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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SEM DONO / Mairy Sarmanho
SEM DONO / Mairy Sarmanho

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

SEM DONO

 

                   O Mundo

        Nasci num dia chuvoso, muito frio. Lembro que mamãe me cuidava muito, assim como aos meus três irmãos. Não sabíamos nada do mundo, por isso ela nos contava histórias enquanto nos dava de mamar. A primeira que lembro é de como tudo foi criado: mamãe disse que não havia nada, apenas a escuridão. Então apareceu uma luz e iluminou a noite. Essa luz chamou-se Deus e Ele inventou tudo o que existe: flores, árvores, pássaros, cãezinhos e, até mesmo, o ser humano. Quando terminamos de mamar ela nos mostrou numa revista fotos de flores, árvores, pássaros e dos seres humanos, mas advertiu: tomem muito cuidado com eles! Perguntamos porquê e ela explicou que alguns seres humanos eram bons, mas outros eram muito maus. E que devíamos seguir nossos corações para descobrir qual era o tipo de ser humano que estávamos lidando. Perguntei como era seguir o coração e ela disse serem nossos instintos... Bem, resolvi não perguntar mais nada, afinal, eu não sabia o que era o tal instinto...

        Meus irmãos eram todos machinhos. Havia o Hug, Thor e Fro. Eram muito parecidos entre si e, por sinal, muito parecidos com a mãe. Eu era um pouco diferente, tinha pêlos mais compridos e manchos pretas espalhados pelo corpo. Mamãe disse que papai era assim: esperto e bonito como eu! Isso causou muito ciúme nos meus irmãos, mas como eu era a única fêmea, mamãe me fazia especial. Recebi o nome de Guria porque a dona de minha mãe era chamada assim e ela gostava muito dela.

        Perguntamos para nossa mãe onde estava nosso pai e ela começou a chorar. Envergonhados, nos encolhemos e fomos mamar, quietinhos. Fiquei com muita pena dela, suspirando e gemendo. Quando se acalmou, contou:

O papai de vocês era muito bonito e esperto, como já expliquei. Mas, um dia, um homem mau o matou. Chorei muito, mas não havia o que fazer. Seu pai prometeu que nos ajudaria, mas terminamos sozinhos, por isso os escondi aqui.

Onde estamos, mamãe? – Indagou Hug.

Num lugar bem seguro que encontrei. – Afirmou mamãe.

O mundo lá fora é como na revista? – Perguntou Thor.

Não, meu querido. O mundo lá fora é muito perigoso para um cachorrinho filhote. Por isso, só saiam daqui comigo, certo?

Como ficamos calados, mamãe insistiu:

Prometam que só sairão daqui comigo!

Prometemos! – Respondemos em conjunto, rindo. Não sabíamos que o mundo era, de verdade, tão perigoso e achávamos que mamãe estava exagerando...

O que existe além de cachorrinhos e humanos, mamãe? – Perguntei.

Muitas coisas boas: comida, abrigo, água...

Existe o que mais de ruim? – Perguntou Fro, com medo.

Carros, doenças, armas, fogo, carrocinha, Centro de controle de Zoonoses... A maioria feita pelos humanos. Muita coisa ruim, mesmo! – Insistiu mamãe.

Ficamos quietos, imaginando como seria o mundo lá fora, cheio de perigos e coisas desconhecidas para simples cachorrinhos como nós. Fro começou a lamber as patinhas, como mamãe costumava fazer. Mamãe fez um olhar de aprovação e todos o imitamos. Gostávamos de agradá-la, de verdade!

 

                   Descobertas

        Duas semanas se passaram antes que nos sentíssemos fortes o suficiente para examinar o lugar onde estávamos. Thor foi o primeiro a caminhar e se mostrou o mais valente dos filhotes. Ele sumiu de nossa frente e voltou, depois, arrastando uma coisa consigo.

O que é isso? – Perguntei, curiosa.

Uma coisa que encontrei. – Colocou o objeto na nossa frente e mandou: - Toquem para ver como é macio!

Receosa, toquei aquilo com a ponta de meu dedo. Macio. Aproximei-me e cheirei. Tinha um odor esquisito, de coisa viva, terra e vento. Deitei-me sobre ele, mas meu irmão reclamou:

Peraí! Fui eu quem achou e só eu posso deixar meu cheiro nele!

Mas eu sou fêmea e a mamãe disse que eu faço tudo o que quiser! – Retruquei.

Não é bem assim, não! – Reclamou Thor, me empurrando para longe do objeto.

Fiz cara feia e saltei sobre ele, dando uma dentada no nariz. Ele começou a ganir e a mamãe entrou naquele instante.

O que aconteceu? – Perguntou. – Onde você se machucou, meu filho?

A Guria me mordeu! – Choramingou Thor. – Eu achei uma coisa e ela se apossou, se esfregando. Eu disse que não podia e ela me mordeu!

Guria!... – Reeprendeu-me mamãe. – Onde já se viu isso?

Era uma coisa diferente! – Expliquei. – Eu só queria sentir como era macia!

Não foi isso! – Retrucou Thor, com olhos lacrimejantes. – Você queria se apossar dela!

Bobão! – Disse, torcendo o nariz.

Mamãe sacudiu a cabeça.

Tão novinhos e já arrumando confusão! – Olhou para o objeto. – Isso é um pano que os humanos fazem e existem aos milhares por aí, não precisam brigar por tão pouco!

Consegue outro para mim, então? – Pedi-lhe.

Eu também quero! – Pediu Hug.

E também... – Murmurou Fro.

Consigo vários, mas não briguem por isso, combinado? – Disse mamãe, sacudindo sua cabeça linda. Ela abocanhou meu focinho e o do Thor, também, para que nos lembrássemos do erro cometido. Deitei-me de barriga para cima, e gemi. Meu irmão fez o mesmo e mamãe brincou: - Vocês têm medo, mas não têm vergonha!

Dormimos encostadinhos na mamãe, aproveitando o calor que ela nos dava e o amor que nos protegia contra as maldades do mundo. Quando acordamos, mamãe já havia saído.

Hug levantou primeiro e começou a cheirar, tentando descobrir onde mamãe havia ido. Fiquei deitadinha mais um pouco, para que a preguiça fosse embora. Mas ouvi meu irmão gritar:

Vejam só isso!

Levantamos todos e corremos para junto dele. Na parede havia um buraco e, por esse buraco, podíamos ver o mundo. Estiquei meu pescoço e enfiei a cara lá fora. Olhei de um lado, de outro e quando pensei que não existiam aqueles perigos que mamãe havia comentado, ouviu um rosnar como de um trovão, um guincho horroroso e um par gigantesco de garras que tentaram me arrancar do lugar. Felizmente consegui dar um pulo para trás e, ganindo, escondi-me no canto oposto do nosso abrigo. Meus irmãos fizeram o mesmo e nos embrulhamos, apavorados, rezando para Deus que aquela coisa medonha não nos levasse embora. Ficamos assim por um tempo tão longo que adormecemos, novamente.

Quando acordamos, Fro perguntou:

O que foi aquilo que tentou agarrar a mana?

Acho... – Murmurou Thor, pela primeira vez em sua curta vida, realmente assustado. – Acho que era um humano!

Como nós vamos sobreviver num mundo contaminado por humanos gigantescos, feios e ruins como esses? – Choramingou Hug.

Ele quase me destroçou! – Comentei, enquanto um calafrio percorria minha espinha.

Que coisa feia! – Comentou Fro.

E que guincho terrível! – Emendou Thor.

Eu tô com medo... – Gemi, encolhida entre meus irmãos.

Onde é que tá a mamãe? – Indagou Thor, com o rabinho no meio das pernas.

Eu quero a minha mãe! – Ganimos todos, assustados.

Entretanto, mamãe demorou muito para voltar. Pelo menos parece que demorou muito, já que o medo estica o tempo. Quando voltou, trazia um saquinho consigo. Abriu a boca e, alegre, disse:

Venham ver que coisa boa a mamãe trouxe!

Como ficamos quietos, ela perguntou, desconfiada:

O que aconteceu?

Eu quase fui engolida. – Murmurei, fazendo beicinho.

Nós, também! – Disseram meus irmãos.

Como? – Perguntou mamãe, preocupada. – O que aconteceu com meus filhinhos?

Thor contou o que havia acontecido e a mamãe repreendeu-nos:

Eu disse para terem cuidado! Vocês têm de obedecer-me, senão o pior pode acontecer!

A gente ia morrer? – Perguntei-lhe.

Não sei. – Suspirou mamãe, deitando-se junto conosco. – Os seres humanos são muito imprevisíveis. Como eu disse, existem bons e malvados. Os bons só querem ficar conosco, os malvados... Ah, nem devemos pensar no que são capazes de fazer! Como vocês são muito pequenininhos, procurem ficar longe deles. É muito arriscado se aproximar de algum...

Como são grandes! – Comentou Thor.

Pelo que vocês disseram, aquilo foi apenas um filhote. – Explicou mamãe.

Filhote? Puxa! – Exclamou Hug, apavorado. – Que tamanho têm os adultos, então?

São muito maiores e muito mais perigosos, normalmente. – Advertiu mamãe. – Mantenham distância deles e nunca, nunca mesmo, saiam sozinhos do esconderijo, certo?

Com certeza! – Respondemos em coro, conscientes dos riscos que havia no mundo lá fora.

Bem, agora que o perigo passou, venham ver o que a mamãe trouxe! – Ergueu-se, sacudindo sua linda cauda e puxou a novidade para perto de nós. Tirou o conteúdo do saquinho e espalhou-o bem com o focinho, para que todos os quatros pudessem examinar bem de perto.

O que é isso, mamãe? – Perguntei.

Isso é comida. Ração. Um humano bonzinho me deu, então resolvi trazer para que provem... – Explicou-nos.

Hug foi o primeiro a se aventurar. Mordeu um pedaço, fez careta e cuspiu longe, resmungando:

É ruim e seco!

Ração é assim mesmo. – Explicou mamãe. – Mas faz bem para a saúde e foi o que consegui achar... Provem, insistiu.

