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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CARREIRA DE DORIS HART / Vicki Baum
A CARREIRA DE DORIS HART / Vicki Baum

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

Foi a Juddy que descobriu a estatueta. Tratava-se de um pequeno objecto que não tinha mais de trinta centímetros de altura. Realmente, o Raphaêlson nSo a colocara bem na sua exposição. Juddy olhou para a estatueta, de frente e de alto a baixo, depois recuou dois passos, como sempre vira fazer aos entendidos, nos ateliers.
Mas nem por isso a obra se lhe tornou mais compreensível. Procurou, então, nas três páginas dactilografadas que constituíam o catálogo dos "Recusados". Número vinte e sete. Basílio Nemiroff: Estudo.
Suspirou. Não sabia como pronunciar o nome e o título não dizia nada. Meteu o queixo na gola de pele, aspirou voluptuosamente o seu perfume e pôs-se a acariciar, com timidez, os hemisférios e os cubos singulares que compunham o "estudo". As suas mãos receberam uma impressão agradável, quási inconveniente; por isso as retirou bruscamente, escondendo-as no regalo. Foi então que chamou o marido.
Franklin O. Bryant encontrava-se com o advogado Vanderfelt na outra extremidade da pequena galeria que continha os trabalhos dos "Recusados". Parecia estar ainda mais adormecido que de costume, e não ouviu chamar; a Juddy teve que o ir buscar.

 

 

 

 

 

 

 F. O. há ali uma coisa completamente parva que eu desejava ter. - disse ela, em tom decidido.
F. O. sacudiu a cabeça e pôs-se em movimento, de má vontade. O seu primeiro contacto com a obra de
Nemiroff foi desastroso. Tirou o cigarro da boca, disse apenas-"Idiota." -e retomou o cigarro.
Juddy ficou lívida de cólera. Havia já algum tempo que a indolência de F. O. nas suas observações, gestos e reacções a irritava.
- Já disseste o mesmo a respeito de Picasso e de Van Gogh. assim como de todos os impressionistas. e agora bem sabes: não há dinheiro que os pague.
Para dizer isto, adoptara um ar superior e competente. F. O. piscou levemente os olhos, ao ouvir falar em dinheiro. E resmungou:
- Se pudesses dizer-me o que aquela estupidez representa.
- É. é um estudo.
- Está de frente ou de costas? Será um animal? Um homem ou legumes cubistas?
Juddy voltou-se para procurar socorro. E, com efeito, Raphaêlson acorreu logo. Pôs-se ao lado da estatueta, cujos cubos e bolas pareciam diminuir, à medida que se
olhava para elas. Disse espontaneamente:
- É um estudo de retrato, o retrato de uma mulher. É notável como,os planos se destacam bem, não acha Mrs. Bryant? É uma das poucas obras plásticas de que realmente
se pode afirmar, ter três dimensões. A maior parte dos escultores trabalha apenas em duas dimensões. Quero dizer que fazem apenas o anverso e o reverso, não se podendo
olhar as suas esculturas de todos os lados, como acontece com esta. [E note como as sombras estão bem estudadas! Vejo que V. Ex.a gosta muito deste trabalho.
Mal Raphaêlson acabou de expandir toda a sua eloquência, Juddy notou que não estava nada divertida. A estátua, com todos os seus planos, as dimensões e as sombras,
toda aquela monstruosa exposição de trabalhos recusados, todos os rostos, manchas, caóticos mistérios enchendo a sala - tudo aquilo que a divertia, havia momentos,
lhe pareceu, de súbito, apagado e árido. Tinha, muitas vezes, destas crises de vazio infinito, como se todas as coisas com que enchia a vida, não passassem de serradura
escorrendo sem cessar por invisível fenda.
- Poderá obtê-la por cem dólares. - continuou Raphaelson - Uma ninharia. Daqui a alguns anos, quando o Nemiroff adquirir fama, valerá mil.
Bryant estremeceu à ideia de vir a ter aquele objecto na sua casa. Disse a Raphaelson:
- A minha mulher é snob. Arrasta-me para exposições impossíveis. Enche a casa de cadeiras onde ninguém se pode sentar. Pôs, em todas as janelas, aquários com peixes
tropicais que não deixam ver o jardim. Obriga-me a comprar coisas espantosas. Ela.
- Mas eu nunca pensei em comprar aquilo.
- Ah, não? - exclamaram Bryant e Raphaelson, igualmente espantados.
- Não. É muito pequeno. Quero a mesma estátua mas em tamanho natural. Colocá-la-ei no arrelvado inferior. Desde sempre que lá falta uma coisa destas. Quando se olhar
do terraço. com o rio ao fundo.
Sentiu-se aquecer. Lembrava-se de que o escritor Ernesto Long, que conhecia havia algumas semanas, sonhara alto com a irreal forma de uma mulher a caminhar por aquele
arrelvado lá de baixo. E não havia dúvida nenhuma que a estátua era irreal.
Muito decidida, desta vez, afirmou:
- É verdade. Uma mulher nua, de tamanho natural, para colocar lá. iAcha que esse Nerimoff - é o seu nome, não?- é capaz de ma fazer?
F. O. ergueu os braços ao céu e exclamou:
- Uma mulher qual A estátua de uma mulher na relva? Está bem, se é esse o teu desejo. Mas não queiras convencer-me de que aquele horror tem qualquer afinidade com
uma mulher! E então em tamanho natural, ainda por cima!
Em voz azeda, ela replicou:
- É uma questão artística. Bem sei onde vais buscar as tuas ideias sobre as mulheres. Mas deixa-me dizer-te que as Ziegfeld-Follies não exerceram boa influência
no teu gosto: não vais pedir-me que ponha
no arrelvado a academia de miss Cater, pois não? De resto, de ti nada me espantaria.
F. O. precisou de retomar o fôlego. Não estava à altura das vergastadas da mulher. E adivinhava, sem esforço, qual era a origem daquelas fórmulas tão bem pronunciadas.
- Só te peço uma coisa: deixa a miss Cater sossegada. Já te disse mil vezes: conheço-a vagamente e não tenho o mínimo interesse em ir mais longe. Mas o que posso
afirmar é que todas as girls das revistas, têm mais coração e mais. calor. e mais não sei quê, que tu nunca terás-com todos os teus intelectuais e os teus Ernest
Long e todos esses amigos que só pensam em beber o meu melhor whisky.
Inclinados para a estatueta, as injúrias silvavam como se viessem de serpentes. Pálidos de raiva, lançavam um ao outro as mais grosseiras palavras. Bastara uma leve
discordância: ela ser a favor do cubismo e ele contra, (na medida da sua compreensão) para se tratarem como raivosos inimigos. Raphaêlson fugiu por discreção e medo.
Gostava mais do marido do que da mulher, porque ele, ao menos, não fingia compreender. Tinha a certeza de que a estatueta não prestava para nada: Nemiroff não passava
de ser um imbecil.
Raphaêlson era conhecedor. Começara como dono de casa de hóspedes numa culta vila da província e aí ouvira mais discussões sobre arte do que muitos estudantes e
professores. Vira passar as modas, ajudara as tendências a nascer e a morrer. Em segredo, apreciava os truculentos pintores barrocos: os Rubens, os Jordaens. Vendera
ao velho Bryant, que conhecia a fundo, a maneira de ganhar belos dólares com péssimos comboios, um Jordaens verdadeiro e dois Franz Hals quási autênticos, para a
sala de jantar.
Agora, observava com inquietação, o jovem Bryant. Mesmo em plena cólera, o rosto, aliás parecido com o do pai, permanecia mole. Tudo o que, no velho parecia de bronze
ou aço, de qualquer metal duradouro e resistente, se transformara, nele, em esponja. Pegara na estatueta e fazia-a girar em todos os sentidos. Por fim, tornou a
colocá-la, brutalmente, no pedestal. De todas as paredes, os absurdos quadros dos "Recusados" olhavam para o par zangado.
Ao lado de um gesso que se intitulava knock-out e representava dois boxers microscópicos e miseráveis, o advogado Vanderfelt estava à espera. Também ele os observava.
Já havia muito que compreendera andar um divórcio no ar. Desde alguns meses que estava constituindo um dossier tanto contra o homem como contra a mulher. Mais tarde
saberia qual dos dois seria seu cliente. Aspirou profundamente o ar que cheirava levemente a pintura de óleo. No fundo, o mais vantajoso, seria tomar o partido do
velho Bryant e ajudá-lo, no caso de ele querer colar a união que abria fendas por todos os lados.
Aproximando-se deles, disse amavelmente:
- Você é uma fanática, Juddy.
F. O. acendeu um cigarro, não por prazer mas para adoptar uma atitude. O raminho de violetas pregado na gola de Juddy já estava a murchar. O advogado continuou:
- Não me vai convencer de que um traço, uma pincelada e um dólar fazem com que Peter Morgan esteja parecidíssimo no seu retrato .
- Obrigada. - replicou ela - F. O. acaba agora mesmo de me chamar gentilmente: snob. Deve ser uma coisa muito engraçada, ser snob. Em todo o caso, sempre será mais
engraçado do que um homem que se contenta em ter dinheiro.
Raphaêlson retomou a palavra, cheio de esperança:
- Então e quanto ao estudo?
- Não. - respondeu ela, perto da porta.
De súbito, as paredes, os quadros, as estátuas caíram todas sobre Juddy, na vertigem que teve. Agarrou-se à rugosa manga do casaco de Franklin.
- Mas o meu marido queria ter a direcção desse Manouroff. é esse o nome, não é verdade, Júnior?
- Pois é. - concordou fracamente o marido. Sentia gotazinhas de transpiração no bigode. Contrariava-o que a mulher se obstinasse em falar daquela
história com a Cater, quando afinal tudo acabara quando ele a encontrara com o empresário. Enquanto Raphaêlson escrevia a morada, o seu ar era ausente e estúpido.
Ao meter o papelinho no bolso, pensou: "Nada mais fácil do que perdê-lo".
Naquela manhã de Fevereiro, o carro de Franklin O. Bryant parou na esquina da segunda avenida da quinquagésima sexta rua. Desceu devagar, olhou em redor e assobiou
baixo. Estava a leste, pouco distanciado das luxuosas casas da quinta avenida. Um instante antes vira lojas onde se expõem brocados, morangos no inverno e, no verão,
as toilettes para as pessoas que vão para a Flórida ou para Honolulu. Agora pairava no ar um cheiro a fumo e a miséria. Diante das casas estreitas, crianças brincavam
no gelado crepúsculo. Na montra de um pequeno restaurante havia maçãs cozidas ao lado de arenques, com o seguinte letreiro: tudo por cinquenta cents.
Bryant aproximou-se de um candeeiro e olhou para o papelinho amarrotado onde Raphaêlson escrevera, havia semanas, a direcção do escultor. O número apagara-se. Júnior
deu um grande suspiro. Estava praticando uma das suas habituais palinódias: viera ali para agradar à mulher, fazendo-lhe uma surpresa. Acendeu um cigarro e entrou
no prédio.
Logo em seguida à estreita porta, começava uma escada muito íngreme e ainda mais estreita. Teve que acender um fósforo para poder ler os nomes nas caixas do correio.
Nemiroff. Parecia-lhe bastante bolchevista. O moço Bryant verificou que tinha um certo receio daquele Nemiroff. Quarto andar. No segundo estava aberta a porta de
um alfaiate, que deixava passar o aroma do ferro quente sobre a fazenda úmida. Em cima. estridulava uma voz de mulher. O barulho aumentou quando ele atingiu o terceiro
andar: era uma ária de ópera que se adequava mal ao quadro. Abordou os degraus do seguinte lanço como se estivesse fazendo alpinismo. Na semi-escuridão, esbarrou
com dois corpos que não pareciam nada dispostos a separar-se.
Pensou:- "vou depois ao Bobs para me retemperar". O Bobs era um speakeasy da quinquagésima nona avenida, que estava na moda havia alguns meses, exactamente ao mesmo
tempo que as saias curtas.
Antes que, no quarto andar, Bryant se conseguisse orientar entre a grande quantidade de portas que via, decorreu bastante tempo; por fim foi dar a um corredor, subiu,
tropeçando, mais uns degraus e bateu à porta envidraçada, velada interiormente por uma cortina.
- Entre! - disse uma voz baixa e calma.
O primeiro objecto que viu, foi uma mulher absolutamente nua que estava em cima de um caixote, com os braços estendidos para a frente. Uma fort" lâmpada eléctrica
com fio extensível estava acesa mesmo em cima dela. Nos vestiários dos music-hall vira Bryant destas lâmpadas - o que não vira fora mulheres assim. O seio era jovem,
soberbo, as ancas esguias, os joelhos estreitos na perna fina. Perto de tanta nudez, dir-se-ia que o rosto estava vestido. De resto, não era muito bonito. Bryant
piscou os olhos, maravilhado. A mulher não fez um gesto, apenas virou os olhos na sua direcção, fitando-o. Quanto a ele, depois de ter começado por perder o fôlego,
tornou-se furioso. Estando em jejum, não caíra nunca numa situação tão incorrecta.
- Alo! - disse bruscamente, com a garganta apertada. Tossiu para aclarar a voz.
Viu então voltar-se o homem que estava meio dissimulado pela massa cinzenta e úmida do barro e o olhava com um sorriso meio sarcástico e meio curioso.
- Tenho o prazer de falar ao sr. Nemiroff? preguntou grotescamente Bryant.
-Tem esse prazer.-replicou o escultor que desatou cordialmente a rir.
Bryant lançou um rápido olhar à rapariga nua, mas ela ficou impassível.
- Eu sou o sr. Bryant. A minha mulher chamou-me a atenção para os seus trabalhos. - disse o Júnior que, cheio de pânico, pensava: "se ele mandasse embora o modelo!
Nemiroff abanou a cabeça e ficou à espera.
- Trata-se da estátua que o senhor expôs no Raphaêlson.
Depois de ter balbuciado esta frase, o visitante abandonou a luta.
-Ah, ah! - exclamou Nemiroff. E o, outro pensava: "Se, ao menos, ela se mexesse! É extraordinário: tem as pontas dos seios roxas."
- Parti-a. Era uma porcaria. - declarou o escultor, colocando, com o polegar, um pouco de barro no trabalho que tinha na frente.
- Que pena! Eu queria fazer-lhe uma encomenda. Uma estátua de tamanho natural, para o nosso jardim -é uma ideia da minha mulher.
- Pronto, Dorchka. - disse Nemiroff - A rapariga pegou lentamente num chaile de cachemira vagamente alaranjado que estava sobre o caixote, envolveu-se nele e desceu
do pedestal. O artista ajudara-a com uma galantaria cavalheiresca, exactamente como se fosse uma rainha a descer do cavalo.
- Apresento-te o sr. Bryant, Dorchka; miss Hart.
- disse ele num imprevisto cerimonial.
Bryant não fazia a menor ideia sobre a atitude que se deve tomar em face de uma senhora que se vê nua antes de se lhe ser apresentado.
- Não julgava que se servisse de um modelo, pensei que trabalhava de cor.
- Miss Hart dá-me a honra de posar para alguns estudos; sem ela, nada poderia fazer.
Bryant, muito aflito, pensou: "Quem sabe se é uma senhora da sociedade. No Social Registe estão mencionados os Hart.
Inclinou-se.
- Sente-se. - disse Nemiroff - Vai tomar uma chávena de chá connosco.
Bryant, com o olhar, procurou em vão um móvel que pudesse servir de assento. Piscou ainda os olhos quando o escultor tirou um casaco de cima da cama, se sentou e
puxou uma mesa, com o pé. Aterrorizado, viu miss Hart tirar duma chávena um raminho de narcisos,
lavá-la e colocá-la sobre a mesa. Ela notou-lhe o olhar e desatou a rir. Disse:
- Não faça caso do Basílio. Hoje-está convencido de que é o príncipe Puckler, sabe ? aquele que escreve umas cartas tão lindas.
Só faltava isto para acabar de perturbar Bryant. Contemplou a medo as mãos do escultor, cinzentas do barro e os seus olhos irónicos.
- Miss Hart não quere insinuar com isso que estou doido, mas simplesmente que torno a vida menos monótona, metendo-me em diversas personalidades de diferentes épocas.
Na semana passada, era Napoleão na ilha de Elba; diverti-me imenso. Ontem era a mulher velha que vende maçãs ao canto da segunda avenida. Muito instrutivo. O senhor
devia experimentar.
- O que eu queria era falar de negócios consigo.
- disse Bryant, com energia. Já começava a estar farto - Quero fazer uma surpresa à minha mulher com essa estátua em tamanho natural.
Nemiroff deitou-lhe silenciosamente um olhar de censura. Não era certo ter compreendido. Mas a rapariga que trazia o bule, parou de súbito, apaixonadamente atenta.
- Basílio . - suplicou.
- Em tamanho natural? Bem. De pedra? preguntou o artista - Se a fizer terá que ser em pedra, isto se a puder pagar, é claro, porque a pedra custa muito dinheiro.
- Quanto, mais ou menos ? - preguntou Bryant, já hesitante - Era apenas Júnior e não trabalhava muito na casa. Mas, em todo o caso, o velho Bryant não o deixava
andar sem dinheiro.
- Sabe que os egípcios faziam as suas estátuas mesmo na rocha? Ah, não é trabalho para jardim de crianças. E o velho, o Miguel Angelo, fez o mesmo. O martelo directamente
na pedra: é por isso que a cabeça de Moisés não está completa: o bloco era muito pequeno.
O artista deu mais uma gargalhada estranha, tirou o bule das mãos da rapariga e encheu as chícaras com um chá escaldante e escuro.
O primeiro gole arrepiou Bryant. Achou que tudo aquilo era insensato e tornou a perder a paciência.
- i Então quanto custaria e quando estaria pronto?
- Devagar. As estátuas não se fabricam em série. Deixe-me encontrar a pedra que me agrade, pague-a e o resto sempre se há-de arranjar. Talvez esta semana encontre
a pedra ou talvez daqui a um ano. Mas primeiro tenho que ver o jardim que deve receber a estátua e a mulher para quem a devo fazer. Só depois disso lhe poderei dizer
se aceito a encomenda.
- Mas, por favor, oiça . - disse Bryant, irritado.
- Tem um cão? Tem. i Era capaz de o dar a pessoas que não conhecesse? Pois bem, uma estátua vale mais do que um cão.
- Oiça, vou deixar-lhe a minha direcção. E agora, adeus! - exclamou Bryant, absolutamente encolerizado.
Levantara-se, fazendo ranger a cama de ferro. Não podia mais. Colocou o cartão sobre a mesa, inclinou-se rapidamente em face da rapariga e dirigiu-se para a porta,
com energia. Só a Juddy podia pôr um homem sensato em tal situação.
De repente, miss Hart encontrou-se na sua frente e colocou as mãos espalmadas no seu peito, para o reter.
- Não conhece o Basílio. - disse na sua voz rouca
- Está radiante por poder trabalhar na pedra, pois nunca teve dinheiro suficiente para a comprar. Perde-se trabalhando sempre em barro e gesso. Quando o conhecer
melhor.
Fitou-o ainda com ar suplicante e depois deixou cair as mãos.
Do fundo do quarto, Nemiroff pediu:
- Miss Hart, não conte assim a nossa vida. Pegou outra vez em barro e recomeçou a modelar. Absolutamente fora de propósito e pondo-se em fuga, Bryant balbuciou:
- Encantado por a conhecer.
Renunciou a encontrar o chapéu pensando que tinha outros em casa. Apenas desejava ver-se fora dali. Na escada havia agora uma pálida luz e no terceiro andar continuavam
a cantar.
- Para o Bobs, Perkins. - disse ao motorista. Mais calmo, sentou-se comodamente no carro e
fechou os olhos. Aquela incursão pelo desconhecido, fatigara-o. Mas por trás das pálpebras fechadas, ainda não encontrava repouso. Tornava a ver a rapariga, nua.
Inclinava-se lentamente para apanhar o chaile. Estava nua, inclinava-se, pegava no chaile. Esta cena voltava constantemente, da mesma forma como, em sonho, a gente
se encontra sempre no mesmo lugar.
"Estou a dormir" - pensou.
Abriu os olhos e encontrou na frente o vasto dorso irlandês de Perkins fielmente debruçado sobre o volante. Estava na esquina da quinta avenida e da quinquagésima
oitava rua. Barulho, luz, paragem forçada - a rapariga espalmara-lhe as mãos no peito. Sob o pull-over ligeiro, parecia que o sítio ainda estava quente.
No Bobs, o bar estava cheio e o restaurante vazio. Distraído, Bryant abriu caminho através de caras conhecidas: era a hora do cocktail. Viu o pai, sentado a uma
mesa em que havia café e conhaque. O velho levantou os olhos e gritou ao filho qualquer coisa que ele não compreendeu. Chegou até junto dele.
- Que estava a dizer, pai?
- Nada. Disse apenas: Alo, Júnior!
Os amigos do Júnior, chamavam-lhe o "velho Bryant" mas ele não tinha mais de cinquenta e seis anos. Parecia um operário e tinha os cabelos dum cinzento ferruginoso.
- Que é feito da Juddy?
- Está bem, obrigado.
- i Fizeste com que desistisse da tal viagem à Europa?
Estou a tratar disso. Quero ver se lhe posso fazer uma surpresa para a compensar.
- Devias ir ao leilão de Connor, talvez lá encontrasses qualquer coisa.
- Não é nada disso. A Juddy quere uma coisa absurda.
- Pois então dá-lha, meu rapaz, dá-lha. - disse o velho, muito calmo. E pensava: "É preciso comprar
tudo o que as mulheres querem. Quanto mais distintas são, mais dinheiro custam".
Possuía uma sólida e risonha provisão de experiência. Em resumo, considerava como um leve chantage todas as relações com uma mulher.
Bryant sentou-se ao balcão e bebeu rapidamente dois "oldfashioned", a seguir. Parecia-lhe que nunca encontrara pessoas tão antipáticas como aquelas - o escultor
e o modelo - se miss Hart era realmente um modelo. Estremeceu e bebeu um terceiro copo.
Pensou, de súbito: "Deixei lá o chapéu; posso ir buscá-lo."
Esta ideia aliviou-o imenso. Tornou a deslisar por entre os amigos. Um bateu-lhe no ombro. Passando junto do pai, disse-lhe:
- Não se esqueça de que janta amanhã connosco. Na mesa do velho Bryant estava agora uma mulher:
a nova nora do banqueiro Shugers. O pai concordou num gesto de mão e o filho dirigiu-se para a porta. Ordenou ao Perkins, cujo rosto impassível lhe perturbava a
consciência:
- Temos que voltar ao sítio donde viemos. Esqueci-me lá do chapéu.
- Entre. - disse o escultor, quando Bryant apareceu pela segunda vez na porta envidraçada do atelier.
Sabe-se lá o que ele esperaria ver. Mas sentiu-se completamente desembriagado ao deparar com miss Hart completamente vestida. Tinha um casaco qualquer e um ordinário
chapéu de feltro. Realmente, a cara não prestava para nada. Conservava as mãos metidas nas algibeiras e não se lhe distinguia a silhueta. Olhou surpreendida para
Bryant.
- Esqueci-me do chapéu. - disse em voz apressada e rude.
Nemiroff estava a lavar as mãos. Os cabelos que primeiro vira desalinhados, encontravam-se agora molhados e penteados para trás.
Foi só nesse momento, que Bryant viu bem o homem e o quarto. Parecia que ficara cego durante todo o
tempo em que miss Hart não estivera vestida. Não se tratava de um verdadeiro atelier mas de um quarto de dimensões médias e tendo uma só janela. Cheirava a gás e
todo o aposento parecia inabitável, com excepção de um canto ao lado do fogão, o sítio em que haviam tomado o chá. Os narcisos tinham ido outra vez ocupar a sua
chávena.
Nemiroff trouxe o chapéu a Bryant, dizendo-lhe num tom absolutamente correcto e ajuizado.
- Lamento que tenha subido outra vez os quatro andares. Quere ficar um momento? Poderíamos discutir com todo o sossego.
- Bem. Mas eu é que me vou embora e já. disse miss Hart.
Bryant continuava sem saber se era uma excêntrica senhora da sociedade ou um modelo de profissão. Tanto impudor colocava-o nesta alternativa de pensamentos.
- Tem o seu carro lá em baixo ? - preguntou ele.
- Não. - respondeu ela, enfiando as luvas-Tomo o 1 até à octogésima sexta rua.
- Está a começar a cair neve. i Poderei levá-la no meu carro?
Ficou espantado por ter dito aquilo.
- Pois sim. É muito amável. - concordou a rapariga.
Nemiroff achava aquilo muito bem. Aproximou-se dela, inclinou-se e beijou-lhe a mão. Bryant só vira aquilo no teatro ou entre os rapazinhos bonitos da Cote dAzur.
- A luz fica acesa. - disse Nemiroff. Só então Bryant lhe notou a alta estatura. Tinha o cabelo cor de areia e uma hipótese de bigode.
- Boa noite.
E desceu a escada com a rapariga.
No terceiro andar, continuavam a cantar. Escalas menos extensas, desta vez. Doris Hart parou um momento, para ouvir.
com respeito, disse:
- É a Salvatori. Trabalhou com Caruso e Bonci.
Ele achava aqueles sons horríveis. Para dizer qualquer coisa, preguntou:
- Interessa-se pela música?
- Infelizmente, não me interesso tanto quanto devia. Mas não faz mal. Também canto. - E em voz rouca, declarou:-Hei-de vir a ser uma cantora célebre.
- Tem a certeza? - preguntou, divertido.
Não se tratava então de uma senhora da sociedade, mas de uma doida pertencente à boémia.
- É verdade; dou lições com a Salvatori. Foi ela que descobriu a minha voz. Nunca se engana.
- Por aqui. - disse Bryant, tomando-lhe o braço para a conduzir até ao carro.
Perkins tomou o seu ar hermético como se, nas suas costas, se passassem coisas proibidas. Bryant irritou-se com tal atitude. Não ligava a mínima importância a miss
Hart. Se não lhe tivesse visto primeiro o corpo do que o insignificante rosto, nem sequer lhe deitaria um olhar. Na realidade, desejaria que ela tornasse a pôr-lhe
as mãos no peito, mas não era um desejo consciente.
- É muito gentil da sua parte levar-me assim. disse Doris, e depois de se instalar comodamente no canto, continuou: - De resto, eu queria falar-lhe. vou dizer-lhe
com toda a sinceridade: o Basílio ainda não teve nenhuma encomenda. por isso não sabia que atitude havia de tomar. Vai fazer-lhe uma coisa maravilhosa. Tem génio.
Não quero dizer com isto que seja "um génio", como dizem as senhoras americanas. Tem realmente génio, isso é que é um facto.
Bryant ouvia distraidamente a sua voz rouca e a sua pronúncia rude. Irritou-se ao ouvi-la falar desdenhosamente das americanas. E daí, talvez tivesse razão. Todas
as semanas, a Juddy descobria alguém a quem chamava "um génio".
- Não é americana?
- Não. Sou alemã.
"Não faltava mais nada!" - pensou ele, desagradavelmente impressionado. Crescera numa época de germanofobia e não podia libertar-se completamente
dessa impressão, embora os alemães tivessem ganho bom nome depois da guerra.
- Para nós alemães, está tudo cheio de dificuldades . - disse ela, como se estivesse a pensar em voz alta - Vocês aqui não fazem nenhuma ideia do que a guerra foi
para nós. mas enfim, ninguém escolhe a sua nacionalidade.
Bryant horrorizava-se com as conversas sérias. Aterrorizado, ofereceu-lhe um cigarro.
- Por causa da minha voz não devo . mas adoro fumar.
Observou, sem querer, a forma voluptuosa como ela aspirava o fumo. De súbito, preguntou:
- Mas onde devo levá-la?
- Ao restaurante Schuhmacher, octogésima sexta rua.
- i Não prefere ir jantar comigo a outra parte ? preguntou ele, ao sentir que a noite se lhe tornaria insípida e vazia, mal a rapariga se fosse embora.
- Não vou lá jantar. Sou criada.
Ela tinha acabado o cigarro. Bryant ficou sufocado. Todas as raparigas com quem se dava eram do teatro ou mesmo do Park-Avenue. Não podia imaginar que as mulheres
bonitas pudessem ganhar dinheiro doutra forma que não fosse levantando as pernas ao ar ou tirando parte do vestuário.
- Criada à noite e modelo de dia; i então que tempo lhe fica para se divertir?
i Já que era criada, porque não havia ele de lhe falar naquele tom ordinário? Ela abriu a boca e depois fechou-a, sem dizer palavra.
Em seguida, sem transição, Bryant declarou:
- Sabe? Lá em cima, na escada, pensei que também gostaria de ser escultor.
- Ah! E porquê? Deitou-lhe um olhar significativo.
- É fácil de adivinhar.
Surpreendido pela sua própria audácia, sentia-se vogar numa onda de excitação. A rapariga respondeu:
- Estou saturada dessas frases, sabe? Se me
melindrasse facilmente, no restaurante Schuhmacher tinha que andar de escafandro.
Bryant não pôde deixar de se rir e ela imitou-o. Depois, assim que o viu de bom humor, preguntou:
- i Então sempre fará a sua encomenda ao Basílio? Encolheu os ombros e replicou com uma frase que achou muito hábil:
- Isso depende de diferentes coisas.
Ela fitava-o e ele notou que não tinha os olhos que seria para desejar. Tendo apenas vinte e seis anos, muitas vezes sentia, sem a ver, a moleza do seu rosto. Preguntou
sem transição:
- Diga-me: esse escultor é seu amigo?
- Sim, somos amigos. Ajudamo-nos conforme podemos. Ele é maravilhoso.
- Não é isso que quero dizer . - murmurou o homem, descontente - Quero dizer.
- Compreendo lindamente o inglês. Pois então digo-lhe que não é nada do que o senhor pensa: somos verdadeiros amigos, i Isso tem qualquer importância para lhe dar
ou não a encomenda?
Infeliz, Bryant pensava:
"Ah! As mulheres, que espertalhonas! A antiga, miss Cater, Juddy e agora esta nova personagem."
Piscou os olhos e ficou surpreendido, ao ouvir-se dizer:
- Talvez .
Se tivesse algum interesse por aquela antipática e ínquietante rapariga, a sua resposta era boa. Mas que interesse podia ter?!
O carro parou antes de ter respondido à pregunta. Encontravam-se em frente do restaurante Schuhmacher. Na tabuleta estava anunciado um bowling. As classes médias
de Yorkville passavam, apressadas, junto do automóvel. Miss Hart, apesar da sua pronúncia estrangeira e embora confessasse magoadamente a sua origem alemã, não pertencia
àquela multidão. Reteve-a pelo casaco, quando ela quis descer.
Muito obrigada- E não se esqueça de encomendar a estátua.
- Onde poderei tornar a vê-la? - pregunttou Bryant em voz tão alta que o próprio Perkins perdeu a impassibilidade durante uma fracção de segundo.
Ela não respondeu, visto que começara a andar e já ia longe. Do passeio pleno de gente, disse-lhe adeus e desapareceu pela porta do restaurante donde veio um cheiro
a cebola e a carne fumada até ao luxuoso carro de Bryant.
Doris mentira quando afirmara que Basílio e ela eram simplesmente amigos. Era sua amante. Ou antes, fôra-o durante algumas horas de extraordinária exaltação. E parecia
que tudo tinha passado. Desaparecera tão depressa como chegara, deixando-a dolorosamente desnorteada. Habitavam a mesma casa, passajava-lhe as piúgas, lavava-lhe
a roupa e fazia-lhe o chá. Posava para as suas enigmáticas estátuas que não acusavam a mínima semelhança com ela nem com nenhum ser humano. Estremecendo de ansiedade,
esperava pelo momento em que a retomaria nos braços. Mas êle conservava-se afastado dela, ou antes, afastava-a de si.
Deitara-se na cama de ferro e ela, numa cadeira, cosia botões. Estava frio - ele não tinha dinheiro para o distribuidor automático do gás.
Levantou-lhe os cabelos para ver se ele dormia. O escultor pegou-lhe logo na mão e observou-a como um objecto mais ou menos interessante; depois, sempre como se
fosse um objecto, tornou a colocá-la sobre a costura. Doris suspirou levemente, sem dar por isso.
- E depois? - preguntou ele, um pouco mais tarde.
Estava calado havia uma hora. Sabia calar-se melhor e durante mais tempo, do que todos os outros homens que ela conhecia. Esforçou-se por repetir as palavras que
pronunciara antes do silêncio.
- E então o meu pai morreu. Congestão pulmonar. Cinco dias.
Cortou a linha com os dentes e passou para o botão seguinte. Houve outra pausa bastante longa.
- E depois? - preguntou Basílio.
Depois. o costume. Não havia dinheiro,
apenas dividas. Os doentes do meu pai não pagavam. Ninguém paga a um médico que morreu. A nossa casa foi vendida, era uma casa pequena. Tiraram-me do colégio. A
minha mãe não sabia que fazer. O meu pai conservara-a sempre ao abrigo de todas as preocupações e agora pagava-o cruelmente. Tinha uma irmã em Nova-Iorque que lhe
escrevia cartas magníficas sobre a vida que levava. Bem. Arranjámos algum dinheiro e viemos para a América. Veio também o canário acompanhado pelo papagaio. Trazíamos
dezasseis embrulhos pequenos. Muito agitada, não deixou de trazer a sua arca do pão. i Nem sei como nos arranjámos para chegar aqui! Mas que diferença com Bingsheim,
o lugar donde vínhamos, que tinha só doze mil habitantes! Estás a ver a nossa chegada a Nova-Iorque.
Basílio virou-se para ela e concordou. Estava a ver o quadro.
- Foi nesse momento que as complicações começaram! Sabes o que tinha acontecido à minha tia? Era cozinheira de um velho celibatário: o homem casou e mandaram-na
embora. Tudo que dissera nas cartas era falso. Toda a gente que vem para a América faz o mesmo: começa a inventar maravilhas. Também eu o fiz. i Julgas que seria
capaz de dizer ao meu avô que sou criada no Schuhmacher? Pobre conselheiro! Ora, que vá para o diabo a minha triste família. Se eu tivesse nascido nos slums, tudo
correria melhor. Ainda foi bom a minha mãe ter morrido pouco depois: isto seria horrível para ela.
Basílio olhou-a atentamente e pensou: "é toda em ângulos".
Era muito fria. Dizia aquilo: "foi bom a mãe ter morrido" pacificamente e sem artifícios. Outras vezes parecia-lhe um cristal que, ao mínimo contacto, se partiria.
Levantou-se e afastou-se dela.
- Olha, vira as costas para a luz. - disse, tirando o pano umido que cobria o seu último esboço.
Doris cruzou as mãos. Era a primeira vez que Basilio a interrogava sobre o seu passado, que lhe
contara de boa vontade. (Sabe Deus o que esperara daquela narrativa! Talvez um pouco de ternura ou de consolação, um certo respeito pela coragem com que caminhava
pelos fossos daquela cidade assassina. Como nada veio, levantou-se e foi colocar-se sobre o caixote onde lhe parecia passar quási toda a sua vida. Ao mesmo tempo,
num gesto habitual, levantou a blusa de malha para a passar pela cabeça.
- Não; deixa. Preciso apenas da linha. Tomou a pose que ele indicara na última vez. Ela
estava-lhe muito grata por poder permanecer vestida no frio atelier. Às vezes, experimentava uma insensata sede de ternura. Antigamente, o pai beijava-a de vez em
quando. Mas desde então, mais ninguém o fizera. Chegava a sentir a pele infeliz e ávida de contacto e de calor.
- Estou bem assim? - quis saber.
Basilio respondeu com um breve gesto. Recuou, olhou para o esquisso de barro com uma insistência quási odienta, depois precipitou-se para a frente e mergulhou as
mãos no trabalho.
- Foste boxer? - preguntou ela, rindo. Contra sua vontade, apreciava aqueles gestos de lutador que a enchiam de uma beatitude inexplicável e radiosa.
- Fui. - replicou ele, mais tarde quando ela já esquecera a pregunta. As suas respostas chegavam sempre atrazadas, como a luz das estrelas.-Ainda hoje, quando preciso
muito de dinheiro, vou fazer-me esborrachar o nariz.
- E além disso? Também desejaria saber alguma coisa de ti.
- Não tem interesse. Sou um dos quatro emigrados russos que se não fizeram passar por grão-duques. O meu pai foi uma espécie de jornalista. Também devo ter tido
mãe, no entanto, não me lembro. Não conservo a mínima recordação da Rússia. De tempos a tempos, meu pai ia para a cadeia e mandava-me para casa da irmã dele. Acabou
por sair de lá ainda antes da guerra. Não foi uma fuga. Dormi sempre, no trenó, e depois no comboio. Ficámos depois algum
tempo em Constantinopla, onde vi que o meu pai não me suportava. Começou a bater-me e eu fugi. Passei num barco por Marselha e, mais tarde, fui a Paris. O mais cómico
é que não sabia quantos anos tinha. Julgava ter dezoito e vivia nessa conformidade em face das mulheres e do resto. Foi então que comecei a jogar o box e a pintar.
Depois entrei para a Legião. Cinco anos de grande limpeza em Marrocos. Mais tarde, meu pai reapareceu e deu-me os meus papéis. Descobri então que não tinha senão
treze anos. Fiz o possível por me conservar à tona de água e pintei quadros infectos. Para mim, o grande momento, foi aquele em que vi a escultura de Arzman. Tornei-me
seu aluno. Segui-o até à América. Era o Messias e isto durou alguns anos, até ao instante em que compreendi que a sua obra era uma vigarice. Mas foi a única experiência
má da minha vida. De resto, tudo foi normal. Vira a cabeça mais para a esquerda, se fazes favor.
Doris, com desgosto, virou a cabeça. Era a primeira vez que falava de si, sem desdém, não como de uma pessoa estranha, mas de uma forma séria. Subitamente, disse
em voz ácida:
- com certeza que a escultura é a única coisa que
te interessa, não ?
- Claro. Calou-se.
Passado tempo, observou:
- É pena que tenhamos ambos que falar inglês e
não nas nossas línguas.
- Milaia, dorogaía, devotchka. - respondeu ele,
sem tirar os olhos do trabalho.
- Isso que significa? - preguntou ela, com curiosidade.
Desta vez, ele olhou-a durante muito tempo, antes
de responder. Sorriu, com insolência.
- Mãezinha, estás embriagada. eis o que significa.
Houve uma pausa. O pensamento de Doris afastava-se de Basílio, sem finalidade, para voltar sempre a ele. Enquanto trabalhava, fazendo bolinhas de barro
que, em seguida, colocava com vivacidade, baixara os olhos e parecia dormir.
- Quantos amantes já tiveste? - preguntou bruscamente.
Doris ficou sem fôlego.
- Adivinha.
-Que idade tens?
- Vinte e três. - respondeu um tanto vexada, pois já lho dissera três vezes.
Pareceu fazer cálculos.
- Pobre, sozinha em Nova-Iorque .. Quatro, cinco, seis?
Doris ficou gelada de furor.
- És o oitavo. - disse-lhe num desafio.
Ele ficou subitamente surdo e ela esforçou-se por não chorar. Era absolutamente impossível explicar-lhe que fora o primeiro e o único. Constituía um enorme esforço
viver sempre com ele, escondendo-lhe que o amava. Às vezes, sentia-se tão fatigada daquela vida que mal tinha coragem para continuar. Durante as noites em que, no
Schuhmacher, servia guisados, costeletas de porco, choucroute e salchichas, imaginara, longamente, cenas e diálogos. No fumo dos cigarros e no murmúrio das vozes
discutia muito com um Basílio ausente e teimoso. Dizia-lhe que aquilo assim não podia continuar, devendo ou separar-se ou viverem juntos, regularmente. Embora os
seus anos de Nova-Iorque a tivesse endurecido e formado, ela pensava pelas ideias da sua pequena cidade alemã. Um casal era um ser duplo que, à noite, se senta nos
bancos do jardim, de mãos dadas, que dorme junto e feliz. Mas com o Basílio não havia vida comum: via-se só e tinha frio.
- Que estás a fazer? - preguntou o escultor, perturbado no seu trabalho, visto que ela descera do caixote e caminhava para ele. Tinha a intenção de lhe colocar as
mãos em redor do pescoço e de o beijar, mas, cobarde, voltou para o seu posto, dizendo:
- Tinha a cabeça a andar à roda.
Quási no mesmo instante, um trovão fez estremecer a porta envidraçada.
- Ecco la donna. - disse Basílio sem erguer os
olhos.
Houve um segundo choque surdo contra a porta, depois ela abriu-se bruscamente e, pela estreita abertura, rolou, apareceu uma grande massa pertencente ao sexo feminino:
a Salvatori.
- Ó minha filha, como podes tu viver neste frigorífico? Vais ver que morres gelada! E julgas talvez que a tua voz pode suportar uma coisa destas?
Lançou-se com todo o peso sobre a Doris e a sua mão extraiu, da algibeira do casaco, uma substância preta. Docilmente, Doris abriu a boca e começou a mastigar as
ameixas que lhe davam. Bonci, célebre tenor em 1890, havia conservado a voz, graças às ameixas. Basilio via a cena, com as sobrancelhas erguidas. Â Salvatori andava
à roda dele.
- Você maltrata este anjo! - gritou a professora, num gesto de teatral de súplica. - Explora este anjo e não lhe dá nada em troca! Basta! Venho buscar esta criança
para lhe dar lição. Não temos tempo a perder. É preciso que, daqui a um ano, Doris cante no Metropolitano, tão certo como eu estar aqui. Anda minha filha. - E arrancou
Doris ao seu pedestal.
Inquieta, a rapariga olhou para o escultor; sabia que aqueles dois seres se detestavam e sofria entre ambos. Mas o Basílio já estava ocupado a envolver o trabalho
com o pano úmido. Aquele gesto evocava o que o pai dela executava, cobrindo o canário, todas as noites. Fazia-o com precaução e ternura. Muitas vezes, Doris invejava
o pequeno monte de barro e sentia ciúmes dele.
- Até calha bem.- disse o escultor - Tenho de ir a Long Island. Teria esquecido se V. Ex.a não tivesse tido a amabilidade de nos vir incomodar.
- Que vais fazer a Long Island? - preguntou Doris, muito admirada.
Em vez de responder, Basílio tirou da algibeira uma carta transformada numa bola e deu-lha. Enquanto lia, a Salvatori caminhava sem descanso encostada às paredes,
sacudindo a cabeça para censurar os esboços a
giz que estavam pregados com piunaises. A carta que Doris lia com crescente surpresa era de Juddy Bryant. Em frases elegantes e caligrafia muito alta e ponteaguda,
convidava o sr. Nemiroff a ir na tarde de 4 de Março a Greatneck, afim de, segundo o seu desejo, travar conhecimento com a própria Juddy e com o futuro local da
estátua.
- O Basilio, - exclamou Doris, sem poder respirar- mas não me tinhas dito nada!
- Falámos de coisas mais importantes. - replicou ele, com desdém.
Mas ela não acreditou. Conhecia-o bem e via que estava a desempenhar um papel. Magoava-a intensamente ver-se assim afastada dos seus projectos, pois sabia que importância
ele ligava àquela encomenda.
Disse vivamente:
- Os botões estão metidos na tua camisa branca. Põe o fato castanho.
Esta recomendação era ridícula, pois além da velha calça e do pull-over que tinha vestido, Nemiroff não possuía senão aquele fato. Ela reconheceu que andava de um
lado para outro como uma galinha assustada. De repente, pôs-se a rir.
- Para essa gente, não poderias deixar de ser Trotsky, mas. por exemplo. lord Byron ou o príncipe de Gales? - disse, continuando a rir.
Mas percebeu, com espanto, que Basílio começava a transformar-se.
- Mau. - disse, passando a mão pela cara como se tirasse a máscara - Não conheces os snobs. A dama de Long Island está sequiosa de boémia.
Num gesto de cabeça, deitou os cabelos para trás.
- Palitarei os dentes com as unhas e terei a encomenda. - disse, muito contente.
A Salvatori, impaciente, assistira à cena. E preguntou:
- Então o cavalheiro tem um projecto importante ?
Bruscamente, precipitou para ele a avalanche da
sua carne e cuspiu três vezes por cima do seu ombro. Satisfeita, concluiu:
- Bem, minha filha. Agora podes deixá-lo ir sem inquietação.
E arrastou a rapariga para fora dali.
No atelier do Basílio estava-se a 4 de Março de
1927, mas no andar inferior, na pequena casa da Salvatori vivia-se em 1890. Coroas secas, fitas, apagados retratos de várias celebridades, ornavam as paredes, numa
estranha confusão. Um pequeno piano, ao lado da janela, disputava a um reposteiro de veludo a pouca luz que havia. No limiar, tropeçava-se numa ferradura enterrada
no chão, porque a Salvatori era supersticiosa como uma selvagem. O assento mais bizarro, um poff guarnecido com cogumelos da família "fausse Bronge", ocupava o centro
da sala. Um papagaio embalsamado, chamado Carlota, estava empoleirado nas folhas duma palmeira artificial. Era inconcebível como uma mulher tão gorda como a Salvatori
podia abrir caminho através do caos do seu mobiliário.
Doris, rouca havia algumas semanas, sentiu a garganta ainda mais seca e rebelde quando entrou naquele quarto que parecia não ter sido limpo desde o dia em que a
Salvatori perdera a voz. A velha cantora descalçou os sapatos com um só movimento, enquanto tirava alguns ganchos da farta e sombria cabeleira. Usava, quási sempre,
vestidos vermelhos, e quando se sentava ao piano, parecia um idoso cardial gordo e rabugento. Atacou a nota mais baixa de uma escala. Doris abriu docilmente a boca
e pôs-se a cantar.
Ela tivera sempre uma bonita voz; cantara facilmente e com alegria até ao momento em que a Salvatori a descobrira. Desde então, o canto tornara-se uma coisa infinitamente
penosa, uma tarefa que era difícil cumprir e que principiava a horrorizá-la. A sua própria voz, outrora tão leve e agradável, escondera-se em qualquer parte, no
peito, e recusava-se absolutamente a sair de lá.
Doris fechou os olhos; por tensão nervosa e por concentração, a Salvatori fez o mesmo. A rapariga esforçava-se por fazer ao mesmo tempo tudo quanto lhe pediam. Enchia
de ar o seu diafragma, arredondava a boca, ia procurar o som ao osso da testa, estendia o pescoço, punha a mão sobre o estômago. E então o som devia sair tão simplesmente
como o ar. Mas nada disso acontecia.
A Salvatori, para a aconselhar, empregava as absurdas expressões de que se servem todos os professores de canto:
- O teu ar é uma barra de aço que sustém o som. Supõe que uma barra de aço passa verticalmente na tua garganta e então tens que ir para a frente.
Doris imaginava aquela horrível barra de ferro na garganta.
- O ar é uma coluna de água. Em cima dela baloiça-se uma bolinha redonda que é o som. Sustém! gritava ela -Sustém! Mais para a frente, para cima, para a frente,
mais alto. A ressonância deve estar na cabeça, não te esqueças.
Berrava estas ordens em italiano, porque tinha como princípio, não empregar outro idioma no seu ensino. Considerava o italiano como a única língua do mundo e achava
que todas as outras não passavam de grunhidos de porco. Na sua opinião, quem não conhecesse o italiano não poderia cantar.
Mas os seus gritos entonteciam a aluna. Muito lhe custara a aprender o inglês da América! Depois de quatro anos, ainda fazia erros e agora, esta nova complicação
do italiano vinha embrulhar tudo.
Muito infeliz, murmurava:
- Scusi, signora, scusi.
Tinha as faces a arder e a garganta seca.
A Salvatori transpirava duma forma terrível; a sua atravancada casa estava sempre demasiado aquecida.
Num gesto dramático, abriu o roupão de cardial e colocou a mão de Doris na vasta superfície do seu estômago. com surpresa e bastante relutância, ela sentiu aquele
estômago a encher-se de ar, pondo-se a vibrar,
enquanto a cantora exalava três notas altas, poderosas e longas.
Depois das escalas veio o solfejo e, em seguida, uma canção com letra italiana. Nesse momento, Doris renunciou a pensar no que estava fazendo. De resto, havia já
algum tempo que o seu pensamento abandonara o canto para acompanhar Basílio. Seguia-o até à estação de Pensilvânia e depois acompanhava-o no comboio cheio. Como
não assistira à partida, não sabia se era preciso vê-lo com o sobretudo e o chapéu. Inquietava-se por ele, como se fosse uma criança. Mas a sua imaginação recusou-lhe
qualquer auxilio quando se tornou necessário assistir à confrontação entre o escultor e aquela Juddy Bryant. i Estava à beira da cadeira, tendo na mão, uma chávena
de chá? "Ridículo. - pensou concretamente-Deve estar deitado no divã com os pés em cima da mesa." De súbito, teve ciúmes de Mrs. Bryant.
- O cara mia - cantava nesse instante, esquecendo completamente o que estava a fazer.
- Bravo! - gritou a Salvatori, virando-se no banco giratório.-Até que enfim! Bem. Bravíssimo! Outra vez.
O bis não deu nada.
- Já não posso mais! - gemeu Doris que sentia a garganta impossibilitada de exprimir o mínimo som. A Salvatori não fez nenhuma cena, como era de prever. Ficou muito
calma no seu banco, olhando-a distraída. Chegou mesmo a fechar o roupão e a calçar os sapatos.
Em tom suplicante, preguntou-lhe em inglês:
- Oiça, minha filha, responda ao que lhe vou preguntar. Mas sinceramente, £ Está convencida de que há-de ser, um dia, uma grande cantora?
- Não sei. - respondeu Doris, intimidada - Isto cada vez está pior. Na minha terra, na Alemanha, lá na escola, eu subia até ao si. e agora nem sequer chego ao lá.
- Minha filha, eu dou-lhe lições de graça. Isto significa que acredito firmemente em si, mas bem sei o que a perde: aquele homem, aquele demónio do escultor. Acabe
com isso; despedaçar-lhe-á o coração mas
é o melhor que tem a fazer. Sabe o que me disse um dia o grande Chimani ? Salvatorí,-disse ele-ninguém se torna célebre no circo, se não tiver partido os ossos.
Ninguém se torna célebre na ópera, se não tiver partido o coração.
- Mas eu.-quis interromper Doris, que ficava aflita quando a Salvatori se tornava ainda mais patética do que de costume.
A velha cantora continuou:
- O seu indigno ofício é a sua segunda desgraça. O fumo. Os restos de comida. Pouco sono. A vulgaridade do meio. Não, minha filha, é preciso renunciar a tudo isso
e então tornar-te-ás uma grande cantora. E então, a Salvatori será largamente compensada de tudo que fez por ti.
Por experiência, Doris sabia que as razões lógicas não exerciam nenhuma influência sobre a professora. No entanto, ainda fez a tentativa e preguntou friamente:
- E de que viverei então ?
A cantora fez um grande gesto.
- E de que vivem outras artistas nesta grande cidade? De que vivi eu, na minha mocidade, e todas as outras, a Toscani, a Bossi, a Gíottina? Quando há talento, encontra-se
sempre um protector. És nova e suficientemente bonita, minha filha.
Doris respondeu à inacabada frase com o bom senso que pusera na pregunta.
- Talvez ache isto ridículo, minha senhora. Mas não posso. Isso não é para mim.
A Salvatori olhou-a durante um momento em ar meditativo, depois encolheu os ombros e voltou-se para o piano. Em italiano, disse:
-A virtude é um grande luxo. Tu é que sabes se o podes ter. Vamos lá outra vez à canção.
Doris lançou um olhar aflito para o seu relógio de pulso. Entretanto caíra o crepúsculo. Apercebia apenas a silhueta dos ombros da professora e o seu vasto rosto
não passava de uma nódoa branca na escuridão.
Doris sacudiu-se e murmurou:
- Já não tenho tempo.
Na verdade, tinha sempre medo da Salvatori, que à força, queria fazer dela uma cantora célebre. A professora fez inchar as narinas e produziu uma pequena explosão
de ar, um "pah" cheio de desprezo.
Em tom sarcástico, exclamou:
- Porco assado! Choucroute. Não sou eu que a obrigo a cantar, minha filha, não sou eu.
Quando Doris, agradecendo-lhe, se preparou para sair, ainda lhe lançou uma injúria:
- For la cuoca!-traduzindo logo a seguir: - O teu lugar é na cozinha!
A rapariga contentou-se em agradecer e fugiu. Na escada, começou por retomar o fôlego, limpar a garganta e tossir. Depois correu ao estúdio de Basílio.
Ainda tinha tempo antes de retomar o serviço no Schuhmacher. Se havia terminado assim bruscamente a lição de canto, era porque sentira a irresistível necessidade
de se encontrar só durante alguns minutos, no atelier, antes de vestir o seu uniforme e servir os esfomeados burgueses. Aquele aposento, apesar da sua nudez, dava-lhe
sempre a impressão de uma pátria. Era a única que possuía, desde que abandonara a Alemanha. Entrou; a porta envidraçada nunca se fechava. Acendeu a luz e olhou em
redor.
Às vezes, Basilio deixava um bilhete para ela: uma saudação, uma ordem, ou apenas um dos seus absurdos gracejos. Enquanto estivera a cantar conservara sempre a esperança
que lá em cima estaria qualquer coisa escrita, à sua espera. Mas não havia nada. Dirigiu-se para a cama de ferro e ficou um instante a olhá-la. Parecia-lhe que o
escultor nunca estivera tão longe de si. Uma nova visão, era-lhe agora apresentada pelo ciúme: na casa elegante, ele conversava com uma senhora elegante. Como verdadeira
apaixonada, não concebia que se pudesse conhecer Basílio sem o amar. Levantou a colcha e deitou-se na cama. Julgou que isso bastaria para a fazer chorar, o que lhe
agradaria imenso. Sentia acumular dentro de si, a queimá-la, tudo que fora obrigada a esconder. Mas mesmo encontrando-se sobre a almofada dele, retendo a resplração
à procura de um aroma ou de uma recordação, nem assim as lágrimas surgiram. Esforçou-se mas em vão. Por fim, riu-se de si própria e levantou-se para arrumar, pois
o escultor, deixava sempre tudo em desalinho. Olhou para o relógio. E pensou: "No fundo, sou feliz. Mais vale um amor sem esperança do que não sentir nada. Lembrou-se
do vácuo absoluto da sua existência antes da chegada dele. Agora tinha a vida cheia, quási a rebentar.
Arrancou uma folha do bloco e escreveu nela: "Fechei a janela. Boa-noite. Há queijo na varanda". Depois hesitou, acabando por traçar à pressa; "Se me quiseres ver,
deixa a luz acesa". Releu, corou, riscou a última frase, apagou a luz e foi para o restaurante.
Passados quinze dias, numa noite em que havia muito nevoeiro e se ouviam as sereias dos barcos, Bryant Júnior dirigiu-se para o Schuhmacher.
- Pode ir comer ali ao canto e esperar por mim aqui, Perkins. - disse ao motorista.
Depois de uma hesitação, entrou resolutamente.
O restaurante compunha-se de uma vasta sala, dividida em pequenos compartimentos, com algumas mesas ao centro. Estava instalado num estilo muito alemão de 1880,
com bilhas de grés sobre as prateleiras e, nas paredes, cabeças de veado e provérbios em letra gótica. O fumo dos cigarros formava uma espessa nuvem de fumo sob
o tecto e cheirava a cerveja, se bem que tal bebida fosse proibida pela lei seca.
Um pouco intimidado com aquele aspecto pobre, Júnior procurou um lugar. Parecia que toda a gente se conhecia e, por cima das bocas cheias de comida, todos os olhos
o inspeccionavam discretamente. Um homem gordo, que tinha uma casaca cheia de lustro, o sr. Schuhmacher em pessoa, indicou-lhe um dos compartimentos.
Esgotado, Bryant olhou para a ementa que o patrão lhe estendia.
É preciso dizer que a aparição de Júnior naquele estranho lugar, era a humilhante conclusão de algumas semanas de luta interior. Ele próprio confessava que "não
podia tirar miss Hart da cabeça". Milhares de vezes mandara para o diabo a sua maldita nudez. Embriagara-se e procurara em várias noites de estúrdia o esquecimento
junto de outras mulheres. Mas era o mesmo que nada! Miss Hart tirava-lhe o apetite de tudo. Nem mesmo tinha agora prazer em fumar.
iEntão porque não viera mais cedo ver a rapariga? Não sabia. Antipatizava com ela. Tinha-lhe medo. Possuía uma forma bizarra de ser impudica e irreverente: o facto
de ele ser filho de Bryant Sénior não lhe causava a mínima impressão. Talvez que, no seu meio de anarquistas desconhecessem a importância de tal nome.
E ei-lo agora sentado num mal arejado estabelecimento da vigésima sexta avenida, examinando uma ementa cheia de nódoas e esperando, com as mãos e os joelhos a tremer,
a chegada da maldita criatura.
Pelo seu lado, o sr. Schuhmacher estava nervoso. Na cave, oficialmente reservada ao chinquilho, havia um balcão clandestino onde se vendia cerveja, e a presença
de um desconhecido podia ser de mau agouro. Talvez fosse um polícia, um enviado de qualquer grupo ou simplesmente um indivíduo que viesse espiar por conta própria.
- Dora! - disse ele, em voz baixa, à rapariga que pedia qualquer coisa na direcção da cozinha - Toma sentido no tipo do número três. Não tem o ar koschet (x).
O dono do restaurante falava o mau alemão dos americanos, misturando o inglês e o yiddisch.
Doris fez um gesto de cabeça, indiferente, pegou nos pratos que lhe passaram pelo guichet, assinou a
(x) Puro (yiddisch).
ficha e, com o pé, abriu a porta da sala. Também ela estava nervosa. Havia algum tempo que Basílio andava de execrável humor. Trabalhava como um doido durante horas,
para depois destruir o que fizera. Agora tudo se passava entre eles como se apenas tivesse existido sempre uma camaradagem longínqua e frágil. Além disso, havia
dois dias que se tornara invisível. A porta envidraçada do estúdio estava fechada: excluíra dali Doris sem lhe dar a mínima explicação. Os comentários da Salvatori,
a tal respeito, eram extremamente desagradáveis de ouvir. Um vizinho de Doris fora atrevido e as ruas por onde passava, haviam-lhe parecido hostis e ameaçadoras,
no nevoeiro. As vezes, tinha a impressão de que todos os prédios de Nova-Iorque se inclinavam para ela no intuito de a esmagar.
Colocou os alimentos diante dos clientes, fazendo o possível por se não enganar. Momentos antes, o patrão fizera-lhe uma cena porque se esquecera de meter o queijo
numa conta. Embora tivesse pago o pedaço de queijo, tal incidente provocara infinitos discursos e a atmosfera estava tensa.
- Ah! É frango assado e queria lombo de carneiro? Não faz mal?
Arvorou o seu sorriso de criada, colocou à mão do cliente o sal, a pimenta e a mostarda e dirigiu-se para a mesa número três. Da cave subiu uma gargalhada peculiar
aos homens bêbados.
- O senhor que deseja?- preguntou, entrando na espécie de frisa.
E só então reconheceu Bryant.
- Oh! - disse.
Percebera logo que viera para a ver, mas não sabia que atitude tomar. Quantas vezes, naqueles dias de amargura se imaginara a ir ter com ele para falarem acerca
do Basílio. E ele ali estava, ainda mais novo e mais belo do que ela se lembrava, mas ainda mais mole e inerte. Aquele homem parecia uma dália tombada. Um frasco
de whisky abarrotava-lhe a algibeira e a mão que segurava na ementa, tremia.
- Ah, bom. - disse ele, apaziguado - Tinha receio que já cá não estivesse. Preciso de lhe falar.
- Já escolheu ? - preguntou ela, incitada pelo Schuhmacher, que não tirava os olhos do novo cliente.
- Traga o que quiser. Oiça, não pode ficar aqui enquanto como ?
- Filetes de vitela? - propôs ela - Entre os pratos alemães, os verdadeiros americanos em geral, escolhem esta preparação neutra.
- Sim, está bem - replicou. Depois seguiu-a com os olhos, enquanto ela se afastava.
Tinha uma espécie de uniforme: saia larga e curta e um grosso avental. Sentiu-se fraco depois deste primeiro contacto e bebeu um golo de "whisky, do frasco que parecia
uma cigarreira. A rapariga voltou com a travessa. Queria ir-se embora, mas ele reteve-a pela saia.
-Fique. Sente-se ao pé de mim! - ordenou, impaciente.
- Não posso. - respondeu ela, mas ficou ali em pé, com as mãos nas algibeiras do avental. Tinha um ar insolente que significava mais ou menos isto: "Então e agora"?
- Êsse Nemiroff continua a ser seu amigo ? Ela encolheu os ombros.
- Há bom tempo que o não vejo.
Antes de poder manifestar a sua satisfação, já ela estava longe.
Enquanto esperava a comida em frente do guichet da cozinha, Doris preguntava a si própria o que significaria tal visita. Havia muito tempo, uma eternidade, que não
via Basilio: dois dias. Habituara-se um pouco à ideia de que a nova atitude do escultor era devida à sr.a Bryant. Talvez gostasse dela. Verdade seja que, da última
vez em que ela posara, lhe declarara que desejava ser Inquisidor-Mor de Espanha - e daí vinha a sua glacial atitude. Mas esta vã brincadeira não lhe matava o ciúme.
E agora eis ali o sr. Bryant sentado à mesa três, a comer!
- Menina! - gritou ele, numa voz que se ouviu em toda a sala.
O sr. Schuhmacher indicou-lhe severamente a mesa três.
- Oiça, não me deixe aqui sozinho!
A garrafa de whisky estava sobre a mesa, mal escondida pelo guardanapo. Em voz lamurienta, disse:
- Olhe que vim cá só por sua causa!
- E então ? - preguntou Doris, com secura.
- Então. - respondeu, fixando as mãos que ela poisava sobre o avental - quero-a e você bem o sabe.
Doris sorriu, ironicamente.
- Mais nada? - preguntou, levando o prato meio cheio.
Ao ver que ela se ia embora disse uma coisa para a reter:
- O seu amigo portou-se de uma forma estranha, em minha casa.
- Porquê?-preguntou Doris, num impulso.
- Fartou-se de proclamar ideias revolucionárias, insultou minha mulher, chamou ao meu pai "explorador reaccionário". A minha mulher desmaiou e o meu pai quási que
o expulsou de casa.
- Mas nós que temos que ver com isso?-preguntou Doris, que tremia de satisfação, ao ver o Basílio a revolucionar a casa dos milionários.
Ele notou:
- Foi muito gentil, dizendo "nós".
Sentiu que acabara de fazer uma observação particularmente brilhante e, nesse momento, contentou-se com ela.
- Sobremesa?
- An? O quê? Ah, sim, pois não.-balbuciouDoce de queijo.
E ficou outra vez só.
Doris afastava-se como se tivesse asas. Que bom não haver nenhuma sr.a Bryant por trás da transformação de Basílio. Na cozinha, pegou no doce de queijo e no café
e voltou para a mesa três. Mas nesse percurso perdeu o impulso que a entusiasmara. Mas se não era aquela mulher, quem ou o que era
que, cada vez mais, afastava o escultor? Chegada à mesa, preguntou:
- Então já não pensam na encomenda?
- A minha mulher não quere ouvir falar nele. Eu, ainda não desisti. Mas isso depende de diversas coisas.
- De que coisas? - preguntou ela, rapidamente. Ele replicou, com a mesma pressa.
- De si.
- Isso é ridículo! - disse, encaminhando-se para a mesa oito, donde a chamavam.
Bryant Júnior possuía uma certa tendência para o humorismo. com o seu espírito um pouco lento e adormecido, era capaz de descobrir o lado cómico das coisas. Ora
a sua situação tornara-se cómica: encontrava-se num restaurante alemão, comia uma carne resistente e um doce com cebo - tudo isso para fazer a corte a uma criada.
Quis exagerar e desatou a encomendar mais coisas, para obrigar a rapariga a ocupar-se dele, continuando a conversa interrompida. Pediu gruyèe, depois outra chávena
de café, mandou vir uma salada em que não tocou e acabou por se ver à frente de três garrafas de água mineral onde despejou quási toda a garrafa de whisky. Esta
bebida dava-lhe duas qualidades que, em tempo normal, lhe faltavam: vivacidade e perseverança.
Ao fim de duas horas e seis copos, Doris começou a achá-lo simpático. Na sua leve embriaguez, tinha qualquer coisa de tímido e de boa pessoa que o tornavam agradável.
Mas à medida que a noite avançava e a conta de Bryant aumentava, Doris estava cada vez mais fatigada. Havia semanas que não dormia o suficiente e as pálpebras ardiam-lhe.
Foi duas vezes ao ignóbil lavatório que estava ao fim do corredor da cozinha e passou um lenço umido pelos olhos para os impedir de chorar, depois voltou para o
seu posto, servindo o inexorável Bryant e ouvindo as suas peremptórias afirmações. Ele via-a agora através das nuvens de whisky e cada vez lhe parecia mais bela
e desejável. Mostrava-se menos retraída, não por sua causa mas devido a Basílio.
Se pudesse correr para ele e dizer-lhe que ela, só ela é que tinha conseguido a encomenda! Teve que interromper este sonho para afastar das suas ancas as mãos de
Bryant.
- Tenho-te no sangue. - murmurava ele, com obstinada teimosia.
O sr. Schuhmacher lançava olhares severos e nada aprovadores para a mesa três. É claro que vendia cerveja de contrabando, mas o seu estabelecimento era uma casa
honesta onde não tolerava semelhantes inconveniências.
Doris corria para a cozinha e voltava para a sala. Foi nesse momento que chegou a segunda fornada de clientes, os que vinham dos teatros, dos cinemas e dos concertos.
A maior parte era constituída por alemães, pessoas modestas mas ávidas de cultura, gostando muito de assistir a reuniões ou conferências, e indo depois ali, comer
um pão com salchicha. À meia noite, Doris estava, em geral, completamente rouca, tendo cãibras na nuca e nos ombros. Continuava a servir, mergulhada no fumo azul
dos cigarros baratos, e os seus gestos tornavam-se cada vez mais automáticos. Lembrava-se da Salvatori e, vagamente, pensava que ela tinha razão: não se podia ter
voz de dia, quando se era criada de restaurante, de noite. Mas não ligava àquilo grande importância, tendo tido vontade de deixar o canto - esse pueril sonho em
que não acreditava grandemente, desejando fazer qualquer outra coisa. Mas não sabia o que havia de ser.
Quási se esquecera de que Bryant estava na mesa três, quando o ouviu chamar através de toda a sala!
- Menina, a conta!
Quando chegou junto dele, disse de mau humor:
- Francamente, não posso ficar toda a noite a comer, i Então o seu serviço quando termina?
- Quando os últimos clientes se forem embora. Tendo certa compaixão de si própria, acrescentou: As vezes são duas da manhã.
- Pois então divirta-se muito. - resmungou ele. Depois pagou e saiu. Não deixou gorjeta, o que
a irritou, lisongeando-a. Nunca julgou que ele teria tanto tacto.
Quando, passada uma hora, se encontrou na rua, o nevoeiro estrangulava a cidade. Os carros e as pessoas não passavam de sombras mascaradas e os candeeiros das ruas
não iluminavam. O regresso, de noite, era sempre um grande problema para a rapariga. Quando perdia o último 1 tinha que esperar, ao canto da rua, a chegada de um
autobus atrazado, que recolhia os retardatários. Às vezes, fazia um esforço e ia a pé, com os ombros a doer e a cabeça pesada, ao longo dos trinta quarteirões que
a separavam de casa. Logo no princípio, houvera duas noites inesquecíveis em que Basilio a viera buscar, de táxi. Hoje, semelhante coisa parecia inverosímil, só
podendo acontecer por milagre-tanto sob o ponto de vista do dinheiro como dos sentimentos.
Quando chegou à esquina, um carro que a seguira silenciosamente, no nevoeiro, parou junto de si.
- vou levá-la a casa. - disse Bryant.
Não era uma pregunta, mas uma ordem. Doris achou graça. Estava demasiadamente cansada para contradizer e aceitou com gratidão. O homem descera; ajudou-a a subir,
conservando o chapéu na mão. Foi um pequeno gesto de cortesia que influiu em tudo que se seguiu.
Ele estava agora completamente lúcido e razoável. Deu-lhe um cigarro que ela começou a fumar com vivacidade e não a tomou nos braços, como ela temera.
- Observei-a durante toda a noite. Leva uma vida de cão. Porque não muda? Deix"-me proceder e terá a existência que lhe convém.
Em voz fraca, replicou com uma nova mentira, pois nenhum homem rico se aproximara dela; enquanto que este representava milhões:
- Se o tivesse querido, não teria necessidade de esperar por si.
Colérico, Bryant gritou:
- Mas eu não pedi nenhuma compensação! Estava furioso por fazer tanta cerimónia com uma criada.
Prosseguiu:
- Todos os homens têm as suas pequenas fraquezas. Gostaria bem que você. Quero dizer que, se tiver vontade de ser minha, será magnífico. Mas não me venderá nada
e eu nada comprarei. Percebe?
- Não.
Bryant suspirou profundamente. Sabia que nunca poderia exprimir-se com tanta felicidade e precisão como acabara de o fazer. Procurou a mão da rapariga e encontrou-a
a seu lado, colocada sobre o frio couro. Mão bastante mole, grande, de calosas extremidades. Reteve solidamente aquela mão estranha e pôs o outro braço sobre a sua
nuca. Ela não se mexeu; achou mesmo que aquele pequeno contacto amigável, que tinha certa ternura, a acalmava. Qualquer coisa que estivera muito tempo violentamente
crispada, dentro de si, amolecia.
Bryant tentou uma nova directriz:
- Não me disse que desejava ser cantora de Ópera? Falemos nisso.
- Cantora? - repetiu ela, incerta - Acho que vou renunciar. Estou sempre rouca. Parece-me que a minha voz não pode suportar certas coisas.
- Eu poderia fazê-la entrar para o teatro. com o seu belo corpo, seria uma esplêndida figurante de revista.
- Não, obrigada. Nunca poderia mostrar-me tão pouco vestida.
- Calculei isso mesmo. - disse ainda Bryant Depois calou-se.
Perkins guiava com todo o cuidado entre duas paredes de nevoeiro. Apurava o ouvido. O advogado Vanderfeld comprava-lhe pequenos esclarecimentos interessantes. Parou
em frente da casa da quinquagésima sexta rua e ficou à espera de ver o patrão lá entrar com a rapariga. Mas eles permaneceram ainda um minuto, mudos, no fundo do
carro.
- Está a dormir? - preguntou Bryant. Doris exagerou o seu bocejo e respondeu:
- Ainda mo pregunta?
- Não falamos ainda no essencial. - disse ele, seguindo-a na estreita porta da escada.
- Em quê? - preguntou ela, cessando de procurar a fechadura, com a chave.
- Eu preciso de resolver, em breve, se a estátua deve ser ou não encomendada.- disse ele, com rapidez, insistindo muito levemente no eu.
Doris fez uma tentativa para ser garrida. Mas no era fácil. Em Bingsheim, donde viera, aquilo não se aprendia; nem lá nem nas agências de colocações de Nova-Iorque.
- Estou persuadida de que o fará. - disse, erguendo os olhos, com um sorriso significativo.
Ele era tão alto como Basílio, mas maciço e mal feito.
- Sabe que acaba de me fazer uma promessa? exclamou, radiante.
Doris reteve o seu sorriso, fixando-o como se fosse de madeira. Bryant inclinou-se para ela. A sua boca exalava um amargo aroma a fumo e a whisky, mas o beijo que
lhe deu parecia-se com outros.
Deitada na sua cama, admirava-se ainda por os seus lábios terem sentido prazer com uma coisa que o seu coração detestava.
Nemiroff estendeu uma toalha ao último cliente. O homem embriagado estava ainda espapaçado na cadeira como um boxer vencido. O último cliente limpou as mãos, deitou
uma moeda no cinzeiro que o convidava a essa liberalidade; Nemiroff pegou no embriagado debaixo do braço e, reconfortando-o com discursos, levou-o para fora do lavabo.
Atrás deles não ficavam senão as porcarias deixadas por aqueles visitantes da última hora, no subsolo do "Casino de Paris".
Nemiroff assobiou a canção da moda que lhe chegara havia instantes, da sala de baile, através do tecto. Agora, a orquestra calava-se definitivamente e já não era
sem tempo. No Casino de Paris esperava-se sempre pelas quatro da manhã para mandar embora os clientes.
Nemiroff tirou, com lentidão, o seu casaco branco. Era a farda pertencente a um preto, visto que a guarda do lavabo, para homens, estava geralmente confiada a um
negro. Nemiroff pensou: "E então? Se é preciso viver." No alto da escada, o Gastão abriu a porta e disse:
- Acabado por hoje.
- Obrigado. Boa noite. - replicou o escultor. Gastão, o maitre-dhotel, simpatizava com ele porque podiam ambos falar francês.
A porta fechou-se como a tampa de uma caixa. Em baixo, entre tantos mármores, metais e ventiladores, o ar estava ignóbil. Nemiroff, sem contar, deitou para dentro
da algibeira as gorjetas que estavam no cinzeiro. Aquele dinheiro parecia-lhe ainda mais sujo do que o usual.
Na rua parou, respirando fundo. O primeiro amargor da primavera pairava já pelo ar. Em qualquer parte, nas montanhas, a neve derretia-se, as primeiras avalanches
precipitavam-se nos abismos. Começou a entoar uma canção russa, que os soldados cantavam na Legião. Às vezes, sentia a nostalgia dos anos, de suores e de tormentos
passados em Marrocos. Um gigantesco animal cinzento virou a esquina e parou na sua frente. Basílio tinha firmado um pacto amigável com o motorista da varredora municipal
e esse monstruoso veículo, todas as noites, o fazia poupar alguns passos. Nemiroff pagava ao companheiro, contando-lhe histórias. O homem tinha sempre medo de adormecer;
não havia meio de se habituar ao serviço de noite. Enquanto Nemiroff conversava, a seu lado, tinha os olhos abertos.
A partir da esquina da quadragésima rua, Nemiroff retomava o seu caminho, a pé. A passos lentos, desceu
a quinta avenida, indo cada vez mais devagar, à medida que se aproximava da quinquagésima sexta rua. Entabolou uma conversa, absolutamente vã, com o polícia da esquina
seguinte. Havia um mês aproximadamente que tinha a sua situação subterrânea no Casino de Paris e, desde então, tomara conhecimento com as outras aves nocturnas que
povoavam o seu caminho.
- Como está o teu filho ? - preguntou ao pai do pequeno que se encontrava com bexigas.
Depois, disse ainda:
- Amanhã deve estar calor. - e acrescentou: Lembranças ao Jimmy Walker.
Parecia ter medo de voltar a casa. Receava ver o estádio cheio de esboços a secar e a esboroar-se lentamente. Tinha medo de si próprio e dos actos irresponsáveis
que era capaz de cometer, quando se não dominava. Abriu a porta e subiu a escada retendo a respiração. No segundo andar, em face do alfaiate Dostal, hesitou. Era
ali que Doris habitava. Era ali que ela estava a dormir. Precisou de fazer um terrível esforço para se afastar. Cerrou os punhos, aspirou o ar por entre os dentes
unidos e continuou a subida nas trevas. Diante da porta do estúdio encontrou, como sempre, o gato Minka. Reconhecido, agarrou no pequeno novelo quente e levou-o
consigo. Mal se deitou, com o gato a ronronar sobre o seu peito, logo compreendeu que, mais uma vez, não havia meio de dormir. Levantou-se, andou de um lado para
outro e depois acendeu a crua luz que estava sobre o barro. Pôs-se a trabalhar.
Havia quinze dias que não via Doris. Trabalhava de cor. Às vezes, pensava que era ainda pior, tê-la real e nua, na sua frente. Numa palavra: amava a rapariga e detestava-a
por causa disso. Dizia a si próprio: "ando sobre brasas". O amor, esse exagero fora de moda, das velhas gerações, não fazia parte do seu programa. Desejava criar,
permanecendo frio e abstracto, sem ser perturbado por aqueles eflúvios de calor. Em Marrocos, afundara-se, até aos joelhos, em porcaria, com as mulheres das casas
de Marrakech. Adquirira
por isso uma casca espessa, uma dura camada de cinismo. E ia agora perder isso tudo por causa de uma rapariguita como a Doris! Competia-lhe a ele mantê-la a distância.
Ela tinha entoações e palavras que prendiam. Por exemplo, a palavra eternamente, proferia-a com inocência, como se entre homem e mulher pudesse existir qualquer
coisa eterna. Lembrava-se do prudente e velho sargento Deloup que dizia: "Meus filhos, não se deixem nunca prender por uma mulher a quem não paguem. Uma que se dá
por dez escudos atrás da grade do quartel é muito melhor do que aquela que se dá por coisa nenhuma". Deloup casara e fora morto pouco depois; com a cabeça aberta
deslizara pelo rio abaixo, em cujas margens os seus homens se esforçavam por se manter. Nemiroff sentia ainda a água gelada da torrente subir-lhe até aos ombros
e o cheiro da pólvora picar-lhe as narinas.
Estava em pé defronte do trabalho começado e lançava-lhe um olhar de ódio. Não via o barro. Só via Doris. Os seus olhos encontravam-na por toda a parte e sempre.
Encontrava a sua imagem nas paredes do lavabo, no Casino de Paris; povoava-lhe impudentemente os sonhos e quando fechava as pálpebras, ela estava lá dentro. com
o rosto crispado, fazia projectos que iam contra a sua vontade.
Já pudera pagar o aluguer e a luz. Em breve poderia desempenhar o fato azul, o sobretudo e o samovar. Em breve, poderia renunciar à sua ocupação tão baixa e trabalhar
para si durante todo o dia, em vez de desprezar a luz do dia, dormindo como um porco. Então -e mal o confessava a si próprio-a Dorochka viria, outra vez, para junto
dele. Num gesto raivoso, amassou dois seios volumosos e colocou-os muito alto, no peito estilizado da estátua. Aquilo foi pior do que se tivesse gritado o seu segredo.
Precipitou-se para a estátua e as mãos fizeram da argila úmida uma informe massa que deitou ao chão. O Minka aproximou-se, de ar interessado, tateou com uma pata
cautelosa o resultado da catástrofe, e foi-se embora, desiludido.
Doris acordara no momento em que a porta da rua se abrira. Sentou-se, sem fazer barulho, na cama, e apurou o ouvido. Partilhava o quarto com uma joven norueguesa,
Borghild Gimlar, massagista. Ouviu a respiração sonora e regular da rapariga que estava noiva de um rapaz que trabalhava numa fábrica de calçado. Aquela podia dormir
sossegada.
Reteve a respiração para ouvir melhor. Perdeu o barulho dos passos e depois conseguiu perceber que abria e fechava a porta envidraçada do atelier. Na cave, os gémeos
romenos estavam a chorar. Aquele estreito prédio, próximo da East-River encontrava-se cheio de discretos gemidos que nem de noite se calavam. Havia apenas uma família
americana, os antigos proprietários da pequena queijaria da rua. Todos os outros haviam vindo de fora, com as suas bagagens, as suas preocupações, o idioma e as
canções das suas pátrias, um cheiro particular e a cozinha nacional. Uma casa de Eastside, mil casas de Eastside, cheias até aos telhados pela nostalgia, a angústia
e a insensata coragem dos emigrados de Nova-Iorque.
Doris não sabia se tornara a adormecer mas, de repente, encontrou-se absolutamente acordada. Na parede fronteira à sua janela, reflectia-se a luz viva do atelier
de Basílio.
O coração da rapariga começou a bater com força e regularidade. Outrora, aquela luz servia-lhe de sinal amoroso. "Vem", chamava ela. Na sua sonolência, parecia-lhe
que as semanas que a separavam dessa época, nunca tinham existido. Levantou-se às escuras, procurou o vestido e meteu-se dentro. A fazenda deu-lhe uma sensação de
frescura e de despertar. Pôs os sapatos. A Borghild virou-se na cama, e deu um suspiro. Doris abriu a porta, com precaução, e saiu.
Era barato aquele quarto, mas tinha um pequeno inconveniente; estava separado da escada pela sala de prova, do alfaiate. Da rua, vinha a fraca luz do candeeiro,
que docemente iluminava um manequim preto, de seio provocante. Cheirava a pano. A máquina de costura cintilou um instante. Em baixo, os gémeos romenos continuavam a chorar.
Doris chegou à porta envidraçada como se tivesse efectuado uma longa e perigosa viagem. A luz estava acesa e o Basílio dava grandes passadas, de um lado para outro.
Durante um instante de sonho, pareceu-lhe ouvir o relógio da sua aldeia dar as três e um quarto. Empurrou a porta, que se encontrava aberta.
- Que vens cá fazer? -preguntou Basílio, lançando-lhe um olhar mau, como a um indesejável fantasma.
- Vi a luz. pensei que talvez precisasses de mim. - balbuciou ela, intimidada.
- Precisasse de ti? Para quê?
Doris viu o monte de barro que ele deitara ao chão e, no cavalete, o triste esqueleto de arame que devia aguentar a estátua.
- Para trabalhar.- replicou, após o silêncio de um segundo.
Ele não respondeu. Inclinou-se, apanhou o barro e, apressado, colocou-o outra vez em cima do arame. Ela pensou: "Está morto de cansaço!"
- Bem. Então vamos lá trabalhar, Mas para quê, não me dirás?
Ela aproximou-se. Sentia as mãos cheias de bolhas de ternura mas não sabia como se desembaraçar delas. Esboçou o gesto de tirar o vestido pela cabeça.
- Que estás a fazer?-berrou o escultor, voltando-se bruscamente para ela. Depois com severidade:
- Basta de comédia.
E deixou cair os braços. O vestido descia agora em pregas irregulares. E ela não sabia senão murmurar:
- Julguei que precisavas de mim!
Basílio deu vários passos para cá e para lá. Cada vez que passava pelo cavalete, empancava nele com o pé.
- Bem.- disse por fim - Trabalhemos, então. Aproximou-se dela, auxiliou-a, delicadamente, a tirar
o vestido, depois ajudou-a, com um gesto habitual, quando subiu para o caixote. Antes de começar, beijou-lhe a mão. Mais tarde, quando ela começou a
ficar com os membros entorpecidos, deu-lhes beliscões e pequenas palmadas, como um modelo profissional. Foi este o primeiro ruído que, passado muito tempo, se ouviu
no estúdio. Sob as mãos de Basílio, o barro acumulou-se primeiro em grandes pedaços indistintos, depois começou lentamente a tomar forma e expressão. Então ouviram
passar cavalos na rua - a primeira carroça do leite. Nem parecia estarem em Nova-Iorque.
O rosto do escultor encontrava-se cheio de sombras e de buracos; só a testa era uma grande superfície, luminosa de transpiração.
- Estás cansado ? - preguntou Doris, quando deixou tombar os braços, afastando-se do trabalho, sem mesmo olhar para ele.
- Um pouco.- respondeu Basílio, abstracto.
- Faço chá?
Pegou no chaile de cachemira que ainda estava no chão, como se ela lá tivesse estado na véspera, e desceu do caixote. Só então reparou que o samovar desaparecera.
- Onde está o Pouchkine? - preguntou, a rir, dizendo o nome familiar do objecto.
- Gravemente enfermo. Resultado fatal, quási inevitável. - replicou, preguiçosamente, o artista.
Estava deitado na cama, protegendo o rosto com as mãos. Durante um instante, aquilo correu como ao princípio. Doris ajoelhou junto da cama e Basílio não se moveu.
- Porque motivo tudo está tão diferente? - preguntou ela, em voz queixosa.
- Tão diferente, como? - interrogou ele, por sua vez, no tom de um homem que tem resposta para tudo e não responde nada.
Ela pensou, sem o dizer: "Tão triste!" Conseguiu murmurar:
- Antigamente, julgava que nos amávamos.
Ele fez um gesto impaciente e disse como se fosse uma sentença definitiva:
- Na nossa geração não há amor.
Ela percebeu a entoação pueril destas palavras e acariciou-lhe meigamente o cabelo, dando-lhe a ele a impressão de ter mais idade e experiência.
E preguntou ainda:
- Porquê?
Mas não obteve resposta. Fixou na memória a sua silhueta tal como a tinha na frente: alta, com os ombros direitos e largos, sob o pull-over no fio. Esforçando-se
por rasgar o véu de melancolia que os cobria, ela interrogou:
- Lembras-te como isto começou?
- Tropecei em ti na escada, às escuras. - respondeu ele, docilmente, sorrindo de olhos fechados.
- Eu tinha o meu vestido encarnado e tu estavas molhado de neve.
Levantou-se e, em vão, procurou cigarros por todos os lados. Encontrou um ramo de flores, completamente murcho, numa chávena de chá; contemplou-o sonhadoramente
durante momentos, como se ele pudesse esclarecê-la. Depois voltou ao seu ponto de partida e preguntou com energia, ao mesmo tempo que sorria de modo a dar coragem:
- i Afinal que se passa entre nós?
- Um mal-entendido. - explicou ele, erguendo-se, mas não saindo da escuridão do canto, onde ela lhe não podia divisar bem as feições - Tu não podes ser para mim
senão uma coisa: ou meu modelo ou minha amante. Não é possível esculpir um corpo e desejá-lo, ao mesmo tempo. Detesto as incursões do sentimento. não sei se me faço
compreender.
-i Quando viste que me podias utilizar como modelo, achaste isso mais importante do que. do que possuir-me? É isso que queres dizer?
- Precisamente.
- Obrigada. Ao menos, és sincero.
Basílio saiu precipitadamente do seu canto, quási como se lhe fosse bater. Ela ergueu as mãos num gesto de defesa, mas o artista ficou imóvel, dizendo:
- Não se fala mais nisso. Escolheste um momento péssimo para os teus estudos psicológicos.
Desorientada, Doris procurou um sítio onde se
pudesse vestir sem ser vista. Agora, era-lhe impossível mosttrar-se nua, na sua frente. - Diz-me só uma coisa: existe outra mulher? O escultor atirou-se outra vez
para a sua cama.
- Não tens nada com isso.
Ela calou-se. Ele, então, tornou-se violento:
- Proibo-te que investigues o que se passa na minha vida sentimental, ouviste? Proíbo-te! Entras-me
pela porta dentro, no meio da noite, como se eu não tivesse vida privada. Tens exigências. Não me deixas só, exactamente quando eu preciso mais de solidão do que
de qualquer outra coisa. Não me compreendes. não me compreendes. O amor! - gritou com ironia -O amor! Pois não vês que é, para mim, uma tortura ter-te aqui? Mas
então não percebes
nada?
Doris compreendeu e tornou-se pálida. Tinha os lábios frios. Pegou no vestido e teve dó dele. Replicou:
- Compreendo muito bem. És um egoísta. Agarras aquilo que te convém e deitas fora o resto. Agora não pensas senão na tua estátua. Mas vou dizer-te uma coisa: sou
eu a única pessoa, no mundo, que te pode ajudar a fazer a estátua. Uma grande estátua, de mármore, como foi sempre o teu sonho. Posso dar-ta ou tirar-ta. Aqui está.
Doris fora criada de crianças antes de o ser de
restaurante. Involuntariamente, empregara o tom arrogante
que precisava de adoptar com a primeira patroa,
quando ela queria humilhá-la. Basílio fitou-a, surpreendido,
e um largo sorriso formou-se-lhe no rosto.
- Espera. Estás com uma cara que ainda te não
Conhecia. Anda, casa com um carteiro, é a única coisa
que Podes fazer com essa cara.
Doris não compreendeu logo, mas depois ficou arreliada. Tambem a Salvatori lhe chamara burguesa.
- Vais ver o que poderei fazer com esta cara! exClamou com a voz completamente rouca-Há pessoas a quem ela agrada. O sr. Bryant, por exemplo, gosta
bem dela. É desta cara que depende a porcaria da tua estátua.
Depois de ter ouvido estas palavras, ficou um momento silencioso. Em seguida aproximou-se dela e preguntou em voz baixa:
- É verdade?
Ela disse que sim, com a cabeça. Agora sentia vontade de chorar. Tinha necessidade de ser tomada nos seus braços, consolada, apaziguada, acarinhada. Mas Basílio
meteu as mãos nas algibeiras das calças.
- Porque não ? - disse com uma calma excessiva
- Para ti, decerto vale mais o Bryant Júnior do que o Basílio Nemiroff. Se deste com tamanha mina, está descansada que em mim não encontras o mínimo obstáculo. O
que se passou entre nós, passou completamente: nunca existiu.
Não mostrava o que sentia e estava cheio de orgulho por se poder dominar a tal ponto. Doris encontrava-se na sua frente como se tivesse apanhado um soco no estômago.
Sorria como um doente sob a anestesia. Inspeccionava o atelier como se o visse pela primeira vez. A janela já estava cinzenta de luz e ouviam-se os pardais a pipilar.
- Bem. Voltaremos a falar nisso. - disse em voz fraca.
Atravessou o estúdio e foi apagar a lâmpada que estava sobre o trabalho começado. A madrugada tornava tudo indistinto. Basílio sorria como um fantasma delicado.
Beijou-lhe a mão e disse, acompanhando-a até à porta:
- Em todo o caso, muito grato por esta noite.
?É o fim! pensou a rapariga, enquanto descia a escada. Abriu, com precaução, a porta do alfaiate que também nunca se encontrava fechada. Sobre a mesa, com as pernas
cruzadas, Dostal estava sentado, inclinado para a obra. Olhou para ela, franzindo as sobrancelhas. Vinha envolta no chaile de cachemira e trazia o vestido a arrastar
pelo chão.
- Menina! - exclamou com o seu acento checo Coisas destas não as quero cá em casa. As senhoras a
quem alugo o quarto, devem ter um porte irrepreensível. Compreende ?
Doris olhou-o, surpreendida. Precisava de se readaptar a um mundo onde os alfaiates da Boémia começam a trabalhar às seis da manhã e onde as cozinhas exalam um cheiro
a café de chicória.
- Venho de casa da sr.a Salvatori. - respondeu ela - Esteve toda a noite com dores de estômago.
Dirigiu-se para o quarto, por trás de cuja porta se ouvia a forte respiração da norueguesa. A voz do alfaiate, que juntara toda a sua indignação para a injuriar,
teve que se limitar a dizer:
- Dores de estômago. Não querem lá ver! A cantora de Opera.
- Cá estamos. - disse o Franklin O. Bryant a Doris.
Ela, curiosa, debruçou-se na janela; entre as árvores podia ver-se um pedaço azul-verde da baía. Logo no primeiro dia de Páscoa, o dogwood que rodeia Nova-Iorque
começara a florir, semeando de espuma cor de rosa o verde-claro dos parques.
-- Bonito. - disse Doris, com negligência.
Tinha imenso trabalho em se fingir blasée, embora perante muitas coisas que Franklin lhe mostrava, tivesse vontade de gritar de surpresa. Nova-Iorque possuía uma
primavera e os pássaros daqui chamavam uns pelos outros, cantando a mesma ária que os de Odenwald: e isto era completamente novo para Doris.
Tornou a encostar-se no carro. Já não achava sensacional passear naquela luxuosa limousine! Conhecia-lhe muito bem o couro avermelhado, o cheiro a cigarro, a jarra
perto da janela e cheia de flores frescas que, lentamente, se iam fanando. Conhecia o estóico torso de Perkins e o seu rosto, tal como o espelho lho mostrava, de
lado.
Fora naquele carro, com Franklin, ao desafio de hockey na neve, em Madison Garden, depois mais duas vezes a um speakeasy, uma vez ao teatro e outra dar uma volta
ao longo de Riverside Drive. E também até mais longe, aos parques nocturnos dos arrabaldes. Tinhe agora uma noite livre por semana, fazendo-se substituir por uma
desastrada colega, no restaurante.
Apesar disso, continuava rouca e começava a pensar que seria do famoso método da Salvatori.
Além destas coisas, tinha um vestido novo que comprara por dezasseis dólares e noventa e cinco num armazém económico, que estava sempre cheio, de Union Square -
um presente de anos que Franklin a forçara a receber.
Ela bem sabia que tudo isto constituía, cada vez mais, um compromisso. Por outro lado, ele tinha curiosidade em ver como estas pequenas atenções a enervavam. Quando
Franklin falara, havia alguns dias, em uma viagem que tencionava fazer à Europa, ela tivera medo. Sentira que ele lhe faria falta e dissera-lho. De resto, ele já
não ia; limitara-se a acompanhar a esposa ao navio, voltando depois para o Schuhmacher, levemente ébrio e muito alegre. Tornara-se um cliente habitual do restaurante
e o patrão permitia-lhe agora o acesso aos locais secretos onde se encontravam o "jogo do chinquilho". e a cerveja.
Foi com uma vaga inquietação íntima que Doris consentiu em passar as festas da Páscoa em casa de Franklin, em Long ísland. Dissera que a casa estaria cheia de convidados,
nomeando as pessoas que deveriam comparecer. Gabara-se de a pôr em relações com as pessoas que viriam a servir-lhe para a sua carreira de Opera. A Salvatori, timidamente
consultada, dera solenemente a sua aprovação. Mas embora tudo aquilo parecesse agradável e de uma inocência absoluta, Doris bem sabia o que significava tal convite.
O carro deu uma curva larga, atravessou um portão de ferro, seguiu uma alameda e parou em frente da casa.
- Já chegou alguém? -preguntou ele ao maitre dhôtel, que abriu a porta do carro.
- O Sr. Shugers telefonou há um quarto de hora. Só virá depois do jantar. As outras pessoas devem estar a chegar.
FranKlin desceu, sem ajudar Doris. Ela deslizou para fora e ficou à espera, cheia de vergonha, quando o imponente chefe de mesa se apoderou da miserável maleta que
continha a sua camisa de dormir. Do parque, chegaram dois cães, a grande velocidade. Mais à vontade, a rapariga inclinou-se para eles. Parecia-lhe que eram seus
iguais e que poderia falar com eles, sem corar.
Um gramofone tocava, dentro de casa. Doris ficou satisfeita ao ver que, lá dentro, era menos pomposo e elegante do que supunha. Na sua infância, visitara com a escola,
os castelos ducais - o que, de uma vês para sempre, lhe fixara as ideias sobre o luxo e a riqueza. Naturalmente estava convencida de que os milionários americanos
dormiam em leitos dourados e comiam em baixela de ouro. Não compreendia a simplicidade dos móveis ingleses.
- Seja bem-vinda! - disse Franklin, um tanto embaraçado.
Barrou-lhe o caminho que conduzia do salão à biblioteca, tomou-a nos braços e deu-lhe um beijo. Como já não era o primeiro, recebeu-o de boa vontade e sem ligar
importância. "Uma sereia, fria e escorregadia." murmurou ele, descolando. Era uma das observações de que se sentia orgulhoso, havia algum tempo.
- i Se fôssemos ao jardim, ver que efeito faria a estátua?-propôs, com a respiração um tanto apressada.
Realmente continuavam a falar da estátua, embora Basílio se tivesse tornado completamente invisível. Franklin explicara a Doris que devia colocar-se no jardim, no
sitio destinado à estátua para se poder avaliar o efeito. Apesar desta ideia ser absurda, ela aceitara-a como pretexto para visitar a casa. Todas as coisas que,
mesmo de longe, estavam ligadas ao escultor, conservavam para ela uma secreta doçura.
Franklin pegou-lhe no cotovelo e deram a volta à casa. Atrás havia um grande terraço. A primeira relva
saía das pedras. Depois do terraço via-se um prado, em seguida um muro baixo, alguns degraus e um novo prado. Divisava-se daí o estuário, muito próximo, muito azul
com uma única vela branca. A erva estava úmida e, por trás das árvores, o sol preparava uma partida espectaculosa.
Respirando profundamente, Doris preguntou:
- Tudo isto lhe pertence, sr. Bryant?
- Então como é que eu me chamo? Desculpando-se com um sorriso, modificou a frase:
- Tudo isto te pertence, Franklin?
- Até aos choupos. - disse ele, com um gesto vago para o parque - O resto é do meu pai; deu-me isto quando casei.
- Tenho muita pena que a tua esposa não esteja em casa. - disse Doris, delicadamente.
Bryant respondeu, também cerimoniosamente:
- Tenho a certeza de que a Juddy terá muita pena por te não ter conhecido.
Havia uma certa tensão no ar-quer fosse devida a tudo quanto não diziam, quer fosse por causa da nuvem de rebordos metálicos que pousava sobre o estuário.
Doris preguntou:
- Está calor demasiado para o mês de Abril, não é verdade?
Ele concedeu-lhe que fazia um calor terrível e acrescentou :
- Podemos beber qualquer coisa no terraço.
Os dois cães haviam-nos seguido e tinham-se deitado na relva, aos pés da Doris, esperando qualquer carícia. As sombrias línguas estavam penduradas e respiravam com
dificuldade, como se acabassem de fazer grandes esforços.
Franklin inclinou-se para eles e disse:
- Estão para aí a representar uma comédia, seus mendigos.
Isto pareceu a Doris mais gentil e mais simpático do que tudo que até então ouvira dizer.
- Era aqui que ela se deveria colocar. - disse, conduzindo a rapariga para o muro baixo, até ao sítio
onde se formava um pedestal por cima dos degraus. Doris estendeu os membros e, involuntariamente, tomou a pose que tantas vezes adoptara no atelier de Basílio. Também
aquilo continha uma certa doçura: se pudesse, desataria a chorar. Franklin recuou e olhou-a. Assim que se esquecia o seu rosto, podia considerar-se bela.
- Que pena estares vestida l -exclamou em voz brutal.
- Já esperava uma reflexão dessas. - replicou ela, no seu tom de criada de meninos.
Lá em cima, na casa, acabava de se levantar um grande barulho.
- São os primeiros convidados que chegam.- disse Franklin, satisfeito.
Também Doris ficou muito contente, porque desconfiava que não houvesse outros convidados. Acompanhando-o até casa, pensou: "Pode ser que ainda me salve, desta vez".
Naquele andar na corda bamba, era inevitável o tombo.
Um bonito rapaz de pequeno bigode, soprando numa corneta que acabara de fabricar com um cartucho de papel, foi-lhe apresentado sob o nome de Pascal. Um pouco mais
tarde, compreendeu que era o arquitecto que construíra a casa. Admirou-se, pois Pascal era novo e a casa parecia antiga.
- E ainda não viu a garagem. - explicou ele, através do seu alto falante-Foi feita exactamente segundo o modelo de uma velha cavalariça.
- Ainda és mais snob do que ajuddy. - resmungou o dono da casa.
- Claro. Não sabias que são sempre os filhos de Eastside, os mais snobs? - proclamou o arquitecto, no seu retumbante porta-voz.
Isto pareceu a Doris consolador e alegre.
Duas raparigas apareceram. Pascal apresentou-as como sendo a Micky e a Ducky. A primeira era muito loura, a segunda muito morena. Julgaram Doris num breve olhar
que avaliava o preço do vestido, das meias, o valor do penteado. Micky assegurou que Ducky era
uma boa rapariga, sendo preciso arranjar-lhe um celibatário disponível.
- Ou um viúvo provisório. -interveio Ducky.
- O Franklin fez voto de castidade! - urrou Pascal.
- Vocês já estão bêbados? - observou Bryant, sem os censurar.
A nuvem cobria agora todo o céu e uma forte brisa atravessava as árvores. Viraram-se todos para dois carros que chegavam. Entre muitos risos e gritos, apareceram
três casais e, depois, um homem só.
- Este é para a Ducky. - disse Franklin, empurrando-o para ela.
A rapariga fez uma careta.
- Esperava coisa melhor.-respondeu intencionalmente.
O homem dirigiu-se para Doris e Bryant puxou-a para si, exclamando:
- Eh, lá, pouco empurrar! Estou noivo desta senhora.
Pela segunda vez, foi inspeccionada e avaliada. Sentia subir por ela acima uma imensa raiva, pois considerava-se muito diferente dos outros. Pertencia a uma boa
família. O pai, o falecido dr. Bingsheim que fora esquecido completamente no turbilhão de Nova-Iorque, reapareceu, de súbito, como um fantasma, entre toda aquela
gente de duvidoso aspecto.
- Queres subir para te preparares? - preguntou apressadamente Franklin. Durante as últimas semanas aprendera a ler-lhe no rosto e tinha quási tanto medo dela como
da esposa. Agradecida, ela concordou. Teve a surpresa de reconhecer que, no meio dos outros, Franklin e ela formavam um casal distinto. Na porta, quando ia a sair,
retribuiu às raparigas o olhar investigador que lhe tinham lançado. Estavam vestidas ainda com mais simplicidade do que ela, o que a consolou. Tinham saias de lã
e blusas. O seu vestido, o de dezasseis dólares e oitenta e cinco, era de crepe de China.
- Posso mostrar o seu quarto à senhora ?-preguntou o maitre-dhotel que estava perto da escada estreita.
Coxeava um pouco; Doris deu por isso, subindo atrás dele até ao primeiro andar. Abriu uma porta e esperou que ela entrasse. Doris viu imediatamente que tinha acontecido
uma coisa terrível: haviam aberto e esvaziado a sua maleta! Só lá estavam os objectos da maquilhagem, um lenço e um quimono que comprara por um dólar num armazém
de importação. Agora toda a gente conhecia a sua pobreza. Mas o pior era o seguinte: tinham estendido sobre a cama uma camisa de dormir que lhe não pertencia. Um
objecto azul, da mais fina seda, guarnecido com rendas escuras, enfim, uma camisa de dormir, vinda directamente da quinta avenida.
O mordomo saíra logo do quarto e Doris ficara hirta, a olhar para aquela camisa. Sentia uma vergonha extraordinária. Estava habituada a dormir nua. Era cómodo, representava
uma economia e ninguém tinha nada com isso. Nem por um momento julgou que os criados da casa Bryant tivessem julgado que se esquecera de trazer a camisa de noite
e que tivessem, portanto, ido buscar uma ao quarto da patroa. Pensou apenas isto: que tinham desejado enfeitá-la convenientemente para passar a noite com o patrão,
não o podendo ela fazer, por ser muito pobre. O seu próprio quimono, de que até aí se sentia tão orgulhosa, gritava de vulgaridade junto de tal camisa. E ainda para
mais, obedecendo a um velho costume alemão, trouxera a sua toalha da cara, a qual pendia lamentavelmente na sala de banho cor de orquídea, ao lado da sumptuosa roupa
ostentando as letras J. B.
A casa enchera-se de risos e de conversas. Fechavam-se portas e ouvia-se correr água como se toda a gente fosse tomar banho. Doris colocou-se em frente do espelho
e analisou-se com gravidade. Nem no seu quarto, nem no restaurante Schuhmacher havia um espelho grande. Agora via-se toda: uma rapariga alta e séria, nem bonita
nem feia. Não a descontentavam a boca nem os olhos. Mas descobriu, pela primeira vez, que os cabelos a desalentavam. Eram de um castanho baço e um penteado de terceira
categoria, de cinquenta
cêntimõs, havia-lhes dado uma ondulação absolutamente deplorável. Em vão, tentou melhorar o seu aspecto. Abriu a gola do vestido e pô-la para baixo. Estava melhor
assim. Fora, passou alguém correndo em frente da porta; em baixo, os cães ladravam. Chegou um carro, fazendo muito barulho.
De repente, Doris estremeceu de terror. Voltou-se. O leito estava colocado no meio do quarto, não como um objecto, mas animado por uma vida monstruosa, como os móveis
que povoavam os cantos. A requintada camisa que lhe não pertencia, encontrava-se estendida sobre a cama e tomara uma pose voluptuosa. Doris pegou-lhe brutalmente
e deitou-a para as costas de uma cadeira.
Então um gong soou, em baixo. Também na casa onde fora nurse se anunciavam assim as refeições. Apagou a luz e desceu.
Havia gente por toda a parte; no pequeno vestíbulo, nas salas, na biblioteca. Doris, desesperada, viu que todas as raparigas que, de tarde, estavam vestidas de tweed,
envergavam agora cintilantes toilettes de noite, Ducky agarrava-se ao braço de Franklin e ele tinha que a levar consigo. Mas assim que viu Doris, tratou logo de
se desembaraçar da grilheta. Foi ter com ela e apresentou-a a algumas pessoas. "O senhor e a sr.a Vanderbilt" dizia. Ou então: "O senhor e a sr.a Rockfeller". De
cada vez, Doris respondia delicadamente:
- Muito prazer.
Mas o arquitecto acabou por desatar às gargalhadas e foi só então que ela compreendeu a brincadeira de Bryant. A sua atrapalhação aumentou ainda mais quando viu
que havia homens com nomes conhecidos, mas que as mulheres eram tratadas apenas por diminuitivos.
O mordomo coxo estava a um canto; mostrava bem que era demasiadamente distinto para ser ele o próprio a servir. Dois criados ofereciam cocktails. Doris, com a sua
competência adquirida no restaurante alemão, admirava o serviço. Todos os convidados se encontravam
já levemente embriagados e quando Doris bebeu dois cocktails a seguir, não viu senão manchas de cor, barulhentas e agradáveis. Franklin tinha um tuxedo verde-garrafa,
uma coisa que ela nunca vira e que lhe agradou. Cheirava a uma água de Colónia forte e fresca e ainda não estava ébrio. Tomou o braço de Doris e lêvou-a para o terraço.
Reconhecida, ela respirou o ar que subia da água em tépidos eflúvios, e que cheirava a peixe e a alcatrão. Esperava que ele a beijasse. Quási o desejava. Mas nada
aconteceu. Dentro de casa, cantavam em coro: "Vamos para a mesa! Vamos para a mesa!
Conduziu-a, pelo braço, para a sala de jantar. Os outros já estavam a empurrar-se em frente do bufete. Ela achou-se sentada numa pequena mesa iluminada com velas.
Notou que estava a rir. Um cavalheiro, mais idoso do que os outros, encontrava-se a seu lado. Franklin, que se afastara um momento, voltou com dois pratos cheios.
E disse:
- Este é o sr. Potter. Oiça, Potter, esta menina tem uma voz maravilhosa e quere tornar-se célebre.
Foi quando ela compreendeu que se tratava do famoso Potter, lembrando-se de lhe ter lido o nome nos jornais. Organizava seleccionadas reuniões teatrais e figurara
em numerosos escândalos femininos. Não usava um tuxedo como os outros mas uma comprida casaca à moda antiga que lhe sublinhava a cinta fina.
- Deixe-me ver a sua mão. - disse ele a Doris. com uma lente no olho direito, estudou-lhe as linhas. O seu rosto estava tão perto da mão que ela sentia-lhe o calor.
- Tem razão. - disse gravemente - Vejo aqui marcados o êxito e a glória. Mas lamento-a. Tem hoje uma vida simples e feliz. Tudo isso será destruído quando a glória
chegar.
Doris sorriu humildemente. Aquilo parecia-se muito com o que dizia a Salvatori.
Sob a mesa, sentiu o joelho do Franklin. Beberam champanhe. Doris não tentou rir quando o gelado líquido
lhe acariciou a garganta. Fazia outra ideia do champanhe.
Os dois homens falavam, com animação, acerca de dinheiro. Segundo ela tentava compreender, Potter recebera a comandita de Bryant para uma empresa teatral e tentava
extorquir-lhe maior soma. O nome de miss Cater ouvia-se constantemente. Embora Doris não gostasse de Franklin, sentiu um violento ciúme daquela desconhecida miss
Cater. Já se habituara a considerar o Bryant Júnior como sua propriedade. Olhou em redor e a chicotada do champanhe desapareceu; caiu bruscamente numa depressão
como numa fenda de gelo.
Todas as mulheres que observava agora eram mais bonitas, bem penteadas, melhor vestidas, alegres e mais próprias do que ela para serem amantes de um homem rico.
Basilio já se não importava com ela e naturalmente tinha razão. Daqui a pouco, Franklin faria o mesmo.
- Desta vez devia ser uma ópera. - ouviu-o dizer a Potter.
Pelo zombeteiro riso do homem de teatro, compreendeu que era uma brincadeira galante em sua honra.
Gargalhadas e gritos agudos vinham das outras mesas; em muitos sítios havia damas em cima dos joelhos dos cavalheiros. Mas, de súbito, um enorme e surdo rumor estalou
em frente da casa. Toda a gente correu para ver o que era: dois faróis estavam acesos. De um velho ómnibus saiu um rapaz acompanhado por um grupo alegre de raparigas.
Enormes gritos de entusiasmo acolheram tal aparição.
- Shugers!-aclamavam todos-Só ele era capaz de ter uma ideia destas!
Shugers estava ali, arvorando um sorriso grotesco e enfatuado. Encontrava-se visivelmente embriagado mas conservava-se direito.
- Recolhi estas crianças.-disse, muito satisfeito E o clube dos corações solitários. Engraixei-as um pouco. Ainda são muito novinhas, mas já estão à altura. Dêem
a boa noite ao papá, minhas filhas.
Uma após outra, todas as raparigas saltaram ao pescoço de Franklin e beijaram-no. Doris riu-se muito
alto para se não sentir estranha e gelada no meio de toda aquela alegria. Num longo desfile, dirigiram-se para as cavalariças. Um quarteto já cantava: Sweet Adaline.
Aquilo a que Franklin chamava a "casa dos cavalos" era, na realidade, um bar mascarado. Verdade seja que havia selas sobre os bancos e tudo cheirava a couro, mas,
de repente, saiu da parede tudo aquilo de que se compõe um bar. Aparecendo como que por magia, o mordomo coxo, com um casaco branco, ficara por trás do balcão, sacudindo
freneticamente o shaker de prata.
- Que queres beber? - preguntou Franklin, gritando-lhe ao ouvido, pois, de outro modo, no meio daquele barulho, ela não ouviria coisa nenhuma.
- Nada, obrigada.- berrou a rapariga.
Tinha estranhamente perdido contacto consigo própria. Sem peso e sem corpo, parecia que voava. Depois exclamou:
- Sim, qualquer coisa forte, fria, açucarada!
Reflectira e pedira aquilo. O maitre-dhotel lançou-lhe um olhar, que lhe pareceu irónico e depois pôs-se fanaticamente a deitar coisas multicores num recipiente.
A mão de Franklin conservava-se na nuca de Doris e esse gesto não lhe desagradava. Anteriormente parecia-lhe estar muito só; agora já não. A vida tornara-se-lhe
subitamente simples e fácil.
- A ti! Ao futuro! - disse-lhe Bryant, dando-lhe um copo.
Depois de ter bebido, tudo se tornou absolutamente confuso e, ao mesmo tempo, absolutamente claro. Num canto, Potter encostou-a a uma parede e beijou-a; entre a
névoa que a rodeava, ela percebeu que os seus beijos provavam a sua experiência e batiam certo, como as balas de um bom atirador. Pascal, o arquitecto, dizia-lhe
ao ouvido idiotices de homem borracho, pedindo-lhe para o proteger. Divagava a propósito de um terreno vizinho no qual era de opinião que Franklin devia mandar construir
uma casa para ela. De repente, adormeceu, sentado, muito direito, sobre um dos bancos altos, de que fizera cair a sela.
Num canto, duas mulheres discutiam. Começaram por trocar amabilidades desagradáveis, depois puseram-se a gritar, escarraram ambas para o chão e acabaram por pegar
à pancada, com grande profusão de socos. Os seus dois homens olhavam-nas muito divertidos, como se se tratasse de um combate de galos. Por fim, um agarrou na que
viera com ele e que estava completamente embriagada. Deitou-a para cima do ombro, como se fosse um saco, e levou-a. Havia menos gente, faltavam muitos casais.
Começavam a dançar no terraço; todas as mulheres sabiam deitar as pernas ao ar, até ao queixo. Doris tentou fazê-lo também, e, muito espantada, conseguiu-o. Atrás,
num canto, os homens faziam apostas e riam-se muito, Doris não compreendia qual era o motivo das apostas. De súbito, duas mulheres começaram a despir-se: ia-se ver
qual era a mais bem feita.
- Podes ficar com o vestido; Nova-Iorque inteira conhece o teu corpo! - disse uma delas à outra.
Esta observação obteve grande êxito. Depois, ambas silenciosas e recolhidas, como dois boxers, mostraram os corpos nus, ainda muito jovens.
Aborrecido, Potter disse:
- Vejam lá se se constipam.
Ambas tinham as pernas compridas e bonitas, mas todas as mulheres as possuíam assim, desde que as pernas estavam na moda. Uma tinha o peito mais bonito, mas as omoplatas
magras eram salientes e descobria-se que fora filha de um proletário esfomeado e curvado, antes de ter daqueles vestidos.
Aplaudiram. As duas raparigas deram alguns passos de dança e saíram para se tornarem a vestir. Houve um momento vazio.
- E agora, a Doris! -exclamou uma voz de homem.
Ela voltou-se, brusca. Não fora Franklin mas Shugers. De olhar baço, o dono da casa opôs-se, mas Shugers teimou.
- Há semanas que passas a vida a dizer-nos que é uma perfeição. Queremos ver se é verdade.
Franklin teve um gesto de submissão.
- Doris?-murmurou junto dela.
Mas a rapariga não se mostrava ofendida. Crescia nela um estranho orgulho. Os seus cabelos tinham uma cor má e a ondulação estava péssima. Não possuía o mínimo enfeite,
nem mesmo uma camisa de dormir e compreendera, à noite, que o seu vestido era vergonhoso. Mas sabia como era o seu corpo. Basílio, que devia ser conhecedor, tinha-lho
dito várias vezes.
Naquele momento de embriaguez, confusão e falta de pudor, sentiu a sombra de Basílio a rondar à sua volta. Passou com sombras fundas no rosto e depois desapareceu.
Para a rapariga ébria essa recordação foi uma chicotada. Passado um instante, tirou o vestido e encostou-se à parede. O seu corpo tomou a pose da estátua para a
qual posara. O ar nocturno aflorava-lhe a pele como o focinho fresco e mole de um animal. Não se mexia. Sentia-se bem; durante um instante delicioso, teve uma viva
e penetrante sensação de si própria.
Ninguém falava. Depois, no silêncio, elevou-se a voz irónica de uma das mulheres. Era a Ducky, dizendo em voz despeitada:
- Como as alemãs têm os seios grandes.
- Cala-te! - disse outra voz. E mais uma anunciou:
- Está a chover.
Doris sentira as gotas de água, havia alguns segundos. Caíam sobre ela como beijos minúsculos, absolutamente destituídos de peso.
Acordou quando as mulheres saíram do terraço para se refugiarem em casa.
- Estou completamente embriagada, Franklin! disse ela, em tom queixoso, quando ele a ajudou a descer do muro.
- Consola-te que eu não estou menos. - respondeu ele.
Tinha os olhos vagos e o queixo ainda mais mole do que habitualmente. O contacto de Doris deu-lhe uma tremura que se esforçou por dissimular.
Ela separou-se dele, introduziu-se no vestido e fugiu.
Nos cumes, Invisíveis na escuridão, a chuva fazia um barulho cada vez mais forte. Por cima do estuário, um fraco relâmpago arrancou, por instantes, um pouco de água
clara às trevas. Doris estava no seu quarto sem saber como lá chegara. Chorou, viu-se chorar no espelho e engoliu as lágrimas que lhe desciam aos lábios. Deixou
correr água para um banho mas sentiu-se com muita preguiça para o tomar. Fechou a torneira, deixou cair o vestido, que não abotoara, e caminhou-lhe por cima. Pôs-se
à escuta. Dirigiu-se para a porta e correu o ferrolho. Relâmpagos. Chuva. Risos pela casa. Gritos abafados na escada. Enfiou a camisa de noite e deitou-se. Os pés
brincavam agradavelmente com a seda. No Dostal não mudavam os lençóis senão de quinze em quinze dias. Pascal queria construir-lhe uma casa. Relâmpagos. Franklin.
Pela primeira vez, havia muitos meses, adormeceu sem pensar em Basílio.
Acordou. A luz ainda estava acesa. Franklin estava dentro do quarto; tinha um pijama de seda amarelo e o cabelo úmido. Cheirava a alfazema e parecia muito melhor
do que quando estava vestido.
- Queria só dar-te as boas noites. -murmurou, embaraçado.
Doris ergueu-se no leito.
Naquele dia de Páscoa, Nemiroff tomava o fresco da quinta avenida, na imperial dum autóbus. Sentia-se alegre, exuberante e tinha razões para isso.
- Sente o cheiro a primavera?-preguntou a uma senhora de idade que tinha na cabeça um chapéu inacreditável.
Depois da hesitação da surpresa, a senhora respondeu que o sentia realmente. Nemiroff prosseguiu a conversa no seu mau inglês, informando-se acerca dos armazéns
e dos prédios, por onde passavam, e fazendo preguntas estúpidas, às quais a senhora respondia com tacto e a melhor boa vontade.
Naquele dia, Nemiroff divertia-se a desempenhar o papel de um homem que vê Nova-Iorque pela primeira
vez. Mostrava-se modesto, provinciano e espantado, dando imensa alegria à senhora, que achava, assim, um meio agradável e inesperado de encher o seu dia feriado.
Nemiroff contou-lhe, em palavras sacudidas, que logo após a sua chegada, apanhara com uma pedra na cabeça, passando algumas semanas no hospital e tendo acabado agora
de recuperar o juízo e a vida. Por mais grotesca e inacreditável que esta narrativa fosse, tinha certos foros de verosimilhança com o estado de espírito em que o
escultor se encontrava naquele domingo de Páscoa.
Vinha da loja do Raphaêlson, o vendedor de quadros que não apreciava os seus trabalhos. No entanto, renunciando, pela primeira vez, a tratá-lo sobranceiramente,
comprara-lhe qualquer coisa. O estudo que começara na noite em que Doris aparecera lá em cima, não estava nada mal. Por isso, o tormento das últimas semanas, sempre
servira para qualquer coisa. Nemiroff obtivera com a sua amargura aquele bocado de barro esculpido em harmonioso ritmo; vendera-o por bom preço, tendo-o criado num
estado convulsivo. Fizera o que todo o artista devia fazer: dominar o sentimento para adquirir a claridade de onde nasce a forma.
"Forjar serenamente uma obra perfeita", pronunciou esta citação de um grande escritor alemão, o que aumentou ainda mais o espanto da dona do chapéu cómico.
- O senhor donde me disse que vinha ?-preguntou um tanto desorientada.
- Sou da Kurdoguisia.-replicou ele, com altivez.
- Ah, bom . - retorquiu a senhora no tom que se emprega para não contrariar os doidos.
Na sua imaginação, via o pais da Kurdoguisia onde iria fazer uma viagem com a Doris. Quási que acreditando no que dizia, explicou com ar grave:
- Vai-se para a minha terra de barco. Passa-se pelo estreito que separa as ilhas Biribi e Avalum. A Kurdoguisia é também uma ilha e, em todas as estações, está coberta
por uma nuvem branca que tem a forma
de uma mulher deitada. A maior parte das pessoas de lá, vive da criação de flamingos.
Ele bem sabia que o trabalho era bom, não precisava que o Raphaélson lho dissesse. Mas, realmente, a admiração era uma coisa muito melhor do que a compaixão irónica.
Tanta vez lhe haviam dito que era doido, que, às vezes, nas horas de desânimo, quási o
acreditava.
O Raphaélson comprara-lhe o estudo. Dera-lhe cinquenta dólares, portanto devia valer quinhentos. O dinheiro constitui a única consagração que Nova-Iorque é capaz
de dar. Em conclusão, confiou à senhora:
- Na Kurdoguisia, acabam de decretar uma nova lei que castiga com a prisão qualquer compra ou venda.
- Como isso é curioso! - exclamou ela. Mas logo o rosto enrugado se lhe sombreou, enquanto dizia:- Mas isso é bolchevismo!
Nemiroff tirou a flor da esfiapada botoeira. É verdade, tinha uma flor ao peito nesse dia memorável.
-Quere ficar com esta flor e ir depô-la na campa do seu filho. da parte de um desconhecido ?
Antes que a senhora pudesse manifestar a sua estupefacção pois perdera realmente um filho e ia para o cemitério, Nemiroff desceu da imperial em dois pulos, abandonando
o autobus em marcha. O condutor gritou-lhe qualquer coisa. A rir, Nemiroff ficou um instante em pé no meio da rua, muito satisfeito por provocar, ele sozinho, a
paralização do trânsito, com o casaco no fio e cinquenta dólares na algibeira. Começou a falar para uns e para outros, o que lhe pareceu extremamente cómico.
- Muito amável. - disse delicadamente a um motorista de táxi que o injuriava.
Metade da rua ainda estava cheia de sol amarelo, embora a tarde fosse já adiantada. A dançar, o artista dirigiu-se para uma loja de frutas que vira do carro. Tinha
o olhar certeiro de um emérito atirador da Legião. Notara que a loja se encontrava aberta e que havia lá uns cestos com cerejas precoces.
- Quero que Doris coma cerejas! - cantava, ao entrar - Quero levar cerejas à Doris.
Enquanto pagava o astronómico preço que lhe pediam por aquelas cerejas de Abril, imaginava, zombeteando, as caras que fariam os cavalheiros bêbedos que povoavam
os subterrâneos do Casino de Paris, quando não encontrassem lá o amável Basílio para os ajudar.
com a cestinha de cerejas debaixo do braço, pôs-se a caminho para a quinquagésima sexta avenida.
O sol desaparecera, de repente, por trás das casas e o escultor teve um arrepio, o que lhe pareceu ridículo. Nos últimos tempos, não comera com regularidade e o
seu sobretudo estava empenhado. A alegria antecipada pela sumptuosa refeição que queria fazer com Doris, influía grandemente nesse arrepio que era também de enorme
ansiedade.
E pensava: "Como te agradeço por teres sido paciente comigo, Dorochka!" Aquilo podia musicar-se. E, ao entrar na rua, cantou em alta voz:
- Quanto te agradeço por teres tido tanta paciência, Dorochka!
Estava a trasbordar de gratidão. A estátua, a Dorochka, o sucesso final, tudo aquilo se encontrava ligado. Evitara a rapariga para poder trabalhar. Mas, com perseverança
e fidelidade, ela continuara a meter-lhe bilhetinhos debaixo da porta, e esperara. Pensou: "Caso com ela." E logo a seguir: "Não caso." Não se pode desposar uma
mulher que se deseja loucamente. Forjar com calma uma obra perfeita. Sim senhor, com calma.
Mas toda a sua calma desaparecia quando pensava em Dorochka. Subiu a escada, galgando os degraus, a dois e dois.
A porta do alfaiate permanecia fechada. Procurou a campainha que nunca servia, depois premiu-a violenta e longamente. Sentia as cerejas frescas e redondas na mão
habituada a palpar. Bastante tempo decorreu antes que viesse algum barulho do interior, mas Basílio não parou de tocar e, por fim, uns 71
chinelos aproximaram-se. Era a sr.a Dostal, despenteada e mole.
- Que quere? - preguntou, num tom desagradável.
- Quero ir ter com miss Hart - disse êl", entrando. Mas a mulher não se mexeu e resmungou:
- Acho que não está.
- Eu vou ver. - respondeu ele, com vivacidade, atravessando a sala de costura.
A mulher seguiu-o com o seu fixo olhar animal.
- Bata primeiro. - aconselhou.
Depois de ter batido, Nemiroff ouviu qualquer ruído atrás da porta e distinguiu uma voz clara a dizer:
- Entre.
Compreendeu logo que a rapariga não estava e as cerejas tornaram-se pesadas e inúteis na sua mão. No entanto, entrou.
Perto da janela, encontrava-se sentada a maciça norueguesa Borghild, a tratar das unhas.
- Ah, é o senhor? E eu a julgar que era o meu.
- Sabe onde está miss Hart?-preguntou, fazendo já menção de se retirar.
Então a rapariga inspeccionou-o com um olhar longo e atento.
- Quere então saber onde ela está ? Reflectiu ainda um segundo e acabou por dizer:
- Não sei, não.
Basilio achou que a massagista dedicava extraordinária importância a uma pregunta tão simples.
- Bem . Então desculpe.
A outra preocupou-se ainda com as unhas. E murmurou:
- Ela não volta hoje. Foi para o campo.
- Obrigado. - disse Basilio, fechando a porta. E ficou ali a reflectir.
Conhecia bem a vida da Dorochka, as suas alegrias, as preocupações, os amigos e os inimigos. Uma excursão ao campo era qualquer coisa de anormal.
Para se consolar, pensou: "Foi a casa da tia cozinheira. " Mas bem sabia que não era verdade.
O escultor tinha momentos de telepatia: adivinhara que a tal senhora ia ao cemitério visitar o túmulo do filho. Fizera ligação entre o alfinete em esmalte que tinha
ao peito e uma ruga dolorosa que lhe entristecia a boca. Nas montanhas da África do Norte farejara mais do que descobrira as embuscadas dos kabilas. Agora, em pé,
na sala do alfaiate, fechou os olhos, concentrou-se e esforçou-se por adivinhar onde Doris estaria. Ela não o abandonara quando tudo corria mal; ele agora não podia
fazer uma festa e estar feliz, sem ela. Queria acender grandes fogueiras em honra daqueles primeiros cinquenta dólares e do seu significado íntimo.
Sentiu que o fitavam e percebeu que a sr.a Dostal estava ali ainda. Agachada por trás do manequim, olhava-o com curiosidade.
- Bem; vou ao Schuhmacher. - confiou-lhe, tratando de se desembaraçar do cheiro a pano que ali flutuava.
- Hoje está encerrado.-ouviu dizer, quando já ia na escada -Ela pôs o vestido novo; hoje não trabalha.
E a porta fechou-se.
Basílio correu para o seu estúdio. Censurava-se por o não ter feito logo. com certeza que lá encontraria notícias. Abriu a porta, esperando ouvir o barulho do papel
amarrotado que assinalava os bilhetinhos. Nada. Fez explorações no aposento. Nem bilhete nem carta. No entanto, sabia que ela viera pois as coisas que deixara em
desordem, estavam arrumadas. Além disso, havia no ar um pouco daquele perfume barato que ela utilizava nas ocasiões solenes.
Acabou por se deter muito tempo em frente da cama de ferro. A almofada fora mudada e o lençol tinha já a sua dobra virada. Aquilo queria dizer: deita-te e dorme.
Pegou nas cerejas, que colocara sobre a mesa e, maquinalmente, começou a comê-las, uma após outra. Guardava os caroços na mão.
Ainda os tinha, quando, passado um quarto de hora desceu à casa da Salvatori. A velha prima-dona lá estava. Mandou-o entrar e enquanto ele se sentava
numa antiga poltrona cor de laranja, enfiou os sapatos. Depois sentou-se também, ao lado de Carlota, o papagaio embalsamado. Olhou para o escultor com ar agressivo.
- Quere então saber onde está a Doris?-começou, antes de ele ter falado - Pois vou dizer-lho: estreia-se hoje na alta sociedade.
Impaciente, Nemiroff,cortou:
- Tenho uma coisa importante a comunicar-lhe.
- Está em Long Island, em casa dos Bryant!-- exclamou a Salvatori, muito orgulhosa.
Era extraordinário: Basilio esquecera completamente os Biyant. Lembrava-se agora, com um arrepio, da tarde em que lá bebera um infame chá americano, discutindo ferozmente
com a dona da casa. Os Bryant! Aquele homem que parecia uma bola de farinha.
De súbito, uma veia azul inchou na testa de Basilio ; o sangue pôs-se-lhe a ferver. Lembrava-se do que Doris dissera de Bryant. Deu um murro na cabeça e exclamou:
- Idiota, estúpido, imbecil!
Nem um só minuto, tomara a sério as palavras da rapariga. Agora tudo lhe voltava, num furacão. Doris era ingénua, acanhada e de uma comovente falta de jeito nos
seus esforços para esconder a sua extrema inocência. Mas era fiel. Fora ao seu estúdio, mudara-lhe a almofada antes de ir para casa desse tal Bryant. Não sabia,
decerto, o que fazia. Deu um pulo, com o rosto a arder mas sentindo uma sensação de frio no fundo do estômago.
A Salvatori gritou:
- Não vai agora incomodar a Doris, an? Ela já fez por si uma quantidade de sacrifícios, coitadinha!
A professora continuava a falar na sua rude pronúncia italiana, mas as palavras passavam, como um rio, junto de Basilio, que não compreendia nada.
- Doris vai começar a sua carreira. Bryant é o homem de que ela precisa. É já tempo de acabar com todas essas brincadeiras sentimentais. E o senhor, o que tem de
melhor a fazer, é não se mostrar, desaparecer,
deixar de estar sempre no meio do caminho, a entravá-la.
Sem a ver, Nemiroff olhou fixamente para a Salvatori. O que estava vendo, encontrava-se infinitamente distante no espaço e no tempo, em Marrakech. O estabelecimento
que tinha a tabuleta "Casa Fifi". A música, o fumo, o cheiro das pastilhas, do harém e do suor, as mulheres, o assassino absinto que os legionários bebiam em dia
de pré. Tudo aquilo nada tinha que ver com Doris, e, no entanto, estava-lhe ligado até certo ponto. Sentia uma vontade quási irresistível de torcer o pescoço ao
papagaio embalsamado. Disse algumas palavras, em russo, e só o tom fez compreender à Salvatori que ele estava a proferir injúrias.
Irritada, replicou:
- O senhor não tem o mínimo direito de a insultar! Que fez para merecer Doris? Nada.
Ao dizer "nada" batia com o indicador amarelo no peito de Basílio.
E ele pensava: "Nada. É verdade. Nada."
- Nem uma flor nem uma alegria, nada. - prosseguiu ela, numa ladainha que ele ia repetindo para si: "nem uma flor nem uma alegria."
Lembrou-se de que as flores, que se encontravam no seu atelier, nos últimos tempos, eram sempre trazidas por ela.
A grande ária da vingança, entoada pela Salvatori, acabava assim:
- com o pouco que ganhava, com esse dinheiro obtido à custa do seu sangue.
Estava escuro; ela já não tinha rosto e parecia uma negra montanha no quarto, que desaparecia na sombra. Basílio achou que não podia suportar mais.
- Muito obrigado. - murmurou, indo-se embora. Não acendeu a luz, lá em cima. Começou a andar
de um lado para outro, na escuridão. Reflectia. Quanto mais pensava, tanto mais via tudo confuso e insolúvel. Dentro de si, havia um sofrimento a amargurá-lo. Uma
hora passou. Como nenhum milagre se dava, nenhuma modificação, nenhuma solução, nenhum apaziguamento,
acendeu todas as luzes e resolveu-se a trabalhar. Pegou em papel de desenho e pôs-se a reproduzir o seu toucador, da forma mais académica e minuciosa. O prédio estava
singularmente calmo, naquele dia de Páscoa; até os lamurientos gémeos da cave tinham saído. Basílio cobriu várias folhas com o mesmo desenho, finamente traçado.
A bacia tinha, na beira, uma grande amassadela. Pouco a pouco, essa amassadela tomou a forma dum perfil. Também pelas paredes apareceram rostos. Pouco depois começou
a chover e a grande janela cobriu-se de figuras imprecisas e fugidias. Basílio encostou a cabeça ao vidro e olhou para fora. Viu apenas uma noite muito escura. Em
qualquer parte, um gramofone começara a tocar.
De repente, e sem motivo, tudo se aclarou, se ordenou e tornou razoável. Era simples: ia lá buscá-la. Persuadiu-se que era bem conhecido na casa e que tinha perfeitamente
o direito de ir buscar a sua amiga. As fontes continuavam a latejar-lhe de uma forma bizarra; dirigiu-se para o toucador e mergulhou a cabeça na água. Quando partiu,
pensou que talvez se desencontrassem, no caminho, vindo ela para ele enquanto ele ia para Long Island. Acreditava na telepatia amorosa e era por isso que deixava
de dizer muita coisa que devia ser dita.
"Espera-me; eu volto já". - escreveu num papel que colocou sobre a almofada. Deixou a porta aberta, o que não fizera há muito.
Foi apanhado por uma rajada, mal saiu a porta, ficando encharcado dos pés à cabeça. Caminhou contra o vento que era frio e forte como um corpo vigoroso. Antes de
chegar à esquina, compreendeu que não podia continuar assim. Era impossível disputar uma mulher a um milionário, quando se tinha o ar de um cão batido e molhado.
Sabia que devia fazer imediatamente o efeito de um homem que tem cinquenta dólares na algibeira e que acaba de obter o seu primeiro êxito. Não teve necessidade de
reflectir. Na estação do Metro, na segunda avenida, não tomou aquele que conduzia a Pennsylvania Station, mas subiu numa carruagem cheia que o levou à rua do Canal.
Para avisar os ladrões de que o patrão estava lá dentro, ardia uma luzita na pequena loja dos filhos Rouben; mas â porta encontrava-se fechada. Nesse momento, um
mau humor, sombrio e raivoso, apoderara-se de Basílio. Á chuva que gotejava para a gola do seu casaco usado, o facto de não ter camisa mas apenas um pano sem gola,
a corrida para o Metro à cunha, a necessidade de desempenhar o fato antes de aparecer em frente da Doris, tudo isso lhe dava o doloroso sentimento da pobreza. Não
estava disposto a ceder em face de um obstáculo ridículo: aquela porta fechada.
Entrou no corredor do prédio e bateu, com impaciência, à porta que dava, bem o sabia, para os aposentos particulares dos filhos Rouben. Lá dentro, havia um murmúrio
desprendido composto por numerosas vozes que se detiveram subitamente quando ele bateu. O brusco silêncio lembrou-lhe, como num sonho, a sua infância russa. Era
assim que toda a gente se calava, quando batiam à porta. Então a porta abria-se e vinham prender o pai. Tornou a bater. Corria-lhe água dos cabelos e estava todo
arrepiado.
Quando a porta se abriu, deparou-se-lhe um inesperado aspecto festivo. Em redor de uma comprida toalha branca estavam sentadas umas doze pessoas. Os homens alternavam
regularmente com as mulheres e, no fim da mesa, viam-se dois petizes de grandes olhos negros. Sam Rouben, o mais novo dos filhos, estava de pé junto de Basilio,
com a mão no puxador da porta. O aposento cintilava, iluminado por numerosas velas postas sobre a mesa em candelabros de prata. Basílio teve um sorriso incrédulo.
- Passah ? - preguntou.
De repente, toda a infância lhe voltou ao espírito. Estava sentado nos joelhos do seu avô judeu; cantava a alegre canção hebraica, batendo o compasso na mesa. Até
as primeiras palavras lhe vieram à memória. "Chad Qadio, Chad Cadio".
- Que deseja? -preguntou friamente Rouben. Repentinamente, Basílio abandonou o agradável
passado por um presente cheio de amargura.
- Preciso das minhas coisas. - disse com rudeza.
- Muita pena. mas hoje é feriado. - replicou o judeu.
Todos olhavam para a porta. Basilio notou o ritmo que continha o movimento semelhante de todas aquelas cabeças, mas o momento não era próprio para ter preocupações
estéticas.
- Preciso do meu fato e do meu sobretudo. disse mais uma vez.
Era como em Marrocos, quando entrava numa cidade árabe e exigia um alojamento. Todos os filhos Rouben tinham aspecto de árabes. Apressou-se a pôr um pé diante da
porta porque lhe pareceu que lha iam fechar na cara.
- O senhor não compreende que há situações na vida em que tudo depende de um bom fato? preguntou.
Sentiu quanto estava desesperado e só então percebeu a importância que possuía para ele aquela história com a Dorochka.
- Entre. - decidiu-se o judeu, depois de o ter observado durante alguns minutos.
Basilio entrou. Tirou o recibo da algibeira e mostrou-o. Dezasseis dólares e vinte cêntimos pelo fato quási novo, o sobretudo, o samovar e o velho revólver. Custava-lhe
sujar o soalho daquela sala em festa com as solas molhadas. Até os dedos estavam úmidos.
- Tem dinheiro? - preguntou o jovem Rouben. Declarou que tinha mais do que era preciso.
- Hoje não devemos fazer negócios nem tocar em dinheiro. - disse o prestamista que, nos outros dias, era um asqueroso usurário; mas a festa dava-lhe dignidade.
- Eu sei. - respondeu Basilio, conciliador.
- É judeu? - preguntou um homem sentado à mesa.
Toda a gente o fitou.
- Sou. - replicou, admirado.
Era uma das circunstâncias que, insensivelmente" havia desaparecido da sua vida, como o conhecimento da sua idade e a recordação da mãe.
- Pode saber-se porque motivo a sua vida depende de que o fato lhe seja restituído hoje? - preguntou o mesmo homem que, aparentemente, era o mais velho dos filhos.
- Tenho muita pena. - disse Basílio, e calou-se.
Durante um breve instante, a festa das velas acalmara-o, impelindo-o para longe de si próprio. Mas agora, uma raivosa impaciência, pronta a desencadear-se, apoderava-se
dele. Colocou o recibo do dinheiro sobre o aparador. Dezasseis dólares e vinte cêntimos.
- Não devemos tocar em dinheiro. - repetiu, teimoso, o agiota.
À custa de um grande esforço, a memória de Basílio encontrou qualquer coisa.
- Não tem schabesgoíte ? - ouviu-se dizer, estupefacto.
A palavra obteve êxito. Designa uma criada cristã que, nas casas dos judeus praticantes, executa nos dias de Sabbat todos os trabalhos interditos aos fiéis. Riram
em redor da mesa. Uma velha sentada ao lado dos pequenos, gargalhava com exagero, repetindo indefinidamente a palavra:
- Ele disse schabesgoíte, schabesgoíte.
Basílio, de pé no meio de todos aqueles risos e de palavras cochichadas, continuava à espera. Sentia decorrerem os minutos e estava cada vez mais impaciente por
ir buscar Doris.
- Tenho pressa.
O Rouben tirou um candelabro da mesa. Contou o dinheiro com os olhos mas não lhe tocou.
- Venha. - disse.
Na frente do Basílio, desceu três degraus e depois percorreu um sombrio corredor que conduzia ao armazém.
Aí reinava um cheiro a couro e a transpiração. Fatos usados estavam pendurados em cabides e miseráveis jóias amontoavam-se numa vitrina gradeada. A lâmpada eléctrica
que o Basílio vira da rua, lançava seu fraco clarão espectral.
- Procure as suas coisas. - disse Sam Rouben, alumiando com o candelabro uma grande quantidade de vestuário que cheirava fortemente a naftalína.
Contrariado, Basílio mergulhou as mãos naqueles tecidos, no fio, que cada vez lhe pareciam mais sujos.
- Isto. - disse por fim - E mais isto.
Rouben leu os números, verificou-os e concordou.
- Também quere levar o ,samovar ? Ele sacudiu negativamente a cabeça.
- E o revólver ?
- Sim.
Momentos antes ignorava se levaria o revólver. Foi como se lhe tivessem bruscamente deslocado uma alavanca de comando, na cabeça. Sem revólver nada podia fazer;
sem arma não era senão um impotente. Talvez aquele cheiro a naftalina espalhado pelo seu excelente fato, pudesse ser compensado pelo revólver. O usurário continuava
a não tocar em nada. Indicou com o queixo uma gaveta que Basílio abriu e onde, depois de procurar, encontrou a arma. Agarrou-a com força, como se fosse um velho
amigo.
- Também já pagou pelo samovar.- disse Rouben.
- Peço-lhe que me dê algum dinheiro de troco, porque não o levo agora.
- Já lhe disse que não posso tocar em dinheiro! A raiva e a impaciência fizeram zumbir os ouvidos
do Basílio. Durante esse tempo, Doris estava em casa dos Bryant.
- Então passe-me um recibo, certificando que paguei pelo samovar e eu venho cá buscá-lo amanhã de manhã. - disse em voz rouca.
- Hoje não nos é permitido escrever.-terminou o usurário, num tom que não admitia réplica.
Basílio abandonou a luta. Apenas preguntou:
- Posso mudar de fato, aqui ?
- Como quiser. - disse o dono da casa, deixando-o só.
Chovia menos mas de uma forma teimosa, quando Basilio tornou a encontrar-se na rua. Avançava contra a chuva envolto no seu cheiro da naftalina e sentia o
orgulho ferido por tal perfume. Debaixo do braço, levava o pesado samovar, chamado Pouchkine. Durante um momento, teve ideia de se desfazer dele, mas como o Pouchkine
era o objecto mais precioso que possuía, renunciou. As coisas não estavam tão confusas e desesperadas que fosse preciso recorrer a semelhante gesto. "Posso deixá-lo
no vestíbulo", pensou. Nesse momento, a sua intenção consistia em entrar em casa de Bryant com ar alegre e desprendido, como se se tratasse de um improviso, duma
surpresa. Estava perto e pensara em ir buscar Doris para a acompanhar a casa. Quando chegou a Pennsylvania Station e soube que era preciso esperar trinta e dois
minutos pelo comboio, sentou-se num banco, colocou o samovar a seu lado e tentou transformar-se num rapaz negligente e não destituído de elegância. Mais tarde, descobriu
que uma parte do seu nervosismo provinha de ter fome. Mas, nessa altura, chegou o comboio. Arranjou um lugar perto da janela, porque, àquela hora, pouca gente ia
da cidade para Long Island. Durante esse tempo não pensou em nada, observando apenas as gotas de água preta que brilhavam sobre o vidro escuro, e as luzes sob a
ponte e nas ruas da outra margem.
Até então não imaginava que Doris pudesse recusar-se a segui-lo, deixando Bryant. Fez um desdenhoso ruído com o nariz, quando tal pensamento o assaltou. Tinha a
certeza absoluta de uma coisa: que Doris o amava e o amaria através de tudo. Compreendia que se não afastara espontaneamente mas por ele a ter repelido, embora o
tivesse feito por sérias e excelentes razões.
O comboio parava, tornava a partir, tornava a parar e lá seguia, de novo. O seu ritmo acabava por formar uma frase desagradável. E se a Doris não quisesse. se não
quisesse. se não quisesse mais.
Andavam sempre; era uma penosa eternidade. Uma segunda ideia, horrível e tenaz, apareceu: fá-lo por amor a ti, por amor a ti. Murmurou algumas palavras russas que
eram injúrias dirigidas à Salvatori, a primeira que hoje o martirizara. Quanto mais pensava
nisso, mais fervia interiormente. Por um pouco, ia além de Great Neck; só um choque automático no seu sub-consciente o fez levantar e avançar, cambaleando, para
o cais, enquanto o comboio se punha, de novo, em marcha. Chovia.
No relógio da estação, era meia-noite menos dez. Foi só quando este facto lhe penetrou na consciência que avaliou o absurdo da sua empresa. No entanto, pôs-se corajosamente
a caminho, através da chuva, sob as árvores encharcadas, entre as alamedas, à luz de candeeiros muito espaçados.
A sua vida em Marrocos fornecera-lhe um instinto animal de orientação. Quási lhe não custou a encontrar a casa onde, algumas semanas antes, fizera uma visita inconveniente.
O que mais o incomodava, era o samovar; depois de breve hesitação, colocou o Pouchkine na beira do caminho, com a intenção de o retomar no regresso.
Coisa curiosa, era incapaz de imaginar esse regresso, embora, em geral, a imaginação nunca lhe faltasse. O melhor de tudo era convencer-se que Doris já entrara havia
muito na quinquagésima sexta rua, sendo aquilo tudo um pesadelo que desapareceria. Mas, no pior dos casos, ela recusar-se-ia a voltar e, então, seria preciso obrigá-la
a fazer, à força, o que melhor lhe convinha, a ele. Mas também podia acontecer que toda a gente estivesse a dormir em casa dos Bryant, não lhe sendo possível lá
entrar. Ou então que ela não tivesse vindo e, nesse caso, apareceria como um ridículo D. Quixote, triste, encharcado, cheirando a naftalina. Mexia o braço direito,
ainda dormente devido ao peso do samovar. Apressou o passo.
O portão do jardim estava todo aberto. Viu a garagem que se parecia com uma cavalariça e a cavalariça que se assemelhava a um pavilhão de entrevistas amorosas. Uma
quantidade de luzes brilhava ao longo da avenida e, no fundo do jardim, a casa estava também muito iluminada.
Ouvia-se musica. Dois cães atiraram-se como flechas, lançaram furiosos ladridos e só acalmaram quando
Basilio lhes colocou as mãos entre as orelhas. Um criado apareceu à porta grande, inspeccionou o recém-chegado e ficou à espera. Ele hesitou um momento antes de
entrar no vestíbulo de que o criado lhe abrira a porta, tirando-lhe o sobretudo molhado.
Encontrou-se primeiro em face de um espelho e contemplou-se. "D. Quixote", pensou, não sem orgulho. Era alto e magro e o seu rosto tinha sempre alguma coisa como
que rasgada, que tentara, em vão, reproduzir numa série de retratos. Os cabelos estavam úmidos e mais escuros do que habitualmente; o fato dava a ideia de que dormira
muitas noites dentro dele, sem falar do cheiro a objecto empenhado que o espelho não podia reflectir.
Foi então, em frente desse espelho, que Basilio, pela primeira vez preguntou a si próprio se tinha razão em vir buscar Doris. Sobre os espessos tapetes estendiam-se
ainda mais tapetes espessos; os pés enterravam-se como sobre musgo, i Onde fora ele buscar o direito de roubar Dorochka àquela existência algodoada, açucarada, dourada,
àquela vida em suave declive, trazendo-a para o mundo nu, duro e esfomeado, que era o seu? Talvez mesmo, e isso não era impossível, que Bryant Júnior lhe agradasse.
Nesse horrível momento, Basilio esteve pronto a reduzir a cinzas as suas próprias qualidades para tornar desmedidamente maiores as daquele homem rico. Além disso,
em qualquer parte, por trás das portas duplas, um gramofone tocava. Pareceu-lhe que devia tornar a pôr o sobretudo, renunciar àquela aventura e deixar correr as
coisas.
- Miss Hart está cá? - preguntou ao criado, que parecia ter sono.
- Não conheço as senhoras pelos seus nomes. respondeu o homem, amavelmente- Será uma loirinha de vestido encarnado ?
Basilio aproximou-se da porta onde Juddy Bryant o acolhera. O criado não o deixou passar e, de resto, tudo se encontrava silencioso, daquele lado.
- Onde está a sr." Bryant?-preguntou, querendo aparentar o aspecto de um homem despreocupado, de
um daqueles que conhecera ultimamente no lavabo do Casino de Paris.
- A sr.a Bryant está na Europa. - respondeu o criado.
Estas palavras atravessaram-no como um relâmpago. Sem nenhuma razão, julgava firmemente que a sr.a Bryant ali estava, que Bryant Júnior fazia a corte à Doris sob
os olhos da sua pretensiosa mulher. Agora tudo mudava, tudo se deformava.
Quando transpôs a porta que o criado lhe abriu com estranhas precauções, pareceu-lhe que haviam decorrido anos desde que se encontrara em face da mesa dos filhos
Rouben, adornada para a festa e iluminada por velas. Entrou com as fontes a latejar e os punhos cerrados.
O salão e a biblioteca vizinha estavam numa semi-escuridão; apenas algumas luzes se encontravam acesas: grandes bolas de vidro cheias de líquidos multicores.
O fonógrafo calara-se, mas o último disco continuava a girar com leve ranger. Parecia que ninguém se preocupava com aquilo. Havia algumas pessoas nas duas salas,
mas estavam tão escondidas pelos cantos que o escultor não as viu logo.
- Alto! - disse um rapaz, que se encontrava num sofá com uma mulher.
Estava completamente bêbedo e a rapariga não tinha mais do que um minúsculo soutien e uma calcita de seda.
- Alo, baby, vem dar de beber à menina. - murmurou ela, sem desligar os braços do pescoço do homem.
- É o Jimmy? - preguntou outra, deitada no tapete em frente do fogão.
A pintura dos olhos corria-lhe pela cara e o vestido escorregara-lhe dos ombros, de modo que se lhe via o seio muito pequeno e um pouco achatado. Na escuridão, por
trás dela, surgiram duas mãos de homem que a tornaram a pôr no tapete, na posição anterior. Ouviam-se risos abafados, na biblioteca. Quando Basilio continuou a andar,
alguém deu um grito e um
copo entornou-se, tilintando. Mas não era Doris. Ele franziu as pálpebras para ver melhor. E de repente, viu, num só golpe, a lasciva desordem da embriaguez, a bestialidade
da fadiga que começava a dominar, as marcas de bâton desenhadas pelos lábios nas faces dos homens, os círculos dos licores deixados pelos cálices sobre a madeira
do piano, o vestuário atirado para o meio do chão.
O fonógrafo recomeçou a tocar e, ao mesmo tempo, abriu-se uma porta lateral. Quatro pessoas entraram, a rir e a gritar. Eram três mulheres e um homem.
- Agarrem-no! Ele quere telefonar à mulher!
- Então é preciso ligar para o conde Perugi, é lá que deve estar a esta hora. - disse molemente a rapariga, deitada sobre o tapete.
O homem inclinou-se para ela, ergueu-lhe a cabeça e deu-lhe um soco na boca. Ela cuspiu algum sangue sobre o tapete e limpou-se com o braço. Calmamente, disse:
-Isto vai custar-te muito dinheiro, meu amorzinho.
Entretanto, na biblioteca, dois pares haviam começado a dançar; as mulheres estavam nuas e os homens vestidos, o que era um triste espectáculo. Pela segunda vez,
naquela noite, a "Casa Fifi" surgiu na memória de Basilio.
Passou a língua pelos lábios, que sentiu frios e secos. Quis dizer qualquer coisa mas a língua parecia-lhe um pedaço de papel. Pegou num copo que alguém lhe estendia
e onde estava impresso um pouco de bâton, na beira.
Pensou: "Doris, Dorochka, Dorochka!". O coração batia-lhe violentamente.
- Não tens mulher ? - preguntou o homem que lhe dera o copo - Procura uma, é o que há mais aqui.
Levantou do chão um dos esguios seres que lá se encontravam, e arremessou-o para ele.
- Quem é? - preguntou ela, de olhos piscos.
- É o Jimmy. - respondeu alguém.
Basilio desprendeu os braços, da criatura que se lhe pendurara ao pescoço. O contacto daquela carne tépida e mole tornava-o doido de raiva e nojo.
- Muitas mulheres e poucas camas. - disse o homem. E pôs-se a rir, encantado - Muitas mulheres e poucas camas.- repetiu cada vez mais orgulhoso com a descoberta.
De repente, um grupo atravessou a sala, a galope, e arrancou o telefone ao indivíduo que batera numa das mulheres e que, penosamente, se esforçava por estabelecer
ligação com a esposa.
- Ela está em Cincinatti, - repetia - tenho que lhe dar as boas-noites.
Também ele acabou por cair num divã, com a cabeça sobre o ombro de uma rapariga. Durante segundos, Basílio viu claramente uma expressão maternal no rosto gasto e
corrupto da mulher. Até as de Marrakech tinham aquela expressão indestrutível num rosto feminino.
"Doris!" pensou outra vez com uma dor lancinante, que o rasgava. "Doris, Dorochka, Dorochka!
- Onde está miss Hart? -preguntou ele à mulher que embalava maternalmente o companheiro.
Sentiu que se passava, dentro de si, qualquer coisa terrível, uma coisa que não conhecia nem compreendia.
- Quem?- preguntou ela.
- Refere-se ao modelo do Bryant. - disse uma que parecia, até então, ter estado a dormir.
Um dos homens deu uma gargalhada, cheirando a álcool.
- É muito boa essa! Olha o Jimmy a procurar o modelo do Bryant. É de uma pessoa morrer a rir.
- Que pretendes dela? Se soubesses como é maçadora! - disse a mulher que se lhe pendurara ao pescoço - Vamos dançar, anda. Bebe, primeiro. As pessoas que ainda não
beberam são muito malcriadas.
Basílio estava como que no meio de um incêndio. Doris, Doris, Dorochka. O homem que colocara a cabêça sobre o ombro da rapariga, abriu os olhos e o escultor notou
que ele tinha um dos olhos deitado abaixo. Aparte isso, toda aquela gente parecia irreal, fantasmas, personagens de sonho.
- A minha mulher está em Cincinatti. Não está em casa do conde Perugi. Está em Cincinatti, já disse.
Quanto à miss Hart está lá em cima com o nosso querido dono da casa. Segunda porta, à esquerda. As raparigas desataram às gargalhadas.
- Miss Hart. - gritaram, em coro - miss Hart, miss.
- Obrigado. - disse Basílio, que saiu da sala como se caminhasse num pântano.
O gramofone tocava ainda. O criado deu-lhe o sobretudo, que enfiou maquinalmente. Sentiu, surpreendido, que um suor frio lhe corria pela testa, saindo de todos os
poros da pele, descendo em gotas ao longo do pescoço. O criado olhou-o com curiosidade. E disse, com indulgência, como se se tratasse de crianças:
- Uma orgiazita!
O escultor repeliu-o e dirigiu-se para a escada que conduzia aos andares superiores. Viu então que o homem coxeava e arrependeu-se de o ter tratado mal. Subiu a
escada; não sentia degraus sob os pés, mas apenas uma coisa mole, como uma nuvem, e sem resistência. Segunda porta, à esquerda, num corredor cujas paredes haviam
sido guarnecidas com claras gravuras inglesas, de caça. A porta não estava fechada; abriu-a com um pontapé. Era um quarto mudo e vazio com um grande leito intacto.
Franziu as sobrancelhas, incapaz de pensar fosse no que fosse. E, então, ouviu a voz de Doris. Outra porta, na parede fronteira. Deteve-se um instante. No interior,
ela dizia qualquer coisa. Parecia rir baixinho. Viu, com uma precisão monstruosa, o que se passava no quadro que, precisamente, se encontrava na sua frente. Três
cães saltavam uma paliçada e um homem gordo vinha atrás num cavalo preto. Esta imagem e o cheiro a naftalina, tudo era preciso, próximo, inolvidável. Doris, Dorochka.
Pensou: "É impossível existirem situações como esta!"
Primeiro julgou que a porta estaria fechada, mas fora apenas a força que lhe abandonara a mão. Apoiou-se com todo o corpo sobre o puxador e a porta abriu-se.
A custo, Doris abriu os olhos e quási nada viu. Franziu as pálpebras e fez um esforço. Sentia-se mal. Então distinguiu uma coisa branca, um pedaço de face e ainda
mais qualquer coisa branca. Tateou na sua frente, e sentiu lã, também branca.
Pensou: "Estou numa cama".
Pregas de vestuário deslizaram perto, deixando ouvir um fru-fru.
- Que se passou? - preguntou ela, em alemão.
- Não fale, não se mexa. - responderam-lhe Dont move, dont talk!
Passou um momento antes que o pensamento seguinte lhe nascesse no cérebro. Confusamente, desejava saber por que motivo lhe falavam em alemão. Entretanto, uma dor
acordou-lhe no peito, tornando-se mais precisa de momento para momento.
- Desculpe, mas eu não posso respirar.-murmurou. Tinha os lábios tão secos que não podia pronunciar consoantes.
- Sim, sim. - foi a resposta vagamente consoladora que obteve.
Tinha a intenção de se queixar com violência, mas antes de o conseguir afundou-se, de novo, no sono ou na inconsciência.
Quando voltou a si, na vez seguinte, sentiu-se presa de dores infernais. Estava deitada e via, em seu redor, as paredes de um quarto de hospital. Mas repeliam-lhe
os ombros para o travesseiro e cada vez que fazia um grande esforço para se levantar, aquelas mãos, a voz e uma grande touca procediam em conjunto. Enquanto Doris
as fixava com o olhar, os bocados brancos e pretos juntaram-se e transformaram-se numa idosa irmã de caridade, sentada à sua cabeceira.
- Que se passou ? - tornou a preguntar, mas agora em inglês.
não pôde dar maior prova de amor, não acha, minha irmã?
A freira concordou que, realmente, um homem não podia dar maior prova de amor; acrescentou que se sentia feliz por ver Doris encarar assim as coisas e não acusar
o pobre diabo enclausurado na sua prisão.
Dias depois de o dr. Williams ter declarado que ela estava livre de perigo, três senhores do tribunal apareceram no hospital de Santa Ana. Como, durante muito tempo,
ela não poderia sair dali para depor, instalaram-se no seu quarto com uma máquina de escrever e um escrivão. Estavam bem dispostos e as suas vozes ruidosas trouxeram,
pela primeira vez, o mundo exterior até junto de Doris. O seu peito ainda a fazia sofrer cada vez que respirava, mas, a pedido daqueles senhores, declarou vivamente
que estava pronta a responder às suas preguntas. O juiz, um homem correcto, com boca de puritano e nariz de alcoólico, pôs os óculos, embora nada tivesse que ver,
e começou o interrogatório.
- Então conte-nos lá, miss Hart, o que sabe sobre o acusado Basílio Nemiroff. - disse, examinando atentamente o vestido de flanela espessa que Doris tinha e que
a direcção do hospital de Santa Ana fornecia a todos os doentes desprovidos de roupa.
Doris respirou com prudência e replicou:
- Basílio é o melhor homem que conheço. O juiz sorriu e observou:
- Não queremos opiniões, mas factos. Tinha relações com ele?
- Tinha.
- íntimas?
Os óculos do juiz reflectiam todo o quarto de paredes brancas. Doris meditou na pregunta. Tudo aquilo se encontrava já tão distante I A sua aventura com Basílio,
as noites ansiosas e amarguradas do início, tudo isso se tornara irreal.
- Sim. - respondeu ela, por fim, num tom mais elevado e mais decidido que anteriormente.
- O acusado recusa falar, - disse o juiz - É por
isso que desejo pedir-lhe alguns detalhes em que desejaria evitar de tocar a uma jovem senhora.
Doris levantou-se um pouco. Irritada, disse:
- Não sou uma jovem senhora e não estou habituada a que me tratem com tantas cerimónias. Não me envergonho do que faço, pode interrogar-me à vontade. Ninguém se
preocupa connosco porque somos pobres. Se não fôssemos uns pobres diabos, Basílio e eu. nada teria acontecido.
- É possivel.- replicou vagamente o juiz - Mas isso não é para aqui chamado. Rompeu com o acusado? Ele mostrou-se ciumento e ameaçou-a?
- Oh, não! - murmurou a rapariga, com impaciência.
Doía-lhe o peito porque falara alto de mais. £ continuou:
- Eu não rompi com ele. Foi muito diferente.
- Não ? Bem. Mas, no entanto, no dia de Páscoa teve uma entrevista galante com Franklin O. Bryant Júnior. É verdade?
- Mais ou menos.
- E não tinha acabado com o Nemiroff? Evidentemente que, então, o caso muda de figura. Mas afinal, ele tinha conhecimento da sua visita a casa do Bryant? Quero dizer:
tinha-lhe falado nisso?
- Não.
- Então como foi que soube? Porque foi a Qreatneck?
- Basílio tem o dom da dupla vista. - disse vivamente Doris.
- O acusado tem o quê? - preguntou o juiz, estupefacto.
Bruscamente, Doris deixou de se conter.
- O senhor diz sempre "o acusado". - exclamou
- Mas quem o acusou? Eu não, decerto. Se Basílio me quis matar é um assunto que diz respeito apenas a nós dois. Ninguém tem o direito de o prender.
A irmã Leocádia, para a moderar, pôs um dedo sobre o ombro de Doris, que tornou a cair na almofada, coberta de suor e sem forças.
- Bem; deixemos o problema jurídico de lado . de resto, também foi disparada uma bala com a intenção de atingir o sr. Bryant e foi uma sorte que o não haja conseguido.
A máquina estenográfica do escrivão deixava ouvir o seu martelar rápido e intolerável.
- Portanto, entrou em casa do sr. Bryant, persuadida de que Nemiroff o ignorava e apesar das relações íntimas que a ligavam ao acusado. Isso pode muito bem explicar
o seu ciúme e o seu desejo de vingança.- continuou o juiz, que era um magistrado antigo, com a mania de pôr todas as frases em fórmulas elegantes.
Doris quis contradizê-lo mas um olhar da irmã Leocádia fez-lhe compreender que a situação de Basílio melhoraria quanto mais culpada ela se mostrasse.
- Sim. - respondeu, sem se lembrar de qual fora a pregunta.
- Em casa do sr. Bryant, se não estou em erro, houve uma orgiazita, não?
- Houve.
-i Quando se retirou com o sr. Bryant para o seu quarto?
- Não sei em que momento foi porque me encontrava embriagada. De resto, eu estava no meu quarto.
Doris mostrava-se fatigada e tinha vertigens. A irmã limpava-lhe a transpiração da testa.
- Bem. Bem. - confirmou o juiz - Foi exactamente isso que Bryant disse, Mas não lhe passava pela cabeça que Nemiroff pudesse intervir?
- Não.
- Não. Mas ele apareceu. Queira descrever-nos a cena que se deu quando ele entrou no quarto.
Doris ficou muito tempo silenciosa. A ferida, com o seu cortejo de desmaios, anestesias e febre lançara uns véus benfazejos sobre a recordação daquela noite.
Começou:
- Bryant apareceu pouco tempo antes no meu ?quarto. Estava embriagado e eu tinha sono. Principiou a insistir e eu vi, subitamente, que aquilo seria superior as minhas
forças. Bem sabia que era incorrecto da
minha parte, pois deixara ir as coisas bastante longe e agora não devia recuar. Tentava simplesmente adiar o mais possível, pedindo a Deus que alguma coisa viesse
em meu auxílio.
- Um momento . E o que havia de vir?
- Não sei. isso não sei. - replicou Doris, que sentia, de novo, a angústia daqueles minutos, o cheiro a whisky que emanava de Bryant e o contacto quente e mole das
suas mãos.
- Não sei. - repetia ela Esperava talvez que ele adormecesse ou que os outros viessem ter com ele para lhe pregar qualquer partida.
- E foi nesse momento que a porta se abriu e o Nemiroff entrou. - prosseguiu o juiz - E depois?
- Depois? Pensei: graças a Deus, tudo se vai arranjar, agora. Não me passava pela cabeça que Basílio pudesse ter ciúmes. Ele estava em pé diante da porta e não dizia
nada. Bryant voltou-se e começou por ficar aterrorizado. Vi-lhe as orelhas a tornarem-se brancas. É espantoso como se vêem estas coisas em tais momentos que parecem
tão compridos! Bryant ergueu os braços para o ar e Basílio riu-se. "Largue imediatamente essa senhora!", gritou ele. Nessa altura, Bryant tornou-se insolente. Não
me lembro, ao certo, das palavras que proferiu, mas tratava-se de chantage, como se eu e Basílio estivéssemos de acordo e tudo aquilo fosse uma armadilha. Não compreendi
logo. Durante todo este tempo, conservou-se sentado na beira da minha cama. Então vi no rosto do Basílio que se passava qualquer coisa de extraordinário. É esquisito,
dir-se-ia que uma explosão lhe rasgara a cara. Era como ele estava. Saltei para fora da cama e não dei por mais nada.
A máquina seguira esta narração com o seu dócil martelar. Por fim, Doris já quási não tinha voz. Agora permanecia estendida de costas e respirava, contraindo o estômago,
metodicamente, seguindo as instruções do dr. Williams e da irmã Leocádia.
- O sr. Bryant afirma que as balas lhe eram destinadas e que escapou porque a senhora se pôs entre ambos. Acha isso possível?
Doris mediu exactamente a ratoeira que esta pregunta continha e respondeu que nada sabia a tal respeito. Ainda lhe fizeram mais interrogações - se ela sabia que
o Nemiroff possuía um revólver, se vira a arma em casa dele, se conhecia o seu manuseamento, se Nemiroff se mostrava muitas vezes violento. Ela respondia apenas
por sinais de cabeça afirmativos e negativos. Por fim, a irmã acompanhou aqueles senhores até ao corredor. Quando voltou ao quarto, viu Doris estendida, com os olhos
fechados, quási tão miserável como na noite em que a haviam trazido com um pulmão furado.
-Não podem fazer-lhe muito mal, não é verdade, minha irmã? - murmurou, sem abrir os olhos - Visto que sou eu a culpada de tudo, não o hão-de ter na prisão, não é
verdade?
- Não . não . - murmurou a religiosa, para a apaziguar.
Sabia muito bem que o crime e o castigo são duas coisas distintas que, muitas vezes, não apresentam entre si, a mínima correlação.
Quando Doris tornou a poder respirar, falar e sentar-se, ainda mais impaciente se tornou. Pôs-se a escrever numerosas cartas a Basílio, quási que pedindo-lhe perdão
pela bala que apanhara. Uma vez, recebeu uma resposta, uma carta que trazia o carimbo da polícia e com palavras muito escolhidas. Afirmava que estava de perfeita
saúde, declarava que se não devia apoquentar por sua causa e que ia tentar perdoar-lhe. Doris virou esta carta em todos os sentidos e pô-la mesmo em face da luz,
na pueril esperança de lá encontrar palavras escritas com tinta simpática que fossem do próprio Basílio e não de um homem estranho, cheio de ressentimento.
Durante uma noite inteira pensou: "E não me perdoou!"
Nem por instantes lhe passou pela cabeça que ela é que devia querer-lhe mal pelo estado lamentável em que a pusera. Toda a sua cólera se dirigia contra o jovem Bryant,
contra o seu dinheiro, o luxuoso carro, a casa rica, o amável mas orgulhoso mordomo, o seu champanhe e até sobretudo contra o seu pijama de seda.
Quando descobriu que Bryant pagava o médico e o quarto, ela teve novos motivos para meditar.
Reflectia singularmente durante as noites em que o sofrimento a não deixava dormir. Sentia uma dor horrível, disforme e móvel que ninguém sabia se era um pulmão
a curar-se ou um coração a deteriorar-se. Pensou mais em poucas semanas do que nunca o fizera na vida inteira e ocupou-se com coisas novas. A reflexão desenhava
linhas no seu rosto, dando-lhe profundidade. Quando se levantou pela primeira vez, amparada pela irmã Leocádia e lutando valorosamente contra o desmaio, a asfixia
e a vertigem, pareceu-lhe que tinha crescido. O seu rosto estava mais comprido e fino, os membros longos como os dos mortos. Bryant mandara-lhe um roupão que ela
não usava. Mas o vestido que tinha quando entrara para o hospital, o famoso vestido novo de dezasseis dólares e oitenta e cinco centavos, fora também ele que o pagara.
Envolta na bata que usavam os enfermos indigentes, foi até à janela e olhou para fora.
- Não terei então nada que me pertença?-preguntou com a sentimentalidade dos convalescentes.
Tinha vontade de ver a Salvatori, mas como se não referia a ela, a irmã mandava sempre embora a trepidante e ruidosa cantora, sem mesmo a anunciar a Doris.
Chegou um dia em que a porta se abriu para deixar passar Franklin. Rapara o bigode, medida que lhe não favorecia o rosto; a sua atrapalhação era cómica. Disse em
voz potente:
- Cá estamos, ambos vivos. E quanto ao escândalo, em cima de mim é que ele cai. O velho toma as coisas ao trágico, o que não admira porque é do século passado. Tem
medo dos jornais. Mas o barulho já terá passado, mesmo antes de o caso estar julgado.
Como Doris empalidecesse ao ouvir estas palavras, a irmã Leocádia colocou-lhe um dedo nos lábios.
- E então? - preguntou Bryant, sem se deixar perturbar - Náo se pode falar nisso ? Porque tenho a certeza de que Doris prefere saber que o maluco está encerrado
entre quatro paredes, do que temer que esteja cá fora, pronto a matá-la logo que a apanhe.
- Ameaçou fazê-lo? - preguntou Doris, em voz baixa.
- Sim, e pior ainda. Pessoas assim são um perigo latente, isto é que é verdade. Vamos fazer o possível para que fique sossegado e não possa mais atirar tiros nem
deitar bombas. Se isso dependesse de mim.
Interrompeu-se porque não podia compreender a expressão do rosto de Doris. Sorria com ar vago e a boca brilhava tanto que ele virou-se para ver se tinham acendido
alguma lâmpada.
- É verdade, se aquele doido não tivesse atirado sobre ti e sobre mim, eu quási o admiraria. Como deve ser bom experimentar semelhante sentimento! Ciúme? Pum! Confesso
que, quando ele apareceu, pensei realmente que vocês estivessem feitos. Que queres? É uma coisa tão frequente! Desculpa. i Sabe-se lá quantas mulheres vivem com
o dinheiro que puderam arrancar ao meu pai! Mas quando vi que o tipo não estava a brincar, compreendi tudo. Não tenhas medo dele, an? Assim que puderes sair, iremos
viajar e quando voltarmos, estará em segurança e ninguém se lembrará mais disto.
- Vamos viajar? - preguntou Doris.
Só nesse momento Bryant viu que ela falava pouco. Olhou para a irmã Leocádia que tinha as mãos juntas sobre o avental e andava ao longo da parede. Piscou-lhe os
olhos e disse em tom convincente:
- Queria dizer um segredinho a miss Hart.
A irmã trocou um olhar com Doris que, em silêncio, lhe suplicava: "Não me deixe só".
- Na minha frente, ninguém se incomoda. - replicou, sem abandonar o posto.
Bryant não se sentia bem na estreita cadeira lacada que se destinava às visitas. Também para ele a aventura
não representara uma brincadeira: fora ferido. Mas toda a gente o tratava mal: os jornais, o pai, a sociedade. E ainda por cima, a criadita que originara tudo aquilo.
- Ganhei uma data de perdas e danos. - disse em tom queixoso.
Colocou os dois braços na cama e debruçou-se sobre Doris, que recuou bruscamente, exactamente como fizera da outra vez. Cheirava a whisky.
- Então. então . - disse ele, em tom conciliador.
Aproximou a boca do ouvido de Doris e disse:
- A minha mulher pediu o divórcio.
- Não tenho nada com isso. Não conheço a sua mulher. - replicou ela, com esforço.
- Pois tens sorte.-exclamou o homem, desatando a rir - Não quero estar com graçolas tolas mas realmente a minha mulher é um bom número. Leu, em Paris, o espalhafato
que os jornais têm feito, a nosso respeito, e pediu o divórcio, por telegrama. E sabes porquê? Convém-lhe. Arranjou lá um marquês qualquer, um dançarino fidalgo,
um gigolô. E sabes por quem eu o soube? Pelo seu último. O último flirt Veio procurar-me, a mim, ao marido, para me fazer as suas queixas. Que comédia!
A irmã meteu uma das suas grandes mãos sob o braço de Bryant e afastou-o do leito.
- Não me interessa nada disso. - exclamou Doris que desejaria ser mais enérgica mas não podia.
Então Franklin notou a espectral palidez do seu rosto.
E disse a si próprio: "Toma sentido, F. O. Toma cuidado, F. O. O que desejo é que não arranjes mais sarilhos. E tu descansa que o F. O. arranjará tudo pelo melhor.
Ainda não estás nada bem; mas assim que isso arribar, iremos viajar. Podemos ir ao Canadá, por exemplo: não há lá muito calor e não se encontra gente conhecida."
Acabou o discurso em voz alta, de modo que a doente ficou admirada ao ouvi-lo falar em calor. Desde
que tivera febre, estava sempre a tremer de frio. E a falta de forças também lhe causava frio. No entanto, tomou fôlego para fazer uma longa arenga.
- Quero explicar-lhe imediatamente o que penso, sr. Bryant e vou definir a nossa situação. Não quero ir consigo. Não quero mais tornar a vê-lo. É-me odioso, quero
que o fique sabendo: odioso. Quanto mais dinheiro tem, menos o posso suportar. O senhor pagou o hospital e eu teria preferido rebentar no meio da rua. Restituir-lhe-ei
o seu dinheiro, até ao último centavo. Prefiro ir pedir esmola a partir consigo para o Canadá. Compreende? Reflecti bem nisto. O Basilio tinha toda a razão quando
o quis matar. Só estou arrependida por me ter metido no meio. Consigo e com os seus semelhantes nunca ninguém devia relacionar-se: trazem a desgraça a toda a gente.
Vá-se embora, vá-se embora imediatamente e nunca mais me apareça. Saia!l - gritou ela, fazendo o mesmo gesto com que se expulsa um cão.
Bryant ouvira aquilo tudo muito vermelho, mais espantado do que ofendido. A Juddy habituara-o e calejara-o em cenas destas.
Entristecido, pensou: "São todas umas histéricas!" Durante as semanas em que andava com o braço ao peito, troçado pelos amigos, deixara-se deslizar para uma agradável
exaltação romântica. Agora que via uma Doris real, embrulhada numa bata do hospital e atirando-lhe à cabeça aquelas coisas desagradáveis, sentia-se absolutamente
sucumbido. Virou-se para a porta.
- Ainda te hás-de arrepender! - exclamou. E, contente com esta saída, deixou o quarto. De resto, não estava nada convencido de que aquela brusca separação fosse
definitiva.
Passados dois dias, deixou de pagar o quarto e ela foi transportada para uma enfermaria onde estavam deitadas três doentes, havendo duas camas vazias. Tiraram-lhe
a irmã Leocádia e isso é que lhe custou muito. Mas Doris, a nova Doris estava decidida a não chorar. Tinha resolvido não deixar mais correr os acontecimentos, mas
provocá-los. É claro que,
Provisòriamente, continuava prisioneira da sua própria fraqueza. Na sala onde se encontrava, uma irmã chamada Cecília fazia reinar uma disciplina rigorosa, justa
e ruidosa sobre três ajudantes que, no contacto com as doentes, aprendiam o seu rude ofício.
De noite, ouvia-se gemer a italiana operada que ocupava o leito próximo e, a partir das quatro da manhã, uma criada irlandesa que tivera um filho e passava as horas
a murmurar monótonas rezas. Às vezes, a irmã Leocádia deslizava pela sala e vinha arranjar a almofada de Doris.
A enfermaria possuía, no entanto, uma vantagem: Doris podia mandar comprar jornais, o que até aí fora cuidadosamente impedido pela irmã Leocádia. Havia pessoas bondosas
que presenteavam o hospital com jornais e revistas. Lia-se tudo com uma semana de atrazo, mas com tempo. No fim de Junho, o processo andava nas gazetas e Doris recomeçou
a ter febre. Haviam voltado ao hospital para a interrogar, e ela não sabia se as suas complicadas respostas favoreciam ou prejudicavam Basílio. Viu no jornal o retrato
dele e até o seu: sabe Deus como o haviam obtido, visto a imprensa não ter conseguido licença para entrar no hospital. Também lá estavam o de Franklin, o da Juddy
e um instantâneo meio apagado, do pai. As mulheres das outras camas seguiam os relatos com gritos apaixonados, compassivos e indignados. Finalmente, entrara um pouco
de drama nas suas vidas maquinais e vazias e esse drama encontrava-se na mesma enfermaria do que elas. O dr. Williams continuava o tratamento, embora o secretário
do jovem Bryant o tivesse informado de que não deveria contar com novos honorários.
Doris está deitada com o jornal na mão, que deixou tombar sobre o leito. Reflecte. Vê Basílio encerrado no seu obstinado silêncio. O juiz esforça-se por lhe modificar
a atitude, mas em vão. É seu defensor o advogado Cowen, que também se vê no jornal, fotografado no momento em que está a dar coragem ao seu cliente. Este Cowen tem
boas intenções
mas estraga tudo. A sua defesa é uma demagoga diatribe contra a riqueza, a propriedade e os ricos, em geral. Os jornais contam, com doce ironia, que, estendendo
o braço para os jurados estupefactos, exclamou:
- Vós todos sois responsáveis por este tiro, o senhor . o senhor. e o senhor também - e todos aqueles que roubaram a luz do sol a esta pobre gente.
Quando Doris leu aquelas frases que se pareciam com os discursos exaltados que se podiam ouvir na Union Square, compreendeu que aquela era a maior condenação de
Basilio.
Depois da defesa, o juiz preguntou se ele tinha alguma coisa a dizer e Basilio respondeu apenas:
- Se o senhor tivesse encontrado a única mulher que amou, na situação em que eu encontrei a única mulher que até hoje amei, teria feito o que eu fiz.
Dez a quinze anos por tentativa de assassinato. O facto de Nemiroff ter insistido em desempenhar o revólver nos agiotas Rouben, foi considerado como uma culpa grave.
Como era o primeiro crime, a condenação foi outorgada de uma forma elástica, deixando alguma esperança. Os jornais felicitaram o júri pela justa condenação de um
perigoso anarquista e trataram de se preocupar com escândalos mais recentes e mais interessantes.
Doris estava estendida, exausta e desesperada, na sua cama hospitalar. Não podia fazer nada: encontrava-se, de novo, em face de um acontecimento que lhe era forçoso
aceitar. Mas, desta vez, não consentia em desmaiar e proibiu mesmo, a si própria, ter febre. Além disso, anunciou à irmã Cecília que, no fim da semana, deixaria
o hospital.
Na quarta-feira, nesse dia de visita em que os hospitais estão cheios de gente, e os quartos ficam com o cheiro dos visitantes, quando as temperaturas sobem e as
irmãs encontram, debaixo dos colchões, garrafas de aguardente, Doris também teve uma visita: os Schuhmacher, marido, mulher e o filho pequeno. Entraram em pontas
de pés, muito intimidados; traziam um ramo de
violetas e um enorme queque. Ficaram dez minutos à cabeceira de Doris, tossiram, falaram da chuva e do bom tempo e acabaram por abordar o essencial. O lugar dela
fora dado a uma sobrinha pobre que se desempenhava do cargo às mil maravilhas, ocupando-se até dos clientes diurnos, esses clientes que constituíam uma classe aparte,
velhos celibatários alemães que pagavam ao mês e se portavam como se fossem casados com o restaurante Schuhmacher. Doris esboçou um pálido sorriso e felicitou-os
por, tão vantajosamente, a terem substituído. Eles declararam que ela não podia continuar a ser criada. Convidaram-na a ir comer ao restaurante sempre que quisesse,
tornaram a abotoar o casaco do petiz e retiraram-se. Em seguida, Doris ficou silenciosa e fatigada. Tinha medo das agências de empregos da sexta avenida onde as
pessoas se amontoavam nos bancos.
Mas convenceu-se de que não devia ter medo de nada nem de ninguém. A nova Doris encetou um duelo de ideias com a antiga. O medo desapareceu mas a febre subiu. No
dia seguinte, o dr. Williams fez-lhe ver que a sua partida era prematura.
Doris queria ir para casa no sábado - mas onde era agora a casa dela? Na sexta-feira, a Salvatori fez irrupção pelo quarto dentro, absolutamente contra todos os
regulamentos e fora das horas das visitas normais. Por felicidade, gastara grande parte da sua excitação em frente da porta, nos combates a que se entregara, para
poder entrar. Foi, portanto, uma Salvatori bastante calma que apoiou longamente os secos lábios sobre a face de Doris. Naquele dia, ela levantara-se e esforçava-se
por se conservar direita e caminhar: emancipara-se mesmo da sua poltrona de doente, empreendendo alguns passeios através dos corredores. O beijo seco, duro e sólido
da sua professora deu-lhe vontade de chorar mas não chorou. Já tinha o hábito de sentir as pálpebras escaldantes, à força de reprimir as lágrimas.
- Poderás ainda cantar, minha filha? - preguntou a visitante - E antes que a rapariga tivesse tempo de responder, afirmou fogosamente: -É claro que sim,
evidentemente. Hás-de cantar melhor.
depois de erguer os ombros, disse resumidamente:
Tenho agora de respirar de uma forma diferente daquela que aprendi consigo.
As mulheres das outras camas não despregavam os olhos da Salvatori, que trazia uma boa de plumas pretas sobre o seu vestido de purpura. Seguiam dificilmente a conversa.
Doris não gostava de privar as companheiras de uma distracção; no entanto,-levou a professora para o corredor e aí, caminhando com presunção, pelo chão escorregadio,
falou à cantora na sua vida. O alfaiate tornara a alugar o quarto, visto que ela tinha deixado de lho pagar.
- Ao princípio alojar-te-ás na minha casa. - decidiu a italiana, com um grande gesto - és célebre, os jornais dirão que começaste a tua carreira num velho sofá do
meu quarto. Incrédula, Doris ficou abstracta. A Salvatori descobriu, de repente, o duplo sentido da frase que proferira, e começou a rir ruidosamente. Tudo que fazia
ou dizia era calculado para que os espectadores da ópera pudessem ver e ouvir. Tão subitamente como começara a rir, tornou-se grave e silenciosa. - Quais são as
tuas relações com esse Bryant.
Preguntou. Doris hesitou e disse, com mais força do que de costume:- Não houve nada entre nós e nunca haverá coisa nenhuma.
-Bem. Muito bem. - foi a inesperada resposta.
DoriS olhou-a, surpreendida. Sob o penteado teatral, descobriu, pela primeira vez, o rosto real da cantora - um rosto cheio de experiência e tristeza. Como que para
lhe dar satisfação, disse:
- com todos, menos com ele.
A professora aprovou com a cabeça. Achou não
menos excelente que Doris não voltasse ao Schuhmacker.
- Vês, minha filha? A tua rouquidão desapareceu, desde que não trabalhas naquela imundície. - afirmou, convicta.
Como Doris falava com insistência em procurar uma nova ocupação, andou com o dedo indicador da direita para a esquerda, dando com a boca um prolongado assobio. Doris
ficou comovida ao reconhecer este gesto italiano de total negativa.
- Desta vez, começamos uma vida nova e mais inteligente. - prometeu.
Doris não compreendeu grande coisa mas o tom era persuasivo. Também ela experimentava uma exortassão análoga: não queria ser esmagada, mas sim esmagar os outros.
A tremer, esperava que a Salvatori lhe falasse no Basílio, para dizer mal dele. Mas a cantora retirou-se, nesse instante, prometendo vir buscá-la no sábado, arranjando-se,
então, tudo pelo melhor, Doris deitou-se e ficou a reflectir.
O hospital estava habituado a não ver o dr. Williams, senão quando havia algum caso urgente. De contrário, ia passar o week-end no Connecticut. Mas nesse sábado
ficou, com grande surpresa da irmã Cecília que já estava a desfazer a cama da Doris, preparando-a para a doente seguinte.
Ele entrou no seu pequeno consultório e disse que desejava ver a rapariga. Pusera o fatal vestido de dezasseis dólares e noventa e cinco e estava muito graciosa.
O seu rosto tomara mais expressão mas o cabelo estava mais pálido.
- Está então pronta para partir, embora o seu médico particular lhe não tenha dado alta.- disse ele, muito sério.
- É verdade, doutor. - respondeu Doris com docilidade, mas com firmeza. E olhou para ele. Conhecia-lhe todas as feições, todos os pêlos do ante-braço que saíam,
nus, das curtas mangas da bata.
- É só no mundo? - preguntou o médico, que chegara a esta conclusão, quando Bryant deixara de pagar. Ela fez um sinal com a cabeça. Ele prosseguiu:
- Senão teria falado com a sua família. Mas então vejo que tenho de tratar o assunto consigo.
Olhou-a durante algum tempo, com ar vago, enquanto ela esperava a continuação. Por fim, ela disse:
- Não sei como lhe hei-de agradecer.
- Isso é absurdo. - replicou o médico, vivamente, passando a mão pela mesa, como para varrer tal frase.
- Oiça. - acrescentou como se acabasse por ver claro - Tratei de si, quando estava num estado bem grave, portanto, tenho certos direitos sobre a sua pessoa, não
é verdade? Quero dizer que é dos meus casos preferidos, uma coisa de que estou orgulhoso e da qual me gabarei na Sociedade dos Médicos. Mas para isso é preciso que
viva, não só por agora mas por muito tempo, não é verdade ?
- Farei o possível.-respondeu a Doris, sorrindo. Estava habituada às suas brincadeiras.
- Mas isso dependerá, em grande parte, de si. É preciso não dar cabo dos gatos que eu lhe deitei. Compreende?
- Nem por isso.-declarou Doris, embora começasse a compreender. Cada pulsação do coração fazia-lhe ainda doer como se fosse um esforço enorme lançar o sangue através
das veias e ao longo das cicatrizes.
- Qual é a sua profissão? - preguntou o médico, em tom severo.
- Era criada de restaurante ou de crianças. Como a estas palavras, o médico sacudira a cabeça, em ar reprovativo, tomou fôlego e disse firmemente: Agora quero ser
cantora.
- Isso é insensato e impossível. - exclamou ele, secamente - Tenho que lhe dizer de uma vez para sempre, com brutalidade: uma costura no pulmão, isto é, uma bala
no peito, é uma coisa com que se não brinca. Se quere viver ainda algum tempo, deve conservar-se absolutamente calma. Nem trabalho pesado, nem comoções, nem desgostos.
Nem alegria, é verdade, nem alegria que faça bater o coração. Uma vida calma e sem emoção. Pode cultivar cactos. ou ter um cão. não
sei. nas revistas há sempre conselhos para alegrias pequenas, como eles dizem. profissão calma, talvez professora de línguas.
Interrompeu-se. Envergonhava-se de dar estes conselhos a uma pobre rapariga que naturalmente não tinha dinheiro para pagar as três mais próximas refeições. Além
disso, a inquietação pelo que acabava de lhe revelar, podia colocá-la em perigo. Pegou-lhe na mão para lhe tomar o pulso sem que desse por isso. Estava normal. Nem
mesmo empalidecera.
- E se não puder fazer tudo quanto me aconselha, doutor ?
Encolheu os ombros, antes de responder:
- Depende. Pode durar muitos anos.
- Quantos ?
- Três. cinco. oito. - replicou vagamente. Ela mexeu os lábios. Parecia uma criança numa lição de cálculo mental.
O médico dominou-se. Afinal era um cirurgião e tinha que falar claro.
- Mas devo dizer-lhe muito sinceramente que depois de um excesso qualquer, fisico ou moral, tudo pode acabar de repente.
Doris precisou de um instante para assimilar tais palavras. E murmurou:
- Obrigada.
- Provisoriamente, desejava que viesse todas as semanas à consulta. - concluiu o dr. Williams, que não se sentia à vontade - Aqui está o meu cartão.
Doris pegou-lhe e fez com ele um pequeno canudo que enrolou nos dedos.
O médico deu ainda outro alvitre:
- Poderia também casar. Mas sem ter filhos, é claro.
Doris sorriu, delicada mas distraidamente, apertou-lhe a mão, agradeceu-lhe mais uma vez e retirou-se.
A sua saída do hospital foi magnífica. A Salvatori tinha arranjado um grande e velho carro com motorista - dizia ela que emprestado, mas, na verdade, alugado - e
a irmã Leocádia acompanhou Doris até à porta; no derradeiro momento, meteu-lhe na mão um livro de orações. Doris sentou-se ao pé da professora e a carripana arrancou.
Nos últimos meses e mesmo antes, a rapariga pensara que não tinha amor à vida. Desde a conversa com o dr. Williams já assim não acontecia. Queria viver e viver totalmente.
Não desejava conhecer apenas as pequenas alegrias, mas também as grandes, já que recebera também, como quinhão, grandes dores. Mas, sobretudo, queria viver até que
o Basílio saísse da prisão. Quando pensava no assunto, não imaginava que aquilo pudesse durar doze anos, mas tinha a certeza de que qualquer acontecimento o libertaria
depressa. E sabia também que ela é que tinha de provocar tal acontecimento. Aprendera à própria custa que não havia milagres, mas que a perseverança, o esforço e
o auto-domínio conseguiam tudo.
Olhava fixamente para fora. Estava-se no começo de Julho. Nunca se haviam visto aquelas cores nem aquele brilho que escorria de todas as coisas, tanto dos canteiros
de flores das casas ricas, como dos miseráveis telhados dos bairros pobres. Um sítio onde parecia que o mundo inteiro pusera as suas caixas de conserva, cintilava
como nos contos de fadas. E quando passou por um montículo de excremento fumegante, Doris voltou-se para o ver. Nessa colina em miniatura, estavam pousados alguns
pardais, que discutiam violentamente, como se se tratasse de uma coisa preciosa. E quem sabe se um pedaço de excremento não era uma coisa preciosa. Aquilo fazia
parte do que Doris, naquela hora de regresso, abraçava com tanta força e que desejava conservar o mais tempo possível: a vida.
Naquele dia, a Salvatori manteve-se silenciosa, mostrando-se cheia de atenções. com efeito, a volta para o velho prédio não foi uma tarefa lá muito fácil para a
rapariga. O barulho de todas as portas, o cheiro da escada, a grande janela do quarto andar, que estava partida e ficava negra quando a noite chegava - tudo aquilo
tentava alanceá-la e, durante alguns momentos de terror, julgou que era aquele o género de comoção pelo qual a vida poderia acabar, de repente. Mas a noite lá se
foi passando no divã da Salvatori, se bem que a Carlota, o papagaio embalsamado, se tivesse, de modo desagradável, embrenhado nos sonhos da rapariga.
O pequeno almoço foi agradável e, logo a seguir, tomou a sua primeira lição de canto. De resto, logo à entrada em casa, se começara a falar italiano e aquilo representava
um esforço tão grande, que fazia esquecer o resto. A voz aclarara, liberta da rouquidão, e embora a Salvatori amaldiçoasse com um discreto gemido, a sua nova maneira
de respirar, Doris achou que o seu canto era melhor do que antigamente.
Durante a primeira semana, esforçou-se por se tornar útil na casa da sua protectora. Era uma estranha casa: umas vezes faziam-se grandes despesas e outras, ficava-se
com fome. As velhas coroas espalhavam um cheiro a pó ou a enterro e, antes de empreender a mais insignificante acção, era preciso obedecer a cem cerimónias cabalísticas.
O sono e as refeições eram tratados com grandiosa negligência; não havia horas próprias. Mas nunca a Salvatori, antes de se deitar, deixava de olhar para debaixo
dos atravancados móveis do seu bizarro lar, para se assegurar de que não havia ladrões escondidos-e todas as vezes ficava desiludida por não encontrar ninguém. Às
vezes, fazia obscuras alusões como se a Maffia devesse proximamente executar contra ela uma antiga ameaça - e então perdia-se no labiríntico recordar da sua passada
carreira. Durante todo o dia, viam-se aparecer silhuetas curvadas: eram os alunos de canto que, com vozes angustiosas, vinham cantar árias ou duos, nos quais a Salvatori
interpretava
sempre a segunda voz, quer se tratasse de soprano, baixo ou tenor.
Durante esse tempo, Doris encontrava-se na cozinha em miniatura, onde estavam expostos os trofeus que não haviam encontrado lugar no quarto.
A professora proibiu-lhe terminantemente que procurasse já uma colocação e ela obedeceu, metade por respeito e metade por conveniência. Estava ainda com péssimo
aspecto - era impossível que alguém lhe desse trabalho enquanto andasse com a doença estampada no rosto. Mas havia uma outra coisa, mais importante, de que não falava
à Salvatori: precisava de ir ver o Basílio.
Ora, era um problema complicado para o qual a antiga Doris nunca acharia solução. Depois de reflectir, pensou que o melhor caminho para alcançar Basílio passava
pelo advogado Cowen. Mas isso também era complicado. Na lista dos telefones, havia uma data de advogados chamados Cowen. Arranjou uns jornais velhos-ainda lhe doeu
o peito ao reler as notícias que sabia de cor - e viu o nome todo: Irving Cowen. Desceu à queijada que estava no rés-do-chão do prédio e preguntou se podia telefonar.
-Não tem ar de estar muito doente.-disse-lhe a patroa, que não lhe fazia uma cara tão carrancuda como o resto do prédio.
Telefonou aos numerosos Irving Cowen, até que, por fim, encontrou o verdadeiro.
- Sou a rapariga a quem o Nemiroff alvejou.- disse, em voz opressa, no auscultador que cheirava a cebola.
Do outro lado do fio, acolheram-na com desconfiança. Marcou hora para o dia seguinte. Aquele Irving Cowen tinha o seu escritório no fim da décima quarta rua. Ela
não possuía dinheiro nem para o metro nem para o telefone.
- Posso pagar o telefone na próxima vez? preguntou.
- Pois não. - replicou-lhe a dona do estabelecimento, retirando-lhe a consideração que ainda lhe dedicava.
Pediu um dólar emprestado à Salvatori e, no seu mau italiano, pediu-lhe também que não lhe preguntasse que uso ia fazer dele. A professora limitou-se a sorrir e
a deitar-lhe três pitadas de sal por cima do ombro - porque se perdem os amigos a quem se empresta dinheiro, se não se toma esta precaução. Doris sentou-se no cartório
de Irving Cowen, que
não era tão novo como supunha: tinha cabelos grisalhos
mas possuía, no entanto, uma pele singularmente lisa e
rosada.
Levou uma hora a vencer a sua desconfiança. Vivia num mundo branco e preto. Os pobres e os ricos. Os opressores e os oprimidos. Basílio disparara sobre um milionário:
fazia parte dos pobres. Doris, que não tinha um dólar, mas começara uma ligação com um milionário, pertencia, na sua opinião, à sociedade capitalista. Tratou-a como
a uma inimiga, dando-lhe a impressão de estimar tanto Basílio como ela própria. Constituiu para Doris uma grande consolação poder finalmente falar do preso, tendo
quem a ouvisse. Era uma felicidade quási física, uma coisa que sentia profundamente em si própria e que, de resto, lhe tornava a respiração difícil e dolorosa. com
certeza que aquele facto tão simples - falar em Basílio - pertencia à série dos factos perigosos. Deixá-lo!
A conversa com o advogado Cowen era o primeiro acontecimento importante que sucedia a Doris desde que Basílio a alvejara. De repente, veio-lhe a verbosidade. Contou
e explicou até certas coisas que ignorava antes de as exprimir. Enquanto o advogado ouvia, apareciam-lhe manchas vermelhas no rosto. A sua resistência cedeu de uma
forma inesperada. Pegou na mão da Doris e fez-lhe uma festa.
- É uma valente rapariga, ainda bem que não morreu. - declarou.
Participou-lhe que o Basilio estava de boa saúde e que, escrupulosamente, se submetia ao regime da prisão. Se assim continuasse, tirar-lhe-iam quatro meses por ano,
por excepcional comportamento. Enquanto falava, os dez anos de pena mínima, fundiam-se a olhos vistos,
transformando-se em sete, seis e até cinco. Até parecia que estava a tirar o curso de uma escola onde se reeducavam originais recalcitrantes. Cowen ria-se com carinho
cada vez que falava de Basílio, como se evocasse a recordação de uma boa piada: citou algumas das fórmulas e dos singulares paradoxos do preso. Prometeu arranjar
tudo para ela o poder visitar e defendeu-se com um sorriso humilhado quando a rapariga declarou que não lhe podia pagar.
- vou ser cantora. Assim que for célebre, pagar-lhe-ei o dobro.
Ela própria se admirava da sua certeza. Às vezes, saíam-lhe da garganta uns sons que sentia ressoar e vibrar na cabeça, mas, no entanto, ainda não estava absolutamente
convencida que aquilo era cantar.
De resto, um estranho fenómeno se produziu. Ao cabo de duas semanas, depois de ter tomado a lição com a Salvatori, encontrou-se tão rouca como dantes. Desta vez,
aquilo não podia ser motivado pela atmosfera do restaurante. A professora viu no facto um "mau olhado".
- Eu bem sabia que a minha voz não prestava para nada. - disse Doris, profundamente ferida por esta derrota.
A Salvatori sacudiu a pesada cabeça e, tilintando, os ganchos de metal caíram-lhe da sombria cabeleira. Em ar trágico, prometeu:
- Eu saberei donde isso vem!
Foram precisas três semanas, muitas conversas telefónicas e viagens no metro antes de Irving Cowen conseguir, para Doris, a licença de ir ver Basílio, a Baxterville.
Ela não deixara de pensar nesta visita, não como se fosse uma coisa real, mas como se se tratasse de um episódio de folhetim. Agora que se tornava provável, deixou
de dormir. As suas noites passavam-se em diálogos com ele.
"bom dia Basílio, como estás? Posso fazer alguma coisa por ti? Queria só que soubesses que não há nada mudado entre nós. Esperar-te-ei o tempo todo
que for preciso. Mantem-te, não te deixes ir abaixo, Basílio.".
Mas não, tudo aquilo era absurdo. Aquelas conversas eram coxas, pois ignorava o que ele responderia. "Esperar-te-ei todo o tempo que for preciso", era uma delicada
mentira. Um ser cujo coração começava a sofrer logo que pensava nessa entrevista, cuja respiração e pulso paravam, um ser que, cada noite, julgava ser a última,
não tinha o direito de dizer:
- Esperar-te-ei o tempo que for preciso.
E, no entanto, aquela frase parecia-lhe a mais importante e a mais bem torneada de todo o imaginário diálogo.
- Agora tudo está claro. - disse Cowen, numa certa sexta-feira-Poderá ver o Nemiroff a 2 de Agosto às nove e meia, e ficará vinte minutos com ele. ainda é bastante.
Já me informei de tudo. Deve partir para Baxterville na véspera à noite porque o comboio da manhã não chega a tempo. Tem um na gare central às vinte horas e dois
minutos. Dormirá no Hotel Lincoln. Custa um dólar e cinquenta, a dormida. Poderá voltar no comboio do meio-dia e estará aqui às dezasseis e vinte e dois. O bilhete
de ida e volta custa catorze dólares. Em resumo, vinte dólares chegam muito bem para hotel, gorjetas e tudo.
Cowen deteve-se um momento e depois preguntou:
- Tem vinte dólares?
- Não.
As suas mãos estavam sobre a mesa; procurava distender-se, afastar a pressão que lhe abafava o peito. Dali até 2 de Agosto - era uma têrça-feira - faltavam apenas
quatro dias .
- Não tenho nem um cent.. - confessou, olhando confiadamente para o advogado.
Irving Cowen corou, o que acontecia muitas vezes às suas faces rosadas.
- É uma vergonha! - exclamou ele violentamente
- E o pior é que também eu não tenho vinte dólares. Emprestar-lhos-ia, se os tivesse, pode crer, mas não os tenho.
Aquilo não oferecia a mínima dúvida, quando se olhava para o sombrio aposento que servia de cartório ao advogado, em harmonia com o seu fato coçado e a velha máquina
de escrever de que ele próprio se utilizava. Doris sabia que lhe haviam suprimido o telefone por o não pagar. De resto, já lhe havia dado pequenas quantias para
selos e telegramas. Fazia tudo isto sem motivo aparente; tinha apenas um sentimento impetuoso das suas obrigações para com todos os que eram tão pobres como ele.
Mas o certo é que mentia, dizendo que não possuía vinte dólares. Tinha no Banco um pequeno crédito de seiscentos dólares mas nem a si próprio o confessava.
Em tom de camaradagem, disse à Doris:
- Temos que arranjar esse dinheiro, seja como for.
- Pois temos. - concordou ela.
- Esta visita não pode deixar de se fazer por uma questão pecuniária. - acrescentou, quando ela já estava à porta.
- Eu hei-de arranjar esse dinheiro. - declarou a rapariga, cheia de importância.
Tinha três dias na sua frente. E bem sabia que a Salvatori não lhe emprestaria dinheiro para ir ver o Basílio.
Esta havia ensaiado um novo método. Pediu à discípula para cantar baixinho, exalando sons. Ela própria fazia sair sons breves das pontas dos dedos, fazendo, em seguida,
o gesto de mandar as pequenas notas para o ar, onde começariam a vibrar. Estava-se a 30 de Julho e Nova-Iorque abafava de calor. A italiana despojara-se de todo
o vestuário, com excepção de uma camisa guarnecida a renda de Milão. Os seus vigorosos ombros amarelados faziam lembrar um talho mas tinha as unhas polidas e ponteagudas,
como nos velhos retratos a óleo. Doris tentava cantar baixinho com a sua voz rouca, mas aquilo, assim, ainda ia pior. Nenhum som se ouvia. Teria gostado de cantar
mais alto, tendo a impressão de que poderia assim exprimir e expulsar um pouco da sua tensão nervosa; mas então a Salvatori berrava como se fosse atrás dum cão.
Pela
primeira vez, não eram senão escalas ou solfejo que Doris devia cantar, mas uma ária de Rossini: una você poço fa.
Lutava com a garganta recalcitrante e acabou por renunciar. A Salvatori ficou sentada em frente do piano com uma expressão de maldade no lábio caído. Doris deslizou
para a cozinha. Assim que ficou só, a professora, cheia de raiva, arrancou a camisa e deitou-a para um canto. A transpirar de aflição, Doris ouvia-a cantar o seu
trecho favorito.
Preparou uma leve refeição fria e limpou a loiça espalhada por cima de todos os móveis. Esfregou as mãos com um limão, como fizera sempre no Schuhmacher, para tirar
o cheiro da comida, depois vestiu-se na escura sala de banho que se assemelhava à arrecadação de um armazém de antiguidades.
"Na quarta-feira procuro uma colocação", pensou. No compartimento contíguo, a voz da Salvatori continuava sempre. Bateu à porta, mas mandaram-na para o diabo e a
interrompida ária recomeçou outra vez.
- vou ao Schuhmacher. - gritou Doris.
Não obteve resposta. Na escada, ouviu o choramingar dos gémeos. Na porta de baixo encontrou a sua antiga companheira de quarto, a Borghild.
- Como vai isso?
- Bem, obrigada.
- Felicidades. - E desapareceu no patamar da escada.
Doris sentia, obscuramente e com surpresa, que perdera todo o contacto e toda a solidariedade com os seres humanos, desde que uma veia se encontrava ferida no seu
peito e tudo podia acabar repentinamente. Era uma situação que a desligava de numerosas responsabilidades e tirava importância a muita coisa. Sentia-o sem o poder
exprimir.
A rua parecia ainda mais quente do que a casa, apesar de ter caído a noite; as paredes lançavam lufadas de calor acumulado sobre as pessoas que, extenuadas e a soprar,
permaneciam acocoradas diante das portas e nos degraus férreos das escadas de salvação.
Ao entrar no Schuhmacher, Doris tinha tenção de pedir emprestados os vinte dólares de que precisava, oferecendo como hipoteca o seu futuro trabalho. O restaurante
não estava tão cheio como nos outros sábados, decerto por causa do calor; o cheiro não mudara. O primeiro objecto que viu, foi a sua substituta, a sobrinha. Era
uma rapariga muito nova e bonita que parecia ter imenso prazer em sentir a curta saia a bater-lhe nas pernas. Examinou Doris, com um olhar, e indicou-lhe a mesa
catorze, a pior do estabelecimento, visto que os clientes passavam constantemente por ela para ir ao lavatório.
- Obrigada, não quero comer, não sou uma cliente.
- disse vivamente Doris - Onde está o sr. Schuhmacher? Em baixo?
Designou com o queixo o andar inferior, donde subiam o rolar das bolas e o rumor dos risos.
- Não; foi fazer uma viagem. Quere falar com a esposa?
- Obrigada. - disse, com hesitação - vou à cozinha. Sei onde é, já aqui estive empregada.
Contrariava-a a ausência do patrão, porque era mais afável e mais fácil de manejar do que a mulher. No entanto, lá se dirigiu para a cozinha.
Passados vinte minutos voltou e sempre se sentou na mesa catorze.
O seu pedido de empréstimo fora recusado, mas recebera um convite para jantar. Todas as ventoinhas estavam a trabalhar e o calor tornara-se intolerável. Mas se ela
não abandonou o estabelecimento, foi porque lá tinha as suas razões.
Já não era a Doris de outrora, que deixava correr os acontecimentos, abandonando-se nas ondas do acaso. Agora pensava e actuava. Já sabia que não conseguia o dinheiro,
de modo que logo um plano impreciso lhe nasceu na mente. A bala que recebera no peito dera-lhe a faculdade de distinguir as coisas que são importantes das que o
não são. É importante arranjar o dinheiro necessário para ir ver o Basílio. Não é importante o meio de o conseguir.
Está na mesa catorze e os homens passam a seu lado para irem lavar as mãos. Relações antigas reconhecem-na. Alguns frequentadores trocam várias palavras com ela
- timidamente, porque esteve metida num escândalo. Dizem-lhe que está ainda mais bonita. Sorri com gratidão. Entre eles, os homens notam que a rapariga parece mais
acessível. O tipógrafo Hofer declara que tem menos pose. O sr. Wallert, outro cliente, sorri, com satisfação, ouvindo tais palavras. O sr. Wallert possui uma papelaria,
é divorciado, anda pelos quarenta e dois anos e vive na América há onze; tem olhos azuis, cabelos negros, muito brilhantes, e as refeições cotidianas, naquele restaurante,
fazem-no engordar um pouco.
Entretanto, Doris tira um pente da algibeira e arranja um penteado provocante, com uma espécie de caracol na testa. Quando o sr. Wallert volta, murmura como que
inconscientemente que ela tem uma pulga na orelha e, a brincar, mexe-lhe no cabelo, a procurar em redor das orelhas. E descobre assim que ela esconde as mais lindas
orelhas do mundo. É uma vergonha não as mostrar: são minúsculas conchas de rebordo fino e bem torneado - verdadeiras maravilhas. O sr. Wallert é um conhecedor. Falam
ainda, um bocado, sobre essa descoberta e depois convida-a a beber uma caneca de cerveja com ele, lá em baixo no bowling.
Aceita, reconhecida. Tudo quanto, nesta ocasião, a possa entontecer, é bem-vindo. O seu coração porta-se correctamente. Bate com calma e regularidade, a respiração
é fácil e não causa a mínima dor. Vê-se a um espelho e acha que está bem. No local a que chamam bowling, acolhem-na com gritos. Há várias mulheres e muitos homens.
A cerveja, devido à lei seca, perdeu o seu carácter inofensivo e burguês e tornou-se um excitante. Muitas pessoas encontram-se embriagadas, com a voz cavernosa que
a cerveja dá. Felizmente que Wallert permanece no seu estado normal. De uma forma geral, é mais agradável e mais distinto do que os outros. Tem olhos azuis, mãos
cuidadas, um anel de brasão que herdou do avô de Friburgo. De tempos a tempos,
pronuncia uma palavra alemã, mas esqueceu muito da sua língua materna. Está apaixonado pelas lindas orelhas, escondidas, de Doris, e diz-lho em alemão. Acrescenta
que sempre gostou dela. Para o provar, descreve exactamente o seu aspecto, o tempo que estava e a ementa que havia, no dia em que a viu pela primeira vez. Doris
bebe conscienciosamente. Não custa assim muito. Podia ser mais difícil. É quási agradável estar sentada ao pé de alguém, receber um pouco de calor e de ternura.
Ás onze horas, deixa o restaurante, na companhia do sr. Wallert, a quem já nesse momento trata por Gustavo, visto que apesar de não ser lá muito bonito, é o seu
nome. Às duas e trinta regressa, sobe em bicos de pés, até à casa da Salvatori e deita-se no sofá, para dormir. Não tem dificuldade em respirar, nem remorso, nem
desprezo. Mergulha no sono como em água quente e límpida, agradável. Tem trinta dólares, e isso é o que importa.
- vou amanhã ver o Basílio. - disse, no sábado à noite à Salvatori, que estava sentada, em camisa, perto da janela aberta, por onde o calor entrava como uma onda
de lava. A Salvatori tinha renunciado a mexer-se, mas os seus olhos viraram-se, espantados, para a rapariga.
- Já está tudo combinado. vou amanhã. Na quarta-feira estarei de volta e procurarei logo uma colocação. - continuou ela, precipitadamente, se bem que pronta a combater.
Mas a explosão que esperava, não se deu. A professora ergueu, com esforço, a mão, avançou lentamente até Doris que estava sentada no escuro aposento, numa das almofadas
género cogumelo, e acariciou-lhe a cabeleira num gesto singularmente meigo.
- Está bem, minha filha. E deixar-vos-ão sós?
- Creio que não. - replicou ela, interdita por tão imprevista atitude.
A Salvatori voltou, outra vez, para a sombra, o seu rosto manchado de grandes placas vermelhas, e que se iluminou com o reflexo dos candeeiros.
- Precisas de dinheiro para a viagem?-preguntou.
- Obrigada. Já tenho. o Schuhmacher. - respondeu Doris, com vivacidade.
Sofreu um instante, pensando que poderia ter evitado a noite antecedente. Paciência.
- Nesta ocasião, estou completamente tesa.- disse então a italiana, que empregava a palavra bioke, saltando còmicamente da linguagem italiana para o calão de Nova-Iorque.
- Daqui a pouco ver-se-á livre de mim.-replicou Doris.
Considerava-se devedora e como que prisioneira de muita gente. A Salvatori. O dr. Williams. Irving Cowen. Quási que desejava regular com eles as suas contas, tão
bem como o haviam sido com o sr. Wallert. Quando pensava na véspera tinha a impressão de que, não havendo outro meio, não podia ter deixado de proceder assim.
A Salvatori voltou-se para ela e proferiu, como numa profecia e em tom magnífico:
- Pagar-me-ás quando cantares na Ópera Metropolitana.
Doris ergueu os olhos para o pedacinho de céu nocturno e ardente que aparecia por cima da rua, depois, o olhar caiu sobre as mãos que apertava contra o peito. No
meio do silêncio, ouviu de repente a cidade, o barulho, o rolar, o ranger dos carros, o deslizar dos eléctricos, o ronronar mais cavo dos comboios aéreos. Era um
ruído tão habitual que já se não ouvia, exactamente como se não apercebe o barulho que a terra faz, ao girar. Durante um segundo, a sua pátria surgiu, a pequena
cidade de Odenwald, no crepúsculo. Em seguida desapareceu.
Então Doris pôs-se a falar, com surpresa sua:
- Não queria que tivesse muita esperança no meu futuro, porque me parece que nada conseguirei. Não só por causa da rouquidão, mas de uma forma geral. Não gosto de
falar nisto, pois parece que me quero tornar interessante. Mas o dr. Williams disse que eu não tinha muito tempo de vida. Alguns anos talvez, com a condição de que
não me mexa, nem cante, que não faça nada, enfim! É claro que não me conformo. Se estou viva, quero dar por isso. Mesmo que me faça doer quero sentir que vivo.
Sacudiu a cabeça, satisfeita pela verdade da observação. Tornava a sentir a dificuldade de se exprimir numa língua estranha, enquanto que a sua se apagava lentamente,
esbatendo-se-lhe na memória. A Salvatori também sacudiu a cabeça, e com tanta violência que os seus cabelos se agitaram.
- Compreendo, oh, compreendo perfeitamente. Uma vela a arder pelos dois lados. Aqui está o que é a artista: uma vela a arder pelos dois lados. Sentir a gente que
vive, mesmo que faça doer. Sabes o que Deus disse, antes de morrer?
Mas a rapariga não mostrou desejo de o saber, andando perdida nos seus próprios pensamentos.
- De modo que tudo pode acabar de um momento para outro; agora ou daqui a dez minutos.
"Ou na têrça-feira quando estiver com o Basílio" pensou.
A Salvatori virou-se bruscamente para ela, inclinou-se e colocou-lhe a mão na boca, exclamando:
- Basta! Basta! Cala-te! Não se deve falar nessas coisas.
Benzeu-se, bateu com a mão na madeira da janela e, por prudência, tocou ainda, com uma cruz, no peito da rapariga. Depois ficou silenciosa. Daí a momentos, declarou:
- Hás-de ser a mais célebre cantora do século. Doris voltou a si. Tossiu antes de responder, pois
sentia-se mais rouca do que nunca.
- Às vezes, tenho uma vontade doida de cantar,
de cantar sem descanso, até não poder mais. - disse ingenuamente.
Erguendo os olhos, viu, surpreendida, que o rosto da professora estava inundado de lágrimas. Corriam tão fácil e abundantemente como as gotas de transpiração às
quais se misturavam; quando chegavam à boca, a Salvatori lambia-as com a língua. Doris não ousava preguntar a si própria se a professora chorava por ela ou pela
discípula.
- É uma coisa que deves aprender. - disse a italiana, sem transição, numa voz perfeitamente normal.
- O quê? - preguntou Doris.
- Chorar sempre que queiras. No palco, as lágrimas verdadeiras têm um valor extraordinário. Algumas actrizes têm-nas sempre à mão, outras nunca as conseguem provocar.
Tens que aprender.
- Mas como ? - preguntou a rapariga, muito admirada.
- É um truque. Deverás pensar em alguém que te faça chorar. Eu, por exemplo, penso no Bebé e as lágrimas vêm logo.
Doris não se arriscou a preguntar quem era o Bebé -um filho, um papel ou um amante, todos três esbatidos em qualquer ponto do seu passado.
Respondeu, apenas:
- E eu que desejava perder o hábito de chorar! A Salvatori pôs-se a rir, baixinho. Levantou-se
num movimento régio que não estava nada em harmonia com a camisa. A discípula temia uma nova cena patética; mas ela limitou-se a fazer-lhe uma festa na cara e a
acender o candeeiro.
Ainda não era bem noite quando chegou a Baxterville. A estação era simples e para lá dos railes estendiam-se campos. Havia um cheiro a fumo de lenha. O aspecto e
o aroma faziam lembrar a estação de Bingsheim, o local onde nascera.
- A que distância se encontra a cidade? - preguntou ao chefe da estação que, depois de ter dado sinal de partida ao comboio, estava a acender um cigarro.
- Cerca de seis quilómetros. - respondeu ele, examinando-a rapidamente, mas com exactidão. E pensou: "Uma visita para a prisão." com a pequena maleta em imitação
de couro, na mão, pôs-se a reflectir.
- Há táxis por trás da estação. - disse o homem, com certo orgulho, antes de voltar aos aparelhos Morse, do seu escritório.
Estava ainda calor mas menos do que em Nova-Iorque. Doris encontrou os dois táxis, tomou um deles após breve reflexão e rodou para a cidade através de uma alameda
de árvores pobres e mal plantadas. Passou perto das cabanas de madeira do bairro negro, depois dos bungalows onde a classe média estava instalada sobre os terraços,
os homens em mangas de camisa e as mulheres com a costura nos joelhos. Havia um harmónio em qualquer parte. A lua erguia-se já, delgada e como que desenhada a lápis.
Gatos e cães atravessavam o caminho e o céu permanecia singularmente claro por cima das casas escuras. Viraram bruscamente em Mainstreet, vendo-se então algumas
montras vulgares, o alto prédio do Banco, o cinema, dois mercados, o hotel Lincoln. No estreito hall, encontravam-se sentados em cadeiras de balouço alguns caixeiros-viajantes;
olharam-lhe para as pernas, fingindo não as ver. Os quartos a um dólar e cinquenta estavam todos ocupados; obteve um por dois dólares. O táxi custara setenta centavos
e dera cinquenta de gorjeta. As pessoas que recebem gorjetas dão-nas sempre elevadas. O quarto cheirava a mofo; o calor do dia acumulara-se ali. Doris desembaraçou-se,
com satisfação, do pó e da transpiração da sua curta viagem. Sob o chuveiro pôs-se a cantar; a rouquidão diminuíra. Cantava ainda, sem dar por isso, quando desceu
ao hall. Hesitou um instante e saiu. Tinha tenção de procurar a cadeia mas não ousou interrogar o secretário do hotel, sentado à sua mesa. Na rua,
lançou olhares indecisos para a direita e para a esquerda; parecia-se imenso com os milhares de Mainstreet das pequenas cidades espalhadas pelo continente. Parou
em face das estonteantes montras do grande armazém: expunham os mais recentes modelos, eram provincianos e retardatários como na sua terra, em Bingsheim. Pensando
nisto, sentiu-se outra vez no estrangeiro; afastou-se, a suspirar, dos elegantes modelos expostos e continuou o seu caminho.
Não suspirava sem orgulho, pois havia apenas alguns dias que podia suspirar sem sentir dores violentas e penetrantes. Quando entrou na loja da esquina para comer
uma sanduíche, notou, pela primeira vez, que um dos cavalheiros do hall, deixara a sua cadeira de balouço para a seguir. Sentou-se ao lado dela e mandou vir um sorvete.
Preguntou-lhe:
- Sozinha a viajar ? As mulheres, daqui a pouco, tiram-nos o pão da boca.
Doris aceitou delicadamente a sugestão: era caixeira-viajante. Mentiu mesmo, contando que visitava as diversas lojas onde se vendiam revistas. Ficou satisfeita por
ele acreditar. O homem convidou-a a passar o serão com ele. Conhecia um sítio onde poderiam beber qualquer coisa. Libertou-se, dizendo que ainda lhe faltava fazer
uma visita. O homem ofereceu-se para a levar no seu carro, pois utilizava-o sempre nas viagens de curta duração. Recusou, não sem pena. Desejaria continuar a desempenhar
aquele papel; ou antes desejaria ser mesmo uma rapariga trabalhadora e inofensiva que, em Baxterville não tivesse mais nada a fazer do que vender revistas. O homem
pagou a despesa dela e apertou-lhe a mão.
- Então esperá-la-ei no hotel. - declarou, ao deixá-la.
Dorís aguardou que ele se afastasse, depois preguntou a um preto, baixinho, que encontrou à esquina da rua, qual era o caminho para a prisão. O preto sacudiu a cabeça,
riu-se e deu as explicações. Parecia que a prisão se não encontrava na cidade, mas fora. O rapaz disse que estava a dois ou mais quilómetros de distância.
Atravessava-se a ponte, depois passava-se ao lado da fábrica e, em seguida, seguia-se a direito. Dórís bem sabia que aquilo era um contra-senso, mas não se podia
dominar: precisava de se pôr a caminho para ver a cadeia.
Sob a fina lua que tomou mais importância depois de ter deixado para trás as luzes de Mainstreet, começou a andar. Á cidadezita preparava-se para dormir. Quando
passou a ponte, sentiu um pouco de frescura úmida a subir do rio. Na água, reflectiam-se a lua e o céu pálido. Depois da ponte, a estrada descia. Passou junto de
um par de apaixonados, depois, houve um bocado com árvores muito espaçadas. A cidade parecia ter feito ali uma tentativa de parque que depois abandonara. Longe,
elevava-se uma construção iluminada
- era decerto a fábrica.
Não sabia se caminhava havia muito tempo, mas sempre andando, meditava no aspecto aventureiro que a sua vida tomara. Fora, outrora, a filha única e amimada do dr.
Hart, de Bingsheim. Agora, seguia um caminho absolutamente desconhecido e dirigia-se para uma prisão. Ia ver um estranho que lhe dera um tiro. Calculava que aquele
homem a amava - senão não se teria dado ao trabalho de a alvejar - mas não tinha a certeza. Não tinha mesmo a certeza de o amar. Sob a luz bastante viva da fina
lua que avançava regularmente, ia fazendo o seu exame. É verdade, não sabia se o amava. Sabia apenas que ele se tornara a coisa mais importante da sua vida, quer
durasse muito tempo, quer terminasse bruscamente, segundo a ameaça do dr. Williams. O que reconheceu firmemente foi que a sua vida e a de Basílio, estavam intimamente
ligadas para sempre, quer existisse ou não amor entre eles.
Havia muito tempo que passara para lá da fábrica e dos seus grandes vidros iluminados; inconscientemente, pusera-se a cantar. Agora, a estrada atravessava os campos,
entre duas linhas de árvores pequenas. Cheirava à sua terra. Doris notou então, com espanto e satisfação, que a sua voz tinha um som harmonioso e cheio. Não pronunciava
as palavras, porque tinha ainda
dificuldade com as consoantes. Só cantava as vogais mais fáceis, o a e o e no estilo da única toada que aprendera. Quando se calou, um silêncio profundo cobriu os
campos e, ao cabo de um segundo, ouviu o estridular de mil cigarras.
A cadeia erguia-se sobre uma pequena colina e, de longe, na transfiguração da lua nova, tinha qualquer coisa de senhorial. Era um edifício de tejolos branqueados
com cal e que mostrava, do lado da estrada, um aspecto absolutamente acolhedor e cortês. Nem grades nas janelas nem muros altos. Até havia alguma hera nas paredes,
como que para facilitar a evasão dos presos. No interior, num dos pátios que se não viam cá de fora, um cão enfureceu-se com a aproximação de Doris e pôs-se a ladrar
furiosamente, de tal maneira que ficou rouco. Ela manteve-se a alguma distância do edifício. Tinha realmente um aspecto tão pacífico que ninguém diria ser uma casa
de correcção. Como se demorasse a contemplá-la sem ter a certeza, surgiu subitamente um homem junto dela e deitou-lhe para os olhos a luz de uma lâmpada de algibeira.
Ficou estonteada. O medo deu-lhe uma grande pancada no coração, que se agitou, começando-lhe a doer.
- Que veio aqui fazer ? - preguntou o homem, que não tinha uniforme.
- Nada. É esta a prisão?
- Deve saber isso tão bem como eu. O Que quere ?
- Nada. Desejava apenas ver a prisão, tenho... tenho uma pessoa lá dentro e virei vê-la amanhã. É preciso mostrar-lhe a licença?
O homem iluminou-lhe outra vez o rosto, mas, desta vez, com mais cuidado. Resmungou qualquer coisa.
- Vá dormir. Isto aqui não é lugar para senhoras.
- Deixe-me ficar ainda um momento. Desejaria saber qual era a janela do prisioneiro,
mas não atinava com a maneira de o preguntar. O homem ficou a seu lado, como uma sentinela, enquanto a rapariga levantava os olhos para as claras paredes,
sem ver nada. Também não sentia nada. "O Basílio está fechado lá em cima", pensava. Era como durante a lição de canto, às vezes: a Salvatori pedia-lhe para ter expressão,
quando ela nada tinha para dar. Estava ali em pé e contemplava a casa com olhar vazio. "O Basílio está fechado lá em cima.. está fechado lá em cima." Como nenhuma
emoção surgiu, decidiu ir-se embora.
- Obrigada. Boa noite. - disse ao homem que se afastara, com tacto, enquanto ela fixava as paredes da prisão.
- Boa noite. - respondeu ele.
Passado algum tempo, notou que ele procurava segui-la, sem ser visto. Deslizava pelos campos, muito curvado. "com certeza que quere certificar-se da minha partida."
Parou e, impaciente, dirigiu-se-lhe:
- Oiça! Aproximou-se e preguntou:
- Que deseja, menina?
Um pouco irritada, preguntou-lhe:
-Pois não vê que não tenho más intenções?
Ele hesitou.
- Vai sozinha para a cidade? - preguntou por sua vez.
- Claro que vou.
Então estendeu-lhe um pacote de cigarros, quási vazio.
- Quere?
- Obrigada. - e tirou um.
Agora sentia-se melhor. Não fumara desde que apanhara os tiros. Dava largas passadas, enquanto saboreava o cigarro, mas tendo todo o cuidado para que o fumo lhe
não chegasse aos pulmões. Sentia a cabeça tornar-se mais leve. E pensou: "Hei-de fumar muito."
Só então notou que estava fatigada. Campos, cigarros, céu, árvores pequenas em linha. Pensou: "Abusei das minhas forças." Mas já fizera a experiência de que podemos
fazer tudo o que exigimos de nós próprios, o que exigem os homens, a vida, o destino.
Enquanto continuava a caminhar, tomada de vertigem, mas trauteando uma canção, admirava-se por ser uma planta tão sólida. "As pessoas são feitas de uma substância
resistente", pensou. Custou-lhe imenso a chegar à ponte. Dava meia-noite quando entrou no hotel.
Numa cadeira de balouço, lá estava sentado o seu amigo, o caixeiro-viajante. Disse-lhe, a rir:
-Eu não a preveni de que esperaria todo o tempo que fosse preciso?
Ela enrugou a testa. Aquela frase pertencia-lhe. Era a que, todas as noites, trocava com o Basílio, em sonhos.
- Agradeço a amabilidade, mas estou extremamente cansada. - respondeu, fitando o rosto jovem do seu interlocutor
Era o lindo rapaz da capa das revistas: nariz pequeno, cabelos ondulados mas disciplinados pela brilhantina, conjunto limpo, correcto - esperto e hipócrita.
- Todos os do grupo estão já no meu quarto e esperam por si, com impaciência.-disse ele, convicto Temos uma data de munições e excelente, verdadeiro gin. E também
lá estão mais duas senhoras.
Doris tornou a ter pena de não ser o que desejaria: uma inofensiva rapariga, uma camarada para aquele rapaz vulgar - uma mulher vulgar com um amor vulgar.
- Tenho muita pena. - disse - Já estou a dormir em pé. Tenho uma coisa importante a fazer amanhã.
- Todos nós temos uma coisa importante a fazer amanhã.-replicou, empurrando-a para o ascensor.
Premiu o botão e começaram, bruscamente, a subir.
- Eu vou para o quarto andar. - disse Doris.
- Muito bem. Que número ?
Olhou para o pedaço de madeira que se balouçava na sua chave e disse-o.
- 34.
Estava morta de cansaço.
- Então somos vizinhos. - alegrou-se o insistente rapaz.
O ascensor parou.
- Apenas meia hora. - mendigou ele, em frente da sua própria porta.
Lá dentro, estavam alegres mas sem fazer muito barulho. Ela abriu a boca para dizer que sim. Queria beber e fumar. Queria, principalmente, tranqUilizar-se em face
de si própria. Em vez disso, respondeu:
- Não.
- É estrangeira? Sueca? - preguntou o rapaz que só nesse momento lhe notou a pronúncia.
- Alemã.
- Ah, bom. - disse ele, como se tal circunstância explicasse tudo - Bem, não queremos insistir, visto que está assim tão fatigada.
Acompanhou-a cortesmente até à sua porta e abriu-a,para a deixar passar. -É pena. - disse. Ela agradeceu e fechou a porta. E pensou também: "É pena."
Nemiroff estava a trabalhar com mais quatro prisioneiros no atelier dos colchões, quando o vigilante Wallace, de alcunha Focinho de Cebola, se aproximou dele.
- Pára. Lava as mãos. - ordenou-lhe.
? ..Nemirof depôs logo a agulha e a linha, levantou o colchão onde se encontrava apoiado e seguiu Wallace. O vigilante conduziu-o ao compartimento onde estavam os
baldes e vigiou-o enquanto deitava agua nas mãos, esfregando-as com uma bola de sabão.
- Para a frente. - ordenou Focinho de Cebola.
Começou a andar. Caminhava muito hirto, na frente do vigilante, pensando sempre que apanharia um pontapé se fizesse qualquer coisa contrária ao regulamento. Passou
junto da casota de vidro, de onde o guarda de dia vigiava os corredores dispostos em forma de estrela. A maior parte das celas dos presos estavam vazias porque os
habitantes permaneciam ocupados nos ateliers ou nas construções. O corredor dos "bravos", que se destacava em ângulo recto, parecia-se assim a distância, com um
jardim zoológico. Nemiroff nunca podia desfazer-se desta impressão quando ali o conduziam. Muitos estavam sentados, em silêncio, outros andavam de um lado para outro
em frente das grades, mas nenhum possuía o aspecto de um ser humano. Nemiroff não tinha pena deles, nem de si próprio, mas antes uma espécie de desprezo pelas pessoas
que se deixavam encarcerar. No entanto, a visão daquelas criaturas presas fazia-o, às vezes, sofrer, porque lhe recordava a criação plástica, quando afinal passava
os dias a fazer colchões. De resto, os colchões tinham tendência para se transformar, formando silhuetas de mulheres nutridas, assim como acontecia às nuvens, quando
ele era pequeno.
Wallace conduziu-o até à segunda porta; o guarda verificou um papel que ele lhe estendeu e abriu-a. Nemiroff registou este excitante acontecimento com um choque
no coração, que lhe encheu todo o peito.
- Parabéns. A tua pequena vem-te visitar. - disse o guarda, quando ele passou.
Este guarda, um rapaz a quem chamavam Joe, estava em boas relações com os prisioneiros que, no entanto, temiam a sua força atlética. Dizia-se que cumprira alguns
anos de prisão e que se emendara antes de o transformarem em guarda.
- À direita. - ordenou Wallace, e Nemiroff rodopiou num gesto militar para tomar um escuro corredor.
Também aí não cheirava bem, mas não havia aquela atmosfera bestial feita de fenol, sabão verde e resíduos de porcaria humana que enchia as celas e os corredores.
Nemiroff ainda tinha no ouvido o som das
palavras ouvidas, mas não lhes apreendera o sentido. Estava em Baxterville havia quarenta e dois dias e os seus pensamentos caminhavam mais devagar do que outrora.
com gestos de precaução, Wallace abriu outra porta. Nemiroff não conhecia esta parte do edifício.
"A tua pequena vem visitar-te". O quê? Mas eu não tenho pequena. Quem virá ver-me? O Cowen? Esperando que o Wallace conseguisse abrir a porta, o Nemiroff ia fazendo
as suas deduções, com esforço. Se aproximava o tom de gracejo do guarda e as suas palavras, ao nome de Cowen, era influenciado por certas alusões particulares da
vida da prisão. Aí, como nas casernas ou nos navios, em toda a parte onde estão presos homens sem mulheres, florescia uma forma estranha e cínica de homosexualidade.
Havia sempre no ar alusões e ditos que não poupavam ninguém. Ele não se misturava àquelas conversas mas servira na Legião Estrangeira e compreendia o que se passava.
"A tua pequena vem ver-te".
Finalmente, Wallace achou a chave que servia; com o pé empurrou a pesada porta e fez passar Nemiroff à frente. No aposento, estava tão claro que este foi obrigado
a fechar os olhos, por um momento. Parecia que haviam guarnecido com um telhado de vidro um dos inúmeros pátios interiores, criando um resplandescente local cheio
de sol leitoso e ressumante de calor. Quando Nemiroff pôde tornar a servir-se dos olhos, viu, na sua frente, uma grade guarnecida com uma rede de arame semelhante
a certas paliçadas de jardim, agradável espectáculo depois de tantos grossos e duros varões de ferro. Ao lado dele, o rapazito magro estava sentado perto de uma
pequena secretária e folheava uma espécie de registo. Wallace estendeu o seu boletim ao rapaz, enquanto Nemiroff se mantinha rígido, tão rígido como um legionário
e não como um condenado americano. O rapaz sacudiu a cabeça, comparou o boletim com o seu registo e disse:
- Tem uma visita. Vinte minutos.
A direcção da prisão tinha por princípio não anunciar as visitas com antecedência. Observara, à sua custa,
que os prisioneiros se tornavam irritáveis quando esperavam uma visita, o que dera lugar a incidentes desagradáveis, zaragatas, e até a pequenas revoltas. Por isso,
apresentavam agora as visitas como surpresas.
Nemiroff piscou os olhos para a grade, por trás da qual uma silhueta se erguia e se aproximava. Amaldiçoou os seus olhos que já não estavam habituados à luz, não
a podendo suportar. Sombras negras subiam e desciam, dançando na sua frente, e foi só quando elas se separaram que reconheceu Doris. O seu coração deslocou-se como
a coronha de um revólver. Não podia falar. Ela estava mais pequena e mais magra do que nos seus pensamentos e sonhos, nos quais se tornara subitamente gorda. Trazia,
um vestido escuro e tinha gotas de transpiração no lábio inferior; viu isto tudo num breve exame, através os buracos da rede. A sua imaginação apoderou-se logo dessa
imagem para, mais tarde, brincar à vontade com ela, detalhando-a.
Não sabia o que havia de dizer e Doris estava, de mãos unidas, do outro lado, também sem falar. Como o silêncio se eternizava, se tornava insuportável, disse - e
a sua voz não pareceu sair-lhe da boca mas planar miseravelmente em qualquer parte, em qualquer canto da sala:
- Como conseguiste vir ?
- O Cowen arranjou tudo. Manda-te cumprimentos. - respondeu ela.
Houve nova pausa.
- Como estás ? - preguntou Doris.
Era a pregunta mais ridícula do mundo, por isso ele deu a única resposta possível:
- Bem, obrigado.
- Poderei fazer alguma coisa por ti? Ainda uma frase estúpida que ela sabia de cor.
- Mas é verdade que estou realmente bem. repetiu - Tudo aqui está perfeitamente regulamentado.
- disse com exagero, esperando que o homem do escritório tomasse nota - Na Legião, era muito pior, mas é claro que foi bom ter recebido aquela disciplina.
Depois desta frase comprida e complicada, calou-se e olhou para Doris. Só então sentiu a realidade da sua presença. As gotas de transpiração sobre o pobre lábio
trémulo.
- O teu vestido deve ser muito quente. -notou.
- Bem sei. Julguei que era preciso um vestido escuro para esta espécie de visita. E como só tenho este. - E sorriu, tendo o ar de lhe confiar um segredo precioso.
Viu, surpreendida, que também ele se ria.
- Vim principalmente para te dizer que nunca houve nada entre mim e o Bryant e que nunca haverá.
- disse ela, rapidamente.
Basilio reflectiu nessas palavras. E replicou:
- Bem sei. Vi no processo. Não tem importância.
Doris abriu a boca e tornou a fechá-la.
- Não.-disse um pouco mais tarde-As coisas importantes não são nada as que nós julgávamos.
-Mola dorogaía devotchka.-murmurou em russo. Não pôde deixar de o dizer.
O homem da secretária levantou a cabeça e disse, metade como aviso e metade como brincadeira:
- Queira falar a linguagem de um homem branco. Doris não compreendera as palavras mas sim a intenção. Começou a arder e a brilhar interiormente como um candeeiro
- exactamente como na inolvidável primeira noite, no atelier.
- Quero que saibas que te esperarei todo o tempo que for preciso. - disse, agarrando-se com as mãos à grade.
Ele tinha pena dela e sentia uma grande necessidade de a consolar.
- Não deve levar muito tempo. - respondeu em tom próprio a dar-lhe coragem. -Eu porto-me bem; senão estaria proibido de receber visitas. Por isso, hei-de sair antes
do prazo marcado. Sob palavra, soltaram aqui, ao cabo de dois anos, alguns que deviam cá estar vinte. Cowen, embora seja um desastrado, também tem a sua influência.
O rapaz tossiu e Nemiroff calou-se logo. com certeza que não era permitido dizerem-se coisas semelhantes.
- Continuas lá no prédio?
- Sim; estou em casa da Salvatori; mas vou deixá-la, em breve, e colocar-me.
Ouviu então, pela primeira vez, o tique-taque do relógio de parede, pendurado por cima da secretária.
Encostou a cabeça à rede, que lhe ficou impressa na testa, e preguntou em voz baixa:
- Estás completamente restabelecida? Já não te dói?
- Sim. Não. - mentiu Doris.
Ele sabia sempre quando ela faltava à verdade. Tinha pena dela, uma pena que o alanceava e, ao mesmo tempo, desejava-a com uma contida violência, como nunca.
- Continuaremos a amar-nos quando eu sair daqui? - murmurou em tom suplicante. - Recomeçaremos tudo desde o princípio. melhor e mais inteligentemente do que da
última vez.
Ela olhou-o como se ele cantasse uma ária de que não tivesse compreendido as palavras. Disse:
- Os cabelos cortados ficam-te bem. E estás com boa cara. Tens saúde. Não te farão mal.
- Só cinco minutos.-fez notar o rapaz da secretária. O relógio continuava no seu tique-taque.
- Se têm alguma coisa importante a dizer, despachem-se. - acrescentou.
Foi quando eles se calaram durante um minuto. Olhavam-se apenas; penetravam-se mutuamente com os olhos, enlaçavam-se e ancoravam-se um ao outro com esse olhar -
e o mais importante fora dito e compreendido.
- Quando saíres, - prosseguiu Doris, depois de ter respirado profundamente - serei então uma cantora célebre e ganharei muito dinheiro. E executarás todas as estátuas
que fores imaginando enquanto aqui estiveres. Também eu, quando estive no hospital, imaginei muitas coisas.
Calou-se e lançou-lhe um olhar receoso, temendo ofendê-lo ao fazer alusão à ferida. com os dois punhos fechados, apoiava-se à grade. O relógio continuava com o seu
tique-taque.
- Diz mais. - murmurou ele.
- Hás-de ter grandes blocos de mármore, farás tudo o que quiseres e tornar-te-ás célebre. e quando estivermos fartos disto tudo, partiremos para uma ilha.
- Para Biribiki. - disse ele, bruscamente. E aquilo parecia sair de um conto de fadas.
- Bem. Para Biribiki. E aí ninguém nos conhecerá nem incomodará.
- O vosso tempo acabou, infelizmente. - disse o rapaz com delicadeza e em voz baixa.
No mesmo instante, a porta de ferro abriu-se por trás de Nemiroff e Wallace apareceu para o levar. A sua respiração parou, mas riu-se.
- Vsego choroschevo dowgaia - disse em russo.
- Adeus. - replicou ela, em alemão.
Mais uma vez ele registou a imagem de Doris na sua memória. Voltou precipitadamente para a grade, de que já se descolara e colocou lá a mão aberta. Ela viu-o e pôs
também a sua palma na mesma posição. A grade separava-os. Sentiu contra a sua mão cem pequeninas pulsações, sentiu o calor, o amor, a união. Tinham os olhos baixos
e o centro das suas mãos tornava-se o fulcro único dos seus sentimentos. Wallace bateu no ombro de Basílio.
- Vamos. - disse, sem brutalidade.
Nemiroff tirou a mão da grade e executou uma impecável meia volta militar. Doris ficou ali e seguiu-o com os olhos até que a porta de ferro se fechou sobre ele.
Bateram à porta. A Salvatori arranjou à pressa o cabelo, fechou o vestido no peito, calçou os pés nus e dirigiu-se para a porta. Fora apercebeu na meia
escuridão da escada, um homem idoso, vestido com simplicidade, mas correctamente.
- É a sr.a Salvatori ? Disseram-me que miss Hart habita aqui.
- Miss Hart está doente. Teve uma recaída disse a Salvatori, esforçando-se por adivinhar se o cavalheiro seria de bom ou mau augúrio para Doris.
- Uma recaída . estou desolado. É importante para miss Hart que eu fale com ela. - respondeu o senhor que tinha uma bela cabeleira grisalha e um bigode no mesmo
tom. Ela examinou-o, hesitante.
- Lembro-me muito bem da última vez em que a ouvi, minha senhora. Cantava a Thaís no teatro de San Carlo, em Nápoles. - disse amavelmente.
Um estremeção sacudiu a cantora. Tinha a impressão de parecer uma aventureira quando falava dos seus êxitos passados aos alunos, em cujos rostos fechados lia a incredulidade.
E eis que aparecia agora - como que caída do céu:- uma testemunha.
- Entre. - exclamou com entusiasmo-Vou anunciá-lo à Doris.
O cavalheiro seguiu-a pela minúscula e escura entrada, mas sem dizer ainda o seu nome. Entrou ao mesmo tempo que ela no quarto onde Doris se encontrava deitada no
sofá transformado em cama. A rapariga ergueu-se um pouco. Estava em camisa de noite e com o chale de cachemira, que usava no atelier de Basílio, colocado nos ombros.
Sentia frio, embora lá fora, a atmosfera estivesse pesada.
Viera de Baxterville com febre e ficara alguns dias deitada.
- Imagina tu, minha filha, que este senhor ouviu-me cantar em Nápoles, na Thaís. Não é, de resto, um dos meus melhores papéis, não, de modo nenhum. - disse a Salvatori,
ajeitando o penteado de Doris.
Esta franziu as pálpebras; o senhor grisalho não lhe era desconhecido.
- Desculpe vir incomodá-la, estando assim doente. Mas é importante. - disse ele - Chamo-me Bryant.
Sou, numa palavra, o velho Bryant.- terminou, com leve ironia.
- Faça o favor de se sentar.-disse apressadamente a Salvatori, empurrando para ele uma das grandes almofadas, bizarramente guarnecidas.
Ele contemplou-a, estupefacto; pô-la junto do sofá e sentou-se em cima, depois duma breve hesitação. A italiana instalou-se junto dele. Doris empalidecera em redor
do nariz, mas parecia impaciente.
- Tenho um assunto a discutir com miss Hartdisse o velho Bryant.
- Eu é que me encarrego dos assuntos de miss Hart. - replicou a professora, com dignidade.
Bryant consentiu com um sorriso humorístico. {Sabe Deus quantas conversas daquele género entabolara já na sua vida! Quási que o divertia tanto como uma partida de
poker, discutir com as aventureiras para fixar o seu preço e sabia que a paciência e uma encantadora delicadeza o levariam mais longe do que a arrogância. Além disso,
o bizarro alojamento dava-lhe vontade de rir. Era diferente dos quartos das girls de music-hall ou das mulheres aliadas do bairro da septuagésima rua. Olhou longamente
para as patéticas máximas italianas, bordadas a ouro sobre as fitas de seda das coroas murchas, e depois começou:
- vou directamente ao assunto, miss Hart; e não leve isto a mal ao velho homem de negócios que eu sou. Vai dizer-me que gosta do meu filho e que ele gosta de si,
mas os sentimentos não me interessam, sou um horrível cínico, vê? E só sei falar de números. De resto, sou conhecido como bom pagador. Portanto.
- Mas eu não o compreendo bem, sr. Bryant.
- replicou Doris, com hesitação. Aflita, descobria agora com quem o velho Bryant se parecia: com o seu pai, o dr. Hart no seu melhor fato, com o seu querido pai
desaparecido. Este facto não lhe dava a disposição de espírito necessária para tratar de negócios.
- Bem. Falemos claramente. O meu filho vai obter o divórcio dentro de alguns dias. Segundo me disse, querem casar. Ora, como sei que é uma rapariga
inteligente, venho preveni-la de que o meu filho não tem fortuna pessoal e que não receberá de mim um centavo se realizar esse casamento. Como ama o meu filho, talvez
não se importe que ele não tenha dinheiro. Gosta do meu filho. -repetiu, porque se divertia com a própria ironia - e, por esse motivo está cega em face das suas
fraquezas. Mas conheço F. O. muito bem e não o vejo com talento para sustentar duas pessoas. Bem sei que é trabalhadora, mas ele decerto não permitirá que a mulher
continue a ser criada ou qualquer outra coisa semelhante. Portanto, não sei se esse casamento será um belo negócio.
Doris pegou vivamente na mão da Salvatori e obrigou a pesada senhora a sentar-se na sua cadeira. Lentamente, subia-lhe ao rosto uma ardente vermelhidão. Reflectia.
Haviam-na insultado de uma forma delicada mas aguda; compreendia-o, sentindo que o não merecia. A sua primeira reacção foi como a da Salvatori: explodir, explicar
àquele homem que se não preocupava nada com o malandrete do filho, e pô-lo na rua.
Mas não fez nada disso. Aprendera muito nos seus meses de hospital e também durante as duas horas passadas com o sr. Wallert e na visita a Baxterville. Reflectiu
e suspirou profundamente, antes de responder.
- O seu filho sabe que, por sua causa,perdi um homem que me tinha amor e uma situação. É responsável de eu ter passado longos meses no hospital e de nunca mais me
curar. £Não acha correcto que me ofereça uma reparação ?
Estava estupefacta de ouvir falar nas intenções matrimoniais de Franklin, mas não fazia caso. com o seu novo instinto, sentia apenas que tinha, nas mãos, as rédeas
do assunto. Entretanto, a Salvatori deixara de respirar. Retinha o ar no seu vasto peito, o que lhe era permitido fazer graças à sua maravilhosa técnica respiratória.
Olhava fixamente para Doris e esforçava-se por compreender tão inexplicável criança.
- Pode ser que isso seja correcto, mas F. O. estragará esse casamento, como tem estragado tudo até
agora. - replicou Bryant. E quási que o seu pensamento correspondia às palavras.
- i Não quere, no entanto, pretender que veio aqui para comprar a minha renúncia ao casamento com o seu filho ?
Doris e Bryant perceberam como era falsa a entoação desta frase.
"Todas representam. É pena.", pensou ele.
Doris não estava pintada, os cabelos caíam-lhe em madeixas sobre as faces. Não se parecia com as outras e, no entanto, falava a mesma linguagem de papagaio.
- Sim . sim . - disse ele, a sorrir - É exactamente por causa disso que aqui estou. Desejo fazer um pacto consigo.
- Bem sabe que com o meu pulmão furado, podia-lhes pedir, a si e ao seu filho, uma fortuna, se quisesse. - disse Doris.
Aprendera aquilo com a Borghild, a massagista sueca, que lhe dissera: "Olha, minha cara, reclama um milhão a todos esses bandidos e podes estar certa de que o obterás."
- Nunca o fez e isso convenceu-me de que era uma rapariga inteligente. Sabe calcular e ver as coisas no Seu conjunto. Prefere tornar-se a sr.a Bryant a andar pelos
tribunais sujeita a perdas e danos. Pois bem, oiça: eu sou um homem de negócios, muito sólido, Wallstreet inteiro pode-lhe confirmar isto. Não quero enganá-la, mas
pagar o preço devido. Quanto quere para abandonar esta terra, ir para a sua ou para qualquer outra, deixando o meu filho em paz ? Quanto ?
- i Porque acha que é absolutamente impossível eu amar o seu filho ? - preguntou Doris, que tinha pensado no que diria, naquela situação, a mulher por quem ele a
tomava.
- Conheço-o. e conheço as mulheres. - disse o velho Bryant.
Era ridículo chamar-lhe velho. Tinha ombros de jogador de futebol e, a cada gesto, os seus músculos dorsais adivinhavam-se por baixo do casaco; no. rosto e nas mãos,
a pele não tinha uma ruga.
- Quanto ? - repetiu ele, fixando o olhar errante da rapariga.
- Não sei. Nunca tratei de negócios desta natureza . - disse Doris e, de repente, toda a sua fraqueza apareceu.
- Para a minha terra não vou. antes disso quero ser cantora.
De súbito, a Salvatori ressuscitou. Acumulara em si própria uma quantidade de palavras contidas, seguira a conversa com olhos coruscantes, compreendendo cada vez
melhor e admirando entusiasticamente a Doris que se revelava. Agora chegava a sua hora.
- Miss Hart precisa de duas coisas. - disse numa voz em que todos os tons lhe ressoavam na cabeça Precisa de uma educação de primeira ordem, como cantora. Cinco
anos com o Delmonte. Durante cinco anos uma mesada que lhe permita viajar com o Delmonte, tomando uma lição cotidiana e podendo vestir-se, alimentar-se, apresentar-se
decentemente. Depois destes cinco anos, já não precisará de lhe pedir um centavo. Será célebre e ganhará mais dinheiro do que um banqueiro.
Bryant inclinou-se ironicamente.
- Faço votos para que assim seja.
Estava satisfeito por ver que fariam o que desejava. E como chantage nunca vira tanta ingenuidade. Doris estava estupefacta:
- Delmonte? - balbuciou.
A Salvatori inclinou-se, remexeu com os dedos na beira da sua saia e tirou uma carta amarrotada da algibeira que existia naquele lugar.
- Não to disse porque tinhas febre. Mas reflecti acerca do teu caso. Escrevi a Delmonte. Aqui está a sua resposta, uma resposta vil e infame.- disse num italiano
que caía em catadupa. A boca tremia, no esforço de dizer tudo ao mesmo tempo - Escrevi a dizer quem és, o que penso da tua voz, que és pobre e não podes pagar, mas
que há dentro de ti uma grande cantora.
com falta de ar, cuspiu três vezes para o chão, afim de não transformar o louvor em maldição. Ergueu
as mãos, num gesto de defesa, e colocou-as sobre a boca da rapariga para impedir a contradição.
- Minha filha, minha filha, penso na conversa que tivemos antes da tua partida para Baxterville. Não penso mesmo noutra coisa. Sinto como é grande a responsabilidade
de intervir na tua existência. Devo dizer-te uma coisa que já me custou muitas lágrimas: não sou a professora de que precisas. Tratei-te mal, fiz com que a tua bela
voz enrouquecesse. Não tens tempo a perder. Precisas de ter o melhor professor que existe depois de Pariggi e de Gimini. Tens que ir ter com o Delmonte. E sabes
o que aquele bandido mandou escrever depois de tudo o que lhe expliquei? Olha, lê!
- e estendeu a Doris a carta amarrotada.
Bryant, que falava muito bem o italiano, ouvira esta catadupa de palavras magníficas e harmoniosas, primeiro com surpresa e depois com crescente prazer. Levava uma
vida muito aborrecida, e mostrava-se reconhecido a todas as pessoas que o divertiam. Além disso, havia muita honestidade inesperada naquele discurso em que duas
mulheres falavam julgando não ser compreendidas.
"O professor Delmonte encarrega-me de a informar que se vê na obrigação de submeter a pessoa em questão a um exame, afim de determinar se consentirá ou não em tomá-la
como aluna. Não admite discípulos que não sejam talentos raros. Devem comprometer-se a acompanhá-lo nas suas viagens, dando uma lição por dia. O professor Delmonte
passa dois meses do ano em Nova Iorque, dois em Viena, um mês de verão em Salzbourg e o resto do tempo na terra onde nasceu: Milão. Além disto, faz sempre pequenas
viagens a Londres e a Paris. O preço do primeiro exame é de duzentos dólares, e o das lições é de mil dólares por mês. O professor Delmonte põe como condição: que
as lições de canto sejam começadas com ele e que durem cinco anos. Reserva-se a faculdade de interromper o dito ensino, quando o achar conveniente. O secretário".
Seguia-se uma assinatura ilegível.
Doris deixou cair a carta e ficou abstracta.
- Mil dólares por mês. mil dólares.
Parecia ter esquecido provisoriamente que o velho Bryant estava ali a esperar pelo seu preço. Pensava, de uma forma vaga e nítida ao mesmo tempo, no que sofrera
para obter do sr. Wallert os trinta dólares. Gastara dezoito dólares e setenta e cinco centavos; o resto era o único dinheiro que possuia.
- Dá-me licença? - preguntou Bryant, tirando-lhe a carta da mão.
- Está escrita em italiano. - disse a Salvatori, com vivacidade.
- É o que estou vendo. - replicou. Tirando da algibeira os óculos de aros claros, começou a ler. Agora é que parecia exactamente o pai da Doris.
Em seguida, disse a sorrir:
- Há-de ser um homem severo. Esta carta parece um tratado de paz. O partido mais fraco é o que deve pagar. Agitou os números na cabeça e tomou a sua decisão.
- Isto faz sessenta mil e duzentos dólares, o que não é brincadeira nenhuma. - disse lentamente - Além disso, a aluna quere também viver e viajar com o cavalheiro
e serão mais uns trezentos dólares por mês, durante cinco anos.
- Quatrocentos por mês. - rectificou a Salvatori. Aquilo não tinha réplica, como a última nota de uma
ópera. De resto, era também a soma prevista por Bryant. Deveria pagar cem mil dólares, mais ou menos, incluindo o escândalo, o tiro e a tola ideia do filho. Tencionava
pagar cento e vinte mil, esperando que fosse ainda menos. Experimentava uma alegria de ladrão ficando aquém das suas previsões e felicitava-se por isso.
- Muito bem. No princípio de cada mês, enviaremos ao senhor professor o que lhe é devido e à primadona os seus quatrocentos dólares. Estão de acordo? - preguntou
jovialmente.
"Se o Delmonte me aceitar e se eu viver ainda cinco anos"-não pôde deixar de pensar Doris, que se dominou para o não dizer em voz alta. E declarou o contrário:
- Além disso, preciso de um pequeno capital num
Banco porque posso precisar de tratar da minha saúde. Hei-de necessitar sempre de médico e haverá meses em que nada poderei fazer.
Bryant viu desaparecer, com pena, os dez mil dólares que acabara de ganhar. E só então notou que ela parecia realmente doente. Tinha um rosto aberto, quási sem encanto,
tão franco era. Não chegava a compreender por que motivo o filho gostava dela. Olhou-a mais atentamente. "Talvez seja por causa da pele ou do corpo", rematou como
conhecedor. Tinha uma ferida num pulmão, isso pelo menos era certo. Pobre rapariga que queria cantar com o peito furado! Poderia ter uma vida muito mais simples!
- O quê? Ainda mais um capital? Mas está a explorar-me! Quanto? - preguntou em tom alegre.
Doris reflectiu. Queria dizer três mil, mas no último segundo, tornou-se audaciosa e exclamou:
- Cinco mil.
Bryant calculara dez mil, portanto, ficou satisfeito. Aquilo parecia-se com um bom negócio. Triunfante, pensava: O Vanderfelt não faria a coisa por menos de cento
e cinquenta mil." Nem um nem outro sabiam que aqueles cinco mil dólares haviam de ser a base da sua futura amizade. com a caneta permanente rabiscou algumas notas
na sua agenda, depois escreveu, para ela, uma direcção na carta arrogante do secretário de Delmonte.
- Aqui está a direcção do Vanderfelt, o meu advogado. Quando estiver restabelecida, arranjaremos tudo legalmente. E - queria dizer-lhe uma coisa - peço-lhe para
deixar de ver o meu filho. Eu próprio lhe darei todas as explicações necessárias. Combinado?
Doris não ouvira, fixando o olhar nas velhas coroas penduradas nas paredes.
"Tudo isto é absurdo", pensava.
A Salvatori confirmou o acordo com uma avalanche de palavras. Transpirava abundantemente, de emoção, mas esforçava-se por não comprometer a dignidade, a sua e a
de Doris, a quem teimava em chamar miss Hart.
De repente, Doris agarrou-se ao casaco de Bryant com quanta força tinha, exclamando, enquanto o ar lhe faltava:
- Tudo isto é absurdo. Não quero dinheiro! Não preciso de dinheiro! Não quero nem um centavo, se, em vez de tudo isso, conseguir dar liberdade ao Basílio. Pode,
não é verdade? Afinal o que se passou, não diz respeito senão a mim e a ele. Porque o condenaram? Ponha-o cá fora e eu não quero ouvir falar mais em todo o seu dinheiro.
Bryant, estupefacto, fitava a rapariga, que lhe não largava o casaco. O chale de cachemira tombara. Ele viu-lhe a forma dos ombros e dos braços, que não deixavam
de tremer. Sorriu, cheio de compaixão, mas não pôde deixar de pensar: "Ela troça, à valentona, do Franklin e eu, como um parvo que sou, vou pagar noventa e cinco
mil dólares para que renuncie a ele."
com um sorriso delicado, disse:
- O nosso Estado está corrompido, mas não ao ponto de fazer entrar nas prisões e depois deixar sair gente perigosa, sem mais nem menos.
Num cálculo instantâneo, avaliara quanto custaria a tentativa da libertação de Nemiroff. E acrescentou:
- Mais tarde veremos o que se pode fazer.
Os dedos da rapariga abriram-se e largaram o casaco.
- Quando for uma cantora célebre, terá muito mais facilidade em o fazer sair de lá do que eu. - disse para a alegrar, mas ficou, mais uma vez, surpreendido com a
transformação operada no seu rosto.
Ela preguntou com vivacidade:
- Tem a certeza disso?
Não tinha tenção de lhe afagar a face, mas fê-lo. Estava febril: só então deu por isso. Apesar dos noventa e cinco mil dólares que pagava, teve a sensação de a roubar.
Julgara de uma forma muito diferente a mulher que obrigava a Juddy a divorciar-se, que provocara os tiros de revólver e o tremendo escândalo. As pessoas que o filho,
em geral, frequentava, eram de outra espécie. De repente, ficou surpreendido com este pensamento: "F. O. não a merecia".
Inclínou-se diante da Salvatori e levantou a mão de Doris, de sobre a coberta, para à beijar com precaução.
Respirou quando se encontrou na escada, podendo acender um cigarro. Por cortesia, abstivera-se de fumar. Estremeceu, ao lembrar-se do papagaio embalsamado e do fúnebre
cheiro que reinava no aposento. E pensou: "Assim doente não está bem ali. Pobre rapariga! Um contrato por cinco anos e, se calhar, daqui a uma semana está morta"!
Esta ideia enraiveceu-o contra o comunista que atirara sobre ela e também contra o filho.
"Eu bem digo; são as mulheres que acabam sempre por pagar, mesmo quando nos rapinam um milhão," concluiu.
com o cigarro na boca, esperou pela passagem de um táxi, pois para aquela visita discreta, não trouxera o seu carro. Como não vinha nenhum, pôs-se a caminhar enquanto
começava a cair uma chuva grossa. No fundo, regozijava-se ao pensar que ia tornar a ver a Doris no cartório do Vanderfelt para o regulamento das contas - e admirava-se
por assim se regozijar.
Delmonte chegou a Nova Iorque em Outubro. Doris pagou duzentos dólares e foi ouvida durante três horas. Estava, nessa ocasião, completamente rouca e as suas duas
técnicas respiratórias, a da Salvatori e a do dr. Williams, confundiam-se. Sob o seu lindo vestido novo, sentia o suor a correr-lhe pelas costas abaixo. Não pôde
cantar a sua grande ária, a de Rossini. Tudo o que ele lhe dava para cantar, não saía senão com notas fracas e aspiradas. Delmonte parecia ter uma paciência infinita
e nenhuma noção do tempo. Ao cabo de cerca de três horas, conduziu-a até à porta, sorrindo delicadamente. No vestíbulo, o cavalheiro que recomera os duzentos dólares,
informou-a de que fora
recusada. Doris foi para casa a pé. Em Central Park sentou-se e ficou em profunda meditação até à noite.
Nessa época, o advogado já começara a dar-lhe os quatrocentos dólares por mês. Estava bem vestida e já não tinha dívidas, nem duvidosos recursos. Uma parte do dinheiro
ia para Cowen, sendo destinado à libertação do Basílio. Secretamente, depositava outra parte no Banco, visto que não adquirira ainda o sentimento da segurança; pensava
sempre que toda aquela riqueza desapareceria, um dia, conforme viera. De resto, habitava sempre a mesma casa da quinquagésima sexta rua, ocupando o antigo atelier
de Basílio.
Quando pensou suficientemente naquela derrota e se viu no meio da escuridão, deixou o seu banco do Central Park, chamou um táxi, com um aceno, que já se lhe tornara
familiar, e entrou em casa. Nessa noite, evitou encontrar a Salvatori, passando pela sua porta em bicos de pés. Subiu ao quarto andar e deitou-se sem acender a luz.
Pensou que, antigamente, se fartaria de chorar e verificou com surpresa, que cada dia se tornava mais endurecida. Queria ser cantora e queria aprender com Delmonte.
Desde que conhecia a imensa paciência do mestre, o seu ardor fanático, a sua firmeza de sonâmbulo, estava certa de uma coisa: seria sua discípula e tornar-se-ia
uma cantora célebre. Outrora não era ambiciosa. A sua ambição nascera no banco do Central Park.
Todas as cadeiras da Ópera Metropolitana estavam vendidas. Nova Iorque divertia-se em todos os cinemas, todos os speakeasies, todos os clubes. Doris teve que esperar
uma semana para obter um lugar. E foi para uma matinée. Delmonte cantava o Otello.
O cavaliete Delmonte era um homem que já fizera cinquenta anos. Um gigante com uma linda madeixa de cabelos brancos por cima da testa e grandes olhos sombrios, de
expressão admirada. Os seus sobretudos eram vastos como salas e as actrizes, mesmo que pesassem mais de cem quilos, pareciam sempre umas crianças, a seu lado. Doris
nunca o ouvira cantar. Estava sentada, muito direita, na sua cadeira, esquecendo-se
de respirar e transformando as luvas de pelica em cordéis. Doris era agora uma senhora que não saía sem luvas. Quando ele cantou o duo final do primeiro acto tu
mameraiper la mia venluta arrepios gelados passaram-lhe pelas costas, como se tornasse a ter febre. Quanto mais avançava na ópera, tanto mais estava emocionada.
Saiu do espectáculo, com olhos de hipnotizada, mas acordou logo e entrou em actividade.
Na sua infância, Doris vira, certo dia, um grupo de dançarinos de corda que aparecera na sua pequena cidade natal. No dia seguinte, roubara à mãe uma corda de secar
roupa, atando-a a duas velhas árvores do jardim, por trás da casa e arriscara-se a andar nela. Depois da queda, passara muitas semanas com um braço quebrado, metido
em gesso. Uma sensação de audácia semelhante àquela, invadira-a ao ouvir o Delmonte cantando o Otello. Se era humanamente possível cantar assim, tirar do canto tais
efeitos-ela estava decidida a fazê-lo. Surpreendeu-se a estudar, em pensamento, o papel de Desdémona. A Sandrini que, nessa noite, o cantava era uma idiota, ignorando
o que estava a fazer. Doris queria subir àquele palco e cantar. Queria. Pela primeira vez, encontrou uma coisa mais forte do que o amor. Queria cantar.
Começou por deliberar com a massagista Borghild, que era afinal o único ser normal, prático e razoável que ela conhecia. Os outros eram um pouco gagás, como dizia
a Salvatori - sem excluir o Basílio, na sua prisão. Borghild, desde que a Doris dava massagens duas vezes por semana, dedicava-lhe mais amizade. Além disso, era
a única mulher que não tinha proporções falsas, não desejando emagrecer nos sítios onde nenhuma massagista do mundo o pode conseguir. Por isso a Borghild prodigalizou-lhe
abundantes conselhos cheios de bom senso, enquanto lhe amarfanhava e martelava conscienciosamente as coxas e os braços.
O primeiro resultado destes conselhos foi Doris vestir-se e ir alugar um quarto no Hotel Blanchard, que era um estabelecimento medíocre de Broadway, situado entre
a septuagésima e a octogésima rua. Não se compreendia
realmente, por que motivo o cavaliere Delmonte, com os seus fabulosos ordenados, ia para lá. Era uma questão de simpatia: estivera naquele hotel quando era um rapazinho
magro e pobre, na primeira vez que viera a Nova Iorque, e agora continuava. Os estreitos corredores do Hotel Blanchard estavam guarnecidos com passadeiras cor de
canela, onde já se via a trama cinzenta. O arejamento era defeituoso e um antigo cheiro a comida permanecia nos cortinados. Encontravam-se ali muitos italianos e
alguns franceses. Era o quartel-general de dois modestos professores de canto e de uma agência teatral de inferior categoria. No ascensor, encontravam-se muitas
senhoras loiras que usavam cauda e jóias falsas para encobrir os sítios usados dos vestidos. Os criados tinham casacos quási brancos e o cavalheiro que fazia de
gerente era um príncipe grego.
Debaixo dos móveis havia pó e sobre o estofo que cobria o pequeno sofá de estilo rococó existente em todos os quartos, nódoas de gordura estavam visíveis nos locais
onde os antigos hóspedes tinham encostado a cabeça. Os lençóis eram mudados uma vez por semana, quando os clientes o reclamavam à direcção. Era nessa mediocridade
que Delmonte vivia com todo o seu estado-maior. Via-se o seu gigantesco casaco a sair, flutuando, do elevador; ouvia-se, na sala de jantar, o seu riso possante e
interminável. Quando queria descansar, antes do espectáculo, o hotel inteiro andava nas pontas dos pés e os dois professores viam-se obrigados a interromper as suas
lições. No resto do tempo, as paredes do hotel ressoavam constantemente com escalas, cantos e compassos, parecendo aquilo mais um conservatório do que uma casa.
Pouco a pouco, Doris tomou conhecimento com todo o estado maior do professor, segundo fora sua intenção. Três alunos haviam chegado com o mestre. Comiam na pequena
sala de jantar mal arejada, e foram eles os primeiros a dar algumas informações à rapariga. Escondendo-se e tomando um tom de conspiração, cada um falava à Doris
o mal dos outros dois e
todos se alargavam a conversar acerca do professor e dos assistentes.
O mestre - o velho, como entre si lhe chamavam
- era avarento, tirânico, pueril e fanático como um faquir. Era presa de três inquietações diferentes: receava pela sua voz, temia empobrecer e acabar como tantos
tenores célebres haviam morrido antes dele: na miséria. E tinha medo das mulheres. A Palfy assegurava que, depois da morte da esposa, seguindo uma irrevogável decisão,
nunca mais se aproximara de nenhuma.
- De resto, é um hábito. - concluía a Palfy, encolhendo os ombros e torcendo a boca.
Nessa época, a Palfy era a única aluna feminina de Delmonte. Tinha cabelos ruivos e uma pele apetitosa; vinha de Viena, o que julgava ser uma superioridade. Explicava
assim as suas qualidades e os seus defeitos:
- Pois é, mas eu sou de Viena.
Possuía uma voz de soprano muito alta e clara, que atravessava as paredes. Queria especializar-se na vocalização. Terp, o basso, um suíço magro e sisudo, que ficava,
às vezes, com Doris num aposento chamado salão de correspondência, e cujos esclarecimentos eram os mais verdadeiros, explicou de que forma Delmonte tomara a Palfy
como aluna.
- Ela começou a andar atrás do Bruto, e o velho faz tudo o que o Bruto diz. - disse Terp na sua profunda voz de basso - O caminho que conduz ao velho, passa, para
as senhoras, pelo quarto do Bruto e para os homens, pela sua carteira. A Palfy foi amante de um banqueiro chamado Donat, que, depois da guerra, subiu, como um foguete
e teve a Áustria inteira na mão. Quando se fartou dela, convenceu-a de que tinha uma linda voz e ela julga que o mandou passear. O Bruto fez o resto e o Donat paga
tudo.
- Desculpe. mas gostava de saber quem é o Bruto. - disse Doris.
- É o dr. Sardi.
Também a Palfy, dias depois, falou no Bruto. Doris já tinha descoberto a personagem: era o cavalheiro
do vestíbulo que recebera os seus duzentos dólares e lhe anunciara a reprovação. Encontrava-o, às vezes, nos corredores do hotel, no ascensor ou diante da porta
da entrada, à espera do mestre. Umas vezes, cumprimentava-a com o ar de a ter visto em qualquer parte, mas quási sempre fingia não a ver. com precaução, ela tentou
saber pela Palfy se as hipóteses de Terp tinham algum vislumbre de verdade. Mas não precisava de ser prudente porque a Palfy pôs logo tudo em pratos limpos:
Malandro! com ele não há nada a fazer: é preciso dizer que sim e rir-se a gente depois. A Dorelli disse que não e, passados quinze dias, já cá não estava. E, no
entanto, ela tinha mais voz do que você, do que eu e do que mais três Sambrini. Possui um temperamento erótico, o senhor dr. Sardi. É logo a primeira coisa que nos
diz: que não pode ver se uma mulher tem talento, antes de a ter nos braços. Faz tudo para conseguir o que deseja e faz do velho o que quere. Mas lá o facto de a
gente se deitar com mais um homem, que importância tem, não acha ?
Doris apressou-se a dizer que era absolutamente da sua opinião. Mas ficou, durante muito tempo, muda e abstracta, sentada no sofá cor de framboesa, fechando os olhos
e apoiando a cabeça nos sítios gordurosos da parede. A conversa tinha lugar no quarto da Palfy; sobre todos os móveis havia disformes bonecas de membros muito compridos
e olhos gigantescos.
"Nenhuma importância", pensava.
Um segundo sr. Wallert, um dos numerosos srs. Wallert de que parecia estar semeado o seu caminho.
Doris renovou o breve conhecimento com o dr. Sardi. Deixou um pouco de lado os outros membros da corte. Estavam ali Paolo, o pianista, um rapaz de cabeça encaracolada
e nariz singularmente pequeno. Noite e dia ouvia-se uma voz rabugenta chamar o Paolo; como uma flecha, saía do quarto em roupão de seda vermelha e levando a música
debaixo do braço. Pouco depois, ouvia-se tocar o acompanhamento das árias de
Delmonte, as lições dos alunos, exames ou audições. Paolo compartilhava o quarto com o terceiro aluno, um jovem barítono italiano de grossa voz sonora. Este, Fiamarelli,
era pobre e Delmonte não se limitava a instruí-lo gratuitamente, mas arrastava-o atrás dele através do mundo inteiro. Por isso, esforçava-se por reduzir, ao mínimo,
os seus gastos. Havia ainda, quási tão importante como o Bruto, a velha Lúcia. Era uma mulher magra e silenciosa, de rosto esverdeado e cabelos brancos. Servia de
costureira a Delmonte, ajudava-o a maquilhar-se e estava sempre nos bastidores quando ele cantava. Finalmente, havia um pékinois chamado Perturbador. Na rua, via-se
o cão e o dono caminharem de candeeiro em candeeiro, o que primeiro fazia pensar num gigantesco O acompanhado por minúscula vírgula, mas dando, por outro lado, a
impressão de que o impaciente Perturbador conduzia o distraído e lento dono através de um crepuscular passeio até às portas da cidade. Depois de uma representação
da Aída, Doris conseguiu, pela primeira vez, colocar-se no caminho do Bruto. Vagueou pelo hall até ao seu regresso. Estava no ascensor quando ele subiu até ao sexto
andar, para se dirigir ao seu quarto. Desta vez, reconheceu-a; entre o segundo e o terceiro andar, falaram do espectáculo: ele, cheio de falsa modéstia, como se
o êxito se lhe devesse e Doris com entusiasmo, numa voz que tremia de secreta inquietação. O ascensor era pequeno e ela colocou-se mais perto de Sardi do que seria
necessário. Falava com um duro sotaque oriental, afirmando que era a sua língua materna.
- Está mal penteada.-declarou-lhe entre o quarto e o quinto andar - Acredite, tenho muita experiência no que diz respeito às mulheres. Deveria cobrir a testa.
Ela desceu com ele e parou em frente do espelho do corredor.
- Mostre-me como. - disse.
Ele puxou-lhe uma pequena madeixa para afronte; as suas mãos frias e secas cheiravam a água de Colónia. Doris ergueu os braços e o seio ressaltou quando arranjou
o cabelo. Por trás dela, o homem via a sua
imagem, no espelho, piscando os olhos. "Vai dizer-me já que tem um temperamento erótico", pensava Doris. Estava radiante ao verificar que o achava ridículo.
Mas só o disse passados quatro dias, bebendo no quarto da rapariga o chá que ela preparava na cafeteira eléctrica.
Declarara que nem os americanos, nem os italianos sabiam fazer chá e ela teve que o convidar.
- Se pintasse o seu cabelo, de ruivo, pareceria alguém. - observou ele.
No dia seguinte, os cabelos da Doris estavam cor de cobre. Depois reconheceu que aquele tom lhe ficava muitíssimo bem. O Bruto notou logo a transformação, quando
a viu atravessar a sala de jantar, ao meio-dia. Tomou aquilo como uma homenagem pessoal e exclamou através da sala, enviando-lhe um beijo na ponta dos dedos:
- Gtatulazioni!
O cão ladrou, Delmonte seguiu-o com o olhar e a Palfy encolheu os ombros. Foi num táxi que ele a beijou, pela primeira vez, e Doris compreendeu que aquilo não parecia
ser tão simples como fora com o sr. Wallert. Não bastava concluir um negócio com o Bruto. Ele desejava ser lisongeado, confirmado na ideia de conhecer as mulheres
e de que elas não lhe podiam resistir. Queria convencer-se de que inspirava paixões e, durante o acto, dava notas como se estivesse num exame.
- Afinal você é uma mulher. - disse ele, quando Doris se lançou naquele beijo como um aluno de natação, mergulhando de olhos fechados em horrível água gelada.
- Então que havia de ser?
- Um legume. - respondeu o homem.
Esta reflexão fora outrora espirituosa, agora estava gasta.
Nessa noite, levou Doris para o seu camarote. Ia ainda o Otello. Delmonte estava rouco e isso fornecia-lhe a ocasião de, mais uma vez, mostrar a sua ciência. Depois
do espectáculo, mandou-a para o hotel e à uma da manhã foi visitá-la.
Doris continuava rouca porque a Salvatori persistia em dar-lhe lições. De resto, não abandonara o antigo atelier de Basílio. No dia seguinte ao Otello, passou lá
algumas horas, até ao crepúsculo.
O advogado Vanderfelt escreveu-lhe, pedindo uma breve entrevista no seu cartório. Quando chegou com os cabelos cor de ferrugem, as sobrancelhas depiladas, a raposa
argentéè nos ombros e duas gardénias na botoeira, olhou-a, surpreendido. Parecia que uma pequena tempestade vinha perturbar a pacífica atmosfera do cartório.
- Mas que lhe aconteceu? - preguntou - Está a tornar-se demasiado bonita para uma cantora de ópera.
Um pouco depois, chegou o velho Bryant e o seu rosto manifestou o mesmo espanto aprovativo. Mas não disse nada. Doris sentiu uma gratidão passageira e surpreendida
pelo Bruto. Quem sabe? Podia ser, afinal, que ele soubesse realmente o que deviam fazer as mulheres. Em todo o caso, era preciso estar sempre alerta e ter o cuidado
de não o desgostar nas suas exigências quanto à beleza, aos cuidados do rosto e do corpo, ao bom humor e à paixão.
Bryant e Vanderfelt desejavam saber o que se passava com Delmonte e se tinha sido admitida.
- É uma coisa que se deve decidir esta semana.- respondeu Doris.
O velho Bryant reconduziu-a, no seu carro, ao hotel Blanchard. Disse-lhe, a brincar, que se apaixonaria por ela, se continuasse assim. Mas informou-se, a sério,
da sua saúde, da sua voz, dos seus progressos no canto e preguntou-lhe se gastava todo o seu dinheiro em raposas argentées ou se também o empregava em coisas ajuizadas.
Durante o período das negociações, estabelecera-se entre ambos uma espécie de amizade. Pela primeira vez, desde a morte do pai, Doris sentia-se em segurança junto
de um ser humano e, pela primeira vez, Bryant tinha a impressão de não estragar o seu dinheiro com uma mulher.
- Como está o rapaz lá na prisão? -preguntou no momento de chegarem.
- Bem, obrigada.- respondeu ela, nervosa.
- Esquecê-lo-á mais facilmente quando estiver na Europa a trabalhar a sério.-disse Bryant em ar de consolação.
- É possível. - retorquiu ela.
Basílio permanecia sempre presente, todas as coisas estavam impregnadas dele, os crepúsculos, os espectáculos na Ópera, o duche frio da manhã, o sono, os sonhos,
o canto. Mesmo nas dores e na fadiga ele se encontrava. No entanto, a instrutiva e fatigante ligação com o dr. Sardi continuava. Doris sentia que lhe faltaria qualquer
coisa se bruscamente cessasse. O dr. Sardi não estaria mal de todo se não estivesse firmemente convencido de que estava absolutamente bem. Tinha cabelo escuro e
um olhar pesado. Parecia respirar com dificuldade, por isso abria a boca; o lábio inferior era horrível, seco, sempre a pelar-se. Era de origem .modesta, o pai fora
alfaiate militar numa guarnição longínqua, na Galicia, de antes da guerra. Educara-se a si próprio e sabia um grande número de coisas muito variadas, não sendo,
no entanto, uma pessoa culta. Mas os seus conhecimentos distraiam Delmonte e espantavam Doris.
- Sabes a quantas milhas está a lua da terra? preguntou entre dois abraços, ao ver o clarão da lua entrar no quarto.
-234.354.- respondeu a si próprio - É verdade: exactamente 234.354 milhas.
Doris mostrou todo o espanto que ele estava no direito de esperar e sentiu-se divertida, pensando, não sem respeito: "Que astucioso é este Bruto!" Também a Palfy
o insultava, não deixando, por isso, de fazer comentários insolentes.
- Já te contou a história do homem que tinha a viseira descida? Não? Qualquer dia ouvi-la-ás.
Doris e a Palfy tratavam-se agora por tu e a primeira cada vez se tornava mais um membro integrante da corte. Comia à mesa dos três alunos, arranhava italiano com
a velha Lúcia e fazia a sua conquista graças ao conhecimento exacto de todas as superstições
que aprendera com a Salvatori. Fiamarelli, o barítono, pediu-lhe, por duas vezes, dois dólares, e Paolo decidiu-a a tomar lições com ele. Era, de resto, um explicador
extraordinário e Doris descobriu, pela primeira vez, a expressão e o fraseado, trabalhando com ele as imortais árias de Rossini. No fim de Novembro sujeitou-se a
novo exame. As notas do fá ao dó, na parte baixa da oitava, ainda lhe saíam turvas, mas na parte alta, melhoravam. Aquilo durou mais de duas horas. Delmonte tirou
o casaco, arrancou do taurino pescoço o enorme colarinho, que deitou para um canto, e pôs-se a respirar com a Doris, repetindo cem vezes a mesma nota. Aquilo custou
outra vez duzentos dólares que ela foi buscar às suas economias. O Bruto informou-a primeiro oficialmente e depois, à noite, oficiosamente, que o mestre lhe dava
a honra de a considerar sua discípula. O dr. Sardi era tudo ao mesmo tempo: secretário, empresário, guarda de corpo, homem de negócios, advogado e amortecedor entre
Delmonte e o mundo exterior. Naquela noite, Doris entregou-se nas suas mãos, secas e frias, com a satisfação de verificar que a perseverança leva ao fim que se deseja
e que o auto-domínio é recompensado.
As lições começaram no dia seguinte às seis horas. Delmonte deixava ver as piúgas e as ligas, os chinelos velhos e o roupão de banho, de um verde completamente desbotado,
vasto como uma tenda, por cima da roupa interior, de sólida lã. Paolo também estava presente, no seu roupão de seda vermelha, mas não precisavam dele. No entanto,
permanecia sentado e contemplava, de vez em quando, a sua imagem, na madeira envernizada do piano. Doris descobriu mais tarde que ele representava uma espécie de
guarda e que Delmonte não ficava nunca num aposento com ela ou qualquer outra mulher, sem o Paolo ou a velha Lúcia.
Para começar a lição, o mestre proibiu-lhe severamente não só cantar mas até falar durante os três meses mais próximos.
- Dê-me a sua palavra de honra. -exigiu -Diga: juro por aquilo que mais amo no mundo. Jure e cumpra.
- Mas como me hei-de fazer compreender? preguntou ela, timidamente.
Delmonte ergueu os braços ao ar e gritou:
- E os animais? Como é que eles se fazem compreender? Hem? Para que lhe servem os olhos ? Pode sorrir, sacudir a cabeça, ter gestos que valham mais do que palavras.
Estude mímica, há-de precisar dela no palco.
E executou na atmosfera um daqueles gestos descritivos que lhe davam o movimento e o exagero de uma grande estátua.
Em seguida, começaram os exercícios respiratórios e aquilo não se parecia nada com as técnicas da Salvatori e do dr. Williams. Quando fazia o que Delmonte queria,
sentia-se ferida por facadas. Ele carregava-lhe no estômago, comandava, contava, batia com o pé no chão. Corria-lhe o suor pelo rosto. Depois, ele próprio respirou
e a Doris teve que lhe pôr as mãos no estômago, perdendo-as na gigantesca cúpula como navios no oceano. Em seguida, tornou a respirar e ele também. No final da lição
mostrou-lhe uma habilidade. Encostou-se bem ao piano, respirou e só com a força dos seus músculos respiratórios conseguiu deslocar o móvel. Deixou então sair todo
o ar que continha e desatou às gargalhadas em face da atitude estupefacta da aluna. Doris beijou-lhe a mão, como vira fazer aos outros.
Desde então, principiou a viver como que numa ilha, porque não tinha o direito de falar. Permanecia muda durante as refeições, passeava só, ficava sozinha no quarto,
respirava, fazia os seus exercícios até ao momento em que tinha a impressão de ir morrer naquele momento.
Mas o dr. Williams achou-a muito melhor, quando ela o foi visitar. Escreveu-lhe num papel que estava proibida de falar.
- Isso não é nada mau.- concordou ele, sorrindo
- O velho Delmonte parece que sabe fazer mais coisas além de cantar patetices. Cale-se. Esteja calada todo o tempo que quiser, minha filha.
- É preciso ter muita coragem. - escreveu ela, ainda.
Nessa época, evitava ver a Salvatori com a qual era impossível manter silêncio.
com os advogados Cowen e Vanderfelt explicava-se por escrito, e o velho Bryant partira para o Egito afim de tratar dos rins.
Doris tentara esconder do grupo Delmonte a sua história, o escândalo, o tiro de revólver, a ferida no peito. Mas a Palfy descobriu tudo. Comprou jornais velhos,
que falavam do assunto em letras garrafais, publicando o seu retrato e fê-los circular pelas mãos dos outros. No dia seguinte, às seis da manhã, Delmonte acolheu
a aluna com altos gritos. Na véspera, cantara o Trovador e não andara lá muito bem: tivera que transpor a stretta um meio tom. Dormira mal e tudo o irritava.
Rugiu:
- É uma imprudência apresentar-se aqui tendo só meio pulmão e querendo aprender a cantar! Se alguma coisa acontecer, o responsável serei eu. Não quero ser embrulhado
num escândalo como esse do Bryant Júnior. Sabe o que lhe pode acontecer se não puder suportar o meu método?
Doris sorriu com um ar prudente e irónico, ao mesmo tempo.
- Sei. - indicou com gestos que não eram tão eloquentes como os de Delmonte.
Claro que sabia. Ele pegou-lhe no queixo. Estava sentado e ela em pé, mas, mesmo assim, ficava mais alto.
Em voz menos brusca, preguntou:
- E, assim mesmo, teima em continuar a cantar?
Ela fez um enérgico sinal afirmativo.
- Perfeitamente! - rugiu o professor - É você que assim o quere. Ser cantora ou morrer.
Continuou com os exercícios respiratórios, ainda com mais violência do que anteriormente.
O conhecimento do passado de Doris produziu um curioso efeito no Bruto. Era o único ser com quem
Doris falava, numa voz de murmúrio, sem tom. Ficou excitado, electrizado: adorava as sensações. Devorou todos os artigos dos jornais, todas as reportagens: como
a tinham erguido, toda banhada em sangue, para a conduzir ao hospital, como o dr. Williams a operara às três da manhã. Tudo aquilo, acrescido ao facto de, por sua
causa, dois homens terem entrado num conflito que podia ter sido mortal, faziam dela uma outra mulher. Desde então, começou a introduzir nas suas carícias, qualquer
coisa de análogo à compaixão, uma espécie de ternura, um vislumbre de sentimento. Doris não podia suportá-lo. Uma ligação como aquela só era tolerável se nada de
humano existisse, se não houvesse outra comunhão além da sexualidade. Quando ele a deixava, ela tomava logo banho, demorada e cuidadosamente, ficando muito tempo
na água, afim de distender a crispação anterior. Por fim, adormecia e, em sonhos, tornava a percorrer a estrada que, de noite, a levara à cadeia, enquanto as cigarras
cantavam, a lua brilhava e o dr. Sardi repetia: há 234.354 milhas daqui até à Ópera Metropolitana.
Em Dezembro, Delmonte despediu-se do público de Nova Iorque, no papel de Rienzi. Tratava de aparecer, de vez em quando, numa ópera de Wagner, porque gostava de cantar
em Byreuth.
A alta sociedade estava lá toda: viam-se brilhantes maiores e mais numerosos do que nunca, porque a prosperidade atingira o máximo, numa febril ascensão. Alguns
jornais acharam Delmonte maravilhoso, outros disseram que já era tempo de se retirar. O Bruto mostrou-lhe as críticas boas e escondeu-lhe as outras. O pequeno grupo
preparava-se para a partida. Paolo, que se embrulhara em três aventuras amorosas, teve pena de se separar delas e ouviu-se, então, ao crepúsculo, a improvisação
sentimental de vários motivos conhecidos e adaptáveis, cuja harmonia era de grande simplicidade. Lúcia fez as malas e introduziu bolas de naftalina entre os trajos
de veludo. À última hora, a Palfy abandonou o grupo. Estava noiva de um americano rico e não partia.
- Como vêem, as vienesas arranjam-se sempre. exclamou, triunfante, envolta num casaco de peles, novinho em folha.
A Salvatori chorava copiosamente. Talvez se tivesse lembrado do Bebé para provocar tal torrente. Por fim, a cantora ofereceu uma prenda. Deu à Doris - não sem um
sinal da cruz e três escarradelas - a sua própria caixa de caracterização. Era um estojo de zinco, esmaltado de verde, guarnecido com borboletas pintadas e munido
de uma pequena asa. Continha alguns velhos lápis de maquilhagem, meio usados, que cheiravam a ranço.
- Quando apareceres, pela primeira vez, em público, utilizar-te-ás dele e lembrar-te-ás da velha Salvatori. soluçou.
Nadava em pleno mar de gestos melodramáticos.
- Hum! - pensou Doris.
Provisoriamente ainda não podia falar, devido ao estado do pulmão e do coração. Não era nada certo que pudesse, um dia, aparecer em público.
Às vezes, acometia-a uma impaciência devoradora que a roía. Ia tudo tão devagar! O canto, a libertação do Basílio - e só Deus sabia que não tinha tempo a perder!
- Obrigada. - disse - Obrigada por tudo.
Nesta ocasião especial, falou, mas naquele murmúrio sem som que estava reservado às conversas nocturnas com o dr. Sardi.
A sua impaciência dos últimos dias tinha uma razão. Por intermédio de Cowen pedira autorização para ver o Basílio. Ela tardava em vir, apesar dos telegramas urgentes
e da ansiedade com que apressava as diligências. Emagreceu. De noite, não dormia e acordava o Cowen, pelo telefone. De manhã, às sete horas, logo depois da lição,
tornava a chamá-lo. Chegou a véspera da partida e alvoreceu o último dia. Não veio a autorização.
- Não é possível! - exclamava ela - E pensava, sem cessar: "Não é possível. não é possível!"
Delmonte estava radiante por voltar para a Europa.
As fabulosas quantias que ganhava na América, não conseguiam curá-lo da antipatia que lhe dedicava. Toda a gente estava alegre e impaciente pelo instante da largada.
E Doris continuava a pensar: "Não é possível!" l Deixar aquela terra sem lhe dizer adeus, sem tornar a ver o Basílio! Tinha a impressão de partir, não para outro
continente, mas para outro planeta. Um planeta sem o Basílio - solidão inimaginável, afastamento infinito, frio glacial. Durante horas esteve resolvida a ficar,
abandonando tudo para esperar pela autorização de ver o preso.
Mas Doris já não é indolente como outrora e a sua loucura está encerrada no interior de si própria. Sabe fechar-se para o mundo, tão hermeticamente como uma ostra,
dura e muda na sua concha. Lá está, a horas, no pequeno vapor italiano que Delmonte prefere. Cheira a óleo por toda a parte, as cabines são estreitas, no "jardim
de inverno" há palmeiras artificiais que reluzem e cheiram a cera. Na casa de jantar, reina o cheiro a peixe e, na ponte, a água e sabão. Delmonte lança o Bruto
para as garras dos repórteres. Ele próprio, muito pálido, desce à sua cabine; traz um colar em redor do pescoço julgando que é bom remédio contra o enjoo.
Doris está na ponte superior e vê os clarões do Manhattan nocturno. Não disse adeus ao Basílio!
Nesse tempo ainda a mãe vivia, quando chegara uma noite à América. Passara por toda a espécie de acontecimentos e agora tornava a partir; também de noite. Tudo era
um tanto irreal e inacreditável. Verificou a sua respiração e examinou o coração, a ver se se portava mal. Mas não. Era um coração bom, sólido e durável. Adeus,
Basílio.
Colocou-se no seu ombro certa mão que cheirava a alfazema.
- Sentimental ? - preguntou o Bruto.
E ela, quebrando o silêncio, murmurou, ainda rouca:
- Que ideia! Nada disso.
- Como estás, Basílio ?
- Bem, obrigado.
Tornavam a encontrar-se, cada um do seu lado da grade.
Muito tempo decorrera - um ano, quási - e não podiam exprimir o que pensavam.
A opressão, a hipocrisia, a emulação da cadeia, a luta subterrânea para obter pequenas regalias: uma cela particular, o direito de ler à noite, o passeio, o quarto
de hora na "sala de ginástica", a licença para frequentar a aula nocturna. O cheiro a fenol, a W. C, as filas de baratas que, continuamente, atravessam o sobrado
das celas, os gritos dos prisioneiros rebeldes que levavam pancada, a proibição de falar e as intrigas perpétuas (balbuciadas com a boca quási cerrada, transmitidas
por meio de bilhetinhos, por pancadas dadas nas paredes), os condenados, os colchões, os guardas. Mais condenados, colchões e guardas. Depois começava-se a baixar,
lenta mas infalivelmente: curvavam-se as costas, deixava-se correr, esquecia-se o que se foi e como eram as coisas lá fora. A revolta cada vez mais rara; a desolação
tenaz, perpétua. Não; era impossível falar nisso.
Doris fitava Basílio com olhar perscrutador. A grade separava-os; era um dia de chuva que acinzentava o telhado de vidro e nele tamborilava com os seus milhares
de gotas.
Quando trouxeram Basílio, ela julgou que se tinham enganado. Quási que já não era ele. Formara nos seus sonhos e nos seus pensamentos uma imagem com a qual se não
assemelhava nada. Tinha a cabeça baixa; a pele morena era de um tom doentio, amarelado, os ombros descaiam sob a sua blusa de condenado. "Que fizeram de ti, Basílio?
An? Responde."- Não; também se não podia dizer aquilo.
- Como estás ?
- Bem, obrigado.
- Há muito tempo que nos não vemos.
- 316 dias.
- Tens contado dia a dia? - preguntou ela, começando a sorrir.
- Se não contamos os dias todos aqui, estamos perdidos.
Um silêncio. O funcionário, sentado à secretária, faz ranger papel.
- Também te agradeço as cartas. Escreveste sempre com regularidade. - disse ele.
Doris estava ali, tão perto! Se a grade não existisse, poderia agarrá-la e beijá-la, até.
- Ah, Doris, tu sabes lá por que meandros se perde a imaginação de um prisioneiro, sem que nada se possa fazer para o impedir.
Ela replicou:
- E não se pode dizer tudo o que se pensa, quando se sabe que outras pessoas lêem as cartas.
Basílio voltou vivamente a cabeça para o funcionário mas ele parecia não ter ficado ofendido. Estava embrenhado na leitura do seu jornal.
- Doucha moía doiogaía.- murmurou o preso, e durante um segundo, a longínqua entoação voltou. Doris sorriu outra vez e encostou-se ternamente à grade, como se fosse
a ele.
- Que quere isso dizer?-preguntou com o olhar.
- Cheiras tão bem! - disse Basílio, e esta frase tomou um som ingénuo, como se viesse de um primitivo, um esquimó que, pela primeira vez, se encontrasse em frente
de uma mulher bem vestida.
- É um perfume muito barato, confessa Azzurra.- explicou ela e, movendo os ombros, fez com que nova onda de perfume se desprendesse. Basílio aspirou-o com as narinas,
os olhos, os ouvidos, farejando como um animal.
"Porque mudaste tanto?" - pensava ele. Mas disse outra coisa:
- E agora, também sabes italiano ?
- Sei. Habituei-me a todos aqueles italianos. O Delmonte é magnífico. Hás-de conhecê-lo, quando
saíres daqui. Gostarás dele. É de uma severidade espantosa, mas se me dissesse: "salte pela janela que eu estarei lá em baixo para a receber", eu saltaria e ele
estaria lá em baixo, de braços abertos.
Era a primeira frase comprida que Doris pronunciava e a primeira que proferia com sinceridade. Numa associação de ideias, Basílio lembrou-se como se dedicara ao
Arzman, que, mais tarde, descobrira ser um batoteiro, o que o desgostara. Preguntou delicadamente :
- Tens feito progressos no canto ?
- Ora, o canto.-replicou ela, com vivacidade. Imaginas talvez que canto árias ou qualquer coisa parecida? Niente, niente, apenas o solfejo, que é tudo quanto há
de mais enfadonho. Às vezes, parece que rebento, pensando em tudo que desejaria cantar.
- Gostaria de te ouvir. - disse ele, em voz grave.
Ela fixava-lhe o rosto com olhos um pouco distraídos. Quereria descobrir em que consistia a mudança tão manifesta e cruel que nele notava, mas não conseguia precisá-la.
- Colocou a minha voz duma forma totalmente diversa, compreendes? Quando saí das mãos da Salvatori, tinha as cordas vocais completamente estragadas. Ela fazia-me
cantar como se fosse soprano ligeiro. E sabes o que sou ? Contralto médio. GoStava que ouvisses agora as minhas notas médias. É claro que as agudas desapareceram,
mas o Delmonte afirma que voltarão daqui a dois anos e que, nessa altura, poderei cantar papeis dramáticos. Santuzza, sabes ? A Aída.
Calou-se, de súbito, e olhou-o com temor. E, em voz mais baixa:
- Desculpa. Nada disto te interessa.
- Sim, sim, interessa-me. - replicou ele, com vivacidade-Não podes imaginar como tudo que vem de fora nos interessa. Ficamos com novas coisas, em que podemos reflectir.
Conta, fala-me de Milão. Gostas de lá estar? Fui lá um dia, num domingo de Ramos; as pessoas vendiam buxo à entrada da igreja e, no
interior, as mulheres punham-se em fila para cumprir as penitências. A mim, enervar-me-ia ter sempre em frente dos olhos aquela arquitectura de pasteleiro.
Durante momentos, estas frases fizeram-lhe crer que o Basílio ainda era o Basílio e apressou-Se a responder:
- Quando vi o Duomo pela primeira vez, estava coberto de neve; era lindo. Mas o inverno, em Milão, é horrível, sobretudo por causa da voz. E há todos aqueles sinos
que tocam sem parar; quando se não pode dormir, fica-se doido.
Tornou a calar-se, de repente. Longínquas nuvens não tinham deixado de passar por cima dos vidros, ora iluminando ora espalhando sombra.
-Tu não dormes bem? E como estás de um modo geral? Refiro-me à tua saúde.
- Obrigada, passo bem. Delmonte levou seis meses a fazer-me respirar apenas, o que me fez imenso bem. E sabes o que ele dizia? Ser cantora ou morrer". Tornou-se
uma espécie de estribilho, como no Wagner. Mas eu não sou das que morrem, segundo parece.
- Não; e eu sou como tu. - concordou ele, aprumando-se.
Mas, assim que deixava de prestar atenção, os ombros tornavam a cair.
- E então, estás em Milão? i Ouves os sinos e passas o tempo a respirar e a estudar solfejo?-repetiu com o rosto crispado pelo esforço. Tentava imaginar a vida de
Doris, mas do mundo exterior, não possuía mais do que descoloridas imagens.
- Sim, é isso. Todos os alunos de Delmonte vivem na mesma pensão. Creio que o Bruto recebe uma comissão da Signora Cipra e por isso nos instala, a todos, lá. É bastante
pobre, a alimentação é horrível e é preciso pagar para se ter um banho. Da minha janela, diviso, por cima dos telhados, uma flechazinha do Duomo. Devemos tocar muito
piano para nos podermos acompanhar a nós próprios. Há a teoria, a história da música e também a esgrima - também fizeste,
não? Gosto imenso. Vamos também à Scala, todas as vezes que o velho canta e saímos para aqui e para ali.
- Quem são os outros?
Ela não hesitou e respondeu: J
- Os alunos, os Delmonte, como nos chamam! Estamos sempre juntos, embora, às vezes, tenhamos" vontade de nos envenenar uns aos outros.
Basilio reflectiu maduramente nesse ponto da questão. Também na prisão diziam e pensavam sempre: nós. Nós os condenados, nós, os prisioneiros; mas nunca pensavam:
nós, os criminosos. Nenhum se considerava culpado.
Basilio encostou o rosto à grade e fitou a rapariga. Mudara muito, estava mais linda. Tinha tomado cores vivas, cabelos de um ruivo escuro, olhos verdes, grande
boca vermelha. Falava numa voz sonora e servia-se de expressões exageradas e correntes. Fixando-a, através da grade, sentiu subir em si, durante um breve segundo,
todo o ódio que, às vezes, lhe votava. Era devido a ela que estava na prisão, que lhe estragavam os melhores anos da sua vida, transformando-o num farrapo bom para
deitar fora. Aquilo ergueu-se como uma chama e extinguiu-se logo, dando lugar a um violento desejo.
Renunciando a prestar atenção à presença do funcionário, preguntou:
- Dize: tens alguém? Apaixonaste-te por alguém?
- Não. - replicou ela, com rapidez - Como podes pensar semelhante coisa? És o único.
Ele notou a pressa e a violência de tal afirmação e ficou desconfiado.
Na frente de Doris passavam os locais, os homens, os meses. Milão. Cidade um tanto incolor na rude Itália do norte. A sua vida entre os Delmonte, cheia de intrigas,
emulações e sobretudo de ambição. Quando se havia trabalhado algumas horas com o mestre, parecia que uma única coisa era importante no mundo, tornando a vida digna
de ser vivida: o canto. Uma nota falsa, uma doença sem importância, a mínima constipação - eram catástrofes de gigantescas proporções, comparáveis
às erupções vulcânicas da Sicília. Um cumprimento, um progresso representavam a felicidade. As noites febris do Scala, as conversas que se seguiam, as súbitas discussões,
as bruscas reconciliações, as excursões ao lago de Como nos comboios turísticos, a abarrotar, o idioma estrangeiro, os gestos sonoros, o hirto desdém medieval dos
italianos por tudo que diz respeito à mulher, a viagem a Viena pelos Dolomitas na época em que se derrete a neve ao longo das torrentes verdes e espumantes, ao longo
das cidades de sinos em forma de cebolas, através das pontes e dos viadutos. Na terra cheia de sinos, em face da velha catedral, habitava-se uma horrível pensão
onde tudo era caríssimo. Ia-se à ópera, liam-se, com desgosto, as criticas ao velho que já se declarava ter demasiada idade. Conheciam-se pessoas encantadoras, também
apaixonadas por música: o criado que trazia a comida, o guarda da noite, o estrangeiro que dirigia a palavra, na rua.
"Uma terra de paisagem erótica", dizia o Bruto. Mas o verão em Salzburgo mostrava-se ainda mais erótico e nem sempre era fácil satisfazer as exigências do dr. Sardi.
Doris ficou horrorizada ao lembrar-se daquele homem, ali, naquele sítio, em frente de Basílio. A sua voz ainda pairava no ar, com a última pregunta mal definida.
Voltou apressadamente a ele. O tempo passava e afinal não diziam senão tolices.
Ela afirmou:
- Bem sabes que, para mim, só tu existes. Esperar-te-ei todo o tempo que for preciso.
Esforçou-se por deter o seu olhar errante. E então, apareceu-lhe no rosto qualquer coisa que se parecia com uma careta de dor. Emocionada, Doris compreendeu que
ele tentava sorrir. Sabia agora o que o transformara: perdera o sorriso. Dizia tudo com a mesma gravidade monótona. Num gesto espontâneo, ergueu as mãos para ele,
como para lhe amparar a cabeça. Separava-os a grade. A cabeleira cor de areia parecia estar cheia de pó e as fontes começavam a desguarnecer-se. Pobre cabeleira
a ensombrecer! Foi a primeira
vez, desde a chegada ali, que ela experimentou uma sensação de ternura.
- Têm só cinco minutos.-disse o funcionário, por trás deles.
Cheio de tacto, aproximou o jornal do rosto e tornou-se invisível. Basílio conservava o sorriso nos descoloridos lábios.
- Pensas ainda, algumas vezes, na nossa ilha?- preguntou tão baixo, que ela mal ouviu. Mas replicou imediatamente, cheia de boa vontade:
- Em Biribiki? Se penso! Mas não vivemos senão para ela. Iremos em breve, convence-te disto.
O rosto de Basílio estava-se tornando pardo, a pouco e pouco, e uma nova carga de água escureceu a sala. Trocaram ainda algumas palavras ocas, como pessoas que esperam
a partida de um comboio. Basílio teria desejado levar para o seu catre o perfume dela, como se fosse um objecto sólido. O seu bom comportamento havia-lhe feito obter,
por excepcional favor, papel e um lápis. Assim, a sua imaginação, que abrandava, teria agora um alimento. Desenharia Doris.
Colocaram as mãos na grade, como da primeira vez, mas não se estabeleceu a mesma corrente. Entre as duas palmas, apoiadas uma à outra, subsistia um vácuo.
Ela tomou o comboio, nessa tarde, e entrou no hotel Blanchard, onde o Bruto a esperava, rangendo os dentes. Ali tudo estava em revolução, por várias razões. Primeiro,
o barítono Fiamarelli, essa víbora que o mestre instruíra gratuitamente, alimentando-o e dando-lhe dinheiro, casara secretamente. Soluçando e com profusão de gestos
eloquentes, confessara ao velho que uma rapariga se encontrava à espera de um filho seu, que o pai ultrajado ameaçara dar cabo dele e que, finalmente, a sua dignidade
lhe aconselhara o casamento. Delmonte amaldiçoou o desgraçado, mas levou-o para Nova Iorque com a sua Fiorina e obteve mesmo, para ele, uma audição na Ópera Metropolitana.
E embora o velho afirmasse que deveria trabalhar mais quatro anos, o barítono com voz de bronze firmou contrato para papéis de segunda categoria.
Agora não era certo - o dr. Sardi confessara-o a Doris, na intimidade - que o velho obtivesse novo contrato. A direcção da Metropolitana tornava-se inacessível:
tinha escrúpulos. Delmonte já não era nada novo e na última representação do Trovador tivera que transpor a sttetta de um meio tom. Pairava sobre os quartos do hotel
Blanchard uma grande trovoada. Nesse tempo de crise, apareceram mais duas pessoas no séquito do professor: o homem de negócios, Mosse, um anão deveras habilidoso
e influente e o padre católico Francisco Mattoni. O velho, esmagado, andava de um lado para outro, e, em magníficos discursos, aconselhava os alunos a não pensarem
senão em atingir a perfeição. Ninguém tinha vontade de rir, nessa ocasião, e o baixo Terp emagrecia a olhos vistos, tendo começado a desconfiar de si próprio. Por
outro lado, a Palfy reaparecera, recentemente divorciada e munida de novo capital que lhe permitia continuar os estudos. Disse a Doris:
- Estou espantada, minha querida! Mas como soube arranjar-se! Podia ser de Viena, tem bastante linha para isso.
Havia ainda outra aluna, uma nova, romena de olhos melancólicos e demasiado grandes, que possuía qualquer coisa de cigana. Doris tinha a impressão, não fundamentada,
de que o velho preferia aquela romena aos outros alunos, atormentando-a com mais paciência, o que talvez significasse esperar mais dela do que dos outros. Mordia-se
de inveja. Deitou-se, de cabeça, ao trabalho; os seus estudos e exercícios tomaram um aspecto de raiva silenciosa e metódica. Quási que esqueceu a visita ao Basílio-de
resto, era isso que desejava.
Tinha ainda outras preocupações. O Bruto estava apaixonado por ela. Era imprevisto e extremamente desagradável. Durante algumas semanas, estivera com a romena. Mas
voltara a Doris rangendo os dentes e declarando-lhe que a amava. Ninguém esperaria semelhante coisa e ele menos do que os outros.
- Estragas-me a existência! - gritou - Tiras-lhe todo o encanto. Já não posso suportar nenhuma
outra mulher. É uma catástrofe e uma falta de gosto.
Doris, ao princípio, não viu senão o aborrecimento, a prisão, as novas obrigações. Mais tarde, sentiu que essa situação lhe dava uma nova esperança. Tinha submetido
um homem habituado a tiranizar um harém. Tinha levado um homem que não queria ou não podia amar, a apaixonar-se por ela. Depois das primeiras exigências, tornou-se
meigo e submisso. Comprou-lhe flores e sapatos. [Era uma coisa inacreditável esta de gastar dinheiro com ela, em vez de o ganhar, graças a ela! Chamava-a ao telefone,
escrevia-lhe cartas comprometedoras e imprudentes, logo que a não via durante algumas horas. Para lhe agradar, mudou de penteado e substituiu as coroas de ouro que
lhe maculavam o sorriso, por outras, de esmalte. Era absolutamente cobarde e, uma vez, desmaiou no dentista. Explicou:
- Tenho os nervos exaustos.
E como Doris fazia troça, acrescentou:
- Arruinaste o meu sistema nervoso; eu é que fiz de ti o que tu és e, afinal, cada dia estás mais egoísta.
Doris reflectiu nestas palavras. Não deixava de ter razão. Sem ele, nunca teria ido a um caro instituto de beleza; haveria continuado com os cabelos sem cor, não
seria discípula de Delmonte, não saberia conduzir-se com elegância.
Além disso, fazia-lhe trabalhar, o que se chama "a parte dramática dos papéis" - desses papéis que ela não tinha o direito de cantar senão daí a muitos anos. Entre
duas cadeiras que representavam os bastidores, ele perseguia-a, obrigando-a a simular genuflexões, abraços, súplicas. Aprendia a enterrar punhais no seu próprio
coração, a rolar brilhantemente de cima a baixo de uma escada, fingindo-se morta, a ouvir as rivais estando a ser vista pelo público e não por elas. O Bruto era
mestre, sobretudo, nos diferentes géneros de morte. A Carmen era apunhalada. A Tosca lançava-se do castelo, a Traviata morria tuberculosa, assim como a pobre Mimi
da Boémia. A Aída era emparedada e madame
Butterfly fazia harakirí. Tudo isto Doris aprendia conscienciosamente e com uma leve gratidão; aquilo em nada lhe afectava o coração, visto que nenhuma relação tinha
com a morte real. Na Metropolitana sentava-se ao lado do Bruto, assim como na Ópera de Viena, no Scala de Milão e nas festas de Salzburgo. com um gesto de cabeça,
numa palavra murmurada, ele mostrava-lhe o que era bom, mau, extraordinário. Levava-lhe livros e, à noite, falava com ela nesse alemão rude que pretendia ser a sua
língua de origem. Era um desses entes que se não podem imaginar no regaço da mãe ou na meninice.
Embora a amasse agora, continuava a receber a percentagem no preço das suas lições e não deixava de lhe fazer uma partidita, de vez em quando. Doris, pelo seu lado,
tratava-o sem a mínima consideração. Não sentia a menor compaixão por esse homem que humilhava, nenhum sentimento de gratidão ou de estima. Obrigava-o a mendigar;
servia-se dele como ele se servira dela. com o dr. Sardi, Doris aprendeu uma coisa que havia de utilizar mais tarde: ser dura e mesquinha com os outros homens.
Na rua, olhavam para ela. Um cavalheiro que habitava no quarto andar do hotel Blanchard, mandou-lhe uma declaração escrita. Durante os intervalos da Ópera, quando
passeava com o dr. Sardi, pelas galerias, voltavam-se à sua passagem. Delmonte evitava cuidadosamente estar só com ela, ia à missa e confessava-se esforçando-se
por merecer o seu novo contrato pela prática do catolicismo. Até o Paolo, com os seus ares de palhaço irónico, lhe disse que se estava tornando perigosa para ele.
Para proteger a sua velha professora, ela recebia agora da Salvatori, lições de maquilhagem. Sentava-se em frente do toucador onde estava toda a aparelhagem e contemplava
o rosto com um olhar inquisitorial. Estava magra; sob as maças do rosto, as faces cavavam-se um pouco, formando leves sombras. Tinha uma ruga profunda na base do
nariz. A boca era muito grande.
- Exagera os teus defeitos e transformá-los-ás em qualidades. - pregava o Sardi.
Tentara uma série de batons, desde o côr-de-laranja ao vermelho escuro. Preferiu o mais sombrio, acusou com força o desenho dos lábios e pôs creme lilás nas pálpebras,
fazendo salientar o tom verde dos olhos. Ficava assim com um ar absolutamente artificial que lhe não desagradava.
- Quem é aquela mulher? - preguntou o agente dos negócios Mosse em voz alta, quando reparou nela, pela primeira vez, na lamentável sala de jantar do hotel.
Quanto ao abade Mattoni baixava os olhos assim que a sua "indecente" silhueta passava, envolta numa nuvem de perfume.
- É uma grande voz e uma pequena esperança.- disse amavelmente o velho.
As focas sábias do circo eram mais bem tratadas do que os alunos, pelo professor. Doris ficou sufocada porque era a primeira vez que o velho tinha, sobre ela, uma
opinião positiva.
- Hei-de lá ir quando for a sua estreia. - disse o homem de negócios.
Parecia corcunda sem o ser e tinha uns lindos olhos de animal. Tomou a mão da rapariga entre as suas, esfregou-a, apertou-a e acabou por lha restituir.
- Daqui a três anos, hão-de querer cantoras delgadas, minha filha; então dar-se-á a sua aparição.
Quando ela se retirou, os seus olhos seguiram-na até à porta.
Delmonte cantou Os Palhaços numa nova versão que parecia exactamente igual à do velho repertório consagrado pelo êxito. Foi uma grande noite, um triunfo. Representou,
quási sem maquilhagem, o comediante enganado pela mulher. Era um homem gordo, pesado, um tanto cansado, com cabelos brancos e tragicamente apaixonado pela esposa,
uma leviana jovem e vulgar. No camarote, ao lado de Doris, o dr. Sardi sorria, com ar concentrado. Disse:
- Aquilo é a minha ideia, a minha concepção, o meu êxito.
- O grande eu! O centro do mundo! - replicou ela, insolentemente.
O Bruto recebeu a ofensa sem repontar.
Delmonte obtivera o seu contrato. Chegou a noite de despedida, também com Os Palhaços. A Salvatori tornou a derramar torrentes de lágrimas no momento da separação.
Desta vez, a autorização da visita à cadeia, chegou a tempo. O advogado Cowen chamou, ele mesmo, Doris ao telefone e a sua voz tremia de alegria. Tinha lançado sobre
o caso de Nemiroff, um jornalista que andava a escrever um livro acerca das prisões americanas, um homem influente e temido. Estava cheio de esperança e de confiança.
Doris agradeceu, mas sentia-se oprimida. Parecia-lhe que se dirigia para Basílio com as mãos vazias e o coração também. No entanto, tudo se passou melhor do que
na vez anterior. Basílio parecia mais bem disposto e falava com mais vivacidade. Sorriu por três vezes e acabou por beijar Doris por cima da mesa. Ela ignorava que
fora a última visita que lhe tinha dado forças e um alimento interior, de modo que ele sentia menos a impressão de estar amortalhado.
Esse beijo ficou com ele na cela.
Esse beijo partiu com ela para a Europa.
Passou-se mais um ano, ou antes duzentos e noventa e oito dias, para falar à maneira de Basílio, e de novo Doris está sentada no locutório da prisão, esperando a
sua chegada. Agora conhece perfeitamente o aposento, o cheiro, a luz cinzenta filtrada pelos vidros, o funcionário sentado à sua mesa.
- Está um lindo dia. - diz o homem amavelmente, indicando com o queixo o teto ao canto do qual brinca um pouco de sol.
- Sim, realmente está um lindo dia. - responde ela, delicadamente.
A língua inglesa e as pequenas fórmulas optimistas e insignificantes dos americanos já se lhe tornaram um pouco estranhas. Barulho de chave na porta de ferro. A
porta abre-se. Vê-se primeiro o guarda que pára no limiar e manda passar o prisioneiro na sua frente.
- Apenas meia hora e não namores muito, meu rapaz. - diz antes de se retirar.
Basílio olha para o aposento como um cego. Doris começa a tremer, mas trata logo de se dominar. Basílio está agora com muito menos cabelo; e o seu olhar é vago.
Arrasta os pés quando caminha, encosta-se à grade e fica à espera.
- bom dia, Basílio .
- bom dia, Doris.
Não, ela agora já não pregunta: "Como estás?" Seria uma pregunta muito ridícula em presença de tal ruína. Espera também que o silêncio se despregue debaixo do telhado
de vidro como um pano preto. Um silêncio que abafa. "Eu vou gritar", pensa Doris, mas em vez disso sorri na direcção de Basílio. O funcionário levanta-se e abre
a grade.
- Tem autorização. - diz ele.
Imediatamente, um pouco de rigidez militar reaparece no corpo do prisioneiro. Saúda atentamente, dá meia volta à direita e passa pela pequena porta.
- Muito obrigado. - diz, deferente.
- Está bem, general. - replica o funcionário, dando-lhe a alcunha que ele tem na prisão. E vendo a maneira como Basílio fica na frente de Doris com a cabeça baixa,
acrescenta:
- Pode sentar-se.
- Então, Basílio? - pregunta ela.
Ele já está sentado, separado por uma mesa; tem os ombros caídos e o seu olhar parece ausente.
- Então sempre vieste.
- Não pude vir mais cedo; mas escrevi a dizer-to.
- Sim, eu lembro-me. Como tu mudaste!
- Achas? Tu estás na mesma. - diz Doris com tanta precipitação que Basílio encolhe os ombros.
- Estou aqui há vinte e cinco meses e uns dias, de maneira que já não há mudança nenhuma.
Ela pregunta rapidamente:
- Continuas a pensar na nossa ilha?
- E tu?
- Sempre. É claro que penso sempre nisso.- diz ela e também esta frase sai demasiadamente acentuada.
"Ela está a contar-me uma porção de mentiras".- pensa Basílio.
Olhou-a e não encontrou o seu rosto por trás da fachada artificial. Teve um desejo súbito e ardente de lhe arrancar o vestido para ver se o seu corpo estava na mesma.
Doris sentiu passar dele para ela uma lufada de calor e empalideceu sob a pintura. Ele exalava um cheiro estranho, não sujo mas demasiado limpo: cheirava a sabão,
a fenol, a produtos desconhecidos e violentos. "Mas é o Basílio - pensava Doris com insistência - é o Basílio, é tudo que tenho no mundo, é toda a minha razão de
existir."
Sorriu, baixando os cantos da boca.
- Emagreceste. - disse Basílio - Não estás bem de saúde ?
- Sim, de uma forma geral estou bem. Enjoei a bordo.
Achava que ela falava alto de mais. Piscava os olhos quando a sua voz lhe fazia vibrar o tímpano.
- Já não te agrado ? - preguntou num tom que pretendia ser alegre.
- Sim, estás muito linda. Antigamente não o eras.
- Muito te agradeço essas palavras, Basílio. disse ela, sorrindo.
- Deves ter muitos apaixonados.- notou ele gravemente.
Doris teve um momento de terror.
- Nem um só. - respondeu - Bem sabes que nunca te minto, nunca. Para mim, só tu existes. Sempre.
Quando ela dizia aquilo, quási que falava verdade. Rompera com o dr. Sardi, a ligação tinha acabado numa vaga de injúrias mútuas, proferidas em voz baixa.
Continuava a tomar lições de arte dramática com ele, porque o Bruto queria ganhar dinheiro mesmo que já não tivesse mulher. Todos os outros homens que encontrava
no seu caminho ou que tentavam aproximar-se dela lhe pareciam ocos, aborrecidos e descoloridos comparados com Basílio. Não com o Basílio real, o condenado que estava
sentado ao lado dela, como que mergulhado em sono letárgico e que cheirava a fenol. Mas com o Basílio bizarro, um pouco doido, feroz e tão vivaz das primeiras noites.
Basílio tinha disparado um tiro de revólver sobre ela e quási que a matara; olhava agora para os outros homens: nenhum seria capaz de disparar - pensava com desprezo.
Em Viena, um arquitecto beijara-a duas ou três vezes. Desde a rutura com Sardi, o seu corpo estava, às vezes, impaciente e sentia a pele insatisfeita, de uma forma
que a atormentava. Sardi fora o próprio a dizer-lhe: "O amor é um negócio de epiderme".
Quando chegou ao fim das suas reflexões, concluiu:
- Quando se canta e se trabalha como eu, não se precisa de mais nada.
- É verdade, tu cantas?-disse Basílio, como que acordando de um sonho angustioso.
Doris reprimiu um gesto de irritação.
- Já apareci em público, em Salzburgo. E cantei nos bastidores, no yedermann, de Reinhardt.
Era para ela, o acontecimento culminante do ano. As lutas com Delmonte antes que ele consentisse em a deixar cantar em público e cantar outra coisa além dos exercícios.
O feroz ciúme dos outros alunos, as tentativas do Bruto para impedir a sua aparição. Depois, as críticas: embora lhe não citassem o nome, haviam-se referido à sua
voz.
- Ah, sim? -foi o simples comentário de Basílio. Ela fez ainda um esforço para se pôr em comunicação com ele.
- As notas agudas voltam agora e o meu médio está firme. Não te posso descrever a sensação que se experimenta quando as notas saem de repente, quando estão bem colocadas,
compreendes? e que a gente
sabe que as possui. uma nota assim, sente-Se em toda a parte, no corpo inteiro .
- Posso beijar-te? -preguntou o homem que já não a ouvia -Ela calou-se. Deitou um rápido olhar para o funcionário e respondeu em voz baixa e delicada:
- Se quiseres.
Enquanto ele se inclinava por cima da mesa, apoiando desastradamente os seus lábios nos dela, durante longo tempo, a mancha de sol da vidraça continuava o seu caminho,
desaparecendo por fim.
Uma mosca atrazada veio zumbir e colocar-se sobre a pobre cabeleira do preso. Então Doris desligou-se e respirou profundamente, com o rosto grave e crispado pelo
esforço. E pensava: "Então ainda estás vivo, ó Basílio.". Ele disse, uns instantes depois:
- Antigamente, víamo-nos pouco e mal nos conhecíamos . Pouco sabemos um do outro . Houve alguns mal-entendidos entre nós, não é verdade?
Mais uma vez, Dórís ficou angustiada ao ver que o seu rosto se contorcia lamentavelmente para produzir um sorriso.
- Teremos cem anos para nos conhecermos
na nossa ilha. - disse, pegando-lhe na mão e colocando-a no seu ombro, como para a fazer descansar. Foi só então que as suas palavras, ditas um pouco antes, o atingiram.
- Cantaste então em Salzburgo? Apareceste em público . daqui a pouco serás célebre.
- Ainda é preciso algum tempo. - replicou ela, modesta - Mas um dia hei-de sê-lo, disso podes ter a certeza. É preciso que a nossa vida tenha um fim.
- É também o que diz o padre cá da prisão. replicou Basílio - A entoação parecia hipócrita e Doris levou um segundo a compreender-lhe a ironia.
Estremecendo, reconheceu, nessa ponta de sarcasmo, o Basílio de outrora. Acariciou a mão que lhe repousava no ombro. As unhas estavam curtas e bem tratadas. A pele
era áspera, e viam-se as costas da mão atravessadas por dois arranhões.
- Agora tens licença para modelar? - preguntou-Ihe, pensando nesse desejo que ele manifestava constantemente nas cartas que recebia e que além de serem raras, eram,
em parte, redigidas pela direcção.
- Ainda não. Mas se não acontecer nada nos três meses mais próximos. isto é, se eu me comportar como até hoje, então consegui-lo-ei.-disse, animando-se.
- Sabes quem me preguntou por ti, pedindo-me para te apresentar os seus cumprimentos? A Juddy. A Juddy Bryant, que se chama hoje marquesa da Brunière. Veio visitar-me
a Salzburgo, quando deu com o meu nome no cartaz - espera muito de ti, assim que saíres daqui.
Basílio respondeu com uma injúria grosseira. Doris assustou-se e quis emendar. Disse com vivacidade:
- Sim, é uma idiota. Mas o velho Bryant é muito correcto. Também estava em Salzburgo. Faz-me sempre pensar no meu pai.
Basílio recaíra na sua distracção. Preguntou um pouco mais tarde:
- Tornas a ver o Cowen?
- Penso que sim.
- Diz-lhe que trave relações com Colton; és capaz de não esquecer o nome? C-o-l-t-o-n. É preciso que ele lhe fale, é muito importante.
Por trás do seu jornal, o funcionário animou-se. E disse em tom queixoso:
- Não tem direito, Nemiroff. bem sabe.
Basílio calou-se imediatamente. O tempo que faltava decorreu lentamente em frases insignificantes. Quando ela partiu, já era noite.
Foi a pé para a cidade. Era já muito tarde para apanhar o comboio. Conhecia agora o caminho, as árvores, a bomba de gasolina, um pouco antes de chegar à ponte, depois
a pequena cidade. No hotel, já haviam adivinhado que ela ia visitar alguém que se encontrava na prisão. Na confeitaria, cumprimentavam-na como se fosse cliente.
Passou a noite no cinema, chorou um pouco por causa de Lilian Gish e ficou-lhe grata. A sua tensão
interior apaziguou-se lentamente. Meteu-se por entre os caixeiros viajantes instalados no hall e subiu directamente ao seu quarto. As visitas ao Basílio deixavam-na
sempre morta de fadiga.
Ao despedir-se, viu cair da sua blusa, um papel que contemplou, estupefacta. Era um pedaço de papel enrolado tão finamente como um alfinete e dobrado de forma especial.
Esforçou-se por o abrir e o ler. Riu-se baixinho, pensando que Basílio, apesar de dar uma tal impressão de aniquilamento, tinha ainda espírito empreendedor bastante
forte para levar a efeito uma empresa destas. Leu: "O Colton tem muita influência. Na prisão têm medo dele. Se for a Washington, descobrirá tudo. Batem-nos muito
e metem-nos na masmorra à mínima palavra. Poderá pôr-me em liberdade, se quiser. É ele que publica o Morning Stat. É um velho camarada. Ajuda-nos a todos, sempre
que pode. A direcção: Filipe Colton, Mashford, Gardenstreet; preciso que Cowen obtenha, para mim, a autorização de comprar alguma coisa lá fora. Fala-lhe imediatamente."
Doris virou o papel e alisou-o ainda mais. Procurava uma palavra para ela, mas não encontrou. Riu-se dolorosamente. Tinha, pela primeira vez, entre as mãos, uma
mensagem de Basílio, onde se tratava da sua vida real, das suas inquietações de condenado, dos seus desgostos de prisioneiro, das suas esperanças. "Eles batem. iter-lhe-ão
batido a ele, também?" preguntou.
Foi directamente da estação ao advogado Cowen. Mas mal lhe pôde falar. Estava perturbado. Nova Iorque inteira perdia a cabeça. Havia uma agitação, um alarme de que
Doris não compreendeu a causa senão a pouco e pouco.
Produzira-se krach na Bolsa. Enquanto Doris circulava pacatamente entre a prisão e o hotel, Nova Iorque conhecera a maior falência do século. A ilusão de uma prosperidade
demasiado fácil e grande desvanecera-se. A história do lucro transformara-se cruelmente em história da ruína. Nos speakeasies suicidavam-se homens que haviam sido
ricos, tendo
perdido centenas de milhares de dólares. Toda a gente estava prejudicada. Os ricos, os especuladores ainda mais do que os outros, mas também a classe média que levara
à Bolsa as suas pobres economias. Os que haviam confiado nos Bancos, verificaram que, de repente, tinham ficado apenas com papéis sem valor. E aos que nada possuíam,
pequenos operários, empregados, criados, também a catástrofe os atingia, porque os patrões deixavam de lhes pagar.
Cowen perdera os seus seiscentos dólares; o advogado Vanderfelt que Doris foi procurar afim de receber a sua mensalidade, não se tornou visível senão passadas algumas
horas. Estava completamente transtornado. Preveniu Doris de viva voz e, depois, por escrito, que provisoriamente, mas por um tempo indeterminado, não devia contar
com o pagamento da pensão combinada. O velho Bryant, à casa de quem ela desejava ir, encontrava-se ausente, no seu hiate, em qualquer parte do Adriático. Comunicavam
com ele por meio de telegramas. Os jornais citavam-no como pertencendo ao número das pessoas arruinadas, dizendo que se os seus credores se mostrassem razoáveis,
seria capaz de fazer face aos compromissos legais.
Em relação a Doris ele não tinha nenhum compromisso legal. Ela foi ao Banco levantar as suas economias, pois tinha que viver, devendo pagar a conta do hotel Blanchard,
as lições de declamação do dr. Sardi, os mil dólares mensais ao Delmonte. No Banco, disseram-lhe, com um sorriso compassivo, que os seus papéis haviam baixado muito.
Nem ela sabia que as suas economias estavam transformadas em acções.
- E não tornarão a subir ? - preguntou ingenuamente.
Novo sorriso dos empregados.
- Se puder esperar alguns anos, talvez . Não podia esperar.
E preguntaram-lhe:
- Quere que se vendam ?
- Quero.
A venda rendeu quatrocentos e vinte dólares.
"Voltar para o Schumacher e para a sexta avenida, procurar um lugar de criada", pensava obscuramente. Mas já não havia empregos, por toda a parte despediam gente
que ficava na rua, com rostos espantados e cheios de angústia, contando uns aos outros o que tinham perdido e quanto o antigo patrão havia possuído.
Doris lembrou-se da noite com o sr. Wallert. Aprendera muito, entretanto. Agora valia mais de trinta dólares. Olhou para o espelho e murmurou, sem convicção :
- Mas afinal de contas posso cantar.
Por sua causa, houve entre Delmonte e o Bruto uma cena terrível. O dr. Sardi julgava que tinha chegado a hora da vingança. Se a Doris já não tinha dinheiro, se deixava
de ser a "rica americana", o melhor era enterrá-la. com ruidosas frases exortou Delmonte a não se deixar mais explorar. Falando, os novos dentes esmaltados reluziam-lhe
na boca. Evocou o infame Fiamarelli que casara em segredo, a Palfy que passara para a opereta e estragava o nome de Delmonte pela sua total ausência de talento.
Chegou a mencionar as suas próprias experiências dolorosas com a Doris, o que fizera por ela e a nenhuma gratidão que recebera. Em resumo, se Delmonte a quisesse
leccionar gratuitamente, ele pediria a demissão das suas múltiplas funções. Pô-lo entre a espada e a parede: miss Hart ou o dr. Sardi.
Delmonte consultou o homem de negócios Mosse e o abade Mattoni. Pegou na corrente do seu cão Perturbador que lentamente envelhecia, enfraquecendo, e gastou algumas
horas no passeio da noite. A velha Lúcia agitou-se e amaldiçoou Doris, causadora de todo o mal, pois Delmonte tinha, no dia seguinte, às dez da manhã, um ensaio
da Aida; havia muito tempo que devia estar deitado. Entrou pouco antes da meia-noite e chamou ao seu quarto Doris e o dr. Sardi. O Paolo escutou à porta. Passara
as horas de espera com a rapariga, consolando-a desajeitadamente.
O velho falou.
- Miss Hart, resolvi continuar a dar-lhe lições, no
caso de poder manter-se. Tem talento. Se a largo hoje nesta situação, daqui a seis meses aparecerá no palco dum cabaret, a sua voz estragar-se-á e dirá a toda a
gente que é minha aluna. Depois gritou:
- As notas agudas ainda são horrorosas. Não sabe cantar baixinho, a sua mezza você é uma vergonha. [Não posso deixá-la correr mundo num estado destes!
Gritou ainda durante mais algum tempo, irritando-se cada vez mais e arranjando-lhe outros defeitos que asperamente censurou. O Bruto estava sentado e ria-se ironicamente.
Quando Delmonte acabou, deixando-se cair, a transpirar, num sofá, disse:
- Felicito-a, miss Hart. Ganhou. O mestre quis dizer que tinha demasiado talento para que pudesse abandoná-la. Embora sejamos inimigos, terei sempre o orgulho de
haver sido o primeiro que, em si, fez brotar a centelha. Retiro a minha demissão. -declarou, dirigindo-se para Delmonte, esgotado - Declaro-me vencido. Espero que
miss Hart se mostrará mais grata para consigo do que o foi para comigo.
Delmonte murmurou apenas:
- Estou farto dessas tuas histórias de mulheres. Doris não tivera que proferir uma palavra. Via
agora que tinha os joelhos a tremer.
Parou na escada, vendo-se ainda mais uma vez ao espelho. A pintura quási desaparecera do fatigado rosto. Sentiu, de novo, que tinha uma ferida no peito. E pensou:
"É verdade, esqueci-me de que tudo podia ter terminado de um momento para outro". Pôs pó de arroz nas fontes. "E como hei-de viver, em Milão? Ele disse que eu tinha
talento. Hei-de falar com o velho Bryant."
Por trás dela, silencioso nas suas solas de crepe, surgiu o Bruto. Ela viu-o no espelho mal iluminado.
- Afinal, fazes de nós tudo o que queres.- disse em tom queixoso e deixando de lado a atitude patética que dera em espectáculo ao Delmonte. - Sabes quanto vales,
hem ? vou dizer-te uma coisa: se fores
amável, a gente pode arranjar maneira de eu continuar a dar-te as lições de declamação gratuitamente. An? Como ela não respondia, pegou-lhe meigamente no cotovelo.
Continuou a caminhar, a seu lado, no corredor, sobre o tapete cor de canela cuja trama cinzenta aparecia em vários sítios.
- Tem experiência de palco? - preguntou Carlos Linden.
- Estive no Scala, no coro e em pequenos papéis.
- Quanto tempo ?
- Quatro meses. Enquanto Delmonte cantou em Milão.
- Ele recomendou-ma. Que papéis desempenhou?
- Inês no Trovador.-Doris tossiu e continuou Giovanna no Rigoletto.
- Em suma, não tem, no seu repertório, nenhum papel que exceda dezasseis compassos?
- Delmonte não me queria deixar cantar. Não consentia que estragasse a voz.
- Bem. Mas então nos coros não a estragava?
- Não. Fazia batota.
- Como ?
- Pode-se abrir a bôca e fingir que se canta muito alto, quando, na verdade, apenas se marca o ritmo.
- E um homem como Toscanini não dá por isso?
- Ele vê tudo. Mas calou-se para não desgostar Delmonte.
- Não é italiana ?
- Não . directamente.
- Então que é ? Tem um sotaque exquisito.
- Sou. internacional. Andei por toda a parte. "Isso vê-se", pensou Linden. Todas as palavras que ela pronunciava, lhe eram antipáticas. Enchia-lhe
o quarto de hotel com um perfume barato. Tinha para com ele uma atitude, ao mesmo tempo arrogante e garrida. Trazia um elegante vestido de tarde e sapatos usados.
O seu rosto era grande e de linhas correctas mas estava submerso sob a maquilhagem. Os cabelos ainda permaneciam pintados, mas não cuidados: uma coisa não dizia
com a outra. Mas na carta de Delmonte encontrava-se escrito: "Há catorze anos que não tenho uma aluna tão talentosa".
- Porque deixou de trabalhar com Delmonte?- preguntou Linden.
Foi abrir a janela e aspirou, com vivacidade, o chuvoso ar de Salzburgo que, úmido e frio, descia da cidadela.
- Ele partiu para a América e eu não tinha dinheiro suficiente para o acompanhar.
- E agora quere um lugar, quere cantar, não é? tem tenção de fazer mais batota? com os papéis verdadeiros, não é sistema, já não tem medo de estragar a voz? - preguntou
com ironia.
- Não. É preciso viver. - replicou Doris, tranquilamente.
Foi o bastante para fazer trasbordar o furor de Linden que deu dois passos para ela, fulminando-a com o olhar.
- É preciso viver. Rico motivo! Mas então porque não vai ser dactilógrafa, se precisa de viver?
Doris encolheu os ombros, num gesto orgulhoso. Disse, em ar calmo.
- É uma história muito comprida que não interessa a ninguém.
Linden olhou-a atentamente e tornou-se subitamente sereno. Aproximou-se do piano de aluguer, feio e desafinado, que conseguira meter a um canto do quarto e abriu-o
num gesto seco.
Preguntou:
- Tem música? Que deseja cantar?
Doris desenrolou logo o caderno de música. Colocou-o sobre o piano e ele desviou-se quando o seu braço o inundou com uma nova onda de perfume.
- Desculpe . - murmurou.
Estava imensamente comovida. As suas pernas fraquejavam sempre quando ia cantar. Era bom sinal. Também o velho morria de medo todas as vezes que o pano se erguia
e o seu mestre, o célebre Benvenuto Perugi, também assim fora. Linden folheou de tal forma a música, que parecia ter medo de sujar as mãos. Preguntou:
- Então? Vamos ou quê?
- A prece da Tosca ? - interrogou ela, cheia de esperança.
Linden estremeceu.
- Aida? Ou então o último acto do Otelo?
Em segredo, às escondidas do professor, tinha estudado aqueles papéis. Instalada nos bastidores do Scala, havia observado, durante noites inteiras, as grandes cantoras
e os seus pequenos truques, a sua forma de atacar uma nota elevada deixando-a, em seguida, deslizar, vendo os sítios em que apressavam ou demoravam, a forma de dispor
a respiração para acabar, sem corte, a frase musical. O bondoso Paolo ajudara-a um pouco, nesse trabalho. Sentiu que tinha a garganta seca antes da primeira nota.
Apoderou-se dela uma grande vontade de pegar numa das ameixas, nas quais tinha confiança desde o tempo da Salvatori. Mas não era possível. Os homens e, em particular,
os artistas, facilmente se chocam com qualquer coisa. Esta experiência fazia parte das coisas úteis que devia ao dr. Sardi. Tossiu mais, para aclarar a voz, e Linden
atacou o prelúdio, com impaciência. O piano soava a rachado. O quarto nocturno da Desdémona. A inquietação sem causa, a solidão. "Son mesta tanto tanto.", cantava,
cheia de pena de si própria. Bem sabia que o Otelo ia chegar, matando-a num beijo, mas também estava triste porque não podia partir para a América, porque tinha
uma cicatriz no peito e lhe faltava dinheiro - e porque o único homem que lhe interessava, permanecia na cadeia.
Todas estas ideias não eram claras e precisas, mas estavam sempre presentes, compunham a substância de
onde nascia a expressão do seu canto, pareciam uma pesada água negra que atravessasse tudo quanto ela fazia, tudo o que cantava. Quando a cena terminou, e se levantou
do sofá onde se deixara cair, Linden, sempre inclinado para o piano, tocou ainda os últimos compassos da orquestra, antes da chegada de Otelo. De resto, ele tocava
muito pior do que ela cantava, o que lhe dava certa coragem.
- Não está mal. - disse - Para uma pessoa que só canta porque precisa de viver, não é lá muito mau, não.
Ficou em pé junto dela. Era um homem bastante alto com o ventre a desenhar-se e rosto expressivo. Sobretudo a testa, era vasta e bela.
- Sabe do que se trata ? - preguntou severamente.
- Mais ou menos. Quere fazer uma tournée com um pequeno núcleo de artistas de ópera.- disse ela, com mais coragem.
- Sim; mas sabe que não cantaremos senão Hãndel?
Tirando a mão que lhe colocara no ombro, e agitando o indicador diante do seu rosto, como um professor que reclama a maior atenção, preguntou ainda:
- Sabe que Hãndel escreveu mais de trinta óperas que ninguém conhece? É um tesouro imenso-imenso e inexplorado.
Ele fitou-a com olhar apreensivo e desconfiado.
- Compreende que desejamos formar um grupo de trabalho. Pessoas novas, entusiastas e talentosas, que se dediquem à obra com toda a sua alma.
Nesta altura, foi Doris que se tornou desconfiada. Preguntou:
- Mas pagam ?
Linden esfregou a testa, desesperado, como se tivesse ouvido dez notas erradas.
- Sim, paga-se; não muito, não como no Scala ou na América, mas paga-se. Mas não quero ouvir falar em colaboradores que não pensam senão no ordenado. Exijo uma dedicação
total, a mim, à empresa, ao que desejo criar.
Doris calçou as luvas. Estava pobre, tinha vendido a sua raposa prateada e empenhado o casaco de inverno, mas usava luvas.
- Então ? - preguntou.
Linden sobressaltou-se como se o tivessem perturbado na sua inspiração.
- Como?.. Ainda não posso decidir. Escrever-lhe-ei.
No corredor do hotel, em frente do quarto de Linden, via-se um banco forrado de veludo cinzento; outros candidatos já estavam à espera de vez. Uma rapariga loura
entrou no quarto. Terp também lá se encontrava, magro e céptico.
- Então? Arranjou? - preguntou a Doris.
Em gesto expressivo, ela pôs um dedo na fonte.
- Sim, ouvi dizer que não tinha o juízo todo. replicou Terp, com azedume.
Eram como dois pássaros separados do grupo, demasiado fracos para seguirem e procurando refúgio numa ilha nada hospitaleira.
- Hãndel. Sabias que ele tinha composto várias óperas ?
- É, com certeza, uma vigarice, como aquele empresário que queria ir à América do Sul para representar Ricardo Strauss. - disse Terp, lembrando-se da última decepção
que haviam sofrido. Distraídamente, ela concordou.
Habitava do outro lado da colina e não pagara o quarto. Deixara de jantar. Não tinha a menor ideia acerca da forma como havia de continuar.
No entanto, lá foi continuando. Recebeu convocação para se apresentar ao Linden. Desta vez, não havia outros candidatos amontoados no corredor. Ele ofereceu-lhe
café que preparara com muitas cerimónias. O café fazia-lhe mal, mas ela compreendeu quanto Linden se orgulhava do seu, por isso bebeu e gabou-o. Em seguida, teve
palpitações. Linden era extremamente vaidoso. O seu café, a sua maneira de tocar, o seu idealismo, o seu Hãndel. Não queria óperas conhecidas. Ambicionava fazer
descobertas. Não queria cantores
consagrados mas estreantes que o considerassem um deus. Doris não ficou aflita quando compreendeu que, para obter aquele lugar, era preciso suportar uma ligação
pessoal com Carlos Linden. Pelo contrário, era simples, e não se opôs a isso.
Tinha agora alguma experiência dos homens. O que se dizia sempre nas escolas de teatro, no Conservatório e mesmo nos palcos de primeira categoria, como o Scala,
não era exacto: que bastava dormir com os homens influentes para triunfar.
Ah, não, não era assim tão simples. Os homens influentes esperavam e queriam mais: desejavam ser amados. Precisavam de admiração, coragem, adoração e submissão.
O acto era apenas o símbolo disto tudo. Os homens influentes não eram tão simples como o sr. Wallert e o próprio sr. Wallert, com os seus trinta dólares, desejara
ouvir-lhe dizer que era um amante extraordinário.
com o Bruto, Doris adquirira um certo treino no abandono, um treino variado, não destituído de gosto. Ela desempenhava o papel com as palavras e os gestos que convinham,
exactamente como se se tratasse de qualquer outro papel.
Linden não fazia nada para lhe agradar, foi ela que teve de se dar a esse trabalho.
- Tu és alguém! - disse-lhe, no entanto, depois e não sem admiração.
Admitiu o seu perfume, o cabelo pintado, a cínica linguagem de teatro e a ambição.
O seu raciocínio era este: "Ela que gosta de mim, é porque tem valor."
Disse-lhe que era muito melhor do que julgara à primeira vista, o que o não impediu de ficar de mau humor quando ela lhe pediu algum dinheiro adiantado. Mas, nesse
momento, já não podia admitir que ela se fosse embora. Declarou:
- Preciso de um certo fluído para os ensaios. Tenho que sentir ondas de inspiração entre os meus cantores e eu.
Dizia "os meus cantores" e "o meu Hàndel".
A época das festas, em Salzburgo, já passara. Os turistas internacionais haviam desaparecido e já as longínquas montanhas se cobriam de neve. Apenas os bons burgueses
indígenas animavam agora as lindas ruasitas da cidade em estilo rococó. Numa adega que cheirava a pipas vazias ensaiaram César e Cleópatra, de Hãndel.
Linden possuía ideias novas e queria fugir do velho estilo da ópera. Corria pela cena, tossindo, erguia os braços ao céu, saltava, caía e o seu pequeno ventre balouçava-se
na sua frente. Vendo que não conseguia nada, tomou o partido de tomar um ajudante. Este tinha um nome curioso: Axel Azure, era um aluno de Mary Wigman. Veio ao ensaio
com uma camisa negra, de colarinho alto e uma calça preta que lhe apertava incrivelmente as ancas e flutuava com imensa largura sobre os pés, parecendo uma saia.
Tensão - descanso - tensão - descanso: tal foi o seu conselho ao grupo, espantado. Pediu aos actores que tirassem os sapatos e as piúgas. Foi nessa altura que se
deu o primeiro conflito sério. O barítono Bassewitz recusou categoricamente descalçar-se, com receio de apanhar uma pleurisia e morrer, por andar descalço pelo gelado
chão da adega. Era um homem idoso; não confessava cinquenta anos, mas já os completara. Coberto de suor, devia deitar-se no solo e erguer as pernas por cima da cabeça.
Ora não podia fazer semelhante coisa. Renunciou e mandaram-no embora. Os ensaios continuaram.
Linden era o director, o cenarista, o contra-regra. Financiava a empresa, e de noite, era ele que tirava as cópias das músicas destinadas a cada cantor. No fundo,
era um homem agradável e, às vezes, Doris não desgostava dele. Alta noite ia visitá-lo e encontrava-o quási a dormir, sobre o papel pautado escrito de fresco. Despia-o
como a uma criança. Ele beijava-a com gratidão, murmurava ainda algumas palavras sublimes sobre Hãndel e mandava-a embora. Achava que a actividade sensual comprometia
a exaltação que devia estar reservada para o esforço artístico. A ligação era intermitente.
Precisava apenas de saber que a Doris lhe pertencia. Ela esperava, à cabeceira, que ele adormecesse: Então, apagava a luz e entrava em casa, a pé. O ar sabia a montanha
e a neve, embora se estivesse ainda em Novembro. Apenas se viam alguns estudantes embriagados pelas ruas desertas. A sua vida lançava-a constantemente para novas
margens, para novos locais! Sentia-se demasiadamente fatigada para poder reflectir. Não pensava se era feliz - lá ia seguindo o seu caminho, passo a passo, E cada
passo significava um homem que reclamava mentiras!
Em Dezembro, o pequeno grupo de náufragos estava bastante adiantado para que Linden pudesse pensar num espectáculo público. Haviam encontrado um novo barítono, um
lindo rapaz com uma popa negra sobre a testa baixa e uma voz a que faltava profundidade. Pelo que confiou a Doris, tratava-se de um príncipe russo, emigrado, Alexandre
Kichmirioff. Ela gostou da sua voz, sem a princípio saber porquê. Mas descobriu logo em seguida que ele falava como o Basílio.
Representaram a ópera no improvisado palco da cervejaria de Salzburgo. Linden desenhara os cenários e o guarda-roupa. Ali, como em tudo em que ele tocava, via-se
a mesma mistura de génio e diletantismo. Os cantores não estavam absolutamente descalços mas tinham umas sandálias donde os dedos saíam. Kichmirioff adquirira o
hábito de bater o compasso, quando cantava, com o dedo grande - e isso via-se perfeitamente, de tal forma que os espectadores, primeiro admirados, depois escandalizados,
acabaram por desatar a rir. Foi aquele dedo grande do pé de Kichmirioff o provocador da catástrofe.
Doris era infeliz, mas sob a sua melancolia, passava, como um rio, uma estranha alegria. Podia cantar, estar em pé, no palco, com o rosto virado para o projector,
sentir a luz azul na cara e cantar. Cantar!
Amava o projector encarregado de imitar a luz da lua, gostava mais dele do que da própria lua.
No palco, sentia com mais intensidade o amor do que na realidade. Sentia-se viver quando cantava,
mesmo que fosse numa taberna onde quaisquer burgueses estúpidos a troçassem. De resto, disse-o a Linden que não teve outro remédio senão concordar:
- Enquanto eu cantei ninguém se mexeu; ninguém disse nada.
Também em Zurique, a ópera fracassou. Foi nessa noite, que Doris ficou com o Alexandre que tremia, enquanto se esforçava por gracejar.
Depois do espectáculo, Linden estava tão estafado como se tivesse desempenhado todos os papéis. Disse:
- Vão para o hotel e tratem de dormir. Amanhã veremos se é possível continuar.
Enterrou o chapéu na cabeça, deitou o casaco para os ombros e partiu como uma flecha.
- Acabou-se. - concluiu Terp - Basta. Amanhã estamos todos sem saber como sair do hotel. E os electricistas desatam a malhar-nos em cima porque não lhes pagamos.
- Tenho ainda um anel. Posso empenhá-lo e comprar um bilhete de comboio.
- Para onde?
- Quando se está completamente em baixo, deve-se ir para Paris. - disse Alexandre, em tom de ditador.
Terp limitou-se a resmungar. Alexandre, na sombra, apertou a mão de Doris. As mãos tremiam ainda devido à comoção do canto. Durante o espectáculo, tivera muita pena
dele, quando, na sua armadura de cartão, a conduzia ao trono. Aquela mão tão úmida e trémula - era a de César.
- Tu vais comigo. O anel chega para dois bilhetes.
- disse Alexandre, quando ficaram um pouco para trás.
Doris pensou que nunca esqueceria aquilo. Esqueceu-o, passada uma semana. Mas essa noite não foi tão desesperada como ambos julgavam. Compraram um cartucho de castanhas
a um vendedor noctívago e levaram-no para o hotel. Mais tarde, Alexandre fez uma paródia de Linden e depois encontraram-se deitados na sombra, apaziguados e serenos.
Tiravam fumaças de um último cigarro.
- Sossego absoluto . - disse Alexandre, imitando Azur. Depois adormeceu.
No dia seguinte, os jornais publicavam criticas imprevistas. Pelo meio-dia, Linden apareceu e anunciou em voz comovida que, nessa noite, se daria uma segunda representação.
E o êxito chegou. Ao fim de três dias, falava-se deles em Zurique. Linden andava por todos os lados, fumegando felicidade. "O meu sucesso, o meu Hândel, os meus
cantores, as minhas concepções."
A Companhia exibiu-se durante três gloriosas noites no teatro municipal e tornou-se célebre.
- A minha reforma da ópera.- disse Linden numa conferência que fora convidado a fazer no Grémio da Cultura. Falava correctamente o francês, embora com sotaque alemão.
Deu, no hotel, um chá aos jornalistas, tendo Doris a seu lado, como uma estrela de segunda categoria. Referia-se-lhe assim:
- A minha descoberta.
O que não deixava de ser verdade.
Foram a Genebra onde representaram à sombra da Universidade e a Berne onde deram espectáculo no pequeno teatro que se encontra à beira de um lago.
Atravessaram a fronteira e representaram em Friburgo. Pela primeira vez, Doris encontrava-se na Alemanha, mas tudo lhe parecia estrangeiro. Sentia até dificuldade
em falar.
Como tinha três dias livres, entre duas cidades, pediu um feriado a Linden, que lhe preguntou, admirado:
- Para quê?
- Queria ir à minha terra, a Bingsheim. Ele ficou muito desiludido:
- I Eu julgava que eras americana! - disse, descontente.
No comboio, ela riu-se deste desapontamento.
Depois inventou, no crepúsculo, a imagem de um homem que a teria acompanhado ao país da sua infância, ambos de mãos dadas, enquanto a terra de inverno se preparava
para acolher a noite, envolvendo-se num manto de nevoeiro.
Chegou a Bingsheim aos últimos clarões do dia. O céu tinha um reflexo frio como estanho. Depois de procurar, encontrou a casa do médico. A rua e a habitação pareciam-se
com coisas que nunca tivesse visto senão em sonhos. Tudo era minúsculo, muito mais pequeno do que imaginara. Encostou-se à palissada branca e olhou para o jardim.
Dentro, estava aceso o candeeiro, que dava uma luz quente sob o quebra-luz vermelho. Por baixo, encontrava-se a mesa, e uma família veio sentar-se nela para comer.
Era uma óptima ocasião para se mostrar sentimental, mas Doris não se deu a esse trabalho. Via o silêncio, a paz, a imobilidade e o isolamento que ali reinavam e
a sua boca contraiu-se numa crispação.
- Fiz mal em vir. - murmurou.
Tomou o primeiro comboio que a levou a Maiença onde a Companhia devia dar uma récita.
Havia já algum tempo que o seu nome no programa era: Dorina Rossi. O empresário gostava de sublinhar e até exagerar o carácter cosmopolita da, sua companhia. Pelos
hotéis e pelos comboios por onde passavam, ressoava uma grande misturada de alemão, russo, francês e italiano, sem falar no incompreensível dinamarquês falado pelo
Azur. Os burgueses das pequenas cidades ficavam estupefactos com tanto cosmopolitismo. E como o facto de ser alemã não despertava na Alemanha o mínimo interesse,
Linden transformou-a numa italiana, numa aluna do célebre Delmonte: Dorina Rossi.
Ela tinha adquirido o hábito de considerar os homens pelo que deles obtinha. Cabelos acobreados, um pouco de confiança em si própria e uma razoável quantidade de
cinismo: o dr. Sardi. O seu estilo, o seu primeiro êxito e o seu nome: Linden.
Na primavera, ofereceram a Linden o cargo de director do teatro de uma cidade do Norte que, tendo meio milhão de habitantes, possuía uma boa Ópera. Mostrou uma correcção
que muitos membros da companhia não esperavam dele. Fez entrar no seu teatro a maior parte deles, rescindiu os contratos dos antigos
cantores, mandou embora a prima-donna e pôs Doris no seu lugar. Ela alugou uma casa pequena e tomou uma criada. Primeiro, achou graça e depois custou-lhe muito não
falar alemão com a criada, mas Linden ordenara-lhe severamente que se apresentasse como italiana e só como tal obtivera o contrato. Em compensação, ele declarava
alto e bom som que era alemão: era uma cidade violentamente, inflexivelmente nacionalista e Linden tinha que tratar com um presidente da câmara igualmente nacionalista.
Naquela cidade, o vento soprava constantemente, e chegava gelado, do nordeste, estando o mar distante apenas algumas centenas de quilómetros. Doris sentia, de novo,
um peso no pulmão e a angústia dos minutos que, implacàvelmente, decorriam. Lembrava-se do rude frio seco de Nova Iorque e do ar prateado de Milão. Sentia a nostalgia
de um e de outro. Em nenhuma parte se sentira tão estranha como na Alemanha.
Durante as semanas em que ela lutou com o pulmão, a garganta e o coração, esforçando-se por não deixar adivinhar à criada que era alemã, evitando o seu camarada
Alexandre Kichmirioff para não tornar a pertencer-lhe, Linden ia continuando a reformar a Ópera. Punha uns actores de lado, chamava outros, mudava as coisas e os
homens. Doris via-se formar por trás dele uma parede de inimigos e simpatizava com a sua louca carreira.
Começaram com César e Cleópatra, de Handel. Foi um êxito estrondoso e inesperado. Depois do espectáculo, Doris ficou levemente abstracta no palco, a receber as felicitações.
Apesar de estar constipada, cantara seguindo a técnica de Delmonte.
Línden nem suspeitava que enorme esforço lhe custara alcançar semelhante vitória para ele. Arrastando-se para o seu camarim, pensava: "Quási que estamos pagos.
Fechou a porta e nem deixou entrar a costureira, tirando a maquilhagem com gestos automáticos.
Não estava enervada apenas pela tensão do esforço: viera, naquele dia, correspondência da América. A Salvatori
queixava-se de ter água num joelho. Precisava de se tratar e preguntava se a Doris, como tinha agora um contrato, poderia começar a pagar-lhe as lições de outrora.
Quanto ao advogado Cowen afirmava que o Basílio estava bem e que, durante muito tempo, se portara de uma forma brilhante. Infelizmente, por fim, parecia ter perdido
o domínio dos nervos e tomara parte numa revolta que surgira na prisão. Atacara um guarda e, por algum tempo, todos os privilégios lhe haviam sido retirados. É claro
que tal circunstância retardaria bastante a sua libertação sob palavra. Vinha dentro da carta uma nota de despesas de 89 dólares, cujo pagamento Cowen salientava.
Uma carta de Basílio, visivelmente escrita antes da revolta: "Querida Doris, estou bem e espero que também gozes boa saúde. Aqui choveu muito, de modo que não nos
puderam levar a passear. Faz-me falta não andar, mas contra o mau tempo nada se pode fazer. Li um livro da nossa biblioteca que muito me agradou. Chama-se: A Casa
da Montanha e lembra-me certos acontecimentos da minha vida. Penso muito em ti. Espero obter, em breve, licença para fazer o teu retrato; teria nisso um grande prazer.
Não desenho mal, principalmente comboios: acalma os nervos. Beija-te o teu Basílio."
Enquanto desfazia a maquilhagem, ficou a pensar naquele Basílio que desenhava comboios, Que tremendo desespero aquilo revelava! E, agora, perdera o domínio dos nervos
e durante muito tempo nem desenhar comboios poderia.
Colocou, devagar, a carta entre os batons e os boiões e, em ar abstracto, fixou-a ainda durante muito tempo. Duas lâmpadas, muito fortes, estavam fixas de cada lado
do espelho, lançando a branca luz sobre a letra miúda.
A última carta, a única agradável da correspondência da América, era do velho Bryant. Dizia algumas palavras amáveis, informava-se acerca da sua saúde, afirmava
que se regozijava pelo seu êxito que um jornal qualquer assinalava.
É agradável, pensou ela.
Era agradável receber uma carta de alguém que lhe não pertencia e que nada esperava dela. Não lhe queria mal por a ter feito cair outra vez na miséria. Também ele
não devia estar em boa situação. Olhou para o papel: tinha o timbre de um pequeno hotel de São Luís.
Pôs tudo na saca e continuou a desfazer a maquilhagem.
Nos meses seguintes, trabalhou mais que nunca. Já que a haviam apresentado como uma prima-donna italiana, era necessário conhecer o repertório das óperas italianas.
Linden obteve para ela uma licença, dizendo que precisava de estudar os papéis em alemão, visto que todas as óperas eram cantadas neste idioma. Estudou muito. Teve
imenso medo quando, pela primeira vez, cantou a Santuzza. Mas fez sucesso.
- Está satisfeito ? - preguntou em voz baixa, ao grisalho maestro Hahn, quando vieram ambos à frente do palco para agradecer.
- Sim. Apenas errou numa coisa. - murmurou ele.
- Em quê ?
- Pronunciou bem de mais o alemão.
Depois fê-la passar à sua frente, pela fenda do palco. O sorriso de Doris petrificou-se. No meio de todo aquele êxito e de todos os aplausos, tinha medo.
A catástrofe deu-se em Fevereiro. Á cabala dos inimigos trabalhara. Descobriu-se que o nome do empresário não era Linden mas Levi. Ecoou em toda a cidade um grito
de anti-semitismo e de germanismo ultrajado. Linden protestou numa carta aos jornais. Chamava-se Linden, usara sempre este nome, nascera e fora criado como cristão.
Fizeram buscas e quiseram examinar os seus papéis. Provou-se que era descendente de uma família judia, tendo mudado de nome e de religião. Daí por diante, os jornais
chamaram-lhe sistematicamente Levi.
Nessa época, ainda um homem se podia chamar Levi e tinha o direito de ser judeu. O terceiro maestro,
um rapaz espirituoso e céptico, era judeu. O que não havia era o direito de seguir a religião judaica e de, simultaneamente, se declarar alemão integral.
O caso de Doris era ainda mais grave. Os jornais falaram abertamente na ligação com Linden, insinuando que devia a sua nomeação a esse facto. Mas ela era alemã e
negava-o, o que era ainda pior do que esconder o impuro nome de Levi. Doris não sabia se devia ter vergonha, i Na sua desenraizada existência, tivera, muitas vezes,
saudades da sua Pátria, mas agora era tudo tão diferente!
Linden foi aconselhado a demitir-se mas pediu algum tempo para reflectir.
- É preciso que dês o máximo. - reclamou dela, desesperado.
Doris cantou a Carmen com os joelhos a tremer e a garganta seca. Um gelado sopro de resistência subia da plateia. Diante do absurdo cenário vermelho, preto e amarelo,
deslocava-se, como num espaço privado de ar.
O público declarou então que compreendia a significação do cenário e a interpretação: tudo aquilo cheirava a judiaria. Era heterogéneo. Esta expressão aparecera
havia pouco tempo no vocabulário dos jornais e agradava ao público. Os primeiros apitos acalmaram os nervos, e depois estalou a tempestade.
 plateia transformou-se num oceano ululante que ria e vomitava injúrias. As mãos e os rostos pareciam uma espuma cinzenta e movediça por cima do negro caos que
Doris via. Olhou para o velho maestro Hahn que, com cara de surdo-mudo e meio sorridente, continuava a dirigir a orquestra, como se nada se passasse. Também a orquestra
tocava sempre; apenas alguns músicos haviam subido para as cadeiras afim de observarem a sala.
O reposteiro do camarote da direcção agitou-se, depois ficou vazio. Mas Doris persistia em cantar. Não pensava no que estava a fazer, mas numa quantidade de actos
heróicos. O comandante não abandona o seu navio. Bombeiros vão salvar crianças em casas
a arder. Um rapaz de treze anos salva um camarada prestes a afogar-se. Cantava e, no meio do tumulto, ninguém a ouvia. Cantava e sentia o coração a arrefecer. Quando
acabou, fitou as vagas agitadas. Aproximou-se da ribalta e espalmou a mão em frente do rosto como faz a gente de teatro quando quere ver a sala para lá da luz crua.
- Bandidos! - exclamou em voz alta.
Depois foi-se embora, devagar. Tinha a impressão que teria caido morta, rebentando, se não tivesse dito aquilo.
Naquela noite, ninguém viu Linden. Em casa, a rapariga encontrou um bilhete da criada: "Fui urgentemente chamada a casa da minha mãe. O jantar está no fogão." Não
podia comer. E pensou: "Devo fazer as malas." O vento de nordeste soprava com intervalos regulares de encontro às janelas e estava muito frio. O fogão não fora aceso.
E pensou ainda: "Estou muito cansada para fazer as malas. Acontecem-me sempre coisas engraçadas."
E meditou no que havia de catastrófico, inesperado e incerto em toda a sua existência. Tomou um banho muito quente e quási adormeceu lá dentro. Na manhã seguinte,
não saberia dizer como conseguira deitar-se. Fez então as malas e comeu o que estava no forno do fogão.
Limparam o teatro e a velha guarda tornou a entrar. Linden foi para a Rússia, Kichmirioff empenhou o seu anel e levou Doris até Paris. Não tinham dinheiro suficiente
para alugar camas, de modo que passaram toda a noite um em face do outro: dois fantoches hirtos e fatigados que não sabiam para onde seriam levados pelos seus fios.
Na primavera, Doris apaixonou-se pelo Renato e foi sua amante no próprio dia em que o conheceu.
O rapaz tinha menos um ano do que ela, o que lhe dava a impressão de ser ajuizada e experiente como se
fosse sua mãe. Mas, às vezes, o Renato tinha mais mil anos do que ela, o que era devido ao seu sangue francês. Passaram seis semanas sem lhe ver um colarinho: saía-lhe
o pescoço, direito e vigoroso como o de uma fera, da camisa aberta. Tinha uns lindos olhos verdes e cabelos pretos, muito lisos. com a mão direita metida na algibeira,
enrolava os cigarros e sabia assobiar como um fadista. Não tinha chapéu, nem chinelos, nem roupa interior, nem economias. Dormia sempre nu e entrava todo molhado
nas duas únicas peças de vestuário que possuía: um pull-over castanho e verde e as calças cinzentas que não diziam bem com o resto e tinham tendência para lhe escorregar
das ancas. Renato tinha-as comprado feitas e não havia calças demasiado estreitas para as suas ancas gregas. Em resumo: era simpático e absolutamente doido. Lembrava
Basílio sem se parecer com ele. Doris desejaria que Basílio, a quem amava, fosse como Renato, por quem estava apenas apaixonada.
A primeira vez em que Renato comprou uma camisa e alugou uma casaca, foi para assistir à primeira representação de Mademoiselle Pompon, em Marselha. Tocava piano
e entusiasmava os cantores, estudara e preparara a opereta, modificando, abreviando, desenvolvendo, a ponto de renovar, por completo, a poeirenta peça do repertório.
Quando apareceu no palco, depois da representação, para agradecer os aplausos do público, este verificou, divertido, que ele trazia sapatilhas amarelas com a casaca.
Quando Doris cantou, pela primeira vez, diante dele, num armazém de pianos, disse logo:
- Agradas-me. Hás-de cantar a Mademoiselle Pompon, iremos correr mundo e viveremos uma encantadora aventura.
- Tens a certeza disso? - preguntou ela, sem garridice.
Bem sabia que teria a aventura, se fosse necessária para obter o contrato. Ele respondeu, a rir:
Na Mademoiselle Pompon não cantam senão duas espécies de mulheres. As que dormem com o
tio Garnaud e aquelas por quem eu estou apaixonado.
Qarnaud era o empresário e o comanditado da pequena empresa e o coro feminino, composto por oito cantoras e dançarinas, constituía o seu harém.
- Já fez uma tournée de opereta como esta? preguntou Renato, tornando-se mais sério - Ah, é verdade, vem da ópera. Pois bem, previno-a de que se não pode resistir
não se estando enamorado. Não quero dizer que seja preciso experimentar uma paixão como a de Tristão e Isolda.
- Não façamos programa. - replicou ela, sorrindo.
Agradava-lhe e apreciava o facto de ele não envolver em cintilantes panejamentos o simples desejo.
- Sabe dançar? - preguntou Renato, em tom profissional-Não? Precisa então de aprender. Eu ensiná-la-ei. De resto, aprenderá comigo todas as pequenas coisas indispensáveis
na opereta.-Riu-se e examinou-a com delicadeza - É encantadora. É feita para o amor. Basta-me olhar para as suas mãos para o ficar sabendo.
Doris, desconfiada, olhou vivamente para as mãos. Havia semanas que não tinha dinheiro para ir à manicura. Calçou as luvas, muito depressa. Renato começou a rir
e a dançar no meio da sala, por causa desse gesto maquinal.
Quando ela se foi embora, disse-lhe:
- Adeus, duquesa. Em breve nos tornaremos a ver. Ainda não assinara nenhum contrato.
Fora o agente Feber que recomendara Doris a Renato. Conhecera Feber por intermédio de Kichmirioff, no momento em que estava a naufragar. Inesperadamente, Kichmirioff
começara a fazer uma brilhante carreira radiofónica. A sua voz, que não era suficiente para o palco, tomava ao micro um som cheio e aveludado. Quanto a Doris, para
quem obteve, uma vez, a permissão de cantar com ele, não tirou bom resultado. Só podia cantar no palco. Via agora Kichmirioff raras vezes: comprara um Citroen a
prestações e apaixonara-se por uma vendedeira de luvas.
Nessa mesma noite, Renato assobiou o tema da nostalgia de Tristão e Isolda em face das janelas de Doris. Quando ela se debruçou, viu-o encostado a um candeeiro com
o pescoço nu e o cigarro que acabara de fazer.
- Já são horas de ir cear. - gritou-lhe.
Ela ficou perplexa: "como é que aquele homem, visivelmente doido, tivera bastante juízo para descobrir a sua morada? Ao pôr o chapéu, pensou que só dela dependia
cantar ou não a Mademoiselle Pompon.
Enfiou o braço e levou-a; falava muito e tão depressa que ela não compreendia senão metade de todas as arengas. Mas, pela primeira vez desde a sua chegada a Paris,
tinha a impressão de não ser ali tão estranha, como dantes. Por trás do seu rosto afável, Paris é a cidade mais cruel que há para os estrangeiros.
Quando os bombeiros passaram com estrondo e se viram, à esquina de certa rua, as chamas a sair de uma água-furtada, ele afirmou que arranjara aquilo tudo para a
distrair um pouco.
Sentaram-se, ao ar livre, num restaurante da Place du Tertre. A alimentação era barata mas cuidada e bebia-se um vinho agradável, leve e claro. Renato colocara a
sua mão sobre a coxa de Doris, a sua mão quente e leve que quási não era indiscreta. De resto, em todas as outras mesas se encontravam casais, igualmente amorosos
e simples. Depois foram para o terraço de um Café onde beberam um falso pernod e o cheiro a aniz subiu verticalmente à cabeça da rapariga. Ria sem motivo, simplesmente
porque se sentia despreocupada após horríveis semanas. Renato fazia projectos, com alegria e falta de sequência, e Doris, embaraçada, sorria. Tinha vontade de colocar
as mãos no vasto peito do rapaz. Foram a casa dele, num táxi. Durante o trajecto, deixou repousar a cabeça sobre o pull-over de lã quente, sob o qual o coração batia,
vigoroso e confiante. Cheia de sono, pensou:
Um animal. Um gracioso animal verde.
Habitava num atelier minúsculo perto do Café du Dome. Não havia luz na escada e a ascensão nas trevas,
pareceu a Doris tão infindável como num sonho. Estava lançada para fora do tempo, para fora do presente, num mundo apagado e extinto. Ia agora a casa do Basílio,
em baixo abria-se uma porta, mais abaixo os gémeos choravam e lá em cima estava o alaiate; a primeira noite, angustiante e tumultuosa esperava-a.
Encontrou-se outra vez ali, quando o Renato abriu a porta e acendeu o gás, gracejando.
- Bem-vinda sejais à modesta cabana de um pobre homem, duquesa - cantou ele.
Depois correu para um piano cambaleante, colocado a um canto, e acentuou o recitativo com dois acordes: chrum, chrum.
Tornou-se grave e silencioso quando a tomou nos braços. O seu beijo era atento, curioso, interrogativo.
- Só se quiseres, se realmente quiseres. - murmurou-lhe junto aos cabelos.
Apagou a luz e ambos escorregaram na noite.
Quando ela acordou, de manhã, o Renato, completamente nu, preparava o pequeno almoço na máquina de álcool.
- Gostais do café forte ou fraco, duquesa? cantou, trazendo-lhe a chávena à cama.
Pela janela, entrava já muito sol.
- Minha jóia, acreditas agora se eu te repetir que será encantador? - preguntou, enquanto a servia.
Atara-lhe, em redor do pescoço, uma toalha de rosto, cujas gigantescas pontas lhe passavam além das orelhas. E como ela concordava, lançou a plena voz:
- Fiz uma conquista!
Mas, ao piano, os acordes humorísticos tornaram-se, a pouco e pouco, sérios e novos. Doris olhava-o com ternura. Tinha a testa alta e a nuca forte sob a cabeleira
negra e lisa.
- Que estavas a tocar? - preguntou ela, quando o viu parar, olhando-lhe severamente para os dedos.
- Gostaste?
- Muito.
Esforçou-se por definir a sua impressão de uma forma exacta e sensata:
- Encontra-se nessa música muito do nosso tempo de hoje. É tua?
- Não. - replicou Renato, em tom indiferente - É de um pianista chamado Blancenoir. Até hoje só tem composto música de segunda categoria. Foi debussista, teve um
periodo Milhaud e agora sofre de uma intoxicação de Strawinsky.
E, sem transição:
- Senhora, levantai-vos antes que o vosso marido vos surpreenda aqui.
Ela suspirou e obedeceu. Enquanto se vestia no quartito do lado, parecia-lhe continuar a sua vida com o Basílio. Como ele não a tivesse alvejado com o tiro, como
se fosse diferente e ela o pudesse ter amado de outra forma.
- Obrigada. - disse, ao partir, quando Renato a beijava à porta.
- És de Viena?
- Não, porquê?
- Afirmam que só as vienenses é que dizem "obrigada", depois.
- E as francesas?
Acariciou-lhe o rosto e repetiu o que elas costumam dizer:
- Estás contente, meu querido ?
E por sua própria conta, fez a mesma pregunta.
- Estou contente. - declarou Doris, grata.
Pela primeira vez na sua vida, saía sem fadiga nem arrependimento de uma noite de amor.
Começou assim e assim continuou.
Ensaiaram Mademoiselle Pompon. Doris tinha obrigação de desempenhar melhor o seu papel do que as outras, porque era estrangeira, viera da Opera e estava ligada ao
maestro. Fizeram um ensaio de conjunto e todos se divertiram, porque não havia nada que
pudesse abalar o bom humor do Renato. A segunda cantora, a criadita, parecia uma esperta indígena da Malásia. Os olhos, em fendas, davam a impressão de estar sempre
a rir; tingira de branco uma grande madeixa do seu cabelo e mostrava-se radiante com tal achado. O tenor era um homem bonito, de pequeno bigode e grande vaidade.
Era adorado pela mulher que conhecia muito de teatro e desempenhava papéis cómicos. O sr. Garnaud aparecia pouco e só para inspeccionar o seu rumorejante harém de
coristas. Toda a gente vivia dos adiantamentos que Renato sabia extorquir, de vez em quando, ao velhote. Também ali, como no tempo do Delmonte, havia um velho importante.
Delmonte estivera em Paris, em Fevereiro, e Doris entregara-se a duros combates íntimos, para saber se havia de se mostrar ou de se esconder. Antes de ter tomado
qualquer decisão, já ele partira, descontente com os jornais e o público. Teria gostado de o ouvir cantar, mas aquilo passara-se antes de conhecer Renato, de modo
que não possuía dinheiro nem para uma geral.
Desde que pertencia a Renato, gozava de uma certa segurança.
- Posso emprestar-vos vinte francos, duquesa?
- cantava ele, no momento em que ela começava a estar preocupada.
Para maior simplicidade, alugara um atelier livre ao lado do seu e a renda estava sempre paga quando ia fazê-lo.
Á estação em que acabaram os ensaios era a primavera. Denso e agradável, espalhava-se, às tardes, o amido perfume das árvores do Sena, cheio de pares e de esperanças.
Às vezes, iam ao Bois ou instalavam-se no terraço de um café, esperando que a atmosfera refrescasse. Renato fez com que a Doris fumasse, cantasse e dançasse sem
sentir remorsos. Distendia-se, pela primeira vez na sua vida. A existência era uma coisa simples, suave por vezes e sempre sem importância.
No fim dos ensaios, viram que tinham realizado qualquer coisa de bom, no género. Renato não disse que os dois melhores trechos lhe pertenciam e que os
metera lá à sucapa. Uma valsa: À luz das velas e um dueto com coro: Por trás do meu leque. Adoptara o velho estilo da opereta e realizara uma coisa nova. O guarda-roupa,
que Garnaud aceitou, suspirando, era ultra 1900. As coristas, com os seus fru-frus, pareciam desejosas de se divertir. Doris estava muito linda porque Renato lho
dizia todos os dias.
Certa manhã de Abril, deixaram Paris e foram para Marselha. Um batalhão de parentes, amigos, amantes e espectadores ficou no cais - como é costume fazer-se em França
quando há separações.
Representaram em Marselha, num pequeno teatro, de camarotes cor de framboesa, guarnecidos com cortinados que se podiam correr. Agradaram e ficaram lá uma semana.
Em seguida, puseram-se a percorrer a Riviera. Ao cabo de três semanas, Renato comprou um carrinho que gemia nas subidas. Assim, podiam ambos fugir das brincadeiras
e das manias da troupe, que os aborreciam. Em Saint-Raphaêl tudo correu bem, mas depois os lucros se tornaram cada vez menores. A Riviera era agora uma estreita
tira de terra com o fundo da paisagem tapado pelas grandes tabuletas, que anunciavam vendas e compras de terrenos. Estanciavam ali idosas senhoras inglesas e americanas
que, nos seus países, não podiam viver com os magros rendimentos. Olhavam para Doris, que andava de calças pretas e com um lenço vermelho em redor do pescoço, de
uma forma pouco indulgente, não assistindo aos espectáculos. Em Cannes, disseram-lhes que a estação acabara. Em Antibes, que ainda não começara. A boémia internacional,
os escritores, os pintores de todas as tendências, cubistas e outros, que habitavam as casas de luan-les-Pins, vinham ver Mademoiselle Pompon e iam-se embora desiludidos.
Não era suficientemente bom para ser tomado a sério, nem bastante mau para fazer rir. Uma ou duas vezes, Renato e Doris foram convidados e levados depois do espectáculo.
Uma caravana de carros dirigia-se para a aldeia vizinha, para uma taberna de marujos; dançavam com rapazes delgados que pareciam marinheiros, depois tornavam a partir,
galgavam a colina
e iam acordar, com enorme gritaria, os moradores de alguma villa. Estes apareciam em pijama; eram também boémios, escritores ou pintores, com as suas mulheres e
os seus amigos. Iam procurar bebidas, vinhos, licores e o inevitável absinto que ressuscita os mortos. Renato sentava-se ao piano sem ser rogado. Tocava, primeiro,
um pouco de Debussy ou de Satie, depois passava insensivelmente para as composições de Blancenoir que esperava sempre ver progredir. Ela enterrava-se numa cadeira
profunda, falava pouco, porque não sabia ser espirituosa em francês, como, de resto, em nenhuma outra língua. Mas compreendia quási tudo o que diziam. Um acariciava-lhe
o pé nu na sandália e outro beijava-lhe a mão. O piano do Renato enviava-lhe um leve murmúrio. Ela pertencia àquilo tudo. Era a atmosfera do Basílio, era o mundo
dele. Doris tinha a impressão de que viera com Nemiroff ao local que mais convinha a ambos. Renato e Basilio fundiam-se estranhamente numa única pessoa, enquanto
a noite passava e uma verde madrugada nascia no mar.
Em Junho, foram para uma região mais fresca, a Normandia. Primeiro, tiraram pequenos lucros, mas em seguida criaram público. Doris atraia o dinheiro. Nessa época,
tinha apenas uma preocupação: temia estragar a voz, cantando todos os dias opereta.
- Porque estais tão triste, ó rainha, chrum, chrum?
- cantou Renato.
Ela não respondeu mas o rapaz adivinhou do que se tratava. No dia seguinte, desapareceu com o carro, abandonando-a, desconfiada e ciumenta: espantou-se ao ver que
tudo ficara vazio com a sua ausência e que o tempo custava muito a passar. Graças a Deus, voltou a horas do espectáculo. Depois, abriu um pacote de músicas que comprara:
a Carmen, A Tosca, Manon e a Salomé de Ricardo Strauss. Tocaram e cantaram toda a noite e só pararam no momento em que os cães começaram a uivar em frente da casa,
não havendo, a leste, mais do que uma estrela no céu.
Passada uma semana, Renato anunciou, em ar de mistério, que o maluco do Blancenoir acabara por fazer
uma coisa decente e original. Tocou e cantou, para a Doris ouvir, um trecho obscuro mas simples. Ela achou aquela música extraordinariamente nova e falsa, mas por
essa razão, cheia de encanto.
- É como o cheiro do asfalto. - disse, hesitante, enquanto pensava no que havia de amargo, áspero, puro e, ao mesmo tempo, de opaco, naquela música Conheci um escultor
cujos trabalhos se pareciam com as composições desse sr. Blancenoir. - acrescentou.
Jamais falara a Renato de Basílio ou de si própria. Era um assunto que tinha muito peso, profundidade e escuridão - nflo seria correcto tratá-lo, como assunto, dentro
de tão estouvada ligação.
De súbito, Renato levantou-se do banco do piano e beijou-a sem motivo.
- Porque me beijas? - preguntou, surpreendida.
- Por nada. Apenas porque és da mesma geração que eu. - disse, compassivo - Não acreditamos em nada.
E foi, em toda a duração da sua vida comum, o mais grave pensamento que lhe ouviu.
Quando na Normandia o tempo começou a esfriar e a tornar-se outonal, ninguém mais pensou em ver a Mademoiselle Pompon, Regressaram então a Marselha. O sr. Garnaud
que ficara em Paris, dirigindo, a distância, a parte comercial da empresa, apareceu para conferenciar com Renato. Distribuiu as suas gentilezas entre as oito coristas,
apalpando, acariciando, beijando e deixando-se beijar - pachá impotente, portanto razoável. Renato estava a assobiar a marcha dos soldados do Fausto como sempre
que tinha grandes projectos, e enviava numerosos telegramas. Doris encontrava-se no seu pequeno quarto de hotel e pensava que devia agora deixar a Companhia para
ir a Viena arranjar contrato para a
época de ópera. Mas não partiu. Junto de Renato, a vida era muito fácil e agradável; não a podia abandonar.
Foi numa quarta-feira, de manhã, que tiveram conhecimento que estavam contratados para a África do Norte. O pequeno vapor carregou com tudo: gente, cenários, guarda-roupa
e até com o carro pequenino. Este pusera-se, desde algum tempo, a levar uma existência individual e desempenhava um grande papel na vida comum. René dera-lhe o nome
de Fanfarrão e tinha muita consideração pelo seu bom ou mau humor. Quando se negava a subir alguma encosta, ele dizia:
- O Fanfarrão tem um pouco de tosse. Ou então:
- Está hoje de bom humor; almoçou lindamente. Em Argel, Renato afirmou que o Fanfarrão tinha o seu facataz por uma Hispano-Suíça azul. Doris apreciava muito o carrinho
de assentos de coçado veludo castanho, assim como gostava daquele pull verde de Renato, que nunca mais acabava, e do seu pincel da barba, já tão desguarnecido.
Tinha a certeza de o não amar, porque não sofria. Conhecera o amor como um sentimento doloroso, dilacerante. O que sentia por ele era civilizado, agradável e fazia
por isso uma enorme diferença do amor. que é mortífero, selvagem, canibal. Também Renato! lhe afirmava, de vez em quando, que não tinham senão uma pequena ligação
encantadora e sem consequências, i que se poderia romper, mal algum deles o desejasse.
Representaram Mademoiselle Pompon na Argélia; ávidos de distracções, os habitantes e as pessoas de passagem pela cidade, enchiam o teatro de cima a baixo. Havia
lá ricos árabes de turbante, levantinos, espanhóis, oficiais, funcionários com as económicas esposas e também jogadores, aventureiros e mulheres à toa. Nessa época,
os espectáculos possuíam uma existência automática, as graçolas do cómico surgiam com facilidade e o tenor cantava como um boneco de madeira. Sem dar por isso, Doris,
em alguns meses, pôs em ordem todo o seu repertório de ópera. Tinha a
voz em forma, apesar da cotidiana opereta e das noites passadas a beber, a fumar e a dançar. A sua respiração era boa e chegava a esquecer-se de que possuía um coração
e um pulmão. No fundo, como invisível verme" roía-a uma inquietação. Era como se tivesse perdido alguma coisa importante, como se a esperassem em qualquer parte
e tivesse esquecido o lugar marcado para a entrevista.
Foram a Marrakech, depois de novo à Argélia, onde representaram, durante uma semana, a preços reduzidos, enquanto que o nível do público baixava cada vez mais. Voltaram
para o interior, para Constantine, que está construída à beira de um despenhadeiro no qual se encontram antigos banhos romanos e que maravilhosas pontes modernas
atravessam. O grande bairro judeu enviou-lhe muitos espectadores, maciças mães com as filhas vestidas de cetim claro e cobertas de jóias, como selvagens.
Depois da terceira representação, Doris encontrou no que lhe servia de camarim, uma estatueta de zinco. Era um búfalo de patas curtas e cabeça baixa, montado por
um pobre chinês pequeno, que tinha uma camisita como usam os coolies e um chapéu ponteagudo, de palha, deitado para as costas. Soprava numa flauta minúscula.
- Que é isto ? - preguntou ela, encantada.
- É o teu coolie. Ficará sempre junto de ti. disse Renato, acariciando a sorridente personagem Ele está contente. - acrescentou de forma vaga e impessoal.
Doris surpreendida, viu que Renato a conhecia bem.." Não foi sem muita agitação que a Companhia deixou o território francês, dirigindo-se para Túnis. Ela estava
satisfeita por não ir de comboio com os outros. Foi o Fanfarrão que, com gemidos e injúrias, mas fielmente, os conduziu para lá da fronteira. Túnis possuía cor e
porcaria; os bairros europeus inclinavam-se para o velho género aristocrático. Puseram à sua disposição o teatro que servia para as Companhias de Ópera e Doris alegrou-se
por poder cantar outra vez num palco
de dimensões normais. Estava farta, a mais não poder ser, da Mademoiselle Pompon.
Mas havia o Renato, e o tal sr. Blancenoir que, exactamente nessa época, tomou a decisão de escrever uma ópera. O prelúdio já existia: era uma sequência de harmonias
sedutoras e deslízantes que, de uma forma irritante e triste nunca atingia uma finalidade completa. Renato fê-lo, ouvir a Doris na grande sala de ensaios, do teatro,
durante um intervalo. O piano estava extraordinariamente desafinado e, por trás da parede, um rato roía com tenacidade. Em baixo, os eléctricos passavam tocando
as campainhas. Renato estava comovido; Doris deu por isso. Não o julgava capaz de se impressionar.
- Quando trabalhaste nisso tudo ? - preguntou, admirada.
- Blancenoir trabalhou enquanto estavas a dormir. Meteu-se-lhe na cabeça que nós dois havíamos de ser célebres. Quere escrever uma ópera para ti. O primeiro acto
está quási acabado. Porque estais tão calada, ó rainha, chrum, chrum ?
- Isso é a sério . a ópera ?
- Sério? Não; comigo nada é sério. - E tocou vários acordes.
- Como lhe chamarás ?
- Não sei. Os nomes nada valem; não fazem mais do que comprometer a forma pura.
Doris olhou para Renato sem o ver. "Os nomes nada valem, não fazem mais do que comprometer a forma pura", repetiu, pensando: "Já ouvi isto. Já vivi isto. Basílio."
E estremeceu de medo. Murmurou :
- Conheci um escultor, chamado Basílio . Tocavam para o acto seguinte. Ele abriu-lhe a
pesada porta de ferro que dava para o palco. O coro já estava nos bastidores, pronto a fazer a sua entrada. Quando deixaram Túnis houve, pela primeira vez, uma discussão.
- Tens que me deixar ir embora, Renato. Dou cabo de mim na opereta, estrago a voz e perco o meu
tempo. E sabes? Não tenho tempo a perder. Tu ignoras tudo.
Doris disse isto em tom angustiado e levando as mãos à boca, como no palco. Era em vão que o pequeno coolie chinês tocava flauta, alegremente montado no seu búfalo.
Estava impaciente, desorientada.
- Tenho que me ir embora.
Surpreendido, Renato viu-lhe nos olhos o reflexo de umas lágrimas que não chegaram a brotar. E preguntou, gentil:
- Mas então que há, minha tonta?
- Estou doente. Isto volta outra vez. Em breve morrerei. - e dizia isto num tom que parecia falso e teatral - Não posso estragar uma porção de anos, tenho que me
tornar célebre, preciso de dinheiro. e de influência.
Estava com tanta falta de ar como se andasse já a correr atrás de todas essas coisas. Viu no rosto de Renato que ele não acreditava nem compreendia uma única palavra.
Olhou-o, e esse espectáculo dava-lhe sempre alegria. Há um amor dos olhos, como o da pele, do coração e do cérebro.
Pensou: "A quanta coisa diferente se pode chamar amor!
Acariciou-lhe o pull-over no lugar do coração.
Em tom apaziguador, ele disse:
- Iremos só a Constantinopla e depois repousaremos. Estás fatigada de andar de um lado para o outro, precisas de férias. Iremos para uma ilha e lá acabarei a minha
ópera.
- Não. - respondeu Doris.
Repugnava-lhe ir para uma ilha com ele. Era ridículo: todos os apaixonados desejam ir viver para uma ilha. Mas enquanto prosseguia, querendo convencer Renato, já
concordara a ir ver Atenas e Constantinopla.
No dia seguinte, encontrou uma nova prenda sobre a sua colcha: um minúsculo novelo de seda cor de areia, com grandes olhos pretos e inteligentes. Julgou primeiro
que aquele bizarro ser lhe aparecia em sonho
e começava a olhá-lo, franzindo os olhos, quando Renato surgiu, a gritar, de um esconderijo.
- É o Juju, um pequeno fenek, uma rapozinha do deserto que te ajudará a passar o tempo, dando-te paciência.
O animalzito espetou as gigantescas orelhas, como se compreendesse o que desejavam dele.
- Parece-se contigo. - disse ela, ao mesmo tempo comovida e satisfeita.
Juju fez a viagem na algibeira do seu casaco, no barco que os levou a Palermo e depois mais para leste. Em Palermo viu ela, num porão, os emigrantes que deixavam
a Itália, dirigindo-se para a América. Às vezes, estava tão perto da sua alma como uma pátria de eleição, e outras tão afastada como um país que só conhecesse de
leitura.
No barco, havia quási todos os dias zangas entre os membros da Companhia. As coristas queixavam-se das cabinas, o tenor estava vexado e a mulher ciumenta. Doris
não saía da sua cabina e Renato, instalado na ponte, por trás dos barcos salva-vidas, trabalhava na ópera que ainda não tinha título.
Representaram em Atenas para os comerciantes levantinos e as cocottes francesas que ali tinham ido aportar. Atenas era uma cidade velha e feia. Um vento incomodativo
varria o areento pó que vinha do Falero. Tiveram êxito e ficaram lá quinze dias. Entretanto, ao Juju começaram a romper os dentes, assim como se desenvolvia a sua
sólida e espertalhona inteligência. Doris fotografou-o. Escreveu uma carta ao Basílio e juntou-lhe essa foto. Mas acabou por não mandar a carta. E pensou, aflita:
"jjá não sei como lhe hei-de escrever!"
Renato continuava encantador e atencioso, embora absorto pelo seu trabalho. Antes de deixarem Atenas, ofereceu a Doris vestidos e chapéus. Chegaram a Constantinopla.
Já não pensavam em se separar.
- A propósito, há correspondência para ti.-disse ele, quando saíram do teatro.
- Sim? - preguntou ela, indiferente.
Subiu para o Fanfarrão, que Renato convenceu a arrancar depois de alguns espirros.
- Estás cansada? -preguntou, ao vê-la tão pálida, sob a luz dos candeeiros de Constantinopla.
Gostava daquele aroma a baunilha do creme barato que ela punha na cara.
- Não. Se queres, vamos a qualquer parte. Renato dirigiu algumas súplicas a Fanfarrão e conseguiu fazê-lo subir até Pêra.
- Disseram-me que não há senão um restaurante decente, aqui. - respondeu Renato, estudando atentamente o itinerário.
As ruas estavam tão desertas como o teatro em que tinham acabado de representar.
- E as cartas? - preguntou ela, ao cabo de um momento.
- Ah, sim, as cartas. - replicou ele, largando o volante com uma das mãos e metendo-a na algibeira das calças.
Apesar do frio, não tinha casaco, apenas o velho pull verde e um lenço de seda em redor do pescoço, à laia de camisa. Doris pegou no pequeno volume das cartas e,
indecisa, conservou-o na mão. Estava muito escuro para poder ler.
- Andam atrás de ti desde a Argélia.
Deitou fora o cigarro, inclinou-se para ela e beijou-a. O Fanfarrão protestou, mas retomou o equilíbrio quando o beijo terminou.
- É proibido falar ao condutor.-disse o rapaz Além disso, antipatizo contigo.
Ela não respondeu, sorriu ao gracejo, e revirou as cartas nas mãos.
- Bem; deve ser aqui o Continental.
O Fanfarrão parou bruscamente. Tinha o talento de encontrar sempre o seu caminho na mais desconhecida terra.
- Anda, Juju. - disse Doris, empurrando o rapozinho para dentro da algibeira do casaco.
O bicho sofria de uma insaciável curiosidade e não deixava de pôr a cabeça de fora.
- Hum.- hesitou Renato, olhando para a tabuleta luminosa, fraca mas multicor, que se encontrava por cima da porta do Continental.
Vinha música lá de dentro. Entraram.
Estava escuro na rua, mas, no interior, a escuridão era ainda maior. Haviam tentado dar, gastando o menos possível, uma impressão russo-bisantina: estuque dourado
nas paredes, ícones, candeeiros com quebra-luz de metal, suprimindo totalmente a luz. Meio adormecida, uma pequena orquestra tzigana tocava. O espaço reservado à
dança era de grosseiro ladrilho. Tinha umas vinte mesas, das quais apenas duas estavam ocupadas. Numa terceira, encontrava-se um homem gordo com camisa russa, uma
bonita mulher vestida também à russa e um rapaz de casaca. O primeiro levantou-se, aproximou-se, cumprimentou Renato e Doris e bateu as palmas. Apareceram dois criados
russos. O senhor de casaca animou-se, por sua vez, e conduziu a senhora para o pequeno quadrado de ladrilho, onde começaram a exibir-se num número de dança.
- É sinistro. - disse Doris, tentando pôr pó de arroz no nariz, mas sem ver nada.
- Pelo contrário, acho encantador. - replicou Renato - Teremos tudo só para nós e será em nossa honra que os zíngaros tocarão.
Enquanto ele dava ordens ao criado, Doris olhou para os sobrescritos. Estava habituada a cheirar as cartas antes de as abrir. Rindo, ele disse:
- Atavismo. Tentas descobrir o amigo e o inimigo.
Uma delas provinha do advogado Cowen e cheirava a tabaco. Doris colocou-a sob as outras, que leu primeiro. Um postal de Kichmirioff e da mulher. A
Salvatori enviava as críticas que Delmonte tivera em Nova Iorque. A conta de um médico laringologista, de Paris. E depois de uma pausa era preciso abrir a de Cowen.
Levou-a para junto da pequena lâmpada de mesquita que bruxuleava sobre a mesa e leu:
"Querida miss Hart, tenho hoje uma boa nova a anunciar-lhe e estou persuadido de que lhe apreciará a importância. A prisão de Baxterville tem um novo director, Mr.
Taylor, um homem de espírito moderno e humano que aplica novos métodos aos prisioneiros. Numa palavra, creio que Nemiroff poderá obter uma licença de vinte e quatro
horas, assim que fizermos o pedido. É contrário ao que está escrito na lei, mas tentar-se-á. Pode imaginar a alegria de Nemiroff. Isto será, para ele, a sua salvação
espiritual. Venho, portanto, preguntar-lhe quando estará na América para o poder receber. Ele espera com uma impaciência indescritível o momento em que a verá, mas,
desta vez, fora da prisão. O melhor será enviar-me a resposta num cabograma afim de eu dar os passos necessários. Esperando uma resposta imediata, sou com toda a
consideração, Cowen."
Tem graça que a primeira reacção da Doris consistiu num riso nervoso e irritado. Pensou: "Julgam que sou uma bola de ténis, nem sequer preguntam se posso ir ou não.
Distraída, olhou para Renato.
- O quê? - preguntou, pois parecia-lhe que ele tinha dito qualquer coisa.
- Queres dançar? - repetiu o rapaz. Levantou-se logo e foram. Os dois profissionais examinavam-nos com desprezo. Renato não tinha camisa mas dançava como o príncipe
de Gales, Ela não sabia dançar antes de o conhecer. Mas agora, sim. E sabia também rir, recebera os presentes de Juju e do coolie, aprendera a falar francês-e bem,
pois é no amor que melhor se aprendem os idiomas.
Pensou: "Foste tão bom para mim, Renato, e tenho que te deixar!"
com extraordinária precisão, via, até aos mais ridículos pormenores, o estabelecimento vazio e melancólico.
Os zíngaros traziam as calças usuais sob o pitoresco trajo. Um tinha óculos. Na parede lateral, via-se uma grande placa amarela, de umidade. Como Doris a fixava,
tomou a forma de uma cara. A tabuleta com letras russas estava fixada à porta de entrada.
- Continuemos a dançar. - pediu ela, quando os zíngaros pararam de tocar. Renato bateu palmas sem nada conseguir. Sobre a mesa, esperavam-nos champanhe e caviar.
Ambos de contrabando, eram baratos e maus. Ela bebeu vivamente a primeira taça e estendeu-a ao criado para obter outra. Mas Renato pegou na garrafa e ele próprio
a serviu.
Disse:
- À saúde do Juju, o filho do nosso amor!
O bicho, que dormia na algibeira do casaco, estendeu a cabeça para fora, assim que ouviu o seu nome.
- Dorme, querido. - recomendou Doris, metendo-o para dentro. Ele suspirou como uma criança que tem muito calor. Doris pensou: "vou desatar a chorar". Mas estava
enganada. Em vez disso, pediu um cigarro, com voz rouca.
Renato deu-lhe um cigarro e olhou-a atentamente à luz do fósforo. Nada disse mas dirigiu-lhe um sorriso de consolação.
Então ela falou:
- Tenho que me ir embora. Preciso de apanhar o primeiro vapor para a América. Imensa pena, Renato.
Ele tossiu, sem deixar de sorrir. Esperou um pouco antes de responder.
- Não compreendo.
- Não te posso explicar, porque é uma história muito comprida. - retorquiu ela com impaciência - De resto, é uma coisa lamentável.
- Realmente. Um homem ?
- Sim. Está preso há muitos anos. E agora pode sair durante um dia, um só dia. E não admitiria que eu não passasse esse dia com ele.
- Porque motivo está o Basílio preso? - preguntou Renato.
Não reparou que ele conhecia o seu nome, apesar de nunca lhe ter falado a seu respeito, e de uma resposta estranha:
- Porque me assassinou.
Renato fitou-a. Estava branca como a cal e fumava, aspirando o ar para os pulmões. De repente, o nervosismo do Renato rebentou numa gargalhada.
- Nunca reparei que estavas morta! - exclamou, sem se poder conter.
Estupefacta, ela olhou-o e depois começou também às gargalhadas, que mais pareciam soluços. Quando a crise passou, estendeu-lhe a mão por cima da mesa.
- Tenho pena, Renato. Mas é preciso.
- Bem. - respondeu o rapaz - É só por causa da ópera. O sr. Blancenoir nunca se consolará de o abandonares assim.
- Mas eu não te abandono. Ouve: prometo cantar a tua ópera. Temos que fazer uma promessa: tu que a acabarás e eu que a interpretarei.
- Oh, Doris!-suspirou ele- Ó mademoiselle Pompon, ó duquesa, ó heroína dos meus jovens sonhos.
Interrompeu-se. Depois disse:
- Dancemos, agora.
Ela levantou-se docilmente e o rapaz enlaçou-a. A vazia sala, com as trevas bisantinas e a parede manchada, começou a girar à roda.
- Basta! - disse ela.
No momento em que se retiravam, acendeu-se um pequeno holofote e os dois profissionais avançaram. O Juju estava instalado junto do balde do champanhe.
Depois Doris pôs o casaco, Renato pagou e subiram para o carro.
- Simplificas as coisas.- disse Renato, sem deixar de guiar e de olhar para a rua - Vais-te embora, vais encontrar-te com o homem que conta para ti. "Foi agradável,
Renato, obrigada Renato, adeus Renato."
-Mas então como nos havíamos nós de separar?
- preguntou ela.
Embora lhe custasse deixar ficar o Renato, já estava a caminho para o Basílio.
- Ainda não percebeste uma coisa, Doris. É que gosto de ti! - exclamou em voz surda e raivosa.
- Mas Renato - esforçou-se por o consolar,
colocando-lhe a mão no braço.
- Não me toques! - gritou ele - Vai procurar o teu Basílio, anda, não penses em mim, ficarei radiante ao ver-me livre de ti.
De repente, produziu-se uma coisa espantosa, uma coisa que provocou em Doris um estranho tremor no fundo do estômago. Renato estava a chorar! O carro derrapou porque
ele estava mesmo a soluçar. Mas recuperou o domínio do Fanfarrão e continuou a guiar, com atenção, até à beira do passeio. Quando parou, deitou os braços para cima
do volante, apoiou neles a cabeça e chorou com toda a sua alma, gemendo:
- Amo-te! Amo-te! Amo-te!
A seu lado, Doris não sabia que fazer, acariciando-lhe a cabeça e a manga. Pensava, admirada: "E eu sem saber!- Aflita, disse-lhe:
- Então, Renato, então.
Sentia-o tremer violentamente e tinha imensa pena. De súbito, ele deixou de chorar. Tirou um lenço do bolso, assoou-se ruidosamente e tornou a pôr o carro em marcha.
- Perdoa. - disse.
Passaram silenciosamente entre as casas de madeira dos arredores turcos, onde se haviam perdido. Renato, de vez em quando, ainda exalava um soluço, como uma criança
que chorou. E, de cada vez se indignava mais consigo próprio.
Passados três dias, um vapor levou-a para Génova. Quinze dias depois ia a caminho da América. Renato emprestara-lhe o dinheiro para a viagem. Juju continuava a residir
na algibeira do seu casaco. Satisfeito, o coolie lá estava a tocar flauta, à cabeceira, exactamente no sítio em que os outros passageiros costumam colocar os retratos
das pessoas queridas.
Doris deixava atrás de si uma sombra e dirigia-se para outra sombra.
Encontrava-se no cais da estação quando o comboio chegou. Viera três quartos de hora adiantada e ele trazia dez minutos de atrazo. Nunca uma hora de espera lhe parecera
tão longa e, no entanto, ficou cheia de medo quando o comboio apareceu ao longo da planície e se aproximou com muito barulho e fumo.
Duas mulheres estavam a seu lado, falando acerca dos maridos. Ela compreendia mal porque a sua linguagem se lhe tornava estranha. Falava alemão com sotaque americano,
francês com sotaque alemão, inglês com sotaque francês.
- Começou por um peixinho vermelho e agora, por toda a casa, não há senão aquários. - dizia uma delas.
Doris riu-se. Os carregadores pretos empurravam os carrinhos; um tirou o boné, era quási calvo. Pensou, admirada: "Mas nunca vi um preto calvo! Agarrava-se a tudo
quanto podia, nesse último minuto, antes da chegada do comboio e de Basílio.
Viu descer primeiro Cowen, depois uma mulher com uma criança e depois um homem. O homem era Basílio. Só o conheceu passado meio segundo.
- Basílio . - disse.
Vestira o fato castanho, o velho fato castanho, de outrora. Não trazia chapéu. Só tinha cabelo nas fontes.
- Olá, Doris! - respondeu ele.
Hesitou, depois lembrou-se e estendeu-lhe a mão. A sua palma era rugosa e dura, mas tivera-a sempre assim dura.
- Parece que estiveste muito tempo ao sol. disse ela.
Involuntariamente, tomara um tom tão ligeiro como quando falava com Renato.
- Sim, agora, depois que veio o novo director, trabalhamos no jardim. Fazemos um jardim com o muro à roda. - explicou gravemente.
Cowen estava a seu lado, radiante. E disse:
- bom. Agora que está bem entregue, tenho de voltar para Nova Iorque. Já tratámos de várias coisas importantes. Tudo caminha lindamente. E ainda estamos no princípio.
Doris não tirava os olhos de Basílio, tentando lembrar-se. O seu fato estava amarrotado como se tivesse permanecido muito tempo dentro de um saco. Basílio estava
maior, mais forte e são do que imaginara.
- Então adeus e muito obrigado. - disse. E teve também que reflectir antes de estender a mão ao advogado.
- Não vem connosco ? - preguntou Doris, insistindo, pois sentia imenso medo de se encontrar só com o Basílio.
- Não, obrigado. O meu comboio chega daqui a dez minutos. - balbuciou Cowen, embaraçado, com o rosto coberto de manchas vermelhas. E fazendo um sinal com os olhos,
a Doris: - Vão-se embora, não se prendam comigo. Faça com que o nosso amigo goze bem o seu dia de saída e que torne a partir amanhã no comboio das duas.
Apertos de mão, sorrisos, cumprimentos, separação. Ficaram ambos sós diante da estação coberta de hera.
- Táxi? - preguntou um dos três motoristas que ali faziam praça.
- Queres tomar um carro ou andar? O hotel dista só dez minutos. - disse Doris.
Estavam numa pequena e pacata cidade entre Baxterville e Nova Iorque.
- Caminhar. - respondeu Basílio.
Hesitou ainda, reflectiu, depois deu-lhe o braço. Tinha agora necessidade de reflexão para executar os mais simples gestos da vida quotidiana.
Depois de certo tempo conseguiram caminhar em passo igual. Nemiroff olhou em redor de si, com estranha curiosidade. Por fim, disse:
- As mulheres tornaram a perder as pernas. Passaram alguns segundos antes que ela compreendesse e se pusesse a sorrir.
- É verdade, usamos outra vez saias compridas, mas as nossas pernas cá estão, na mesma. - E inclinou-se para a orla do seu vestido negro.
Aquele dia de Março estava frio.
Um pouco mais tarde, Basílio fez outra observação:
- Também os carros mudaram.
Voltou-se para examinar todos os autos que passavam, parecendo ligar-lhes muita importância. Sacudiu a cabeça e olhou para a fila que estacionava na rua principal.
- Aqui está o hotel. - disse Doris, empurrando-o para um edifício branco que tinha alguns andares a mais do que os outros prédios.
A perturbação e o pânico, apoderaram-se de Basilio.
- Como me hei-de inscrever? Quero dizer. como estamos juntos. - E o crânio cobriu-se-lhe de transpiração.
Levou a mão à gravata: tinha camisa azul e colarinho branco, parecendo um vigoroso mas acanhado operário.
- Podes vir. Estamos inscritos como marido e mulher. O Cowen arranjou tudo.-disse Doris, levando-o devagar para o hall.
Quando saiu do ascensor, estava a tremer. Foram para o quarto, seguindo Doris à frente. A pouco e pouco, foi-se habituando aos corredores do hotel.
Contrariada, lembrou-se doutro que tinha as mesmas passadeiras, um dos cem onde dormira no ano anterior. Enrugou a testa.
E quando abriu a porta, dizendo a Basilio que entrasse, estava a pensar: "Atenas.
Foi até à janela e olhou para fora, abstracta. Atrás de si, não ouviu nenhum barulho. Voltando-se, viu Basílio em pé a examinar o raminho de flores que se encontrava
sobre uma mesa.
- São anémonas. - elucidou ele com ar de entendido-No nosso jardim vamos plantar fúcsias.
Lentamente, Doris saiu da janela e veio para ele. Tocou-lhe na manga.
- Basílio.
Passado um instante, encontrava-se encerrada nos seus braços e sentia-se rígida e desesperada. A boca dele estava fria como se os seus lábios não pudessem voltar
à vida senão passados muitos minutos. Comovida, Doris ouviu uma avalanche de suspiros e sons desarticulados, sentiu o calor voltar a pouco e pouco àquele corpo trémulo
- às mãos, às faces, ao peito. Pensou e sentiu:
"Mas é o Basílio!" Recuperou o ardor que se apoderou dela quando Basílio a beijara, pela primeira vez, na estreita escada da quinquagésima rua. Deixou-se rolar para
um abismo sem fundo e teve a impressão de que ia morrer. Na verdade, durante um segundo, qualquer coisa caiu tão surdamente no seu coração, que acreditou no súbito
fim anunciado pelo dr. Williams. Desligou-se, a custo, do abraço. Não; viviam ainda, ambos, estavam ainda de pé junto da mesa das anémonas.
- Como és forte! - disse ela, com os lábios secos. E o coração começou a bater-lhe apressado, sem ela querer.
- Já não esperava que viesses!-disse Basílio. E caiu em cima da cadeira mais próxima como se as pernas lhe fraquejassem.
- Parti no próprio dia em que soube que te podia ver.
A imponderável e terna sombra de Renato atravessou o quarto e desapareceu. Doris estava com Basílio, inteiramente com ele.
Deu os três passos que a separavam agora dele, inclinou-se e colocou o rosto na lisa cúpula da sua cabeça. Ele suportou aquele peso, atento e imóvel como ficam,
às vezes, os cães, quando acariciados. Depois tornou a desligar-se, afastou-se e foi até à janela. Em baixo, era a Rua Direita, ao canto da qual haviam colocado
um polícia de cartão para convidar os automobilistas à moderação.
Ela sentiu o olhar do Basílio a segui-la e aquilo era quási um contacto.
- É esquisito! - exclamou ele.
- O quê?
- Tudo isto aconteceu por causa de um homem. Agora tens cem e eu nada posso fazer.
Ela voltou-se lentamente. Respondeu, rindo baixo:
- Cem? Acreditas no que estás a dizer?
- São ideias que uma pessoa tem, quando passa a vida a fazer colchões.
Aproximou-se dele, com vivacidade, pegou na mão que tinha sobre os joelhos e apertou-a nas suas.
- Não . - começou ela - é preciso que saibas que és o único.
- Cala-te! - pediu ele, tirando a mão e pondo-a sobre a boca de Doris - Não digas nada. Isso não tem importância. Agora, mentir é que é importante.
- Mas eu não minto!
E subiram-lhe as lágrimas aos olhos. Fugiu para a janela e olhou para Mainstreet.
Sempre sentado na sua cadeira, Nemiroff disse:
- Somos dignos de lástima. Ela retorquiu, rápida:
- Não vamos agora rezar uma oração fúnebre. Ainda não morremos. Perdemos alguns anos, é certo. Mas isto passa; já decorreram quási cinco anos e tu estás são e vigoroso.
Mais um e deixar-te-ão sair sob palavra. Eu aprendi uma coisa: a gente pode esquecer-se de tudo. Verás que, mais tarde, havemos de esquecer este mau período!
- Talvez . - murmurou ele, sem a desfitar. Fizera grandes gestos, ao falar, e agora estava na
sua frente, lembrando vagamente uma esgrimista. Esforçou-se por compreender a intensidade daquele olhar. Esperava que ele dissesse: "Fica assim, vou desenhar-te.
Em vez disso, declarou:
- És-me totalmente estranha.
Doris voltou-se, despeitada, e pensando: "Por ti, abandonei o Renato. Mas, também, tê-lo-ia feito por um contrato de ópera." A não ser que." E pareceu-lhe ouvir,
dentro de si, qualquer voz interior.
Aproximou-se rapidamente de Basílio e ajoelhou junto dele.
- Fala-me de ti, conta . - pediu - e deixarei de ser uma estranha.
Ele deixou cair as mãos.
"Contar. o quê? Há coisas que se não contam", pensou.
Reinava no quarto um tal silêncio que Doris ouviu uma das anémonas desprender-se da haste e cair sobre o pano de veludo que cobria a mesa. A tristeza manietava-os
como se fosse uma espessa teia de aranha.
Repentinamente, o rosto do homem animou-se.
- Que é isto? - preguntou, surpreendido e encantado.
Era o Juju, minúsculo e cor de areia, que mostrava o seu insolente narizito por entre os almofadões da cama. Doris pegou-lhe e deu-o a Basilio. Ele agarrou no sedoso
novelo, primeiro com timidez e depois colocando-o junto do rosto, num gesto vivo e inesperado.
- Um fenek. mas estou a sonhar. um fenek!
- exclamou com voz mal segura.
Parecia ter-se esquecido completamente de Doris. Sentou-se no chão e o Juju aninhou-se debaixo do seu casaco.
- É o Juju. - disse ela, timidamente - Esqueci-me de te falar dele, nas minhas cartas.
Estava satisfeita por ver o Basilio animado mas tinha ciúmes, sentindo, no coração, uma fina picadela de agulha.
- Tínhamos um na Legião. era o nosso talismã . Estava bem longe de supor que tornaria a ver um fenek na minha vida! Salta, querido. corre, minha jóia. - disse, dirigindo-se
ao animal.
Juju correu pelo tapete e, depois de uma trajectória magnífica, aterrissou no sofá cor de musgo. Basílio ergueu-se sem o desfitar. E assim se passou uma grande parte
daquele precioso tempo: ele a olhar para a pequena raposa e ela a olhar para ele. O Juju acabou por adormecer e Doris arriscou-se a fazer notar a sua presença.
- Trouxe-o, pensando que talvez o possas lá ter contigo . - disse hesitante.
- Ter comigo? Onde? -Lá.
Não respondeu. Lentamente, avançou a mão para a manga da sua blusa branca que apertou entre os dedos.
- Seda? - preguntou, admirado.
- Seda, sim. - repetiu ela, sorrindo. Juju deu um suspiro.
- Vem. - disse ele, levando-a para o fundo doquarto, já quási obscuro.
A sua mão fazia-lhe doer e ela sentia-se feliz. Tardiamente, respondeu à sua sugestão:
- Não fazes a mínima ideia do que é uma cadeia.
- "Não, realmente não faço .
Agarrou-a e deixou-se cair com ela sobre o leito que cheirava a roupa engomada de fresco e que tinha também um aroma estranho -uma cama de hotel numa cidade desconhecida.
Abraçaram-se silenciosa e dolorosamente. Em frente, um anúncio luminoso começava a cintilar. Basílio apertava-a com um braço e permanecia deitado cobrindo o rosto
com o outro. O colarinho branco brilhava na semi-escuridão. Tremia, Não deixara de tremer, daquela forma discreta e como que subterrânea, desde que viera da prisão,
de onde saira escondido, embora de acordo com o novo director. Esse tremor tornou-se mais violento e Doris assustou-se ao ver que ele chorava. Era um espectáculo
terrível, ver chorar Basilio. "Tudo o que eu fiz, não serviu de nada!" pensou, desgostosa.
Tudo o que fizera. o caminho que percorrera; e cada passo significava uma baixeza e um homem. Tudo aquilo de nada servia se Basilio se afundava enquanto ela estava
à sua espera.
- Mas fala, diz qualquer coisa.-pediu-lhe, porque eram insuportáveis aqueles mudos soluços.
Não disse nada.
Então Doris levantou-se e foi um momento para a
janela ver o reclamo luminoso. "Experimentem o chocolate Paraíso". O anúncio tomou enorme importância. Ela pensou bruscamente: "São coisas que povoam a imaginação
de um moribundo." Parecia-lhe ter já a experiência do que dizia respeito à morte. Morrera várias vezes, outrora no hospital, depois ao lado de homens que detestava,
às vezes, no terror de entrar em cena e quando o seu coração parava, ficando à espera da palpitação seguinte. Tardava então vir e ela pensava: é agora.
Afastou-se da janela. com amargura, pensou que nunca mais esqueceria o anúncio luminoso na cidade estranha, o quarto escuro e aquele homem a soluçar.
O ar do quarto tornara-se seco, visto que o aquecimento era intenso, como em todos os hotéis do mundo. De vez em quando, os tubos de chauffage deixavam ouvir estalidos.
Doris tinha medo da escuridão e também não ousava acender a luz. Foi para o compartimento do lado e preparou um banho para Basilio. Como se isso lhe pudesse causar
algum alivio, deitou na água o resto dos sais que trouxera de França.
com o rosto baixo, ele entrou no quarto de banho e fechou a porta atrás de si. Ficou tanto tempo na água que ela inquietou-se. Quando reapareceu, era outro homem.
- Posso servir-me do teu pente? - preguntou delicadamente.
Não trouxera absolutamente nada consigo. Muito sério, colocou-se em frente do espelho e penteou para trás os cabelos que lhe caíam sobre as fontes.
No ascensor que os conduzia para baixo, Basilio sentia-se embaraçado como se tivesse um guarda atrás de si. Mas no vestíbulo, que era vasto e estava povoado de cadeiras,
tomou bruscamente domínio e autoridade. Conduziu Doris para a sala de jantar, com a atitude de um cliente habitual. Tirou-lhe a lista das mãos e deu as suas ordens.
Ela olhava-o, surpreendida.
- Não te assustes; eu tenho dinheiro. Antigamente, davam-nos cinco centavos por dia; agora, com o Taylor recebemos nove.
Os hors-deeuvre apareceram e Basílio comeu com o à-vontade de um fidalgo. Doris, que não esperava aquilo, observava-o, sorrindo. "É verdade", pensou, lembrando-se
"ele está sempre a representar o papel de outro". Esquecera-o. "Quem sabe se não era ele próprio quando disparara?!" Passou-lhe o prato do pão e ele serviu-se com
delicadeza. Doris fingiu estar convencida que ele comia todos os dias, na prisão, caldo de tartaruga, salmão e ganso. Pensou: "desejaria beber qualquer coisa", e
disse-o. Ele encolheu os ombros. Doris estendeu-lhe o seu cigarro, ele reflectiu um instante e depois acendeu-o. Pouco a pouco, voltavam-lhe os gestos dos homens
livres.
Ela fumava com avidez. Lentamente, a sua compaixão recuava, cessando de abafar o amor. E pensava, quási admirada: "(Mas eu amo-te, Basilio, eu gosto de ti!"
De súbito; ele começou a contar uma história.
- Antes da chegada de Taylor, havia sempre homens bêbedos. Ficavam de tal maneira que não podiam ter-se de pé. Sobretudo um deles, Focinho-de-Gato, fazia sempre
uma chinfrineira dos demónios. Puseram-nos nas enxovias, vigiaram noite e dia, procuraram nos canos, em toda a parte, sem nada encontrar. Então veio um novo que
eu mal vi, pois estava em B. e eu estou em E. Era um polícia disfarçado; descobriu tudo. Na oficina de marcenaria havia tinta que continha álcool e o Focinho-de-Gato
arranjara um meio de extrair o álcool. Desde então, têm maneira de colorir a terebintina e em B, deixaram de se divertir. Pensava nisto .porque tu querias beber
e não há nada que se beba.
Quando a história acabou, ele ficou à espera e Doris sorriu delicadamente. Fez um gesto vago e resignado, com a mão.
- Às vezes, é divertido.
- O Taylor não te deixa modelar? Basílio reflectiu.
- Ainda não fiz o pedido, - respondeu com hesitação - mas duas vezes por semana, posso ficar com
luz durante mais tempo e desenhar.- acrescentou, rapidamente.
- Poderei ver o que tens feito?
- Comboios.-respondeu Basílio, não sem orgulho. Ela sucumbiu, em silêncio.
Ele pediu a conta. Pagou com três notas de um dólar, das quais estava orgulhoso como uma criança. Deu uma gorjeta excessiva e ela sentiu o coração apertar-se-lhe
ainda mais.
- Que desejas fazer agora ? - preguntou-lhe. Entusiasmado, replicou:
- Ouvi dizer que havia, agora, filmes sonoros. Desejaria suspirar, mas não ousou. Quereria rir,
beber, chorar, tomar Basílio nos braços e beijá-lo até que voltasse a ser ele próprio. Mais do que tudo, gostaria de cantar para ele mas via que não era possível.
Desceram Mainstreet, chegaram a uma praça rectangular plantada de sicômoros e viram do outro lado os reclamos luminosos de dois cinemas. Também aí ele pagou e assistiram
a um filme onde se tratava do amor de uma linda espia por um oficial inimigo. Basílio divertia-se imenso. Doris tinha saudades de Basílio. Sentada junto dele, na
sala obscura, sentia-se mais ardentemente atraída para ele do que durante todos aqueles anos de separação. Aproximou o seu braço do seu, mas ele estava tão empolgado
pela miragem do écran que não deu por nada.
- Maravilhoso! - disse, ao sair - Maravilhoso! Maravilhoso!
Pararam sob os plátanos, sentaram-se num dos bancos espalhados por ali e falaram do filme. Dir-se-ia que tinham cem anos na sua frente para se ocuparem de coisas
mais importantes. Entraram também na pastelaria situada ao lado da segunda entrada do hotel e beberam leite com malte. Basílio pegava no copo com as duas mãos e
mergulhava nele a cabeça como uma criança. Doris amava-o, sentia-o em todas as suas veias, em cada milímetro de pele - amava-o. E isto é que tornava tudo mais triste
e difícil. Deitou para longe o dia de ontem e o de amanhã e absorveu-se no instante
presente. Estavam na pastelaria de uma cidadezita desconhecida, eram onze da noite e o criado bocejava por trás do balcão. Basílio bebia o seu leite e Doris sabia
que o amava, que este amor existiria sempre, embora a ela lhe acontecessem as mais extraordinárias coisas.
Hesitavam em regressar. A noite estendia-se na sua frente e ambos tinham medo. Entraram no quarto onde a cama se encontrava aberta com aspecto de honestidade, sob
a luz do candeeiro. Em cima da mesita, o Juju dormia, enrolado na cauda.
- Estás cansada ? - preguntou Basílio.
- Um pouco. E tu?
- Muito.
Esperou que ela falasse mais; angustiado, olhava para o leito. com rapidez, Doris disse:
- Lembro-me de uma licença que o meu pai teve durante a guerra. Tínhamos arranjado tudo o mais solenemente possível, a minha mãe e eu. O meu pai vinha com barba,
não o reconheci quando chegou. E depois não pôde dormir na cama; estava desabituado. Dormiu no tapete. E a minha mãe chorou.
- E tu?
- Eu ri-me. Achei aquilo engraçado. Não passava de uma criança.
Aproximou-se dele.
- Ah, Doris.-disse Basílio em voz baixa - em toda a tarde tentei esquecer o que deve vir amanhã. Tento ser Marcel Proust ou qualquer outro tipo habituado a dormir
por baixo de um édredon. Ah, Doris.
Ela enroscou-se logo nos seus braços porque tinha medo de o ouvir soluçar tão horrivelmente como horas antes. Mas ele acariciou-lhe os cabelos e sorriu.
- São de cor diferente, agora.
- Não te agrada ?
Estava orgulhosa pela forma como se transformara, desde que conhecera o dr. Sardi.
- Não sou pintor, sou escultor: a forma interessa-me mais do que a cor.
"Até que enfim! pensou Doris. Era a primeira frase positiva que pronunciava a seu respeito. Passado algum tempo, preguntou:
- Incomoda-te a luz?
Ele abraçava-a e, sem se desligar, deu volta ao comutador. Não ficou inteiramente escuro. Como de tarde, o anúncio luminoso brilhava em frente. "Experimentem o chocolate
Paraíso".
Basílio disse, na sombra:
- Depois, tudo será ainda mais insuportável. Ela murmurou:
- Nunca devemos ter medo do que vem depois. Quando a boca de Basilio tocou finalmente na sua, pareceu-lhe que o tempo decorria em sentido contrário, num mar de vagas
pesadas e irresistíveis.
Doris atingiu o ponto mais baixo da sua existência, quando fez uma viagem com Shugers. Primeiro, aconteceu-lhe chegar a Nova Iorque sem dinheiro. Foi procurar o
advogado Vanderfelt que a olhou piscando os olhos e lhe colocou a mão sobre o ombro. Arranjou-lhe um encontro com o velho Bryant.
Depois da falência do seu Banco, conseguiu voltar à superfície. Uma grande empresa de papel pagava-lhe a sua experiência nos negócios; exercia lá a função de conselheiro
comercial com um pequeno ordenado e a perspectiva de um grande lucro, se os seus conselhos dessem resultados apreciáveis.
Recebeu-a na sua casinha de Nova-Jersey, donde se via o rio. Envelhecera um pouco, mas mostrava-se sempre gentil. Era o primeiro que lhe preguntava, a sério, o que
tinha feito e obtido desde a última vez em que haviam falado. Deu-lhe um pouco de whisky com muita soda e ouviu-a com atenção. Doris contou mais do que desejaria:
sabia-lhe tão bem confessar-se!
desdobrando assim a sua vida, parecia-lhe ver mais claro. Quando acabou, ele bebeu à sua saúde. E disse:
- Ao seu futuro! Há-de acabar por triunfar. É dessa madeira que se fazem os êxitos.
Ela sorriu, irónica e céptica. Realmente, a sua vida não levava nenhum caminho de chegar ao êxito.
O velho Bryant levantou-se e foi encher um cheque.
- Deve aceitá-lo porque é hoje o meu aniversário.
Doris estranhou que um homem como aquele pudesse estar ali sozinho no dia dos seus anos. Como se soubesse ler no pensamento alheio, ele explicou:
- Afastei-me de todos os que desertaram quando me viram arruinado.
Doris agradeceu o cheque e pô-lo na sua saca sem olhar para ele, apesar do ardente desejo que tinha de conhecer a soma que lá estava inscrita.
Bryant fitou-a, satisfeito:
- Faz muito bem em não estar com fingimentos. outra qualquer recusaria, estando morta por aceitar. Estimo imenso que esteja cá outra vez. Espero vê-la muitas vezes.
Doris olhou-o com gratidão. Desejaria bem saber a sua idade. Sem que o tivesse preguntado, ele respondeu :
-- Sessenta e dois anos.
Conduziu-a até à porta do jardim. Nenhum criado aparecera. Doris voltou para casa com o coração calmo. Meteu o Juju numa caixinha - já que Basílio não o podia ter
consigo - e foi depô-lo em casa do velho Bryant, como tardio presente de anos.
Ele vivia muito só e o bichinho poderia ser uma agradável companhia.
O cheque era de cem dólares.
A segunda coisa que aconteceu, foi a audição de Doris na Ópera Metropolitana. Foi preciso uma quantidade de recomendações e pedidos; a Salvatori interveio. Irritado,
Delmonte teve que ser aquietado, tendo passado uma hora desagradável com o dr. Sardi. Bryant e Vanderfelt mexeram todos os cordelinhos e, por fim, Doris
recebeu a preciosa notícia: autorizavam-na a ser ouvida na Ópera Metropolitana.
A audição realizou-se no palco vazio. Um cenário de tons desmaiados estava ao fundo e, na escuridão da plateia, encontravam-se quatro personagens, murmurando, e
quási invisíveis. O palco era de extensão e altura Imensas. Doris tinha a impressão de que o familiar mundo das tábuas e dos bastidores fugia na sua frente, deixando-a
só num espaço vazio. O cheiro era o de todos os teatros da Alemanha, da Itália, da França e da África do Norte. Um homem feio e de mau humor acompanhava, no piano
que haviam trazido dos bastidores para a mal iluminada cena. Quando ouviu os duros acordes com que o pianista anunciava o prelúdio da Tosca, a cantora desejou, por
um instante, a presença de Renato. Tinha frio e sentia o rosto cor de cinza. Fechou os olhos durante um segundo e concentrou-se, como Delmonte lhe ensinara. Lançou-se
no canto, desempenhou a sua cena sobre o ilimitado palco, sem partner e desamparada. No sítio indicado, as lágrimas brotaram-lhe dos olhos. Agora também sabia chorar
quando era necessário. Bastava-lhe pensar em Basílio, nos seus cabelos raros, no seu olhar de náufrago quando o deixara na pequena estação, ao regressar à cadeia.
As pessoas da plateia trocaram alguns murmúrios quando ela acabou. Estava descontente. Tinha as mãos úmidas.
- Que mais quere cantar? - preguntaram-lhe de baixo, em italiano.
- Uma ária de Hãndel.- gritou.
Colocou sobre o piano a velha partitura copiada pelo próprio Linden. O pianista resmungou. Doris situou-se no meio do palco e ergueu o rosto a direito, na sua frente,
voltado para o sítio onde o projector azul devia espalhar a sua luz. Aclarou a voz e sentiu o coração a bater loucamente no peito. O prelúdio, no piano, foi tocado
fora de tempo. O pianista estava furioso, era uma coisa que se via nitidamente. Uma nota em falso tirou Doris da sua atitude lunar e fê-la
aterrar rudemente no palco da Ópera Metropolitana. Era o momento da sua entrada e cantou. Ao cabo de alguns compassos, compreendeu que tudo estava perdido. Lutou
até metade da ária, tropeçando constantemente no péssimo acompanhamento, depois renunciou. Parou de cantar e aproximou-se da ribalta.
- Desejaria outra coisa.- disse para a orquestra.
- Obrigado, já chega. - respondeu uma voz de basso profundo.
Viu algumas silhuetas deslizarem a toda à pressa entre as cadeiras e saírem da sala. Inquieta, enrolou a música. Um cavalheiro esperava-a à entrada do palco.
O caminho até ele pareceu a Doris uma grande viagem.
- Notável! -disse -Realmente notável! É uma discípula de Delmonte. Reconheci-o imediatamente pela sua maneira de atacar as notas de cabeça.
Aquilo era consolador. Doris tirou o lenço para limpar a transpiração do rosto e das mãos. O cavalheiro caminhou a seu lado através os acessórios acumulados para
o próximo espectáculo, ao longo de muitos corredores. Pediu-lhe uma breve biografia, o seu repertório, informou-se da sua experiência do palco e dos contratos anteriores.
Doris não ousou mentir, mas sentiu que a verdade não era brilhante.
- Bem. Escrever-lhe-emos. Terá notícias nossas.
- disse o senhor, despedindo-se.
Em baixo, a Salvatori esperava-a junto da casa do porteiro. Apertou Doris num grande gesto, batendo, ao mesmo tempo, na madeira de um quadro que ali estava. Doris
limitou-se a suspirar.
A carta da Ópera Metropolitana chegou quatro dias depois. Reconheciam as grandes qualidades vocais da candidata, mas lamentavam sinceramente não haver vaga correspondente
à sua voz. Doris estava em Nova Iorque e não sabia como continuar. "O sr. Wallert ainda é vivo", pensou no seu sub-consciente.
Habitava, de novo, na quinquagésima rua, desta vez no terceiro andar. Aquilo parecia-se com um pesadelo.
Tanta vez sonhara com aquela casa que hoje não lhe dava a impressão de realidade. E, no entanto existia:
no atelier de porta envidraçada instalara-se uma escola de dança ultra-moderna. Ouvia-se o martelar dos pés e as pancadas do gong através das paredes. O alfaiate
Dostal desaparecera, substituído pelo proprietário da confeitaria de baixo. Os rabugentos gémeos haviam-se transformado em espertos rapazes de knicker-bockers e
andavam em patins, pelos passeios. Doris ocupava o minúsculo aposento mobilado de uma pretensa actriz que fora viajar com um cavalheiro. Reinava lá um aroma a sala
de fumo, chinesa, e bonecas, como as que podem comprar-se em Coney Island, estavam molemente espapaçadas sobre todos os móveis. Mas aquilo era barato e possuía uma
atmosfera de terra natal. De casa da Salvatori saíam sempre as angustiadas escalas dos alunos. Depois da derrota, pôs-se a trabalhar seriamente.
Não se teria lembrado do agente de negócios, Mosse, se não lhe tivesse dado um encontrão no metro.
- Viva, viva! Onde vai tão depressa ? Há muito tempo que me ocupo de si.
Doris teve que procurar na sua povoada memória antes de o reconhecer. Havia quási quatro anos que o vira no Hotel Blanchard, junto de Delmonte.
- Mosse é uma pessoa que sabe tudo.-disse ele, muito alegre - Teve uma audição na Metropolitana e foi recusada. Mas possui a voz mais linda que o Cranach tem ouvido
há muitos anos.
- Quem é o Cranach ? - preguntou ela, surpreendida.
- Um homem sem influência, maestro de segunda categoria, mas que percebe bem do ofício.
Doris encolheu os ombros como que a dizer:
"E isso de que me serve?"
Mosse observou-a com atenção. E disse:
- Tem outro ar agora. A quem o deve ?
- Trabalhei na opereta. Uma espécie de café-concêrto.
De tempos a tempos, sentia o que Paris, o que Renato haviam feito por ela.
Mosse levou-a para um pequeno restaurante italiano da quadragésima segunda rua. Andava através dos
carros, das luzes e da multidão nocturna de Broadway como uma foca pelo meio dos gelos flutuantes.
- Preciso de companhia porque a minha senhora está na Flórida. - confiou-lhe.
Ela sorriu friamente, afastou-se e foi verificar o que necessitava de ser retocado na sua maquilhagem. Julgava saber o que a esperava e estava preparada para tudo.
Na rua, ele meteu-a num táxi e disse:
- Riversidedrive.
Cerrou os dentes e entrou. Desde a noite passada com o Basílio, aquilo já não era tão simples. Por cima do rio cintilavam os anúncios luminosos das palissadas; avançaram
entre uma dupla fila de carruagens. Doris pensou que desejaria estar na outra margem, tranqQila e protegida em casa do velho Bryant, sob os seus olhares cheios de
experiência e com o Juju nos joelhos. Mas não deixava de se aproximar de Mosse afim .de lhe dar coragem. Ele pôs logo a mão enluvada no seu joelho, afastando-o levemente.
E disse, delicado:
- Minha senhora, sou um homem de negócios e não um apaixonado. Quero tratar de negócios consigo. Compreende? Não me interesso pessoalmente pela sua bonita silhueta,
mas avalio-a e tento vendê-la por bom preço. Não é uma base correcta?
Tranquilizada, Doris encostou-se ao seu canto. Enquanto o táxi caminhava pacientemente, de paragem para paragem, Mosse explicou-lhe as suas intenções. A Metropolitana
atravessava uma crise, assim como a ópera, em geral. Era preciso arranjar um meio de lhe manter a vida. Doris concordava com ar competente. Ouvira inúmeras conversas
a tal respeito, em Milão e Paris, na companhia de Lindem e com Renato, Percebeu que era aquele o assunto predilecto de Mosse, quando lhe ouviu dizer em tom doutoral:
- O meio de remediar o mal consiste em organizar uma companhia de ópera viva e pouco onerosa que se poderia fazer viajar por todo o país. Cantores jovens, vozes
novas, velhas óperas desembaraçadas de pó e, sobretudo, preços baixos. Espectadores bons,
lugares baratos e ausência de casacas. Que quere ? Já não há gente rica, já não há dinheiro líquido .
Suspirou, erguendo as palmas das mãos em atitude resignada.
Preguntou-lhe se conhecia Potter. Ela procurou na memória, parecendo rebuscar entre escombros. Esforçara-se muito para esquecer. Agora, de novo em Nova Iorque, tudo
voltava à superfície, tudo surgia, camada após camada, pondo-se, de novo, a viver.
- Potter. - procurou - Potter ?
- Seria o autor da ópera se nós pudéssemos arranjar-lhe comanditários. - concluiu Mosse, olhando para ela.
Dissera nós.
- Sim, acho que o conheço. - replicou, incerta. Um homem velho, de sobrecasaca fora de moda,
apertada na cinta. Beijara-a de uma forma cheia de experiência, inquieta e excitante.
- Beijou-me uma vez, se não estou em erro . acrescentou ela.
Mosse, lançou-lhe um olhar rápido e disse apenas:
- Vê?
Passada uma semana, deu-se o encontro com Shugers e ela nunca soube se foi fortuito ou arranjado pelo Mosse. Passou-se no Colony Restaurant onde o agente de negócios
a convidara para almoçar. Doris tinha um vestido que comprara em Paris e penteara o cabelo para trás, seguindo as indicações de Renato. Dos cem dólares do velho
Bryant, sobravam-lhe vinte. Só uma perspectiva lhe restava: a de Mosse. Tinha um ar europeu entre todas as americanas do Colony e quando passou, muita gente se virou,
em várias mesas, para a ver. Nunca fora a um restaurante tão elegante e achava-se à vontade - como num palco.
Comia uma salada de frango, quando Mosse se afastou por um instante, e se aproximou doutra mesa trazendo o cavalheiro que a ocupava.
Ouviu dizer:
- O sr. Shugers.
Ergueu os olhos e Mosse continuou:
- Sr. Shugers, aqui está Dorina Rossi, estrela da ópera francesa.
- Eu sei comer francês, mas não falar. - disse Shugers que cumprimentou, inclinando-se, e se sentou na cadeira próxima.
Ela respondeu:
- Falo inglês.
Shugers era um homem de cerca de trinta e cinco anos. Ela olhou-o, franzindo as sobrancelhas. Conhecia-o, mas donde? E preguntou-lhe:
- Esteve em Salzburgo?
Ele fez estalar as articulações dos dedos.
- Mas estive em Greatneck, miss Hart.
E deu uma grande gargalhada, piscando os olhos. com muitas rugas à roda da boca, parecia um velho actor com o rosto deformado pelas caretas.
- Ganhei então a minha aposta! - exclamou, rindo sempre - É miss Hart, disse eu a F. O. mas F. O. que, no entanto, o devia saber melhor do que eu, afirmou que não
era. Agora perdeu a aposta e tem que beber uma garrafa de vinho de Borgonha, e tem que a beber em meia hora. F. O. é impagável quando está bêbedo. Então tem passado
bem, miss Hart?
Depois de ter dito todas estas palavras, sem tomar fôlego, Shugers parou, pegou no monóculo, pô-lo, examinou Doris e tornou a colocá-lo na algibeira exterior do
seu belo fato cinzento.
- Está bem que conheça Doris. - disse amavelmente Mosse -Mas é preciso tratá-la pelo seu pseudónimo: Dorina Rossi.
- Por todos os nomes que quiser, por todos os nomes . - declarou Shugers - porque, afinal, eu conheço-a melhor do que ninguém; há muitos anos que propago a sua história.
Fui eu o primeiro a entrar no quarto, encontrando-a sobre a cama, a sangrar, salvo o devido respeito, como um porco. Estava no quarto vizinho, ouvi o tiro de revólver,
esperei um instante e
disse a Ducky - era aquela moreninha, sabe? que teve depois um escândalo com as pérolas Bradley - depois disse-lhe: desculpa, bonequinha de açúcar, estou a ouvir
gemidos no quarto pegado. Corro para lá e encontro o F. O. desmaiado no tapete e a rapariga também desmaiada. Quanto ao rapaz que disparara, estava sentado sem dizer
palavra, sorrindo como um idiota. Amarrei-o e corri para baixo. Chamei o Ranson e fomos buscar a polícia, tendo, em seguida, subido na ambulância que se dirigiu
para o mais próximo hospital. Nunca esquecerei o sangue que corria sem parar, através da camisa de noite, uma camisa azul, não era? Azul e cheia de sangue - realmente
fiquei tão nauseado que, durante três dias, tive que me embebedar para aquilo me passar. Então depois de tudo isto, não a havia de reconhecer?
Quando ele acabou, tornou a pôr o monóculo e examinou Doris. Fez-lhe uma festa como para lhe perdoar todos os incómodos que lhe causara, e tirou, por fim, o monóculo.
Doris permanecia distante e hirta.
- Então o Bryant está aqui perto ? - preguntou.
- Se está perto?-voltou-se e fez um sinal-Anda cá, F. O l - gritou através do restaurante.
Mas a chamada perdeu-se no alegre murmúrio das vozes. Apenas um atento maitre-dhotel a recolheu. Aproximou-se de uma mesa do fundo. Embora não olhasse nessa direcção,
Doris bem sabia que, nesse sítio, o seu passado surgia e se aproximava dela.
-Olá, perdeste a aposta!-exclamou Shugers antes de Bryant ter chegado até eles - É miss Hart.
Doris encolheu os ombros. Atravessara situações piores. Olhou para Bryant, que se aproximava. Mosse não dizia uma palavra, observando a cena com divertido interesse.
Bryant já bebera; ela reconheceu-o no esforço que fazia para se manter direito. Quando chegou junto de si, com ar perplexo e apoiando-se às costas de uma cadeira,
sentiu, durante segundos, uma vaga compaixão por ele. Via-se bem que era um homem perdido, embora não tivesse mudado muito, ainda menos do que
Basílio. Mas todos os vestígios da queda, que outrora já estavam esboçados, vincavam-se agora nele, com força.
- Olá ?! - disse, e isto mais parecia uma pregunta do que uma saudação.
Shugers ria-se a valer. E gritava sempre:
- Vês como é ela? Ganhei a minha aposta. Tens que esvaziar a garrafa. Começa lá, anda!
- com todo o prazer. - respondeu Bryant, que tirou um frasco da algibeira, começando a chupá-lo conscienciosamente. Teve um arrepio quando afastou a boca do gargalo
e deixou-se rapidamente cair sobre a cadeira mais próxima.
- São todos conhecidos e de longa data, pelo que vejo. - disse Mosse, com ar inocente.
Doris deitou-lhe um olhar directo. Detestava-o e, no entanto, era o primeiro homem que nada lhe pedira de desagradável, querendo tornar-se-lhe útil.
- Que vá para o diabo a história antiga! - disse Bryant, que falava muito devagar, como se tivesse que tirar as palavras de um longínquo canto do cérebro paralizado
- Pode ter a certeza que não chorei por si, miss Hart.
Como se se tratasse de cronometrar uma performance desportiva, Shugers, colocando o relógio sobre a mesa, disse:
- Não te esqueças de beber.
O outro continuou, depois de ter bebido um gole:
- Nunca chorei por uma mulher. Que vão todas para as profundas do inferno. Diabos levem a Juddy. Diabos levem a Doris! E também o velho. [Ah, que se a ruína não
me tivesse atingido.
- Mas atingiu, meu caro. - exclamou Shugers, dando-lhe um murro nas costas - Esperem, vão ver como fica engraçado depois de ter bebido toda a garrafa. Agora está
na fase agressiva. Em seguida, virá a fase triste, e acabará na alegre.
E anunciou tudo isto como se Bryant fosse um fenómeno de circo.
- Nunca julguei tornar a ver-te, Doris!
E ergueu para ela os olhos atordoados pelo álcool.
Doris ficou gelada. Basílio dissera qualquer coisa semelhante. O presente e o passado interferiam-se.
- Espero que esteja bem. - murmurou. Através da mesa, Shugers interveio:
- Esteja descansada, miss Doris. Cá estou eu. Bryant é um velho amigo, não o abandono. Levo-o comigo para toda a parte, não é verdade, F. O.? Alimento-o e dou-lhe
de beber, o suficiente, para que esteja sempre de bom humor.
Em tom frio, Mosse interveio:
- Quando todos acabarem de se enternecer com as suas recordações, poderemos falar um pouco de negócios, não?
- Mas que negócios? -preguntou Shugers, estupefacto.
- Acerca da Continental Opera Company. - respondeu Mosse - Você prometeu-me obter a ajuda de Potter e de algumas boas estrelas .
- Ah, prometi? - interrogou Shugers, abstracto Parece-me que quere fazer de mim um Otto H. Kahn. Mas eu sou melhor para as Ziegfeld Follies do que para as histórias
clássicas. Em toda a minha vida, só fui duas vezes à Ópera. Não compreendi uma única palavra e todos os actores gritavam mais alto do que aquilo de que eram capazes.
Das duas vezes, não ouvi
o fim, porque adormeci.
Mosse, que passava a existência no ambiente da ópera, estava nauseado. Mas não deixava de se mostrar friamente atencioso.
- Mas nós não lhe pedimos que oiça. Desejamos apenas que nos dê dinheiro.
- Ah, bom. - replicou Shugers, um tanto vexado
- É então isso que deseja de mim? E Dorina Rossi,
também não me quere para mais nada?
Desatou a rir, julgando ter tido muito espírito, ao chamar Doris pelo seu novo nome. com o olhar, ela procurou o auxílio de Mosse que fez um gesto a dar-lhe coragem.
- Sim, porque me consta que as damas não desgostam cá do rapaz, não é verdade, F. O. ?
-Acabei!-anunciou Bryant, bruscamente. Voltou o frasco, do qual não caiu uma única gota.
- Bem, bem.- aprovou Shugers - Agora é que vão ver como é engraçado.
Mas, por ignorado motivo, Bryant não se tornou engraçado. Ficou sentado, com a cabeça nas mãos, sem pronunciar palavra.
- Quere jantar amanhã em minha casa? - preguntou Mosse a Shugers- Miss Hart também virá.
- Que acha, Rossi ? Devo ir ?- preguntou, apertando-lhe o cotovelo.
- Oh, mas com muito prazer. - balbuciou Doris, estimulada pelo olhar de Mosse.
- Anda, parasita - disse Shugers, que pegou em Bryant pela gola, como se pega num cão pelo cachaço, afim de o arrastar através o restaurante.
Mas ele pôs-se direito quási logo, não chamando a atenção. Doris disse qualquer coisa a Mosse, levantou-se e foi lavar as mãos. Tinha a impressão de as ter tão sujas,
como se, durante esse tempo, tivesse jogado com .cartas viciadas e cobertas de porcaria.
Doris saiu algumas vezes à noite, na companhia de Mosse e de Shugers. Depois, em certo momento, Mosse desapareceu e ficou só com Shugers. Era banal, estúpido, ruidoso
e, além disso, de uma vaidade que lhe vinha da falta de confiança em si próprio. No horizonte das suas relações, Bryant vagueava como um fantasma, quebrado, ébrio,
palhaço melancólico, inconsistente e parasita. Doris foi três vezes a casa de Mosse para lhe fazer uma cena. Não queria nem podia continuar: aquilo era muito vil
e penoso. Mosse falou-lhe à razão. Nada tinha de um vendedor de mulheres ou de escravas, não era um guarda das galés, e só possuía boas intenções a seu respeito.
A criação dessa companhia de
ópera era a única probabilidade de Doris-a sua grande possibilidade. Quando a situação se tornou crítica, fez intervir Potter. Doris cantou na sua frente, melhor
do que nunca. Emanava de Potter um certo fluído que a tornava mais forte e brilhante. Compreendeu, subitamente, por que motivo tantos actores dependiam daquele velho
comediante um pouco ridículo. E ele, apesar das maneiras solenes, estava encantado com a sua voz.
- Foi uma corja de fracos de espírito que te reprovou, meu tesouro. Vais ver como te virão contratar de joelhos.
Embora esta profecia fosse risível e excessiva, não deixava de lhe soar de forma agradável. Potter começou a estudar com ela os principais papéis, sob o ponto de
vista dramático. Encheu-a do desejo de os desempenhar no palco, de principiar fosse por que preço fosse.
- Farei de ti uma grande artista, meu tesouro. repetia Potter.
Doris sentiu que ele quási que tinha razão. Houve entre ambos algumas noites que eram como que a continuação das estudadas cenas de ópera: cheias de fogo e de exterioridade,
teatrais e sem consequências para o mundo real. Era na época em que uma única coisa contava para Doris: ir para o palco, cantar finalmente os papéis que lhe competiam
- rebentaria se os não atirasse depressa para cima do público. Entretanto, os vinte dólares gastaram-se. Mosse deu-lhe cinquenta como adiantamento. Ela poderia ter
ido procurar o velho Bryant e pedir-lhe algum dinheiro. Mas um sentimento vago e estranho desviava-a de o fazer. Mas foi visitá-lo. Ajoelhou-se em frente da almofada
onde o fenek se encontrava voluptuosamente estendido e pareceu-lhe que a casita do Bryant era o único ponto tranquilo, abrigado e limpo da sua existência. Todos
os cuidados com aquelas relações, eram poucos. Nos parapeitos das janelas, havia jacintos, em vasos, espalhando um aroma suave e forte. A casa fora construída em
estilo inglês, tinha apenas quatro aposentos; alegres cópias de tapeçarias antigas cobriam as paredes. Bryant
reconduziu-a até à porta do jardim, enquanto o Juju, de cauda levantada, dava saltos a seu lado.
-Então, pelo que oiço dizer, vê muitas vezes o Júnior? -preguntou o velho, em ar negligente - Está completamente perdido. Pessoas como você e eu têm uma grande vantagem
sobre esses Júniors e Shugers. Fomos pobres, de maneira que suportamos tudo.
Doris olhou para o seu rosto amável sob os cabelos grisalhos e preguntou a si própria se ele saberia tudo quanto ela era obrigada a suportar. Nessa mesma noite,
Shugers, em tom indiferente, informou-a de que ia fazer um cruzeiro pelo Pacífico, no seu hiate Swanee. Foi uma derrocada! Toda aquela agitação das últimas semanas
para nada! Já não podia haver Continental Opera Company, nem palco, nem papéis a desempenhar, nenhuma probabilidade depois de tanta amargura, esperança e domínio
de si mesma. A decepção desenhou-se de modo tão flagrante no seu rosto, que Shugers colocou-lhe as mãos nos ombros e apertou-a contra si, dizendo:
-Tu vens comigo. Divertir-nos-emos, verás.
- Quem? - preguntou, alarmada.
- Primeiro nós, com um N grande. Depois levo um grupo catita, e outras mulheres - e o F. O. é claro, como principal atracção.
Doris examinou a situação, com sangue-frio. Já não era uma coisa vaga, como outrora em Long Island; agora bem sabia o que a esperava com "outras mulheres a bordo
e Bryant Júnior como palhaço de segunda categoria.
- Se eu for, com que posso contar? -preguntou sem cerimónias.
O homem não estranhou e respondeu:
- Eu sempre disse ao F. O. que tu sabes muito bem arranjar-te. Quanto tiraste ao pai dele? Cem mil? Mais? An? As minhas felicitações, i Ainda não percebeste que
sou capaz de dar, seja o que for, para ter a mulher que me apetecer? Então, de quanto precisas para vir connosco?
- vou pensar nisso. - declarou, afastando-se.
Ainda não lhe dera um só beijo, nem mesmo as pontas dos dedos. Já se tinha vendido, era uma coisa que se tornara automática, mas nunca o fizera com tanto horror
e tanto nojo.
Em casa, na quinquagésima rua, foi buscar um pouco de coragem junto da Salvatori. A velha cantora andava amuada porque Doris lhe tirara o seu lugar de confidente
e inspiradora. Pusera-se a examinar o futuro da rapariga nas cartas e as paciências só raramente saíam certas. A Salvatori temia secretamente que ela morresse sem
cantar a Tosca, a Aida e a Santuzza. Seria uma morte absurda a findar uma vida não menos absurda. Por isso, aconselhava Doris, em termos violentos, embora ditos
em voz baixa, que fizesse tudo, absolutamente tudo para subir à cena, desempenhando papéis e ocupando o lugar que lhe pertencia.
Nessa mesma noite, Doris chamou Mosse ao telefone. Apertada na pequena cabina da pastelaria, gritou as suas exigências e os seus escrúpulos no auscultador que cheirava
a cebola. Um rádio tocava a canção da moda. Quando acabou a comunicação com Mosse, irritada e exausta, retomou fôlego e pôs-se à procura de Potter. Encontrou-o numa
casa estrangeira, absorvido por uma tardia partida de poker e tiveram uma séria conversa no quarto de vestir da dona da casa. Ele empregou termos sublimes, persuasivos,
falou de heróicos sacrifícios pela arte e calculou que a Continental Opera Company precisaria de oitenta mil dólares, mesmo antes de poder existir. Aquela soma pareceu
mínima à cantora em face do que
a esperava.
Passada uma semana, os contratos estavam assinados; mas um ponto capital havia sido omitido: Doris comprometera-se a acompanhar primeiramente Shugers no cruzeiro
do Swanee, sem destino nem limite de tempo.
O Swanee era um lindo barco branco com cento e oitenta pés de comprimento, ao qual a mais leve brisa dava inacreditável balanço. Duas das mulheres estavam quási
sempre enjoadas, com grande prejuízo para os respectivos proprietários. As outras duas e Doris iam bem. Pareciam-se com a Mícky e a Ducky da inolvidável noite de
Greatneck; no entanto, não eram as mesmas, mas sim uma nova geração da mesma categoria.
Chamavam-se uma à outra "amor" e "tesouro" e lutavam com raivoso sorriso pela supremacia junto dos homens. Doris permanecia no seu transatlântico e deixava correr.
Não tinha que entrar no jogo, visto ser propriedade exclusiva de Shugers, o qual andava de um lado para outro com um boné de oficial, bebendo muito por causa do
enjoo e conseguindo escapar-lhe com efeito. Seguiam a costa mas, no entanto, tiveram mau tempo antes de chegar ao canal; depois, o calor aumentou cada vez mais.
Estavam no fim de Março, os golfinhos saltavam para fora da água.
Doris também bebia muito. Fazia o cruzeiro por trás de cortinas de whisky, pois era essa a única maneira de poder suportar a situação com Shugers. Sofria de uma
devoradora saudade do Basílio, cujo nome não podia pronunciar. Teria arranjado maneira de o visitar antes daquela precipitada partida, mas não teve coragem. Começou
uma carta para ele, que não ficou pronta antes do Panamá. Era uma carta cheia de mentiras, na qual o informava de que andava numa tournée de ópera no oeste, dando
pormenores, contando anedotas engraçadas que tinha ouvido a Delmonte alguns anos antes.
? Como desejaria fazer esta viagem contigo! escreveu, e era a expressão exacta do que sentia. Não podia ver o céu, o sulco que o barco deixava, as nuvens, os golfinhos,
os pequenos portos onde paravam para meter gasolina e água, as palmeiras marginais - não
podia ver tudo isto sem pensar em Basilio. Havia tanto céu em redor dela, tanto ar e espaço - e Basilio estava por trás de um muro a cavar a terra de um jardim minúsculo.
No primeiro dia, um homem moreno com calças muito largas, sentou-se a seu lado.
- Então parece que lhe vou construir uma casa.- começou ele.
Doris teve que reflectir algum tempo antes de se lembrar que era Pascal, o arquitecto, que conhecera em circunstâncias infinitamente longínquas mas inesquecíveis.
O barco estava cheio de pessoas que tinham assistido àquela festa, ou que, pelo menos, tinham a mesma cara que os convidados de então.
- Precisamos de enganar o Shugers, nós dois, declarou ousadamente Pascal - senão a viagem seria insuportável.
Ficaram ainda algum tempo a contemplar a água que espumava sob a proa.
Ela preguntou ironicamente:
- Mas o senhor porque veio?
A resposta foi igualmente irónica:
- Pela mesma razão que você: negócios. Ela disse com brutalidade:
- Eu sou paga. Seria incorrecto enganá-lo.
- Pertencemos a uma geração positiva. Seria uma viagem deliciosa, se viesse agora ao meu beliche. O meu vizinho de cabina está a jogar o bridge e Shugers ficará
no bar estas duas horas mais chegadas.
Doris reflectiu seriamente nessa proposta, durante dois minutos. Pascal era agradável e falava a sua linguagem - a linguagem de Renato e, afinal, também a de Basilio.
- O pior é que eu amo uma pessoa. - disse com hesitação.
O homem, com a mão, afastou esse motivo.
- E isso que tem? Toda a gente gosta de alguém. Também eu gosto de uma mulher que está em Xangai e não se importa comigo para nada. Venha à minha cabina - quero
mostrar-lhe umas fotografias.
Doris hesitou, ávida de sossego e solidariedade. Por fim, ele foi-se embora só e ela ficou no deck, com as mãos enterradas nas algibeiras do casaco e pensando em
Basilio.
No primeiro dia, Bryant evitou-a. Viu-o, de longe, jogando ping-pong e espantou-se por ele andar de maillot, embora o dia estivesse frio e tivesse arrepios. Tinha
o ventre um tanto saliente e o corpo era mal feito como um esboço de homem. Para jantar, toda a gente se vestiu, mas ele veio como estava. Desataram a rir; olhou
para o prato e riu com os outros. Estava completamente embriagado e foi preciso que o criado o trouxesse para fora da sala, a meio da refeição. Na manhã seguinte,
reapareceu no mesmo trajo, com a pele roxa de frio. Doris não pôde suportar tal espectáculo, por mais tempo. Dirigiu-se-lhe bruscamente e preguntou:
- F. O. porque fazes essa figura idiota com o fato de banho?
- Simplesmente por tua causa. - replicou ele, furibundo, com os pêlos das pernas eriçados de frio.
- Como, por minha causa ? -preguntou, impaciente.
- Sim, por causa da aposta. - explicou em tom choroso - Apostei com o Shugers que não lhe pertencerias, mas estou vendo que desceste bastante.
- Tens razão, Júnior. -replicou Doris, quási amável.
Estava um tal farrapo, que lhe incutia dó.
- dE quanto tempo andarás nessa figura?
- Durante toda a viagem. - murmurou em tom lamentoso.
- Que estupidez! - disse ela, furiosa, indo à procura de Shugers.
Ficou aflito ao ver que ela sabia, mas como não se mostrou ofendida por ser motivo de uma aposta, deu grandes gargalhadas, acabando por, generosamente, consentir
em que ele se vestisse, passada uma semana.
O Swanee foi o barco mais ruidoso do canal de Panamá e o mais embriagado do porto de Papeete.
Ouvia-se continuamente estalarem risos, os bêbados a discutir, as mulheres a cantar, o gramofone a funcionar ou então, a gargalhada histérica de uma rapariga a quem
faziam cócegas. Shugers resolvera fazer daquela viagem uma ininterrupta cadeia de grosseiras partidas e de alegria. O seu humourera de uma espécie particular. Trouxera
uma velha cadela, doente e tonta, que não suportava a música, e ria até chorar quando o seu uivo se ouvia ao mesmo tempo do que o gramofone. Havia sempre celhas
de água, escovas e pregos escondidos sob os lençóis dos convidados. Na cabina de Bryant, todas as noites punha uns ratos brancos que trouxera, de propósito, para
o convencer de que tinha o delirium tremens. As damas encontravam versos sobre o toucador e na banheira, e liam-nos, risonhas, escondendo-os em seguida. Depois do
jantar, deitavam o mau vinho espumoso, da lei seca, para dentro dos decotes femininos. No meio da noite, ouvia-se o sinal de alarme e tudo ficava aterrado. As mangas
apareciam cosidas e escondiam-se os fatos, de modo que os convidados nunca andavam completamente vestidos. Distribuiam-se telegramas falsos. As tolices deste género
eram infindáveis. Pelas sete da tarde, toda a gente começava a estar embriagada e a noite acabava na mais completa confusão.
- Para que me terá ele trazido? - preguntou Doris a Pascal - Todas as noites está tão borracho que não me distingue das outras mulheres.
- Pois não sabe para que foi ? Primeiro, queria que os jornais falassem dele, e conseguiu-o. Depois desejava mostrar do que era capaz à mulher que se divorciou dele
e a outra que o mandou passear. Finalmente, acha engraçadíssimo tê-la no mesmo barco em que está o F. O. Quere que este saiba que você dorme com ele. É o que os
discípulos de Adler chamam um homem completamente desmoralizado.
- Ah, sim.
Nem sempre Doris compreendia os paradoxos de Pascal. Mas eram eles os únicos passageiros que mantinham relações mais ou menos humanas, no meio
de toda aquela alegre vileza do orgíaco barco. De resto, fazia tudo quanto esperavam dela: portava-se como Micky e Ducky, bebia, ria-se, dançava e gritava como toda
a gente. Entoou uma canção de Mademoiselle Pompon com tanto sucesso que a teve de repetir quási todas as noites. Shugers acrescentou novos versos, estribilhos sujos
e coxos que lhe davam um trabalhão a compor e de que se mostrava excessivamente orgulhoso. Doris foi colocada em cima de uma mesa e dançou o cancan da mesma opereta.
Era quási tão bem como os passos de pretos aprendidos pelas outras na escola do music-hall. Doris levava o Shugers, a cair, para a sua cama e submetia-se ao seu
capricho ou então punha-lhe compressas frias na cabeça.
- Sabe o que é este Swanee?- preguntou ela a Pascal - Um bordel flutuante. É exactamente assim que faço ideia de um bordel.
Pascal soltou uma risada curta, anasalada. Estava, nesse dia, muito sentimental, pensando na dama de Xangai. Imitando o tom de voz de rapazito do mais novo, marinheiro,
respondeu:
- Sou um homem ingénuo e não sei ao que V. Ex. se refere.
Aquilo durou meses. Doris já não sabia quantos. Viu peixes voadores, poentes, portos desconhecidos, cidades tropicais - sem nada ver, no entanto. Parecia-lhe, às
vezes, que a viagem nunca mais acabaria, que vogariam assim, sempre, sempre, sob o ávido céu tropical, no meio da embriaguez e descendo cada vez mais. Parecia-lhe
que não mais voltaria ao palco, sentindo o holofote azul a iluminá-la, não mais cantaria, não mais tornaria a ver o Basilio, nunca mais, nunca mais.
Uma noite, após a partida de Taiti, o ritmo da máquina mudou bruscamente. Todos os que ainda estavam em estado de dar por isso, ficaram cheios de medo e juntaram-se
na ponte. Doris sentiu bater o coração em grandes golpes de angústia. Pensou primeiro que iam ao fundo e que tudo acabaria subitamente daquela forma absurda. Depois
pensou que aquilo devia ser mais uma brincadeira do Shugers. Deitou a cabeça
para trás e deu uma gargalhada alta, no tom que ali estava em uso. De repente, alguém a agarrou brutalmente, gritando:
- Cala-te!
Viu o Bryant a seu lado. Estava vestido e tinha um cinto de salvação, o que lhe dava um aspecto ridículo e balofo. Ela olhou-o fixamente.
- Isto não é para rir! - exclamou ele - Vamos para o fundo e morreremos todos. Achas muita graça?
F. O. estava lúcido, devido talvez ao medo. Doris não deixava de o fitar. E só então percebeu que estava com um roupão cor de salmão.
- É pena.-disse F. O.-Eras estupenda quando eu te conheci. É pena que também estejas perdida.
Deu meia volta e foi-se embora, já sem estar embriagado, muito rígido no seu cinto de salvação. Doris seguiu-o com os olhos, enquanto o coração se lhe rodeava com
um anel de gelo. As suas palavras tinham o tom definitivo de uma oração fúnebre. A máquina tornou a pôr-se em marcha, devagar, e o pânico dissolveu-se na bebedeira.
No dia seguinte, ancoraram perto de uma ilha para fazer reparar tranquilamente a pequena avaria.
Toda a gente se alegrou por ir a terra. Ninguém dormira o suficiente e alguns ainda não haviam recuperado o sangue-frio. O pequeno porto estendia-se na sua frente,
num vapor prateado, mostrando as jangadas de bambu, dos indígenas. Duas ou três canoas, de grandes estabilizadores, haviam saído para a pesca; uma delas, conduzida
por um grupo de garotos, dançava sobre a espuma das vagas, dirigindo-se para o barco. Algumas mulheres, que estavam de pé, na água, lavavam a roupa no sítio onde
um claro regato desaguava na baía. Levantaram-se, puseram as mãos por cima dos olhos e viram aproximar-se a canoa a motor que, fazendo barulho, trazia para terra
os passageiros do Swanee.
- Gauguin. - disse Pascal, mostrando os recifes de coral, as palmeiras, as cabanas, escuras na areia vermelha.
Doris, que conhecia por Basílio alguns quadros de Gauguin, disse:
- Agora já não.
Não era absolutamente o paraíso mas era, ainda assim, um paraíso. Havia polícia de porto, um hotel, casas para gente branca, no flanco da colina e uma missão protestante.
Mas o ar, a cor, a paz, permaneciam dignas do paraíso. Doris sorriu, incrédula e encantada. Reconhecera a ilha, a ilha de sonho onde queria instalar-se com o Basilio,
quando saísse da cadeia.
- Vocês são fortes de mais para mim. - interveio Shugers que acolhia, com desconfiança, todas as palavras que saíssem da absoluta nulidade em que vivia.
A canoa roncou até ao porto, depois deslizou silenciosamente entre os postes do embarcadoiro. Todos sentiam uma sensação estranha nas pernas e o chão vacilava sob,
os seus pés. Conduzidos por um mulato falador, um rapaz despenteado, deixando ver os músculos sob a camisa, foram para o hotel. Estavam sentados alguns homens na
varanda. Vestidos de branco, balouçavam-se em ar letárgico, nas cadeiras de bambu. Estava calor, apesar do nevoeiro prateado e das espessas nuvens do céu.
- Como se chama esta ilha ? - preguntou Doris.
- Patikala. - respondeu Pascal.
Entraram no hotel e beberam cerveja, depois uma bebida agradável, de gosto exquisito que tornava a cabeça muito leve mas cortava as pernas de tal forma, que o grupo
se transformou num rebanho indeciso e ridículo.
Resolveram passar a noite em terra, amontoando-se nos quatro quartos do hotel. O barulho estalava por toda a parte, vindo cair na varanda. Doris tinha vergonha em
face dos indígenas e dos cumes das palmeiras que rodeavam a aldeia com o reflexo das suas mil espadas. Parecia-lhe que haviam rasgado o silêncio do porto, tecido
infinitamente fino e precioso.
O jantar, que fora servido por criados descalços, cheirava a cuny e era temperado com ardentes especiarias. Shugers arvorou-se em chefe da expedição. Falara
com o missionário e alardeava os seus novos conhecimentos. A ilha encontrava-se a dois dias de TaiH, contendo dezoito brancos e cerca de quatro mil indígenas. Estes,
quando não estavam ocupados a dormir, a pescar ou a dançar, faziam copra com noz de coco. Uma vez por semana, vinha um navio de Taiti; além desse, um pequeno vapor
de carga, aparecia de tempos a tempos, trazendo sal e petróleo e levando a copra seca.
Doris recolheu cuidadosamente estas indicações na sua memória. Quando Shugers que, segundo um hábito maçador lhe mantinha o joelho preso sob a mesa, a libertou por
um momento, ela fugiu para a varanda.
A lua ainda não brilhava mas o céu estava cheio de uma errante claridade. Alguém cantava na aldeia e essa toada evocava o fim do mundo. Quando desceu os degraus,
sentiu-se como num palco. As palmeiras eram os escuros bastidores. Teve algum receio, avançando através delas até ao rio. Mas, ao mesmo tempo, parecia-lhe conhecer
tudo aquilo. Ouvia sussurros nos arbustos e à medida que avançava, tateando, sentia a umidade, a frescura e o aroma das flores nocturnas e desconhecidas que, violentamente,
respiravam. Olhou para o céu: sobre o pálio claro apareciam agora, lentamente, as estrelas, uma após outra, cada uma no lugar que lhe estava marcado. Eram grandes
e lindas estrelas, estranhas sim, mas submetidas à mesma lei que as estrelas da pátria. "De que pátria?" -pensou dolorosamente. Parou e respirou profundamente, com
método. Julgava que deitava fora uma grande parte de si própria ao mesmo tempo que o ar que expirava. De cima de uma árvore veio um grito de pássaro, o vento agitou
as pesadas palmeiras negras. Colocou os braços na haste duma palmeira e sentiu a árvore oscilar como um ser vivo, desconhecido mas fraternal.
Roía-a uma profunda saUdade do Basílio. Nesse momento, saía do hotel o ritmado grito de numerosas vozes. Procuravam-na. Riu baixinho, com ironia. No entanto, voltou-se
e retrocedeu, primeiro devagar e
depois, mais depressa, até ao pequeno círculo de luz que vinha do hotel. Shugers agarrou-a com a brutalidade que lhe dava a inquietação que"sofrera. E disse:
- Deves estar sempre ao pé de mim.
- Desculpa. - pediu ela, docilmente.
Muito tarde, quando foram para o quarto, encontraram o Bryant enrolado num canto, adormecido sobre uma esteira. Estava de tal forma embriagado que não houve meio
de a Doris o acordar.
- Deixa. -Não incomoda. - disse Shugers, que também tinha a sua conta - Que traiçoeira esta droga, o cana!
As pernas fraquejaram e perdeu o equilíbrio. Caiu sobre a cama de ferro que, debaixo do mosquiteiro, estava no meio do quarto e estendendo o braço, puxou Doris para
si. Ela tinha os olhos muito abertos enquanto ele a agarrava. Fora, a noite enchia-se com a cega-rega das cigarras, dos inúmeros grilos e com o triste grito dos
sapos. Pairava no ar um doce pó de lua prateada. Quando a pele molhada de Shugers encontrou a sua, Doris compreendeu que não tinha o direito de descer mais. com
os olhos fixos na pálida noite da ilha estranha, prometeu a si própria apagar e vingar-se daquele minuto. "Mas vingar-se, como?" pensou, desesperada. "Hei-de cantar.
Voltarei aqui com o Basílio. (Queria tanto, tanto, não morrer antes de aqui vir com o Basílio!
Aos trinta e dois anos, Dorina Rossi alcançou a glória, a glória ofegante e sem importância de uma grande cantora de ópera.
O redactor do International Musical Piess escrevia assim:
"A Rossi é uma personalidade. Não se limita ao repertório de uma língua determinada e é por isso que as colegas não a estimam. Canta as partituras italianas
mais interessantes, tais como a Tosca e a Aida. Canta a Carmen e a Taís e os difíceis papéis do moderno repertório alemão. Está especialmente indicada para estes
últimos pela sua beleza e extraordinário talento dramático. Ela foi a própria a dizer-nos, com um modesto sorriso, que devia tudo aos seus mestres. Ninguém ignora
que foi o último amor do saudoso Potter que, com ela estudou a maior parte dos papéis que devia interpretar na sensacional tournée pan-americana da Ópera Continental.
Sabe-se também que foi nessa ocasião que a Ópera Metropolitana a descobriu.
Quando visitámos a prima donna no seu camarim, deu-nos a impressão de uma pessoa extremamente nervosa. ? Na Metropolitana, toda a gente respeita os sensíveis nervos
da estrela que todas as noites esgota a lotação. Ninguém lá de dentro ignora que os maestros, os chefes de naipes e os outros actores que trabalham com a Rossi têm
que se revestir de enorme paciência. O seu antigo professor e actual partiner, Belmonte, recusou, com vivacidade absolutamente italiana, emitir a sua opinião sobre
a antiga discípula. Nos bastidores segreda-se que não assinará novo contrato se tiver que representar com ela. Compreende-se esta inveja de uma estrela a declinar
em face da juventude que lhe rouba o brilho.
Mas quando se fala com a Rossi, e se contempla o seu fascinante olhar e o sorriso cheio de melancólico cinismo, compreende-se que o público se sinta entusiasmado,
mal ela aparece no palco."
Dorina colocou o jornal sobre os outros que já estavam em cima da cama. Pôs-se a abrir as cartas que a Salvatori trouxera com o pequeno almoço. Eram oito horas da
manhã, os cortinados ainda se encontravam corridos e por trás deles, via-se a janela aberta. O candeeiro estava aceso na mesa de cabeceira; os matinais ruídos de
Nova Iorque chegavam de muito longe porque a Rossi habitava no quadragésimo-oitavo andar de um dos novos edifícios construídos no lado ocidental do Central Park.
Dorina recebia uma grande quantidade de cartas absolutamente indiferentes. Leu-as todas e, depois, repeliu-as. Mas tornou a pegar numa, que releu. Era de Renato
e tinha dificuldade em a decifrar, pois esquecera o francês, tão depressa como o tinha aprendido. Essa carta, que abrira com alguma ansiedade, irritou-a ainda mais
do que as outras. Renato informava-a de que tinha casado por interesse, visto que precisava de dinheiro. Lembrava-lhe como haviam sido bons amigos e pedia-lhe a
sua ajuda para a ópera que outrora havia começado.
O que a enraivecia, naquela carta, era ter já recebido cem no mesmo género. De toda a parte, surgiam pessoas que apregoavam direitos à sua gratidão. Desde que triunfara,
toda a gente esperava qualquer coisa dela. Não recebera uma gentileza, um presente, um favor que não tivesse agora de pagar centuplicadamente, desde que tinha influência
e dinheiro. Renato era o último dos credores do sentimento e, dele, não esperava tal atitude. De sobrancelhas carregadas, tentou ver um Renato ajuizado e burguês,
mas não conseguiu.
Pensou: "Desejaria receber uma carta que não pedisse nada."
O seu mau humor provinha de estar, havia já algum tempo, sem notícias de Basilio. Finalmente, o tenaz advogado Cowen acabou por saber que lhe haviam tirado a possibilidade
de escrever, no período de seis meses. No decurso de longos períodos, o Basilio era um preso exemplar, mas acontecia-lhe revoltar-se bruscamente, perdendo, assim,
todas as regalias possíveis numa prisão.
Pensando em Basilio, mais furiosa ficou ainda, com a carta do Renato. Fez com ela uma bola que atirou para cima do tapete branco. Aquilo não passava, de resto, de
um gesto simbólico, pois miss Butcher, a sua secretária, apanhava tudo, alisava as cartas que, todos os dias, encontrava amarrotadas e acabava por lhes responder.
Escrevia também numerosos autógrafos, porque sabia imitar, na perfeição, a letra de Doris.
A cantora apagou a luz e fechou os olhos; não queria dormir, mas ensaiar o seu papel. Notara que os trechos que aprendia de manhã, antes do banho, lhe ficavam melhor
na memória. Em imaginação, seguia a melodia e as palavras de Tatiana, em Eugênio Oneguine, de Tchaikowski, um novo papel que devia cantar em francês. Os ensaios
da poeirenta ópera já iam adiantados e Dorina resolvera cantar de cor, no ensaio geral. Fez força com os pés, na extremidade da cama e recitou o papel, de olhos
fechados. Depois, seguiram-se os exercícios respiratórios. Aspirava, contava até catorze e expirava. Trinta e seis vezes a seguir: era um dos ritos do método Delmonte.
Dorina praticava-o havia anos, pois tinha a impressão de que lhe tranquilizava a consciência. Mas não deixava de lhe perturbar a vista devia ser um exercício permitido
apenas aos corações sadios. Entretanto, o pequeno almoço arrefecera, como acontecia todos os dias. Tornou a acender a luz, mexeu, sem apetite, a espessa sêmola cozida
que a devia impedir de emagrecer, depenicou alguns bagos num grande cacho de uvas, de estufa. Tocou, deitou a roupa para trás e já estava levantada quando a Salvatori
entrou. A velha cantora tinha mudado muito. Trazia umas botas altas que guinchavam a cada passo e que calçava para ajudar as articulações a suportarem-lhe o peso.
Tomara a decisão de usar o cabelo grisalho e, com uma permanente, arranjara uma coroa de caracóis em redor da cabeça.
- Oiça, - disse Dorina, que estava nua no quarto
- não quero mais ver o coolie no meu camarim.
Aflita, a Salvatori ergueu os braços ao céu.
- Deite-o ao lixo. Há mais alguma coisa ? preguntou ela do limiar do quarto de banho, vendo que a Salvatori a contemplava com desespero.
- O dr. Sardi telefonou. Delmonte suplica-lhe que ensaie ainda esta manhã o duo e o fim. - anunciou prudentemente a Salvatori à Rossi que parecia uma bomba prestes
a explodir.
- Ora.. - replicou num gesto cheio de nojo. E entrou para o quarto de banho onde a Salvatori a seguiu.
- Posso dizer que sim ? - insistiu.
A resposta fêz-se esperar. Quando a ouviu, a Salvatori respirou. com efeito, já tinham fixado o ensaio para as onze horas, sem o consentimento dela. As interpretações
imprevistas e modernas que Potter ensinara a Doris, desorientavam completamente o velho Delmonte. Atribuía a mínima hesitação de que era vítima à sua voz declinante
e a frouxidão dos aplausos à absurda maneira de cantar da Rossi. E o dr. Sardi vincava-lhe tal ideia. Ela não utilizava nenhuma das belas regras da ópera em que
ele a instruíra, numa época passada que parecia, agora, nunca ter existido. A Rossi tinha conhecimento de tudo isto e enojava-se. Sabia que no ensaio das onze horas
haveria discussões que nunca mais acabavam e tinha necessidade de todas as suas forças, dos nervos e da voz para a noite. Abstracta, esfregava atentamente a pele
com a espuma do sabonete de alfazema, como se daí lhe pudesse vir alguma tranquilidade. Entre a toilette e o ensaio havia miss Butcher. Dorina não podia suportar
miss Butcher mas não tinha tempo de procurar uma nova secretária e de a pôr ao corrente das suas coisas. De resto, a sua antipatia não tinha nenhum motivo. Miss
Butcher era um modelo de cuidados e de consciência profissional. Mas conhecera melhores tempos, viera do Park Avenue e fora a falência que a lançara naquela carreira.
Usava saltos rasos, luvas impecáveis, corrigia em voz amável os erros que Doris praticava, em inglês, organizava jantares íntimos e as inevitáveis recepções, como
se não estivesse num andar dos West Seventies mas sim no Park Avenue. Numa palavra, miss Butcher era uma lady, raça que mais custava ainda a suportar do que as Micky
e as Ducky com as quais se encontrara em várias ocasiões da sua vida. Durante todo o tempo que passou com miss Butcher na sala chamada biblioteca, ocupada a ver
os livros de contabilidade, preparou-se para a fatal disputa com Delmonte. i Se ainda o pudesse convencer a ficar imóvel durante o último acto, no momento em que
ela entrava e o abraçava por detrás, se consentisse em não se voltar para ela, num gesto que estragava
tudo! Cavaliere, - suplicava-lhe, em pensamento deixe-me entrar atrás de si, é dessa forma que verá o maestro e que o público o verá melhor a si; é uma posição com
que lucrará em vez de se prejudicar.
- Qual devo encomendar? - interrompeu míss Butcher.
- Qual. o quê?
- Henley telefonou. Oferece-nos um champanhe com garantia de origem a 134 dólares a caixa e outro, um pouco menos de origem, a 95. Qual devo encomendar?
- Só podemos oferecer do primeiro. - disse Dorina, abstracta.
Ganhava muito dinheiro mas andava tão atrapalhada como antigamente. O velho Bryant dissera-lhe havia pouco: "Se eu pudesse formular um desejo como nos contos de
fadas, seria o de ter sempre na algibeira um cent. a mais do que preciso." E acrescentara: "Tu tambem és das pessoas a quem falta sempre um cent."
Em tom consolador, miss Butcher propôs:
- Se o maitre dhôtel que o servir, colocar o guardanapo de modo a esconder a etiqueta. Além disso, os seus convidados não percebem nada de champanhe .
No tom de miss Butcher vibrava imperceptível ironia. Impaciente, Doris levantou-se e disse:
- Resolva como entender.
- Precisamos também de duas dúzias de guardanapos para cocktails e de toalhas para os convidados.
- replicou ainda a secretária.
O andar fora alugado com mobília mas a casa precisava de ser montada.
Fugindo para o piano, ela disse:
- Estou sem dinheiro.
No salão, as flores diversas cruzavam os perfumes que lutavam entre si. Dorina, ao passar, acariciou os pequeninos rostos de um ramo de narcisos, procurando, inconscientemente,
retardar o desagradável momento em que cantaria a primeira nota. Mas isto não servia para nada. Logo a seguir, encontrou-se sentada em frente
do plano, aplicando-se a cantar, com atenção e paciência, notas simples. De manhã, as suas cordas vocais tinham tendência para resistir, os sons eram secos e rebeldes.
Dorina levantou-se e, andando de um lado para outro, no quarto, continuou a cantar com precaução, atacando devagarinho, até ao momento em que a sua voz tomou mais
amplitude.
- Minha senhora! - gritou na direcção do vestíbulo.
A Salvatori apareceu logo, caminhando nas pontas dos pés e fazendo chiar o calçado. Foi sentar-se a um canto. Dorina voltou para o piano, tocou primeiro alguns acordes
e cantou umas escalas. A Salvatori ouvia com ar sabedor e corrigia soltando exclamações monossilábicas. Miss Butcher entrou, ficou no limiar e aproveitou o momento
em que Dorina tossia e cuspia atentamente no seu lenço para anunciar que era tempo de ir ao ensaio. A Salvatori fulminou-a com um olhar teatral. Reinava entre ambas
uma estreita divisão de trabalho e um violento ciúme. Tudo o que dizia respeito ao teatro, era do domínio da Salvatori, tudo que estava ligado a assuntos domésticos
ou mundanos era com a Butcher. Ocupando-se do ensaio, miss Butcher cometia um abuso de confiança. Dorina sentiu as nuvens negras acumulando-se no salão saturado
de flores.
com paciência disse:
- Nada de discussões, peço-vos . Inexorável, a Salvatori disse:
- Se a miss Butcher tratasse antes de mandar consertar o aparelho de rádio .
- Eu pensava que o rádio fazia parte da música.- replicou prontamente miss Butcher.
De repente, Dorina enraiveceu-se.
- Mas não façam cerimónia, i Tratem de fazer zaragata, andem! i Para que me hão-de poupar os nervos se eu não tenho senão a Tosca para cantar!
Estabeleceu-se imediatamente um silêncio de morte. Mudas, as duas inimigas seguiram Doris atéà antecâmara, que era um espaço escuro e sem janelas com um velho banco
de igreja encostado a uma das paredes.
Marcela Pollock levantou-se desse banco quando Dorina se aproximou do armário para tirar o seu casaco de peles.
- Olá, Marcela.-disse ela, indiferente, continuando a andar.
- Viu a Musical Press? - preguntou Marcela, muito animada, repetindo o erro de pronúncia comum às pessoas do Sul: os s e os sz pareciam-Magnífico, não é? Está contente?
- Muito gentil. - disse Dorina, pondo o chapéu. Marcela era o seu chefe de publicidade; estava
atrelada ao seu reclamo como um verdadeiro cavalo.
- Muito gentil, muito gentil! - exclamou - Mas afinal que mais quere?
Sim, que mais quero eu, afinal?" pensou Dorina.
Dirigiu-se para Marcela e acariciou-lhe o rosto. Esta baixou-se rapidamente e colocou um beijo na mão da cantora que a retirou precipitadamente.
- Posso acompanhá-la no carro até à rua quarenta e oito? Tenho muitas voltas a dar. - disse miss Butcher.
- Não. - respondeu Dorina - Vá no metro.
No rosto da secretária apareceram logo as rugas que denunciavam os tempos melhores que havia conhecido.
Enquanto a Dorina passava ao lado da sua cara irritada, a Salvatori já se preparava para a viagem, armada e equipada, encafuada num bom casaco e tendo um chapéu
com plumas posto às três pancadas sobre os caracóis grisalhos. Foi nesse momento que Dorina resolveu explodir:
- Mas vocês quando se resolvem a deixar-me em paz? - gritou.
Gritava, o que era prejudicial para a sua voz.
- Mas não compreendem que o que eu quero é ver-me só? Tenho de aprender o meu papel, de o decorar, de o ensaiar uma porção de vezes, julgam que tenho tempo para
me preocupar com os vossos problemas imbecis? Girem! Desapareçam da minha vista.
Tinha muita vontade de lhes bater com a porta na cara, mas não o fez, lembrando-se de que miss Butcher era uma lady. No ascensor, arrependeu-se de ter gritado, tanto
por causa da voz como pelos rostos desconsolados das duas mulheres. A Salvatori, nessas ocasiões, parecia-se extraordinariamente com a cadela doente e a uivar que
fizera a viagem no Swanee e se afogara em Cartagena, ao saltar à água.
Ela não tinha carro próprio, mas alugava, ao mês, um monumento antigo e preto. Assim como miss Butcher, também aquele carro conhecera melhores dias. O homem, o sr.
Hadlock, era uma das relações do antigo grupo de miss Butcher que lhe arranjara aquele modo de vida. Usava chapéu de coco, que tirou ao vê-la.
- bom dia, sr. Hadlock, está bem? - preguntou Doris, amavelmente, como se tal amabilidade devesse acalmar as três mulheres ofendidas.
Em seguida, encaixou-se a um canto e, passado meio minuto, estava metida dentro do novo papel: Tatiana.
A Salvatori esperava-a à entrada do palco. Dorina riu-se, ao calcular a pressa com que a velha cantora tivera que vir pelo metro, para ali chegar antes dela.
Triunfalmente, agitando o corpo do delito, a Salvatori exclamou:
- Esqueceu-se da saca em casa!
Dorina pegou-lhe, deu rapidamente um beijo na vasta face avelhentada e foi ver no quadro em que sítio era o ensaio.
Abriu a porta da grande sala, donde tinham tirado tudo que estava ao centro, para dar espaço aos artistas. Dos lados, encontravam-se alinhadas cadeiras vazias e
um piano pré-histórico bocejava com a tampa aberta. A sala exalava o cheiro a transpiração de várias gerações de cantores e Del monte opunha-se tenazmente a que
se abrisse qualquer janela.
O cavaliere abraçou Doris quando ela entrou, depois foi ela que se inclinou e lhe beijou a mão. Fazia-o sempre como se, desta forma, se pudesse reconciliar com ele,
demonstrando a toda a gente que continuava
a considerar-se sua aluna. De resto, Marcela inventara uma história encantadora que andava nos jornais, em numerosas versões.
Depois daquela troca de amabilidades, ele tirou o chale do enorme pescoço e preparou-se. Também contara trinta e seis vezes até catorze, respirando fundo; Dorina
bem o sabia. Bateu com a mão no precioso sitio, por cima do estômago, onde se encontra o ar que sustém as notas e pareceu encontrar tudo em ordem.
-Mi, mi.-disse, andando de um lado para outro
- Mi, mi. mi.
- Daqui a dez minutos, teremos acabado. - prometeu o maestro sentado ao piano - O cavaliere desejava apenas ver a última cena, para ficar mais seguro.
Era Cranach, o mesmo maestro que dera coragem a Doris, depois da audição falhada. Desde então, passava, no teatro, por ser o homem que inventara a Rossi.
- Bem; podemos começar, eu não tenho pressa. apressou-se ela a dizer, afim de ver se tornava a atmosfera mais leve.
O segundo contra-regra, um indivíduo absolutamente incompetente e incapaz, puxou duas cadeiras para o meio da sala e marcou a giz os limites do improvisado palco.
Houve um segundo de silêncio antes do começo e, então, ouviu-se desde a sala dos coros ao andar superior, a ária das Camponesas de Eugênio Oneguine,
Delmonte deixou-se cair numa cadeira, encostou a cabeça nas mãos e cantou, murmurando: amato mio tuíta Ia vita, tutta Ia vita. Dorina apareceu, no momento requerido,
e aproximou-se dele.
com irritação, Delmonte berrou:
- Mas tu não vens da direita?
-Venho, sim. Não é verdade que vim da direita?
- preguntou ela ao contra-regra.
- Entrada pela esquerda. - respondeu aquele, depois de ter folheado o texto.
- Sim, mas atravesso o palco todo e desço, vindo da direita. - teimou a cantora.
- Não posso cantar para a esquerda e, além disso, tenho a mesa na frente!- berrou Delmonte.
Eram onze e dez.
À uma ainda ensaiavam. Haviam-se dito coisas abomináveis, injúrias mortais e inolvidáveis.
- Eu tirei-te do estrume! - gritava Delmonte Alimentei-te com dinheiro do meu bolso, senão terias morrido de fome; cantavas como uma cana rachada e agora queres
ensinar-me o que hei-de fazer no palco?
A Dórís não lhe ficava atrás.
- Se não pode voltar a cabeça para a esquerda em vez de a virar para a direita, sob o pretexto de que assim procedeu durante cinquenta anos, então é porque está
velho de mais para representar. O melhor é pedir a reforma.
Disse isto sem elevar a voz, o que foi de um excelente efeito depois dos berros do mestre. Mas logo a seguir, rebentou também e gritou para o contra-regra:
- Como querem vocês que eu desempenhe uma cena de amor se, em vez de um homem, me dão um pedaço de madeira podre?
O contra-regra transpirava de aflição. O maestro voltou-se, no banco do piano, e disse com tranquilidade:
- Não sejas insolente, Dorina. Também tu hás-de ser velha, um dia, e continuarás a querer cantar.
Houve uma pausa. Dorina mordeu os lábios que haviam gelado de raiva e desgosto. De repente, contra todas as espectativas, começou a sorrir. Sacudiu a cabeça.
Não, pensava. Era uma sensação maravilhosa e lamentava que o seu ofício fizesse com que ela a não gozasse por longos períodos.
- Não. Eu nunca serei velha. - disse, sorrindo com ironia e meiguice.
O silêncio tornou-se ainda mais profundo e ouviu-se, de novo, o coro feminino no andar superior. Toda a gente conhecia o estado de saúde da Doris. Primeiro, a Marcela
aproveitara-se disso afim de mandar para os jornais histórias misteriosas e comoventes.
E, além disso, viam-se os seus olhos a ficarem cada vez maiores e mais cavos, tornando-se, dia a dia, mais brilhantes, enquanto parecia que o corpo se lhe consumia
internamente, mordido por invisível labareda.
- Bem, bem. Continuemos. - disse Cranach, tocando um compasso.
Delmonte resmungou:
- bom; vens da esquerda e aproximas-te de mim. O ensaio continuou. Havia muito tempo que não
pensavam em poupar a voz. Cantavam ambos a plenos pulmões, embora tivessem que representar à noite. Delmonte tirara o casaco e o colete; arrancara a gravata e o
colarinho, e a camisa saía-lhe das calças, sem por isso lhe prejudicar o aspecto dramático e patético.
Doris sentia a roupa colar-se ao corpo e o cabelo à testa. À uma e meia, o duo estava afinado.
O maestro aconselhou:
- Agora, não diga mais uma palavra, vá-se deitar, descanse.
Dorina beijou a mão de Delmonte e ele afagou-lhe os cabelos. Ela atravessou rapidamente o palco para ir ao camarim livrar-se de toda aquela transpiração.
Encontrou lá não só a Salvatori mas também Marcela.
- Isto que é? Uma reunião pública? - informou-se, tirando o vestido e colocando-se debaixo do chuveiro, com a água a escaldar.
À luz do dia, a porcaria e a miséria do camarim, ainda eram mais flagrantes do que à noite. Dorina gostava daquela porcaria, do cheiro rançoso dos cremes, do miserável
aspecto que o teatro apresentava, mesmo quando se chegava à celebridade. Deitou um breve olhar para o toucador, enquanto a Salvatori lhe dava massagem à nuca, com
álcool. O coolie já ali não estava.
Em tom peremptório, Marcela disse:
- Venho lembrar-lhe o fotógrafo. É às quatro.
- Há-de ser precisamente no dia em que canto a Tosca!- respondeu ela, de mau humor.
Mortalmente fatigada, ainda tinha coisas a fazer.
- É para a Vogue. É importantíssimo.-suplicou Marcela.
Dorina enfiou outra vez o vestido, que lhe deu uma sensação de frescura e umidade. Teve um pequeno arrepio.
- O sr. Bryant trará o Juju. Vai ser uma foto encantadora. - prometeu Marcela.
Resignada, Doris preguntou:
- E onde se realiza essa cerimónia?
- Em casa. Não se fatigará. Agora vai deitar-se que é para logo ter boa cara. É muito importante.
- Deitar-me. vou mas é para o diabo! exclamou ela.
Às vezes, tinha que falar com violência para pôr em movimento o coração inerte.
- Deixem-me sossegada. Tenho coisas mais importantes a tratar. Se eu chegar atrazada, o fotógrafo que espere.
Atrás dela, a Marcela ergueu os braços ao céu. A Salvatori conduziu-a, pelo cotovelo, para fora do camarim. Depois, voltou quando a Rossi estava a pôr o chapéu.
- Não queres, ao menos, comer alguma coisa, minha filha? - preguntou com um olhar de cão fiel.
Às vezes, deixava-se tomar assim pelo tom antigo, o que ora enternecia, ora irritava Doris.
- Não se preocupe comigo.-respondeu a cantora. E saiu.
Numa leitaria, bebeu um grande copo de leite com malte, o que lhe aumentou a sede. Mandara embora o carro. Tomou um táxi e fêz-se conduzir ao escritório de Cowen
que se tinha mudado para a trigésima quinta rua, revestindo-se agora de mais respeitabilidade.
Cumprimentou-a friamente, parecendo melindrado com ela. Desculpando-se, Doris disse:
- Estou um pouco atrazada. Perdoe. Temos que partir imediatamente. Prometi estar às três em casa do Chander. Ele tem imenso trabalho.
- Muito bem. - respondeu lacònicamente o advogado, afastando-se para a deixar passar.
Dorina compreendia a sua atitude ofendida mas nada podia fazer. Tratava-se de o decidir a colaborar com o advogado Chander afim de trabalharem para obter a libertação
de Basílio. A data, a partir da qual se podia pedir a liberdade sob palavra, aproximava-se, havendo esperança de se conseguir o desejado. Cowen fizera minuciosos
preparativos que não inspiravam, grande confiança à Doris. Preferia entregar o caso a j Chander que tinha a sensacional e suspeita reputação dei ter posto em liberdade
quatro assassinos e três ladrões de Bancos. Já entabolara com ele relações que haviam custado muito dinheiro - complicadas mas cheias de esperança. Apreciava-lhe
o cinismo que não recuava em face de nada.
Afim de apaziguar Cowen, deu-lhe o braço. Enquanto atravessavam os dois quarteirões que os separavam do escritório de Chander, Cowen deixou bruscamente explodir
o que o magoava.
- Não vejo o que o Chander irá fazer além do que eu tenho feito! Eu servi enquanto a senhora não teve dinheiro. Fui o melhor amigo enquanto não pôde pagar. Agora
que está rica eu já não presto para nada. O Chander! Sempre quero ver o que ele fará.
Dorina parou, em plena Avenida Maddison e aproximou-se de Cowen, tão perto que ele recuou um passo. E disse, em voz baixa:
- Meu Deus, não vai agora afligir-me ainda mais, an ?
- Nova Iorque inteira sabe que você é cruel e impiedosa desde que triunfou.-disse ele ainda. Depois calou-se, amuado.
Sem elevar a voz, ela explicou:
- Mas, meu caro, não compreende do que se trata? Preciso de ter o Basílio, o mais depressa possível. Quem o porá na rua? É-me indiferente. seja quem for: o que é
preciso é pô-lo cá fora.
- Se tivesse um pouco mais de paciência. Mas Doris cortou logo:
- Paciência? Oh, mas estou farta de a ter! Já não posso ter atenções com mais ninguém, compreende?
Só uma coisa me interessa no mundo: que o Basílio saia da prisão.
Cowen não respondeu logo. E depois preguntou:
- Pode dizer-me como Chander o conseguirá?
- De uma forma contrária à sua. Você ameaçou, assustou toda a gente com o seu palavriado comunista, com os seus jornais socialistas. Chander é um homem da sociedade,
conhece os meios necessários e as portas falsas. Consegui-lo-á com dinheiro. Ele depois lhe explicará. Há o senador Forster, que tem enorme influência sobre o Boad
of Parole. Ele e o Chander fizeram sair uma quantidade de gente antes do termo da condenação.
- Sim, alguns gangsters.
- Ele bem sabe como há-de fazer. Se o Forster não o conseguir, ninguém o conseguirá.
- O Basílio não é um criminoso que possa oferecer-lhe metade do que roubou.- exclamou Cowen - É um bandido, um traficante.
Doris encolheu os ombros e replicou, satisfeita:
- Ainda bem .
Azedo, o advogado murmurou:
- Lavo daí as minhas mãos. lavo daí as minhas mãos.
Sob os raros cabelos grisalhos, a rosada pele havia tomado um tom de carmim. Irritados, entraram no hall de falso mármore do grande prédio de escritórios, onde Chander
tinha o seu cartório.
Sala de espera. Longo tempo de impaciência. Conversa com Chander que era encantador e optimista. A Dorina começou por falar muito baixo, afim de poupar a voz para
a noite. Mas o assunto era ardente, demasiado importante e, em breve, a discussão se tornou ruidosa. Cowen apelidou o senador Forster de político podre, bandido
de mãos sujas e digno representante do capitalismo em decomposição. Chander limitou-se a sorrir, oferecendo cigarros. Em tom conciliador, Dorina disse:
- Até hoje, não tivemos sorte com as pessoas honestas.
Mas, de súbito, ficou aterrada: estava rouca.
Enrouquecera, falando muito alto, quatro horas antes do espectáculo. Contraiu a garganta e sentiu nitidamente a comichão seca, pela qual começava a rouquidão. Tomada
de pânico, retirou-se, abandonando os dois advogados, surpreendidos com tal deserção.
Na escada, pensou:
"É preciso que miss Butcher envie um cheque importante ao Cowen".
Cinco e cinco. Chega a casa tão açodada, como se tivesse vindo a correr desde a Avenida Maddison.
- O fotógrafo ainda cá está?- pregunta, em voz imperceptível à Marcela que lhe abre a porta e engole todas as censuras preparadas em face do seu rosto febril e pálido.
- Estou rouca! - murmura, voltando-se para a Salvatori, a qual se precipita para a cozinha. Ameixas secas, ovo batido com azeite e açúcar. Limonada quente. Pulverizador.
Cai-lhe das mãos trémulas um copo que se parte. A Salvatori respira. Vidro partido é bom preságio: sucesso que se aproxima.
Na sala, o fotógrafo instalou pequenos projectores e uma grande máquina. O Juju salta na frente de Doris, pequenino novelo de seda cor de areia, doido de alegria
e exuberância. Ela agarra-o e mergulha o nariz nos pêlos macios. Repousa um instante no seu leve calor e o fotógrafo tira uma foto.
- Não! - murmura Dorina, em tom suplicante - Estou horrível, preciso de me arranjar primeiro.
Mas ele tira-lhe outra, enquanto ela fala. Entusiasmado, diz:
- Não compreendo por que motivo o cinema ainda a não veio buscar, miss Rossi!
Trabalha nervosamente, o fumo do cigarro sobe-lhe até ao olho esquerdo. A Salvatori entra com todos os seus remédios e a Doris bebe, com reconhecimento e esperança,
a limonada quente.
- Enrouqueci bruscamente! -murmurou ela, em tom queixoso, quando o velho Bryant saiu da biblioteca, parando no meio da sala, com um sorriso divertido.
- É preciso deixar a senhora descansar, ela tem que representar esta noite. - disse ele ao fotógrafo.
- Mais uma fotografia, só uma!
Doris estava habituada a fazer-se fotografar; apresentava sempre o perfil esquerdo, o que a favorecia um pouco. O Juju também sabia escolher a sua pose e parecia
divertir-se imenso com aquilo.
- Agradeço-te teres vindo com o Juju. - murmurou Doris, depois da saída do fotógrafo, que deixou atrás de si o cheiro do magnésio - Vens à Ópera? preguntou ao ver
o velho Bryant, de casaca.
- vou; e se não estiveres muito cansada, depois iremos dar uma volta.
Doris olhou-o, admirada.
- Nunca estás fatigado, Franck! - disse a sorrir.
- Raramente. - concordou ele - O meu fraco consiste precisamente numa estranha avidez em face da existência.
- Possuir tudo?-preguntou ela, sorrindo sempre. Sentia-se consolada por ter o velho Bryant como amigo.
- Tudo possuir, não. Mas tudo contemplar, sim. Eu sou um espectador de nascença. - respondeu, hesitante - Mas agora não se trata de filosofar, mas sim de repousar.
- É verdade.-concordou ela, reconhecida. Desde que se sentia rouca, estava extraordinariamente meiga
- Posso dormir ainda umas duas horas. E tu, que farás?
- Irei ao clube, onde jantarei. E encontrar-nos-emos depois do espectáculo.
- Bem. Então até logo. - disse em alemão, dando-lhe a mão a apertar.
- Até logo. - respondeu ele, em francês.
Foi-se embora. Ò Juju ficou junto de Doris e, provisoriamente, começou a roer o canto de uma almofada do sofá.
Estava morta de fadiga. Mas assim que ficou na cama, rodeada de escuridão e silêncio, não conseguiu dormir. Deitava-se sempre antes do espectáculo mas nunca podia
dormir; era uma coisa sabida. Sentiu subir-lhe pelo corpo acima o medo das primeiras representações: anunciava-se de uma forma irresistível. Como todas as doenças
graves, começou por um arrepio. Batia os dentes, enrolava-se na roupa, tentando aquecer. Mas não conseguia dominar nem o frio nem o tremor e acabou por deixar que
os dentes batessem à vontade. A Tosca começara já no seu cérebro. As árias e as entradas perigosas andavam no ar.
Em baixo, a noite da grande cidade chegara eterno murmúrio como que ouvido no interior de um búzio. Ao canto da rua, os travões dos carros guinchavam sempre em face
de um sinal de estacar. Do outro lado de Central Park rugiam os liões. Esse barulho chegava até ao quadragésimo oitavo andar, mas como um gemido.
Doris levantou-se e, sempre gelada, dirigiu-se para a janela afim de a fechar. O quarto estava demasiadamente aquecido. Acendeu a luz e fechou os olhos. A Salvatori
entrou sem fazer ruído e colocou-lhe uma botija sob os pés gelados. Deram seis horas.
Levantou-se. Estava cheia de impaciência, quási incapaz de esperar pela hora do espectáculo. Esquecera-se de que julgava estar rouca.
- Minha senhora. - chamou em voz alta e a voz saiu sã e clara.
Enquanto tomava o banho quente, a Salvatori fiscalizava-lhe as entradas. com a partitura na mão e agitando um lápis, estava sentada ao lado da banheira, fazendo
os sinais como um ponto consciencioso. Doris não cantava, entoava apenas por alto, detendo-se nos sítios mais difíceis. Eram aquele banho quente e aquele contiôle
que lhe restituíam a confiança em si própria, antes da representação. Miss Butcher tinha ordem rigorosa de se tornar invisível neste período de tempo. Nesses momentos,
Doris não podia suportar-lhe o escandalizado rosto. Produzia-se então nela uma metamorfose
tão misteriosa e inquietante, como a da larva em borboleta. Sem dar por isso, tornava-se absolutamente uma Tosca. Quando, duas horas antes de subir o pano, saiu
de casa com a Salvatori, já tinha o elástico andar próprio do palco.
- Boa tarde, sr. Hadlock - disse, sentando-se ao lado do chauffeur-gentleman.
A Salvatori instalou-se no fundo do carro e lá foram indo lentamente de um sinal de paragem a outro.
"Lola dei dollato perche, perche signor." pensava Dorina. Ou antes, não pensava em nada e as árias da Tosca nasciam em si sem ela intervir. Apreciava imenso este
quarto de hora, esta espera, o aperto de coração, a certeza de que nada, nada no mundo a poderia impedir de subir ao palco e de cantar. N3o sentia como tinha os
lábios cerrados e como, à luz dos candeeiros, se lhe acentuava o enérgico desenho.
"Venci!, pensava. Estava cheia de orgulho por ter triunfado e cheia de medo, à medida que se aproximava do teatro.
Sob a maquilhagem, aquele medo e aquela excitação, tornavam-se quási intoleráveis. Era só no amor que existiam tensões semelhantes, no grande amor, no amor desgraçado,
naquele que ela sentia pelo Basílio e não nos pequenos amores satisfeitos com os Renatos.
- Onde está o coolie ?-preguntou Dorina, fixando o lugar vazio, em face do espelho.
- Tirei-o. - disse a Salvatori.
- Tiraste-o! - exclamou ela - Tiraste o coolie? É tudo quanto há de mais simples, realmente! Estás doida? julgas que poderei cantar se me tirares a minha mascotte
- Mas foi por ordem sua! - resmungou a Salvatori, muito ofendida.
A Rossi estava a puxar o cabelo para trás, colocando a banda branca em redor da cabeça, para começar a pintar-se para a cena.
- Bem sabes que não deves dar ouvidos ao que digo, quando estou nervosa. - disse com inesperada meiguice.
A Salvatori riu-se e fez aparecer o coolie. Tinha-o escondido sob a almofada do sujo divã que se via a um canto. Um espelho pequeno encontrava-se colocado na frente
de Doris, sobre a mesa pintada com tinta ordinária. De um cabide pregado na parede, viam-se os trajos.
Dorina fez um leve aceno ao homenzinho de zinco, enquanto manejava os lápis e os cremes. Bem disposta, pensou: "Hei-de falar ao Qatti-Casazza por causa da ópera
do Renato." No momento em que pintou os olhos, ficou absolutamente silenciosa e concentrada.
Pior! é campi immensi, cantava qualquer coisa nela. Reinava um estranho silêncio nos camarins femininos, porque ela desempenhava o único papel de mulher, na ópera.
Faziam-lhe falta o murmúrio e os cantos a meia-voz que, nas outras noites, atravessavam as paredes e aumentavam a voluptuosa excitação dos seus nervos. Limpou os
dedos ao velho roupão coberto de nódoas e tomou a beberagem escaldante que a Salvatori acabara de preparar no fogão a gás. Era uma droga com brometo, uma mistura
que sabia a caldo e a ovo cru. Dorina acreditava no efeito mágico daquela mixórdia que, por essa razão, dava bom resultado. Grata, bebeu-a às colheradas, antes de
pintar a boca. Entretanto, a Salvatori ia fazendo certas observações tendentes a dar-lhe coragem.
- A casa está vendida. Quando tu cantas, minha filha, esgota-se a lotação. É preciso que ataques un folie amor exactamente como da última vez. Foi maravilhoso, i
Viste como o público retinha a respiração?
Ela bem o sentira mas não queria falar nisso. Esta sensação de êxtase, de inebriamento que dela se apoderava durante breves minutos, quando estava no palco, quando
a sua garganta dava tudo que lhe pedia, quando o público deixava de respirar - era tão intima como o amor.
Voltou-se para a Salvatori e achou que ela ocupava muito lugar. O calçado rangia, a sua voz era demasiado metálica e os seus gestos parecia sempre que
eram feitos ostensivamente, afim de serem vistos pela geral.
- Agora deixa-me só e, daqui a dez minutos, manda-me a cabeleireira.
A Salvatori desapareceu sem dizer palavra: ultrajada sombra de cem quilos.
Doris continuou a maquilhar-se, depois deitou os boiões para a caixa, que era aquela velha prenda que a Salvatori lhe dera outrora. Depois da saída desta, o relógio
da parede começou a fazer barulho.
Dorina esperava pelo começo da ópera, impaciente como se se tratasse de uma entrevista que temesse e, ao mesmo tempo, ardentemente desejasse. Nada se podia comparar
àquela espera, nada no mundo.
Era sempre uma das primeiras a chegar. Só agora, os corredores se começavam a animar, ouvindo-se vagamente os músicos afinando os instrumentos. A harpa, surda e
leve; o oboé gritante e rebelde e, em seguida, o humorístico soar de um baixão.
Bateram à porta. Flores. Dois ramos e uma corbeille. Nesta estava preso um cartão de visita: Uma velha amiga e admiradora poderá vê-la no intervalo? Juddy Long".
Doris deitou fora o cartão, sacudindo a cabeça. Foi só no segundo acto que descobriu quem poderia ser aquela admiradora. Long era um escritor que acabava de obter
um fulminante êxito fundando uma Revista. Juddy Long, era, sem dúvida, a Juddy Bryant, que se chamara também marquesa de la Brunière. Admirou-se um momento, ao ver
as mesmas pessoas reaparecerem indefinidamente, com anos de intervalo, surgindo e desaparecendo.
Bateram outra vez à porta. Era a cabeleireira, uma jovem espanhola, de mãos maravilhosas.
Bateram de novo. O doutor Wintrop, agradável velho de cabelos brancos e bigode preto.
- Então que fizemos esta tarde? - preguntou ele, com as maneiras optimistas que adquirira em trinta anos de prática teatral.
Falava aos artistas como se fossem crianças; Doris quási esperava que ele lhe metesse um chocolate na boca.
- Então continuamos a ter a nossa rouquidão nervosa, antes de cada espectáculo, não? Sempre para meter medo ao nosso bom médico, an? Depois da primeira nota desaparece,
é o que nos vale.
Bateu-lhe no ombro, como se faz aos cavalos, confiando no efeito apaziguador de tal gesto. No limiar, deitou a Doris um olhar de secreta inquietação.
- Se comêssemos mais um pouco, seríamos menos nervosos, - disse ainda antes de fechar devagarinho a porta e de continuar o seu caminho nas pontas dos pés.
Ia ao outro lado do palco, ao lado dos homens, para ver o Delmonte.
Dorina readquiriu a sua rouquidão precisamente no instante em que o médico lha lembrou. Saltou da cadeira e começou a correr dum lado para outro, no estreito e comprido
aposento, que se parecia com uma jaula. Tirou de uma gaveta algumas ameixas e pôs-se a mastigar, com aplicação e confiança a massa resistente e demasiado açucarada.
Tentou cantar, em voz baixa, a sua primeira entrada: nenhum som se ouviu. O pavor fez-lhe doer o coração.
- Irra! - exclamou.
Ouviu-se uma campainha. Era o primeiro sinal, dez minutos antes de levantar o pano. A ópera começava ao terceiro sinal. Doris tirou rapidamente o roupão e a camisa,
deixou cair tudo no chão e procurou o trajo.
Bateram à porta.
- Estou nua. - respondeu, completamente rouca.
- Maestro em serviço assexual. - responderam-lhe de bom humor.
Apanhou o velho roupão e colocou-o na sua frente. Cranach abriu a porta.
- Está tudo em ordem? Não se esqueça, no segundo acto, de olhar para mim em pieta, pieta di me. Não comece antes do meu sinal.
- Bem. Agradeço-lhe.- respondeu, aflita. Atrapalhava-se sempre naquele ponto.
Renato obrigara-a a trabalhá-lo com minúcia. Tinha a certeza de que também hoje não entraria a tempo e arreliava-se por causa do Cranach.
Segundo sinal.
- E ainda estou nua! - exclamou, tomada de pânico.
- Minha senhora! Mas onde é que se meteu?- gritou, através da porta.
Já não estava rouca, mas não deu por isso. A Salvatori já ali se encontrava, fazendo-lhe enfiar o vestido Império de veludo cinzento. Ajoelhou-se diante da Doris,
tirou-lhe os sapatos da rua e calçou-lhe os do papel. Durante todo esse tempo, Dorina não deixou de a injuriar, palavriado que a velha cantora ouvia como se fosse
chuva a bater nos vidros. Antes de os sapatos estarem abotoados, a Rossi fugiu e correu para o palco. Chegou ao buraco do pano, dois minutos antes do terceiro sinal.
Lá estavam eles na plateia: a multidão semelhante à uma onda movediça e perigosa. Em seu redor, via o palco, a luz, a ribalta, a caverna do ponto onde ele mostrava
o seu enrugado rosto de antigo actor. Lá estavam a igreja, o altar, a escada do pintor. O contra-regra e um maquinista ajudavam, naquele momento, o velho Delmonte
a trepar ao seu posto aéreo. Tinha na trémula mão um copo de água que escondeu atrás da escada. Quando Delmonte cantava, dissimulava por toda a parte copos de água,
debaixo das escadas, nos bastidores, por trás das cadeiras e até no drapejamento das suas amplas capas. Dorina sorriu e ergueu o olhar. Lá em cima era o mundo dos
maquinismos, mundo fantástico e familiar de que tanto gostava. Os projectores acendiam-se, assobiando. De repente, do outro lado do reposteiro, os instrumentos que
se estavam afinando, ficaram silenciosos.
- Saiam do palco! - gritou alguém. