até mesmo o seu dispendioso fato cinzento feito por medida
constituía uma camuflagem perfeita, tão apropriada para a selva urbana como a graxa verde e negra que outrora utilizara no Vietname para pintar a cara para a selva
real. Era preciso ser-se um observador atento para discernir que eram mesmo os ombros do homem, e não quaisquer chumaços, que enchiam aquele fato. E teria sido necessário
ter-se convivido algum tempo com ele para se perceber que aos seus olhos cinzento-azulados não escapava qualquer pormenor.
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No seu trabalho altamente especializado como consultor de segurança de empresas, granjeara a reputação de uma eficiência e discrição invulgares, pelo que a procura
dos seus serviços excedia largamente quer a sua disponibilidade, quer o seu interesse. Já na vida privada era menos bem-sucedido. Era um solitário, essa é que era
a verdade, e a solidão nunca era tão pungente como durante os tempos mortos da sua sobrecarregada agenda, como, por exemplo, quando aguardava a partida de um avião
ou ser recebido numa qualquer luxuosa sala de espera. No final daquela sua viagem, não teria ninguém à sua espera a não ser mais um motorista de limusina de boné
de pala, que seguramente exibiria um cartão branco com o seu nome mal escrito, e depois mais um cliente, um ansioso chefe de divisão de uma firma de indústria ligeira
baseada em Los Angeles.
- Atenção, Richard Alexander - disse uma voz nasalada através do sistema público de informações. - Atenção, passageiro Richard Alexander. É favor comparecer junto
de qualquer balcão da Pacifica.
Era o tipo de comunicação peculiar de qualquer aeroporto, mas foi o suficiente para arrancar Janson aos seus pensamentos. Richard Alexander era um nome fictício
que em tempos usara com frequência. Uma coincidência, pensou, mas logo a seguir apercebeu-se de que o seu telemóvel começara a vibrar no fundo do bolso interior
do casaco. Ligou o auricular.
- Sim?
- Mr. Janson? Ou devo dizer antes Mr. Alexander? - perguntou uma voz de mulher.
- Quem fala? - perguntou Janson com voz calma.
- Por favor, Mr. Janson. Precisamos de nos encontrar imediatamente. - O modo como pronunciava as vogais e as consoantes era típico de alguém que nascera no estrangeiro,
mas que tivera uma educação esmerada. E o ruído de fundo era ainda mais revelador: a sua interlocutora encontrava-se obviamente muito perto.
- Seja mais precisa. Uma pausa.
- Quando nos encontrarmos.
Janson desligou. O seu olhar deslizou de pessoa para pessoa, tentando adivinhar quem estaria a tentar desviá-lo do seu caminho.
Seria uma armadilha montada por algum antigo adversário irredutível? Havia muitos que se sentiriam vingados com a sua morte. Contudo, a hipótese parecia remota.
Ele não estava em acção; estava no Aero-
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porto de O"Hare, pelo amor de Deus. Se calhar, até fora por isso que tinham escolhido aquele local para o encontro. As pessoas tendem a considerar-se em segurança
num aeroporto, rodeadas por todos aqueles detectores de metais e agentes de segurança fardados. Era um sinal de esperteza tirar partido daquela segurança ilusória.
Ponderou diversas hipóteses para logo a seguir as descartar. Junto ao vidro espesso que dava para a pista, avistou uma mulher loura com o telemóvel ao lado que,
aparentemente, analisava uma folha de cálculo no seu computador portátil. Outra mulher, mais perto da entrada, mantinha uma conversa animada com um homem que, no
lugar da aliança, apresentava apenas uma risca de pele mais clara, contrastando com a mão bronzeada.
Janson prosseguiu a sua busca com o olhar, até que por fim a detectou. Sentada num canto mais sombrio da sala, estava uma mulher elegante de meia-idade com um telemóvel
ao ouvido. Tinha o cabelo branco preso em cima e vestia um fato Chanel azul-escuro com discretos botões de madrepérola. Sim, era aquela; tinha a certeza. Seria uma
assassina ou faria parte de um bando de raptores? Aquelas eram apenas duas de entre uma centena de possibilidades que, embora remotas, ele teria que considerar antes
de excluir. Os procedimentos tácticos de rotina, a que se acostumara após tantos anos de operações no terreno, exigiam que o fizesse.
Janson levantou-se de um salto. Tinha de mudar de sítio: era uma regra básica. "Precisamos de nos encontrar imediatamente", dissera a sua interlocutora. Se assim
era, o encontro seria nos termos que ele ditasse. Encaminhou-se para a saída da sala dos VIPs, retirando pelo caminho um copo de papel de um refrigerador de água
por que passou. Aproximou-se do balcão de recepção levando à sua frente o copo de papel como se estivesse cheio. Depois, bocejou, cerrando os olhos, e foi chocar
com um encorpado inspector da AFAC (Autoridade Federal para a Aviação Civil).
- Oh, desculpe - exclamou Janson, assumindo um ar pesaroso.
- Não lhe entornei nada em cima, pois não? -Janson percorreu com as mãos o casaco do homem. - Peço imensa desculpa se o molhei.
- Não tem importância - disse o inspector com um tom de impaciência. - Mas daqui em diante veja se repara para onde anda, está bem?
Enquanto Janson percorria o corredor que conduzia ao Terminal B, o seu telemóvel voltou a tocar, tal como ele calculara.
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- Parece-me que não está a compreender a urgência da situação
- começou a interlocutora.
- Exactamente - retorquiu Janson em tom ríspido. - Não estou. Porque é que não me diz já de que é que se trata? - Entretanto, numa esquina do corredor avistou um
pequeno recanto com cerca de um metro, depois uma porta que tinha por cima uma placa a dizer: PROIBIDA A ENTRADA A PESSOAS ESTRANHAS AO SERVIÇO.
- Não posso - respondeu ela após uma breve pausa. - Pelo telefone, não. Mas estou aqui no aeroporto e posso encontrar-me consigo ...
- Nesse caso, telefone-me daqui a um minuto - interrompeu Janson, pondo termo à conversa. Depois, empurrou a barra horizontal da porta e entrou. Encontrou-se numa
dependência cheia de painéis eléctricos. Três empregados de uma companhia de aviação de uniformes de sarja azul-escura estavam sentados em redor de uma pequena mesa
de fórmíca a beber café.
- Que raio é que julga que está a fazer? - berrou um deles. Você não pode entrar aqui.
Janson esboçou um sorriso incómodo.
- Vocês vão odiar-me, rapazes, mas sabem o que é? - Tirou do bolso um crachá da AFAC que surripiara ao homem encorpado na sala VIP. - Mais uma iniciativa de combate
à droga. Um teste aleatório da equipa de detecção de transporte de droga por via aérea, citando o último memorando da administração sobre o assunto.
- Outra fantochada! - gritou outro dos funcionários, aborrecido.
- Levantem o rabo dos assentos, rapazes - trovejou Janson. Desta vez, vamos seguir um procedimento totalmente novo. A minha equipa está concentrada junto à porta
número dois do Terminal A. Não os façam esperar. Quando ficam impacientes, por vezes começam a confundir as amostras, se é que me faço entender.
Todos se apressaram a sair da sala. Janson sabia que levariam uns bons dez minutos a alcançar o Terminal A. Consultou o relógio e contou os segundos que faltavam
para que o telemóvel começasse a tocar; a sua interlocutora esperara um minuto exacto.
- Há uma zona de restaurantes perto do balcão de emissão de bilhetes - disse Janson. - Encontramo-nos lá. - Esperou junto ao recanto e, passados trinta segundos,
viu a mulher de cabelo branco passar mesmo à sua frente.
- Olá, querida! - disse em voz alta, ao mesmo tempo que numa sucessão de movimentos rápidos lhe passava um braço pela cintura, lhe
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colocava uma mão sobre a boca e a conduzia para a sala de trabalho, agora totalmente vazia. Não havia ninguém em redor que pudesse ter observado aquela manobra,
executada em três breves segundos; mas mesmo que houvesse, a actuação de Janson teria sido tomada por um abraço romântico.
A mulher estava hirta de medo, mas não gritou; pelo contrário, manteve uma compostura profissional, que Janson não achou nada tranquilizadora.
Uma vez a porta fechada atrás deles, Janson fez um sinal brusco à mulher para se sentar à mesa de fórmica.
Ela sentou-se numa das cadeiras, e Janson deixou-se ficar de pé.
- Não vou tomar em consideração a infracção aos procedimentos que foi aqui cometida - principiou ele. - Mas quando tivermos acabado a nossa conversa, será bom que
eu saiba tudo aquilo que pretendo saber. - Mesmo que ela procurasse legitimamente angariar os seus serviços, a natureza pública do contacto fora totalmente despropositada.
E a utilização de um seu pseudónimo, ainda que há longo tempo abandonado, constituía uma violação grave.
- Dispomos de muito pouco tempo, Mr. Janson - disse ela.
- Eu disponho de todo o tempo do Mundo.
- Mas Peter Novak não.
Peter Novak. Um lendário financeiro e filantropo húngaro que ainda no ano anterior fora distinguido com o Prémio Nobel da Paz pela sua contribuição para a resolução
de conflitos à escala mundial. Era fundador e director da Fundação Liberdade, que se dedicava à "democracia orientada", a grande paixão de Novak, e que possuía delegações
em toda a Europa Oriental e outros lugares do Mundo menos desenvolvidos. Mas Janson tinha razões de carácter pessoal para se lembrar de Peter Novak: tinha uma dívida
imensa para com ele.
- Quem é você? - perguntou Janson.
- Chamo-me Marta Lang e trabalho para Peter Novak. Sou a directora-adjunta da fundação. Peter Novak precisa de auxílio. Como você precisou uma vez em Baaqlina.
Marta pronunciou o nome daquela cidade poeirenta como se ela fosse em si mesma uma frase completa, um parágrafo, um capítulo. E era, para Janson.
- Não me esqueci - disse ele em voz baixa.
- O nosso jacto já está na pista, pronto a descolar. - Levantou-se. - Temos de partir já.
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- Para onde?
- Essa, Mr. Janson, é a pergunta que temos para lhe colocar.
ENQUANTO JANSON SUBIA atrás dela as escadas de alumínio do Gulfstream V de Peter Novak, o seu olhar deteve-se numa frase pintada na fuselagem do avião: "Sok kicsi
sokra megy". Era húngaro, e incompreensível para ele.
Na retaguarda do avião, estavam sentados dois homens e duas mulheres, obviamente membros do pessoal de Marta Lang. Marta fez-lhe sinal para se sentar na parte da
frente da cabina, de frente para ela, após o que pegou num telefone interno e murmurou algumas palavras. Janson ouviu o ligeiro zumbido do motor do avião a aumentar
as rotações, ao mesmo tempo que a aeronave começava a rolar na pista.
- Aquela inscrição na fuselagem ... o que é que significa?
- Significa "Muitas pequenas coisas podem fazer uma coisa grande". E um ditado popular húngaro e a divisa preferida de Peter Novak. Estou certa de que compreende
porquê.
- Ninguém pode dizer que ele se esqueceu das suas origens.
- Para o bem ou para o mal, foi a Hungria que fez dele o que é agora. E Peter não é pessoa para esquecer as suas dívidas - disse Marta, lançando a Janson um olhar
significativo.
- Nem eu.
- Eu sei. Por isso é que temos a certeza de podermos confiar em si.
- Se ele tem uma missão para mim, gostaria de saber qual é o mais depressa possível. E pela boca dele, de preferência
- Terá de se contentar comigo. Eu sou a adjunta dele.
- Nesse caso, porque é que estou aqui? E onde está Peter Novak? Marta Lang respirou fundo.
- Ele está prisioneiro dos rebeldes kagama, e nós precisamos de si para o libertar. Uma "exfiltração", julgo que é assim que lhe chamam. Quando não, ele morre lá
onde está, em Anura.
Anura. Prisioneiro da FKL. Mais uma razão, a principal razão sem dúvida, para quererem que fosse ele a encarregar-se da missão. Anura. Um sítio que lhe vinha à memória
quase todos os dias, e isto durante os últimos cinco anos. Era o seu inferno particular.
- Há uns dias, Peter Novak chegou à ilha na tentativa de negociar a paz entre os rebeldes e o Governo. A FKL disse que tinha Peter Novak na conta de negociador honesto,
portanto foi acordado um encontro na província de Kenna. Conseguir um acordo duradouro em
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Anura, pondo um ponto final no terror, seria uma proeza extraordinária. Penso que você entende isso melhor do que ninguém.
Janson não disse nada, mas o seu coração começou a bater mais depressa.
A CASA DELES, mobilada pela embaixada, ficava em Cinnamon Gardens, em Caligo, capital da ilha. Sob a brisa matinal, as folhas rumorejavam e os pássaros cantavam.
Porém, o que o fez acordar foi um tossicar ligeiro vindo da casa de banho, seguido do barulho de água a correr. Helene regressou da casa de banho escovando os dentes.
"Talvez devesses ficar em casa hoje e não ir trabalhar", dissera ele, ainda meio ensonado. Helene abanou a cabeça. "Por alguma razão lhes chamam enjoos matinais,
meu querido", retorquiu ela com um sorriso. "Desaparecem rapidamente como o orvalho." E começou a vestir-se para seguir para o seu trabalho na embaixada. "Tira o
dia", dissera-lhe ele ainda, ao que ela respondera: "É melhor não, meu querido. Eles ou sentem a minha falta ou não, e nenhuma das hipóteses é boa." Beijou-o na
testa e saiu. Se ao menos tivesse ficado junto dele. Se ao menos ...
Anura, uma ilha do oceano Índico, tinha uma população de doze milhões e fora abençoada com uma rara beleza natural. Janson fora destacado para lá por dezoito meses,
com a missão de avaliar a volátil situação política da ilha, já que no decurso da última década aquele paraíso vivia sob a ameaça de uma das mais letais organizações
terroristas do Mundo, a Frente Kagama de Libertação. Milhares de jovens, seguidores fanáticos de um homem a quem chamavam Califa, andavam com pendentes de couro
ao pescoço contendo uma cápsula de cianeto na extremidade, a qual simbolizava a sua disposição de dar a vida pela causa. O Califa tinha uma predilecção especial
por atentados suicidas à bomba. Um dos feitos de que mais se orgulhava era o da explosão de um camião armadilhado no centro de Caligo que provocara a morte a doze
membros do pessoal da Embaixada dos Estados Unidos em Anura.
Entre esses doze, encontrava-se Helene.
No AVIÃO, MARTA pousou a mão sobre o pulso de Janson.
- Lamento muito, Mr. Janson. Eu compreendo o sofrimento que isto lhe deve reavivar.
- Claro que compreende - retorquiu Janson. - Foi por isso que me escolheu.
Marta não desviou o olhar.
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- Peter Novak está prestes a morrer. Aquela conferência na província de Kenna foi uma armadilha.
- Para começar, foi uma loucura - comentou Janson secamente.
- A FKL acredita haver uma nobreza inerente à violência revolucionária. Como é que se pode negociar com tais fanáticos? - Soltou um suspiro. - Dêem-lhes mas é o
que eles pretendem.
- Mas eles não pretendem nada - explicou Marta Lang em voz baixa. - Nós convidámo-los a dizer qual era o preço deles desde que Peter fosse libertado vivo. Recebemos
sempre a mesma resposta: Peter Novak foi condenado à morte por crimes contra os colonizados, e a sentença de execução é "irrevogável". O tradicional feriado sunita
do Id ul-Kabir diz-lhe alguma coisa?
- Comemora o sacrifício de Abraão.
Marta Lang confirmou com um aceno de cabeça.
- Este ano será comemorado com o sacrifício de Peter Novak. Vai ser decapitado no Id ul-Kabir. É já nesta sexta-feira.
- Porquê? Porquê, pelo amor de Deus?
- Porque sim - respondeu Marta Lang. - Porque ele é um agente sinistro do neocolonialismo, segundo a FKL. Porque, ao procederem assim, põem a FKL no mapa e granjeiam
mais notoriedade do que a que alcançaram em quinze anos de atentados bombistas. Sabe-se lá porquê.
- Mas se o Califa procura engrandecer-se dessa maneira, porque é que ainda não fez publicidade disso? Porque é que os media não se ocuparam já do assunto?
- Porque ele é astuto. Ao esperar até que o facto esteja consumado para só depois lhe dar publicidade, afasta qualquer pressão internacional para uma intervenção.
Por outro lado, sabe que nós não ousaremos publicitar a situação, porquanto isso eliminaria qualquer possibilidade de uma solução negociada, por mais remota que
seja.
- Mas porque é que está a contar-me isso a mim? Porque não pedir antes ajuda a Washington?
- Foi a primeira coisa que fizemos, mas eles acham que qualquer intervenção claramente conotada com os Estados Unidos iria colocar em perigo as vidas de dezenas
de cidadãos americanos que se encontram neste momento em território dominado pelos rebeldes. E depois há o caso de Donna Hedderman ...
Janson fez um aceno de cabeça e rematou:
- Uma estudante de Antropologia da Universidade da Colúmbia
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em trabalho de campo no Nordeste de Anura capturada pelos rebeldes kagamas, que a acusam de ser agente da CIA.
- Há dois meses que a têm incomunicável. E, à parte terem condenado essa acção, os Estados Unidos não mexeram uma palha para a resgatar. Não querem "complicar ainda
mais uma situação já de si bastante complicada".
- Estou a entender. Se os Estados Unidos se recusam a intervir a favor de uma cidadã sua,...
- ... o que ia parecer aos olhos do Mundo enviarem uma equipa de socorro para resgatar o milionário húngaro? Sim. Eles não puseram o caso assim com tanta rudeza,
mas no fundo foi a mensagem que transmitiram. E foi então ...
- Deixe-me adivinhar - interrompeu Janson. - Foi então que surgiu o meu nome.
- Repetidamente. Tanto o Governo como a CIA recomendaram fortemente a sua pessoa. Você é um agente desvinculado mas que mantém ligações internacionais com pessoas
dentro da sua anterior linha de actividade. Segundo os seus antigos colegas das Operações Consulares, Paul Janson é "o melhor que há na sua especialidade".
- Aí, a utilização do presente do verbo é enganadora. Eles disseram-lhe que eu me tinha reformado, mas pergunto-me se lhe terão explicado porquê.
A SUA DESVINCULAÇÃO das Operações Consulares implicara ter de se sujeitar a uma dúzia de entrevistas. Aquela de que se lembrava melhor era a que tivera com o subsecretário
de Estado Derek Collins. No papel, ele era o director do Gabinete de Informações e Pesquisa do Departamento de Estado; porém, na realidade era o director do seu
órgão secreto, as Operações Consulares. Ainda hoje, Janson retinha a imagem de Collins a tirar os seus óculos de aros pretos com ar fatigado e a massajar com os
dedos a cana do nariz.
- Confesso que tenho pena de si, Janson - dissera Collins. Você era aquele tipo que tinha um pedaço de granito no lugar do coração. E agora vem dizer-me que sente
repulsa por aquilo que melhor faz na vida?
- Não esperava que me compreendesse, Collins - retorquira ele.
- Digamos simplesmente que mudei de coração.
Uma breve risada, quase um latido.
- Eu conheço as pessoas, Janson. Você diz que está enjoado de
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tantas mortes. Pois eu vou dizer-lhe aquilo que um dia você irá descobrir por si próprio: essa é a única forma de continuar a sentir-se vivo.
Janson abanara a cabeça. A insinuação subjacente fizera-o estremecer e recordara-lhe a razão por que tinha de partir e porque já o devia ter feito há muito mais
tempo.
- Que espécie de homem tem de matar para se sentir vivo? O olhar que Collins lhe lançou pareceu trespassar-lhe a carne.
- Parece-me que eu devia fazer-lhe essa mesma pergunta, Janson.
- SIM, MR. JANSON. Os seus antigos patrões explicaram-me que tinha um assunto em aberto com os kagamas - disse Marta Lang.
- Foi essa a expressão que utilizaram? "Um assunto em aberto"? Ela confirmou com um aceno de cabeça.
- Pois seja então - exclamou Janson após uma pausa. - Essa gente não tem poesia na alma.
- Venha comigo - disse Marta Lang, levantando-se. - vou apresentá-lo à minha equipa. Qualquer informação de que precise, ou já a têm ou saberão como obtê-la. Temos
dossters cheios de informações secretas que interceptámos e de todos os dados relevantes que conseguimos reunir no pouco tempo de que dispusemos.
Janson passou a hora seguinte a ler os dossiers e a escutar as apresentações feitas pelos quatro colaboradores de Marta Lang. Muito daquele material era-lhe familiar;
algumas análises reflectiam até os seus próprios relatórios, com mais de cinco anos, feitos em Caligo. Havia duas noites, os rebeldes tinham conquistado várias bases
militares, rompido barreiras e postos de vigilância e assumido o controle da província de Kenna.
Havia alguns pormenores novos. Ahmad Tabari, o homem a quem chamavam o Califa, tinha vindo a conquistar o apoio popular ao longo dos últimos anos. Parecia que alguns
dos seus programas de combate à fome lhe haviam granjeado simpatizantes mesmo entre os camponeses hindus. Tinham-lhe posto a alcunha de Exterminador, não porque
tivesse propensão para assassinar civis, mas devido a uma campanha de erradicação de pragas que lançara. Nas áreas controladas pela FKL, tinham sido tomadas medidas
enérgicas contra a proliferação da ratazana-da-índia, uma espécie indígena que destruía a criação e os cereais. Na realidade, a campanha de Tabari tinha como motivação
uma superstição antiga: para a sua tribo, a ratazana-da-índia simbolizava a morte.
Janson estudou atentamente mapas, fotografias de satélite cheias de grão e antigas plantas do edifício da Adam"s Hill onde Novak se en-
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contrava detido. Na época colonial, esse edifício fora a residência do governador-geral e, antes disso, uma fortaleza a que os Holandeses chamavam o Steenpaleis,
o Palácio de Pedra. Uma conclusão era inevitável: qualquer tentativa de "exfiltração" tinha uma probabilidade de sucesso extremamente reduzida.
E os colaboradores de Marta Lang sabiam isso. Janson lia-lhes na expressão: estavam a pedir-lhe que liderasse uma missão condenada ao insucesso desde o princípio.
Porém, Peter Novak era um homem extraordinário a quem muitas pessoas deviam a vida, e Janson sabia que era uma delas.
Janson endireitou-se subitamente na cadeira. Havia uma forma ... talvez.
- Vamos precisar de meios aéreos, barcos e, acima de tudo, dos operacionais certos.
Marta Lang olhou para os outros, expectante. De momento, a atitude de triste resignação que tinham exibido até então dissipara-se.
- Estou a falar de um grupo de operacionais altamente especializados. Não dispomos de tempo para treinar ninguém. Têm de ser pessoas que já actuaram em conjunto,
gente com quem eu já trabalhei e em quem posso confiar. - Reviu mentalmente uma sucessão de rostos, constantes de uma lista de fotografias de arquivo que, também
mentalmente, foi reduzindo até restarem apenas quatro. Todos eles eram pessoas a quem ele sabia poder confiar a vida; na verdade, cada um deles era alguém que lhe
devia a vida e que não deixaria nunca de pagar uma dívida de honra. Entregou a lista a Marta Lang.
Seguidamente, Janson começou a organizar uma lista de equipamento militar juntamente com um dos colaboradores de Marta Lang, um homem que fora, de facto, funcionário
de logística. A cada pedido, o homem respondia com um sim ou com um não, mas com uma indicação de tempo: o número de horas que seria necessário para localizar e
transportar o equipamento para o ponto de concentração escolhido por Janson no arquipélago de Nicobar.
Pelas janelas, o Sol surgia como um globo dourado rodeado de nuvens brancas de aspecto fofo. Quando Marta Lang baixou os olhos para olhar para o relógio, sabia que
estava a fazer mais do que ver as horas. Estava a contar o número de horas que restavam a Peter Novak.
O olhar dela cruzou-se com o de Janson.
- Aconteça o que acontecer, quero agradecer-lhe tudo aquilo que nos deu - disse ela.
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- Mas eu não vos dei nada - replicou Janson.
- Deu-nos esperança - contrapôs ela.
Janson começou a tecer algumas considerações sobre a realidade, das escassas hipótses que tinham, da grande profusão de cenários negativos, mas acabou pOr se interromper
a meio. Naquele estágio inicial da missão, uma falsa esperança era melhor do que esperança nenhuma.
CAPÍTULO DOIS
AS RECORDAÇÕES DATAVAM de há trinta anos, mas podiam muito bem ser da véspera. Desfilavam nos seus sonhos à noite - sempre na noite anterior a uma operação, alimentadas
pela sua ansiedade reprimida -, e embora comt,vçassem e terminassem em pontos diferentes, era como se pertencessejn ao mesmo rolo de filme.
Na selva, havia uma base. Na base, havia um escritório. No escritório, havia uma secretária. Na secretária, estava uma folha de papel.
Era a lista cor as instruções daquele dia relativamente às zonas que deviam ser submetidas a fOgO de desgaste e a fogo de destruição. A secretária do capit-de-fragata
estava pejada de folhas de papel, todas contendo relatórios semelhantes enviados pelo Comando de Apoio Militar do Vietname:
CAMV. Esses relatórios provinham de agentes
duplos, de simpatizantes do Vietcongue, de informadores pagos e, por vezes, também de cainponeses que tinham contas a ajustar com outrem e viam naquele procedimento
uma maneira fácil de fazer que alguém destruísse o dique para a plantação de arroz de um concorrente.
- Isto devia ser a base do nosso Plano de Ataque e Interdição dissera Demarest Janson e Maguire. - Mas não passa de conversa fiada. Isto foi um vietcongue qualquer
de óculos que o escreveu a pensar em nós e o difundiu através daqueles burocratas idiotas do CAMV. Isto, meus senhor e um desperdício de artilharia. Querem saber
como é que eu sei? - Agitou no ar uma folha de papel quase transparente como se fosse
uma bandeira. - Não há sangue neste papel.
As colunas do leitor de cassetes transmitiam uma obra coral do século XII, uma das raras predilecções de Demarest.
Tragam-me o raio de um correio vietcongue - prosseguiu, trovejando. Não, tragam-me antes uma dúzia deles. Se algum tiver um papel
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com ele, então tragam-me o papel, mas certificado com sangue VC. Nessa noite, seis deles rolaram para dentro de uma lancha de assalto táctica dos fuzileiros e fizeram-se
às águas baixas e tépidas do Ham Luong. Remaram por cerca de duzentos metros de lodo e desembarcaram na ilha em forma de pêra.
- Voltem com prisioneiros ou então não voltem - ordenara-lhes o comandante. com sorte, era isso que fariam: sabia-se que a ilha era controlada pelo Vietcongue. Mas
sorte era coisa que não abundava ultimamente.
Os seis homens envergavam uma espécie de pijamas negros iguais aos usados pelo inimigo. Nada de crachás de identificação nem de indicativos de patente ou unidade,
muito menos do facto de fazerem parte de um grupo de fuzileiros ou do facto, ainda mais pertinente, de pertencerem aos Diabos de Demarest.
Janson seguia à frente ao lado de Hardaway quando o estampido de uma carabina lhes fez saber que o inimigo detectara a presença deles. O sangue jorrou do pescoço
de Hardaway, que tombou no chão.
Enquanto Maguire abria fogo de metralhadora por cima das cabeças deles, Janson arrastou-se para junto de Hardaway. Pegou na cabeça do amigo e aplicou pressão com
os dedos sobre a ferida no seu pescoço, de onde gotejava sangue arterial.
Num súbito assomo de energia, Hardaway afastou as mãos do amigo do seu pescoço.
- Larga-me, Janson. - Rastejou um ou dois metros, depois levantou-se à força de braços, rodando a cabeça para um lado e para outro, a fim de tentar distinguir as
silhuetas dos seus atacantes por entre a linha de árvores.
Foi imediatamente atingido por um tiro a meio da cintura que o arremessou violentamente ao chão. Ficou com o abdómen completamente rasgado, notou Janson. Recuperar
daquele ferimento estava fora de questão. Um homem a menos. Quantos mais se seguiriam?
O VC estivera todo o tempo de atalaia, à espera deles. Aquele fogo nunca poderia ter sido tão intenso nem tão bem dirigido se os VCs não tivessem sido informados
previamente daquela tentativa de infiltração.
- Tirem-nos daqui, bolas! - pediu Janson à base pelo rádio Precisamos de cobertura urgente! Mandem uma lancha Mike. Já!
Janson ouviu a voz do seu comandante do outro lado da linha:
- Que tal te estás a aguentar, rapaz? - perguntou Demarest.
- Eles estavam à nossa espera, chefe! - informou Janson.
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Depois de uma pausa, a voz de Demarest voltou a crepitar nos auscultadores do rádio.
- Claro que estavam.
- Mas como, chefe?
- Considera isso um teste, meu rapaz. Um teste que vai mostrar quais dos meus homens é que têm aquilo que é preciso. - Janson ouvia, em fundo, a música coral.
- Mas Hardaway...
Demarest interrompeu-o bruscamente.
- Ele era fraco. Chumbou no teste.
JANSON ABRIU OS OLHOS com o abanão quando o avião tocou o solo.
Durante anos, Katchall fora declarada uma localidade de acesso interdito pela Marinha de Guerra Indiana, como parte integrante de uma zona de segurança que incluía
a maior parte das ilhas Nicobar. Uma vez reformulada essa zona, tornara-se um entreposto comercial. Mangas, papaias, duriões, PRCs-101 e Cs-130, tudo isso entrava
ou saía daquele pedaço de terra oval esturricado pelo sol. Janson sabia que aquele era um dos raros locais da Terra onde ninguém sequer pestanejaria perante a chegada
súbita de transportes militares e de munições.
Um jipe levou-o directamente do avião até ao complexo situado na costa ocidental. Por essa altura, já a sua equipa devia estar reunida no abrigo de madeira de Quonset,
pintado em tons de azeitona. Anexo a esse abrigo, havia um pequeno armazém pré-fabricado. A Fundação Liberdade possuía uma delegação regional em Rangum e, por conseguinte,
conseguira assegurar que tudo estivesse a postos no local de concentração.
Theo Katsaris já lá se encontrava quando Janson chegou, e os dois homens abraçaram-se calorosamente. Katsaris, de nacionalidade grega, era provavelmente o operacional
mais eficiente com quem Janson alguma vez trabalhara. Só a sua presença era o suficiente para elevar o moral da equipa; possuía aquela aura dourada de um homem a
quem nunca poderia acontecer nada de mau.
Manuel Honwana encontrava-se no hangar adjacente, mas regressou assim que soube da chegada de Janson. Ex-coronel da Força Aérea de Moçambique, treinado na Rússia,
era inigualável nos voos rasantes sobre zonas tropicais montanhosas. Havia ainda Finn Andressen, norueguês e ex-oficial das forças armadas do seu país, licenciado
em Geologia, que possuía um instinto aguçado para o reconhecimento dos terrenos.
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Chegou dentro do horário previsto, seguido de perto por Sean Hennessy, um imperturbável piloto irlandês. Os membros da equipa cumprimentaram-se uns aos outros
com calorosas palmadas nas costas ou simples apertos de mão, consoante o temperamento de cada um.
Janson explicou-lhes o plano de ataque, começando com os aspectos gerais da operação e passando depois aos pormenores e às opções alternativas. Dedicaram-se a seguir
ao aperfeiçoamento do plano. Honwana, Andressen e Hennessy passaram em revista mapas aos ventos dominantes e às correntes marítimas. Janson e Katsaris estudaram
atentamente uma maqueta em plasticina do Palácio de Pedra.
Janson passou depois do modelo para a análise das plantas extraordinariamente detalhadas do palácio. Sabia que aquelas plantas representavam o corolário de um esforço
enorme. Tinham sido preparadas no decurso das últimas quarenta e oito horas por um grupo de trabalho constituído por arquitectos e engenheiros reunidos pela Fundação
Liberdade. Haviam sido fornecidas a esse grupo de técnicos descrições verbais mais ou menos completas feitas por visitantes, uma profusão de fotografias de carácter
histórico e imagens obtidas via satélite. Tinham igualmente sido consultados os arquivos existentes na Holanda.
- Desde que possamos esperar até cerca das quatro horas da manhã, iremos desfrutar seguramente de uma total cobertura de nuvens
- informou Andressen. - O que é obviamente uma boa ajuda para se conseguir o efeito de surpresa.
- Vocês estão a falar de um salto em pára-quedas de grande altitude por entre uma camada espessa de nuvens? - perguntou Hennessy. - Um salto às cegas?
- Será uma profissão de fé - retorquiu o nórdico. - Tal como em qualquer religião.
- Eu pensava que isto ia ser uma operação de comandos, e não uma operação kamikaze - comentou Hennessy. - Diz-me lá, Paul, quem é o doido varrido que vai fazer esse
salto?
Janson olhou para Katsaris e disse ao grego:
- Tu e eu.
Katsaris fitou-o por instantes.
- Combinado.
O PRINCÍPIO FUNDAMENTAL para a manutenção da coesão de uma equipa é cada um dos seus elementos estar disposto a aceitar correr um risco pessoal para reduzir o risco
de um companheiro. É crucial um
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espírito de igualdade; qualquer pretensão a um tratamento de favor pode destruí-la. Por conseguinte, logo que o grupo ficou formado, Janson falou aos homens num
tom
simultaneamente brusco e amigável. Mas mesmo dentro das elites há elites - e até mesmo no interior dos mais restritos círculos de excelência há sempre um eleito,
o menino de ouro.
Janson fora outrora, havia cerca de três décadas, um desses eleitos. Poucas semanas depois de ter chegado ao campo de treino dos fuzileiros, em Little Creek, Alan
Demarest seleccionara-o de entre todos os formandos, fora-o transferindo para grupos de combate cada vez mais elitistas, para regimes de métodos de combate cada
vez mais duros. Os grupos de treino foram-se tornando cada vez mais diminutos, muitos dos seus companheiros foram ficando pelo caminho, vencidos pelo esgotante programa
de exercícios, até que por fim Demarest o isolou para sessões intensivas de treino individual.
E foi assim que um guerreiro lendário criou outro. A primeira vez que Janson se cruzou com Theo Katsaris, havia já alguns anos, percebeu - percebeu simplesmente,
tal como Demarest devia ter percebido a seu respeito.
Contudo, mesmo que Katsaris não fosse tão extraordinariamente dotado, a tal igualdade operacional nunca poderia suplantar os laços de lealdade forjados ao longo
do tempo, e a amizade entre Janson e ele ultrapassava largamente o contexto de uma missão de comandos. Era uma amizade cimentada por recordações partilhadas e dívidas
recíprocas.
Dirigiram-se os dois para o fundo do armazém onde o armamento fornecido pela fundação fora depositado durante o dia.
- Sabes porque é que me envolvi nisto, não sabes? - disse Janson.
- Por duas razões - retorquiu Katsaris. - As mesmas razões pelas quais possivelmente não te devias ter envolvido.
- E tu, na minha posição, o que farias?
- Faria exactamente o mesmo - respondeu Katsaris. - O braço militar da Harakat al-Muqawama al-Islamiya nunca teve grande reputação de devolver os bens roubados.
Os bens roubados: reféns, especialmente os suspeitos de pertencerem aos serviços de espionagem americanos. Sete anos antes, em Baaqlina, no Líbano, Janson fora capturado
pelo grupo extremista; a princípio, os seus captores pensavam ter detido um homem de negócios americano, associando a sua fama a essa condição; porém, a torrente
de reacções ao mais alto nível acabou por fomentar outras suspeitas. As negociações cedo descarrilaram devido às lutas pelo poder dentro da
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organização. Só a oportuna intervenção de uma terceira parte, a Fundação Liberdade, como mais tarde veio a saber-se, os levou a alterarem os planos. Após doze dias
de cativeiro, Janson foi libertado.
- Tanto quanto sabemos, Peter Novak não esteve pessoalmente envolvido nem tinha sequer conhecimento da situação - prosseguiu Katsaris. - Mas a fundação era dele.
Ergo, é a esse homem que deves a tua vida. Então, aparece a tal dama e diz-te que chegou a altura de pagares Baaqlina. Tu, obviamente, tens de dizer que sim.
Janson sorriu.
- Perto de ti, sinto-me sempre como um livro aberto.
- Diz-me uma coisa: ainda pensas muito em Helene?
- Todos os dias.
Katsaris estendeu o braço e pôs a mão no ombro de Janson.
- Tu, uma vez, disseste-me uma coisa, Paul. Já há uns anos. Agora, sou eu que te digo o mesmo a ti: A vingança não existe. Pelo menos aqui na Terra. Isso é coisa
de livros de histórias. Há golpes e represálias e mais represálias, mas esse conceito, essa fantasia do acerto de contas, da vingança, isso não existe.
- Eu sei.
- Helene morreu, Paul.
- Ah! Deve ser por isso então que ela não atende os meus telefonemas. - A sua fisionomia inexpressiva mascarava um imenso desgosto, mas não muito bem.
Katsaris não desviou o olhar; no entanto, apertou o ombro do amigo ainda com mais força.
- Não há nada, mesmo nada, que possa ressuscitá-la. Faz o que entenderes com os fanáticos kagamas, mas não te esqueças disso.
Janson soltou um profundo suspiro.
- Estás com medo de que eu entre em desvario e descarregue toda a minha ira sobre os terroristas que mataram a minha mulher.
- Não - replicou Katsaris. - Só receio que, lá bem no fundo, possas pensar que a melhor forma de esquecer tudo, a melhor forma de honrares a memória de Helene, seja
deixares-te matar por eles também.
Janson abanou energicamente a cabeça, embora ficasse a meditar se não haveria alguma verdade no que Katsaris acabara de dizer.
- Ninguém vai morrer esta noite - afirmou. Mas ambos sabiam que aquela afirmação correspondia mais a um ritual de incitamento à autoconfiança do que a uma avaliação
séria das probabilidades.
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A COSTA NORTE de Anura curvava para dentro, fazendo lembrar aqueles corações do Dia dos Namorados. O lóbulo oriental era constituído essencialmente por floresta
e escassamente habitado. Honwana conduziu o BA609, avião a hélice, em voo baixo ao longo da selva de Nikala. Mas, uma vez alcançado o mar, a aeronave fez um ângulo
de quase quarenta graus e iniciou a subida.
Andressen e Hennessy seguiam à frente como tripulantes ao lado de Honwana, dando apoio à navegação. Separados por um tabique, os dois pára-quedistas seguiam na cauda
do avião.
- Diz-me, Theo, como está a bela Marina? - perguntou Janson. Katsaris soltou uma gargalhada.
- Por esta altura, anda positivamente radiante. - Katsaris proferiu a última palavra com uma certa ênfase.
- Espera aí um segundo - exclamou Janson. - Não estás a querer dizer que ela ...
- Ainda só tem uns dias. Ligeiramente enjoada de manhã. Tirando isso, está de perfeita saúde.
- Quer dizer então que vais ser pai - disse Janson, mas a onda de contentamento que sentira ao ouvir a notícia depressa esmoreceu.
- Não pareces muito satisfeito - exclamou Katsaris.
- Devias ter-me avisado.
- Porquê? - perguntou alegremente - É ela que está grávida.
- Sabes muito bem porquê.
- íamos contar-te em breve. Na verdade, até queríamos convidar-te para padrinho.
Janson replicou em tom truculento: -Já me devias ter dito. Theo encolheu os ombros.
- vou ser pai, e isso faz-me muito, muito feliz, mas não vai alterar em nada a minha maneira de viver. Eu sou assim, e Marina sabe. E tu também. Além disso, se achas
que esta missão é demasiado arriscada até para mím, como é que tu, em boa consciência, podias pedir a outra pessoa para ocupar o meu lugar?
Janson abanou a cabeça.
- Tu precisas de mim - insistiu Katsaris.
- Podia ter arranjado outra pessoa.
- Nunca ninguém tão bom como eu. - Os olhos castanhos nem pestanejaram. - Eu não vou desiludir-te - afirmou com toda a calma.
- Diz-me qualquer coisa que eu não saiba - exclamou Janson.
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ENQUANTO SE APROXIMAVAM da zona de salto, Katsaris e Janson envergaram o fato completo de combate, de nylon preto, e pintaram a cara com graxa. Se o fizessem com
maior antecedência, corriam o risco de sobreaquecimento.
Agora, tinham pela frente a primeira grande dificuldade. Ele e Katsaris, em conjunto, tinham mais de 3000 saltos. Mas o que tinham de fazer naquela noite estava
muito para além de tudo o que já haviam experimentado.
Janson ficara satisfeito consigo próprio quando tivera a nítida percepção de que o único ponto vulnerável do complexo era a aproximação por cima, do céu da noite
directamente para o centro do pátio interior. Mas se havia alguma hipótese viável de conseguir esse feito, permanecia uma incógnita.
Para que ninguém os detectasse, teriam de descer no meio da noite sem estrelas e sem Lua que a época das monções proporcionava. Os mapas obtidos via satélite confirmavam
que às 4 horas da madrugada a cobertura dada pelas nuvens seria total. Para que tivessem sucesso, seria necessário aterrarem com extrema precisão. Mas, para piorar
as coisas, a mesma conjuntura meteorológica que lhes proporcionava a cobertura de nuvens proporcionava-lhes também ventos imprevisíveis: um inimigo da precisão.
Honwana abriu a escotilha aos seis mil metros. Aquela altitude, a temperatura exterior seria gélida, rondando talvez os trinta graus negativos. Mas a exposição àquela
temperatura seria relativamente breve. Os óculos, as luvas e os capacetes justos à cabeça, do tipo touca de natação, que utilizavam também ajudavam a protegê-los,
tal como os fatos próprios de nylon.
Pretendiam saltar longe da água, a mais de um quilómetro ao lado do Palácio de Pedra. Enquanto desciam, ir-se-iam libertando de diversas coisas, tais como o punho
do cordão de abertura do pára-quedas e as luvas, para terem a certeza de que esses objectos não cairiam em cima do alvo como se fossem folhetos de aviso. O salto
a grande altitude iria também proporcionar-lhes o tempo necessário para manobrarem com vista a adquirirem a posição pretendida.
- Pronto - disse Janson, posicionando-se diante da escotilha aberta. - Chegou a altura de brincar ao "segue o chefe".
- Não é justo - retorquiu Katsaris. - Arranjas sempre maneira de seres o primeiro.
- Primeiro a idade, depois a beleza - bradou Janson enquanto
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descia a rampa de alumínio. Depois, saltou para o céu cor de breu.
De barriga para baixo, Janson arqueou o corpo, abrindo os braços e as pernas para refrear a descida. O vento gélido fustigava-lhe o equipamento e o vestuário especial.
Moveu vagarosamente o pulso direito até junto do rosto e espreitou através dos óculos os grandes mostradores luminosos do altímetro e do GPS. Dispunha de quarenta
segundos para alcançar a zona de aterragem.
Tinha de mudar para a posição track. Isso significava fazer do corpo uma espécie de plano de sustentação, com o perfil arqueado de uma asa de avião, de forma a adquirir
algum impulso ascensional. Durante alguns segundos, Janson acelerou, com a cabeça em baixo e os membros ligeiramente esticados. Depois, dobrou um pouco os braços
e a cintura, ao mesmo tempo que projectava os ombros para a frente, como quem se prepara para fazer uma vénia. Por fim, puxou a cabeça para trás e uniu as pernas,
esticando as pontas dos pés como um bailarino.
Passados dez segundos, passou a sentir um certo impulso ascensional, e a sua queda livre começou a abrandar. Quando se atinge o track máximo, é possível a pessoa
deslocar-se tão rapidamente no sentido horizontal como no vertical, de forma que a cada metro de descida corresponde aproximadamente um metro de progressão em frente.
Pelo menos em teoria.
No caso concreto, ele era um comando carregado de equipamento que, por baixo do fato de voo, trazia acoplados ao seu traje de combate vinte quilos de material. No
caso concreto, ele era um homem de quarenta e nove anos cujas articulações começavam a ficar rígidas em contacto com a temperatura negativa do ar que penetrava através
do fato de voo. Um track máximo exigia uma excelente forma física, e não era muito claro quanto tempo mais os músculos do seu corpo iriam aguentar o esforço necessário.
Uma vibração no pulso: o alarme do altímetro. O aviso de que estava a chegar àquele nível de altitude abaixo do qual a única certeza que havia era a da morte no
impacte com o solo. Os manuais referiam-se-lhe de uma forma menos dramática: chamavam-lhe "a altitude mínima para abertura do pára-quedas".
Assumiu uma posição vertical, estendeu a mão para o punho do cordão e puxou. Seguiu-se uma breve trepidação quando o pára-quedas se abriu no ar e os cordões que
o prendiam se esticaram. Janson sentiu a habitual sacudidela, aquela sensação de ser agarrado pelos ombros e obrigado a sentar-se.
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Largou o punho do cordão de abertura e espreitou para cima para se certificar de que o velame de nylon preto se desfraldara completamente. Foi-lhe difícil distinguir-lhe
os contornos na escuridão da noite, não obstante se encontrarem apenas cinco metros acima dele.
Sentiu-se entretanto arrastado de lado por uma forte rajada de vento, e o indicador do GPS revelou que se desviara do rumo.
Puxou então a guia do lado direito. O efeito desse puxão foi quase instantâneo: viu-se projectado para fora do centro do velame e a baloiçar desvairadamente. Por
sua vez, o altímetro indicava-lhe que a velocidade de descida aumentara consideravelmente, o que não era bom. Encontrava-se mais perto do solo do que devia. Largou
novamente as guias, deixando que o velame se abrisse a toda a largura dos seus vinte e quatro metros quadrados e maximizasse o efeito de suspensão vertical. Por
fim, descobriu que conseguia descer com mais suavidade se contornasse aos ss a direcção dominante do vento. Era, no entanto, um procedimento que requeria enorme
concentração.
Tinha o pulso acelerado. No meio do nevoeiro, como se fossem mastros de um navio fantasma, começavam a aflorar lá em baixo umas muralhas cujas paredes de pedra branca
reflectiam a pouca luz que conseguia infiltrar-se através da espessa camada de nuvens. Desembaraçou-se rapidamente das luvas e do capacete de voo.
Rezou para que não fosse necessária nenhuma viragem rápida para conseguir posicionar-se no centro do pátio, pois qualquer viragem brusca aceleraria perigosamente
o ritmo da descida. Não havia margem para erro; as altas muralhas do complexo tornavam impossível qualquer aproximação baixa ao objectivo.
Apercebeu-se subitamente de quanto o ar estava agora húmido e morno: era como se tivesse saído bruscamente de uma arca frigorífica para um banho de vapor. Deslizou
em direcção ao centro do pátio interior do palácio. Assim que ficara com as mãos livres desligara os instrumentos, não fosse a luminosidade que emitiam denunciar
a sua presença.
As botas estavam agora a cinco metros do solo. Fez descer ambos os amarradores até à altura dos ombros, depois puxou-os mais para baixo, prendendo-os entre as coxas,
travando o movimento para a frente. Ao descer os últimos poucos metros, retesou os músculos das pernas e rodou o corpo na direcção da queda, dobrando ligeiramente
os joelhos.
Mantendo as pernas flectidas, aterrou sobre as solas de borracha macia das botas. Sem ruído, rodou sobre os bicos dos pés, preparando-se para a queda. Mas não caiu.
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Ficou de pé. No pátio. Conseguira.
Olhou em redor, e na noite sem estrelas apenas conseguiu distinguir os contornos de um enorme pátio deserto. Uma grande estrutura branca - a velha fonte, segundo
as cópias das plantas - avolumava-se a poucos metros de distância. Janson encontrava-se praticamente no centro de um espaço do tamanho de meio campo de futebol.
Estava tudo assustadoramente silencioso. Não havia qualquer sinal de movimento, nenhum indício de que a sua chegada tivesse sido observada.
Desenganchou a mochila, despiu o fato de voo e removeu o velame do pára-quedas do chão empedrado do pátio.
Um ligeiro roçagar, o barulho dos diversos alvéolos de um velame de nylon a dobrarem-se suavemente por cima da sua cabeça. Janson olhou para cima. Era Katsaris,
que descia lentamente, como que flutuando. Utilizou completamente a superfície do velame para atenuar o impacte e aterrou, rebolando numa cambalhota
silenciosa.
Seguidamente, levantou-se e dirigiu-se para junto de Janson.
Eram dois agora. Dois operacionais altamente experientes, altamente especializados.
Dois contra um batalhão inteiro de guerrilheiros armados.
No entanto, era um começo.
CAPÍTULO TRÊS
JANSON ACTIVOU O SISTEMA de comunicação e disse "tsc' para o microfone de filamento que trazia junto da boca. Protocolo militar.
Katsaris procedeu tal como ele: despiu silenciosamente o fato de voo, depois enrolou o velame do pára-quedas num rolo bem apertado.
A seguir, depositaram ambos os pára-quedas e os fatos de voo na bacia da fonte de pedra, no centro do pátio.
Janson desprendeu do seu traje de combate os óculos de visão nocturna e levou-os aos olhos; o pátio ficou subitamente banhado numa branda luz esverdeada. Ele e Katsaris
posicionaram-se costas com costas, cada um deles esquadrinhando com os óculos de visão nocturna os respectivos quadrantes.
Na ala norte do pátio viam-se três manchas fosforescentes cor-de-laranja, duas das quais inclinadas uma para a outra. E de súbito um
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pequeno clarão branco emergiu de entre essas duas formas espectrais. Janson desligou os óculos antes de os baixar para observar a cena a olho nu. Mesmo a vinte metros
de distância, conseguia ver distintamente a chama bruxuleante. Alguém acendera um fósforo, e dois dos guardas acendiam cigarros.
Katsaris murmurou uma informação para o seu microfone de filamento, informação essa que ecoou ampliada no auricular de Janson:
- Uma sentinela. No canto sudoeste. Sentada. Janson murmurou, por sua vez:
- Três sentinelas. Varandim norte.
As fotocópias das plantas indicavam claramente que a masmorra se situava por baixo da fachada norte do pátio. Janson dirigiu-se para a esquerda ao longo da muralha,
depois prosseguiu por baixo da saliência do varandim ocidental, meio curvado sob o parapeito.
Encontrava-se agora a cinco metros da sentinela mais próxima e conseguia distinguir já os rostos dos homens: rostos largos de jovens camponeses, rudes e despreocupados.
"Amadores", pensou para consigo, embora não fosse um pensamento totalmente tranquilizador. A FKL era demasiado bem organizada para confiar assim tão valioso tesouro
à protecção de tais homens. Eles constituíam apenas uma primeira linha de defesa.
E onde estava Katsaris? Janson varreu o pátio com os olhos, vinte metros de escuridão, mas não viu ninguém.
Fez um leve "tsc" para o microfone de filamento, procurando modificar o som de forma a confundir-se com os ruídos nocturnos de um insecto ou de uma ave. Ouviu no
auricular um breve "tsc" de resposta. Katsaris encontrava-se no seu posto, pronto para agir.
Seria seguro eliminar aqueles homens? Não seriam eles próprios um chamariz? Como pássaros pousados num fio de electricidade? Não haveria por ali um fio qualquer?
Janson olhou pelos óculos de visão nocturna, apontando-os para a grade de ferro situada por detrás dos camponeses que fumavam. Nada.
Nada, não, estava ali mais alguma coisa. Um ponto cor-de-laranja, demasiado pequeno para corresponder a um corpo. com toda a probabilidade, seria uma mão pertencente
a um corpo escondido por detrás de um muro de pedra.
Janson retirou de um bolso da perna das calças um tubo de alumínio escurecido de trinta e cinco centímetros de comprimento por dez de diâmetro. Estava forrado por
dentro com uma fina rede de aço que
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impedia o animal que se encontrava lá dentro de fazer qualquer ruído. Uma atmosfera de oxigénio noventa por cento puro impedira a sua asfixia durante a operação.
Chegara agora a altura do ruído e das manobras de diversão. Desenroscou a tampa de uma das extremidades.
Tirou o roedor de dentro do tubo pela longa cauda e com um gesto largo atirou-o na direcção do varandim. O bicho aterrou como se durante o seu passeio nocturno tivesse
perdido o equilíbrio e se tivesse despenhado de cima do telhado de terracota.
Tinha agora o pêlo negro e lustroso todo eriçado e soltava guinchos semelhantes aos de um porco. As sentinelas tinham um visitante e levaram escassos segundos a
descobrir o que era. Uma cabeça pequena, um focinho largo, uma cauda escamosa e sem pêlo. Trinta centímetros de comprimento. Um quilo de peso. Uma ratazana-da-índia.
Ou, mais exactamente, a bete noire de Ahmad Tabari.
Os guardas kagamas romperam numa troca frenética de exclamações em voz baixa. Sempre que o animal corria para uma possível entrada, eles procuravam impedi-lo. Se
o Bem-Amado, que se encontrava a dormir na suite do governador, encontrasse aquele mensageiro da morte nos seus aposentos, ninguém sabia como é que podia reagir.
A preocupação generalizada fizera que os outros, a segunda equipa, aparecessem, tal como Janson calculara. Quantos eram eles? Três? Não, quatro.
Janson retirou do tubo a segunda ratazana. Um arremesso a meia altura. Agitando no ar as suas pequenas garras afiadas, a ratazana foi aterrar na cabeça de um dos
camponeses de sentinela, que soltou um grito lancinante.
Janson observou a confusão que se instalara no varandim norte. O seu objectivo era o espaço que ficava por baixo desse varandim, para o qual não havia nenhum caminho
coberto, já que os passadiços de pedra que se projectavam das longas alas oriental e ocidental do complexo terminavam cerca de cinco metros antes da muralha oposta.
Um homem mais idoso surgiu no varandim, a cerca de dez metros do local onde Janson se encontrava e dois metros acima, ordenando silêncio. Ao observar o homem idoso
com mais atenção, a ansiedade de Janson aumentou. O homem viera pedir silêncio, mas o seu rosto revelava que essa não era a sua única, nem sequer a principal, preocupação.
Só uma suspeita mais forte podia explicar aquele seu olhar penetrante e perscrutador que ora fitava as sentinelas em pânico, ora se fixava lá em baixo, no pátio
sombrio.
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O homem idoso era o primeiro a derrubar. Mas teria passado já o tempo suficiente? Por essa altura, a notícia de todo aquele tumulto já se devia ter espalhado entre
todos aqueles que se encontravam de serviço. Mas era fundamental que se tivesse espalhado também a razão do tumulto, ou seja, o aparecimento súbito das odiadas ratazanas.
Isto porque outros ruídos iriam suceder-se. Era inevitável. Os ruídos para os quais havia uma explicação eram inócuos. Os ruídos que careciam de explicação fariam
despoletar uma rápida investigação; e isso podia ser letal.
Janson tirou de um dos bolsos do seu fato de combate um blo-jector, um tubo de alumínio anodizado com cerca de cinquenta centímetros de comprimento. Depois, murmurou
qualquer coisa ao microfone. Encarregar-se-ia do homem idoso e do guarda que se encontrava à sua direita; Katsaris devia apontar aos restantes. Janson levou então
o tubo
aos lábios, olhando sobre a sua extremidade. O dardo consistia numa agulha fina e numa cápsula dissimuladas dentro da réplica de uma vespa. Soprou com força no bocal,
depois inseriu rapidamente outro dardo no tubo e voltou a soprar. Feito isto, voltou a agachar-se.
O homem idoso levou a mão ao pescoço, arrancou o dardo e observou-o à pouca luz existente. Tê-lo-ia removido antes de a cápsula ter injectado o seu conteúdo? O
objecto tinha semelhanças físicas com um grande insecto provido de ferrão. Porém, o seu peso não estaria de acordo com essa hipótese, principalmente se ainda contivesse
o líquido incapacitante, um mililitro de citrato de carfentanil. O homem mirou-o
furiosamente, após o que olhou directamente para Janson. A forma intencional como o fez revelava claramente que distinguira o vulto de Janson no canto sombrio onde
ele procurara ocultar-se.
O soldado levou a mão ao coldre do revólver que trazia à cintura, após o que tombou para fora do varandim. Janson ouviu o baque surdo do seu corpo a bater no empedrado,
dois metros mais abaixo. Duas outras sentinelas escorregaram para o chão, inconscientes.
Seguiu-se uma rápida troca de palavras entre os restantes guardas, posicionados ao fundo do varandim, para a sua esquerda. Eles sabiam que alguma coisa se passava.
Depois, à medida que os dardos faziam efeito, foram tombando pesadamente um a um.
Janson e Katsaris precipitaram-se para a zona escura situada por baixo do varandim norte, deslizando por entre os sólidos pilares que o suportavam a intervalos de
um metro. De acordo com as plantas, o alçapão circular de pedra que fechava o acesso à masmorra situava-se
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a meio do muro norte. Janson apalpou o terreno às cegas, fazendo deslizar as mãos ao longo das fundações de cascalho que marcavam a intersecção entre o terreno e
o edifício.
- Encontrei-o - sussurrou Katsaris, a um ou dois metros de distância apenas.
Janson acendeu uma pequena lanterna de raios infravermelhos e pôs os óculos de visão nocturna, ajustando a modalidade de visão para infravermelhos.
Theo estava agachado diante de um grande disco de pedra. A gruta que se abria por baixo dos seus pés fora utilizada para os mais diversos fins ao longo dos anos.
A detenção de prisioneiros era a principal. Por baixo da pesada placa circular de alvenaria ficava uma passagem vertical que servia de rampa de deslizamento.
O alçapão estava provido de pegas em cada um dos lados. Janson e Theo debruçaram-se sobre ele e ergueram-no num movimento coordenado. O alçapão tinha uma espessura
de vinte centímetros e fora feito para ser erguido por quatro homens fortes, e não por dois. Mas era possível: fazendo apelo a todas as forças, conseguiram levantá-lo
e colocá-lo ao lado no chão.
Janson espreitou pelo buraco que tinham descerrado. Logo abaixo do tampo, havia uma grade e, através dela, ouvia-se um tumulto de vozes vindo lá de baixo, daquele
espaço subterrâneo.
Sabiam que a rampa atravessava vários metros de pedra num ângulo de quarenta e cinco graus na maior parte do trajecto, depois curvava, estreitava e continuava a
descer, mas já num ângulo mais suave.
Katsaris passou a Janson a câmara de fibra óptica. O seu cabo tinha a grossura de um fio de telefone e uma ponta pouco mais grossa do que uma cabeça de fósforo.
Por dentro do cabo, corria um fio de vidro de duas camadas que transmitia imagens para um visor colocado na outra extremidade que media doze por sete centímetros.
Janson ia olhando para o visor enquanto fazia descer o cabo através da grade. O visor surgiu inundado de tons cinzentos, que se iam tornando, contudo, cada vez mais
claros. De súbito, encheu-se com a imagem tridimensional de um compartimento parcamente iluminado. Janson puxou o cabo de forma que ficasse apenas alguns milímetros
de fora da borda da rampa, a fim de não ser detectado com facilidade. Ao cabo de cinco segundos, o programa de focagem automática do aparelho começou a reproduzir
imagens com o máximo de brilho e acuidade.
- Quantos? - perguntou Katsaris.
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Janson premiu um botão que fazia rodar a cabeça da câmara antes de responder.
- Dezassete guardas. Armados até aos dentes. Mas que interessa o número?
- Que tal atirarmos já uma granada de fragmentação lá para baixo?
- Basta um dos guardas ficar vivo e o prisioneiro é um homem morto - retorquiu Janson. Por entre uma nuvem azulada de fumo de cigarro, verificou que os homens estavam
sentados à volta de duas mesas a jogar às cartas. Manobrando a ponta do cordão de fibra óptica, mudou o campo de visão, de modo a observar a escada, gasta pelo tempo,
existente ao fundo do compartimento.
- Escada - disse ele. - Patamar. Condutas. Rebordo. - A partir do patamar do meio, projectava-se uma plataforma de betão.
- Não conseguimos chegar ali sem sermos vistos.
- Não necessariamente. O período de exposição a descoberto desde o patamar até ao rebordo de betão é curto, o compartimento está cheio de fumo de tabaco e todos
eles estão concentrados no jogo de cartas.
- E quem é que nos garante que não está um guarda lá dentro da masmorra na prisão?
- Qualquer contacto próximo com Peter Novak seria perigoso. A FKL sabe isso. Mantêm-no vigiado, mas vão conservá-lo isolado de qualquer dos rebeldes kagamas.
- De que é que eles têm medo? De que ele apunhale algum guarda com um botão de punho?
- É das palavras dele que têm medo. Num país pobre, as palavras de um plutocrata são perigosas, ferramentas de fuga, mais poderosas do que qualquer serrote. Se tu
fosses um rebelde kagama e ele te dissesse que te tornava a ti e à tua família mais ricos do que alguma vez sonharam, tu ias pensar nisso seriamente; faz parte da
natureza humana. Por conseguinte, eles guardam-no, sim, mas também o mantêm isolado. É o único procedimento seguro.
Remover a grade requereu de ambos um grande esforço, esforço esse duplicado pela necessidade imperiosa de ser removida sem o mínimo ruído. Quando Janson finalmente
se separou de Katsaris, os seus músculos e as suas articulações protestavam furiosamente. Um pensamento nada dignificante chegou a atravessar-lhe a mente: talvez
pudesse ter ficado ele junto da rampa e deixar que fosse Katsaris a executar o passo seguinte.
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Janson começou a trepar pela parede de cascalho em direcção à pequena fresta rectangular que permitia o acesso ao bordo interior do varandim. Esse espaço rectangular,
um de entre vários disseminados ao longo do perfil do telhado, servia para escoar a água, impedindo que se acumulasse no piso térreo aquando das fortes chuvadas
da estação das monções. Contorcendo-se, lá ultrapassou o ponto de drenagem, que não teria mais de quarenta e cinco centímetros de largura, e desembocou num corredor
de serviço contíguo à sala principal da ala norte. Consultou rapidamente a planta: seguir o corredor até ao fundo, virar à esquerda, andar cerca de seis metros.
A porta da masmorra ficava ao fundo do corredor. Discreta. Pedra revestida a madeira. Duas cadeiras de cada lado, vazias. Os homens, certamente atraídos pelo burburinho
anterior, estariam ainda inconscientes debaixo do varandim. O mesmo se aplicava à dupla de guardas de reforço, que deviam desfrutar de uma visão mais desafogada
do corredor.
A pulsação de Janson acelerou quando se imobilizou diante da porta. Pegou numa pequena chave de tensão pouco maior do que um fósforo e introduziu a sua extremidade
curva na fechadura, empurrando ao mesmo tempo a outra extremidade de forma a aumentar quer o poder de torção, quer a sua própria sensibilidade táctil. Um a um, foi
afastando cada volteador de alinhamento de fecho. Ao cabo de dez segundos, todos os volteadores tinham sido afastados. Inseriu então um segundo instrumento, uma
gazua de liga de aço e carbono, fina mas indeformável, e aplicou-lhe um movimento de torção no sentido dos ponteiros do relógio.
Sustendo a respiração, manteve ambas as ferramentas introduzidas na fechadura, até que ouviu o trinco soltar-se. Puxou então a porta para si uns centímetros. Esta
rodou facilmente sobre as dobradiças bem oleadas. Aquelas dobradiças tinham mesmo de ser bem oleadas: ao abrir a porta, verificou que a mesma devia ter uns quarenta
e cinco centímetros de espessura.
Janson viu que o caminho à sua frente estava livre. Transpôs a porta e, utilizando fita isoladora, prendeu o trinco de latão, fazendo-o recolher dentro da porta
para que não pudesse fechar-se. Depois, principiou a descer os degraus de pedra. Após alguns passos no patamar, deparou com uma grade de barras de aço com dobradiças.
A grade, do tipo ponte levadiça, sucumbiu às suas finas ferramentas sem dificuldade. Contudo, ao invés da outra porta, estava longe de ser silenciosa. Ao abrir,
fez um ruído perfeitamente audível de metal
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a roçar na pedra, um ruído que os guardas ali reunidos não podiam deixar de ter ouvido.
Surpreendentemente, não houve qualquer reacção da parte deles. Porquê?
Janson ouviu a palavra "Theyilai"! O seu anurano de dicionário de bolso chegava para entender o significado daquela palavra: "chá". Os guardas estavam à espera de
alguém, alguém que devia chegar com um samovar de chá para eles.
Agora, era tudo uma questão de tempo. Janson sabia que Katsaris aguardava as suas ordens com uma granada silenciosa de térmite na mão. Ambos estavam armados com
uma MP5K modificada, uma metralhadora de cano curto e munida de silenciador.
Janson desceu mais seis degraus, após o que se içou sem ruído para cima do rebordo de betão, de cerca de um metro e vinte de profundidade. Até ali, tudo correra
bem. Os soldados estavam concentrados nas cartas; ninguém estava a olhar para o tecto.
Espalmou-se de encontro à parede e foi avançando centímetro a centímetro; os soldados que se encontravam à ponta da mesa maior conseguiriam vê-lo se olhassem para
cima, para o rebordo obscurecido.
- Veda theyilai? - exclamou um soldado jovem num tom levemente irritado, ao mesmo tempo que olhava à sua volta. Teria notado alguma coisa?
Passado um instante, o soldado levantou os olhos novamente, perscrutando a sombra do rebordo. As suas mãos desceram para a arma que tinha no colo.
Janson sentiu o cabelo da nuca a eriçar-se. Fora descoberto.
- Agora! - sussurrou para o bocal do microfone, ao mesmo tempo que se projectava de rosto para baixo para a superfície do rebordo de betão no seu ponto mais distante
e punha os óculos polarizados. De seguida, destravou a arma.
O jovem soldado pôs-se subitamente de pé, gritando qualquer coisa em língua kagama. Disparou a arma para o local onde avistara Janson, e a bala arrancou um pedaço
de betão a escassos centímetros da sua cabeça.
De repente, o mal iluminado compartimento encheu-se de uma claridade ofuscante. A granada de térmite de combustão lenta acabara de chegar: um pequeno sol interior
que cegava mesmo aqueles que tentavam desviar dele o olhar.
Através dos seus óculos quase negros, Janson observou a confusão
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e a desordem que se instalaram entre os soldados, uns protegendo os olhos com os braços e as mãos, outros disparando às cegas para o tecto. Ripostou ao fogo, esvaziando
um carregador de trinta balas e substituindo-o por outro logo de seguida.
Katsaris surgia agora também, descendo a escada de roldão, com os óculos polarizados postos e nas mãos a MP5K, que com um zumbido abafado ia vomitando balas sobre
os guerrilheiros de outro ângulo. Em poucos segundos, tudo estava terminado.
Quando a obscuridade e as sombras regressaram, Janson e Katsaris tiraram os óculos. A lâmpada nua de quarenta watts que pendia do tecto continuava intacta, reparou
Janson. A mesma sorte não tinham tido os guardas.
A gruta transformara-se num matadouro repleto de cheiro a sangue. Janson sentiu uma impressão ardente e acidulada no fundo da garganta. Teria perdido o combate?
Sentia náuseas, mas sabia que não ia vomitar. Não diante de Theo, o seu protegido, que tanto estimava, não. No meio de uma missão, não.
Protestando contra aquele momento de fraqueza, uma voz friamente realista ecoava-lhe na cabeça: as suas vítimas eram soldados. Pertenciam a um movimento terrorista
que raptara um homem internacionalmente célebre e jurara executá-lo. Ao deterem em seu poder um civil injustamente feito prisioneiro, tinham-se colocado a eles próprios
na linha de fogo. Haviam jurado entregar as suas vidas à causa de Ahmad Tabari, el Califa. Janson limitara-se a fazê-los cumprir essa jura.
- Vamos - disse Janson a Katsaris. As justificações não deixavam de ter a sua legitimidade, mas nem por isso tornavam aquela matança mais tolerável.
O sentimento de repugnância que sentia era a única coisa que lhe servia de consolação. Contemplar toda aquela violência com indiferença era do domínio dos terroristas,
dos extremistas, dos fanáticos, uma raça que ele passara a vida a combater, uma raça a que ele receara começar a pertencer, de certo modo. Não obstante as acções
que levava a cabo, o facto de não ser capaz de as contemplar sem um sentimento de horror revelava que ainda não se convertera num monstro.
Saiu rapidamente do rebordo de betão e reuniu-se a Katsaris junto da porta blindada da masmorra.
- Eu é que faço as honras da casa - disse Katsaris. Tinha na mão um grande aro com chaves de aspecto muito antigo que retirara a um dos guardas mortos.
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Três chaves. Três trincos. A porta abriu-se e entraram ambos num espaço estreito e escuro onde era difícil distinguir fosse o que fosse. Katsaris trocou então a
função da sua lanterna de infravermelhos para luz normal. O potente foco rasgou as trevas.
Fiacaram à escuta em silêncio.
Algures, no meio da escuridão, ouvia-se alguém a respirar.
A passagem estreita alargava-se mais adiante e verificaram que a masmorra consistia numa fila de barras de ferro incrivelmente grossas fixadas a um escasso metro
e vinte das paredes de pedra. De dois metros e meio em dois metros e meio, uma divisória de pedra dividia a longa fila de celas. Não havia janelas nem iluminação,
não obstante haver algumas lâmpadas de querosene nas divisórias.
A zona para lá do gradeamento estava imersa em escuridão. Katsaris apontou a luz da lanterna para os cantos das celas, até que o avistaram.
Um homem. Um homem que não parecia satisfeito de os ver.
Espalmara-se de encontro à parede da cela, tremendo de medo. Quando o feixe de luz o iluminou, atirou-se para o chão, agachando-se a um canto, na esperança de passar
despercebido.
- Peter Novak? - perguntou Janson em tom afável. O homem escondeu o rosto com os braços.
A luz da lanterna de Katsaris pousou no homem, que recuava, e Janson reparou na sua camisa de caxemira, incongruentemente elegante, de colarinho rígido, não por
virtude da goma de uma qualquer lavandaria francesa, mas devido à sujidade e ao sangue seco.
Janson proferiu palavras que apenas uma vez, em tempos, imaginara poder pronunciar um dia.
- Mr. Novak, eu sou Paul Janson. O senhor salvou-me a vida há tempos. Estou aqui para lhe retribuir esse favor.
O homem permaneceu imóvel durante uns segundos, mas depois levantou o rosto; Katsaris apressou-se a redireccionar a luz da lanterna para não o ofuscar.
Foi Janson quem acabou por ficar ofuscado.
Ali, a um metro de distância dele, estava um homem cujo rosto já fora publicado em inúmeros jornais e revistas: a farta cabeleira lisa, ainda mais preta que grisalha;
as maçãs do rosto salientes, quase asiáticas. Peter Novak, um filantropo como o Mundo nunca conhecera outro.
A própria familiaridade do seu rosto fazia que o seu estado parecesse ainda mais chocante. Tinha umas olheiras fundas e escuras; o seu olhar, outrora determinado,
apresentava-se cheio de terror. Quando se levantou
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do chão a tremer, pequenas convulsões percorreram-lhe o corpo. Aquele aspecto era familiar a Janson: era o aspecto de um homem que já perdera toda a esperança. E
era-lhe familiar porque também o tivera em tempos. Baaqlina, uma poeirenta cidade do Líbano que estava destinada a ser o local da sua morte; pelo menos, nunca estivera
tão certo de nada na vida. No final, claro está, saíra em liberdade graças à intervenção da Fundação Liberdade.
- Viemos buscá-lo - disse Janson a Novak, enquanto Katsaris escolhia do aro a chave certa para a grade da cela. A porta abriu-se. Temos de partir imediatamente.
- Não; há mais uma pessoa! - sussurrou Peter Novak. - Também prisioneira. - Fez um gesto na direcção do fundo do corredor. Uma americana. Não saio daqui sem ela.
- Mas isso é impossível - interrompeu Katsaris.
- Se a deixam aqui, eles liquidam-na imediatamente! - Os olhos do filantropo, que começaram por implorar, agora exigiam. - Não posso ficar com esse peso na consciência.
- O inglês dele era cuidado, preciso, apenas com uma ligeira inflexão húngara. - E também não devia ficar a pesar na vossa.
Janson leu a determinação no olhar de Novak.
- E se não pudermos ...?
- Nesse caso, vão ter de me deixar ficar também. Janson fitou-o, incrédulo.
Novak fez uma careta e prosseguiu:
- Duvido de que os vossos planos de resgate previssem a evacuação de um refém contra a sua própria vontade.
Era óbvio que o raciocínio dele continuava a funcionar a uma velocidade estonteante. Jogara imediatamente a cartada táctica, dando a entender a Janson que não era
possível continuarem aquela discussão.
Um minuto depois, Katsaris procedia à abertura de outra porta de ferro sob o olhar de Novak e de Janson. A porta abriu-se, rangendo.
A luz da lanterna iluminou uma cabeleira baça e emaranhada que em tempos fora loura.
- Não me façam mal, por favor - choramingou a mulher, recuando na cela.
- Nós vamos apenas levá-la para casa - disse Theo, apontando o feixe de luz de forma a poderem avaliar a sua condição física.
Era Donna Hedderman, a estudante de Antropologia; Janson reconheceu-a das fotografias que vira nos jornais.
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- Para quem é que vocês trabalham? - perguntou ela com voz trémula.
- Trabalhamos para Mr. Novak - respondeu Janson, olhando-o de soslaio.
Novak confirmou com um aceno de cabeça.
- Sim. Eles são nossos amigos.
Ela pôs-se de pé e encaminhou-se para a porta da cela. Tinha os tornozelos muito inchados, o que lhe tornava o andar inseguro. Janson trocou umas palavras com Katsaris
em surdina.
- Lâmpadas de querosene - disse, apontando para elas. - Antes de isto ter electricidade, foi essa certamente a primeira fonte de iluminação. A planta revela um depósito
situado aproximadamente a duzentos metros para o interior do muro de retenção noroeste. Parece evidente agora qual era a sua função.
Conduziram Peter Novak e Donna Hedderman ao longo do húmido corredor subterrâneo que levava ao velho depósito de querosene. Hedderman caminhava apoiada no braço
de Janson.
O depósito, obviamente abandonado há muito tempo, tinha uma porta de ferro com rebordos de chumbo para a manter estanque.
- As dobradiças já estão bastante enferrujadas - notou Janson.
- Só é preciso dar-lhes uma ajuda. - Tomou balanço e correu para a porta, aplicando-lhe um forte pontapé. A porta cedeu, tombando no meio de uma nuvem de poeira
e metal oxidado.
Janson tossiu e disse:
- Prepara o teu semtex.
A câmara forrada a cobre ainda emanava um cheiro a óleo.
Katsaris moldou a pasta cor de marfim, do tamanho de uma bola de pastilha elástica, em redor do batoque enferrujado do depósito. Depois, introduziu nessa pasta dois
fios prateados ligados a uma pequena bateria redonda de lítio.
Janson preparou igualmente a sua própria bola de semtex, após o que demorou uns instantes à procura do sítio ideal para a fazer explodir. Até aí, tinham estado protegidos
pelo isolamento da masmorra: as várias camadas de pedra isolavam-na do resto da ala norte. Era certo que ocorrera ali um violento tumulto, mas nenhum ruído devia
ter sido ouvido no exterior por aqueles que não tinham sido vítimas. Já quanto à fuga, não havia forma de a fazer sem ruído.
Janson acabou por fixar os seus trinta gramas de semtex a um canto da parede mais afastada, no local onde confluía com o tecto abaulado
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do depósito forrado a cobre, cerca de um metro acima dos trinta gramas colocados por Katsaris.
Theo e Janson saíram do depósito. Reuniram-se aos reféns no local onde o corredor fazia uma curva e accionaram ao mesmo tempo os controles remotos que activavam
as baterias.
A explosão foi ensurdecedora. As ondas de choque fizeram vibrar os olhos. Fumo branco infiltrou-se dentro do túnel, trazendo com ele o cheiro familiar do plástico.
Mas alguma coisa mais também: o odor salgado da brisa marítima. Tinham agora uma saída aberta para o exterior do complexo.
O impacte da explosão derrubara uma parte da muralha de pedra; a pequena lanterna de bolso de Theo confirmou o que a húmida brisa marítima prometera. A abertura
era suficientemente larga para lhes permitir treparem para o exterior.
Poucos segundos volvidos, já os quatro se encontravam da parte de fora da muralha. O céu nocturno estava mais claro do que antes; a cobertura de nuvens começara
a dissipar-se. Viam-se estrelas, bem como um pedaço da Lua.
Janson manteve-se encostado à muralha de pedra, tal como os outros. A zona envolvente da muralha do complexo era mais segura em determinados aspectos do que a zona
mais afastada. Janson notara que as fortificações existentes junto da costa se encontravam repletas de homens armados, alguns deles guarnecendo peças de artilharia
pesada. Quanto mais longe, mais expostos ficariam.
- Consegue correr? - perguntou Janson a Novak.
- Farei o meu melhor - respondeu o milionário.
Janson colocou uma mão no braço de Donna Hedderman e apontou para a saliência rochosa, a cinquenta metros dali, onde o promontório descia a pique sobre a praia.
- É para ali que vamos.
Katsaris e Novak correram para a tal saliência rochosa; Janson, retardado pela dificuldade da americana em respirar, seguiu no encalço deles.
- Procura um sítio bom para amarrar! - bradou Janson para Katsaris.
Katsaris deu duas voltas de corda em torno de um bico de rocha e prendeu-as bem com um nó forte. Se uma das voltas fosse cortada, quer pela fricção contra o rochedo
rugoso, quer por alguma bala transviada, a outra ampará-los-ia.
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Janson amarrou Novak a um arnês de montanhismo. Aquilo não ia ser uma descida em rappel controlado; seria o equipamento a fazer todo o trabalho, não o homem. Um
descensor em forma de S serviria de travão do rappel. Era uma peça de aço polido com dois olhais, um grande, outro pequeno, um em cada extremidade de uma haste central.
Janson passou uma ponta da corda de rappel pelo olhai mais largo e amarrou-a à volta da haste; de seguida, prendeu o olhai mais estreito ao arnês de Peter Novak
por meio de um mosquetão.
De um torreão de esquina que ficava num plano superior às ameias das fortificações, um guarda disparou uma longa rajada de metralhadora na direcção deles.
Tinham sido localizados.
Janson lançou a corda pelo rochedo abaixo.
- E agora? - perguntou Novak. - Eu não sou alpinista.
- Salte! - bradou Katsaris -Já!
- Você está louco! - gritou Novak, aterrado.
Katsaris ergueu abruptamente no ar o homem corpulento e, com o cuidado necessário para não perder ele próprio o equilíbrio, fê-lo balançar para fora da parede rochosa.
Janson ouviu o ruído suave da corda a deslizar controladamente pelo travão em forma de S, confirmando que a corda conduziria Novak até lá abaixo, às rochas batidas
pelo mar, a uma velocidade controlada.
Enquanto Theo fazia mais uma laçada dupla em torno de outra saliência, uma nova rajada de metralhadora levantou uma chuva dolorosa de pequenos fragmentos de rocha.
- Equipa-te para descer! - ordenou Janson a Katsaris. Entretanto, amarrou a mulher àquele que devia ser o seu próprio arnês. Um empurrão não muito gentil e foi a
vez de ela iniciar a descida.
Assim, Janson ficara sem arnês nem qualquer outro equipamento para o rappel. Então, voltando-se de frente para a âncora que Katsaris improvisara, cavalgou a corda
e enlaçou-a em S à volta da parte superior do corpo. Dessa forma, agarrando-a no cimo com as palmas das mãos, poderia ora afastá-la das costas para ganhar velocidade,
ora enrolá-la à volta da anca para travar a descida.
Várias rajadas de balas vieram fustigar o rochedo como uma saraivada de chumbo, produzindo um ruído semelhante ao zunido de uma serra. A rocha como que explodiu
a escassos centímetros dos seus pés, e alguns fragmentos atingiram-no na face.
Janson e Katsaris aliviaram a tensão da corda. Dobrados pela cintura,
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mantiveram as pernas numa posição perpendicular à superfície vertical, "caminhando" sobre ela sempre que possível. A Janson, a descida naquelas condições provocava-lhe
dores excruciantes, porque a corda ia-lhe rasgando a carne a pouco e pouco. Só havia uma forma de atenuar aquela pressão, que era forçar ainda mais os músculos dos
braços, já bastante desgastados. Tinha que recordar constantemente a si próprio que lá em baixo, na base do rochedo, os outros membros da equipa estariam à espera
deles no bote insuflável ultraleve que tinham transportado no BA609.
Precisamente quando os seus músculos já haviam atingido o estado de depleção total, sentiu um par de mãos estendidas para o agarrar. Ao ocupar o seu assento na embarcação
de fundo chato, olhou à sua volta. Eram seis ao todo. Novak. Hedderman. Katsaris. Andressen. Honwana. Hennessy estaria a pilotar o BA609, fazendo o segundo turno.
O motor zuniu, e o bote insuflável começou a afastar-se dos rochedos. Navegou junto à costa para sul por cerca de oitocentos metros, após o que se fez ao largo por
entre as águas envoltas em neblina. A fraca visibilidade tornava difícil alguém avistar o bote, além de que tinham escolhido um rumo que os levaria para fora do
raio de acção da artilharia fixa dos rebeldes.
- Todos de regresso - exclamou Andressen pelo seu rádio para informar Hennessy. - E mais um hóspede.
Umas quantas balas agitaram a água a alguma distância deles. Só depois de alcançarem o mar alto, a cerca de um quilómetro da costa, é que deixaram de ouvir sinais
dos rebeldes.
Peter Novak ia voltado para a proa do bote. Pela expressão firme do seu rosto, Janson apercebeu-se de que ele começava a reconquistar o sentimento da sua identidade,
da sua importância como homem.
Os seis ocupantes do barco começaram a ouvir o trrrrr dos rotores antes mesmo de avistarem a aeronave. Mas logo ela surgiu diante deles, pousada num heliporto flutuante
de borracha negra auto-insuflável. A corrente de ar descendente provocada pelos rotores fazia que o mar se agitasse ao seu redor.
Rompia a alvorada num céu que parecia agora quase limpo.
Hennessy abriu a sua janela.
- Santa Maria, Mãe de Deus, Janson. Esta extracção era apenas de uma pessoa. Não podemos meter a bordo mais cinquenta quilos de peso porque o combustível que temos
não daria para alcançarmos a zona de aterragem. É o que faz trabalhar com tolerâncias mínimas.
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- Compreendo.
- Naturalmente. O plano foi feito por ti. Portanto, dá-me uma zona de aterragem alternativa.
Janson abanou a cabeça.
- Não há nenhum local seguro mais perto.
- Então, o que é que recomendas que se faça agora? - perguntou o irlandês.
- Eu fico por aqui - respondeu Janson. - O bote tem combustível suficiente para me levar até ao Sri Lanka - Hennessy parecia incrédulo, mas Janson acrescentou prontamente:
- Reduzindo a velocidade e aproveitando as correntes ao máximo.
- O Sri Lanka não é um lugar seguro. Tu próprio o disseste.
- Não era seguro para Novak, foi isso que eu disse. Mas para mim não há problema. Já tinha imaginado planos de emergência para a eventualidade de vir a ocorrer uma
situação destas. - Só em parte estava a fazer bluff. O plano que expusera podia funcionar, mas aquela situação ele não previra.
- Mr. Janson? - interpelou o húngaro num tom de voz agudo e límpido. - O senhor é um homem muito corajoso. Vergou-me, e eu não sou um homem que se vergue facilmente
- Apertou o braço de Janson. - Nunca vou esquecer o que fez por mim.
Janson baixou respeitosamente a cabeça.
Katsaris ajudou Novak e Donna Hedderman a entrarem no helicóptero, depois voltou-se para Janson:
- Eu é que fico. Tu vais, tu fazes mais falta. Controle da missão e essas coisas, entendes? Para o caso de alguma coisa correr mal.
- Nada pode correr mal depois disto - retorquiu Janson.
- Quase duzentos quilómetros em mar aberto num bote insuflável não é brincadeira nenhuma - comentou Katsaris em tom sério.
- A decisão é minha, o problema é meu, a loucura é minha. Nenhum membro da minha equipa vai correr um risco que me compete a mim correr. - Era um ponto de honra,
algo que passava por afirmação de masculinidade ou uma questão de orgulho no mundo sombrio das operações secretas.
Katsaris engoliu em seco e fez o que Janson lhe ordenava.
Janson reduziu as rotações do motor do bote: a gestão eficiente do combustível seria mais conseguida se reduzisse a velocidade. Em seguida, acertou o rumo, consultando
a bússola no mostrador do seu relógio.
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Demoraria três ou quatro horas a alcançar o Sri Lanka. Aí, tinha um contacto que o meteria num camião para o Aeroporto de Colombo.
Observou o pequeno helicóptero turquesa a elevar-se nos ares e sentiu-se invadido por uma sensação de calma e alívio.
Mas depois... não!... depois, presenciou o clarão, o sopro ardente, o penacho de fumo de uma explosão em pleno ar. Uma explosão que pintou de branco o céu da madrugada,
seguida de um novo e enorme clarão branco-amarelado provocado pelo incêndio do combustível. Pequenos fragmentos da fuselagem começaram a cair no mar.
Por alguns longos segundos, Janson quedou-se completamente entorpecido. Fechou os olhos e voltou a abri-los. Teria sido imaginação sua tudo aquilo?
Um hélice solto rodopiou lentamente antes de tombar no mar.
Oh, santo Deus!
Um sucesso incrível acabava de transformar-se num enorme pesadelo.
CAPÍTULO QUATRO
A PRINCIPAL DIRECTIVA para este caso é o secretismo - disse o homem do Serviço de Informações do Ministério da Defesa aos outros presentes na sala. com as suas sobrancelhas
escuras e grossas, os ombros largos e antebraços musculosos, tinha o aspecto de quem tem um trabalho braçal; mas, na realidade, Douglas Albright era um homem profundamente
cerebral, dado à reflexão e à discussão aprofundada dos problemas.
O local daquela reunião interdepartamental, convocada à pressa, era um edifício de uma elegância sóbria situado a menos de dois quilómetros da Casa Branca.
Sentado em frente do homem do SID, encontrava-se o director-adjunto do Serviço Nacional de Segurança, um homem de testa alta e feições miúdas que denotavam uma certa
preocupação.
- Secretismo, sim, a natureza da directiva é clara - disse ele. Já o mesmo não se pode dizer da natureza do nosso homem.
- Paul Elie Janson - exclamou o subsecretário de Estado, que era, no papel, o director da Divisão de Informações e Pesquisa daquele organismo. Era um homem atlético
de rosto tranquilo e cabelo crespo
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cor de palha, a quem uns óculos pesados de aros negros emprestavam um ar circunspecto. -Janson foi um dos nossos, como sabe.
- Uma das vossas diabólicas máquinas de matar, Derek, é o que ele é - exclamou Albright, lançando ao subsecretário de Estado um olhar agreste. Apesar do alto cargo
que ocupava, a sua carreira fora feita essencialmente na área da análise e nutria uma desconfiança obstinada pelos seus colegas da área operacional. - Vocês criam
esses exemplares de maquinaria sem alma, largam-nos no Mundo e depois deixam a outros o encargo de limparem a porcaria que eles fazem. Eu não compreendo de todo
que tipo de jogo é que ele está a fazer.
O homem do Departamento de Estado retorquiu colericamente:
- Acaso já considerou a possibilidade de alguém estar a jogar com ele? - com um olhar duro, prosseguiu: - Tirar conclusões precipitadas pode ser perigoso. Não estou
disposto a considerar Janson um renegado.
- A questão é esta: não podemos ter certezas a esse respeito comentou o homem da Segurança Nacional, Sanford Híldreth. Depois, voltou-se para o indivíduo que estava
sentado a seu lado, um investigador de informática que granjeara a reputação de menino-prodígio quando, praticamente sozinho, recriara a base de dados primitiva
da CIA. - Haverá algum dado que nos tenha escapado, Kaz?
Kazuo Onishi abanou a cabeça.
- Posso dizer que temos registado algumas actividades anómalas, várias potenciais brechas nosfirewalls de segurança. O que eu não consigo é identificar quem as fez.
Pelo menos, por enquanto.
- Admitamos que tem razão, Derek - prosseguiu Hildreth. Nesse caso, o meu coração está com ele, mas nada pode comprometer o programa. Não interessa o que ele pensava
que estava a fazer. Só podemos afirmar que esse camarada, Janson, não sabe em que é que se meteu e nunca irá saber. - Estas palavras foram proferidas mais em termos
de declaração do que de mera observação.
- Isso já aceito - disse o homem do Departamento de Estado.
- Charlotte já foi informada? - Charlotte Ainsley era a conselheira do presidente para assuntos de Segurança Nacional e o principal elemento de ligação com a Casa
Branca.
- Sê-lo-á ainda hoje - respondeu o representante do SNS.
- Tudo será mais fácil se ele não reagir - disse o analista do SID.
- Mas isso ele vai fazer, se eu conheço bem o meu homem - retorquiu Derek Collins. - E de que maneira!
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- Nesse caso, vamos ter de tomar medidas extremas - exclamou Albright. - Se o programa for descoberto, isso vai destruir tudo aquilo em que estão empenhados todos
os presentes. Será um retrocesso de vinte anos na nossa história. E esse é o cenário mais optimista, pois a consequência mais provável será mais parecida com uma
nova guerra mundial.
JANSON APANHARA um avião directo de Bombaim para Atenas e acabava de chegar ao Hellenikon International Airport. Sentia-se morto por dentro; ao regressar às suas
tarefas, parecia um zombie a quem tinham vestido um fato. Você era aquele tipo que tinha um pedaço de granito no lugar do coração. Se aquilo fosse verdade, ao menos.
Tentara por diversas vezes ligar a Marta Lang sem sucesso. O número que ela lhe fornecera deveria pô-lo em contacto com ela onde quer que se encontrasse, segundo
ela própria lhe dissera: era o número particular e, caso ela não atendesse ao cabo de três toques, a chamada era transferida automaticamente para o seu telemóvel.
Porém, só conseguira ouvir o ronronar electrónico das chamadas não atendidas. Ligara depois para diversas delegações regionais da Fundação Liberdade: Nova Iorque,
Amsterdão, Bucareste. "Ms. Lang não está disponível" era o que sistematicamente lhe respondiam empregados subalternos de voz suave como talco. Janson insistia. Tratava-se
de uma emergência, dizia respeito ao próprio Peter Novak. Tentara várias aproximações, mas o resultado fora sempre o mesmo: nulo.
"Ser-lhe-á transmitida a sua mensagem" era o que lhe repetiam de todas as vezes. Só que nunca poderiam transmitir-lhe a verdadeira mensagem, a descrição daquela
horrível verdade. O que é que Janson poderia comunicar-lhes? Que Peter Novak morrera? As pessoas da fundação com quem falara deram mostras de não saber nada a esse
respeito, e Janson era suficientemente experiente para não ser ele a dar-lhes essa informação.
Teria ela morrido também? Ou seria ela própria cúmplice de uma conspiração? Teria Novak sido morto por um membro ou membros da sua própria organização? Porém, para
quê matar um homem sobre quem recaía já uma sentença de morte iminente?
Janson acomodou-se no táxi do aeroporto que haveria de transportá-lo até Mets, nos arredores de Atenas. Tinha de informar Marina Katsaris do sucedido; era uma coisa
que ele tinha de lhe participar pessoalmente.
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A casa de Katsaris ficava numa rua estreita a meia dúzia de quarteirões do Estádio Olímpico. Janson despediu o motorista com 2500 draemas e tocou a campainha.
A porta abriu-se, e lá estava Marina à sua frente. Janson observou as suas maçãs do rosto salientes, a compleição cor de mel, o olhar firme dos olhos castanhos,
o cabelo negro, liso e sedoso. Pouco se notava ainda o arredondado do ventre; dir-se-ia ser apenas mais uma curva voluptuosa do seu corpo, que mal se adivinhava
por debaixo do vestido largo de seda pura.
- Paul! - exclamou com visível agrado. Agrado que logo se dissipou ao reparar na expressão dele; a cor fugiu-lhe então do rosto.
- Não! - murmurou. Começou a tremer convulsivamente, de rosto distorcido pelo sofrimento e pela raiva.
Ele seguiu-a para dentro de casa, onde ela, voltando-se, lhe deu uma bofetada. Fê-lo uma vez e outra e outra, com gestos largos e desordenados, como para afugentar
de si uma realidade que acabava de destruir o seu mundo.
Por fim, Janson agarrou-lhe os pulsos.
- Marina, por favor! - disse ele com a voz também embargada pelo sofrimento. - Eu não encontro palavras para exprimir o desgosto que sinto.
Ela fixou nele o olhar.
- Eu é que tive a culpa. Deixei-o ir, não deixei? Se eu tivesse insistido, ele tinha ficado, mas não insisti. Porque, mesmo que desta vez ele tivesse ficado em casa,
outro apelo havia de surgir mais tarde, depois mais outro, depois outro ainda. E se ele não fosse, se ele nunca fosse, isso também o matava. Theo era fantástico
naquilo que fazia. Eu sei, Paul. Era isso que o fazia sentir-se orgulhoso de si próprio. Como é que eu podia retirar-lhe esse motivo de orgulho?
Rompeu subitamente em pranto. Os seus soluços eram quase selvagens, soltos, irreprimíveis. Durante os minutos que se seguiram, dominaram-na.
Janson abraçou-a, apertando-a contra si.
Quando ela voltou a encará-lo, foi através de uma cortina de lágrimas.
- Conta-me o que se passou - pediu.
Então, ele contou-lhe o que sucedera. Era ele o único que sabia como Theo tinha morrido. Marina precisava de saber, e ele não se esquivou a contar-lhe. Contudo,
à medida que falava, ia-se apercebendo
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de como sabia pouco. Tantas perguntas para as quais não tinha respostas. Sabia apenas que havia de achar essas respostas ou morreria a tentar fazê-lo.
- O SEU QUARTO fica pronto dentro de cinco minutos - informou-o com deferência o recepcionista do Hotel Spyrios. - Por favor, descanse um pouco aqui no átrio que
nós já entramos em contacto consigo.
Os cinco minutos, medidos em termos atenienses, foram quase dez, mas por fim Janson recebeu a sua chave e dirigiu-se para o quarto. Introduziu o cartão na ranhura
e aguardou que a luz verde piscasse, após o que empurrou a pesada porta.
As cortinas estavam corridas a uma hora em que, normalmente, deveriam estar abertas. Só quando os seus olhos se adaptaram à ténue luz envolvente é que se apercebeu
da presença do homem sentado na cadeira estofada.
Janson estremeceu e procurou instintivamente uma pistola, que não tinha.
- Muito tempo passou desde que bebemos uns copos pela última vez, Paul - disse o homem.
Janson reconheceu aquela voz suave e untuosa, aquele inglês culto com um ligeiro sotaque grego. Nikos Andros.
Foi imediatamente assaltado por uma série de recordações, poucas das quais felizes. Andros fazia parte de uma outra era da vida de Janson, de um período que ele
encerrara definitivamente ao abandonar as Operações Consulares.
- Não me interessa como é que entraste aqui. A única pergunta que tenho a fazer é como é que preferes sair - retorquiu Janson.
- Isso são maneiras de falar com um amigo? - Andros usava o cabelo extremamente curto. O seu vestuário era, como sempre, caro, muito bem cuidado, do melhor que havia:
o blazer preto era de caxemira, a camisa azul-escura, de seda, os sapatos, de um verniz suave.
- Amigo? Fizemos uns negócios juntos, Nikos. Mas isso pertence ao passado.
- Hoje, estou voltado para a caridade. Não estou aqui para vender informações, estou aqui para te dar informações. Totalmente grátis.
Os conhecimentos de Andros e a sua erudição em matéria de arqueologia clássica faziam dele uma figura muito requisitada para os salões de festas pelos ricos e poderosos
de toda a Europa. Janson sabia
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que a proeminência social de Andros, arduamente conquistada, fora crucial para a sua actividade clandestina como informador durante o período da Guerra Fria. Era
a época em que o sector de Atenas funcionava como uma encruzilhada de redes de espionagem, montadas tanto pela CIA como pelo KGB.
- Se tens alguma coisa a dizer, diz e vai-te embora - exclamou Janson.
Andros soltou um suspiro.
- Os teus antigos patrões querem que tu entres.
Entrar: apresentar-se na sede, submeter-se a interrogatório ou a qualquer método de extorsão de informações julgado mais adequado.
- Se as Operações Consulares quisessem que eu entrasse, não passavam essa mensagem a um sociopata mimado como tu.
- Neste caso, a entrega da mensagem cabe àquele que consiga localizar o seu destinatário. Foram largados milhares de pombos-correios e calhou ser este a chegar primeiro.
Parece que os teus antigos colegas tinham perdido o teu rasto até que alguém os informou de que te encontravas neste país. Aí, precisaram de mim e da minha rede
de contactos. Então, passei palavra e recebi informações. Se eu fosse a ti, preocupava-me menos com o cantor e mais com a canção. Para teu governo, eles estão particularmente
ansiosos por falar contigo porque precisam que lhes expliques certos assuntos.
- Que assuntos?
- Questões que surgiram ligadas às tuas actividades recentes.
- Há aí qualquer coisa que me estás a esconder - afirmou Janson em tom provocante.
- Eu disse-te aquilo que me mandaram dizer - replicou Andros.
- Tu disseste-me aquilo que me disseste. Agora, diz-me o que não me disseste ainda.
Andros encolheu os ombros.
- Limito-me a ouvir coisas.
- Que coisas?
Ele abanou a cabeça.
- Não trabalho para ti. Quem não paga, não joga.
- Filho da mãe! Diz-me tudo o que sabes senão ...
- Senão o quê? O que é que tu fazes? Matas-me? Ias deixar o teu quarto de hotel manchado com o sangue de um cidadão americano altamente cotado? Isso resolvia-te
os problemas todos, não haja dúvida.
- Eu nunca te matava pessoalmente, Nikos. Mas isso não quer dizer
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que um agente dos teus novos patrões não possa fazê-lo. Principalmente se soubesse das tuas ligações ao 17 Noemvri.
Aquela alusão ao grupo terrorista grego 17 de Novembro, há muito procurado pelos Serviços Secretos Americanos, provocou uma reacção imediata.
- Não existe tal ligação - replicou ele de imediato. - Isso é pura difamação.
- Pois. - Algo parecido com um sorriso irónico aflorou aos lábios de Janson.
- Bem - retorquiu Andros, mexendo-se desconfortavelmente na cadeira. - Eles não iam acreditar em ti, de qualquer maneira.
- Não achas que ainda consigo mexer-me dentro do sistema? Passei anos na contra-espionagem. Sei exactamente como passar informações sem que alguma vez isso me possa
ser imputado e de forma a ganharem tanto mais credibilidade quanto mais se afastarem da fonte.
Andros mastigou em seco durante uns instantes. Uma veia na sua testa começou a latejar visivelmente.
- A questão é esta: eles querem saber por que razão é que tens dezasseis milhões de dólares na tua conta das ilhas Cayman. No Banco de Mont Verde - disse ele por
fim. - Dezasseis milhões de dólares que ainda há poucos dias não estavam lá.
- Mais uma das tuas mentiras! - bramou Janson.
- Não! - contestou Andros. O medo estampado nos seus olhos era bastante real. - Verdadeiro ou falso, eles estão convencidos disso. E eu não estou a mentir.
Janson respirou fundo por diversas vezes.
- Desaparece daqui - exclamou.
Sem dizer mais uma única palavra, Andros apressou-se a sair do hotel.
Sozinho no quarto, Janson sentia os pensamentos a fervilharem. Não fazia sentido: Andros era um mentiroso profissional, mas aquela mensagem - a insinuação de ele
ter uma fortuna secreta - era uma falsidade de outra ordem. Mais perturbadora ainda era a referência à conta das ilhas Cayman; Janson possuía essa conta, efectivamente,
só que sempre a mantivera secreta. Não existia qualquer registo oficial dela; nenhuma prova em lado nenhum de que ela existia. Como explicar então a alusão a uma
conta de que só ele devia ter conhecimento?
Janson ligou o seu microprocessador digital de três bandas sem fios e digitou os algarismos que lhe iriam proporcionar a ligação via In-
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ternet ao seu banco nas Cayman. Os sinais eram codificados nos dois sentidos mediante a utilização de um encadeamento aleatório que era usado apenas uma vez. Não
era possível qualquer intercepção da mensagem. O processo era lento, mas, passados dez minutos, Janson tinha já o registo dos seus últimos movimentos de conta.
Da última vez que procedera a uma consulta, o saldo da sua conta era de 700 000 dólares.
Agora, ascendia a 16 700 000.
Como é que aquilo era possível? A conta estava protegida quer de depósitos, quer de levantamentos não autorizados.
Nos trinta minutos que se seguiram, Janson examinou minuciosamente uma série de transferências que envolviam a sua assinatura digital exclusiva, um conjunto irrepetível
de algarismos de que só ele dispunha: uma "chave digital pessoal" a que nem mesmo o banco tinha acesso. Aquilo era impossível. Contudo, o registo electrónico era
irrefutável: Janson teria, ele próprio, autorizado a recepção de 16 milhões de dólares. O dinheiro chegara em duas prestações de oito milhões cada uma. Oito milhões
tinham sido depositados quatro dias antes. Os outros oito milhões tinham chegado na véspera às 7.21 da tarde pela hora da Costa Oriental.
Aproximadamente um quarto de hora após a morte de Peter Novak.
JANSON PROCUROU o ar mais fresco e mais claro do Jardim Nacional. Fez um aceno de cabeça a um homem de cabelos brancos que estava sentado num banco e que parecia
olhar na sua direcção. Ficou com a sensação de que o homem desviara o olhar demasiado rapidamente, atendendo à afabilidade tradicional da maioria dos gregos.
Janson descia agora a Stadíou. O que primeiro lhe atraiu a atenção não foi um rosto familiar, mas sim um rosto que se voltou demasiado depressa assim que ele se
aproximou. O de um homem que estivera de olhos postos numa tabuleta de rua quando Janson dobrara a esquina, mas que depois desviara abruptamente o olhar para uma
loja.
Um quarteirão mais à frente, reparou na mulher que do outro lado da rua espreitava a montra de uma joalharia. O sol batia de chapa no vidro da montra, convertendo-o
num espelho melhor do que uma janela. Se a mulher estivesse realmente interessada no que estava exposto na montra, deveria ter-se colocado no ângulo oposto, de costas
voltadas para o sol, de forma a criar uma sombra que restituísse à montra a necessária transparência.
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O instinto de combatente de Janson começou a emitir sinais de alerta. Estava a ser vigiado.
Dirigiu-se em grandes passadas ao mercado de carne de Omónia. À sua esquerda, algumas bancas de venda, mais à frente, um freguês apalpava uma barriga de porco. Era
o mesmo homem que desviara o olhar dele no Jardim Nacional. Janson movimentou-se rapidamente para o lado oposto de uma fila de carcaças de carneiro. Por entre duas
carcaças, reparou que o tal freguês de cabelos brancos perdera subitamente o interesse no porco e caminhava ao longo da fila de carneiros pendurados à procura de
uma abertura para espiar o que se passava do outro lado. Então, Janson puxou para si um dos exemplares mais avantajados, agarrando-o pelos cascos traseiros, e, na
altura em que o homem de cabelos brancos passava diante de si, lançou com força a carcaça na sua direcção, fazendo-o cair de bruços sobre um monte de tripas de vitela.
Seguiram-se algumas imprecações em grego, e Janson afastou-se velozmente do local do incidente, dirigindo-se para o outro extremo do mercado e daí novamente para
a rua. Encaminhava-se agora para um armazém próximo, o Lambropouli Bros.
Parou diante do armazém, espreitando pelo vidro da montra, até que reparou num homem com um blusão amarelo que se encontrava junto de uma loja de artigos de cabedal
do outro lado da rua. Janson entrou então no armazém e encaminhou-se para a secção de vestuário masculino. Passou as mãos pelos fatos, ao mesmo tempo que mirava
os pequenos espelhos estrategicamente colocados no tecto para prevenir os roubos. Passaram cinco minutos. Mesmo que existisse um guarda em cada uma das entradas,
um elemento de uma equipa de perseguição nunca deixaria o seu alvo desaparecer de vista durante cinco minutos.
Tal como previra, o homem do blusão amarelo acabou por entrar no Lambropouli Bros, atravessando as diversas salas até localizar Janson. Foi posicionar-se então junto
do expositor de vidro e metal cromado dos perfumes.
Janson pegou num fato e numa camisa, levou-os para os gabinetes de prova e esperou. O armazém estava com falta de pessoal, e o vendedor tinha mais clientes do que
aqueles que podia atender. Não ia dar pela falta de Janson.
Mas o seu perseguidor, sim. À medida que os segundos passavam, começaria a pensar se ele não se teria escapulido. Não teria outra alternativa
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senão entrar também na zona dos gabinetes de prova para ir verificar.
E foi isso precisamente o que o homem do blusão amarelo fez passados três minutos. Pela fresta da porta do gabinete, Janson viu-o vaguear pelo recesso dos gabinetes
com um par de calças no braço. Precisamente quando ele ia a passar diante da sua porta, Janson abriu-a com toda a força. Depois, saltou para fora do gabinete, arrastou
o atordoado perseguidor para o fundo do recesso e transpôs com ele uma porta que dava para uma área de acesso reservado aos empregados.
- Uma só palavra e és um homem morto - disse Janson em voz baixa ao homem aterrado, erguendo uma pequena faca ao nível da sua carótida direita.
Mesmo na relativa escuridão do armazém, Janson reparou no pequeno auricular, um fio que desaparecia dentro da roupa do homem. Rasgou-lhe então a camisa e tirou o
fio, que estava ligado a um transmissor de rádio dissimulado no bolso das calças. Depois, olhando melhor, viu também a pulseira de plástico que o homem tinha no
pulso; era, na realidade, um transponder posicionai que assinalava a sua localização para quem quer que estivesse a dirigir a equipa.
Não se tratava de nenhum sistema sofisticado; todo o esforço de vigilância fora organizado à pressa e um tanto ad hoc, e o mesmo se podia dizer dos meios e do capital
humano utilizados. Avaliou entretanto o homem que tinha diante de si: o rosto gasto, as mãos macias. Conhecia o género: um fuzileiro que passara tempo demais por
detrás de uma secretária, convocado à última hora; um simples auxiliar chamado a preencher uma vaga inesperada.
- Porque é que me seguias? - perguntou Janson.
- Não sei - respondeu o homem, de olhar esgazeado. - Eles não me explicaram porquê. As instruções que recebi foram para vigiar apenas e para não interferir.
- Quem são eles?
- Como se você não soubesse ...
- O chefe da segurança do consulado - exclamou Janson, observando melhor o homem. - E tu fazes parte do destacamento de marines.
O homem confirmou com um aceno de cabeça.
- Quantos são vocês?
- Sou só eu.
- Agora, estás a começar a chatear-me. - com os dedos esticados,
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Janson comprimiu-lhe abruptamente o nervo hipoglosso, logo abaixo da protuberância do queixo. Sabia que a dor aí era terrível, por isso tapou-lhe a boca com
a mão ao mesmo tempo.
- Quantos? - perguntou de novo. Passado um momento, retirou a mão para permitir ao homem responder.
- Seis - rouquejou o seu perseguidor, hirto de dor e de medo. com tiras que rasgou da camisa do homem, Janson atou-lhe os
pulsos e os tornozelos e improvisou uma mordaça. Depois, pegou na pulseira com o transponder, vestiu o blusão amarelo do homem, pôs na cabeça o seu boné cinzento
e saiu em passo apressado pela porta lateral do armazém.
O perseguidor tinha sensivelmente a mesma altura e constituição que ele; visto ao longe, ninguém notaria a diferença. "O que é que Nikos Andros lhes teria dito?"
Um pequeno gato vadio ia aos saltos pelo passeio. Janson estava a aproximar-se da capital dos felinos de Atenas, o Jardim Nacional. Deu uma corrida para apanhar
o animal, perante o olhar embasbacado de alguns transeuntes.
- Greta! - chamou, pegando no gato ao colo. - Deixaste cair a tua coleira!
Colocou o transponder à volta do pescoço do animal. Ficava-lhe apertado, mas não demasiado. Mais perto do jardim, largou o animal, que não parava de se contorcer
e que logo se escapuliu para o meio de uns arbustos à procura de ratos. Seguidamente, Janson dirigiu-se para os lavabos do parque e lançou o boné e o blusão amarelo
para dentro de um caixote do lixo.
Poucos minutos depois, seguia já no trolley da carreira 1 sem nenhum perseguidor à vista. Os membros da equipa de perseguidores em breve estariam a convergir para
o centro do parque, infestado de gatos. Se ele conhecia bem a delegação de Atenas, todo o seu engenho seria aplicado mais tarde na elaboração de relatórios em que
todos procurariam salvar a face.
A delegação de Atenas. Trabalhara lá algum tempo no final dos anos 70. Puxou pela memória para tentar recordar-se de alguém que conhecesse lá e que pudesse explicar-lhe
o que se passava. Uma explicação dada por alguém de dentro. Havia muita gente que lhe devia favores; chegara a altura de os cobrar.
Veio-lhe à memória o rosto antes mesmo do nome: um escriturário de meia-idade da CIA que trabalhava na Embaixada dos EUA.
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Nelson Agger - magro, meio calvo, um pouco desengonçado era um personagem com quem não se simpatizava facilmente. Era até difícil explicar por que razão Janson se
dera tão bem com ele. Em parte, seria porque Agger era um cínico, mas Janson tinha de admitir que outra razão para isso era o simples facto de Agger gostar dele
e o respeitar. Nunca se preocupara em esconder a sua admiração por ele nem a sua gratidão.
No passado, uma vez por outra, Janson tinha feito que Agger fosse a primeira pessoa a receber determinadas informações, e nalguns casos Agger conseguira moldar os
seus relatórios de forma a parecer ter previsto situações que mais tarde viriam a ser participadas através dos canais oficiais.
Agger era, pois, precisamente o tipo de pessoa que poderia ajudá-lo naquela altura.
Janson, sentado ao fundo de um café situado em frente da Embaixada Americana a beber uma chávena daquele café forte e doce tão apreciado pelos Atenienses, ligou
pelo seu Ericsson para a central telefónica da embaixada.
- Acordos comerciais - respondeu uma voz do outro lado.
- Agger, por favor.
Ouviram-se três cliques, ou seja, a chamada estava a ser gravada e registada.
- Quem deseja falar?
- Alexander - respondeu Janson. - Richard Alexander. Passaram-se alguns segundos. Surgiu então em linha a voz de Agger.
-Já não ouvia esse nome há muito tempo - disse.
- Que tal uma taça de retsina? - O tom era deliberadamente informal - Podes dar uma escapadela agora? Há uma taberna em Lakhitos ...
- Tenho uma ideia melhor - retorquiu Agger. - O café em Papadhima. O Kaladza. Lembras-te? Fica um pouco mais longe, mas a comida é excelente.
Janson sentiu a adrenalina a subir. Ambos sabiam que a comida no Kaladza era horrível; fora até tema de conversa da última vez que tinham falado, há quatro anos.
"A pior da cidade", dissera Agger enquanto mastigava umas lulas de aspecto duvidoso com ar enjoado.
O que Agger estava a transmitir-lhe é que era necessário tomarem precauções.