Peguei um pedacinho e mordi, lentamente. Era seco, como havia comentado meu irmão, mas não tão ruim. Mexi com a língua empurrando-a de um lado para outro, até que se esfarelou e pude engolir. Meus irmãos fizeram o mesmo e depois mamãe nos amamentou. Enquanto afofava sua teta para tirar o leite, fiquei imaginando como poderia viver naquele mundo de gigantes ameaçadores e perigos inúmeros. Suspirei e adormeci encostada na minha família, acreditando que mamãe estaria sempre junto para nos proteger.

                   Aprendendo

        Aprendi a latir. Mamãe nos colocou todos juntos e explicou que é muito necessário latir para se defender. Latido é aviso, - disse ela - e quem avisa, amigo é. Disse que nunca deveríamos recorrer à violência se não fosse necessário. – Os humanos costumam matar os cães mais violentos. – Afirmou.

As lições de mamãe eram sempre ouvidas e seguidas com muita dedicação. Costumávamos escutá-la e depois imitávamos seu comportamento. Mamãe sabia tudo o que era necessário para viver naquele mundo perigoso e complicado no qual havíamos nascido.

Cada dia ganhávamos algo diferente para comer e perdíamos o direito a algumas mamadas. Todos reclamavam, mas ela costumava dizer que a vida era assim mesmo, nem sempre teríamos aquilo que desejávamos. Com o tempo, mamãe passou a dar preferência para Thor, pois era o filho mais forte e com maiores condições de sobreviver. Percebi essa mudança e aceitei, porque já havia descoberto que a força era algo muito importante.

Um dia, após termos enchido nossas barrigas com o leitinho morno dela, perguntei-lhe:

Nós temos irmãos, mamãe?

Como? – Indagou ela, sem pensar.

Já teve outros filhos? – Insisti.

Mamãe olhou para o teto e refletiu um pouco. Sabia que ela estava tentando encontrar a melhor resposta para minha pergunta. Depois de alguns instantes, respondeu:

Já tive, sim.

Onde eles estão? – Interveio Hug.

Não sei. – Murmurou mamãe.

Como, não sabe? – Insistiu Hug. – Onde foram parar seus filhos?

Eu sou uma cachorra de raça, como dizem os humanos. – Suspirou mamãe. – Eles me obrigavam a ter filhos e depois os vendiam...

O que é vender? – Questionou Fro.

É uma coisa horrível que os humanos fazem... – Mamãe estava muito triste. – Eles roubam os bebês e os entregam para quem der dinheiro. Às vezes, esses humanos tratam bem os cachorrinhos, outras vezes, não. E nunca mais vemos nossos filhos... É tão triste que nem quero lembrar... Quando conheci o pai de vocês, soube logo que os humanos não aprovariam nossa família. Assim, fugi para ficar com ele. E tive a sorte de ter quatro filhotes lindos e maravilhosos como vocês!

Mamãe nos deu uma lambida gostosa e mordiscou nossos pescoços. Ela era tão linda e tão boazinha que parecia irreal. Sacudimos os rabinhos e brincamos por um tempão com ela porque, afinal, éramos seus filhinhos queridos!

Fiquei com eles e, depois, ouvi um barulho diferente vindo de um canto. Ergui-me e fui até lá. Espichei meu nariz, cheirei e quase desmaiei com o que vi.

Um bicho! – Lati, alertando minha família.

Onde? – Perguntou mamãe, empurrando meus irmãos para longe e ficando na minha frente para me defender.

Ali. – Apontei com a pata.

Mamãe aproximou-se da criatura com cautela e depois deu um latido alegre:

Venham ver! – Chamou-nos.

Aproximamo-nos e vimos um bicho estranho, colorido, com uma boca pontuda.

É um passarinho. – Explicou mamãe. – O ninho deve ser aqui perto, pois ainda é filhote de vocês.

Por que os pêlos dele são pontudos? – Perguntei, olhando-o com muita curiosidade.

Porque não são pêlos, Guria, são penas. – Disse-nos.

E para que servem? – Indagou Hug.

Para voar. – Esclareceu mamãe.

Ele come ração? – Quis saber Thor.

Ração de passarinho. – Disse mamãe, com paciência.

Eles têm maninhos? – Perguntou Fro, fazendo uma careta.

Tem sim! – Uma voz fininha ecoou e um bicho igual, mas adulto, apareceu de repente, abrindo as asas ameaçadoras, para defender o filhote. – Tem pai, mãe e irmãos para protegê-lo!

Puxa! – Murmurou Fro, assustado.

Não se aproximem! – Piou o pássaro, furioso, abrindo o bico, ameaçador. – Não machuquem meu filho, senão...

Não íamos machucá-lo. – Explicou mamãe. – Os pequenos só queriam ver o seu filhinho.

Tudo bem, mas não quero que se aproximem! Meu bebê é muito delicado e seus filhotes podem machucá-lo! – Colocou o pequeno sob suas asas protetoras. – Vou levá-lo embora!

Suspirei ao vê-los sumir no escuro e perguntei para mamãe:

Por que ele ficou tão bravo?

Porque ele teme por seu filhote. – Disse ela, lambendo minhas orelhas. – Assim como machucam os cãezinhos, os humanos também o fazem com os passarinho. E eles ficam com receio que outros o façam, também... Para contar a verdade, existem alguns cães que caçam os passarinhos...

O que é caçar? – Perguntou Hug, interessado.

É pegar para comer... – Explicou mamãe.

E os humanos pegam para comer, também? – Perguntei.

Não, Guria, nem sempre... – Mamãe fechou seus olhos, pensativa. – Eles machucam só por machucar, matam por matar. Por maldade, apenas.

Por que a gente não se une contra os humanos? – Perguntou Hug. – Podíamos afastá-los para bem longe!

Não é possível, meu amor. – Comentou mamãe. – Os humanos têm armas, são maiores e muito mais fortes. Além disso, como já lhes expliquei, alguns são bonzinhos e nos ajudam muito, como o que nos deu a ração, lembram?

Você gosta de algum humano? – Perguntei.

Gosto. E muito. – Disse mamãe, lambendo a pata dianteira.

Quem?

Da minha dona. – Explicou-me, com os olhos brilhando.

Como ela é?

Muito boazinha e querida. – Mamãe suspirou e encolheu-se, com os olhos cheios de lágrimas. – Sinto saudades dela...

Mas... – Hug fez uma careta irritada. – Ela não vendeu seus filhotes? Como ainda pode gostar dela, mamãe?

Vendia porque as outras pessoas não deixavam ela ficar com todos. – Justificou mamãe, fiel. – Eu acho...

Como assim? – Insistiu o pequeno.

Não sei explicar, meu filho. – Mamãe suspirou, cansada. – Os humanos são esquisitos e difíceis, mas eu gosto muito da minha dona, apesar de tudo.

Bobagem... – Retrucou Hug, afastando-se.

Mamãe saiu, dizendo que precisava encontrar algo para comer. Hug comentou:

Ela é muito boba, ainda acredita nos humanos!

Não fale assim, dela! – Retruquei.

        Ficamos quietos, encostados uns nos outros, pensando no bicho estranho que vimos e em como era possível o amor de mamãe pelos humanos, mesmo depois da morte do papai e da venda dos outros filhotes. Como não encontramos uma resposta lógica, adormecemos.

 

                   Humanos

        Quando acordamos, mamãe não estava mais conosco. Ela saiu para buscar comida e passou muito tempo até voltar. Estava machucada numa orelha. Limpamos o ferimento para ela e perguntei o que havia acontecido.

Um cachorro brigou comigo. - Murmurou.

Fiquei com muita pena, pois não estávamos junto para defendê-la. O problema é que somos muito pequenos para ajudar e só iríamos atrapalhar, foi o que mamãe disse.

Ela se deitou num cantinho, bem enroscada e dormiu. Ficamos pertos, cuidando para que nada de mal acontecesse, enquanto ela sonhava. Quando acordou, mamãe choramingou um pouco.

O que houve? - Perguntou Hug.

Está com dor, mamãe? - Completei, com uma careta de tristeza.

Estou, Guria. Estou com uma dor muito forte na barriga. - Gemeu mamãe, encolhendo-se.

Minha mãe passou o dia inteiro com dor... Não sei o que ela tem.

Vou procurar algo para a mamãe comer... - Disse Thor.

Mas é perigoso sair... - Murmurou Fro.

A mamãe não quer que saiamos. - Completei.

Se eu não for, a mamãe vai ficar ainda mais doente porque têm fome! - Exclamou Thor. Sabíamos que ele tinha razão e por isso concordamos que fosse.

O Thor saiu e voltou com um grande pedaço de pão para ela. Mamãe agradeceu, mas disse que estava preocupada: não queria ficar doente e deixar que nos foi fácil achar: a comida estava no chão. Não foi fácil achar: a comida estava no chão. Não tivemos coragem de mamar, preferimos ficar quietinhos, com fome, esperando ela melhorar. Tomara que fique boa logo, não sei o que faríamos sem a nossa mamãezinha...

No dia seguinte, o Thor saiu de novo para buscar mais comida. A mamãe estava piorando. Ouvi seu gemido e fiquei junto dela, tentando esquentar seu corpo doente. O mano Fro chorou de fome e medo. Tentei consolá-lo, dizendo que a mamãe vai melhorar. Mas tenho medo que não melhore e que... Eu não vou dizer a palavra! Não mesmo! Mamãe vai ficar boa, com certeza! Nós somos uma família tão bonita. Espero que o Thor volte logo, estou com muita fome, também. Lambi o rosto de minha mãe e prometi que tudo ia ficar bem, ela ia melhorar e nos cuidar, como sempre fez... Está tão frio... Tomara que o mano volte logo, tomara...

