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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SEM TEMPO PARA CHORAR - P.2 / Cynthía Freeman
SEM TEMPO PARA CHORAR - P.2 / Cynthía Freeman

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

                              Capítulo vinte e um

A Liga das Nações daria aos ingleses o mandato de proteção da Palestina, e, pela primeira vez, o yishuv sentiu que se achava nas mãos de um amigo. Tinham lutado junto com os ingleses, tinham morrido com os ingleses; e agora seriam recompensados por eles. O sonho era continuar a reconstrução de suas vidas, em paz.

 

O grande sonho durou pouco. Sob o governo dos ingleses, os judeus ficaram sujeitos praticamente às mesmas restrições que haviam sofrido sob o governo dos turcos. Não eram os senhores cruéis que os turcos tinham sido, mas as restrições eram quase tão severas quanto antes. Na verdade, parecia que os ingleses favoreciam os árabes e fechavam os olhos para seus ataques aos judeus. Pior do que isso. Os judeus ainda não tinham permissão para portar armas; os árabes sim.

 

O mufti, Haj Amin el-Hussein, fora nomeado governador de Jerusalém, que, em importância, só era inferior a Meca e Medina como cidade santa muçulmana. Fora nomeado sob o pretexto de impedir uma guerra religiosa, visto que, segundo ele, os judeus iriam profanar os santuários da Jerusalém antiga.

 

Mais uma vez, os judeus estavam em perigo.

 

 

 

 

Quando Moishe chegou a casa, uma noite, após ser espancado numa emboscada dos árabes, Chavala decidiu-se. Dessa vez ela não ia ser retida.

 

— Dovid, já esperamos muito, muito mesmo. A guerra acabou. Lembre-se de que temos aquelas jóias. Está na hora, Dovid. Vamos para a América. Este é um país de bárbaros; não vou mais viver aqui. Não há mais razão para isso. Você já fez o seu sacrifício... Todos nós fizemos..

 

— Depois de tudo por que passamos, Chavala... pense bem... você pode mesmo abandonar o sonho de Eretz Yisroel, pelo qual todos nós fizemos sacrifício?

 

— Posso. Dovid, o que faremos aqui? Viver no kibutz? Zichron Yaakov não existe mais para mim. Ainda ouço as lamentações, os gritos. Aqui cheira a morte. Para onde iremos?

 

— Posso conseguir um emprego na Agência de Sião; a necessidade de trabalhar por nosso povo é ainda maior...

 

— A necessidade estará aqui durante mil anos, com ou sem a nossa presença. Não posso mais entregar minha vida a um sonho sem esperança. Não. E você também não deve fazer isso. Vamos para a América, onde poderemos viver como seres humanos, com nossa família.

 

Dovid ficou sentado, com o rosto nas mãos. Tinha chegado a hora, e não haveria adiamento. Mas devia haver uma razão para eles terem sobrevivido. E, no seu íntimo, ele sabia. como sempre soubera. que não podia abandonar aquela terra. Mas como poderia ficar sem Chavala? Ela também era sua vida.

 

Chavala olhou para ele; sabia que ele estava lutando consigo mesmo. Finalmente, ela disse com calma:

 

— Dovid, fizemos isso à sua maneira. Pelo menos me dê uma chance. Tente, Dovid. para o bem de todos nós.

 

— O que eu faria na América?

 

— Não sei, mas pelo menos vamos tentar. Ele olhou para a mulher.

 

— Chavala, eu disse isso na cadeia e tenho dito desde que conheci você. Eu amo você. Você é minha mulher. Quero que passemos o resto de nossa vida juntos. Mas não posso viver com você, se não posso viver comigo mesmo. Eu tenho que ficar. Diga-me, Chavala, o que é certo?

 

— Eu quisera saber, Dovid. Amo você também; você sabe disso. mas não posso ficar aqui. Se eu ficasse, em pouco tempo seria uma mulher que você não desejaria como esposa. Talvez estejamos, os dois, correndo atrás de sonhos que nunca poderão realizarse... Talvez o sonho que tenho agora não seja o que quero. Somente o tempo dirá. Mas devemos ter a chance de descobrir isso.

 

Moishe falou com franqueza.

 

— Sou da mesma opinião que Chavala, Dovid. Já falamos sobre isso. Quero ir com ela. Sinto muito..

 

Dovid suspirou, assentindo. Por um momento, ficou pensando se podia tomar a decisão de partir; mas, no fundo, sabia que suas diferenças acabariam separando-os.

 

Nada mais restava a dizer.

 

— Quando você vai partir?

 

— O mais breve possível; é a melhor maneira. — respondeu ela, aproximando-se dele e abraçando-o. — Atravessamos o inferno juntos, você e eu, mas este é o pior momento. Eu amo você, Dovid, com todo o meu coração, com toda a minha alma. Espero que o que vamos fazer justifique de alguma maneira aquilo a que estamos renunciando.

 

Dvora, Raizel e os maridos tinham ido desejar uma boa viagem a Chavala, Moishe, Reuven e Chia. Cada um deles pensava se se tornariam a ver. A América e Eretz Yisroel estavam tão afastados! As irmãs choravam; depois afastaram-se, deixando Chavala e Dovid a sós.

 

Chavala agarrou-se a Dovid e ele agarrou-se a ela.

 

— Eu escrevo — disse ela. Depois forçou um sorriso. — E, por favor, não tenha medo de mudar de opinião. E, se precisar de mim, Dovid, eu voltarei.

 

Se ele precisasse dela? ”Eu preciso de você agora, Chavala. Agora.”

 

Por um momento, ela pensou em mudar de idéia; pensou em dizer: ”Meu lugar é ao seu lado, Dovid. Estou disposta a esquecer o que quero, aquilo que acredito ser o melhor para nossa família. Você é meu marido”.

 

Mas nesse momento ouviram a chamada para o embarque.

 

Olharam um para o outro e beijaram-se; depois ela se voltou e subiu o passadiço para juntar-se a Moishe, Chia e Reuven. Ficou parada junto à amurada, observando Dovid lá embaixo. Ele olhava para ela. Não desviavam o olhar um do outro.

 

O navio começou a afastar-se, cada vez mais. até que Chavala, seu filho amado, Chia e Moishe finalmente perderam-se de vista. Perderam-se?

 

Dovid voltou-se e afastou-se rapidamente.

 

                                           Capítulo vinte e dois

No dia em que Chavala chegou com a família, Nova York estava sofrendo a pior de suas nevascas em dez anos.

 

Ela estava totalmente despreparada. Enquanto permaneciam parados, congelando em suas roupas leves, Chavala recordou o passado. Se ela havia sobrevivido aos invernos da Rússia, aos pogroms, à brutalidade da guerra, então eles conseguiriam sobreviver a isso. A menos que morressem congelados antes.

 

Rapidamente, reuniu as crianças e, com neve até os tornozelos, foram andando pela Delancey Street, até que encontraram um restaurante. Batendo os dentes de frio, sentaram-se à mesa.

 

Chia e Reuven não conseguiam parar de tremer. Nunca tinham sentido um frio tão penetrante.

 

A sra. Neusbaum perguntou em iídiche:

 

— O o que vocês vão querer?

 

Reuven olhou para a mãe. Ele nunca tinha ouvido aquela língua estranha.

 

— O que foi que ela disse? — perguntou ele em hebraico.

 

— Ela quer saber o que vamos comer — respondeu Chavala. Era um mundo estranho e assustador. Não era nada do que sua mãe lhe havia dito. Ele estava ainda mais confuso e contrariado do que no dia em que deixara o pai em pé no molhe de Jaffa. Olhou em torno, para os salames e para os balcões de vidro cheios de pedaços de carne salgada, salmão defumado, barris de arenques e potes de picles. Em cima do balcão estavam amontoados pães de centeio e outros. De repente sua fome passou.

 

— Não quero comer nada.

 

Chavala compreendeu muito bem o que o estava incomodando. Afinal, aquele país não era a Palestina. Não era sua casa... Tudo era tão diferente para ele! Por mais que ela tentasse explicar as razões pelas quais havia deixado seu pai, nada o satisfazia. Mas, afinal, ele ainda era pequeno; um dia entenderia que somente ali ela conseguiria manter suas vidas. Ali eles poderiam viver. O que sabia uma criança a respeito de construir um futuro livre da fome e da pobreza... e da morte? Um dia ele compreenderia... Ela esperava que sim.

 

— Não? — perguntou a gorducha sra. Neusbaum. Chavala voltou-se para os outros:

 

—vou fazer o pedido; vocês vão gostar — disse, em hebraico. E para a sra. Neusbaum, em iídiche: — Vamos querer jantar.

 

— Sopa de cevada ou talharim?

 

Reuven observava os lábios da mulher gorda mexerem-se.

 

— Talharim e frango assado.

 

— Para a entrada, peixe ou fígado picado?

 

— Fígado. Está bom para você, Moishe?

 

— Só se for como o que mamãe costumava fazer — respondeu ele, sorrindo.

 

Reuven estava chocado por ver que o tio também sabia falar aquela língua esquisita. Ficou sentado, meio desajeitado, observando o pequeno prato de fígado picado de shmaltz de frango, cheirando a conserva e tomate verde.

 

Provou uma colherada de sopa e deixou-a esfriar.

 

Chavala notou, mas não disse nada. Ele nem sequer provou o frango, o kugel ou o tztmmes que estavam na travessa. Bem, ele se acostumaria com tudo o mais. Novos começos, sempre o mais difícil. Mas por um momento, ela recordou seu próprio descontentamento na Galiléia; resolveu deixar de lado as comparações. Parecia que o passado nunca deixava ninguém sossegar.

 

— Desde que. desde que você e eu éramos crianças, nunca mais provei uma refeição tão boa assim — disse Moishe, em hebraico.

 

— Está gostando, Chia?

 

— Está bom; eu só queria que a gente pudesse se aquecer. Tudo o que Reuven ouviu Chia dizer era que gostava da comida. Nesse momento, ele não gostava muito dela. Se ela queria dar à mãe a impressão de que estava contente com tudo, então não teria um aliado. Ele sabia que, se Chia e ele não se unissem, seus protestos solitários nunca conseguiriam fazer imã voltar para a Palestina. Sim.. ele estava muito aborrecido com Chia, para não mencionar a mãe e o tio.

 

Quando terminaram a refeição, Chavala disse à sra. Neusbaum:

 

— Acabamos de chegar; talvez a senhora possa indicar-nos um lugar onde ficar.

 

Reuven sentia-se como se estivesse numa ilha, ouvindo a conversa da mãe com a mulher gorda.

 

— De onde vocês são? — perguntou a sra. Neusbaum, limpando a mão no avental branco.

 

— Da Palestina.

 

A mulher suspirou.

 

— Quando deixamos a Rússia, era para lá que eu queria ir... para Eretz Yisroel, mas meu marido não quis; por isso, estamos aqui na Goldeneh Medina. A groisse glick.

 

”A vida é estranha”, pensou Chavala. Exatamente o oposto de Dovid e dela. Só que a sra. Neusbaum não havia deixado o marido. - ah, já bastava de sentimento de culpa..

 

— Vocês não perderam muita coisa. Aqui é melhor — disse, como se estivesse em condições de opinar. Mas Chavala recordava os ecos dos ruídos aterrorizadores que vinham dos espancamentos turcos... o medo terrível.

 

— Agora me diga. Onde há um lugar para a gente se hospedar?

 

— A sra. Zuckerman tem uma pensão a três quarteirões daqui.

 

— Bem, vou anotar o endereço — disse Chavala. — É muita gentileza, sra...

 

— Neusbaum.

 

— Foi um prazer conhecê-la, sra. Neusbaum. Obrigada mais uma vez.

 

— Não há de quê. Escute, eu também já estive na mesma situação.

 

Chavala sorriu; depois disse à família:

 

— Vocês esperem aqui. Vou dar uma olhada.

 

Embora a sra. Neusbaum não soubesse falar hebraico, conhecia a Bíblia o suficiente para entender alguma coisa.

 

— É um lugarzinho asseado. Pode confiar em mim.

 

— Tenho certeza disso, mas a senhora sabe se ela tem um quarto desocupado?

 

— Ela dará um jeito.

 

— Então vamos — disse Chavala, dirigindo-se aos outros; e à sra. Neusbaum: — Quanto lhe devo?

 

A mulher fez a conta nos dedos, dando um desconto de dez por cento. Enquanto Chavala apanhava o dinheiro, olhou para Reuven. Ele ainda não tinha comido coisa alguma.

 

— Talvez eu deva comprar mais alguma coisinha para comer mais tarde. Quero quatro strudels e uma dúzia de salgadinhos — disse Chavala.

 

— Shalom — despediu-se, depois de receber o pedido.

 

”É uma palavra que tem um belo som”, pensou a sra. Neusbaum.

 

— Shalom para a senhora também, e volte...

 

A sra. Zuckerman só dispunha de um quarto, no sobrado. Era frio, e a neve entrava pelo beiral do telhado, onde as telhas tinham sido afastadas pelo vento. Mas Chavala achou que, por uma noite, eles suportariam aquilo.

 

Chavala perguntou à sra. Zuckerman se ela, por acaso, tinha um aquecedor. Não. A sra. Zuckerman disse que sentia muito, mas não tinha.

 

— Está bem. Talvez a senhora possa ceder-nos alguns cobertores extras.

 

— Isso eu tenho.

 

— Obrigada. E se tiver uns jornais velhos, podem servir para tapar os buracos por onde está entrando a neve.

 

Claro. Ela possuía muitos exemplares velhos do Forward em iídiche.

 

Moishe tirou do porão mais duas camas pequenas e um caixote de laranjas, em que subiu para tapar o buraco do teto.

 

Agora Chavala estava pronta para avaliar os acontecimentos do dia. Tinha sido um começo e tanto! Todos se despiram debaixo dos cobertores e vestiram os pijamas.

 

Moishe adormeceu logo, e Chia também; mas Chavala ficou acordada no escuro, procurando ouvir a respiração tranqüila de Reuven. Mas o que ela ouvia era a mastigação de salgadinhos e strudels. Sorriu. Ele não tinha comido de propósito; e agora estava com aquela fome toda. Moishe também, agindo como uma criança por alguma razão, não tinha comido, e ela procurou recordar alguma coisa. O que teria dito ou feito que parecera tão importante naquele momento? Não conseguia recordar; mas as crianças, ela sabia, castigavam as mães recusando-se a comer. pelo menos enquanto o estômago não reclamasse. Ouviu a mastigação novamente e quase deu uma risada. Se Reuven soubesse que ela havia deixado o embrulho ao seu lado de propósito, com certeza não tocaria nele.

 

A sra. Zuckerman e a sra. Neusbaum eram o apoio de Chavala na América.

 

A América, a Bela, não era bem a utopia que Chavala havia imaginado. O que encontrou foi um apartamento de três cômodos no quinto andar de um velho prédio de aluguel na Ludlow Street. A pintura estava descascada e corroída pelos vinte anos de uso. O reboco tinha caído do teto e deixara expostas as ripas. O linóleo estava remendado em uns dez lugares diferentes e com umas dez cores diferentes, em contraste com o belo mosaico. Os quartos eram escuros e davam para um prédio velho vizinho. Do beco, lá embaixo, chegava o cheiro do lixo que transbordava das latas. A pia estava desgastada, e o banheiro comum ficava no fundo do saguão.

 

No entanto, eles já tinham morado em lugares piores do que esse. Certamente não era pior do que a choupana de Jerusalém. Ela não se queixava. Não era preciso ter muita visão para saber o que Moishe, Chia e Reuven pensavam, ao olhar em torno. Chavala

Foi da cozinha escura para os quartos igualmente escuros, inspecionando sua mansão.

— Quando fizermos alguns reparos, ela ficará muito boa — disse Chavala de cabeça erguida e com a voz cheia de convicção.

 

— Nem mesmo Deus conseguiria fazê-la ficar boa — disse Moishe, fazendo uma careta.

 

— Deus não é pintor. Amanhã esse será nosso trabalho. Você verá, quando eu fizer cortinas e. — ia dizendo, mas interrompeu-se de repente, ao lembrar-se de que não tinha máquina de costura: — Não se preocupe; eu farei isso ficar bom — concluiu-, mas a quem estava tentando convencer? A si própria?

 

— Por que temos de ficar neste lugar, imã? — perguntou Reuven, quase chorando.

 

Naturalmente ele queria a casinha que eles tinham em Zichron, com os panos nas paredes, pensou Chavala.

 

— É porque, no momento, não podemos ter uma melhor. com o tempo, Reuven.. Com o tempo.

 

Moishe concordava com Reuven:

 

— Chavala, vamos dar uma busca por aí; talvez possamos encontrar um lugar melhor, por alguns dólares a mais..

 

— Eu disse que não posso, Moishe — disse Chavala demonstrando um pouco de irritação na voz. Ele a estava contestando, dando um mau exemplo a Reuven, e ela não estava gostando. Isso prejudicava o moral da família.

 

—- O que você quer dizer com ”não posso”?

 

Ela nunca devia ter falado a Moishe sobre o saquinho de jóias. Não que ela não confiasse nele. Afinal, ele era seu irmão; mas gastar era uma tentação, e era preciso resistir.

 

— Nem quero que você mencione isso novamente. Esqueça que temos essas jóias. São a única segurança que temos. Agora vamos comer.

 

Mas, no dia seguinte, com a porta do quarto fechada, Chavala apanhou os pequenos brilhantes, colocou-os cuidadosamente na bolsa e saiu de casa.

 

Encontrou três joalheiros na Mott Street. Antes de vender as jóias, pediu aos três que as avaliassem, e percebeu que cada um deu um preço diferente. Depois de vendê-las ao que lhe havia oferecido a quantia maior, ela foi embora com a sensação de que talvez ele a tivesse enganado. Mas o que sabia ela de brilhantes? Bem. quando eles estivessem mais acomodados, procuraria verificar isso.

 

Com o dinheiro das jóias, comprou a mobília na loja de móveis usados de Grossman. Comprou tinta, pincéis, um esfregão, um balde, roupa-branca, panelas, pratos. todo o essencial para se arrumar uma casa.

 

Antes, porém, comprou roupas de inverno para todos e encheu a despensa. Uma pessoa precisava de três coisas. Um teto sobre a cabeça, alimento no estômago e roupa para vestir.

 

Quando o apartamento já estava pintado e mobiliado, ela ficou muito orgulhosa. Moishe, porém, não partilhava de seu entusiasmo.

 

— É tão escuro. como morar em Jerusalém...

 

— Não, não é como morar em Jerusalém. Não estamos cercados por um muro de pedras; também não precisamos nos preocupar com o perigo de os árabes nos matarem.

 

— Continua sendo um gueto, Chavala, sem muros.

 

— Você quer morar em um lugar melhor? Arranje um emprego bem remunerado e viverá melhor.

 

— Arranjei um emprego.

 

— Mazel tov. para fazer o quê?

 

— Entrega de roupas para um alfaiate.

 

— Então, dentro de pouco tempo, você poderá mudar-se para um bairro residencial.

 

— com as jóias, poderíamos iniciar um pequeno negócio..

 

— Ah. Eu sei. Você está preocupado com isso desde que lhe contei. Mas, Moishe, meu irmão, a gente tem de se arrastar antes de poder caminhar. Quando chegar a hora, é isso que faremos. Não estou casada com este apartamento. Posso mudar-me a qualquer hora. Agora, se você não se importa, preciso escrever uma carta a Dovid.

 

                                   ”Querido Dovid,

Que lhe posso dizer? Que estou feliz sem você? Não. Eu sinto sua falta do mesmo modo que sentia quando você me mandou para Jerusalém. Se você pudesse ver como é bonito este país. E as oportunidades são enormes! Dovid, meu bem, venha fazer-nos uma visita, por favor. Reuven sente muito sua falta. Moishe arranjou um emprego muito bom, e eu encontrarei alguma coisa que fazer dentro de poucos dias. Só espero que você compreenda como a vida seria melhor, se estivéssemos juntos aqui. Quer, pelo menos, tentar vir para ver por si mesmo? Espero que esteja bem e dou graças a Deus por saber que há gente da família com você. Seria demais pedir que eles também viessem para cá. Pelo menos, cuide-se e saiba que amo você.

                           Chavala”

 

Durante o dia, Dovid encontrava pouco tempo para pensar em sua vida. Eram as noites, as longas noites, que o oprimiam com a solidão.. Ele conhecia as razões pelas quais Chavala tinha ido para a América; conhecia-as de cor; isso, porém, não lhe facilitava a vida. Acima de tudo, ele a amava, mas, no fundo, não podia perdoá-la. O que Chavala não tinha compreendido era que Dvora e Raizel estavam felizes ali. E já possuía o que desejava com exceção dela e trabalhar por uma terra que os judeus não podiam chamar de sua. Chavala parecia não compreender que a qualidade de vida não era construída em cima de dólares. E o que parecia compreender ainda menos era que, acontecesse o que acontecesse, uma mulher devia ficar com o marido. Ela havia casado com ele, sabendo o que ele queria. bem, isso era justo? Ele tinha casado com ela sabendo que seus sonhos estavam voltados para a América. Tinham se enganado a respeito um do outro. ou se subestimado mutuamente. Ela havia esperado que ele cedesse, e ele. para ser honesto. tinha esperado que ela desistisse de sua idéia da América e que passasse a fazer parte do sonho dele. Mas quando ele recordava aqueles dias tranqüilos passados em Zichron, antes da guerra, teria apostado sua alma que ela nunca partiria. Se não fosse a maldita guerra, teriam ficado juntos...

 

Pensava nisso várias vezes... A guerra tinha vindo, e nada podia alterar esse fato. Ter na mão a carta de Chavala fazia seus olhos se encherem de lágrimas. Era tão cheia de bravatas! Não era preciso ler nas entrelinhas. Curvar-se a ele teria significado infelicidade para ela. Chavala sempre detestara a Palestina. E se a detestava antes, teria o mesmo sentimento sob o governo britânico. Mas ele esperava que algum dia ela voltasse. Esta terra seria deles. Enquanto isso, a espera... conseguiriam sobreviver à espera?...

 

Dovid ficou sentado com a carta na mão, durante muito tempo. Chavala não tinha culpa. O problema era que ele simplesmente não podia deixar de amar a Palestina. acontecesse o que acontecesse,.. Nem as dificuldades passadas nem as presentes podiam forçálo a deixar essa terra. E sua vida ali estava mudando. Tinha deixado a agricultura para voltar-se para a política. Oficialmente. Agora estava envolvido com a Agência de Sião. Seu sonho era sua vida. Fazia votos de que, algum dia, seu sonho fosse o de Chavala também.

 

O clima de Nova York era imprevisível como a natureza humana. Um dia nevava, o outro era belo como a primavera. Naquele dia, o tempo estava bom. Infelizmente, o belo tempo de primavera não deixava Chavala radiante de alegria. Uma semana antes, comprara casacos de inverno e galochas para toda a família, e agora fazia calor demais. Novamente vendeu uma jóia; dessa vez foi uma esmeralda, era mais valiosa do que o brilhante. Bem, ela iria descobrir, de uma vez por todas, o valor do conteúdo da bolsa de marroquim vermelho. Mas cada coisa a seu tempo.

 

Após comprar roupa apropriada para Chia e Reuven, matriculou-os na escola.

 

E seu dia começou para valer. com um brilhante, um rubi e uma esmeralda bem seguros numa bolsa de moedas, prendeu a bolsa de couro na combinação e dirigiu-se para o setor das jóias. E, a cada passo, sentia uma aceleração inexplicável no coração... como se estivesse andando não por uma questão de momento, mas pelo começo de seu futuro...

 

                                        Capítulo vinte e três

Ela seguiu a Bowery e depois a Canal Street. De um modo geral, os negócios ali eram feitos por atacado. A venda de jóias a varejo era feita pelos goyim.

 

Sem saber disso, Chavala entrou na primeira grande loja a que chegou. Cuidadosamente, tirou as pedras e entregou-as ao joalheiro; observou com atenção, enquanto ele apanhava a lupa e as examinava. Quando ele lhe deu um preço, ela agradeceu e saiu. Não ia aceitar a palavra dele, mesmo sendo um yarmulke o que ele tinha na cabeça. Ele se parecia um pouco com o joalheiro de Odessa.

 

Após consultar seis joalheiros um tanto impacientes, Chavala compreendeu que não era tão rica como pensava. Entretanto, quando tocava a bolsa ainda presa à sua combinação, animava-se. Pelo menos as jóias valiam alguma coisa; eles não passariam fome. Rapidamente, afastou os pensamentos perturbadores, subiu uma rua movimentada e desceu outra.

 

Cansada, levantou a vista para o prédio diante do qual estava e viu o nome do joalheiro varejista. Sem nenhuma razão especial, seus olhos detiveram-se por um momento na placa em que se lia ”Leibowitz: Wholesale & Manufacturing”.

 

Entrou e olhou a lista de nomes afixada à parede. Apertou o botão e esperou que o velho elevador descesse. Quando ele chegou, parando com uma certa insegurança, ela entrou e apertou o número 4.

 

Quando a porta se abriu e ela saiu, não percebeu que o piso não estava no mesmo nível; e, ao atravessar o limiar, torceu o tornozelo. Por um breve momento, a dor fê-la apoiar-se na parede. Seria isso um presságio das coisas que viriam? Rapidamente censurou a si própria, procurando esquecer esses pensamentos supersticiosos.

 

Mancando, mas procurando não forçar o pé esquerdo, percorreu o vestíbulo até chegar em frente à porta de número 422. Respirando fundo, abriu a porta e entrou. Viu cinco mulheres fazendo colares de contas e, atrás de um compartimento de vidro, mais quatro homens barbados, de yarmulkes, examinando pedras preciosas com lupas. Do fundo chegava um ruído de lapidação e barulho de água; mas a única conclusão que podia tirar era que aquilo tinha algo a ver com a fabricação de jóias.

 

O sr. Leibowitz olhou através do vidro que demarcava seu escritório e viu Chavala. Levantando-se de sua mesa, dirigiu-se a ela e parou atrás de um mostruário.

 

— Pois não, minha senhora; em que posso servi-la?

 

Chavala sorriu de modo cativante, pelo menos assim esperava. para o homem de olhos simpáticos e cabelo alvo, que contrastava com o yarmulke preto. Ele estava ligeiramente encurvado pelos anos, de tanto ficar inclinado sobre a banca de trabalho.

 

— Meu nome é Chavala Landau.

 

— Ótimo, e eu sou Leibowitz. Bem, que posso fazer pela senhora?

 

— Será que eu poderia falar com o senhor?

 

— Sobre o quê?

 

— Tenciono ser joalheira.

 

— A senhora conhece este ramo?

 

— Não.

 

Ele sacudiu a cabeça e riu.

 

— Minha senhora, para ser joalheira, a senhora terá que aprender o ofício, e isso leva muito tempo. E, depois, mesmo que a senhora pense que sabe alguma coisa, descobrirá que não sabe tanto.

 

Apesar da delicadeza do homem, Chavala compreendeu que não ia conseguir um emprego, a menos que ela lhe falasse em particular e com calma.

 

— Sr. Leibowitz, eu agradeceria muito se o senhor me concedesse alguns minutos de seu tempo.

 

O velho olhou para a jovem com mais atenção. Aquela voz suave mas resoluta, o olhar direto. Ela era mais do que atraente. Havia nela algo que o sr. Leibowitz achava intrigante.

 

— Venha ao meu escritório.

 

Limpou a cadeira com o lenço. Chavala sentou-se diante dele.

 

Quando ela começou a falar, ele compreendeu logo por que ficara tão atraído por ela. Desejava-lhe longa vida, mas ela o fazia lembrar sua filha que havia morrido de poliomielite cinco anos antes. A lembrança ainda era tão dolorosa como se isso tivesse acontecido no dia anterior. Ficou calado por um momento, enquanto seu olhar se perdia; depois engoliu em seco.

 

— Diga-me, Chavala Landau. De onde é você?

 

— Da Palestina.

 

Palestina. Que judeu não tinha sonhado com Eretz Yisroel? - pensou.

 

— Você nasceu lá?

 

— Não. na Rússia. numa pequena aldeia perto de Odessa.

 

Ele balançou a cabeça, enquanto seus pensamentos recuavam no tempo. Minsk. Polônia. Odessa, tanto fazia, para um judeu, nenhum lugar era bom. Mas era mais fácil ser judeu em Nova York. Pelo menos se podia andar na rua. Ninguém derrubava sua porta no meio da noite para matá-lo ou prendê-lo ou arrancar-lhe os olhos e o cabelo. Não havia vergonha em ser judeu.

 

— Como foi que você se fixou em Eretz Yisroel?

 

— Meu pai, que sua alma descanse em paz, queria viver e morrer lá.

 

— Ah, sim. Por quanto tempo viveu em Eretz Yisroel? Chavala pensou no corpo enterrado debaixo da cerejeira.

 

— Deixamos a Rússia em 1906. Faz poucas semanas que cheguei aqui.

 

Lembrando-se do dinheiro que ele tinha enviado através de sua organização, ele suspirou.

 

— Estava lá durante a guerra. Foi duro, não?

 

Agora ela se lembrou de Jerusalém. Quase podia sentir a dor da fome. ver a mendicância nas ruas e os cadáveres diante da porta de Jaffa, esperando remoção.

 

— A guerra não é fácil, sr. Leibowitz. Foi duro...

 

Não, a guerra era fácil. A ironia dos acontecimentos, pensou ele... Tinha fugido da velha pátria para não servir ao exército durante vinte e cinco anos, o que era a pena para quem nascia judeu, e seu filho, americano nato, voltara da guerra sem as pernas..

 

— Como estavam as coisas quando você deixou Eretz Yisroel?

 

— Não muito melhores do que quando estava sob controle turco. Os ingleses são quase iguais aos turcos; apenas parecem um pouco mais civilizados.

 

Ele assentiu.

 

— E agora você está aqui. O que é que seu marido faz?

 

”O que o marido fazia? Ele era muito infeliz por ter tido a desventura de casar com a mulher errada. Uma mulher que não ficara ao seu lado”, pensou ela.

 

— Meu marido ainda mora na Palestina. em Tel Aviv. Trabalha para a Agência de Sião.

 

A tristeza não passou despercebida a ele. Em seus olhos, Chavala não via censura alguma.

 

— Quer dizer que você está sozinha aqui?

 

— Não. Meu irmão e uma irmã vieram comigo, e eu tenho um filhinho.

 

— Desculpe a pergunta, porque não é da minha conta. e, se não quiser, não é obrigada a responder. mas por que razão deixou seu marido?

 

Uma pergunta muito boa. uma pergunta à qual Chavala não sabia, se alguma vez soubera, se poderia responder..

 

— Sr. Leibowitz, assumi a responsabilidade por minha família quando tinha dezesseis anos de idade — lembrou-se da noite em que Chia nascera. — Compreendi, então, que minha vida não pertencia somente a mim. Tenho três irmãs que precisam de ajuda, e um irmão. Não permitirei que eles vivam na pobreza. E para isso é preciso dinheiro. E há sobrinhos para serem criados. Talvez o senhor queira saber por que eu quero entrar no comércio de jóias. Bem, sr. Leibowitz, um pequeno par de brincos de brilhante de minha mãe pôde comprar um pouco de segurança para nós. Pelo menos livrou-nos dos pogroms — disse ela, enquanto apalpava a bolsa que tinha consigo. — E algumas pedrinhas preciosas compraram nossa passagem para a América.

 

Ela quase matara um beduíno, não pelas pedras, mas talvez aquilo fosse um sinal de Deus. dando a ela a chance de viver melhor... Voltou a concentrar-se na primeira pergunta do sr. Leibowitz.

 

— Amo muito meu marido, e ele me ama, mas não podemos tornar-nos um único ser só porque somos marido e mulher. Eu quero segurança para minha família, e ele tem amor pela terra... sua terra. Nossas necessidades e nossos sonhos são tão diferentes que não conseguimos conciliá-los.

 

O sr. Leibowitz sacudiu a cabeça; duas pessoas com um filho não conseguiram encontrar um caminho a seguir? Ele ouviu o que ela acabava de lhe contar...

 

— Por quanto tempo marido e mulher podem viver separados? — perguntou ele, com simpatia.

 

— O tempo que for preciso.

 

— Isso pode significar anos...

 

— Quantos homens vieram embora da velha pátria, deixando para trás mulheres e filhos? Acho que se pode dizer que isso não faz muita diferença; há apenas uma inversão. Parece estranho porque eu sou mulher. Se eu fosse viúva, que Deus me livre, ninguém perguntaria. Mas nesta vida, sr. Leibowitz, somos chamados a fazer certos sacrifícios, e não acho o meu. ou o de Dovid. mais trágico do que o de qualquer outra pessoa. É... é o tipo de sacrifício.

 

O sr. Leibowitz puxou o lenço, suspendeu os óculos de armação de arame, enxugou os olhos e assoou o nariz. Por um momento, ficou sentado, com seus próprios pensamentos.

 

E Chavala com os seus também. Ali estava ela... falando de sua vida particular para um estranho que ela encontrara apenas alguns minutos antes. Estranho, a menos que realmente houvesse um destino dirigindo os pobres seres humanos. afinal, seria apenas acaso o fato de ela ter olhado para a placa dele? E que ela tivesse sido atraída para esse lugar?

 

— Bem, Chavala, você disse que queria ser joalheira. Você parece uma jovem excelente; vou ser muito honesto com você. Algumas pessoas enriquecem muito neste ramo de negócios, mas a maioria apenas ganha a vida. Você não é uma joalheira e..

 

— Mas pode-se aprender.

 

— De fato. Uma pessoa pode aprender a vender sapatos, mas o joalheiro nasce joalheiro. Isso é passado de pai para filho.

 

— Não vou discutir com o senhor — o destino parecia estar abandonando-a —, mas aprenderei de qualquer maneira.

 

A coragem e a resolução de Chavala impressionaram o sr. Leibowitz.

 

— Não sei por quê, mas tenho um pressentimento em relação a você — disse ele, olhando para o relógio da parede. Era hora do almoço. — Os auxiliares estão almoçando agora, mas logo depois vou apresentá-la a Yetta Korn; ela é a chefe de uma das seções de confecção de colares. Você começará por aí.

 

Chavala não podia acreditar. O destino mais a sua obstinação... estava de volta.

 

— Obrigada, sr. Leibowitz.

 

— De nada — disse ele, tirando o lanche de um saco de papel pardo, e acrescentou: — Aqui está; você vai partilhar de um pouco de carne defumada e refrigerante comigo.

 

Chavala ficou tão comovida que se esqueceu de perguntar-lhe qual seria seu salário.

 

Mais tarde, ela estava sentada ao lado de Yetta Korn, com uma bandeja de pérolas, observando-a separar os tamanhos e cores com uma pinça.

 

Alguns dias depois, Chavala estava enfiando as pérolas como se tivesse feito isso toda a sua vida. Os anos de costura e bordados intricados tinham dado habilidade a seus dedos. E seus olhos e ouvidos observaram tudo. Ela ouvia o sr. Leibowitz conversar com os joalheiros, quando estes vinham fazer compras. Fazia-lhe mil e uma perguntas. Enquanto as outras almoçavam, ela continuava a trabalhar, para poder almoçar mais tarde, quando os homens do fundo moldavam as fôrmas de cera.

 

Um dia o sr. Leibowitz disse, com um sorriso:

 

— Chavala, você está querendo que eu lhe ensine em uma semana o que levei uma vida para aprender.

 

Ela respondeu ao sorriso.

 

— Não. mais rápido. Não posso esperar uma semana.

 

Na opinião de Chavala, Chia e Reuven tinham se ajustado a seu novo ambiente com rapidez. Mas não era bem assim. Ela estava tão ocupada em aprender e trabalhar, que lhe passou dês percebido o problema de Reuven

 

Quanto a Chia, tinha tanta vontade de ser professora, como havia dito a Aaron certa vez, que até freqüentava aulas noturnas. Passava todos os momentos livres estudando. Isso não acontecia com Reuven. Ele detestava a escola, não entendia a língua e fazia pouco ou nenhum esforço para aprender. A única vez que ele se sentiu bem foi quando visitou a yeshtva, não porque fosse muito religioso mas simplesmente porque gostava muito do som do hebraico, o som do seu país

 

Esse dia fora especialmente ruim para ele. Quando ia para casa, os outros meninos implicaram com sua roupa

 

— Ele não é bonito? Olhe que roupa engraçada

 

Embora ele não entendesse a língua, compreendeu que eles o estavam xingando

 

— Ei, olhe os sapatos dele

 

— Calouro

 

— Como é que um hebreu diz ”fodeu”

 

— Ah, Hymie, você é poeta e não sabe Rimou hebreu, fodeu — disse um menino chamado Jake Goldstem

 

Os outros dois meninos deram risada, enquanto Reuven ficou parado, cercado pelos outros

 

— Vamos tirar a calça dele pra ver se o peru dele é igual ao nosso

 

De repente, Reuven estava na calçada com a calça baixada. Debatia se, dando pontapés, e acabou chutando o rosto de um dos meninos O outro pé foi parar entre as pernas de outro garoto, que se curvou de dor Mas seus adversários o superavam em número. Ele recebia golpe após golpe, e teria caído inconsciente, se não fosse Goldfarb, o alfaiate, que veio correndo com uma vassoura na mão, gritando em ídiche

 

— Saiam, seus moleques, seus bandidos. Vocês todos vão para a cadeia, vocês vão ver

 

Os meninos correram, não tanto por causa de Goldfarb, mas porque Jake estava encolhido de dor pelo chute que levara nas virilhas, e Hymie estava com o nariz sangrando

 

O sr Goldfarb ajudou Reuven a levantar-se

 

— Venha, você pode se lavar em minha alfaiataria — disse ele em ídiche

 

Mas Reuven ficou parado, vacilante, dizendo em hebraico

 

— Eu não entendo, mas, obrigado.

 

Quando Chia chegou a casa e não encontrou Reuven, foi para a cobertura, onde ela pensava que ele deveria estar. Reuven estava junto ao parapeito, olhando para a cidade.

 

Chia só lhe viu as pernas. Os lençóis, que tremulavam à brisa, cobriam o resto de seu corpo.

 

— Reuven — chamou ela. Ele ficou um momento calado.

 

— O quê? — respondeu, arrancando os lençóis da corda e ficando na frente dela.

 

— O que aconteceu? —- perguntou ela, com voz ofegante.

 

— Entrei numa briga.

 

— Venha cá. Sente-se e conte-me.

 

Sentaram-se em dois caixotes vazios, e Reuven ficou chutando as pedras cravadas no chão. Um olho estava fechado, de tão inchado; no rosto havia um talho longo e profundo.

 

— Reuven, conte o que aconteceu.

 

— Já disse que entrei numa briga.

 

— Eu sei, mas o que aconteceu, por quê?

 

— Por quê? — repetiu ele, cerrando os punhos, enquanto os músculos do seu rosto se contraíam. — Porque imã quer que a gente more num lugar civilizado. Eu odeio isto aqui, Chia. Eu não a perdôo por ter trazido a gente para cá, e deixado abba.

 

— Não fale assim de mamãe. ela nos ama, você não entende?

 

— Não. Não entendo. Acho que ela é egoísta; não liga para nós, só para o que ela quer.

 

— Reuven, você está errado. Ela desistiu de sua própria felicidade, para a gente poder...

 

— Quem me perguntou se era isso o que eu queria? Assim que eu ganhar bastante dinheiro, vou embora para casa.

 

— Sua casa agora é aqui.

 

— Não, nunca. e também não é o meu país.

 

— Você só está contrariado. Vamos descer; vou preparar alguma coisa para você comer.

 

— Obrigado, não quero comer.

 

— Bem, então desça comigo enquanto eu faço a ceia por favor.

 

Chia não tinha entendido uma só palavra do que ele dissera, pensou ele. Ninguém entendia Sua solidão. ele não suportava aquilo. Não havia mais ninguém com quem pudesse compartilhar alguma coisa. só abba, que estava no fim do mundo.

 

Mas Chia tinha compreendido. Ela ia passar mais tempo com Reuven, levá-lo ao Central Park, onde ouvira dizer que havia patinação no gelo. Havia o jardim zoológico também; e nesse verão podiam ir a uma praia chamada Coney Island. Faria outras coisas com ele e tentaria despertar seu interesse por uma das quadras da colônia, onde ele aprenderia um jogo chamado basquetebol. Falaria com o irmão mais velho, Moishe, para que ele a ajudasse..

 

— Você não vai contar a imã, vai, Reuven? — perguntou Chia calmamente.

 

Naquele dia Reuven tornou-se o centro das atenções. Chavala quase desmaiou, ao ver o filho.

 

— Como foi que isso aconteceu? — perguntou, procurando manter uma calma que não sentia

 

— Jogando bola.

 

— Que tipo de jogo é esse? — perguntou, examinando-lhe o olho.

 

— É como o futebol — respondeu, afastando a mão da mãe.

 

— Vamos ao médico.

 

— Não — recusou; não era de um médico que ele precisava.

 

— Reuven, meu bem, não seja teimoso; nós vamos a.

 

— Não.

 

Levantou-se e foi para o quarto. Chavala sacudiu a cabeça.

 

— Não sei; ele parece tão zangado comigo.

 

— Isso é da idade, Chavala — disse Moishe. Naturalmente, ele também tinha notado a animosidade do menino para com Chavala.

 

Ela encolheu os ombros.

 

— Sei que crescer não é fácil para uma criança; mas não me recordo de ter visto você, nessa idade, tão. brigão.

 

— Conosco era diferente; nós não estávamos num país estranho. era mais fácil.

 

Chavala sabia, mas o que podia fazer? Em momentos assim, questionava suas maravilhosas razões para ter ido para a América. Moishe foi para a cama; apagou a luz.

 

— Reuven?

 

— O quê?

 

-— O que foi mesmo que aconteceu?

 

— Levei uma surra. Foi isso o que aconteceu mesmo.

 

— Você bateu também?

 

— Tentei, mas a gente não pode bater em cinco valentões. Imã tinha medo dos árabes. Contra eles eu tinha chance. Eu sabia quais as tocaias que devia evitar. Pelo menos eu falava a língua deles. Estou com vontade de. fugir.

 

— Escute, Reuven, ninguém pode fugir por muito tempo..

 

— O que foi que imã fez?

 

— Ela não fugiu. Veio para cá construir uma vida melhor para todos nós, inclusive para você.

 

— Ela não fez um bom trabalho.

 

— Escute. Ela abriu mão de muita coisa, deixou o marido para que a situação melhorasse para nós... Um grupo de valentões não conta. Árabes ou americanos... o que é preciso lembrar são os turcos. Como é que éramos tratados por eles? E agora pelos ingleses? Nós, judeus, derramamos sangue por eles, morremos por eles, lutamos em sua guerra e eles gostam de nós como o Diabo da cruz. Aqui o governo não é como o de lá. Aqui não há ninguém a temer. - exceto a nós mesmos. Nós tivemos de implorar para lutar por eles. Lembre-se, Reuven, eu estive naquele exército. Você devia ter visto como eles nos tratavam, mesmo em Galípoli, no meio da guerra. Não podíamos comer à mesma mesa. Ficávamos em alojamentos separados, em Londres. E, se você pensa que algum dia vamos ter um país nosso lá, está enganado. com certeza haverá uma Palestina, mas os ingleses estarão lá, como os turcos estiveram durante trezentos anos. Eles governarão nosso povo e darão armas aos árabes, fechando os olhos para o que eles fizerem. Você devia estar agradecido, Reuven, por sua mãe ter-lhe dado uma chance de ser livre, de ter alguma coisa melhor.

 

Reuven não estava escutando. Não estava interessado no sermão do tio. Ele lutaria contra os ingleses e árabes para poder ver Athlit. Para poder andar pelos parreirais e nadar nas águas de Cesaréia. Ele odiava a neve e o frio, as ruas cheias de gente tagarelando numa língua que ele não entendia. A vida ali não tinha significado para ele. Era um proscrito, um estranho. Um judeu.. que mais? Mas na Palestina, trabalharia para não ser estranho como o pai estava fazendo...

 

Sentada à mesa, enfiando pérolas, Chavala tinha muita dificuldade em se concentrar no que estava fazendo. Pensava em Reuven... Ele estava tão calado, tão distante! Não conseguia aproximar-se dele. Naturalmente, ele sentia falta de Dovid, e ela também. muita mesmo. Mas se ficasse o tempo todo com sentimentos de culpa em relação a ele, não conseguiria sustentar-se, continuar a luta. Afinal, ela era uma mulher, não um pedaço de pau. Tinha seus sentimentos. suas necessidades também.

 

Claro que freqüentemente tinha muitas dúvidas por ter deixado Dovid, mas reunia coragem bastante para deixá-las de lado. Dovid era um homem adulto, tinha uma vontade forte, estava tentando realizar o seu sonho... mas Reuven... Reuven era um menininho. Sentia-se mais responsável por ele do que por Dovid ou por si própria... A solidão era difícil para os adultos, mas para um menininho que sentia a falta do pai. A idéia de mandá-lo de volta veio-lhe à mente, mas logo procurou esquecê-la. Tinha se convencido de que era nesse país que seu filho teria a melhor chance não apenas de sobreviver, mas de não passar pelos horrores que ela e Dovid tinham sofrido. Tinha de ser forte; não podia sucumbir ao ver a infelicidade do filho; tinha que se lembrar de que algum dia ele teria a recompensa. Só que esse esforço lhe custava noites de insônia. Ela estava adoecendo. Nos últimos dias, não tinha conseguido alimentar-se direito; e nessa tarde estava sentindo tonturas. Quando deu cinco horas da tarde, ficou mais do que aliviada com o fim do dia. Tinha que ir para casa e deitar-se.

 

Na manhã seguinte, quando começou a vestir-se, foi tomada de náuseas. Sentou-se na beira da cama, até que o mal-estar passou. Santo Deus, ela estava ficando doente. Isso estava fora de cogitação; doente ela não ia.

 

Mal se sentou à mesa de trabalho, as náuseas começaram novamente, mas dessa vez não conseguiu evitar. Correu para o banheiro, segurou firme o vaso e vomitou. Estava fraca e suando quando voltou.

 

O sr. Leibowitz levantou a vista da banca de trabalho, viu-a e aproximou-se dela.

 

— Chavala, você não está se sentindo bem. Quero que consulte o dr. Felcher — disse ele, pondo o braço em torno dos ombros de Chavala.

 

— Não, estou bem agora.

 

— Acho que não. Ultimamente tenho notado que você anda pálida e com ar doentio.

 

— Tenho alguns problemas... — disse ela, pondo a mão na testa. E então desabafou: — Sr. Leibowitz, sinceramente, não sei o que fazer... por mim mesma eu não me importo. Mas quando a gente vê os filhos tão. — Conteve-se. Como era imprudente! Tinha vontade de morder a língua. Yetta Korn havia lhe falado dos filhos do sr. Leibowitz.

 

— Bem, primeiro, acho que você deve consultar o médico, para ver o que há de errado — disse ele. — Você não parece bem, Chavala.

 

Que homem maravilhoso! Ele tinha razões para estar aborrecido com ela; mas, ao invés disso, parecia apenas preocupado com o seu estado.

 

— Para dizer a verdade, não me sinto bem; mas estou apenas um pouco contrariada. As coisas ainda são novas para mim.

 

— Tenho certeza, mas não faz mal. Talvez ele possa dar-lhe um tônico para os nervos.

 

Ela havia passado por situações piores sem tônico. Ah, meu Deus, a tontura voltou, e ela se amaldiçoou por não conseguir resistir. Agarrou-se à mesa, enquanto o suor lhe cobria a testa.

 

— Tudo bem, Chavala, já basta. Você vai consultar o dr. Felcher.

 

Chavala concordou.

 

— Talvez eu deva. Quanto o senhor acha que ele vai me cobrar?

 

— Não muito. Diga-lhe que foi Leibowitz quem a mandou. Espere aí, vou anotar o endereço. Fica a apenas três quarteirões daqui...

 

O exame terminou, e agora ela estava sentada diante do dr. Felcher. Pela expressão de seu rosto, compreendeu que nada havia de grave.

 

— Agora estou embaraçada por ter vindo. Acho que eram os nervos. — disse ela.

 

— É muito possível, mas as náuseas e a tontura são causadas por sua gravidez.

 

Chavala fitou-o, incrédula.

 

— É impossível. Eu... eu... é impossível... — gaguejou.

 

— Por quê? — perguntou o médico.

 

— Porque estou sepa. — interrompeu-se.

 

Como poderia ter desconfiado? Seu ciclo menstrual nunca fora regular. Às vezes, passava dois ou três meses sem menstruação.

 

Talvez o médico estivesse enganado. Não, ele estava certo. Na véspera de sua partida, tivera relações com o marido.. Por que isso seria um choque? Mas era. Por que logo agora, pelo amor de Deus? Era só o que faltava. um bebê.

 

— Quanto. quanto tempo?... — gaguejou, mal conseguindo pronunciar as palavras.

 

— Você está no segundo mês. Chavala suspirou.

 

— Mazel tov para mim. Obrigada pela boa notícia... e quanto lhe devo?

 

Eram três dólares, porque ela trabalhava para Leibowitz; do contrário seriam cinco.

 

Esperou até depois da ceia, quando Chia e Reuven foram fazer o dever de casa no quarto, para dar a notícia a Moishe.

 

— Bem, Moishe, você vai ser tio novamente. Ele olhou para ela, surpreso.

 

— Como pode ser?...

 

— Acontece que as mulheres casadas ficam grávidas.

 

— Mas você e Dovid estão. — interrompeu-se, ao compreender sua burrice. — Há quanto tempo?

 

— Cerca de dois meses.

 

— Bem, mazel tov.

 

— Foi isso o que eu disse quando soube. Sabe, Moishe, acho que Deus tem um plano. Esse filho pode ser exatamente o que preciso.

 

Moishe balançou a cabeça, pensativo. Boas notícias. sem marido, sem dinheiro; eles mal podiam manter-se.

 

— É a melhor notícia que ouvi desde há muito tempo.

 

— É, sim, Moishe. Sabe, é preciso acontecer uma coisa assim, para uma pessoa resolver tomar uma decisão.

 

— E daí?

 

— Daí que tenho de melhorar de vida.

 

— E como você vai conseguir isso?

 

—vou abrir uma daquelas. como é que se diz... casas de penhores. É assim.

 

— Chavala, que conhecimento você tem de casa de penhores?

 

— Nenhum. E sobre a maioria das coisas, eu não tinha conhecimento algum. Mas sei também que posso aprender. Não posso continuar enfiando pérolas o resto de minha vida. Nunca tive essa intenção, mas a mudança veio mais cedo do que eu pensava. Sabe, Moishe, acredito realmente que essa criança é uma bênção dupla.

 

— Fico contente por vê-la feliz.

 

— Eu sei. agora, se você me desculpar, tenho que escrever uma carta.

 

”Querido Dovid...”

 

Querido Dovid o quê? De repente, e para sua surpresa, não sabia como lhe contar. Começou novamente:

 

                     ”Querido Dovid:

Aconteceu uma coisa maravilhosa. Minha alegria é indescritível. Sei que você vai ficar tão emocionado quanto eu. Vamos ter um filho.”

Ela podia imaginar como Dovid ficaria emocionado. Sua mulher estava em outro planeta, e ele ia ser o pai orgulhoso de um filho que não veria sabe Deus por quanto tempo. Que tipo de carta era aquela?

 

Continuou:

 

”Quando soube da notícia, mal pude esperar para compartilhála com você. Graças a Deus por esta bênção. Por favor, sinta-se feliz, Dovid...”

Estava sendo sincera, mas também sabia que aquilo parecia vazio, casual demais.

Rasgou a carta. Era injusto demais usar isso para fazê-lo vir para junto dela. ”Seja honesta,

             Chavala..”

 

           ”Querido Dovid:

Sei que isso vai ser uma surpresa para você, do mesmo modo que o foi para mim; mas estou grávida de dois meses. A princípio fiquei chocada, mas agora tenho uma verdadeira sensação de alegria. Este filho é muito especial. Para mim, é como se ele nos unisse mais. Não consigo expressar bem meus sentimentos, mas, de algum modo, sei que isso é um novo começo. Em muitos sentidos. Vou abrir uma lojinha. Tenho esperança no futuro de todos nós.

Espero que esteja feliz com o que está fazendo e, acima de tudo, faço votos de que você continue bem.

               Sua mulher amorosa, Chavala.”

 

Dovid recebeu a notícia com uma mistura de sentimentos. Outro filho. Isso era maravilhoso. Mas também era um lembrete de sua situação, o que ele detestava. Mais uma vez censurou a si próprio por não poder fazer mais do que tinha feito, e sentiu-se ressentido com Chavala pela mesma razão. Já havia pensado nisso repetidas vezes, nas razões, nas racionalizações, um milhão de vezes. E, não obstante, continuava não aceitando aquilo.

 

Sacudiu a cabeça e escreveu para Chavala dizendo como estava feliz com o filho, que as coisas iam bem na Palestina. Todo mundo mandava lembranças. Ele sentia muito a sua falta. Que mais podia dizer? Só o que estava em seu coração, como no de Chavala. ”Quero você aqui. Quero que estejamos juntos. Farei qualquer coisa...” Palavras não escritas de um homem a sua mulher, que teria seu filho a milhares de quilômetros de distância.

 

— Bem, sr. Leibowitz, não precisei de um tônico para os nervos — disse Chavala, na manhã seguinte. — O que eu tenho já é um tônico. Vou ter um filho.

 

Ele franziu a testa, depois sorriu. Afinal, filhos eram uma bênção, ou não?

 

— Mazel tov.

 

— Obrigada. Foi o que eu disse quando soube. Agora, sr. Leibowitz, embora não seja minha vontade deixar o emprego. bem, isso muda as coisas para mim. Tenho que melhorar de vida.

 

— Claro. O que você vai fazer?

 

— Abrir uma casa de penhores.

 

— Uma casa de penhores? Chavala, o que você sabe de casa de penhores? Isso é um negócio muito complicado e muito perigoso.

 

— Não desconheço o perigo, sr. Leibowitz. Quanto à complicação... disso entendo bem.

 

— Mas, Chavala, você não está entendendo. Você acha que é só pôr uma placa, abrir uma porta e ganhar dinheiro?

 

— Acho que já tenho um começo.

 

— Chavala, você é uma jovem sensata. Escute-me. Você não entende nada de joalheria. Como vai saber o valor de uma jóia?

 

— Eu aprendo.

 

— O que você aprende? É preciso dinheiro para abrir uma..

 

— Tenho algum dinheiro — disse ela.

 

O sr. Leibowitz levantou-se. Chavala tinha dinheiro? Vendo a expressão de seu rosto, ela repetiu:

 

— Tenho algum dinheiro. Espere um pouco, sr. Leibowitz. Eu volto já. — Foi ao banheiro, desprendeu a bolsa da combinação e voltou. — Podemos ir ao seu escritório particular?

 

Ele assentiu. Seus olhos arregalaram-se, quando Chavala despejou o conteúdo da bolsa num papel branco de joalheiro.

 

Ele desviou o olhar das pequenas pedras para o rosto de Chavala. Conhecendo-a, mesmo desde há pouco tempo, não lhe passaria pela cabeça que fossem roubadas; mas como conseguira aquilo? Ele concluiu que não era de sua conta.

 

— Então você quer que eu faça uma avaliação?

 

— Exatamente. Quero vendê-las.

 

Apanhando a lupa, ele examinou cada uma das pedras. Quando terminou, disse:

 

— Tudo vale cerca de mil e duzentos dólares.

 

— Aceito.

 

— Eu não disse que ia comprar — protestou ele, de repente.

 

— Por quê?

 

— Porque não preciso mais de bagatelas.

 

— Bem, se o senhor não precisa, não precisa. Cuidadosamente Chavala tornou a colocar as pedras na bolsa.

 

— Espere, Chavala. Tentarei vendê-las para você.

 

— Sr. Leibowitz, o senhor foi muito gentil comigo, e eu agradeço, mas quero vendê-las o quanto antes.

 

— Agir com essa pressa pode custar dinheiro.

 

— E ficar sem fazer nada, ou chegar atrasado, também pode custar dinheiro. Vi uma loja vazia na Mott Street. É uma velha casa de penhores. Quero comprá-la.

 

— Você tem medo de que alguém passe na sua frente?

 

— Quem sabe? Talvez não, masvou dizer-lhe uma coisa, sr. Leibowitz: a vida me ensinou que, se não fazemos uma coisa quando achamos que é certo, às vezes perdemos a oportunidade, e eu não gosto de esperar.

 

Ele admirava verdadeiramente a disposição de Chavala; e ficou tão comovido com sua coragem, que, ajustando o yarmulke, disse:

 

— Quanto é o aluguel?

 

— Cinqüenta dólares por mês. Já está tudo montado; tem até um cofre.

 

— Está bem. Eu lhe empresto quinhentos dólares para iniciar o negócio. Deixe as pedras comigo Vou conseguir mais do que se você as vendesse aos gonuvim.

 

— Nunca esquecerei sua gentileza, sr. Leibowitz. Dizendo isso, ela inclinou-se para beijá-lo no rosto.

 

— Nesse mundo é preciso prestar ajuda — disse ele, satisfeito, — Isso é que dá prazer. Agora compre instrumentos musicais no valor de cem dólares Vou pedir a meu amigo Goldstein para lhe fazer um preço bom.

 

— Por quevou precisar de instrumentos musicais?

 

— Para ter alguma coisa que vender. E outra coisa: tenha cuidado na quantia que você emprestar. Se tiver alguma dúvida, é melhor não fazer nada. Eu lhe ensinarei o máximo que puder. Mazel tov.

 

Naquela noite, ela mal pôde esperar para escrever para as irmãs.

 

Ao escrever, pensava também na situação infeliz de Dovid, mas depois consolou-se com o pensamento de que, por pouco que ela ganhasse, uma parte seria mandada para Dvora, que nem sequer tinha um par de sapatos decentes.

 

Deixando a caneta, olhou novamente para as fotografias recentes que recebera da Palestina. Dvora e o marido, Ari, estavam em pé ao lado do filho e da filha, na lama. Ao fundo aparecia a tenda em que eles viviam. Parecia um alojamento do exército. Uma tenda grande abrigava a cozinha e a sala de jantar, e ela contou, como havia feito antes, outras dez tendas ao redor. Entretanto, Dvora e Ari estavam sorrindo. mas Chavala não se deixara enganar; sabia as dificuldades por que eles estavam passando. Lembrava-se muito bem da Galiléia. e a vida ali onde estava a irmã não poderia ser melhor do que lá. No inverno, eles viviam sob um vento impetuoso e a chuva que formava um rio de lama; no verão, quase morriam de calor. Chegava a desejar que eles não tivessem mandado a fotografia. Dvora tinha mudado, deixando de ser a jovem vibrante que partira para uma fazenda de treinamento, naquele verão, para ser uma mulher cujo rosto estava marcado pelas dificuldades e pelos rigores da luta pela sobrevivência. Seu rosto curtido pelo tempo enrugara-se precocemente. Obviamente Dvora parecia velha demais para os seus vinte e cinco anos... E Ari. Quando voltou da guerra, ele também estava muito mudado, não só física, mas espiritualmente. Logo que chegara da América, de Nova Jersey, era um pioneiro cheio de entusiasmo e dedicação. Sua disposição para deixar a boa vida na América não era um sacrifício para ele. Ele tinha a chance de mudar um mundo em que as pessoas não eram criadas da mesma forma, não tinham oportunidades iguais. Ele e seus colegas. e depois a mulher. partilhavam o sonho elevado de uma sociedade em que todo mundo trabalhasse para o bem da comunidade. Quando voltou da guerra, eles fixaram-se em Arazim, um kibutz no vale do Jordão, que proporcionava o tipo de vida em busca do qual eles tinham vindo de tão longe. Mas logo descobriu que não havia essa coisa chamada utopia. nem mesmo na Palestina. Ali também, apesar de muitas coisas boas, havia uma classe governante dupla, uma hierarquia que competia pelo controle do funcionamento interno do kibutz. A natureza humana sempre era a natureza humana. Também, talvez por causa da guerra, não podia mais tolerar a disciplina rigorosa, sem ganhar nada para si nem para a família. A terra ainda o atraía, mas sentia também que tinha que possuir uma parte para si. Queria ver o que ele produzia com as próprias mãos e viver numa cabana construída com seu trabalho.

 

Os fundadores de Arazim não aprovavam isso.

 

— Acaso fizemos nosso trabalho aqui para depois ficarmos sentados como barões da terra? Você fala de propriedade privada. Ser individual. Nós investimos nossas vidas na reivindicação dessa terra, e aqui lançaremos raízes para o futuro de nossos filhos..

 

Juntamente com outras vinte pessoas, Ari, Dvora e seu filho Zvi, de cinco anos, mudaram-se. Fixaram-se na Galiléia, a leste do Jordão, num ermo de pântanos juncados de pedras e infestados de malária; mas isso estimulava sua imaginação e os enchia de inspiração. O moshav foi dividido em parcelas iguais e cultivado por membros individuais. Compartilhavam o mercado e a água. Uma pessoa era recompensada pelo seu trabalho. Enquanto a terra era cultivada, os colonos recebiam uma diária do JNF, com a qual mal conseguiam viver, mas sua fé no futuro os sustentava.

 

Contavam isso a Chavala em suas cartas, mas ela sabia, ou sentia, que muita coisa do que diziam era causada pelo otimismo. As dificuldaddes por que passavam eram muito maiores do que as suas. eles deviam estar sofrendo...

 

Raizel estava esperando o quarto filho, e Chavala detestava pensar nela e em seus filhos vivendo na terrível pobreza de Mea Shearim. Era inimaginável, e não seria assim. mesmo que Chavala tivesse de mendigar, tomar emprestado, roubar, ou fazer essas três coisas...

 

Estranho, pensou quando começou a escrever a carta a Sheine. de todas as irmãs ela era a única que tinha segurança, embora, naturalmente, seu marido não fosse de sua fé. Bem, o importante era que Sheine dizia estar feliz. Chavala não esperava que a riqueza de Sheine beneficiasse a ela ou aos outros membros da família. Mas queria vê-los a todos em segurança, nunca passando necessidades. Pouco importava a mansão em Berlim, o lar ancestral do marido de Sheine, aonde ele a tinha levado como sua noiva. O que importava era que os pais de Gunter estavam contentes com ela, que seus amigos a tinham recebido bem. Parecia que alguns goyim, mesmo alemães, podiam ser decentes. Pelo menos com Sheine ela não se preocupava..

 

Mas entre o que Sheine escrevia e a realidade havia uma diferença.

 

Frau Hausman obviamente não estava satisfeita com a noiva que o filho escolhera. Estava muito decepcionada por Gunter ter casado fora de seu nível social. Era Erica Steinhart que ela sempre desejara como nora, mas já que Gunter não a pedira em casamento antes de partir, Erica, moça muito egoísta, tinha casado logo, para que as pessoas não pensassem que ele lhe tinha dado o fora.

 

A culpa era da guerra, pensou Frau Hausman: quando os homens ficavam solitários, perdiam o senso das coisas. viviam o momento, agarrando-se a ele como se fosse o último. Ela compreendia isso, mas não o aceitava. Reconhecia, de má vontade, que essa Elsa Beck tinha sinais de boa educação e uma certa graça. De um modo geral, Frau Hausman achava que as enfermeiras nada mais eram do que arrumadeiras de leitos que limpavam os traseiros dos enfermos e iam para a cama com todos os internos. pouco mais do que vagabundas. Bem, pelo menos Gunter não os havia degradado trazendo uma dessas para casa.

 

Por isso, ela era indiferente, mas não hostil em relação a Sheine. Reservada como era, recebeu bem a nora. Afinal, era isso ou a perda do filho. Quando um homem estava tão obviamente apaixonado como era o caso de Gunter, quem ele escolheria? Ela esperava.

 

Sheine, com seus eternos temores e sentimentos de culpa, estava satisfeita mesmo com uma mostra de aceitação reservada. E se, às vezes, desejava que Gunter percebesse mais um pouco a frieza da mãe, logo procurava esquecer isso. Gretchen Hausman também não havia sido convincente nem para o marido, nem para o filho. Sua reserva germânica era vista por ambos como uma espécie de dignidade. Eles estavam acostumados com isso.

 

Sheine, porém, sabia, sentia a diferença entre a frieza com que era tratada e a atitude da sogra em relação a Gunter e ao pai. As sutilezas nem sempre eram tão sutis. Ela levantava a vista e surpreendia a sogra examinando-a atentamente do outro lado da mesa...

 

— Você tem um cabelo escuro tão belo, Elsa. muito bonito. Nicht wahr1, Frederick? — dizia. E depois voltava-se para observar a simpatia loura de Gunter.

 

O efeito sobre Sheine não deixava de se fazer sentir, como era sua intenção.

 

Nos meses que se seguiram, Sheine achou que estava sendo aceita pela sogra. (Se a sogra não podia livrar-se dela, pelo menos podia tentar transformá-la em algo mais adequado..) Suas roupas eram cuidadosamente selecionadas. O penteado era escolhido. Não se fazia nada sem que se consultasse a Mutter. Se Frau Hausman podia ocupar-se tanto dos pensamentos de Sheine, poderia até ter abençoado a nora aparentemente calma. Mas Sheine sofria, secretamente, e em silêncio.

 

Embora o Deutschmark tivesse se desvalorizado desde a guerra, o dr. Frederick Hausman não tinha problemas financeiros. O irmão, Otto, era banqueiro suíço, residente em Zurique, e cuidava dos bens da família. O franco suíço valia duzentos marcos. E Gretchen, graças a Deus, era extremamente frugal. Era na parte leste de Berlim que se podiam fazer os melhores negócios; e, embora Gretchen achasse repugnante comprar artigos dessa gente horrível, ela fazia duas viagens por semana, acompanhada de Sheine, ao que ela e seus amigos chamavam de Suíça judaica, do outro lado da cidade.

 

No interior dos velhos prédios da Dragonerstrasse, havia diversos comerciantes que estavam no país havia cinqüenta anos. Naquele longo bulevar, podia-se comprar quase tudo. Havia negociantes de objetos de segunda mão, lojas de móveis usados, mercados, restaurantes, hospedarias, açougues e casas de oração. Entre aqueles que se misturavam com a comunidade judaica mais antiga, estavam as multidões de judeus recém-deslocados que haviam chegado da Polônia, da Galícia e da Rússia, conservando seus costumes e maneiras de vestir. As mulheres, jovens e velhas, usavam perucas de castidade, e todas da mesma cor: preto. Haviam trazido também seus rigorosos códigos religiosos. Apesar de todos os açougues ostentarem a estrela-de-davi nas janelas e de a carne ser carimbada pelo rabino como kosher, as mulheres não compravam de um açougueiro barbeado... O próprio rabino era suspeito, uma vez que não usava barba. Por isso, embora fossem pobres, preferiam pagar um pouco mais e ir um pouco mais longe, para comprar de Yisroel Schmolivitch, na Landsburgallee, que tinha uma longa barba e trinchava um lado da carne que acabara de abater. com suas compras nas sacolas, elas voltavam para a Dragonerstrasse, onde podiam conseguir

 

1 ”Não é verdade?” Em alemão no original. (N. do E.)

 

as melhores pechinchas. Pareciam muito estranhas às mulheres louras, vestidas de acordo com a última moda, que entravam apressadas nos grandes supermercados.

 

Na loja de departamentos Melnetski, as mercadorias — desde vestidos de noiva até véus — iam do chão ao teto. Nos balcões de meias de mulheres, os braços estendiam-se para apanhar o número certo; reinava um verdadeiro tumulto; e nas ruas o barulho era ensurdecedor. Na padaria, havia filas de pessoas com sacolas de dinheiro quase sem valor, esperando para comprar pão, roscas de cebola, pães de semente de papoulas, com sal grosso e alcaravia. Viam-se judeus orientais andando apressados pelas ruas, vestidos com largos cafetãs, as cabeças cobertas com os tradicionais chapéus de aba de pele. Das enormes sinagogas, surgiam judeus idosos carregando sacolas debaixo do braço. Entrando nas pequenas shuls, viam-se homens de longas barbas com chapéus galicianos de aba larga, enquanto outros usavam chapéus-coco inclinados para trás; uns tinham costeletas curtas e barba sem aparar. Das janelas abertas da yeshiva, ouviam-se cantos.

 

Do lado de fora desses lugares sagrados, as calçadas fervilhavam de moleques pedindo esmolas. Os restaurantes estavam cheios de vendedores de roupas de segunda mão que acabavam de voltar da parte ocidental de Berlim, onde haviam passado a manhã esperando do lado de fora das mansões, enquanto as ricas matronas pechinchavam por um Pjennig a mais. De volta à Dragonerstrasse, eles almoçavam com os outros negociantes, comparando os preços que tinham pago às ricas putas alemãs que tentavam ludibriá-los por causa de um Pfennig e os tratavam como Dreck. Em mesas próximas, idosos devotos diziam suas broches antes de almoçar. Outros ficavam sentados num canto, jogando cartas e bebendo um copo de chá após outro. No meio-fio, os camelôs anunciavam seus artigos aos gritos, desde panelas e caçarolas até roupa-branca e colchões de segunda mão.

 

Os judeus alemães já aculturados esforçavam-se por ignorar esses refugiados menos afortunados. Procuravam fugir e esconderse toda vez que os judeus russos, vestidos com seus velhos casacos e com botas de camponeses, passavam por suas vizinhanças santificadas. Desejavam que esses rostos barbudos de gorros pretos fossem embora..

 

Sheine tremeu por dentro ao perceber que ela se identificava mais com essa gente agora do que em sua juventude. Sim, faziam-na lembrar quem ela era, e Elsa Beck tornou-se uma vergonha e um fardo para ela. Teve vontade de estender o braço e tocá-los, abraçá-los.

 

Sentada no banco traseiro da limusine, Gretchen disse:

 

— Die Juden1 são nossa maldição.

 

Sheine tentava não ouvir, enquanto Gretchen continuava falando com voz monótona. como a terrível inflação era causada por esse flagelo estrangeiro no meio deles. esses judeus russos poloneses, romenos, que tinham trazido imundície e doença para a mãe pátria. De fato, a terrível gripe era espalhada por eles, e eles tinham profanado suas belas ruas. Gretchen arengava o tempo todo.

 

Os domingos eram os piores dias. Quando subiam as escadas da Gedachtnis Kirche, a igreja mais antiga e impressionante de Berlim, ela vacilava um pouco, e depois era conduzida a um banco por Gunter e os pais dele. Ao levantar os olhos ela via Jesus na cruz, a Virgem Maria com o filho da manjedoura à sepultura. Sheine tinha vontade de gritar, mas o medo deixava-a impotente, silenciosa.

 

Do púlpito, o sacerdote falava do comunismo ateu que assaltava os alemães tementes a Deus, que amavam a Deus. Os judeus, naturalmente, eram os responsáveis por isso. Marchavam pelas ruas com suas bandeiras, essa ralé de instigadores que era uma praga para a nação. Eles tinham espalhado suas doutrinas venenosas, e até seduzido trabalhadores. O governo devia tomar uma medida rigorosa para sua condenação e proscrever seu Partido Comunista. Somente então a grandeza da Alemanha poderia estar livre para erguer-se novamente... A grandeza exemplificada por Goethe, Schopenhauer, Nietzsche, Wagner, Brahms e Beethoven. O veneno judeu de Marx e Engels, O manifesto comunista, precisava ser extirpado, banido e queimado. O sacerdote falava em tom solene que, se não fossem os banqueiros judeus internacionais, o cáiser ainda estaria no trono e a glória da mãe pátria estaria preservada.

 

— Sim, die Juden bringen nur Unglück 2 — dizia o sacerdote, olhando para os rostos de seus paroquianos. — São uma praga sobre a humanidade.

 

De volta a casa, para o almoço de domingo, após lições espirituais como essa, Sheine ficava sentada, muito quieta, imaginando Jesus na cruz, os judeus da Dragonerstrasse, o som aterrador das palavras do sacerdote reverberando. No domingo do Pessach, a história da Ressurreição era abafada pelos ecos de ”Matem os judeus”, durante os pogroms em Odessa. A condição de judia de Elsa Beck Hausman, que não podia ser reprimida, resultava em terríveis enxaquecas, algumas tão violentas que ela não conseguia sair da cama durante dias..

 

Numa noite, quando a família estava sentada à mesa de jantar,

 

1 ”Os judeus.” Em alemão no original. (N. do E.)

2 ”Os judeus só trazem infelicidade.” Em alemão no original. (N. ao E.)

 

na enorme sala de mobília trabalhada, Sheine sentia-se atolada no pior dos desesperos que já sentira.

 

Frederick Hausman olhou para a nora, por quem tinha grande afeição, e observou a palidez de sua pele cor de oliva e a tensão nos seus olhos castanhos e suaves. O que poderia estar afligindo Sheine?.

 

— Elsa, você não tocou na comida. Coma, meu bem, senão você vai definhar.

 

Sheine, com os pensamentos em outra parte, estremeceu às palavras do sogro. Ele sempre se mostrara cortês e dotado de senso de humor. Não apenas tinha recebido bem Sheine, mas também admirava suas realizações como enfermeira do setor de cirurgia. Sheine nunca poderia compreender por que ele se casara com Gretchen..

 

Gretchen também observava Elsa com atenção; notou as olheiras e ficou triste. Mas ao contrário do que acontecia com Frederick, isso não tinha nada a ver com preocupação ou afeição por Elsa. Gretchen estava infeliz porque Elsa não lhe tinha dado nenhum neto. Obviamente a culpa não era de Gunter, devia ser de Elsa. Se a guerra não tivesse arruinado tudo, Gunter teria uma ótima mulher alemã e filhos alemães, bonitos e louros, como os que Erica Steinhart dera a seu marido. Mas essa mulher estranha, de pele escura, tinha os genes de uma mãe francesa. A aversão que Gretchen nutria pelos franceses era quase igual ao seu sentimento pelos judeus. Por causa dos franceses, a Alemanha estava humilhada diante do mundo. Bem, o filho de Gunter, se algum dia viesse. seria alemão e, com sua influência, um Hausman. Ela cuidaria disso...

 

Naquela noite, quando Sheine estava deitada na cama, com os olhos fechados, tentando suportar a terrível dor de cabeça, Gunter sentou-se a seu lado e segurou-lhe a mão.

 

— Elsa, meu bem, diga o que posso fazer por você. Silêncio.

 

— Quando mandei você fazer um exame. Fritz me disse que não encontrou nada de errado fisicamente. Ele acha que as dores de cabeça são um sintoma de alguma outra coisa.

 

Sheine arregalou os olhos e olhou para ele.

 

— Ele tem razão. Estou assustada.

 

— Assustada com quê?

 

— Você não sabe mesmo?

 

— Não...

 

— com minha condição de judia.

 

— Meu Deus. meu bem, você não tem razão para se sentir assim...

 

— Mas eu me sinto.

 

Por quê?

 

— Talvez você possa responder. Gunter, por que você nunca disse à sua família que eu sou judia?

 

Gunter sacudiu a cabeça.

 

— Isso não parecia importante..

 

— Essa é a única razão?

 

— É.

 

— Eu acho que não.

 

Elsa nunca lhe havia falado assim antes.

 

— Por que você não iria acreditar em mim?

 

— Porque você teve vergonha de lhes contar.

 

— Nunca teria casado com você, se tivesse vergonha disso..

 

— Então por que não lhes disse?

 

— Talvez pelo fato de você ter achado tão censurável ser judia, que fez disso um segredo, ocultando-o de mim — respondeu ele, erguendo a voz; mas logo baixou-a, cheio de remorso. Tomou-a nos braços. — Elsa, por favor, não façamos isso um com o outro. A verdade é que jamais pensei que você quisesse que eu lhes contasse. Ficarei muito feliz em dizer isso a meus pais, e garanto-lhe que não vai fazer diferença..

 

— Vai fazer diferença. sua mãe odeia os judeus.

 

— Não é verdade — disse Gunter, defendendo a mãe. — Você sabe perfeitamente bem que nós temos..

 

— Meu Deus. por favor, não diga. ”alguns de nossos melhores amigos são judeus”. Gunter, você não compreende?. Eles não são judeus como eu. São mais alemães do que judeus; assim esperam. Os judeus da Dragonerstrasse são um espinho para eles mais do que para sua mãe. Mas posso lhe garantir que, no fundo, eles estão tão assustados quanto eu. Eles se escondem atrás de seu nacionalismo alemão e fingem que não são judeus. Quem sabe. talvez isso funcione para alguns deles, mas está me destruindo. Como você acha que eu me sinto, sentada em sua igreja, escutando a história de como os judeus mataram Cristo? Eu lhe garanto que estou assustada, Você não pode compreender isso?

 

Ele estendeu o braço e puxou-a para si.

 

— Meu bem, eu compreendo. Eu tinha realmente esquecido que você é judia. Isso não parecia importante; tampouco parece agora. Quanto a minha mãe, saber de sua condição não importaria, pode acreditar em mim. Você é diferente das outras pessoas, inclusive judeus, que ela pode achar. diferentes..

 

— Mas elas não são diferentes. Eu sou diferente; você não vê isso?

 

Ele sacudiu a cabeça.

 

— Francamente, não sei o que dizer, exceto que não posso ficar parado, vendo você atormentada. É preciso fazer alguma coisa. Vou marcar uma consulta com Ludwig Breslauer, para você.

 

— Eu estou vivendo com o anti-semitismo; o que isso vai adiantar? Não, eu nãovou a um psiquiatra. Não estou louca, você sabe disso. Simplesmente sou judia. essa é a minha doença, pelo menos para sua mãe.

 

— Elsa, por favor, confie em mim. isso está consumindo você, e está atrapalhando nossa vida. Eu só posso ajudá-la apoiando-a com meu amor. Isso não parece bastante. Quer ir, Elsa? Por favor.

 

Gunter tinha razão. Isso os estava destruindo..

 

— Está bem, está bem, vou tentar...

 

Sheine levou meses para comunicar ao dr. Breslauer que era judia. Em parte, assim pensava ele, porque a família de Ludwig Breslauer era de judeus assimilados durante três gerações. O médico nada disse em resposta a seu insight.

 

Finalmente, depois de sabe Deus quantas sessões analíticas, Ludwig Breslauer chegou à conclusão de que estava fazendo Elsa compreender o fenômeno do ódio que todo judeu sentia por si mesmo, sua origem e como podia ser focalizado. Explicou-lhe que a salvação dos judeus era aprender uma lição com aqueles judeus esclarecidos da Alemanha. Ele achava que finalmente havia conseguido convencer aquela mulher de que ela era suscetível demais ao assunto da aversão da sogra pelos judeus estrangeiros. Na realidade, ele achava que eles estavam demasiado condicionados a seus costumes, pouco dispostos ou incapazes de ajustar-se aos tempos modernos e ao país maravilhoso que haviam escolhido. Explicou pacientemente que ela devia livrar-se do peso do passado. Aquilo eram destroços. Ela devia avançar na vida, e não ser oprimida por sua condição de judia.

 

Assim, após um ano de psicanálise intensiva, Elsa Beck sentiu que as dores de cabeça diminuíam e acabaram desaparecendo por completo. Passou mesmo a ter uma sensação de segurança, como se estivesse em seu lugar. A mãe de Gunter não mais a incomodava. Ela era da família. Finalmente, sentiu-se em seu lugar.

 

Que Deus a ajudasse.

 

                                       Capítulo vinte e quatro

Chavala e Moishe observavam enquanto a placa da Eagle Pawnshop era substituída por ”Landau”. Olhou para o irmão.

 

— Isso é apenas o começo, Moishe. Ele assentiu.

 

— Quando você ganhar o primeiro dólar, coloque-o numa moldura. — Olhou para a placa novamente. — Bem, Chavala, espero que você consiga tudo o que deseja.

 

Ela sorriu e abraçou-o.

 

— É por toda a família, Moishe. Não é só por mim. Você acha que vou deixar você ficar fazendo entrega de roupas durante o resto de sua vida? Um dia o irmão de Chavala vai ser um comerciante de brilhantes. Acredite em mim.

 

Que Deus a ouvisse.

 

Na primeira semana de negócio, ela vendeu um saxofone por quinze dólares.

 

Na semana seguinte, o sr. Leibowitz chegou com mil e trezentos dólares.

 

— Veja. eu lhe disse que, se você me desse uma chance, eu conseguiria um preço melhor.

 

A honestidade do sr. Leibowitz valia mais do que o dinheiro.

 

— Que posso dizer, sr. Leibowitz? O senhor é uma pessoa maravilhosa, eu lhe devo tanto..

 

Ele encolheu os ombros, embaraçado, embora estivesse visivelmente contente.

 

— Tente ganhar a vida, Chavala.

 

—vou tentar, sr. Leibowitz, com sua ajuda eu ganharei..

 

Durante o mês seguinte, Chavala começou a emprestar dinheiro além de vender. A primeira coisa que ela recebeu como penhor foi uma aliança de ouro. Não tinha idéia de quanto pesava, mas sopesou-a como se soubesse o que estava fazendo. Quando examinou o lado interno e viu a inscrição: ”Para sempre com amor”, engoliu em seco e emprestou cinco dólares à jovem. Dinheiro era uma coisa miserável, pensou Chavala. Odiou-se pelo resto do dia, sabendo as lágrimas que deviam ter sido derramadas. O dinheiro podia causar muita dor, mas também podia trazer felicidade. ”Tente lembrar-se disso”, pensou.

 

Graças às horas que o sr. Leibowitz tinha passado com ela nos fins de tarde, instruindo-a, Chavala agora sabia mais do que quando sua placa fora colocada. Examinando as jóias com a lupa, já sabia ver os defeitos. O sr. Leibowitz lhe ensinou até a calibrar o tamanho de uma pedra. Entretanto, apesar de tudo o que aprendera, era seu próprio instinto que a orientava, na maioria das vezes. Não levou muito tempo para compreender que entender a natureza humana era a base do negócio. Quando um cliente estava com pressa e disposto a aceitar qualquer quantia oferecida, isso significava que a mercadoria era roubada. A mercadoria que não era resgatada no prazo, Chavala a guardava em um velho cofre. Seus objetivos começavam a se transformar em realidade, mais cedo do que ela esperava. Sua confiança crescia, e a barriga também...

 

Reuven olhou para a barriga grande da mãe. Ele ia fazer seu bar mitzvah no mês seguinte, e estava muito feliz. Esses dois acontecimentos iminentes eram lembretes insistentes de que o pai não estava com eles. O tallis e o yarmulke que o pai havia mandado da Palestina tornava ainda maior o sentimento de perda.

 

No dia de seu bar mitzvah, ele murmurava no meio da cerimônia. Ao invés de se concentrar em sua passagem para a idade viril, sua mente e seu coração estavam em Eretz Yisroel. Não podia fazer nada, odiava esse lugar. Não era seu país, nunca seria. Quem iria querer ser gente num lugar que não o aceitava?

 

Escutando o filho, Chavala tinha sentimentos ambíguos. Sua alegria também era limitada, mas não pela cerimônia. Dovid devia ter vindo. pelo menos isso ele devia ao filho. a ela também? Ela sabia que ele tivera vontade de vir; o trabalho o devia ter impedido, mas mesmo assim. quais eram as prioridades? Esse era o acontecimento mais importante da vida de seu filho único... ”Seja justa”, pensou ela. Ele tinha se recusado a vir, mas ela havia insistido. Novamente, ficou pensando se agira certo; por que tentava com tanta insistência garantir o futuro, se isso significava tais sacrifícios?. Mas, quando levantou a vista e viu o filho de pé ali no centro do estrado, vestido com seu yarmulke, o tallis e o terno azul-marinho que ela havia comprado para ele, sua ansiedade foi logo esquecida. Não. Seus esforços não tinham sido em vão. Ela trabalharia para poder dar-lhe instrução superior. Chia, sentada a seu lado, tornava ainda mais firme essa decisão. ”Pare com essa dúvida sobre si mesma, essa recriminação..” Mesmo aos poucos, seu negócio já tinha chegado a um ponto em que ela podia mandar dinheiro para Raizel e Dvora. Na semana seguinte, Moishe poderia deixar o emprego na alfaiataria e tornar-se seu sócio. Isso era parte daquilo por que ela estava lutando, não era? Sentindo-se melhor, ela abraçou Reuven.

 

— Fiquei tão orgulhosa de ver você lá em cima, já é um homem. — disse e, com um esforço, acrescentou: — Sei que seu pai tem o mesmo sentimento. Todos nós estamos orgulhosos.

 

Em voz baixa, sem um sorriso, ele conseguiu dizer um ”Obrigado”. Qualquer coisa além disso teria sido demais.

 

Chia logo acabou com aquele embaraço, abraçando Reuven.

 

— Um rabino não teria se portado melhor, você estava maravilhoso, Reuven.

 

Ele assentiu. com o tio Moishe e o sr. Leibowitz, foi a mesma coisa. Deste último Reuven recebeu, com uma polidez formal, uma caneta-tinteiro.

 

Contra a vontade e apesar de seus bons pensamentos anteriores, Chavala sabia muito bem que Reuven experimentava um sentimento de perda.

 

— Nu, Moishe? — perguntou Chavala ao irmão, no primeiro dia em que ele foi trabalhar na casa de penhores. — Como lhe disse, antes de andar é preciso engatinhar. E agora já estamos andando... aos poucos, um passo de cada vez. Eu disse que você não ia ficar fazendo entrega de roupas para sempre.

 

Ele olhou para o dólar emoldurado na parede, acima da máquina registradora, o primeiro que Chavala havia ganho. Bem, ele tivera razão a esse respeito. Devia saber também que, quando Chavala dizia que ia fazer uma coisa, fazia mesmo.

 

— Isso mostra que não sou tão inteligente quanto você.

 

— Você é inteligente, sim. Tudo o que tem a fazer é ter paciência na hora certa, e correr quando chegar a hora de correr. Posso não ter muita instrução, mas a vida foi minha escola. Imagino que existe uma fórmula para o sucesso, qualquer pessoa pode tornar-se rica...

 

Moishe sorriu.

 

— Qualquer pessoa?

 

— Qualquer pessoa. Sabe qual é a fórmula secreta? Trabalhar muito. Presto. Esqueça a boa vizinhança, o belo apartamento... todas essas coisas só aparecem depois que você tiver conquistado uma reputação. Assim, por que pensar nessas coisas antes? Venha, vou lhe mostrar uma coisa.

 

Era hora de encerramento do expediente. Chavala fechou o anteparo da porta, inverteu a placa para o lado ”Fechado”, desligou todas as luzes, com exceção de uma que ela deixava acesa a noite inteira. Depois dirigiu-se para a sala dos fundos, que era usada como escritório para fazer a contabilidade.

 

Moishe esperava, observando Chavala abrir o cofre. Quando a porta se descerrou, ela tirou quatro caixas de charutos, levou-as à mesa e sentou-se.

 

O coração de Moishe bateu forte quando Chavala empurrou as caixas para a frente dele. Primeiro, ele olhou das caixas para Chavala.

 

— Pode abrir; elas não mordem, não — disse ela, rindo. Ele abriu uma e prendeu a respiração; depois abriu as outras.

 

No interior, havia anéis de sinete de ouro, brincos, alfinetes, anéis de brilhante, pulseiras e broches.

 

Ele olhou das jóias para Chavala.

 

— São suas?

 

— Nossas.

 

-— Como... quero dizer, como você conseguiu tudo isso?

 

— Prestando um serviço. Para ser franca, foram do tzuris de alguém. Não estou feliz com isso, mas sei que não fui eu quem causou os problemas dos clientes. Dei-lhes dinheiro quando eles precisavam, quando ninguém mais daria — disse ela, e fez uma pausa. Por que ela estava explicando tanto?...

 

— Ainda não entendi; isto é uma casa de penhores. Você tem que devolver a mercadoria.

 

— Se eles pagarem. Você viu a placa. Se não for resgatada após trinta dias, temos o direito de ficar com ela.

 

— Os clientes não voltaram?

 

— Alguns não. Parte desta mercadoria eu comprei.

 

— Não consigo entender.

 

— Eu sei. De vez em quando eu voltava, dava uma olhada e pensava um pouco.

 

Moishe ainda sacudia a cabeça, admirado.

 

— O que você vai fazer agora? Vender isso?

 

— Não.

 

— Não? Que adianta deixar na caixa?

 

— E quem disse que vou deixar aí na caixa?

 

— Bem, então... eu não compreendo. Você não vai vender nem deixar na caixa. O que vai fazer então?

 

— Aprendi algumas lições, Moishe. As pedras eu tiro dos engastes, e o metal eu mando fundir. Assim o preço sobe.

 

— Como você aprendeu a ser tão esperta?

 

— Pela fome. Gravidez. E uma família para cuidar. Moishe sacudiu a cabeça.

 

— Então você vai vender as coisas separadas?

 

— Não. Ainda não.

 

— Não sei, talvez eu seja burro demais... mas de que serve tudo isso, se você não vender?

 

— Serve como dinheiro em banco, Moishe. Quando fizermos um balanço, montaremos as pedras novamente e iniciaremos uma joalheria de venda a varejo.

 

Moishe sorriu, ainda perplexo com o que ela havia feito e aprendido em tão pouco tempo. Recordou os seus dias de guerra. Se eles tivessem utilizado mais a coragem e a disposição de sua irmã, os malditos turcos nunca teriam tido uma chance.

 

— Quando vai ser isso? A loja...

 

— Quando pudermos dar mais de um passo de cada vez. Há uma hora para correr e uma hora para ser paciente. Eu já lhe disse isso. Agora vou lhe ensinar o negócio, e então começaremos a correr. Que outra pessoa seria melhor do que você para correr comigo? — disse ela, pensando em Dovid... — Bem, somos uma família... um pouco dispersa no momento... e temos que cuidar de nós mesmos. Se não fizermos isso, quem fará? Dovid está realizando o mesmo na Palestina. Estou apenas tentando cumprir minha parte aqui... Agora, vou guardar isso e vamos para casa jantar.

 

Quando chegaram a casa, Reuven estava sorrindo, pela primeira vez desde que haviam deixado a Palestina.

 

-— Chegou uma carta de abba — anunciou ele, entusiasmado.

 

Chavala sorriu ao ver que a carta endereçada a ela já tinha sido lida por Reuven. Ver a felicidade no rosto de Reuven antecipava o prazer que ela sempre sentia quando chegavam as cartas de Dovid. Ela nem sequer tinha que lê-la. Reuven quase gritava:

 

— Abba vem... ele vem...

 

Abraçou-a e beijou-a. Ela olhou para o filho.

 

— Está vendo, Reuven, como as coisas estão dando certo? — disse ela.

 

Ele riu, assentindo.

 

— Tire uma lição disso.

 

A família estava à espera de Dovid. Enquanto ele descia o passadiço, Chavala teve de segurar Reuven, para que ele não saísse correndo, abalroando as pessoas.

 

Mas foi ele o primeiro que Dovid abraçou. Como era bom ter o menino nos braços! Depois, olhou para Chavala. com exceção de uns fios de cabelos brancos em sua cabeleira castanha, ela não parecia mais velha do que na época do casamento deles. Não havia sinais das dificuldades sofridas. O que aparecia era só a barriga enorme.

 

— Chavala — disse ele, como se fosse uma declaração. Todos os ressentimentos e as angústias tinham desaparecido. — Faz tanto tempo!

 

— Estamos juntos, Dovid. Pensei que isso fosse demorar muito mais.

 

Ah, Deus, onde ela havia encontrado tanta coragem... ou cbutzpa... para deixá-lo? E para ficar também? Permaneceram abraçados por tanto tempo, que Chia acabou rindo.

 

— Desculpe, abba; nós estamos aqui também.

 

Ele olhou para ela e abraçou a todos novamente... Em nove meses? Era só esse tempo que era preciso para se crescer tanto? A diferença entre Chia e Reuven era surpreendente. Ele teve que olhar duas vezes para o menino. Talvez seus olhos o estivessem enganando, mas podia jurar que via um sinal de bigode no filho.

 

Moishe e Dovid abraçaram-se como velhos colegas, ex-combatentes e membros da mesma família.

 

— Sua vinda significa tanto para nós! — disse Moishe calmamente.

 

Dovid recordou o menino que trabalhava numa banca de sapateiro com ele, que ficava sentado nas reuniões dos Amantes de Sião, com os olhos arregalados. Recordou o dia do bris de Moishe, e quando completou vinte e nove anos. Incrível!...

 

— Para mim também significa muito estar aqui com vocês. Chavala tomou Dovid pelo braço, e a família reunida foi andando no crepúsculo de um dia de outono.

 

Dovid não estava preparado para o que via. As ruas do Lowei East Side de Nova York fervilhavam de vendedores ambulantes, anunciando seus artigos aos gritos, e de gente pechinchando. Um hidrante tinha estourado e as crianças estavam brincando na água, rindo alegremente. Aquele era seu parque, seu playground. Quem conhecia a privação? Nas portas, viam-se velhos barbudos discutindo o midrash, o Talmude. Nos terraços a roupa secava ao vento. Se Chavala tinha pensado que Jaffa era confusa, no dia em que haviam chegado da Rússia...

 

Quando se aproximavam do apartamento de Chavala, Dovid achou que Mea Shearim era preferível, mas não disse nada. Enquanto subiam os cinco lances da velha escada, Chavala segurava firmemente o corrimão. Nos últimos dias, ela tinha a impressão de que a escada ia derrotá-la. com a respiração acelerada, tirou a chave, destrancou a porta e deixou Dovid entrar.

 

Dovid, falando pouco, sentou-se à mesa da cozinha e ficou observando Chavala preparar a chaleira para fazer o chá. Chia apanhou os cubos de açúcar e o limão, depois cortou o bolo. Ao pegar o copo de chá, Dovid sentiu o prédio oscilar levemente, depois ouviu o ruído do trem que passava num elevado. Ficou pensando em como eles conseguiam dormir e como o prédio havia permanecido em pé com aquele abalo constante.

 

Chavala o observava por cima do copo... não havia dúvida, ele era real. Estava mais bonito, aos trinta e sete anos, do que na época do casamento. Mas os anos estavam marcados em seu rosto também... Naturalmente a juventude tinha passado, suas têmporas estavam grisalhas, mas ela não se recordava de ter visto rugas no rosto curtido pelo tempo, quando partira. Estavam ali há nove meses? Ou as pessoas não notavam umas às outras, enquanto os dias passavam? De fato, Dovid tinha envelhecido mais do que devia. E embora ela soubesse que não era a única responsável, sabia que, em parte, tinha contribuído para isso. Bem, o que importava agora era que ele tinha vindo, e ela não ficaria pensando no momento em que ele teria de partir...

 

Na cama de casal que Chavala e Chia compartilhavam, não havia quase espaço para Dovid, muito menos para fazer amor. Ambos concordaram em que seria impossível pedir a Chia que fosse dormir com Reuven. Para Chavala, porém, o simples fato de ser abraçada por Dovid, de fazê-lo sentir as batidas do coração de seu segundo filho, era quase o bastante...

 

De manhã, Chavala andava pela cozinha desajeitadamente, fazendo torradas, mexendo ovos com cebola e salmão defumado, preparando pepinos e alho-poró com creme azedo e requeijão.

 

Reuven, que se apressou a tomar lugar junto ao pai, anunciou:

 

— Eu nãovou à escola hoje. Chavala olhou para ele e sorriu.

 

— Eu não diria que estou surpresa. E você, Chia?

 

— Bem, espero que você me desculpe, Dovid, mas tenho uma prova muito importante hoje...

 

— Vá fazer sua prova; isso é mais importante. Estarei aqui quando você voltar — disse Dovid.

 

Moishe olhou para o relógio e viu que eram oito horas.

 

—vou para a loja. Você vai para lá mais tarde?

 

— Claro — respondeu Chavala, começando a tirar a mesa.

 

Quando chegaram à loja, Dovid parou para olhar a placa. O nome ”Landau” ali surpreendeu-o um pouco, mas, ao ver a expressão de orgulho no rosto de Chavala, conseguiu dar um sorriso.

 

Moishe cumprimentou-os de trás da parede divisória. Dovid nunca o vira tão feliz desde o dia em que estiveram sentados no porão de Bernstein escutando o bilu da Palestina, entusiasmado por se tornar membro dos Amantes de Sião. Muita coisa tinha acontecido desde então, alterando os sentimentos de Moishe. Para ele, a velha causa tinha sido perdida, devido à traição dos ingleses. Seu futuro era o de Chavala... aquela liberdade. com quase nada, Chavala tinha feito um milagre, e em muito pouco tempo. Dovid compreendia, mas percebeu que nunca poderia concordar...

 

Chavala levou Dovid para seu escritório, fechou a porta e retirou as caixas de charuto do cofre.

 

— Bem, Dovid, que acha?

 

Ele escutou calado, enquanto ela explicava o negócio e como conseguira o patrimônio que possuíam agora.

 

— E sabe, Dovid, isto é apenas o começo. Tenho esperanças... é tão importante...

 

”Para quem?”, pensou Dovid, mas apenas disse:

 

— Sim, Chavala, é notável o que você fez em tão pouco tempo. E parece que Moishe está de acordo.

 

— É... Eu lhe disse que uma coisa assim só poderia acontecer na América... — Hesitou um pouco, respirou fundo... — Agora que você já viu, Dovid, não quer experimentar?

 

O olhar de Dovid dizia tudo.

 

— Sinto muito, querida, mas não posso, e você sabe por quê. Chavala conteve as lágrimas. No fundo, sabia a resposta mesmo antes de perguntar, era até uma bobagem pensar que pudesse fazê-lo mudar de idéia. Mas ficar sem ele novamente, depois de ter provado aquela breve união... Meu Deus, por que Dovid não tentava detê-la? Mas ela podia ouvir a resposta... De que adiantaria... eles não acabariam ficando ressentidos, ou até odiando um ao outro? O marido não tinha que forçar a mulher a estar ao seu lado. Casamento não era isso. Se ela tivesse ficado, havia de ser por amá-lo muito, a ponto de fazer qualquer coisa que ele pedisse... Mas seria isso realmente amor?... De certo modo, fora a grande força de Dovid que lhe permitira deixá-la ir embora. Era preciso ser um homem forte para conseguir isso. Chavala quisera ser mulher o bastante para não ter abandonado Dovid... Ela forçou um sorriso.

 

— Bem, Dovid, quero que você conheça o sr. Leibowitz.

 

— Ah... Chavala — exclamou o sr. Leibowitz, aproximando-se. Passou a mão no cabelo de Reuven. — Então, como está o menino do bar mitzvah?

 

— Bem... obrigado. Este é meu pai — apresentou Reuven, com visível orgulho.

 

— Ah... então esse é Dovid. Se encontrasse você na rua, eu o teria reconhecido. Reuven o descreveu muito bem. Bem, venham para meu escritório. Vou mandar buscar um café com bolo; vamos conversar um pouco. Quero saber tudo o que está acontecendo em Eretz Yisroel.

 

— Obrigado, mas só podemos ficar alguns minutos. Eu só queria me exibir um pouco — disse Chavala, olhando para o marido. — Mas, por favor, venha jantar conosco hoje.

 

Ele hesitou por um momento, olhou para a barriga de Chavala e sorriu.

 

— Eu gostaria muito, mas tem certeza de que não seria demais para você?

 

— Apenas vou ter um filho, sr. Leibowitz, e uma família tem de comer.

 

Ele concordou com a cabeça, recordando a primeira vez que ela entrara em seu escritório, totalmente estranha; e agora, para ele, ela era como uma filha.

 

— Estarei lá, e obrigado. E você, Dovid, sabia que as coisas não têm sido as mesmas, desde que o menino do bar mitzvah soube que você vinha?

 

Dovid olhou para o filho.

 

— Esse sentimento foi compartilhado. Foi um prazer conhecêlo, sr. Leibowitz. Até logo mais.

 

— Se Deus quiser.

 

A caminho de casa, Chavala comprou um buquê de flores e uma garrafa de seltzer. Após subir a escada com dificuldade, abriu a porta do apartamento e viu que Chia já tinha posto a mesa, com a toalha branca nova que Chavala havia comprado para a chegada de Dovid.

 

—- Onde estão abba e Reuven? — perguntou Chia.

 

— Reuven foi mostrar a Dovid sua yeshiva. Você notou a mudança em Reuven, tenho certeza.

 

Chia suspirou.

 

— Ele não consegue deixar abba sozinho um minuto.

 

— Eu sei. Não gosto nem de pensar... quando Dovid for embora...

 

— Não vamos pensar nisso agora. Estamos juntos pela primeira vez, desde há muito tempo. Vamos desfrutar a felicidade dé cada momento.

 

Chavala observava as panelas, como nos velhos tempos. O cheiro era uma maravilha. O peito de boi borbulhava em seu caldo natural. A kasha fervia lentamente, os tzimmes só precisariam de mais um pouquinho de açúcar. A única coisa que Chavala comprou foram os bolos da sra. Neusbaum... Estava cansada demais para fazê-los.

 

Enquanto Chavala servia o jantar, parecia natural que Dovid estivesse sentado à cabeceira da mesa.

O sr. Leibowitz tinha trazido o vinho doce do Pessach, que ele tomava o ano inteiro.

 

— A Jerusalém — disse ele, fazendo um brinde com Dovid.

 

— Ao Estado de Israel — respondeu Dovid.

 

— Uchaim — disse Reuven.

 

Chavala esperava, de todo o coração, que os sonhos de Dovid, de um Estado judaico, se concretizassem. Se ambos conseguissem realizar seus sonhos, então poderiam recomeçar uma vida juntos, com certeza. Isso aconteceria de alguma maneira. Ela acreditava firmemente que aconteceria...

 

Depois do jantar, Chavala estava cansadíssima. Beijou Dovid e deu boa-noite ao sr. Leibowitz, agradecendo-lhe por ter vindo.

 

Reuven ficou contente ao ver a mãe ir dormir cedo e Chia se retirar para estudar. Escutava atentamente as perguntas que o sr. Leibowitz fazia a Dovid e as respostas do pai.

 

— Você não falou muito hoje... mas diga-me, como está a situação, quero dizer, com os ingleses?

 

As rugas da testa de Dovid aprofundaram-se.

 

— Não muito boas, sr. Leibowitz. Eles estão tentando fazer as pazes com os árabes e, como de costume, às nossas custas.

 

O sr. Leibowitz balançou a cabeça.

 

— Eles não nos deixarão viver, não acha? Quer dizer... Pensei que os ingleses fossem simpáticos à nossa causa. Foi o que li nos jornais iídiches. E a Declaração Balfour?

 

— Não vale o papel em que está escrita, como se costuma dizer. Sabe... durante séculos, os árabes viveram sem mexer uma palha para resgatar a terra, e agora inventaram um tal de nacionalismo árabe. Muito conveniente. Nós esperávamos que o acordo entre Chaim Weizmann e Faiçal aproximasse nossos povos. Esperava-se que, com o acordo, começasse a imigração livre para a Palestina, mas os nacionalistas árabes opuseram-se a isso. Há algumas semanas, as colônias da alta Galiléia foram atacadas — informou. E, olhando para Moishe, continuou: — Trumpeldor foi assassinado em Tel Haviv. Ele combateu na Manchúria, em Galípoli, na Europa. Voltou para casa e foi assassinado em Eretz Yisroel. Houve tumulto em Jerusalém; morreram judeus. As autoridades britânicas deram carta branca aos árabes; os defensores judeus liderados por Jabotinsky foram eliminados...

 

Moishe, que nunca se surpreendia com a traição dos ingleses, ficou em estado de choque.

 

— E Jabotinsky? — perguntou finalmente.

 

— Condenado, com não sei quantos outros, a muito tempo de cadeia, pelo crime de defender o yishuv.

 

— Vocês estão tentando libertá-los? Dovid riu amargamente.

 

— Os turcos eram tão corruptos que ninguém, desde o mais alto até o mais baixo na escala social, recusava um suborno com ouro, podia se sair da sepultura. Os ingleses, por outro lado, tão civilizados e corteses, nos apunhalam pelas costas, pouco antes de tomar o chá Eles não se deixam subornar, mesmo que o preço seja um judeu E um judeu, um judeu inglês, Sir Herbert Samuel, é que foi nomeado alto comissário da Palestina

 

— Meu Deus, e por que ele não ajuda? — perguntou Moishe

 

— Os ingleses sabem o que fazem Se ele cometer um erro, será rotulado de pró judeu. Ele nem sequer pode ser suspeito de ser indulgente. Tem que ser cuidadoso

 

— Quer dizer que ele não fez nada pelos judeus — perguntou o sr Leibowitz

 

— No começo ele tentou favorecer a imigração dos judeus, mas teve que apaziguar os árabes. Por isso, os judeus que entraram foram postos nos projetos de construção de estradas. Oficializou o hebraico, o árabe e o inglês, como concessão aos judeus, mas, por outro lado, a melhor terra de propriedade do governo, o vale do Bet Shan, foi distribuída entre os beduínos

 

O sr Leibowitz e Moishe ficaram em silêncio. Tudo isso era muito triste. Perceberam como se escrevia pouco sobre os judeus da Palestina nos jornais americanos

 

— Abba, por que Aaron Aaronson e você não podem fazer algo, como aconteceu durante a guerra?

 

Dovid olhou para o filho, que tinha escutado tudo com muita atenção, mas que ele esquecera que estava ali

 

— Porque agora é um tempo diferente, Reuven

 

— Mas você ajudou os ingleses na guerra. Tio Moishe foi ferido

 

— Eu sei, Reuven, mas os ingleses não estão gratos ao tio Moishe nem a mim, nem a qualquer um de nós. Há alguns dias, um homem chamado Wmston Churchill, que é muito importante no governo britânico, estava sentado no terraço do Hotel Rei Davi, em Jerusalém, olhando para o horizonte, e parece que achou que os árabes precisavam de outro país. Por isso, criou um novo lugar chamado o Remo do Jordão. Toda essa terra, Reuven, já foi parte da Judéia

 

— O que vamos fazer, abba?

 

— Lutar, Reuven. Devemos estar preparados, não podemos esperar que ninguém, especialmente os ingleses, venha ajudar nos a retomar nossa terra. É por isso que, ao invés de voltar para trabalhar a terra, eu estou trabalhando onde acho que mais precisam de mim, na Agência de Sião E agora, Reuven, acho que você deve ir dormir, está ficando tarde. Ah, e não fale com sua mãe sobre isso; não quero que ela fique preocupada

 

O sr. Leibowitz mal podia acreditar que já fosse uma hora da madrugada. Ele não estava nem um pouco cansado, mas sabia que devia ir embora, para deixar aquelas pessoas dormirem.

 

— Se você precisar de mim para alguma coisa, não hesite em me pedir — disse ele, levantando-se.

 

Dovid assentiu.

 

— Está bem, sr. Leibowitz. E obrigado por tudo o que o senhor tem feito por Chavala. Saber que ela tem alguém como o senhor aqui faz com que eu me sinta melhor.

 

— Shalom... Se você não tiver outra coisa mais importante a fazer, passe no meu escritório, para almoçar comigo.

 

Mas Dovid não desfrutaria daquele convite... Quando ele começou a se despir, no quarto escuro, Chavala disse calmamente:

 

— Dovid, acho melhor você chamar um táxi.

 

Ele se aproximou dela rapidamente e tomou-a nos braços.

 

— As dores... estão muito fortes?

 

— Não, começaram há cerca de uma hora. Dovid, eu amo você; graças a Deus que você está aqui...

 

A família, bem como o sr. Leibowitz, esperava com ansiedade, enquanto Chavala era levada para a sala de parto do Bellevue Hospital.

 

Dovid andava numa direção e Moishe, em outra. Reuven nunca tinha visto o pai tão preocupado. Quanto a ele, sentia-se apenas um pouco embaraçado... sem saber o que fazer ou como agir.

 

O sr. Leibowitz, sentado ao seu lado, disse:

 

— Seu abba é um homem maravilhoso, Reuven, e sua imã é uma mulher extraordinária. Eu sei que eles dois gostam muito de você.

 

Reuven mal o ouvia, observando o pai andar de um lado para outro.

 

Chia tinha seus próprios temores, ao pensar na morte da mãe... Se alguma coisa acontecesse a Chavala, ela achava que não conseguiria suportar. Chavala sempre fora para ela mais mãe do que irmã... As horas pareciam intermináveis. Pôs o braço em torno de Reuven e apertou-o contra si, tanto para tranqüilizar Reuven como a si própria...

 

A natureza assumia a direção; e no dia 23 de outubro de 1920, após cinco horas de trabalho de parto, Chavala deu à luz um menino. Pesava quatro quilos e, desde o momento do nascimento, era a imagem viva do pai.

 

De volta à enfermaria, Chavala pediu para ver o marido, e logo Dovid estava ao seu lado.

 

Chavala sorriu.

 

— Você o viu, Dovid? Ele sacudiu a cabeça.

 

— Não, ainda não; mas estou vendo você, e amo você e...

 

— Espere, Dovid, espere até vê-lo. Pensei que estivesse vendo você em miniatura.

 

Ela afagou-lhe a cabeça, que estava encostada em seu peito, cheia de um grande amor por aquele homem grande, forte, que sentia vergonha de expressar seu próprio amor. Tentando não deixar que sua saída afetasse esse momento de proximidade, ela sussurrou:

 

— Eu amo você, Dovid. Agora vá ver seu novo filho.

 

Ele sorriu, beijou-a e percorreu a longa enfermaria, entre fileiras de leitos. Levou Reuven consigo, e os dois dirigiram-se ao berçário. Os outros ficaram para trás, compreendendo que aquele era um momento especial entre pai e filho.

 

Quando o bebê foi entregue a Dovid, ele baixou-o para que Reuven pudesse ver o irmão pela primeira vez. Era um momento compartilhado que eles nunca esqueceriam...

 

Três dias depois, Chavala pôde ir para casa, levando seu filho mais novo, compartilhando a alegria de tê-lo com Dovid, Chia e Reuven, que, quase desde o começo, agia mais como um pai do que como um simples irmão. Ele se mostrava ao mesmo tempo fascinado e possessivo com o bebê.

 

No dia em que seu filho foi circuncidado, Dovid segurou-o com orgulho, rodeado por Moishe, Reuven e o sr. Leibowitz. Após receber uma gota de aguardente, o bebê dormiu nos braços de Dovid, enquanto os homens brindavam em homenagem ao novo pai.

 

Depois chegaram outros visitantes ao apartamento, para o simcha. A enfiadeira de pérolas Yetta estava presente, bem como todas as pessoas com quem Chavala havia trabalhado. A sra. Neusbaum e a sra. Zuckerman tinham levado comida mais do que suficiente para todos, e o sr. Leibowitz vibrava com o orgulho de um avô, ao segurar o nenê.

 

— Chavala... Chavala... que bebê, não consigo acreditar! Parece que ainda ontem você estava em meu escritório, precisando de ajuda, e agora...

 

Finalmente os visitantes despediram-se, o que fez Chavala pensar numa despedida que não seria tão agradável. Até então, não havia deixado esse pensamento dominá-la, a alegria com o pequeno Joshua... o nome parecera adequado quando ela o mencionara a Dovid, e ele imediatamente concordara... tinha sido importante demais para que fosse perturbada. Mas agora era preciso encarar a situação. Dovid não tinha mudado de idéia. Viera à América para presenciar o nascimento do filho, a tempo de estar com ela quando desse à luz, muito embora não tivesse vindo por ocasião do bar mitzvah de Reuven, que para ele também parecia ter quase a mesma importância. ”Lembre se disso, Chavala, quando sentir pena de si mesma ou se sentir tentada a censurar Dovid Você e seu filho estavam em primeiro lugar Lembre se de que na noite anterior à partida de Dovid, eles ficaram sentados em silêncio na cozinha, falando de tudo, exceto do que aconteceria no dia seguinte

 

De repente, apareceu Reuven na porta. Primeiro olhou para a mãe, depois para o pai Lentamente foi para onde eles estavam Sem hesitação, disse as palavras em que ele tinha pensado e que ensaiara com cuidado

 

— Imã, eu amo você, sempre amarei, mas quero voltar para casa com abba

 

Ela limpou a garganta, retendo as lágrimas. O que poderia dizer? Ele tinha o direito de ir, e, de certo modo, ela sabia, mesmo sem querer admitir, que isso aconteceria. Era apenas uma questão de tempo e agora acontecera. Afinal, tinha outro filho, e havia Moishe e Chia Dovid não tinha ninguém de sua família. Ela não impediria Reuven de ir, nem sequer discutiria isso. Aquele não era o país de Reuven, talvez nunca viesse a ser. Como o pai, ele era das colinas de Zichron, da fazenda em Athlit, das choupanas de Cesareia. Mesmo quando a neve do inverno degelava na America, Reuven sentia frio

 

Chavala assentiu, até conseguiu sorrir

 

— Estou feliz por você, Reuven. Sentirei sua falta, meu filho querido, mas seu pai já ficou sem você por muito tempo E a vida sempre cuida das coisas. Acho que virá um tempo em que todos nós estaremos juntos de novo. Acredito nisso

 

E acreditava mesmo. Tinha que acreditar

 

Chavala estava de pé, com Joshua nos braços, observando Dovid e Reuven subirem a prancha de embarque. Sentiu um calafrio em todo o corpo, e não era apenas por causa do vento frio que soprava do mar

 

Ouviu se um apito, e o navio começou a se afastar. Ficou parada no cais, ao lado de Moishe e Chia, até que o navio desapareceu de vista. Então, voltaram se e lentamente retomaram sua vida

 

                                  Capítulo vinte e cinco

Dovid e Reuven estavam em Athlit, olhando os bancos de areia. Observavam o mar rolar por trás de pedras altas. Reuven estava gostando do chuvisco que caía em seu rosto. Aquele poderia ter sido o dia mais feliz de sua vida, se não fosse a expressão de tristeza nos olhos do pai. Ele sabia que aquilo tinha algo a ver com a separação da mãe, e isso o afetava também. Sim, ele sentia a falta dela, embora não tivesse sido feliz na América e nunca tivesse entendido, ou pelo menos aceitado, o fato de a mãe tê-lo levado para lá e ter ficado. Sim, sentia sua falta...

 

E Reuven estava certo. Dovid realmente sentia falta de Chavala; e, pensando nela, ele se lembrava também dos anos que tinham vivido juntos ali. Como Chavala estava contente, como se orgulhava de sua casinha! Mas as recordações não eram nada doces. Lembrava-se também dos ruídos de matança, de morte, que abafavam os bons pensamentos... Ele tinha voltado ali mais porque Reuven queria recordar sua infância; mas para Dovid havia muita coisa para recordar...

 

E agora havia até mais... Fechou os olhos e ficou pensando. Naquela manhã, ele havia recebido a notícia de que Aaron tinha morrido, num desastre de avião, em alguma parte do Atlântico. Isso era difícil de suportar. Aaron era tão útil e sempre parecera tão... invulnerável, invencível! Sacudiu a cabeça. Aaron não gostaria que ele se deixasse vencer pela dor. Ele havia lutado muito, e muitos deles tinham morrido... Não podia ceder agora. Sua terra continuava em mãos de estranhos... Desistir da luta seria uma traição ao passado e a perda do futuro...

 

Reuven estava em pé bem junto ao pai, quase sentindo sua dor. E com o mesmo ânimo.

 

— Abba, eu sei que nós falamos da possibilidade de eu morar com a tia Dvora, mas gostaria de ficar em Tel Aviv com você... por favor.

 

— Eu ficaria contente, Reuven, mas minha vida é imprevisível demais. Estou sempre ausente. É importante que um menino, mesmo um menino grande como você, tenha um lugar fixo para morar, e uma mulher... bem, uma mulher como sua tia...

 

”Você é minha família; você precisa de uma mulher”, pensou Reuven.

 

— E verei você?

 

Dovid conhecia os sentimentos de Reuven, conhecia-os muito bem. Ele fora consolado, quando mais precisava, pela mãe de Chavala, Rivka Rabinsky. Seu filho também fora separado da mãe; devia estar sentindo a dor e o medo de deixar Chavala e Chia. Esperava que a semana seguinte, que ele tinha planejado passar com o filho, ajudasse a suavizar a mudança.

 

Dovid pôs o braço em torno do ombro do filho.

 

— Se você vai me ver? Claro, o máximo possível.

 

Ao voltarem para o carro de Dovid, Reuven olhou para os campos e viu o laboratório em Athlit, aonde o pai o tinha levado quando era pequeno. Recordou alguns dos ruídos e cenas. Tivera vontade de ser cientista como Dovid; lembrava-se do pai suspendendo-o para que ele pudesse olhar ao microscópio. Bem, talvez ainda se tornasse um cientista; mas, antes, trabalharia com o pai, a fim de criar uma pátria permanente para os judeus...

 

Subiram as encostas do monte Carmelo; era a primeira vez que Reuven o via, graças à guerra. A vista lá de cima era tão empolgante que pediu ao pai para parar o carro. Juntos, ficaram olhando para a cidade construída nas colinas ondulantes. Além da paisagem acidentada ficavam o porto e uma baía incrivelmente azul. Olharam para as montanhas da Galiléia... o monte Hermon reinava com sua coroa de neve... a cúpula dourada do santuário Bahai brilhava ao sol do meio-dia.

 

Reuven gostou tanto desse lugar que achou que não ia querer deixá-lo nunca; mas Dovid disse que eles tinham um longo caminho a percorrer até Tel Aviv.

 

Desceram a estrada tortuosa por entre as colinas, e Dovid ficou muito calado quando eles passaram pela Estalagem Oriental. Diminuiu a marcha e ficou olhando, durante algum tempo, recordando aqueles quatro dias felizes que ele e Chavala tinham passado ali... realmente uma vida...

 

Quando chegaram à parte árabe, ao pé do Carmelo, Dovid passou pelo porto, fez uma curva e continuou na direção sul. Havia poucos veículos na estrada, com exceção das carroças de burros e um ou outro ônibus cheio de árabes. Mais adiante, foram forçados a encostar o carro ao lado da estrada, por causa de um comboio britânico que passava.

 

De volta à estrada, Reuven notou o contraste entre as aldeias judaicas e as árabes. Os kibutzim eram verdes, férteis, a terra parecia despertar à medida que os homens aravam. Passando pelas aldeias árabes, viu as mulheres trabalhando em campos juncados de pedras (enquanto os homens ficavam sentados nos cafés, jogando gamão ou dormindo ao sol). Ao longo da estrada, as mulheres pareciam oscilar para trás e para a frente, tentando equilibrar as pesadas cargas que levavam às costas.

 

Quando passaram por Zichron, o Forte Taggert, no silêncio, parecia mais agourento, cercado de arame farpado. Agora, de repente, viram surgir Hadera, vasta extensão de vegetação pontilhada de laranjais.

 

Eram quatro horas da tarde quando chegaram aos arredores de Tel Aviv. Reuven nunca esqueceria aquela vista. Uma alvura brilhante parecia emergir do Mediterrâneo azul. Dovid dirigiu-se para sua casa na Rua Hayarkon. Depois, ele e o filho desceram a Via Allenby, cheia de lojas movimentadas, carros buzinando e gente correndo para tomar os ônibus. Havia uma livraria após outra. A praça pública estava cheia de mulheres com seus filhos. Subiram o Bulevar Rothschild em direção à Cidade Antiga, que fora parte de Jaffa. As lojas da cidade árabe pareciam abandonadas, descuidadas... Reuven teve vontade de voltar para Tel Aviv.

 

Atravessaram a rua que liga as duas cidades, passaram pelo mercado comum, onde tanto judeus como árabes negociavam, e seguiram os becos onde inúmeros fregueses andavam por entre as barracas.

 

Finalmente voltaram para a Via Allenby, passaram pela Praça Mograbi, depois dobraram para outro bulevar largo, arborizado; a Rua Ben Yehudah estava animada, cheia de cafés, na maioria pertencentes a judeus alemães, outros a sabras, outros a boêmios, políticos... tudo aquilo criando um clima de carnaval. Tinha-se uma sensação de camaradagem. A cidade pulsava de vitalidade.

 

Sentados à mesa do jantar, Reuven notou que a tensão do pai tinha diminuído desde que haviam chegado a Tel Aviv.

 

Dovid sorriu.

 

— Você acredita, Reuven, que, quando nós chegamos aqui, exatamente onde você está sentado, só havia areia? Não quero fazer você sentir-se velho, mas você tem um ano a mais do que Tel Aviv.

 

Reuven ficou contente de pensar que ele e sua idade eram importantes o bastante para serem comparados com a primeira cidade judaica em dois mil anos.

 

— Nós dois somos sabras — disse ele, rindo.

 

— Eu nunca pensei que fosse assim, mas você tem razão. Amanhã iremos a lugares que são até mais velhos do que eu.

 

Na manhã seguinte, partiram para o sul. Passando pelo porto, em Jaffa, Dovid apontou dizendo:

 

— Foi ali que sua mãe e eu aportamos quando viemos para cá...

 

Encorajando o filho, recontou-lhe todos os acontecimentos daquele dia especial do passado. Enquanto ele falava, Reuven podia vizualizar a mãe rasgando o vestido em tiras e amarrando as uma as outras, para que o cesto de Chia pudesse ser baixado para o barco a remo. Podia quase ver os chalutzim remando em direção ao barco na frente dos árabes pedindo bakshish

 

Finalmente chegaram a Jerusalém e seguiram as ruas tortuosas que levavam a Bab ei Uad Ao passar por esse lugar, Dovid não pôde deixar de pensar como teria sido diferente sua vida, a de sua família, se Chavala não tivesse tido uma necessidade tão desesperada de um saco de farinha, naquele dia tão distante. Rápida mente, acelerou o motor, mudando a marcha para subir as colinas da Judéia

 

Em ambos os lados da rua tinham sido plantadas árvores novas entre as mais antigas. De algum modo, sua capacidade de sobreviver nesse solo simbolizava aqueles judeus que tinham resgatado a terra desagregada

 

De cima da colina, era quase impossível não sentir a atração mágica de Jerusalém. Quando entraram na cidade, foram tomados por uma sensação estranha. Até na nova cidade de Davi, as pedras com que eram construídos os prédios vinham da mesma pedreira que servira para construir o Templo e o Muro, que ainda estavam ali. Seguiram a Rua Rei Davi, passaram pelo Yemen Moshe. O moinho girava lentamente em Mishkenot Shanayim. Ao passarem pelo Hotel Rei Davi, os sinos da ACM tocaram Juntando se à sinfonia de sons, o muezim chamava os fiéis à oração na Cidade Antiga, e, sobre Jerusalém, nessa tarde de sexta feira, podia se ouvir o som da antiga trompa

 

Dovid estacionou o carro fora de Mea Shearim, e eles entraram no pátio de pedra, onde, lado a lado, havia velhos sobrados de pedra com sacadas protegidas com grades de ferro, as persianas abertas e encostadas nas paredes Homens barbudos e com trancinhas dos lados da cabeça, de chapéus de aba larga e longos paletós de cetim preto, andavam rapidamente, ao lado dos lemenitas vesti dos de cafetãs e dos curdos vestidos de seda colorida, do banho ritual para as sinagogas As preces e os cantos religiosos eram ouvidos além das janelas das sinagogas. Dovid lembrou se de que não estivera na shul desde que viera morar na Cidade Antiga

 

Os sons das preces apagaram-se, substituídos pelos cheiros, enquanto Dovid e Reuven subiam a escada da casa de Raizel. Antes de bater, Dovid olhou para Reuven e sorriu

 

— Você se esqueceu de trazer o halvah. Reuven bateu na testa

 

— Que cabeça! Espere, eu vou buscar correndo. Acho que está derretendo — disse ao chegar ao topo da escada, esbaforido

 

— É melhor quando o óleo fica na superfície. Além disso, não vai dar para seu tio, mas a tia Raizel ficará contente de recebê-lo. Quando bateram foram logo atendidos E quando Raizel viu Reuven, ficou toda contente

 

— Eu sabia que você vinha hoje, pois recebi sua carta mas você não disse a hora. ah, estou tão feliz em ver você, Reuven! Entre, entre

 

Já na sala de estar mal-mobiliada, Reuven disse, meio desajeitado

 

— Isto aqui é para você, tia Raizel

 

Raizel olhou para o pacote, compreendeu que era halvah. Sabia que Lazarus nunca comeria aquilo, somente Deus saberia se era kosher

 

— É muita gentileza sua, Reuven. Obrigada. Dovid, como vai? Estou tão agitada!

 

— Estou bem, Raizel

 

— Temos tanta coisa para falar, mas deixe para mais tarde. Agora vou dar uma olhada nos frangos que estão no forno

 

— O que é que o tio Lazarus faz na vida? — perguntou Reuven, depois que Raizel saiu

 

Dovid pensou em dizer ”O mínimo possível”, mas respondeu

 

— Ele tem dois empregos É shammas em sua shul e também dá aulas na yeshiva

 

— Ah, ele é uma espécie de professor de hebraico.

 

— Acho que se poderia dizer que sim

 

Nesse momento a porta abriu-se, e Lazarus entrou, acompanhado de dois de seus quatro filhos. Eram quase da mesma altura, miniaturas de Lazarus. Só o que lhes faltava era o bigode e a barba preta de Lazarus

 

Lazarus cumprimentou Dovid e deu as boas vindas a Reuven em ídiche. Embora seu hebraico fosse impecável, ele se recusava a usá-lo na conversa. Fazer isso seria sacrilégio Enquanto falava com Dovid, Reuven olhou para o pai e, pondo a mão na boca, perguntou entre dentes

 

— O que foi que ele disse?

 

— Que você deve aprender a falar ídiche — respondeu Dovid, também em voz baixa

 

Felizmente Raizel voltou para a sala, limpando a mão no avental branco

 

— bom shabbes — disse ela ao marido e aos filhos

 

— E bom shabbes para você. Ela voltou se para os filhos

 

— Esse é seu primo, Reuven

 

— bom shabbes — responderam todos em ídiche

 

— Shalom — disse Reuven. Sentiu se agradecido quando Raizel pediu que se sentasse. Pondo o xale na cabeça, ficou parada diante dos candelabros que haviam pertencido à mãe e que Chavala lhe havia cedido. Acendeu as velas, pôs as mãos no rosto e fez a prece do sábado.

 

Então Lazarus disse o motzi, a bênção sobre o pão.

 

— Abençoado sejas Tu, ó Senhor nosso Deus, Rei do Universo, que produzes o pão da terra. — E dizendo a bênção, ele cortou o pão e deu um pedaço a cada um dos que estavam à mesa.

 

Logo os pratos estavam sendo passados de uns para os outros, e ninguém estava mais agradecido do que Reuven. Visto que não podia conversar com os primos, achava desajeitado ficar ali sentado à mesa, simplesmente olhando.

 

Os primos também ficaram olhando, incrédulos. A mãe lhes havia dito que aquele era seu primo; por isso, eles acreditavam nela. Mas ele era muito estranho, sem as trancinhas. Embora o tio Dovid estivesse barbeado, pelo menos falava iídiche.

 

Mas Raizel pediu aos filhos que fossem para o quarto com o primo. Percebiam-se os sinais de descontentamento, tanto em iídiche como em hebraico, enquanto os cinco meninos se retiravam para o quarto.

 

Quando a mesa foi tirada, os três adultos ficaram sentados. Raizel entregou ao marido seu terceiro copo de chá, depois sentou-se.

 

— Bem, Dovid, você deve estar muito orgulhoso. Chavala escreveu dizendo que o novo bebê... Joshua... se parece muito com você.

 

Eram momentos difíceis para Dovid. Quem queria ser lembrado de que seria privado de ver o filho crescer?...

 

— Claro, estou muito orgulhoso, Raizel. Raizel mudou de assunto rapidamente.

 

— Como vai Moishe?

 

— Está muito feliz na Goldeneh Medina.

 

— E Chia?

 

— Lembra-se de quando eu trouxe uma cabra para dar leite para ela, logo que a tiramos da casa de Manya? Parece até que foi ontem... e agora Chia está ficando uma bela moça.

 

Raizel sorriu.

 

— Ah, ela merece ser feliz. Tenho certeza...

 

— Espero que sim, Raizel... Bem, está ficando tarde, e amanhã euvou levar Reuven para visitar Dvora, na Galiléia. Obrigado pela ótima noitada.

 

De volta à casa de Dovid, pai e filho falaram pouco. Não era preciso falar muito. Ambos sentiam os pensamentos um do outro...

 

Tinha sido uma noite cheia de tensões, e os dois ficariam felizes de encontrar-se com Raizel a sós, da próxima vez, sem a presença inibidora daqueles cinco...

 

Na manhã seguinte, Dovid tomou a estrada que, deixando Jerusalém, passava pelo vale de Efraim, pelo túmulo de Raquel, perto de Belém, ao sul das colinas da Judéia. Finalmente chegaram a Hebron, segunda cidade em importância depois de Jerusalém... Fora ali que a mulher de Abraão, Sara, morrera; e fora ali que o patriarca comprara o campo de Efraim para um cemitério familiar. Seguindo viagem, passaram pelo mar Morto, até que chegaram à fortaleza de Massada, um lugar que Dovid queria que o filho conhecesse.

 

Os olhos de Reuven esquadrinhavam as rochas marrom-avermelhadas de Massada, enquanto o pai lhe falava da coragem que se havia tornado símbolo da liberdade para os judeus durante dois mil anos. Essa coragem tinha vivido no coração dos judeus e sustentado seu espírito durante séculos, lembrando-lhes, nas ocasiões em que pensavam que tudo estivesse perdido, que, fosse qual fosse a catástrofe, eles estavam destinados a sobreviver...

 

Com o braço em torno do ombro do filho, Dovid disse:

 

— Eu sei que sua mãe passou por grandes dificuldades, Reuven, mas estou contente por você ter pedido para vir comigo. Estou contente por você ter o mesmo sentimento que eu em relação a esta terra...

 

Reuven sentia, entre o pai e ele, um laço de união tão forte e poderoso como a fortaleza que estava diante deles. Não havia necessidade de palavras...

 

                                   Capítulo vinte e seis

Apesar de todas as lutas, das tempestades invernais, do calor ardente do verão, Dvora continuou nas mesmas condições em Kfar Shalom. Ela e Ari eram uma das vinte e cinco famílias abrigadas em tendas pretas compradas de excedentes do exército britânico. Pnina, que agora tinha seis anos, nasceu no primeiro inverno, durante uma ventania impetuosa. No verão, Pnina foi acometida de malária, em seu primeiro ano de vida; e só conseguiu resistir à doença graças ao amor de Ari e Dvora e ao quinino que eles dedicadamente lhe administraram.

 

Quando o bebê se recuperou, Ari disse a Dvora que seria conveniente que ela e as crianças fossem passar ”apenas algum tempo” em casa de Raizel. Quando ela protestou, como Chavala outrora fizera com Dovid, ele lhe disse que as crianças já tinham ficado muito expostas ao tifo e à malária e que, na reunião daquela noite, ficara combinado que as mulheres e as crianças se ausentariam até que os pântanos ficassem limpos.

 

— Mas nós sobrevivemos ao nosso primeiro inverno e ao verão, e continuaremos sobrevivendo até que tenhamos uma casa...

 

No inverno seguinte, a gripe chegou ao auge. As tempestades tornaram-se tão violentas que as tendas desmoronavam, e os homens tinham que reparar constantemente as tendas comunais. Entretanto, sobreviveram; e, quando chegou o verão, Dvora viu o primeiro prédio construído em seu próprio pedaço de terra... era o celeiro, um espetáculo. Um começo...

 

Até o terrível dia em que os tiros começaram. Rapidamente, Ari apanhou seu fuzil no armeiro e correu para o lado do celeiro, olhou ao redor e viu cinco beduínos a cavalo. Esperou até que passassem, apontou e puxou o gatilho, atingindo um deles no ombro.

 

O bebê ficou tão assustado com os tiros que começou a chorar descontroladamente. Ari jogou-se ao chão pouco antes de uma bala chocar-se contra a parede de madeira. Agachado, ele observou outro árabe aproximando-se da entrada; fez pontaria e conseguiu feri-lo no braço.

 

Finalmente, eles se retiraram a galope; mas voltariam, Ari sabia disso. Agora, de uma vez por todas, as mulheres e as crianças teriam de procurar segurança...

 

Embora Nazaré fosse uma cidade árabe, podia ser um refúgio para as mulheres vindas de Kfar Shalom. O nacionalismo religioso e político dos árabes ainda estava em estado latente; e havia uma certa cooperação entre os árabes cristãos da cidade e os judeus das colônias. Na realidade, os árabes de Nazaré freqüentemente entravam em conflito com os beduínos... em contraste com a aversão que os beduínos tinham aos judeus, os aldeões de Mahalul aceitaram os colonos, especialmente quando perceberam que as novas colônias judaicas os favoreceriam... os judeus compravam artigos nas lojas árabes.

 

Se era difícil, para Ari, separar-se das crianças, mais difícil ainda era separar-se de Dvora.

 

Dvora dirigiu-se ao caminhão acompanhada pelo marido.

 

— Por quanto tempo você acha que vamos ficar lá?

 

— Até que a colônia esteja em segurança.

 

— Isso vai levar meses.

 

— Bem... se levar, pelo menos nesse meio tempo você estará mais segura do que aqui.

 

Como eles dois bem sabiam, nunca estavam em segurança. Ari tomou-lhe o belo rosto entre as mãos.

 

— Eu amo você e vou sentir sua falta.

 

Beijou-a e, sem dizer mais nada, dirigiu-se ao caminhão, ligou o motor e partiu.

 

Logo que o caminhão subiu ruidosamente a colina, chegando a Kfar Shalom, Ari encontrou seu celeiro carbonizado. Rapidamente correu através do campo nu e avistou os homens do moshav ainda tentando apagar as últimas brasas.

 

Furioso demais para falar, ele simplesmente ficou parado, olhando para a fumaça negra que subia. Quando finalmente se recuperou do choque inicial, perguntou:

 

— O que aconteceu? Isaac Levy sacudiu a cabeça.

 

— Eles chegaram às cinco horas da manhã e começaram a atirar e a gritar como loucos.

 

— O único prédio que eles queimaram foi o meu?

 

— Só o seu.

 

— Bem, da próxima vez estarei esperando-os.

 

Não teve que esperar muito. Como gafanhotos, eles chegaram às colinas a cavalo. Dessa vez os homens estavam preparados... escondidos atrás de uma enorme pedra. Solomon fez pontaria e atingiu um deles na mão. Chaim visou-lhe o tornozelo. O contra-ataque foi tão inesperado que os beduínos voltaram-se e bateram em retirada; mas o tiro de Ari partiu e atingiu o casco direito de um garanhão. O animal estremeceu violentamente, depois empinou, derrubando o cavaleiro.

 

Como a fraternidade não era uma virtude entre os beduínos, os outros três cavaleiros continuaram a fuga sem sequer olhar para trás.

 

Ari saiu de trás da pedra e agarrou o beduíno pelo pescoço. Imediatamente o homem invocou Alá, a misericórdia divina e o amor da humanidade em seu favor. Ele não queria morrer.

 

— Não fui eu... pelo nome de meu pai, eu juro. Nós fomos forçados...

 

— Quem forçou vocês?

 

Os olhos do homem revelaram o medo de que ele estava possuído. Seria morto, se dissesse; também o seria, se não dissesse.

 

— Foi você quem instigou o ataque...

 

— Não.

 

— Então quem foi?

 

— Foi o xeque Abdullah Kadar.

 

Ari levantou-se e olhou para o homem curvado no chão.

 

— Onde fica o acampamento?

 

— Perto de Metullah.

 

Ari o deixou ir embora, mais porque ele lhe causara asco. Não se mata um inseto indefeso.

 

— Que adianta ficar sabendo? — perguntou Chaim.

 

—Vou usar um pouco de diplomacia.

 

— Você vai fazer uma visita de boa vontade?

 

— Não, mas meu cunhado tem muito jeito para isso. Vou falar com ele.

 

Ari podia chegar a Tel Aviv mais rápido a cavalo, atravessando os campos, galopando pelas colinas ao longo das aldeias árabes. À meia-noite, ele amarrou o cavalo num poste e subiu correndo a escada da casa de Dovid.

 

— O que traz você a Tel Aviv? — perguntou Dovid, depois que os dois se abraçaram.

 

Ari contou-lhe rapidamente o ocorrido.

 

— E você quer que eu o ajude?

 

— Quero, Dovid. Eu sei onde fica o acampamento. Sei o nome do líder.

 

— Isso ajuda. Mas o que ajudaria mais seria uma colheita, se você a tivesse. Eles cortariam seu pescoço por um saco de farinha.

 

— Então quais são as alternativas, Dovid?

 

— Blefar... mas seja convincente, a ponto de convencer a si próprio. Você tem que pensar em termos de sua própria vida. Vou lhe mostrar o que quero dizer.

 

Dovid foi ao quarto, voltou à cozinha e, sem dizer uma palavra, arremessou pela porta aberta uma granada alemã de 1914 na sacada.

 

Instintivamente Ari jogou-se ao chão e esperou com os braços sobre a cabeça. Depois recuperou-se, voltou-se e olhou para Dovid.

 

— Para que você fez isso? Eu podia ter sofrido um ataque do coração.

 

Dovid sorriu.

 

— Como eu lhe disse... se você quiser blefar, tem de ser muito convincente.

 

— Você me convenceu. Só esperar a explosão da granada foi demais...

 

— É isso o que temos que tentar.

 

— E as armas verdadeiras?

 

— Nós escondemos algumas debaixo de nossas abas, mas elas não adiantarão muito se o nosso blefe não funcionar.

 

Ele foi à sacada, trouxe de volta a granada desarmada e entregou-a a Ari.

 

— Parece tão inocente! Eu diria que não me parece nem um pouquinho perigosa... Mas se você acha que dará certo, vamos tentar...

 

— Ari, eu só posso lhe dizer que nós temos uma chance. Lembro-me de uma vez, na guerra, quando Yehudah Meir tomou um navio com um cachimbo, em vez de armas. O medo pode ser uma arma mortífera, Ari. Pouco importa qual seja sua cor ou quais sejam os deuses que você adore, uma vida é uma vida, e ninguém quer perder a sua. Esta é nossa melhor arma.

 

— Quando vamos?

 

— Amanhã de manhã.

 

Vestidos de árabes, eles se dirigiram, montados, às colinas de Metullah.

 

Já era crepúsculo quando Dovid localizou o acampamento.

 

— Olhe para a esquerda, Ari. Agora, vamos dar uma olhada mais de perto — disse Dovid.

 

De um outeiro, eles podiam ver doze tendas de pele de cabra preta que compunham o acampamento.

 

— A esta hora eles devem estar comendo. Mas com tantas tendas, podemos contar com uma recepção e tanto! Está pronto?

 

Ari fez sinal que sim, depois encolheu os ombros. O que devia dizer: sim ou não?

 

Quando chegaram, as mulheres vestidas de preto e com correntes de moedas cobrindo-lhes o rosto fugiram da vista dos estranhos.

 

Dovid e Ari acabavam de desmontar quando apareceram doze homens com os fuzis apontados diretamente para eles. Logo depois, a entrada de uma tenda abriu-se e dela saiu Abdullah, vestindo uma túnica preta e com um turbante. Da cintura, pendiam dois punhais enfeitados com jóias. Ficou parado, com as mãos nos quadris, exigindo que explicassem o que estavam fazendo em seu acampamento.

 

Dovid conseguira fazer algo semelhante com Jamal Paxá, em outros tempos. E tinha sobrevivido às torturas dos turcos. Seria desperdício morrer nas colinas de Metullah. Não tencionava morrer ali.

 

— Muito menos do que vocês estiveram fazendo em nossa aldeia — respondeu Dovid. — Quantos celeiros você incendiou hoje?

 

Cruzando os braços, com a mão dentro da aba, ele acariciou a granada e esperou; mas o diálogo terminou quando Abdullah fez sinal para que eles fossem conduzidos à sua tenda. Primeiro, derrubaria o moral deles, depois os mutilaria e, finalmente, os mataria. Uma trindade santa toda sua...

 

Quando os homens suspenderam os fuzis e começaram a se aproximar, Dovid e Ari puxaram as granadas rapidamente, segurando-as no ar, prontos para jogá-las.

 

— Aqui há dinamite suficiente para fazer Metullah ir pelos ares — disse Dovid tranqüilamente.

 

Os homens pararam incontinenti. Pela expressão do rosto de Dovid, Abdullah concluiu logo que ele não estava blefando, mas, fosse como fosse, ele não iria correr o risco de descobrir se estavam blefando ou não.

 

— Quem são vocês? Qual é o seu nome?

 

— Dovid Landau — respondeu Dovid com mais confiança do que realmente sentia.

 

Abdullah concluiu que estava certo sobre ele. Já tinha ouvido falar de Dovid, que fora chefe do NILI. Abdullah, homem sensato no tocante a sua própria vida, preferiu ter cuidado, evitando até mostrar seu ódio. Que teria planejado aquele assassino judeu?...

 

— O que você deseja?

 

— Que você fique afastado da aldeia.

 

— A aldeia não é sua, é nossa terra de pastagem na primavera.

 

Dovid entregou a granada a Ari, depois aproximou-se de Abdullah.

 

— Não é mais. Nós pagamos por ela, nós trabalhamos nela.

 

Ela nos pertence agora. Se você ou seus homens voltarem a Kfar Shalom, mataremos vocês. Eu lhe prometo isso.

 

O líder árabe, olhando as granadas com cautela, nada disse. Dovid voltou-lhe as costas e, acompanhado de Ari, dirigiu-se lentamente aos cavalos. Montaram e saíram do acampamento... Eram onze horas da noite quando chegaram a Safad.

 

— Dovid, não me envergonho de dizer que mal conseguia respirar — disse Ari, quando estavam sentados, tomando café.

 

— Eu lhe garanto que comigo aconteceu a mesma coisa.

 

— Bem, acho que Abdullah tem muito respeito por você, Dovid...

 

— Tem mais pelas granadas... mas, agora, acho que você não deve correr o risco de trazer as mulheres de volta.

 

— Nós lhe devemos muito, Dovid. Mas ainda temos um inimigo. Quando os pântanos estiverem limpos, então poderemos trazê-las para casa.

 

Para casa, pensou Dovid. Ari e seu lar; Chavala e seu filho em Nova York. Ele recebia notícias por cartas, mas não podia estar presente. Em breve, porém... em breve...

 

As mulheres e as crianças voltaram, finalmente, para Kfar Shalom. Era primavera, a estação de renovação da vida. Os campos estavam cobertos de flores. Mais bonito ainda do que isso era o que Ari conseguira.

 

Quando Dvora chegou, encontrou o início de uma fazenda. Os campos estavam plantados; havia uma pequena vinha e uma horta. Ao lado da cabana de madeira de duas peças, Ari tinha construído um novo celeiro e um estábulo, onde estavam duas mulas e uma vaca com uma cria chupando-lhe os ubres cheios.

 

Pnina ficou fascinada com os pintos amarelos, e gostava de correr atrás deles, agitando os braços. Ari levou Dvora ao quarto das crianças, e Zvi correu atrás deles, sem querer perder nada. Ari já tinha começado a preparar a forragem de beterraba. Dvora balançou a cabeça...

 

— Querido, como você teve tempo para dormir?

 

— Eu não dormi... Quem iria para a cama sem você? Dvora sorriu. Ela também sentira falta dele.

 

Um novo começo, tão idílico que não durou muito... Apesar dos esforços de Ari, a safra de trigo perdera-se. Os legumes estavam apodrecendo no campo; Dvora e Zvi sofriam ataques recorrentes de malária, e Ari tinha que cuidar da mulher e dos filhos. Pior do que isso... Logo que Dvora se recuperou, Pnina apanhou uma infecção nos olhos. A cada dia que se passava, suas pálpebras ficavam mais vermelhas e inchadas, e a criança chorava a noite toda.

 

Ari e Dvora faziam dois turnos de vigília tentando consolá-la. De manhã os olhos da criança estavam fechados de inchação.

 

— Ari, não adianta. Temos que levar a criança ao hospital em Jerusalém.

 

Ele assentiu. Cada um conhecia os temores do outro. Tracoma...

 

Quando chegaram ao hospital, Pnina foi levada para a enfermaria das crianças. Dvora, Ari e Zvi tiveram que ficar esperando o médico.

 

Pareceu uma eternidade, mas finalmente ele apareceu.

 

— Sr. e sra. Ben Levi, eu sou o dr. Haril. Estive examinando sua filhinha — disse o médico, e o pulso de Dvora acelerou-se. — Não podemos saber o estado da paciente enquanto a inchação não diminuir.

 

— Mas o senhor deve fazer uma idéia do que seja, doutor — disse Ari.

 

— Não podemos ter certeza, mas ela já está em tratamento para que a inchação diminua. Já está melhor.

 

Quando o dr. Haril se dispunha a afastar-se, Dvora chamou-o.

 

— Doutor... Ele voltou-se.

 

— Sim, sra. Ben Levi?

 

— Nós moramos na Galiléia. O senhor acha que meu marido deve ir para casa... ou ficar?

 

— Se for importante que ele vá, não vejo nenhum perigo imediato.

 

Eram cinco da tarde quando eles entraram para ver Pnina. Ela estava com os olhos enfaixados; era uma visão quase insuportável para os pais.

 

— Abba? — disse ela, quando Ari segurou-lhe a mão.

 

— Sim, meu bem... é abba. Estou aqui... Zvi estava junto à cama e sussurrou:

 

— Quando você voltar para casa, Pnina, vamos montar o jumento e colher flores silvestres, como antes...

 

— Como antes. Prometa.

 

— Prometo.

 

E isso era tudo o que ele ou qualquer outra pessoa poderia dizer.

 

Ao deixarem a enfermaria, ao longo do corredor, Dvora pôs o braço em torno do filho. Tão jovem... e já tinha passado por tanta coisa na vida... Olhou para Ari.

 

— Vá para casa, querido, está ficando tarde... Mando notícias para você. Ela vai ficar boa... Eu tenho fé. E você deve ter também. Por favor... — pediu.

 

— Nãovou deixar você passar por isso sozinha...

 

Ela lembrou-se de quando ele quisera garantir sua segurança e ela a recusara.

 

— O médico disse que tudo vai correr bem. Você tem muitas responsabilidades em casa. Além disso, euvou para a casa de Raizel, para não ficar sozinha.

 

Ele sabia que ela estava certa, mas não queria deixá-la.

 

Seguiram pelo longo corredor e saíram para o crepúsculo. Quando chegaram ao caminhão, ela beijou o marido e o filho, tentando sorrir. Mas no momento em que os viu desaparecer ao longe, sentiu-se tomada de uma terrível solidão. Sentiu-se destruída, vazia. Lentamente, voltou e ficou esperando o ônibus em frente ao hospital.

 

Quando o ônibus chegou, ela subiu, sem ouvir o que se falava a seu redor. Enquanto o ônibus descia pelas ruas tortuosas entre as colinas, olhou pela janela e viu o monte das Oliveiras; então a imagem de seu pai invadiu-lhe a mente, e, com essa imagem, o pensamento de que, se não fosse Chavala, ele não teria tido sequer uma pedra...

 

Quando o ônibus parou na porta de Jaffa, Dvora saltou e correu para o Muro das Lamentações. Tirou o suéter e cobriu a cabeça com ele.

 

Pela primeira vez em muito tempo, orou verdadeiramente. Abrindo a bolsa, tirou um pequeno caderno de notas e escreveu uma prece a Deus; depois colocou-a entre as fendas cobertas de musgo. Tocou as antigas pedras, recordando o dia em que seu pai tinha chegado a esse lugar santo. Ele tinha se ajoelhado e beijado o chão. Agora, algo nas profundezas de seu ser a forçava a fazer o mesmo.

 

De joelhos, encostou bem o corpo no muro sagrado e abraçou-o. Chorou lágrimas que não podiam mais ser retidas. E sussurrando aos ouvidos de Deus, recitou:

 

”Ó Senhor da vida, nossos tempos estão em Tuas mãos. Uma geração vem ao mundo para ser abençoada com os dias”.

 

Ficou ali por mais alguns minutos, depois levantou-se e atravessou as ruas de Jerusalém, até dobrar para o beco calçado de pedras, em Mea Shearim. Passou pelos banhos rituais e, pouco mais adiante, chegou ao prédio em que Raizel morava.

 

Depois de expressar seu contentamento com a presença da irmã, Raizel teve que perguntar por que ela estava em Jerusalém... sozinha. Dvora respirou fundo e contou-lhe a história.

 

— Mas, Raizel, não quero que Chavala saiba disso, por enquanto. Ela tem seus próprios problemas, e não quero aumentá-los.

 

Raizel sacudiu a cabeça.

 

— É muito ruim quando as famílias ficam tão separadas! Sheine na Alemanha, Chavala na América... Bem, tudo o que podemos fazer é orar para que, talvez, algum dia... Venha para a cozinha, enquanto eu preparo a ceia. Lazarus e os meninos virão daqui a pouco.

 

E quando eles voltaram, a cena foi uma réplica do que Dovid e Reuven experimentaram quando chegaram.

 

Dvora não beijou nem tocou o cunhado, visto que isso também era contra os preceitos religiosos dele. Era um homem muito rico. Dvora cobiçava e amava ao mesmo tempo sua inesgotável reserva de espiritualidade.

 

— É tão bom ver você, Lazarus... Você parece tão bem!

 

— Dou graças a Deus por Ele ter dado a mim e à minha família esta saúde... Onde estão as crianças e Ari?

 

Ela falou do que estava acontecendo com Pnína.

 

— Nossas vidas estão nas mãos de Deus, Dvora. Você deve ter muita fé.

 

— Tenho certeza. Mas não sei o que me assusta.

 

— Você não deve ter medo. Deus está velando por nós, como está escrito. Deus ajudará vocês, Dvora.

 

— Espero que sim, Lazarus... e tenho certeza de que suas preces ajudarão.

 

Que certeza ela podia ter?...

 

Naquela noite, Dvora dormiu na casa de Raizel, em uma esteira de palha. Ficou grata com a primeira luz da manhã. Rapidamente, lavou-se, vestiu-se, deixou um bilhete e fechou a porta atrás de si, sem fazer barulho.

 

Embora soubesse que era cedo demais para ver a criança, o simples fato de ficar sentada do lado de fora da enfermaria de Pnina a fazia sentir-se um pouco melhor. Olhou para o relógio... seis e meia.

 

As enfermeiras estavam começando suas rondas matutinas.

 

— Sou a sra. Ben Levi — disse Dvora a uma jovem enfermeira. — O nome de minha filhinha é Pnina. Poderia dizer-me como ela está?

 

— Sinto muito, mas a senhora vai ter de esperar o médico. Dvora ficou andando de um lado para outro, até que viu a enfermeira sair da enfermaria das crianças. Dirigiu-se a ela.

 

— Desculpe, mas a que horas chegam os médicos?

 

— Dentro de uma hora eles deverão começar seus plantões.

 

— Você acha que eu poderia ver minha filhinha?

 

— De manhã estamos muito ocupadas. Logo mais.

 

Apoiando-se na parede, ela fitou o teto. Talvez se tomasse uma xícara de café forte pudesse sentir-se melhor. Foi à cantina, no porão. Olhando por cima da beira da xícara, mantinha os olhos fixos no relógio... O ponteiro parecia que nunca se mexia. Ah, meu Deus, essa espera era insuportável. Após tomar três xícaras de café, tornou a subir.

 

Às nove horas, viu o médico entrar na enfermaria. Pensou que acabaria morrendo antes de ele voltar. Rapidamente foi ao seu encontro.

 

— bom dia, doutor. O senhor viu Pnina?

 

— Vi.

 

— Como está ela?

 

— Quase do mesmo modo que ontem. Fizemos um diagnóstico. Ela realmente está com tracoma...

 

Dvora procurou firmar-se, depois respirou.

 

— É grave?

 

—- Felizmente está na fase inicial. Acho que pode ser curada em pouco tempo...

 

— Quanto tempo?... Preciso avisar meu marido.

 

— Creio que ela deva ficar aqui cerca de um mês. Dvora sacudiu a cabeça.

 

— Graças a Deus.

 

A notícia era melhor do que ela esperava. De tarde, escreveu para Ari:

 

         ”Querido Ari,

Nossa ansiedade a respeito de Pnina era exagerada. Acho que os pais sempre pensam no pior, mas você pode ficar tranqüilo.

Pnina está com tracoma, mas não é grave. Se tivéssemos sido negligentes, a doença se teria agravado. Nãovou me preocupar com outras coisas além do fato de que logo estaremos todos juntos em casa. Fique tranqüilo e dê um beijo em Zvi por mim.

                     Sua, para sempre, Dvora.”

 

Após cinco semanas de ansiedade e solidão que pareciam não ter fim, a espera terminou, e Ari pôde levar Dvora e Pnina para casa.

 

Quando olhou para a família, ele compreendeu que Dvora tinha feito milagres com a pequena Pnina; mas ela havia trabalhado tanto que ele estava preocupado com sua saúde.

 

— Você não pode continuar assim, Dvora.

 

Ela olhou para ele e sorriu, como se ele tivesse dito uma coisa boba demais.

 

Mas, depois que as contas dos médicos foram pagas e não havendo safras para vender, estavam completamente sem dinheiro. Os trabalhos na nova casa tiveram que ser suspensos. As crianças precisavam de sapatos, Ari precisava de sementes para plantar. Dvora estava fora de si. As necessidades eram tão grandes, que pensou em dar o braço a torcer e pedir ajuda a Chavala. De fato, ela chegou a sugerir isso a Ari.

 

— Não — respondeu ele. — Não podemos fazer esse empréstimo. Não quero a caridade de ninguém.

 

— Mas Chavala tem nos mandado algumas coisas, e você não se opôs...

 

— Isso é diferente; são para as crianças. Mas nãovou aceitar dela aquilo que nãovou poder pagar.

 

Mas Dvora não ligava para esse orgulho. Tinha certeza de que um empréstimo seria uma responsabilidade grande demais. Em sua carta para Raizel, achou difícil não desabafar.

 

Raizel não podia deixar de contar a Chavala as dificuldades de Dvora:

 

                     ”Querida Chavala,

Sei que a honra é coisa importante, e nunca se deve quebrar uma promessa... Mas sinto que não posso honrar o que prometi a Dvora.

Há dois meses, Pnina foi acometida de tracoma. Graças a Deus a criança se recuperou e está bem; mas, por causa da doença, eles tiveram que contrair muitas dívidas, e, como você sabe, quando as coisas começam a ir mal, parece que tudo acontece de uma vez. Eles têm sofrido um fracasso após outro, com suas safras. O dinheiro mal dá para comprar sementes.

Sei que você nunca me perdoaria, se eu ficasse calada a esse respeito. Não consigo entender o orgulho de Ari, mas quando a necessidade de uma criança é tão grande, é preciso deixar de lado os sentimentos.

Sinto muito, querida Chavala, por ter que lhe transmitir esta má notícia, mas tinha que falar com franqueza. Espero que, ao receber esta, todos vocês estejam gozando de boa saúde, e que Deus a abençoe por tudo o que você já fez. com amor e devoção,

                       sua irmã, Raizel.”

 

Quando Chavala recebeu a carta de Raizel, teve uma sensação momentânea de raiva, pelo fato de Dvora não lhe ter confidenciado aquilo. Afinal, o que elas pensavam que ela estava fazendo ali, vivendo afastada do marido, a não ser garantir o futuro da família? Ajudar sempre que pudesse? Então, rapidamente, esse sentimento foi substituído pela preocupação com Dvora e sua família. Obviamente, Dvora não quisera sobrecarregá-la com essa má notícia. A coragem de Dvora, sua lealdade a Ari era tão grande... ir contra os desejos do marido, pedindo qualquer coisa, seria impossível...

 

Infelizmente, porém, no momento, o que a casa de penhores estava faturando mal dava para cobrir as despesas e mandar um pouco para a Palestina. Mas era uma crise. Era preciso tomar uma providência. Chavala entrou em ação.

 

Foi à sala dos fundos, tirou uma das caixas de charuto do cofre, trouxe-a para a mesa e sentou-se. Abriu-a e tirou as pedras maiores, apanhou a lupa e examinou cada uma delas... a cor era branco-azulada... sem carbono... um quilate e meio. Valiam duzentos e cinqüenta dólares por quilate.

 

Escolheu cinco das melhores e levou-as ao sr. Leibowitz.

 

— Minha querida Chavala, os negócios devem estar indo bem. Há quanto tempo não a vejo! — disse o velho, quando ela entrou em seu escritório.

 

— Minha família está se queixando da mesma coisa. Ela está certa e o senhor também. Mas isso não é porque os negócios estejam indo bem. Eu tenho de ficar na loja, esperando que chegue algum cliente.

 

— É difícil para uma mulher... Eu sei, Chavala.

 

— Não me importo com isso... é minha irmã Dvora que está com problemas.

 

Contou rapidamente a situação de Dvora ao sr. Leibowitz, depois pôs as pedras em cima da mesa.

 

— Tenho de vender estas pedras imediatamente. Ele as examinou cuidadosamente.

 

— São pedras muito boas.

 

— Qual é o máximo que posso conseguir por elas?

 

— Bem... duzentos e cinqüenta dólares por quilate.

 

— A quem devo oferecer?

 

— Eu poderia fazer uso delas.

 

Ela encolheu os ombros. As palavras não contavam para o que ela sentia. Foi imediatamente ao banco e sacou os mil dólares que possuía em sua conta, ficando sem fundos. Juntou essa quantia ao apurado com a venda das pedras, depois tomou providências para que o dinheiro fosse enviado o mais rápido possível.

 

Quando Dvora recebeu os dois mil e quinhentos dólares, ficou surpresa. Podia imaginar como Chavala ficara sabendo da situação.

 

Não fazia mal. Era maravilhoso ter uma família, e ela deu graças a Deus pelas suas irmãs. E não se sentiu diminuída, de modo algum, pela ajuda de Chavala. Ao invés disso, teve uma sensação estranha de estar rica, não por causa do dinheiro, mas porque era um presente de amor, de um ente querido.

 

Além disso... e Dvora ficou extremamente entusiasmada... recebeu a notícia de que Dovid e Reuven viriam visitá-los, que Reuven iria ficar em sua casa... Levantando os olhos do trabalho de horta que estava fazendo, ouviu o ruído do carro de Dovid que se aproximava. Rapidamente, apanhou Pnina e foi recebê-los.

 

Depois de ser apresentado à pequena Pnina, que não conhecia, Reuven foi para o campo, a fim de ver o tio e o primo; Dvora e Dovid puderam sentar-se para conversar um pouco.

 

— A casa está quase pronta, não? — perguntou Dovid.

 

— Está, vamos mudar-nos dentro de mais ou menos um mês... Espero que Reuven se sinta feliz conosco, Dovid.

 

— Ele se sentirá feliz, tenho certeza...

 

— Ele fala muito em Chavala?

 

Ela sabia que esse era um assunto delicado, achava melhor falar disso agora, em termos de Reuven, mais do que em termos de Dovid.

 

— Não muito... ainda não.

 

— Sabe, Dovid, Chavala nunca se queixa. Espero que você saiba... ah, tenho certeza de que sabe... que esta separação não é fácil para ela também. Você pode não concordar, mas o que ela está fazendo não é só para si...

 

Dovid ficou aliviado quando Ari e os meninos entraram, interrompendo a conversa.

 

— Dovid, que bom ver você! Dovid assentiu, um pouco formal.

 

— Tudo parece estar bem, Ari. É notável o que você realizou aqui, apenas neste último ano.

 

— Eu tive quem me ajudasse — disse Ari, olhando para Zvi. — E este ano vai ser ainda melhor com Reuven aqui... você acha que vai gostar de ser fazendeiro?

 

Esse pensamento sempre acompanhara Reuven... desde os tempos de Athlit e, especialmente, na noite do jantar com Aaron... Os ecos voltaram...

 

— Quero ser cientista como meu pai... — disse Reuven. Esse era o seu sonho. Bem, mesmo na idade de Reuven, e com o que havia passado, ele sabia que, às vezes, a gente se conforma com um pouco menos do que o sonho... não contrariado, mas de fato feliz, a não ser por... se ele pudesse refazer seu mundo, de modo que a mãe e o pai ficassem juntos, formando uma família, e se ele e o pai trabalhassem a terra da maneira como Ari e Zvi faziam... e seu irmão Joshua poderia saber o que é ter terra sagrada debaixo dos pés... Chegaria ele a compreender a mãe, pelo que ela havia feito?... Olhou para o pai, depois para o tio. — Quando eu estava na América, eu só pensava nisso... sim, tio Ari, euvou gostar de ser fazendeiro...

 

Dovid olhou para o filho. Sentiu que havia um elo entre eles, e que ia até além dos dois. A chama de Sião nunca seria apagada. Seria passada de geração para geração. Era eterna. E juntamente com a alegria dessa convicção, sentiu tristeza em relação a Chavala. Se ela compreendesse que, apesar de tudo o mais, suas vidas separadas estavam incompletas... e que todo o desespero que Raizel e Lazarus suportavam, as dificuldades por que Ari e Dvora passavam, tudo isso era parte da riqueza da vida... Mas ele também era responsável por eles não estarem juntos... seu amor por Eretz Yisroel, como ele comparava isso com seu amor por Chavala? Bem, ele só podia esperar. No fundo, sabia que o legado mais verdadeiro da vida era o amor sincero de um homem por uma mulher. Quando ele e Chavala iriam sentir isso em seus corações?...

 

Ele estava tão absorto que mal ouviu Dvora dizer:

 

— Reuven querido, vá buscar suas coisas no carro; e, Zvi, traga as do tio Dovid.

 

Quando os meninos saíram, Dvora disse a Dovid:

 

— Sinto muito, Dovid, por... bem... pelas circunstâncias que trouxeram Reuven de volta; mas já que ele está aqui, posso lhe garantir que isso significa muito para Zvi. Ele tem falado de Reuven como de um irmão mais velho.

 

Dovid hesitou por um momento.

 

— Fico contente de ver que algo de bom resulta da separação...

 

Felizmente, os meninos entraram com as malas.

 

— Onde quer que eu ponha isto, tia Dvora? — perguntou Reuven.

 

Ela sorriu.

 

— No seu quarto e de Zvi. Mais tarde a gente desfaz as malas, depois do jantar... E seja bem-vindo ao nosso lar, Reuven.

 

Ele deixou de lado o pensamento da mãe.

 

— É bom estar em casa... quer dizer, em sua casa...

 

Não passou despercebido a Dovid o lapso verbal de Reuven. Talvez não fosse casual que o filho não se sentisse estranho na casa dos outros. Reuven era parte dos cinco mil anos de história dos judeus... Talvez não fosse acidental o fato de ele estar ali naquele momento, para ajudar a reivindicar a herança que fora prometida há tanto tempo...

 

Às quatro horas da madrugada, Reuven foi iniciado na vida de fazendeiro.

 

— É hora de levantar-se Reuven — disse Dvora, sacudindo-o de leve.

 

— Que horas são? — perguntou ele, espreguiçando-se.

 

— Pouco mais de quatro — disse ela rindo. — Seu pai já ordenhou as vacas. Na verdade, ele estava impaciente para começar o trabalho esta manhã.

 

Reuven saltou da cama rapidamente, tremendo um pouco ao vestir o roupão, e foi para o prédio anexo. Quando voltou, vestiu-se apressadamente, foi para a cozinha e juntou-se aos outros, que estavam fazendo o desjejum, com pepinos, tomates, queijo, pão caseiro e chá.

 

Depois, Dovid pôs o arado na mão de Reuven.

 

— Bem, vamos ver você arar um pouco, em linha reta. Reuven olhou para o pai.

 

— O que você pensa que sou, um gênio? Em linha reta... eu nem sequer sei mexer nesta coisa...

 

— Você aprende.

 

Por volta do meio-dia, após horas de trabalho suado, Reuven parou, tendo Dovid a seu lado, e olhou para os sulcos; depois para o pai. Os dois deram uma risada.

 

— Você já cultivou trigo torto? — perguntou Reuven.

 

— Uma ou duas vezes... depois do almoço ele fica certo.

 

— Acho que você estava só testando, não é?

 

— Só testando. Sabe, não pensei que você fosse um gênio. No fim daquele dia, Reuven foi dormir satisfeito, deu boa-noite ao pai e acrescentou:

 

— Amanhã vou arar em linha reta, nem que morra.

 

Não foi precisamente no dia seguinte que Reuven conseguiu realizar a façanha, mas, quatro dias depois, ele estava em condições de dizer ao pai, enquanto arava:

 

— Você vai ter que fazer a semeadura mais rápido.

 

com exceção dos shomrim que defendiam as colônias, nenhum judeu podia portar ou possuir armas, por ordem dos ingleses. Bem, essa era uma lei que Dovid não honraria, não quando se tratava do filho. Tirando a carabina alemã da caixa, ele a entregou a Reuven.

 

—vou lhe ensinar a se defender. Agora lembre-se: isso é para ser usado só com essa finalidade e nenhuma outra...

 

Todas as manhãs, de madrugada, Dovid levava Reuven para as partes mais afastadas da fazenda. Mostrou-lhe os dispositivos de segurança, ensinou a carregar e descarregar a arma, limpá-la e conservá-la. A princípio, Reuven errava todas as garrafas e latas vazias que serviam de alvo. Mas depois, gradativamente, com orientação de Dovid, conseguia mirar e partir uma pedra que o pai jogava para cima.

 

A lição seguinte de Reuven foi a de defender-se com um chicote. No primeiro dia, Reuven pensou que seu braço ia soltar-s,e mas, algum tempo depois, começou a assimilar a técnica de ataque; mais tarde, conseguia cortar em duas uma folha de papel, com uma só chicotada. Dovid não sentia nenhum prazer em transmitir essa lição ao filho, mas era um fato da vida, como a sobrevivência...

 

Passou-se uma semana; agora, enquanto Dovid observava o filho arando o campo, aquela visão lhe dava uma alegria especial, temperada pelo pensamento de que o filho com certeza teria que passar a vida inteira com um arado em uma mão e uma arma na outra.

 

E esse pensamento não o deixava... acaso não deveria ter considerado os perigos, quando Reuven quisera voltar com ele? De certo modo, Chavala era muito forte. Ela queria paz e segurança para a família, especialmente para seus filhos, e como poderia culpá-la por isso? Ela conhecera a violência, a tirania e o derramamento de sangue. Naquela manhã, Dovid não estava seguro de si. E, no entanto, sentado na cerca, observando Reuven abrir o solo em sulcos, com Zvi atrás plantando as sementes, como poderia questionar se isso era sua herança, pela qual valia a pena lutar?

 

Ao meio-dia, Dvora entrou no campo levando o almoço para seus homens. Pousou o cesto no chão e ficou em pé com as mãos na cerca onde Dovid estava sentado; depois olhou para os dois meninos ao longe. Por um momento, nem ela nem Dovid falaram. Depois ela disse:

 

— Reuven é tão parecido com você... é espantoso como ele aprendeu rápido... Só espero que o que estamos fazendo torne a vida mais fácil para eles...

 

— Não tenho tanta certeza de que alguma coisa vá facilitar-lhes a vida. Mas pelo menos eles estão crescendo sem saber que é ser um judeu de gueto. Serão livres, e é isso o que conta... Poderão viver suas vidas com dignidade, com orgulho de sua condição de judeus. Acho que esse é o melhor legado que podemos deixar para eles.

 

Ela assentiu, mas sentir-se-ía mais à vontade com idéias mais simples..

 

— Reuven vai sentir sua falta, quando você for embora amanhã.

 

— Eu sei... se eu não tivesse que ficar afastado tanto tempo... Quando eu voltava da América, cheguei até a pensar em uma pequena fazenda onde pudesse trabalhar com Reuven. É disto que gosto: usar minhas mãos. Mas é bobagem, eu não posso voltar... tem acontecido muita coisa, há muito o que fazer...

 

O vale que Dovid desejava há tanto tempo estendia-se ao sul da Galiléia. Poucos conheciam e entendiam a terra melhor do que ele... aqueles anos passados em Athlit lhe tinham valido a fama de ser um homem que sabia fazer o deserto florescer. Ele sabia que, por baixo daqueles pântanos, estava um solo fértil, negro, produtivo. Era preciso dinheiro e conhecimento para se ensinar novos colonos a cultivar sem fracassar. O sonho daquele vale havia acompanhado Dovid. Tinha ido trabalhar com Myer Beni, um arquiteto judeu francês que projetara muitos dos moshavim e kibutzim do vale de Jezreel. com a suspensão das restrições por parte dos ingleses, Dovid estava livre para levar um plano completo à Agência da Colônia Sionista. Herzl havia dito: ”Se você quiser, não será apenas um sonho”. A agência votou a favor da idéia de Dovid, e ele foi enviado a Beirute, para fazer a compra. O terreno incluía uma área entre Haifa e Nazaré. A compra do Jezreel entusiasmou os judeus; chegou ajuda de todas as partes do mundo. Esse primeiro passo abriu o caminho para o estabelecimento de centenas de novos kibutzim, e com eles cresciam as cidades, construíam-se habitações nas colinas de Haifa e em Tel Aviv. Em Jerusalém, fora da Cidade Antiga, iniciou-se a construção intensiva, visto que crescia a necessidade de os judeus expandirem a velha e restrita comunidade. Parecia que o yisbuv podia começar a acreditar que, após dois mil anos de perseguição, havia encontrado um pouco de justiça. O Yishuv Central tornou-se uma espécie de governo porta-voz dos judeus, servindo também de ligação entre a Agência da Colônia Sionista e os sionistas de todo o mundo. Embora Dovid não tivesse ambições políticas, havia se envolvido muito e era responsável por grande parte do planejamento. Era muito conhecido pelo seu trabalho no vale de Jezreel. Tinha se dedicado de corpo e alma a esse trabalho. Por isso, embora não o tivesse procurado, foi eleito para o Yishuv Central. Isso se tornou o centro de sua vida...

 

Bem, o seu trabalho tinha uma nova fronteira agora.

 

— Na próxima semana, a agência vai enviar-me a Paris, para tentar negociar uma extensão de terra de propriedade do barão Rothschild — disse ele a Dvora. — Ele está muito inflexível para vender, masvou esperar até que o inferno se congele, se for necessário. Precisamos dessa terra para a colonização, e precisamos agora.

 

Onde fica a terra?

 

— Perto da Transjordânia.

 

— Por que lá?

 

— Quando nós nos tornarmos uma nação... e eu sei que isso acontecerá... teremos que garantir as fronteiras; e quanto mais colônias tivermos nessa área, tanto mais forte será nossa posição.

 

— Dovid, você acha mesmo que temos chance de nos tornarmos uma nação?

 

— Se não achasse, então iria para a América entrar no negócio de jóias com Chavala.

 

Tentou ocultar certa amargura na voz, mas não foi muito bem sucedido.

 

Dvora sacudiu a cabeça. Ela recordava muito bem o quanto Chavala tinha se sacrificado. Sem Chavala, a fazenda não estaria tão verde e luxuriante. Sem Chavala, Pnina teria corrido o risco de ficar cega. Ela esperava que Dovid recordasse isso também, mas não seria bom fazê-lo recordar agora.

 

— Bem, espero que você tenha razão, Dovid... isto é, sobre a possibilidade de termos nosso país... E agora, é melhor eu continuar a fazer o almoço.

 

Dovid desceu da cerca, apanhou o pesado cesto de comida e atravessou o campo, acompanhado de Dvora.

 

Reuven não estava conseguindo aceitar a partida de Dovid, o que não era de surpreender. Embora ele não quisesse encarar esse fato, os dias maravilhosos em companhia do pai tinham chegado ao fim; e agora estava ali parado, olhando para o pai, momentos antes da separação.

 

— Quando você vai voltar, abba? — perguntou, tentando manter a voz normal.

 

— Assim que voltar de Paris.

 

— Bem... Desejo-lhe uma boa viagem. Desviou o olhar.

 

— Melhor do que boa, por favor. Deseje-me sucesso; e sorte. Reuven assentiu.

 

— Eu desejo... você escreve?

 

— Todos os dias — disse Dovid. Olharam um para o outro; lentamente, Dovid pôs as mãos nos ombros de Reuven, abraçou-o. Depois afastou-se do filho rapidamente, dizendo: — Tenha cuidado, Reuven... e lembre-se do que eu lhe disse a respeito da arma... somente em legítima defesa... somente quando não houver outra alternativa.

 

— Lembrarei.

 

— Ótimo... Eu amo você, filho.

 

Rapidamente, Dovid entrou no carro e ligou o motor. Reuven ficou observando o carro afastar-se até desaparecer ao longe; depois dirigiu-se lentamente para os campos, onde se deitou entre os eucaliptos e chorou até cansar-se e adormecer.

 

                                           Capítulo vinte e sete

Para Chavala, aquela separação tinha sido ainda mais difícil do que a primeira; mas enquanto os dias se tornavam semanas e as semanas transformavam-se em meses, ela trabalhava ainda com mais afinco do que antes. Seu objetivo... ganhar dinheiro suficiente para unir toda a família... foi reforçado pela necessidade de eliminar a dor da separação.

 

Nesse dia, Chavala estava sentada na loja, examinando os livros como fazia com freqüência; mas simplesmente não conseguia concentrar-se.

 

Depois de fechar a loja, Chavala baixou as persianas e falou com Moishe.

 

— Fui falar com o sr. Leibowitz.

 

— Sobre o quê?

 

— Bem, eu disse a ele que estava muito contente com o tipo de vida que estamos levando, mas que isso não é suficiente para satisfazer nossas necessidades. Ele me mandou à firma de Hammerstein, que me ofereceu uma linha de negócios por comissão.

 

Moishe mal podia falar.

 

— Por que você está tão chocado, Moishe?

 

Fizera essa mesma pergunta ao sr. Leibowitz. Ele não a tinha mandado a Hammerstein exatamente como ela dissera. Ela havia perguntado:

 

”Como se pode ganhar dinheiro em joalheria sem ter que possuir uma loja varejista?”

 

”Bem, isso não serve para você, é bom que eu lhe diga logo. Um homem pode assumir um negócio, seguir em frente e vencer, ter sucesso. Eles pagam cinco por cento sobre as vendas.”

 

”Então, se eu vendesse vinte mil dólares, ganharia mil dólares?”

 

”Bem, você não, Chavala, mas um vendedor...”

 

”Por que não eu, sr. Leibowitz?”, perguntara.

 

Até falar disso estava tão fora de cogitação que o sr. Leibowitz só pudera encolher os ombros.

 

”Por que o senhor está tão chocado? Só porque eu não sou homem?”

 

Ele confirmara, murmurando:

 

”É... Acho que é isso mesmo o que quero dizer... Chavala uma mulher não vai à praça negociar. Isso não é para uma mulher, acredite em mim.”

 

Chavala sorrira.

 

”Sabe, sr. Leibowitz, nós, judeus, tivemos uma generala, e o nome dela era Deborah. Aposto que ela nem sequer freqüentou uma faculdade, e muito menos foi uma negociante”, dissera ela. O sr. Leibowitz tivera que sorrir. ”Escute, eu leio os jornais, não apenas em iídiche, mas o New York Times. Li a respeito de uma mulher que está ajudando outras mulheres a planejar suas vidas, para não acabarem com tantos filhos, a ponto de todos terem que passar fome. E sobre a responsabilidade de uma mulher para evitar que haja uísque neste país. o senhor sabe, a Lei Seca. esse é o nome. Bem, se essas mulheres puderam fazer isso, então eu com certeza posso trabalhar por comissão.”

 

Seu sorriso congelara-se.

 

”Isso é outra coisa; elas não tinham que arrastar uma maleta de mercadoria de uma cidade para outra..”

 

”De fato. Mas uma delas arrastou um machado”, argumentara ela, rindo. ”Além disso, imagino que, aqui em Nova York, haja lojas suficientes; por isso, não terei de viajar. Bem, sr. Leibowitz, diga-me, como amigo, quem concordaria em me dar um trabalho por comissão?”

 

Ele balançara a cabeça. Se Chavala dizia que queria uma coisa, nada a deteria.

 

”Está bem. Vá falar com Hammerstein. Talvez... talvez ele lhe dê ouvidos.”

 

Mas ele esperava que não. Para o bem de Chavala.

 

”Sr. Leibowitz, como posso lhe agradecer? E por favor, venha jantar hoje conosco...”

 

Agora era Moishe quem dizia:

 

— Uma vendedora? Não estou entendendo, Chavala..

 

— Escute, Moishe, eu posso vender tão bem quanto um homem. Eu sei...

 

— Não é essa a questão. Uma mulher não deve viajar sozinha; e, além disso, o que você vai fazer com o bebê?

 

—vou responder ao primeiro argumento. Eu não viajaria; no máximo iria aos subúrbios de Nova York; e ficaria mais aqui por Manhattan. Quanto ao menino, graças a Deus, ele vai indo bem, passa os dias com a sra. Zuckerman. Continuaria apanhando-o de noite, como tenho feito.

 

Moishe, que sabia quando ficava desarmado, encolheu os ombros.

 

— Não posso deter você — disse ele. — Que Deus a ajude e boa sorte.

 

— Obrigada, Moishe; você verá. Em breve poderemos abrir uma loja.

 

Chavala mandou enrolar o cabelo, como estava na moda, pois agora ela observava avidamente a maneira de vestir das senhoras de Manhattan quando elas andavam pela Fifth Avenue. Procurou um conjunto de saia e casaco na Gimbels, azul-marinho, e uma blusa de seda branca. Comprou sapatos e uma bolsa, depois foi à seção de cosméticos e, pela primeira vez, comprou batom.

 

Não apenas Moishe ficou chocado com a transformação de Chavala, o sr. Hammerstein ficou mudo. Ela era bonita. Se ele tivera algum mau pressentimento a respeito de Chavala como vendedora, agora não o tinha mais. Além disso, havia sido conquistado pelo charme, a inteligência e a habilidade que ela possuía de fazê-lo compartilhar da sua certeza de que venderia qualquer coisa que decidisse vender. Mas por aquilo ele não esperava.

 

E Chavala provou que podia fazer exatamente aquilo que dizia. Não se preocupava com o fracasso. Nem sequer pensava nisso. E o medo?... Matara dois homens para que sua família sobrevivesse. Acaso ia se preocupar em ser recusada por um cliente ou com olhares ou perguntas? Pouco importava o tempo que tivesse de esperar para falar com o cliente; ela esperaria. Não era tímida, não usava os recursos femininos para vender, a não ser a boa aparência. Claro que, a princípio, houve uma certa resistência devido ao fato de ela ser mulher; mas para isso havia jeito. Obviamente, essa era uma curiosidade. Bem, as pequenas mentiras que ela dizia não prejudicavam a qualidade de sua mercadoria. Há quanto tempo estava nesse ramo?... Toda a sua vida. Ela nascera joalheira. Vinha de uma longa linhagem de joalheiros europeus. Mordia a pulseira de brilhantes da mãe, e assim por diante.

 

Depois que a resistência inicial foi rompida, os clientes levavam-na até para almoçar. Almoço? Ótimo. Os jantares eram recusados cortesmente... Ela estava cansada; era uma vida difícil para uma mulher, mas também compensadora... Olhe as pessoas que a gente encontrava... E os cheques de comissão cresciam cada vez mais.

 

Até que, certa tarde, quando voltou para se encontrar com o sr. Hammerstein levando sua valise, ela sentiu um hálito quente em seu rosto e o braço dele em torno de sua cintura.

 

Bem, bem... parecia que o sr. Leibowitz não estava enganado. Ser mulher tinha suas desvantagens no mundo dos homens. Ou talvez, para algumas, suas vantagens... Ela tinha vindo do shtetl, mas sabia que uma mulher podia ganhar mais dinheiro com seu corpo do que por comissões. Mas ela não.

 

Soltou-se do sr. Hammerstein, olhou para seu rosto vermelho, afastou-se de sua respiração irregular. Arrastando as palavras, disse:

 

— O senhor é um bobo, sr. Hammerstein. É baixo. Não fique pensando que está me agradando, e não pense que eu esteja com medo. Estou simplesmente enojada e aborrecida. Dê uma olhada nas fotografias de seus netos Vou esperar meu cheque lá fora.

 

Saiu batendo a porta atrás de si.

 

Sim, estava ofendida com a atitude do sr. Hammerstein, mas estava muito mais contrariada porque seu enorme sucesso nesse ramo fora tão curto. Sim... provavelmente ela conseguiria outro trabalho, mas e daí? Havia outros srs. Hammersteins lá fora... tinha certeza de que eles viriam em diferentes tamanhos e formas. Por isso, Chavala voltou para a casa de penhores, mas nada disse a Moishe sobre suas verdadeiras razões...

 

— Mas você parecia muito feliz — disse Moishe, ao ver Chavala examinando, com a lupa, um pequeno anel que ela havia comprado aquela manhã.

 

— Eu estava, sim, mas desse modo não se pode ganhar o suficiente... e além disso, gosto de ser meu próprio patrão — respondeu. ”E não uma mulher disponível”, pensou.

 

— Para dizer a verdade, estou feliz por você estar de volta. Jamais gostei da idéia de você andar por aí arrastando todas essas jóias. Uma mulher tem de ter mais cuidado do que um homem...

 

— Você tem razão, Moishe... Escute, já está quase na hora de fechar. Baixe a persiana e tranque a porta.

 

Obviamente Chavala estava pensando em fazer alguma coisa. Ela nunca fechava a loja na hora certa; muitas vezes a deixava aberta uma ou duas horas após o expediente.

 

— Sabe, Moishe, estive pensando... — disse, sentada na sala dos fundos.

 

Quando começava uma frase assim, com aquele olhar distante, Moishe sabia que ela estava pretendendo fazer alguma coisa...

 

— Bem, em que você esteve pensando?

 

— Que agora precisamos abrir uma joalheria.

 

— É uma idéia muito boa; mas parece que você disse, uma vez, que para isso era preciso um bom estoque, e isso nós ainda não temos. Além disso, estamos ganhando a vida aqui...

 

— Não renunciei a meu marido para ganhar a vida... Vim para cá com o objetivo de ganhar muito dinheiro. Tenho minhas razões...

 

Moishe riu.

 

— Eu não ficaria infeliz se você ganhasse um milhão de dólares; mas diga-me, o que você pretende usar como capital?

 

— Meu cérebro e correr alguns riscos. Nós dois já fizemos isso antes — disse, engolindo em seco — Posso conseguir estoque...

 

— Alguém lhe dará isso em consignação?

 

— Quem? Não seja bobo, e eu não pediria ao sr Leibowitz. Além disso, o seguro seria tão alto que não estaríamos em condições de fazê-lo

 

— E então?

 

Chavala cruzou os braços e respirou fundo

 

— Encontrei um um receptador o sobrenome dele eu não sei, nem estou interessada em saber. Mas falei com esse conterrâneo e ele concordou em me vender

 

Moishe apenas ficou sentado, olhando. Chavala continuou apressada

 

— Ele parece um tzaddik, acredita? Embora eu tenha razões para pensar de outro modo Mas você ficaria surpreso de ver como ele parece bmn

 

Moishe resolveu falar, quase gritando

 

— Nós poderíamos ir para a cadeia

 

— Eu sei e não estou orgulhosa por ter de fazer isso nem sou tão orgulhosa que não possa fazê-lo. Mas é a única solução, Moishe

 

— Por que é a única solução? Para onde você está correndo? Quem está perseguindo você?

 

— O tempo. Tenho mais de trinta anos e uma família na Palestina que precisa de ajuda Não vou lhe falar, se você não sabe, sobre as dificuldades que eles estão atravessando Escute me Moishe, nós poderemos passar vinte anos aqui, e até lá estarei com mais de cinqüenta, e então será tarde demais. Você acha que vou ficar parada, vendo minha família passar fome? Eu tenho dois filhos sem futuro, e Chia tem de ir para a faculdade. E você? Se encontrasse uma moça com quem quisesse casar, como a sustentaria? Não é kosher, e eu não quero fazer isso, mas tenho que fazer

 

— Compreendo, você já imaginou tudo. bem, não quero tomar parte nisso

 

Chavala suspirou. Moishe, o provocador... o amante de seu povo... o guerreiro idealista... Isso foi ontem... Ela se arrependeu até de ter-lhe contado; devia ter ido em frente sozinha.

 

— Isso é com você, Moishe. A decisão é minha, e o risco também é meu, vou corrê-lo.

 

Ele balançou a cabeça, levantou se e começou a andar de um lado para outro

 

— Como foi que você encontrou esse tzaddik?

 

— Você pergunta demais, deve encontrar as respostas. Além disso, você não quer realmente ouvir Moishe parou e olhou para a irmã.

 

— Você quer dizer que realmente estaria disposta a levar isso em frente sozinha?

 

— Eu não precisei de um policial como guarda-costas quando carregava as jóias. Podia ter sido assaltada. Que adianta falar, Moishe? Já me decidi. Esse é o único caminho que vejo à minha frente... Não será para sempre; é só para conseguir um novo começo.

 

Moishe sabia que estaria louco se concordasse, mas como podia deixar Chavala lidar com o... o submundo sozinha? Finalmente, não encontrando uma alternativa, disse:

 

— Está bem... Eu sou contra, mas...

 

— E acaso eu sou a favor? Claro que não, mas tenho de fazer isso — disse ela, expondo o plano. — Você fica tomando conta da casa de penhores e eu dirijo a nova loja.

 

Moishe apenas fez sinal de que sim.

 

Naquela noite, quando foram buscar Joshua, Chavala segurou a criança bem apertado. Por incrível que parecesse, ele já tinha um ano, e que criança linda! Por que não? Ainda era a imagem do pai... Quando ele lhe estendeu os braços, ela ficou pensando se merecia semelhante bênção. Só o fato de ele a reconhecer já era uma gratificação para ela... Em todos aqueles meses, ela só pudera passar algumas horas com ele, de manhã, de noite e nos sábados. Talvez o amor fosse o tempo...

 

Talvez... mas ainda tinha sentimentos de culpa. Recordou a creche na Galiléia, quando apanhou Chia precipitadamente e voltou correndo para o seu cantinho e ficou esperando Dovid chegar... Nenhum filho seu iria ser criado sem os pais. Bem, os tempos tinham mudado, e às vezes era preciso fazer sacrifícios. Acaso havia alguma coisa perfeita na vida?...

 

Nessa manhã ela estava muito feliz por ser sábado. Todos os negócios fechavam aos sábados. E se alguém abrisse a loja, era apenas após o pôr-do-sol. No Lower East Side, ninguém desrespeitava a tradição. Por isso, iam fazer um piquenique naquele dia... esquecer a contabilidade.

 

— Chia, Moishe, vamos dar um passeio no parque — anunciou, como se isso fosse um grande evento; e para eles era realmente.

 

Chia ficou entusiasmada. Ela jamais se queixava, mas sentia falta do relacionamento caloroso que eles tinham outrora. Desde que a irmã passara a se ocupar tanto com seus negócios, havia cada vez menos refeições com toda a família reunida, cada vez menos oportunidades de falar de sua vida pessoal com Chavala, que, afinal, era mais mãe do que irmã. E sentia muita falta de Reuven, mesmo que os dois não se entendessem bem, quando ele vivia ali.

 

Quanto a Chavala, tinha quase esquecido como era agradável passar um dia com a família. Vestindo a criança, ela falava sozinha, mas dirigindo-se a ela...

 

— Meu querido Joshua, não pense nem por um momento que eu não o amo. Espero que isso não aconteça. Deus é quem sabe... para não mencionar alguns outros... Não sou a melhor mãe do mundo, mas se amar conta... bem, você pode contar comigo. Escute, estou tentando fazer o melhor que posso. Que posso fazer? Sei que estou perdendo muita coisa, e você também; mas sua mãe é louca. Por isso, enquanto você for tão pequeno, talvez isso não tenha importância. Que acha, Joshua?

 

Sorriu para o filho. Ele a imitou e riu também. Quase como se estivesse entendendo.

 

Corria o ano de 1922. Chavala encontrou uma loja que ela mal podia adquirir com os rendimentos do Harlem. Um começo. comprou os mostruários mais baratos que pôde encontrar; pintou-os, auxiliada por Chia. Forrou o interior dos mostruários com feltro verde. Quando a loja já estava limpa e remobiliada, ficou satisfeita. Não era a Park Avenue, mas era melhor do que a casa de penhores; disso não tinha dúvida.

 

Por intermédio do sr. Leibowitz, encontrou um velho joalheiro que sabia desengastar brilhantes e fundir metal. ”Um dia”, imaginou Chavala quando foi apanhar sua mercadoria, ”terei um lugar assim. Na Fifth Avenue ou na Park Avenue. Por que não?” Se um indivíduo tinha um sonho, era melhor transformá-lo num grande sonho.

 

Mas deixou os sonhos para outra ocasião. Em pouco tempo, seus preços baixos atraíram fregueses... Tentava não prestar muita atenção no tipo dos clientes... eles vinham com seu dinheiro, e era isso o que importava. Pagavam em dinheiro; não havia recibos nem devolução. Se algum janota queria um alfinete de cinco quilates, Chavala falava com o conterrâneo e, de um modo ou de outro, ele lhe possibilitava satisfazer seu cliente. Aqueles por quem ela sentia mais antagonismo eram os judeus alcoviteiros, prostitutas e bandidos. Não ligava muito para o que os goyim faziam, mas sua gente... Apesar do dinheiro que ganhava deles, Chavala desejava que fossem para outro lugar com seus negócios. O dinheiro dessa gente parecia manchado, e ela achava que a mancharia também. Em outras ocasiões quase aceitara esse dinheiro como uma espécie de justiça poética, devido a sua própria situação entre eles. Ah, sim, ela tinha boas razões, mas talvez eles tivessem também... Certa vez acordou no meio da noite com um pesadelo. Um verdadeiro pesadelo. Que aconteceria se fosse descoberta? Que tipo de mãe era ela? Que tipo de pessoa faria o que ela estava fazendo?

 

Não, pelo menos não se desculpava; mas, por outro lado, suas necessidades e seus sonhos tornavam-se mais urgentes. Em junho, seria a formatura de Chia no curso secundário, e ela não podia continuar morando onde morava... Que tipo de amigos poderia fazer? Trazer para casa? Na Palestina as coisas pioravam cada vez mais... Ia mandar mais dinheiro e roupas para Raizel. Acaso suas contribuições não eram importantes? Por isso, continuou...

 

Agora Joshua tinha dois anos. E Chia estava quase na faculdade.

 

No dia da formatura, Moishe e Chavala observavam, com muito orgulho, Chia receber o diploma. Se havia um momento em que ela podia chorar um pouco, era esse. Ela havia mantido a promessa, parte de seu plano tinha se realizado... Pelo menos por enquanto, qualquer coisa que ela tivesse feito contra... ah, era melhor esquecer isso. Por um momento, ela estava de volta à sua choupanazinha, ao sul de Odessa, e viu-se fora de si mesma, olhando a Chavala de dezesseis anos de idade cortar o cordão umbilical e depois correr para a cozinha, a fim de meter a recém-nascida em água morna, depois em água fria, até fazê-la viver. ”Mantive minha promessa, mamãe. Sua pequena Chia teve mais sorte do que você e eu. Você está sentada aqui, mamãe, ao meu lado...”

 

Saiu do devaneio, ao ver Chia de pé diante dela, com o belo vestido de organdi branco. Tinha se transformado numa moça muito bonita... Sim, fosse o que fosse que tivesse feito, ou viesse a fazer, sentiu-se recompensada quando Chia disse:

 

— Ah, Chavala, não sei como agradecer a você.

 

— Obrigada a você, Chia, por ser você mesma. Sabe quantas mães podem dizer isso? Bem, minha querida, tenho uma coisa para você; hoje vamos comemorar.

 

Para variar, Chavala não ia se preocupar com as despesas. Naquele dia, não. Chia teria algo que recordar com um prazer especial.

 

Almoçaram no Plaza Hotel. Um lugar maravilhoso e imponente, onde nenhum deles jamais estivera. Como é que Chavala sabia da existência daquele lugar? Essa pergunta foi feita por Moishe.

 

Simples. Quando ela vendia jóias, muitas vezes entrava no saguão para dar uma olhada. E olhava; não custava nada; e, além disso, uma pessoa devia estar informada das coisas. O mundo não se limitava apenas à Ludlon Street. Ela teve até o chutzpa de ter tomado uma xícara de café uma vez no Waldorf-Astoria Hotel. Foi pela entrada da Park Avenue, não a entrada da Lexington. Moishe ficou realmente impressionado.

 

Enquanto estavam sentados, tomando café, Chavala olhava para os irmãos. Era estranho que Chia nunca se tivesse interessado por rapazes, nem ao menos tinha namorado, pelo que Chavala soubesse, por que isso a surpreendeu assim tão de repente? Os negócios a consumiam; ela não tinha sequer pensado muito nessas coisas. Talvez não fizesse mal, com os bochers na Delancey Street... Quando Chia estivesse na faculdade, conheceria um jovem bom... Olhou para Moishe. A essa altura, ele já devia ter encontrado uma moça. Tinha mais de trinta anos. Se não agora, então quando seria?

 

— Moishe, você devia freqüentar ou dançar no... Centro Judeu.

 

Moishe olhou para ela.

 

— Você já deu uma olhada nas moças que vão lá? Yentas. Faça-me um favor, não se preocupe com minha vida amorosa.

 

— Bem, não estou preocupada. Acho, porém, que você devia se estabilizar.

 

—vou fazer isso, quando chegar a hora certa e aparecer a moça certa.

 

Chavala desistiu, temporariamente. Quando chegou o mês de junho, ela disse:

 

— Bem, acho que tenho uma surpresa para você. vamos mudar-nos. Moishe, chame um táxi.

 

Ao entrarem no táxi, Chavala deu o endereço ao motorista.

 

— Riverside Drive, 794. Moishe teve de perguntar:

 

— Para onde vamos?

 

— Você verá! Aproveite a paisagem e fique alegre por ter um dia de folga. Lembre-se de que lhe dei férias. Você deve agradecer a Chia; ela é a única que tem instrução.

 

Chia riu.

 

— com a cabeça que você tem, Chavala, não precisa de instrução.

 

Chavala sacudiu a cabeça.

 

-— Todo mundo precisa de instrução. Há uma grande diferença entre ser um pouco inteligente e ter instrução. Se eu tivesse instrução, não precisaria ser tão inteligente.

 

— Você está se saindo bem sem a instrução — disse Moishe, e por um instante, Chavala não conseguiu saber se ele estava sendo sarcástico ou não..

 

Logo o táxi parou junto ao meio-fio, e Chavala esqueceu todas as suas indagações, deixou de lado suas incertezas quanto a si própria.

 

— É aqui que vamos morar? — perguntou Moishe, olhando o belo prédio.

 

— Exatamente.

 

— Não consigo acreditar.

 

— Pode acreditar. Venham — disse Chavala, conduzindo-os ao elevador.

 

No sétimo andar, tirou as chaves da bolsa e abriu a porta do apartamento. Seu coração pareceu bater mais forte quando viu o apartamento novamente.

 

O vestíbulo que separava a sala de estar da sala de jantar era grande e quadrado. No fundo havia três quartos e dois banheiros. A cozinha era moderna, com geladeira nova e um fogão a gás de quatro bocas. A pia era de porcelana e a bancada, de azulejos amarelos. Era indescritível. Os três ficaram parados no meio da sala de estar, olhando para a ponte e a vista espetacular descortinada dali.

 

— Quem teria imaginado que Nova York é tão bonita? — disse Moishe.

 

Qualquer cidade podia ser bonita, desde que se olhasse para ela da janela certa, pensou Chavala. E para isso era preciso dinheiro. Bem, Chia ia freqüentar o Hunter Gollege, e precisava de um lar para onde pudesse convidar os amigos..

 

— Bem, Chia, que acha?

 

— Estou adorando. Ah, Chavala, não consigo acreditar que vamos morar aqui..

 

— E por que não? Nada é bom demais para os Rabinskys, salvo Odessa e a Palestina.

 

Moishe sacudiu a cabeça. Chavala realmente tinha realizado milagres. Nesse momento, ele até esqueceu o que fora preciso para a realização de tais milagres. Ela havia estabelecido os objetivos, e tinha alcançado alguns deles. Dvora tinha sapatos e dinheiro para alimentação, Raizel pôde comprar um novo sheitel e Lazarus podia ir agora à shul livre de pressões externas que interferissem em suas devoções. Uma prece que ele nunca mais teria que dirigir a Deus era pedir que Ele lhe desse um teto e alimento para sua crescente família, que já tinha cinco crianças.

 

— Bem, vamos ver a mobília — disse ela. — Espero que vocês aprovem.

 

Na Axelrod’s, na Third Avenue, escolheu um conjunto de móveis de brocado, cor de pêssego, mesas e abajur, uma mobília de quarto em estilo francês. A mobília da sala de jantar era a melhor que a Grand Rapid podia fabricar. Se ela ia gastar, tinha que ser com coisas boas. Alguns dólares a mais ou a menos não tornavam alguém mais rico nem mais pobre. com economia exagerada, prejudicando até a alimentação, uma pessoa não ficava rica. Dinheiro se ganhava com trabalho duro e investindo com cuidado. Era isso o que tinha sido feito. De gente vulgar Chavala não gostava. O que contava era saber como, quando e em que gastar.

 

— Então, Chia? Escolha a mobília que vai querer para seu quarto; e você também, Moishe.

 

Uma semana mais tarde, eles se mudaram para o novo apartamento. Joshua dormia numa cama, Chavala na outra. Mas, na primeira noite, Joshua dormiu com ela. Não tanto por ele, mas por ela própria. precisava tê-lo perto de si. Ele significava dois que formavam três, e ela estava sentindo falta de sua proximidade preciosa. Ele tinha se apegado tanto à sra. Zuckerman, que chegou a chorar quando Chavala contratou uma moça irlandesa para cuidar dele, durante o dia. Na casa da sra. Zuckerman, ele se sentia como em casa..

 

Setembro foi um mês de alegria e de lágrimas. Chia matriculou-se no Hunter College, e Chavala recebeu uma carta, naquela mesma sexta-feira, com a notícia de que Lazarus tinha sido morto, quando ia ao Muro das Lamentações, por uma bomba que explodira junto à porta de Jaffa.

 

Chavala fechou a loja imediatamente e foi ver Moishe na casa de penhores.

 

No momento em que entrou, Moishe compreendeu que havia acontecido alguma coisa terrível. Chavala ficou parada; estava tremendo. Ele saiu de trás do balcão e foi com ela para a sala dos fundos.

 

Por um momento, ela apenas fitou Moishe. Oh, meu Deus, que pesadelo! Se a família não tivesse ficado lá. para quê? Para isso? Será que as coisas iam bem demais na América? Deus não estaria gostando disso?..

 

— O que é? — perguntou Moishe, finalmente.

 

— Lazarus foi morto.

 

Moishe sentou-se. Houve um longo silêncio entre eles, depois Chavala disse:

 

— Euvou à Palestina.

 

— Todos nós devemos ir.

 

— Não. Nada poderá ajudar Lazarus agora. Mas eu posso ajudar Raizel. Você fica aqui, mantendo as coisas em andamento. Agora as necessidades vão ser ainda maiores. Vou levar Joshua. O pai e o irmão precisam vê-lo...

 

— E a loja?

 

— Feche-a; que mais podemos fazer?

 

— Podemos trazer a mercadoria para cá.

 

— É... Bem, que mais há para dizer? Raizel sozinha com cinco crianças... As coisas nunca se resolvem, não acha, Moishe?

 

— Acho que não. Não consigo me acostumar com a idéia. Quando é que você vai partir?

 

— O mais cedo possível.

 

Naquela noite o jantar foi muito silencioso.

 

— Acho que devo ir com você — disse Chia.

 

— Não. Raizel compreenderá; você não pode deixar os estudos.

 

— Chavala, eu também sou parte da família, você sempre fãlou na família. Eu não sou mais criança, posso ajudar. Posso deixar os estudos e recuperar depois ou..

 

— Não. É diferente. Quero dizer, é diferente para mim. O marido de minha irmã foi morto. Tenho de ir; ela pediu isso, e eu não ficaria tranqüila o resto da vida se não estivesse com ela agora. Mas você tem sua própria vida, querida. Sim, você é da família, naturalmente, é sua irmã também. Mas acho que pode compreender que é diferente. Eu lhe agradeço por querer ir; gostaria de poder aceitar. Acredite em mim; eu preferiria ir com você, ter esse consolo. Mas isso a magoaria muito e poderia prejudicá-la, e eu seria apenas indulgente comigo mesma. Sei que parece coisa banal, mas é verdade. A vida continua, realmente. Tem que continuar. E nunca foi tão importante lembrar-se disso como neste momento..

 

                                               Capítulo vinte e oito

Quanto mais o navio se aproximava da Palestina, maior era a ansiedade de Chavala. Nesse momento e nessa atmosfera, sentia-se culpada por ter se separado de Dovid. Culpada porque vivia no conforto e em segurança enquanto grande parte de sua família não apenas lutava, mas também vivia com o medo todos os dias. Esse pensamento tinha passado por sua cabeça mil e uma vezes, e continuava..

 

Ao vestir Joshua suas mãos estavam trêmulas. Era a primeira vez, desde o nascimento de Joshua, que Dovid ia vê-lo. E se não fosse a morte trágica de Lazarus, ela não estaria voltando agora.

 

Quando o navio ancorou no porto de Haifa, Chavala estava no convés com Joshua. Ela esquadrinhava a multidão; e quando viu a família. Santo Deus, a solidão e os sentimentos de isolamento voltaram de repente. E todas as boas razões para deixá-los, quatro anos antes, não pareciam tão convincentes e importantes agora. O preço que ela pagara pela América pareceu-lhe terrivelmente alto, quando passava pela prancha de desembarque.

 

Dovid observava Chavala e Joshua desembarcarem, e mal a reconhecia. Não eram os anos que a tinham mudado, mas sim a expressão, o ar de elegância. Ele a achava bonita, mas quase uma estranha, diferente da mulher de quatro anos atrás. Aquela não era a camponesa que ele amara e com quem se casara. Era uma mulher do mundo, e ele compreendia... e temia. que fossem mundos diferentes..

 

Estavam face a face agora. Por um momento, nenhum dos dois falou, houve um silêncio embaraçoso. Finalmente:

 

— Como é maravilhoso ver você, Dovid..

 

— É, Chavala, faz muito tempo. Até o abraço pareceu afetado.

 

Para Chavala, tudo parecia fora de foco. Sentiu, ao invés de apenas ver, Joshua ser tirado dela; observou Dovid quase devorar a criança, antes de voltar-se para ela e abraçá-la.

 

Ari estava falando..

 

— Estamos tão felizes por você ter vindo. Chavala assentiu, olhando para o filho mais velho.

 

A princípio, Reuven parecia relutante em abraçá-la. Chavala compreendeu, e conteve as lágrimas. Bem, cabia a ela tentar..

 

— Reuven... senti sua falta — disse. As palavras lhe pareciam vazias.

 

Dvora percebeu como a situação era difícil e condoeu-se por Chavala. Apesar de sua afeição por Reuven, ela achava que o menino tendia a ser um pouco rígido. Lembrou-se de como ele tinha criticado a mãe, por não ficar na Palestina, por ter ido para a América, onde ele nunca se sentira feliz. Ela havia tentado explicar a ele que Chavala tinha feito sacrifícios que talvez ele ainda não tivesse idade suficiente para compreender, e que ela não fizera isso só por si... não era por si... mas por toda a família. Reuven parecia não estar escutando, ou não queria escutar, o que era mais provável. Dvora se deu conta de que ela só podia esperar isso do menino, e resolveu apenas frisar que, quer ele compreendesse ou não a situação da mãe, quer a aprovasse ou não, devia lembrar que Chavala era sua mãe. Ela merecia pelo menos seu respeito..

 

Rapidamente ela foi até Chavala com Pnina. Chavala olhou para a menininha de olhos incrivelmente azuis, e de repente sua vida não pareceu tão vazia. Tomou a criança nos braços.

 

—- Eu lia suas cartas o tempo todo, Pnina. Elas me faziam feliz. Quero agradecer a você por elas.

 

— Obrigada a você, tia Chavala, pelas bonecas. Chavala conteve as lágrimas.

 

— Você é muito bem-vinda, tenho certeza. E agora, Zvi, meu. que rapaz grande. — disse, olhando para o menino, que tinha oito anos, e sentiu o passado voltar rapidamente. Lembrava-se do dia em que Dvora fora dizer-lhe que ela ia casar com Ari, e dissera: ”Está havendo uma guerra, por que você não espera?..” Tentou não recordar a continuação da conversa, mas em vão. ”E se ele não voltar?..” ”Então já terei seu filho..” E agora o filho daquele amor estava em seus braços. Que sensação agradável! Pensou nos anos que se haviam passado desde aquele dia, e subitamente se sentiu velha.

 

Dvora, sentindo a tensão novamente, dirigiu-se a Dovid.

 

— Deixe-me ver meu sobrinho. Joshua, eu sou sua tia Dvora.

 

O menininho olhou para ela e rapidamente baixou os olhos. Estavam acontecendo tantas coisas. Tanta gente estranha o segurava! Ele quis ir para os braços de Chavala, mas Reuven o tomou de Dovid. Desde o momento em que ele viu o irmãozinho pela primeira vez, sentiu uma afinidade especial com ele, um laço especial que parecia uma coisa física. que ia além da noção de simples fraternidade. que mais parecia uma promessa... à criança e a si próprio, de que eles sempre estariam juntos, de que ele a protegeria durante toda a vida. Esse sentimento foi avivado mais uma vez, quando ele disse:

 

— É uma pena termos de ser apresentados, mas sou seu irmão Reuven...

 

Uma situação embaraçosa, pensou Dovid, embora desconfiasse dos pensamentos que havia por trás das palavras de Reuven. Entretanto... E Dvora partilhava de seus sentimentos..

 

— Acho melhor a gente ir andando; Raizel está esperando — disse ela rapidamente.

 

Dvora tentava preparar Chavala, mas a dor de Raizel e dos filhos era indescritível. Estava sentada, em silêncio, como uma criança desamparada.

 

Que podia Chavala dizer? Nada consolaria Raizel.

 

— Raizel, por favor, tente lembrar-se das coisas boas, da felicidade que você deu a Lazarus e a si mesma. Você tem seus belos filhos por quem viver. Lazarus desejaria que você se lembrasse..

 

— Que farei sem ele, Chavala? Ele era minha vida..

 

— Ele vive em seus filhos, Raizel, e em sua recordação. E. bem, por favor, não se preocupe. Quero dizer, eu posso ajudar, qualquer coisa de que você precise..

 

Finalmente Raizel deixou as lágrimas correrem e abraçou a irmã.

 

Quando parou de chorar, Dvora disse:

 

— Acho que Raizel é como papai. Ele nunca se recuperou da morte de mamãe. Bem. é melhor a gente descansar um pouco, foi um dia longo.

 

Quando chegaram à pequena pensão onde a família estivera hospedada nas últimas semanas, eles foram para o segundo andar e pararam um momento diante do quarto de Dvora. A irmã deu um beijo de boa-noite em Chavala e, juntamente com Ari e Pnina, fechou a porta atrás de si.

 

Reuven e Zvi dividiam um quarto, mas, nessa noite, Reuven perguntou se Joshua podia dormir com eles. Chavala disse que sim, mas sentia-se, de certo modo, ameaçada por esse pedido. Era um medo que ela não podia articular nem justificar. concluiu que estava apenas cansada demais, preocupada com fantasmas..

 

Mas quando se achou a sós com Dovid novamente, sentiu-se dominada pela mesma sensação. Falaram pouco. Quando finalmente ela se deitou ao lado do marido, teve uma sensação de distância e ficou aterrorizada. Mas o que esperava? Acaso um homem como Dovid podia viver como solteiro? No escuro, Chavala disse com voz suave:

 

— Você me odeia, Dovid? Silêncio; depois:

 

— Não, eu a amo, se bem que, às vezes, preferisse não amar.

 

— Não estou entendendo. Eu sei que estou privando você de seu filho e de mim mesma. mas não sei o que fazer.

 

— Só você pode encontrar a solução, Chavala.

 

Ela desejou poder encontrar um modo de satisfazer sua necessidade de ver a família em segurança, cuidar de Raizel e dos filhos, e ainda continuar ao lado de Dovid. Como?

 

— Você quer ser livre?

 

A pergunta veio como um choque. Parecia que ele estava pedindo sua própria liberdade... O pensamento seguinte era doloroso demais para ela guardar para si..

 

— Dovid. há alguma outra pessoa?

 

— Não, mas não se pode viver sozinho para sempre... E você? Você é uma mulher bonita, e um dia..

 

— Não diga isso, Dovid. Eu nem penso nisso. Nunca haverá outra pessoa, você tem de acreditar em mim.

 

— O tempo e a vida podem mudar as pessoas. Ninguém pode ser feliz sozinho.

 

— Então você quer ser livre.

 

— Não, não é isso o que eu quero. Mas o que não quero é ser infiel a você algum dia...

 

— Então você encontrou alguém?..

 

— Não, mas sinto-me solitário, e isso faz a gente desejar alguém. Se eu encontrasse alguém como você, não sei se seria forte o bastante para recusar. Eu sou humano..

 

Toda aquela perspectiva era demais para ela.

 

— Dovid, estou disposta a voltar, desistir de tudo. Eu não quero sequer pensar em você com outra pessoa...

 

— Você diz que está disposta, e neste momento está sendo sincera, eu sei. mas estar disposta não é a solução, querida. Você nunca poderá voltar enquanto não se decidir. As necessidades de Raizel, a fazenda de Dvora, o futuro de Chia e Moishe. Eles ainda são sua preocupação principal. Não posso culpar você, jamais culpei. Mas nãovou fingir que, às vezes, não me sinto amargurado, quase louco por querer você..

 

Chavala chorava em silêncio.

 

— Por favor, me ame, Dovid, apesar de mim mesma..

 

— Eu amo você pelo que você é, não apesar de você. Meu Deus, você é uma mulher extraordinária, Chavala; mas, por alguma razão, você não acha que sua vida pertence a você. Você se sente obrigada a muita coisa, você pensa. Amar você? Sim, que Deus nos ajude. Eu amo você realmente..

 

Nada ficou resolvido; mas Dovid voltou-se para ela, abraçou-a e passou a fazer amor com ela, esquecendo, no momento, todas as incertezas, os ressentimentos, as culpas. no instante da união, uma sinceridade que excluía o mundo com todos os seus desvios..

 

Desde a morte de Lazarus, toda a família estava em Jerusalém. Passaram-se várias semanas e agora, com a colheita, era imperativo que a família de Dvora voltasse para Kfar Shalom. Chavala resolveu que ia ficar com Raizel por mais algum tempo, pelo menos.

 

Na manhã da partida, Reuven deixou claro, pela maneira de olhar para Joshua, que ele queria passar mais algum tempo com o irmão. E ele disse isso com uma espécie de exigência que, para Chavala, era desnecessária. No entanto, ela cedeu, compreendendo que a atmosfera da casa de Raizel não era a ideal para Joshua e que ele estaria melhor na casa de Dvora e com sua família. Bem, pelo menos Dovid ficaria em Jerusalém..

 

Chavala mal conseguiu atravessar a semana seguinte, com Raizel e sua dor. Quando a situação tornou-se simplesmente insuportável, ela disse à irmã que já era tempo de Dovid vir buscá-la para levá-la para a casa de Dvora, após o que, infelizmente, ela partiria para Nova York. Na manhã do último dia, enquanto estavam sentadas na cozinha, esperando Dovid, ela disse a Raizel, como já tinha feito muitas vezes:

 

— Venham comigo para a América, você e os meninos. No Brooklyn, há uma comunidade de chasidim. Você se sentirá feliz lá. Por favor, Raizel..

 

— Chavala, eu lhe agradeço; você sabe como estou grata pelo que você tem feito por nós, mas jamais poderei deixar Jerusalém. nunca. quem estaria aqui para velar as sepulturas de papai e de Lazarus? Além disso, aqui é nosso lar, aqui é nosso lugar..

 

— Então venha passar alguns dias conosco na casa de Dvora. Você não está mais de shiva..

 

— Os meninos recitam o kaddish.

 

— Mas você não pode ausentar-se por alguns dias? Quer dizer, eles já estão grandes e..

 

— Eu sei. mas meu lugar é aqui. Sinto muito, Chavala..

 

Chavala assentiu, sabendo as respostas, de antemão. Pelo menos, Raizel teria algum dinheiro para passar os próximos meses; e, além disso, Chavala jurou que ela nunca passaria dificuldades..

 

Durante a semana seguinte, Reuven achou que sua mãe estava mais feliz em Kfar Shalom do que nunca. Recordações da casinha em que haviam morado em Zichron encheram a sua mente, quando ele a viu fazendo pão na cozinha de Dvora. E chegou a esperar que, vendo-se ali, ela tivesse o desejo de ficar. Por causa do pai. Ele percebera como o pai gostaria de que Joshua permanecesse ali... E, todos os dias, Reuven levava Joshua aos campos, desejando que seu irmãozinho, mesmo aos três anos, sentisse o solo, plantasse uma semente. Obviamente, Joshua estava contentíssimo, e nada disso passara despercebido a Chavala.

 

Ela notara também como as famílias da aldeia de Kfar Shalom eram unidas. Sentia-se orgulhosa porque o filho de dezesseis anos, Reuven, não apenas era respeitado e admirado, como também tinha se tornado um líder entre os colegas.

 

No sábado, a família levantou-se cedo, como de costume. Iam subir o monte Tabor. Chavala e Dvora estavam ocupadas, preparando a comida, enquanto os homens cuidavam das tarefas no campo. Depois, pouco antes do amanhecer, partiram com as mochilas nas costas. De sandálias, calças curtas brancas e chapéus azuis, Reuven e Zvi iam na frente. Até Pnina seguia com Joshua. O ar matutino estava fresco e revigorante.

 

O monte Tabor erguia-se a mais de seiscentos metros. De vez em quando, paravam para comer e beber alguma coisa. Pnina brincava com Joshua, enquanto Reuven e Zvi exploravam o caminho, não porque desconhecessem o lugar que iam visitar, mas porque era uma fonte inesgotável de beleza.

 

Na vertente da colina, havia dezenas de tendas de pele de cabra e ao longe viam-se rebanhos de pequenas cabras pretas pastando. Eram quatro horas da tarde quando chegaram ao platô arredondado do Tabor. Ao sul estendia-se aos seus olhos todo o vale de Jezreel. Para Chavala, aquela vista era empolgante... O vale era uma sinfonia de cores; ao longe, os campos quadrados pareciam jóias montadas numa estrutura verde. Grupos de aldeias árabes brancas pontilhavam a paisagem até o monte Carmelo, e ao sul ficava o mar da Galiléia.

 

Dovid apontou para o lugar onde Gedeão fora sepultado e onde Saul e Jônatas tinham caído na batalha contra os filisteus. Reuven, obviamente muito orgulhoso, começou a declamar.

 

— ”Ouvi, montanhas de Gilboa. que não haja orvalho, nem caia chuva sobre nós, nem haja campos de oferendas. Pois aí o escudo dos poderosos será lançado fora, o escudo de Saul.”

 

Chavala ficou impressionada com aquilo, e Dovid, orgulhoso.

 

— Foi lindo, Reuven — disse Chavala. — Não há dúvida de que você conhece bem a sua Bíblia..

 

— Todos os sabras a conhecem. É nosso livro de história, a Bíblia.

 

Depois ele suspendeu Joshua, para que o irmão visse a paisagem e, esperava ele, nunca a esquecesse.

 

A mensagem não passou despercebida a Chavala. Ela podia orgulhar-se de Reuven, mas desejava também que ele fosse um pouquinho menos justo..

 

Depois atravessaram a floresta até chegarem ao pico. As ruínas dos fortes das Cruzadas estavam lá, juntamente com o castelo sarraceno. Finalmente chegaram ao lugar do acampamento. Chavala dirigiu-se à trincheira leste e olhou para o vale e o mar da Galiléia. Sentiu um calafrio quando a brisa soprou seus cabelos. Ficou parada junto à parede e recordou a primeira vez, há tantos anos, em que Dovid a levara ao que, então, ela considerava um lugar ermo e de exílio natural. Mas a terra tinha cedido aos sonhos de Dovid, e, de certo modo, ela estava insatisfeita por sua falta de fé.

 

Dovid, em pé a seu lado agora, tirou-a dos devaneios.

 

— Dovid, que posso dizer quando olho e vejo esta terra e tudo o que você realizou?

 

— Não fui eu que realizei isto. Apenas dei uma pequena contribuição..

 

— Mas foi você quem viu o que este vale poderia tornar-se, ao repetir, várias vezes, que ele pertencia a nosso povo, e conseguiu fazer quase tudo, com enorme esforço. Não sou bem uma judia devota, mas devo dizer que, parada aqui, olhando para esta terra, realmente sinto a presença de Deus. que você sentiu por tanto tempo. Eu invejo você, Dovid..

 

Joshua acabou com aquele momento de comunhão:

 

— Vamos jogar bola, abba.

 

Dovid olhou para o menininho e o agarrou, segurando-o bem apertado.

 

— Vamos, garotão. Vamos.

 

Ao crepúsculo, alguns meninos e meninas de Kfar Shalom chegaram ao topo. Imediatamente foi cavado um buraco e juntada lenha. Quatro cordeiros foram abatidos e preparados nos espetos, para serem assados. O sol descia por trás do vale de Jezreel e, de repente, ouviram-se risadas e cantos, quando o fogo foi aceso e os cordeiros foram postos para assar.

 

Depois da festa, o topo da montanha foi tomado pelo som de canções, e a dança começou. Meir Zeid, de pernas cruzadas, batia o tambor feito de pele de cabra. O ritmo de sua batida era acompanhado pelo toque de uma flauta rústica, que executava uma antiga melodia hebraica. Cada canção dava lugar a uma nova dança. Sob o céu estrelado, os dançarinos gritavam animados e batiam palmas, saltando. Então, uma meia dúzia deles entrou no centro e começou uma hora. O círculo crescia cada vez mais, e a dança durou horas, até que eles caíram de cansaço, contentes.

 

Enquanto Chavala observava aqueles sabras fortes, livres, ocorreu-lhe. por estranho que parecesse esse pensamento. que eles eram os jovens leões da Judéia, os antigos hebreus renascidos. Seus rostos eram os rostos das doze tribos... Eram Rubens, Simeão, Judá, Zebulom, Issachar, Dan, Gad, Naftali, Benjamim, Efraim e Manasses. A força de Deus, e de seus filhos, estava em seus jovens corações e almas. Talvez as comparações fossem grandiloqüentes, mas ela as sentia profundamente naquele momento..

 

Novamente, o tempo pressionou Chavala. Quisesse ou não, precisava voltar. Tinha suas próprias obrigações, que a atraíam de volta para um lugar muito novo e diferente. Moishe estava à sua espera. E Chia. Deveria deixar que Raizel e os meninos vivessem da caridade de estranhos? Seria isso, ao menos, vantajoso?

 

— Mas e sua vida? — insistiu Dvora.

 

Naturalmente tinha rezado para que, por algum milagre, Chavala compreendesse que seu lugar era Eretz Yisroel. Mas Chavala não podia dizer, com honestidade, que assim fosse. Ah, sim, ela havia sentido algo especial, em companhia de Dovid e das crianças, contemplando a terra, mas havia outra necessidade, a atração. Entretanto, um dia..

 

— Dvora, embora eu não tenha gostado de Eretz Yisroel quando vim para cá pela primeira vez, ultimamente tenho pensado que, se Dovid e eu tivéssemos uma casa nas colinas de Haifa e se a família inteira estivesse livre de dificuldades financeiras, bem. A Palestina poderia parecer-me bem diferente da que era vista da janela daquela choupana em que fomos morar logo que aqui chegamos. As pessoas mudam, os países mudam, e percebi muitas mudanças aqui. sim, Dvora, se chegasse esse dia, tudo poderia ser diferente.

 

Dvora apenas pôde dizer:

 

— Faço votos de que seu sonho se realize. Você e Dovid merecem isso. Deus é quem sabe como merecem..

 

Ao voltar para a América, Chavala tentou apegar-se àquelas últimas palavras de Dvora. Repetia-as várias vezes, como se a própria repetição pudesse fazer com que elas se tornassem realidade. Mas ao se aproximar de Manhattan, a realidade mais urgente pressionou-a. Moishe, Chia, a loja. outras vidas a reclamavam também.

 

                                           Capítulo vinte e nove

E outras vidas estavam sendo vividas; estavam mudando, criando novos desafios, na América, para Chavala Rabinsky..

 

Nessa noite particularmente fresca de uma sexta-feira de outubro, após fechar a loja, Moishe ficou indeciso se ia para casa preparar o jantar ou se jantava na cidade mesmo. Uma espécie de decisão de homem adulto? A verdade era que esse período de tempo sem Chavala fizera-o compreender que sua vida tinha se resumido a um pequeno conjunto de rotinas. dias passados atrás de uma gaiola na casa de penhores, noites passadas nas ruas, um cinema de vez em quando, um programa ocasional com uma prostituta. Já fazia algum tempo que o desassossego crescia. Ele tinha trinta e um anos e, de repente, teve vontade de ter um lar próprio, filhos. O velho guerreiro devia começar agora. ou esquecer isso, pensou ele.

 

Telefonou para Chia e perguntou se ela queria ir jantar com ele, mas ela disse que tinha um encontro com Lenny Moscowitz. Mazel tov. Ele jantou sozinho. Sentado no restaurante, remexendo a comida, deu-se conta de que, na América, a vida de todo mundo tinha mudado, menos a sua. A de Chia, por exemplo..

 

Logo no primeiro semestre de estudo no Hunter, ela conheceu uma moça que já estava concluindo o curso, chamada Joannie Joseph, nascida e criada em Lawrence, em Long Island, filha de um advogado. Joannie Joseph passou a ter grande influência na vida de Chia. Conhecendo algo do chamado show-biz da vida, roupa, cabelos curtos, meias de seda, batom vermelho, ela mudou também o nome de Chia para Cherie. A princípio, Chia sentia-se pouco à vontade, mas ela fora a mais suscetível à assimilação; e, após repetir esse nome várias vezes para si própria, achou-o quase familiar. Para completar a mudança, o ”sky” foi eliminado do nome Rabinsky, e então surgiu ”Cherie Rabin”. Como qualquer jovem americana, ela descobriu que a vida tinha se tornado mais acadêmica; seus nobres sonhos de se tornar uma grande educadora da América foram postos de lado em favor de festas de fim de semana em Long Island. A inflexibilidade era uma característica adquirida, não herdada. O meio ambiente de Chia. ou de Cherie. permitia-lhe deixar esse fardo..

 

Numa soirée na casa em estilo Tudor de Joseph, ela conheceu Lenny Moscowitz, e foi cativada imediatamente por ele. Após formar-se na Faculdade de Direito de Colúmbia, ele entrara para a firma de Joseph, Joseph, Abrams & Joseph. Amigo da família. e também jovem talentoso e decente. E cerca de dez mil anos culturais à frente dos homens que Chia havia conhecido antes..

 

Pensando nos acontecimentos — e em sua rapidez — da vida de Chia-Cherie, Moishe concluiu que ele mal estava vivo e morando em Riverside Drive. Levantou-se rapidamente, pagou a conta e saiu, pensando em que diabo ia fazer nessa noite. Acabou em casa sozinho.

 

No sábado, foi ao Central Park, para patinar no gelo. coisa que ele aprendera por acidente, ou melhor, por osmose, tendo passado horas observando os patinadores, antes de resolver arriscar-se. Pareceu-lhe estranho que ele tivesse tornozelos fortes e a cabeça fraca, pensou ironicamente. Depois de dar várias voltas pelo rinque, sentiu-se entediado, ao invés de alegre, como acontecia em outros tempos. Talvez devesse procurar uma namorada. Isso ajudaria a diminuir as tensões. ajudá-lo-ia a esquecer. Saiu do rinque, dirigiu-se à Fifth Avenue, deu uma olhada nas vitrines, vendo pouca coisa além de sua própria imagem quase devastada. Olhou novamente. para onde ele ia? Voltou-se e continuou andando, subiu uma rua, desceu outra; passando pelo Stage Delicatessen, resolveu entrar. Ao invés de uma mulher, tinha o pastrami, mas era uma comida excelente. Enquanto comia um sanduíche de pastrami, notou e depois fitou uma jovem que estava sentada à mesa vizinha. Não conseguia distinguir a cor do cabelo nem dos olhos dela. Teve vontade apenas de estender o braço e tocá-la. Mas isso era bobagem, é claro. Ultimamente, ele passara a querer fazer isso com todas as moças que via. Levantou-se, rapidamente, pagou a refeição e saiu.

 

Nove horas numa noite de sábado. Moishe entrou no apartamento. Olhou em torno e perguntou a si mesmo o que era sua vida. Ele tinha apenas um quarto na casa da irmã. Ele era um pensionista.

 

Na manhã seguinte, enquanto esperava o elevador, Moishe foi tomado por uma sensação que somente Nova York podia proporcionar a alguém; ela isolava os moradores dos apartamentos e depois os defrontava inesperadamente, abruptamente, como se tivesse uma mente própria; o mesmo aconteceu com uma inquilina chamada Julie Kahn.

 

Moishe notou a jovem a seu lado. Notou. meu Deus. foi tomado de. Na suposta impessoalidade de Nova York, isso só acontecia nos romances, e era deixado por conta do mito. Sim, fosse como fosse, ele ficou, realmente, enamorado da bela jovem, de cabelo castanho-alourado e olhos maliciosos mas calorosos. Esbelta, na realidade mais elegante do que esbelta, quase da mesma altura que ele, numa das mãos segurava um livro e na outra. não usava aliança.

 

Ele tentou ler o título do livro.

 

— Está gostando?. quer dizer, do livro? — perguntou ele. Céus! Que embaraço! Aquilo, sem dúvida, representaria o fim do seu relacionamento com ela, se é que tinha havido um começo. Julie Kahn esquadrinhou-o abertamente. Atraente, pele curtida pelo tempo, poderia estar entre os trinta e os quarenta anos. Um homem, o que nessa cidade, nesse prédio e nessa área, não era coisa comum. Casado? Como saber?. Mas havia nele um ar de honestidade. Ela seguiria seus instintos..

 

— Sim e não — respondeu ela. — É a respeito da dura luta dos judeus por uma pátria; mas pelo menos eles lutam. Às vezes sinto-me um pouco culpada pela maneira como fui criada..

 

Ela, então, fez uma pausa, dando-se conta de que já tinha confidenciado demais a um desconhecido. Só que, por estranho que parecesse, ela não o considerava um estranho, e o jogo de palavras, em pensamento, divertiu-a.

 

Moishe, naturalmente, não podia acreditar em sua sorte. Meu Deus, aquela mulher e ele tinham mais em comum do que ele pensara. bom demais para ser verdade. Bem, até então, sua vida romântica na terra das oportunidades tinha sido ruim, quase intolerável. Talvez a roda do destino estivesse girando.

 

Uma conversa simples tinha confirmado o que era evidente. como normalmente acontecia. que ela morava nesse prédio, que seu nome era Julie Kahn e ele se chamava Moishe Rabinsky, etc. Mas sem continuação nem promessa de futuro, nem mesmo informação sobre para onde ela ou ele iam, quando saíram do prédio e seguiram seus caminhos separados.

 

Exceto para Moishe, para quem não houvera separação. Durante o dia inteiro, enquanto cuidava de sua rotina na casa de penhores, não pensava em outra coisa ou pessoa que não fosse Julie Kahn. À noite, quando voltou para casa, encontrou Chia estudando.

 

— Bem, como vão as coisas com você e o irresistível Lenny? — perguntou.

 

— Acho que ele vai pedir-me em casamento..

 

— O que você quer dizer com acho? Ele não sabe se vai casar com uma coisinha como você?

 

— Moishe, falo sério. Agora é que ele está começando a carreira; acho que talvez deva esperar um pouco..

 

— Ele está louco. Quando se ama, se casa — disse, surpreso com sua própria certeza, sua veemência.

 

— E você?

 

— Tudo o que posso dizer é que, quando encontrar uma mulher, vou pedi-la em casamento. Bem, como é que você quer o jantar... Cherie?

 

— Vamos pedir comida chinesa, Moishe.

 

Ambos riram. A princípio, a mudança de nome de Chia o tinha aborrecido, mas agora ele já estava acostumado, compreendendo que a americanização dela não era pior do que o abandono da fé. Pelo menos era isso o que ele pensava..

 

— Bem, certifique-se de que seja chinês judeu. Afinal, algumas coisas ainda são sagradas.

 

Ele teve vontade de abraçá-la; experimentava uma sensação muito boa, mas conteve-se.

 

Após o jantar, quando levou as caixas vazias para a lixeira, lá estava ela; parecia impossível, mas era verdade. Uma coincidência. Uma circunstância fortuita. Mesmo que fosse na lixeira. Um presságio? ”Pare de pensar nisso e comece a reagir..”

 

— Oi!... — disse, achando que esse era um começo de conversa espantoso, ainda que zombeteiro para ele. ”Que tal uma conversa franca?” — Acho que somos vizinhos.

 

— É, realmente. Moro aqui.

 

— Estranho que a gente não se tenha visto antes.

 

— Mudei na semana passada. bem, foi bom ver você novamente — disse ela, afastando-se. E tinha sido bom mesmo.

 

Moishe não dormiu naquela noite. Entre outras coisas, era preciso ter muito chutzpa para pensar que aquela bela jovem estivesse interessada nele. Sem dúvida, ela já tinha alguém; mas, mesmo que não tivesse, quem era ele? Um penhorísta. Não era uma ocupação romântica. Na verdade, ele hesitava em aceitá-la. Mas ia vê-la, quer ela soubesse, quer não. Porque ele tinha que vê-la..

 

Na noite seguinte, às sete horas, ele bateu na porta do apartamento dela. Não houve resposta. Procurou o número no catálogo telefônico; não encontrou. Discou o número de informações; não havia o número dela. Bem, ela mudara há poucos dias. Ele continuou a bater na porta insistentemente, nos dias seguintes, sem obter resultado. E então. estaria em ação novamente a musa de Nova York?... encontraram-se certo dia, vindo para casa. Ele tinha vivido com aquela fantasia por tanto tempo que pensou até que ela o estivesse evitando. Forçou um sorriso, ao entrarem no elevador.

 

— Oi! Sabe o que estive fazendo toda a semana passada? — perguntou ele, pensando consigo mesmo: ”Pelo amor de Deus, você não pode ser mais sutil?”

 

Ela devolveu o sorriso.

 

— É nisso que tenho pensado.. — disse ela. E era verdade. — O que foi que você fez?

 

— Fiquei em pé junto à maldita lixeira, esperando que o acaso se repetisse.

 

Ela riu. Foi um riso aberto, caloroso.

 

— Chegou a pensar em bater em minha porta?

 

— Tentei, mas não tive sorte.

 

— Naturalmente. Fui visitar minha mãe; ela não tem passado bem.

 

— Sinto muito saber disso.

 

— Ela está melhor..

 

— Ótimo. Julie, você está livre no sábado à noite?

 

— Sábado à noite? Vou ter que ver isso — disse ela, enquanto os dois se dirigiam para a entrada do apartamento dela. Destrancando a porta e mantendo-a aberta com o pé, ela disse: — Eu lhe aviso... quero dizer, sobre o sábado.

 

Moishe não suportava mais o suspense.

 

— Por que você não vê isso agora?

 

Ela olhou para ele. Graças a Deus que ele insistia.

 

— Eu lhe aviso mais tarde, está bem?

 

— Está bem. estarei por aqui. Bato três vezes — disse ele, sentindo que ela o estava deixando louco.

 

— Eu prometo..

 

Isso era o bastante para Moishe se sentir mais feliz, mais esperançoso do que fora desde que chegara à América.

 

— Você parece mudado — disse Chia, quando eles se sentaram para jantar.

 

— Talvez.

 

— Acho que você encontrou alguém. Uma garota?

 

— Já se vê, não é?

 

— É. Quem é ela?

 

— Uma moça que mora ali adiante, no fundo do corredor.

 

— No fundo do corredor? Verdade? Isso é muito conveniente. E por que você não disse nada a respeito dela?

 

— Não havia nada a dizer. até agora.

 

— Saiu com ela?

 

— Ainda não. Estou pensando em sair no próximo sábado.

 

— Ótimo. como se chama ela?

 

— Julie Kahn. e acho que estou apaixonado por ela.

 

— Há quanto tempo você a conhece mesmo?

 

— Cerca de uma semana. Quer dizer, eu a encontrei uma vez antes. junto à lixeira. é nesse lugar que a gente realmente consegue descobrir as pessoas.

 

— Você está louco. O que foi que você descobriu a respeito dela, na lixeira?

 

— Que ela gosta de comida chinesa; ela também estava jogando fora as caixas vazias.

 

Chia riu.

 

— Estou contente, Moishe. estou realmente contente por você ter encontrado alguém.

 

— Eu também; garanto. E nós temos mais em comum do que a comida chinesa. Ela se interessa pelo que está acontecendo aos judeus na Palestina. Ela não é. — interrompeu-se, não querendo ofender Chia. Mas estava prestes a dizer que ela não era uma judia goyishe. Finalmente, ele se recuperou, dizendo que ela não era uma moça americana estragada, superficial..

 

Após o jantar, Moishe seguiu pelo corredor, dirigindo-se à porta de Julie. Bateu com firmeza. A porta demorou a abrir-se. Ela estava com uma toalha enrolada na cabeça, vestida com um roupão de banho. Parecia surpresa.

 

— Bem, você é insistente, hein? — disse, mas, consigo mesma, pensava: ”Graças a Deus”. — Como você vê, eu estava lavando o cabelo.

 

— É, estou vendo. e a respeito do sábado? Enquanto você pensa, será que posso entrar para esperar? Já estou ficando cansado deste corredor.

 

Ela abriu mais a porta e fez sinal para que ele se sentasse, tornando a entrar no banheiro.

 

Sim, ela gostava desse homem. Ele era direto; sua persistência lhe agradava. E seus instintos em relação a ele tornavam-se mais claros. Um homem..

 

Quando ela voltou, vestindo uma roupa caseira e com o cabelo dando forma ao belo rosto, Moishe quase se aproximou dela para beijá-la. Além disso, ele já tinha feito isso muitas vezes, em seus devaneios.

 

Ela sentou-se diante dele, admirando-se de como se sentia natural com esse homem que ainda era um estranho. Não havia necessidade de fazer o jogo dos encontros; não havia necessidade de fingir, e ela já estava farta disso. Era esse o efeito que ele produzia nela.

 

— Aceita uma xícara de café, ou chá?

 

— Café.

 

Ela foi à cozinha e preparou o café. Ao trazê-lo, desculpou-se por não ter nenhum acompanhamento.

 

— A verdade é que eu ainda não me instalei aqui.

 

— O café está ótimo. bem, fale-me de você.

 

Ele já tinha tomado as rédeas. Está bem, ela começaria, e esperava que ele não se sentisse entediado..

 

— Cresci na Filadélfia. É o lugar a respeito do qual se faz o gracejo: ”Fui a Filadélfia e ela estava fechada...” Bem, não faz mal. Seja como for, eu vim para Manhattan. Formei-me pela História da arte, que mais? Consegui abrir uma pequena loja roupas na Madison Avenue. Que mais? Quando meu pai morreu, há dois anos, minha mãe mudou-se para cá também. É isso aí, monotonia e mais monotonia.

 

— Não estou aceitando muito bem isso. E os amigos?

 

— Você se refere a homens?

 

— Acho que é isso o que quero dizer.

 

— Bem, eu praticamente cresci com um cara com quem todo mundo pensava que eu. devia casar. inclusive meus pais, naturalmente. Eu era minoria. Resultado: aos vinte e três anos, sou uma solteirona prematura. Já perdi o número das pessoas bem intencionadas que franzem a testa, perguntando: ”Você não é casada?” Como se isso fosse a única coisa na vida de uma mulher.

 

— Mas poderia valer a pena compartilhar a vida..

 

— com a pessoa certa, suponho. Eu simplesmente não encontrei.

 

— Eu já encontrei, e é ótimo.

 

Muito americano, pensou Julie, perdendo, de repente, o seu senso de humor. ali estava ele, fazendo perguntas a ela, quando tinha uma garota especial..

 

— Bem, e por que você não sai com ela no sábado à noite? — perguntou, mais irritada do que tencionava.

 

— Euvou sair com ela, sim. Julie Kahn, a primeira vez que vi você, compreendi que. gostava muito de você, para não dizer demais. Isso não é tão estranho, não acha? Um homem que você conheceu toda a vida não a atraiu. Eu tenho trinta e um anos, e você é a primeira moça. é verdade. por quem me senti atraído. Acho que amo você.

 

Julie ficou sentada, tomada de surpresa. Finalmente, tudo o que conseguiu dizer foi:

 

— Isso é tão repentino, como se diz nos maus romances.

 

— Dizem também que a verdade é mais estranha do que a ficção — disse ele, levantando-se; parou de resistir a si próprio. Tomou-a nos braços. — Sim, Julie Kahn, como já lhe disse, acho que amo você.

 

Quando ele a beijou, ela não estava bem segura de não estar sentindo a mesma coisa. Ele tinha razão. uma vida de familiaridade não daria em nada, nem mesmo em desdém. Ela deveria saber disso. Um instante podia ser uma vida. ”Aproveite, Julie. Que isso aconteça...”

 

Naquela noite, Moishe voltou para o apartamento muito tarde. Tanto ele como Julie estavam surpresos com a rapidez e a naturalidade da intimidade que ocorrera entre eles dois. Era como se eles tivessem acelerado o tempo. minutos e horas tinham se transformado em meses e anos. O seu ato amoroso tivera a excitação da novidade, naturalmente, mas também uma familiaridade profundamente mítica. Ambos compreendiam, sem necessidade de falar, que aquilo era realmente algo especial. E ambos estavam decididos a prender esse amor, nutri-lo e sentir-se agradecidos por ele.

 

Daí por diante, eles se viam todas as noites, exceto quando Julie tinha de visitar a mãe, que morava na East End Avenue, do outro lado da cidade. Moishe foi jantar na casa da mãe dela algumas vezes. Era Julie quem cozinhava, mas isso não era seu maior talento. ela ainda pendia para o lado chinês. mas, como ela mesma disse, e Moishe concordou prontamente, ninguém era perfeito. Ele a aceitaria pelo que ela era e ficaria contente. E ela sentia o mesmo por ele. Moishe era um novo fenômeno para ela. não só como homem, mas em termos de seus extraordinários antecedentes, e ela tivera razão quanto ao primeiro sentimento em relação a ele. Ele era um homem que havia lutado pelos judeus, tinha sido ferido e quase morto para ajudar a criar uma pátria. E na Filadélfia ou na NYU não se criava gente como Moishe Rabinsky. Só Deus sabia como os homens que acompanhavam as senhoras que entravam em sua loja eram de um planeta diferente do de Moishe. Ela amava esse homem, realmente. O milagre é que ele tinha o mesmo sentimento em relação a ela. Estavam sendo favorecidos pela natureza, e sentiam-se felizes com isso..

 

Quando Chavala chegou de volta da Palestina e encontrou Moishe em seu novo estado, sua felicidade por ele era quase indescritível, mesmo para ela. E ela estivera tão preocupada com a falta de romance não apenas na vida de Moishe, mas também na de Chia! Bem... a família Rabinsky receberia uma nova infusão de amor, pensou ela.

 

Julie era tudo o que Chavala esperara para Moishe; esperava que ele casasse, embora essa união a fizesse alterar o plano que havia arquitetado durante a viagem de volta para a América. Bem, ela pensaria nisso mais tarde; mas não havia dúvida de que Moishe não podia nem queria continuar a vida numa casa de penhores. Não depois de ter conhecido Julie..

 

Ela estava sentada na sala de estar escura, pensando nas alternativas, quando ouviu a porta abrir-se e Moishe entrar.

 

— Estou aqui — disse ela. Ele acendeu a luz.

 

— O que você está fazendo, sentada aqui no escuro?

 

— Pensando. Ele sentou-se.

 

— Quando Chavala pensa, a coisa é séria. O que é desta vez?

 

— É você, além de outras coisinhas. Qual é a atitude de Julie em relação à loja?

 

— Ela não disse nada. Não acredito que dissesse.

 

— Bem, eu não a culparia se ela dissesse — falou ela; depois de uma pausa, perguntou: — Moishe, você vai casar?

 

— Vou. Acho que já lhe disse isso. E em breve. Julie sabe o que é bon..

 

— Pare com as brincadeiras, por favor. Moishe, eu estava pensando em fazer uma pequena viagem. Por pouco tempo. com seu casamento agora, eu não pretendo... eu sei...

 

— O que você quer dizer com uma viagem? Você acaba de voltar de uma viagem.

 

— Moishe, temos que ampliar nosso negócio. Melhorá-lo. A família está crescendo; as obrigações, as necessidades...

 

— E como pretende ampliar, melhorar?

 

— Estou planejando abrir uma joalheria muito boa.

 

— E com que dinheiro vai fazer isso?

 

— Bem, isso nos traz à pequena viagem. Enquanto eu atravessava aquele enorme oceano Atlântico, tive muitos pensamentos, e um deles foi que as melhores compras são feitas na Europa. Sempre ouvi dizer que..

 

— Europa? Isso está um pouco complicado, Chavala, e parece que não entendi bem; mas, uma vez que você não tem o dinheiro para comprar dos atacadistas aqui, e nós temos conseguido a mercadoria através de seu amigo, o conterrâneo, eu lhe pergunto: com que dinheiro você vai trazer mercadoria da Europa?

 

— Encontrei um modo. Confie em mim, Moishe. Bem, só resta dizer a você que arranje uma pessoa para ficar na loja do Harlem, enquanto eu estiver ausente. É só por pouco tempo. Tenho certeza de que você pode resolver isso.

 

Ele encolheu os ombros.

 

— Acho que sim, mas parece-me que você não me disse tudo. E estou vendo que não tenciona dizer mais nada; por isso desisto. Mas, por favor, Chavala, seja o que for, não perca a cabeça.

 

Chavala forçou um sorriso, pensando: ”Depois de tudo por que passei na vida, o que é novo para mim?”

 

Chavala entrou no beco sombrio, mal percebendo os detritos espalhados pelo chão, e bateu na porta do conterrâneo.

 

Ele olhou pelo olho mágico, depois abriu a porta que dava para o porão. Ficou contentíssimo com a presença de Chavala. Na verdade, entre todas as pessoas com quem ele fazia negócios, ela era a favorita.

 

— Nu, Chavala, que posso fazer por você?

 

Sentada diante dele, ela rezava para que Deus. sua família... a perdoasse pelo que ia dizer.

 

— Eu quero ganhar muito dinheiro. e rápido. Quero que você me diga como fazer isso.

 

Ele riu.

 

— É só isso o que você quer? Seria melhor que tivesse pedido a Lua.

 

— É isto o que estou pedindo — disse ela, pensando em Dovid, Reuven, Raizel e os outros.

 

— Você poderia iniciar outro negócio. como o que você já tem. Conheço um local apropriado..

 

— Outro como o que já tenho não me interessa..

 

— E então?

 

— O que você quer dizer com: E então? É isso o que eu estou lhe perguntando. Você é que é o especialista. Quem sabe mais o que estou procurando do que você?

 

Ele hesitou.

 

— Está bem, eu lhe direi. Chama-se contrabando. Chavala pensou que seu coração ia saltar pela garganta.

 

— Por favor, continue.

 

O conterrâneo balançou a cabeça, como quem sabe o que faz.

 

— Eu poderia ficar aqui durante horas lhe explicando, mas brilhantes e pedras preciosas são praticamente as coisas mais fáceis de esconder que existem — disse ele. E passou a expor-lhe uma dezena de maneiras diferentes de se esconder um brilhante, por exemplo. Uma fortuna podia ser escondida no nó de uma gravata. Um brilhante de dez quilates podia ser colocado num molar falso. O corpo nu podia esconder brilhantes suficientes para se morar numa mansão em Miami, para o resto da vida. Como? — Não quero ser vulgar, minha dama, mas. a boca, o umbigo, o reto, um ouvido, uma axila, entre os dedos dos pés. E, se necessário, eles poderiam ser engolidos. Os tubos de pasta de dente são os esconderijos mais comuns. Uma caixa de pó-de-arroz, pacotes de chá, latas de café, o fundo falso de uma valise. Um dos melhores esconderijos é o salto oco de um sapato — disse, dando um suspiro e gesticulando. — Escute, eu até conheci uma pessoa que usou a órbita de um olho artificial. Que maisvou lhe dizer? Isso não tem fim.

 

— Bem, não há dúvida de que vim ao lugar certo. Mas está parecendo fácil demais..

 

— E é. Pode acreditar em mim. Os comerciantes kosher estufam o peito e negam que o tráfico continue. E ficam calados quanto ao que sabem, embora detestem a maneira, que chamam de ”submarina”, pela qual as mercadorias chegam ao seu negócio. O sindicato dos brilhantes e pessoas como De Beers gostariam que o mundo dos brilhantes compreendesse que a mercadoria só pode ser comprada deles.

 

Chavala tentou não pensar no que estava dizendo:

 

— Então, diga-me: qual é a origem das pedras?

 

— Lugares diversos. Amsterdam é um deles.

 

— E chegam a Amsterdam procedentes de onde?

 

— Da Rússia.

 

— Rússia? Um país comunista negocia com brilhantes?

 

— Claro. Eles fingem que só estão vendendo a revolução, mas estão concorrendo no mercado mundial com outros artigos também; pode acreditar. — disse, rindo. — Como uma democracia normal, eles também gostam da decadência do dinheiro. Você não acha que o Kremlin gosta de dinheiro? Pense bem.

 

— E como as pessoas tiram as pedras da Rússia?

 

— Isso não é difícil. Eles têm uma licença para vender, cortesia do governo..

 

— Mas de lá, com que países eles negociam?

 

— América do Sul, Marselha, na França, mas um dos maiores mercados é Amsterdam.

 

Chavala ficou calada, quase com medo de fazer a pergunta seguinte.

 

— Como se volta para este país?

 

— Bem, às vezes, essa é a parte dura. Embora os brilhantes sejam a coisa mais fácil de esconder que há no mundo, as alfândegas são espertas, e acabam conhecendo os operadores.

 

— Então, se entendi bem, a solução seria usar desconhecidos, não?

 

— Obviamente, e de ficha limpa.

 

Chavala ficou pensando. Se ela ia ser uma contrabandista, uma ladra, o que faria?

 

— Por acaso existe algum ladrão digno de confiança?

 

— Ah, Chavala, é isso o que eu gosto em você — disse ele, rindo. — Apesar de sua sinceridade, você tem senso de humor.

 

— Está bem; pode rir à vontade. O que você sabe?

 

— Sei de muita coisa, como você pode imaginar; mas não as recomendo. Poderiam cegar você.

 

— E o seu Benny? — perguntou ela, rapidamente.

 

— Benny? Ele é um menino triste que eu tirei das ruas, um órfão, sem um tostão. E, que Deus o ajude, manco. É preciso ter o coração duro para não ligar para ele. Ainda estou tentando encontrar um médico que consiga corrigir o defeito do pé dele. Ele passou a ser um filho para mim, você sabe disso. O filho de um ladrão. Naturalmente, ele faz entrega de mercadoria... mas isso não significa ser ladrão...

 

— E o que sou eu? Uma criminosa empedernida? — perguntou ela. O que ela não dizia, embora soubesse que o conterrâneo sabia era que, por triste que fosse isso, o sapato de Benny com sua sola de dez centímetros seria um ótimo esconderijo para brilhantes. — Mas suponhamos que eu o leve para Amsterdam e ele me ajude a trazer as pedras, isso não seria roubo. Isso faria dele um cúmplice. O conterrâneo riu novamente.

 

— Benny? Ele ficaria morto de medo.

 

— Para dizer a verdade, eu também estou com medo. Nós apoiaríamos um ao outro.

 

— Suponhamos que eu deixe Benny ir; como vocês passariam pela alfândega?

 

— Como chasidim.

 

Chavala tinha muita imaginação, pensou ele.

 

— Chasidim? De onde você tirou essa idéia?

 

— Porque. o que um chasid contrabandearia? Eles ainda vivem com os ensinamentos de Baal Shem Tov, do mesmo modo que há dois mil anos. Ainda observam o código de honra. Que Deus me perdoe por pensar neles assim. Mas que oficial de alfândega teria chutzpa suficiente para revistar os livros de preces e os tallisim com destino ao Brooklyn? Para não falar de uma mulher vestida de sheitel. especialmente uma mulher grávida de sheitel.

 

O conterrâneo balançou a cabeça.

 

— Sabe, Chavala, você tem a mente de um ladrão, e não a estou criticando. E tem mais coragem do que qualquer outra pessoa.

 

Ela fez uma careta.

 

— Obrigada pelo grande elogio. Mas você acha que isso daria certo?

 

Ele pensou um pouco. Fez sinal que sim. Essa mulher era da turma, não havia dúvida.

 

— Então você acha que vai funcionar?

 

— É possível. Talvez as chances sejam de sessenta por cento; nada mau.

 

Ela esperava que ele tivesse razão.

 

— Agora tenho algo que acho muito difícil de lhe pedir.

 

— Pode pedir.

 

— Está bem. preciso de sua ajuda agora como nunca. Você me empresta o dinheiro? — perguntou, rapidamente, e apressou-se a acrescentar: — Asseguro-lhe que pagarei com quaisquer juros que você queira.

 

Sobre isso ele tinha que pensar muito, não porque não confiasse em Chavala, mas, se o negócio falhasse, ela poderia até ir para a cadeia, e ele ficaria sem o dinheiro. Ele não gostava dessa perspectiva; não por causa da perda, mas por Chavala. Por outro lado, esse negócio todo era louco o bastante para dar certo; e, acima de tudo, ele sabia que Chavala era capaz de entrar e sair de qualquer trama que ela tivesse em mente. Mais do que isso, ele verdadeiramente gostava dessa mulher incrivelmente corajosa. Admirava-a também. Ele sabia, sem dispor dos detalhes, o que a levava a correr tamanhos riscos. Chavala Rabinsky acreditava realmente em família. Ele gostava dela. Ele não tinha filhos, somente muito dinheiro para deixar para o Estado de Nova York; e para os advogados, no caso de sua morte, coisa em que ele preferia não pensar. Recordava agora a primeira vez que Chavala viera até ele em busca de mercadoria, por ter que sustentar a família. Pensou na Palestina e nos problemas que eles estavam tendo. Um receptador era também um ser humano, pouco importava que ele não tivesse sido a pessoa mais honesta do mundo. Não estava censurando a si próprio. acaso ele tinha ofendido alguém?. mas a vida não o havia tratado a pão-de-ló. Ele nascera na Sibéria, para onde seus pais tinham sido banidos. Morreram quando ele tinha nove anos, e ele fugira de lá aos treze. Durante suas andanças, passara fome e fora maltratado. Aos dezesseis anos, já tinha saído da Rússia. principalmente a pé... e chegado ao mar Negro. Tivera vontade de ir para a Palestina, mas o único navio que encontrou ia para a América, o único lugar onde era possível melhorar de vida, mesmo para um homem como ele... Considerava-se um dos felizardos. Por isso, quem diabo se importava se Yussel Melnetzky vivia ou morria? Era verdade que ele roubava. bem, a vida tinha roubado dele, e ele havia apenas começado a recuperar o perdido. Então, finalmente, as pessoas passaram a respeitá-lo. Afeição? Quem ligava para ele? Quem perguntava por ele a essas pessoas? Mas, de certo modo, Chavala o havia comovido de uma maneira que ninguém jamais o conseguira. No caso dela, ele queria ser um mensch. Queria, também, fazer uma coisa boa na vida, para que, ao ficar diante de seu Criador, não fosse obrigado a dizer que não tinha ajudado vivalma.

 

— Está bem, Chavala. Vou apostar em você. Ela sorriu.

 

— Não sei como lhe agradecer. No dia em que o conheci, disse a meu irmão Moishe que você parecia um tzaddik. acho que você é mesmo.

 

Engraçado, era bom fazer o bem, pensou ele. não por dinheiro, mas só para se sentir bem.. e essa era a primeira vez na vida que ele tinha essa sensação.

 

E como Chavala se sentia? Uma contrabandista, agora. Bem, vejamos. Vamos confrontar isso com o que ela fora e onde ela estivera... Havia matado um russo em Odessa. Havia matado um beduíno na Palestina, para que ela e sua família pudessem comer... e daí tinham saído as pedras preciosas que lhe haviam possibilitado um novo começo na nova terra. Eram momentos de vida ou morte; e era assim que ela havia vivido desde quando se lembrava. com a morte da mãe, sua promessa de proteger a pequena Chia, seus cuidados com a família. Acaso havia algo de novo? Ela vinha fazendo isso há muito tempo, e continuava assim. Era isso o que ela fazia. Certas pessoas lutavam por grandes causas... Como acontecia com Dovid, que Deus o abençoasse, e não havia dúvida de que Reuven estava seguindo o exemplo do pai. E Joshua?. Ela não queria pensar nisso agora. Graças a Deus, não tinha que pensar nisso. Ainda não. Bem, sua vida era sua família; e, acontecesse o que acontecesse, fosse onde fosse, tinha que buscar a sobrevivência, a saúde e, algum dia, a prosperidade, sim, a prosperidade. Será que as pessoas achavam que ela gostava de levar essa vida longe de um homem como Dovid? Acaso gostava das noites, quando acordava banhada em suor e pensando nele, na possibilidade. que Deus a livrasse, mas ela não o culparia. de ele arranjar outras mulheres para ocupar seu lugar de noite, mesmo por uma só noite? Ela morreria, se soubesse. e o que sentia, sem querer, até mesmo tentando evitar. os sentimentos de uma mulher, o que ela ainda era, graças a Deus. Mas isso tinha sido sua escolha; não podia queixar-se. ”Mas também não se desculpe, Chavala Landau.”

 

Quem dissera ser nobre sobreviver? Quem dissera ser fácil, barato, belo ou limpo? Não fora ela. Não era essa a vida que tinha conhecido. Por isso, quem era ela para ter escrúpulos contra disfarçar-se como uma chasid grávida? Ou para envergonhar assim os objetos rituais que para alguns teriam sido sagrados? Quem essas pessoas salvavam, quando estava sendo derramado sangue na Palestina; quando as crianças estavam passando fome, quando uma criança pequena estava quase perdendo a visão? Essas pessoas eram muito devotas, que Deus as abençoasse; mas, mesmo sendo judia. e ela era judia. havia mais de um modo de servir a Deus. Faria o que estava decidida a fazer agora, e aceitaria seu julgamento depois. Enquanto isso, tinha uma confissão particular a fazer a si mesma. ”Seja franca, Chavala, você gosta do perigo também..”, as loucuras que ela já havia feito, a enormidade do que ia fazer. Isso estava em seu sangue. Quem a impediria? Seria mais fácil ela morrer primeiro..

 

Quando Moishe e Julie casaram, um mês depois, o novo comparsa de Chavala, Benny, estava um verdadeiro chasid. Até seu peso ajudava. Ser devoto significava também passar fome, o que Chavala esperava que aumentasse a credibilidade dele. Suas trancinhas estavam devidamente cacheadas, e a barba que ele deixara crescer era satisfatória Quando Chavala vestiu seu shettel preto, ficou como qualquer mulher chasid respeitável Após comprar a roupa tradicional, pôs um pequeno travesseiro debaixo da anágua, para simular uma barriga, e realmente assumiu o ar de esposa virtuosa, se bem que grávida, de um santo marido chasid

 

Yussel achou de seu dever assumir a responsabilidade por todas as negociações, bem como tomar todas as providências Os passaportes foram tirados, os depósitos feitos num banco suíço, e todos os contatos em Amsterdam, estabelecidos

 

Foram reservadas as passagens, de segunda classe, e Benny foi munido de uma licença de importação para comprar artigos religiosos Bem, aquela viagem exigia uma fé cega

 

Agora só restava um problema a resolver Como explicar a Moishe ?

 

Sentada na sala de estar do novo apartamento de Julie e Moishe, na West End Avenue, ela tentava, desesperadamente, parecer à vontade e adiar o inevitável com conversa fiada

 

— Como você aprendeu a cozinhar tão bem, Julie. Julie riu.

 

— Consegui com a ajuda da Good Housekeeptng e do temperamento conformado de Moishe, para não dizer nada de seu paladar nada exigente

 

— Você consegue Moishe, você está ficando gordo com todo o respeito que lhe devo, Julie, acho que você está tratando muito bem dele com a minha culinária, ele não parecia tão bem

 

— com sua culinária, ninguém parecia bem Além disso, quan do foi que você cozinhou.

 

Julie ralhou com o mando

 

— Não seja impertinente, querido Os numerosos talentos de sua irmã não têm que incluir a culinária

 

Após o jantar, eles foram para a sala de estar, o momento estava próximo Durante toda a semana, Moishe lhe havia feito perguntas, e ela respondia ”Quando chegar a hora, você será o primeiro a saber” E agora era hora

 

— Eu sei que você disse que na Europa e que se devia com prar pedras, mas acho justo você me dizer onde é que vai conseguir o dinheiro E também, onde fica esse grande mercado — dizia Moishe

 

Ela se serviu de um pouco de Schnapps, sentou se bem ereta, olhou para Moishe com muita sinceridade e começou—vou responder primeiro à pergunta inicial Tenho alguns dólares guardados, certo?vou levá-los E a resposta à segunda pergunta é o sr. Leibowitz, que, como você sabe, Moishe, sempre foi nosso bom amigo. Ele assinou uma nota promissória para mim — Foi muito gentil da parte dele. Como você diz, ele sempre foi um bom amigo. Mas o que eu quero saber é onde você vai fazer esses negócios.

 

— Na Alemanha.

 

— Por que na Alemanha? Não é lá o centro joalheiro do mundo.

 

Chavala não perdeu a tranqüilidade; pelo menos isso servia de prática, uma espécie de ensaio para o que ela teria que enfrentar..

 

— De fato, não é o centro joalheiro do mundo; você tem toda a razão. mas, infelizmente, Moishe, depois da guerra, todos os judeus que vieram da Europa oriental para a Alemanha só trouxeram aquilo que podiam carregar. E o que eles puderam carregar? O mesmo que nós carregamos quando deixamos a Rússia, alguns brilhantes. — disse, e tomou outro gole de Schnapps.-— Bem, com base no que nós tínhamos, imagine como as casas de penhores estão cheias lá! Moishe, você não percebe que com dólares americanos pode-se comprar uma fortuna? Os alemães estão carregando seu dinheiro em carrinho de mão, para comprar um pão. É esse o valor do marco. Há muito dinheiro a ganhar, Moishe; e, embora a vida seja muito triste, a infelicidade de uma pessoa pode tornar-se a oportunidade de outra. Escute, Moishe, eu digo que sou feliz, mas você sabe que não sou. Mas não fomos nós que criamos as coisas assim, não fomos nós que fizemos o mundo como ele é, temos de ganhar a vida. Todos nós. E é por isso quevou à Europa.

 

Quando ela terminou, a história parecia tão convincente que ela chegou até a pensar em investigar a situação da Alemanha. sim, ela bem que poderia fazer isso..

 

— E quais vão ser os direitos alfandegários sobre tudo isso? — perguntou Moishe.

 

As palavras mágicas direitos alfandegários significavam passar pela alfândega. Por um momento, ela esqueceu a casa de penhore em Berlim. Fazendo um grande esforço para recuperar a tranqüilidade, respondeu rapidamente:

 

— Antes de tudo, não há direitos alfandegários sobre qualquer) coisa de mais de cem anos de idade... uma boa estimativa... e, além disso, para o quevou comprar, será uma insignificância. Quer dizer, é para abrir mais um negócio. A América é assim. Estou agindo como uma americana..

 

Moishe resolveu não pressioná-la, apesar de suas dúvidas. Fosse o que fosse, Chavala parecia ter todas as respostas.

 

— Quando é que você vai partir?

 

— Amanhã.

 

— Bem, querida irmã, só lhe posso desejar mazel; e volte para casa em segurança. A que horas parte o navio?

 

Ela teve que engolir em seco.

 

— À meia-noite.

 

— Tão tarde assim? Bem, de qualquer modo a família vai se despedir de você...

 

— À meia-noite?. Não seja bobo. Você acha quevou acordar Joshua para me ver partir? De modo algum! Além disso, já houve muitos ”Olá!” e ”Adeus” no cais. É muita bondade sua, Moishe, e eu realmente agradeço, mas não estou disposta a ver mais adeuses tristes. Quando eu voltar para casa, teremos uma reunião — disse ela com um sorriso alegre.

 

No dia da partida, ela alugou um quarto num hotel no centro da cidade, cujo nome nem sequer notou. Tirou uma tesoura da bolsa e cortou o cabelo bem curto. Após vestir-se naquela noite, pondo o sheitel e o pequeno travesseiro arredondado, olhou-se no espelho. Então, Chavala. você é mãe e esposa e contrabandista. Mazel tov. Conseguiu dar um sorriso secreto, que logo desapareceu.

 

”O sr. e a sra. Moses Epsfein” (mais conhecidos como Chavala Landau e Benny Bernstein) ocuparam beliches separados. O devoto sr. Moses Epstein devia ficar afastado de qualquer das jovens que se achavam a bordo do navio e nunca devia deixar o camarote particular sem a Bíblia.

 

Ele conseguiu fazer isso, e a viagem inteira correu bem em todos os sentidos. As pessoas tendiam a deixar os Epsteins em paz... eram um casal bem pouco alegre... e o mar cooperava não se agitando, o que deixaria Chavala enjoada.

 

Chavala tinha certeza de que à majestosa cidade de Amsterdam nunca tinha chegado uma dupla mais esquisita. Após registrar-se num hotel kosher, na parte judaica da cidade, eles memorizaram cuidadosamente o endereço que tinham recebido.

 

Durante toda a travessia do Atlântico, Chavala estivera aterrorizada com o que ia acontecer... a aquisição propriamente dita da ”mercadoria”, como diziam. Ela havia imaginado homens e mulheres terríveis. armas, facas, quem sabe mais o quê. e, depois, no meio da transação, apitos de polícia, algemas, cadeia e pelotão de fuzilamento. Isso não aconteceu. Correu tudo tão bem que ela ficou um pouco decepcionada. Os homens eram corteses, reservados.

 

Nada do que ela esperava. Os pacotes estavam prontos, os recibos e o dinheiro foram rapidamente trocados. Por volta do meio-dia, Chavala e Benny estavam arrumando o contrabando cuidadosamente, atrás de portas fechadas, no quarto do hotel. As faixas estreitas em torno do tallisim foram abertas para receber o material,! e novamente costuradas com cuidado. Dentro do sheitei de Chavala havia uns vinte quilates escondidos. A quantidade maior foi colocada no salto do sapato ortopédico de Benny. Todos os artigos necessários foram postos nos sacos de papel que eles tinham trazido de Manhattan. Não arriscariam permanecer ali; era imprudência ficar sequer uma noite. Quando estavam prestes a sair, Chavala não conseguiu mais deixar de lado a idéia que ela trazia desde que deixara Nova York:

 

— Benny, vamos ver qual é a distância daqui até a Alemanha...

 

— A Alemanha? — repetiu ele, quase gritando. — Eu estoul querendo é sair daqui e encerrar logo esse negócio. Não sei se você sabe, mas eu ainda não consegui dormir uma noite sequer. E você pode ver que minha roupa está praticamente dançando no meu corpo..

 

— Eu sei, Benny, eu sei; que posso dizer? Em toda essa provação, é você que tem sido minha maior jóia. Mas veja, meul querido, eu tenho uma irmã que mora na Alemanha, e há muito tempo que não a vejo. Passar tão perto e não ir vê-la. bem,! seria algo que eu não me perdoaria. Você acha que, por mim, você poderia comer um pouco mais?

 

Feliz ele não estava, mas as palavras de Chavala produziram efeito sobre ele. Uma família era uma família, coisa que ele nunca tivera, com exceção de Yussel Melnetzky.

 

— Está bem, está bem. vamos descobrir qual é a distância..

 

Para sua surpresa, não precisavam de um navio... Todos aqueles canais, toda aquela água de Amsterdam davam a impressão de haver mar e navios por perto. Na realidade, havia um serviço regular de trem entre Amsterdam e Berlim.

 

Quando chegaram à estranha cidade, ficaram parados por vários minutos, apegados a suas maletas, observando a multidão correndo em todas as direções. Para manter a aparência, tinham de escolher. um hotel na parte judaica, novamente. Mas onde ficaria isso? Após andarem pela plataforma, fazendo perguntas em iídiche, variando com o inglês, encontraram um mascate judeu barbudo, e Chavala perguntou a ele, em iídiche, onde podiam hospedar-se. De boa vontade ele indicou-lhe como chegar à parte leste de Berlim,! onde encontrariam não apenas chasidim como eles próprios, mas também restaurantes que ostentavam estrelas-de-davi, indicando que a comida era estritamente kosher. Além disso, eles não teriam dificuldade em encontrar um quarto..

 

Chavala, naturalmente, sentia-se como se todos os policiais pelos quais passavam na rua soubessem que, dentro da sua peruca, havia brilhantes escondidos; e sempre que ela olhava involuntariamente. para o sapato de Benny, tinha certeza de que perdia quase meio quilo de peso, além dos cinco que ela já tinha perdido, devido às preocupações. Durante as últimas semanas, ela não conseguira comer nem dormir direito; tinha tido pesadelos em que os policiais arrombavam a porta, descobrindo que o negócio desse santo casal eram gemas ilícitas, ao invés da palavra de Deus. Ela passaria o resto da vida fazendo penitência em alguma prisão européia. Toda noite, acordava ensopada de suor; e nesses momentos sabia que sua alma se queimaria no inferno. Sim, os judeus não acreditavam, de fato, num purgatório, mas ela era uma judia que sabia da existência desse lugar, fosse qual fosse o nome que lhe dessem. se esse não era um inferno dos vivos, que diabo seria?..

 

Finalmente, conseguiram encontrar uma hospedaria já caindo aos pedaços, na Dragonerstrasse. Quando finalmente ela chegou ao quarto, trancou a porta e deitou-se; e Benny, que também não se sentia muito bem, foi para o quarto vizinho a fim de fazer o mesmo.

 

Deitada ali, ela concluiu que não tinha o temperamento adequado para esse negócio de contrabando de jóias, apesar de todos os seus atrativos. Acrescente-se a essa visão tardia o pensamento de que talvez Sheine não tivesse ido ao correio, apanhar a mensagem que ela lhe havia enviado.

 

Durante três dias, ela viveu na ansiedade, sem deixar o quarto, enquanto Benny, obviamente, saía para comprar o alimento que ela não conseguia comer. A essa altura, havia quase perdido a esperança de que Sheine tivesse recebido a mensagem e pensava se devia correr o risco de telefonar para a residência de Hausman. Por que não? Ela podia simplesmente perguntar: ”Posso falar com a sra. Gunter Hausman?”. ”Quem fala?”. ”A chapeleira; o chapéu dela está pronto.” Ela tentaria. Tinha de fazer alguma coisa, do contrário ficaria completamente louca.

 

com a bolsa no braço, bateu na porta de Benny. Quando ele, lentamente, a abriu, ela disse:

 

— Não saia do quarto, Benny; tenho de tentar entrar em contato com minha irmã, por telefone.

 

Benny riu.

 

— Você acha que pode confiar em mim com esta mercadoria, enquanto você estiver ausente?

 

Chavala sorriu suavemente.

 

— Qualquer amigo do conterrâneo é amigo meu — disse ela, fechando a porta.

 

Quando ela estava prestes a sair do quarto ouviu uma batida na porta. Seu estômago revirou. Claro que até então tudo tinha sido fácil demais, mas a ira justa de Deus caía sobre sua cabeça no lugar certo. Quem poderia fugir com uma coisa daquelas?. Devia ser a polícia, que vinha buscá-la.

 

— Quem é? — perguntou com uma voz de menina que ela mal reconhecia como sua.

 

— Eu... Sheine...

 

Rapidamente, ela abriu a porta, abraçou Sheine, cheia de felicidade e alívio. Passada a surpresa agradável do encontro, as duas irmãs examinaram-se com atenção. Sheine estava chique e loura. Chavala parecia ter acabado de chegar de Pinsk.

 

Sheine perguntou:

 

— Por que você está vestida assim?

 

— Bem, querida, é uma história longa. A verdade é que se trata de uma coisa tão boba, que nem sei por onde começar. Sabe, há muitas jóias a comprar aqui em Berlim oriental. por causa dos refugiados. é como quando mamãe tinha os brincos. Você sabe o que estou querendo dizer? Bem, de qualquer modo, eles gostam de vender as jóias aos compatriotas. Se eu estivesse vestida de maneira normal, eles pensariam. — interrompeu-se. Ela não podia continuar inventando essa história. — Por quevou mentir para você?. você é minha irmã. mas ninguém mais sabe disso. Ninguém. A verdade, Sheine, é que estou fazendo algo muito mau. Vim à Europa para comprar brilhantes no mercado negro...

 

Sheine levou alguns momentos para absorver o que ouvira, para não mencionar as conseqüências, o que não era de admirar.

 

— Quer dizer. que você está contrabandeando jóias para...

 

— É isso o que estou fazendo. Não sou terrível? Não responda.

 

— Mas por quê? — perguntou Sheine, balançando a cabeça, — Você estava fazendo um negócio tão bom. Foi isso o que você me disse na carta...

 

— Estou, sim. mas não é o bastante. Não é o bastante de modo algum. Ah, sim, você teve notícias de Dvora, mas ela não lhe contou como as coisas têm ido mal para ela. É preciso dinheiro, muito, com a criança doente. e o que você não sabe é que. sinto muito dizer. o pobre Lazarus foi morto e Raizel não tinha nada. Chia está na faculdade. ah, eu lhe contei? Ela vai casar, e Moishe já casou. Que posso dizer? Eu poderia acabar na pobreza em uma geração.

 

— E se você for apanhada? Já pensou nisso?

 

— Claro que pensei nisso. É a única coisa em que tenho pensado desde que comecei toda esta meshiggene mishegoss. Por que você acha que estou parecendo uma velha de noventa anos? pode ter certeza de que debaixo do sbeitel há muito cabelo branco.

 

— Realmente não sei o que dizer..

 

— Nem eu, salvo que, se eu tiver a mazel de escapar com isto, será a última vez, palavra de honra. Agora basta a meu respeito. Como vai você, Sheine?

 

Ela hesitou um pouco, depois disse:

 

— O orgulho é uma coisa boba, Chavala. E, no começo de meu casamento, eu não queria que você soubesse como eu estava infeliz; por isso fazia parecer nas cartas que minha vida era um mar de rosas. mas, já que somos irmãs e você foi tão honesta comigo. Bem, no começo, logo que cheguei a Berlim, passei um tempo duro. Ser judia em segredo e morar com uma sogra anti-semita quase me levou a um colapso nervoso. Talvez isso tenha acontecido. Mas, com o apoio de Gunter e a ajuda de um psiquiatra, consigo manter nossa encenação. Sabe, Chavala, eu aprendi que a vida tem seu preço, e nós temos que pagar pelos nossos pecados. Eu paguei pelos meus — disse, com simplicidade, mas com franqueza. Não houve lágrimas nem torcer de mãos.

 

— Gostaria que você tivesse me contado isso antes; como deve ter sido terrível para você..

 

— E foi. Mas está melhor agora. Não perfeito, mas melhor. Aprendi a colocar as coisas em seus devidos lugares. Pelo menos eu acho que sim. De qualquer modo, aconteceu algo maravilhoso. Estou esperando um filho.

 

— Oh, Sheine, estou tão feliz por você!

 

— E que alegria é estar aqui dando-lhe a notícia!

 

— E seu marido? Como ele se sente a esse respeito?

 

— Gunter não cabe em si de contente. Acho que minha natureza é um pouco como a de mamãe, quando se trata de ter filhos. A princípio nós quase nos resignamos a não ter filhos. Mas parece que acontecem milagres.

 

Milagres mesmo, pensou Chavala..

 

— Para quando é?

 

— Para daqui a oito meses — disse rindo, com uma certa amargura. — Pelo menos parece que me redimi, aos olhos de minha sogra. Talvez ela tenha perdoado Gunter por ter casado com uma mulher abaixo de seu nível..

 

— Abaixo de seu nível? Como pode..?

 

— Eu sou Sheine Rabinsky de nascimento, e Sheine Rabinsky não se encaixa bem no seu ideal alemão; não sou uma das Frãuleins louras que ela esperava que se casasse com Gunter e que lhe desse netos.

 

Chavala olhou para Sheine mais de perto.

 

— E tudo isso explica seu cabelo louro?

 

— Em parte. E pelo menos não fico parecendo um polegat machucado no mundo louro em que entrei. Além disso, que importa? Eu fiz minha escolha. Tirarei o máximo proveito. Agora fale-me do novo bebê, e de Reuven. e Dovid..

 

— O novo bebê não está mais tão pequeno. Joshua tem quatro anos, e Reuven não está muito contente comigo, por eu não querer morar na Palestina. Não posso dizer que o culpo; sinto muito sua falta. Quanto a Dovid, está muito envolvido em política, com a criação da pátria. Ele é um verdadeiro homem. como você se lembra, Sheine.

 

Pela voz de Chavala, Sheine compreendeu que muita coisa ficava omitida, do mesmo modo que ela guardara para si, durante muito tempo, sua paixão por Dovid. No entanto, perguntou:

 

— Como estão as coisas entre vocês?

 

— Não estou muito segura. Podemos deixar isso de lado por enquanto? — perguntou; simplesmente, ela não suportava nem imaginar Dovid com outra mulher, e muito menos falar disso. Nem mesmo com Sheine. Talvez principalmente com Sheine..

 

As sombras do crepúsculo atravessavam as cortinas de renda desbotadas. As horas tinham passado rápido. O encontro daquele dia tinha sido tão rico que Sheine quase pudera esquecer que não estavam de volta naquela pequena aldeia ao sul de Odessa, sentadas em torno da mesa da cozinha da mãe; tomando chá, como costumavam fazer quando eram crianças..

 

Mas, agora, havia chegado a hora de deixar o passado. Levantando-se, ela olhou Chavala bem de perto; depois disse:

 

— Chavala, vê-la é o maior presente que você poderia ter me dado; e se houve, em nossas vidas, momentos em que não estávamos de acordo, lamento isso. Para mim, isto compensou tudo. Eu amo você, e rezo para que aconteça tudo o que você quer. Você merece. Diga aos outros que se mantenham em contato. Sentirei a falta de vocês todos para sempre..

 

No dia seguinte, o sr. e a sra. Moses Epstein, com suas valises cheias de livros de preces e objetos religiosos, tomaram o trem para Hamburgo, onde imediatamente embarcariam num navio com destino a Nova York. Viajando com passaportes americanos, eles não tiveram problemas com a alfândega. A expectativa maior ainda estava por vir, do outro lado do oceano. Chavala e Benny resolveram não pensar nisso. E, para variar, Chavala mostrou-se satisfeita com o mar agitado. podia concentrar a atenção em seu estômago enjoado, ao invés de pensar na perspectiva de ser levada para a cadeia..

 

Chavala e Benny olharam para o magnífico porto de Manhattan, e lá estava aquela mulher com a tocha erguida. Sua inscrição de boas-vindas, ”Dá-me teus pobres”, não se aplicava a esses dois que se achavam em pé no convés. Quando finalmente chegaram à alfândega, a suposta sra. Epstein, grávida, tremeu por dentro, enquanto o oficial fazia perguntas e, depois, examinava as maletas do sr. e da sra. Moses Epstein.

 

Tudo parecia em ordem. O chasid asmático, Moses Epstein, ficou em posição de sentido durante a inspeção. Era isso ou desmaiar. Sua mulher simplesmente morreu mil e uma vezes. Finalmente eles foram liberados e seguiram em frente. Quando já se dispunham a entrar num táxi, o cadarço do sapato de Benny, que já estava frouxo, desatou, e o sapato, com seu enorme salto oco, escapou de seu pé. Quando ele o recuperou e apertou o cadarço, Chavala estava quase desmaiada dentro do táxi.

 

Chavala estava sentada no porão do conterrâneo, quase totalmente recuperada. Após um cumprimento caloroso, ele procedeu ao inventário, examinando cuidadosamente o pacote. Para Chavala, parecia que estava esperando há horas. Finalmente ele sorriu.

 

— Mazel tov. Você tem aqui mercadoria mais do que suficiente para abrir duas lojas. A mercadoria é boa. Acredite em mim.

 

Ela respirou fundo.

 

— Que posso dizer? Comovou agradecer a você?

 

— Quando eu vir a loja com seu nome, estarei recompensado.

 

Ela o abraçou. Ele realmente parecia um tzaddik.

 

— Eu nunca o esquecerei por isso, e vou lhe restituir todo o seu dinheiro. Acredite em mim.

 

Ele sacudiu a cabeça.

 

— Eu sei. eu sei. Não estou preocupado com você. Ela o beijou no rosto.

 

— Eu amo você.

 

Por uma vez na vida Yussel Melnetsky sentiu-se amado. Murmurando, ele disse:

 

— Isso é melhor do que dinheiro; eu é que lhe devo alguma coisa.

 

Aquela foi uma noite agitada, cheia de felicidade, no apartamento de Moishe e Julie, na West End Avenue. Joshua estava tão feliz e aliviado por ver sua mãe novamente, que não desgrudava dela. Embora nenhum deles soubesse, os presentes que eles ganharam não tinham sido comprados em Berlim, mas sim na loja de departamentos Macy’s. Bem, Joshua pouco estava ligando para a procedência do trem (mude in Germany) que passava por cima de cavaletes e por baixo de pontes. Mas ele não queria usar, nem mesmo a pedido da mãe, a roupa com a calça de couro e o chapéu de feltro cinza com uma pena que Chavala tinha comprado numa loja, na esquina da 57íh Street com a Madison Avenue. made in Germany. Talvez ele já tivesse mais bom senso do que ela, pensou Chavala.

 

Da sala, Julie chamou todos para jantar. A mãe de Julie, uma mulher atraente, embora frágil, estava presente, bem como Chia e Lenny Moscowitz e os pais deste.

 

— Bem, tenho uma coisa importante a dizer — disse Moishe. — Julie vai ter um filho!

 

Ouviram-se exclamações de parabéns.

 

Depois Chia olhou para Lenny e disse, com o rosto sério:

 

— Bem, eu espero que não seja em junho. porque Lenny e eu vamos casar nesse mês.

 

Chavala teve que conter as lágrimas, recordando a noite em que Chia nascera. As recordações eram muitas e o passado estava demasiado próximo. Na imaginação, ela se viu em pé com o bebê recém-nascido nos braços, naquela cozinha ao sul de Odessa. ”Você é minha. Você foi entregue aos meus cuidados. pequena Chia. A vida de mamãe está perpetuada através de você”. ”Mantive minha promessa, mamãe. Apesar de todas as coisas más que fiz, de todos os erros que cometi, isso faz o sacrifício valer a pena”, pensava ela..

 

Comparada com a grande notícia que acabava de ouvir, a sua, a respeito da nova loja, era insignificante. Podia esperar. No dia seguinte, haveria tempo bastante para isso.

 

                                                   Capítulo trinta

Parecia ter-se passado um século desde que eles haviam chegado à costa da América. Chavala nunca sonhara com a maneira como iria ganhar a vida. Um dia a ser recordado. Era a pior nevasca que Nova York já sofrera em anos, e eles mal tinham roupas para se aquecer. A neve caía entre as beiradas do telhado da casa da sra. Zuckerman, e Moishe se queixava do apartamento da Delancey Street. Bem, talvez fosse há um século. Isso fora no ano de 1920; e, no breve período de cinco anos, ela percorrera um longo caminho. Novamente na América..

 

Chavala assinou o contrato de arrendamento da loja da esquina da Fifth Avenue com a 41st Street. Corria o ano de 1925. A América estava num período de grande prosperidade. Chavala queria a decoração de sua loja de acordo com a época. A iluminação era suave. As paredes estavam cobertas de seda cinza e, diante das mesas douradas, as cadeiras em estilo Luís XV eram dispostas de modo que os fregueses pudessem contemplar a mercadoria, confortavelmente.

 

Chavala, Moishe e Julie ficaram observando a colocação da placa na frente da loja, onde se lia ”LandauV, em todo o seu esplendor.

 

A casa de penhores estava sendo dirigida agora por um amigo do sr. Leibowitz, velho demais para poder ficar de pé. Sua honestidade, no entanto, era incontestável.

 

Visto que o conterrâneo achasse que era tempo de Benny se tornar um negociante, ele sugeriu a Chavala que o ex-”sr. Epstein” devia dirigir a loja perto do Harlem. Chavala concordou na hora; era o mínimo que ela podia fazer.

 

Só estava faltando que ela fabricasse suas próprias jóias. Era também uma questão de necessidade. Para não ter que apresentar registros de compras por atacado, Chavala e o conterrâneo compreenderam que os brilhantes contrabandeados soltos teriam que ser montados. Encontrou uma sobreloja no Bowery, de aluguel acessível e onde havia homens já fora do mercado de trabalho devido à idade, mas com experiência. Alguns estavam curvados pela idade, a maioria de cabelos brancos, as calças frouxas cobrindo membros frágeis, e com os cintos apertados. Tinham sido artífices hábeis e respeitados, primeiro na velha pátria e depois na América, durante anos. Mas a idade os havia vencido, e era só isso que eles ouviam dizer. A oferta que Chavala lhes fez era simples, e eles lhe agradeciam por isso. Ela dissera: ”Façam o que sabem fazer melhor, e depois digam o preço. desde que não seja exagerado, é claro”. Eles ouviram e puseram mãos à obra, como seres humanos renascidos. Alguém lhes havia oferecido uma chance de sair dos becos, dos cantos escuros, física e espiritualmente. Seu nome era Chavala Landau.

 

Chavala tornou-se desenhista também, modéstia à parte. Era ela que desenhava o que os velhos executavam. Podia não ter estudado em uma escola de desenho sofisticada, talvez tivesse todos os seus desenhos na cabeça, talvez não falasse com afetação ou não se soubesse se era rapaz ou moça, mas conseguia fazer o trabalho, com uma ajudazinha daqueles cartiers arrogantes, da Van Cleef & Arpeis, além do sr. Tiffany também. Por isso ela usou a imaginação, levada pela necessidade, para fazer alguns ajustes. um brilhante ao invés de uma esmeralda, uma safira estrela azul ao invés de um rubi, mas a verdade é que ela vendia as jóias desenhadas, fossem quais fossem, como uma artífice que conhecia seu ofício. E quem ficaria magoado? Ninguém. Era como o contrabando. com exceção de alguns dólares em direitos alfandegários que não iam para o bolso de ninguém. E quem podia negar que muitas pessoas estivessem sendo beneficiadas?

 

com as três lojas e a oficina, Chavala começou, realmente, a ter uma conta bancária bem alta. Cuidava da família. Agora eles não passavam mais privações. Todos os meses, Raizel recebia um cheque. Quanto a Dvora, ela era mais cautelosa, visto que sabia da resistência do marido. Era um assunto delicado, mas ela havia descoberto uma firma, chamada Harvester, que fabricava equipamentos agrícolas, e sabia que Ari precisava de um arado mecanizado. Só que ela não podia enviar-lhe o arado com uma fita vermelha dizendo: ”Feliz Chanukah”. Por isso, resolveu pedir ajuda a Dovid. Ficou satisfeita de poder, ao mesmo tempo, manter-se em contato com ele. Naquela noite ela escreveu:

 

               ”Meu querido Dovid,

Como sempre, meus pensamentos estão em você e em Reuven. Espero que tudo esteja bem com você e sobretudo que esteja feliz. Joshua está muito bonito e fala em você constantemente. Em meu coração sei que chegará o momento em que estaremos juntos, permanentemente.

Agora, meu bem, preciso de sua ajuda. Conhecendo sua habilidade em resolver assuntos delicados, gostaria de dar um arado mecanizado a Ari, e queria que me dissesse o que você acha que seria melhor para ele, o que ele mais precisa. Tomarei providências para enviar o dinheiro para Jerusalém. Naturalmente, ele deve pensar que o empréstimo é seu, do contrário não o aceitará. Quando ele lhe pagar a dívida, o dinheiro será posto numa conta bancária para as crianças. Só posso agradecer muito por sua ajuda.

Bem, agora falarei sobre as coisas daqui. Como você sabe, Chia vai casar em junho com um jovem maravilhoso; eu já lhe falei dele. Não consigo esquecer que, nesse dia memorável, a família toda, e você, meu bem, estará reunida conosco. Bem, meu querido Dovid, que mais posso dizer além de que estou vivendo para esse dia?

             com todo o amor, Chavala.”

 

À medida que se aproximava o mês de junho, o entusiasmo pelo casamento de Chia ia pairando acima de tudo o mais. Mas, quando Chavala enviou os convites para a família, houve uma exceção que a deixou muito triste. Como ela poderia chamar aquilo de reunião de família, se Sheine não estaria presente no importante acontecimento? E como poderia ela estar presente? O marido, filho de mãe anti-semita. e Sheine ainda tendo que viver escondendo o que restava de seus verdadeiros sentimentos..

 

Durante vários dias, ela nem sequer podia atender aos clientes; ao invés disso ficava no escritório, tentando trabalhar na contabilidade.

 

Moishe subiu ao escritório de Chavala e sentou-se diante de sua mesa.

 

— Sabe, Chavala, você e eu temos partilhado muitas coisas. Agora, diga-me, o que está preocupando você?

 

— Nada... Quem falou nisso?

 

— Digo pela maneira como você está agindo.

 

— A maneira como eu estou agindo?

 

— Você está triste.

 

— Por que eu estaria triste?. bobagem. estou com muita coisa na cabeça..

 

— Por exemplo?

 

— Quatro negócios.

 

— Mas isso não é novidade. pelo amor de Deus, Chavala, não fique querendo ser sempre corajosa. Você está com um problema. Fale.

 

Ela olhou para ele. Talvez fosse melhor falar do problema.

 

— Eu quero que Sheine venha ao casamento..

 

— E daí? Por que não escreve para ela, avisando?

 

— Bem, como eu lhe falei quando voltei de Berlim, ela disse que estava esperando um filho e...

 

— E daí? Mulher grávida não viaja? Como Sheine vai viajar de cavalo ou de carroça? Ela vai viajar num navio luxuoso — disse ele.

 

Chavala não respondeu.

 

— Perguntar não ofende — disse Moishe.

 

Mas Chavala estava pensando na sogra anti-semita de Sheine. Entretanto, ela não iria convidar a sogra.

 

— Bem, talvez você tenha razão..

 

Ela estava grata a ele, por fazê-la encarar sua relutância e ajudá-la a superar essa dificuldade, inclusive a perspectiva de um encontro com um ariano como Gunter.

 

Assim que Moishe saiu, Chavala apanhou uma folha de papel timbrado da ”Landau’s Fine Jewelry” e começou:

 

           ”Minha querida Sheine,

A recordação que tenho dos momentos em que nos vimos em Berlim torna-se mais viva a cada dia que passa. Até um breve momento pode tornar-se um presente eterno, o que é o nosso caso. Anseio ver você.

Como você já sabe, Chia vai casar, e toda a família virá da Palestina. A única tristeza será sua ausência. Se eu tivesse um único desejo, seria o de compartilhar esse momento de alegria com você. Acha que seria possível você e Gunter virem? Por favor, tente, minha querida Sheine.

Espero que vocês estejam bem e felizes. Escreva logo, pois estou contando os minutos para receber sua resposta.

           Sua irmã amorosa, Chavala.”

 

Sheine abriu a pequena caixa de metal do correio e encontrou a carta de Chavala. Sentou-se num banco e abriu-a, rapidamente. Quando terminou, ficou pensando se seria possível... Não havia nada neste mundo que ela desejasse tanto como estar reunida à família, após todos esses anos.

 

Nesse dia ela quase não pensou em outra coisa; e, de noite, quando estava a sós com Gunter no quarto, seu pulso acelerou quando ela entregou a ele a carta e ainda mais quando ficou observando, enquanto ele a lia.

 

Quando ele terminou de ler, devolveu-lhe a carta; depois disse:

 

— Obviamente, você quer ir, meu bem, e isso é compreensível. Mas como você acha que sua família vai me receber?

 

Esquecendo as rejeições que ela encontrara na família do marido, ela o abraçou, grata por não ter dito que não.

 

— Você quer dizer que nós podemos ir?

 

— Eu não quero negar-lhe... — interrompeu-se. — Eles me aceitariam?

 

— Eles vão amar você...

 

— Isso é um pouco mais do que eu estou pedindo.

 

— Eles estão muito felizes por nós, pelo bebê. tudo o que eles querem é minha felicidade..

 

Ele hesitou, recordando a reação da família de Sheine quando eles casaram. Entretanto o tempo podia mudar as coisas. Bastava ver a maneira como sua mãe tinha se abrandado em relação à nora..

 

— Bem, se isso significa tanto para você, então iremos.

 

No meio de toda a sua alegria, havia um pensamento duvidoso..

 

— O que você vai dizer a sua mãe?

 

Pobre Elsa. ele ainda pensava nela com esse nome. Ela ainda vivia com fantasmas. Naturalmente, tudo aquilo resultava de sua condição de judia, sua apreensão com relação ao passado. Ele suspirou, decidido a tranqüilizá-la. Tomando-a nos braços, sorriu para ela.

 

— Meu bem, minha mãe não é nossa guardiã. Diremos a ela que vamos tirar umas férias. Está se sentindo melhor agora?

 

Ela estava, sim. Como poderia não estar se sentindo melhor, com um marido tão compreensivo. tão diferente da mãe?..

 

Quando Gunter adormeceu naquela noite, ela mal podia esperar para escrever a Chavala.

 

E quando Chavala recebeu a carta, sentiu que seu mundo estava completo, finalmente.

 

Esperar a chegada da família levava a autodisciplina de Chavala ao auge. Ela contava cada um dos dias que passavam. Mas, quando se espera, o tempo não passa.

 

Entretanto, no mês seguinte, havia mil e uma coisas a fazer, o que tornava a espera um pouco mais fácil. A cerimônia seria realizada na grande capela do Templo Rodeph Shalom, que podia acomodar duzentas e cinqüenta pessoas, e a recepção seria no Plaza Hotel. O vestido de noiva foi comprado na Bergdorf Goodman, e os vestidos das damas de honra, na Bonwit Teller. Esse ia ser o casamento dos casamentos. Chavala trabalhara durante horas a fio, com o florista, na decoração do chuppah. Rosas brancas, orquídeas pequenas, peônias, avencas, comporiam a cúpula de onde penderiam fitas de cetim entrelaçadas com lírios-do-vale. Serpentinas brancas e altos estandartes cheios de gladíolos enfeitariam o corredor; e no púlpito, haveria rosas grandes, ramos de gladíolos e lilases. No centro das mesas, em cima de toalhas de damasco rosa, haveria cestos de peônias cor-de-rosa.

 

O item seguinte da agenda de Chavala era mais complicado. Após um exame do cardápio com o fornecedor do Plaza, ficou decidido que a comida não apenas seria da melhor qualidade possível, mas também estritamente kosher. Raizel e seus filhos gozariam de uma atenção especial. nesse sentido, até sem a presença de Beef Wellington, que estava fora de cogitação. Frango sim, mas estritamente kosher, era o compromisso do Plaza,

 

A orquestra tinha sido providenciada pessoalmente por Chavala bem como o fotógrafo, cujas calças eram demasiado apertadas; mas o que se podia fazer?... Ele tinha boa fama como profissional. E era muito rápido. O dia seguinte seria o dia. A família estava chegando.

 

Chavala estava nervosíssima no cais, acompanhada de Julie, Moishe, Chia e Lenny. Cada momento parecia uma eternidade, enquanto o enorme navio era rebocado até o desembarcadouro. Quando finalmente parou, Joshua olhou para cima e gritou:

 

— Olha o papai! Reuven, olhe para cá..

 

Embora a voz do menino não pudesse ser ouvida no convés, Reuven viu o irmão nos ombros do tio Moishe. Reuven respondia aos acenos entusiasmado, rindo ao ver Joshua.

 

Então as coisas começaram a acontecer muito rapidamente, enquanto os passageiros desembarcavam. Quando finalmente a família se reuniu, risos, lágrimas e conversas animadas sobrepunham-se..

 

— É incrível... Chia! Não consigo acreditar que seja você...

 

— Ah, Dvora e Ari..

 

— Tia Chavala...

 

— Prima, que beleza. Reuven beijou e abraçou Chavala.

 

— Estou muito feliz de ver você, mamãe..

 

Apesar da animação, Chavala não apenas ficou comovida com essa mostra de afeição do filho que antes demonstrava descontentamento, mas também surpresa de que ele a chamasse de mãe ao invés de imã.

 

— Você aprendeu inglês — disse ela, com um riso um pouco nervoso.

 

— Tive que aprender. Tia Dvora é muito insistente. É tudo culpa dela. Ainda sem saber se você aprova..

 

— Aprovo, sim; é maravilhoso..

 

E então chegou o momento em que não só Joshua estava nos braços de Dovid, mas ela também estava sendo abraçada. Sentiu-se invadida por uma profunda emoção, até a alma..

 

— Dovid, que bom ver você; eu não tenho palavras — interrompeu-se e depois disse, num sussurro: — Eu amo você, Dovid.

 

— Essas palavras são maravilhosas, Chavala. E elas são de mim para você...

 

De repente, Chavala se deu conta de que nem Lenny nem Julie tinham sido apresentados. Falando em hebraico, ela disse à família:

 

— Esta é Julie, a mulher de Moishe, e este é Lenny, chatan de Chia.

 

A família cumprimentou os dois novos membros, com entusiasmo. Mas havia um problema. Como os cumprimentos foram feitos em hebraico, Julie e Lenny não entenderam uma só palavra. Moishe apressou-se em traduzir.

 

Os preparativos tinham incluído também a acomodação para a família. Raizel e os filhos foram levados para a casa da sra. Zuckerman, onde tudo seria kosher. Fora reservada uma suíte no Waldorf-Astoria Hotel, visto que kosher ali não era problema, nem a língua seria barreira; afinal Ari tinha nascido- e fora criado em Nova Jersey, nos EUA.

 

Depois que todos se acomodaram, Chavala voltou para seu apartamento, a fim de supervisionar os preparativos para o jantar daquela noite. Sugeriu que, desde que ela não estaria disponível, Dovid e Reuven assumissem o papel de guias da família.

 

Após uma hora de descanso, a família estava novamente reunida, tendo diante de si o panorama de Manhattan. Cada lugar em que passavam era novo e estranho. Nova York era uma cidade de torres que pareciam elevar-se até o céu. Andando pelas ruas, eles davam passagem àquela multidão que passava apressada por eles.

 

Zvi olhou para o pai.

 

— Não estou gostando, abba.

 

Ari riu.

 

— Para dizer a verdade, eu também não gostei muito, Zvi. Jamais gostei; mas afinal o mundo não é só a Palestina.

 

Sem ligar para a observação, Reuven disse:

 

— Para mim é.

 

Reuven continuava sendo Reuven.

 

Quando finalmente pararam no Schrafft’s Restaurant, para descansar um pouco, todos concordaram em que Manhattan não era Tel Aviv.

 

Raizel, sentada junto aos filhos, ao redor da enorme mesa, sentia-se quase esquecida, até que a garçonete veio atender. Ela olhou para Ari e perguntou em iídiche:

 

— O que foi que ela disse?

 

— Ela quer saber o que você vai comer. Nós vamos tomar café com bolo e sundaes. O que você vai querer?

 

O que ela queria mesmo era estar de volta a Mea Shearim onde não teria de se ver às voltas com essa treyf terrível. Desses pratos e xícaras ela não comeria nem bebería.

 

— Obrigada, Ari, mas eu não estou com fome.

 

Seus filhos seguiram seu exemplo. Ficaram sentados observando, enquanto o café com bolos e os sundaes eram servidos e consumidos com satisfação. Observando a família, os dois filhos mais velhos, sentados ali com seus chapéus pretos de aba larga, trocaram olhares significativos. Sodoma, dizia um com os olhos; e a resposta silenciosa do outro era: Gomorra.

 

Às sete horas, todos chegaram e foram recebidos por Chavala, toda agitada. Não havia como negar que o apartamento de Chavala era magnífico, embora Zvi dissesse para o pai:

 

— Eu gosto mais da nossa casa.

 

Reuven concordou.

 

Mas Dvora não partilhava dos sentimentos do marido ou de Reuven. Ela estava orgulhosa de Chavala, e grata também.

 

— É tudo muito bonito, Chavala; estou orgulhosa de você. Chavala agradeceu e lhe disse como estava orgulhosa de Dvora... de toda a família..

 

— E pensar que estou com vocês todos reunidos aqui. Você teria acreditado, quando deixamos aquele pequeno shtetl, que algum dia estaríamos aqui em Nova York, esperando pelo casamento da pequena Chia?

 

— Não,, pelo menos eu. Nem sequer poderia imaginar. Mas graças a Deus que isso aconteceu.

 

”Graças a Deus, ao sr. Leibowitz e ao conterrâneo”, pensou Chavala, e beijou Dvora.

 

— Bem, acho que estamos todos prontos para o jantar.

 

No dia seguinte, a família reuniu-se de novo para a chegada de Sheine e Gunter. Novamente os beijos, os abraços, com exceção de Gunter, que ficou em pé, embaraçado, até que Sheine tomou-lhe a mão e disse à família:

 

— Este é Gunter.

 

Ele respondeu aos cumprimentos, com formalidade e pouco à vontade.

 

Dovid ajudou muito, apertando-lhe a mão.

 

— É um prazer. Sinto termos demorado tanto para nos conhecer, mas seja bem-vindo. Você nos alegrou a todos com sua vinda, fazendo com que esta família se reunisse totalmente.

 

Sheine, profundamente grata por essas palavras, mal podia controlar suas emoções, enquanto se mantinha em pé diante de Dovid. Ela havia casado com Gunter por causa de Dovid, pois seu amor frustrado por ele fora muito grande. Era quase uma reação perversa E agora, ao abraçar Dovid, estando quase na meia idade, ela compreendia que seu amor era ainda maior do que antes, mas muito diferente. o amor tinha tantas facetas, tantos disfarces. Agora Dovid era novamente o irmão que ela tivera quando menina. Agora seu amor por ele tinha se completado, voltara à realidade Era um grande alívio

 

No dia seguinte começaram as compras de Dvora, Pmina e Sheine. Para Raizel, não havia escolha. Ela usaria seda preta com uma gola de renda branca, bem como um shettel preto

 

De pé diante do espelho triplo da loja Bergdorfs, Dvora, vestida de chiffon florido cor-de-rosa, olhou-se no espelho e mal se reconheceu. Muito diferente de macacões

 

Vendo seu reflexo no espelho, Chavala disse

 

— Está perfeito, é este, está lindo.

 

Olhando o preço, Dvora disse

 

— Realmente não sei o que dizer.

 

Chavala entendeu

 

— E que há para dizer: Está magnífico. De todos os que você experimentou, este é o melhor. Não se fala mais nisso

 

Dvora ainda estava relutante

 

Chavala concluiu que precisava de uma aliada Foi à cabine de provas vizinha e voltou acompanhada de Sheine. As duas irmãs examinaram a outra solenemente e com muito cuidado

 

— Por que razão você está em dúvida? — perguntou Sheine, finalmente

 

— Bem, é tão caro! Quando é que vou usá-lo novamente — disse Dvora

 

— No bar mitzvah de Zvi Você vai levá-lo. Não estou certa, Sheine ? — perguntou Chavala

 

— Absolutamente certa. Agora, o que você acha do meu?

 

— O que poderia ser melhor, para seu tom de pele? O azul sempre cai bem em você

 

— Não estava pensando tanto na cor. Que tal assim, com minha barriga grande?

 

— Como se fosse feito sob medida. Com todos esses babados, ninguém vai perceber Bem, vamos ver como Julie está se saindo, com aquela barriga

 

As três irmãs entraram no vestiário de Julie, no momento em que ela estava pondo o vestido de grávida de seda. Primeiro, Julie olhou para o espelho, depois para a cunhada. Rindo, perguntou:

 

— Você acha que alguém vai perceber que estou grávida?

 

— Nunca — disse Chavala. — E agora vamos comprar o vestido mais importante de todos, o de Pnina.

 

— E você? — perguntou Dvora.

 

— O meu, eu já tenho. Afinal, eu sou a irmã mais velha da noiva.

 

Chegou o dia dos dias para Chia. Chavala, que se levantara cedo, levou o café nupcial na cama numa bandeja. Colocou-a diante de Chia e disse, com os olhos brilhantes:

 

—- É muito importante que uma noiva coma. Hoje você vai precisar de forças. Bem, não demore muito; temos mil e uma coisas para fazer...

 

Chia olhou para Chavala, estendeu os braços e abraçou-a.

 

— Chavala, não sei o que dizer. Você nos fez. e a mim em particular. tão feliz! Devemos tanto a você. Você é quem nos manteve unidos..

 

Chavala não podia dizer nada, mas achou que talvez fosse certa, afinal, a decisão que tomara naquele dia em que estava de pé, no cais de Jaffa, há tanto tempo..

 

Por volta das duas horas, os bancos do Rodelph Shalom estavam ocupados pela família e os amigos íntimos. Enquanto o órgão tocava suavemente, Chavala, Dovid, Chia e o grupo da cerimônia esperavam no saguão. Chavala olhou para Chia, com seu vestido de cetim branco, cravejado de jóias e com uma cauda de cinco metros de comprimento, orlada de renda; não podia acreditar nos próprios olhos. Beijou Chia rapidamente no rosto e cobriu-o com o véu curto.

 

Dovid olhou para Chavala. sua mulher. bonita, uma rainha. a malva de seu vestido com renda Alençon embelezava sua pele delicada. Seus olhos azuis cintilavam e havia uma espécie de paz interior que parecia brilhar em seu rosto. Ela estava tão bonita quanto naquele dia de sábado, após o shabbes, quando tinham ficado tremendo na pequena shul, suja e fria, prometendo fidelidade. Ele a via claramente, vestida de saia e blusa de camponesa, com um xale na cabeça. Sim, de fato, Chavala era bonita, talvez até mais do que agora. o mundo tinha sido tão novo, exatamente como seu amor. O que eles tinham feito naquele dia fora um ato de fé em si mesmos, na vida. Eles esperavam que essa fé não acabasse..

 

Seus pensamentos foram interrompidos quando os sons do Lohengrin encheram o santuário, chegando até o saguão. O momento tinha chegado. Quando as portas se abriram, Pnina, vestida de organdi branco bordado, com um cinto de cetim cor-de-rosa, seguiu à frente do cortejo, espalhando pétalas de rosas que tirava de um cestinho. Dovid, vestido com fraque preto, estava à direita de Chia era ele quem a levaria ao altar. Chavala estava à sua esquerda. Os três entraram no santuário lentamente, acompanhados das damas de honra, vestidas de delicado tule rosa-claro e levando buquês de rosas e orquídeas.

 

De um lado do altar estava Lenny, tendo Reuven como padrinho. Joshua, como porta-alianças, segurava a almofada de cetim. Do outro lado, os quatro introdutores. Quando chegaram ao altar, Dovid beijou o rosto de Chia, depois ficou a seu lado enquanto os pais de Lenny se aproximavam do altar para perto do filho.

 

A cerimônia começou, o rabino explicou as responsabilidades do casamento e a santidade da união..

 

Chavala e Dovid escutavam, cada um com seus pensamentos, cada um recordando o dia de seu casamento, sentindo uma renovação e também medo pelo efeito de sua separação. Bem, cada um, à sua maneira, era um sobrevivente, pensou Dovid. Especialmente Chavala..

 

Contrariando todo o planejamento de Chavala, Raizel tinha se recusado a assistir à cerimônia; seus filhos não prestariam adoração em um lugar onde as mulheres e os homens não eram separados e onde não se usavam yarmulkes. Chavala tinha respeitado seus sentimentos, mas sua ausência causava-lhe dor.

 

Bem, eles é que perdiam, pensou Chavala, ouvindo o rabino dizer as palavras mágicas: ”Leonard, você aceita Chia como sua legítima mulher, para amar e honrar, até que a morte os separe?”

 

Solenemente ele respondeu:

 

— Aceito.

 

— E você, Chia, aceita Leonard como seu legítimo marido, para amar e obedecer, na doença e na saúde, até que a morte os separe?

 

— Aceito.

 

O rabino pediu a aliança, que Joshua entregou, adiantando-se com orgulho.

 

Leonard apanhou a aliança, enquanto o rabino dizia:

 

— Repita depois de mim. com esta aliança eu caso contigo. Então a aliança foi colocada no dedo de Chia, enquanto o rabino dizia:

 

— Agora eu os declaro marido e mulher, e que vocês vivam de acordo com as leis de Deus. Pode beijar a noiva, agora.

 

Levantando o véu do rosto de Chia, Lenny olhou-a por um momento, depois beijou-a, um beijo profundo. Logo após, ele deu continuação à cerimônia com o copo de vinho; aí, então, os novos sr. e sra. Leonard Moscowitz voltaram-se e andaram até o vestíbulo, onde, novamente, Lenny a beijou, dizendo:

 

— Eu disse aquilo com toda a sinceridade, sra. Moscowitz.

 

— Eu também, sr. Moscowitz.

 

Rapidamente, ele tomou-a pela mão, e os dois desceram os degraus que levavam ao local onde estava a limusine alugada. Pouco depois que os recém-casados chegaram à entrada do Plaza, duas limusines pararam diante da entrada principal, e a família saltou, ajudada pelo porteiro.

 

Quando Dovid entrou no saguão e viu Raizel e os filhos sentados no sofá de damasco, vestidos com seus longos casacos e com os chapéus de aba larga, arrepiou-se. Eles haviam esperado ali durante toda a cerimônia. Ao invés de seguir a família até o salão de baile principal, aproximou-se deles.

 

— Tirem esses chapéus e dêem uma olhada. Vocês não estão em Mea Shearim. Devemos mostrar boas maneiras e respeito. E quanto a você, Raizel, Deus a teria perdoado se você tivesse assistido ao casamento de sua irmã mais nova... os templos também são casas de oração. — disse ele. E voltando-se para os sobrinhos devotos: — Quanto a vocês, na hora do tefillin hoje de noite, peçam ao Altíssimo que os perdoe por terem ofendido sua tia Chavala.

 

Dito isso, afastou-se e juntou-se aos outros na fila de recepção.

 

Finalmente, após os parabéns, os convidados se dirigiram para o salão de baile, onde já se ouviam estouros de rolhas de champanha.

 

com o copo de champanha na mão, Chavala atravessou a multidão, dirigindo-se para onde estavam seus amigos muito queridos. Abraçando o conterrâneo, ela disse:

 

— Você está tão elegante com esse terno azul-marinho! Acho que é o homem mais bonito daqui.

 

Ele riu.

 

— Se você diz isso, eu não a contradigo, Chavala — disse ele. E, depois, quase com timidez: — Sinto-me honrado por você terme convidado para o seu belo simcka.

 

— Acha que não iria querer sua presença e a de Benny num acontecimento tão importante quanto um casamento?

 

Tudo o que ele pôde dizer foi:

 

— Deus me abençoou, fazendo-me conhecê-la.

 

Ela olhou diretamente nos olhos do amigo. Sem ele, esse simcha nunca poderia ter acontecido.

 

— E Deus me abençoou por sua generosidade — disse ela, beijando-o rapidamente no rosto.

 

Depois, dirigiu-se ao seu amigo Leibowitz, que estava em pé junto a Yetta. As recordações que eles evocavam... Como ela fora feliz no dia em que entrara na loja do sr. Leibowitz. Beijando-o também, disse:

 

— O senhor partilhou tanta coisa comigo. e me ajudou tanto! Não há como agradecer isso. Estou orgulhosa de tê-lo junto a mim hoje, e a você também, Yetta. O dia de hoje não teria sido tão rico, se vocês não estivessem aqui.

 

— O prazer é meu — disse Yetta, rindo. — Sempre é um prazer ver uma enfiadeira de pérolas subir na vida..

 

Agora os convidados estavam sentados em torno das mesas, e então começou o jantar.

 

Chavala olhou para a família, sentada à mesa nupcial. Imaginou o milagre de tudo aquilo. Tinham vindo dos guetos da Rússia, fugindo dos pogroms, e naquele momento estavam sentados no Plaza Hotel em Nova York. Na verdade, sua taça transbordou, até que ela notou que Raizel e os filhos não estavam comendo.

 

Levantou-se como por acaso, assim esperava ela, e foi à extremidade da mesa, onde estavam Raizel e os filhos.

 

— Você está bem, Raizel? E os meninos?

 

— Estamos bem.

 

— Então por que não estão comendo?

 

— Porque minha mãe não quer comer desses pratos, e não quer comer do frango — apressou-se a responder Boris, o mais velho, ignorando as palavras que o tio Dovid lhes havia dito. Bem, nem ele nem ninguém mais os faria ir contra suas convicções.

 

”Meu Deus, isso é demais”, pensou Chavala, olhando para o frango intacto no prato.

 

— Eu encomendei um jantar kosher..

 

— Mas minha mãe não quer comer.

 

Chavala, reprimindo o aborrecimento, chamou o maitre e pediu queijo kosher, acrescentando que devia ser servido em pratos de papel. Depois voltou para o seu lugar, sentando-se ao lado de Dovid. Seu rosto, apesar do esforço para ocultar as emoções, estava contraído. Ela não tocou no seu prato.

 

— O que há? — perguntou Dovid. Ela encolheu os ombros.

 

— Nada, querido, nada. Tudo está bem..

 

— Não, não está — disse ele, ao ver o queijo ser colocado diante de Raizel e dos filhos. — Raizel tornou-se uma meshiggene, uma fanática. E, quanto aos filhos, sinto vontade de torcer-lhes o pescoço. Como você suporta essas bobagens? Se a comida não é kosher para eles, que fiquem com fome.

 

— Não fique contrariado, Dovid. por favor... o dia é importante demais para isso — disse ela, suspendendo a taça de champanha.

 

— A você, Dovid... ao melhor homem que uma mulher pode desejar como marido. Querido, estou falando sério, mesmo que, às vezes, o que faço não corresponda às minhas palavras.

 

Antes que ele pudesse responder, o fotógrafo começou a reunir a família para tirar fotografias. Primeiro, a noiva sozinha. depois a noiva com o noivo. os flashes disparavam enquanto os cinco irmãos, com Chia no centro, sorriam... os sogros juntos. Sheine e Gunter, com Chavala e Dovid. Ari, Dvora e os filhos. Julie e Moishe. depois todas as crianças, com Joshua no centro. A última fotografia foi da família inteira.

 

A música começou e os recém-casados dançaram sós, ao ritmo de Oh, como dançamos na noite em que nos casamos. Depois Dovid e Chavala, Ari e Dvora, Moishe e Julie, Sheine e Gunter juntaram-se a eles na pista de dança.

 

Quando Joannie Joseph, a conselheira de Chia no Hunter, dançou com Reuven, ela quase esqueceu que ele tinha apenas dezoito anos. Sentindo-se nos braços fortes de Reuven, ela imaginou que seria fácil converter-se em uma sionista dedicada. Uma pena que ele não fosse um pouco mais velho..

 

Dovid e Chavala riram, ao observar o pequeno Joshua, de cinco anos, dançar com Pnina, de sete...

 

Dvora e Ari observavam seu filho Zvi, de dez anos, dançar com uma das damas de honra, que mal chegava aos seus ombros.

 

— Sabe, Ari, acho que produzimos uma geração de gigantes — disse Dvora. — Zví é mais alto do que a garota.

 

— São as grandes extensões da Palestina que lhes dão bastante espaço para crescer..

 

E agora Chia estava nos braços de Dovid.

 

— Este é o dia mais feliz de minha vida, Dovid, e não apenas por causa de Lenny. Você aqui para entregar-me ao meu marido. Sempre o imaginei como um pai... Obrigada, abba.

 

— Bem, Chia, você sempre foi minha menininha. — disse ele, pensando. ”Na verdade, foi meu bebê”; e se lembrou da noite em que ela nasceu.

 

— Faço votos para que você tenha a metade da felicidade que está tendo agora, durante o resto de sua vida — acrescentou, e então, deixou-a ir para os braços do marido.

 

O conjunto tocou Hava Nagilah e formou-se o círculo. Uma tradição antiga era perpetuada. Os noivos foram suspensos em cadeiras e sustentados nos ombros dos primos, que os carregaram pelo salão, em círculo. Os convidados juntaram-se em grupos ao cortejo.

 

Enquanto observava, o conterrâneo disse a Benny:

 

— Sabe, isso é o que se pode chamar de tradição. Outro casamento como este você não verá neste Plaza Hotel. Eu lhe garanto.

 

E o sr. Leibowitz lembrou-se de que, no seu casamento em Minsk, havia mais de cinqüenta anos, ele também tinha sido suspenso acima da multidão com a mulher. como um rei com a rainha..

 

E os pais de Lenny, americanos da terceira geração, bem. eles acharam a cena um pouco estranha.

 

Gunter não sabia bem o que pensar daquilo; os casamentos de judeus a que ele assistira em Berlim eram um pouco diferentes dos de não-judeus..

 

E Sheine achava que Chavala tinha conseguido combinar o não ortodoxo com o ortodoxo, a beleza do antigo que não parecia fora de lugar em meio ao novo.

 

Após um rufar de tambores, o maestro pediu que todo mundo se sentasse para a hora de cortar o bolo. Chia, com a mão segura pela de Lenny, fez o primeiro corte, enquanto a câmera registrava o momento.

 

E agora, todos os meses de planejamento e preparativos chegavam ao fim, quando a noiva, com sua roupa de seda amarelo-rosada, e o noivo de flanela cinza, desciam as escadas do Plaza Hotel em direção ao Buick conversível que Chavala lhes tinha dado como presente de casamento.

 

Os convidados dispersaram-se. A família voltou para o apartamento de Chavala, onde passaram uma noite tranqüila, todos juntos.

 

Após uma ceia leve, o café foi apresentado num serviço de prata legítima. Todo mundo se serviu e depois tomou café na sala de estar, onde os homens falavam de política e as irmãs, do passado.

 

Como normalmente acontece com nossas reminiscências, foi recordado o que era bom; o que outrora parecera triste, trágico, agora se tornava quase engraçado; a dor era eliminada pelo paliativo do tempo. Ninguém fazia Sirudel como a mamãe. Novamente eles ouviram o barulho da velha carroça de leite de Yankel, fazendo o giro matutino. Itzik, o vendedor de manteiga e ovos, caindo na lama, todos os ovos quebrados. Recordando agora, sentados na bela sala de estar de Chavala, a cabana de Odessa lhes parecia o lugar onde eles tinham passado seus anos mais queridos. Recordavam o Pessach com mamãe e papai, o Rosh Hashanah, o Yom Kippur e as alegrias simples do Chanukah. Chavala riu, ao falar do tempo em que quase se intoxicara comendo cerejas, às escondidas, do cântaro de vinho da mãe. As noites de inverno que eles passavam encolhidos em torno do fogão de tijolos. Em sua pobreza, parecia que havia um sentimento de união maior do que nenhum deles já tinha conhecido desde. Ou assim parecia..

 

O clima ficou mais leve quando Chavala disse:

 

— E uma coisa que nuncavou esquecer é nossa ida para a Galiléia. A mula deitou-se e morreu. Dovid não ficou nem um pouco contrariado; simplesmente segurou uma trave da carroça e mandou Moishe segurar a outra, e lá foram puxando a carroça, até que finalmente chegamos..

 

Sheine recordou o dia em que...

 

— Nós andamos pelos bares em Jaffa. Eu nunca disse nada, mas queria tanto aquelas pulseiras de harém e as sandálias enfeitadas que pensei que meu coração ia partir-se. Durante semanas, sonhei com elas..

 

Julie, escutando, tentava visualizar imagens:

 

— Como era Moishe quando menininho?

 

As irmãs trocaram um olhar, e Dvora finalmente respondeu:

 

— Sabe, eu nunca o imagino como um menininho. mas lembro-me de como ele ficou, com o fez turco vermelho. e o punhal dourado na cinta. Ele perguntou se podia ser confundido com um turco, e Sheine disse que não, não com aquele cabelo ruivo..

 

— O cabelo dele era ruivo? — perguntou Julie, surpresa.

 

— Como o fogo. felizmente, mudou um pouco; e com os fios brancos tenho de admitir que ele está quase bonito. mesmo sendo meu irmão.

 

— E eu tenho de concordar, mesmo sendo meu marido. Bem, já que estamos falando disso, acho que vou mandar o ”sr. Bonitão” levar para casa a mãe de seu futuro filho. Foi um dia longo e maravilhoso — disse ela, levantando-se e tomando a mão de Chavala. — O casamento foi perfeito. Nunca o esquecerei, Chavala.

 

Quando todos lhe seguiram o exemplo, Chavala teve repentinamente uma sensação triste... Quando fariam isso novamente? Quando estariam juntos assim?

 

As irmãs trocaram um olhar, todos partilhando do pensamento de Chavala. Foi Sheine quem disse:

 

— Julie tem razão; nenhum de nós jamais o esquecerá. Mas o melhor de tudo foi a reunião da família.

 

Depois que a porta se fechou atrás do último deles, Chavala voltou para Dovid, na sala de estar.

 

— Bem, Dovid, vimos todos eles crescerem e casarem. Vamos esperar que Deus nos permita estarmos presentes nos casamentos de nossos netos.

 

Ele a tomou nos braços.

 

— Que Deus a ouça.

 

Antes de irem para o quarto de Chavala, pararam junto à porta de Reuven e deram uma olhada nos filhos adormecidos. Agora, a noite pertencia a eles.

 

                                           Capítulo trinta e um

Chia estava sentada à penteadeira, em sua suíte, no St. Regis Hotel, a apenas alguns quarteirões do Plaza, cenário de sua recepção de casamento, examinando seu reflexo no espelho. Era esse o rosto da moça de ontem? Não parecia. Na noite passada surgira uma mulher. Ela ouvira falar da decepção que um casamento podia ser. Bem, não em seu caso. De modo algum. Lenny tinha sido terno, e depois feroz; ela havia sido capaz de reagir; o novo sentimento que possuía era tanto de surpresa como de profundo prazer e alívio. Foi tirada de seu delicioso devaneio pelo beijo de Lenny na sua nuca. com uma toalha enrolada na cintura, ele disse:

 

— Senhora, o banheiro é seu. Ela devolveu o beijo.

 

— Pensei que fosse seu.

 

— Você devia ter pensado nisso quando eu estava tomando banho. Não se esqueça disso da próxima vez.

 

— Que tal a bordo de um navio? Um encontro?

 

— Um encontro. bem, querida, é melhor você se mexer, temos exatamente uma hora até a partida.

 

Chegaram ao cais bem a tempo de dar adeus à família, que os estivera esperando, nervosa. Depois, entre serpentinas, confetes e apitos de navio, eles acenaram adeus para a família lá embaixo, enquanto o navio saía do porto de Nova York, a caminho das Bermudas.

 

Chavala teve a impressão de que estava passando seus dias dando adeuses.

 

Dois dias depois, Sheine e Gunter partiram para Berlim; e, nas quarenta e oito horas seguintes, os outros estariam partindo de volta à Palestina.

 

Na manhã da partida, enquanto Chavala, Dovid, Reuven e Joshua tomavam o café, ela fez um esforço para não pensar nos momentos que se passavam. Por um instante sentiu-se tentada a abandonar tudo na América e voltar com a família para a Palestina, especialmente quando ainda estava animada com a presença de Dovid, sentindo seu corpo renovado pelas noites passadas com ele. Mas não era tão fácil, embora as racionalizações fossem poderosas. Ela havia percorrido um longo caminho, tinha construído o seu negócio. Mas com sua volta para a Palestina a necessidade da família não desapareceria. E acaso podia deixar o fardo para Moishe, recém-casado, ou para Chia? Claro que não.

 

Então a tentação tornou-se quase uma exigência, um desafio, quando Reuven, inesperadamente — mas se ela tivesse pensado nisso, não teria sido tão inesperado —, olhou para ela do outro lado da mesa, hesitou e depois deixou escapar aquilo em que ele estivera pensando desde o primeiro minuto em que chegara a Nova York. Será que Joshua poderia ir com eles para a Palestina? Pelo menos para uma visita?

 

Vendo a expressão de tristeza no rosto da mãe, Reuven compreendeu que não havia agido bem.

 

— O que eu quis dizer, mamãe, é que ainda é junho, e Joshua só vai para o jardim de infância em setembro, e. bem, seria ótimo tê-lo conosco mesmo por pouco tempo..

 

Dovid, tão surpreso como Chavala, conteve a respiração, esperando que ela respondesse. Naturalmente o primeiro impulso que ela teve foi o de dizer que não, que isso estava fora de cogitação, mas esse impulso deu lugar ao que ela sabia que era justo. afinal, ela havia privado Dovid e Reuven de Joshua durante todos aqueles anos. Como podia negar-lhes isso, por alguns meses. mesmo que sentisse um calafrio, reforçado pelo medo de que umas férias, uma visita, pudessem transformar-se em algo mais permanente? Bem, que se resolvesse logo isso, pensou ela, e, sorrindo apenas exteriormente, disse:

 

— Está bem, Reuven. Acho que pode ser. Não suportava olhar para ele enquanto falava. Imediatamente, Reuven levantou-se e beijou a mãe.

 

— Obrigado, obrigado, mãe, e eu queria que você pudesse passar o verão conosco também.

 

— Seria ótimo... talvez no próximo ano.

 

Dovid bem sabia o que isso custaria a ela, e sentiu pena, sabendo muito bem a solidão que ela sentiria não apenas com sua ausência, mas também com a de Joshua, agora. Se algum dia ele fosse se ressentir de uma negativa dela ao filho mais novo, com certeza não seria nesse momento.

 

— Obrigado, querida. Eu sempre disse que você é uma mulher razoável. Você continua provando que estou certo.

 

Levantando-se da cadeira e aproximando-se dela, ele a tomou nos braços, apertou-a contra si e beijou-a.

 

Joshua, cheio de felicidade, não viveu todo o drama do momento.

 

Tudo o que ele sabia era que iria passar os próximos meses com o pai e o irmão Reuven, que ele adorava...

 

Após os adeuses, Julie e Moishe ficaram sentados no meio-fio, sentindo a melancolia de Chavala. Os últimos meses tinham sido tão agitados, principalmente as últimas semanas, passadas na maravilhosa reunião da família, que havia uma evidente decepção para os dois também.

 

Julie, sentindo isso, disse:

 

— Chavala, por que você não vem passar alguns dias conosco?

 

— Obrigada, mas acho que não — respondeu Chavala, com voz monótona.

 

— Seria ótimo. Para todos nós. Chavala encolheu os ombros.

 

— Sempre é bom estarmos juntos. Mas não, querida, obrigada; quero ir para casa, ficar sozinha por algum tempo.

 

Julie imaginou que ela não queria nada disso, mas foi sensível o bastante para não pressioná-la.

 

Quando Chavala finalmente ficou a sós na sala de estar, olhou em torno para todas as coisas. Não significavam nada. A autocomiseração tomou o lugar da solidão. com que ela ficara? Nada. Dvora era muito mais rica do que ela, e até Raizel, que finalmente tinha o conforto dos filhos. Todos eles tinham acertado a própria vida, exceto ela. O pai a tinha advertido quanto aos falsos profetas, e ele tinha razão. Foi para o quarto, tirou a roupa e olhou-se no espelho. Todos aqueles anos perdidos, passados longe de Dovid... Em breve estaria na meia-idade. ”Ah, cale-se, Chavala, pelo amor de Deus. você fez a sua cama, agora deite-se nela.” Mas era mais fácil dizer do que fazer.

 

Julie não podia suportar ver até que ponto chegava a desolação de Chavala, que tentava disfarçar como podia, cuidando dos negócios todo dia e sorrindo, à espera dos fregueses.

 

Era meio-dia do quinto dia quando Julie subia a escada que levava ao escritório de Chavala, encontrando-a com o olhar fixo na janela aberta. Chavala estava tão absorta em seus pensamentos que não ouviu Julie entrar, e assustou-se ao ouvir a voz da outra:

 

— Chavala, acho que você precisa de umas férias.

 

— O que... oh, Julie, não ouvi você entrar. Desculpe. O que foi que você disse?

 

— Disse que acho que você precisa de umas férias.

 

— Férias? Ora, você acha que vou me sobrecarregar de impostos com transações bancárias?

 

Julie ignorou a tentativa de humor de Chavala.

 

— Espere, acho que uma mudança lhe faria bem. Moishe e eu discutimos isso; e pelo menos uma vez, Chavala, você vai fazer alguma coisa por si mesma...

 

— Então, como é que devo ser boa para mim mesma?

 

— Viajando.

 

— O que você sugere? O Bronx? Ou, melhor ainda, Albany? É a capital de nosso belo Estado. talvez eu pudesse até almoçar com o governador.

 

— Apesar de todos os seus gracejos, você não tem chance contra nós. Moishe e eu já compramos as passagens. Você vai para a Flórida. E não me diga que só se vai à Flórida no inverno. Isso é uma emergência.

 

Chavala encolheu os ombros. Talvez eles estivessem com a razão. Talvez não, eles realmente tinham razão...

 

— Então, quando é que vocês acham que devo ir?

 

— Assim que arrumar as malas.

 

— Ótimo. Vou viajar despreocupada, deixando minhas recordações de lado, como já faço há muito tempo.

 

Naquela noite, ela fez as malas e, na manhã seguinte, Julie e Moishe despediram-se dela.

 

Na primeira noite em sua suíte, no Fountainbleu, achou que o hotel era tão grande como Manhattan, e a sala de jantar só perdia para a Grand Central Station. Algumas horas depois, pedindo ao maltre mesa para um, ela olhou em torno, observando as mulheres cuidadosamente vestidas, com maquiagens variadas, de cabelo louro, enfeitadas de jóias, sentadas às mesas em companhia de maridos e amigos, e concluiu que aquilo definitivamente não era para ela. Deu meia-volta, ruborizada, e foi para a suíte, onde jantou. Fazendo esforço para comer, chegou à conclusão de que, na verdade, toda pessoa é solitária. Às quatro da manhã, com o New York Times, a Harper’s Bazaar e a Vogue espalhados na cama, ela desligou a luz e caiu num sono inquieto, perturbado.

 

Na manhã seguinte, depois que o café foi servido em seu quarto, concluiu que já chegava. Desse tipo de solidão ela certamente não precisava. Vestiu a roupa de banho e desceu a escada, dirigindo-se à piscina. Não adiantou muito. Belas ruivas, casais felizes, solteiras sedutoras. No entanto... voltar para casa sem dar uma chance a si própria... não, ela resistiria até o fim.

 

Mas ao cabo de uma semana Miami a tinha derrotado. Ela se rendeu; tomou o primeiro trem para Nova York..

 

Quando Chavala chegou a casa, não estava feliz, mas pelo menos sua tristeza não lhe estava custando nada; ninguém tinha a obrigação de se divertir. Mas ela encontrou uma carta de Joshua. Ele estava se divertindo tanto que tinha vontade de ficar lá definitivamente. Maravilhosa notícia; era exatamente com isso que ela se havia preocupado, quando concordara em deixá-lo ir. A outra carta era de Sheine; e de repente ela se viu sorrindo. Sheine tinha dado à luz um bebê de quatro quilos e meio.

 

                                         Capítulo trinta e dois

A alegria de Sheine por ter dado à luz Erich Dieter Hausman diminuiu quando, pouco depois do nascimento do bebê, Frau Hausman se mostrou decepcionada pelo fato de o bebê ser tão parecido com a mãe.

 

— com esse cabelo escuro e esses olhos castanhos...

 

Durante nove meses, ela se imaginara embalando um querubim de olhos azuis e cabelo louro. No fundo, ressentia-se com o destino que manchara a linhagem dos Hausmans louros e puros. Na ocasião do batismo, Gretchen Hausman, finalmente avó, quase conseguira esquecer os genes estranhos do bebê. Enquanto eles se achavam na igreja, os pensamentos de Gretchen estavam decididamente no futuro. Ele seria alemão até a medula dos ossos, e ela dirigiria sua criação.

 

Sheine, observando o filho ser batizado, sentia-se como se estivesse gritando: ”Ele é meu filho também; é judeu e deve ser circuncidado; em nossa fé, um filho de mãe judia é judeu”... Se ela tivesse coragem para isso... mas teria realmente o direito... Por acaso não o tinha perdido quando se tornara Elsa Beck Hausman?...

 

                                         Capítulo trinta e três

Em setembro, conforme combinado, Reuven levou Joshua para casa.

 

Além de Chavala estar contente de vê-los, ela estava especialmente grata porque Reuven parecia ter deixado de lado sua belicosidade, parecia até ter feito as pazes com ela — isso talvez se devesse ao fato de Dvora lhe ter transmitido um senso de realidade maior, talvez ao seu amadurecimento.

 

Reuven a tinha esquecido, na verdade, mas o que ele ainda sentia, e não podia superar, era estar separado de seu irmão Joshua.

 

E quando Reuven partiu de volta à Palestina, Joshua ficou mal-humorado. Ficava em seu quarto a maior parte do tempo, falava à mãe com voz irritada, quase desrespeitosa. Chavala sentia-se embaraçada em falar com ele, e por isso recorreu a Julie e Moishe.

 

Eles lembraram a ela que ele ainda era um menino, que era muito impressionável devido à idade. E a Palestina, afinal, podia ser sedutora. Reuven, naturalmente, tinha se tornado seu ídolo. Ela não devia preocupar-se. Quando ele fosse para a escola e fizesse amigos, acabaria esquecendo isso.

 

Chavala não se convenceu. Joshua tinha se tornado muito alheado; ficava sentado durante horas, olhando fixamente pela janela... Olhando para o quê?

 

Para a Palestina, era para lá que ele olhava. A América era um lugar onde ele não se sentia mais em casa. De noite, em seu quarto escuro, ficava deitado com o olhar fixo no teto, revivendo os acontecimentos do verão anterior. Era como se ele estivesse lá naquele momento, recordando como o tio Ari tinha posto o trigo na carroça para Reuven, Zvi e ele levarem para o moinho, a fim de fazer farinha. Reuven, forte e alto, levava um açoite de tiras de couro. ”É preciso estar sempre preparado para uma emboscada árabe”, dizia ele, explicando que os árabes costumavam ficar escondidos atrás das pedras, para atacar e roubar o trigo. Joshua quase antecipava as emboscadas; era como o conflito entre cowboys e índios. Quando voltavam para casa, seus olhos dirigiam-se de um lugar para outro, e ele imaginava olhos negros observando-os... Lembrava-se da vez em que Reuven segurara sua mão, na subida da montanha de Massada; lembrava-se de ter falado, no topo da montanha, dos poucos zelotas que haviam resistido às poderosas legiões romanas durante mais de três anos. Era uma história que despertava sua imaginação. E depois eles passaram pela rua onde Moisés havia conduzido as doze tribos. Que história!..

 

O outono tinha sido belo, um período de tempo entre a colheita do verão e o plantio do inverno; era um tempo excelente para passeios e excursões. Reuven, com sua preocupação de inculcar em Joshua o senso do patriotismo, sugeriu à tia Dvora que deixasse Joshua passar uma semana com Zvi e com ele, explorando o campo. Conhecendo os perigos, Dvora recusou o pedido, dizendo que Joshua ainda era muito pequeno. Ari, por outro lado, achava que Reuven estava em ótimas condições de tratar da situação. Apesar de toda a sua relutância, Dvora cedeu. A expedição foi cuidadosamente planejada. Cada um foi equipado com dois cantis. Na véspera Ari deu algumas instruções a Reuven, prevenindo-o de que não se afastassem muito; se isso acontecesse seus cantis seriam tomados pelos beduínos; e o que fariam eles sem água?

 

Reuven riu.

 

— Já fiz isso uma dúzia de vezes, tio Ari. Sei o que fazer.

 

— Mazel tov. Mas é melhor você ter certeza do que faz desta vez; sua mãe acaba com você, se acontecer alguma coisa com Joshua, para não dizer nada de você ou Zvi.

 

Do dinheiro que Chavala lhe havia mandado, Reuven tirou vinte e cinco libras palestinas, pegou a câmera e lá se foram eles..

 

Ao entrarem na cidade árabe, a primeira parada em sua aventura, o coração de Reuven deu um salto, embora ele tentasse disfarçar. Estava fazendo exatamente o que lhe haviam dito para não fazer. Kabayah era uma cidade árabe pequena, conhecida por sua hostilidade aos judeus. Quando os meninos passaram pelos cafés e bazares, os olhares que lhes dirigiram não foram nada amistosos. Entretanto, eles tinham ido até lá, numa atitude tão ousada que Reuven praticamente prendeu a respiração até que deixaram a cidade para trás sem incidentes.

 

Agora estavam na estrada que conduzia ao Jordão. Era meio-dia quando chegaram e caíram de cansaço junto a uns pés de eucalipto. Joshua estava exausto, embora Reuven o tivesse carregado nas costas a maior parte do caminho. O menininho adormeceu imediatamente em cima do cobertor estendido, e Reuven ficou vigiando. Reuven sentia-se bem nesse papel de protetor do irmão.

 

Quando Joshua acordou, eles começaram a tirar das mochilas os ovos cozidos e as latas de sardinha, comendo com apetite. Quando terminaram, trocaram de roupa, vestindo as peças que tinham trazido. Reuven tirou o mapa da mochila e examinou-o.

 

O mês de agosto era conhecido pelos ventos quentes e secos que vinham do leste, de modo que, para conseguir um bom abastecimento de água, seriam obrigados a ir até o leito do rio. Mas isso significava que Reuven e Zvi tinham que abrir caminho através da densa vegetação com as mãos vazias e nuas, para não mencionar as dificuldades de atravessar as ravinas profundas.

 

De tardezinha, ao se aproximarem da Ponte Damiya, avistaram um acampamento de beduínos à margem do rio. Para evitá-los, deram uma volta pelo oeste, até chegarem à estrada principal através do vale do Jordão. Já estava escuro. Visto que restava pouca água, Reuven achou que, para conservar tanto as forças como a água, eles teriam que dormir onde estavam, ao lado da estrada, ao invés de procurarem um lugar onde não houvesse espinhos, cobras e escorpiões. Fizeram uma votação, e os outros dois concordaram.

 

Ao raiar do dia começaram a caminhar em direção ao leito do rio, evitando o acampamento beduíno, e rumaram para o sul. O dia foi longo e cansativo; e no fim da tarde, quando foram dormir, a água havia acabado. Várias horas depois, acordaram com as línguas ressequidas. Reuven olhou o relógio; era meia-noite. O ar seco e totalmente parado começava a sufocá-los.

 

Ele ficou preocupado com Joshua, lembrou-se do que Ari tinha dito, e agora compreendia que não devia ter submetido Joshua a isso. Ele fora tão pretensioso... Bem, estavam ali agora, e ele tinha que encontrar uma solução para o problema.

 

Apesar do perigo de passar pelo acampamento beduíno, não restava outra saída senão voltar para o rio. Reuven preveniu Joshua para não fazer barulho e disse-lhe que não ficasse com medo. Na realidade, Joshua não estava com medo. Não com Reuven a seu lado. Silenciosamente, levando Joshua nas costas, Reuven conduziu-os ao leito do rio...

 

Subitamente, o silêncio da noite foi quebrado pelo latir de cães. No escuro, tinham entrado no acampamento árabe. O primeiro impulso de Reuven foi correr; mas, mostrando mais coragem do que sentia e imaginando que a fuga só serviria para provocar sua perseguição e captura, ele sugeriu que fossem em frente, enfrentando os árabes.

 

Zvi disse:

 

— Não. Lembre-se do que meu pai disse. Acho que devemos fugir...

 

— Meu pai me disse que nunca tivesse medo e que, quando não se mostra medo, se consegue dar um jeito.

 

Zvi deu o braço a torcer a Reuven, que, apesar de ser sempre o mais forte, não estava bem convencido.

 

— Ya zalame, ya zalam, ya nass. Ó homens, ó homem, ó gente! — gritou Reuven, quando os três se acharam no círculo escuro. E depois: — Nós viemos cumprimentar sua nobre tribo.

 

Momentos depois, os beduínos saíram das tendas com tochas acesas e viram os três meninos tentando mostrar-se confiantes em si mesmos. Silêncio.

 

À luz difusa, os meninos distinguiram o chefe beduíno, que parecia surpreso e talvez um pouco impressionado com tanta coragem. Talvez Dovid tivesse razão.

 

— Sentimo-nos honrados com a presença de vocês. Bem, em que podemos ajudá-los?

 

— Ficaríamos gratos de partilhar de sua água, filho de Meca — disse Reuven.

 

O velho chefe riu.

 

— Como recompensa por sua bravura, vocês a receberão. Zvi tremia da cabeça aos pés ao ver os seus cantis serem enchidos de água.

 

— Pela gentileza de vocês, eu gostaria de oferecer-lhes este presente — disse Reuven.

 

O velho chefe olhou pera a câmara fotográfica com expressão interrogativa. Reuven explicou como funcionava, tirando e colocando o filme. Os meninos foram convidados a passar a noite no acampamento. Dormiram em esteiras de pele de cabra, e de manhã fizeram o desjejum e partiram, não apenas com os cantis cheios de água, mas também com bolo de leite de camela. Reuven chegou à conclusão de que tinha justificado o que havia dito; Joshua estava orgulhoso dele, e Zvi sentia-se feliz, para não dizer surpreso, por estar vivo.

 

Viajaram num ônibus lotado com destino a Gaza, e depois foram diretamente visitar o velho forte. Mas antes que pudessem fazer as explorações foram presos por um policial árabe e levados para a delegacia local. Eram suspeitos de ser imigrantes ilegais. Mesmo contra a vontade, a polícia ficou impressionada com Reuven, quando ele se recusou a ser interrogado em árabe, sem se deixar intimidar, fazendo questão de dizer que nascera na Palestina. Quando terminou de falar, ele estava bem impressionado consigo mesmo, seguro de que haviam acreditado nele. Mas o policial árabe não era tão benigno como o chefe beduíno. Até que ele conseguisse provar que os meninos não eram estrangeiros, resolveu prendê-los numa cela, apesar de Reuven lhe dizer aos gritos:

 

— O nome de meu pai é Dovíd Landau; ele está no Yíshuv Central. Se vocês não acreditam em mim, entrem em contato com ele. Além disso, vocês não têm o direito de nos reter aqui. Esta sala de tribunal é turca...

 

O policial afastou-se sem dar ouvidos ao protesto.

 

Entraram em contato com Dovid, que apareceu várias horas depois, não muito contente com Reuven.

 

— Como você foi fazer uma besteira dessas? Pôs em perigo não só a você mesmo, mas também a Joshua e Zvi. Quer dizer que vocês entraram em território árabe?

 

— Eu sei, abba, mas você me disse que nunca tivesse medo.

 

— Eu também sei que lhe disse para nunca ser idiota. Finalmente Dovid conseguiu soltá-los, mas não sem embaraço para si mesmo também.

 

Quando chegaram a casa suas façanhas rapidamente se tornaram conhecidas dos colegas de Reuven, em Kfar Shalom; e, apesar do que Dovid, Ari e Dvora pensavam, Reuven se saiu como um herói...

 

Pensando naqueles meses extremamente excitantes, Joshua sentia intensamente seu amor e admiração por Reuven. Ele tinha uma vontade incontrolável de participar do grupo que Reuven chefiava. Ansiava por percorrer toda a Palestina, até os lugares de antigas batalhas, visitando os túmulos e as cidades. Admirava as tradicionais saias e calças curtas azuis que os jovens usavam, bem como suas canções sobre a pátria:

 

”Quem construirá A Galiléia? Nós! Nós!”

 

E as melodias de Elias, o Profeta, que dizia:

 

”Venha a nós, Venha a nosso tempo. Traga o Messias Da linhagem de Davi.”

 

O eco do antigo canto reverberava na mente de Joshua. Ele estava decidido a manter sua promessa, feita a Reuven, de voltar, de dedicar-se a Eretz Yisroel também..

 

Julie e Moishe tinham se tornado os pais orgulhosos de uma linda menina chamada Laura.

 

Chia e Lenny compensaram o tempo perdido. Tiveram a bênção de gêmeos, um menino chamado Gideon e uma menina chamada Aviva. já que tinham nascido em abril, o nome Aviva, que significa primavera, parecia bem adequado...

 

Na Palestina Zvi tinha se tornado, segundo escrevia Reuven, não apenas versado em hebraico, mas também dedicava a maior parte de seu tempo ao movimento da juventude sionista..

 

Para Chavala, a vida também não tinha parado. Corria o ano de 1928. O país parecia estar florescendo. A Bolsa de Valores tinha altas incríveis, e os negócios de Chavala também progrediam muito. No entanto, as exigências a que tinha de atender aumentavam também. não só porque a família tinha crescido. A Palestina passava por terríveis dificuldades financeiras. Família... Palestina... tornaram-se uma única coisa para ela. Ela expandia suas operações. A casa de penhores na Mott Street ia tão bem que ela falou com o conterrâneo, e ficou decidido que seriam abertas mais cinco lojas em áreas diferentes. A essa altura, os negócios da loja Landau na Fifth Avenue tinham se tornado respeitáveis. Chavala comprava por atacado do sr. Leibowitz, podendo, assim, apresentar extratos. Ampliou a loja da Fifth Avenue, dirigindo uma joalheria em Miami e outra em Los Angeles. Chavala Landau era uma empresária nacional.

 

Sua vida havia se tornado uma rotina. O tempo a pressionava. Sabia que Joshua tinha crescido afastado dela. Suas necessidades tinham aumentado do mesmo modo que os negócios de Chavala. E crescia também sua disposição para unir-se a Reuven.

 

Em setembro de 1929, o mundo parou de girar, desmoronou.! Mas não para Chavala. Quando veio a crise, Chavala tinha acumulado bens suficientes para comprar propriedades a preços de pechincha nunca vistos. Comprou um prédio de apartamentos de seis andares na 68th Street, entre a Fifth Avenue e a Madison Avenue, dois prédios comerciais na Lexington Avenue, e um love de terra em Jamaica, no Estado de Nova York, pouco distante de Manhattan. Estabeleceu fundos de custódia para todas as crianças, inclusive o pequeno Erich, de Sheine.

 

As necessidades de Raizel e dos filhos eram muito grandes. Visto que sua capacidade de ganho era tão limitada, Chavala os sustentava. Estava convencida de que Raizel, frugal como era, jamais gastaria o dinheiro com coisas fúteis, como um vestido novo, por exemplo. Chavala sabia para onde o dinheiro ia. além das necessidades básicas, sua irmã fazia caridade e favorecia a shul. Bem, se era isso o que a irmã achava ser mais importante, tudo bem. só que Chavala desejava que, pelo menos uma vez, Raizel fosse um pouco egoísta, que fizesse alguma coisa para si mesma..

 

O que agradava a Chavala de modo especial era que Ari não parecia mais ficar ressentido com suas doações, e ela não tinha que usar subterfúgios como no passado, graças a Deus.

 

Ele parecia compreender que, sem ajuda, a vida de Dvora teria sido uma labuta enfadonha Também não sentia mais necessidade de pedir desculpas ao resto da chevra. O importante era a vida de pvora, e, na medida em que Chavala podia ajudar a aliviar-lhes o fardo, ele não apenas a aceitava, mas até se sentia grato por isso. Dvora tinha uma nova casa de quatro quartos. O mais animador foi que, quando a energia elétrica chegou a Kfar Shalom, Dvora conse guiu adquirir geladeira e fogão novos e, milagre dos milagres, uma máquina de lavar

 

Chavala estava grata a Julie e Moishe, a Chia e Lenny, por lhe permitirem pôr à disposição deles dois apartamentos no seu novo prédio da 68th Street. Ela morava na cobertura. Era uma família e tanto debaixo do mesmo teto, pensou ela, agradecida

 

Mas se a vida de Chavala parecia satisfatória, uma das principais fontes de sua inspiração, sua profissão, se defrontava com tempos cada vez mais difíceis

 

O ano de 1929 não foi apenas um ano de crise na economia mundial, foi também um tempo em que a Palestina foi assediada por tumultos, traições e revoltas. O surgimento dos dinâmicos kl butzitn tinha dado início a um reavivamento cultural dos judeus. Surgiram sistemas escolares, negociações políticas podiam ser realizadas pela Agência de Sião, na qual Dovid era uma autoridade preeminente, independentemente dos árabes e cada vez mais dos ingleses também. Os árabes, inquietos porque o padrão de vida da comunidade judaica, na Palestina, era mais elevado, e também pela sua tendência a agir como uma nação separada, achavam que as instituições judaicas eram de certa forma intrusões alienígenas. Não era de surpreender que eles se preocupassem com a possibilidade de que o exemplo dos judeus viesse a provocar desordem e rebelião entre os feias, cujo padrão de vida não tinha mudado muito em mil anos O progresso do yishuv era visto com amargura e suspeita

 

Quanto aos ingleses, foram apanhados entre promessas conflitantes, feitas aos judeus e aos árabes. Mas era aos árabes que eles viam como aliados, os judeus representavam uma ameaça. O mundo árabe estava cada vez mais descontente, por isso tinha de ser apaziguado. Os ingleses resolveram considerar ilegal a posse de armas pelo yishuv, apesar de os judeus terem sempre apoiado os ingleses. Estes últimos, especialistas em racionalização, lembravam aos judeus que eles tinham, afinal, permitido as colônias judaicas. Além disso, os judeus possuíam terras, mas os árabes tinham petróleo

 

Os ingleses receberiam bem um líder árabe que surgisse das disputas internas entre os árabes. A família efêndi mais poderosa era a dos El-Husseins, que tinha herdado a TransJordânia, nação criada pelos pacificadores após a Primeira Guerra Mundial. O mais temido deles era Haj Amim el-Hussein, que antigamente apoiara os turcos e que, vendo o poder vazio, tencionava preenchê-lo. O Império Otomano estava em decadência. Os ingleses estavam nervosos em relação aos judeus, que tinham levado a sério a Declaração Balfour e tentavam assegurar uma pátria. e, ao que parecia, até criar um Estado judaico. Os ingleses abraçaram a doutrina da divisão e dominação. E então entrou em cena Haj Amim, apoiado por mais de dez líderes árabes, decidido a apoderar-se ao máximo da Palestina e proclamar-se mufti de Jerusalém. Quando havia violência entre árabes e judeus, os ingleses protestavam, dizendo que estavam fazendo o que podiam para solucionar a questão, fechando os olhos ao mesmo tempo quando Haj Amim tomava o poder e agitava os feias.

 

Na data do nascimento de Moisés, quando se comemorava também o dia santo muçulmano, ele incitou os feias contra os judeus, alegando que estes estavam roubando suas terras, profanando seus lugares santos. Foi derramado sangue, o que não era de surpreender. Os kibutzim que podiam defender-se eram evitados. Mas nas cidades santas de Safad, Tiberíades, Hebron e Jerusalém, os velhos defensores devotos resmungavam.

 

Os ingleses, vendo acontecer tanta coisa boa para eles, e precisando apenas empurrar o pêndulo um pouquinho mais na outra direção, levaram Haj Amim el-Hussein perante uma comissão britânica de inquérito, onde ele foi punido. E depois, perdoado. E, uma vez concedido o perdão, o Departamento Colonial Inglês impôs restrições à imigração judaica. Boa vontade para com os árabes, a todo o custo. Era imperativo que os ingleses mantivessem o controle] dessa área muito rica em petróleo.

 

Era preciso fazer algo pelo yishuv; do contrário ele pereceria.

 

A Agência da Colônia Sionista convocou uma reunião secreta. Chaim Weizmann tomou um avião de Londres para a Palestina, Dovid Landau estava presente, bem como Yitzchak ben Zvi, David ben Gurion e Binya Yariv. Muitos achavam que Yariv, grande e imponente homem da Terceira Aliyah, que viera para a Palestina com uma impressionante ficha do exército russo, era um candidato muito provável a liderar a defesa judaica.

 

As discussões se estenderam noite adentro. Os ingleses eram importantes demais para serem deixados de lado. Eram uns demônios, tal qual os otomanos, dos quais diferiam somente no uniforme e na diplomacia, já que ambos eram exploradores. Muitos eram a favor de represálias contra os ingleses, enquanto Ben Gurion, Dovid Landau e Binya Yariv, juntamente com outros, aconselhavam uma estratégia mais moderada. Concordaram em que a necessidade de armas era urgente, mas era preferível um meio legal para angariar a simpatia da opinião pública mundial. Uma coisa ficou combinada: o yishuv não podia ser deixado sem defesa. Seriam obtidas armas. Formar-se-ia uma milícia em sigilo, que seria usada somente para defesa. Yariv foi eleito chefe da nova organização secreta; e, assim, com esse exército de legítima defesa, nasceu a Haganah.

 

Dovid era muito conhecido pelo seu sucesso na criação de colônias, mas agora havia um desafio ainda maior para ele. Sua experiência com o NILI o qualificava para a tarefa da obtenção de armas. Um abastecimento de armas era praticamente uma questão de vida ou morte para a Haganah.

 

Dada a carência de fundos do yishuv, Dovid foi imediatamente procurar o benfeitor com quem tinha mais intimidade. Naquela noite, ele partiu do Aeroporto de Lydda. Destino: Nova York.

 

Chavala nunca pensou que chegaria o dia em que ele lhe pediria ajuda. Finalmente, ela podia acreditar em suas razões para ter-se separado dele. Durante todos esses anos, estivera em guerra consigo mesma. Bem, agora havia uma guerra ainda maior. Uma guerra não apenas para sua família, mas para toda a família judaica.

 

Quando Dovid, sentado em sua sala de estar em Manhattan, terminou de lhe contar o que acontecia, ela simplesmente disse:

 

— De quanto dinheiro você precisa, Dovid?

 

Ele nem sequer queria mencionar as enormes quantias que seriam necessárias para proteger o yishuv.

 

— No momento, o máximo que pudermos conseguir.

 

Sem dizer mais nada, ela se levantou e pegou o telefone. Esperava, nervosa, que atendessem. Quando finalmente ouviu o ”Alô”, seu coração deu um salto. Graças a Deus que seu amigo, o conterrâneo, estava do outro lado da linha.

 

— Aqui é Chavala.

 

— Chavala! — exclamou ele. Estava contentíssimo por ouvir a voz dela. — Você quer mais mercadorias a esta hora da noite?

 

Apesar da situação tensa, ela riu.

 

— Desta vez não é de mercadorias que estou precisando. Apenas dinheiro. Só que desta vez tem que ser muito dinheiro.

 

— E o que você considera muito dinheiro?

 

— Dois milhões de dólares, talvez. Sim ou não?

 

O conterrâneo ficou olhando o telefone. Quando recuperou a voz, perguntou:

 

— Como você o quer, em moedas de cinco ou de dez cents?. Chavala, como eu iria conseguir dois milhões de dólares?

 

— Amanhã de manhã irei aí falar com você; então eu lhe direi como.

 

Dovid ficou perplexo.

 

— Chavala, é loucura! Sei muito bem onde empregar esse dinheiro, mas dois milhões de dólares?

 

— Tenha um pouco de paciência. As coisas sairão à minha maneira; não vai parecer tanto assim.

 

Ela foi à escrivaninha, tirou da gaveta o talão de cheques e deu a Dovid um cheque pessoal no valor de dois milhões de dólares. Ele ficou sentado fitando os algarismos. Essa era a menina de Odessa que nunca desistia de um sonho. Ela é que dava, e ele, na verdade, era quem recebia. O amor de Chavala por Eretz Yisroel era tão grande quanto o seu; apenas seguira outra direção. Venha de outra direção, fonte. amor de sua família..

 

Na manhã seguinte, quando os dois estavam sentados no porão do conterrâneo, este arrumou seu yarmulke sobre o cabelo ralo, ajustou os óculos de armação de metal e disse:

 

— Estou com medo de perguntar, Chavala, porque conheço você. Conheço seus planos, seus esquemas e sua decisão. mas mesmo assim eu pergunto. Bem, onde é que vou arranjar dois milhões de dólares?

 

Depois de explicar a missão de Dovid, Chavala disse:

 

— Obviamente, conhecendo você, sei que farão uma doação grande. Mas dois milhões de dólares eu não espero. No entanto, para sua associação, seus amigos.. não seria problema...

 

— Escute, Chavala, kosher eu não tenho sido, mas, por outro lado, nunca me misturei com os gângsteres de Nova Jersey. Nem mesmo com os gângsteres judeus.

 

— Mas você tem intimidade com...

 

— Intimidade? — admirou-se ele, rindo. — Eu os conheci, quando eles eram crianças, estavam começando. Então o que é que você quer que eu faça?

 

— Que você convoque uma reunião hoje à noite. Ele suspirou.

 

— O quê? Você pensa que é fácil apanhar o telefone e chamar Bugsy Siegel ou Harry Teitelbaum e dizer: ”Venham aqui hoje à noite, para quebrarmos uns matzohs juntos”?... Chavala, você não compreende, eles não são pessoas comuns, são gângsteres...

 

— Sim, mas são gângsteres judeus. A quem você esperaria que eu recorresse? Aos italianos?

 

O conterrâneo sacudiu a cabeça, encolheu os ombros e cedeu. Quando Chavala tinha um plano, nada a detinha.

 

— Está bem. Deixe-me ver o que posso fazer. Oy vey, Chavala, as coisas que faço por você!

 

Ela riu.

 

— É para isso que servem os amigos; e amanhã você virá jantar com Dovid e comigo. Bem, querido, vamos usar o telefone.

 

Não era uma tarefa fácil convencer os meninos que ele conhecera na juventude a se reunirem no apartamento de Chavala, mas tanto insistiu que, pelos velhos tempos, eles lhe fizeram esse favor.

 

Quando ele desligou, Bugsy Siegel disse a Waxey Gordon:

 

— Você acha que é um golpe?

 

— com o conterrâneo eu duvido. Na verdade, eu tenho certeza de que não é. Mas onde diabos é a Palestina?

 

Chavala sabia que Deus estava do seu lado; e, embora o mundo estivesse contra eles e nunca tivessem um amigo, Deus estava também do lado de Eretz Yisroel. Ela compreendeu isso no momento em que abriu a porta e entraram o conterrâneo e seus rapazes, que tinham residido em outros tempos no Bowery.

 

Chavala não sabia se os gângsteres judeus eram iguais aos judeus comuns, mas ela apostava que eles podiam ser convencidos; um judeu era um judeu, fosse qual fosse sua profissão. Ou assim esperava. Ela serviu o uísque que recebera do conterrâneo, que, por sua vez, o conseguira com seu contrabandista de bebidas. A mesa estava cheia de iguarias, queijo com creme, enguias kosher, fígado cortado (em forma de estrela judaica, que Deus a perdoasse), e também travessas de carne em conserva e pastrami.

 

No começo, houve uma clara reserva da parte de seus convidados. Mas logo Chavala os pôs à vontade com seus gracejos. Até os gângsteres judeus sabiam rir. Bem, se ela podia fazê-los rir, talvez pudesse fazê-los dar algo. A fonte não importava. agora que os ingleses tinham lhes dado as costas. Mas os judeus sobreviveriam, com os meios que lhes restavam.

 

Quando a mesa foi tirada, reinou o silêncio. Chavala olhou de um lado para outro: Doe Stacher, Bugsy Siegel, Harry the Lip Teitelbaum, Lepke Buchalter, Big Greenie Greenberg, Shadows Kravits, Dopey Shapiro, Little FarfeI Kavolick, Little Hymie Holtz e Waxey Gordon. Depois, olhou para Dovid, em busca de apoio moral, além de Deus, para que Ele colocasse as palavras em sua boca. Ela sabia que mencionar o dinheiro poria tudo a perder. Não devia dirigir-se aos corações judeus que batiam debaixo daqueles coletes à prova de bala. Chavala pôs-se de pé.

 

— Vocês não imaginam a honra que sinto esta noite por terem concordado em vir aqui — disse ela.

 

Eles trocaram um olhar, tentando imaginar o que, exatamente tinha levado o conterrâneo a persuadi-los. Chavala continuou:

 

— Os pais de todos vocês fugiram dos pogroms da Rússia e da Polônia e de outros lugares. Todos nós fomos feitos da mesma matéria-prima; e como seus queridos pais tiveram a sabedoria de vir para este grande país, vocês tiveram a oportunidade de se tornar homens prósperos. Tenho certeza de que vocês, que vieram das ruas do East Side, puderam valer-se da grande liberdade e dos dons que este país nos oferece. Mas judeus estão sendo mortos no mundo inteiro; estão sendo aniquilados, expulsos de um país para outro. Para eles não há esperança. E aqueles judeus que moram na terra de nossos antepassados foram privados do direito de defender-se. Privados de armamentos, de armas — ela frisou a palavra que eles entenderiam. — Os ingleses são os piores mamzerim do mundo. Aos árabes eles dão armas, sim. Mas a nosso povo eles dão dreck. Se nós não os ajudarmos, aos nossos, com quem eles poderão contar? com Lucky Luciano? Capone? — perguntou. A menção à rivalidade com os italianos era um golpe de mestre. Rapidamente, ela procurou tirar proveito disso: — Nós devemos ajudar os nossos, e a única maneira de fazer isso é fornecer munição aos nossos judeus, para a luta contra nossos inimigos. Vocês estão tão envolvidos como eu mesma. e meu marido. (”Perdoe-me, Dovid.”) Os judeus lutam pelos judeus, e nós ganharemos a batalha, com a ajuda de Deus, e com o nosso dinheiro.

 

Os pais de Little Farfel Kavolick tinham fugido dos pogroms.

 

— De que quantidade de armas você precisa? — perguntou ele.

 

Chavala teve a impressão de que ia desmaiar.

 

— Isso meu marido dirá dentro de poucos minutos; mas neste momento, eu estou dando trezentos mil dólares, porque o que precisamos é mais do que armas, precisamos de equipamento adequado. tanques, um ou dois aviões..

 

Bugsy Siegel olhou bem para aquela mulherzinha. Aquilo tinha se transformado quase em um jogo, e Bugsy gostava de jogar.

 

— Eu dobro sua oferta — disse.

 

Ela não sabia se ria ou chorava. Tinha exagerado um pouco, mas estava dando certo.

 

— Muito obrigada, sr. Siegel.

 

— Pode chamar-me de Bugsy. Bem, com quanto os outros vão contribuir?

 

Ele tinha tomado a dianteira. Isso era para seu povo.

 

Ninguém superaria a contribuição de Big Greenie Greenberg. Que significava isso? Mais alguns barcos de bebida ilegal vinda do Canadá...

 

— Eu dou o mesmo.

 

Dovid ficou mudo. No fim da reunião, eles tinham levantado os dois milhões de dólares. Quando Chavala fechou a porta, depois que os convidados saíram com a promessa de que o dinheiro estaria com o conterrâneo na manhã seguinte, ela teve de dar um grito de alegria.

 

— Oh, Dovid, conseguimos!

 

— Não, Chavala. Você conseguiu, como conseguiu tudo o mais que desejou até agora — disse ele, abraçando-a. — Eu amo você, meu bem. Meu Deus, como amo você!

 

— E eu amo você, Dovid. Por mais difícil que seja para você acreditar nisso.

 

E foram para o quarto, para reafirmar o que eles sentiam com tanta intensidade.

 

De manhã, enquanto preparava o café para Dovid e Joshua, Chavala cantava, uma mulher bem-amada era uma mulher feliz, pensou. Como podia ter esquecido isso?..

 

À mesa, Joshua observava Dovid atentamente, mal escutando a conversa dos pais. Teria a coragem de discutir aquilo que não o deixava sossegar? Quando ele voltara da Palestina, sua mãe lhe havia dito que, de agora em diante, ele passaria as férias num acampamento, no lago Minnetonka. Quem ligaria para isso? Ele queria era ver o lago Kinneret. Finalmente, desabafou:

 

— Eu quero passar este verão também em Eretz Yisroel. está bem, abba?

 

Dovid olhou para Chavala. Ela já tinha aberto mão de um filho, e agora Joshua? Não se tratava apenas da sugestão de outro verão em Eretz Yisroel. Ambos sabiam que isso era apenas um prelúdio para seu objetivo final de morar lá. Joshua, inteligente como era, não achava que os pais fossem perceptivos o suficiente para ler seus sentimentos mais profundos.

 

Ele esperou durante o que pareceu uma eternidade, observando a troca de olhares entre os pais.

 

Finalmente, Chavala assentiu ligeiramente para Dovid. A pergunta fora feita a ele. Era ele quem devia responder.

 

Dovid sabia muito bem como tinha sido doloroso aquele sinal que Chavala lhe fizera, e sabia também que aquilo significava que ela compreendia e respeitava a necessidade do filho de estar onde lhe ditava seu coração.

 

Entretanto, por um momento Dovid sentiu-se tentado a dizer que deixasse para outro verão; mas, vendo a expressão dos olhos de Joshua, e não querendo desprezar o sacrifício de Chavala, ele disse:

 

— Acho que você deve perguntar a sua mãe.

 

Joshua estava com medo. Tinha quase certeza de que a mãe diria não. Se o pai tivesse dito sim. se não o tivesse colocado nessa situação! Mas seu pai sempre tinha dito a Reuven: ”Nunca tenha medo”. ”Está bem.”

 

— Posso. mamãe?

 

com certa hesitação, ela respondeu:

 

— Claro. Estou surpresa de você não ter pedido antes. na verdade, eu quero que você vá.

 

Ela seria capaz de se matar se deixasse cair uma lágrima.

 

Por um momento, ele ficou sentado, incrédulo. Depois, lentamente, levantou-se da cadeira, pôs os braços em torno da mãe e beijou-a.

 

— Obrigado, mamãe.. eu amo muito você. Ela sorriu.

 

— Bem, este é o melhor presente que eu já recebi. Vou chamálo de presente de despedida de férias.

 

Quando Dovid voltou para a Palestina, foi pelo menos com a esperança de que o yishuv seria protegido e de que a Haganah poderia ser iniciada. Assim que chegou a seu apartamento em Tel Aviv, sentou-se e escreveu uma carta a Chavala. Contou-lhe tudo o, que tinha sido realizado, o contrabando cuidadoso de armamentos, a construção de um arsenal, e terminou dizendo:

 

”E um dia, minha querida Chavala, quando nós formarmos un Estado livre e independente, poderei dizer ao mundo, com orgulho que minha Chavala contribuiu para seu nascimento.

 

com o mais profundo amor, Dovid.”

 

Ele ficou pensando se devia falar ao mundo dos cavalheiros de Nova Jersey. Acaso o mundo estaria pronto para isso? Sorriu..

 

Após o derramamento de sangue e os tumultos de 1929, Kfar Shalom aderiu à organização Haganah e começou a receber armas e instruções militares. Naturalmente, toda a comunidade de homens, mulheres e crianças fazia o juramento do segredo. Sentinelas foram colocadas em seus postos e advertidos de que os adultos deviam policiar toda e qualquer aproximação das entradas do moshav. Foram dadas aulas de judô e de tiro; mas o manejo de armas parecia menos importante do que pertencer à Haganah, especialmente para os meninos. Quanto a Reuven, não era novidade para ele disparar uma carabina. Seu pai lhe havia ensinado isso quando ele tinha apenas treze anos..

 

Numa noite de dezembro de 1932, a colônia de Kfar Shalom foi sacudida por uma enorme explosão. Após a correria na noite chuvosa, constatou-se que Eliezer Har Zion e seu filho de oito anos, Dov, tinham sido mortos. Tinha havido ataques recentes contra as colônias judaicas no vale de Jezreel durante o ano, mas esse assalto contra Kfar Shalom era uma surpresa terrível. Desde sua criação, na colônia não havia ocorrido nada mais sério do que uma briga de vez em quando com os beduínos, por direitos de propriedade.

 

Após meses de investigação intensiva pela Haganah, e com a ajuda da polícia, Ahmed ei Gala’eini e Mustafa el-Ali foram presos. Após sua prisão, foram apanhados outros três suspeitos. Todos os cinco tinham uma coisa em comum: barba crescida e descuidada; e, assim, descobriu-se um grupo de terroristas que se tornaram conhecidos por Xeques Barbudos, e também Kassamai’in, nome dado em homenagem ao líder. Sírio de nascimento, El-Kassam pregava a insurreição em uma mesquita de Haifa; seus adeptos eram trabalhadores: pedreiros, mecânicos e ferreiros desiludidos, na verdade qualquer pessoa que tivesse acesso a explosivo ou soubesse trabalhar metais. Ele e seu pequeno grupo especializaram-se em fazer bombas caseiras, que usavam para matar os judeus. Fanático religioso, ele normalmente lia passagens do Alcorão antes de enviar seus homens em sua missão de matar..

 

Ao raiar do dia, os fazendeiros de Kfar Shalom estavam nos campos.

 

Ari, Zvi e Reuven estavam arando a parte ocidental quando um pneu furou e Reuven foi buscar outro, enquanto Ari e Zvi tiravam o furado.

 

Dvora adubava a horta recém-plantada na extremidade do campo.

 

Pnina estava no celeiro, ordenhando sua vaca, Shoshana.

 

Pouco antes de Reuven chegar ao leve declive do pátio, pareceu que as portas do inferno se abriam. armas disparando, pragas de ”Mate em nome de Alá”, ”Destrua os judeus”..

 

A fazenda de Chaim Zadok estava em chamas ao longe, e nuvens de fumaça erguiam-se do setor norte do moshav.

 

E agora os terríveis sons da vingança dos Xeques Barbudos aproximavam-se.

 

Reuven deixou o pneu e correu para a casa. Quando saiu com a carabina que o pai lhe tinha dado, ouviu Pnina gritando no celeiro: depois viu-a ser arrastada para fora. O mundo inteiro girava. Os terroristas tinham se infiltrado no moshav. Sem hesitação, ele fez pontaria com o fuzil e atingiu o árabe no coração. Correu para Pnina, apanhou-a com seus braços fortes. Afagou-lhe os cabelos, segurando-a.

 

— Psiu, Pnina, está tudo bem. está tudo bem; eu não deixo ninguém machucar você.

 

com a força de Reuven, ela se sentiu em segurança. Ficou quieta em seus braços, com a cabeça apoiada em seu ombro.

 

— Eu amo você, Reuven. Eu o amo e posso lhe dizer isto agora. Está bem?..

 

— Está bem. Meu Deus, eu sinto a mesma coisa, querida Pnina. Eu amo você.

 

Uma declaração simples. Só que Reuven não esperava que ela o amasse como mulher, que seu amor tivesse se desenvolvido desde a infância...

 

Ele a levou para a casa, colocou-a na cama e ficou junto a ela por um instante. Finalmente disse:

 

— Acho que eles estão indo embora. Agora você fica aqui, eu tenho que ir para junto dos outros. Você estará em segurança.! Por favor, confie em mim..

 

Ela o beijou.

 

— Eu amo você, Reuven, meu querido. acredite..

 

Nos campos, Reuven viu sua família de pé com o resto dos moshavim, e, graças a Deus, em toda aquela destruição, pelo menos Ari, Zvi e tia Dvora estavam vivos. Outras dez pessoas não haviam tido tanta sorte. Tinham dado a vida para proteger seu sagrado] pedaço de terra.

 

Quando chegaram a sua fazenda e Ari viu o cadáver no pátio, mandou Dvora ir para dentro da casa, depois olhou para o rosto do morto. Era o rosto do mesmo homem que havia massacrado centenas de pessoas em nome de Alá. Era o rosto de Az el-Din ei- Kassam. Ari não sentiu tristeza nem compaixão. O corpo foi remo- vido e posto ao lado da estrada, de onde foi levado para Jenin. Um lugar apropriado, já que fora ali que eles dizimaram vinte e três judeus postados em oração.

 

Esse dia marcou, irrevogavelmente, o rumo da vida de Reuven. Seu primeiro sonho tinha sido o de tornar-se cientista, agrônomo como o pai; mas, como aconteceu com o pai, outras paixões intervieram. Ambos queriam ser fazendeiros, viver em paz, trabalhar sua terra, mas Reuven compreendeu que, a partir desse momento, sua missão seria defender o seu povo. Desse momento em diante, dedicou-se à Haganah.

 

                                         Capítulo trinta e quatro

Era o ano de 1933. Hitler tinha subido ao poder. Mas Joshua não imaginava as conseqüências desse terrível fato.

 

A única pessoa a quem ele achava que podia recorrer era Reuven, como tinha acontecido nos primeiros anos de sua vida. Sentou-se à sua escrivaninha e escreveu em hebraico. Reuven, naturalmente, falava inglês fluentemente, mas escrever em hebraico fazia Joshua sentir-se mais próximo de Eretz Yisroel.

 

                   ”Querido Reuven,

Como você sabe, embora eu tivesse apenas cinco anos quando voltei da Palestina, naquele verão, senti que a América não era mais o meu país.

Vivo aqui, mas meu coração não está aqui. Estou longe demais da terra que amo. Longe de você.

Tenho amigos aqui, mas sinto-me como um estranho, porque pertenço a um mundo diferente do deles. Quero estar com você e abba. Isso não quer dizer que eu não ame imã. Nós dois a amamos, mas somos diferentes dela. Até os americanos do grupo de jovens sionistas com o qual trabalho não parecem ser como Zvi e Pnina. Eu sou um deles. De vocês...

Espero que me perdoe por incomodá-lo com meus pequenos problemas, quando sei que os seus são grandes, sendo você oficial da Haganah. Mas, de qualquer modo, Reuven, sinto que só você me compreende realmente. Esta carta é só para lhe dizer, mais uma vez, como sempre o fiz, o quanto desejo morar em Eretz Yisroel. Como sabe, meu aniversário será em outubro, e imã está planejando um bar mitzvah tão bom quanto o casamento de Chia. Naturalmente, ela pretende que toda a família venha à América. Ela nunca me pergunta o que eu quero. O que eu quero é estar em pé junto ao Muro das Lamentações, no bar mitzvah em Jerusalém.

Eu quisera estar com você, mas acho que sou um pouco covarde. Repetidas vezes, tio Moishe, tia Julie e Chia me dizem que os sacrifícios de imã têm sido muito grandes; falam do que ela tem feito por todos nós, e de como trabalha. Não tenho coragem de magoá-la. Por isso, acho que vou esperar até que eu seja maior de idade; assim, talvez eu seja homem bastante para dizer a ela que é tempo de eu seguir minha própria vida.

Sei que esta carta dá a impressão de que estou sentindo pena de mim, e suponho que esteja mesmo. Mas, pelo menos, ela me faz feliz por ter você a quem falar de meus sentimentos secretos.

Espero que você continue bem e em segurança. Transmita a abba e a toda a família o meu amor.

                     Seu irmão, Joshua.

 

P.S. Escreva em breve. Guardarei todas as suas cartas.”

 

Reuven ficou mais do que comovido com a carta de Joshua. Estava com vinte e seis anos, mas parecia que fora outro dia que ele entrara no apartamento frio e sujo da mãe e dissera que ia voltar para a Palestina, para morar com o pai. Estranho, pensou... ele tinha, então, treze anos, como Joshua agora. Recordava muito bem seu sentimento de desolação, porque o pai não estivera presente no seu bar mitzvah. ”É melhor vocês estarem juntos”, recordou. Os ecos das palavras de Dovid nunca foram mais fortes do que nesse momento. Por mais importante que fosse seu trabalho, Reuven entregou-o ao seu tenente e partiu para Jerusalém.

 

Felizmente para os propósitos de Reuven, Dovid acabava de voltar de uma importante conferência sionista em Basiléia.

 

— Eles estão mantendo você muito ocupado esses dias, com toda essa diabrura que Haj Amim está fazendo... Parece que ele não quer desistir, não acha? — disse Dovid.

 

— Não, enquanto lhe restar fôlego. Mas você não teria que ir a Basiléia se não fosse Adolf Hitler, o querido amigo de Haj Amim. Temos outro problema a resolver — disse Reuven, entregando ao pai a carta de Joshua.

 

Dovid leu-a; depois olhou para Reuven.

 

— Tal e qual o irmão; é o que parece — disse.

 

— Sim. Eu acho que ele devia estar aqui; e você, abba?

 

— Eu não tenho tanta certeza quanto vocês dois. para começo de conversa, sua mãe deve ser levada em consideração, o que é muito importante. Vocês dois sabem... e ela também... que uma vez que Joshua faça seu bar mitzvah aqui em Eretz Yisroel, nada o levará daqui. Sua mãe vai ficar magoada. Ser privada de dois filhos, Reuven? É pedir muito, não acha?..

 

— Mas, e Joshua? Talvez, se fizermos o bar mitzvah, ele fique satisfeito... pelo menos por algum tempo...

 

— Sou da mesma opinião que você, Reuven.

 

— Da mesma opinião ou não, o certo é que ele merece isso. Dovid assentiu lentamente. De certo modo, ele não tinha escolha, do mesmo modo que Chavala..

 

— É preciso levar isso ao conhecimento de sua mãe com cuidado.

 

— Escreva-lhe uma carta. Você poderá convencê-la.

 

— Pare de ficar me bajulando. Não é tão corajoso como eu pensei que fosse. Falar você sabe.

 

— Então, eu sou um covarde. mas a verdade é que só você poderá fazê-la compreender.

 

Ou aceitar o que ela já tinha compreendido. e temia. desde há muito tempo, pensou Dovid.

 

Apesar da cuidadosa carta de Dovid, o coração de Chavala se constrangeu. Era como se ela estivesse na sala ouvindo a conversa entre Dovid e Reuven. Uma vez que Joshua fosse para a Palestina, para o seu bar mitzvah, ela o teria perdido; e sabia disso tão bem como do fato de chamar-se Chavala Landau. Mas sabia também que não podia privar Joshua disso, mesmo que significasse...

 

Quando ela anunciou a Joshua que ela havia decidido que seria conveniente realizar seu bar mitzvah em Jerusalém, ele apenas pôde dizer:

 

— Nunca me esquecerei do que você está fazendo, mamãe. Eu amo você. Por favor, nunca esqueça isso...

 

No dia 23 de outubro, toda a família, com exceção de Sheine, de pé junto ao Muro, viu Joshua selar o pacto de sua fé. Foi uma cerimônia simples, breve. Não precisou de enfeites. Um menino tinha atingido a idade viril, no lugar mais apropriado da história de seu credo.

 

Após permanecer em Jerusalém por mais alguns dias, Chavala, Julie, Moishe, Laura, Chia, Lenny e os gêmeos despediram-se e partiram. Joshua ficou. Sentada no avião, Chavala recordava as palavras de Joshua, as que ele lhe havia dito como homem. ”Mamãe, eu amo você mais do que as palavras podem dizer. Mas o maior presente que você pode me dar é me deixar viver na minha terra, na Palestina... Eu voltarei, se você insistir, mas chegará o dia em que este será o meu lar. Eu lhe peço; deixe-me ficar aqui, agora!”

 

Desde a noite em que Chia nascera, Chavala tivera pouco tempo para lágrimas. Agora, parecia que ela teria o resto de sua vida para chorar.

 

                                 Capítulo trinta e cinco

Agora o mundo de Joshua assumia um novo significado; e para muitas outras pessoas, nesse ano de 1933, a vida tornou-se um terror infernal.

 

Poucos sabiam o que a nova ordem de Hitler traria à Alemanha; e, a princípio, os judeus de Berlim realmente esperavam que Hitler não prejudicasse aqueles judeus que, durante trezentos anos, tinham se dedicado à mãe pátria. Mas as esperanças logo acabaram, quando bandos ilegais de jovens começaram a percorrer as ruas à procura de sangue judeu. Não apenas desordeiros, mas até estudantes universitários de ”boas” famílias alemãs formigavam pela cidade, procurando vingança contra os traidores judeus.

 

Pelotões de homens vestidos de uniformes marrons marchavam pelas ruas, passavam de carro ou motocicleta, carregando tochas, acompanhados do clangor marcial de alto-falantes. O pior de tudo era a marcha constante e terrível, o pisar de botas.

 

No começo do Terceiro Reich, os judeus foram aconselhados a deixar o país. Havia uma disposição que previa o confisco de suas propriedades; seus bens seriam tomados. Tudo o que eles podiam levar era a roupa que vestiam. Os poucos que aceitaram essas condições — muitos judeus ainda viviam na ilusão de que, como alemães, em primeiro lugar, e, depois, como judeus, seriam poupados — constataram que poucos países os queriam. Na Palestina, os ingleses mantiveram em vigor suas restrições, visando apaziguar os árabes. Na hora de maior necessidade de imigração aberta do yishuv, os ingleses lhe voltaram as costas. A Declaração Balfour não valia o papel em que estava escrita.

 

Desesperado por ajudar aqueles que queriam sair da Alemanha, Dovid, que a essa altura era um dos elementos mais importantes do yishuv na solução do problema, foi enviado ao exterior à procura de governos que estivessem dispostos a aceitar aqueles judeus. Tomou o avião em Lydda com destino a Londres, embora com pouca esperança de que o alto comando britânico ou o Ministério das Relações Exteriores honrasse seu compromisso de 1917. Ele tinha razão. Na França, o governo concordou em aceitar um determinado número de judeus, desde que eles pudessem sustentar-se.

 

Não podiam tornar-se cidadãos nem valer-se de qualquer dos benefícios da nacionalidade francesa.

 

com a ajuda de dólares americanos, todos os quinhentos judeus receberam vistos para entrar em Paris, sem os seus bens.

 

Além da França, restavam outros poucos países a que recorrer. A Itália era fascista... A Rússia era comunista. mil judeus foram enviados para a Suécia, setecentos e cinqüenta para a Dinamarca e seiscentos para a Noruega, onde seriam sustentados com fundos da comunidade judaica mundial. As portas da Holanda, porém, foram-lhes abertas sem problemas.

 

Entretanto, o país mais procurado eram os Estados Unidos. Dovid foi a Washington, onde Chavala se encontrou com ele em sua cruzada. O máximo que a América podia fazer era permitir a entrada de um número limitado de imigrantes judeus, desde que os judeus americanos idôneos assumissem toda a responsabilidade pelo sustento e emprego desses refugiados. Eles não teriam direito a nenhum outro benefício. Foram exigidos compromissos de boa intenção.

 

A própria Chavala assinou duzentas declarações.

 

Em Nova York, pela primeira vez Chavala notou que a enorme tensão dos últimos dois meses estava estampada no rosto de Dovid. Os cabelos brancos que se viam em sua cabeleira negra tinham aumentado. Em torno de seus olhos havia rugas que, segundo lhe parecia, não existiam até a véspera. Olhando para ele, ela compreendeu que ele estava se entregando a um sonho, a uma causa que se tornara mais preciosa, para ele, do que a própria vida.

 

Ela foi ao bar e preparou dois uísques duplos. Entregando um a ele, disse:

 

— Tome, querido, acho que você está precisando disto...

L’chaim.

 

Eles tocaram os copos.

 

— L’chaim... à vida e a você, Chavala, por tudo o que você tem feito..

 

— O que foi que fiz?. Eu quisera poder tirar Sheine de lá.

 

— Bem, minha querida, isso é coisa que eu acho que nem mesmo você pode fazer. Lembre-se de que ela está casada com um alemão. Temos que esperar que isso a proteja.

 

Ela podia esperar, mas não acreditava, embora não lhe dissesse isso, para não aumentar sua ansiedade.

 

— É. Devemos esperar isso — disse ela, pouco à vontade. — Pelo menos você pôde ajudar muita gente. Sem você e os outros, com quem poderíamos contar?

 

— Não com os ingleses — disse ele amargamente. — Eles nos sacrificaram para apaziguar os árabes...

 

— Beba, querido, e tente relaxar um pouco.

 

Ele reclinou-se e foi bebendo lentamente, mas sua mente não parava de funcionar.

 

— Como você pensa arranjar emprego para duzentas pessoas?

 

— É simples. Quando assinei aquelas declarações, eu tinha um plano. Desde que cheguei à Goldeneh Medina, as coisas mudaram. Naqueles dias, o centro dos brilhantes era o Bowery, na Canal Street e em Maiden Lane. Agora mudou. Os atacadistas foram para a zona residencial e ocuparam a 47th Street e a região entre a Fifty e a Sixty Avenue. Amanhã eu lhe mostrarei... Infelizmente, como povo nós nunca tivemos muita mazel, mas cérebro nós temos. Talvez nós devamos agradecer aos goyim pelo conhecimento que temos. Durante centenas de anos, os melhores comerciantes de brilhantes, artesãos e lapidadores do mundo foram judeus. Euvou iniciar a fabricação por atacado. Há um prédio aí no qual estou querendo dar uma olhada. Também tenho meus sonhos, Dovid. Quando chegar a minha chevra, eu estarei com a operação pronta..

 

— Mas, Chavala, meu bem, nem todos os judeus são negociantes de brilhantes..

 

— De fato. Aqueles que nada souberem aprenderão. Se eu consegui aprender, por que eles não conseguirão? Não se preocupe. Confie em mim, e tudo dará certo. Agora, se você me dá licença, tenho que dar alguns telefonemas. Acho que posso conseguir mais umas cem declarações assinadas ou mais.

 

Dovid sacudiu a cabeça, e chegou até a rir, ao pensar na noite em que Chavala levantara dois milhões de dólares.

 

— Seus gângsteres judeus foram condenados. Eu leio o New York Times também, sei de Thomas Dewey, o promotor público.

 

— Eu também sei desse mamzer. Imagine, prender aqueles ótimos rapazes. Mas, neste caso, eu não estou pensando em pedir. Tenho alguns amigos no negócio. Posso lhe prometer que todos eles assinarão declarações.

 

Dovid deixou a bebida e estendeu o braço para Chavala.

 

— O que eu faria sem você? O que todos nós faríamos sem você?...

 

Sem querer, no momento, comentar todo o significado do que isso realmente indicava, ela apenas disse:

 

— Onde é que está escrito que você tem que passar sem mim? com o que ela esperava que fosse um sorriso sedutor, tomou-o pelas mãos e levou-o para o quarto..

 

Na manhã seguinte, depois do café, Chavala levou Dovid à 47th Street. O que o deixou encantado não foram as jóias expostas nas vitrines, mas sim as cenas da rua. Por um momento, imaginou que tivesse sido transplantado de volta para os guetos da Rússia e da Polônia. Nas ruas barulhentas e cheias de gente, havia inúmeros chasidim, barbudos e enérgicos, usando paletós pretos e chapéus de aba larga, com as trancinhas aparecendo. Ficavam em grupos de dois, três e quatro, discutindo seus negócios. Em seus bolsos, havia pequenos pacotes que, se somados, representariam milhões de dólares em pedras. As trocas pareciam mais apropriadas para um mercado nas praças de Pinsk. A rua formigava de gente que ria, fazia negócios e gesticulava. Mãos que se erguiam num gesto de exasperação. mãos que seguravam a cabeça de um proprietário vexado. mãos que se apertavam firmemente, após a conclusão de um negócio, acompanhadas de ”matei und broche”.

 

Quando essas palavras eram proferidas, era sinal de que o negócio tinha sido feito. sem contratos, sem advogados, sem sequer uma tira de papel como recibo. Um aperto de mão constituía a base da confiança e da fé. Era um compromisso que envolvia a ética de Maimônides, do Talmude e da Tora.

 

Andando no meio da multidão, dirigiram-se ao prédio que Chavala estava negociando. Olharam da rua para o topo no quinto andar. Sorrindo, Chavala olhou para Dovid.

 

— Bem, que acha? Retribuindo seu sorriso, ele disse:

 

— Gosto muito.

 

— Estou contente... Bem, meu plano é o seguinte... A loja, aqui na rua, destina-se estritamente ao comércio varejista. com alguma coisa por atacado somente para os goyim. Isso significa que, no negócio, os goyim compram por varejo e mais um pouco... Por que não? Afinal, eles foram bons para nós. Por enquanto, os três primeiros andares serão usados para fabricação. Depois disso, quando conseguirmos mais declarações, ocuparemos o restante. Você aprova, Dovid?

 

Ele simplesmente assentiu, ainda sorrindo.

 

— Nesse caso, você está olhando para o Edifício Landau, na 47th Street — disse ela. — Nada mau para um casal de bobos que saiu de Odessa com um carrinho cheio de panelas, caçarolas e roupa de cama, além de você ir puxando uma cabra. Você é um grande taacher na causa de nosso povo; eu sou uma pequena macher no negócio de brilhantes. Nada mau...

 

No fim da tarde do dia seguinte, eles chegaram ao aeroporto bem a tempo de Dovid embarcar. Quando ele a beijou, ela disse:!

 

— Nós temos o melhor casamento internacional do mundo. Para o Chanukah, eu acho quevou comprar um avião para você.

 

— Obrigado; e o batizarei com o nome de Chavala, o Anjo de Eretz Yisroel.

 

Pouco antes de ele embarcar, apesar de perder o ânimo rapidamente, ela conseguiu dizer:

 

— Transmita meu amor às crianças.

 

Depois beijou-o rapidamente e foi para a saída.

 

Dovid ficou parado, olhando, enquanto ela se afastava, e depois, sacudindo a cabeça com admiração, voltou-se e apressou-se a embarcar.

 

                                     Capítulo trinta e seis

A preocupação de Chavala com Sheine, no dia em que ela perguntou a Dovid se seria possível tirá-la da Alemanha, tinha muito mais fundamento do que ela podia imaginar.

 

Tropas de assalto nazistas, em número cada vez maior, ressoavam pelas ruas de Berlim. ”Wenn vom Judenblut das Messer spritzt dann geht’s noch mal só gut, só gut”’, reverberava o canto para que todas as palavras penetrassem até o fundo das casas daqueles que eles tencionavam impressionar. Também nas melhores vizinhanças, casas de judeus ricos... a casa onde morava Sheine, vivendo numa crescente apreensão pelo filho Erich...

 

Era quase insuportável o esforço que ela fazia para ocultar sua ansiedade, para continuar como se os acontecimentos que a cercavam não tivessem relação com sua tristeza. Invejava aqueles judeus, seus conhecidos, que tinham partido. Sabia da situação dos milhares de judeus sitiados, maltratados em Berlim oriental, mas nada podia fazer... estava casada com um alemão; por isso, era imperativo que mantivesse a postura social de sra. Herr Doktor Gunter Hausman, para sua própria segurança e para a segurança de seu filho...

 

Ao se vestir nessa noite, não parava de pensar que ela e Gunter eram convidados de uma das anfitriãs mais extraordinárias de Berlim, Erica von Furnstein.

 

A família de Frederick von Furnstein controlava algumas das firmas bancárias mais prestigiosas da Alemanha. Durante duzentos anos, constituíra uma família de judeus assimilados, convertidos ao cristianismo; e, quando ouvia as canções sobre o derramamento de sangue judeu, nem por um momento ele considerava o fato de sua própria vida estar em perigo. Ele não apenas era convertido como também era casado com uma mulher cristã, além de ser membro do conselho da Gedãchtnis Kirche, a igreja mais antiga de Berlim. Sua casa era abrilhantada com a presença dos dirigentes governamentais

 

1 ”Quando, da faca, goteja sangue judeu, tudo volta a ser de novo tão bom, tão bom...” Em alemão no original. (N. do E.)

 

mais importantes. O que quer que acontecesse aos judeus certamente não o afetaria.

 

Sheine andou pela casa, escutando fragmentos de conversa: ”fidelidade à Alemanha acima de tudo”... ”os judeus não podem continuar a nos corromper e rebaixar”...

 

No fim da visita Sheine voltou para casa com o estômago revirado. Na manhã seguinte, sentia-se ainda pior. Nos jornais havia uma notícia de que a casa de Frederick von Furnstein tinha sido invadida por um grupo de jovens, entre os quais estavam aqueles que tinham cantado nas ruas canções sobre o derramamento de sangue judeu. Se alguém tivesse uma gota de sangue judeu, esse sangue correria pelos seus punhais. No fim daquela noite, Von Furnstein foi arrastado de sua casa e jogado por uma escada de pedra estreita para dentro de um porão que fedia depois de tantos anos de negligência. Foi despido e espancado até cair ao chão.

 

— O que foi que eu fiz?

 

— Nasceu judeu.

 

— Mas vocês estão enganados; eu sou cristão..

 

— Cristão? — repetiu o líder do bando, passando a espancálo com correntes.

 

A dor tornou-se tão terrível que ele chegou a suplicar.

 

— Matem-me, pelo amor de Deus, matem-me.

 

— Ainda não.

 

Ele foi espancado até que, finalmente, sua cabeça pendeu para um lado. Pouco antes de morrer, ele murmurou:

 

— Deus meu, Deus de meu povo, perdoa-me por meus pecados.

 

Quando soube do assassinato brutal de Von Furnstein, Sheine compreendeu que nem seu filho estava em segurança. Deitada, com febre alta, tendo Gunter a seu lado, ela segurou-lhe a mão...

 

— Salve-me, salve o meu filho, nosso filho. mande-me embora, por favor... Não consigo mais viver esta mentira..

 

Gunter compreendia seus temores, naturalmente; mas acreditava sinceramente que eles eram infundados. Tomando-a nos braços, ele abraçou-a apertado, e afagou-lhe os cabelos..

 

— Minha querida, você não está em perigo; precisa acreditar em mim. Você não tem nada a temer. Você é minha mulher... Mãe de meu filho. Nada, ninguém lhe fará mal. Você é Elsa Beck Hausman... Agora, por favor, minha querida, lembre-se do que eu lhe disse. Assim que você se sentir melhor, eu a levarei, juntamente com Erich, para umas férias na Suíça.

 

Os planos de férias de Gunter seriam adiados indefinidamente.

 

                                             Capítulo trinta e sete

Se Hitler teve um aliado natural, esse aliado foi Haj Amim elHussein. O que poderia ser mais conveniente do que ter um mufti da Palestina para alimentar a máquina de propaganda?

 

A situação não poderia ter sido descrita melhor do que o foi pelo próprio Goebbels... Os judeus estavam roubando terra árabe sob o controle do imperialismo britânico..

 

Haj Amim el-Hussein estava convencido de que algum dia Hitler governaria o mundo. Hitler era sua resposta para a maneira como ele podia tomar o controle do mundo árabe. No Cairo, os alemães bebiam nos cafés em companhia dos amigos árabes. Em Bagdá e em Damasco, eles se uniam em tratados que os comprometiam a depor os opressores britânicos, juntamente com os conspiradores judeus.

 

À medida que a guerra se aproximava, o yishuv compreendia que só dispunha de uma arma. O número de membros havia ultrapassado trinta mil homens, mulheres e crianças. Esse era um exército como qualquer outro. com exceção de alguns oficiais pagos por tempo integral, ele era composto de civis transformados em uma das forças de ataque mais eficientes num sentido amplo; o yishuv era um exército.

 

Na Haganah, havia um serviço superior de inteligência. Os ingleses sabiam disso. e Haj Amim também. Todos os kibutzim e moshav eram parte da rede. Um sinal codificado era suficiente para que mil homens, mulheres e crianças escondessem suas armas em questão de segundos. com apenas uma década de existência, a Haganah era eficiente o bastante para deixar os ingleses com inveja, e cada vez mais preocupados.

 

Vendo a crescente incapacidade da Grã-Bretanha para jogar judeus e árabes uns contra os outros, para poder controlar os dois lados, Haj Amim fez seu próprio movimento para o controle da Palestina.

 

Encorajada por ele, teve início uma nova série de tumultos na primavera de 1936. Começou com esta acusação sempre repetida: ”Os judeus estão roubando nossas terras, profanando nossos lugares sagrados, com o consentimento dos lacaios britânicos”. A carnificina começou em Jaffa, e depois espalhou-se de cidade em cidade, à medida que os velhos ortodoxos, das cidades santas normalmente indefesas, eram vitimados.

 

com o contínuo aumento das atrocidades, o chefe da Haganah, Binya Yariv, chamou Reuven a seu escritório. Ele estava sentado em sua escrivaninha, olhando para Reuven, com o rosto sombrio.

 

— Haj Amim está decidido a não se deter diante de nada. Seus homens estão entrando na Palestina, vindos do Líbano. Quero que você assuma o comando de uma unidade e inicie um kibutz aqui — disse ele, indicando Tel Amai, no mapa.

 

Reuven assumiu uma unidade, para estabelecer um acréscimo aos kibutzim tradicionais — torre e paliçada. A primeira paliçada foi construída com prateleiras duplas cheias de pedras e rodeadas de um pátio de trinta e cinco por trinta e cinco metros, contendo quatro cabinas que se tornaram postos de observação em quatro cantos. A uma certa distância da parede, foi colocado arame farpado no meio do pátio. Foi construída uma torre de observação com um holofote. Um pequeno gerador na torre fornecia energia, e, no topo da torre, armazenava-se água para abastecer o acampamento.

 

Nas horas da manhã, depois de construída a torre, o acampamento estava pronto para enfrentar os árabes. Reuven tinha despachado vinte e dois rapazes para montar guarda durante a noite; suas armas eram catorze fuzis de granadas e um número reduzido de granadas de mão.

 

Na quarta noite, ocorreu o ataque. Mil fuzileiros árabes armados de metralhadoras atearam fogo à paliçada. Pela primeira vez, os árabes usaram fogo de morteiro. A unidade de Reuven ficou aguardando os árabes iniciarem o assalto.

 

Quando os árabes se aproximaram, arrastando-se com as facas entre os dentes, meia dúzia de holofotes começaram a varrer o campo, ofuscando parcialmente os árabes. Então os homens de Reuven desfecharam o contra-ataque, matando uns noventa árabes na primeira rajada. Depois, Reuven conduziu metade de sua força para fora do abrigo. Árabes mortos e feridos juncavam as colinas de batalha. Os que sobreviveram fugiram para lugar mais seguro.

 

Apesar dos contra-ataques homicidas, o kibutz armado tornou-se uma instalação permanente, e Reuven passou a ter muita responsabilidade.

 

Agora, sentado em sua tenda, pensando na próxima manobra, a porta da tenda se abriu e, para seu espanto, quando levantou a vista, viu Pnina, vestida com o uniforme da Haganah. Depois das últimas semanas, vê-la era maravilhoso e surpreendente.

 

— Pnina, não consigo acreditar que você esteja aqui — disse ele. E então lembrou-se de que ele não estava. ou não devia estar... tão feliz por ela se achar em Tel Amai. O perigo era grande demais. — O que você está fazendo aqui? Este não é um lugar onde se vai entrando assim..

 

— Será que preciso de um convite para visitar meu primo favorito?

 

— Precisa, se for aqui. E não precisa, se for em Tel Aviv.

 

— Quem dera que estivéssemos em Tel Aviv — disse ela, e sua voz era de mulher, não mais de menina... Durante o ano em que ele não a vira, ela havia se transformado em uma jovem voluptuosa.

 

Ela se aproximou dele.

 

— Bem, será que nem mereço um beijo, por fazer sua vida valer a pena?

 

Ele levantou-se, indeciso, segurou-a a uma certa distância e deu-lhe um beijo de primo, no rosto.

 

— É isso o melhor que você pode fazer? — perguntou ela, puxando-o para mais perto.

 

— Pnina, por favor... seja uma boa menina e vá para a tenda das mulheres; eu tenho muito o que fazer..

 

— Será que estou sendo dispensada por meu oficial-comandante?

 

— Você entende rápido. Agora, eu realmente estou falando sério. Tem que ser assim...

 

Ela beijou-o calada e retirou-se rapidamente, antes que ele pudesse chamá-la novamente de ”menina”. Ela lhe mostraria...

 

No dia seguinte, Reuven recebeu a visita de Binya Yariv. Sorrindo — coisa que raramente fazia —, Yariv lhe disse:

 

— Você fez um bom trabalho, Reuven. Creio que podemos sair, deixando uma unidade de plantão aqui; iremos para Hanita, onde montaremos a mesma operação.

 

Yariv notou sinais de enorme fadiga no rosto de Reuven.

 

—vou lhe dizer uma coisa, Reuven; acho que você deve tirar alguns dias de folga. Vá à praia, tome uns banhos de mar e um pouco de sol.

 

Reuven pensou um pouco no assunto. Pensou em Pnina também.

 

Na manhã seguinte, após o café, chamou Pnina à parte:

 

—vou tirar alguns dias de folga. Apenas umas férias curtas. Quer dar um passeio em Tel Aviv?

 

— Eu não me importaria, senhor...

 

— Está bem. Esqueça o sarcasmo e prepare suas coisas. Esteja pronta dentro de vinte minutos. Isso é uma ordem.

 

E uma ordem que ela ficou mais do que contente em executar...

 

Em Tel Aviv, Reuven fez o registro no hotel, tomando dois quartos em andares diferentes. Depois levou Pnina para jantar; ela estava sem uniforme e com um belo vestido; após o jantar, eles dançaram até as duas horas da madrugada.

 

No dia seguinte, ao amanhecer, o telefone de Reuven tocou.

 

— Maldito Yariv — resmungou. Fazer uma coisa dessas. chamá-lo de volta ao serviço, depois de apenas algumas horas. — Alô..

 

— Parece que você está um pouco mal-humorado — disse Pnina.

 

— Ah, é você. bem, para dizer a verdade, estou, sim. Eu esperava ter um feriado em que pudesse dormir um pouco, para variar...

 

— Ah, você pode fazer isso a qualquer hora. Bem, levante-se, tome um banho, faça a barba e vista-se; eu espero você lá embaixo dentro de meia hora. e isso é uma ordem. Ah, vista o calção de banho também.

 

E eles nadaram, depois ficaram na praia. Reuven não sabia se o que sentia era devido à descontração ou à proximidade de Pnina. Sentia-se pouco à vontade. Pnina o constrangia, e isso o constrangia ainda mais..

 

Naquela noite, dançaram e jantaram juntos novamente; depois andaram ao longo da praia do Mediterrâneo, falando pouco, até que Reuven a levou de volta ao hotel.

 

Quando chegaram ao quarto dela, ela abriu a porta, tomou-lhe a mão com firmeza e fê-lo entrar. Ele não resistiu. nem sequer tentou... por mais que achasse que devia. Bem, não devia?

 

Ele sentou-se numa cadeira e ela, na beira da cama.

 

— Reuven, não temos nenhuma garantia do amanhã. Basta de jogos. não há tempo para ficarmos brincando, com timidez ou fingimento. Acontece que estou apaixonada por você, há muito tempo. Não me recordo de um tempo em que não o tenha amado. Caso você não tenha notado, estou lhe propondo casamento.

 

Reuven levantou-se, foi até a janela e olhou para o Mediterrâneo. As ondas espumosas acariciavam a praia. Impossível. era impossível. e errado. Voltando-se lentamente, ele lhe disse o que estava pensando.

 

— Errado? Só se você não sente o mesmo por mim. Não sente?

 

— Para ser honesto.. e admito que, às vezes, posso ser muito burro. eu não tenho pensado em você. bem, dessa maneira. como mulher. Pelo menos até alguns dias atrás. Eu estava errado.. Você é uma mulher, tudo bem... uma jovem magnífica. mas nós temos um problema...

 

— Quem?

 

— Você tem dezoito anos, eu tenho trinta.

 

— Reuven querido, isso é bobagem. Para um sabra a idade não conta.

 

— Além disso, somos primos em primeiro grau, e casamento significa filhos. Realmente não é a melhor idéia do mundo..

 

— Meu querido Reuven, nãovou ser científica a esse respeito, mas muitos primos em primeiro grau já casaram e tiveram filhos perfeitamente sadios e bonitos. Minha proposta continua de pé. Se você me ama do mesmo modo que eu o amo. bem, então desejo casar o mais breve possível.

 

Ele tomou-a nos braços.

 

— Sabe, Pnina, que você se parece muito com minha mãe? Ela também nunca desiste de uma coisa, nunca aceita um ”não” como resposta...

 

— Viva tia Chavala! Posso considerar isso como um ”sim”? Ele abraçou-a, levou-a para a cama e eliminou qualquer dúvida que pudesse ter quanto a se ele ia casar com uma mulher..

 

Na manhã seguinte, a primeira pessoa para quem telefonaram foi Dovid, que a princípio ficou chocado, o que não era de surpreender, detendo-se nas mesmas dúvidas que Reuven tivera no início. Mas, como ele amava muito os dois, seu choque deu lugar à satisfação...

 

O telefonema seguinte foi para Dvora e Ari. Eles também ficaram preocupados, mas deram sua bênção..

 

E o terceiro foi para o outro lado do mar. Chavala não partilhava de nenhum dos pensamentos negativos. Para ela, o mais importante era que eles estavam mantendo a família unida.

 

Reuven não tinha tempo para lua-de-mel, nem para cerimônias. Dois dias depois eles estavam casados, e ele levou em frente sua missão..

 

A trilha dos assassinos e sabotadores levou Reuven a Led elAwadin, e a Haganah ordenou que ele capturasse o mukktar, chefe da aldeia, vivo ou morto.

 

O plano de Reuven exigia que os homens da Haganah se disfarçassem de soldados beduínos, de uniforme, capacete e cigarro inglês e com a atitude fanfarrã do exército britânico. Foram para Led el-Awadin em caminhões, dando ordens em inglês, e reuniram todos os homens da aldeia na quadra de punições. Quando a unidade chegou, Reuven ordenou:

 

— Tomem suas posições e cerquem a casa.

 

O sobrado foi demolido, e o mukhtar, morto.

 

A Haganah deixara de ser apenas defensiva. Era uma força que os árabes aprenderiam a respeitar.

 

E os ingleses também. Foram feitas incursões britânicas no yishuv e nos kibutzim, à procura de armas ”ilegais”; se fossem encontradas armas, o guarda seria preso imediatamente. Agora, o yishuv achava-se, talvez, no seu momento mais difícil. Recorreu novamente a Whitehall, e a resposta foi ”sentimos muito, mas não podemos fazer nada”, o que não era de surpreender.

 

As facções militantes judaicas não podiam mais ser contidas. Partiam numa série de incursões, bombardeando escritórios e clubes britânicos e atacando árabes. Demoliam arsenais britânicos, emboscavam comboios. Os líderes do Yishuv Central e os antigos atacantes eram trancafiados na prisão de Acre.

 

Entretanto, novamente Ben Gurion pediu ao yishuv que usasse de contenção e prudência contra os ingleses. Ele denunciou a tática de terror; e, com a ajuda de Binya Yariv, a maioria das facções militantes da Haganah foram contidas. Por enquanto..

 

Mas, na Alemanha, não havia força moderadora. Até os judeus alemães que antes se iludiam sabiam qual seria seu destino se permanecessem ali. Os ingleses, porém, dificultavam a entrada de judeus alemães na Palestina, bem como a saída de judeus palestinos.

 

Do Yishuv Central chegaram ordens a Dovid para que ele tentasse entrar na Alemanha. Os alemães estavam explorando o mercado de vistos o quanto podiam... Quanto mais os judeus se desesperavam, mais alto era o preço de sua liberdade cobrado pelo Reich. Fortunas inteiras eram dadas por um único visto. Os vistos eram roubados, falsificados. Significavam vida. Sem vistos, a morte era certa.

 

Dovid conseguiu atravessar a fronteira do Líbano e chegar até Beirute a pé. Lá, usando um passaporte falsificado, tomou um barco para Marselha e, daí a uma semana, chegou a Berlim.

 

Dovid tinha de tomar decisões terríveis. quem receberia vistos e quem não os receberia. Na verdade, ele foi ameaçado e tentaram suborná-lo. Ele escutava súplicas desesperadas e ouvia gritos daqueles que ele tinha de recusar. as vidas das crianças tinham que ser salvas a qualquer custo.

 

Em segundo lugar na lista dos mais importantes estavam cientistas, médicos, outros profissionais. Dovid conseguiu tirar muitas crianças, bem como outras pessoas, através da Aliyah Bet, que as encaminhava para a França.

 

Na realidade, ele entrou em negociações com a Gestapo para tentar convencê-la a emitir mais passes. Ele argumentou que, visto que a Grã-Bretanha e a Alemanha estavam competindo para obter favores dos árabes, os ingleses ficariam inquietos se os judeus alemães chegassem, em massa, às costas da Palestina. Negociar com a Gestapo? Estaria negociando com o Diabo, e dificilmente conseguiria alguma coisa. Mas o próprio Diabo, na forma de Adolf Eichmann, emitiu quinhentos vistos em troca de milhares de dólares norte-americanos. Mais tarde, esse mesmo Eichmann encontraria uma ”solução final” para o problema dos judeus. Agora ele tiraria proveito deles... enquanto não pudesse matá-los. Chegaria o seu momento, e também o dos judeus. Ele podia esperar..

 

O tempo estava se esgotando, e Dovid recebeu ordens de voltar à Palestina. Antes, porém, tinha de tentar ajudar Sheine.

 

Durante esses últimos meses aterrorizantes, ninguém tivera notícias dela. Não havia meios de ele saber que ela estava doente, horrorizada, temendo mais pelo filho, Erich, do que por si mesma.

 

Desde o dia do nascimento de Erich, a sogra de Sheine havia assumido os cuidados do neto, encarregando-se dele. Ele amava a mãe, sua ternura, mas tinha crescido como alemão e passou a tomar parte ativa no movimento da Juventude Nazista. Seu título de campeão de futebol contribuía muito para torná-lo popular na juventude hitlerista. Além disso, era difícil para um jovem não se deixar levar pelo entusiasmo de bandas em marcha, bandeiras tremulantes, estádios cheios de sieg heils ao Führer. Erich era um rapaz alemão que acreditava, juntamente com todos os bons rapazes alemães, que Hitler, seu líder, era Deus.

 

Ouvindo-o glorificar Hitler e dizer vitupérios contra os judeus, Sheine teve vontade de morrer, mas guardou silêncio. como tinha feito no dia de seu nascimento. Alemães cujos registros mostravam que tinham algum antepassado judeu eram presos e nunca mais apareciam. Erich, meio judeu, estava em maior perigo do que eles; Sheine sabia...

 

No terrível verão de 1939, Dovid já tinha realizado muita coisa. Agora ele se achava diante de seu maior desafio pessoal.

 

Foi procurar Gunter Hausman.

 

Gunter ficou surpreso ao saber que Dovid estava em Berlim. Bem, não havia tempo para cortesias. Rapidamente, Dovid disse a Gunter o motivo de sua ida a Berlim, disse que as vidas de muitos tinham sido salvas. mesmo que tivesse sido apenas uma, teria valido a pena. Mas agora ele estava em missão pessoal..

 

— Chamei você aqui, Gunter, para dizer que sua mulher, minha cunhada, está correndo um grande perigo. A única esperança para ela é partir agora. Vou tomar as providências para que ela e Erich entrem na Palestina e quando passar essa loucura. Bem, vocês poderão estar juntos novamente..

 

— Acaso você, um palestino, conhece o meu país mais do que eu? Eu lhe agradeço muito pelo seu interesse, mas você deve lembrar-se de que eu sou casado com Elsa Beck Hausman, não com Sheine Rabinsky. Aqui ninguém sabe dos antecedentes dela. Se eu achasse que, por um momento sequer, a vida dela e a de meu filho estavam em perigo, você acha que eu não sugeriria que ela partisse, amando-a como a amo? Acredite em mim, Dovid, Elsa é uma das poucas que nada têm a temer. Concordo que estamos atravessando tempos difíceis, e peço desculpas pelo comportamento do Terceiro Reich. Mas o Terceiro Reich não é a Alemanha; é um governo temporário de assassinos, arruaceiros e viciados. Quem está na direção é um pintor de paredes louco. Bem, Dovid, você quer ter a gentileza de ir em frente com sua missão, que é de suma importância, e deixar Elsa e Erich em minhas mãos?

 

Dovid sacudiu a cabeça, mas nada mais havia que ele pudesse dizer. Não havia dúvida de que Gunter era sincero, mas subestimava os homens contra os quais havia falado. Pelo menos Sheine estava casada com um homem que compreendia a injustiça que estava sendo cometida contra seu povo, mas será que isso bastava?

 

Os dois homens trocaram um aperto de mão.

 

— Gunter, espero em Deus que você tenha razão — disse Dovid ao se despedir. E consigo mesmo pensava: ”Porque, do contrário, sua mulher e seu filho já estão mortos..”

 

Dovid deixou a Alemanha dois dias antes de Hitler invadir a Polônia, iniciando assim a Segunda Guerra Mundial. Ao chegar à costa da Palestina, e em casa, soube que em Berlim os judeus estavam sendo espancados sem misericórdia por multidões de arruaceiros. Janelas eram quebradas, livros eram queimados. Um reino de terror total tinha descido sobre os judeus. Velhos barbudos eram forçados a se ajoelhar, suas barbas eram arrancadas e eles, obrigados a latir como cães.

 

O mundo tinha enlouquecido. Aquela noite marcou um novo começo para a ascensão do barbarismo alemão. Kristallnacht: a noite dos vidros quebrados, uma noite que dava o sinal para a exterminação de seis milhões de judeus.

 

Gunter estava sentado em sua cadeira estofada, lendo um conto humorístico de Guy de Maupassant. A vida era muito sombria nesses dias; detestava até ler jornal. Ficou um pouco distraído quando se deu conta de que vinha dando a Elsa doses de remédio cada vez maiores para acalmar-lhe os nervos. Mas as tensões de Elsa eram tão grandes que essa parecia ser a única maneira de ajudá-la a se equilibrar.

 

Tentou concentrar-se novamente na leitura. A campainha tocou.

 

Olhou para o relógio... onze e trinta e cinco. Era uma hora estranha para uma visita social. Levantou-se e foi à porta. Quando a abriu, viu-se diante de Klaus Stein, vestido com um casaco de couro, preto e longo. Seus olhos azuis contrastavam com o chapéu de feltro preto, que ele puxava para cima da testa. Klaus Stein, oficial da terrível Gestapo, subordinado a Adolf Eichmann.

 

Gunter engoliu em seco; tentou um cumprimento cordial, que não foi correspondido. Stein apenas perguntou:

 

— O senhor é Herr Doktor Hausman?

 

— Sou, sim. Que posso fazer pelo senhor?

 

— Creio que o senhor tem algumas informações importantes para nós.

 

Gunter sabia muito bem por que Stein tinha vindo. Tentou recompor-se e convidou Stein a entrar. Outros homens do Scbützstaffeln permaneceram do lado de fora, enquanto Stein acompanhava Gunter até a sala de visitas.

 

— Posso oferecer-lhe um drinque, Herr Stein?

 

— Não. Esta visita não é social. Fale-me de sua mulher.

 

— Minha mulher? Bem, ela é bastante bonita, como devem ser todas as mulheres alemãs..

 

— Mas ela não é alemã... É?

 

Gunter fez uma pausa, forçando um sorriso.

 

— Estamos casados há tanto tempo que quase já esqueci que ela não é alemã.

 

— Caso o senhor se lembre, de onde é ela?

 

— Da África equatorial.

 

— Conte-me como se conheceram.

 

— Bem... foi durante a Primeira Guerra Mundial. Eu estava estacionado no Oriente Médio. Não há muito o que contar.

 

— Há quanto tempo o senhor a conhecia?

 

— Quanto tempo? Herr Stein, ela era minha principal enfermeira na cirurgia, e eu a conhecia há um ano ou dois; não tenho bem certeza...

 

— Obrigado por sua informação. Agora, quer ter a bondade de chamar Frau Hausman?

 

— Ultimamente ela não tem passado muito bem..

 

— Eu lhe dei uma ordem. Quero ver Frau Hausman. Imediatamente.

 

Gunter subiu a escada e encontrou Sheine em profundo sono. Ficou parado ao lado da cama, respirando com dificuldade. Santo Deus! Que podia ele fazer? Ninguém sabia da situação de Sheine, pensava ele. Tentando racionalizar... tratava-se de um procedimento rígido que envolvia os casos de todos os alemães casados com estrangeiros. Sentou-se na beira da cama, tomou-lhe a mão suavemente, afagou-lhe os cabelos e beijou-a com ternura. As pálpebras de Sheine agitaram-se.

 

— Que ótimo, Gunter — disse ela. — Que maneira agradável de você me acordar.

 

”Seja objetivo”, pensou ele.

 

— Querida, eu quero que você descanse, mas há um cavalheiro lá embaixo querendo fazer-lhe algumas perguntas. Mas, por favor, não se preocupe..

 

Agora ela estava totalmente acordada. Compreendia a situação.

 

— Eles vieram me buscar, Gunter. Eu sei que eles vieram me buscar..

 

— Não, querida. É apenas um interrogatório rotineiro a estrangeiros casados com alemães.

 

Ela levantou-se, vestiu-se e, de repente, olhando-se no espelho, sentiu-se surpreendentemente calma, quase tranqüila. O terrível medo que a acompanhara todos esses anos desapareceu de súbito. Quando se dispôs a apanhar o casaco no guarda-roupa, Gunter disse:

 

— Que é que você está fazendo?. Não vai precisar de casaco.

 

— Acho que você está enganado, Gunter. Pressinto que vou ficar lá por muito tempo...

 

Lentamente ela desceu a escada com Gunter ao seu lado. Quando chegou à sala de visitas, perguntou:

 

— O senhor deseja falar comigo?

 

— Desejo, Frau Hausman. Quer ter a gentileza de me acompanhar até a central de polícia?

 

Acompanhada de Gunter, ela seguiu Stein até o carro que os esperava, e os três foram levados à sede da Gestapo.

 

Quando chegaram, Stein sentou-se à sua escrivaninha e passou a folhear um enorme histórico de páginas amarelas. Gunter e Sheine sentaram-se do outro lado da mesa. Ambos estavam pensando em Erich.

 

Gunter tentou convencer-se de que, quando aquilo acabasse, Sheine e ele voltariam para casa e que as razões que os haviam levado ali estariam esquecidas. No fundo, ele desconfiava..

 

A porta da sala adjacente se abriu e, entre dois guardas, apareceu o dr. Ludwig Breslauer. Diante de Stein, na sua mesa, estava o histórico psiquiátrico de Sheine Rabinsky que Breslauer fizera.

 

Gunter amaldiçoou a si próprio por ter mandado Sheine consultar Breslauer, um judeu, naquele período de crise, há tanto tempo. Todos os seus registros tinham sido confiscados. Se não fosse esse erro, Elsa Beck Hausman não estaria ali agora.

 

O interrogatório de Sheine e Ludwig Breslauer durou até as primeiras horas da manhã, apesar de Stein já ter conhecimento de todas as respostas. Seu sadismo, porém, estava excitado. ele sentia prazer em vê-los sofrer.

 

Sheine foi levada dali, sem sequer poder sussurrar um ”Eu amo você” a Gunter.

 

com o coração partido de dor, ele foi para casa, pensando não apenas no destino de Sheine. ele já sabia que era inevitável, e que nada podia fazer. mas também em fazer o possível para tirar Erich da Alemanha.

 

Mas o tempo já estava esgotado para isso também. Os guardas arrombaram sua porta, procurando Erich Dieter Hausman. Gunter pensou que estava ficando louco..

 

— Ele não está aqui, ele não está aqui..

 

Foi derrubado por uma coronhada de fuzil, enquanto dois soldados subiam a escada correndo, abrindo cada porta, até que encontraram Erich.

 

Ele os seguiu, perguntando:

 

— Por que estão fazendo isso comigo? O que foi que eu fiz? Eu sou alemão, filho da mãe pátria..

 

Uma forte bofetada no rosto fê-lo perder o equilíbrio e cair.

 

— Levante-se, seu judeu bastardo, filho de uma puta judia. Levante-se e siga-me.

 

Totalmente aturdido, ele obedeceu. Ao sair, olhou para o pai, procurando uma explicação que, naturalmente, não lhe podia ser dada.

 

Gunter escutou o carro da polícia afastar-se, deixou-se cair pesadamente na cadeira; depois percebeu que a mãe estava ali em pé, atraída por aquela confusão no quarto de Erich. Agora ela parecia tão aturdida e incrédula quanto Erich, com a acusação de que ele era judeu.

 

— Você sabia o que ela era quando se casou? — perguntou ela, agitada.

 

Ele assentiu.

 

— Você sabia, e trouxe aquela... mulher judia para morar em minha casa. Meu Deus... Como pôde fazer uma coisa dessas, desonrar-nos, destruir sua própria família a troco disso?...

 

Gunter levantou o olhar para a mãe. Nesse momento, teve vontade de matá-la. Saiu correndo, entrou no carro e partiu pelas ruas de Berlim; continuou pela rodovia até que encontrou um caminhão de transporte de tropas. Acelerou, aumentando a velocidade cada vez mais e, num momento de ódio ofuscante, jogou o carro contra o outro veículo. Os dois carros se incendiaram. Gunter, um pai que não podia salvar o filho, um marido que não podia salvar a mulher, não tinha mais justificativa para viver. Pelo menos, assim, ele podia levar consigo alguns daqueles assassinos...

 

Sheine e Erich foram levados para Auschwitz, onde Sheine morreu, misericordiosamente. ”Pelo menos, ela não foi torturada como os outros”, pensou Erich. Ele só desejava uma coisa: viver o suficiente para poder vingar-se daqueles que, outrora, o haviam feito acreditar que pertencia àquela raça ”superior” assassina.

 

Esse dia viria; e para isso, ele sobreviveria.

 

                                     Capítulo trinta e oito

Quando Dovid voltou para a Palestina, constatou que Reuven e Joshua tinham aderido ao exército britânico. Zvi também. E teve então a explicação. Parecia que a caridade da Grã-Bretanha não tinha limites, em se tratando de suas próprias necessidades urgentes. A guerra ia mal para os ingleses. Rommel estava muito perto de Alexandria. Reuven era um oficial importante, na Síria; ele e os judeus aproveitaram a oportunidade de lutar pela Palestina contra os alemães, mesmo que fosse no exército britânico. Ben Gurion tinha recomendado isso e o yishuv o atendeu.

 

Rapidamente, Reuven recrutou, treinou e mobilizou seus homens, e ao lado dos ingleses e australianos — os australianos eram combatentes admiravelmente corajosos — convenceu Rommel a desistir de usar a Síria como base de invasão para a Palestina.

 

Mas Reuven sofria por Pnina. Estava cansadíssimo também, e muito solitário..

 

Quando conseguiu chegar a ela, e ela o viu sair do jipe do exército, correu ao seu encontro e deu-lhe um abraço apertado e demorado, como se tivesse medo de perdê-lo se o soltasse.

 

Finalmente, tomando-o pela mão, ela correu para casa, onde Dvora estava fazendo pão. com as mãos sujas de farinha, Dvora estendeu os braços para ele e o beijou, quase com a mesma alegria e gratidão de Pnina por vê-lo.

 

Naquela noite, eles tentaram recuperar os momentos perdidos.

 

Ari disse:

 

— Você fez grande sucesso na Síria. Reuven riu.

 

— Bem, nós não nos saímos tão mal, considerando que estávamos ao lado de unidades estrangeiras que nem sempre tinham as mesmas condições que as nossas. Mas conseguimos realizar nosso objetivo; deixem-me contar-lhes... Zvi fez um ótimo trabalho. Vocês devem estar orgulhosos. Ele manda lembranças. parece estar muito ocupado com uma sabra loura em Haifa. Disse que vocês entenderiam.

 

Ari riu.

 

— Após uma batalha dessas, quem não entenderia?. Você acha que ele a está levando a sério?

 

— Bem. ele não voltou por causa do pão que tia Dvora faz. Joshua também manda lembranças, mas ele quis ir a Jerusalém para visitar o pai...

 

No dia seguinte, Pnina e Reuven viveram um verdadeiro idílio. Passearam pelo campo; fizeram amor entre os eucaliptos. Quando trabalhavam juntos no campo, compartilhavam o prazer de segurar um arado ao invés de uma arma.

 

Aquilo acabou logo... Reuven tinha de ir a Jerusalém, e Pnina voltou para sua unidade com o Palmach.

 

Durante a guerra, o yishuv tinha apoiado corajosamente os ingleses, do mesmo modo que na Primeira Guerra Mundial. Graças, em parte, aos grandes esforços do yishuv, Rommel jamais conseguiu chegar a Alexandria. Nenhuma outra comunidade, nenhum país tinha dado tanto e recebido tão pouco. Os ingleses temiam que, se os judeus fossem muito aplaudidos e estimados, pudessem usar isso mais tarde, numa negociação com a Grã-Bretanha por uma pátria. Quando os ingleses precisaram de espiões nos Bálcãs, recorreram aos judeus, e os treinaram como pára-quedistas. Trinta deles foram jogados atrás das linhas inimigas e nenhum deles foi encontrado vivo.

 

Os árabes — tão inconstantes quanto os ingleses — notaram que os ventos da guerra estavam soprando em favor dos ingleses e contra os alemães. Estes não eram mais seus libertadores. Haj Amim el-Hussein fugiu para a Alemanha de Hitler. Os árabes, então, declararam guerra à Alemanha. De que outra maneira podiam obter direito de voto na conferência de paz, para bloquear os sionistas na Palestina? Quanto aos sionistas, seu único direito de voto era o número de seus mortos. Sua única esperança... tentar provar ao mundo que eles tinham dado uma grande contribuição, que mereciam a pátria há muito prometida.

 

Mas, para o yishuv, começou a soprar um vento mau; seu nome era Ernest Bevin; era o novo ministro das Relações Exteriores do governo trabalhista. Tinha-se esperado que o Partido Trabalhista da Grã-Bretanha simpatizasse com a situação do yishuv; mas Bevin não estava qualificado para lidar com a confusão da Palestina e os restos do holocausto nazista. Quando o mundo foi forçado, finalmente, a encarar os horrores dos campos de concentração, o comentário de Bevin, em resposta ao clamor das pessoas deslocadas que deviam ser mandadas para a Palestina, foi: ”Se os judeus, apesar de todo o sofrimento, têm tanta vontade de ir para a cabeça da fila, acho que isso cria um perigo de outra reação anti-semita. Se o governo britânico pudesse entrar na Palestina e fixar-se, novamente, pelo menos nos campos de detenção, isso seria feito à custa dos contribuintes britânicos. Naturalmente, isso poderia constituir um mínimo de dois milhões de libras esterlinas. E essa é uma quantia que a Grã-Bretanha, dilacerada pela guerra, não está em condições de gastar”.

 

Após a amarga desilusão com o Partido Trabalhista, em setembro de 1945, o presidente Harry S. Truman recebeu de Clement Attlee, o novo primeiro-ministro da Grã-Bretanha, uma resposta negativa a seu pedido de permitir a imigração de cem mil judeus que sobreviveram ao holocausto. Alguns dias depois, o governo trabalhista decidiu que a imigração de judeus para a Palestina não devia exceder dezoito mil pessoas por ano. Toda parte ocidental da terra de Israel tornar-se-ia um país com maioria árabe. O yisbuv judaico devia ser limitado a uma minoria de um terço. A fim de fazer valer o decreto que restringia a imigração, uma flotilha da marinha britânica impedia, mês após mês, que os judeus procedentes da Europa chegassem ao país.

 

Para o yissuv, esse decreto significava o fim do movimento sionista. Significava um fim também para a restrição da Haganah. Agitou as tensões já explosivas nas facções mais agressivas do país. entre as quais estava o Irgun Tzevai Leumi, que ganhava cada vez mais proeminência.

 

Em abril de 1939, três navios de refugiados, cheios de judeus quase mortos que, de algum modo, tinham conseguido sair da Alemanha e da Romênia, chegaram à costa da Palestina, e foram recusados pelos ingleses. Em novembro, dois velhos navios cargueiros, o Pacific e o Milos, chegaram a Haifa com mil e oitocentos judeus a bordo e, novamente, os passageiros não tiveram permissão para desembarcar. Os ingleses os cercaram e anunciaram que iam mandálos para as ilhas Maurício, enquanto durasse a guerra. Foram transferidos para o vapor britânico Pátria. No dia em que o Pátria tinha de partir, houve uma explosão a bordo, e mais de duzentas pessoas foram despedaçadas ou se afogaram no porto de Haifa, enquanto seus parentes e grande parte da população da cidade observavam com os olhos aterrorizados. Entre eles estava Joshua Landau, que de pé no monte Carmelo, bem acima de Haifa, observava os corpos que se debatiam, afogando-se, e os mortos sendo puxados com ganchos para os barcos.

 

A pressão desses acontecimentos tinha aproximado duas facções do yissuv: a Haganah e o Irgun. A passividade não era mais tolerável.

 

Joshua assistia às reuniões e ficou impressionado de ver que, finalmente, o yissul estava começando a tomar iniciativa. A lembrança do Pátria e daquelas vítimas despedaçadas estava gravada em seu cérebro.

 

Ele foi à sede da organização, para encontrar-se com Binya Yariv, Reuven e o pai. Então anunciou:

 

— Eu tenho uma idéia que acho que poderia funcionar. Dovid pensou em Chavala. Ela também costumava ter planos.

 

— Então, qual é o plano? — perguntou Yariv.

 

— Normalmente os navios ilegais que saem da Europa, atualmente em guerra, só transportam cerca de duzentas pessoas. Que tal um navio suficientemente grande para transportar dez mil pessoas ou mais?

 

— E onde é que você vai arranjar esse navio? — perguntou Reuven.

 

— Na América.

 

— Na América? — repetiu Yariv, olhando para Dovid.

 

— Sim. Em Jerusalém pode-se encontrar muita gente. Outro dia, eu estava sentado num café e, de repente, me apareceu um grandalhão. maior e mais gordo que Reuven. E no final ele era judeu; seu nome é Harvey Rosen; e sabem qual é o negócio dele?

 

— Construção de navios? — disse Reuven.

 

— Quase acertou. Ele possui navios, e do tipo de que precisamos. Ele tem um cargueiro itinerante, em perfeito estado; pesa umas onze mil toneladas e tem cento e setenta metros de comprimento. Vazio, só com os beliches, ele pode acomodar cerca de dez mil pessoas.

 

— Sempre fico um pouco nervoso quando ouço falar de algo perfeito demais. Está bem... suponhamos que esse navio seja tudo o que seu amigo Harvey Rosen diz; como é que você pensa entrar com um navio desse tamanho num porto da Palestina, com os ingleses em seus calcanhares? — perguntou Dovid.

 

— Já pensei em tudo. Primeiro, antes que ele receba qualquer dinheiro, eu quero ver a mercadoria, o que significa que tenho de ir a Nova Jersey, onde ele está ancorado..

 

— Parece bom. Você consegue um navio e umas férias, ao mesmo tempo — disse Reuven. — Mas não responde a abba como vai trazer um navio desse tamanho à Palestina.

 

— Eu ia chegar a esse ponto. O navio irá navegar com a bandeira norte-americana, será de propriedade de uma companhia norte-americana, e operado por uma tripulação norte-americana, transportando alguns civis que estão morrendo de saudade da Terra Santa.

 

Ninguém riu. Yariv disse:

 

— Até agora, quase tudo tem sentido, mas você terá de apanhar esses civis que vão ver a Terra Santa em Marselha. Quando você embarcar esses refugiados e ganhar o alto-mar, os ingleses o seguirão o tempo todo, e você terá de parar no momento em que entrar em águas palestinas.

 

— Você é pessimista, Yariv — disse Joshua. — Vamos devagar. Eu sei que você tem dirigido a Haganah durante muito tempo sem minha ajuda, mas agora eu gostaria de tentar contribuir...

 

Houve um momento de silêncio na sala. Yariv lançou a Dovid um olhar que parecia dizer: ”Quando você é jovem, tem sonhos; e, se fizer um esforço suficiente, alguns deles se tornarão realidade...”

 

— Está bem — disse Yariv. — Vá à América, arranje o seu navio e, bom, cada coisa a seu tempo.

 

Naquela mesma noite, Joshua encontrou a família no Aeroporto de Lydda. Beijou Pnina e tia Dvora, trocou um aperto de mão com Ari e Zvi, abraçou o pai e depois disse:

 

—vou fazer isso, abba.

 

— Acredito em você, Joshua. Bem, boa sorte, e. dê lembranças a sua mãe. Quando eu telefonar para ela hoje, direi que está indo para lá.

 

No dia seguinte, a família americana de Joshua recebeu-o no Aeroporto de La Guardia. Chavala ficou contentíssima em vê-lo.

 

— Então, foi preciso um navio para você fazer uma visita a sua mãe? — perguntou, com um sorriso.

 

— Isso parece indicar que devo ter um pouco de culpa judaica; e, se você acha que sim, tudo bem. Mas, por favor, mãe, lembre-se de que eu não podia fazer uma visita enquanto o Führer estava fazendo sua festa. Por isso, realmente, é a primeira vez que tenho uma chance de falar com você e dizer que a amo. A propósito, eu amo você.

 

Ela sorriu.

 

— Chega de desculpas. Agora, venha. Toda a família estará reunida. Você vai ver os gêmeos de Chia.

 

Na manhã seguinte, Joshua e Chavala foram a Nova Jersey falar com o sr. Harvey Rosen. Quando Joshua deu uma olhada no navio ”perfeito” de Harvey Rosen, constatou que era um casco fedorento, enferrujado e meio adernado.

 

— Era disso que você me falou aquela noite, em Jerusalém?. Meu Deus, esse trambolho não conseguiria sair do porto de Nova York, não passaria daquela estátua na baía.

 

— Você não conhece um bom navio quando o vê. A única coisa de que ele está precisando é uma pintura, alguns reparos. Já lhe digo o que vou fazer. Pague-me metade adiantado, e o resto só receberei quando o entregar. E outra coisa; lembre-se de que eu é que sou o capitão dessa viagenzinha. se acontecer alguma coisa, é nosso rabo que vai queimar. Desculpe, senhora. Mas sou muito bom neste negócio. E pode não ser bonito, mas vai ao mar, e isso é mais do que posso dizer de certas beldades. Chavala sorriu.

 

— Parece que ele sabe o que diz, Joshua.

 

— Pode ser. Ultimamente, não tenho tido tempo para beldades, nem mesmo para essa aí.

 

Chavala sorriu de modo apropriado. Ela estava orgulhosa de Joshua. A dor da separação fora esquecida, agora que via o homem em que ele se transformara.

 

Mas a pergunta mais importante de todas foi feita por Joshua:

 

— Quanto tempo vai levar para esvaziar esse navio e equipá-lo com beliche, refeitório, enfermaria, etc.?

 

— Seis semanas no máximo — disse Rosen.

 

— Quatro, e o negócio está feito. Chavala falou pela primeira vez:

 

— Em meu ramo de negócio, o de brilhantes, quando um negócio é fechado, duas pessoas trocam um aperto de mãos, desejando mazel e broche uma à outra.

 

Rosen olhou para Chavala.

 

— É razoável. Um pedaço de papel não significa nada.

 

— O senhor tem razão... Hoje vou dar uma festa só para o senhor e minha família, sr. Rosen, na esperança de vermos o fim do holocausto. E que Deus me ajude a descobrir o que aconteceu com minha pobre irmã; há anos que não recebo uma carta. A gente se encontra às sete horas da noite, no saguão do Waldorf-Astoria. Foi um prazer, sr. Rosen.

 

com Joshua em casa, dormindo em seu velho quarto, ela se levantava todas as manhãs, preparava o café e preocupava-se com ele ainda mais do que quando ele era criança, embora o visse poucas vezes durante o mês que ele passou em Nova York,

 

Naturalmente, o mês chegou ao fim cedo demais; e ela viu-se de pé, observando um navio afastar-se levando um ente querido. o recuperado Star of Liberty, destinado a salvar vidas judias, foi desaparecendo pouco a pouco no horizonte.

 

Como Harvey Rosen tinha prometido, o navio era sólido; e em uma semana estava ancorado em Marselha. O pessoal da Aliyah Bet deu instruções a umas dez mil pessoas para embarcarem e se acomodarem. O Liberty ficou ancorado aquela noite, esperando a maré. Na manhã seguinte zarpou com mar calmo e rumou para águas internacionais, além do limite de três milhas. Mas, enquanto navegava, foi localizado por um contra-torpedeiro britânico. Apesar das cores americanas e de ser registrado nos Estados Unidos, com capitão e tripulantes americanos, o Liberty tinha embarcado dez mil refugiados em Marselha. Bem, era tempo de paz, e pelo menos o navio não podia ser abordado para inspeção. Tudo o que os ingleses podiam fazer era esperar até que ele estivesse no limite de três milhas da Palestina. Mas então ele iria..

 

Rosen ficou de olho no navio britânico, observando-o com um binóculo.

 

— Eu disse que tínhamos de ir devagar, e é isso o que temos feito até agora. Mas dentro de dois dias estaremos chegando à Palestina; por isso, preciso pensar em andar um pouco mais rápido. Bem, como é que vamos nos livrar desse maldito navio britânico?

 

— A única maneira pela qual podemos desembarcar é com uma diversão em Haifa — disse Joshua. —vou enviar uma mensagem ao meu pai.

 

Entregou a mensagem codificada ao operador de radiotelegrafia, pedindo ação entre Haifa e Jaffa, ou qualquer outro lugar, contanto que isso os ajudasse a desembarcar em Athlit. Foi marcada a data de desembarque. Dovid foi informado de que eles estavam sendo seguidos; precisava usar a influência que ainda lhe restava junto aos ingleses.

 

Na manhã seguinte, o vaso de guerra britânico obviamente não os seguia mais. Dovid recebera a mensagem e recorreu a um dos contatos que ainda lhe restavam no alto comando britânico, que naturalmente era gente sionista e enviou contra-ordens ao capitão do contra-torpedeiro..

 

Agora que estavam, finalmente, no Mediterrâneo, Joshua desceu da ponte para o convés e ficou parado junto à amurada. Havia alguém perto. Ele se voltou e ficou surpreso ao ver, ao seu lado, uma jovem bonita, com os braços apoiados na amurada. Por sua aparência não era alguém que se podia esperar encontrar numa viagem daquelas... Na verdade, à primeira vista, aquilo era bom demais para ser verdade, para estar ali.

 

As primeiras palavras de Joshua foram menos do que delicadas.

 

— Ah, oi... meu Deus, como você é bonita!

 

— Obrigada.

 

— Como não vi você antes?

 

— Talvez porque haja dez mil passageiros a bordo, pelo que sei.

 

— Ah... sim... bem, acho que eu é que estou perdido, quer dizer, estou a bordo deste navio desde o início e só a encontro agora que já estamos perto da Palestina.

 

— Eu notei você. Estava sempre muito ocupado.

 

— Bem, não estou tão ocupado agora. Meu nome é Joshua Landau.

 

— Eu sei. A maioria dos passageiros sabe. Meu nome é Simone Blum.

 

— Simone Blum? É francês. Mas você fala hebraico muito bem.

 

— Eu o aprendi quando estava nos subterrâneos do mundo. Sabia que algum dia ia morar em Eretz Yisroel. De alguma maneira convenci-me de que não ia morrer.

 

Obviamente era uma mulher admirável. Ele insistiu em saber mais. Ela era persa de nascimento, como também o eram seus pais, ambos médicos; e, na verdade, ela estava cursando o segundo ano de medicina quando Hitler executou sua dança obscena no Arco do Triunfo. Depois disso, ela foi mandada, às escondidas, para a província, a fim de morar com uma família católica que lhe dava amor e a tratava como se ela fosse da casa, encorajando-a, ao mesmo tempo, a continuar sendo a sionista dedicada que já era.

 

Quando a guerra terminou, Simone aderiu a uma organização sionista que havia surgido em Paris, e foi lá que se tornou membro da Mossad Aliyah Bet..

 

— E foi assim que vim parar neste navio, capitão Landau.

 

— Fico muito contente com isso. Quando chegarmos à Palestina, gostaria de estar em contato com você..

 

Simone Blum assentiu, dizendo que seria ótimo..

 

O dia seguinte foi ocupado com o desembarque de dez mil passageiros, tripulantes e membros da Aliyah Bet. Apesar de toda a bravata de Joshua, ele sabia que sempre havia obstáculos. Novamente ele estava na sala de rádio enviando uma mensagem codificada; dessa vez para Reuven. A mensagem codificada foi respondida rapidamente: T-H-E B-R-E-A-D i-s B-A-K-E-D A-N-D M-A-M-A-S W-A-IT-I-N-G. Relógios foram sincronizados, motores postos em marcha mais lenta, a Aliyah Bet recebeu instruções quanto aos seus passageiros, a tripulação preparou-se. Rosen e Joshua mantinham os olhos fixos em seus relógios.

 

Primeira diversão: Duzentos e cinqüenta membros do Palmach invadiram Athlit, perseguidos de perto pelos ingleses.

 

Segunda diversão: Duas unidades da Haganah atacaram três postos de observação da guarda costeira.

 

Terceira diversão: Pouco antes da meia-noite, a estação de Giveat Olga foi destruída com cargas explosivas.

 

1 ”O pão está assado e mamãe está esperando.” (N. do E.)

 

Quarta diversão: A estação Sídney Ali explodiu e a guarnição que ali estava estacionada foi atacada por descargas automáticas.

 

com toda essa cobertura, o Liberty pôde aproximar-se dos bancos de areia de Athlit. Dovid estava esperando lá, e viu Joshua em ação. A operação foi rápida e eficaz. Assim que as pessoas chegavam à praia, eram recebidas pelo Palmach, e convertidas imediatamente em palestinos... as roupas eram trocadas por calças curtas brancas e blusas azuis. Eram levadas às pressas para caminhões que esperavam para levá-las aos kibutzim. Os jovens pareciam-se com qualquer grupo de jovens e confundiram-se logo com os colonos. Os homens e mulheres estavam vestidos de agricultores; e quem os visse nos caminhões ou ao lado das estradas supunha que iam para seu moshav ou kibutz.

 

A operação foi um sucesso. até as últimas dez pessoas, entre as quais estavam Joshua, dois membros do Palmach e Rosen. Joshua ficou furioso quando viu o caminhão britânico aproximar-se. Entretanto, dez ou dez mil pessoas não fazia diferença. só que não era fácil ser filosófico, especialmente quando se era preso e levado para a prisão de Jerusalém.

 

O interrogatório dos prisioneiros foi longo e rigoroso. especialmente para o capitão Joshua Landau.

 

— Você tem estado muito ocupado — disse o oficial britânico que o interrogava, Dudley Spencer. — O que estava fazendo em Athlit hoje de noite?

 

— Tomando o ar noturno, senhor.

 

— Esqueça o sarcasmo, Landau. Repito: por que você estava em Athlit hoje à noite?

 

— Salvando vidas, senhor. Bem, acredito que tenho reservas aqui, e não quero perder meu quarto..

 

Spencer chamou dois guardas, para que o levassem dali. No dia seguinte, ele já teria perdido o senso de humor..

 

Na manhã seguinte, Joshua foi levado novamente à sala de interrogatório. Novamente foi inquirido acerca de suas razões para estar em Athlit. E novamente se recusou a dizer quais eram. Dessa vez ele foi despido, pendurado no teto com as mãos amarradas e espancado até ficar inconsciente. Depois foi arrastado de volta à cela e jogado ao chão.

 

Os dois palmachniks receberam o mesmo tratamento.

 

Rosen teve mais sorte. Era americano, o que fez os captores pensarem duas vezes. Desafiou os ingleses e criou um incidente internacional. Ao ser solto sugeriu que eles tivessem a bondade de pagar suas dívidas de guerra aos Estados Unidos.

 

Os outros seis eram de nacionalidades diferentes: alemã, polonesa, romena, e nenhum falava inglês. Enquanto se procuravam intérpretes, exceto para os alemães, foram tomadas providências para que eles fossem levados para o temido campo de internamento, em Chipre.

 

Quando Joshua abriu os olhos inchados e distinguiu um jovem de cabelos escuros do outro lado da cela, teve a impressão estranhíssima de que o conhecia. E se o conhecia, de onde seria? O que ele resmungava parecia ser alemão. Talvez ele o tivesse visto durante a viagem. mas persistia o pensamento de que era mais do que isso. que ele conhecia essa pessoa..

 

Finalmente disse, no pouco alemão que sabia:

 

— De onde você veio?

 

Os olhos do jovem eram frios, cheios de raiva. Não houve resposta.

 

”É compreensível”, pensou Joshua. Os campos de concentração tendiam a fazer as pessoas ficarem menos do que sociáveis. Entretanto, ele persistiu, fazendo a mesma pergunta em alemão, mais uma vez.

 

Quase sussurrando, o homem disse:

 

— Não fale comigo em alemão. Eu falo inglês. E não me faça perguntas; não é da sua conta. Não lhe devo nada. Ouvi dizer que você é um grande herói. parabéns, você salvou o mundo..

 

— Espere um minuto. Eu não sou um inimigo. Estou aqui com você, ou será que não percebeu isso?

 

Houve uma pausa. Depois:

 

— Eu me lembro também de que você não é amigo.

 

— Pare. Acho que compreendo como se sente, mas vamos ver se sou seu amigo. E, antes disso, eu gostaria de saber seu nome.

 

Sua resposta foi arregaçar a manga, revelando os números tatuados em azul. Aproximando o braço dos olhos de Joshua, disse:

 

— Este é meu nome.

 

Durante o resto do dia, eles não se falaram. Joshua achou que não havia mais nada a dizer por enquanto.

 

Dovid estava ocupado, examinando as pilhas de históricos daqueles que tinham entrado ilegalmente na Palestina, há pouco tempo. registros que lhe haviam sido entregues pela Aliyah Bet:

 

FRIEDA (SOBRENOME DESCONHECIDO), IDADE: 9 anos; nascida em Auschwitz. País desconhecidos. Supõe-se que seja polonesa.

 

DANIEL DUBNIK, IDADE: 16 anos; nacionalidade romena. Encontrado em Bergen-Belsen por tropas britânicas. Quando menino, presenciou a morte de toda a família.

 

SADIE RABINOWITZ, IDADE 14 anos; nacionalidade desconhecida. Familiares sobreviventes desconhecidos. Libertada em Auschwitz.

 

ERICH DIETER HAUSMAN, IDADE 20 anos; nascido em Berlim. Libertado em Auschwitz. Sem familiares sobreviventes. Mãe judia, morta em Auschwitz. Pai alemão cristão, morto. Causa e local desconhecidos.

 

Subitamente, Dovid parou, com a respiração suspensa. Deixou a lista em cima da mesa, quase incapaz de aceitar o que via. A ironia era uma coisa assustadora. O filho de Sheine tinha sido resgatado, e agora estava na mesma cela com o primo Joshua. Dovid tinha visto Erich, embora não soubesse quem era, quando conseguira permissão para ver Joshua.

 

Dovid apanhou a fotografia de Erich que Sheine lhe havia mandado, quando o filho tinha quinze anos de idade. Obviamente, após a provação que o menino havia sofrido, tinha mudado fisicamente, mas os olhos eram os de Sheine. Amargurados, mas eram os de Sheine.

 

Imediatamente, Dovid foi fazer uma visita a um amigo muito especial, no comando britânico. um amigo que ele tinha ajudado muito como agente, há anos. Esse amigo lhe devia um favor especial, e era a vez de Dovid cobrar esse favor..

 

Às quatro horas da tarde do dia seguinte, dois soldados britânicos, muito sérios, estavam diante da mesa de Dudley Spencer, enquanto este examinava a ordem de transferência de Joshua Landau para a prisão de Latrun, que tinha mais segurança do que a de Jerusalém. Havia uma ordem também para que o imigrante conhecido apenas como Tatuagem 4319195 fosse removido imediatamente para a casa de detenção de Jaffa, de onde seria enviado para o campo de concentração Caraolos, em Chipre. As ordens levavam o carimbo oficial de Sir lan Henry-Grant. Spencer assinou, encolhendo os ombros. Na realidade, ele achava que a melhor solução seria tirar de sua jurisdição o caso de Joshua Landau, no momento. Gostaria de ver o maldito judeu pendurado pelos polegares; mas, já que o sucesso do Liberty tinha criado mais do que um embaraço para os ingleses, ele cuidaria de Joshua mais tarde, no momento apropriado.

A Haganah tinha tomado providências para que a história do Liberty chegasse às agências de informações e se espalhasse pelo mundo inteiro. Afinal, esta era a primeira vez, desde o bloqueio britânico, que um navio do tamanho do Liberty, com tantos imigrantes ilegais a bordo, tinha conseguido aportar e iludir os ingleses. A corajosa ação do Liberty comprometera seriamente o bloqueio britânico.

 

Whitehall tinha expressado seu descontentamento ao alto comando, na Palestina, exigindo uma explicação...

 

Sem hesitação, Spencer mandou buscar os prisioneiros em suas celas. Algemados, foram postos sob a custódia de soldados britânicos que Joshua teve o prazer de reconhecer como judeus ingleses que haviam aderido à Haganah.

 

A charada esclarecida. Joshua foi metido em um carro do exército, Erich em outro, e os dois veículos partiram de Jerusalém. Pouco antes de chegarem à garganta de Bab el-Uad, pararam ao lado da estrada; Joshua e Erich foram passados rapidamente para o banco traseiro de um carro que estava esperando. Ao volante, estava Reuven, com Zvi ao lado.

 

Reuven não perdeu tempo com cortesias, ao dar instruções aos dois passageiros para que se deitassem no chão, onde foram cobertos com mantas.

 

Agora, pela primeira vez, Erich falou abertamente:

 

— Exijo que me digam para onde estão me levando.

 

— Bem... afinal, você sabe falar... está bem, deite-se novamente e fique quieto.

 

Erich imobilizou-se. Nesse momento, Auschwitz parecia muito próximo.

 

Foram levados para uma aldeia árabe abandonada, nas colinas de Haifa, patrulhada pela Haganah. O carro parou. A porta traseira foi aberta, e retiradas as mantas. Joshua foi o primeiro a sair; Erich seguiu-o, hesitante.

 

A porta da cabana de barro se abriu.

 

Dovid estava esperando.

 

— Nunca pensei que ainda teria a felicidade de vê-lo, abba — disse Joshua. — O pessoal do NILI lhe deu um bom treinamento, não?

 

— O bastante para tirar você de onde estava, jovem... Agora, sugiro que todos nós nos sentemos para falarmos do porquê de vocês estarem aqui — disse Dovid, hesitando, enquanto olhava para Erich. — Isso será uma surpresa. Talvez um choque... para você, mas sou seu tio Dovid, e estes são seus primos —• disse, e, vendo a expressão de incredulidade de Erich, apressou-se a continuar: — Joshua você conhece. Reuven não, embora ele o tenha trazido para cá, com Zvi. Agora, acho que nós todos temos muita coisa de que falar.

 

Joshua, Reuven e Zvi ficaram surpresos, naturalmente. Erich ficou chocado. Sua mãe não lhe havia dito nada. Ele recordava que ela tentara, mas não tivera tempo. Esse devia ser o segredo que ela desejara contar-lhe.

 

Dovid esperou um pouco; depois, compreendendo a dificuldade de Erich, falou com calma:

 

— Erich, tente acreditar nisto... A única maneira pela qual você pode livrar-se de todas as terríveis mágoas é falando delas.

 

Agora você tem uma família. Nós o amamos e agradecemos a Deus por você ter conseguido vir para nós.

 

A raiva de Erich foi como um reflexo. Seis anos de degradação haviam nutrido essa raiva.

 

— Não me fale de agradecer a Deus e de quanto vocês me amam. Não me peçam para falar de seis anos em dez minutos. Acho que o mundo é um esgoto. Eu o odeio; devia ter sido sepultado com Hitler, em seu Bunker.

 

— Está bem, Erich... Não vamos falar de nada disso hoje. Tem razão; você precisa de tempo.

 

Naquela noite, Erich acordou gritando por causa de um pesadelo que sempre o acompanhava... banhado em suor e debatendo-se na cama. Joshua, que estava na cama ao lado, aproximou-se dele e abraçou-o.

 

— Está tudo bem, está tudo bem, Erich. Tudo estará bem; eu prometo...

 

A respiração de Erich voltou ao normal, lentamente, enquanto ele olhava para o primo. Parecia ter passado mil anos desde que alguém o tinha tratado como algo que não fosse um animal. Reclinou-se, desejando agradecer, mas as palavras não saíam.

 

Os dias que se seguiram ajudaram Erich a acreditar e a aceitar que essas pessoas que se intitulavam sua família realmente o eram. Os homens gracejavam animadamente a respeito das façanhas da Haganah e de seus papéis. Não havia heróis. Atribuíam pouca importância aos infortúnios e erros de julgamento...

 

— Foram muitas as vezes que fomos apanhados com as calças na mão... e às vezes isso acontecia de verdade — disse Reuven.

 

Aos poucos, Erich foi recuperando o falar:

 

— Eu não pensava que algum dia pudesse falar sobre isso. Sabe, não sou como vocês. Nasci alemão e cresci pensando que Hitler era Deus e que o Reich era o Estado último, o melhor dos mundos possíveis. Acreditava na mentira da superioridade da raça ariana. Fui criado e treinado para dar minha vida por isso. Acreditava que o Mein Kampf fosse a Bíblia... Vocês compreendem como me senti quando descobri que eles tinham mentido para mim? Eu acreditava que os judeus eram a causa dos problemas do mundo. O que estava acontecendo a eles era o que mereciam. Hitler dizia isso, e ele não podia estar errado... até a noite em que fui arrastado e chamado de judeu. Minha mãe e eu fomos levados para Auschwitz, e meu bom pai ariano não levantou um dedo para nos ajudar...

 

Dovid o interrompeu.

 

— Conheci seu pai, Erich, e acho que você está enganado a respeito dele. Ele era um dos poucos alemães que sabiam a verdade, mas também não pôde fazer nada. Estive na Alemanha, pouco antes da guerra. Falei com ele. Seu pai estava convencido de que nada poderia acontecer a vocês, porque ninguém sabia que sua mãe era judia. Ele estava enganado, sim, mas o que ele fez foi porque tentava protegê-los...

 

Erich não parecia convencido.

 

— Não tenho idéia de onde ele está. Não quero saber, mas fico imaginando o que ele pensaria se tivesse visto Auschwitz em 1941. Quando chegamos lá, vimos gramados e canteiros de flores em torno dos prédios. Sabem o que eram aqueles prédios?... Câmaras de gás. Acho que tive sorte. Por causa do belo nome de meu pai, o dr. Hesseman, que tinha sido colega dele e me conhecia, resolveu ter piedade de minha alma judia e dar-me a honra de permitir que eu trabalhasse no laboratório. Eu poderia continuar falando durante dias, e esse tempo não seria suficiente para contar a vocês o que aconteceu lá. Células cancerosas eram injetadas em crianças. As pernas das mulheres grávidas eram amarradas, para que elas não pudessem dar à luz. Os homens eram castrados. E, graças à generosidade do dr. Hesseman, tive permissão para ver minha mãe. Deixem-me falar dela. Ela era um anjo, o único ser humano de quem eu já me sentira próximo, embora eles tentassem me convencer do contrário. Eu sabia que, na manhã seguinte, era a sua vez de ir para a ”ducha”. Eu não podia aceitar isso. Ela estava morrendo de uma injeção de tifo que lhe haviam aplicado. Naquela noite, fui ver minha mãe. Segurei-lhe a mão, enquanto ela bebia a poção para dormir que eu tinha roubado. Quando ela adormeceu... eu... coloquei o travesseiro sobre o rosto dela e o apertei, até que... — interrompeu-se. Ele retinha as lágrimas, pois não acreditava ser ainda capaz de chorar. — Fazia um silêncio profundo, ainda me lembro. Tirei-a do barracão, que fora uma morada, e a levei para perto dali, onde havia um sulco raso entre um grupo de pinheiros; ali a coloquei e cobri de terra. Apanhei um galho e desenhei uma estrela-de-davi na terra. E fiquei pensando que assim, pelo menos, eu a salvara de ser morta na câmara de gás.

 

Quando ele terminou seu relato, houve silêncio, rompido apenas pelos soluços baixos de Erich Hausman, as primeiras lágrimas que ele derramava em seis anos...

 

Erich dormiu bem aquela noite, pelo menos sem pesadelos; e de manhã, após o café, Dovid disse:

 

— Erich, acho que é tempo de você conhecer o resto de sua família.

 

— Eu ficaria contente, tio Dovid; só que meu nome não é Erich Dieter Hausman. Eu não sou alemão. Sou judeu; por isso, quero ser chamado de Yehudah. E em memória de minha mãe... Rabinsky.

 

Dovid abraçou o rapaz... como se fosse seu filho.

 

com tudo o que estava acontecendo na Palestina, entre a Haganah, o Irgun Tzevai Leumi e os ingleses, pouca gente prestava atenção aos cartazes de ”Procurado” referentes a Joshua Landau. O incidente do Liberty estava quase esquecido em meio aos tumultos e represálias. Por isso, foi considerado seguro que eles deixassem as colinas de Haifa e voltassem para Kfar Shalom.

 

Quando chegaram, Erich foi recebido tão calorosamente que o passado quase ficou esquecido. Dvora não cabia em si de contentamento por ele estar ali. Para Erich, Pnina, esperando o primeiro filho, o próprio Reuven sendo tão amigo... era difícil de acreditar, mas ele estava aprendendo... Talvez, algum dia, pudesse haver alguém para ele. Para Yehudah Rabinsky...

 

A necessidade que Erich... Yehudah... tinha de amor era diferente da de Joshua, que não tirava Simone Blum do pensamento, desde que a conhecera. Até agora, porém, não tinha havido tempo para fazer qualquer coisa a esse respeito.

 

Joshua telefonou para a sede da organização e constatou que ela estava fora do serviço por alguns dias, e podia ser encontrada em Jerusalém. Ele telefonou para lá, torcendo para que ela estivesse em casa... Não estava. Ele ligava de meia em meia hora, até que finalmente ouviu um ”alô” do outro lado da linha.

 

— Alô... faz um tempão que estou tentando falar com você... Ah, é Joshua quem está falando aqui... Joshua Landau.

 

Como se não reconhecesse aquela voz... Ela a tinha ouvido o suficiente, naquela viagem através do Mediterrâneo. Se fosse outra pessoa... ela poderia ter pensado que fosse chutzpa telefonar depois de todo esse tempo, mas não no caso de Joshua. Ela conhecia as repercussões do desembarque do Liberty. Tinha até se sentido culpada de ter sido uma das felizardas que escaparam e de ele ter sido apanhado. Por isso ficou realmente contente por ele não ter esquecido.

 

— Como vai, Joshua Landau?

 

— Solitário.

 

— E daí?

 

— Daí, venha ficar comigo.

 

— Onde é que você está?

 

— Em casa... em Kfar Shalom.

 

Silêncio.

 

— Como você sugere que eu vá até aí... de avião?

 

— Eu não quis dizer aqui. Que tal Tiberíades? Há um grande kibutz lá perto, onde podemos nadar, além de uma boa orquestra sinfônica. É um ótimo lugar para a gente se conhecer...

 

— Bem, acho que é bastante longe. Por que não Jerusalém? Você me disse que é seu lugar favorito.

 

— Bem, receio que eu não seja muito popular em Jerusalém, agora. Por favor... eu me encontro com você no Hotel Ramal, em Tiberíades, às cinco da tarde... Eu apanharia você, Simone, mas os guardas poderiam não me deixar chegar lá.

 

— Eu compreendo — disse ela rapidamente. — Estarei lá — concluiu. Um homem procurado tinha esse direito.

 

Quando ela entrou no hotel, estava ainda mais bonita do que Joshua recordava, em pé junto à amurada do Liberty. Usava um vestido de seda simples. Seu rosto estava radiante, e os olhos azuis profundos estavam mais azuis.

 

— Como se costuma dizer, não consigo encontrar palavras — disse ele, com grande falta de originalidade. — Bem, vamos ao kibutz.

 

Ela hesitou.

 

— Se você não se importa, estou com uma fome terrível... podemos ficar aqui para jantar?

 

Ele concordou. com aquela mulher, ele iria a qualquer lugar ou ficaria em qualquer lugar.

 

Sentaram-se a uma mesa junto da janela e ficaram olhando para a rebentação das ondas lá embaixo. Era difícil acreditar que, enquanto estavam ali bebendo, havia um mundo furioso, assassino, lá fora. Joshua pediu uma garrafa de vinho e eles brindaram a seu encontro. A orquestra começou a tocar, e eles puseram-se a dançar. Quando a orquestra parou, era uma hora da manhã, e Joshua sugeriu que passassem a noite ali; iriam para o kibutz no outro dia.

 

Simone concordou... até que Joshua pediu somente um quarto.

 

— Joshua, sinto-me muito atraída por você, mas nãovou para a cama com um homem na primeira noite que passo com ele. Quero que nos conheçamos melhor.

 

Joshua compreendeu, mas não ficou muito satisfeito. Aborrecido, pediu dois quartos separados.

 

Naquela noite, ficou se virando de um lado para outro na cama, sem conseguir dormir. Na manhã seguinte, na hora do café, estava pronto para dizer a ela que eles iam voltar. Mas, diante daquele rosto extraordinário... esqueceu seu ressentimento. ”Seja grato por pequenos favores”, pensou. Após o café, vestiram a roupa de banho e nadaram naquelas águas maravilhosas. Após o almoço, andaram pelas colinas, e Simone colheu braçadas de flores. compraram maçãs de um vendedor ambulante, na estrada; sentaram-se entre as flores silvestres e ficaram olhando o panorama de Tiberíades... o azul, os campos amarelos de botões-de-ouro, o céu rosado e branco. Joshua era humano. Tomou Simone nos braços e beijou-a.

 

— Você é a mulher mais bela que já vi. Dê-me o mínimo de encorajamento, e eu provavelmente pedirei você em casamento. Não estou sendo apenas impetuoso. Tenho muito bom gosto, e meu trabalho tende a manter-me ausente...

 

Ela soltou-se de seus braços.

 

— Joshua, nós nos encontramos exatamente duas vezes. O que você sabe a meu respeito? Quase nada. O que eu sei a seu respeito? Um pouco mais, mas não basta. Eu nem estou pensando em casamento agora..

 

Joshua levantou-se, aborrecido, mesmo sem querer.

 

— Joshua, as pessoas precisam conhecer-se muito bem, antes de falarem em casamento...

 

— Bem, como é que se pode conhecer alguém, em quartos separados e em andares diferentes?

 

— Não é muito difícil, Joshua — disse ela, dando um sorriso. — Você deixou uma alternativa de lado. Quando um conhecer melhor o outro.

 

— Só tenho quatro dias, Simone. Você acha que é tempo suficiente?

 

— Não sei; provavelmente não...

 

Ele agarrou-lhe a mão, e eles desceram a colina rapidamente, até chegarem ao hotel.

 

— Vamos voltar.

 

— Bem, você realmente desiste com facilidade.

 

Está bem, ele aceitaria o desafio, aborrecido... ou frustrado como se sentia. Ele agüentaria durante os quatro dias seguintes. Ela ia derrotá-lo... maldição! E ele ia parecer muito mais indiferente a ela do que se sentia. E que oportunidade!

 

Os primeiros dias passaram-se com bastante calma... sol e ondas, danças, passeios ao luar. Romantismo mas nada de intimidade.

 

Na última noite que iam passar ali, Joshua acabara de fechar a porta quando alguém bateu. Ele abriu-a e viu-se diante de Simone, vestida com um penhoar de seda azul que ela mantivera escondido daqueles outros membros da Aliyah Bet... Afinal, ela era francesa. Sionista, mas definitivamente uma sionista francesa.

 

Simone tinha ido a ele, e ele ficava ali parado como um paspalho. Ela fechou a porta atrás de si, aproximou-se dele, deixou cair o penhoar, beijou-o e disse:

 

— Acho que chegou a hora de sermos bons amigos. Tentando controlar a pulsação entre as pernas, ele tomou-a nos braços, beijou-a e, então, os dois foram dominados pela urgência que sentiam. O ruído suave do mar era um acompanhamento apropriado para aquele ato de amor... suave, poderoso.

 

De manhã, Joshua não tinha dúvidas de que estava apaixonado por Simone. Pouco importava que acontecesse tão rápido. Seu amor estava ali. Toda a sua vida se desenrolava rapidamente. Ele não tinha dúvidas. Observou-a deitada, por um momento; depois beijou-a.

 

— Simone, quero que se case comigo. Não me venha com desculpas de que é coisa tão repentina e não sei que mais. Eu sei o que estou sentindo. E você?

 

— Ainda não... Joshua, eu lhe disse que me sentia atraída por você. Sabe Deus como a noite passada foi maravilhosa. Mas é um começo...

 

— Você é o cúmulo da mulher teimosa, Simone; mas tentarei amá-la assim mesmo — disse ele, fazendo um esforço para piscar e dar a impressão de que estava mais bem-disposto do que se sentia.

 

Foram para Cesaréia, desejando que o dia durasse o máximo possível, e almoçaram. Depois visitaram o velho aqueduto romano, as ruínas que havia perto do velho porto, e foram até o anfiteatro romano. Simone sentou-se num banco de pedra, no meio da enorme arena. Joshua ficou de pé embaixo, no que outrora fora um palco. Naquela plataforma, ele falou bem alto, e sua voz ressoou no antigo teatro...

 

— Ser ou não ser, eis a questão... Case comigo, Simone, case comigo.

 

Sua resposta foi um aplauso. Não era o que ele queria, mas pelo menos ela não disse ”não”. Progresso? Ele achava que sim; esperava que sim..

 

com esses bons pensamentos, saíram dali, e ele a levou a Jerusalém, até onde achava seguro para ele. Beijou-a, pouco antes de ela tomar o ônibus, e avisou que iria telefonar todos os dias.

 

Observando o ônibus afastar-se, ele ficou com a promessa que ela fizera de que era um começo. E, com esse consolo, fez a curva para o oeste e partiu para o futuro desconhecido em Kfar Shalom.

 

A casa estava silenciosa; todo mundo dormia. Dvora estava sentada à mesa da cozinha, pensando em como encontraria as palavras para dar a terrível notícia a Chavala. Não havia outra saída senão dizer a verdade:

 

         ”Minha querida Chavala,

Sobrevivemos a muitas coisas, você e eu. Eu queria que houvesse um modo melhor... uma maneira diferente para lhe dizer o que vou dizer.

Depois eu lhe contarei os detalhes; mas, através da mais estranha cadeia de acontecimentos, o filho de Sheine está conosco, aqui em Kfar Shalom. Deus deve ter planejado isso. Erich foi um dos refugiados salvos no navio que Joshua trouxe a Eretz Yisroel. É um jovem muito revoltado; mas, com amor e compreensão, ele vai recuperar-se. De algum modo, vejo muita coisa de você nele. Ele não aceitou que lhe negassem seu direito de nascimento.

A tragédia que eu quero lhe contar é que Sheine não foi salva. Ela não sofreu, morreu dormindo. Enganou o Diabo e, através do filho, derrotou Hitler. Hitler está debaixo das cinzas de Berlim. E o filho de Sheine luta, agora, pela liberdade de uma nova terra que nascerá um dia... o Estado de Israel.

Para mim, é uma dor muito grande, Chavala, ter de lhe transmitir essa notícia; mas nós já compartilhamos o melhor e compartilharemos o que quer que a vida nos reserve.

Deus toma, mas Deus devolve. Talvez seja isso o que dá significado a toda a existência.

Ser irmãs e avós é o que mais nos aproxima uma da outra. Nossa Pnina e Reuven foram abençoados com uma filha. Deram-lhe o nome de Tikvah, e com razão, pois é isso que ela é... uma esperança para o futuro.

É muito bonita, Chavala. Pnina foi muito corajosa o tempo todo, e Reuven ficou a seu lado.

Joshua apaixonou-se loucamente por uma bela jovem que você vai aprovar plenamente. É uma judia francesa, Simone Blum. É sobrevivente do holocausto e faz parte da Aliyah Bet. Joshua tem estado muito ocupado, e se ele ainda não lhe escreveu contando isso não é porque não pense em você. Tenho certeza de que receberá notícias dele em breve.

Espero que esta boa notícia pelo menos ajude a suavizar a perda de nossa querida irmã. Por favor, cuide da família e dê a ela o seu amor, assim como lhe dou o meu.

             Dvora”

 

Em outra ocasião a alegria de Chavala por Joshua e pelo nascimento de seu primeiro neto teria compensado qualquer tristeza. Mas nada parecia mitigar sua dor pela perda de Sheine.

 

Durante dias, ficou deitada na cama, meditando. Não censurava Deus. Não perguntava por quê. Deus não era responsável pela maldade do homem.

 

Certamente Deus não era responsável. embora seu oposto, o Diabo, fosse. pela terrível violência de Haj Amim el-Hussein, o mufti, que estava dirigindo a política árabe da Palestina, de seu exílio no Cairo. Graças a ele, a violência entre árabes e judeus aumentava. Parecia que os ingleses se tornavam cada vez mais incapazes de controlar a situação. A Haganah não podia mais exercer sua repressão. As prisões estavam cheias de judeus cujo pior crime era a suposta posse de armas, o que violava a lei britânica.

 

O Irgun saiu desse tumulto ganhando proeminência cada vez maior, e os ingleses passaram a fazer represália contra seus membros, inclusive atacando os colonos dos kibutzim. Durante um dos ataques, uma menina de dezesseis anos foi presa por levar uma arma escondida debaixo da saia. Foi levada para a prisão em Jerusalém, espancada, e morreu de ferimentos internos, o espancamento foi presenciado por um major britânico.

 

Yehudah Rabinsky, ex-Erich Hausman, tomou para si a vingança da morte dessa menina. seus sentimentos eram reforçados por uma necessidade frustrada de vingar o destino da mãe. Agindo independentemente do comando do Irgun, Yehudah e outros quatro sobreviventes do holocausto atacaram de surpresa o major britânico, quando este estacionava o carro. No dia seguinte, ele foi encontrado morto com um tiro na cabeça. Tanto o yishuv como os ingleses ficaram chocados. Mas para os ingleses isso era o que faltava. Eles nem sequer podiam fingir manter a ordem. Naturalmente, há muito tempo eles haviam plantado as sementes de seus problemas, traindo os judeus, jogando-os contra os árabes e, muitas vezes, favorecendo os árabes, enquanto fingiam ser amigos dos judeus. Judeus que os haviam servido tão bem em duas guerras mundiais. Os ingleses achavam que a Palestina não compensava mais o esforço.

 

                                           Capítulo trinta e nove

Na tarde de 29 de novembro de 1947, um problema de cinco mil anos de existência para o povo judeu foi posto na agenda mundial. O sionista Chaim Weizmann e Dovid Landau, agora estadista, reuniram-se num prédio cinzento e cavernoso em Flushing Meadow, em Nova York. Estavam presentes delegados de cinqüenta e seis países membros da Assembléia Geral das Nações Unidas. Tinham sido chamados para decidir o futuro daquela pequena faixa de terra que se estendia ao longo da orla oriental do Mediterrâneo. Nenhum debate na breve história da ONU tinha despertado as mesmas paixões provocadas pela controvérsia por esse pequeno pedaço de terra.

 

Dovid trabalhava rapidamente nos bastidores. Tinha sido encarregado de acompanhar os acontecimentos, descobrir qualquer ponto fraco, destinar seus homens para tratar de quaisquer mudanças e tornou-se presidente de alguns debates na sala da comissão.

 

Os árabes tinham ido à reunião confiantes na vitória. O bloco muçulmano compreendia onze votos na Assembléia Geral. O yishuv, que tanto tinha contribuído para a construção de uma terra e para a causa dos Aliados, não tinha sequer um voto.

 

Naquela tarde, os delegados da Palestina estavam sentados em um quarto de hotel do centro da cidade, com os ouvidos colados ao rádio, enquanto a Assembléia Geral das Nações Unidas entrava em sessão.

 

Chavala estava sentada sozinha na galeria. Havia enorme expectativa no salão quando foi aberta a sessão e o yishuv pôs-se a aguardar o seu destino. O presidente anunciou:

 

— Está aberta a sessão e será iniciada a votação das nações sobre a resolução de partilha. É necessária maioria de dois terços para que seja aprovada a resolução. Os delegados responderão de uma destas três maneiras: a favor, contra ou abstenção.

 

O Afeganistão foi o primeiro a ser chamado. voto?. contra. A relação continuou, com a chamada dos votantes, um a um, até que um grito se fez ouvir naquele hotel do centro da cidade onde se encontravam os delegados da Palestina. Após todas aquelas horas angustiantes de espera, eles tinham obtido a maioria de dois terços. por pouco. Mazel tov era a expressão mais ouvida.

 

Dovid leu a contagem, depois apanhou o telefone e pediu à telefonista internacional ligação com o número particular de Ben Gurion em Tel A viv.

 

Em Tel Aviv, como em todas as outras cidades, kibutzim e moshav, reinava o tumulto. Nas ruas de Tel Aviv, as pessoas dançavam. Lágrimas rolavam pelo rosto dos foliões. Não havia estranhos nessa noite. Era como se todo o yshuv fosse uma pequena família unida. Jovens beijavam e abraçavam senhoras idosas de rosto enrugado. Havia dança, canto e palmas, e os lojistas abriam suas portas. nessa noite tudo era gratuito. havia acontecido um milagre. um milagre há muito esperado.

 

Quando finalmente Dovid conseguiu a ligação, disse:

 

— Mazel tov. Levamos muito tempo, mas conseguimos.

 

Ben Gurion, líder do yishuv, não estava tão exuberante. Sabia que a batalha não estava totalmente ganha.

 

— Espere um pouco, Dovid. Há tanto barulho na rua que não consigo ouvi-lo direito. Vou fechar as janelas — disse. Depois tornou a apanhar o fone: — Assim fica melhor. Bem, o que você estava dizendo, Dovid?

 

— Que conseguimos!

 

— Sim. mas com nosso suor. Lembro-me de lhe haver dito, há muito tempo, num navio que vinha de Odessa, que eu era um construtor, um construtor de sonhos. Mas o sonho ainda não se realizou, Dovid. Para que o milagre se torne uma realidade sólida, teremos que lutar pela independência de nosso Estado; e quando ganharmos a batalha, então o sonho que tive há muito tempo terá valido a pena. Agora, durma bem. E lembre-se de que apenas começamos. Shalom, e volte breve.

 

Dovid desligou e ficou olhando para o telefone silencioso por algum tempo. As palavras de Ben Gurion eram ponderadas. Dovid sabia que ele tinha razão, que só a metade da batalha estava ganha e que a última vitória sem dúvida teria que ser obtida com sangue judeu. Entretanto, pelo menos por algum tempo, ele não iria pensar nisso. Queria apenas saborear o que tinham conquistado. E para isso precisava sentir sua mulher Chavala em seus braços..

 

Junto a ela, naquele momento, ele serviu champanha e brindou:

 

— Ao Estado de Israel.

 

Então Chavala levou-o à sala de jantar, onde estava preparada uma ceia de comemoração. Contou-lhe o que tinha visto com o binóculo, da galeria superior.

 

— Você devia ter visto aquelas caras árabes toda vez que havia um voto a favor. E que dizer do voto favorável da Rússia? Você sabe o quanto eles amam os judeus... e o mesmo acontece com a Polônia. E fiquei muito contente em ver os países católicos votarem a nosso favor. Eu seria capaz de saltar lá de cima nos braços do. como é o nome dele?. — ela olhou para a relação de nomes — aqui está, professor Fabregat, do Uruguai. E o delegado da Venezuela. Eu seria capaz de beijar todos eles. Ah! Deus, Dovid, é tão estimulante!

 

Que Chavala se sentisse feliz essa noite, mas, como Ben Gurion, Dovid sabia que conseguir a partilha da Palestina era apenas um prelúdio para se ganhar a independência. Para isso seria preciso mais do que a maioria de dois terços na ONU

 

— Foi estimulante mesmo — disse ele, mas o tom de sua voz era moderado para Chavala. Ela estendeu o braço por cima da mesa.

 

— O que é, Dovid?

 

— O quê? Nada... realmente estou muito feliz; trabalhei e rezei muito em minha vida por este dia.

 

Ela se levantou e aproximou-se dele; encostou a cabeça em seu ombro.

 

— Dovid, meu bem, estou tão feliz por você. por todos nós, mas gostaria de ter tido mais fé. Pensei que os ingleses ficariam na Palestina para sempre, e depois disso haveria outro império. Mas você nunca duvidou. Você tinha razão, e eu estava errada..

 

— Não, Chavala. Acho que você acredita mais do que pensa. Nós trabalhamos de maneiras diferentes, mas nossos sonhos não eram diferentes. Não importa a distância que nos separava, eu sempre senti que estávamos juntos. Nunca deixei de ter esse sentimento. E isso jamais acontecerá.

 

Era mais do que Chavala esperava, e ela deu-lhe o seu amor da maneira que sabia dar. Como mulher... como esposa.

 

                                             Capítulo quarenta

A segunda tarefa mais importante que os grupos sionistas mundiais tinham pela frente era o lançamento de uma campanha de levantamento de fundos, para a compra de armas.

 

Naquela noite de comemoração em Tel Aviv, David ben Gurion dirigiu-se a Golda Meir dizendo:

 

— Golda, creio que é melhor você se preparar para uma pequena viagem.

 

Servindo café em sua cozinha e acendendo seu eterno cigarro, ela respondeu:

 

— Eu? Será que sou a melhor pessoa em que você pode pensar? Eu nem sequer tenho um vestido novo. Por que você não manda Chaim Weizmann? Ele tem um belo terno. Ou então Dovid Landau; ele sabe falar.

 

— Mas você tem uma coisa que eles não têm. Você tem a atração de uma mulher, uma mulher com um coração capaz de fazer o Diabo pedir misericórdia. Quem resistiria a você, Golda?

 

— Para início de conversa, uns dez membros do gabinete. Ben Gurion riu.

 

— com eles eu não me preocuparia. Deles você conseguirá qualquer soma de dinheiro.

 

No dia seguinte, vestida apenas com uma fina roupa de primavera e uma bolsa no braço, ela embarcou num avião com destino a Nova York. Quando chegou na noite do dia seguinte, sentindo um frio terrível, essa notável mulher que fora a Nova York, em busca de milhões, tinha apenas dez dólares em sua bolsa. Quando o agente da alfândega examinou seus pertences e constatou, perplexo, que era só isso que ela possuía, perguntou:

 

— Como é que a senhora vai se virar por aí com dez dólares?

 

Sua resposta foi:

 

— Eu tenho uma família muito grande aqui.

 

Dois dias depois, tremendo em cima do pódio, Golda Meir encontrou-se diante de um grupo de membros dessa família. Eram líderes do Conselho das Federações Judaicas, que tinham vindo de quarenta e oito Estados da União. Para a filha de um carpinteiro ucraniano, a tarefa a ser levada a cabo parecia impossível.

 

Agora Golda Meir escutava o presidente da reunião anunciar seu nome. Depois disso, sem uma única anotação, ela se pôs a aplicar sua fórmula mágica.

 

— Vocês devem acreditar em mim, quando digo que não vim aos Estados Unidos unicamente para impedir que setecentos mil judeus sejam varridos da face da terra. Durante esses últimos anos, o povo judeu perdeu seis milhões de vidas, e seria presunção lembrar aos judeus do mundo que setecentos mil judeus estão em perigo. Não é essa a questão. Porém, se esses setecentos mil judeus sobreviverem, então os judeus do mundo sobreviverão com eles, e sua liberdade estará garantida para sempre. Caso contrário, há pouca dúvida de que durante séculos não haverá povo judeu, não haverá nação judia, e todas as nossas esperanças serão destruídas. — Fez uma pausa; depois continuou: — Dentro de poucos meses, passará a existir um Estado judaico na Palestina. Nós lutaremos pelo seu nascimento. Isso é natural. Pagaremos isso com nosso sangue. Isso é normal. Os melhores de nós cairão, isso é certo. Mas o que é igualmente certo é que nosso moral não cairá, por mais numerosos que sejam os invasores.

 

”Vim aqui para pedir a vocês, judeus da América, que levantem uma soma de dinheiro quase impossível. Serão necessários de vinte e cinco a trinta milhões de dólares para a compra de armas pesadas de que precisamos para enfrentar os arsenais inesgotáveis dos invasores.” Fez uma pausa novamente, tomou um gole de água. Depois, seus olhos profundos e tristes percorreram a assembléia; ela continuou: ”Meus amigos, vivemos um presente muito breve. Quando eu lhes digo que precisamos desse dinheiro imediatamente, isso não significa no próximo mês nem em dois meses. Significa agora. Não cabe a vocês decidir se continuamos nossa luta ou não. Nós continuaremos. A comunidade judaica da Palestina jamais erguerá a bandeira branca diante do mufti de Jerusalém. Mas vocês podem decidir uma coisa: se a vitória será nossa ou do mufti”.

 

O silêncio que caiu sobre o auditório convenceu Golda de que ela havia fracassado. Depois, toda a assembléia de homens e mulheres pôs-se de pé, numa onda de aplausos. Imediatamente, enquanto os ecos ainda ressoavam no salão, voluntários apressavam-se a ir ao palanque com suas promessas. Antes do fim do jantar, Golda já tinha conseguido promessas de um milhão de dólares, a serem doados em dinheiro, imediatamente.

 

Quando os participantes da reunião saíram, Golda Meir ficou sozinha, sentada à longa mesa vazia, enquanto a iluminação do salão de banquete diminuía. Ela não podia acreditar bem no que havia acontecido nessa noite. Era como se não tivesse falado, mas Deus tivesse sussurrado as palavras em seus ouvidos e ela simplesmente as tivesse repetido. Totalmente exausta, acendeu um cigarro, apanhou a xícara de café frio e já ia beber, quando levantou a vista e viu Dovid Landau em pé diante dela, com uma mulher atraente a seu lado.

 

Ela recordou o quanto quisera que ele fizesse o que ela milagrosamente conseguira fazer nessa noite.

 

— Estou feliz de ver você, Dovid; e contente por você ter ficado depois que todos os outros partiram. A reação foi algo extraordinário. Eu não esperava. Mas é tão bom ver alguém de casa, alguém com quem a gente partilhou tanta coisa!..

 

— Você foi magnífica, Golda. Nenhum mensageiro de Deus poderia ter se igualado a você.

 

Golda olhou para ele com atenção. Ela não era uma mulher tímida, mas os elogios sempre a deixavam embaraçada.

 

— Não foi minha eloqüência que conseguiu isso. Foi a grande necessidade que sempre acompanhou nosso povo.

 

— Isso só é verdade até certo ponto — disse Dovid. — Bem, quero que você conheça minha mulher, Chavala.

 

Golda estendeu a mão para a mulher atraente que ela havia notado antes.

 

— Para mim é um prazer conhecer a mulher de Dovid.

 

— Para mim é uma honra — disse Chavala, entregando rapidamente a Golda Meir um cheque nominal para o fundo da Federação Judaica Nacional, no valor de um milhão de dólares.

 

Golda olhou para o cheque, depois para Chavala.

 

— Em nome de Israel, eu lhe agradeço.

 

Chavala conteve as lágrimas. Se tivesse havido Israel, sua irmã Sheine não estaria enterrada numa sepultura rasa, numa terra onde até essa sepultura tinha sido considerada uma profanação.

 

— Este não será o último. Espero que ajude. Golda Meir simplesmente respondeu:

 

— Ajudará.

 

De volta a casa, Chavala recordou como detestara a Palestina em outros tempos. Um milhão de dólares parecia apenas um pequeno gesto em favor de seu renascimento.

 

Deitada ao lado de Dovid, no escuro, ela disse:

 

— Quando os ingleses saírem, haverá uma guerra, não é, Dovid?

 

— Receio que sim. Silêncio; depois:

 

— Sabe em que eu tenho pensado, Dovid?

 

— Em quê? Você está sempre pensando — disse ele, voltando-se para abraçá-la.

 

— Não. Dovid. escute. acho que preciso de umas férias.

 

Ele teve que rir. Chavala sempre tinha um plano. Ele quase podia vê-lo desenrolar-se.

 

— Aonde você está planejando ir?

 

— A Israel. Que outro lugar poderia ser? Não tenho visto meus filhos, o filho de Sheine, meus outros sobrinhos, para não mencionar minha neta.

 

— Você tem fotografias. ah, desculpe, foi um gracejo bobo — disse ele rapidamente, quando ela o cutucou nas costelas. — Por quanto tempo vão ser as férias?

 

— Não sei dizer. Nãovou pensar em tempo. Bem. se você acha que pode ficar até depois de amanhã, voltaremos juntos..

 

Ele teve vontade de expressar seu prazer aos gritos. Eles estavam diante de uma guerra. Só Deus sabia como seria e quanto tempo duraria; mas, nesse momento, nada disso poderia interferir na sensação que ele tivera ao abraçar a mulher que significava mais para ele do que a própria vida.

 

Quando chegaram a Israel, Chavala passou os primeiros dias em Jerusalém, visitando Raizel; depois Dovid levou-a à casa de Dvora, onde ela ficaria.

 

Na casa de Dvora, em Kfar Shalom, a agitação era quase igual à que tinha havido em Tel Aviv, na noite em que foi decidida a separação de Israel. Risos, lágrimas, exclamações. E um súbito silêncio, quando Chavala se encontrou com o sobrinho, filho de Sheine, Yehudah Rabinsky. Depois, novamente os risos e as exclamações à vista da neta Tikvah. A menina tinha quase dois anos e meio, e Pnina estava grávida novamente. Ela ria e chorava ao mesmo tempo, ao ver os belos filhos; e abraçou Simone como se fosse sua filha, e porque em breve seria sua nora. E principalmente porque tinha feito Joshua tão feliz.

 

Uma semana mais tarde, na fazenda de Dvora e Ari, Chavala e Dovid assistiram ao casamento de Joshua com Simone. O cbuppah era de cetim branco, e fora costurado por Chavala, que insistia em que não tinha perdido o jeito para costurar. Todos concordaram em que tinha razão.

 

Naquela manhã foi feita a coroa da noiva, de rosas brancas do jardim de Dvora. O véu de tule, curtinho, foi colocado debaixo da coroa. Seu vestido era de organdi bordado, branco e simples; e, em torno da cintura fina, ela usava uma faixa de veludo violeta. Simone levava a única coisa que restava de sua mãe: uma pequena Bíblia.

 

Entre as páginas do Livro de Rute, havia uma fita de cetim na qual estava amarrado um ramalhete de violetas.

 

Joshua estava de uniforme, com um yarmulke de cetim branco. Em pé, ao lado dele, estavam Dovid e Chavala. Visto que Simone não tinha pais, Dvora e Ari acompanharam-na até o altar, onde estava Joshua. Reuven e Zvi ficaram esperando junto ao chuppah, mesmo depois que os noivos estavam juntos.

 

A cerimônia realizou-se debaixo da amendoeira do jardim de Dvora. O rabino que havia casado Pnina e Reuven efetuou a cerimônia diante da comunidade de Kfar Shalom. eram todos como uma família. Depois que os noivos foram declarados marido e mulher, o noivo beijou a noiva, bateu o pé na grama, e as festividades começaram.

 

Bolos e salgadinhos tinham sido feitos às dúzias, na cozinha de Dvora. Pães caseiros, frangos assados, perus, saladas e travessas de frutas frescas abarrotavam a mesa. Era o dia dos dias. Até Raizel tinha concordado em vir de Mea Shearim com os filhos, as noras e os netos. Era um dia que seria recordado para sempre. Um dia de alegria. Um dia da família.

 

                                  Capítulo quarenta e um

Finalmente, os ingleses estavam indo embora.

Era 14 de maio de 1948. Soldados britânicos deixavam a velha cidade murada de Jerusalém. Marchavam solenemente em formação pelas ruas calçadas de pedra. Na vanguarda e na retaguarda de cada coluna, um soldado carregava um fuzil Sten. O som de gaitas reverberava pela última vez nessas antigas ruas de pedra.

 

Ao longo da Rua dos Judeus, das janelas de pedras trabalhadas de suas sinagogas e dos vestíbulos de suas casas sagradas de aprendizagem, velhos barbudos observavam-nos passar; observavam como seus antepassados tinham observado outros soldados marcharem para fora de Jerusalém... babilônios, romanos, cruzados, turcos e agora os últimos, assim esperavam... partiam.

 

Quando a última coluna britânica saía, dobrou um beco tortuoso e parou diante da Sinagoga Hurva. No interior da sinagoga, cercado por sua coleção de livros sagrados, o rabino Mordechai Weingarten, ancião da parte judaica de Jerusalém, hesitou por um momento, ao ouvir a batida na porta de seu gabinete particular. Levantou-se, vestiu o longo casaco preto, ajustou os velhos óculos de aro de metal, pôs o chapéu preto e saiu para o pátio.

 

Diante do rabino estava um major britânico de meia-idade, usando a insígnia amarela e vermelha do Regimento Suffolk. Em sua mão direita havia uma barra de ferro enferrujada. com um gesto solene, o oficial entregou-a ao velho rabino. Este olhou para o objeto que tinha na mão e depois disse:

 

— Esta é a chave da Porta de Sião. Desde o ano 70 da era cristã até este momento, a chave das portas de Jerusalém nunca esteve em mãos judias. Esta é a primeira vez, em mil e oitocentos anos, que nosso povo a tem.

 

Estendendo uma mão trêmula, Weingarten apertou a mão do major britânico, que aceitou o gesto e, depois, em posição de sentido, saudou:

 

— Lamento dizer que nossas relações sempre foram tensas, mas separemo-nos como amigos. Adeus e boa sorte.

 

O inglês voltou-se e conduziu seus homens para fora do pátio, enquanto o rabino entoava:

 

— Abençoado sejas Tu, ó Deus, que nos deste a vida e o sustento, e nos permitiste alcançar este dia.

 

Em outros lugares, naquele dia, as cenas não eram tão belas e comoventes como essa. Ao partir do porto de Haifa, Sir Alan Cunningham, último alto comissário britânico para a Palestina, deixava para trás uma terra caótica, sem polícia e sem serviços públicos, confiante que a superioridade numérica árabe enchesse o vazio.

 

Naquele dia, em outra parte do mundo, Londres para ser exato, Whitehall havia esperado, até o último momento, que, após a ratificação da partilha, e com os problemas que cairiam sobre os judeus, o yishuv recorresse aos ingleses, em busca de ajuda. Mas o yishuv, que havia resistido ao terror e ao derramamento de sangue dirigido por Haj Amim el-Hussein, não pediria ajuda aos ingleses nesse momento..

 

Em outra parte do que agora era o Estado de Israel, cinco países árabes estavam em postura de abutres nas suas fronteiras esperando apenas que os ingleses evacuassem o local para que pudessem conduzir sua guerra santa contra os israelenses..

 

No quartel-general israelense, os comandantes de Israel tinham sido reunidos. Ouviam agora o seu líder, seu comandante-em-chefe, Binya Yariv. Este olhou para os rostos jovens de seus oficiais e disse:

 

— É quase desnecessário dizer a vocês que, deste momento até amanhã de manhã, estaremos em guerra. Será uma guerra não declarada. Não precisamos de declaração formal; sabemos quem são nossos agressores. Agora vamos ao âmago da questão. — Tomou um gole de água, limpou a garganta, olhou para algumas anotações e continuou: — A força dos exércitos árabes invasores foi calculada em vinte e três mil e quinhentos homens. Estão equipados com tanques, aviões, artilharia pesada, peças sobressalentes e munição, tudo de fabricação britânica e francesa. Nós temos cerca de três mil homens regulares com armas e aproximadamente catorze mil recrutas mal-treinados, a maioria dos quais veio dos campos. Os outros são imigrantes recém-chegados. Podem ser inexperientes, mas estão inflamados da convicção de que não temos outra alternativa senão vencer. Nunca mais Massada é sua fé, e a nossa — frisou ele, virando a página das anotações, e continuou: — Quanto às armas, o que temos são apenas dez mil fuzis, com cinqüenta tiros cada um; não temos tanques; temos quatro canhões antigos contrabandeados do México e três mil e seiscentas metralhadoras. além de uma peça muito incomum chamada Davidka.

 

Yariv sorriu, dizendo:

 

— Podemos agradecer a Deus por seus inventos, David Leibovitch. Essa peça é composta de canos e cheia de explosivos, pregos e pedaços de ferro velho; é quase tão eficaz quanto a funda de Davi, em se tratando de destruição. Mas é pelo menos precisa e faz um barulho infernal, suficiente, espero eu, para pôr os árabes em fuga. Agora, sem a presença dos ingleses, Dovid Landau me informou que as armas que ele armazenou em Alexandria estão a caminho, e que ele está fazendo progressos na Tchecoslováquia. Ele me disse isso a noite passada. Hoje de manhã, quando falei com ele de Paris, ele comunicou que tinha comprado dois pequenos aviões monomotores. Um pouco obsoletos, mas podem pelo menos jogar granadas de mão. Pois bem, senhores, vamos fazer um intervalo para o almoço, e depois continuaremos com a campanha.

 

Após um breve almoço, os homens puseram-se a examinar os mapas, em torno da mesa.

 

Apontando para os setores, Yariv dizia:

 

— Você, Daniel Avriel, assumirá o comando do Neguev... Ehud Biton, você defenderá a Galiléia. Dov Laskin, o Huleh... Nachman Messer, de Tel Aviv até Haifa. Todos vocês receberão instruções em breve. — Olhou para Reuven. — Não preciso dizer o que vamos enfrentar, nem que o mais importante de tudo é Jerusalém. Tudo o que ganharmos será uma perda, a menos que Jerusalém resista. Sem Jerusalém, não haverá Israel. Reuven Landau assumirá o comando. Joshua Landau será seu ajudante-de-ordens, e Zvi ben Levi servirá de ligação.

 

Yariv fez uma pausa, procurando não ficar pensando no que esses jovens oficiais iriam enfrentar. Inferiores em número e com poucas armas, eles realmente teriam que lutar como os leões da Judéia..

 

— E você, Yehudah Rabinsky, assumirá o comando de Tiberíades, Hebron e Safed. esta é a mais vulnerável — disse Yariv. E, quase em tom jocoso, acrescentou: — Sugiro a você, Yehudah, que se arme com uma Davidka. Os árabes têm o controle firme dessas cidades. Agora, que Deus os acompanhe. E muito boa sorte, mesmo..

 

E assim começou a Guerra Santa. No sul, as forças egípcias saltaram de suas bases avançadas no Sinai e atravessaram a fronteira. Passando por território povoado por árabes, um grupo subiu pela estrada costeira em direção a Gaza; outro grupo desembarcou de navio em Majdal, mais para o norte, enquanto um terceiro partiu de Abu Aweigila, a noroeste de Beersheba, com algumas de suas unidades fazendo pressão sobre a cidade árabe de Hebron, onde encontraram a legião árabe da Transjordânia e tomaram posição perto de Jerusalém, ao sul. Seu principal ataque foi dirigido contra Tel Aviv.

 

O combate foi feroz, e os dois lados sofreram grandes perdas.

 

Qualquer perda para a Haganah era devastadora. Vinte e sete colônias foram muito prejudicadas. Mas a perda de Yad Mordechai foi o golpe mais esmagador que a Haganah podia sofrer. Esse kibutz era especial. Tinha nascido da revolta do gueto de Varsóvia de 1943. Seu nome fora dado em homenagem a um homem de vinte e dois anos de idade que assumira o comando e ajudara a manter os nazistas afastados durante quarenta e dois dias e noites, quase sem armas, Ele morrera, naturalmente, mas com dignidade. Não fora morto como um animal. Mas esse kibutz era considerado também pelos egípcios como ponto vital a liquidar, para que pudessem levar avante o seu avanço sobre Tel Aviv. Yad Mordechai ficava na rodovia costeira entre Gaza e Majdal e bloqueava a ligação de duas importantes bases egípcias. O combate foi terrível. Os defensores eram em menor número, mas os egípcios levaram cinco dias de duro combate para vencê-los. Mas finalmente Yad Mordechai caiu. Sua resistência, porém, tinha sido crucial para a causa da Haganah. Havia contido o principal avanço egípcio, permitindo o fortalecimento das defesas da Haganah perto de Tel Aviv, ganhando assim um pouco de tempo para Jerusalém..

 

Em seu quartel-general fora de Jerusalém, Reuven falou a sua unidade:

 

— Estou enviando um pequeno esquadrão para a Cidade Antiga e para o monte Scopus, Se pudermos manter e capturar esse setor, teremos mais chances de tomar a Cidade Nova.

 

Quando mandou esse pequeno esquadrão a Jerusalém, Reuven esperava que a Cidade Antiga ficasse intacta, por causa dos restos dos santuários cristãos e muçulmanos que havia dentro dos muros da cidade. Foi por isso que mandou uma guarnição tão pequena, só para a defesa dos judeus.

 

Mas, no topo do monte Scopus, quinze veículos trazendo médicos, enfermeiras e cientistas do Hospital Hadassah foram atacados, e seus cadáveres, profanados pelos jordanianos. A Haganah, dentro da Cidade Antiga, estava condenada pela força do grande exército jordaniano.

 

No dia 29 de maio de 1948, após dez semanas de combates que se seguiram à proclamação do Estado de Israel, a parte judaica da Cidade Antiga estava em chamas. Colunas de fumaça marcavam o fim de dois mil anos de resistência judaica nas antigas ruas, ao lado do muro ocidental, o famoso Muro das Lamentações. Havia poucos sobreviventes, civis ou militares..

 

Reuven não podia conformar-se com a perda da parte antiga de Jerusalém. Ele não compreendia por que era ele a pessoa certa para defender Jerusalém. Yariv era de opinião diferente:

 

— Quando um soldado pára de sentir, ele não é mais um ser humano, e sentir-se como está se sentindo o torna mais humano.

 

Entretanto, mesmo depois da perda da Cidade Antiga, Jerusalém ocidental permaneceu intacta com seus israelenses. Mas Reuven compreendeu que eles ainda estavam em situação muito difícil. Jerusalém ocidental não tinha caído, mas seus cem mil cidadãos judeus resistiam com uma ração de alimento insuficiente. Pior ainda era a escassez de água. Os aquedutos que abasteciam a cidade tinham sido arrebentados, e Jerusalém tinha de sobreviver com água armazenada em seu reservatório e com as cisternas das casas particulares. A Guarda do Povo, composta, em sua maioria, de homens idosos, assumiu o controle da distribuição da água.

 

Reuven sabia que, para romper o cerco de Jerusalém, tinha de capturar Latrun. A primeira tentativa foi rechaçada pelos árabes. Fracassaram também a segunda e a terceira. Jerusalém estava quase passando fome.

 

Fazia dias que Reuven não dormia. Seus olhos estavam sem brilho, o rosto, encovado, e seu ânimo não estava em melhores condições. Quando estava sentado à mesa, à procura de uma solução, um soldado entregou-lhe um bilhete. Rapidamente, ele o abriu; seu ânimo voltou. Pnina tinha dado à luz um filho.

 

Talvez fosse a inspiração do nascimento de seu filho. não sabia... mas, fosse como fosse, encontraria um modo de salvar Jerusalém.

 

Chamou seus homens ao quartel-general.

 

— Entre Jerusalém e a costa, há uma ligação utilizável. Um caminho acidentado, interrompido por um profundo ued; talvez, se trabalharmos dia e noite, possamos repará-lo para a passagem de veículos.

 

Quando os homens estavam reparando a estrada, batizaram-na de ”Estrada da Birmânia”. Antes de concluído o trabalho, quando ainda cinco quilômetros do terreno difícil separavam os sapadores que trabalhavam a partir de Tel Aviv dos que trabalhavam descendo de Jerusalém, começaram a ser passados alimentos.

 

A abertura da Estrada da Birmânia aconteceu a tempo. Desconhecida dos árabes. e da própria população judaica de Jerusalém. a cidade estava apenas com a ração de pão para um dia. Agora Jerusalém estava ligada à planície costeira; e logo depois foi restabelecido o abastecimento de água a Jerusalém. O cerco estava terminado. A longa e dura batalha por Jerusalém estava ganha, mas custara caro. Especialmente para a família Landau.

 

Joshua Landau estava morto. Jazia nas pedras manchadas de sangue. Um atirador de elite, que tinha ouvido falar da trégua, quis oferecer a Alá mais um sacrifício e, entre as torrinhas do Velho Muro, atingiu o judeu no coração.

 

Reuven estava no quartel-general em Jerusalém ocidental quando Zadok ben Ami, membro de sua unidade, entrou muito pálido, e fez continência diante de seu oficial-comandante. Nunca tinha havido qualquer formalidade entre os oficiais e seus homens, mas agora Zadok estava reto como um varapau, com os olhos dirigidos fixamente para a frente. Fez a saudação. Reuven assentiu um tanto irritado e respondeu à saudação.

 

— Pois não, Zadok — disse. O outro parecia incapaz de falar. — Qual é o problema? Desembuche!

 

— É. Joshua.

 

Reuven compreendeu; não precisava ouvir as palavras. Mas sua mente recusou-se a acreditar, a aceitar..

 

— O que há com Joshua?

 

— Ele. foi morto, Reuven..

 

Reuven viu-se correndo para a rua, como se fosse encontrar Joshua ali para provar que aquilo era mentira.

 

Zadok ben Ami foi atrás dele, tomou-lhe o braço e conduziu-o para onde Joshua estava.

 

Reuven caiu de joelhos. Virou o irmão, suspendeu-o e tomou-o nos braços, balançando-o de um lado para outro, como se fosse uma criança. E, em sua tristeza, disse:

 

— Você é meu irmão, minha responsabilidade. Eu não estava presente quando você precisou de mim..

 

Quando chegou a padiola para levar Joshua, Reuven ainda estava de joelhos. Olhou para as mãos, manchadas do sangue de Joshua. Zadok tentou ajudar Reuven a se levantar, mas foi afastado. Somente após algum tempo é que Reuven pôde se levantar e dirigir-se lentamente ao quartel-general, seguido de Zadok.

 

Em seu gabinete, com a porta fechada, Reuven ficou sentado, pensando em todos os anos que ele tinha passado treinando o irmão como soldado, ensinando-o a ser corajoso, a nunca ter medo. Recordou a noite do nascimento de Joshua, a primeira vez que o vira nos braços de Dovid. Ele amara Joshua desde aquele primeiro momento, e agora o perdera. E Simone, uma esposa jovem e agora viúva. Ela havia ajudado tanto o marido; mas não podia dar-lhe mais alguns dias de vida para que ele pudesse ver o filho que ela concebera.

 

Quanto tempo ele ficara sentado ali não sabia, mas sabia que não queria ver o pai nem a mãe. ainda não. Primeiro tinha que ver o filho recém-nascido. Tinha de segurá-lo e senti-lo e saber que havia algo novo e vivo no velho mundo construído sobre ódio e morte. Bem, seu povo obstinado se recusaria a morrer. Não morreria nem jamais desistiria. Quando é que o mundo acreditaria neles?

 

Pnina tentou consolá-lo. Ele apenas tomou a criança nos braços, e mais para si do que para Pnina, disse:

 

— Vamos mudar seu nome de Jonathan para Joshua. Ambos significam a mesma coisa. Ambos morreram em combate. Que este Joshua seja mais abençoado com a vida do que seu xará..

 

Quando Reuven foi ver o pai, ficou quase tão mudo quanto o soldado que lhe dera a notícia da morte de Joshua.

 

Dovid foi procurar Chavala imediatamente. No momento em que entrou na casa de Dvora, Chavala compreendeu. pela angústia de seus olhos, que nada podiam ocultar. Ela compreendeu que um de seus filhos estava morto, mas qual deles?

 

— Dovid, eu sei. Diga-me quem foi — disse ela.

 

Ele a abraçou, mal conseguindo sussurrar o nome de Joshua. Ela tremia descontroladamente, mas nesse momento não houve uma lágrima. Só palavras...

 

— Meu filho... meu filhinho... meu Joshua... meu filho mais novo... meu caçula.

 

A tristeza dos Landaus não era a única de Kfar Shalom; tampouco era a única família a perder um filho. Trinta filhos estavam enterrados. Aquela era uma aldeia enlutada. Em toda Israel havia viúvas jovens e pais entristecidos. A fé de seus pais foi submetida à prova mais dura.

 

Simone estava quase inconsolável, e Chavala procurou chegar a ela. Pareciam consolar-se uma à outra. Para Chavala, Simone era como Tikvah. sua esperança. Ela carregava o filho de Joshua.

 

Quase desde o começo, quando fora trazido ao círculo familiar pela primeira vez, Yehudah Rabinsky sentira uma proximidade especial em relação a Simone. Ela também havia sobrevivido ao holocausto. Ambos eram sobreviventes cujos pais tinham morrido. Havia momentos em que eles revelavam coisas um ao outro que não eram ditas a ninguém mais. Existia um laço especial entre eles. Simone podia entender que os judeus tinham sido um ”artigo necessário” para os alemães. Ela sabia que os judeus é que haviam construído os campos de concentração com seu próprio trabalho; que esses judeus tinham sido triturados para serem usados como adubo. Yehudah podia falar-lhe a respeito do ouro extraído dos dentes; dos armazéns de óculos e de cabelo a ser usado na fabricação de colchões; da gordura usada para fazer sabão e da pele para abajures. Ele e Simone tinham atravessado tudo isso. Talvez as circunstâncias durante aquelas mortes terríveis não tivessem sido bem suas, mas ela havia sofrido como ele. Partilhavam da terrível lembrança dos horrores particulares de cada um.

 

Agora ela era a viúva de seu primo morto. Ele sentia uma proximidade ainda maior em relação a ela. Queria consolá-la, talvez amá-la. No fundo, esperava que ela o procurasse, como a pessoa que melhor podia compreender sua profunda dor. com o tempo ela até poderia querer ou precisar de um pai para seu filho. Mas na verdade ele queria ser um pai para o filho de Joshua. Ele lhe devia a vida. Sua sanidade.

 

No dia 11 de junho de 1948, o esforço das Nações Unidas por manter a paz trouxe um cessar-fogo. Israel tinha vencido a Guerra de Independência, e, por enquanto, não haveria hostilidade. Por enquanto.

 

Os meses passaram lentamente. No dia 22 de agosto, Simone trouxe ao mundo uma nova vida, a filha de Joshua.

 

Chavala tomou nos braços sua neta mais nova. com Dovid a seu lado, eles olharam para aquela menininha preciosa, ambos recordando a noite em que Joshua nascera.

 

Quando chegou a hora de dar nome ao bebê, Simone perguntou a Chavala se ela gostaria de fazer a escolha. Chavala olhou para aquela jovem bonita que se tinha tornado uma filha para ela, e compreendeu por que Simone lhe dava esse presente. Estava dizendo que ela também seria mãe daquela criança, a criança que era tudo o que ela teria na vida, em compensação pelo filho morto...

 

— Eliana. O hebraico é uma língua rica. Esse nome significa tanto. ”Meu Deus responde.” Bem, Ele respondeu. Tu nos deste o filho de Joshua.

 

Fazia quase um ano que Chavala estava em Israel. Dovid tinha certeza de que ela voltaria à América breve, embora eles não tivessem falado nisso. Moishe estivera telefonando da América com mais freqüência, a respeito de assuntos urgentes. Afinal, Chavala havia construído um pequeno império e tinha muitas obrigações..

 

Certo dia, quando estavam sentados debaixo da amendoeira do jardim de Dvora, Dovid disse:

 

— Bem, querida, você veio para passar umas ”férias”, e eu espero que essas férias nunca terminem...

 

Não seria ele quem iria falar de sua volta.

 

Ela olhou para Eliana, que dormia em seus braços.

 

— Sabe, Dovid, por muito tempo eu não soube realmente onde era o meu lar. Quando fui para a América, não estava convencida. Mas achei que era uma necessidade. E agora? Sem um de meus filhos e com dois netos do outro. minha família israelense aqui e um Estado judaico nascendo. bem, quem sabe?

 

— E seus negócios? — perguntou ele, mal ousando acreditar no que ela estava dizendo.

 

— Já pensei nisso. Não sei...

 

— Você fez muita coisa, e tudo sozinha.

 

— Não, Dovid. Ninguém faz nada sozinho. Tive ajuda. de Deus e de alguns amigos. E isso nos traz de volta para o lar. Sabe o que penso?

 

— Não. — disse ele, esperançoso.

 

— Que você é meu lar, Dovid. E que meu lugar é Israel — disse ela.

 

Ele não disse uma palavra. Temia que ela mudasse de idéia.

 

— E quanto a meus negócios. não há tanta necessidade de mim. Que Moishe assuma a direção. Ele é muito eficiente e já é hora de parar de depender tanto de mim. Julie gosta muito do negócio; Chia também, e seu marido é um bom advogado. Ele construirá uma companhia da família. Não preciso mais disso. O que eu preciso é de você. Sempre precisei, caso isso lhe pareça uma boa notícia.

 

Dovid não cabia em si de contentamento.

 

— Onde você quer viver? Nas colinas de Haifa, numa casa grande de que você falou para Dvora certa vez?

 

— Não, Dovid; naquela época eu estava errada. Não importa em que colina se viva. Sabe de que eu gostaria?. De comprar uma fazendinha aqui em Kfar Shalom e construir uma casa com muitos quartos para os netos e com uma varanda larga. A família americana pode vir quando quiser. E algum dia, quando você resolver deixar um pouco de lado a sua carreira, poderá trabalhar com um arado novamente.. Você sempre gostou tanto da terra, Dovid!

 

Ele riu.

 

— E você sempre detestou a agricultura.

 

— E daí? Onde é que está escrito que eu tenho que ser agricultora? Você faz o trabalho da lavoura, e eu preparo a comida; terei o nacbes de ver meus netos saírem correndo da casa de seus bobbe e zayde. — Sorriu pela primeira vez em muito tempo, um sorriso verdadeiramente satisfeito. — Sabe, Dovid, gosto muito do hebraico, mas de certo modo vovó e vovô em iídiche soam melhor; soam mais como realmente são. Isso é bom. É hora de todos nós encararmos o que realmente somos e ficarmos gratos por isso...

 

 

GLOSSÁRIO

ABBA (hebraico) — pai

A GROISSE GLICK (iídiche) — uma grande alegria

ALI Y AH (hebraico) — migração

BAKSHISH (árabe) — gorjeta

BAR MITZVAH (hebraico) — cerimônia da maioridade, realizada quando o rapaz judeu completa treze anos

BOBBE (iídiche) — avó

BONDITTEN (iídiche) — bandidos

BORSCHT (russo) — sopa de beterraba

BRIS (hebraico) — cerimônia da circuncisão do menino judeu recém-nascido

BROCHE (hebraico) — bênção

CHALUTZ(IM) (hebraico) — pioneiro(s)

CHANUKAH (hebraico) — festa dos candeeiros, que celebra a libertação da Palestina pelos macabeus

CHASID(IM) (hebraico) — justo(s) (designa os judeus fundamentalistas que seguem à risca as prescrições sagradas)

CHAT AN (hebraico) — noivo

CHAVER(IM) (hebraico) — camarada(s), companheiro(s)

CHEVRA (hebraico) — sociedade

CHUPPAH (hebraico) — dossel para casamento

CHUTZPA (iídiche) — audácia, cinismo

DAVENING (iídiche) — oração

DRECK (alemão, iídiche) — imundície, merda

DYBBUK (iídiche) — demônio

ERETZ YISROEL (hebraico) — terra de Israel

GEFILTE FISH (iídiche) — iguaria judaica, bolinho de peixe moído

GOLDENEH MEDINA (iídiche) — país de ouro (alusão à América)

GONIF (iídiche) — ladrão

GOY(IM) (iídiche) — não-judeu(s)

GOYISH (iídiche) — ao modo dos não-judeus

HAGGADAH (hebraico) — livro de orações do Pessach

HALVAH (árabe, hebraico) — doce preparado à base de gergelim

HASHOMER (hebraico) — Os Guardiões, nome de um movimento sionista

HATIKVAH (hebraico) — A esperança, hino de Israel

HÉGIRA (árabe) — peregrinação

HORA (hebraico) — dança folclórica judaica, de roda

IMÃ (hebraico) — mãe

KADDISH (hebraico) — prece pelos mortos

KAFFIYEH (árabe) — albornoz

KIBUTZ(IM) (hebraico) — comunidade(s) agrícola(s), aldeia(s) coletiva(s)

KOSHER (hebraico) — alimento puro, de acordo com as prescrições religiosas

LATKES (iídiche) — iguaria judaica, bolinhos fritos

L’CHAIM (hebraico) — à vida, brinde tradicional judaico

MANZER(IM) (iídiche) — bastardo(s)

MANDELBROT (iídiche) — espécie de pão

MATZOH (hebraico) — pão ázimo que se consome no Pessach

MAZEL (hebraico) — sorte

MAZEL TOV (hebraico) — boa sorte, saudação judaica tradicional

MEDINA (hebraico) — país, nação

MENSCH (iídiche) — pessoa

MESHIGGENE (iídiche) — maluco(a)

MIDRASH (hebraico) — antiga interpretação judaica do texto bíblico

MIKVAH (hebraico) — banho ritual de purificação da noiva judia antes do casamento

MINYAN (hebraico) — conjunto de pelo menos dez homens judeus adultos necessário para a realização de qualquer ato religioso

MISHEGOSS (iídiche) — maluquice

MITZVAH (hebraico) — ato religioso em obediência aos mandamentos

MOSHAV (hebraico) — aldeia coletiva agrícola

MUTTER (alemão) — mãe

OY VEY (iídiche) — ai!, pobre de mim!

PESSACH (hebraico) — a Páscoa dos judeus, comemorando o Êxodo do Egito

PFENNIG (alemão) — moeda alemã, subdivisão do marco

POGROM (russo) — incursão armada dos russos nas aldeias ou bairros de judeus, massacre

SABRA (hebraico) — judeu nascido em Israel

SCHNAPPS (alemão) — aguardente

SEDER (hebraico) — ceia ritual das noites de Pessach

SEFARDI (hebraico) — judeu originário de país do mar Mediterrâneo

SHABBES (hebraico) — o sábado

SHALOM (hebraico) — paz!, saudação judaica

SHAMMAS (hebraico) — auxiliar do rabino na sinagoga

SHEITEL (hebraico) — véu

SHIKSE (iídiche) — mulher não-judia

SHIVA (hebraico) — luto

SHOCHET (hebraico) — pessoa a quem o rabino confere o direito de abater os animais para alimentação da maneira prescrita pela fé judaica

SHOMER (SHOMRIM) (hebraico) — guarda(s)

SHTETL (iídiche) — pequena cidade, aldeia (particularmente as cidadezinhas onde os judeus viviam na Europa central e oriental)

SHUL (iídiche) — sinagoga

SIMCHA (hebraico) — ocasião festiva

SLIVOVITZ (russo) — conhaque de ameixas

STRUDEL (alemão) — torta folhada

TALLIS(IM) (hebraico) — xale(s) de oração

TATEH (iídiche) — papai

TREYF (iídiche) — impureza (referindo-se ao que foge dos preceitos kosher)

TZADDIK (hebraico) — pessoa virtuosa, piedosa

TZIMMES (iídiche) — iguaria judaica, espécie de cozido adocicado

UED (árabe) — rio cujas águas desaparecem na seca

YARMULKE (iídiche) — solidéu

YENTA (iídiche) — mulher desagradável, maçante

YESHIVA (hebraico) — academia judaica dedicada ao estudo dos livros sagrados

YISHUV (hebraico) — comunidade, colônia judaica

ZEYDE (iídiche) — avô 

 

                                                                                Cynthía Freeman

 

 

                      

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