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- Parece-me uma óptima ideia - exclamou Janson calorosamente, para o caso de alguém estar à escuta. - Traz o teu telemóvel. Se eu ficar retido no trânsito, entro
em contacto contigo.
- Boa ideia - retorquiu Agger. - Óptima ideia.
Pela porta do café, Janson viu Agger sair por uma porta lateral e descer a rua em direcção ao Kaladza.
Depois, viu uma mulher e um homem saírem de trás de um edifício de escritórios de tijolo cinzento anexo à embaixada e seguirem no encalço de Agger. Ele estava a
ser seguido.
Quem quer que tivesse escutado a conversa telefónica reconhecera aquele nome lendário e reagira imediatamente.
Tinham sem dúvida tomado em consideração o relacionamento de Janson com Agger e previsto desde logo a possibilidade de ele pretender contactar o analista.
Janson enfiou um punhado de draemas por baixo da chávena de café e saiu. A Lykavittós era a colina mais alta de Atenas, e o facto de se tratar de um sítio elevado
tornava mais difícil a uma equipa de perseguição posicionar-se sem ser notada, especialmente se ele a detectasse primeiro. De momento, estava apenas armado com um
pequeno par de binóculos. Seria paranóico da sua parte preocupar-se com o facto de isso não ser suficiente?
Janson subiu a colina no elevador. Lá no cimo havia uma série de miradouros e esplanadas.
Contactou Agger pelo telemóvel.
- Mudança de plano, meu velho.
- Dizem que a mudança é uma coisa boa - retorquiu Agger.
Janson fez uma curta pausa. Deveria dizer a Agger que ele estava a ser seguido? Era melhor não. Se ele soubesse, podia ficar assustado. Era preferível sugerir-lhe
um itinerário que lhe proporcionasse a possibilidade de, mesmo involuntariamente, despistar os perseguidores.
- Ouve atentamente, meu amigo. Quero que utilizes esta série de carreiras de eléctricos. - E Janson especificou uma complexa sequência de trajectos.
- Um circuito bastante turístico - comentou Agger.
- Confia em mim - disse Janson. O que poderia deter um perseguidor não era o esforço físico de manter contacto com ele; era o facto de as possibilidades de o fazer
sem ser notado irem progressivamente diminuindo.
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- Certo - exclamou Agger no tom de voz de alguém que sabia estar a falar com um superior. - Claro.
- Depois, quando finalmente saíres do elevador de Lykavittós, encontramo-nos diante da fonte de Elijah.
- Tens que me dar para aí uma hora.
- Está bem, até lá.
Janson posicionou-se entretanto no meio de um denso pinhal e começou a passar em revista as pessoas que se encontravam na zona. Em dias de muito calor, inúmeros
atenienses procuravam ali refúgio do calor e da poluição ambiente.
Passaram-se cinco minutos, depois dez, depois quinze, e as pessoas iam e vinham numa sucessão aparentemente fortuita. Porém, nem tudo era assim tão casual. Trinta
metros para a sua esquerda, um homem com uma camisa género cafetã desenhava a paisagem, movendo a mão com gestos largos e circulares. Janson sacou dos seus binóculos
e focou-os com as suas mãos fortes e poderosas. O homem desenhava num bloco de papel rabiscos ao acaso com um lápis de carvão. Podia estar interessado nalguma coisa,
mas não era certamente na paisagem que tinha à frente. Janson regulou a focagem para melhor observar o rosto do homem e sentiu um baque. Aquele homem não era como
os americanos que encontrara anteriormente. O pescoço musculoso que mal cabia na gola da camisa, os olhos inexpressivos - aquele homem era um assassino profissional,
um atirador contratado.
Do outro lado, ligeiramente em diagonal, outro homem lia o jornal. Estava de fato completo, como se fosse um homem de negócios. Janson assestou sobre ele os binóculos:
o homem mexia os lábios, mas não estava a ler alto porque, quando os seus olhos se afastavam, continuava a falar. Estava, isso sim, a comunicar com um cúmplice.
O microfone devia estar acoplado à gravata ou à lapela.
Os dois personagens que identificara, o homem de negócios e o artista, eram indubitavelmente gregos, não americanos; isso era evidente pela fisionomia, vestuário,
até mesmo pela postura. Conclusão: um inexperiente grupo de perseguição americano fora substituído por gente local talentosa, pessoas que conheciam o terreno e sabiam
reagir rapidamente. Mas porquê tanta perseguição? A mera existência de provas incriminatórias não explicava tanto interesse no seu esclarecimento. Janson fora durante
vinte e cinco anos agente de um dos ramos de espionagem mais secretos da América. Se ele andasse atrás de uma boa maquia para si, já podia tê-la arranjado há muito
tempo de mil e uma
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maneiras diferentes. Contudo, parecia que agora é que pensavam o pior a seu respeito, sem sequer admitirem uma interpretação alternativa das provas que possuíam.
O que é que mudara? Algo que ele tinha feito ou que pensavam que tinha feito? Seria alguma coisa que ele soubesse? Uma dessas coisas convertia-o numa ameaça para
os planeadores em Washington.
Às 4 horas, surgiu então Agger, de semblante preocupado, casaco azul-escuro atirado para cima de um ombro, a camisa azul manchada de suor. Sentou-se no banco de
mármore comprido junto da fonte, de respiração ofegante, procurando com os olhos o antigo companheiro de copos.
Janson baixou-se e rastejou ao longo do emaranhado de arbustos, mantendo-se rente a um extenso muro de retenção feito de pedaços de ardósia soltos. Passados dois
minutos, ergueu a cabeça acima do topo do muro e verificou que se encontrava a poucos metros do homem do bloco de desenho.
O homem encontrava-se agora de pé, de costas para ele, e Janson pôde observar como o jovem "artista" era de constituição sólida. Os olhos do homem estavam inequivocamente
postos em Agger, sentado no banco de mármore junto da fonte. Subitamente, Janson viu que ele procurava algo por baixo da sua camisa estilo cafetã.
Janson retirou então do muro uma pedra grande, ergueu-a acima da cabeça e projectou-a com toda a força em direcção à nuca do grego. A pedra atingiu em cheio o homem,
que caiu redondo no chão. Janson saltou por cima do muro baixo e pegou no homem pelos cabelos, ao mesmo tempo que lhe apertava a boca com o antebraço. Depois, atirou-o
por cima do muro e fê-lo cair de costas do outro lado.
Sacou uma Walther do cós das calças do homem e passou os dedos pelo colarinho da camisa à procura do microfone. Virou o tecido, pondo a descoberto um disco de plástico
azul-escuro com um fio de cobre acoplado.
- Diz ao teu amigo que isto é uma emergência! - exclamou, sabendo de antemão que a tarefa não teria sido entregue a pessoas que não falassem inglês e que, por conseguinte,
entendessem mal as ordens que recebessem.
- Den omilo tin Aggliki- disse o homem. Janson premiu com o joelho a garganta do homem.
- Não falas inglês? Então, acho que não há razão nenhuma para não te matar.
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O homem abriu muito os olhos.
- Não! Por favor, eu faço tudo o que disser.
- E lembra-te: eu sei grego. - Era meia verdade, de qualquer forma.
O grego falou para o microfone, mais depressa à medida que Janson encostava a Walther com mais força à sua têmpora.
Uma vez transmitida a mensagem, Janson arremessou o assassino grego de encontro ao muro de ardósia. O crânio do homem absorveu a maior parte do impacte; ia ficar
inconsciente por uma hora, talvez mesmo duas.
Através dos binóculos, Janson viu o homem de negócios dirigir-se apressadamente aos arbustos. Pelo modo como levava o jornal dobrado, era evidente que servia para
esconder alguma coisa.
Janson foi postar-se rapidamente à entrada da alameda. Mal o homem surgiu, golpeou-lhe o rosto com a Walther, fracturando-lhe dentes e ossos. O sangue brotava da
boca do homem ao tombar no solo; o jornal caiu e a arma com silenciador que ele ocultava retiniu nas pedras do chão. Janson virou a lapela do homem, expondo um disco
azul-escuro idêntico ao do outro grego.
Janson voltou a colocar a Walther à cintura. Sentia-se dominado pelo desânimo a pouco e pouco. Nos últimos dias, voltara a cair em tudo aquilo que em tempos prometera
abandonar: a violência, as armadilhas brutais, os hábitos arreigados ao longo de uma carreira. Porém, não era altura para contemplar o abismo. Por conseguinte, apressou-se
a ir ao encontro de Agger.
- Paul! - exclamou Agger. - Ainda bem que me telefonaste. Tenho andado preocupado contigo. Nem imaginas as calúnias que andam a dizer a teu respeito.
Janson riu-se, principalmente para tranquilizar Agger.
- Acho que foi esta manhã que comecei a perceber que qualquer coisa estranha se passava. Desci a Stadíou e aquilo parecia uma reunião geral do piquete de segurança
da embaixada.
- É uma loucura - concordou Agger. - Mas eles andam para aí a dizer que tu aceitaste uma missão, Paul. Uma missão que não devias ter aceitado.
- E...?
- Toda a gente quer saber quem te incumbiu dessa missão. Muita gente quer saber porque é que a aceitaste. Alguns pensam que há dezasseis milhões de respostas para
isso.
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- Como é que alguém pode pensar uma coisa dessas? Toda a gente me conhece bem.
O olhar de Agger era perscrutador.
- Não precisas dizer-me isso. - Depois, quase envergonhado, acrescentou: - Então ... sempre é verdade que aceitaste a missão?
- Sim, aceitei a missão por Peter Novak. O pessoal dele contactou-me. Eu devia-lhe um favor, dos grandes. Foi alguém do Departamento de Estado que me recomendou.
- Sabes, o problema é que o Departamento de Estado nega isso. A CIA também. Nem sequer sabe o que é que se passou em Anura. Os relatórios que têm são muito rudimentares.
Mas o que corre é que tu foste pago para garantires que Peter Novak nunca saísse daquela ilha.
- Mas isso é uma loucura!
- É curioso que tenhas usado essa palavra. O que nos foi dito é que tu podes ter enlouquecido, embora os termos que utilizaram fossem bastante mais rebuscados: perturbações
dissociativas, síndroma pós-traumático...
- Achas que estou louco, Agger?
- Claro que não - respondeu Agger de imediato. Seguiu-se uma pausa embaraçosa. - Mas, repara, todos nós sabemos aquilo por que passaste. Todos aqueles meses de tortura
pelo Vietcongue. Quero eu dizer, isso deve forçosamente ter-te feito mal à cabeça ...
Janson sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha.
- Nelson, o que é que tu estás a dizer?
- Simplesmente que há uma porção de gente que está preocupada e que está bem no topo da cadeia alimentar dos Serviços Secretos.
Pensariam de facto que ele estava louco? Se assim fosse, não podiam consentir que andasse por aí livre, com tudo o que ele, como antigo agente das Operações Consulares,
tinha na cabeça: o conhecimento exaustivo dos procedimentos, dos informadores, das redes que permaneciam operacionais. Qualquer quebra da segurança podia destruir
anos de trabalho e seria pura e simplesmente intolerável. Janson conhecia o modo como as entidades oficiais reagiam num caso como aquele.
- Não encontro explicação para o dinheiro - disse Janson. Pode ser que a Fundação Liberdade utilize formas excêntricas de pagamento. Eles falaram realmente numa
compensação. Mas, olha, essa não foi a minha principal motivação. Tratava-se de uma dívida de honra. Tu sabes porquê.
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- Paul, meu amigo, eu quero ver tudo isto esclarecido e, pela minha parte, farei tudo o que me for possível. Mas tens de me ajudar, de me fornecer alguns factos.
Quando é que a gente de Novak te contactou pela primeira vez?
- Foi na segunda-feira, quarenta e oito horas depois do rapto de Novak.
- Os primeiros oito milhões foram depositados antes da data em que tu dizes que essa gente te contactou. Antes de saberem que tu ias aceitar. Antes de saberem que
ia ser necessária uma extracção. Não faz sentido.
- Alguém interrogou o pessoal de Novak a esse respeito?
- Paul, eles não sabem quem tu és. Não sabem nada acerca da extracção. Não sabem sequer que o patrão morreu.
- E como é que reagiram quando vocês lhes disseram?
- Nós não dissemos nada.
- Porquê?
- Ordens de cima. Compete-nos a recolha de informações, e não a disseminação de informações. E, por falar em recolha, é por isso que as pessoas estão tão determinadas
em que tu entres. É a única forma. Se não o fizeres, vão começar a pensar coisas. E a actuar em conformidade. Entendido? É preciso dizer mais alguma coisa?
Janson não pôde deixar de notar como o analista se fora tornando menos amável no decurso da conversa.
- vou pensar nisso.
- Isso significa não - exclamou Agger de modo inexpressivo. E isso não é muito bom. - Levou a mão à lapela e tocou com o dedo na casa do botão com um gesto excessivamente
casual.
Janson estendeu o braço e virou a lapela de Agger. Lá estava, do lado de trás, o familiar disco azul-escuro. De imediato sentiu-se literalmente atordoado: os gregos
não eram perseguidores, eram a retaguarda dele.
Pondo-se de pé, de forma a ocultar o seu gesto dos transeuntes, Janson sacou da Walther.
- E quais são as ordens para o caso de eu me recusar a apresentar-me? - perguntou, ao mesmo tempo que comprimia o revólver com força contra o esterno de Agger.
- Pára! - bradou Agger. - Estás a magoar-me. - Proferiu isto em voz alta, como se estivesse em pânico, mas Agger, embora não fosse propriamente um operacional, não
era nenhum amador e, embora
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ansioso, não era dado a histerismos. O grito não era dirigido a Janson; destinava-se a alertar outros, outros que se encontravam nas imediações.
- Lamento muito. Já te devia ter informado mais cedo de que os teus amigos gregos estão irremediavelmente fora de serviço. Eles depois apresentam-te as suas desculpas.
Assim que recuperarem a consciência.
Agger semicerrou os olhos.
- Santo Deus, é mesmo verdade. Tu estás completamente descontrolado!
CAPÍTULO CINCD
UM CAMIÃO SAIU da Mil para a Queen"s Road, em Cambridge. Aí, estacionou ao lado de outros camiões que transportavam materiais de construção para um grande projecto
de obras de recuperação.
Assim que o motorista parou o camião, o homem a quem tinha dado boleia desceu para o chão de cascalho. Contudo, em vez de se dirigir para a obra, o homem, de fato-macaco
cor de rato, entrou numa das cabinas que se encontravam junto do estaleiro das obras. Quando de lá saiu, envergava um casaco de tweed cinzento-espinhado. Era um
uniforme de género diferente, um uniforme que o faria passar despercebido quando passeasse ao longo do "Backs", a mancha verde que se estendia ao longo da mais antiga
faculdade de Cambridge.
Janson tinha dito tantas mentiras em tantas linguagens diferentes durante as últimas vinte e quatro horas que até lhe doía a cabeça. Mas em breve iria encontrar-se
com alguém que poderia esclarecer todo aquele mistério. O seu salva-vidas encontrava-se no Trinity College: um brilhante catedrático chamado Angus Fielding.
Janson estudara com ele no início da década de 1970 como seu pupilo, e o amável docente acompanhara-o, dando-lhe uma série de prelecções sobre história da economia.
Algo na mente sinuosa de Fielding cativara Janson, e havia também em Janson algo que o sábio, por seu turno, achava cativante.
Janson detestava ter que envolver Fielding na sua perigosa investigação, mas não tinha outra alternativa. O seu ex-tutor académico, especialista
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no sistema financeiro global, fizera parte de um conjunto de sábios que Peter Novak reunira para orientar a Fundação Liberdade. Era igualmente membro do
Tuesday Club, um grupo de intelectuais e analistas que tinham ligações aos Serviços Secretos Britânicos. E era ainda o reitor do Trinity College.
Janson dirigiu-se aos aposentos do reitor e tocou a campainha.
Uma criada entreabriu uma janela.
- Um pouco cedo, não acha? bom, não faz mal. Porque não vem pela frente que eu abro-lhe a porta? - Confundira-o, obviamente, com alguém que tinha um encontro marcado.
No interior dos aposentos do reitor, havia um lanço largo de escadas ao longo do qual estava exposta uma galeria de retratos das luminárias do Trinity ao longo dos
séculos. No cimo, havia uma grande sala de recepção onde Janson se quedou a contemplar, deliciado, os retratos de reis e conselheiros há muito desaparecidos. Estremeceu
ao ouvir um homem a pigarrear.
- Meu Deus, é você! - exclamou Angus Fielding. - Peço desculpa ... mas tenho estado a observá-lo a olhar para os retratos e a perguntar a mim mesmo se seria possível.
Qualquer coisa na maneira de andar, na postura dos ombros ... Meu caro, já lá vai muito, muito tempo. Mas, na realidade, é uma surpresa deliciosa. Gilly disse-me
que tinha chegado o meu interlocutor das dez horas, pelo que estava a preparar-me para discutir Condorcet com um dos meus estudantes, já licenciado.
O velho orientador académico de Janson devia andar pelos sessenta e muitos anos. Tinha agora o rosto enrugado, o cabelo branco mais ralo do que Janson imaginara;
contudo, apresentava ainda um aspecto vivo e sadio, e os seus olhos azul-claros mantinham o brilho de alguém que estava a tomar parte nalguma inenarrável experiência
cósmica.
- Venha daí, meu caro - disse Fielding, e conduziu Janson por um curto corredor até ao seu espaçoso gabinete, cheio de estantes repletas de livros, jornais e excertos
dos seus artigos.
- Angus - começou Janson. - Estou aqui para falar de Peter Novak.
- Traz notícias dele?
- Acerca dele - precisou Janson. - Angus, ele morreu.
O reitor do Trinity empalideceu e sentou-se numa cadeira de madeira de costas em forma de lira, em frente à sua secretária.
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-Já no passado correram alguns falsos rumores acerca do seu falecimento - comentou em voz baixa.
Janson sentou-se numa cadeira a seu lado.
- Eu vi-o morrer.
- Não é possível - murmurou Angus Fielding. - Não pode ser.
Janson contou a Fielding o que acontecera em Anura. Fielding escutou, acenando ligeiramente com a cabeça, como se estivesse a ouvir um aluno durante uma aula individual.
Janson fora outrora um desses alunos. Quando chegou ao Trinity, Janson estava fisicamente muito depauperado, esquelético e pálido, ainda a tentar recuperar o seu
corpo enfraquecido e o seu espírito devastado do pesadelo de dezoito meses como prisioneiro de guerra, bem como de todas as brutalidades que o tinham precedido.
Estava-se no ano de 1974, e ele procurava prosseguir a partir do ponto onde ficara, continuando o estudo de história da economia que iniciara como finalista na Universidade
do Michigan.
A entrega de Janson ao cuidado de Fielding não fora acidental. Fielding possuía amigos em Washington que tinham ficado impressionados com as capacidades e o currículo
invulgar do jovem e pretenderam que o catedrático o mantivesse sob sua observação. Ainda agora, Janson tinha dificuldade em afirmar se fora Fielding que o recrutara
para as Operações Consulares ou se se limitara a apontar vagamente nessa direcção, deixando ao critério de Janson tomar a decisão que julgasse mais apropriada.
Fielding enxugava agora os olhos com um lenço.
- Era um grande homem, Paul. Nunca conheci ninguém como ele. Meu Deus, a visão, o brilhantismo, a compaixão ... havia algo de extraordinário em Peter Novak. Sempre
considerei um privilégio tê-lo conhecido.
- Eu devo-lhe tudo - exclamou Janson, recordando Baaqlina.
- Tal como todo o Mundo - corroborou Fielding. - Por isso, afirmei que não podia ser. Não me referia ao facto em si, mas às suas consequências. Ele não pode morrer.
Muita coisa depende dele. Muitos esforços delicados com vista à paz e estabilidade, todos patrocinados por ele, orientados por ele, inspirados por ele. Se ele morrer,
muitos morrerão com ele. Muitas coisas más irão acontecer. Eles acabarão
por vencer.
- Mas a verdade é que morreu mesmo - retorquiu Janson em voz baixa.
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Por momentos, Fielding não disse nada. Por fim, abriu muito os seus olhos azul-claros.
- O que é muito estranho é que nada disso venha referido em lado nenhum: nem o rapto nem o assassínio. Tudo muito estranho. Você contou-me os factos, mas não me
forneceu nenhuma explicação.
- Eu esperava que o professor me pudesse ajudar nisso - disse Janson. - A questão é esta: quem é que poderia querer Peter Novak morto?
O catedrático abanou lentamente a cabeça.
- A questão é: quem não quereria? Uma benevolência extrema atrai sempre uma malevolência desmedida.
- Esclareça-me uma coisa, por favor. Acabou de se referir a "eles"; a expressão que utilizou foi "eles acabarão por vencer". O que quis dizer com isso?
- O que é que sabe exactamente sobre as origens de Novak?
- Muito pouco. Um filho da Hungria devastada pela guerra.
- As suas origens foram ao mesmo tempo extremamente privilegiadas e não privilegiadas. Foi um dos poucos sobreviventes de uma aldeia devastada pela guerra entre
os exércitos de Hitler e de Estaline. O pai de Novak era um magiar nobre que serviu durante os anos quarenta o regime de Miklós Kállay antes de o abandonar, e consta
que receava, de modo obsessivo, pela segurança do seu único filho. Fizera muitos inimigos, que, a seu ver, tentariam vingar-se um dia no seu herdeiro.
- Isso foi há mais de meio século. Quem é que ia importar-se, passadas tantas décadas, com o que o pai dele fez nos anos quarenta?
- Você certamente não esteve muito tempo na Hungria - replicou Fielding. - Contudo, é na Hungria que se podem encontrar ainda quer os seus grandes admiradores, quer
a maior parte dos seus inimigos. Mas você perguntou quem gostaria de o ver morto, e eu posso informá-lo de que a lista desses criminosos é bastante extensa. Por
exemplo, a China: os gerentes que a governam receiam acima de tudo a "democracia orientada" a que a organização de Novak é tão dedicada; sabem que ele considera
a China como a próxima fronteira da democratização. Trata-se de inimigos muito poderosos. Na Europa de Leste, existe um complô de gente influente, ex-oficiais comunistas
que se apoderaram das indústrias "privatizadas". As campanhas anticorrupção levadas a cabo pela Fundação Liberdade nos seus próprios feudos são uma ameaça directa
para eles, que já juraram não ficar de braços cruzados. Não se podem praticar boas acções sem que alguém se sinta
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logo prejudicado. Você perguntou-me o que eu queria dizer quando me referia a "eles": é uma designação tão boa como qualquer outra.
- O senhor fez parte da equipa de sábios dele - referiu Janson.
- Como é que ela funcionava?
Fielding encolheu os ombros.
- Ele solicitava a minha opinião de tempos a tempos. Falávamos pelo telefone talvez uma vez por mês. E encontrávamo-nos pessoalmente talvez uma vez por ano.
- No que me diz respeito, a fundação ergueu a ponte levadiça. Não consigo falar com ninguém que esteja ao corrente do que se passa. Preciso de contactar com pessoas
que tenham trabalhado de perto com Novak. Talvez alguém que em tempos tivesse feito parte do seu círculo restrito e dele tivesse saído posteriormente. Não posso
pôr de lado a hipótese de ele ter sido eliminado por uma pessoa ou pessoas que lhe fossem próximas.
Fielding ergueu um sobrolho.
- Essa mesma curiosidade pode você dirigir também para aqueles que trabalham ou trabalharam próximo de si.
- O que é que está a sugerir?
- Você estava a fazer-me perguntas acerca dos inimigos de Peter Novak, e eu respondi-lhe que eles estavam dispersos um pouco por todo o lado. Tem uma confiança total
no seu próprio governo? Não será minimamente possível que os seus antigos colegas das Operações Consulares tenham tido nisso alguma intervenção?
Janson fez um trejeito com a boca. A insinuação do catedrático tocara-lhe num ponto sensível; a hipótese, embora incrível na aparência, vinha a atormentá-lo desde
Atenas.
- Mas porquê? - perguntou.
- Peter Novak tornara-se mais poderoso do que muitas nações soberanas. Não poderia um estratega americano considerá-lo demasiado perigoso, pensar que representava
uma ameaça demasiado grande ao agir como actor independente no palco da política mundial?
As especulações de Fielding eram perfeitamente plausíveis e aquilo provocava-lhe um enorme desconforto. Marta Lang conhecia gente altamente colocada, não só no Departamento
de Estado como noutras instâncias. Tê-la-iam incitado a contratar Janson. Quem era aquela gente? Presumivelmente, dirigentes das Operações Consulares. E depois as
transferências incriminatórias para a sua conta nas ilhas Cayman; Janson julgara que os seus antigos patrões desconheciam aquela
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conta; porém, sabia também que o Governo Americano era capaz de exercer uma pressão subtil sobre as instituições bancárias offshore sempre que estavam em causa actividades
de cidadãos americanos. Quem poderia estar em melhor posição para interferir nos seus registos bancários do que os elementos de topo dos Serviços Secretos Americanos?
Janson não esquecera ainda o rancor e a má vontade que rodeara a sua retirada. O conhecimento que possuía das redes e dos procedimentos faziam dele, à partida, uma
ameaça potencial.
Teria sido simplesmente por se ter apresentado aos estrategas de raciocínio rápido uma oportunidade dourada? A de poderem matar dois coelhos de uma cajadada: liquidar
o potentado intrometido e, ao mesmo tempo, incriminar por essa morte o ex-agente rebelde?
Todavia, porque não deixar os extremistas kagamas levarem o seu plano até ao fim?
Ouviu-se, entretanto, o som abafado de uma velha sineta de cobre: encontrava-se alguém junto da porta das traseiras, que dava para uma zona de recepção no exterior.
Fielding levantou-se da cadeira.
- Dê-me licença por um minuto. Eu volto já.
O diagrama da situação bifurcava-se em dois cenários possíveis. Num deles, os Estados Unidos não fazem nada e Novak é morto. Porém, a inacção comporta riscos: os
riscos de um escândalo político. Peter Novak era um homem adorado em todo o Mundo; se fosse assassinado, o cidadão comum iria questionar-se por que razão os Estados
Unidos se tinham recusado a ajudar um santo dos tempos modernos numa hora difícil. A Fundação Liberdade podia vir a acusar os EUA de se terem negado a prestar ajuda,
e não era difícil imaginar o subsequente dilúvio de audiências no Congresso, de reportagens televisivas, de editoriais na imprensa. Aquilo que de início parecia
um caminho pacífico e cauteloso estava, de facto, eivado de vidros partidos.
E se existisse outra explicação?
A Fundação Liberdade, numa atitude típica da sua forma independente de actuar, reúne o seu próprio grupo internacional de comandos numa tentativa ousada de libertar
sub-repticiamente o prisioneiro. Se as coisas correrem mal, quem poderá culpar senão a si própria? Funcionários de nível médio do Departamento de Estado encarregar-se-iam
de "deixar escapar" para a comunicação social a informação: "A gente de Novak recusou as nossas ofertas de auxílio. Receavam que isso pudesse comprometer a sua aura
de independência."
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O minuto solicitado por Fielding prolongou-se por três, e quando regressou, fechando a porta atrás de si, notava-se nele algo de diferente.
- Era o tal aluno de que eu falei - tranquilizou-o num tom de voz ligeiramente agudo. - Coitado. A tentar desmontar o enredado de uma afirmação de Condorcet. Não
há meio de fazê-lo ver que em Condorcet o que é interessante é precisamente esse enredado.
Janson sentiu um arrepio na espinha. Qualquer coisa mudara no comportamento do reitor: utilizava agora um tom de voz brusco, como nunca acontecera, e notava-se nas
suas mãos um ligeiro tremor. Janson apercebeu-se de que algo perturbara o seu velho professor, e profundamente.
O catedrático encaminhou-se para uma peanha onde repousava um dicionário grosso.
- vou só procurar aqui uma coisa - disse. Mas Janson percebeu a carga emocional implícita naquela explicação. Não era a emoção causada pela perda súbita de um ente
querido, mas sim uma emoção de outro tipo. Era um alarme, uma suspeita.
E havia ainda algo mais no seu comportamento. O que era?
Angus Fielding deixara de olhar para ele de frente. Era isso. Havia várias pessoas que raramente olhavam para ele a direito, mas Fielding não era uma delas. Quando
falava com uma pessoa, olhava para ela olhos nos olhos. Quase sem dar por isso, Janson sentiu uma das suas mãos deslizar para trás das costas.
Viu, siderado, Fielding, de costas para ele, abrir o volumoso dicionário e ... não podia ser!
O reitor do Trinity College rodou para ficar de frente para Janson e empunhava na mão trémula uma pequena pistola. Janson avistou por detrás dele o espaço oco escavado
nas páginas do dicionário onde a pequena arma de bolso estivera escondida.
- Qual foi a verdadeira razão da sua vinda aqui? - perguntou Fielding.
Os seus olhos cruzaram-se por fim com os de Janson, e o que Janson leu neles fez-lhe suster a respiração: uma raiva assassina.
- Novak era um homem bom - exclamou Fielding em voz trémula. - Possivelmente, um homem excepcional. E acabo de saber que foi você que o matou.
O idoso catedrático baixou momentaneamente os olhos e teve um sobressalto. Porque Janson empunhava igualmente uma arma, a arma que, num movimento quase imperceptível,
sacara do coldre traseiro,
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enquanto o seu subconsciente registava já aquilo que o lado consciente tinha dificuldade em aceitar.
Janson destravou com o polegar a sua arma de cano curto e mira alta. Durante uns segundos, os dois homens quedaram-se a olhar um para o outro em silêncio.
Quem quer que fosse o visitante de Fielding, não era, de certeza, nenhum licenciado em História da Economia.
- Porque não larga essa velharia que tem na mão? - perguntou Janson. - Não condiz consigo.
- Para você me poder matar também?
- Oh, por amor de Deus, Angus! - replicou Janson com veemência. - Use esse seu magnífico cérebro. Eu só pretendia saber ...
- A localização dos colegas de Peter ... para poder matá-los também ! - interrompeu abruptamente o professor. - "O círculo restrito", como você lhe chamou.
- O senhor acabou de se encontrar com alguém. Diga-me quem foi. - O olhar de Janson virou-se de novo para a arma do reitor do colégio, uma pistola Webley de calibre
.22, a pistola mais pequena e mais facilmente dissimulável de entre todas as utilizadas pelos agentes dos Serviços Secretos no princípio da década de 1960.
- Para quê? Para você poder acrescentar mais um nome à sua lista sangrenta?
Jason estudou atentamente o rosto envelhecido do catedrático; o que viu foi um homem com medo de estar a enfrentar um adversário traiçoeiro. Mas observou também
uma centelha de dúvida; viu um homem que não estava absolutamente convencido da justeza do seu julgamento. "Tudo aquilo que sabemos deve ser continuamente reavaliado,
revisto com espírito crítico. Abandonado, se necessário."
- Considero chocante que a sua fonte o tenha persuadido a apontar uma arma letal a alguém que o senhor conhece há anos. -Janson sentia-se estranhamente tranquilo
e falava, por isso, com uma calma absoluta. - Não sei exactamente o que se está a passar, mas sei que alguém lhe mentiu. E, sabendo isso, é-me extremamente difícil
zangar-me consigo. - Abanou a cabeça com ar triste. - Quer mesmo apertar esse gatilho? Então, será melhor que tenha a certeza absoluta de que está a fazer o que
é correcto. Tem essa certeza, Angus? Não acredito que tenha.
Sem perder nunca o contacto visual, Janson levou à frente a mão que empunhava a arma, abriu os dedos e mostrou a pistola na palma da mão estendida, num gesto já
não de ameaça, mas de oferta.
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- Se vai disparar sobre mim, use esta. Essa relíquia que tem aí é capaz de lhe rebentar na mão.
O tremor da mão de Fielding acentuou-se ainda mais.
- Pegue nela - insistiu Janson em tom ríspido.
O reitor de Trinity estava pálido, dividido entre o filantropo que se habituara a venerar e um antigo aluno seu a quem fora em tempos extremamente devotado.
- Que Deus tenha piedade da sua alma! - exclamou por fim, baixando a arma. As palavras soaram a algo intermédio entre uma bênção e uma praga.
A CONSELHEIRA para a Segurança Nacional era uma mulher negra impecavelmente vestida, de rosto redondo e olhos grandes e penetrantes. Era a primeira reunião em que
Charlotte Ainsley estava presente desde o início da crise, mas o seu director-adjunto, Sanford Hildreth, mantivera-a sempre ao corrente do que se passava.
- Talvez esteja a escapar-nos alguma coisa; vamos lá passar novamente em revista o currículo do seu homem - disse ela a Derek Collins, subsecretário de Estado e
director das Operações Consulares. Apenas o essencial.
- Paul Elie Janson - principiou Collins -, criado em Norfolk, no Connecticut. A mãe era uma imigrante oriunda da então Checoslováquia. Alec Janson era director de
uma companhia de seguros. Em 1969, Paul abandona a Universidade do Michigan e alista-se na Marinha. Acontece que revela uma capacidade invulgar para tácticas de
combate e transfere-se para os fuzileiros, tornando-se na pessoa mais jovem de sempre a receber treino naquela unidade, e é colocado numa divisão de contra-espionagem.
Estamos a falar de uma curva de aprendizagem que parece um foguetão. O fulano faz comissão atrás de comissão, com exposição de combate contínua, sem folgas. Depois,
na Primavera de 1971, é feito prisioneiro pelo Vietcongue e mantido durante dezoito meses como prisioneiro de guerra em condições de extrema dureza.
- Importa-se de ser mais específico? - pediu Charlotte Ainsley.
- Torturado, deixado à fome e à sede, a maior parte do tempo dentro de uma gaiola de um metro e oitenta de altura por um metro e vinte de diâmetro, talvez. Quando
o encontrámos, pesava trinta e oito quilos. Estava tão esquelético que um dia as grilhetas lhe caíram dos pés. Fez três tentativas de fuga. A última teve sucesso.
- Esse tipo de tratamento era normal?
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- Não - respondeu o subsecretário. - Mas também não é normal tentar a fuga com tanta insistência e engenho. Eles sabiam que ele pertencia a uma divisão de contra-espionagem,
por isso procuraram desesperadamente que ele falasse. Teve sorte em sobreviver.
- Mas não em ser capturado - comentou a conselheira para a Segurança Nacional.
- Bem, é aí que as coisas se complicam, está claro. Janson acha que alguém o traiu. Que alguém forneceu ao VC informações a seu respeito e que foi deliberadamente
atraído a uma emboscada.
- Traição? De quem? - perguntou Charlotte Ainsley em tom incisivo.
- Do comandante dele. Parece que Janson ameaçara apresentar queixa dele ao Alto Comando ... por crimes de guerra.
- Isso quer dizer que o menino-prodígio se foi abaixo psiquicamente?
- Não. As suspeitas de Janson estavam certas. Uma vez regressado à pátria, agitou essa questão o mais que pôde através dos canais adequados, evidentemente. Pretendia
que o seu comandante fosse levado a tribunal marcial.
- E foi?
O subsecretário abriu muito os olhos.
- Quer dizer que você não sabe mesmo?
- Ponhamos de parte o rufar dos tambores. Se tem alguma coisa a dizer, diga.
- Não sabe quem era o comandante de Janson? Ela abanou a cabeça, de olhar atento e penetrante.
- Um homem chamado Alan Demarest - informou o subsecretário. - Ou devia dizer antes o capitão-de-fragata Demarest?
- "Estou a ver", como dizia o ceguinho. - O sotaque sulista dela, que há muito vinha a dissimular, veio ao de cima, como sempre acontecia em situações de tensão.
- Quando voltamos a encontrar o nosso Janson, já é como candidato a uma licenciatura pela Universidade de Cambridge, ao abrigo de uma bolsa do Governo. Após o que
regressa às Operações Consulares.
- Sob as suas ordens - disse Charlotte Ainsley.
- Sim. Por assim dizer. - O modo como Collins falou dava a entender que Janson não era propriamente o mais subordinado dos subordinados.
- Há, sem dúvida, muitas coisas que não sabemos - referiu
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Charlotte Ainsley. - Mas tudo se resume a uma questão: ele trabalha para nós ou contra nós? Ora bem, aí está uma coisa que nós sabemos. Ele não trabalha para nós.
- Esse tipo é uma variável que não podemos controlar - afirmou o director-adjunto do Serviço de Informações da Defesa, Douglas Albright, repousando sobre a mesa
os antebraços em forma de presunto.
- A consequência lógica é que vamos ter de eliminar essa variável.
- Uma "variável" que, por acaso, consagrou três décadas da sua vida ao serviço do seu país - retorquiu Collins. - Uma coisa curiosa, esta nossa profissão: quem fala
de mais alto é exactamente quem menos coisas fez.
- Deixe-se disso, Derek. Ninguém tem as mãos mais sujas do que você. À excepção desse seu rapaz, Janson. Uma das suas diabólicas máquinas de matar - exclamou o homem
do SID, fuzilando o subsecretário com o olhar. - Que precisa de provar do seu próprio remédio. O meu inglês é suficientemente claro?
O subsecretário retribuiu o olhar hostil ao analista. No entanto, era bastante evidente para que lado soprava o vento. Olhando para Clayton Ackerley, o homem da
Direcção de Operações, Collins perguntou:
- Porque não dá aos seus "cowboys" mais uma oportunidade?
- Derek, você conhece as regras - interveio Ainsley. - Cada um limpa o seu próprio caixote do lixo, não quero uma nova Atenas. Ninguém conhece melhor os seus métodos
do que o quadro que o treinou. com certeza que os seus chefes de operações já terão elaborado um plano de emergência.
- Sim, claro - respondeu Collins. - O plano prevê a deslocação de um grupo especial de atiradores de elite altamente treinados.
- E prevê o extermínio?
- As ordens são para localizar, vigiar e aguardar.
- Pois então active o plano - disse ela. - É uma decisão colectiva. Mr. Janson não é passível de salvação. Dê luz verde à sanção. Já!
DE FATO AZUL-ESCURO e gravata às bolas, Janson percorreu em grandes passadas o Pall Mall. Contudo, não se deteve no seu destino; prosseguiu para além dele, de olhar
atento a qualquer sinal de anormalidade.
Não conseguia parar de pensar no que sucedera no Trinity College: devia ter activado aí um qualquer sinal de alarme. Era mais provável
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que o seu antigo mentor se encontrasse sob vigilância do que ele ter sido seguido. Mesmo assim, quer a dimensão da rede montada, quer a rapidez da resposta tinham
sido formidáveis. Daí em diante não podia confiar em mais nada.
Não obstante, o seu instinto dizia-lhe que podia entrar no Athenaeum Club sem ser observado. Não era o ponto de encontro que ele teria escolhido. Porém, para os
seus objectivos seria útil encontrar-se com Grigori Berman nos termos que ele ditara. Além disso, num clube de cavalheiros à maneira antiga seria difícil deixarem
passar um rosto desconhecido. Janson ia entrar lá na qualidade de convidado de um sócio e duvidava de que algum elemento de uma equipa de vigilância pudesse gozar
de idêntica oportunidade de acesso.
No interior do clube, identificou-se, a si e ao membro com quem ia encontrar-se, perante um guarda fardado, após o que se dirigiu para ofoyer.
Grigori Berman era uma pessoa que, se demonstrasse possuir algum sentido de moralidade, preferiria manter aquele relacionamento algo distante. Formado em Contabilidade
na ex-União Soviética, fizera fortuna a trabalhar para a Mafiya russa, tornando-se especialista na complexa arquitectura da lavagem de dinheiro. Há uns anos, Janson
deixara-o deliberadamente escapar a uma rusga levada a cabo pelas Operações Consulares. Tinham sido detidas várias dúzias de criminosos internacionais; no entanto,
Janson deixara em liberdade o seu génio financeiro.
Na realidade, essa sua decisão fora ditada pela razão, não por qualquer capricho. Significava que daí em diante Berman ficaria em dívida para com ele: o russo passaria
de adversário a aliado. E poder dispor de alguém perfeito conhecedor dos meandros da lavagem de dinheiro internacional representava, de facto, um trunfo importante.
E ainda havia mais uma coisa. Janson tivera oportunidade de conhecer os principais fautores do esquema. Muitos deles eram pessoas cruéis, violentas. Berman, por
seu turno, alheara-se deliberadamente dos pormenores; era prazenteiramente amoral, mas não era maldoso. Não tinha qualquer problema em extorquir dinheiro, mas era
capaz de ser bastante generoso com o seu. E talvez por isso, algures no decurso da sua convivência, Janson começara a nutrir alguma simpatia por aquele crápula amante
da boa vida.
- Paulie! - trovejou o homem grande, abrindo desmesuradamente os braços.
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Janson deixou-se envolver no amplexo do russo.
- Eu abraço-te e beijo-te - exclamou Berman, comprimindo os lábios de encontro às suas faces. Todo ele cheirava a essência de lima, e o tecido do seu fato de riscas
finas, feito por medida, era caxemira, macia como feltro.
- Estás com um aspecto ... próspero e de quem come bem, Grigori - exclamou Janson.
Grigori bateu com as mãos no ventre generoso.
- Por dentro, estou a ficar magro e fraco. Anda, vamos comer. E escoltou Janson para a sala de jantar, colocando um braço à volta do seu ombro.
Dentro da sala, os empregados sorriram efusivamente e acenaram com a cabeça assim que o exuberante russo apareceu e acompanharam-no de imediato até junto de uma
mesa.
Depois de acomodado na cadeira estofada, Berman procurou um escanção com o olhar.
- Aquele Puligny-Montrachet que tomámos ontem? É possível arranjar-nos uma garrafa, Freddy? - Voltou-se para Paul. - É do melhor que há. Vais ver.
- Devo dizer que estou surpreendido por te encontrar aqui, bem instalado no coração do establishment britânico.
- Um crápula como eu, queres tu dizer ... como é que me admitiram aqui? - Berman soltou uma sonora gargalhada. - É uma longa história.
- Vais ter de ma contar noutra altura - retorquiu Janson com determinação. - Vim procurar-te por causa de um problema interessante, Grigori. Um problema que, estou
certo, te vai fascinar.
O russo olhou para ele, expectante.
- Grigori é todo ouvidos.
Janson fez um breve resumo do que sucedera: o depósito de dezasseis milhões de dólares que fora efectuado numa conta das ilhas Cayman sem conhecimento do titular
da conta, mas validado por assinaturas electrónicas a que apenas esse titular tinha acesso. Um golpe de mestre. Mas não seria possível encontrar-se uma pista? Haveria
alguma hipótese de, no meio da cascata de dígitos necessários para efectuar a transferência, alguém ter deixado as suas "impressões digitais"?
Enquanto Janson falava, Berman parecia estar exclusivamente ocupado com a comida; no entanto, Janson tinha a certeza de que o seu cérebro fervilhava de actividade.
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O milionário pousou finalmente o garfo.
- Sabes, na semana passada fui à Canary Wharf Tower visitar uma amiga russa, Ludmilla. Estávamos no quadragésimo andar, eu contemplava pela janela uma magnífica
vista desta cidade e adivinha o que vi de repente pela janela, flutuando no ar.
- Uma nota de banco?
- Borboleta - respondeu Berman, dando a sensação de estar a pôr fim à conversa. - Mas porquê borboleta? O que borboleta estar a fazer a quarenta andares de altura
em plena cidade? Não há flores a quarenta andares de altura. Nada para borboleta fazer ali em cima, no céu. Mesmo assim: borboleta. - E espetou um dedo no ar para
dar mais ênfase ao que dizia.
- Obrigado, Grigori. Sabia que podia contar contigo para esclarecer tudo.
- Deve sempre procurar-se a borboleta. No meio de coisa nenhuma, coisa que destoa do resto. Perguntas tu: no meio de uma cascata de dígitos de uma transferência
pode haver uma borboleta? Sim, sempre borboleta. Sem dúvida. Apenas é preciso saber procurar.
- Estou a ver - comentou Janson. - E tu vais ajudar-me a procurá-la?
- com certeza. Eu levar-te à minha humilde morada, da? Tenho lá máquina IBM último grito. Supercomputador RS/6000. E vamos procurar borboleta.
- Vamos descobrir borboleta - emendou Janson.
CAPÍTULO SEIS
BERTHWICK HOUSE, aquilo a que o russo chamara a sua humilde morada, era, de facto, uma mansão gregoriana a dar para o Regents Park. Berman conduziu Janson para um
piso inferior, uma cave atapetada onde se encontravam diversos postos de trabalho com computadores. Um mordomo de casaco comprido de quatro botões e camisa de pique
engomada chegou com chá e scones, dispostos em pratos de barro de Bristol. Pousou-os numa mesinha de canto juntamente com pequenos boiões de cerâmica cheios de natas
batidas e compotas, retirando-se em seguida.
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Lançando um olhar guloso aos scones, Berman sentou-se a um dos teclados e activou uma série de programas de busca.
- Diz a Grigori em que é que devo entrar.
Janson comunicou-lhe os elementos essenciais do seu problema. Grigori escutou, após o que inseriu os valores de uma matriz algébrica no programa que estava a correr.
- Vamos deixar estes programas correr, depois talvez tenhamos resultados a tempo.
- Daqui a quanto tempo?
- Pôr máquina a trabalhar vinte e quatro horas, coordenar com a
rede de computadores de processamento paralelo global e depois talvez...
- Berman parecia drogado. - Oito meses? Não, acho que nove
meses. Como fazer bebé.
- Estás a gozar.
- Tu queres que Grigori faça o que outros não conseguem? Então,
tens de fornecer Grigori números que outros não têm. Tens a sequência-chave de acesso à conta, da? Nós usar isso, nós termos vantagem
especial. Senão, voltar ao tempo para fazer bebé: nove meses,
Embora com relutância, Janson forneceu-lhe a sequência-chave
para acesso à sua conta bancária. Dez segundos depois de ele ter introduzido
a sequência, o monitor de Berman encheu-se de uma confusão de dígitos que deslizavam no monitor como a ficha técnica no final de um filme.
i - Números não significam nada - disse o russo. - Agora, temos
de proceder ao reconhecimento do padrão. Procurar borboleta.
- Descobrir borboleta - acentuou Janson.
- Bah! - exclamou Berman. Nos cinco minutos que se seguiram,
estudou sequências de códigos de confirmação com uma concentração total. Por fim, leu alto uma série de dígitos. - Borboleta está
aqui: 5467-001-0087. Eis a borboleta.
- Esses números não me dizem nada.
- Pois a mim os mesmos números dizem muito - contrapôs Berman. - Os números falam de belas mulheres louras, de canais sujos
e cafés onde se fuma haxixe.
- Queres dizer com isso que tens aí um código de transferência com origem em Amsterdão?
- Da! Os códigos de transferência com origem em Amsterdão
aparecem vezes demais para ser coincidência. A tua fada-madrinha utiliza um banco de Amsterdão.
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- E consegues saber qual é?
- Impossível entrar numa conta específica, a não ser que ... Nyiet, impossível.
- A não ser o quê?
- Código de segurança? - Berman encolheu-se como se estivesse à espera de ser esbofeteado por ter pronunciado aquelas palavras. Para movimentar fazer débitos ou
créditos na conta era necessário um código de autorização privado, uma sequência de dígitos que só o respectivo titular conhecia; esse código nunca surgia em nenhuma
transacção. Esta garantia digital ultra-segura protegia quer o cliente, quer o banco.
Janson quedou-se em silêncio por instantes. Fornecer aquele código confidencial a Berman era presenteá-lo com uma tentação tremenda; em duas penadas, ele poderia
perfeitamente esvaziar a conta em seu proveito. Porém, a que custo? Berman adorava a vida que levava ali; sabia que, ao converter Janson num inimigo, poria em risco
tudo aquilo que possuía, tudo aquilo que era. Não era necessária qualquer ameaça para sublinhar os riscos que corria.
Janson recitou a sequência de quinze algarismos e observou Berman a digitá-la no computador. Em poucos instantes, o russo estabelecera ligação com uma dúzia de instituições
financeiras, escavando por dentro a supermemória do computador do Banco de Mont Verde para retirar de lá as assinaturas digitais que identificavam, particularizando,
o parceiro de cada uma das transacções.
Passaram-se alguns minutos. O silêncio apenas era cortado pelo bater suave das teclas. Berman levantou-se de repente.
- Da! - exclamou - ING. Que são as iniciais do Netherlands International Group Bank.
- Se consegues identificar o banco, não podes ir um pouco mais longe ainda?
- Muito difícil - retorquiu Berman enquanto trincava um scone.
- "Difícil" não significa impossível. Ou será que recomendas outra pessoa para fazer esse serviço?
O anfitrião pareceu ficar ofendido.
- Nada impossível para Grigori. - com ar submisso, foi sentar-se novamente à mesa do computador.
Transpirando por todos os poros após quinze minutos de intensa concentração, Berman ergueu os olhos subitamente e voltou-se para trás.
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- Isto tem a sua piada - exclamou, sorrindo.
- Porque é que dizes isso? - perguntou Janson.
- Consegui localizar a conta de origem da transferência. Muito difícil. Foi preciso entrar pela porta das traseiras com códigos que não podem voltar a ser utilizados.
Um algoritmo assimétrico invertido. Software de escavação de dados parte à busca de um padrão, procura sinal enterrado no meio do ruído. Muito difícil...
- Grigori, meu caro, eu não preciso da versão completa do Guerra e Paz.
Berman encolheu os ombros, ligeiramente enfadado.
- Programa poderoso de computador fez o equivalente a um triatlo de nível olímpico, sem os esteróides da Alemanha Oriental para ajudar, mas, mesmo assim, identificou
a conta original.
A pulsação de Janson aumentou bruscamente de ritmo.
- Tu és um verdadeiro feiticeiro.
- E tudo isto uma verdadeira anedota - repetiu Berman.
- Que estás tu a dizer?
O sorriso de Berman tornou-se ainda maior.
- O homem que te pagou para matar Peter Novak? Foi Peter Novak.
- Como diabo podes afirmar uma coisa dessas?
- Conta em nome de Peter Novak.
- Estás a querer dizer-me que, numa altura em que Peter Novak estava encerrado numa masmorra de Anura, ele autorizou uma transferência de dezasseis milhões de dólares
para uma conta secreta que só eu controlava?
- Pode tratar-se de uma pré-autorização.
- É possível que outra pessoa tivesse deitado a mão a essa conta de Peter Novak e obtivesse de alguma maneira o seu controle?
O russo encolheu os ombros.
- Código de origem apenas me indica titular da conta. Quanto ao acesso, pode haver muitas especificações, mas isso eu não posso ver aqui. É uma informação que não
flui de modern para modern. Certificação legal na posse da instituição de origem. Banco em Amsterdão segue instruções estabelecidas pelo titular. O sufixo da conta
diz que ela está associada a fundação.
O que parecia agora indubitável era que quem quer que tivesse traído Novak era alguém que conquistara a sua confiança. Mas com que propósito?
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- Tu vires comigo - disse Berman. - Eu mostrar-te a casa. Pôs um braço por cima do ombro de Janson e conduziu-o escada acima para a cozinha através do magnífico
hall.
Berman dirigiu-se para junto do reluzente lava-loiça de aço inoxidável, de onde as janelas davam para um belo roseiral. Para lá do roseiral, estendia-se o Regent"s
Park.
- É como se tivesse novecentos e oitenta hectares de quintal no meio de Londres. - Tirou o espalhador da torneira do lava-loiça e levou-o à boca como se fosse um
microfone - Alguém deixou os scones lá fora à chuva. - Cantarolou em russo com voz de baixo. - Não me parece que possa aceitar isso ... - Puxou Janson para mais
próximo de si, tentando formar com ele um dueto, e ergueu uma mão no ar num gesto expressivo, tal como um cantor de ópera em pleno palco.
Ouviu-se o tinir de vidro a quebrar-se, e Berman calou-se com uma brusca expiração de ar. Um momento depois, estatelava-se no chão.
Na palma da mão, apresentava um pequeno orifício vermelho. No troço superior esquerdo da frente da camisa, estava outro ferimento causado por perfuração, já ligeiramente
tingido de vermelho.
- Santo Deus! - bradou Janson. Olhou lá para fora pela janela, mas não descortinou qualquer sinal de movimento.
Ouviu então os passos do mordomo, que acorria por ter ouvido a sua exclamação. O mordomo puxou o corpo de Berman para fora da zona da janela, arrastando-o pelo chão
fora. Depois, ele próprio, empunhando uma pistola, perscrutou igualmente com o olhar o panorama que se avistava da janela. Vira o mesmo que Janson; uma troca de
olhares entre eles traduziu a estupefacção de ambos. Decorreram alguns segundos até ambos se retirarem para o corredor, a uma distância segura da janela. No chão,
Berman produzia uns ruídos húmidos e rouquejantes à medida que o ar que respirava abria caminho pelas suas vias respiratórias afectadas. Ao mesmo tempo, remexia
com os dedos na ferida que tinha no peito.
Os dedos da sua mão direita, incólume, tremiam com o esforço que o russo fazia a escarafunchar na ferida com notável determinação. Estava à procura da bala. De respiração
ofegante, extraiu do peito uma massa achatada de latão e chumbo.
- Escute - disse Janson, dirigindo-se ao mordomo. - Eu sei que isto é com certeza penoso para si, mas preciso que se mantenha calmo, Mr ...
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- Thwaite. Eu pertenci durante quinze anos à Brigada Especial Aerotransportada. Isto não foi uma simples violação de propriedade; ambos sabemos que estamos perante
outro tipo de situação.
- com que então BEA?
- Mr. Berman pode ser excêntrico, mas não é parvo. Um homem como ele cria inimigos. Estamos preparados para as contingências normais, mas este tiro surgiu do nada.
Não consigo explicar o que se passou.
A mente de Janson encheu-se de curvas elípticas e ângulos rectos. Estabeleceu a correlação entre o ponto de penetração da bala no braço estendido de Berman e o ferimento
na zona peitoral superior esquerda. Uma elevação de cerca de trinta e cinco graus em relação à horizontal. Contudo, não havia na vizinhança nada visível a um ângulo
desses.
Ergo, a bala não fora disparada das imediações.
A bala que Berman extraíra era a confirmação disso mesmo. Tinha forçosamente de se tratar de um disparo feito de longa distância, já no limite da trajectória de
tiro. Caso tivesse sido feito de cem metros, teria perfurado o corpo de Berman e aberto um orifício de saída. Mas a perfuração fora de cerca de cinco centímetros
apenas. Janson calculou que a distância percorrida pela bala tivesse sido de cerca de um quilómetro.
A sua atenção concentrou-se no panorama que se avistava da janela: os telhados paladianos de Hanover Terrace, a cúpula redonda da Mesquita Central de Londres ...
e o seu minarete, a torre com aquela pequena varanda que os muezins utilizam para chamar os fiéis à oração. Estaria provavelmente desguarnecida; um profissional
não teria grande problema em entrar lá. E se os cálculos de Janson estavam correctos, um entrara mesmo.
Mas quantos homens conseguiriam disparar um tiro daqueles? Dois ou três russos. O norueguês que ficara em primeiro lugar numa competição internacional no ano anterior.
Um par de israelitas. Um punhado de americanos.
E quem era o alvo?
Recordou o braço de Berman à volta do seu ombro, puxando-o para junto de si. A bala que atingira o russo passara a trinta centímetros da cabeça de Janson.
Trinta centímetros. Um desvio incontrolável à distância de um quilómetro. A dedução lógica era que o alvo seria Janson. Era ele o único elemento novo naquela situação.
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Ouviu a sirene da ambulância que Thwaite chamara. E, entretanto, sentiu um puxão nas calças. Era Berman.
- Janson - disse ele, falando como se tivesse a boca cheia de água. - Apanha o filho de uma cabra que fez isto, da?
- Da! - retorquiu Janson com voz firme.
THWAITE APANHOU Janson de lado e falou-lhe em voz baixa.
- Quem quer que o senhor seja, Mr. Berman certamente confia em si, porque de outra forma não o teria convidado para sua casa, mas agora vou ter de lhe pedir que
saia.
Janson saiu a correr por uma porta das traseiras. Passados poucos minutos, corria já em direcção ao lago dos botes de recreio, após ter saltado por cima da vedação
de ferro forjado que circundava o Regents Park. Quando ia a aproximar-se de um grande salgueiro, o tronco forte da árvore revelou uma súbita mancha branca, ao mesmo
tempo que se ouvia o ruído muito ligeiro de um impacte: chumbo a embater na casca rugosa.
Um tiro que, mais uma vez, por escassos centímetros não lhe acertara.
Rodava a cabeça de um lado para o outro enquanto corria, mas não conseguia avistar nada de especial. O único som que ouvira fora o do projéctil a embater na árvore:
nenhum ruído de detonação na câmara de uma carabina. Era provável que utilizassem um silenciador. Mas, mesmo com silenciador, uma bala disparada a uma velocidade
supersónica produz ruído ao ser expelida pelo cano: não necessariamente um ruído muito audível, mas, apesar de tudo, um ruído semelhante ao estalar de um chicote.
O facto de ele não o ter ouvido sugeria que tivesse sido novamente um tiro disparado de longa distância. Conclusão: tinha a persegui-lo um atirador especial extremamente
hábil. Ou até mesmo um grupo deles.
Mas onde é que estavam? O tiro proviera de sudoeste, onde não avistava nada para além de um renque de carvalhos a poucas centenas de metros de distância.
Num caminho empedrado perto dali, uma mulher entroncada com uma saia de algodão passava para a mão da sua filha pequena um par de binóculos.
- Estás a ver aquele ali com as asas azuis? Chama-se chapim-azul. Naquele momento, um factor de segurança jogava a seu favor: levantara-se uma brisa que fazia rumorejar
as folhas das árvores. Qual-
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quer atirador especial estaria atento à existência de um vento irregular, pois sabia que isso podia perturbar enormemente a trajectória do tiro. Se dispusesse de
alguma alternativa, e dispunha, o atirador ia esperar que o vento amainasse.
Janson aproximou-se da mulher e da garota. Embora consciente de que transportava consigo uma aura letal, tinha de confiar no brio profissional dos atiradores especiais:
os atiradores daquele calibre orgulhavam-se da precisão da sua pontaria, ou seja, atingir transeuntes era como que a confissão de um amadorismo inaceitável; e a
brisa continuava a soprar.
- Desculpe, minha senhora, mas importa-se de me emprestar esses binóculos? - pediu à mulher, ao mesmo tempo que piscava o olho à criança.
- Não, mãe! - gritou a garota. - Eles são meus, meus, meus!
- Não chores, minha querida - disse a mãe; depois, voltando-se para Janson, interpelou-o: - Não vê que assustou a criança? Por favor, deixe-nos em paz.
- Mudava de opinião se eu lhe dissesse que se trata de um caso de vida ou de morte? - perguntou Janson, exibindo o que esperava fosse um sorriso persuasivo.
- Santo Deus! - exclamou a mãe. - Vocês, ianques, julgam que são os donos do Mundo. Não e não, entendido?
Entretanto, já passara tempo demais. A brisa amainara. Janson agachou-se ao pé da criança chorosa e disse-lhe:
- Ei, está tudo bem. - Tirou-lhe cuidadosamente das mãos os binóculos e afastou-se rapidamente.
- Que diabo é que está a fazer? - vociferou a mulher.
Janson dirigiu-se a correr para junto do coreto, que ficava a duzentos metros dali.
Zzzt! Uma bala veio embater na madeira do coreto, e Janson rebolou no chão até ficar por baixo dele.
Olhou então para as árvores através dos binóculos. Carvalho, faia, castanheiro, freixo. Qual delas era mais alta e mais frondosa? Uma apreciação rápida do renque
de árvores elegeu um par de candidatas. Janson focou então os binóculos sobre essas duas.
Folhas. Galhos. Ramos. E ...
Movimento. Ficou com pele-de-galinha.
Uma brisa leve abanava as árvores: claro que tinha de haver movimento. Porém, o ramo que se moveu era demasiado grosso para ser
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afectado por aquela brisa passageira. No entanto, o ramo mexeu-se. Porquê?
Porque não era ramo nenhum. O facto de o ramo parecer anormalmente direito tinha uma explicação: era uma carabina. Os galhos estavam presos à arma por arames, e
aquela pequena mancha escura na ponta não era um buraco de árvore tapado com alcatrão, mas sim o orifício do cano da arma.
"vou apanhar-te", pensou Janson para consigo.
Uma equipa de jogadores de futebol passava naquele momento junto à borda do lago de recreio em direcção ao campo de jogos, e ele juntou-se-lhes. Sabia que de tão
longe era difícil distingui-lo no meio da multidão. O lago entretanto estreitava-se, e quando os homens iam a atravessar a ponte de madeira, Jansou lançou-se à água.
Expeliu todo o ar que tinha nos pulmões e nadou naquela água suja e escura, mantendo-se perto do fundo. Se a sua artimanha tivesse sido bem-sucedida, a mira telescópica
do atirador estaria ainda assestada sobre o grupo de atletas. As miras telescópicas de alta potência têm inevitavelmente um campo de visão reduzido; era impossível
focar ao mesmo tempo um grupo em movimento e o terreno circundante. Mas durante quanto tempo é que iriam pensar que ele ainda seguia com o grupo?
Atravessou o canal para a margem sul, içou-se para a margem de betão do lago e correu a abrigar-se sob um renque de faias.
Correu de uma árvore para outra, fez um compasso de espera, depois correu para junto de outra. Se o seu instinto não o enganava, devia encontrar-se precisamente
por baixo da árvore onde pelo menos um dos atiradores se posicionara.
O tiro de precisão requeria uma enorme concentração. Requeria o alheamento total de qualquer estímulo periférico. A visão em túnel era provocada não só pela estreiteza
do campo visual observado através da mira telescópica, mas também pela intensidade da concentração mental. Janson precisava de tirar partido dessa visão em túnel.
Os atiradores estariam certamente munidos de auriculares para estabelecer contacto via rádio com o coordenador, o que reduzia ainda mais a respectiva sensibilidade
aos ruídos ambientais.
Foi-se içando tronco acima tão silenciosamente quanto possível. Ao atingir os três metros de altura, reparou que todo o conjunto de ramos onde o atirador estava
empoleirado era falso. Assemelhava-se incrivelmente a um cenário real, mas ali de cima e de tão perto via-se que
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se tratava de uma construção artificial ligada ao tronco da árvore por uma armação de metal constituída por cabos de aço, olhais e parafusos, tudo pintado em tons
de azeitona com tinta em spray.
Estendeu o braço para a armação e, com um puxão súbito, soltou o parafuso central. O cabo de aço, libertado, deslizou, e o ninho do atirador ficou subitamente sem
apoio.
Janson ouviu uma praga abafada enquanto o ninho escorregava pela árvore abaixo, quebrando ramos no seu trajecto em direcção ao solo.
Janson, por fim, conseguiu observar a figura do atirador vestido de verde que tinha por baixo de si. Era um jovem esguio, momentaneamente aturdido pela queda. Janson
desceu da árvore e postou-se acima dele.
Arrancou-lhe das mãos a carabina, umaM40Al modificada.
- com um raio! - O timbre em que a praga foi proferida era de voz de jovem.
Janson levou a mão à gola do atirador e apertou-lha à volta do pescoço, ao mesmo tempo que lhe arrancava o comunicador de rádio. Janson reparou no cabelo espetado,
curto e castanho, os membros finos: não era efectivamente, e à primeira vista, grande coisa como homem. Colocou-lhe a mão espalmada nas costas, mantendo-o grudado
ao chão, enquanto lhe tirava a Beretta que ele tinha à cintura.
- Tire essas mãos nojentas de cima de mim - exclamou o atirador em voz sibilante, voltando-se de barriga para cima.
-Jesus! - bradou Janson involuntariamente. - Você é ...
- O quê? - perguntou o atirador, lançando-lhe um olhar de desafio.
Janson limitou-se a abanar a cabeça. O atirador soergueu-se, e Janson respondeu com a força, lançando-o novamente ao chão.
O atirador era flexível, ágil, surpreendentemente forte e ... mulher.
Ela voltou à carga, lançando-se sobre ele e tentando recuperar a carabina. Janson recuou e, com o polegar, puxou o trinco de segurança da arma atrás.
- Está em inferioridade, Janson - disse ela. - Desta vez não são aqueles rabos gordos das embaixadas que andam atrás de si. Desta vez, trataram de mandar os melhores.
- Notava-se na voz dela o sotaque da região dos Apalaches.
Ele sorriu e declarou:
- Bem, vou fazer uma proposta. Ou aceita ou mato-a.
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Ela resfolegou.
- Julga que está a olhar para a sua quadragésima sétima? Está muito enganado, meu velho.
- Que conversa é essa?
-Já arrumou quarenta e seis pessoas, certo? Estou a falar de mortes sancionadas, de mortes em acção.
Janson sentiu o sangue a gelar. O número, número que nunca fora para si motivo de orgulho e era, pelo contrário, cada vez mais uma fonte de angústia, estava correcto.
Mas era também um número que pouca gente sabia.
- Comecemos pelo princípio - disse Janson. - Quem é você?
- O que é que lhe parece? - retorquiu a atiradora.
- Nada de brincadeiras. -Janson empurrou o cano da M40A1 com força de encontro ao diafragma dela.
Ela tossiu.
- O mesmo que você. O mesmo que você era.
- Operações Consulares - arriscou Janson.
- Acertou.
- Então, faz parte da equipa de atiradores Lambda. A mulher confirmou com um aceno de cabeça.
- E a Lambda apanha sempre a sua presa.
Ela dizia a verdade. E aquilo significava que saíra uma ordem declarando-o inimigo a abater. As Operações Consulares tinham emitido uma directiva para um grupo de
especialistas de elite: uma ordem para matar.
- Certo, camarada - disse Janson. - Preciso de conhecer a localização dos outros e nada de trapaças comigo. - Retirou o carregador da M40A1, depois apontou-lhe a
Beretta à cabeça.
Ela fitou-o por um longo momento, mas ele retribuiu-lhe o olhar com uma passividade absoluta. Estava preparado para matá-la sem qualquer espécie de contemplação.
Apenas a sorte a impedira de o matar a ele.
- Há mais um tipo - principiou ela.
com a mão que empunhava a arma, Janson deu-lhe uma pancada com força num dos lados da cabeça.
- Não vamos começar esta nossa relação com mentiras, minha querida. Admiro a sua discrição, mas se não me servir para nada viva, não posso dar-me ao luxo de a deixar
andar por aí. - Engatilhou a Beretta e acariciou o gatilho com o indicador.
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- Pronto, pronto - apressou-se ela a responder. - Eu falo.
- O jogo é meu, eu é que estipulo as regras. Vai dar-me a localização do atirador mais próximo e aproximamo-nos dele. Se me enganar, morre. Se me entregar, morre
também. Lembre-se de que conheço bem os sistemas, os protocolos e os procedimentos. Provavelmente, metade deles foi escrita por mim.
Ela levantou-se, cambaleando.
- Está bem, meu. Tome o meu telémetro. Se não acredita em mim, pode verificar pessoalmente. O atirador B está trezentos metros para noroeste. - Era uma estrutura
baixa de tijolo que abrigava equipamento de telecomunicações. - Ele está lá em cima. Também andam homens a pé na Baker Street, Gloucester Place e York Terrace Way.
São transeuntes armados com Glocks. Dois atiradores especiais vigiam na totalidade o Regent"s Canal, e está um homem no telhado do Regent"s College.
Sempre com a arma bem segura na mão, Janson espreitou através do telémetro. O bunker de betão que ela mencionara era o tipo de estrutura que pontua vulgarmente a
paisagem urbana que as pessoas vêem, mas em que não reparam. Uma boa posição. Janson regulou a amplificação da imagem até que distinguiu ... qualquer coisa. Uma
luva? Parte de uma bota? Impossível concretizar.
- Você vem comigo - disse Janson, agarrando o pulso da atiradora.
- Já percebi - exclamou ela. - É como no acampamento da Hamas, na Síria, perto de Qael-Gita. Você tomou uma sentinela como refém, obrigou-a a divulgar a localização
de outra, repetiu o processo, e assim eliminou todas as defesas do perímetro em menos de vinte minutos.
- com quem é que andou a falar, co"s diabos? - perguntou Janson. - Pouca gente conhece esses pormenores, mesmo dentro da organização.
- Oh, ficava surpreendido com as coisas que eu sei a seu respeito
- respondeu ela.
Janson atravessou o relvado em grandes passadas, arrastando-a consigo.
Aproximaram-se do bunker de betão, e Janson levou um dedo aos lábios. Continuava a empunhar a Beretta.
Inclinou-se, baixando-se, e fez sinal à atiradora para fazer o mesmo. No cimo da estrutura baixa de tijolo, lá estava ele deitado.
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- Victor! - avisou a mulher subitamente.
O atirador rodou a arma e disparou um tiro às cegas. Janson saltou para o lado, depois trepou para o bunker, deu uma cambalhota e arrancou a carabina das mãos do
homem. Este ia a levar a mão à arma que tinha à cintura, mas Janson antecipou-se e, com a carabina, desferiu-lhe um golpe na cabeça. O homem tombou imediatamente
no chão, inanimado.
A mulher voltou-se então para Janson, agarrou-o pelo casaco e preparou-se para lhe aplicar uma joelhada no baixo ventre. Enquanto Janson se encolhia numa atitude
defensiva, ela esticou um braço, com os músculos tensos, e com a mão fechada atirou a Beretta pelos ares.
Recuaram ambos alguns passos.
A mulher assumiu a clássica posição defensiva militar, com o braço esquerdo estendido perpendicularmente ao corpo para deter um eventual ataque do adversário. Quanto
ao braço direito, colocado ao lado do corpo, empunhava uma pequena faca que estivera dissimulada dentro da bota, de modo que ele nem sequer a vira tirá-la. Ela era
boa naquilo, mais rápida e mais ágil do que ele.
O seu ponto fraco era precisamente o facto de estar bem treinada. Janson sabia exactamente o que ela ia fazer a seguir, porque sabia o que lhe tinham ensinado. Ele
próprio ensinara a muita gente aqueles mesmos movimentos.
Janson lançou-se subitamente para a frente, agarrando-lhe no braço estendido; ela ergueu a faca, tal como ele previra, e ele desferiu-lhe uma pancada violenta no
pulso. O nervo mediano era vulnerável a cerca de três centímetros da base do pulso, e a pancada que ele lhe deu visou precisamente essa zona, tendo como consequência
que a mão que segurava a faca se abrisse involuntariamente. Então, ele agarrou na arma que ela largara, ao mesmo tempo que lhe pontapeava o joelho direito, fazendo-a
desequilibrar-se. A mulher caiu de costas, mas, ao fazê-lo, a sua perna tocou-lhe no pé de apoio, acabando ele por cair também por cima dela.
Sentiu o calor do corpo dela por baixo de si, os músculos dela a contraírem-se enquanto se contorcia e esperneava. Fazendo pressão com as coxas, manteve as pernas
dela coladas ao chão e, com os cotovelos, fez o mesmo em relação aos seus braços, contando com a vantagem do seu maior peso e da sua força bruta.
Reparou que ela contraía os músculos do pescoço e percebeu que pretendia partir-lhe o nariz com uma cabeçada; comprimiu então a testa
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contra a testa dela, imobilizando-a. Sentiu o hálito morno dela no ; rosto. -
- Você quer mesmo matar-me, não quer? - perguntou Janson.
- Não, que ideia! - respondeu ela em tom sarcástico. - No que me diz respeito, isto são apenas preliminares. - Sacudia-se violentamente, procurando libertar-se
dele, e Janson só a muito custo conseguia manter a sua posição.
- O que foi que lhe contaram então a meu respeito? V
- Que você é um tipo que matou por dinheiro.
- Isso é porcaria.
- Porcaria é o que você é. Enganou toda a gente e mais alguém. Traiu a instituição, traiu o seu país.
- Acha que sim? Uma fulana esperta como você ... acredita em tudo o que lhe dizem? - retorquiu ele em tom azedo. - Não que isso seja uma vergonha, também já me aconteceu
uma vez.
Os olhos dela semicerraram-se; eram agora duas frestas.
- Tem outra versão? Sou toda ouvidos. Também não posso fazer outra coisa...
- Montaram-me uma armadilha. Estive ao serviço das Operações Consulares durante mais de duas décadas. Olhe, você parece saber muita coisa a meu respeito. Então,
interrogue-se se aquilo que lhe contaram se enquadra na minha imagem. - Inspirou profundamente, o seu peito expandiu-se de encontro ao dela e sentiu que a tensão
dela se desvanecia.
- Pronto - disse ela por fim. - Saia de cima de mim. Eu não vou reagir nem vou fugir. Sei que alcançava aquela carabina antes de mim.
Depois de se certificar de que o corpo dela relaxara, Janson rolou para o lado num movimento rápido. Tinha um objectivo em mente: a Beretta. Pegou nela e enfiou-a
no cinto.
A mulher levantou-se, parecendo cambaleante e insegura.
- Porquê? Porque é que haviam de lhe montar uma armadilha? -Julga que não tenho perguntado isso a mim próprio?
- Você era uma lenda lá nas Operações Consulares. Não faz ideia, Janson. Não faz ideia da desmoralização que sentimos quando nos informaram de que você se tinha
convertido em traidor. Eles nunca afirmariam isso por capricho. Se estão a fazer de si bode expiatório, é porque têm uma boa razão para o fazer.
- O que eles julgam ser uma boa razão. Uma boa razão que pode parecer a outros uma conveniência administrativa.
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Ela parecia confusa.
- Pronto, dê uma nova espreitadela pelo telémetro. Vai descobrir o atirador C naquela árvore enorme perto de North Gate.
Ele levou-o aos olhos. Enquanto perscrutava a folhagem, sentiu uma pancada violentíssima na parte lateral da cabeça. Recuou cambaleando, praticamente inconsciente.
Fora a mulher. Tinha na mão uma daquelas barras de aço farpeadas normalmente utilizadas no betão armado. Uma das extremidades da barra estava molhada com o seu sangue.
Ela retirara-a da pilha de materiais de construção que se encontrava por detrás do bunker, a poucos metros de distância.
Estatelado no chão, Janson ouvia o sangue a pulsar-lhe na cabeça como se fosse uma máquina a vapor. Atordoado, levou a mão à Beretta, mas já era demasiado tarde.
Ela largara a correr a toda a velocidade.
A pancada com a barra de aço provocara-lhe, no mínimo, uma concussão ligeira; ia demorar uns minutos a conseguir pôr-se novamente de pé.
Sentiu uma onda de náusea vinda do estômago. Olhou de relance para o relógio, tentou levantar-se e desmaiou.
LUTANDO POR MANTER os olhos abertos, consultou novamente o relógio. Tinham passado dois minutos. A manutenção do estado de consciência ia requerer um esforço enorme;
era, porém, algo em que não podia falhar.
O colapso daquele grupo de atiradores já devia ter sido detectado, quanto mais não fosse pela ausência de sinais de rádio. Outros iriam acorrer àquela zona. com
a visão trémula, a cabeça a latejar e uma dor infernal, percorreu, cambaleando, o caminho eivado dos obstáculos constituídos pelos teixos de forma cónica até chegar
ao Hanover Gate.
Um táxi preto acabava de largar um casal idoso quando ele alcançou o passeio. Esperou que pagassem, após o que se esgueirou para dentro do veículo.
- Para onde, chefe? - perguntou o taxista. Depois, fitou Janson pelo espelho retrovisor e fez uma careta. - Arranjou aí um grande golpe. Tenha cuidado para não manchar
o estofo do carro.
Janson estendeu-lhe uma nota de cinquenta libras através da divisória de vidro.
- Carregue bem no prego - exclamou, encolhendo-se no assento.
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CAPÍTULO SETE
NÃO, NÃO OS TRAGA aqui para dentro. Eu vou até lá fora - dissera o capitão-de-fragata a Janson. - Mesmo com o vento a soprar nos auriculares, ouvia-se debilmente
em fundo a música coral.
- Olhe, o melhor é levá-los para Candle Bog.
Candle Bog era como os Americanos haviam baptizado uma clareira na selva com um par de cabanas no meio, situada quatro quilómetros a norte do acampamento.
Demarest já lá estava à espera quando eles chegaram. Aguardava-os dentro de um jipe, com o seu oficial às ordens, tom Bewick, ao volante. Voltou-se para ele e disse-lhe:
- tom, importas-te de fazer as honras da casa?
O rosto bronzeado de Bewick parecia talhado em madeira, com entalhes toscos para os olhos e a boca. Os seus movimentos eram rápidos e eficientes, mas bruscos, não
fluidos, o que reforçava ainda mais a impressão de Janson de que ele se tornara num mero fantoche de Demarest.
Bewick dirigiu-se para junto dos prisioneiros, sacou de uma faca e cortou as cordas que lhes mantinham os braços amarrados ao lado do corpo. Construiu depois uma
espécie de arnês de corda, atou-o à volta dos pulsos e dos tornozelos dos prisioneiros e enrolou as pontas da corda nas traves centrais de cada cabana. Os homens
ficaram amarrados, com os braços e as pernas abertas esticados pelas cordas.
Demarest aproximou-se do prisioneiro que estava mais perto dele.
- Falam inglês? Também não interessa, porque eu falo vietnamita. O primeiro deles falou por fim.
- Sim - respondeu com voz tensa. Demarest recompensou-o com um sorriso.
- Vocês são camponeses, certo?
- Sim, nós cultivamos a terra.
- Não são, de maneira nenhuma, vietcongues, pois não? São simplesmente pescadores honrados.
- Déng. (Exacto.)
- Então, não disseram que eram camponeses?
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Os dois pareceram ficar confundidos.
- Não vietcongues - respondeu o primeiro homem.
- Vocês têm sofrido imenso, não têm?
- Muito sofrimento.
- Tal como o nosso salvador, Jesus Cristo. Sabem que ele morreu pelos nossos pecados? E querem saber como foi que ele morreu? Deixem-me contar-vos. Não, melhor ainda:
deixem-me mostrar-vos. Demarest virou-se para Bewick. - Bewick, não é absolutamente nada civilizado deixar estes pobres jovens aqui no chão.
Bewick sorriu de orelha a orelha. Seguidamente, com um pau a servir de guincho, que rodou duas vezes, apertou ainda mais a corda. A tensão da corda fez erguer do
chão os dois prisioneiros, passando o peso do seu corpo a ser suportado inteiramente pelos pulsos e tornozelos. Ambos soltaram um grito de pânico.
Estavam a sofrer horrivelmente, assim com os membros esticados, os braços retesados pelos laços da corda. A posição em que se encontravam tornava-lhes a respiração
difícil, e, à medida que o cansaço se acentuava, maior era a torção provocada pela corda nas suas extremidades.
Janson sentiu o sangue subir-lhe ao rosto.
- Está a torturá-los! - exclamou com rudeza.
- Acha que isto é tortura? - Demarest abanou a cabeça, desagradado. - Tenente Bewick, o tenente Janson está perturbado. Para sua própria protecção, é preciso sossegá-lo.
Bewick apontou a sua pistola de combate à cabeça de Janson. Demarest dirigiu-se ao jipe e premiu o botão PLAY do seu leitor de cassetes portátil. Música coral brotou
dos altifalantes baratos.
- Hildegard von Bingen - exclamou. - Passou a maior parte da vida num convento no século XII e tornou-se na maior compositora da sua época. Só se sentava para compor
após ter sofrido a dor mais excruciante, a que ela chamava a chicotada de Deus. Porque só quando a dor a levava quase à beira da alucinação é que a obra brotava
dela: as antífonas e os cânticos medievais. - De uma bainha que trazia à cintura sacou uma pequena faca e traçou com ela um pequeno golpe na barriga do segundo prisioneiro.
A pele e o tecido conjuntivo por baixo dela rasgaram-se de imediato, repuxados pela tensão da corda. - A dor há-de fazer-te cantar também.
O homem soltou um grito.
- Agora, sim, isto é tortura - disse Demarest a Janson. Voltou
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para junto do homem que gritava. - Pensas que o teu povo te vai chamar herói por me teres resistido? Nem por sombras. Sabes, eu sou um homem muito mau. Vocês pensam
que os Americanos são brandos, acham que podem correr connosco daqui para fora. Mas só pensam assim porque nunca encontraram pela frente Alan Demarest. O maior de
todos os truques de Satanás foi o de convencer a Humanidade de que não existia. Olha bem para os meus olhos, amigo pescador, porque eu existo mesmo. Sou um pescador
como tu. Um pescador de almas humanas.
Alan Demarest estava possesso. Não, pior do que isso, estava bem seguro de si; controlava totalmente os seus actos e as suas consequências. E era, ao mesmo tempo,
completamente desprovido de consciência.
- Olha bem para os meus olhos - exclamou Demarest em tom sério, inclinando-se sobre o rosto do homem, já contraído de sofrimento. - Quem é o teu contacto no Exército
da República Popular? Quem são os sul-vietnamitas com quem lidas?
- Eu lavrador! - choramingou o homem. - Não vietcongue. Demarest puxou as calças de pijama do homem para baixo, expondo-lhe os genitais.
- Chegou a altura dos choques eléctricos.
Janson arquejou por diversas vezes, e um surto de vómito jorrou do fundo da sua garganta, espalhando-se pelo chão diante dele.
- Não tem de que se envergonhar, meu filho. Isto é como uma cirurgia - disse Demarest para o acalmar. - A primeira vez a que se assiste é um pouco duro, mas habituamo-nos
depressa. Nós vamos dar-lhe todas as oportunidades para ele poder falar. Mas se não o fizer, morre da morte mais dolorosa que conseguirmos inventar. - Demarest notou
a expressão horrorizada de Janson. - Mas não se preocupe
- prosseguiu ele. - Vamos manter o companheiro dele vivo. Sabe, é importante deixar alguém para espalhar a notícia entre os Vietcongues: é isto o que os espera se
pensam poder gozar com os Americanos.
E, horror dos horrores, piscou o olho a Janson, como que a convidá-lo para se juntar ao deboche. Nos recantos obscuros do cérebro de Janson ecoou um velho refrão:
"Onde é que tu vais? Louco ... queres juntar-te a nós?"
Queres juntar-te a nós?
PRINSENGRACHT, porventura a mais graciosa das ruas-canais de Amsterdão, foi construída nos primórdios do século XVII. À primeira
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vista, as fachadas viradas para a rua pareciam tão iguais como aquelas figurinhas de papel dobrado e recortado; porém, quem olhasse com mais atenção verificava que
houvera ali um esforço para que cada uma delas se diferenciasse das restantes de várias formas.
Janson ia pela rua, de casaco leve e sapatos de sola grossa, tal como muitos outros transeuntes. Conservava as mãos nos bolsos e de vez em quando perscrutava as
redondezas.
Alguns quarteirões mais adiante, deparou com um grupo de embarcações ancoradas no canal, daquelas que servem de casa aos seus proprietários. Foi observando cada
uma delas, até que finalmente avistou a cabina, pintada de azul e de aspecto abandonado, que lhe era familiar. A maioria dos vasos de flores encontrava-se vazia,
as janelas, pequenas, estavam cobertas de fuligem. Muitos anos tinham passado desde a última vez que ali estivera. Teria mudado de mãos? Ao aproximar-se, Janson
detectou o cheiro inconfundível do haxixe e percebeu que tal não acontecera. Subiu a bordo e transpôs a porta de acesso à cabina, que, tal como esperava, não se
encontrava trancada.
A um canto daquele espaço meio ensolarado, um homem de cabelo comprido grisalho e sujo debruçava-se sobre um grande quadrado de papel pergaminho. Segurava um lápis
de pastel em cada mão com que, em gestos alternados, ia desenhando no papel. Junto de um lápis de pastel vermelho, fumegava, esquecido, um cigarro de marijuana.
- Quieto aí! - exclamou Janson em voz branda.
Barry Cooper voltou-se lentamente, rindo-se baixinho por pensar tratar-se de alguma brincadeira habitual. Mas ao identificar o visitante, assumiu um ar mais sério.
- Ei, nós somos amigos, certo? Tu e eu somos amigos, certo?
- Sim, Barry, somos amigos.
Foi visível o seu alívio. Avançou para Janson de braços abertos.
- Mostra-me algum amor, meu querido. Há quanto tempo foi? Vejam só.
- Há tempo de mais - retorquiu Janson. - Ou de menos. O que é que achas? - A história que ambos partilhavam era complexa; nenhum deles compreendia perfeitamente
o outro, mas ambos se entendiam o suficiente para manter uma relação de trabalho profícua.
- Posso fazer-te um café - disse Cooper.
- Óptimo. -Janson sentou-se num sofá castanho, todo aos altos e baixos, e olhou à sua volta.
Pouca coisa mudara. Ainda era o mesmo Barry Cooper, um pouco
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medroso e meio amalucado, mas sem que nenhuma dessas duas características prevalecesse sobre a outra. Na sua juventude, porém, a proporção tinha sido diferente.
No princípio da década de 1970, ele evoluíra de um radicalismo estudantil para um radicalismo mais sério e, passo a passo, acabara como membro do grupo revolucionário
extremista americano Weather Underground. De pequenas travessuras, que visavam essencialmente irritar as forças policiais, passou a acções mais extremistas.
Um dia, em Nova Iorque, encontrava-se numa casa de Greenwich Village quando a bomba que um dos membros da organização estava a fabricar explodiu antes de tempo.
Ele estava a tomar duche e, chamuscado e coberto de fuligem, vagueou, atordoado, durante algum tempo, até ser preso. Libertado sob fiança, saiu do país, acabando
por se refugiar na Europa.
Relatórios exageradamente empolados a seu respeito, postos a circular pelas autoridades americanas, foram devorados inteirinhos pelos grupos radicais da esquerda
revolucionária europeia. Receberam-no de braços abertos no seu seio, pedindo-lhe conselhos. Barry Cooper gostou de toda aquela adulação, mas, conquanto soubesse
imenso acerca das diferentes variedades de marijuana, nutria muito pouco interesse pelos aspectos práticos de uma revolução. Quando colocado entre revolucionários,
guardava esta verdade para si, escondendo-se por detrás de respostas breves e obscuras. O seu desinteresse pelas actividades que desenvolviam enervava-os: definitivamente,
aquele terrorista americano não os levava a sério como revolucionários. Eles respondiam revelando-lhe os seus planos mais ambiciosos e tentando impressioná-lo com
a enumeração dos seus recursos humanos e materiais.
À medida que o tempo foi passando, Barry Cooper foi-se sentindo cada vez mais desconfortável, e não unicamente por todo aquele equívoco; não tinha estômago para
os actos de violência que eles descreviam com tanto realismo.
Janson visitara-o uma vez. Na tentativa de conquistar acesso ao mundo sombrio dessas organizações terroristas, Janson andava à procura de pessoas cujas ligações
à civilização não estivessem ainda completamente quebradas, pessoas que ainda não estivessem mortas para a chamada moral burguesa. Janson sempre achara estranha
e surpreendente a associação de Barry Cooper àquelas organizações. Conhecia o cadastro de Cooper, e o que via nele era mais um palhaço do que um assassino.
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À época, Cooper já vivia em Amsterdão no mesmo barco-casa, subsistindo com a venda de desenhos da cidade antiga aos turistas. A empatia entre os dois homens não
foi
instantânea: era difícil imaginar-se duas almas menos parecidas. Contudo, Cooper apercebeu-se por fim de que o seu visitante não viera dos Estados Unidos nem para
o lisonjear, a fim de obter qualquer favor ou informação, nem para o ameaçar de nenhuma forma. Fez jogo limpo. Em vez de troçar das suas ideias políticas, Janson
admitiu sem rebuço que havia muita coisa a criticar nas democracias ocidentais, sem, no entanto, deixar de condenar as simplificações desumanizantes dos terroristas
numa linguagem de grande agressividade: "A nossa sociedade trai a Humanidade sempre que abdica de se reger pelos ideais que proclamou. E o mundo que os teus amigos
pretendem criar? Trai a Humanidade sempre que se rege de acordo com os ideais que proclamou. Era assim tão difícil a escolha?"
"Essa é muito profunda", afirmara Cooper com sinceridade. E as informações que prestou redundaram na extinção de dúzias de células violentas.
Em troca, o Departamento de Estado desistiu discretamente das tentativas de obter a sua extradição.
Janson bebia agora café quente por uma chávena que ainda ostentava manchas de tinta plástica.
- Sei que estás aqui apenas em passeio - disse Cooper. - Sei que não pretendes nada de mim, por exemplo.
- Ei - retorquiu Janson. - Importas-te que eu fique aqui por uns tempos?
- Mi casa es su casa, amigo - respondeu Cooper.
Janson reparou nos jornais amachucados no chão junto dos pastéis.
- Tens aí um jornal?
Cooper dirigiu-se em passo firme a um canto da cabina e voltou, triunfante, com um exemplar do último De Volksrant.
Janson passou os olhos pelos títulos, apanhando o sentido da maior parte deles. Voltou a página e um pequeno artigo despertou-lhe a atenção.
- Este aqui - disse, apontando-o com o indicador. - És capaz de mo traduzir?
- Nas calmas, amigo. - Cooper começou a ler o artigo, traduzindo-o diligentemente de holandês para inglês. Não era, segundo parecia, uma história particularmente
relevante. O ministro dos Negócios Estrangeiros checo estava de visita a Amsterdão. Ia reunir-se com líderes
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da comunidade financeira holandesa a fim de discutir possíveis áreas de cooperação entre a Holanda e a República Checa. Um encontro sem importância de maior, mas
que podia resolver um problema ajanson.
- Vem daí às compras - disse Janson, levantando-se.
Cooper não ficou surpreendido por aquela súbita mudança de assunto; o torpor mental provocado pelo haxixe tornava o seu mundo tão aleatório quanto um lançamento
de dados.
- Óptimo - comentou ele. - Paparoca?
- Comprar roupa. Coisa fina. Do melhor que houver.
UM PEQUENO CORTEJO automóvel formado por três Mercedes-Benz pretos percorria solenemente a Stadhouderskade em direcção à Leidsestraat, parando por fim junto das
instalações da Fundação Liberdade. O motorista fardado da comprida limusina dirigiu-se à traseira do veículo e abriu a porta. Um homem de fato escuro, óculos de
aro de osso e chapéu de feltro de abas saiu de dentro do carro. Em seguida, o homem fardado - aparentemente o factótum pessoal do ministro premiu o besouro da porta
de entrada, de madeira esculpida. Dez segundos volvidos, a porta abria-se.
O homem fardado disse, dirigindo-se à mulher que se encontrava à porta:
- Madame, o ministro dos Negócios Estrangeiros da República Checa, Jan Kubelik.
O ministro dirigiu algumas palavras em checo ao seu factótum, a quem mandou embora com um gesto. O homem fardado deu meia volta e regressou à limusina.
- Dá a impressão de que não estavam à minha espera - exclamou o homem do elegante fato azul-escuro para a recepcionista ruiva.
Ela abriu muito os olhos.
- Claro que estávamos, Sr. Ministro Kubelik. Estamos até muito satisfeitos com a sua vinda.
Um pequeno pânico instalara-se entre os elementos do pessoal de apoio da fundação quando, trinta minutos antes, tinham recebido a chamada confirmando a entrevista
do recém-nomeado ministro dos Negócios Estrangeiros com o director-geral da fundação. Um magote de funcionários nervosos pôs-se a comparar memorandos, pois não possuíam
qualquer registo da marcação daquela entrevista. Um dos secretários insistia em que a falha estaria com toda a probabilidade do la-
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do dos burocratas checos. Era impossível, no entanto, dizer-lhes isso, já que tal constituiria uma falha de protocolo inadmissível.
A recepcionista encaminhava agora o ministro para uma luxuosa antecâmara.
- O nosso director-geral virá ter consigo dentro de momentos informou ela.
- Obrigado, é muito amável - retorquiu o diplomata checo, tirando o chapéu. - E um belo edifício, este. Importa-se que eu dê uma vista de olhos por aí?
- É uma grande honra para nós, Excelência - afirmou ela como que automaticamente. ATÉ ALI, TUDO BEM, pensou Janson para consigo. Cooper representara impecavelmente
o seu papel e, uma vez envergado aquele uniforme ridículo, comportara-se de uma
forma que nunca resvalara para o grotesco. Todos os seus gestos tinham sido rígidos e formais, as suas expressões, impregnadas de uma pomposidade servil, revelando-se
a todo o momento o assistente dedicado de uma individualidade muito importante. Quanto a Janson, confiava no princípio de que ninguém faria a mínima ideia de como
era o ministro dos Negócios Estrangeiros checo. Afinal, o homem só entrara em funções havia duas semanas. O melhor disfarce era não levar disfarce nenhum: um pouco
de gel no cabelo, uns óculos de um estilo muito usado na Europa Oriental, o tipo de vestuário comum a todos os diplomatas do continente - e uma atitude que era,
ao mesmo tempo, afável e autoritária. O facto de a mãe de Janson ser checa ajudava, obviamente, embora isso se revelasse essencialmente útil ao permitir-lhe impregnar
o seu inglês de um persuasivo sotaque checo. Num país como a Holanda, esperava-se que um diplomata checo se expressasse em inglês.
Janson olhou para a recepcionista por cima dos seus óculos redondos de aros de osso.
- E Peter Novak? Vai estar presente também? A mulher fez um sorriso gentil.
- Oh, não, Excelência. Ele passa a maior parte do tempo em viagem. Por vezes, passam-se semanas sem o vermos.
Quando ali chegara, Janson não sabia se iria encontrar um ambiente de tristeza a pairar sobre a fundação. Era óbvio, porém, que ainda não tinham conhecimento de
que algo tivesse vitimado o venerado fundador.
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- Mas a esposa dele está aqui hoje, Excelência. Susanna Novak. Ela ajuda a gerir o programa de desenvolvimento das Organizações Não Governamentais.
Janson acenou afirmativamente com a cabeça.
- E o que é isto aqui? - perguntou, apontando para outra sala, à esquerda do corredor principal.
- É o escritório de Peter Novak - elucidou ela. - É onde certamente se encontraria com Mr. Novak, caso ele se encontrasse na cidade ... ele, sem dúvida, insistiria
nesse ponto. - Abriu a porta e apontou para o retrato de um nobre colocado na parede oposta. - Foi pintado por Van Dyck. Uma obra notável, não acha?
Janson aproximou-se da tela.
- Extraordinário - exclamou. - É um dos meus artistas preferidos, sabia? - Levou a mão ao bolso e premiu com os dedos alguns botões do seu telemóvel, ligando para
um número previamente programado. Era um número de ligação directa à recepcionista.
- Desculpa-me por um instante? - disse ela ao ouvir o seu telefone tocar.
- com certeza - respondeu Janson. Enquanto ela corria para o telefone, ele relanceou os olhos pelos papéis que se encontravam perfeitamente empilhados em cima da
secretária de Novak. Um desses papéis evocou-lhe uma recordação distante, nebulosa. Não foi a mensagem que continha, perfeitamente inócua, mas sim o timbre do papel:
UNITECH LTD. O nome da firma dizia-lhe qualquer coisa - mas dizia qualquer coisa a Paul Janson, consultor de segurança, ou a Paul Janson, ex-agente das Operações
Consulares? Não tinha bem a certeza.
- Sr. Ministro Kubelik? - exclamou uma voz de mulher.
- Sim? - Janson olhou para cima e viu uma mulher loura alta a sorrir-lhe.
- Sou a mulher de Peter Novak. Permita-me que lhe dê as boas-vindas em nome dele. O nosso director-geral ainda se encontra em reunião. Mas não demora. - Falava com
um leve sotaque americano.
O bâton brilhante, de aspecto líquido, não seria muito apropriado para usar num escritório, mas ficava-lhe bem, tal como, aliás, o vestido de tom esverdeado, que
lhe realçava os contornos um pouco mais do que o estritamente necessário.
Não era uma mulher enlutada. Não sabia, de certeza. Não podia saber. E, no entanto, como era possível?
Janson dirigiu-se-lhe e inclinou ligeiramente a cabeça. Um diplomata
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checo beijar-lhe-ia a mão? Decidiu que um simples aperto de mão seria suficiente. Mas não conseguia afastar o olhar dela. Havia algo nela que lhe era familiar.
Muito familiar. Aqueles olhos azul-esverdeados, aqueles dedos longos e elegantes ...
Já a teria visto alguma vez? Espremeu a memória. Onde?
O olhar insistente dela era coquette, a roçar o sedutor.
- Venha - disse ela. - Eu acompanho-o lá acima à sala de reuniões.
A sala de reuniões dava para o canal, e o sol filtrava-se em diagonal através de uma janela panorâmica com vidros multifacetados, desenhando losangos dourados sobre
a mesa de teca polida. À entrada, Janson foi cumprimentado por um homem de estatura menor que mediana e cabelo grisalho impecavelmente penteado.
- Dr. Tilsen - apresentou-se o homem. - Sou o director-geral para a Europa. Um pouco vago, não? - Soltou uma gargalhada seca, polida. - O nosso programa para a Europa
é com certeza mais preciso.
- Ficará em segurança entregue aos cuidados do Dr. Tilsen - exclamou Susanna Novak. - Bastante mais seguro com ele do que comigo - acrescentou.
Janson sentou-se de frente para o director-geral. Discutir o quê?
- Espero que saiba qual a razão por que o contactei - principiou.
- Bem, acho que sim - retorquiu o Dr. Tilsen. - Ao longo dos anos, o Governo Checo tem dispensado um grande apoio a alguns dos nossos esforços, mas em relação a
outros nem tanto. Nós compreendemos que alguns dos nossos objectivos nem sempre se coadunem com os de um determinado governo.
- É bem verdade isso - concordou Janson. - Bem verdade. Mas começo a interrogar-me se os meus antecessores não se terão precipitado um pouco no julgamento que fizeram
de algumas situações. Talvez seja possível uma relação mais harmoniosa no futuro.
- Seria uma perspectiva muito agradável - comentou o Dr. Tilsen.
- Claro que, se me facultasse um panorama geral dos projectos que têm para o nosso país, eu talvez pudesse argumentar com mais eficácia a seu favor junto dos meus
colegas e associados. Na verdade, eu estou aqui principalmente para ouvir.
Durante os trinta minutos que se seguiram, Tilsen descreveu toda uma panóplia de iniciativas, programas e projectos. Os olhos de Janson começavam a querer fechar-se.
Bateram à porta. Era a recepcionista ruiva.
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- Desculpe, Dr. Tilsen. Uma chamada do gabinete do primeiro-ministro.
- Ah - exclamou o Dr. Tilsen. - Dê-me licença por um instante.
- Mas com certeza - retorquiu Janson. Entregue a si próprio, encaminhou-se para a janela e contemplou o movimentado canal lá em baixo. Um arrepio percorreu-lhe a
espinha como se lha tivessem esfregado com um pedaço de gelo. Porquê? Por qualquer coisa que surgiu no seu campo de visão, uma anomalia a que reagiu instintivamente
antes de conseguir analisá-la racionalmente ou descrevê-la.
O que era?
Por detrás da empena do prédio em frente ... aquilo não era a sombra de um homem agachado em cima das telhas? Ou seria apenas fruto da sua imaginação exacerbada?
A equimose que tinha no lado da cabeça latejava dolorosamente.
Então, uma das pequenas vidraças explodiu e uma bala enfiou-se pelo chão dentro, produzindo um ruído áspero de madeira a estilhaçar-se. Janson atirou-se para o chão,
e começava a rebolar em direcção à porta quando outra vidraça explodiu.
Disparos sem som. Provenientes de uma arma com silenciador.
Subitamente, vindo lá de fora também, ouviu-se o estrondo forte de um tiro. Um contraponto estranho para a fuzilaria silenciosa. Outros ruídos se seguiram: o chiar
de pneus, a porta de um carro a abrir-se e fechar-se. E gritos vindos do interior da mansão.
O latejar da têmpora tornara-se tão intenso que Janson tinha de fazer um esforço enorme só para manter a visão focada.
Pensa! Tinha de pensar! O que é que fazia sentido naquele assalto, dado o contraste entre as armas utilizadas e os métodos de aproximação?
Eram dois os grupos que estavam a atacar. Dois grupos que não estavam coordenados.
Mrs. Novak devia tê-lo denunciado. Estivera a espiá-lo o tempo todo, fingindo estar a colaborar. Era uma Deles.
Telefonou a Barry pelo seu Ericsson.
Cooper estava excepcionalmente nervoso.
- Credo, Paul! Que diabo é que se está a passar? Isto aqui em baixo parece a Batalha de Midway.
- Tens contacto visual com alguém?
- Hum, estás a perguntar-me se vejo alguém? Um vislumbre de vez em quando. Anda aí um par deles de camuflado com mau aspecto.
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A mensagem de que os braços servem para abraçar ainda não chegou a estes tipos, Paul.
- Escuta, Barry, nós tivemos o cuidado de especificar que queríamos uma limusina com janelas à prova de bala. Estarás mais seguro lá dentro. Mas prepara-te para
alçares o rabo assim que eu der sinal.
Janson precipitou-se para a porta e desceu a correr as escadas para o rés-do-chão. Ao chegar ao hall, viu o agente da segurança sacar da pistola do coldre e aproximar-se
da janela da frente. Logo a seguir, viu a arma cair no chão com um ruído metálico e o segurança tombar inanimado.
Janson aproximou-se, rastejando, e apanhou do chão a pistola do homem, uma Glock, após o que arrastou o corpo para ofoyer, sabendo que estaria protegido pela parede
de tijolo que ficava por baixo da janela. Atirou o casaco para cima do cadáver e enfiou-lhe o chapéu na cabeça.
Podia chamar Cooper para o vir buscar no seu carro blindado, mas até os poucos metros de exposição a descoberto podiam revelar-se letais.
Janson içou o cadáver na vertical num movimento rápido e estudou a reacção.
Uma detonação ruidosa fez estourar o que restava da janela, logo seguida de uma série de projécteis de disparos silenciosos, mas não menos mortais. Quantas armas
estariam assestadas sobre aquela casa? Pelo menos, cinco.
Estava em curso um assalto desenfreado ao quartel-general de Peter Novak. Teria sido ele a provocá-lo com a sua presença? Era difícil de acreditar, mas já pouca
coisa fazia sentido, atendendo às circunstâncias.
Só sabia que tinha de sair dali, daquela casa, mas que não podia utilizar as portas. Subiu rapidamente quatro lanços de escada, depois trepou uma escada que conduzia
ao sótão. Um instante depois, desembocava, cambaleante, no telhado. Era mais inclinado do que ele previra, pelo que se agarrou à chaminé, que estava ali próxima.
Perscrutou então com o olhar os telhados adjacentes. Empoleirada num telhado mais alto do que aquele onde se encontrava, situado à sua direita, na diagonal, estava
a perigosa morena do Regent"s Park. Aí, ela quase lhe acertara de uma distância enorme. Agora, encontrava-se a cerca de trinta metros dele. Era impossível que falhasse
o alvo.
Virou a cabeça para o outro lado e viu, para sua aflição, que estava
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outro atirador no telhado adjacente, a escassos dez metros à sua esquerda.
O atirador virava agora a arma na sua direcção.
Alertada pelo movimento do atirador de camuflado, a morena letal elevou a sua mira telescópica ao nível dos telhados. A têmpora de Janson voltara a latejar, causando-lhe
uma dor quase incapacitante.
Viu a mulher a espreitar pela mira, viu o negrume total da boca do cano da carabina. Era um tiro que ela não falharia de maneira nenhuma. Obrigou-se a si próprio
a fixar o olhar na expressão do seu carrasco: ia encarar a morte de frente.
Mas o que viu realmente foi a confusão espelhada no rosto dela, ao mesmo tempo que desviava a arma alguns graus para a esquerda e disparava um tiro.
O atirador do telhado contíguo rebolou do telhado abaixo.
"Que diabo estava a acontecer?"
Seguiu-se de imediato, de ali perto, o ruído ensurdecedor de uma arma automática, apontada não a ele, mas a ela. Um fragmento do beiral ornamentado atrás do qual
ela se abrigara voou em estilhas.
Janson procurava entender aquela geometria complexa. Dois grupos, tal como supusera. Um utilizando equipamento de atirador de fabrico americano, que era o grupo
de atiradores das Operações Consulares. E o outro? Uma mistura de armamento bastante estranha. Tropa irregular. Mercenários. A julgar pelo armamento e pelo vestuário,
europeus orientais. Mas a soldo de quem?
"O inimigo do meu inimigo meu amigo é." Seria verdade?
O homem da arma automática, uma AKS-74 de fabrico russo, pusera-se de pé sobre o parapeito, na tentativa de obter um melhor ângulo para alvejar a atiradora.
- Ei - bradou Janson.
O homem - Janson estava tão perto dele que conseguia ver as suas feições rudes, os olhos muito juntos, a barba de dois dias - fez um sorriso alvar e voltou-se para
ele. com a arma pronta a disparar.
Ao mesmo tempo que a rajada atingia o telhado, Janson mergulhava, rolando vertiginosamente pelo declive de telhas e só parando quando o seu corpo chocou de encontro
à balaustrada.
O que é que acontecera? A mulher tinha-o debaixo de mira. Tinha-o à sua mercê. Porque não disparara?
E o outro grupo? Quem eram eles? Já sabia que era ele o alvo. Mas o grupo das Operações Consulares também era. Como era possível?
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Não havia tempo a perder. Enfiou a pistola por entre os pilares de arenito da balaustrada e disparou dois tiros rápidos. O homem da AKS-74 cambaleou e caiu para
trás. Ao tombar sobre as telhas, arrastou consigo a arma, presa aos ombros por uma bandoleira de nylon.
Janson subiu para a balaustrada e saltou para a casa anexa. Rastejou até junto do cadáver do homem e arrancou a metralhadora automática da bandoleira de nylon. Achou
também um pequeno utensílio com dois espelhos inclinados acoplados a um tubo telescópico que fazia lembrar a antena de um radiotransístor. Tratava-se de um dispositivo
habitual dos comandos urbanos. Janson ajustou os espelhos e estendeu o tubo. Ao passá-lo por cima do beiral, passava a poder ver que perigos o ameaçavam sem se colocar
directamente na linha de fogo.
O que observou estava longe de ser encorajador. A morena perigosa ainda se encontrava em posição.
Uma bala ricocheteou na chaminé. Janson rodou aquela espécie de periscópio para ver quem fora o responsável. No telhado do prédio ao lado, com uma M40 apoiada no
ombro, estava um ex-colega seu das Operações Consulares, um especialista da velha guarda chamado Stephen Holmes.
Janson subiu, rastejando, o declive do telhado de ardósia. Manteve a cabeça baixa enquanto com as duas mãos erguia a ponta do cano da AKS-74 acima da linha do telhado.
Confiou na sua memória para disparar uma rajada na direcção do cano comprido da carabina. Um ruído metálico indicou-lhe que acertara.
Então, levantou a cabeça acima da linha do telhado e disparou uma segunda rajada, desta vez mais direccionada: as balas de ponta de aço rasgaram o cano da M40 de
Holmes até se estilhaçar por completo.
Holmes encontrava-se agora indefeso, e quando o olhar dele se cruzou com o de Janson, exibia o ar resignado e praticamente exausto de alguém convencido de que estava
prestes a morrer.
Janson abanou a cabeça, contristado. Holmes não era seu inimigo, ainda que ele pensasse que era. Esticou o pescoço e, espreitando por um buraco do frontão, vislumbrou
por momentos a morena.
Um instante depois, Janson notou um ligeiro movimento por detrás dela, após o que a porta de uma água-furtada se abriu bruscamente e um homem enorme se acercou dela,
desferindo-lhe uma pancada violenta na cabeça com a coronha da carabina. A rapariga caiu redonda, deslizando até ao beiral do telhado, completamente inconsciente.
O gigante disparou então três tiros para o seu lado direito. O grito estran-
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guiado proveniente do telhado ao lado anunciou a Janson que pelo menos um atingira Stephen Holmes.
Janson varreu com uma intensa fuzilaria o local onde o gigante se encontrava, o que o forçaria, pelo menos por momentos, a assumir uma atitude defensiva; depois,
utilizando diversos ornamentos de pedra do edifício como pontos de apoio, desceu por uma parte lateral da mansão, colocando-se fora do alcance de tiro. Desceu para
o pavimento da viela sombria com o mínimo de ruído possível, correndo a abrigar-se por detrás de dois contentores de lixo, de onde observou a cena que se desenrolava
na rua à sua frente.
O gigante era incrivelmente rápido. Saía já a toda a velocidade pela porta da frente do edifício, arrastando consigo a morena inconsciente como se fosse um saco.
Um segundo homem, vestido da mesma forma que o primeiro, aproximou-se correndo, e Janson ouviu-os falar. A língua não lhe era familiar, mas também não lhe era inteiramente
desconhecida. Apurando o ouvido, conseguiu confirmar que era servo-croata.
Um pequeno mas potente sedan surgiu roncando e parou junto deles. Após uma breve e sintética troca de palavras, os dois homens saltaram para o banco de trás, arrastando
a morena com eles. Ouviam-se já à distância as sirenes da Polícia.
Janson dirigiu-se, ainda zonzo, para a rua lateral, onde Barry Cooper, suando e de olhar esbugalhado, permanecia ao volante da limusina blindada.
Janson quedou-se em silêncio por um momento. Fazendo, entretanto, um esforço de concentração, recordou as palavras que ouvira: "Korte Prinsengracht ... Centraal
Station ... Westerdok ... Oosterdok ..."
- Leva-me à Centraal Station - disse Janson. - E carrega no prego.
Cooper arrancou, os pneus chiando no macadame escorregadio.
Separando Korte Prinsengracht de Westerdok, onde existem diversos armazéns há muito abandonados, fica uma ilha artificial na qual foi construída a Centraal Station.
Mas não fora para lá que o gigante e os seus amigos se tinham dirigido. Dirigiam-se, sim, para os vastos edifícios de manutenção a sul da estação, que se encontravam
ao abrigo de qualquer observador casual. À noite, os heroinómanos costumavam ir para lá injectar-se, mas durante o dia permaneciam completamente desertos.
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- Continua, sempre a direito! - berrou Janson.
- Pensava que tinhas dito Centraal Station ...
- Há um edifício de manutenção do lado direito a cerca de quinhentos metros daqui. Em frente aos cais de Oosterdok. E acelerai
A limusina passou a toda a velocidade diante da estação do caminho de ferro e virou para a estrada em mau estado que conduzia aos estaleiros em ruínas, onde há anos
atrás se fazia o negócio de cargas e descargas. Muitos dos portos comerciais tinham sido entretanto deslocados para o Norte de Amsterdão, pelo que tudo o que restava
não passava de fantasmas de tijolo, betão e chapa ondulada.
Surgiu-lhes repentinamente pela frente uma vedação com portão. Cooper parou o carro, e Janson saiu. Ouviu um grito ao longe.
Abriu então o portão e fez sinal a Cooper para entrar e estacionar uns cem metros mais à frente.
Janson correu para a fachada lateral de um grande abrigo metálico e, cosendo-se com a parede, avançou cautelosamente na direcção do grito que ouvira.
Por fim, e sob a luz ténue reinante no interior do vasto armazém, conseguiu ver o que se passava. A jovem das Operações Consulares estava amarrada a um pilar com
uma corda grossa e as roupas tinham-lhe sido brutalmente arrancadas. O gigante encontrava-se junto dela, esbofeteando-a repetidamente com a mão, fazendo-a bater
com a cabeça de encontro ao betão.
- Não me toques, filho da mãe - gritou ela. O gigante riu-se.
- Porquê? O que é que me fazes?
- Se eu fosse a ti, não enfurecia Ratko - aconselhou-a o companheiro dele, que empunhava uma lâmina comprida e fina. - Ele prefere os reféns vivos, mas não é fanático
a esse respeito.
Jason encaminhou-se para eles em grandes passadas, mas logo uma rajada de balas disparadas de uma AKS-74 veio esmagar-se no chão de cimento. Só podia ter sido disparada
de um passadiço situado por cima deles, o que vinha criar uma zona de transposição impossível entre Janson e Ratko, que, entretanto, se voltara para o enfrentar.
Na mão enorme do sérvio, a pistola de calibre .45 parecia um simples brinquedo.
Janson abrigou-se por detrás do pilar de betão.
A luz inundou por momentos o armazém sombrio por alguém ter aberto uma porta lateral. Ouviu-se nova rajada de AKS-74, desta vez dirigida não a Janson, mas ao visitante
invisível.
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- Oh, droga! Oh, droga! - Era a voz de Barry Cooper.
- Barry, que diabo é que fazes aqui? - bradou Janson.
- Estava a sentir-me assustado dentro do carro. Grandessíssimo estúpido, hem?
Outra série de tiros arrancou lascas do chão de cimento.
Janson afastou-se um pouco do pilar de cimento e observou o que estava a acontecer. Barry Cooper encontrava-se agachado por detrás de um grande bidão de metal, enquanto
o homem do passadiço procurava mudar de posição.
- Não sei o que. fazer - lamentou-se Cooper.
- Barry, faz aquilo que eu faria.
- Entendido.
Ouviu-se um tiro, e o homem do passadiço ficou subitamente hirto.
- É assim mesmo, baby, Make love, not war - bradou Cooper enquanto despejava o carregador inteiro da sua arma contra o pistoleiro lá de cima.
Janson pôde então sair de trás do pilar e disparar de imediato sobre o companheiro de Ratko, que pairava em torno da mulher amarrada com uma faca na mão.
O homem tombou no chão, largando a faca.
Quanto ao gigante sérvio, disparou contra Barry Cooper.
Cooper soltou um berro. A bala atravessara-lhe o braço e a parte inferior do peito. A arma tombou no chão, e ele refugiou-se, cheio de dores, por detrás de uma fila
de bidões metálicos junto da entrada lateral.
- Estás bem, Barry? - perguntou Janson, abrigando-se atrás de outro pilar.
Seguiu-se um momento de silêncio.
- Não sei, Paul - respondeu Barry com voz débil.
- Consegues conduzir?
- Não propriamente as quinhentas milhas de Indianápolis ou coisa do género, mas sim, acho que sim.
- Então, mete-te no carro e segue para um hospital. Já! Janson não se atreveu a disparar às cegas com receio de poder
atingir a prisioneira de Ratko. Deu uns passos atrás até conseguir ver distintamente o seu alvo. Ratko encontrava-se de costas voltadas para a mulher. Um brilho
metálico indicou a Janson que ela não estava tão indefesa quanto ele imaginara.
Esticando o mais possível para baixo o braço que tinha livre, ela
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agarrara a faca, que conseguira puxar até meio da coxa. Agora, estava a erguê-la ao alto, mantendo a lâmina na horizontal, a melhor posição para evitar as costelas,
e ...
Mergulhou-a no dorso do gigante.
A surpresa apagou-lhe do rosto a expressão ameaçadora.
Janson disparou a única bala que lhe restava, apontando ao coração do homem. O sérvio tombou para a frente morto.
Então, Janson dirigiu-se rapidamente para junto da prisioneira, retirou a faca das costas do homem e cortou a corda grossa que a prendia, libertando-a.
Ela escorregou para o chão, mantendo as costas apoiadas no pilar, aparentemente incapaz de se pôr de pé. Enrolou-se, dobrando os joelhos e apertando-os contra o
corpo, ao mesmo tempo que escondia a cabeça no antebraço.
Entretanto, ele recolheu as roupas dela.
- Vista-se - disse.
Então, ela levantou a cabeça, e Janson reparou que estava lavada em lágrimas.
- Não consigo compreender - disse ela com uma expressão de desânimo.
- Há um Consulado-Geral Americano no número dezanove de Museumplein. Se for até lá, eles tomam conta de si.
- Você libertou-me - retorquiu ela com uma voz cava, um tanto estranha. - Veio aqui por minha causa. Por que diabo o fez?
- Eu não vim aqui por sua causa - retorquiu ele secamente. Vim por causa deles.
- Não me minta - retorquiu ela. - Se você quisesse interrogar um deles, apanhava um vivo e ia-se embora. Mas não foi isso que fez, e não o fez porque eles me matavam
se o fizesse.
- Dirija-se ao consulado - repetiu ele.
- Como foi possível você não ter abatido Steve Holmes? Limitou-se a desarmá-lo. Porque é que fez isso?
- Possivelmente, falhei o alvo. Se calhar, estava com falta de munições.
- Acha que eu não sou capaz de aceitar a verdade? Bem, não sei se sou capaz efectivamente. Só sei que daqui em diante não consigo suportar mais mentiras.
- Museumplein, dezanove - repetiu Janson, começando a afastar-se. - Apresente-se ao serviço. Volte para a sua missão.
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- Eu não posso. Não percebe? - A voz dela era agora pouco segura. - A minha missão é matá-lo. Só que agora não posso fazê-lo. Não posso cumprir a minha missão. -
Pôs-se de pé a custo. - Ouça uma coisa: aquele americano do Regent"s Park disse-me que talvez nós, os das Operações Consulares, tenhamos sido envolvidos numa grande
... manipulação. Que o mau da fita que esperavam que abatêssemos não era realmente o mau da fita. Na altura, ignorei isso, porque, a ser verdade, o meu mundo ficava
todo às avessas. Consegue entender? Se não pudermos confiar na pessoa que nos dá ordens, as coisas deixam de fazer sentido. Neste momento, estou convencida de que,
se eu quiser saber realmente o que se passa no Mundo, não será provavelmente da boca dos meus chefes que virei a sabê-lo. Começo mesmo a pensar que a única pessoa
que me poderá elucidar a esse respeito é aquela para quem estou a olhar agora. - com mãos trémulas, começou a vestir-se. - Preciso de saber o que se passa. Preciso
de saber o que é mentira e o que não é. - Mortificada, enxugou as lágrimas que lhe brotavam dos olhos. - Tenho de arranjar um lugar onde esteja segura.
Janson pestanejou ao de leve.
- Você quer mesmo estar segura? Então, afaste-se de mim, c'os diabos. Onde eu estiver é que não está nada segura.
- Quero que me diga que diabo é que está a acontecer.
- É o que eu ando a tentar descobrir.
- Posso ajudá-lo nisso. Sei coisas, sei de planos, conheço pessoas. Sei quem é que foi designado para o perseguir.
- Ouça, não torne as coisas ainda piores para si - exclamou Janson.
- Por favor! - Via-se que era uma pessoa que nunca na sua vida profissional experimentara um momento de dúvida e que não sabia agora como lidar com as incertezas
que a assaltavam.
- Esqueça - retorquiu Janson. - Daqui a um minuto, vou roubar um carro.
É um latrocínio, e quem quer que esteja comigo na altura é meu cúmplice à face da lei.
- Eu roubo um carro para si - atalhou logo ela. - Olhe, eu não sei para onde você vai nem me interessa. Mas se você fugir de mim, eu nunca vou saber a verdade. E
eu premo saber o que é verdade e o que não é.
A têmpora de Janson começou novamente a latejar. Levá-la era uma loucura. Mas era uma loucura que talvez fizesse sentido.
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CAPÍTULO OITO
VALHA-NOS DEUS! - Clayton Ackerley, o homem da Direcção de Operações da CIA, estava quase em transe. - Eles andam a matar-nos!
- Que conversa é essa? - O tom de voz de Douglas Albright, embora truculento, denotava um certo alarme.
- Então, não sabe?
- Já me contaram o que aconteceu a Charlotte, sim. Um acidente terrível.
- Quer dizer que não sabe então!
- Acalme-se e explique lá isso em inglês.
- Sandy Hildreth.
- Não!
- Retiraram a limusina dele do rio. Uma limusina blindada e tudo. No fundo do Potomac. Ele estava no banco de trás. Afogado!
- Pode ter sido um acidente, não? Uma coincidência horrível.
- Acidente? Oh, claro, é isso que consta do relatório da Polícia. O motorista ia com excesso de velocidade, há testemunhas que viram o carro despistar-se e despenhar-se
da ponte. Tal como aconteceu a Charlotte Ainsley ... um motorista de táxi qualquer perde o controle da viatura, embate e foge. E agora foi a vez de Onishi.
- O quê?
- Encontraram o corpo de Kaz esta manhã.
- Santo Deus!
- Na esquina da Rua Quatro com a L, nas imediações, a nordeste.
- Que diabo é que ele andava a fazer por lá?
- Segundo o relatório do médico-legista, tinha fenciclidina no sangue, ou seja PCP, o chamado pó-de-anjo, além de várias outras drogas. Oficialmente, terá sido vítima
de uma overdose à saída de uma casa de crack.
- Kaz? Isso é um perfeito disparate!
- Claro que é um disparate, mas foi o que ficou escrito. O que é facto é que três elementos-chave do nosso programa foram mortos no espaço de vinte e quatro horas.
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- É verdade. Santo Deus! Andam a eliminar-nos um a um. Quem será o próximo? Eu? Você? Derek?
- Acabámos todos de entrar para a lista das espécies em perigo.
- Mas não faz sentido! - explodiu Albright. - Ninguém sabe quem nós somos. Não temos nada em comum! Excepto o segredo mais bem guardado do Governo dos Estados Unidos.
- Pode ser que quem não esteja ligado ao programa não saiba, mas ele sabe.
- Essa agora, espere aí um minuto ...
- Sabe bem de quem é que estou a falar.
- Meu Deus! Mas o que é que nós fizemos? O que foi que nós fizemos?
- Acontece que ele não se limitou a cortar os cordelinhos que o prendiam. Anda a matar todos os que alguma vez os puxaram.
O SOL FILTRAVA-SE por entre as amoreiras e os pinheiros altos que estendiam os seus troncos por sobre a casa de campo. Era notável o modo como esta se integrava
bem na natureza que a rodeava, notou Janson com satisfação enquanto transpunha a porta. Acabava de regressar da aldeia, que ficava a uns quilómetros dali, no sopé
da montanha, e trazia, além de diversos artigos de mercearia, uma braçada de jornais: IlPiccolo, Corriere delle Aipi, La Repubblica.
Entrou no quarto, onde a mulher dormia ainda, e preparou uma compressa húmida e fria para lhe pôr na testa. A febre começava a baixar; o tempo e os antibióticos
estavam a surtir efeito. E o tempo também exercera sobre ele um efeito terapêutico. A viagem para a Lombardia demorara toda a noite e parte da manhã. Ela pouco se
dera conta disso, pois só se mantivera acordada durante os últimos quilómetros. A paisagem, típica do Norte de Itália, era digna de uma tela: campos amarelos dos
caules secos dos trigais, bosques de choupos e castanheiros, vinhas e ao fundo o azul-acinzentado dos Alpes. Contudo, quando chegaram, era por demais evidente que
a mulher ficara seriamente afectada pela provação a que estivera sujeita, muito mais mesmo do que ela própria imaginara.
Ela tossiu e abriu os olhos.
- Onde? - perguntou.
- Estamos numa casa de campo de um amigo meu - disse ele.
- Na Lombardia. É um sítio muito isolado, recatado.
- Desde quando ... aqui?
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- Desde há três dias.
O olhar dela revelou um misto de incredulidade, medo e alarme. Depois, a expressão suavizou-se à medida que o estado de inconsciência se foi apoderando dela novamente.
Enquanto a mulher dormia, Janson dirigiu-se ao andar de baixo, à divisão que o proprietário da casa, Alasdair Swift, utilizava como escritório. Em cima da secretária,
encontrava-se uma pilha de print-outs de artigos que Janson extraíra de jornais e revistas on-line. Estavam ali retratadas as vidas de Peter Novak: centenas de artigos
acerca da vida e dos passos do grande filantropo.
Janson estudou-os atentamente à procura de uma pista, um indício, um dado ocasional de maior relevância. Algo, qualquer coisa que lhe sugerisse um motivo para que
aquele grande homem tivesse sido assassinado. Mas era espantoso como esses detalhes variavam tão pouco. Havia uma infinidade de relatos acerca dos sucessos financeiros
de Peter Novak; uma infinidade de evocações dos seus tempos de infância, passada na Hungria devastada pela guerra; uma infinidade de tributos às suas preocupações
humanitárias. Até mesmo as suas pequenas excentricidades privadas, como, por exemplo, o seu invariável pequeno-almoço diário de kasha, eram repetidamente citadas
em todos esses artigos.
Horas depois, ouviu o barulho de pés descalços no chão de tijoleira.
A mulher saíra finalmente do quarto, envergando um roupão de turco.
- Isto é um sítio com classe - comentou ela. Janson ficou satisfeito por aquela interrupção.
- Há três séculos, havia um mosteiro aqui nesta encosta que mais tarde foi quase totalmente destruído e o sítio invadido pela floresta. O tal meu amigo comprou a
propriedade e transformou as ruínas numa casa de campo.
- Quem é esse seu amigo?
- "Amigo" é um exagero. Se isto pertencesse realmente a um amigo meu, eu nunca viria para cá; seria um risco demasiado grande. Alasdair Swift é uma pessoa a quem
em tempos fiz um favor. A partir daí, ele insistiu comigo para vir para cá sempre que, por qualquer razão, me deslocasse ao Norte de Itália. Passa aqui o mês de
Julho, mas, fora isso, a casa está praticamente sempre vazia. Há aqui uma quantidade enorme de equipamento de comunicações de alta tecnologia. Antena
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parabólica, ligações de banda larga à Internet. Tudo aquilo de que um homem de negócios moderno precisa.
- Tudo menos uma cafeteira de café - disse ela.
- Está um pacote de café na cozinha. Porque não faz uma cafeteira para nós?
- Isso não é lá muito boa ideia. Acredite no que lhe digo - retorquiu ela.
- Eu não sou esquisito.
Ela sustentou o olhar dele com ar carrancudo.
- Eu não cozinho nem faço café. Podia dizer que era por uma questão de princípio feminista, mas a verdade é que não sei. Não é de espantar. Tem a ver com o facto
de a minha mãe ter morrido quando eu ainda era pequena.
- Então, isso não devia, pelo contrário, ter feito de si uma cozinheira?
- Você não conheceu o meu pai.
- Eu nem sequer sei quem você é.
- Chamo-me Jessica Kincaid - disse ela, estendendo-lhe a mão.
- E agora faça-nos um pouco de café, está bem?
Depois de o café sair da cafeteira para as chávenas e daí para os respectivos estômagos, acompanhado de ovos estrelados e pão caseiro, Janson ficou a saber umas
coisas a respeito da sua executora falhada. Crescera em Red Creek, no Kentucky, uma aldeola nas montanhas Cumberland, onde o pai era o dono da bomba da gasolina
e gastava mais dinheiro na loja de artigos de caça do que devia.
- Ele queria ter tido um rapaz, e a maior parte do tempo esquecia-se de que eu não era - explicou. - Levou-me a caçar com ele pela primeira vez quando eu ainda não
tinha seis anos. Achava que eu devia saber praticar desportos, arranjar carros e matar um pato com uma bala, e não com um cartucho cheio de chumbos.
- Uma maria-rapaz.
- Bolas - exclamou ela com um sorriso. - Era isso que os rapazes do liceu me chamavam. Acho que tinha o condão de os espantar.
- Estou a ver o quadro. Carro a ir-se abaixo, namorado a ter de ir a pé até uma cabina telefónica e, entretanto, você a namoriscar com o carburador. Poucos minutos
depois de ele partir, o motor a arrancar de novo.
- Mais ou menos isso - confirmou ela, sorrindo. - Tinha dezasseis anos quando acabei o liceu. No dia seguinte, levanto uma boa maquia
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da caixa registadora da bomba de gasolina e meto-me numa camioneta. Levo uma mochila cheia de brochuras, todas elas com histórias de agentes do FBI. Só saio
da camioneta em Lexington e vou direita à delegação local do FBI. Então, um jovem agente passa por mim e temos uma conversa do género: "Alguém a mandou vir cá para
uma entrevista?" Ao que eu respondo: "Porque não me entrevista você? Porque, se me contratar, vai ser a melhor decisão que alguma vez tomou na vida." Então, ele
e outro tipo de fato completo começam a modos que a querer gozar comigo, porque não deviam ter muito que fazer, e, a certa altura, eu digo-lhes que sou capaz de
acertar em tudo o que quiser. Um deles, por brincadeira, leva-me então para o campo de tiro que tinham na cave.
- Não diga mais. Você acertou em cheio no alvo.
- Quatro tiros, todos na muche. Eles a inventarem novos alvos, eu a acertar em todos eles. Passaram à longa distância, deram-me uma carabina, e eu mostrei-lhes do
que era capaz.
- E o atirador especial conseguiu o emprego ...
- Não exactamente, consegui uma vaga como aluna. Tinha de obter entretanto um certificado de equivalência a um curso superior. Uma pilha de livros para estudar,
mas não foi assim muito difícil. Quântico, então, foi uma pêra doce. Conseguia trepar por uma corda mais rapidamente do que todos da minha turma. Por conseguinte,
alguns anos depois, sou destacada para uma missão especial da Divisão de Segurança Nacional, dou nas vistas a uns agentes especiais das Operações Consulares, e foi
assim.
- Acho que apanhei a ideia geral - comentou Janson.
- Mas ainda não é tudo - prosseguiu ela. - Quando entrei para as Operações Consulares, todos os alunos da minha turma tiveram de preparar uma tese sobre um tema
qualquer ou sobre alguém.
- Ah, sim, a Biografia de Um Espião. E quem é que você escolheu? Mata Hari?
- Não. Um operacional lendário chamado Paul Janson. Fiz uma análise completa das suas técnicas e das suas tácticas.
- Não posso crer - exclamou Janson, ao mesmo tempo que ateava o lume na lareira de pedra, juntando os toros e colocando por baixo algumas páginas amachucadas dos
jornais italianos. Os toros pegaram fogo rapidamente, ardendo com boa chama.
- Foi por isso que me escolheram para esta missão, sabe.
- Porque conhecia os meus movimentos melhor do que ninguém.
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- Claro. A ideia de vigiar a casa de Berman foi minha. Assim como também tinha a certeza de que o iríamos encontrar em Amsterdão. Muita gente apostava que você iria
pirar-se rapidamente para os EUA. Eu não.
Janson espevitou o lume com um atiçador e os toros de pinho crepitaram, silvando e espalhando um odor agradável. O Sol começara a declinar sobre o pico da montanha
distante.
- Espero que não se ofenda se eu lhe pedir para me recordar a sua idade, Miss Kincaid - disse Janson, reparando na brandura do rosto dela sob a luz ténue da lareira.
- Pode tratar-me por Jessie. E tenho vinte e nove anos.
- Podia ser minha filha.
- Ei, a gente só tem a idade que sente.
- Se assim fosse, eu seria um novo Matusalém - replicou ele, revolvendo com o atiçador as cinzas fumegantes. O seu pensamento volveu-se de novo para Amsterdão. -
Tenho uma pergunta para lhe fazer. Alguma vez ouviu falar de uma empresa chamada Unitech?
- Claro. É uma das nossas. Supostamente, uma empresa independente.
- Mas utilizada como cobertura pelas Operações Consulares. Vinham-lhe à memória agora algumas recordações difusas: a Unitech desempenhara um papel modesto ao longo
dos anos num certo número de empreendimentos. - Alguém da Unitech anda a corresponder-se com a Fundação Liberdade, oferecendo-se para dispensar apoio logístico aos
programas de educação na Europa Oriental. Porquê?
- Isso eu não sei. O que é que você andou a ler este tempo todo?
- perguntou ela, olhando para a pilha de print-outs.
Janson explicou e puseram-se a ler em conjunto, até que ele começou a sentir o peso do cansaço. Levantou-se e espreguiçou-se.
- Acho que vou para a cama - disse.
- À noite arrefece bastante. Tem a certeza de que não precisa de uma botija de água quente? - perguntou ela, estendendo os braços. O seu tom de voz sugeria que estava
a brincar; os olhos indicavam que talvez não estivesse.
Ele ergueu um sobrolho.
- Seria preciso mais que uma botija de água quente para aquecer estes ossos - respondeu ele em voz baixa. - Acho que vou prescindir dela.
- Sim, parece-me bem - retorquiu ela num tom semelhante
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a desapontamento. - E eu acho que vou ficar a pé um pouco mais, a andar por aí.
- Linda menina - retorquiu ele, arrastando-se para o andar de cima. Estava cansado, muito cansado mesmo. Iria adormecer com facilidade, mas não iria dormir bem.
NA SELVA, HAVIA uma base. Na base, havia um escritório. No escritório, havia uma secretária. À secretária estava um homem. O seu comandante.
Pelos pequenos altifalantes do leitor de cassetes do capitão-de-fragata ouvia-se um cantochão do século XII. Saint Hildegard.
- Porque é que queria falar comigo, rapaz? - Demarest assumira uma expressão de candura. Parecia genuinamente não ter ideia nenhuma acerca da razão que levara Janson
à sua presença.
- vou fazer um relatório, comandante - disse Janson.
- Claro. Procedimento de rotina a seguir a uma operação.
- Não, comandante. Um relatório a seu respeito para denunciar uma conduta irregular, segundo o artigo cinquenta e três, relativamente ao tratamento dispensado a
prisioneiros de guerra.
- Pois bem, vá em frente. Neste momento, tenho a cabeça ocupada com muitas coisas. Sabe, é que enquanto você preenche os seus formulários, eu vou ter de imaginar
como salvar a vida de seis homens que foram capturados. Seis homens que você conhece muito bem porque estão sob o seu comando.
- De que é que está a falar, comandante?
- Do facto de membros da sua equipa terem sido capturados nas imediações de Lon Duc Than. Encontravam-se em missão especial.
- Por que razão não fui informado dessa operação?
- Ninguém conseguiu encontrá-lo. Mas agora está aqui e, no entanto, só está a pensar onde é que pode encontrar o apara-lápis mais próximo.
- Permissão para falar livremente, comandante.
- Permissão negada - respondeu Demarest secamente. - Você acha que eu fui desumano para com aqueles Victor Charlies lá no meio do mato. Mas se fiz o que fiz, foi
porque tinha uma razão, c'os diabos! Já perdi demasiados homens devido a fugas de informação entre os representantes do Exército da República Popular e os seus primos
vietcongues. Sabe que diabo lhe aconteceu em Noc Lo? Uma emboscada, chamou-lhe você. Uma armadilha, é o que foi. Pode ter a certeza disso.
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A operação foi analisada pelo Comando de Apoio Militar do Vietname e, a certa altura do processo, Marvin passa palavra a Charlie. Talvez você se tenha esquecido,
mas nós estamos na contra-espionagem, Janson, e eu não estou disposto a deixar os meus homens serem lixados pelos mensageiros do Vietcongue que converteram o CAMV
num serviço telegráfico daqueles trastes de Hanói! O primeiro dever de um oficial é zelar pela segurança dos homens sob o seu comando. E quando as vidas dos meus
homens estão em perigo, eu faço tudo para os proteger. A mim não me interessa que raio de relatório é que você vai fazer. Mas se é um verdadeiro soldado, se é um
homem, deve primeiro resgatar os seus homens: é a sua obrigação. Depois, pode seguir os trâmites disciplinares que o seu pequeno coração burocrático entender. -
Cruzou os braços. - Então?
- Estou à espera de que me dê as coordenadas.
VOZES. NÃO, uma voz.
Uma voz branda. Uma voz que não queria ser escutada.
Janson abriu os olhos na escuridão do quarto, amenizada pelo brilho suave da Lua da Lombardia. Um mal-estar crescia dentro dele.
Um visitante? Levantou-se, dirigiu-se ao casaco e apalpou os bolsos à procura do telemóvel. Não estava lá. Enfiou um roupão, tirou a pistola de debaixo da almofada
e encaminhou-se para o sítio de onde provinha a voz.
Era a voz de Jessie. Lá em baixo.
Desceu a escada de pedra. As luzes do escritório estavam acesas. E Jessie estava lá, com o telemóvel dele encostado ao ouvido.
Pelos excertos de conversa que ouviu, parecia estar a falar com um colega das Operações Consulares em Washington.
- Então, o estatuto continua a ser o de "sem salvação" - repetia ela. - Abate à vista ...
Ela estava a procurar confirmar se a ordem para o eliminar ainda continuava em efectividade. Um arrepio percorreu-lhe a espinha.
- Onde é que ele está? - dizia Jessie Kincaid naquele momento.
- Que diabo, isso eu posso dizer-te. Mónaco, pá. Sabes que Novak tem lá uma casa. - Uma pausa. -Janson não referiu isso abertamente, mas eu surpreendi-o a fazer
uma piada com o amíguinho dele acerca de ir jogar bacará. É só ligar uma coisa à outra ...
Ela estava a mentir-lhes. A mentir-lhes por causa dele. Janson repôs a pistola no coldre, quase tonto de alívio.
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- Não - prosseguia ela. - Não digas a ninguém que eu telefonei. Isto foi uma conversa particular, certo? Só entre nós os dois, Pookie. Podes ficar com os louros,
isso não me interessa nada. Diz-lhes, sei lá, diz-lhes que eu estou em coma num sítio qualquer e que é o Serviço Nacional de Saúde Holandês que está a pagar-me os
tratamentos, que são imensamente caros, porque eu não trazia quaisquer documentos de identificação. Diz-lhes isso, e eu aposto que eles não vão ficar com pressa
nenhuma de me fazer regressar aos Estados Unidos. - Passados instantes, desligou, voltou-se e sentiu um sobressalto ao deparar com Janson na soleira da porta.
- Quem é Pookie? - perguntou ele com voz cansada.
- É um manga-de-alpaca do Departamento de Estado, Divisão de Pesquisa e Informações Secretas, mas bom tipo. Acho que ele gosta de mim, mas o que é realmente estranho
é aquilo que ele me contou a respeito de Puma.
- Puma?
- Ê o nosso nome de código para Peter Novak. Eles não acreditam que ele tenha morrido.
- Ah não? Estão à espera de ver na secção de necrologia do New York Times?
- O que corre é que você recebeu dinheiro para provocar a morte dele, mas falhou.
- Eu vi-o morrer - retorquiu Janson, abanando tristemente a cabeça. "Meu Deus, como eu gostava que fosse mentira. Nem consigo dizer quanto."
- Uau, que se passa? - inquiriu ela - Até parece que está a reivindicar a responsabilidade pela morte dele.
- Receio bem que esse seu contacto esteja a gozar connosco ou então que não possua qualquer pista - retorquiu ele, revirando os olhos.
- Ele referiu que a CNN ia dar uma notícia acerca dele hoje. Apanhamos a CNN aqui? Provavelmente, será numa daquelas recapitulações das Notícias de Primeira Página.
- Encaminhou-se para o televisor e sintonizou a CNN. Depois, foi procurar uma cassete de vídeo, enfiou-a no gravador e premiu o botão RECORD.
Uma reportagem especial sobre as tensões entre as Coreias do Norte e do Sul. Protestos contra os alimentos geneticamente modificados na Grã-Bretanha. Seguidamente,
uma breve notícia de três minutos acerca de uma mulher indiana que mantinha uma clínica em Calcutá
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para tratamento dos seus compatriotas infectados com sida. Um homem de aspecto distinto agraciava-a com um galardão humanitário especial. O mesmo homem que
a ajudara a fundar a clínica.
Peter Novak. O falecido grande Peter Novak.
Janson assistiu à notícia com uma crescente sensação de espanto. Ou aquilo era algum truque de montagem ou então fora filmado antes da sua morte.
Rebobinaram a fita e viram-na outra vez, imagem por imagem.
- Pare aí! - pediu Jessie a determinada altura. Apontou para uma revista que se avistava de relance sobre uma mesa cheia de papéis. Correu para a cozinha e trouxe
consigo o exemplar do The Economist que comprara no quiosque nesse mesmo dia. - A mesma edição - disse.
Idêntica imagem aparecia na capa, cuja data-limite era a segunda-feira seguinte. O que tinham transmitido não fora uma gravação antiga. Tivera forçosamente de ser
filmado depois da catástrofe de Anura.
O que tinham visto então? Um irmão gémeo. Um impostor?
Teria Novak sido assassinado e substituído por um duplo? Era diabólico, quase inacreditável. Quem poderia ter feito tal coisa?
Ao volver os olhos para Jessie, reparou que ela o fitava com um olhar magoado.
- Só lhe peço uma coisa - disse Jessie. - Que não me minta. Quanto àquilo que aconteceu em Anura, só disponho da sua palavra, da de mais ninguém. - Tinha os olhos
húmidos. - Em quem devo acreditar?
- Eu sei aquilo que vi - respondeu Janson em voz baixa.
- Já somos dois - retorquiu ela, apontando com a cabeça para o ecrã da televisão.
- O que quer dizer com isso? Que não acredita em mim?
- Eu quero acreditar em si. Quero acreditar em alguém.
- Muito bem - retorquiu Janson. - Não a censuro. Eu chamo um táxi para a levar à Delegação das Operações Consulares de Milão e você regressa ao serviço. Pode crer
que eles vão ficar aliviados por poderem ter de volta uma atiradora especial do seu calibre. E eu já estarei longe quando a equipa de limpeza chegar aqui.
- Espere aí - retorquiu ela. - Vamos com calma. Tudo bem, você viu aquilo que viu.
Janson desviou o olhar, perdido nos seus próprios pensamentos.
- Se quisermos descobrir que diabo está a acontecer, vamos ter de sair daqui - prosseguiu ela. - Quanto tempo é que você julga que
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as Operações Consulares vão demorar a descobrir-nos? Eles dispõem de todos aqueles dados via satélite e já estão com certeza a passar em revista os vídeos obtidos
nas portagens e nas passagens de fronteira. Mais cedo ou mais tarde, algo irá trazê-los até aqui.
Ela tinha razão. Janson recordou o lema do filantropo: "Sok kicsi sokra megy." Sabedoria popular húngara. Iriam os seus pequenos esforços conseguir obter resultados
palpáveis? Recordava agora as palavras de Fielding: "Contudo, é na Hungria que se podem encontrar ainda quer os seus maiores admiradores, quer os seus inimigos mais
implacáveis." E também a observação de Marta Lang: "Para o bem ou para o mal, foi a Hungria que fez dele o que ele é agora. E Peter não é pessoa para esquecer as
suas dívidas."
Ela fez o que ele é, a Hungria. Tinha de ser esse o próximo destino de Janson. Era a melhor hipótese para pôr a descoberto os inimigos figadais de Peter Novak, aqueles
que tinham privado com ele durante mais tempo e que, provavelmente, o conheceriam melhor.
CAPÍTULO NOVE
O ARQUIVO NACIONAL era em Budapeste. Jessie Kincaid tomara a peito a ideia de Janson de começar pelo princípio.
Fizera uma lista das informações em falta que poderia ajudá-los a desvendar o mistério do filantropo húngaro. Constava que o pai de Peter Novak, o conde Ferenczi-Novak,
sempre nutrira uma preocupação obsessiva pela segurança do filho. Fielding dissera a Janson que o conde fizera inimigos que, era sua convicção, iriam procurar vingar-se
no herdeiro. Fora isso que acontecera efectivamente passado meio século? As informações mais importantes que poderiam obter seriam da área genealógica: era voz corrente
que Peter Novak se empenhava em proteger os membros sobreviventes da sua família ... porém, quem eram esses parentes? A história da família do conde Ferenczi-Novak
podia estar imersa em obscuridade, mas constaria certamente do Arquivo Nacional da Hungria. Se descobrissem os nomes desses parentes desconhecidos e conseguissem
localizá-los, podiam achar resposta à pergunta mais preocupante de todas: o verdadeiro Peter Novak estava morto ou vivo?
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Janson largou Jessie em frente do edifício do Arquivo Nacional porque ele tinha outros assuntos a tratar. Os anos passados em actividade no exterior tinham-lhe aguçado
a vocação para localizar os traficantes que vendiam no mercado negro documentos de identificação falsos e outros instrumentos que podiam vir a ser úteis um dia.
Podia ou não ter sorte, dissera ele a Jessie, mas de qualquer forma valia a pena tentar.
Jessica Kincaid, vestida simplesmente com unsjeans e um pólo verde-garrafa, encontrava-se agora numa sala enorme cheia de catálogos, de mesas e, talvez, de uma dúzia
de balcões dispostos ao longo das paredes. Sobre um balcão, encontrava-se um aviso em inglês que indicava ser aquele o balcão de informações para os visitantes de
língua inglesa. Encontrava-se uma pequena fila diante desse balcão, onde um funcionário atendia os clientes com um ar enfadado.
Quando Jessie chegou junto do balcão, entregou-lhe simplesmente uma folha de papel onde escrevera em letra bem legível nomes, localidades e datas precisas.
- Não vai dizer-me com certeza que vai dar-lhe muito trabalho a encontrar estes registos, pois não? - disse Jessie com o melhor dos seus sorrisos.
- Temos aqui toda a informação necessária - admitiu o funcionário depois de ler o papel. Em seguida, desapareceu numa dependência anexa que ficava por detrás do
balcão, regressando alguns minutos depois.
- Lamento muito. Não está disponível - disse.
- O que quer dizer com isso de não estar disponível? - protestou Jessie.
- Lamentavelmente, verificam-se certas ... lacunas nos registos. Verificaram-se perdas graves no final da Segunda Guerra Mundial causadas pelo fogo. Depois, para
os proteger, uma parte dos registos foi guardada na cripta da Catedral de S. Stephen. Infelizmente, a cripta era muito húmida e parte do acervo foi destruída por
fungos. Esses registos do conde Ferenczi-Novak estavam incluídos nessa parte que foi destruída.
- O senhor não teria possibilidade de voltar a verificar se não restou mesmo nada? - perguntou Jessie enquanto escrevia num papel o número de um telemóvel. - Ficava-lhe
muito agradecida se conseguisse descobrir alguma coisa ... - Um novo sorriso encantador. - Muitíssimo agradecida mesmo.
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TRÊS HORAS DEPOIS, o funcionário ligava para aquele número. Jessie escutou-o com um crescendo de excitação.
- Quer dizer que conseguiu descobrir os registos? Que podemos ter acesso a eles?
- Bem, não exactamente - respondeu o funcionário. - Por qualquer razão, os registos foram transferidos para uma secção especial, e lamento dizer-lhe que o acesso
a esses registos se encontra estritamente regulamentado. É simplesmente impossível um elemento do público ser autorizado a ver esse material. Seria necessária uma
quantidade de certificados e de documentos de toda a espécie emitidos ao mais alto nível ministerial.
- Mas isso é perfeitamente absurdo - comentou Jessie.
- Compreendo. O seu interesse é puramente genealógico, pelo que lhe parece absurdo que esses registos sejam tratados como se se tratasse de segredos de Estado. Pessoalmente,
estou em crer que se trata de mais um caso de classificação indevida ou, no mínimo, de arquivo incorrecto.
- É que ter feito esta viagem para nada deixava-me destroçada, sabe. - principiou Jessie. - Não tinha palavras para lhe agradecer se você conseguisse arranjar maneira
de me ajudar.
- Uma americana sozinha assim numa cidade estranha deve ser bastante desconfortável.
- Ainda se houvesse alguém que me pudesse mostrar a cidade. Um nativo autêntico. Um verdadeiro magiar.
- Para mim, ajudar os outros não é apenas uma obrigação. E ... bem, é a minha maneira de ser.
- Percebi isso assim que o vi...
- Trate-me por Istvan - disse o funcionário. - Bem, agora vejamos ... Qual seria a maneira mais simples? Ora, você tem carro, não é verdade?
- Claro.
- Estacionado onde?
- Na garagem, na rua do Arquivo, do lado oposto - mentiu Jessie. O silo de cinco andares era uma construção mastodôntica de betão de uma fealdade atroz.
- Em que andar?
- No quarto.
- Encontramo-nos lá dentro de uma hora, digamos. Levo uma pasta com cópias desses registos. Se quiser, depois podemos dar uma
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volta de carro. Budapeste é uma cidade muito especial. Vai ver como é especial.
- Você também é muito especial - retorquiu Jessie.
com UM RELUTANTE ruído mecânico, a porta do elevador abriu-se num andar ocupado com carros até dois terços. Faltava ainda algum tempo para a hora combinada e não
se avistava vivalma.
Ou estava ali alguém? Ao olhar em volta, ela detectou, pela visão periférica, um movimento rápido - uma cabeça a baixar-se, apercebeu-se uma fracção de segundo depois.
Caminhou descontraidamente por entre uma fila de carros, depois lançou-se subitamente para o chão, amortecendo a queda com as mãos. Rastejando, passou por entre
dois carros para a fila imediatamente a seguir e avançou rapidamente para o sítio onde avistara o homem a esconder-se.
Encontrava-se agora por detrás dele e, ao aproximar-se, viu a sua figura esguia. Não era o funcionário que conhecera; seria, presumivelmente, quem o chefe do funcionário
arranjara para o substituir.
com um salto, lançou-se sobre ele por trás, atirando-o ao chão de cimento, e imobilizou-o, agarrando-o pelo pescoço. Ouviu-se um baque surdo quando o queixo dele
embateu no chão.
- Quem mais é que vocês têm à minha espera? - perguntou.
- Só eu - respondeu o homem.
Jessie sentiu um arrepio. O homem era americano. Ela virou-o de costas e encostou-lhe o cano da pistola com força ao olho direito.
- Quem é que está lá fora?
- Dois tipos, na rua, mesmo aqui defronte - respondeu ele.
- Descreve-me o aspecto deles. - O homem não disse nada, o que a levou a exercer mais pressão com a pistola.
- Um tem cabelo curto louro e é um tipo enorme. O outro ... cabelo castanho muito curto, queixo quadrado.
Jessie aliviou a pressão da pistola. Estava lá fora um grupo de intercepção. Conhecia aquele tipo de emboscada. O homem esguio tinha também ali um carro: estava
ali para observar, e se Jessie saísse com o dela, entraria no dele e segui-la-ia a uma distância discreta.
- Porquê? - perguntou ela - Porque estás a fazer isto? Um olhar de desafio.
- Janson sabe porquê ... ele sabe aquilo que fez - vociferou. Nós não nos esquecemos de Mesa Grande.
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- Oh, meu Deus. Algo me diz que agora não temos tempo para falar dessa droga - disse Jessie. - Bem, então vamos fazer o seguinte: vais entrar no teu carro e levar-me
daqui para fora.
- Que carro?
- Não tens carro? Se não vais conduzir, também não precisas de ver. - E voltou a pressionar a pistola de encontro ao olho direito dele.
- O Renault azul - gaguejou ele. - Pare, por favor!
Ela entrou para o banco de trás do sedan enquanto ele se sentava no lugar do condutor. Baixou-se para não ser vista, mas manteve a Beretta Tomcat apontada a ele.
Desceram rapidadamente a rampa em espiral até chegarem junto da cancela de madeira cor-de-laranja que barrava a saída.
- Espatifa-a! - berrou ela. - Faz o que eu te digo!
O carro esmagou a fraca barreira e, roncando, saiu para a rua. Jessie ouviu passos de homens a correr.
Pelo espelho retrovisor, avistou um deles: cabelo muito curto, queixo quadrado; conferia. Ao ver o carro afastar-se, falou para um intercomunicador qualquer.
Subitamente, o pára-brisas estilhaçou-se e o carro guinou, descontrolado. Jessie espreitou por entre os bancos da frente e viu de um dos lados da rua um homem grande
louro uns metros à frente deles, com um revólver de cano comprido na mão. Acabara de disparar dois tiros.
O americano sentado ao volante fora mortalmente atingido; o sangue jorrava-lhe da nuca pelo orifício de saída da bala. Eles deviam ter percebido que o que se passava
não estava de acordo com o plano, que o homem magro fora feito refém, e tinham, consequentemente, recorrido à acção drástica.
Seguiu-se uma barulheira ensurdecedora de buzinas a tocarem e travões a chiarem, enquanto o carro, rodando cada vez mais lentamente, ultrapassava uma divisória,
atravessava quatro faixas de rodagem e ia chocar brandamente contra um carro que se encontrava estacionado. Jessie abriu a porta do lado da rua e correu passeio
fora, misturando-se com os grupos de peões.
REUNIRAM-SE DE NOVO nas instalações espartanas do Hotel Griff, um antigo albergue de trabalhadores reconvertido, na Rua Bela Bartók.
Jessie levava um livro que recolhera durante as suas deambulações pela cidade. Era um tributo a Peter Novak, e embora o texto fosse em
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húngaro, isso não fazia grande diferença porque se tratava fundamentalmente de um livro de fotografias. Janson pegou nele.
- Parece ser um livro para os seus admiradores indefectíveis. Um daqueles livros para se pôr em cima da mesinha de apoio. O que é que conseguiu apurar lá no arquivo?
Ela contou-lhe por alto o que acontecera. Parecia evidente que o funcionário fazia parte dos lacaios pagos por quem andava a persegui-los, que fizera soar o alarme
e lhe montara uma armadilha.
Ele escutou-a com crescente apreensão.
- Você não devia ter lá ido sozinha. Um encontro desses ... você tinha obrigação de saber os riscos que corria, Jessie. Foi uma inconsciência ... - Não prosseguiu
e tentou normalizar a respiração.
- bom - disse ela instantes depois. - O que é Mesa Grande?
- Mesa Grande - repetiu ele, e logo a sua mente se povoou de imagens que o tempo nunca desvanecera. Mesa Grande: a prisão militar de alta segurança nas faldas orientais
das montanhas de San Bernardino, na Califórnia. A vestimenta azul-escura que o prisioneiro fora obrigado a vestir, com o círculo de pano branco preso com velcro
ao centro do peito. Demarest insistira na execução por um pelotão de fuzilamento e fora-lhe feita a vontade. Janson respirou fundo. - Mesa Grande foi onde um homem
mau encontrou o seu triste fim.
Janson pedira para assistir à execução por razões que ainda hoje permaneciam obscuras para si próprio e o pedido fora deferido.
Teriam os dedicados servidores daquele monstro decidido vingar a morte dele passados todos aqueles anos? Talvez entre os mercenários recrutados pelos inimigos de
Novak se encontrassem os Diabos de Demarest. Que melhor forma haveria de combater um discípulo das técnicas de Demarest do que com outro discípulo?
Ele sabia que Jessie queria ouvir mais explicações da boca dele, mas não conseguia estender-se mais sobre aquele assunto. Rematou a conversa, dizendo:
- Amanhã, temos que sair cedo. Vá dormir um pouco. E quando ela lhe pôs a mão no braço, ele afastou-se.
FORA HÁ TRÊS décadas e era agora também. Fora numa selva distante e era ali também. Os barulhos, sempre: o fogo de morteiro mais distante e abafado do que nunca,
já que o trilho os conduzira para muitos quilómetros de distância das zonas de combate oficiais.
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Janson consultou a bússola e verificou que o trilho apontava na direcção certa. Os seis homens da sua equipa movimentavam-se aos pares, cada um deles bem afastado
do outro, como melhor forma de evitar a vulnerabilidade de um grupo compacto em território hostil. Apenas ele marchava sem nenhum companheiro ao lado.
- Maguire - chamou baixinho pelo rádio.
Nunca chegou a ouvir qualquer resposta. Apenas ouviu o disparar de armas automáticas e, por cima disso, as rajadas bem destacadas de várias metralhadoras ligeiras
ComBloc.
Logo de seguida, ouviu os seus homens a gritarem e as ordens secas vindas de uma patrulha inimiga. Ia levar a mão à sua Ml 6 quando sentiu uma pancada na nuca. Depois,
não sentiu mais nada.
Quando abriu os olhos de novo, viu que estava amarrado a uma cadeira. Um homem de constituição forte e óculos de aros de aço aproximou-se dele.
- Onde ... os outros? - perguntou Janson. Mas a sua boca parecia estar cheia de algodão.
- Os membros do seu pelotão da morte? - respondeu o homem em inglês. - Mortos. Só escapou você.
- Vocês são vietcongues?
- Esse termo não correcto. Nós representamos o Comité Central da Frente de Libertação Nacional. Porque é que você não tem chapa de identificação?
Janson encolheu os ombros, o que lhe valeu como resposta imediata uma pancada violenta com uma cana de bambu no pescoço.
- Devo tê-la perdido.
Estava um guarda de cada lado do inquiridor carrancudo. Cada um deles armado com uma AK-47.
- Você mente! - Os olhos do inquiridor viraram-se para o homem que se encontrava por detrás de Janson, que foi agredido de lado com cano de uma carabina, achava
ele. Uma onda de dor intensa percorreu-lhe o corpo.
Introduziram uma barra de cinco centímetros de espessura por entre os pesados grilhões de ferro que lhe prendiam os tornozelos. Seguidamente, o torturador oculto
atou uma corda a essa barra, passou-a à volta dos ombros de Janson e puxou-lhe a cabeça para a colocar entre os joelhos, mantendo-lhe os braços amarrados aos braços
da cadeira. A pressão sobre os seus ombros provocava-lhe um sofrimento crescente.
Esperou pela pergunta seguinte. Mas os minutos passaram e só
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o silêncio reinou. O crepúsculo converteu-se em escuridão. A respiração tornou-se mais difícil porque o seu corpo dobrado comprimia-lhe o diafragma e, por outro
lado, parecia ter os ombros num torno. Desmaiou, depois recuperou a consciência, mas era apenas uma consciência da dor.
Outro dia passou. Depois, outro. E mais outro ainda.
Tanto podia ser noite como manhã quando voltou a ouvir uma voz, uma vez mais em inglês. Alargaram os nós que o prendiam e conseguiu voltar a sentar-se direito na
cadeira, uma mudança de posição que, a princípio, provocou uma renovada agonia nos seus terminais nervosos.
- Está melhor agora? Em breve estará, espero.
Um novo inquiridor, um homem pequeno de olhar vivo e inteligente.
- Chamo-me Phan Nguyen e considero que é, na realidade, um privilégio travarmos conhecimento. O seu nome é ...
- Soldado Kevin Jones - respondeu Janson. - Da Infantaria dos Estados Unidos.
O homem pequeno corou, ao mesmo tempo que esbofeteava Janson na orelha direita, ferindo-a e deixando-a a retinir.
- Primeiro-tenente Paul Janson. Não estrague o bom trabalho que tem feito.
Como é que eles sabiam o seu nome e patente?
- Foi você que nos contou tudo - declarou Phan Nguyen. Você contou-nos tudo. Já se esqueceu, no seu delírio? Estou em crer que sim.
Seria possível? Jansou cruzou o seu olhar com o de Nguyen e ambos viram confirmadas as respectivas suspeitas. Ambos ficaram a saber que o outro tinha mentido. Janson
não revelara nada ... pelo menos até àquele momento. Quanto a Nguyen, ficara a saber pela reacção dele que a identidade de Janson estava correcta.
- Por agora, não vou pressioná-lo para me dar respostas. Quero que seja você a fazer as perguntas a si próprio. - Phan Nguyen sentou-se de novo, mirando Janson com
absoluta concentração. - Quero que pergunte a si próprio como foi capturado. Nós sabíamos precisamente onde encontrá-lo. Aquilo com que deparou não foi a reacção
de homens apanhados de surpresa, pois não? Se não foi você que me forneceu os pormenores sobre a sua identidade, quem foi então? Como foi possível nós interceptarmos
a sua equipa e capturarmos um oficial
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da lendária divisão de contra-espionagem dos fuzileiros? Como? Como, de facto? Só podia haver uma resposta: fora o capitão-de-fragata Alan Demarest quem fornecera
aquela informação ao Exército Norte-Vietnamita ou aos seus aliados do Vietcongue. Ele queria Janson fora do seu caminho; precisava de pô-lo fora do seu caminho.
E, por isso, tratara pessoalmente do assunto.
MOLNÁR. A vila que a História apagou.
Molnar. Onde tudo começara e que parecia agora ser a sua última esperança de encontrar qualquer elo de ligação às origens de Peter Novak.
O Landa que tinham alugado todo ele rangia e balouçava enquanto rolava pelos montes Bíikk, no Nordeste da Hungria. A vila de
Molnar ficava junto do rio Tisza, bem
no coração do país magiar. Cem quilómetros para norte ficava a República Eslovaca; cem quilómetros para leste, a Ucrânia e, logo abaixo, a Roménia. A paisagem era
magnífica, formada por outeiros cor de esmeralda, contrafortes que se estendiam até pequenas montanhas azuladas. Aqui e além, um dos outeiros erguia-se mais alto,
formando um pico altaneiro, e as pequenas elevações com vinhas em socalcos cediam os lugares mais altos às florestas.
Atravessaram uma pequena ponte sobre o Tisza; uma ponte que em tempos unira as duas metades da vila de
Molnar.
- É inacreditável - exclamou Jessie. - Desapareceu tudo. É como se alguém tivesse agitado uma varinha mágica.
- Isso teria sido bastante mais simpático do que aquilo que realmente aconteceu - retorquiu Janson. Segundo lera, num dia de Inverno de 1945, o Exército Vermelho
irrompera por aquelas montanhas e uma das divisões de Hitler tentara armar-lhe uma emboscada. As unidades de artilharia iam pela estrada, ao longo do rio Tisza,
e os soldados alemães e os da Cruz de Setas procuraram repeli-las, falhando, mas infligindo-lhes imensas baixas nessa tentativa. O Exército Vermelho acreditou que
os habitantes de Molnar tinham sempre estado ao corrente da emboscada. A vila foi incendiada, e os seus habitantes, chacinados.
Ao examinar mapas da região, Jessie pôde confirmar que no local onde os mapas anteriores à guerra indicavam a pequena vila os atlas contemporâneos não indicavam
absolutamente nada. Ora, Jessie tinha analisado atentamente os mapas com uma lupa de joalheiro e uma régua de projectista; não havia engano possível.
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Entraram num bar que ficava à beira da estrada. Lá dentro, estavam dois homens ao balcão. Nenhum deles levantou os olhos ao ver chegar os americanos, mas o barman
seguiu-os com o olhar. As grandes entradas do seu cabelo e as rugas escuras que tinha por baixo dos olhos contribuíam para lhe conferir uma aparência idosa.
Janson sorriu e perguntou ao homem:
- Fala inglês?
O homem acenou afirmativamente com a cabeça.
- Sabe, a minha mulher e eu temos andado por aqui a ver a paisagem. Mas é também uma espécie de viagem de visita às origens. Está a compreender?
- A sua família é húngara? - O inglês do barman, não obstante o sotaque, era fluente.
- A da minha mulher é - respondeu Janson. Jessie sorriu e acenou com a cabeça.
- Verdade! - acrescentou ela.
- Segundo a família, os avós dela nasceram numa vila chamada Molnar.
- Isso já não existe - retorquiu o barman. Afinal, reparava agora Janson, o homem era mais novo do que parecera à primeira vista.
- Será que há aqui alguém que ainda tenha recordações daquele tempo? - perguntou Jessie.
- Quem mais é que vê aqui? - A pergunta era como que uma objecção educada.
- Talvez ... um daqueles cavalheiros?
O barman apontou para um deles com o queixo e disse:
- Aquele ali nem sequer é magiar; é palóc. É um dialecto muito antigo, mal consigo percebê-lo. Ele percebe a nossa palavra para dinheiro, e eu percebo a dele para
cerveja, e assim nos entendemos. Mas não me interessa ir além disso. - Depois, deitou um olhar ao outro homem. - E aquele ali é ruteno.
- Estou a ver - exclamou Janson. - E não haverá alguém que viva aqui perto e ainda se lembre dos velhos tempos?
- Vocês vêm da América de visita, não é? Há muitos museus bonitos em Budapeste. E, lá mais para oeste, há aldeias com interesse, muito pitorescas. Mesmo à medida
de pessoas como vocês, turistas americanos. Eu acho que este lugar aqui não é bonito para visitar. Não tenho aqui postais ilustrados para vos mostrar. E acho que
os Americanos não apreciam lugares que não venham nos postais ilustrados.
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- Nem todos os Americanos - corrigiu Janson.
- Todos os Americanos gostam de pensar que são diferentes retorquiu o homem em tom azedo. - É uma das características que os torna a todos iguais.
- O senhor, por acaso, não estará bêbado? - perguntou Jessie.
- Sou licenciado em Inglês pela Universidade de Debrecen. Talvez vá dar ao mesmo - respondeu o homem com um sorriso amargo.
- Surpreendidos? O filho de um taberneiro pode frequentar a universidade: são as glórias do comunismo. O filho com formação universitária não consegue arranjar emprego:
são as glórias do capitalismo. O filho trabalha para o pai: são as glórias da família magiar.
- bom, é melhor voltarmos à estrada - disse Janson. - Está a fazer-se tarde. - Pegando no cotovelo de Jessie, conduziu-a com mão firme em direcção à porta.
Ao saírem para a claridade do dia, viram um velhote sentado numa cadeira de lona desdobrável, sob o alpendre, com uma expressão divertida.
- O meu filho é um frustrado - exclamou o velhote sem denunciar qualquer emoção na voz. - Quer arruinar-me. Repararam nos fregueses? Um ruteno. Um palóc. São pessoas
que não têm de aturar a conversa dele. Nenhum magiar entra aqui agora. Para quê pagar e ainda ter de ouvir os queixumes dele?
- Aposto que o bar estava cheio quando era o senhor a gerir as coisas - comentou Jessie. - E aposto também que entre os clientes havia uma quantidade de mulheres.
- Porque é que pensa isso?
- Ora, um homem bonito como o senhor? É preciso entrar em pormenores? Aposto que ainda hoje em dia arranja sarilhos por causa delas - disse Jessica, ajoelhando-se
ao lado dele.
O sorriso dele aumentou; aquela proximidade com uma bela mulher tinha de ser devidamente saboreada. Respirou fundo, inalando o seu perfume.
- Minha querida, o seu cheiro é como o do vinho Tokai dos imperadores.
- Estou certa de que diz o mesmo a todas as raparigas - retorquiu ela, provocando-o.
Ele assumiu uma expressão séria por instantes.
- Claro que não. - Depois, com um sorriso acrescentou: - Só às que são bonitas.
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- Aposto que em tempos deve ter conhecido algumas raparigas bonitas de Molnar.
Ele abanou a cabeça.
- Eu fui criado à beira do Tisza, mas lá mais para cima. Só vim morar para aqui nos anos de 1950. Nessa altura, Molnar já não existia. Era só pedras e árvores.
Os olhos de Jessie não desgrudavam dos do velhote.
- Bem, as coisas antigamente eram muito diferentes. Eu sei. Não havia um barão que era aqui destes lados, um antigo nobre magiar?
- As terras do conde Ferenczi-Novak estendiam-se por todo este lado da montanha - indicou ele com um gesto vago. - E havia também um castelo.
- Céus, gostava de saber se ainda haverá alguém vivo que tivesse conhecido esse tal conde. Ferenczi-Novak, não era?
- Bem - respondeu ele. - Há aí uma velhota, a Avó Gitta Békesi. Fala inglês também. Dizem que aprendeu em nova quando trabalhava lá no castelo. Sabe como é: as russas
nobres preferiam sempre falar em francês, as húngaras nobres davam preferência ao inglês ...
- Békesi, foi isso que disse? - insistiu Jessie delicadamente.
- Sim, mora numa velha casa de quinta lá no cimo, depois da curva.
- Podemos dizer-lhe que foi o senhor que nos mandou lá?
- É melhor não. Ela não gosta muito de desconhecidos.
- Ora, sabe o que nós dizemos lá na América? - perguntou Jessie. - Não há desconhecidos; apenas amigos que ainda não conhecemos.
O filho veio até cá fora.
- Aí está outra coisa dos Americanos - troçou. - Têm uma capacidade infinita para se enganarem a si próprios.
SITUADA A MEIO de uma encosta suave, a velha casa rural de dois andares era semelhante a milhares de outras que salpicavam a paisagem. Podia ter um século, dois,
três. Noutros tempos, podia ter albergado um camponês próspero com a respectiva família. Mas, vista mais de perto, era óbvio que, com o correr dos anos, se havia
degradado imenso. O telhado fora substituído por chapas onduladas, já corroídas pela ferrugem. As árvores e as vinhas cresciam desordenadamente em volta da casa,
tapando muitas das janelas. Era difícil imaginar que alguém vivesse ali.
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Estacionaram o Lancia fora da estrada, que era uma estrada que mal merecia o nome, pois apresentava-se toda esburacada e esboroada por falta de manutenção. Prosseguiram
a pé por aquilo que fora em tempos um trilho de gado, agora quase intransitável devido às enormes silvas que o bordejavam. A casa ficava quase a quilómetro e meio
dali.
Quando se aproximavam da entrada, ouviram o rosnar de um cão, seguido de latidos roucos. Pela estreita vigia de vidro incrustada na porta, Janson viu a criatura
branca a saltar de impaciência. Reconheceu a raça: era um kuvasz, uma antiga raça húngara. Devia ter uns noventa centímetros de altura e pesar mais de cinquenta
quilos, calculou.
- Mrs. Békesi? - chamou Janson.
- Vão-se embora! - clamou uma voz trémula pela janela aberta. A velhota permanecia na sombra, mas ouviu-se distintamente o ruído de um cartucho a ser introduzido
na câmara de uma caçadeira.
- Escute, minha senhora - exclamou Jessie. - Alguma vez ouviu falar do conde Ferenczi-Novak?
Seguiu-se um longo silêncio. Depois, com voz ríspida a mulher perguntou:
- Quem são vocês?
com EXTREMA RELUTÂNCIA, Gitta Békesi lá acedeu finalmente a deixá-los entrar na degradada casa de quinta onde agora vivia sozinha, apenas acompanhada pelo seu cão
feroz. A velhota partilhava a decrepitude da sua residência. A pele pendia-lhe molemente do crânio; o couro cabeludo espreitava, seco e pálido, por baixo do cabelo
ralo; os olhos encovados brilhavam com uma expressão dura por detrás de dobras de pele que faziam lembrar as de uma cobra. Era, enfim, o rosto de uma sobrevivente.
Na sala ampla, um braseiro ardia lentamente na lareira. Na consola por cima desta, uma fotografia a sépia numa moldura de prata oxidada retratava uma mulher nova
e bonita. Gitta Békesi nos seus tempos de juventude: uma camponesa robusta, respirando saúde por todos os poros, e algo mais também: uma sensualidade dissimulada.
Ali estava ela a olhar para eles, desafiando a devastação da idade.
Jessie acercou-se da fotografia.
- Que bonita que a senhora era - exclamou.
- A beleza pode ser uma maldição - retorquiu a velha. Deu um estalo com a língua; o cão aproximou-se e foi sentar-se a seu lado. Então,
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ela estendeu um braço e fez-lhe festas nos flancos com as mãos secas e magras.
- Julgo saber que a senhora em tempos trabalhou para o conde
- disse Janson. - O conde Ferenczi-Novak.
- Eu não falo dessas coisas - atalhou logo ela. Estava sentada numa cadeira de baloiço de cana. Por detrás dela, encostada à parede, estava a sua velha caçadeira.
- Deixei-os entrar. Já podem dizer que estiveram com a velha e lhe fizeram as vossas perguntas. E também podem dizer a todos os interessados que Gitta Békesi não
vos contou nada.
- Espere aí um instante ... Todos os interessados? Quem são os interessados?
- Eu não sou - respondeu ela. E fixando o olhar em frente, remeteu-se ao silêncio.
- Aquilo são castanhas? - perguntou Jessie, olhando para uma taça que estava em cima de uma pequena mesa junto à cadeira da mulher.
Békesi acenou afirmativamente com a cabeça.
- Posso provar uma? Sei que acabou de as assar porque o cheirinho espalhou-se pela casa toda e está a fazer-me crescer água na boca.
Békesi voltou a acenar com a cabeça.
- Ainda estão quentes - comentou em tom de satisfação.
- Fazem-me lembrar a minha avó. Quando íamos a casa dela, costumava assar castanhas ... - Fez um sorriso alegre perante a recordação. - E fazia que cada dia parecesse
Dia de Natal. - Jessie descascou entretanto uma castanha e comeu-a com prazer. - Esta castanha, assada na perfeição, só por si fez valer a pena esta viagem de cinco
horas.
A velha fez um gesto de assentimento, numa atitude nitidamente menos fria.
- Ficam muito secas quando assam de mais.
- E muito rijas quando assam de menos - acrescentou Jessie. Mas a senhora fez disto uma ciência.
Um breve sorriso de satisfação aflorou ao rosto da velhota.
- Todas as suas visitas lhas pedem? - perguntou Jessie.
- Eu não tenho visitas.
- Nenhumas? Quase não posso acreditar.
- Muito poucas. Muito, muito poucas. Jessie acenou com a cabeça.
- E como é que a senhora lida com os intrometidos?
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- Aqui há uns anos, esteve aí um jornalista de Inglaterra - disse a mulher. - Fez uma quantidade de perguntas. Andava a escrever qualquer coisa sobre a Hungria do
tempo da guerra e do pós-guerra.
- A sério? - exclamou Janson. - Adorava ler o que ele escreveu. A velha fungou.
- Ele não escreveu nada. Dois dias depois da visita, morreu num acidente em Budapeste.
- Ele também fez perguntas acerca do conde? - perguntou Jessie, ansiosa.
A velhota ficou a olhar para Jessie em silêncio por momentos.
- Talvez queira acompanhar-me num cálice de pálinka.
- bom, se a senhora também beber ...
A velhota levantou-se lentamente da cadeira e aproximou-se em passos inseguros do aparador de portas de vidro. Tirou de lá um jarro enorme cheio de um líquido incolor
e deitou uma pequena quantidade em dois cálices.
Jessie pegou num. A velhota voltou a sentar-se e observou Jessie a tomar um gole.
O líquido explodiu-lhe literalmente pela boca fora. Foi um acto tão involuntário como um espirro.
- Céus, peço imensa desculpa! - exclamou Jessie com voz sufocada.
A velhota fez um sorriso malicioso.
- Aqui por estes lados, somos nós próprios que o fazemos. Cento e noventa graus. - Emborcou a sua aguardente, parecendo ficar mais descontraída do que até então.
- Como é que foi parar ao castelo? - perguntou Janson passados momentos.
A velhota sorriu, recordando.
- Os meus pais trabalhavam a terra. Eram camponeses, mas tinham outros planos para mim. Pensavam que, se eu fosse trabalhar como criada no castelo, sempre aprenderia
alguma coisa. A minha mãe conhecia uma das mulheres que ajudavam a governar a casa de Ferenczi-Novak e apresentou-lhe a sua menina. Uma coisa conduziu a outra, e
acabei por conhecer pessoalmente aquele grande homem e a sua linda mulher, Illana, de belos olhos azuis. Depois, um belo dia a minha mãe foi levar-me lá ao castelo
do monte.
- Deve ser difícil para si recordar coisas que se passaram há já tanto tempo - arriscou Jessie.
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A velhota abanou a cabeça.
- O que aconteceu ontem está envolto em bruma. Mas do que aconteceu há seis décadas lembro-me como se fosse hoje.
Janson reviu mentalmente as ruínas que se avistavam lá no alto do monte; da vasta propriedade só restavam agora pedaços destroçados de paredes, que se elevavam apenas
a um ou dois metros do chão.
- Então, e filhos? - perguntou Jessie.
- Eles só tiveram um filho, chamado Peter.
- Peter - repetiu Janson, em tom casual. - Quando é que ele nasceu?
- Nasceu no primeiro sábado de Outubro de 1937. Era um menino tão perfeito ... Muito simpático e inteligente. Ainda parece que estou a vê-lo com a gola à Peter Pan,
os pequenos calções de golfe e o boné de marujo. - Sorriu, e o sorriso dela fez do seu rosto um emaranhado de rugas. - E os pais dele não viam outra coisa, o que
é fácil de entender. Era filho único. O parto foi muito difícil e, em consequência disso, a condessa não pôde voltar a conceber. - A velhota encontrava-se agora
num outro mundo: se era um mundo perdido, para ela não era. - Um rapaz tão perfeito - prosseguiu, pestanejando. - As febres foram uma coisa terrível. Era uma epidemia
de cólera, sabiam? Eu fui uma das pessoas que cuidaram dele durante a doença. Nunca conseguirei esquecer aquela manhã em que encontrei o corpo dele tão frio, os
lábios descoloridos, as faces cor de cera. Foi de cortar o coração ver acontecer uma coisa daquelas. Tinha só cinco anos. Morreu antes de ter oportunidade de viver
verdadeiramente a vida.
Janson sentia-se completamente desorientado. Peter Novak morrera em criança? Como é que aquilo era possível? Haveria ali algum engano? Estaria a velhota a falar
de outra família, de outro Peter?
Não havia dúvida de que a velhota estava a contar a verdade, tal como se recordava dela. O que significava aquilo então?
Peter Novak: o homem que nunca existiu.
Jessie abriu o fecho da mochila, tirou de lá o livro com fotografias de Peter Novak e abriu-o onde havia uma grande fotografia a cores do ilustre benemérito. Mostrou-a
a Gitta Békesi.
- Está a ver este homem? Chama-se Peter Novak.
A anciã olhou para a fotografia. Depois, para Jessie, encolhendo os ombros.
- Eu não ando a par das notícias, mas acho que já ouvi falar desse homem.
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- Tem o mesmo nome. Tem a certeza de que não pode tratar-se da mesma pessoa?
- Peter, Novak, são nomes vulgares no nosso país - respondeu ela, encolhendo novamente os ombros. - Claro que esse aí não é o filho de Ferenczi-Novak. Esse morreu
em 1942. - Volveu de novo os olhos para a fotografia. - Além disso, os olhos desse homem são castanhos. Os do pequeno Peter eram azuis, como os da mãe.
CAPÍTULO DEZ
EM ESTADO DE CHOQUE, encetaram ambos o longo caminho de regresso ao carro, encosta acima. Enquanto a casa ficava para trás, iam trocando impressões.
- E se houvesse outra criança? - alvitrou Jessie. - Um rapaz de quem ninguém conhecesse a existência e que tivesse tomado o nome do irmão? Um gémeo escondido, talvez.
- A velha parecia ter a certeza de que ele era filho único. E não seria fácil escondê-lo do pessoal da casa. Mas, claro, se o conde Ferenczi-Novak era tão paranóico
como dizem, todas as artimanhas são concebíveis.
- Mas porquê? Ele não era maluco.
- Não era maluco, mas temia desesperadamente pela vida do filho - retorquiu Janson. - Na época, a situação política na Hungria era altamente explosiva. As represálias
e contra-represálias faziam parte do dia-a-dia. Centenas de milhares de pessoas foram mortas nos finais de 1944 e princípios de 1945, depois de a Cruz de Setas ter
tomado conta do poder. Lembre-se de que esses tipos da Cruz de Setas eram autênticos nazis nascidos na Hungria. Depois, quando o Exército Vermelho tomou conta do
país, houve nova onda de purgas. Pessoas como Ferenczi-Novak foram apanhadas numa tenaz.
- Nesse caso, lá voltamos à velha questão: como criar um filho num mundo assim? Talvez aquela gente achasse que não era possível. Que qualquer filho seu teria de
permanecer escondido.
- Moisés entre os juncos - reflectiu Janson. - Mas isso levanta uma nova série de perguntas. Novak diz a todo o Mundo que aqueles são os pais dele. Porquê?
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- Por ser a verdade?
- Uma criança nas condições dele teria certamente sido educada no temor de dizer a verdade. Eu não acredito que eles tivessem tido outro filho. Acho que Gitta Békesi
nos disse a verdade: Peter Novak, o único filho do conde, morreu em criança.
As sombras alongavam-se à medida que o Sol se escondia por detrás do pico distante. Passados alguns minutos, clareiras que tinham sido douradas tornaram-se subitamente
cinzentas.
- Isto está a converter-se numa galeria de espelhos - comentou Jessie. - Ontem, estávamos a considerar se algum impostor não se teria apropriado da identidade de
Peter Novak. Agora, parece ter sido o próprio Peter Novak a apoderar-se da identidade de outra pessoa. Uma criança já falecida, uma vila varrida do mapa ... aí estava
uma oportunidade.
- Uma usurpação de identidade - corroborou Janson. - Brilhantemente levada a cabo.
- Pensando bem, é um golpe de génio. Selecciona-se uma povoação totalmente devastada pela guerra para que não haja praticamente ninguém que se lembre da sua infância.
Todos os registos, certidões de nascimento e de óbito destruídos quando a vila foi incendiada ...
- E fazer-se passar pelo filho de um aristocrata também é uma boa jogada - acrescentou Janson. - Ajuda a lidar com uma quantidade de dúvidas que podiam colocar-se
relativamente às suas origens. Ninguém vai questionar como é que ele pode ter uma educação tão esmerada quando não existe qualquer registo oficial da sua escolaridade.
- Exactamente. Que escolas é que frequentou? Espera lá, dirão as pessoas, ele teve professores particulares ... no fim de contas, ele é filho de conde, não é verdade?
E porque é que passou tão despercebido? Porque esse aristocrata, esse tal Janós Ferenczi-Novak, tinha montes de inimigos e uma boa razão para andar paranóico. Tudo
se encaixa na perfeição.
- Como as peças de um puzzle bem encaixadas umas nas outras. E tudo o que posteriormente vem a lume a seu respeito é que se trata de um negociante de moeda extremamente
bem-sucedido.
- Um homem sem passado.
- Oh, passado ele tem, sem dúvida. Só que é um passado que ninguém conhece.
- A pergunta que não me larga é: porquê? Porquê a mistificação? Toda a gente o estima. É um verdadeiro herói do nosso tempo ...
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- Até os santos têm alguma coisa a esconder - atalhou Janson.
- Suponha que o homem provém de uma família envolvida com as atrocidades cometidas pela Cruz de Setas. Fizesse ele o que fizesse, isso viria sempre à baila ... em
todas as entrevistas, todas as conversas, todas as discussões.
Decorreram alguns instantes até que ele conseguisse identificar o barulho que ecoava colina acima. Era fraco, quase imperceptível; contudo, apurando o ouvido, reconheceu
a sua origem, e o seu coração começou a bater mais depressa. Era o grito de uma mulher.
Os ARBUSTOS ESPINHOSOS e as vinhas não podadas fustigavam e arranhavam Janson na sua descida desenfreada pelo trilho serpenteante da encosta. Dissera a Jessie para
regressar ao Lancia; seria um desastre se os inimigos o alcançassem primeiro. O caminho era a subir, mas ela corria como uma gazela.
Poucos minutos volvidos, Janson chegava à velha casa de quinta da mulher. Os gritos tinham dado lugar a um silêncio profundo.
A porta estava entreaberta. Lá dentro, o nobre kuvasz jazia de lado, inerte; fora estripado. Caída sobre a cadeira de baloiço próxima, estava Gitta Békesi. Tinha
o rosto coberto pela blusa de musselina grossa, que lhe fora arrancada e puxada para cima da cabeça, expondo o seu tronco flácido - e os horrores indescritíveis
de que fora alvo. Feridas pequenas orladas de vermelho - cada uma delas correspondente a um golpe de baioneta, reconheceu Janson de imediato - sulcavam a sua carne
pálida num desenho grotesco. As lâminas dos seus agressores tinham-na retalhado dúzias de vezes. Nos braços e pernas expostos eram visíveis os vergões provocados
pela pressão dos dedos que a tinham agarrado. A mulher fora imobilizada e torturada com uma lâmina trespassante.
Onde estavam eles? Perto, muito perto. Porque era a ele que procuravam. Deviam estar no cimo da colina.
Janson precisava de se posicionar num sítio alto para poder ter uma visão nítida do terreno em redor. Formando um ângulo recto relativamente à casa, havia um palheiro
assente em colunas. Janson correu para o pátio e trepou uma escada para subir ao palheiro. Uma porta de alçapão com dobradiças existente no tecto de tábuas toscas
permitíu-lhe subir ao ponto mais alto.
Cerca de quatrocentos metros acima, na encosta, um pequeno grupo de homens armados caminhava na direcção de Jessie Kincaid.
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A seguir, Janson viu e ouviu um bando de melros que se elevavam do mato circundante para o céu com um assobiar estridente; alguma coisa os assustara. Um momento
depois, distinguiu um movimento suspeito nas árvores frondosas e nos arbustos que rodeavam a casa e percebeu o que isso significava. Caíra numa armadilha!
Os homens contavam que ele tivesse ouvido os gritos da velhota e tinham procurado atraí-lo.
A casa de quinta era um espaço fechado, mas os homens armados tinham-na cercado por todos os lados e começavam agora a sair do meio do mato em direcção ao pátio.
Janson desceu do telhado, depois pulou do palheiro para o chão de terra. Se os homens ainda não tinham atacado, isso devia-se unicamente ao facto de não saberem
se ele estaria armado.
Janson atravessou o pátio a correr e dirigiu-se para a sala de estar da mulher. A caçadeira desaparecera. Porém, se a mulher tinha uma caçadeira, também devia ter
cartuchos em casa.
Encontrou o que queria numa pequena despensa. Pegou num par de caixas e, rastejando, regressou à sala.
Colocou então um punhado de cartuchos no grelhador de ferro que estava em cima da lareira e onde a mulher assara as castanhas naquele próprio dia. Embora os cartuchos
se destinassem a ser detonados pelo cão de uma caçadeira, o calor, se fosse suficiente, produziria um efeito semelhante.
Janson colocou mais uma pequena acha no braseiro e regressou à cozinha. Aí, pôs uma frigideira de ferro forjado sobre o fogão eléctrico, velho de décadas, e colocou
lá mais um punhado de cartuchos. Seleccionou uma temperatura média-baixa. Levaria um minuto só para aquecer o fundo da pesada frigideira.
Ligou em seguida o forno, colocou os restantes cinquenta cartuchos no tabuleiro e seleccionou uma temperatura elevada.
Atravessou depois o pátio, curvado para não dar nas vistas, trepou novamente para o palheiro e esperou.
Subitamente, um estrondo atroou os ares, seguido, numa sucessão rápida, de quatro outros estrondos. Logo a seguir, Janson ouviu, em resposta, o fogo de uma carabina
automática e o ruído de vidro a estilhaçar-se.
Para Janson, aquela sequência acústica era como que um relato preciso. Os cartuchos que estavam na lareira tinham detonado. Os assaltantes haviam assumido que estavam
a ser disparados da sala de estar.
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Ordens gritadas apressadamente chamavam os homens para virem participar no combate que aparentemente se travava diante da fachada principal da casa.
Uma série de explosões mais abafadas indicou a Janson que os cartuchos da frigideira do fogão eléctrico tinham atingido também o ponto de detonação. Para os assaltantes,
aquilo seria o sinal de que a sua presa recuara para a cozinha. Pela fresta entre as ripas da parede do celeiro, Janson verificou que um dos homens armados ficara
para trás; os seus camaradas tinham acorrido ao outro lado do recinto para se reunir aos outros no assalto final.
Janson sacou da Beretta e, pela mesma fresta, apontou ao homem corpulento, que envergava um camuflado cor de azeitona. Porém, não era ainda altura de disparar. Não
podia correr o risco de o tiro ser ouvido pelos outros e comprometer o seu subterfúgio. Esperou, por conseguinte, até ouvir o tremendo estrondo dos cinquenta cartuchos
a explodirem dentro do forno para premir o gatilho. O ruído passaria completamente despercebido no meio da explosão.
Lentamente, o homem corpulento tombou de rosto no chão.
Janson destrancou uma porta e correu para o homem caído.
Por um momento, considerou a hipótese de desaparecer nas moitas escuras da encosta. Mas depois veio-lhe à memória a mulher assassinada, o seu corpo selvatícamente
brutalizado, e qualquer ideia de fuga varreu-se-lhe do pensamento. Retirou ao morto a metralhadora automática e a respectiva cartucheira, que colocou à bandoleira.
O grupo de assaltantes estava agora reunido diante da casa, andando de um lado para o outro, disparando sobre todos os esconderijos possíveis e imaginários.
Janson deu a volta em direcção à casa, arrastando consigo o cadáver do homem que abatera. À luz errante das lanternas, reconheceu um rosto, depois outro, depois
um terceiro ainda. Tudo rostos duros, cruéis. Os rostos de homens com quem trabalhara, havia muitos anos, nas Operações Consulares. Homens rudes. Homens para quem
a força bruta não era o último recurso, mas o primeiro. Eles não tinham lugar nas manobras do Governo; na opinião de Janson, a sua simples presença retirava credibilidade
moral à instituição.
Vestiu o seu casaco ao morto, após o que o posicionou por detrás de um castanheiro frondoso. com os atacadores das botas do homem, atou-lhe a lanterna ao antebraço
sem vida. Depois, arrancou pequenos pedacinhos de madeira de um ramo seco e inseriu-os entre as
pálpebras
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do homem, fazendo que os seus olhos ficassem abertos com um olhar vítreo. Era uma tarefa difícil, aquela de converter o morto numa efígie de si próprio. Mas
nas sombras da noite, e à primeira vista, passaria por ele. Janson disparou então uma rajada sobre as janelas da sala. Os três pistoleiros desprevenidos contorceram-se
em convulsões horríveis à medida que as balas lhes perfuravam diafragma, intestinos, aorta, pulmões. Ao mesmo tempo, aquela rajada inesperada chamou a atenção dos
restantes.
Janson acendeu a lanterna atada ao antebraço do homem e precipitou-se para o penedo que se encontrava a um metro dali, envolto em escuridão.
A reacção foi aquela que esperava: quatro dos comandos apontaram as suas armas automáticas para o vulto agachado. O ruído e a concentração furiosa dos pistoleiros
jogou a favor de Janson: apontando cuidadosamente a sua Beretta, disparou quatro tiros numa sucessão rápida. Todos os homens tombaram pesadamente no chão, mortos.
Restava um; Janson estava a ver-lhe o perfil reflectido nas cortinas no andar de cima. Era alto, postura rígida, e tinha o cabelo muito curto. O seu rosto era um
dos que Janson reconhecera e conseguia identificá-lo agora só pela aparência, pela determinação dos movimentos. Ele era o chefe do grupo. Apesar do pouco que observara
até ali da sua interligação com os outros, isso resultava bem claro.
Ocorreu-lhe entretanto o nome: Simon Czerny. Um operacional das Operações Consulares especializado em assaltos clandestinos. Os seus caminhos tinham-se cruzado em
El Salvador nos anos de 1980, e já naquela altura Janson o considerara um homem perigoso, implacável no seu desprezo pela vida dos civis.
Janson correu para a sala de estar em ruínas e avistou o enorme jarro de aguardente, a fortíssima pálinka. Remexendo nos bolsos de um dos pistoleiros mortos, encontrou
um isqueiro Zippo. Espalhou então a aguardente de cento e noventa graus a toda a volta da sala e pelo corredor que conduzia à cozinha e utilizou o isqueiro para
pegar fogo ao líquido volátil.
Janson aguardou que as chamas atingissem uma determinada consistência. Rolos de fumo começaram a espalhar-se pelo estreito vão de escada acima.
O comandante Czerny não tinha alternativa. Ficar onde estava significava ser consumido por aquele inferno de chamas. A única saída que lhe restava era pelas escadas
e pela porta da frente.
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Janson ouviu os passos pesados do homem. Contudo, assim que chegou ao patamar de entrada, Czerny disparou uma rajada, varrendo de balas tudo o que se encontrava
à sua frente num raio de quase cento e oitenta graus. Quem quer que estivesse à espera dele lá fora teria sido fatalmente atingido pelo matraquear selvagem da metralhadora
automática. Janson não pôde deixar de admirar a eficiência e o sentido de antecipação de Czerny enquanto observava o dorso rodopiante do pistoleiro ... por trás.
Levantou-se do local onde se escondera junto à escada, no próprio andar da sala, perigosamente perto do braseiro crescente, o último local onde o pistoleiro esperaria
encontrá-lo. Janson deu um salto em frente e apertou o pescoço do homem com um braço, ao mesmo tempo que lançava os dedos à patilha de segurança, arrancando-lhe
a arma das mãos. Czerny esbracejou violentamente, mas a raiva tornava Janson imparável.
Contudo, com um esforço quase sobrenatural, Czerny endireitou-se e conseguiu libertar-se de Janson. Depois, correu pátio fora, afastando-se da casa em chamas. Janson
correu atrás dele e derrubou-o com um vigoroso empurrão no ombro, projectando-o para o chão de pedra. Czerny soltou um berro quando Janson lhe puxou um braço para
trás, deslocando-lhe a articulação e, simultaneamente, virando-o de costas. Aumentando a pressão sobre o pescoço do homem, Janson debruçou-se sobre ele.
- Se não me disseres aquilo que eu quero ouvir, nunca mais voltas a falar - exclamou, sacando uma faca de combate de uma bainha que Czerny trazia à cintura. - Ainda
trabalhas nas Operações Consulares?
Czerny soltou uma risada irónica.
- Não passam de escuteiros mais crescidos. Se andassem a vender bolinhos de porta em porta, não se notava diferença nenhuma.
- Mas tu agora fazes a diferença?
- Diz-me uma coisa. Como é que consegues viver contigo próprio, grande traidor? Houve alguém que uma vez procurou ajudar-te, um verdadeiro e puro herói, e como foi
que lhe pagaste? Entregaste-o, puseste-o diante de um pelotão de fuzilamento. Que era o que te deviam ter feito a ti em Mesa Grande, meu filho da mãe!
Janson pressionou a parte larga da faca do homem de encontro à sua face, com uma barba de poucos dias.
- Fazes parte de algum pelotão de vingança de Da Nang, é?
- Quieto aí! - A intimação veio de alguém por detrás dele.
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Janson olhou para trás e deparou com o barman com quem tinham estado a falar antes naquele próprio dia e que empunhava agora uma caçadeira de dois canos.
- Não é isso que dizem constantemente na porcaria dos vossos filmes policiais americanos? Eu disse-lhes que não eram bem-vindos prosseguiu o homem. - Agora vou ter
de vos mostrar até que ponto não são bem-vindos.
Janson ouviu alguém a correr, saltando por cima de rochas e ramos, atravessando moitas. Segundos depois, surgia Jessie Kincaid.
- Larga o raio dessa velharia! - berrou ela. Trazia na mão uma pistola.
O húngaro engatilhou a velha caçadeira do tempo da II Guerra Mundial.
Jessie enfiou-lhe uma bala na cabeça. O homem tombou de costas. Janson agarrou na caçadeira e pôs-se de pé.
- A minha paciência esgotou-se, Czerny, e os teus aliados também se esgotaram.
- Não estou a compreender - exclamou Czerny. Kincaid abanou a cabeça.
- Limpei o sebo a quatro matulões ali em cima. Gente sua, certo? Era o que me parecia. Não gostei da atitude deles.
Janson pressionou a ponta da faca-de-mato contra o rosto de Czerny.
- Para quem é que trabalhas?
Czerny piscou repetidamente os olhos, onde afloravam lágrimas de dor.
- Vais acabar por nos dizer, mais cedo ou mais tarde - insistiu Janson. - Tu sabes. Mas depende de ti ser ... com ou sem humilhação.
Num movimento súbito, Czerny estendeu a mão para o punho da faca e, com uma torção violenta, conseguiu apoderar-se dela. Jason recuou para evitar qualquer golpe,
e Jessie avançou, apontando-lhe a arma; mas nenhum deles previu o que o homem ia fazer a seguir.
com mão trémula, enterrou a faca no próprio pescoço e, aprofundando o golpe, rasgou com ela a garganta. Em dois segundos, cortara todas as veias e as artérias que
lhe sustentavam a vida.
A cólera violenta que Janson sentira dentro de si desvaneceu-se, dando lugar a choque e incredulidade. Compreendeu o significado da cena que acabara de presenciar.
Czerny preferira a morte àquilo que sabia aguardá-lo, caso tivesse pactuado com o inimigo. O que sugeria
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a existência de uma disciplina férrea no seio daqueles agressores: uma liderança que reinava pelo terror.
E aqueles homens, aqueles ex-membros das Operações Consulares? Janson mal os conhecia, mas algo lhe espicaçava continuamente a memória. Seriam eles realmente ex-agentes
das Operações Consulares? Ou estariam ainda no activo?
A VIAGEM DE CARRO para Sárospatak demorou duas horas, mas foram duas horas em que a tensão nunca os largou. Janson permaneceu sempre atento, com receio de que alguém
estivesse a segui-los. Finalmente, pararam junto de um hotel.
O empregado de serviço à recepção mal olhou para eles ou para os respectivos documentos.
- Temos uma vaga - disse. - É um quarto com duas camas, serve?
- Perfeitamente - respondeu Janson.
No quarto, parcamente mobilado, Jessie passou vinte minutos a falar pelo telemóvel de Janson. Tinha um pedaço de papel onde Janson anotara os nomes dos três ex-agentes
das Operações Consulares que conseguira identificar. Quando desligou, estava nitidamente alvoroçada.
- Então, o que é que o seu namorado lhe disse acerca deles? perguntou Janson.
- Namorado? Se alguma vez o tivesse visto, não estaria com ciúmes. Ele é gordo que nem um texugo, entendido?
- Ciúmes? Ora, não se arme em boa. Jessie revirou os olhos nas órbitas.
- Olhe, o que se passa é isto. Segundo os registos oficiais, estes tipos estão mortos há quase uma década. Lembra-se daquela explosão em Qadal? - Qadal era o local
em Omã onde estivera instalada uma unidade de comandos da Marinha dos Estados Unidos. Na década de
1990, os terroristas tinham lá posto uma bomba, que custara a vida a quarenta e três soldados americanos. Uma dúzia de "analistas" do Departamento de Estado também
lá se encontrava e tinha igualmente perecido.
- Uma daquelas tragédias "por explicar" - comentou Janson num tom inexpressivo.
- bom, os registos indicam que esses tipos que mencionou morreram na explosão.
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Janson tentou digerir a informação. O incidente terrorista em Omã devia ter sido um expediente. Permitiu que um contingente inteiro de agentes das Operações Consulares
"desaparecesse" muito convenientemente ... para reaparecer mais tarde, talvez ao serviço de outro poder. Mas que poder?
Jessie passeava-se no quarto de um lado para outro.
- Estão mortos, mas não estão mortos, não é? Haverá alguma hipótese, por mais ínfima que seja, de que o Peter Novak que vimos na CNN seja o mesmo Peter Novak de
sempre? Não interessa qual seja o nome de baptismo dele. É concebível... sei lá ... que, de alguma forma, ele não estivesse no helicóptero que explodiu?
- Eu estava lá, eu vi tudo ... não sei como é que isso podia acontecer realmente - retorquiu Janson, abanando lentamente a cabeça. Não consigo imaginar.
- Inimaginável não significa impossível. Deve haver uma maneira de se provar que é o mesmo homem.
Jessie espalhou sobre uma mesa um monte de fotografias de Novak do ano anterior, obtidas através da Internet quando se encontravam na casa de campo de Alasdair Swift,
na Lombardia. Uma delas era do site da CNN e mostrava o filantropo na cerimónia de homenagem à mulher de Calcutá a que tinham assistido pela televisão. Muniu-se,
entretanto, da lupa de joalheiro e da régua que comprara para analisar os mapas da região dos montes Búkk e utilizou-as para examinar as imagens que tinha diante
de si.
Dez minutos depois, interrompeu um longo silêncio.
- Ora bem, temos de ter em consideração coisas como a distorção provocada pela lente. Mas, segundo a fotografia, o fulano parece ter ligeiras diferenças de estatura.
Subtis, não mais de centímetro e meio de diferença. Temo-lo aqui ao lado do presidente do Banco Mundial. Aqui o temos, de novo, numa ocasião diferente ao lado do
mesmo homem. Ambos parecem usar os mesmos sapatos em ambas as fotografias. E há também pequenas diferenças no comprimento do antebraço. E a proporção entre o comprimento
do antebraço e o do fémur ... Prosseguiu, apontando para uma fotografia que o mostrava a caminhar ao lado do primeiro-ministro da Eslovénia e depois para outra fotografia
que mostrava uma posiçção semelhante. -... Proporções diferentes entre as mesmas articulações. - Folheou rapidamente o livro de fotografias que adquirira em Budapeste
e serviu-se novamente da régua. A proporção entre os dedos indicadores ... não é constante.
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com a ajuda da lupa e da régua, continuou a procurar e a detectar ligeiras diferenças físicas. Qualquer cepticismo que ainda subsistisse ia-se dissipando à medida
que os exemplos se iam multiplicando.
- A questão é: quem é este homem? - disse, meneando a cabeça, intrigada.
- Creio que o que quer dizer é: quem são estes homens? - retorquiu Janson. - Eu não tenho acesso a Peter Novak ou a quem quer que se intitula como tal. Quem mais
é que nós conhecemos que possa saber a resposta?
- Provavelmente, não serão as pessoas que andam a tentar apanhá-lo a si, mas sim quem lhes dá as ordens.
- Exactamente. E tenho uma forte suspeita de quem possa ser.
- Está a referir-se a Derek Collins, o director das Operações Consulares? - alvitrou ela.
- A Equipa Lambda não pode entrar em acção sem a aprovação directa dele. Para já não falar nos outros grupos que vimos actuar. Acho que chegou a altura de eu fazer
uma visita a esse cavalheiro disse Janson.
- Escute o que eu lhe digo - atalhou ela rapidamente. - Se Collins o quer ver morto, não conte sair vivo do pé dele.
- Não tenho alternativa - comentou Janson.
- Quando partimos então? - perguntou ela com ar sério.
- Nada de "partimos". Eu vou sozinho.
- Você não me acha suficientemente competente?
- Sabe perfeitamente que não foi isso que eu quis dizer - retorquiu Janson. - Você é óptima, Jessie. Cinco estrelas. Mas a questão é esta: o passo que tenho de dar
a seguir tenho de o dar sozinho. É um risco que você não tem necessidade de correr.
- E você também não.
- Confie em mim. Vai ser um passeio no parque - retorquiu Janson, sorrindo.
- Diga-me que não é por ainda estar ressentido com o que aconteceu em Londres. Porque ...
-Jessie, preciso de si para fazer o reconhecimento das instalações da Fundação Liberdade em Amsterdão. Em breve, vou lá ter consigo. Não podemos descartar a possibilidade
de alguma coisa ou alguém aparecer por lá.
- Eu acho é que você tem medo de me pôr em risco - afirmou Jessie.
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- Não sabe o que está a dizer.
- C'os diabos, talvez você tenha razão. - Quedou-se em silêncio por um momento, desviando o olhar. - Talvez eu ainda não esteja preparada. - Reparou, de súbito,
numa pequena mancha de sangue que tinha nas costas da mão direita. Ao examiná-la mais de perto, pareceu ficar um tanto angustiada. - O que fiz hoje, lá naqueles
montes ...
- Foi aquilo que tinha de fazer. Era matar ou morrer.
- Eu sei - retorquiu com voz rouca.
- Não somos obrigados a gostar do que fazemos. Não tem de ter vergonha do que está a sentir neste momento. Mas, por vezes, a força letal é a única coisa que consegue
derrotar outra força letal. Você fez aquilo que tinha de ser feito, Jessie.
Ela dirigiu-se para a casa de banho, e Janson ouviu a água do chuveiro correr durante muito tempo. Quando regressou, o seu corpo esguio, mas de curvas suaves, vinha
envolto num roupão de turco. Encaminhou-se para a cama que ficava mais próxima da janela. Janson quase ficou atónito perante a aparência, agora tão delicadamente
feminina, da agente operacional.
- Você vai então abandonar-me amanhã de manhã - disse ela passado um momento.
- Eu não poria as coisas dessa maneira - retorquiu Janson.
- Talvez devêssemos então aproveitar bem o dia ... ou a noite. Janson apostava que ela receava pela vida dele e pela sua própria também. - Eu tenho bons olhos, você
sabe. Mas não preciso da mira telescópica de atirador para ver o que tenho à minha frente.
- E o que é?
- Vejo o modo como olha para mim.
- Não sei do que está a falar.
- Oh, vá lá, soldado, ataque agora. Chegou a altura de me dizer até que ponto lhe faço recordar a sua falecida mulher.
- Na realidade, as duas não podiam ser mais diferentes. Ela fez uma pausa.
- Estou a fazê-lo sentir-se desconfortável. Não tente negar.
- Não me parece.
- Você vacila quando eu me aproximo. - Levantou-se e dirigiu-se-lhe. - E abre muito os olhos, fica todo corado e o seu coração bate mais depressa. - Pegou na mão
dele e colocou-a sobre o seu pescoço.
- O mesmo acontece comigo. Não o sente?
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- Um agente operacional não deve entrar em suposições - respondeu Janson; mas sentiu efectivamente sob a sua pele quente e sedosa, o pulsar do coração dela, que
parecia bater em sintonia com o seu.
- Estou a lembrar-me de uma coisa que você escreveu um dia acerca da cooperação entre agentes de diferentes nações: "Para trabalhar em conjunto, como aliados, é
importante que quaisquer tensões existentes sejam discutidas através de um diálogo livre e aberto." - Os olhos dela riam-se. - Por isso, feche os olhos e pense no
seu país. Aproximou-se mais e entreabriu o roupão. Os seus seios formavam dois globos perfeitos, de mamilos túrgidos de desejo; debruçou-se sobre ele, prendendo-lhe
o rosto com as mãos em concha e envolvendo-o com o seu olhar quente e firme.
Enquanto ela lhe despia a camisa, Janson exclamou:
- Há uma cláusula no regulamento que proíbe a confraternização. Ela encostou os lábios aos dele, afastando de vez as suas já frágeis
objecções.
- Você chama a isto confraternização? - perguntou, despindo completamente o roupão com um movimento dos ombros.
Janson aspirou a fragrância delicada que se evolava do corpo dela. Os lábios eram macios, sensuais e húmidos e procuravam agora a boca dele, convidando-a a beijar
a sua. As suas mãos afagavam-lhe suavemente as faces, o queixo, as orelhas. Ele sentia os seios dela, macios mas firmes, encostados ao seu peito, as pernas dela
entrelaçadas
nas suas.
Então, subitamente, ela começou a tremer e soluços convulsivos escaparam-se-lhe da garganta, ao mesmo tempo que comprimia com mais força o seu corpo contra o dele.
Delicadamente, ele afastou-lhe um pouco a cabeça e notou que tinha as faces cobertas de lágrimas.
-Jessie - exclamou afectuosamente. -Jessie.
Ela abanou a cabeça, desanimada, depois escondeu-a no peito dele.
- Nunca me senti tão sozinha - confessou ela. - Tão assustada.
- Não está sozinha - retorquiu Janson. - E depois é o medo que nos mantém vivos.
- Você não sabe o que é ter medo. Ele beijou-lhe a testa com ternura.
- Está enganada. Eu estou sempre com medo. Tal como eu disse, é por isso que ainda aqui estou. E por isso que estamos aqui os dois juntos.
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Ela puxou-o para si com uma intensidade selvagem.
- Faça amor comigo. Preciso de sentir o que você sente. E preciso de sentir agora.
Dois corpos interligados rolavam agora na cama ainda feita, incendiados por uma paixão quase desesperada, flectindo-se, agitando-se, em busca de um momento de completa
comunhão carnal.
- Não estás sozinha, meu amor - murmurou Janson. - Nenhum de nós dois ficará. Nunca mais.
CAPÍTULO ONZE
MENOS DE UMA hora depois de ter chegado ao Aeroporto Dulles, já Janson circulava por algumas pequenas estradas cheias de curvas que atravessavam uma das regiões
mais tranquilas da Costa Oriental. A baía de Chesapeake estendia-se por três mil e quinhentos quilómetros de costa, e até mais se se entrasse em linha de conta com
os cento e cinquenta rios confluentes. A baía propriamente dita era pouco profunda. A sua profundidade oscilava entre os três e os nove metros.
Janson transpôs uma ponte e alcançou finalmente a extensa língua de terra conhecida por ilha Phipps. Enquanto conduzia pela estrada estreita o Camry de aluguer,
ia observando os pequenos barcos de pesca que se movimentavam pela baía, içando as suas redes carregadas de caranguejos e de peixes das rochas.
Percebeu por que razão Derek Collins elegera a ilha Phipps como retiro de férias, uma fuga às pressões da sua vida em Washington. Embora a curta distância de Washington,
era um sítio isolado e calmo; e era também, graças à configuração do terreno, seguro. Estava ligada à península principal por uma estreita faixa de terra que dificultava
qualquer aproximação sub-reptícia. Por outro lado, a pouca profundidade da água que a circundava impedia uma aproximação anfíbia.
Janson saiu da estrada e estacionou o carro de frente para um maciço particularmente exuberante de pequenos loureiros e salgueiros. Percorreria a pé os cerca de
mil e quinhentos metros que faltavam. Se os contactos de Janson lhe haviam fornecido informações precisas, Collins estaria ali na sua casa de férias e sozinho. Por
ser viúvo, Collins tinha o hábito de passar a maior parte do tempo isolado.
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Janson meteu pelo mato rasteiro em direcção à costa, uma língua de rochas, areia e conchas.
Ouviu o barulho de botas na passadeira de madeira, a seis metros dali, onde a terra formava uma crista junto ao topo da praia. Um jovem de camuflado verde-negro,
calças justas e cinturão de armas: o uniforme típico da Guarda Nacional.
- Ei, o senhor aí! - O jovem guarda já o avistara e caminhava agora na sua direcção. - Não viu os avisos? O senhor não pode entrar aqui.
Janson voltou-se de frente para ele, ligeiramente curvado, esforçando-se por parecer idoso e frágil.
- Aqui a costa é propriedade pública. - Relaxou os músculos do rosto e colocou na voz uma leve tremura para sugerir doença. Falando com o sotaque da Costa Oriental,
exclamou: - Se pensa que vai proibir-me de ir para onde a lei me permite, é melhor mudar de ideias. Eu sei os meus direitos.
O guarda fez um ar carrancudo, meio divertido com a conversa tola do homem. Mas as ordens que tinha eram bem claras.
- Acontece que esta área é restrita e há por aí uma dúzia de letreiros a avisar. - Postou-se mesmo defronte dele - Se tem alguma queixa a apresentar, escreva ao
seu congressista.
De um salto, Janson lançou-se sobre ele, tapando-lhe a boca com a mão direita e agarrando-o pelo pescoço com a esquerda. Antes de ambos tombarem no chão, já Janson
se apoderara da pistola M9 que o seu opositor tinha no coldre.
- Ninguém gosta de chicos-espertos - disse, abandonando o sotaque e encostando a M9 à traqueia do homem.
O jovem esbugalhou os olhos.
- As tuas ordens agora são: um grito da tua parte e és um homem morto, meu cretino. -Janson tirou-lhe o cinturão e utilizou-o para lhe prender os pulsos aos tornozelos.
A seguir, rasgou da túnica do camuflado do homem umas tiras de tecido que lhe enfiou na boca, apertando-lhe depois a mordaça com os atacadores das botas. E após
enfiar no bolso a M9, escondeu o homem no meio de uma moita de juncos.
Janson prosseguiu então o seu caminho e, depois de ultrapassada a praia, começou a subir a ladeira verdejante. Ao cabo de cinco minutos, alcançava o lado sul de
uma duna coberta de mato ralo de onde ainda não se avistava a casa.
Contemplou as águas calmas da baía de Chesapeake. Lá longe, re-
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cortada pelo sol brilhante, avistava-se a ilha Tangier, situada vários quilómetros a sul.
- A minha mulher, Janice, adorava aquele sítio. - Ao ouvir inesperadamente aquela voz familiar, Janson voltou-se para trás e deparou com Derek Collins.
A única coisa que não lhe era familiar era o vestuário que o burocrata envergava: um homem que ele se habituara a ver sempre de fato completo apresentava-se agora
de calções de caqui, camisa aos quadrados e mocassins: indumentária de fim-de-semana.
Collins encontrava-se a escassos três metros de Janson, mas a sua voz parecia distante. Tinha as mãos nos bolsos.
- Ela gostava imenso de observar as aves. Estás a ver aquela ali ao pé da laranjeira? Cinzento-pérola, ventre branco, uma máscara negra à volta dos olhos como um
guaxinim? É um picanço.
- Também conhecido por estas paragens como pássaro-carniceiro - comentou Janson.
O pássaro soltou o seu trinado de duas notas.
- Faz sentido porque é predador de outras aves - retorquiu Collins. - Porém não tem garras, e aí é que está a elegância da coisa. Ele aproveita-se do que tem à mão:
espeta as presas num espinho ou em arame farpado, antes de as estripar. É por isso que não precisa de garras. - Collins virou-se entretanto e fitou Janson.
- Porque não entras?
- Não vais revistar-me? - perguntou Janson. - Para ver que armas trago?
Collins soltou uma gargalhada.
-Janson, tu és uma arma da cabeça aos pés. O que queres que eu faça? Que te ampute os membros? - Abanou a cabeça. - Além disso, estou a olhar para alguém que traz
os braços cruzados por baixo do casaco e exibe um volume trinta centímetros abaixo do ombro que é, muito provavelmente, uma arma apontada para mim. Presumo que a
tenhas tirado a Ambrose, que é um jovem razoavelmente bem treinado, mas que não é propriamente um ás.
Janson não disse nada, mas conservou o dedo no gatilho.
- Vem daí - disse Collins - Vamos fazer o caminho juntos. Será uma demonstração a dois de uma destruição mútua garantida e do imenso conforto que o equilíbrio provocado
pelo terror pode proporcionar.
Mais uma vez, Janson nada disse. Collins não era um operacional, mas, à sua maneira, não era menos letal, embora através de intermediários.
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Prosseguiram juntos ao longo de uma passarela de madeira de cedro em direcção à casa de férias de Collins. Na cozinha, onde rebrilhavam cromados e electrodomésticos
topo de gama, Collins fez café. Teve o cuidado de o preparar à vista de Janson para que ele pudesse tacitamente certificar-se de que não fora objecto de nenhuma
mistura. Do mesmo modo, quando trouxe as duas chávenas para o balcão de granito, deixou que fosse Janson o primeiro a escolher a sua.
Sentaram-se os dois ao balcão, cada um deles empoleirado num banco alto.
Collins bebeu um gole de café.
- O picanço que vimos há pouco ... é como que um falcão que julga ser uma ave canora. Acho que nos recordamos ambos de uma conversa que em tempos tivemos mais ou
menos à volta deste assunto. Uma daquelas tuas "entrevistas para saída". Eu afirmei que eras um falcão e tu não me deste ouvidos. Acho que querias passar por ave
canora, mas não eras, nem nunca serás. Tu és um falcão, Janson; faz parte da tua natureza. - Mais um gole de café. - Um dia, cheguei aqui a casa e encontrei Janice
diante do cavalete, onde estivera a tentar pintar qualquer coisa, e estava a chorar. Acontece que tinha visto o passaroco, que era como se lhe referia, a empalar
um passarinho num espinheiro, deixando-o lá espetado. Passado algum tempo, o picanço voltara e começara a esventrá-lo com aquele bico curvo. Um pássaro-carniceiro
a portar-se como um pássaro-carniceiro. Que é que eu podia dizer-lhe? Que um falcão cantor não deixa de ser um falcão?
- Talvez seja as duas coisas, Derek. Não um falcão a querer fazer-se passar por ave canora, mas um falcão que é, simultaneamente, uma ave canora. Uma ave canora
que se transforma em falcão quando necessário. Porque é que temos sempre de separar as coisas?
- Porque é preciso. - Pousou a chávena com força no balcão de granito. - E tu, tu tens de escolher. De que lado estás?
- E tu, de que lado estás?
- Eu nunca mudei - replicou Collins.
- Tentaste matar-me. Collins inclinou a cabeça.
- Bem, sim e não - retorquiu.
- Ainda bem que encaras a situação com tanta serenidade - disse Janson. - Cinco dos teus sequazes no vale de Tisza pareceram-me menos calmos a esse respeito.
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- Meus, não - exclamou Collins. - Olha, na realidade, isto é um caso muito
estranho.
- Eu não quero, de maneira nenhuma, que te sintas obrigado a dar-me uma explicação - bramou Janson com uma fúria surda. - A respeito de Peter Novak. A meu respeito.
A propósito de quereres ver-me morto.
- O envio da Equipa Lambda foi um erro, e todos nós nos sentimos terrivelmente mal com todo este caso da directiva de "sem salvação". Chamámos o que tínhamos de
melhor para cumprir essa ordem, mas quem quer que fossem os inimigos que encontraste na Hungria ... bem, esses não eram gente nossa. Talvez tivessem sido em tempos,
agora não.
- Então, suponho que está tudo resolvido - retorquiu Janson.
- Olha, não fui eu que emiti essa ordem. Limitei-me a não a contrariar. Toda a gente pensava que te tinhas vendido por dezasseis milhões de dólares. Durante algum
tempo, eu próprio acreditei nisso.
- Mas depois chegaste a uma conclusão diferente.
- Só que não podia cancelar a ordem sem uma explicação. De outra forma, as pessoas partiam do princípio de que eu endoidecera ou que me deixara subornar também.
E o problema estava em que eu não podia fornecer uma explicação sem trair um segredo guardado ao mais alto nível. Um segredo que nunca poderia ser divulgado. Tu
não podes encarar estas coisas objectivamente porque está em causa a tua própria sobrevivência. Mas a minha função é toda feita de prioridades, e quando se fala
em prioridades, há sempre sacrifícios que têm de ser feitos.
- Sacrifícios? Referes-te com certeza ao sacrifício que eu tinha de fazer. Esse sacrifício era eu,
co's diabos. - Janson inclinou-se mais para a frente, de rosto desfigurado pela raiva.
- Podes encolher o teu bico curvo. Eu não estou a contradizer-te.
- Achas que matei Peter Novak?
- Sei que não mataste.
- Deixa que te faça uma pergunta simples. Peter Novak morreu? Collins soltou um suspiro.
- bom, mais uma vez a minha resposta é sim e não.
- com um raio! - explodiu Janson. - Eu quero respostas.
- Dispara - respondeu Collins - Espera lá ... deixa-me dizer doutra forma: pergunta o que quiseres.
- Comecemos então com uma descoberta bastante surpreendente que eu fiz. Estudei pormenorizadamente dúzias de fotografias de Peter
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Novak. Existem variações de ordem física subtis, mas mensuráveis.
- Conclusão: não se trata de fotografias de um único homem exclamou Collins num tom de voz inexpressivo.
- Desloquei-me ao local onde ele nasceu. Houve realmente um Peter Novak, filho de Janós e Illana Ferenczi-Novak, que morreu com cinco anos em 1942.
Collins confirmou, acenando com a cabeça, e a sua falta de reacção foi mais arrepiante do que qualquer reacção que tivesse tido.
- Excelente trabalho, Janson.
- Diz-me a verdade - pediu ele. - Eu não sou maluco. Eu vi um homem morrer.
- Efectivamente - respondeu Collins.
- E não era um homem qualquer. Peter Novak ... uma lenda viva.
- Bingo. - Collins deu um estalo com a língua. - Uma lenda viva.
Janson sentiu um nó no estômago. Uma lenda viva. Uma criação dos profissionais dos Serviços Secretos.
Peter Novak era uma invenção do departamento. Collins levantou-se.
- Há uma coisa que te quero mostrar.
Rumou para o seu escritório, onde se encontrava um UltraSPARC da Sun Microsystems ligado a vários servidores dispostos em prateleiras sobrepostas.
- Lembras-te do final do feiticeiro de Oz? Sempre pensei nele como o momento da perda da inocência. Lá em cima está o grande e poderoso Oz, e cá em baixo, o pobre
coitado por detrás da cortina. Mas não apenas ele, e sim todo o raio daquela engenhoca, daquela maquinaria. Achas que foi fácil engendrar tudo aquilo? E, uma vez
instalada e a funcionar, não faz assim tanta diferença quem está por detrás da cortina, ou, pelo menos, foi isso que pensámos. E a máquina, não o homem, que é importante.
O director das Operações Consulares pairava sem cessar; uma ansiedade como nunca revelara estava a torná-lo agora estranhamente loquaz.
- Vai direito ao assunto - pediu Janson, cerrando os dentes. Collins apontou com um gesto para o sistema computorizado.
- Pode afirmar-se que aquilo ali é Peter Novak. Aquilo mais umas quantas centenas de sistemas computorizados interactivos espalhados por diversos locais e de segurança
de nível omícron. Peter Novak é um
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conjunto de bytes e de bits e de assinaturas de transferência digital sem origens nem destinos. Peter Novak não era uma pessoa. É um projecto. Uma invenção. Uma
lenda, sem dúvida. E durante muito tempo a de maior sucesso alguma vez alcançado.
- Por favor, prossegue - disse Janson em voz baixa e num tom calmo.
- Será melhor irmos sentar-nos noutro sítio - replicou Collins.
- Aqui o sistema tem tantos dispositivos electrónicos de segurança, tantas armadilhas escondidas, que é capaz de se autodestruir se respirarmos com mais força para
cima dele.
Foram ambos sentar-se na sala.
- Repara, trata-se de uma ideia brilhante - comentou Collins. Tão brilhante que durante algum tempo as pessoas guerreavam-se, cada uma reivindicando ter sido o seu
autor. Porém, o número de pessoas que tinham conhecimento dela era exíguo. Tinha de ser. É óbvio que o meu predecessor, Dan Congdon, teve muito a ver com isto. Tal
como Doug Albright, um protegido de David Abbott.
- De Albright já ouvi falar. Mas de Abbott...?
- É o tipo que engendrou o esquema "Caine" nos anos setenta, uma tentativa de fazer Carlos sair da toca. O mesmo tipo de pensamento estratégico do Mobius. Os conflitos
assimétricos são aqueles que levam os Estados a terem de se confrontar com indivíduos isolados. São combates desiguais, mas não tanto quanto possamos imaginar. Pensa
num elefante e num mosquito. Se esse mosquito for portador de encefalite, é capaz de causar a morte do elefante, e o Jumbo não poderá fazer grande coisa contra isso.
O ponto de vista de Abbott a esse respeito é que não é possível, de facto, mobilizar uma instituição pesada como é um Estado contra grupos organizados de banditismo.
É preciso contra-atacar por meio de um estratagema semelhante: criar agentes individuais que, ao abrigo de um mandado lato, disponham de um alto grau de autonomia.
- Mobius?
- O Programa Mobius. Um pequeno grupo de pessoas dentro do Departamento de Estado pôs-se a lançar ideias para o ar e, de uma forma ou de outra, acabaram a perspectivar
este cenário: que tal se formassem uma pequena equipa secreta de analistas e peritos para criar um milionário estrangeiro imaginário? Gostaram da ideia porque lhes
permitiria fazer avançar os interesses americanos de uma forma que a América, como tal, não poderia. Podiam tornar este mundo um mundo
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melhor. Um projecto totalmente vencedor ... E foi assim que nasceu o Programa Mobius.
- Mobius - repetiu Janson. - Como naquele laço em que a parte de fora é a parte de dentro.
- Neste caso, o de fora é um dos de dentro. A ideia é converter esse potentado numa figura independente do Mundo, sem quaisquer laços com os Estados Unidos. Os nossos
adversários não são os seus adversários. Podem até ser seus aliados. Pode assim influenciar situações nas quais nunca nos poderíamos imiscuir. Porém, primeiro tínhamos
que criar um "ele", e a partir do nada. Molnar era perfeito para os objectivos do programa, principalmente caso se juntasse a isso a carreira curta e infeliz do
conde Ferenczi-Novak. Fazia todo o sentido que o nosso homem tivesse tido uma infância sem grandes referências.
- Teria de haver um registo das funções desempenhadas, um currículo - interveio Janson. - Mas essa era com certeza a parte mais fácil. Era só restringirem a sua
"carreira" a umas quantas organizações de fachada que vocês controlassem.
- Se alguém fizer perguntas, haverá sempre um qualquer chefe de departamento grisalho, quiçá já reformado, que vai responder: "Oh, sim, lembro-me bem do jovem Peter.
Um brilhante analista financeiro. O seu trabalho era tão bom que eu não me importava nada de que ele preferisse fazê-lo em casa." E coisas do género.
Janson sabia que aqueles homens e mulheres seriam generosamente recompensados só por proferirem uma mentira uma ou duas vezes, ou talvez mesmo nunca, a qualquer
repórter que lhes fizesse perguntas. Não fariam qualquer ideia das restantes implicações desse acordo: a escuta permanente das suas comunicações, uma vigilância
permanente da sua vida ... mas aquilo que não sabiam não lhes podia causar qualquer mal.
- E a sua actuação incrivelmente humanitária?
- Não é injusto que, por mais coisas boas que este país faça, tanta gente em todo o Mundo nos tenha um ódio de morte? Sim, isto permite proporcionar alívio a muitos
locais problemáticos do Mundo. Repara, o Banco Mundial é uma solução de último recurso, ao passo que este homem é um primeiro recurso, o que lhe assegura uma grande
influência sobre todos os governos do Mundo. Peter Novak: o embaixador itinerante para a paz e a estabilidade.
- Óleo sobre águas turbulentas.
- Mas óleo caro, atenção! Todavia, "Novak" pôde mediar e
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resolver conflitos nos quais nunca poderíamos imiscuir-nos. Pôde negociar com regimes que nos consideram o Grande Satã. É toda uma política para o estrangeiro corporizada
num só homem. E é tão eficiente precisamente porque não aparenta ter qualquer ligação connosco.
- Mas quem é ... era ... Peter Novak, afinal? - inquiriu Janson.
- Foram destacados três agentes para fazer esse papel. Para começar, eram os três muito parecidos, praticamente da mesma altura e constituição física. Depois, a
cirurgia tornou-os quase idênticos. Precisávamos de ter no local mais do que um personagem: tendo em consideração o investimento feito, não podíamos permitir-nos
que o nosso homem morresse subitamente de um ataque cardíaco. Assim, três pareceu-nos cobrir razoavelmente as necessidades.
Janson olhou fixamente para Collins.
- E quem estaria disposto a permitir que a sua identidade fosse completamente apagada, a morrer para toda a gente que conheceu na vida, a sujeitar-se a que lhe transformassem
toda a personalidade ...?
- Alguém que não tivesse alternativa - respondeu Collins num tom enigmático.
Janson sentiu avolumar-se dentro de si um sentimento de cólera. Quase não conseguia encarar o burocrata e desviou o olhar para a baía resplandecente, fixando-o no
barco de pesca que, entretanto, surgira no seu campo de visão, para lá da zona de segurança, que começava a oitocentos metros da costa, assinalada por bóias de aviso.
- Alguém que não tivesse alternativa? - repetiu Janson, abanando a cabeça. - Tal como eu não tive quando me escolheram para ser morto, é a isso que te estás a referir?
- Lá vem outra vez esse assunto. - Collins revirou os olhos nas órbitas. - Revogar a ordem de abate ia levantar uma série de problemas. Aqueles cowboys da CIA obtiveram
relatórios credíveis de que Novak fora assassinado e de que tu tinhas algo a ver com isso. As Operações Consulares tiveram acesso à mesma informação. Essa era a
última coisa que nós, na Mobius, desejávamos que constasse, mas temos de jogar com as cartas que nos foram distribuídas. Na altura, fiz aquilo que me pareceu melhor.
Por um momento, Janson viu tudo vermelho à sua frente. "Qual dos dois seria o maior insulto?", perguntava a si próprio. "Ser executado como traidor ou ser sacrificado
como um peão num jogo de xadrez?" Uma vez mais, o barco de pesca despertou-lhe a atenção; só que desta vez acompanhada por uma angustiante sensação de perigo iminente.
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A embarcação era demasiado pequena para andar à pesca do caranguejo e encontrava-se demasiado perto da costa para andar à pesca de peixes da rocha, e aquele
tubo grosso que se prolongava para fora do oleado não era uma cana de pesca.
O projéctil penetrou pela janela, destruindo-a, e foi embater na parede oposta, inundando a sala com fragmentos de madeira, pedaços de estuque e estilhaços de vidro.
A explosão foi tão intensa que provocou nos ouvidos mais dor do que ruído. Começaram a formar-se colunas de fumo negro, e Janson apercebeu-se de qual fora o golpe
de sorte que os salvara. O projéctil furara a construção de pinho e gesso da casa de férias antes de explodir. Só isso evitara que fossem atingidos pela explosão
letal da granada. Janson apercebeu-se também de que o primeiro disparo da peça de artilharia servira fundamentalmente para tirar as medidas ao objectivo. A segunda
granada já não passaria três metros acima das suas cabeças.
Janson saltou do sofá e correu para a garagem anexa. A porta encontrava-se aberta e ele desceu para o piso de cimento, onde estava estacionado um descapotável. Um
Corvette amarelo.
- Espera! - bradou Collins, esbaforido, sem fôlego depois da corrida que fizera atrás de Janson. - Tenho aqui as chaves. - E entregou-lhas.
Janson pegou nelas e saltou para o lugar do condutor.
Collins accionou a abertura automática do portão da garagem e foi sentar-se ao lado de Janson, que engrenou o motor em marcha atrás, fez uma curva em J e acelerou
pela estrada estreita.
A cento e trinta quilómetros à hora, a erva alta e as árvores espinhosas perpassavam fugazmente pelo seu espelho retrovisor. O ruído do motor pareceu aumentar de
intensidade, como se a panela de escape se tivesse rompido. Janson reduziu ligeiramente a velocidade.
O ruído do motor não desapareceu.
Não era o ruído do seu motor.
Janson voltou-se para a direita e viu então o hovercraft, um modelo militar anfíbio, que deslizava sobre a superfície da baía e estava a ganhar-lhes em velocidade.
E empoleirado por baixo e para a esquerda da coluna da hélice traseira estava alguém a manusear uma metralhadora M60.
Janson encolheu-se no assento o mais que lhe era possível sem perder o controle do Corvette, que começou a vibrar como se fosse um martelo pneumático ao ser atingido
na carroçaria de aço pela primeira
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rajada de metralhadora. O hovercraft subiu entretanto para a praia e depois para a própria estrada. Encontrava-se já a poucos metros de distância, e as suas poderosas
hélices de sucção pareciam uns gigantes em comparação com o pequeno carro desportivo. E quando as saias pára-choques embateram no pára-choque traseiro do carro,
Janson apercebeu-se de uma horrível realidade: o hovercraft estava a tentar galgar por cima deles.
Lançou um olhar rápido para o seu lado direito e viu Collins dobrado para a frente no assento com as mãos sobre os ouvidos, a tentar protegê-los do ruído.
Janson guinou abruptamente o volante para a esquerda, e o carro saiu da estrada, perdendo rapidamente tracção e velocidade, com as rodas a patinarem na areia e no
mato rasteiro. O hovercraft ultrapassou-o a toda a velocidade, depois parou e inverteu a marcha sem ter que virar. O artilheiro da M60 podia agora alvejar directamente
condutor e passageiro.
Aos ouvidos de Janson chegou entretanto o ruído de outra embarcação: era uma lancha que vinha a dirigir-se para a costa. E na lancha distinguiu uma figura deitada,
em posição de tiro, armada com uma carabina. Apontada a eles.
Jason voltou a conduzir o Corvette para a estrada, fazendo o chassis raspar no chão ao transitar da terra mole para o macadame rijo.
Agachado sob a hélice, o artilheiro do hovercraft fez um sorriso malévolo, mas decorreram alguns segundos sem que despejasse sobre eles a letal carga de chumbo.
E, de súbito, o homem caiu para a frente, inerte, batendo desamparadamente com a cabeça no suporte da metralhadora.
Ouviu-se um eco que nas águas da baía de Chesapeake soou como o saltar de uma rolha de champanhe, depois outro, e o hovercraft veio imobilizar-se a escassos metros
do carro. Quando parou, Janson viu que também o corpo do piloto se encontrava caído, flácido, por cima do pára-brisas. Dois tiros, dois mortos.
Uma voz chamou através das águas da baía de Chesapeake, ao mesmo tempo que o motor da lancha parava de trabalhar:
- Paul! Estás bem?
Janson saiu do carro e correu para a praia. Viu Jessica na lancha, a dez metros de distância apenas. Era o máximo que ela podia aproximar-se sem o barco encalhar.
-Jessica! - De repente, sentiu-se absurdamente mais leve.
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- Diz-me que fiz bem - exclamou ela em voz triunfante. Derek Collins aproximou-se, o rosto suado coberto de areia. Janson voltou-se e encarou o seu adversário.
- Também eram teus lacaios, aqueles dois?
- Diabos me levem, eu não tive nada a ver com isto! Por amor de Deus, eles quase me mataram! Eles queriam ver-nos mortos aos dois.
- A voz dele estava alterada, em consonância com o pânico que todo o seu corpo exsudava.
Ele estava provavelmente a dizer a verdade, concluiu Janson. Mas quem estava então por detrás daquele último atentado? E havia qualquer coisa na atitude de Collins
que preocupava Janson: não obstante toda a sua candura, havia muita coisa que ele estava a esconder-lhe.
- Talvez. Mas pareces saber quem eram os agressores. Collins pestanejou várias vezes.
- Há muita coisa que precisas de saber, só que não estou autorizado a revelar-te. Tens de vir comigo para te encontrares com a Equipa Mobius. Precisamos de ti para
levar o programa por diante, está bem?
- Vocês querem-me a mim para "levar o programa por diante"? Então, primeiro, deixa que te pergunte uma coisa. Falaste-me numa equipa de cirurgiões que efectuou operações
plásticas em três agentes. Pergunto-me qual terá sido o destino dos membros dessa equipa. Onde estão eles agora?
Collins ficou em silêncio, baixando ligeiramente a cabeça.
Algo se incendiou dentro de Janson, embora Collins não tivesse feito mais que confirmar as suas suspeitas. Eles teriam provavelmente deixado passar um período de
doze meses antes de levarem a efeito a operação de limpeza. Não fora, com certeza, muito difícil. Um desastre de automóvel, um afogamento acidental, talvez uma colisão
mortal numa pista de esqui de primeira categoria.
Os olhos de Janson fixaram-se nos de Collins.
- Pequenos sacrifícios em benefício de uma causa grandiosa, certo? Era o que eu pensava. Não, Collins, eu não vou levar por diante o programa. Pelo menos, o vosso
programa.
Janson volveu o olhar para a água, viu Jessie Kincaid no barco parado, viu o seu cabelo curto ondulando ao sabor da brisa leve e de imediato sentiu que o seu coração
parecia saltar-lhe do peito. Talvez Collins lhe estivesse a contar a verdade relativamente ao papel das Operações Consulares naquilo que se passara, ou talvez não.
A única verdade incontestável era que Janson não podia confiar nele. "Há muita coisa que
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precisas de saber ... Vem comigo." Era esse precisamente o tipo de aproximação que Collins utilizaria para o atrair a uma cilada mortal.
Janson precipitou-se para a praia, chapinhou pela água rasa e depois, com umas braçadas vigorosas, nadou até ao barco de Jessie.
Logo que subiu para bordo, Jessie correu para ele e pegou-lhe na mão.
- Que engraçado! Pensei que estivesses em Amsterdão - disse Janson.
- Digamos que, de repente, os encantos da cidade diminuíram. Ele abraçou-a, sentindo o calor do seu corpo.
- Pronto, as minhas perguntas podem esperar. Tu terás, provavelmente, algumas a fazer-me.
- vou começar por esta - retorquiu ela. - Somos namorados ou não?
Ele apertou-a mais de encontro a si.
- Somos. Somos namorados - respondeu.
CAPÍTULO DOZE
O SENHOR NÃO ESTÁ a compreender - dizia o mensageiro, um homem negro na casa dos vinte anos de aspecto escrupuloso e óculos sem aros. - Posso perder o meu emprego
por causa disso. E apontava para o emblema no seu casaco azul-escuro, que identificava a empresa onde trabalhava: Caslon Couriers. Caslon: o ultra-seguro e extremamente
caro serviço de entrega de correspondência topo de gama a quem os indivíduos e as empresas mais relevantes confiavam a sua documentação mais sensível.
Estava sentado a uma pequena mesa do Starbucks, na confluência da Rua 39 com a Broadway, em Manhattan, e o homem de cabelo grisalho que estava a falar com ele insistia,
embora delicadamente. Era, segundo explicou, um quadro superior da Fundação Liberdade, e a sua mulher, membro do pessoal do escritório de Manhattan. Sim, concordava
que o pedido ia contra as normas, mas encontrava-se num estado de grande desespero. O problema era que tinha fundadas razões para crer que a mulher andava a receber
mensagens de um amante.
O mensageiro estava a ficar visivelmente incomodado, até que Jan-
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son se pôs a folhear várias notas de cem dólares. Após folhear vinte delas, os olhos do homem começaram a brilhar por detrás das lentes.
- Não estou a pedir-lhe que desvie nada - explicou o homem de cabelo grisalho. - Só estou a pedir-lhe que me deixe ver as cópias dos talões das facturas. E se eu
conseguir saber alguma coisa, se ele for realmente o tipo que eu julgo ser, ninguém virá a saber como é que descobri.
O mensageiro concordou com um aceno de cabeça.
- Que tal você ir ter comigo ao átrio do Edifício Sony, entre a Cinquenta e Cinco e a Madison, daqui a quatro horas?
No átrio do Sony, passadas quatro horas, Janson teve finalmente oportunidade de examinar as facturas. Havia dúzias de encomendas provenientes de cidades onde a Fundação
Liberdade possuía as suas principais delegações. Contudo, havia também um punhado de encomendas que eram enviadas a Marta Lang de uma localidade que não correspondia
a coisa nenhuma. Por que razão é que a Caslon Couriers fazia recolhas regulares numa pequena povoação situada nas montanhas Blue Ridge?
Uma pequena investigação adicional de várias horas na Biblioteca Pública de Nova Iorque forneceu indicações sugestivas. Millington, no estado da Virgínia, era a
povoação que ficava mais próxima de uma vasta mansão rural construída por John Vincent Astor na década de
1890, um sítio que, de acordo com diversas descrições de especialistas em arquitectura, rivalizava com a lendária Mansão Biltmore na elegância e no cuidado posto
nos pormenores. E agora? A quem pertencia? Quem vivia lá?
Só uma conclusão se impunha: um homem que o Mundo conhecia como Peter Novak. Controle requeria comunicação. "Novak" ainda se encontrava ao leme do seu império; tinha,
portanto, de comunicar com os seus colaboradores. Pessoas como Marta Lang. O plano de Janson previa pôr a descoberto esses canais de comunicação. Se seguisse o subtil
emaranhado da teia, talvez conseguisse encontrar a aranha.
JANSON PASSOU TODA a manhã seguinte na estrada, acabando por sair finalmente da via rápida para estradas mais estreitas que corriam ao longo das montanhas Blue Ridge.
Alguns quilómetros depois da saída para um parque de campismo, viu o desvio que indicava a direcção de Castleton, e Janson sabia que Millington ficava apenas um
pouco mais para lá daquela povoação.
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AUTOMÓVEIS USADOS JOHN SIPPERLY - COMPRE AQUI O SEU PRÓXIMO CARRO!, rezava um extravagante anúncio de estrada. Janson parou no respectivo parque de estacionamento.
A troca de carros era um procedimento de rotina em caso de viagens longas. Estava confiante de que não tinha sido seguido; porém, havia sempre a possibilidade da
chamada "vigilância ligeira": um sistema de observação puramente passivo, agentes instruídos para verificar, não para seguir.
Um cão dos seus sessenta quilos saltou de encontro a uma vedação Cyclone assim que Janson saiu do seu Altima e se dirigiu para o escritório montado numa caravana.
O enorme animal, um híbrido cujos antepassados deviam incluir um pit buli, um doberman e um mastim, estava enclausurado num dos cantos do parque.
Um homem na casa dos trinta anos, de cigarro ao canto da boca, saiu tranquilamente da caravana.
- Eu sou Jed Sipperly - disse, cumprimentando Janson com um aperto de mão.
O cão fez tilintar novamente a corrente que o prendia à casota.
- Não se importe aqui com o Butch. - Baixou-se para apanhar uma pequena boneca de trapos e atirou-a para a área delimitada. Aparentemente, era aquilo que o colossal
cão pretendia, pois saltou para a boneca e pôs-se a brincar com ela com as suas patas enormes.
Jed voltou-se para o cliente com um encolher de ombros apologético.
- O cão é doido por aquela boneca. É um bom cão de guarda, só que não ladra. Esse Nissan Altima é seu?
- Estou a pensar em trocar - disse Janson.
- Quantos quilómetros tem?
- Pouco mais de cinquenta mil.
- Então, é boa altura para trocar. Porque essas transmissões Nissan começam a dar problemas a partir dos sessenta mil. Se é segurança que pretende, posso indicar-lhe
um ou dois modelos que, provavelmente, irão durar mais tempo do que você - disse ele, apontando para um sedan castanho. - Está a ver ali aquele Taurus? Um dos melhores
carros de sempre.
Janson pôs um ar agradecido enquanto o vendedor o explorava, ficando com o Altima do último modelo por troca com o velho Taurus e pedindo-lhe, ainda por cima, mais
400 dólares.
- Um óptimo negócio - asseverou Jed Sipperly. - Sabe o que
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lhe digo? com mais uma nota de cinco pode levar também o raio do cão! - Soltou uma risada. - Se calhar, eu é que lhe devia pagar para me livrar dele.
Janson sorriu, acenou adeus e entrou no Taums com sete anos.
NÃO FOI PRECISO muito tempo para Janson fazer uma avaliação completa de Millington. Alcandorada numa encosta rochosa do monte Smith, era uma povoação que, às 10
horas, já estava envolta em escuridão. O maior empresário individual da terra produzia tijolos vidrados e possuía um negócio acessório de produtos derivados de minerais
não refinados; o restaurante do centro servia ovos, batatas fritas e café durante todo o dia. O género de sítio que agradava a Janson.
Contudo, se as descrições, velhas de décadas, estavam certas, havia uma grande mansão escondida algures no meio daqueles montes, uma residência tão privada quanto
seria de esperar, tanto legal como fisicamente. Porque até mesmo o nome do seu proprietário permanecia na mais completa obscuridade.
Janson entrou no restaurante, onde meteu conversa com o homem que atendia ao balcão. A sua testa abaulada, os olhos muito juntos e o queixo quadrado e proeminente
conferiam-lhe uma aparência levemente simiesca; porém, quando falou, provou estar surpreendentemente bem informado.
- Está então a pensar mudar-se aqui para as imediações? - perguntou o homem do balcão. - Ora, deixe-me adivinhar. Fez fortuna lá na grande cidade e agora quer gozar
a paz e a tranquilidade do campo, não é assim?
- Mais ou menos isso - respondeu Janson. - É possível construir-se por aqui?
- Costuma-se dizer que até é possível construir na Lua.
- E quanto a transportes?
- Bem, o senhor está aqui, não está?
- Parece que sim - retorquiu Janson. - Algum aeroporto?
- Bem, o aeroporto a sério mais próximo daqui é provavelmente Roanoke.
- Aeroporto "a sério"? Há outra espécie de aeroporto por aqui?
- Havia, nos anos quarenta e cinquenta. Um pequeno aeroporto de treino que a Força Aérea construiu. Sobe-se a Clangerton Road e, passados aí uns cinco quilómetros,
corta-se à esquerda. Creio que, hoje em dia, não deve passar de uma simples pista de aterragem.
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- Então, o que foi que aconteceu a essa pista? Alguma vez foi utilizada?
- Alguma vez? Nunca? Não costumo utilizar essas palavras.
- Sabe, se estou a perguntar-lhe, é porque um antigo sócio meu vive perto daqui e falou-me em qualquer coisa a esse respeito.
O homem pareceu ficar incomodado. Janson empurrou a sua chávena para a frente para que ele a enchesse novamente, mas o homem não o fez deliberadamente.
- Nesse caso, é melhor perguntar-lhe a ele, não acha? - retorquiu.
A mercearia ficava logo ao fundo da rua. Janson entrou e apresentou-se ao proprietário, um homem de aspecto simpático de cabelo castanho-claro. Janson disse-lhe
o mesmo que já dissera ao homem do restaurante. O dono do estabelecimento achou obviamente muito atraente a perspectiva de vir a ter um novo cliente, pois acolheu
logo a ideia com grande entusisamo.
- Isso é uma excelente ideia, homem. Isto aqui é mesmo bonito. Sobe-se uns quilómetros pela montanha, olha-se em volta e vê-se que está tudo ainda em estado puro.
Depois, pode trazer a sua caçadeira, a sua cana de pesca, a sua ... - Fez uma pausa, aparentemente para tentar lembrar-se de mais alguma coisa que fosse apropriada.
- Então, e aquelas coisas de que a gente precisa todos os dias? perguntou Janson para o espicaçar.
- Temos um clube de vídeo - informou. - Máquinas de lavar automáticas. Esta loja aqui. Posso fazer encomendas especiais, se for preciso. Faço isso de vez em quando
para os clientes habituais.
- Ah sim?
- Claro. Temos aqui clientes de todos os géneros. Por exemplo, há um fulano ... a quem nunca pusemos a vista em cima, mas que manda cá quase todos os dias um tipo
comprar géneros. Super-rico, só pode ser. Tem uma casa algures lá em cima nas montanhas, uma espécie de esconderijo de Lex Luthor, como eu gosto de lhe chamar. Quase
todas as tardes há quem veja um pequeno avião pousar lá perto, mas continua a adquirir os nossos artigos.
- E você faz encomendas especiais para esse fulano?
- Oh, claro. Está tudo garantido. Seja o que for que ele queira, nunca há nenhum problema. Eu encomendo, vem cá uma carrinha Sysco entregar e depois ele manda cá
um tipo vir buscar, sem olhar ao preço.
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Uma mulher de cabelo grisalho chamou-o da secção dos produtos refrigerados.
- Keith? Keith, querido?
O homem pediu licença e dirigiu-se-lhe.
- Este linguado é fresco ou congelado? - perguntou ela. - É congelado fresco - explicou Keith.
Enquanto os dois iniciavam uma discussão séria sobre se isso significava uma forma de ser fresco ou uma forma de ser congelado, Janson foi andando até ao fundo da
loja. A porta do armazém estava aberta, e ele entrou casualmente. Em cima de uma pequena mesa metálica encontrava-se uma pilha de listas de inventário azul-claras
da Sysco. Folheou-as até que deparou com uma que estava assinalada f! como ENCOMENDA ESPECIAL. Já perto do fim de uma longa lista de gêneros alimentícios escrita
em letra miúda, reparou numa encomenda de sêmola de cevada.
Só passados uns segundos é que se fez luz no seu espírito. Sêmola de cevada - também conhecida por kasha. A excitação foi-se apoderando dele à medida que lhe desfilavam
pela memória colunas e colunas de artigos de imprensa. "Começa todos os dias com um pequeno-almoço espartano de kasha ..."
Sempre era verdade. Algures, ali no monte Smith, vivia um homem que o Mundo conhecia como Peter Novak.
No CORAÇÃO DE MANHATTAN, estava uma mulher feia debruçada sobre o contentor de lixo de rede metálica ostentando o mesmo ar diligente de um carteiro perante uma caixa
do correio. Envergava umas roupas andrajosas e sujas e trazia nos pés uns ténis demasiado grandes, cujas solas começavam a descolar. As mãos estavam cobertas com
umas luvas sebentas de algodão que se tornavam cada vez mais nojentas à medida que ia remexendo nas garrafas de plástico, caroços de maçã, cascas de banana e folhetos
publicitários amachucados.
Contudo, não era no lixo que a atenção de Jessica Kincaid estava concentrada; os seus olhos volviam-se com regularidade para o pequeno espelho que pendurara no contentor
do lixo e que lhe permitia observar quem saía das instalações da Fundação Liberdade, situadas do outro lado da rua. Após dias de vigilância infrutífera, um dos antigos
camaradas de Janson, Cornelius Eaves, telefonara na noite anterior: parecia que Marta Lang fizera finalmente a sua aparição.
Não podia haver confusão, sabia agora Jessie. Entre as pessoas que
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tinham chegado às 8 horas daquela manhã, contava-se uma mulher que correspondia à descrição, feita por Janson, da directora-adjunta Marta Lang.
Eram 6 horas quando a elegante mulher de cabelo branco voltou a aparecer, transpondo rapidamente a porta giratória do átrio. Logo que ela entrou para o banco de
trás de um Lincoln Town Car que a aguardava, Jessica comunicou pelo rádio com Cornelius Eaves, cujo veículo
- um táxi amarelo com a indicação FORA DE SERVIÇO acesa - estivera estacionado todo aquele tempo diante de um hotel na outra ponta do quarteirão.
Eaves, que se retirara do serviço activo havia já alguns anos e estava sempre ansioso por alguma coisa que lhe ocupasse o tempo, desconhecia os objectivos da sua
missão. A única condição que pusera fora que Janson lha solicitasse pessoalmente.
Jessica precipitou-se para o banco de trás do táxi de Eaves, libertou-se dos andrajos e envergou o seu vestuário normal de cidade. Dez minutos depois, tinham um
endereço: o n.º 1060 da Quinta Avenida.
SUBINDO com o TAURUS castanho pelo serpenteante caminho de montanha conhecido como Clangerton Road, Janson encontrou o desvio não assinalado que o homem do balcão
lhe indicara. Prosseguiu até uma curta distância para além dele, após o que estacionou o carro fora da estrada, numa espécie de gruta natural formada pela vegetação.
Embrenhou-se a pé pela floresta dentro e regressou ao ponto onde começava o pequeno desvio por que passara. E encontrou então a tal pista de aterragem.
Era uma súbita clareira na floresta, mas surpreendentemente bem cuidada: as silvas e os arbustos tinham sido cortados recentemente, e para lá deles estendia-se uma
comprida faixa oval de relva perfeitamente aparada. Encontrava-se deserta, à excepção de um jipe coberto com um oleado.
Janson aninhou-se no meio de um velho pinheiro, escondendo-se por detrás do seu tronco e da profusão de copas carregadas de agulhas. Firmou os binóculos de encontro
a um pequeno ramo e esperou.
Estava convencido de que ia haver um voo naquele dia, não só pelas informações que lhe dera o proprietário do armazém, mas porque as encomendas, o correio, as pessoas,
tinham que entrar e sair.
Não se enganara. O avião era um Cessna bimotor, e o seu piloto,
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como Janson pôde comprovar pela perícia com que aterrou e estacionou o aparelho, um profissional extremamente competente.
O piloto, que envergava uniforme branco, emergiu do cockpit e desdobrou os degraus de alumínio. O sol reflectia-se na fuselagem, toldando a visão a Janson. Só conseguiu
distinguir um passageiro a sair rapidamente do avião acompanhado por um assistente, fardado de azul, e a ser conduzido ao jipe. O assistente afastou o oleado que
cobria o veículo, pondo a descoberto um Range Rover - blindado, deduziu Janson, atendendo ao rebaixamento da carroçaria sobre o chassis -, e veio abrir a porta ao
passageiro. Momentos depois, o carro afastava-se.
E desapareceu de vista.
Janson desceu do seu poleiro improvisado e dirigiu-se para a estrada. Os ramos das árvores de ambos os lados formavam um arco por cima dela a cerca de um metro e
oitenta do chão, uma altura que permitia à justa a passagem do Range Rover. A estrada assim coberta pelo arvoredo fora recentemente asfaltada de novo - um condutor
que a conhecesse bem podia percorrê-la a boa velocidade -, contudo, mesmo do ar, não era possível avistá-la.
Janson seguiu a estrada, paralelo à mesma, mas a dez metros de distância, não fosse activar algum equipamento de vigilância. Foi uma longa e árdua caminhada. Já
levava uma hora de caminho quando trepou a última saliência rochosa e avistou finalmente a propriedade do monte Smith. Ficou sem fala.
Era um plateau de, talvez, quatrocentos hectares coberto daquele capim cinzento-azulado do Kentucky cortado rente. E lá ao longe vislumbrava-se uma mansão esplendorosa.
Eram, contudo, as defesas do perímetro que suscitavam a maior admiração de Janson. Como se as dificuldades naturais proporcionadas pelo local não fossem suficientes,
uma série de obstáculos de alta tecnologia tornavam a casa praticamente inexpugnável.
Diante dele, estava uma vedação de rede metálica de nove metros de altura. Era perfeitamente visível a sucessão de detectores de pressão nela incrustados. Fios metálicos
esticados percorriam toda a rede e iam ligar-se a uma série de caixas. Um sistema de detecção de intrusos de fios tensos reforçado com detectores de vibração. Para
lá da barreira metálica, Janson avistou também uma sucessão de pilares, postes de um metro e vinte de altura. Cada um deles recebia e emitia um fluxo de microondas.
Estavam dispostos em ziguezague, com feixes sobrepostos a proteger os próprios pilares. Janson examinou atentamente o relvado
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para lá da vedação e identificou a pequena caixa que se encontrava junto ao caminho de cascalho de acesso à garagem e que ostentava o logo da TriStar Security. Aí,
por baixo do chão, passava um cabo do sensor de pressão.
Sentiu-se invadido por uma onda de desespero. Tão perto e, no entanto, tão longe.
JÁ ESCURECIA quando regressou ao Taurus. Conduziu de regresso a Millington e daí para norte pela Estrada 58.
Numa feira de beira de estrada, comprou um batedor de ovos eléctrico, embora dele só pretendesse o solenóide. Num Radio Shack existente numa pequena zona comercial
coberta encontrou um telemóvel barato. Na mercearia de Millington, comprou uma lata de biscoitos de manteiga. A seguir, foi a vez da loja de ferragens, na Main Street,
onde adquiriu cola, um rolo de fita isoladora, um par de tesouras fortes e um varão de cortina extensível com sistema de travagem. A sua última paragem foi no stand
de automóveis de Sipperly.
- Você sabe que os automóveis são vendidos tal como estão, não sabe? - disse logo Sipperly com ar enfadado.
Janson tirou cinco dólares da carteira.
- Pelo cão.
- Importa-se de repetir?
- Você disse que eu podia ficar com o cão por uma nota de cinco
- repetiu Janson.
- Bem, agora sem brincadeiras, eu sou muito afeiçoado a esse cão
- repetiu Sipperly. - É, sem dúvida, um cão fora de série. Um cão de guarda excelente...
- Só que não ladra - observou Janson.
- Mas é, de facto, um cão extraordinário. Não sei se consigo separar-me dele.
- Cinquenta.
- Cem.
- Setenta e cinco.
- Vendido - exclamou Jed Sipperly. - E é melhor levar também essa boneca esfarrapada. É a única forma de conseguir meter essa fera dentro do carro.
O cão enorme farejou Janson, e, de facto, só entrou para o carro depois de Janson atirar a boneca de trapos para o banco de trás.
- Muito agradecido - disse Janson. - A propósito, não sabe
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indicar-me, por acaso, onde é que posso arranjar um detector de radar?
Sipperly fez um sorriso de orelha a orelha.
- Se você está interessado num bom negócio relativamente a um desses bebés, só posso dizer-lhe que veio ter com a pessoa certa.
Começava a anoitecer quando Janson regressou ao seu quarto de motel. Aí, montou o seu equipamento e enfiou-o numa mochila. Quando, finalmente, partiu de regresso
à propriedade, ele e o cão já tiveram de caminhar à luz do luar.
Imediatamente antes de alcançar a última elevação de terreno, Jansou tirou a coleira ao cão, agarrou nuns punhados de terra e esfregou com ela o pêlo do animal,
já de si enlameado. O cão tinha agora uma aparência selvagem; era como que uma versão alargada de um daqueles cães de montanha que ocasionalmente vagueiam pelas
encostas. Depois, Janson pegou na boneca de trapos e lançou-a por cima da vedação, após o que foi abrigar-se atrás do espesso renque de árvores.
O cão atirou-se de encontro à vedação, chocando contra os sensores de vibração e o sistema de fios tensos. Ambos os sistemas registaram a presença de um intruso,
emitindo um silvo electrónico e fazendo acender uma fila de diodos azuis, assinalando aquele sector da vedação.
Janson ouviu o rodar do eixo motorizado de uma câmara de vídeo de circuito fechado instalada num poste alto no interior da propriedade. Por cima da câmara, acendeu-se
um conjunto de luzes, que iluminaram com um foco de halogéneo a parte da vedação onde Butch lançava as suas incessantes arremetidas.
Jansou observou a lente da câmara a alongar-se. Era accionada, segundo parecia, a partir do interior de um dos postos de vigia. Tendo detectado o intruso, os seus
operadores podiam depois, através do zoom, identificá-lo melhor.
Essa identificação não demorou muito tempo. A lâmpada de halogéneo foi apagada, a objectiva da câmara desviada da vedação e os diodos azuis do sector ficaram novamente
escuros.
Da próxima vez que Butch arremeteu contra a vedação, nenhum diodo se iluminou. O segmento estava desactivado, o falso alarme fora reconhecido. Janson sabia a que
conclusões tinham chegado: o cão andaria sem dúvida a perseguir um esquilo; sem dúvida, o seu entusiasmo em breve se extinguiria.
Janson lançou então a mochila por cima da vedação. Usando simultaneamente mãos e pés, escalou rapidamente a vedação e saltou por cima dela.
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Ao tocar no chão, sentiu qualquer coisa mole por baixo dele. A boneca de trapos. Janson voltou a atirá-la para lá da vedação; o cão abocanhou-a com toda a delicadeza
e desapareceu com ela algures por detrás do renque de árvores.
Janson encaminhou-se então na direcção dos pilares. Abriu a mochila e tirou de lá o detector dos radares da Polícia. Era um Phantom II, um modelo evoluído. O que
o tornava tão eficaz era o facto de, para além de ser um detector, interferir também com os radares, tornando qualquer carro "invisível" ao equipamento de detecção
de velocidade. Funcionava detectando o sinal e devolvendo-o ao canhão do radar. Janson utilizou fita gomada para prender o aparelho à extremidade do longo tubo telescópico
de aço. Se tudo funcionasse como esperava, iria ter possibilidade de explorar uma faceta inerente à concepção do sistema: a tolerância necessariamente incorporada,
tendo em conta a vida selvagem e as condições atmosféricas.
Estudou a configuração dos pilares. Traçou mentalmente uma linha imaginária ligando um par de pilares adjacentes, depois outra linha imaginária ligando o par seguinte.
A meio caminho entre essas duas linhas paralelas, ficaria o ponto onde a área de cobertura estava reduzida ao mínimo. Pegando no varão de aço, Janson movimentou
o Phantom II nessa direcção. O sistema detectaria certamente o aparecimento de um objecto, mas concluiria também que o padrão das ondas recebidas não correspondia
ao de nenhuma intromissão humana.
Manteve o Phantom II firmemente posicionado enquanto fazia avançar as mãos ao longo do varão, conservando-o sempre ao alto sem o mudar de posição. Depois, rodou
o varão e continuou a afastar-se da barreira de microondas. E ... estava livre.
Consultou o mostrador de cristais líquidos, tenuemente iluminado, do seu voltímetro Teltek, envolvendo-o nas mãos em concha. Nada. Nenhuma actividade.
Avançou mais três metros. Os dígitos começaram a subir; deu mais um passo e subiram ainda mais.
Estava a aproximar-se dos sensores de pressão subterrâneos. Embora o voltímetro indicasse que o cabo enterrado ainda se encontrava relativamente afastado, ele sabia
que o fluxo electromagnético do cabo subterrâneo dos sensores TriStar criava um campo de detecção de largura superior a um metro e oitenta.
Janson bloqueou o varão telescópico na posição de maior extensão. Recuou alguns passos na direcção dos pilares de microondas e,
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segurando bem nas mãos o varão assim distendido, correu na direcção do cabo subterrâneo, imaginando essa largura de um metro e oitenta como uma barreira física real.
Apoiou a extremidade do cabo no chão, mesmo por cima do local onde pensava estar enterrado o cabo, e, erguendo o joelho direito, saltou, balouçando-se para cima,
agarrado ao varão. Se tudo corresse bem, aquele impulso projectá-lo-ia, levando-o a aterrar a uma distância segura do cabo. O detector volumétrico apenas detectaria
o movimento de um varão fino no solo, nada que se parecesse com o volume ou os padrões de perturbação do fluxo relacionáveis com a presença de um ser humano.
Janson tombou no solo e rebolou para fora daquela zona.
Depois, levantou-se e olhou para a mansão, que se agigantava diante dele. Não se via luz nas janelas, com excepção de uma claridade baça que podia muito bem corresponder
à típica iluminação nocturna de uma casa. Estariam os seus moradores nas traseiras? Parecia ser ainda cedo para já estarem deitados.
Aproximou-se cautelosamente de uma estreita entrada lateral. A porta estava provida de alarme. com a ajuda de uma lanterna de bolso, Janson examinou a porta, até
que descobriu os pequenos parafusos existentes no bordo superior: prova da existência de um interruptor de contacto. Por dentro da ombreira, os contactos do interruptor
de metal ferroso mantinham-se unidos - e o circuito eléctrico permaneceria fechado - por meio de um íman incrustado no topo da porta. Enquanto a porta se mantivesse
fechada, o íman continuaria a comprimir uma mola situada no interior da ombreira, completando o circuito eléctrico dentro do interruptor. Janson tirou da mochila
um íman potente e colou-o à parte inferior da ombreira superior da porta por meio de uma cola de secagem rápida.
Em seguida, voltou a atenção para a fechadura: não tinha orifício para uma chave. A porta abria-se por meio de um cartão magnético. A gazua magnética de Janson não
era propriamente uma ferramenta de aspecto impressionante; fora improvisada com a ajuda de fita isoladora e de uma cola forte à base de resina. Janson retirara o
miolo do solenóide, que substituíra por uma vara metálica. Na outra ponta da vara, fixara um fino rectângulo de aço recortado da lata de biscoitos por meio da tesoura
forte. A parte electrónica era constituída por um circuito de transístores que extraíra do telemóvel adquirido na Radio Shack. Assim que ele acoplou um par de pilhas
Ao ao aparelho, criou-se um
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campo magnético de oscilação rápida. O seu objectivo era exercer acção sobre os sensores até eles serem activados. Os trincos e linguetas recolheram rapidamente.
Janson abriu a porta.
Uma vez que a casa estava ocupada, quaisquer alarmes internos accionados por células fotoeléctricas estariam certamente desactivados. Janson fechou a porta atrás
de si com toda a cautela e prosseguiu ao longo de um extenso corredor completamente às escuras.
Percorridos uns cem metros, viu uma fresta de luz. Provinha de uma porta apainelada à sua esquerda. Que género de dependência seria aquela? Um escritório? Uma sala
de reuniões?
Tirou a pistola do coldre e irrompeu pela sala.
Encontrou-se subitamente à entrada de uma esplendorosa sala de visitas. E, bem no meio dela, estavam sentadas oito pessoas, homens e mulheres, olhando para ele.
Estavam à sua espera.
- Que diacho o reteve tanto tempo, Mr. Janson? Collins disse-me que o senhor deveria chegar aqui por volta das oito horas. Ora, já são quase oito e meia.
Janson ficou gelado de surpresa. Pestanejou com força perante quem assim o interrogava, mas a evidência que tinha diante de si permaneceu inalterável.
Estava a olhar para o presidente dos Estados Unidos.
A seu lado, encontrava-se o director das Operações Consulares. E os outros? Janson conhecia a maioria deles. Lá estava o secretário de Estado. O subsecretário do
Departamento do Tesouro para os Assuntos Internacionais. O director do Conselho Nacional de Informações. O director-adjunto dos Serviços Secretos da Defesa Nacional.
E ainda alguns técnicos cinzentões, aparentando um grande nervosismo: Janson reconheceu imediatamente o género.
- Senta-te, Paul - disse Derek Collins. - As minhas desculpas pelas propositadas informações erradas relativamente ao endereço.
- O mensageiro era teu lacaio - retorquiu Janson sem demonstrar qualquer emoção.
Collins confirmou com um aceno de cabeça.
- Nós tivemos a mesma ideia que tu em relação ao acesso aos documentos entrados. Assim que ele nos informou do teu contacto, percebemos que tínhamos diante de nós
uma oportunidade de ouro. Repara, tu nunca irias corresponder a um convite formal. Logo, esta era a única maneira de te trazer até aqui.
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O presidente e Collins entreolharam-se.
- E foi também a melhor forma de mostrar a toda esta gente ilustre que ainda estás de posse de todas as tuas faculdades - prosseguiu Collins. - Que as tuas capacidades
estão ao nível da tua reputação. Esta infiltração foi deveras impressionante. E antes que comeces a sentir-te irritado e ofendido, é melhor que fiques desde já ciente
de que as pessoas presentes nesta sala são praticamente as únicas que conhecem a verdade acerca do Mobius. Para o bem ou para o mal, tu és agora um membro deste
grupo seleccionado. O que significa que estamos aqui perante uma situação do tipo: "O Tio Sam precisa de ti."
- Diabos te levem, Collins! -Janson voltou a enfiar a pistola no coldre.
O presidente pigarreou.
- Mr. Janson, nós estamos, de facto, dependentes de si. A nossa criatura deixou ... bem, deixou de nos pertencer. Perdemos o controle da propriedade.
- Paul, senta-te - insistiu Collins. - Isto vai demorar algum tempo.
Paul sentou-se na cadeira de braços mais próxima. O presidente Berquist olhou para Douglas Albright, o homem dos Serviços Secretos da Defesa Nacional.
- Porque não começa você, Doug?
- Presumo que já lhe tenha sido explicado que tínhamos três agentes, extremamente dedicados, treinados para desempenhar o papel de Peter Novak.
- Certo - retorquiu Janson. - Mas ... e a mulher dele?
- Lembras-te de Nell Pearson? - perguntou Collins em voz baixa.
Janson ficou siderado. Não admirava que algo lhe tivesse parecido familiar na mulher de Peter Novak. O seu romance com Nell Pearson tivera lugar dois anos depois
de ter entrado para as Operações Consulares. Tal como ele, a sua colega agente era solteira, jovem e impulsiva. Tinham ambos trabalhado em Belfast sob disfarce,
competindo-lhes fazer o papel de marido e mulher. Não fora preciso muito para que adicionassem ao embuste um toque de realidade. Aqueles seus dedos longos e elegantes
- a única coisa que não podia ser alterada - e aqueles olhos ... Houvera algo entre eles, não houvera? Um certo frisson, mesmo em Amsterdão?
Janson estremeceu, imaginando a mulher que conhecera a ser
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transformada irreversivelmente pela fria lâmina de aço do bisturi do cirurgião.
- Mas o que quer dizer com isso de termos perdido o controle?
- insistiu.
Quem respondeu foi o subsecretário do Departamento do Tesouro para os Assuntos Internacionais.
- Comecemos com o problema operacional: como é que se obtêm os fundos necessários para sustentar a ilusão de um magnata filantropo de nível mundial? O Programa Mobius
não podia de forma alguma desviar fundos de um orçamento para os Serviços de Informações dos Estados Unidos, que é rigidamente controlado. Por conseguinte, o programa
recorreu às nossas prerrogativas como serviço secreto para obter o seu próprio financiamento. Utilizámos as nossas intercepções de sinais ...
- Jesus Cristo ... o senhor está a referir-se ao Echelon! - exclamou Janson.
Echelon era um sistema complexo de recolha de informações que englobava uma frota de satélites: todas as chamadas telefónicas internacionais, todas as formas de
comunicação que envolvessem a utilização de um satélite, podiam ser interceptadas pela frota espia em órbita. Essa quantidade astronómica de informações era depois
canalizada para um conjunto de centros de análise, todos eles controlados pelo Departamento de Segurança Nacional. O DSN negara sempre os boatos de que estaria a
utilizar as intercepções para fins diferentes da segurança nacional, no sentido mais restrito do termo. Porém, ali estava a admissão chocante de que até mesmo os
cépticos mais inclinados para a teoria da conspiração não sabiam nem metade do que se passava.
O subsecretário do Tesouro acenou lugubremente com a cabeça.
- O Echelon permitia-nos tomar secretamente conhecimento das decisões dos bancos centrais de todo o Mundo. Essa informação interna era passada à criatura de nossa
invenção e, através dela, levámos a cabo alguns investimentos maciços em moedas fortes. Numa sucessão rápida, vinte milhões converteram-se em vinte mil milhões...
e depois em mais, muito mais. Estava criado um financeiro lendário. E ninguém precisava de saber que a sua intuição brilhante era, de facto, o resultado de...
- De uma fraude cometida pelos Serviços Secretos de Defesa dos Estados Unidos - completou Janson.
- Escusado será dizer que o Programa Mobius já se encontrava
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em funcionamento muito antes de eu ter assumido funções - explicou o presidente Berquist. - Criara um milionário de grande visibilidade ... porém não tornáramos
em consideração o factor humano: a possibilidade de o acesso a todo esse poder e riqueza e ao seu controle poder constituir uma tentação irresistível para, pelo
menos, um dos nossos agentes.
Janson voltou-se para Collins.
- Eu perguntei-te, durante a nossa última conversa, quem é que ia prestar-se a desempenhar um papel desses ... ver-se despojado da sua verdadeira identidade. Que
tipo de homem aceitaria uma coisa dessas?
- Pois - confirmou Collins. - E eu respondi: "Alguém que não tivesse outra alternativa." O que é facto é que tu conheces essa pessoa. Um homem chamado Alan Demarest.
CAPÍTULO TREZE
NÃO - EXCLAMOU Janson, abanando lentamente a cabeça. - Isso é impossível.
Alan Demarest fora executado. E Janson assistira à execução. Collins encolheu os ombros.
- Pólvora seca. Balas forjadas. Material teatral básico. Lamento que te tenhamos enganado durante todo este tempo, mas não é todos os dias que lidamos com material
desta natureza. Por conseguinte, Demarest foi posto perante uma alternativa: ou enfrentava um pelotão de fuzilamento ou punha a sua vida ao nosso serviço.
- Diabos te levem! - exclamou Janson, erguendo a voz. Via tudo claro agora. Demarest fora o primeiro Peter Novak: primus inter pares. Os outros teriam sido modelados
de acordo com o seu perfil. Ele fora o primeiro devido aos seus dotes formidáveis: como linguista, como actor, como operacional brilhante cheio de recursos. Demarest
era o melhor que eles tinham. Mas não lhes teria aflorado ao pensamento, ao menos, que podiam correr riscos sérios ao confiar tamanha responsabilidade a um indivíduo
tão completamente desprovido de escrúpulos... a um sociopata?
Derek Collins prosseguiu:
- Demarest apoderou-se dos fundos angariados pelo Programa
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Mobius, alterou todos os códigos bancários ... e anulou as medidas que tornáramos para prevenir uma tal eventualidade.
- E os Estados Unidos não podem expô-lo sem se exporem a si próprios - acrescentou o secretário de Estado.
- E Anura? - perguntou Janson.
- Esse foi o golpe de mestre dele - explicou o director do Conselho Nacional de Informações. - Quando soubemos que o nosso homem estava lá preso, entrámos em pânico
e actuámos precisamente como Demarest sabia que faríamos. Confiámos-lhe o segundo conjunto de códigos, aqueles que normalmente estariam sob o controle do homem que
os guerrilheiros estavam prestes a executar. Pareceu-nos necessário como medida de emergência. O que nunca imaginámos foi que tivesse sido o próprio Demarest a engendrar
a tomada do refém. Utilizou, evidentemente, um seu lugar-tenente, de nome Bewick, como pau-mandado, um pau-mandado que o Califa conhecia apenas como o Intermediário.
-Jesus!
- Foi por isso que não nos apercebemos de que fora ele também o responsável pela morte do terceiro agente um ano antes.
- E porque é que Demarest me envolveu a mim nisso? Collins antecipou-se na resposta.
- O homem odeia-te, considera-te o responsável pelo fim da sua carreira, da sua liberdade, quase da sua vida, por o teres denunciado a um governo que ele pensava
ter servido com incrível devoção. Não lhe bastava ver-te morto. Pretendia que fosses acusado, humilhado, morto pelo teu próprio governo. Cá se fazem, cá se pagam,
é o que ele deve ter pensado.
- E agora o fantoche anda a matar aqueles que o manejaram disse Doug Albright. - Ele está a destruir o programa. A destruir o Mobius.
- Tornou-se evidente que Demarest já andava a preparar o seu coup d"état há anos - informou o secretário de Estado. - Conforme provam as mortes recentemente ocorridas,
Demarest formou uma milícia privada, recrutando dúzias de antigos colegas, que utiliza como seus homens de mão e guarda-costas pessoais. São operacionais que conhecem
os códigos e os procedimentos das nossas estratégias mais avançadas. E os potentados corruptos dos antigos Estados comunistas, aqueles que pretensamente se lhe opõem,
são de facto seus aliados. Colocaram à sua disposição os seus próprios centuriões.
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- O senhor denominou isso de coup d"état - retorquiu Janson. Um termo normalmente utilizado quando se verifica o derrube e a substituição de um chefe de Estado.
- O que é facto é que Demarest pode perfeitamente fazer chantagem connosco para nos obrigar a fazer o que ele exigir - disse o presidente. - Se o Mundo alguma vez
viesse a saber que os Estados Unidos têm andado a manipular sub-repticiamente os acontecimentos mundiais, para já não falar da utilização do Echelon para influenciar
os valores das moedas dos outros países, isso seria um golpe devastador. Iríamos ter revoluções em todo o Terceiro Mundo e perderíamos todos os nossos aliados. Ele
já nos enviou uma mensagem a exigir que lhe entreguemos o controle do Echelon. E isso é apenas o começo. Os códigos nucleares podem ser o passo seguinte
- E o que lhe respondeu, Sr. Presidente?
- Recusámos, naturalmente.
- Por isso, ele agora deu-nos um prazo-limite juntamente com o ultimato - informou Collins. - E o relógio não pára.
- E não conseguem eliminá-lo?
- Se conseguíssemos localizar o filho da mãe, era um homem morto - respondeu Collins. - Mas não conseguimos. E depois qualquer pessoa a que recorramos pode ser outro
potencial chantagista. Só podemos contar connosco.
- E consigo - acrescentou o presidente Berquist. - É em si que depositamos a nossa maior esperança.
- Então, e aquelas pessoas que se opõem genuinamente ao "Peter Novak" humanitarista lendário? Porque ele também tem inimigos ... Não haverá forma de mobilizar um
fanático qualquer, uma facção ...?
- Na verdade, já tentámos isso - disse Collins. - Mas aquele louco, o rei do terror, também não consegue encontrá-lo.
Janson semicerrou os olhos.
- O Califa! Jesus. Mas como é que podem pensar alguma vez em levá-lo a esse extremo? No livro dele chama satânicos a todos os Ocidentais.
- Há uma pessoa dos Serviços Secretos Militares da Líbia que, esporadicamente, colabora connosco. Se descobrir uma maneira de a utilizar, pois avance. Mas o problema
subsiste: nós não conseguimos pôr a vista em cima de Demarest.
- O que significa que você é a nossa grande esperança - repetiu o presidente Berquist.
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- Não há nenhum operacional melhor do que você, Janson disse Collins.
- À excepção de ... - Doug Albright preparava-se para verbalizar a sua preocupação, mas, pensando melhor, calou-se.
- Sim ...? - insistiu Janson.
O olhar do homem dos Serviços Secretos da Defesa Nacional não vacilou.
- À excepção de Alan Demarest.
O AFRICANO OCIDENTAL bem-parecido e grisalho olhou pela janela do seu escritório do trigésimo oitavo andar e aguardou que as chamadas que fizera tivessem resposta.
Ele era o secretário-geral das Nações Unidas, e o que se preparava para fazer ia chocar a maioria das pessoas que o conheciam. Contudo, era a única forma de assegurar
a sobrevivência de tudo aquilo a que devotara a sua vida.
O Sol declinava no horizonte, tingindo o East River de tons rosados, quando o assistente do secretário-geral o informou de que Peter Novak estava em linha. Levantou
imediatamente o auscultador.
- Mon cher Mathieu - exclamou uma voz cristalina.
Após uma breve troca de cumprimentos e gracejos, Mathieu Zinsou começou a expor o que tinha em mente. As Nações Unidas, explicou ao grande homem, estavam a ficar
desprovidas de fundos.
- Em muitos aspectos, os nossos recursos são enormes - disse o secretário-geral. - Temos milhares de soldados ao nosso dispor que usam com orgulho os seus capacetes
azuis. Funcionários da ONU laboram livremente em quase todos os países do planeta. Assistimos ao sofrimento dos povos, vítimas da incompetência e da
ganância dos
seus dirigentes. Porém, não conseguimos alterar-lhes os planos nem as políticas. As nossas regras e regulamentos, os nossos estatutos e sistemas, tudo isso contribui
para tornar a nossa acção irrelevante! Os sucessos da sua Fundação Liberdade constituem uma vergonha para as Nações Unidas. E, entretanto, a crise financeira que
atravessamos actualmente corta-nos completamente as pernas. Uma associação como a Fundação Liberdade é, pois, uma questão de bom senso ... a união de recursos e
de competências.
- Sempre achei bem merecida a sua reputação de pessoa previdente - respondeu Novak. - Mas igualmente merecida é a sua reputação de estratega ambíguo, mon cher. Gostaria
de saber mais concretamente qual é a sua proposta.
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- Posto de uma maneira simples, o que eu quero dizer é que nós não teremos salvação senão através de uma associação convosco. Podia estabelecer-se uma divisão especial
conjunta, constituída pela Fundação Liberdade e pela ONU, devotada ao desenvolvimento económico. Seria uma direcção poderosa, invisível no seio das Nações Unidas.
E eu podia funcionar como ponte entre os dois impérios, o seu e o meu.
- Está a intrigar-me, Mathieu - retorquiu Novak. - Mas ambos conhecemos as regras ditadas pela inércia burocrática. Você admira a extraordinária eficácia da Fundação
Liberdade, mas há uma razão para esse nosso êxito: o facto de eu ter sempre reservado para mim o controle absoluto, desde o topo até às bases.
- Estou ciente desse facto - disse o secretário-geral. - E quando falo em "associação", é preciso que você entenda o que quero dizer com isso. A última palavra caber-lhe-ia
sempre a si, Peter.
Uma gargalhada de circunstância soou do outro lado do fio:
- Postas as coisas assim, parece que está a querer vender-me as Nações Unidas.
- Espero bem não ter dito isso! - exclamou Zinsou jocosamente. - Trata-se de um tesouro sem preço. Mas, sim, acho que nos fizemos entender um ao outro.
- E quanto a si, Mathieu? Você está prestes a acabar o seu segundo mandato ... e depois, o que vai acontecer? - A voz ao telefone tornou-se mais afável. - Serviu
a sua organização todos estes anos pensando sempre mais nos outros do que em si.
- É muito amável da sua parte reconhecer isso - disse o secretário-geral, percebendo a intenção dele. - O aspecto pessoal é secundário, como compreende. O que me
preocupa verdadeiramente é a sobrevivência da instituição. Mas, sim, vou ser franco consigo. A ONU não paga propriamente muito bem. Uma função como director de um
instituto da Fundação Liberdade, por exemplo, ... com salário e regalias a negociar ... seria a maneira ideal de eu prosseguir a minha obra.
- Acho que compreendo agora melhor a sua posição e considero a proposta muito encorajadora - retorquiu o homem que se intitulava Peter Novak.
- Nesse caso, porque não jantamos juntos um dia destes? Quanto mais cedo, melhor.
- Mon cher Mathieu - repetiu o homem ao telefone. - Eu entro em contacto consigo. - E a linha emudeceu.
- Alors? - perguntou o secretário-geral, voltando-se para Paul
185
Janson, que estivera sentado a um canto do gabinete, que começava já a ser invadido pela escuridão.
- Agora, esperamos - respondeu Janson.
Ao CABO DE ALGUMAS chamadas, Jessica Kincaid ficara a saber mais do que o necessário acerca dos moradores do
n.º 1060 da Fifth Avenue.
- Temos uma tal Agnes Cameron no andar por cima do de Marta Lang - disse Jessica a Janson. - Faz parte do conselho de administração do Metropolitan Museum of Art.
Telefonei para o gabinete do administrador, fazendo-me passar por uma jornalista que andava a preparar uma biografia dela. Acrescentei que fora informada de que
ela se encontrava em reunião, mas que precisava de confirmar algumas citações. Uma mulher respondeu-me com soberba: "Bem, isso é impossível, Mrs. Cameron encontra-se
em Paris."
- E é ela a nossa melhor hipótese?
- Parece ser, sim. De acordo com os registos da operadora telefónica, ela mandou instalar uma linha digital de ligação à Internet de alta velocidade no ano passado.
Entregou a Janson uma camisa de malha de algodão que ostentava o logo da companhia telefónica Verizon igual à sua. A seguir, entregou-lhe também um cinto de couro
com instrumentos e um telefone de testes cor-de-laranja-brilhante. Para completar o equipamento, uma caixa de ferramentas de metal cinzento.
Aproximaram-se do porteiro, e foi Jessie Kincaid quem falou.
- Temos aqui uma cliente que está fora do país, mas como tem o telefone digital avariado, pediu-nos para o arranjarmos enquanto está fora. - E exibiu um cartão de
identidade plastificado. - O nome da cliente é Cameron.
O porteiro foi lá dentro consultar o segurança.
- Uns fulanos da companhia telefónica para fazerem uma reparação no apartamento de Mrs. Cameron.
Seguiram o porteiro para o interior do elegante lóbi.
O segundo porteiro estava sentado num banco alto a falar com o segurança. Ao vê-los, pôs-se de pé. Era evidentemente mais categorizado do que o primeiro. Levantou
o auscultador do telefone interno e premiu alguns dígitos.
- Técnicos da Verizon para repararem o telefone - disse ele. Depois, pondo a mão sobre o bocal do telefone, voltou-se para os dois
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visitantes. - A governanta de Mrs. Cameron pergunta porque não voltam quando Mrs. Cameron estiver na cidade. Daqui a uma semana.
- Quando vir Mrs. Cameron, diga-lhe que então vai ter de esperar alguns meses até lhe podermos marcar outra data - retorquiu Janson. - Temos uma lista de espera
enorme. Quando alguém cancela uma marcação, vai para o fim da fila. Não se esqueça de dizer isso a Mrs. Cameron.
O porteiro sénior vacilou. Regressando à linha, disse sem hesitação:
- Sabe o que lhe digo? Achava melhor deixar os técnicos fazerem o serviço deles. - Depois, acenou com a cabeça na direcção dos elevadores. - Oitavo andar. A governanta
abre-lhes a porta.
Janson e Kincaid dirigiram-se aos elevadores e entraram num deles.
Carregaram no botão do sétimo andar e aguardaram impacientemente que o pequeno ascensor subisse, até parar lentamente com um ligeiro estremeção. As portas abriam
directamente para o vestíbulo do apartamento.
Janson e Kincaid saíram silenciosamente para o hall e puseram-se à escuta. Ouviram um tinir de loiça, mas distante.
À esquerda, ao fundo do corredor, havia uma escada que conduzia ao piso de baixo, o piso principal, segundo parecia. Janson fez sinal a Jessie para se manter atrás
dele. Depois, começou a descer a escada. Levava na mão uma pequena pistola.
À sua esquerda ficava uma espécie de sala dupla. Janson atravessou a primeira sala, parando à entrada para a sala adjacente. Aí, à sua frente, estava uma governanta
de uniforme azul-claro.
A governanta voltou-se para ele; trazia na mão um antiquado espanador de penas.
De súbito, um jacto escarlate jorrou do peito da governanta, que caiu de borco sobre o tapete.
Janson rodou sobre os calcanhares e viu na mão de Jessie uma arma com silenciador, de cujo tubo perfurado se evolava um penacho de cordite.
- Meu Deus! - murmurou Janson. - Percebeste bem o que fizeste?
- E tu? - Jessie dirigiu-se a passos largos para junto do corpo e com um pé afastou o espanador de penas da mão da governanta. Habilmente dissimulada por baixo do
espanador de penas castanhas estava uma SIG Sauer de grande calibre.
Ao fundo da segunda sala existia um corredor com uma porta de
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vaivém. Subitamente, ouviram-se uma série de detonações ruidosas, e a porta de vaivém foi perfurada por várias balas de grande impacte que projectaram para o ar
estilhaços de madeira e pedaços de tinta. Janson olhou para Jessica para se certificar de que ela, tal como ele, se encontrava em segurança, fora da linha de fogo,
posicionada lateralmente em relação ao corredor.
Ouviram-se passos cautelosos. Janson sabia que quem quer que fosse ia espreitar por um dos buracos abertos na porta pela sua arma.
Atirou-se então contra a porta de vaivém, que embateu com estrondo na pessoa que se encontrava do outro lado, arremessando-a ao chão.
Quando a porta se abriu completamente, foi com Marta Lang que deparou. A porta atirara-a contra uma mesa de jantar. A arma que trazia na mão fora também projectada,
retinindo pelo chão fora, para longe do seu alcance.
Enquanto ela se punha de pé, Janson apanhou-a.
- Uma Suomi automática é uma arma impressionante. Tem licença para um brinquedo destes?
- Vocês invadiram a minha casa - disse ela. - É um caso de legítima defesa.
- Não nos faça perder tempo que nós tratamos de não lhe fazer perder o seu - retorquiu Janson. - Sabemos a verdade acerca de Peter Novak. Entregue-no-lo. É a sua
única hipótese. Já foi emitida ordem para o matarem. Uma directiva formal do próprio presidente dos Estados Unidos.
A mulher de cabelo encanecido assumiu um ar de desprezo verdadeiramente olímpico.
- Peter Novak é mais poderoso do que ele. O presidente dos Estados Unidos é apenas o chefe do mundo livre.
- Você está a ser iludida. Ele conseguiu arrastá-la para a sua própria loucura. E se não romper com ele, está perdida.
Pelo rosto dela perpassou algo de intermédio entre um sorriso irónico e uma careta.
- Nunca se deu conta de que ele andou sempre três passos à sua frente? Ele sabe precisamente o que você é capaz de fazer e aquilo que vai decidir. Por mais heróicos
que tenham sido os seus feitos lá no Palácio de Pedra, ele brincou consigo o tempo todo, exactamente como uma criança brinca com um Action-Man. Nós conhecíamos cada
pormenor do seu plano e preparámos planos alternativos para qualquer alteração previsível. Claro que Higgins, oh, era o nome do homem que
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você libertou, iria insistir em que se libertasse também a rapariga americana. E claro que você iria ceder o seu lugar à dama. Perfeitamente previsível. Escusado
será dizer que o helicóptero estava armadilhado para explodir por controle remoto. Na prática, Peter Novak limitou-se a empunhar a batuta. Podia perfeitamente ter
sido ele a conduzir toda a operação. - Fez um sorriso estranhamente etéreo. Quando Janson a encontrara pela primeira vez, em Chicago, ela parecera-lhe o protótipo
da estrangeira de educação esmerada. Mas o seu sotaque era agora definitivamente americano; podia perfeitamente ter nascido em Darien.
- Alan Demarest... onde é que ele está?
- Não digo - respondeu ela serenamente. Janson fitou-a bem nos olhos.
- Se você sabe onde ele está, juro por Deus que vou arrancar-lhe essa informação. Ao fim de umas quantas horas a levar escopolamina por via intravenosa, deixa de
conseguir perceber a diferença entre os seus pensamentos e aquilo que diz. Vai deitar cá para fora tudo o que tiver na cabeça. Se isso lá estiver, vamos ficar a
saber.
Apercebeu-se entretanto de uma música de fundo, um coral. Hildegard von Bingen. Ficou com os cabelos em pé.
- Os Cânticos do Êxtase - disse. - A influência profunda de Alan Demarest.
- Ha? Fui eu que lhos dei a conhecer - retorquiu ela, encolhendo os ombros. - Quando éramos adolescentes.
Janson olhou fixamente para ela como se a visse pela primeira vez. Subitamente, um conjunto de pequenos pormenores intrigantes começou a fazer sentido. O movimento
da cabeça, a mudança repentina e desconcertante de atitude e de tom, a idade, até mesmo determinadas palavras e expressões.
- Santo Deus - exclamou ele. - Você é ...
- A irmã gémea dele. - E começou a massajar a pele por debaixo da clavícula esquerda. - Os fabulosos gémeos Demarest. Sarilhos a dobrar. Esses idiotas do Mobius
nunca chegaram a descobrir que Alan me integrara na sua equipa. - Enquanto falava, os seus movimentos circulares sobre a pele tornaram-se mais insistentes, aparentemente
para debelar qualquer irritação subcutânea. - Por isso, se pensa que "vou entregá-lo", tire daí a ideia.
Os gestos de Marta Lang tornaram-se mais circunscritos, mais localizados; começou a cravar os dedos em qualquer coisa situada ao lado da clavícula.
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- Ah! - exclamou. - Cá está. Oh, agora sente-se muito melhor...
- Paul! - bradou Jessica. - Não a deixes fazer isso!
Era demasiado tarde. Ouviu-se o quase imperceptível estalar de uma ampola subcutânea, a mulher projectou a cabeça para trás, como que em êxtase, e o seu rosto apresentava
uma tonalidade púrpura quando ela tombou no chão. O queixo descaiu e da boca escorria saliva. Depois, os olhos rolaram-lhe nas órbitas, ficando visíveis apenas as
partes brancas por entre as pálpebras semiabertas.
Janson colocou uma mão sobre o longo pescoço de Marta Lang, procurando a pulsação, embora soubesse de antemão que não ia encontrá-la. Os sinais de envenenamento
por cianeto eram por demais evidentes.
O SECRETÁRIO-GERAL levantou o auscultador. Após uns quantos cliques e ruídos electrónicos, a voz de Peter Novak surgiu em linha:
- Mon cher Mathieu.
- Mon cher Peter - respondeu Mathieu Zinsou. - A sua generosidade, quanto mais não fosse, em considerar aquilo que discutimos merece ser louvada...
- Sim, sim - interrompeu Novak. - Receio, contudo, que tenha de declinar o seu convite para jantar. Tenho algo mais formal em mente. Espero que concorde. Não há
segredos entre nós, não é verdade? A transparência foi sempre um valor da máxima importância para a ONU, não é assim?
- Bem, até certo ponto, Peter.
- Sei que vai haver uma reunião da Assembleia Geral na próxima sexta-feira. Sempre sonhei discursar um dia perante esse auditório. Vaidade fútil, talvez, mas penso
que ninguém me negará esse direito e privilégio ... julgo poder dizer isto sem receio de ser contrariado.
- Bien súr.
- Atendendo a que vão estar presentes numerosos chefes de Estado, o nível de segurança será elevado. Pode chamar-me paranóico, mas acho isso muito tranquilizador.
E se o presidente dos Estados Unidos comparecer, como parece possível, estará com certeza presente também um contingente dos Serviços Secretos. Tudo muito tranquilizador.
E irei provavelmente acompanhado pelo mayor de Nova Iorque, que sempre foi muito amável comigo.
- Uma aparição pública ao mais alto nível, então - disse Zinsou.
- Não parece muito seu, devo dizer.
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- Exactamente a razão por que estou a sugeri-la. Conhece a minha política: pôr sempre as pessoas a cogitarem.
- Mas ... e a nossa conversa? - No seu íntimo crescia a ansiedade e a confusão.
- Não se preocupe. Acho que vai descobrir que nunca se goza de tanta privacidade como quando se está exposto aos olhos do Mundo.
- RAIOS O PARTAM! - bradou Janson. Estava a ouvir de novo a gravação da última conversa telefónica de Demarest.
- O que acha deste pedido? - perguntou Zinsou.
- É engenhoso - respondeu Janson abertamente. - Ele sabe que as forças que se lhe opõem estão ultracompartimentadas. Não há hipótese de os Serviços Secretos alguma
vez serem postos ao corrente da verdade. Ele está a utilizar a nossa própria gente como escudo. E subirá a rampa de acesso ao edifício da Assembleia Geral com o
mayor de Nova Iorque ao lado. Qualquer atentado contra a sua vida poria em risco um político mundialmente conhecido. Vai penetrar numa arena onde a segurança é incrivelmente
apertada. Se algum operacional americano arriscasse um tiro, o inquérito subsequente desmascararia tudo.
- Então, e agora?
- Ou eu engendro alguma coisa ou ...
- Ou?
- Ou não. - E Janson saiu do gabinete do secretário-geral sem mais palavras, deixando o diplomata sozinho com os seus pensamentos.
O CALIFA RELEU o telegrama que acabara de receber e experimentou uma agradável sensação de expectativa. Peter Novak ia fazer uma alocução perante a Assembleia Geral
das Nações Unidas. O homem ia finalmente revelar o seu rosto. Ia ser recebido com agradecimentos e aclamação. E, se o Califa conseguisse o que queria, com algo mais.
Voltou-se para o ministro da Segurança de Mansur - literalmente, pouco mais do que um vendedor de tapetes emproado, não obstante a sonoridade retórica do seu cargo
- e falou-lhe num tom ao mesmo tempo cortês e imperativo:
- Esta reunião da comunidade internacional é um momento importante para a República Islâmica de Mansur.
- Mas claro - retorquiu o ministro, um homem baixo de aspecto vulgar que usava um simples turbante branco. Em assuntos que não
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dissessem respeito à ortodoxia corânica, a chefia daquele pequeno e desolado país era facilmente influenciável.
- A sua delegação será avaliada pelo seu profissionalismo e comportamento. Temos de manter um nível de segurança máximo.
O ministro acenou repetidamente com a cabeça. Não percebia nada do assunto, mas, inteligentemente, percebeu que não ganhava nada em esconder a sua ignorância, principalmente
diante do mestre em táctica que tinha à sua frente.
- Por conseguinte, eu acompanharei pessoalmente a delegação. Você apenas precisa de providenciar a cobertura diplomática, que eu encarrego-me pessoalmente de que
tudo corra como deve ser.
- Alá seja louvado - retorquiu o homem baixinho. - A vossa dedicação será uma inspiração para outros.
O Califa acenou lentamente com a cabeça, agradecendo o elogio.
- Eu faço apenas o que deve ser feito - disse.
A CASA DE CIDADE não ostentava nenhuma característica especial; era de arenito pardo, como centenas de outras na Turtle Bay de Nova Iorque. Mas as suas espessas
janelas de vidro eram à prova de balas de grande calibre. Era um refúgio seguro.
Janson estava sentado no escritório, ao telefone com Derek Collins.
- A boa notícia é que o Cobra vem a caminho - dizia Collins. A má é que encontraram ontem o corpo de Nell Pearson. A mulher oficial de Novak. Supostamente suicídio.
Cortou os pulsos na banheira. Portanto, esse fio da meada já foi cortado.
- É uma pena, uma mulher como ela - exclamou Janson em tom pesaroso.
- Mas prosseguindo ... - disse Collins lugubremente. - Ninguém pôs a vista em cima do Puma. Pode acontecer que o nosso homem não esteja para chegar vindo do outro
lado do oceano; pode acontecer que já cá esteja no país.
Janson desligou. Quase de imediato, o telefone cinzento-prateado que estava em cima da secretária tocou. Era a linha reservada às comunicações com a Casa Branca.
Janson atendeu. Era o presidente.
- Escute, Paul. Essa alocução que Demarest se prepara para fazer perante a Assembleia Geral... pode bem estar aí implícito um ultimato.
- Como?
- Como sabe, ele requereu os códigos de controle de todo o Sistema Echelon. Eu acho que ele está a transmitir-nos uma mensagem
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perfeitamente clara. Se não obtiver o que pretende, vai divulgar tudo perante a Assembleia Geral, com todo o Mundo a ouvir.
- Ergo?
- Decidi encontrar-me com ele imediatamente antes disso. Capitular. Ceder ao seu primeiro rol de exigências.
- Assim, coloca-se no caminho da destruição.
- Paul, eu já estou no caminho da destruição e você também.
- HÁ GENTE QUE QUER encher o Mundo com canções de amor idiotas - cantarolou desafinadamente o russo.
- Grigori? - exclamou Janson para o telemóvel. - Como é que tens passado?
- Nunca estive melhor! - respondeu Grigori Berman afoitamente. - De regresso a casa. Uma enfermeira particular chamada Ingrid. No segundo dia, passei o tempo todo
a deixar cair o termómetro só para a ver baixar-se.
- Escuta, Grigori, tenho um pedido a fazer-te. Mas se não estiveres disposto a ouvir-me, sê franco. -Janson falou durante alguns minutos, fornecendo ao russo um
punhado de pormenores; depois, ou Grigori Berman tratava do resto ou não.
Quando Janson acabou, Grigori ficou em silêncio por momentos.
- Agora, é Grigori Berman que está chocado. O que está a propor é contrário à ética, é imoral, ilegal, é uma violação indecente das regras e práticas do sistema
bancário internacional. - Uma curta pausa.
- E eu adoro isso.
- Era o que eu pensava - retorquiu Janson. - E és capaz de conseguir?
- I get by with a little help fro mm my friends - cantarolou Berman.
CAPÍTULO CATORZE
AS COMITIVAS COMEÇARAM a chegar à Plaza ONU às 7 da manhã do outro dia. Entre as diversas delegações, encontrava-se um homem de keffieh na cabeça, barba comprida
e óculos escuros: a indumentária típica de certos árabes da classe dominante. Era em tudo semelhante a uma centena de outros representantes diplomáticos.
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De facto, a barba comprida não só mudava a aparência de Janson como dissimulava um pequeno microfone. E ele colocara um microfone também no secretário-geral. Instalado
no interior da cabeça do seu alfinete de gravata, ficando escondido pelo nó largo da mesma.
Uma barragem de flashes de máquinas fotográficas assinalou a chegada da lenda viva. O homem que o Mundo conhecia como Peter Novak entrou pelo Lóbi Oeste e foi rapidamente
conduzido pelos seus ajudantes para uma suite de executivo situada por detrás da Sala da Assembleia.
Aquela era a deixa para Janson recolher à cabina central da segurança, localizada por detrás do balcão principal da Sala da Assembleia. Uma série de monitores mostravam
imagens recolhidas pelas câmaras instaladas em múltiplos ângulos da sala. A seu pedido, tinham sido colocadas igualmente câmaras ocultas nas suites, escondidas por
detrás da tribuna. O novo consultor do secretário-geral para a segurança queria ter a possibilidade de vigiar todas as primeiras figuras.
Ajustando o painel de controle, ampliou a imagem, focando a mesa que a delegação da República de Mansur iria ocupar.
Ali, junto da coxia, estava sentado um homem com bom aspecto e indumentária idêntica à dos restantes membros da delegação. Janson premiu uns botões da consola e
a imagem surgiu no grande monitor central. Ampliou a imagem ainda mais e ficou como que hipnotizado ao ver o rosto inconfundível de Ahmad Tabari. O homem a quem
chamavam o Califa.
Janson premiu diversos botões, e a alimentação do monitor central mudou para a câmara escondida na suite do executivo.
Um rosto diferente. Uma cabeça com o cabelo todo, ainda mais preto do que grisalho, os malares pronunciados, o elegante fato de três botões: Peter Novak. Sim, Peter
Novak - fora quem o homem se tornara, e era assim que Janson tinha de o considerar.
A porta da suite abria-se agora, e dois membros dos Serviços Secretos procediam à inspecção da sala. Peter Novak levantou-se. Sorriu ao seu visitante: o presidente
dos Estados Unidos, de semblante pálido. Não havia acesso ao som, mas parecia óbvio que o presidente estava a ordenar aos dois homens dos Serviços Secretos que os
deixassem a sós.
Sem proferir palavra, o presidente retirou um envelope selado do bolso interior do casaco e entregou-o a Peter Novak. Depois, saiu.
Novak enfiou o envelope no seu bolso interior. Janson sabia que aquele envelope podia mudar o curso da história mundial.
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Os DETECTORES DE METAIS impossibilitavam o transporte de armas, o que estava de acordo com as expectativas do Califa. Contudo, obter a posse de uma arma era uma
questão elementar. Havia centenas delas no edifício, propriedade dos agentes de segurança da ONU e de outros guardas encarregados da protecção.
A aura de invencibilidade que ele perdera naquela noite terrível no Palácio de Pedra ia reavê-la, quiçá duplicá-la, uma vez concluída aquela acção, entre todas a
mais audaciosa. Executá-la-ia e, por entre o tumulto que se seguiria, escapulia-se na lancha rápida ancorada no East River, apenas trinta metros a leste do edifício.
O Mundo ficaria a saber que a sua causa justa não podia ser ignorada.
De acordo com o programa, Peter Novak iniciaria a sua alocução dali a cinco minutos. Aquele membro do pelotão de segurança de Mansur tinha de fazer uma deslocação
rápida à casa de banho. Irrompeu pela porta de saída da sala.
O Califa chamou a atenção de um agente dos Serviços Secretos que envergava um fato escuro.
- Ouça - disse ele ao agente. - Eu sou da segurança do chefe da República Islâmica de Mansur. Recebemos a informação de que está alguém escondido ... ali dentro!
- E apontou para a capela.
- Nós revistámos todas as instalações há umas horas.
- Mas importa-se de dar uma olhadela? Trata-se com certeza de boato falso, mas se, por acaso, estivermos enganados, vão questionar-nos por que razão não fizemos
nada.
Um suspiro de relutância.
- Vá à frente.
O Califa abriu e segurou a pequena porta de madeira de acesso à capela e esperou que o homem dos Serviços Secretos passasse.
- Não há aqui nenhum sítio onde alguém possa esconder-se disse o homem. - Não há aqui nada.
A porta pesada, à prova de som, fechou-se atrás deles.
- E o que é que isso interessa? - questionou o Califa. - Você não está armado. De qualquer forma, estava indefeso perante um assassino!
O homem dos Serviços Secretos sorriu e entreabriu o casaco azul-escuro, exibindo o revólver de cano comprido que trazia num coldre ao ombro.
- As minhas desculpas. - O Califa voltou-se de costas para o americano, parecendo ter ficado cativado por um mural. Depois, deu um passo atrás.
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- Está a fazer-me perder tempo - exclamou o americano.
De repente, o Califa projectou a cabeça para trás de encontro ao queixo do americano. Enquanto o agente cambaleava, o Califa lançou rapidamente as mãos ao seu coldre
e sacou-lhe o revólver, um Ruger. Depois, deu com a coronha com força na cabeça do homem, certificando-se de que aquele infiel presunçoso ficaria inconsciente por
muitas horas.
Arrastou de seguida o americano para trás de uma caixa de esmolas de madeira trabalhada, onde passaria despercebido a um visitante ocasional.
NA SUITE DE EXECUTIVO, a luz do telefone preto e elegante acendeu-se. Era o alerta para o orador estar pronto dentro de cinco minutos - um procedimento de rotina
que avisava o orador de que dentro de alguns minutos o chamariam para se apresentar diante dos governantes de todo o Mundo ali reunidos.
Novak pegou no auscultador, escutou e respondeu:
- Obrigado.
Ao observar a cena, Janson teve um pressentimento de perigo iminente.
Rapidamente, em desespero, premiu o botão para rebobinar e visionou de novo os últimos dez segundos de gravação.
A luz a brilhar no telefone preto. Peter Novak a estender a mão direita para o telefone. A levar o auscultador ao ouvido direito.
O cérebro de Janson encheu-se de uma miríade de imagens. Demarest sentado a uma secretária em Khe Sanh a estender a mão para o telefone. A manter o auscultador encostado
ao ouvido durante muito tempo. Demarest naquele terreno pantanoso perto de Ham Luong a estender a mão para o radiofone, escutando com atenção. Estendendo a mão esquerda,
levando o auscultador ao ouvido esquerdo.
Alan Demarest era canhoto. Invariavelmente. Exclusivamente.
O homem da suite dos executivos não era Alan Demarest.
Ele enviara um duplo. Um impostor.
Demarest alcançara a liberdade destruindo os seus próprios duplos, mas naquela ocasião ele planeava desde há anos tomar o lugar deles. E durante todo aquele tempo
acabara por criar um duplicado de si próprio - um que se encontrava sob o seu comando.
O homem que estava prestes a dirigir-se aos membros da Assembleia Geral era o bode enviado por Judas, que iria conduzi-los à sua
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própria destruição. Era o chamariz que iria atrair sobre si o fogo deles. Dentro de poucos minutos, aquele duplicado de um duplicado ia ocupar o seu lugar no pódio.
E seria mortalmente atingido por um tiro.
Não seria a ruína de Novak. Seria a ruína deles próprios. Alan Demarest teria visto confirmadas as suas suspeitas paranóicas: teria posto os seus inimigos a descoberto,
teria ficado a saber que o convite que lhe haviam dirigido não passara de uma conspiração.
Ora, o esquema que estava em funcionamento já não podia ser travado. Já não era passível de controle. Era essa a sua grande vantagem - mas também, possivelmente,
a sua falha letal.
Freneticamente, Janson mudou para as imagens fornecidas pela câmara apontada à delegação de Mansur. Lá estava o lugar de coxía que fora ocupado pelo Califa. Vazio.
A correr, Janson desceu as escadas e percorreu o corredor que circundava toda a Sala da Assembleia. Era imperioso encontrar o fanático de Anura. Aquele assassínio
não ia salvar o Mundo; ia, sim, destruí-lo.
O Califa desaparecera da Sala da Assembleia, o que significava que ia buscar uma arma que, ou ele ou algum cúmplice seu, teria de alguma forma conseguido transportar
lá para dentro anteriormente. O Lóbi Sul estava deserto. A gigantesca escada rolante estava vazia. Precipitou-se para a Sala dos Delegados. Nada. Onde é que ele
poderia estar? A mente de Janson procurava desesperadamente seleccionar as possibilidades mais óbvias.
"Faz a pergunta de modo diferente: onde te refugiarias se fosses tu,Janson?"
A capela. Um espaço que quase nunca era utilizado, mas que se encontrava sempre aberto. Era a única dependência do edifício onde uma pessoa podia ter a garantia
de não ser observada.
Janson empurrou a porta e viu um homem de vestes brancas dobrado por detrás de uma grande caixa de madeira trabalhada. O homem voltou-se para trás quando a porta
se fechou nas costas de Janson. O Califa.
Por um momento, Janson ficou tão abalado pelo ódio que mal conseguia respirar, mas recompôs-se rapidamente, assumindo uma atitude de afável surpresa.
O Califa foi o primeiro a falar.
- Khaifhallak ya akhi.
Janson lembrou-se de que trazia um keffieh árabe e a barba comprida e forçou um sorriso. No seu melhor inglês de Oxford - um príncipe
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árabe podia muito bem ter sido educado nessa instituição -, retorquiu:
- Meu caro irmão, espero não ter vindo perturbá-lo. É que estou com uma dor de cabeça tal que pensei em vir orar ao Profeta.
O Califa aproximou-se dele e observou-o atentamente. Depois, colocou uma mão no ombro de Janson. Era um gesto amável, amistoso, confiante - do homem que lhe assassinara
a mulher.
Involuntariamente, Janson recuou. Pelo seu cérebro perpassou uma catadupa de imagens: um rasto de destruição, o escritório em ruínas na Baixa de Caligo, o telefonema
a anunciar-lhe a morte da mulher.
O rosto do Califa endureceu-se subitamente. Janson acabara de se trair a si próprio.
Foi-lhe encostada ao peito a mira de um revólver de cano comprido. O Califa tomara a sua decisão: não ia permitir que aquele visitante suspeito se escapulisse.
- Ofendi-te - exclamou Janson, penitenciando-se. Depois, de súbito, agarrou o braço armado do Califa com ambas as mãos e com um puxão violento imobilizou-lho. Logo
a seguir, passou-lhe uma rasteira com a perna esquerda, tombando ambos no chão de laje.
Janson bateu com o braço armado do anurano no chão, fazendo que ele largasse a arma. com a rapidez de um raio, Janson apoderou-se do revólver e pôs-se de pé.
Sentiu então uma forte pancada desferida por trás. O assassino levantara-se de um salto e lançara um braço à volta do pescoço de Janson. Janson estrebuchou violentamente,
esbracejando e contorcendo-se, na tentativa de se libertar do homem, que era mais novo e mais leve do que ele. Porém, os músculos do terrorista eram fortes como
tenazes.
Então, em vez de tentar afrouxar o aperto do Califa, Janson atirou-se para o chão, caindo desamparadamente de costas, amortecendo todavia a queda com o corpo do
seu agressor, que embateu violentamente no chão ao cair.
Ofegante e com dores, Janson rebolou, e começava a levantar-se quando o Califa, revelando uma resistência incrível, se lançou sobre ele.
Janson abriu então os braços como se fosse abraçá-lo e apertou o Califa de encontro ao seu próprio corpo, fechando os braços sobre o peito do homem.
Depois, num súbito esforço convulsivo, deixou de o abraçar e ergueu o anurano no ar, na horizontal. com um movimento igualmente
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brusco, colocou o joelho esquerdo em terra, levantou o joelho direito e puxou o corpo flexível do agressor para baixo, contra ele.
A coluna do Califa partiu-se com um ruído arrepiante, e a sua boca contorceu-se num grito que não chegou a ouvir-se.
Janson agarrou-o pelos ombros e atirou-o para o chão de laje, uma, duas, várias vezes. Quando parou, os olhos do Califa estavam completamente vidrados, sem vida.
Janson enfiou o Ruger no seu coldre de ombro, ajeitou a barba e o keffieh e certificou-se de que não apresentava manchas de sangue visíveis. Depois, saiu da capela
e regressou à Sala da Assembleia Geral.
Sonhara durante anos matar o homem que lhe assassinara a mulher. Acabara de o fazer, mas só se sentia extremamente nauseado.
O HOMEM DO CABELO PRETO lá estava no pódio, discursando sobre os desafios colocados pelo novo século. Era parecido com Peter Novak. Seria aceite como Peter Novak.
Faltava-lhe, contudo, aquela sensação de comando associada ao lendário filantropo. A voz era fraca, vacilante; a alocução, hesitante e pouco convincente.
E só Janson sabia porquê.
Assim que o homem do pódio terminou a sua alocução, a assistência levantou-se e rompeu em aplausos. O que faltara ao discurso em determinação fora compensado pela
retórica. E depois, numa tal ocasião, quem ia regatear ao homem a consagração que ele merecia?
Janson saiu da sala. Se Demarest não estava ali nas Nações Unidas, onde estava então?
O secretário-geral abandonara a tribuna juntamente com o clamorosamente aplaudido orador, e agora, enquanto se dava início a um intervalo de vinte minutos, dirigiam-se
ambos para a câmara que ficava por detrás da Sala da Assembleia.
Janson deu-se conta de que o seu auscultador de ouvido se deslocara durante a luta; voltou a colocá-lo em posição e, por entre os ruídos de estática, começou a ouvir
trechos de um diálogo. O microfone do colar de Mathieu Zinsou estava a transmitir.
- Não, eu é que lhe agradeço. No entanto, gostaria de manter aquele tête-à-tête que mencionou. - A voz chegava um pouco distorcida, mas ainda assim audível.
- com certeza - respondeu Zinsou.
- Porque não vamos então até ao seu gabinete, no Secretariado?
- Agora, diz você?
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- Lamento, mas estou um pouco pressionado pelo tempo. Tem ! de ser agora.
- Venha comigo então. É no trigésimo oitavo andar. -Janson interrogava-se se o secretário-geral não teria dado aquela indicação precisa para seu conhecimento.
Correu para a rampa do lado leste do edifício da Assembleia Geral, após o que se dirigiu calmamente para o edifício do Secretariado.
No lóbi, exibiu o passe que fora propositadamente emitido para si, e um guarda fez-lhe sinal para avançar. No elevador, carregou no botão do trigésimo oitavo andar.
Um minuto depois, o elevador parava no trigésimo oitavo andar. Devido àquela reunião especial, o andar estava quase vazio; os funcionários estavam todos ocupados
na assistência às delegações visitantes.
Janson removeu o keffieh e as barbas e aguardou à esquina do sítio para onde abriam as portas dos elevadores.
Soou O AVISO sonoro da chegada do elevador.
- É este o nosso andar - disse Mathieu Zinsou para o homem que para o Mundo inteiro passava por ser Peter Novak.
Quando abriu a porta do seu gabinete, Zinsou sobressaltou-se ao ver um homem sentado à sua própria secretária, de silhueta recortada contra a luz do entardecer.
"Que diabo estava a acontecer?"
Voltou-se para o companheiro.
- Não sei o que dizer. Parece que temos uma visita inesperada. O homem que se encontrava à secretária de Zinsou levantou-se
e dirigiu-se-lhe; Zinsou engoliu em seco, desconcertado.
O cabelo preto e farto, apenas levemente pontilhado de cinzento, os malares pronunciados, quase asiáticos. Um rosto que o Mundo conhecia como sendo o de Peter Novak.
Zinsou voltou-se depois para o homem que estava a seu lado.
O mesmo rosto. Praticamente indiferenciáveis.
Contudo, havia algumas diferenças, reflectiu Zinsou, e não apenas físicas. Eram, sobretudo, diferenças de presença e de atitude. Havia algo de hesitante e cauteloso
no homem que estava a seu lado e algo de implacável e ditatorial no homem que tinha à sua frente. A marioneta e o dono da marioneta.
O homem que estava ao lado de Zinsou entregou um envelope ao homem que parecia ser a sua própria imagem num espelho.
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Um subtil aceno de cabeça.
- Obrigado, Laszlo - disse o homem que estivera à espera deles.
- Podes ir agora.
O impostor que estava ao lado de Zinsou voltou-se e saiu sem proferir palavra.
- Mon cher Mathieu - exclamou o homem que ficara.
JANSON OUVIU distintamente a voz de Zinsou no seu auscultador: "Meu Deus!" Ao mesmo tempo, viu o Peter Novak que não era Peter Novak carregar no botão de descida
do elevador.
A voz de outro homem soou no auscultador de Janson: "Tenho de lhe apresentar as minhas desculpas por esta confusão."
Janson correu para o elevador e entrou. O homem que não era Peter Novak fez uma expressão de surpresa, mas não deu nenhum sinal de o ter reconhecido.
- NÃO ESTOU A COMPREENDER - exclamou o secretárío-geral.
O outro homem possuía um forte magnetismo; estava profundamente confiante, completamente seguro de si.
- Vai desculpar-me por ter sido obrigado a tomar certas precauções. Aquele era o meu duplo, como certamente já percebeu. O problema é que corriam rumores de uma
tentativa de homicídio durante a Assembleia Geral. Eu não podia correr esse risco.
- Compreendo - retorquiu Zinsou, embora, de facto, não estivesse a compreender nada.
- Avancemos então com o nosso negócio. Aqui estão as instruções para poder entrar em contacto comigo - disse Novak, entregando ao secretário-geral um cartão branco.
- É o número que deve ligar para receber uma chamada de volta durante a hora seguinte. À medida que o nosso plano se for desenvolvendo, vamos precisar de manter
um contacto regular. A sua conta na Suíça, conforme poderá verificar, já foi aumentada por conta de um pacote de benefícios que poderemos finalizar mais tarde. E
haverá pagamentos mensais regulares, que continuarão enquanto a nossa sociedade assentar em terreno sólido.
É muito importante que o senhor não cometa erros de julgamento.
Zinsou engoliu em seco.
- Compreendo.
- É importante que compreenda mesmo. Nos seus discursos como secretário-geral, afirmou muitas vezes que a fronteira que divide
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a civilização e a selvajaria é uma linha muito estreita. Não ponhamos à prova essa tese.
JANSON TRAVOU com um pé a porta do elevador, impedindo-o de andar.
- Dê-me o envelope - disse.
- Não sei de que é que está a falar - retorquiu o homem. Janson cerrou o punho da mão direita e deu um soco violento no
pescoço do homem. Enquanto ele tombava no chão, Janson encostou-lhe o Ruger à têmpora. Uma busca rápida revelou que ele não tinha qualquer envelope.
Janson encaminhou-se então para o gabinete de Zinsou. Rodou o manipulo, abriu a porta e entrou de rompante, empunhando o Ruger na mão direita. A reacção de Demarest
à intrusão foi hábil e imediata: posicionou-se por detrás de Zinsou. Não havia forma de dispararem sobre ele sem atingirem o secretário-geral.
Mesmo assim, Janson disparou - ao acaso, assim pareceu - três tiros para o ar, três balas que foram esmagar-se na janela, provocando o desmoronamento da vidraça,
que depois se desintegrou numa cortina de fragmentos.
Seguiu-se o silêncio.
- Alan Demarest - exclamou Janson. - Adoro o que fizeste ao teu cabelo.
- Um tiro muito fraco, Paul. És a vergonha do teu mestre. - Demarest empunhava um Smith & Wesson .45.
- Zinsou! Mexa-se. Já. Saia daqui! - A ordem de Janson foi ríspida. O secretário-geral saiu do meio dos dois inimigos mortais, e Janson disse a Demarest:
- Se disparares sobre ele, és um homem morto.
Janson esperou, de Ruger na mão, até ouvir a porta fechar-se atrás de si.
Demarest estava de olhar fixo em Janson.
- Éramos iguais, tu e eu. E, em muitos aspectos, ainda somos. E tiveste a presunção de me julgares? Oh, Paul, não percebes porque é que levaste tão a peito destruir-me?
És assim tão desprovido de autocrítica? Que reconfortante deve ser para ti repetires para ti mesmo que eu sou um monstro e que tu és um santo. No fundo, tens medo
daquilo que eu te mostrei.
- Exacto, um indivíduo profundamente transtornado.
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- Não te iludas a ti próprio, Paul. Estou a falar daquilo que eu te mostrei a teu respeito. Aquilo que eu era, tu também eras.
- Não! - reagiu Janson com raiva e horror. A violência era, de facto, algo em que ele era perito; não podia mais esconder essa verdade. Só que para ele nunca fora
um fim em si mesmo; pelo contrário, constituía um último recurso para evitar mais violência.
Demarest deu mais um passo em frente.
- Já é altura de seres verdadeiro contigo próprio - disse com brandura. - Existiu sempre qualquer coisa entre nós dois. Qualquer coisa muito parecida com amor.
Janson olhou para ele, sobrepondo mentalmente as feições de Demarest à célebre aparência do lendário filantropo, notando os traços de semelhança mesmo naquele rosto
reconfigurado. Sentiu um arrepio.
- E ainda bastante mais parecida com ódio - exclamou por fim.
- Fui eu que te fiz. Aceita isso. Aceita quem tu és. Se fizeres isso, acabam-se-te os pesadelos, Paul. Acredita no que te digo. Eu durmo bem todas as noites.
Janson inspirou fundo.
- Dormes bem porque alguma coisa dentro de ti, chama-lhe alma, chama-lhe o que quiseres, está morta. Talvez tenha acontecido alguma coisa algum dia que a extinguiu,
talvez nunca a tenhas tido, mas
é a coisa que nos torna humanos.
- Humanos? fracos, queres tu dizer. As pessoas confundem sempre as duas palavras.
- Os meus pesadelos sou eu - retorquiu Janson com voz firme e clara. - Tenho de viver com as coisas que fiz nesta terra, mas não tenho de gostar delas. Fiz coisas
boas e coisas más. Quanto às más ... não quero reconciliar-me com elas. Tu dizes que posso afastar de mim esse sofrimento? É esse sofrimento que me dá a conhecer
quem eu sou e quem não sou. É através desse sofrimento que eu sei que não sou como tu.
Subitamente, Demarest fez um gesto rápido com o braço, derrubando o revólver da mão de Janson, que tombou, retinindo, no chão de mármore.
Demarest parecia quase pesaroso ao erguer a pistola.
- Tentei argumentar racionalmente contigo. Tentei chegar até ti, levar-te a entrar em contacto contigo mesmo. Eu só pretendia que reconhecesses a verdade, a verdade
acerca de nós os dois.
- A verdade? Tu és um monstro. Um profundo suspiro.
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- Chegou a altura de me ir embora. Tenho grandes planos para o Mundo, sabias? A verdade é que a resolução de conflitos me aborrece. A promoção de conflitos é que
está na ordem do dia. Os seres humanos gostam é de batalhas e de banhos de sangue. Deixem os homens ser homens, é o que eu digo. - Sorriu, ao mesmo tempo que erguia
a pistola a meio metro da cabeça de Janson. - Bon voyage - exclamou enquanto colocava o dedo no gatilho.
Foi então que Janson sentiu uma coisa quente espirrar de encontro ao seu rosto. Piscando os olhos, reparou que provinha de uma ferida na testa de Demarest, uma ferida
de saída de bala. Sem a deflexão que a vidraça da janela poderia provocar, o tiro do atirador foi tão certeiro como se tivesse sido disparado à queima-roupa.
Por um breve momento, a expressão de Demarest foi de absoluta impassibilidade: tanto podia estar a meditar como ter adormecido. Depois, tombou no chão com a flacidez
própria de quem acaba de perder a vida.
Quando Janson espreitou pela janela pelo telescópio antigo, de latão, do secretário-geral, deparou com Jessie no preciso local onde a colocara: do outro lado do
East River, com a carabina apoiada no telhado de um antigo armazém de engarrafamento. Estava a desmontar a arma com a rapidez e precisão de movimentos ditadas pela
prática. Em seguida, ergueu os olhos para ele como se sentisse os dele pousados em si. De repente, Janson sentiu-se invadido por uma sensação, uma sensação estranha
mais leve do que o ar, de que tudo ia correr bem.
- OBRIGADO POR SE TER REUNIDO a nós - disse o presidente Charles W. Berquist Jr., sentado à cabeceira da mesa oval. - A nação tem para consigo uma dívida de gratidão
da qual nunca terá conhecimento. Mas eu tenho. Não creio que seja surpresa para si que irá receber outra condecoração por serviços prestados.
Janson encolheu os ombros.
- Talvez devesse dedicar-me ao negócio do ferro-velho.
- Mas também queria que ouvisse algumas boas notícias e da minha boca. Graças a si, parece que vamos poder ressuscitar o Programa Mobius. Doug e os outros mostraram-me
como é que devíamos fazer, e a coisa parece ficar cada vez melhor.
- A sério? - ironizou Janson, impassível.
- Não parece surpreendido - comentou o presidente Berquist.
- Quando se convive tanto tempo com os planeadores como eu
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convivi, deixamos de nos surpreender com o seu misto de brilhantismo e estupidez. De qualquer forma, o melhor é esquecer isso.
- Pergunto: o que é que o leva a falar com o presidente dessa maneira? - interpelou Douglas Albright, o director-adjunto dos Serviços Secretos da Defesa Nacional.
- E eu pergunto se vocês alguma vez aprendem alguma coisa ripostou Janson.
- Aprendemos muitíssimo - disse Albright. - Não voltamos a cometer os mesmos erros.
- Certo. Os erros agora serão diferentes. O secretário de Estado interveio.
- Abandonar o projecto nesta altura seria deitar fora dezenas de milhares de horas-homem de trabalho.
- Nós assumimos o controle do duplo de Demarest - informou um técnico de rosto macilento. - Um tipo chamado Laszlo Kocsis. Era professor de Inglês na Hungria. Foi
submetido a uma cirurgia plástica há dezoito meses. Para encurtar uma longa história, digo apenas que, se ele alinhasse nos planos de Demarest, receberia dez milhões
de dólares. Caso contrário, a família dele seria dizimada. Está agora completamente sob o nosso controle.
- O jogo é meu, as regras são minhas - insistiu Janson. - Meus senhores, o Programa Mobius acabou.
- Por ordem de quem? - ironizou o presidente Berquist.
- Sua.
- O que se passa consigo, Paul? - perguntou o presidente, de semblante carregado.
- Uma pergunta para si, Sr. Presidente: acaba de receber e de aceitar uma contribuição pessoal ilegal de um milhão e meio de dólares. - Enquanto falava, Janson imaginava
Grigori Berman, lá em Berthwick House, a rir a bandeiras despregadas. Era aquele género de manipulações descomunais que fazia as suas delícias. - Como é que vai
explicar isso ao Congresso e ao povo americano?
- De que diabo é que está a falar?
- Estou a falar de um escândalo de enormes proporções, dez vezes superior ao Watergate. Estou a falar de o senhor ver a sua carreira política completamente destruída.
Uma quantia de sete dígitos foi transferida para a sua conta pessoal de uma conta de Peter Novak no International Netherlands Group Bank. As assinaturas digitais
não podem ser forjadas ... bem, não com muita facilidade. Por isso, já estou
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a ver um título de quatro ou cinco colunas no Washington Post: SERÁ O PRESIDENTE ASSALARIADO DOS PLUTOCRATAS? INVESTIGAÇÃO EM CURSO. O senhor conhece o frenesim
com que os media buscam informações. Irão fazer uma barulheira tal que nem o senhor nem os seus pensamentos serão capazes de ouvir.
- Isso não passa de baboseiras! - explodiu o presidente.
- E todos nós vamos desfrutar do prazer de o ver explicar isso ao Congresso. Os pormenores chegarão amanhã por e-mail ao Departamento de Justiça, bem como aos membros
mais importantes da Câmara de Representantes e do Senado.
- Você está a brincar comigo - exclamou o presidente.
- Telefone ao seu banco - disse Janson.
O presidente olhou fixamente para Janson. O seu instinto pessoal e político tinha-lhe proporcionado o cargo mais importante ao cimo da Terra e dizia-lhe que Janson
não estava a fazer bluff.
- Você está a cometer um erro terrível - disse Berquist.
- Posso desfazê-lo - retorquiu Janson. - Ainda não é demasiado tarde.
- Obrigado.
- Embora o seja em breve. É por isso que precisa de decidir em relação ao Mobius.
- Mas...
- Telefone ao seu banco.
O presidente saiu da sala. Decorreram alguns minutos até regressar ao seu lugar.
- Aquilo que está a propor é nada mais nada menos do que chantagem.
- Não nos percamos com formalidades - disse Janson.
- Derek - disse o presidente, voltando-se para o director das Operações Consulares e único homem que até ali se mantivera calado.
- Fale aqui com o seu homem. Tente fazê-lo compreender.
- Eu ando a repetir-lhe há muito tempo ... o senhor não conhece este homem - respondeu Collins.
- Derek? - O pedido do presidente não podia ser mais claro. Collins olhou para Janson.
- Há uma pessoa nesta sala com uma longa carreira de sucessos devido ao seu bom senso e ao seu sentido de decência. É um filho da mãe, duro de roer como o Diabo,
e um verdadeiro patriota, como há poucos. E, concorde-se ou não com ele, a decisão final tem de ser sua ...
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- Obrigado, Derek - exclamou o presidente Berquist em tom solene mas satisfeito.
- Estou a falar de Paul Janson - concluiu o subsecretário. E se não fizer o que ele diz, Sr. Presidente, o senhor está louco.
- Subsecretário Collins! - berrou o presidente - Terei todo o prazer em aceitar a sua demissão.
- Sr. Presidente - retorquiu Collins. - Ficaria muito satisfeito em aceitar a sua.
O presidente Berquist ficou gelado.
- Diabos o levem, Janson. Está a ver o que arranjou? Janson fixou o olhar no director das Operações Consulares.
- Um trinado interessante para um falcão - disse com um meio sorriso. Depois, voltou-se para o presidente. - O senhor conhece o ditado: "Atenção às fontes!" O conselho
que lhe deram pode corresponder mais aos interesses dos seus conselheiros do que aos seus próprios interesses. No que lhes diz respeito, o senhor está apenas de
passagem. Eles já andaram por cá antes de si, e cá ficarão depois de o senhor se ir embora. Na realidade, os seus interesses contam muito pouco para eles.
Berquist estava habituado aos cálculos frios e difíceis dos quais depende a sobrevivência de um político. Forçou um sorriso e disse:
- Paul, receio bem que esta reunião tenha tido um mau ponto de partida. Gostava de ouvir tudo o que pensa a este respeito.
- Sr. Presidente, isto é totalmente despropositado - protestou Douglas Albright. - Nós revimos este assunto vezes sem conta e ...
- Muito bem, Doug. Porque não me diz então que sabe como contrariar tudo aquilo por que Paul Janson passou e tudo o que teve de fazer? Não vi aqui ninguém preocupar-se
em abordar essa questão em particular.
- Não são coisas comparáveis! - rugiu Albright. - Estamos a falar dos interesses a longo prazo desta entidade geopolítica, não da glorificação da segunda administração
Berquist! Não há comparação possível! Mobius é maior do que nós todos. O senhor não pode sacrificar este programa no altar da ambição política.
- Pode chamar-me bota-de-elástico - retorquiu Berquist -, mas eu sinto uma maior apetência pelo cenário em que continuo a ser presidente. - Voltou-se para Janson.
- O jogo é seu, as regras são suas. Eu consigo viver com isso.
- Uma excelente opção, Sr. Presidente - comentou Janson em tom neutro.
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Berquist correspondeu com um sorriso que combinava autoridade com uma solicitação sincera.
- Então, agora, restitua-me a minha presidência.
The New York Times
PETER NOVAK CEDE O CONTROLE
DA FUNDAÇÃO LIBERDADE
Por Jason Steinhardt
Numa conferência de imprensa que teve lugar nos escritórios de Amsterdão da Fundação Liberdade, o lendário financeiro e filantropo Peter Novak anunciou que ia abandonar
o controle da Fundação Liberdade, a organização global que ele próprio criou e dirigiu durante mais de quinze anos. Anunciou igualmente que iria doar todo o capital
acumulado à fundação, a qual será reconstituída como fundação pública, com um conselho de administração internacional sob a presidência do secretário-geral das Nações
Unidas, Mathieu Zinsou.
Fontes próximas de Mr. Novak admitem que na origem desta sua decisão de abdicar das operações da fundação possa estar o recente falecimento de sua mulher. Outras
fontes salientam que os hábitos de reclusão do financeiro entravam em conflito com a necessidade de grande exposição pública a que o seu trabalho na fundação o obrigava.
Novak não se alongou quanto aos seus projectos futuros, mas alguns colaboradores seus admitem ser seu desejo retirar-se completamente da vida pública.
EPÍLOGO
A MULHER GRACIOSA de cabelo castanho espetado estava deitada de barriga para baixo, com a sua carabina de um metro e vinte apoiada à frente e atrás por sacos de
areia. As sombras do campanário tornavam-na invisível à distância. Por baixo da torre sineira, onde ela se encontrava posicionada desde há horas, havia um mar de
gente que se espraiava até à plataforma de madeira que fora erigida no centro de Dubrovnik.
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O papa decidira iniciar a sua visita à Croácia por uma alocução à população de uma cidade que se tornara num símbolo do sofrimento do seu povo. Corriam rumores de
que era sua intenção referir-se a uma história recente que a maioria dos croatas preferia esquecer.
A sua coragem moral tinha provocado, segundo parecia, o efeito de aumentar a devoção da legião dos seus admiradores locais. Mas tinha igualmente - as suspeitas de
Janson acabavam de ser confirmadas pelos seus contactos na capital, Zagreb - motivado uma conspiração cuidadosamente planeada para o assassinar. Um movimento secessionista
de uma minoria servia exacerbada resolvera vingar os conflitos históricos assassinando a figura que esta nação, predominantemente católica, venerava mais do que
qualquer outra.
Enquanto uma brisa suave soprava por entre os edifícios medievais do centro histórico da cidade, um homem igual a tantos outros, de cabelo curto e grisalho, para
quem ninguém olharia segunda vez, seguia pela Rua Bozardar Filipovic.
- Quatro graus fora da mediana - dizia em voz baixa. - No bloco de apartamentos a meio da rua. Ultimo andar. Tens contacto visual?
A mulher reposicionou-se ligeiramente e ajustou a sua Swarovski
12x50: o pistoleiro que ali estava de tocaia encheu o campo de visão da sua mira telescópica. Aquele rosto coberto de cicatrizes era-lhe familiar. Constava do seu
compêndio de rostos: Milic Pavlovic. Um assassino experiente e extremamente hábil. Os terroristas tinham enviado o que possuíam de melhor.
Mas o mesmo fizera o Vaticano, cujo objectivo era eliminar o assassino sem que o Mundo tivesse disso conhecimento.
O negócio de garantir a segurança de grandes personalidades só formalmente era uma nova actividade para Paul Janson e Jessica Kincaid. Como também só formalmente
era um negócio. Conforme Jessica já acentuara, os milhões que permaneciam na conta de Janson nas ilhas Cayman deviam ficar para ele. Se não lhe coubessem por direito
próprio, a quem mais caberiam? Contudo, conforme Janson observara, eram ainda muito novos para ficarem a viver dos rendimentos. Ele ainda tentara; tentara fugir
daquilo que era, mas isso não era solução para ele; para nenhum dos dois, aliás. Agora, sabia isso. Para o melhor ou para o pior, nenhum dos dois fora feito para
levar uma existência pacífica. As generosas reservas de numerário tinham apenas o mérito de fazer que a sociedade fosse selectiva na escolha dos clientes e não tivesse
necessidade de cortar nas despesas operacionais.
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Jessica estava agora a falar em voz baixa, sabendo que o microfone de filamento transportaria as suas palavras directamente para o auricular deJanson.
- Raios partam esta armadura de kevlar - disse, esticando o seu corpo esguio por dentro das camadas de malha de rede à prova de bala. Sempre achara aquela armadura
insuportavelmente quente, protestando contra a insistência dele para que a usasse. - Diz-me a verdade: achas que ela me faz parecer gorda?
- Parece-te que vou responder a isso quando sei que tens uma bala na câmara?
Ela arranjou a posição ideal - de arma encostada à cara -, enquanto o assassino de rosto enrugado montava o suporte e inseria o carregador na sua comprida carabina.
O papa devia fazer a sua aparição dentro de poucos minutos.
Novamente, a voz de Janson no ouvido dela:
- Tudo OK?
- Tudo certo como um relógio, meu doce - respondeu ela.
- Tem cuidado, está bem? Lembra-te: o atirador de reserva está no armazém, localização B. Se derem por ti, estás ao alcance dele.
- Tenho tudo sob controle - retorquiu ela com a calma profunda e radiosa de um atirador especial perfeitamente posicionado.
- Eu sei - disse ele. - Só estou a dizer para teres cuidado.
- Não te preocupes, meu amor. Vai ser canja.
Robert Ludlum
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