O Thor voltou meia hora depois, no colo de um homem grandão e esquisito, vestindo um avental sujo de sangue! Quando o vi, saltei feroz e mordi a sua calça, porque achei que ele tinha matado o meu irmão! Ele me pegou no colo e, rindo, deixou que eu cheirasse o mano. Depois nos colocou no chão e foi olhar a mamãe. Falou um monte de coisas que não entendi e depois saiu. O Thor disse que ele lhe deu leite num pratinho e que fez carinho na cabeça dele. Eu achei esquisito, mas o Hug perguntou se a fome tinha passado, como passa quando a gente mamava na mamãe. - Passou, sim! - Afirmou Thor, satisfeito.

O homem voltou com um prato de leite e eu, o Hug e o Fro bebemos tudo! Depois ele deu uma coisa para a mamãe e acariciou minha cabeça, também, falando algo que não entendi. Quando ele saiu, fiquei mais calma. Agora não tenho mais tanto frio e a fome passou. Vamos todos dormir bem enroladinhos junto da nossa mamãe

Mamãe acordou melhor. Lambeu-nos e perguntou-nos o que havia acontecido. Contamos-lhe sobre o homem que veio nos dar comida e trouxe o mano de volta. Ela sorriu e nos contou uma história muito bonita sobre a vó dela: A bisavó era uma cachorra de raça, muito linda, tinha o pêlo macio, brilhante e olhos muito bonitos... O nome dela era Panila. Ela tinha uma dona que gostava tanto dela... Era tratada como filha: vivia no colo, comia muito bem, dormia na caminha macia e quente. Quem visse a vovó e sua dona pensaria que eram parentes, tão parecidas que ficaram com o passar dos anos. Era tão agradável vê-las junto, afirmou mamãe, tossindo um pouco. Agradecemos a história e ficamos, realmente, muito felizes, ao perceber que a mamãe estava ficando boa...

Mamãe já está dormindo melhor e a respiração está mais suave. Encostei minha orelhinha no seu peito para ouvir o coração. Ele bate delicado como ela: toc toc toc! Adoro sentir o calor agradável e confortante de seu corpo. Amo muito a minha mãe. Sou feliz!

No dia seguinte, o homem esquisito voltou e trouxe comida para nós... Eu nunca tinha comido nada assim: adorei. Pedi mais, mas o homem disse qualquer coisa que não entendi e não deu. Mesmo fazendo carinha de fome e sacudindo o rabinho, não adiantou: ele não deu nem um pouquinho a mais! A mamãe comeu bastante, tomou água e depois fez festa. Aprendi com ela e fiz igual. Fiquei na frente dele, me esfreguei nas calças e sacudi a cabeça e o rabinho. Mamãe elogiou e disse que aprendo rápido e isso é muito bom! Fiquei feliz, mas preocupada porque os manos não souberam fazer igual...Eles me olhavam e, por mais que tentassem, não sacudiram o rabinho. Talvez o meu seja mais comprido e se mexa mais fácil, não sei...

Depois que o homem saiu, a mamãe nos lambeu e catou. Disse para fazermos xixi e cocô no papel que ele deixou no chão, afirmando: eles acham que isso é educação e cachorro educado tem mais chance de encontrar um dono e um bom lugar para morar! Fizemos como ela disse e passamos o dia inteirinho brincando de morder pescoço uns dos outros. Foi tão bom!

Agora estou com sono. Pelo vão da janela enxergo uma bola enorme, branca. Mamãe disse que é a lua cheia e ela nos protege. Vou dormir... Boa noite!

 

                  Gatos

Quando o novo dia começou, o homem voltou e trouxe comida, de novo. Mas a mamãe disse que devíamos mamar, pois evitaria doenças. Não sei o que são as doenças, mas se a mamãe falou... Como foi bom mamar novamente! Eu estava sentido falta do gosto do seu leitinho, de como é bom o calorzinho dela encostando no meu nariz...

O mano Fro mamou e depois foi comer a comida que o homem trouxe. Não sei onde cabe tanta coisa! Ele sente tanta fome!...

Estávamos bem quietinhos, em volta da mamãe, quando alguma coisa se mexeu no canto. Pensei que fosse, novamente, o passarinho e me aproximei, tomando cuidado para que seu pai não viesse... Mas, quando cheguei perto, sabe o que vi? Um bicho peludo como eu! Soltei um ganido tão alto que acordou toda a família e saí correndo, assustada, para bem junto da minha mãezinha! Ela perguntou:

O que houve, Guria?

Tem um bicho feio e peludo ali no canto! Vai ver, mamãe! - Gritei, apavorada.

A mamãe mandou que fossemos junto com ela, afinal, estávamos crescendo e precisávamos conhecer os perigos do mundo e a forma de enfrentá-los. Quando nos aproximamos, pude ver que o bicho era um pouquinho maior do que eu e parecia tão assustado quanto nós.

É um gato, minha filha! - Exclamou mamãe. - E os cães não têm medo de gatos, os gatos é que temem os cães!

Mesmo? - Perguntei, incrédula. - Pois ele parece tão perigoso...

Não é. - Mamãe ficou olhando o gato, à distância. - Os gatos sempre foram caça dos cães... O segredo é a forma de pegá-los.

Como se caça um gato? - Perguntou Hug, interessado.

Vocês são muitos pequenos para fazerem isso e, afinal, eu não concordo com esse esporte de caça aos gatos. Prefiro que aprendam a lutar e advertir, pois isso será bem mais valioso em suas vidas. Não quero que meus filhos sejam malvados. - Resmungou, fazendo uma careta engraçada.

E o que devemos fazer com ele?

Nada, Hug, devemos apenas deixá-lo em paz... - Disse mamãe, afastando-se e nos empurrando para longe, com o focinho.

Hug suspirou e obedeceu. Eu sei que, no fundo, o que ele gostaria de fazer é caçar o gato, mas como a mamãe não deixa...

O gato era feio, preto e muiiito magro. E, assim como nós, levou um susto ao nos ver. Mamãe disse que alguns cães sempre correm atrás dos gatos, mas pediu que não fizéssemos isso porque o certo é todo mundo se respeitar e se ajudar, sempre que possível. Acho que a mamãe é muito esperta e sabe bem como as coisas costumam acontecer nessa vida. Ela convidou o gatinho para ficar ali, conosco, mas advertiu-o:

Não machuque meus filhinhos que nós nunca o machucaremos!

Acho que o gato concordou, pois ficou quieto, dormindo no seu canto.

Mamãe saiu para procurar comida e nos deixou brincando. Pulei em cima do Hug, mordi seu pescoço e fiz de conta que estávamos duelando. O Thor entrou no meio e daí perdeu a graça: o mano é forte demais e termina nos machucando, de verdade.

Resolvemos parar e nos deitamos num canto, descansando. Foi quando ouvimos o miado do gato:

Miau! Posso comer um pouquinho? Estou com tanta fome!

Não! - Bradou Thor, na defensiva.

Pode, sim! - Intervi, latindo. - Lembra do que a mamãe falou, Thor, para ajudarmos sempre que possível?

O mano concordou com a cabeça e o gato se aproximou bem devagarzinho, começou a comer e ficou nos olhando de longe. Não tenho mais medo dele, nem os meus irmãos. Ficamos espiando em nosso cantinho, todos juntos, porque se ele nos atacasse, juntos poderíamos nos defender: é o que a mamãe ensinou!

Fiquei observando o gato e pude notar que ele é mesmo feio, tem algumas manchas coloridas que não tinha visto antes e seu corpo é magro, muito magro, mesmo. Pude ver as costelas se mexendo enquanto ele comia. Nunca passamos fome porque a mamãe nos faz mamar e o humano ajuda trazendo comida. Mas acho que deve ser horrível, pois o gato parece tão feliz só porque o deixamos comer um pouquinho! Depois de comer, ele saiu e fomos dormir para crescer melhor, como mamãe explicou!

Acordei um pouco depois e meus irmãos continuavam dormindo: o Fro virado de barriga para cima, o Thor deitado enroscado e o Hug no meio deles, com a cabeça apoiada no pescoço do Thor. Percebi que o gato havia voltado e cheguei pertinho dele, cheirando-o com cuidado. Ele ficou quieto, me espiando. Pergunte qual era seu nome e ele respondeu:

Miau.

Sacudi o rabo e acho que fiz um amigo: ele é carinhos, engraçado e se chama Miau!

Brinquei com o gato! Você tinha que ver como é legal brincar com um gato! Ele finge que unha, mas encolhe as unhas para dentro dos pés e mordisca a gente. Rolamos no chão e nos divertimos tanto!... Foi ótimo! Encostei-me no seu pelo macio e ele deixou, ficou fazendo um barulho engraçado: rom rom rom... Perguntei ao gato onde ele morava e ele me disse que não morava em lugar algum. Perguntei onde estava sua mãezinha e ele me contou que ela tinha sido envenenada.

- E o que é veneno? - Indaguei, curioso.

- Veneno é uma coisa que os humanos põe na comida quando querem matar a gente... - Explicou o gatinho, com lágrimas nos olhos.

Mesmo? - Arregalei meus olhos de cachorrinho. - Por que isso acontece?

- Eles não gostam de gatos e nos envenenam... - Tornou o gatinho. - E, tome cuidado! Têm alguns que não gostam de cachorrinhos, também!

- Sério? Eles matam os cachorrinhos?

Matam! - Afirmou o gato, lambendo sua pata dianteira.

- E como vamos saber quem são os assassinos de bichinhos? - Insisti, temeroso.

Pelo cheiro. Cães e gatos podem cheirar a alma das pessoas, você sabia? Se for um cheiro ruim, de maldade, saia de perto e lata muito, para que os outros também saibam que ele é ruim! Nós, gatos, arrepiamos os pelos, gritamos e corremos para bem longe desses... - Ensinou o gatinho.

Suspirei e deitei-me na caminha para pensar. Matam os gatinhos e os cãezinhos!... Que horror! Por quê? Senti um calafrio percorrer-me o corpo quando imaginei como seria a minha vida sem minha mãezinha. Pobre gatinho solitário... Tadinho dele!

Fiquei quieta até o mano Thor perguntar:

Guria, você não teve medo quando ele mostrou as unhas?

Percebi que ele esteve nos observando e comentei:

Não, ele é bonzinho!

Foi como se tivesse apertado um botão: o mano saltou e quis brincar com o Miau, também. Mas ele é maluco, corre e pula demais! É pesado e isso assustou o gatinho que saiu correndo. Adoro meu irmão e tenho muito orgulho dele, mas para contar a verdade, acho que é atrapalhado e desconhece a força que tem. Esse meu maninho!...

Hum, é tão bom fazer amigos. Você quer ser meu amigo?

 

                     A Rua

Conheci a calçada e a rua! Puxa, como tudo nesse mundo é grande! Tem um monte de pés, rodas, escadas e um montão de outras coisas estranhas! O Thor já tem mais experiência, por isso ele não tem medo, mas eu tenho. É tudo barulhento, apressado e confuso demais. Pensei que era mais simples e fácil. Mas, não! Fiquei um pouquinho e voltei depressa para o nosso esconderijo. Os manos Hug e Fro não quiseram sair, disseram que estava frio, tinham preguiça e sono, mas acho que estavam com medo...

Fiquei andando, espiando tudo que existe em volta. Depois voltei para o esconderijo, afinal, não sou de arriscar demais...

Thor é demais! Somos tão pequeninos, mas o mano é tão valente! Têm que ver! Ele saiu (sem que a mamãe visse, porque ela não deixa...) e foi procurar algo de bom para comer. Sabe o que ele encontrou? Um pratão cheio de comida! Quando ele ia roubar um osso que estava no prato, veio um cachorrão ENORME e pegou o osso, também! Imaginem a cena: O Thor mordendo o osso de um lado e o cachorrão do outro! Quase chorei de tanto rir! E sabem o que aconteceu depois? O mano largou o osso e fingiu que ia embora. O cachorrão ouviu um miado e correu para caçar o gato! Aí o mano pegou o osso e trouxe para nós! A mamãe disse para ele não fazer mais porque é muito perigoso... Mas duvido que Thor obedeça, ele é muiiiiiiiiiito valente! Eu tenho orgulho de ser o seu irmão!

Quando o homem trouxe comida, o gato veio comer, também. A mamãe viu e disse que não era para espantarmos o gato, pois ele estava muito faminto e devemos ter pena de quem passa fome... Perguntei para a mamãe se ela passou fome algum dia. Ela olhou para o lado e fingiu não me ouvir. Meu coração ficou apertado só de pensar que a minha mãe tão amada possa ter passado fome!

       A mamãe saiu e voltou com um osso grande para roermos. Cada um roeu um pouquinho, mas os nossos dentes ainda são meio curtos e machuca um pouco. Mas o cheiro é ótimo! Depois a gente mamou um monte e deu sono. Por quê será que sempre tenho sono depois que como? Acho que a barriga estufa tanto que a comida vai parar no cérebro. Arft! Deve ser isso... Está chovendo... Eu e Thor pensamos em sair de novo, mas ficamos com medo da chuva. Cai um trovão e mata o cachorrinho! Foi o que o Hug disse, não sei se é verdade, mas o melhor é não arriscar...

Sai de novo na rua e vi uma barata! Incrível, como ela é estranha, marrom, com duas antenas e asas peludas. Mamãe diz que as baratas herdarão a terra! Não sei o que significa, mas deve ser chato ser barata. Se bem que elas voam... Eu gostaria de voar! Ia sair pelo buraco e conhecer tudo o que havia em volta, e trazia uma montanha de coisas boas para nós! Mas eu não sei voar: sei apenas sacudir o meu rabinho...

Quando nos deitamos, entrou uma borboleta. A coisa mais linda do mundo! Ela veio da rua, batendo suas asas coloridas, tão bonita que cheguei a ficar sem respirar para não espantá-la! Nunca tinha visto algo tão perfeito nesse mundo. O Thor quis pegá-la, mas não deixei. Imagine se ele morde a pobrezinha e ela não pode mais voar... O mundo ia ficar mais triste e feio sem uma borboleta, você não acha?

Mamãe comentou que a natureza é linda, mas existem coisas nesse mundo muito perigosas, e que não devíamos sair por enquanto, por sermos filhotes ainda.

Meus irmãos foram mamar enquanto eu resolvi espiar a rua, mais um pouquinho. Olhei pelo buraco e vi uma porção de humanos correndo de um lado para outro. Voltei para minha mãe e lhe perguntei o que estava acontecendo.

Hoje é dia de eleições. - Ela explicou.

- O que são eleições? - Perguntou Hug.

É a forma dos humanos escolherem o líder da matilha. - Explicou mamãe.

Ué, mas eles não escolhem como nós, o mais forte, o mais corajoso, o mais independente, o mais esperto? - Indagou Thor

- Não, eles escrevem o nome num papel, jogam numa caixa e daí que tiver mais vezes o nome escrito, ganha. - Disse mamãe.

Coisa esquisita... É tão mais simples morder o pescoço e ver quem se abaixa primeiro! - Resmungou Thor.

- Eles são complicados, mesmo, meu filho. - Suspirou mamãe. - E acham que temos de entender tudo o que querem. Se eles soubessem como é difícil, para nós, entendê-los, talvez... - Talvez o quê, mamãe? - Perguntei, temendo a resposta.

Nada, meu amor, nada. - Mamãe fechou os olhos, fingindo dormir. Mais uma vez ela evitava falar no assunto que tanto lhe magoava. Quem teria judiado de minha mãe? Quem seria capaz de fazer algum mal para uma criaturinha tão doce, meiga, protetora e amorosa como minha mãe? Um dia eu saberei a resposta... Um dia...

A mamãe saiu e corremos, novamente, para ir à rua. O Hug foi pela primeira vez e ficou muito assustado! Então alguém nos olhou, gritou e corremos para dentro, com muito medo. Imagine se alguém nos rouba da nossa mãezinha! Meu estômago chegou a doer de tanto medo que fiquei...

Assim resolvemos nos comportar... O Thor nos ensinou a desatar os saquinhos de comida: tinha um num canto e ele mostrou como se abre. De repente pode ter alguma coisa gostosa ali dentro, explicou. Quer aprender? É assim: você segura com uma pata, morde o saco e puxa com os dentes até rasgar. Quando isso acontecer, você tira tudo para fora, cheira o que estiver com jeito de comida e escolhe o que for apetitoso. É só comer! Naquele que ele trouxe não havia nada nem a gente estava com fome, mas tudo bem... Valeu como experiência! Afinal, o que pudermos aprender com o Thor, vale a pena, ele é o melhor mano professor do mundo!

 

                     Aniversário

Hoje completamos sessenta dias de vida! A mamãe trouxe um pedaço de carne e dividiu entre nós, para comemorarmos nosso aniversário. Eu fiquei muito feliz, mas depois fiquei triste por uma coisa... A mamãe disse:

Vocês estão crescendo e, qualquer dia desses, terão que partir...

- Partir? - Perguntei. - Partir para onde, mamãe?

- Não sei... Apenas irão embora morar com seus novos donos... - Explicou.

- Eu não quero ir! - Choramingou Fro, tapando os olhinhos com a pata.

- Nem eu! - Completei, triste.

- Onde é que a gente vai? - Indagou Thor, curioso.

- Não sei, queridos... Não há como saber. O que posso garantir é que terão novos donos, pois o homem que trás comida deve estar providenciando isso. Quem sabe, um de vocês fica com ele... Parece um bom sujeito, apesar de humano... - Tornou mamãe.

- Os humanos são ruins? - Perguntou Hug.

- Alguns... Uns quantos, para dizer a verdade. - Confessou mamãe. - Não podemos confiar neles, nunca! Eles são capazes de nos abandonar quando ficamos doentes e mais precisamos de sua ajuda.

- Eu não vou morar com nenhum humano! - Garantiu Thor, furioso.

- Não diga isso, meu filho! - Retrucou mamãe. - Existem alguns bons, e sem eles não conseguiríamos sobreviver... Os bons nos protegem dos maus... Esse sujeito que traz comida deve ser bom, pois não somos dele e ele se preocupa em nos alimentar. Devemos ser gratos. Façam festa quando ele vem, abanem o rabo, esfreguem-se. Mostrem que estão agradecidos...

- Não confio em humanos. - Resmungou Thor, torcendo a bochecha.

- Não confiar é certo, mas devemos ter esperança de, um dia, encontrarmos o humano certo... - Tornou mamãe...

- Vamos dormir... - Gemeu Fro. - Essa conversa me deixou nervoso.

Tudo bem, filhinho. - Concordou mamãe, acariciando seu nariz. - Vamos dormir...

Dormimos e quando acordamos, mamãe nos contou que morava numa casa e era tratada com todo carinho. Ela tinha comida gostosa e roupinhas. Imagine, cachorro de roupinhas, que coisa! E disse que tinha um tal de pedigree.

O que é isso, mamãe? - Pergunte, curiosa.

É uma certidão de nascimento, onde consta o nome da mãe, do pai e a data do nascimento do filhotinho.

Se você era assim, tão bem de vida, por que nascemos aqui, nesse lugar? - Indaguei, com minha boca grande.

Mamãe fez cara de tristeza e ficou calada. Quase chorei de pena e arrependimento. Pedi desculpas e ela disse que não era caso de pedir desculpas, pois não tinha feito nada de errado, só fui curiosa e isso é sinal de inteligência.

É que as lembranças doem demais, Guria, e não quero tirar a inocência de vocês contando esse tipo de coisa.

Olhei para minha mãe e suspirei. Ela é linda, bonita mesmo, deve ter o tal pedigree, com certeza...

Brinquei o dia inteiro com meus irmãos: de pegar, morder pescoço, esconder... O Thor é mais rápido e ganha sempre! Ele é o maior, o mais bonito, também. O Fro é gordo, parece uma bolinha que ganhamos da mamãe. Ela nos ensinou a pegar a bolinha, jogava longe e mandava a gente buscar. Tudo que a mamãe ensina eu aprendo, sei que ela faz isso para nos proteger! Hoje a mamãe contou sobre a vovó. Ela era linda, segundo minha mãe. Tinha um pelo brilhante, parecia seda. E olhos de um verde tão perfeito que dava vontade de ficar olhando por horas... Ela não tinha muita paciência com os filhotes e, quando a mamãe nasceu, ela não quis dar de mamar. Então a dona dela teve que amamentar os pequenos com uma mamadeira de humanos. Que coisa! Deve ser engraçado mamar numa mamadeira de humanos, não acham? Mamãe disse que não cresceu muito por causa disso. Pobrezinha! Ela é tão boazinha conosco...

O homem veio hoje acompanhado. Trouxe com ele uma mulher que nos fez carinho bem gostoso... Eu me apaixonei por ela e pedi para Deus que, se alguém ficar comigo, seja ela, mas que leve mamãe junto, também. Eu queria poder cuidar dela o resto da vida assim como ela cuida de nós, queria mesmo...

O Thor a achou chata, disse que não queria ir com ela nem com ninguém. A mamãe não falou nada, apenas ficou nos escutando, pensativa. Perguntei-lhe se não queria nos explicar alguma coisa e ela desviou o assunto, ensinando-nos a catar pulgas. Você sabe o que são pulgas? São bichinhos que sugam o sangue dos cachorrinhos que não aprendem a mordê-las direito, foi o que a mamãe disse! Eu matei uma, juro que matei! Ouvi o barulhinho nos dentes e ecoou lá dentro, na cabeça. Chegou a arrepiar! Argsth! Para quê existem as pulgas? Mamãe disse que todo ser vivo tem uma finalidade, eu aceito isso, mas que é horrível sentir uma coisinha dessas correndo no corpo, isso é!

 

                     Outros cães

Será que os cãezinhos, quando morrem, vão para o céu? Passei o dia inteiro pensando nisso. Mamãe disse que tem tanto cãozinho doente, vagando sozinho pela rua, sendo atropelado, morrendo de fome... Será que existe um céu para todos os cachorrinhos? Puxa, tomara que sim! Os que sofrem tanto na terra bem que mereciam um lugarzinho especial no céu. Não precisa ser muito grande, basta caber numa nuvenzinha que sirva de almofada para dormir, não acha?

Disse isso para minha mãe e ela respondeu:

Existe, sim, Guria. O Céu dos cachorrinhos é lindo, cheio de ossos, guloseimas, roupinhas, caminhas gostosas e muitos, muitos donos bonzinhos que cuidam deles e os tratam com carinho e gentileza. No céu não existem donos ruins ou malvados, só bons...

Choveu o dia inteiro!

Sabe porque chove assim, mana? - Perguntou-me Hug.

Não.

È porque os cachorrinhos do céu tomam muita água e fazem xixi... - Disse ele.

Não acreditei nisso, mas pode ser até verdade. Suspirei, olhando a chuva que caía forte lá fora. O Thor comentou:

A gente pode sair na chuva, ela não mata, só molha os pêlos.

Não devem fazer isso. - Resmungou mamãe. - Vocês podem ficar doentes e não temos quem nos cuide, de verdade.

Prefiro obedecer minha mãe a fazer o que os manos dizem, é mais seguro. Resolvi espiar para fora e vi uma mulher carregando no colo uma cachorrinha engraçada, toda peluda, mas com o pêlo cortado feito nuvens. E ela não tinha rabinho, só um toco!

Por que ela não tem rabo, mamãe? - Perguntei, curiosa.

É uma poodle legítima, Guria, bem cuidada e seus donos cortam os pêlos e rabos desse jeito.

É ridículo! - Comento Thor.

E deve doer um monte ter o seu rabinho cortado... - Gemeu Fro.

É isso mesmo, mas os humanos são assim, mesmo. Cortam orelhas, rabinhos e pêlos de alguns cães. - Explicou nossa mãe.

Rabinho é para sacudir, mostrar que está com medo, alegre, atento ou furioso. Como podem fazer isso? - Indagou Fro, indignado. - Como os cachorrinhos vão demonstrar o que estão sentindo sem um rabinho para abanar?

E as orelhas, então? - Resmungou Hug. - Eles não vão escutar direito.

E depois os humanos reclamam que alguns cães mordem seus donos! - Exclamou Thor. - Não é para menos, cortando as orelhas eles não conseguem pensar direito e daí, arf! Tiram um pedaço da canela dos humanos! Por isso eu não quero um dono! - Tornou Thor, decidido. - Ninguém vai cortar meus pedacinhos!!!

Mamãe, mamãe! - Apontei, assustada. - Ali tem outra igual!

Igual? - Thor saiu do buraco, latindo, furioso. - Que bicho esquisito é esse? Não é um cachorro, porque cada cachorro é diferente um do outro!

É, sim. - Riu mamãe, puxando-o pelo rabo, para dentro. - É um cãozinho de raça.

O que é raça? - Indagou Fro.

São cachorros de linhagem pura, todos nascem iguaizinhos, com a mesma cara. - Ela explicou, paciente. - Os humanos preferem esses, porque sabem como eles serão.

Sabem, mesmo? - Duvidei, franzindo o nariz. - Será que os humanos não percebem que os cães têm alma? E, mesmo sendo iguaizinhos por fora, por dentro são diferentes?

Meus irmãos se admiraram com minha observação e mamãe sorriu, concordando.

Prefiro ser assim: diferente! A mamãe teve quatro filhos e nenhum é igual ao outro. O Fro é gordo e tem pêlo alto; Hug é magro e tem pêlo duro; Thor é grandão, tem pêlo baixinho e nariz enorme; eu sou colorida e tenho pêlo alto.

Imagine, sair na rua e encontrar uma porção de seres iguais a você. Que coisa horrível! Tomara que não exista outra Guria igual. Quero ser a única e que joguem o molde fora. Assim, se alguém me adotar, vai ter uma cachorrinha diferente de todas demais. Por isso é legal adotar um vira-lata, porque assim os donos nunca vão encontrar outro cachorro igual ao seu. Legal, não?

 

                     Manos Queridos

Ganhamos leite com remédio e tomamos injeção. O homem que vem aqui, trouxe um leite com gosto muito esquisito.

Não vou tomar! - Resmunguei. - Tem um gosto ruim!

Todos devem tomar. - Disse mamãe. - É leite com vermífugo.

O que é vermífugo? - Perguntou Hug.

É um remédio para tirar os vermes da barriga. - Explicou mamãe.

O que são vermes? - Indagou Fro, com cara de nojo.

São uns bichinhos bem pequeninos que nascem com a gente ou pegamos de lamber o chão. O homem é bonzinho e já trouxe o remédio. Assim, ninguém vai ficar com bichinhos na barriga. - Suspirou mamãe, paciente.

E que mal têm alguns bichinhos? - Perguntou Thor, com ar de pouco caso.

A barriga incha e você pode morrer, pois eles comem tudo o que entra na sua boca, não deixando nem um pouquinho para seu organismo. - Insistiu mamãe.

Aceitamos tomar o leite, mas depois, o homem trouxe uma injeção!

Você já tomou injeção? Ele veio com uma mulher e um monte de tubinhos: um para cada de nós e dois para mamãe. Tadinha dela. Eles nos seguraram e fincaram aquela coisa na perna. Gritei um monte e mamãe censurou:

Cala a boca, Guria! Não faça vexame!

Não é fiasco, mamãe. Dói, mesmo! - Retruquei.

É uma vacina para não ficarmos doentes e não dói tanto assim. - Reclamou, mordendo meu focinho.

Dói, sim. Acho que nunca mais vou andar... - Resmunguei, chorosa.

Ia doer mais ter que tomar uma porção de injeções para curar as doenças. - Disse mamãe.

Que mana fiasquenta. - Riu Thor, ao tomar a vacina. - Não doeu nada.

Depois eles foram embora e me encolhi num canto, magoada. Quem sabe o quanto dói é quem sente a dor, oras. Que mano exibido e bobo, pensei.

Passamos o resto do dia dormindo. O Fro reclamou que estava com dor de barriga e eu senti um pouco de dor na perna. Ficamos quietos, juntos, abraçados na nossa mãezinha.

        Acordei com o homem ao nosso lado, junto com outra mulher. Ela nos examinou quatro e pegou o Fro no colo, fazendo cafuné. Mamãe latiu um pouco, mas depois parou, sentando-se longe de nós. O mano choramingou e ela o levou embora. Mamãe ficou parada e com olhar de tristeza, comentou:

Ele arrumou uma dona.

Não deixa levarem ele, mamãe! - Latiu Thor, correndo até a rua. - Não deixa levarem o nosso maninho embora!

Não reclame, Thor. - Suspirou mamãe. - Prefiro que vocês tenham dono, sim. - Afirmou mamãe, puxando-o para dentro. - É muito mais seguro. Um bom dono é a melhor coisa que pode acontecer na vida de um cão!

Percebi um ar de preocupação nela, mas resolvi não interferir. Sabíamos que estava tão infeliz e desesperada quanto nós, mas procurava não demonstrar.

Ninguém mais comentou nada e fomos nos deitar, abraçados, pensando no que poderia acontecer no dia seguinte e quem de nós seria levado para longe. Meu coração ficou apertado, pois sentia uma saudade imensa do mano Fro, com seu corpo quentinho e gordo, seu nariz marrom e olhinhos de tristeza. Sabia, entretanto, que mamãe estava sofrendo ainda mais e talvez todos nós fossemos levados para longe, sem que ela pudesse ou quisesse fazer algo para impedir. Mas quem cuidaria dela quando fossemos embora?

        No dia seguinte um homem estranho veio nos olhar e acho que gostou do Thor, pois o pegou no colo. Porém o mano o mordeu e o homem foi embora. Mamãe não comentou nada, apenas suspirou e saiu para passear.

        Enquanto estava fora o homem retornou com seu filhote e levaram meu irmãozinho Hug junto. Nunca mais esquecerei o olhar de tristeza do pequenino quando o vi pela última vez! Eu e o Thor tentamos impedir, mordendo suas pernas, mas eles nos empurraram com os pés e saíram apressados, sem olhar para trás.

Mamãe voltou com um osso e ficou desesperada quando não encontrou o Hug.

Quem o levou? - Perguntou, cheirando tudo.

Aquele homem que esteve aqui, antes, com seu filhote. - Disse Thor, olhando para rua. - Eu detesto os humanos!

Não diga isso, meu filho. - Brigou mamãe. - Alguns humanos são bons...

Eles levaram seu filho sem deixar, sequer, que você se despedisse dele. - Reclamou Thor. - Não são bons, de forma alguma!

No fundo, concordei com Thor, mas resolvi não comentar nada para não magoar minha mãe. Também não acreditava eu houvessem humanos bons no mundo!

 

                     Solidão

        Levaram o mano Thor embora: foi muito triste. Ele esperneou, mordeu, mas mesmo assim, o levaram. Fiquei chorando num canto, de tristeza e solidão.

É melhor para eles, Guria. - Consolou-me mamãe, com tristeza. - Não terão que procurar comida nem vagar pelas ruas.

Foi quando lembrei:

E eu, mamãe? Será que alguém vem para me levar? Se não, o que será de mim?

Mamãe deu um longo suspiro e disse:

Não sei se vais ter um dono, filhinha, porque os humanos preferem os machos às fêmeas.

E como vai ser? Vamos ficar juntas para sempre? - Perguntei, alegre.

Não, meu amor, existe um sério risco de nos perdermos... - Murmurou mamãe, esfregando seu nariz no meu. - O mundo é muito grande e imprevistos acontecem.

O que vou fazer? - Choraminguei.

Vou lhe ensinar a viver nas ruas, se defendendo e sobrevivendo no mundo dos humanos. - Deu uma lambida na minha orelha e explicou: - Em primeiro lugar, vou lhe ensinar o que tive de aprender sozinha. Vamos lá fora.

Acompanhei minha mãe e, pela primeira vez na vida, percebi realmente o quão terrível era a cidade onde nasci. Caminhamos um pouco, desviando daqueles pés apressados que sequer percebiam nossa presença. Olhava para todos os lados e tudo me parecia estranho e amedrontador. Paramos em frente a um beco. Mamãe disse:

Os melhores lugares para encontrar alimentos são os saquinhos que estão por aí, junto às portas, árvores, grades e lixeiras. Para escolher o melhor, cheire e pense no que lembra. Se for comida, abocanhe o saquinho e rasgue, tomando cuidado para não machucar a boa com latas e vidros quebrados. Abra e coma tudo o que quiser e puder. Mas prepare-se para correr caso os humanos vejam. Eles não entendem que os animaizinhos sem dono precisam comer!

Abri um saquinho e encontrei um pouco de arroz. Não comi porque estava triste, mesmo assim mamãe elogiou e disse que eu era muito inteligente e aprendia facilmente as lições. Agradeci e continuei seguindo-a.

Paramos numa rua onde escorria água na calçada. Ela observou:

Parece incrível, mas é bem mais difícil encontrar água do que comida. Normalmente, conseguimos quando chove, a água se acumula em tudo: calçadas, cercas e plantas. É só beber. Mas cuidado para não cair em bueiros e bocas de lobo, que são esses buracos (mostrou-me um entre a rua e a calçada) porque podemos ficar presas ou feridas. As cidades dos humanos são enormes armadilhas para os animais!

E se não chover, mamãe? - Perguntei, preocupada.

Então tem que procurar. Faça o possível e o impossível, pois sem água, morremos. Escale portões, pule muros, desça barrancos sempre tomando cuidado para não a machucarem ou matarem. Um ferimento sem cuidados pode significar a morte. Se cortar uma patinha ou outra parte do corpo, lamba-a, pois a saliva é um potente anti-séptico, isto é, evita que os germes invadam seu corpo. - Explicou.

É tudo tão perigoso e ruim... - Gemi, olhando com tanta tristeza para minha mãe que ela se encostou em mim, murmurando:

Vamos para nosso esconderijo, minha filhinha querida!

Segui minha mãe pensando no que aconteceria se ficasse sozinha. Como conseguiria encontrar água e comida, evitar os chutes e pauladas, não ser atropelada pelas máquinas que correm de lá para cá, encontrar abrigo e sobreviver? Entramos no nosso ninho e deitei ao seu lado, no escuro. Chorei um pouquinho, com saudades de meus irmãos e por medo de um futuro tão difícil.

Por que ninguém veio me buscar, mãezinha? - Perguntei. - É só porque sou uma menina?

Guria, meu amor, você sempre foi a minha preferida: mais inteligente, esperta e tranqüila do que seus irmãos. E, para os olhos caninos, você é linda! - Colocou sua pata sobre minha cabeça, acariciando-me com o focinho. - Mas, aos olhos humanos... Você não é gorda como o Fro, não tem a mancha no olho esquerdo do Hug nem as orelhas erguidas do Thor. Eles querem aparência e não o que tem dentro. É triste, querida, mas talvez ninguém a queira adotar.

E como vou viver sem dono? - Chorei, infeliz. - Você promete que vai ficar sempre comigo?

Vou tentar, meu amor. - Prometeu mamãe, porém senti que havia algo de muito errado quando ela desviou seu olhar do meu.

Encolhi-me e, pela primeira vez, não quis ficar junto da minha mãe. No fundo, senti que deveria aprender a ser sozinha, porque o futuro me reservava apenas a solidão...

 

                     O Mundo

Mamãe mandou que eu saísse sozinha. Queria que me acostumasse a viver sem ninguém, pois nunca podemos saber o que pode acontecer a uma cachorrinha sem dono. Meu coração disparou, mas aceitei, porque sabia que, no fundo, ela tinha razão.

Foi uma experiência assustadora. Caminhei muito, pisaram no meu rabinho e quando fui pegar um saquinho com cheiro de comida um homem ruim saiu atrás de mim com um enorme pedaço de pau. Tive de correr e me esconder para ele não me machucar. Voltei para nosso esconderijo chorando e mamãe me consolou, dizendo que as coisas vão melhorar. Mas não acredito nela. Não, mesmo. Não depois que meus maninhos foram embora e eu fiquei.

Ela me deu um pedaço de carne e depois mamei. Fiquei pensando como estavam meus irmãos, se tinham bastante comida, água, carinhos e cuidados como mamãe disse ou estavam sofrendo como previa meu valente irmão Thor. Sabia que, de qualquer forma, eles estavam protegidos e eu, infelizmente, não estava. Chorei mais um pouco e lembrei do gato Miau, magro e sem dono. Será que meu destino seria igual ao dele?

Depois de um soninho, mamãe me levou a passear, novamente, desta vez contra minha vontade. Caminhamos um pouco e ela me ensinou a atravessar a rua.

Para passar, siga os humanos. - Explicou, mostrando que algumas pessoas pararam perto de nós.

Eles conseguem perceber melhor as cores e ver se dá para ir ao outro lado em segurança.

Fizemos como ela ensinou e atravessamos a rua entre os pés daqueles seres que pareciam nos ignorar, totalmente. Chegamos num lugar lindo, cheiro de cães e seus donos.

O que é isso, mãezinha?

É uma praça. - Explicou. - Aqui estamos mais seguras, pois pensarão que temos dono.

Você já teve uma dona. Como era, mamãe?

Eu tenho raça. Existem muitas outras iguais a mim, em lugares distantes. Mas aqui eu sou quase única. - Contou-me. - Tenho pedigree e tudo o mais. Morava num apartamento bonito e tinha tudo o que podemos querer: comida, uma poltrona só para mim, almofadas, brinquedos e remédios quando estava doente.

E o que aconteceu? - Perguntei-lhe.

Um dia saí para passear nessa praça e conheci o seu pai. Ele era muiiiito lindo e nos apaixonamos na hora! Era a criatura mais meiga, carinhosa, bonita, inteligente e companheira que Deus colocou no mundo! Tinha olhos cor de mel, um focinho grande e bem torneado, nariz de bolinha, orelhas perfeitas capazes de ouvir sons distantes... Era, realmente, lindo! Nunca teve dono, nunca ninguém mandou nele, nunca precisou de ninguém para viver! - Lambeu minha carinha, com amor. - Acho que você saiu a ele, é inteligente e esperta o suficiente para sobreviver bem no mundo dos humanos. - Afirmou mamãe, orgulhosa.

Tentei acreditar no que ela dizia e acalmar meu coração assustado. Se papai era assim, provavelmente, o mais parecido com ele era o mano Thor, destemido e forte. E não eu, uma cadelinha pequena e medrosa.  

E o que aconteceu depois, mamãe? - Indaguei, tentando disfarçar minha preocupação.

Fugimos e fomos viver juntos. - Disse, com ar de felicidade.

Puxa, você foi corajosa! - Afirmei.

O amor nos faz valentes. - Disse mamãe. - Deitamos na grama. O Cheiro da relva entrou no meu nariz e me fez espirrar. - Só espero que você não pague a conta desse amor, Guria.

Ah, isso! - Olhei para o céu e fiquei pensando como podiam existir coisas tristes num mundo tão bonito quanto o nosso. Uma borboleta colorida quase pousou no meu nariz e uma porção de lindas nuvens brancas desfilava no céu azul. Estava tudo tão perfeito, em paz. Fechei os olhos e estava quase dormindo quando ouvi mamãe latir:

É a minha dona! A minha dona! Ela nos achou!!!

Mamãe correu ao encontro de uma mulher alta, tão alta que parecia alcançar o céu com sua cabeça. Mamãe saltou no seu colo e lambeu-a, sacudindo o rabo com alegria. A dona abraçou-a forte e a carregou para dentro de um carro que estava estacionado na rua. Tentei ir junto, mas um homem disse algo com raiva e me empurrou com o pé, sem ouvir os protestos de mamãe, que se debatendo contra o vidro, tentava explicar:

É minha filhinha! Minha bebezinha! Minha filhinha! Minha cachorrinha amada!!!

O carro saiu e fique ali, sozinha e assustada, ganindo de dor no meio daquele lugar bonito e cheio de humanos com seus preciosos cães de raça e estimação. Nunca me senti tão mal e tão pequena. Como poderia sobreviver nesse mundo injusto e cheio de humanos? Onde estariam meus irmãos e minha amada mamãezinha? O que vai acontecer comigo agora, que sou apenas uma pobre cadelinha sozinha e sem dono?

Quando o medo começou a aumentar, sai dali, com o rabinho no meio das pernas, tremendo tanto que mal conseguia andar.

Percorri muitas ruas, vi muitas pessoas estranhas e ameaçadoras, cheirei todos os lugares e coisas que achei pelo caminho, mas não consegui encontrar o lugar onde dormia com minha mãe e meus irmãos.

Ao anoitecer, escondi-me debaixo de uma coisa grandona que mamãe disse ser um viaduto. Encontrei um lugarzinho escuro e tentei dormir. Tentei e não consegui. Meu corpo tremia muito, meu coração batia tão alto que mais parecia um tambor, meu rabinho ficou tão encolhido que a ponta encostava-se ao meu queixo! Não achei nada para comer, mas não tive fome, apenas medo. Tenho medo de tudo, de ficar sozinha para sempre, ser machucada, sentir fome, frio, sede. Penso o tempo inteiro em como era boa a vida ao lado da mamãe e dos meus irmãos: Thor, Hug e Fro. Onde estão agora? São felizes? Estão bem? Pensam em mim, também?

 

                     Fome e sede

Assim que o dia amanheceu, saí para caminhar. Comecei a sentir fome e uma coceira danada nas costas. Por algumas horas tive de me esconder para dormir, novamente, pois havia humanos por toda parte. Penso muito na mamãe e nos maninhos e espero que pensem um pouquinho em mim, também.

Encontrei aqueles saquinhos de comida, você sabe... Os humanos largaram um monte deles onde eu estava. Abri alguns e tinha uns cheiros gostosos e sabores melhores ainda. Hum, estava uma delícia! Depois veio o caminhão e levou o que sobrou embora. Que pena! Mas, ao menos, enchi minha barriguinha!

Saí dali tão feliz que machuquei minha patinha. Eu ia atravessar a rua seguindo os humanos, como mamãe explicou, aí veio um menino e me chutou. Como estava com a barriguinha cheia, tropecei e um carro bateu em mim. Ele nem parou para ver como eu estava! Comecei a ganir e corri para um lugar escondido. E agora, o que faço? Não posso caminhar direito, minha patinha dói e estou com muita sede! Por que não existem humanos bons que ajudem os cachorrinhos machucados? Você sabe?

Fechei os olhos e pedi que chovesse, porque mamãe tinha explicado que havia cãezinhos no céu e eu sabia que eles me ajudariam, se pudessem... Chorei, pedindo um pouquinho de água para não morrer de sede e daí...

Puxa, foi uma chuva daquelas! Tomei bastante água até encher a barriguinha. Mas depois fiquei com frio, pois mamãe não estava junto para me aquecer... Encolhi-me o máximo que pude e rezei novamente pedindo para não chover mais. Acho que os cãezinhos do céu ouviram, novamente, pois parou logo de chover.

O medo começou a passar, acho que é porque estou me acostumando com a solidão. Gostaria que tudo fosse diferente, que alguém gostasse de mim, me desse uma casinha, alimento e proteção. Mas, nem sempre as coisas são como se quer, infelizmente...

Ergui-me com dificuldade quando a chuva passou e comecei a andar com minha patinha erguida por causa da dor. Olhei para minhas costas e vi que começou a aparecer um pouco de pele, pois alguns pêlos haviam caído. A coceira estava insuportável, mas eu não conseguia coçar por causa da minha patinha machucada. Uma vez a mamãe falou sobre uma doença simples que impossibilitava a adoção: a sarna. Nossos pêlos caíam, ficávamos feios e isso enojava os humanos! Comecei a gemer, apavorada. Se estava com essa doença, tudo ia ficar ainda pior. Sabia que os humanos agridem os cães de rua que estão doentes e que não sentem pena deles. E, se conseguirem pegá-los é para matar, sacrificar, como dizem.

Uma aflição invadiu minha alma e fez meu coração acelerar. O pânico começou a travar minhas pernas e não consegui mais caminhar. Encolhi-me junto a uma parede e esperei a morte, porque não estava disposta a sofrer ainda mais. Sentia muita falta de minha família, a solidão era muito grande e tinha medo de não encontrar água e alimento no dia seguinte. Fechei os olhos e fiquei onde estava.

Algum tempo se passou até que eu me animasse novamente e começasse a andar. Fui em frente, acreditando no que mamãe sempre diz: um dia, as coisas melhoram. Não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe. Mamãe sempre estava certa e devia estar certa nisso, também!

 

                     Adaptação

Com o tempo, fui me adaptando ao mundo. Comecei a cuidar mais por onde andava, a evitar os humanos e seus pés, a esconder-me de dia e procurar comida de noite. Caminhava toda a madrugada e, assim que o dia nascia, me escondia em algum lugar para dormir.

Um dia, quase fui adotada. Mas quase não é de verdade, não é?

Estava procurando água e comida quando dois filhotes de humanos me viram. Eles vieram em minha direção, sorrindo, movendo o corpo em sinal de amizade. Passaram a mão no meu lombo e me pegaram no colo. Meu coração bateu tão feliz! Jurei que tinha sido adotada.

Mas não fui.

Eles me levaram até sua casa, felizes. Mas, quando os humanos adultos me viram, me arrancaram do colo dos filhotes gritando alguma coisa que não entendi, mas que devia ser muito ruim, pois os pequenos começaram a tremer e chorar. O maior deles me atirou no meio da rua e quase fui atropelada. Os pequeninos continuaram a chorar e foram arrastados para dentro pela mulher que, furiosa, bateu a porta da casa. Fiz xixi de tanto medo.

Que droga! Nunca vou conseguir um dono, de verdade! Fiquei triste e brava ao mesmo tempo, com vontade de morder todos os humanos! Por que eles têm que ser tão cruéis, você sabe?

Saí dali chorando e fui me esconder, novamente. Estava com dor, fome, frio e exausta, de verdade. Sei que não devo reclamar, mas acho que não serei capaz de suportar muito tempo essa situação difícil. Gostaria que mamãe e meus irmãozinhos estivessem aqui para me consolar...

A coceira nas costas aumentou muito. E meus pêlos estão caindo, de verdade. Já está ficando feio, e sei que agora será impossível achar alguém que me queira. Cocei tanto que cheguei a machucar minha barriga e saiu sangue...

Encontrei um amigo. Não apenas um, mas dois: o Bob e o Pablo. Eles não são cachorros: são gatos! Lembrei-me do meu amigo Miau e quando os vi, aproximei-me.

O que essa cachorra quer? - Perguntou Bob, arrepiando seus pêlos.

Deixe-a em paz, deve estar com fome. - Disse Pablo, miando. - Quer comer alguma coisa, cachorrinha?

Quero... - Murmurei, encolhendo meu rabinho.

Temos um pouco de alimento cheiroso. - Tornou Pablo, apontando uma lata enorme.

Como vou alcançar lá dentro? - Perguntei.

Cachorra boba! - Resmungou Bob, pulando na lata e trazendo um saquinho de comida. Abriu e colocou na minha frente. - É só pegar, ora!

Obrigada. - Murmurei e comecei a comer, sacudindo o rabinho.

Quer beber algo? - Tornou Pablo.

Quero.

Ele mostrou m potinho com água e os dois ficaram me observando enquanto comia. Quando terminei, agradeci e Bob indagou:

Onde está sua família?

Não sei... - Gemi. - Os humanos levaram todos.

E por que não levaram você? - Insistiu.

Pare de perguntar besteiras! - Miou Pablo, irritado. - Não a levaram pelo mesmo motivo que não levaram você ou eu: não quiseram! Os humanos são muito tolos...

E cruéis! - Disse Bob, lambendo a pata. - Por isso eu prefiro viver nas ruas...

Mas é tão perigoso... - Disse-lhes.

Para os cães, talvez. - Explicou Pablo. - Para nós, gatos, que somos mais independentes, é mais fácil. Mesmo assim, seria muito melhor se eles cuidassem de nós.

Não sei, não. - Resmungou Bob.

Não ligue para ele, cachorrinha. É só um gato bobalhão! - Brincou Pablo, ronronando.

Passei algumas horas com eles, mas assim que o dia nasceu, cada um seguiu seu caminho. Como é bom fazer novos amigos, você não acha?

 

                     Recanto da Felicidade

Depois de algumas semanas vivendo nas ruas, descobri que os humanos odeiam os animaizinhos doentes. Pelo menos, pareceu que era assim. O meu pêlo caiu quase todo e comecei a ficar com muito frio, depois que o inverno chegou. Comecei a tossir e quando um humano me encontrava, ele fugia de mim ou jogava pedras. Foi horrível. Tentei resistir, mas um dia, depois de uma grande chuva e vento, desisti. Encolhi-me num cantinho e pedi que os cãezinhos do céu viessem me buscar. Fechei os olhos e esperei.

Não sei quanto tempo passei assim, acho que foram horas. O sol começou a queimar minha pele, mas fui incapaz de mover-me, tal era o medo e a febre que sentia. Quando começou a anoitecer e pensei que ia morrer, senti alguém tocar minha cabeça e uma voz suave dizer:

Cachorrinha! Totózinha!

Abri os olhos lentamente e vi uma menina linda sorrindo para mim. Achei que fosse um anjo humano como mamãe havia contado existirem (ela havia visto uma foto na casa de sua dona) e gemi, satisfeita por ter ido para o céu.

Ela me pegou no colo, encostou meu corpo no seu, fez cafuné no meu focinho e começou a cantar, baixinho, enquanto me levava consigo. Andou um montão me carregando no colo, dizendo coisas que não entendi, mas que percebi serem boas, fazendo carinho e me abraçando com muito cuidado.

Chegamos numa casa pequena, mas com uma porção de cães. Soube disso rapidamente, porque todos latiram festejando sua chegada. Ela me colocou em cima de uma cadeira, examinou-me e fez um curativo em minha patinha, colocou remédio nas minhas costas e a coceira passou, quase que imediatamente.

Depois me deitou numa caixinha com paninhos quentes e me deu ração e água. Conversou mais um pouco e foi fazendo carinho, até que adormeci.

Quando acordei havia outros humanos ao meu lado e todos estavam sorridentes, me olhando com bondade. Senti que, finalmente, havia descoberto que havia pessoas boas capazes de amar e proteger uma cachorrinha doente, faminta e abandonada. Todos me faziam carinho e, por alguns dias, fiquei naquele cantinho, dormindo e comendo até me sentir totalmente curada.

Quando isso aconteceu, ela me pegou no colo e fomos até o pátio, onde chamou todos os cães e disse:

Matilha, esta é a nova moradora do Recanto da Felicidade e seu nome é Guria!

Quase desmaiei de susto quando percebi que sabia meu nome. Como teria adivinhado? Seria mesmo uma anjinha capaz de ler os pensamentos dos cães?

Largou-me no chão e os cães foram se aproximando, um a um, supervisionados por seu olhar protetor. O primeiro a chegar era grande, imenso. Cheirou-me e disse:

Seja bem-vinda ao Recanto da Felicidade, Guria. Eu sou o líder da matilha e me chamo Grandão.

Obrigada. - Agradeci, tímida.

Depois veio uma cadela preta, com pêlo muito brilhante e latiu:

Eu sou a fêmea dominante da matilha e me chamo Didi. Se você me obedecer, seja bem-vinda!

Vou obedecer, sim! - Prometi, assustada.

Em seguida veio uma cachorra sem rabo que murmurou:

Seja bem-vinda, Guria. Aqui é o melhor lugar que existe para um cão viver! Meu nome é Biduca.

Eles cortaram seu rabinho? - Perguntei, assustada, encolhendo o meu.

Não, lógico que não! - Retrucou Biduca, indignada. - Eles são bons e nunca fariam uma maldade dessas com ninguém! Eu nasci assim, sem rabinho.

Ah, que bom... - Murmurei, relaxando.

E assim todos se apresentaram: eram mais de vinte cães e gatos. Quando a menina se afastou, perguntei:

Quem é ela? Como sabia meu nome? É um anjo? Aqui é o céu dos cachorrinhos?

Não! - Riu uma pequenina, chamada de Florzinha. - Aqui é o lar de uma Protetora dos Animais.

E o que é isso? - Indaguei, curiosa.

É um lugar muito bonito e agradável de viver. Eles pegam os animais que estão feridos, abandonados e famintos e os trazem para cá. Dão comida, carinho e remédio e encontram donos para alguns. Outros vão morar aqui para sempre, pois não existem muitos humanos bonzinhos que adotam animais adultos abandonados. Tomara que você tenha tanta sorte como eu e nunca seja adotada! Eu adoro morar aqui! - Riu a cachorrinha, feliz.

Como ela leu meus pensamentos? - Insisti.

Não é assim que funciona: ela não lê os pensamentos. - Disse Toby, um cãozinho marrom com problemas no coração. - Eles têm sensibilidade e sabem o que se passa conosco. Conseguem sentir nossa dor e procuram nos ajudar da melhor forma possível. Enfrentam os outros humanos que não gostam de animais só para nos proteger e lutam para conseguir nos salvar!

Ela é linda, não acha? - Perguntou Pompom, um cãozinho branco e peludinho.

É, sim, muito linda. - Interviu Tom-tom, um gato cinza com ronronar macio.

E toda a família também é! - Disse Sininho, uma cadelinha cinza com orelhas caídas.

Puxa, então é verdade que existem humanos bons! - Exclamei, satisfeita.

É verdade, Guria. Explicou Dolly, uma cachorrinha gorda. - Os humanos sabem ser bons, também. E esses humanos têm outros amigos humanos bonzinhos, também.

Venha brincar conosco! - Convidou Mimoso, um cachorrinho simpático.

Brincamos de correr, pegar e morder pescoço, da mesma forma como fazia com meus irmãos. Só que éramos muitos mais, uma montanha de cãezinhos se divertindo e contando coisas boas. Na hora da refeição ficamos todos juntos e dividimos os pratos, exceto o Grandão e a Didi, que comiam sozinhos.

Você sabe o que houve com sua família? - Indagou Biduca, deitada ao meu lado tomando sol depois do almoço.

Os humanos os levaram... - Murmurei. - E com a sua?

Morreram de fome. - Suspirou a pequena, com tristeza. - Só eu sobrevivi e graças à Protetora.

Que coisa! - Olhei-a e indaguei: - Sua mamãe não sabia encontrar os pacotinhos?

Nossa mamãe morreu quando nascemos. - Explicou, olhando para o chão.

Acreditava que a história mais triste do mundo era a minha, mas agora, percebi que não era bem assim. Havia histórias piores, como a do Toby, cujos donos o jogaram fora só porque estava doente ou da Branca Leone, uma cadela branca como a neve, que foi operada e largada na rua sem cuidados... Fiquei triste por todos e, ao mesmo tempo, feliz porque havíamos sido resgatados por uma família maravilhosa que se preocupava com o bem-estar dos animais.

Vou contar uma história para meus filhinhos, Guria, disse uma cachorra de nome Bela que era mãe de alguns dos moradores. - Você quer ouvir?

Claro que sim! - Agradeci, sacudindo meu rabinho.

Bem, é sobre porquê os cães cavam buracos... - Começou ela.

Cavam por que, mamãe? - Perguntou Florzinha, deitando-se ao seu lado.

Era uma vez, há muito tempo atrás, uma cachorrinha chamada Esperta. Ela tinha esse nome porque, acreditem, podia entender TUDO o que os humanos falam! Esperta podia saber quando seu dono estava feliz, porque estava chorando, o que estava sentindo. Só não podia falar... Um dia, ela ouviu o dono falar que do outro lado do mundo havia um povo chamado chinês. E que esse povo costumava comer cachorrinhos na refeição! Tão horrorizada ficou a Esperta, que resolveu fazer um buraco bem fundo para libertar algum cãozinho que, porventura, viesse a ser devorado por seus donos naquele lugar. A cachorrinha cavou, cavou, cavou por horas, dias, meses a fio e não conseguiu encontrar o outro lado do mundo, ficou muito cansada e exausta. Porém, teve uma idéia brilhante: se os chineses comiam cachorrinhos, é porque eles passavam fome! Então ela pegou seu osso mais bonito e jogou no buraco, na esperança de que algum chinês encontrasse. E pediu a todos os cães que conhecia que fizessem o mesmo! Hoje em dia, por tradição e piedade, todo cachorro enterra seu melhor osso na esperança de tirar a fome de algum chinês e salvar a vida de um cão!

Puxa, que bonito! - Comentei, sorridente.

Conta outra! - Pediu Pompom.

Não, meus queridos. - Disse Bela, lambendo a orelha do pequeno. - Agora vocês vão dormir um pouco para crescerem bonitos e saudáveis!

Bons sonhos... - Disse Florzinha, fechando seus lindos olhos castanhos.

Obedientes, os cãezinhos obedeceram. Fiquei ali, deitada, admirando aquela família unida e feliz que teve a sorte de ser resgatada. Tive um pouquinho de ciúmes porque fui separada de meus irmãos e, provavelmente, nunca mais os verei. Mas não tenho do que reclamar, estou morando num lugar lindo, tenho donos que me amam e protegem e muitos, muitos cãezinhos para brincar. Espero que meus maninhos tenham a mesma sorte que eu e, se não tiverem bons donos, encontrem um humano bonzinho que os adote, mesmo se estiverem doentes ou velhos.

E você, Guriazinha, descanse e sinta-se em casa porque aqui, você só tem duas obrigações na vida: ser feliz e proteger nossos Protetores.

Como posso protegê-los? - Perguntei, assombrada.

Existem muitos humanos malvados que costumam entrar nas casas e roubar as coisas de nossos donos. Às vezes, até machucam eles. Existia nessa casa um cachorro chamado Faro e ele deu a vida por nossos Protetores. - Contou-me Bela.

Como foi isso?

Um ladrão pulou o muro e ameaçou o Protetor com uma arma. Faro saltou no braço dele e o revólver disparou, atingindo o valente cachorro que morreu na hora. Por isso eles se tornaram protetores de animais, de tão agradecidos que ficaram. - Suspirou. - Faro é o pai de meus filhotes...

Puxa, como ele era corajoso! - Exclamei e lembrei-me do meu irmão Thor, que era tão valente quanto o Faro.

Eu sei. E, graças a ele, inúmeros cãezinhos receberam abrigo nessa casa. - Contou Bela, orgulhosa.

Seus filhos devem se orgulhar do pai que tiveram. - Disse-lhe e ela confessou sentir muita saudade dele.

 

        Nesse momento chegaram a Protetora com seu marido e filhotes, rindo. O menino me pegou no colo, abraçou-me e chamou-me para brincar com eles. Sou tão feliz que, às vezes, fico pensando que estou no céu e os anjinhos moram comigo. Mas não é assim, eu sei. Estou numa casa com pessoas que me amam e se interessam, de verdade, pelos animais.

        Se você quiser saber como é bom ter um grande e fiel amigo, adote um cãozinho abandonado como fez essa família. Existem inúmeros animais sem dono, que passam fome, sede e frio sem terem ninguém para cuidar deles e de quem eles possam cuidar, de verdade.

        E, se vir algum cãozinho andando por aí, sem dono, por favor, ajude-o! Ele pode ser um de meus irmãozinhos! Se você o adotar, prometo que terá o melhor e maior amigo, eternamente grato e agradecido que existe no mundo! Faça uma coisa boa e mostre que é um humano bonzinho: adote um cãozinho abandonado!

 

                                                                                Mairy Sarmanho  

 

                      

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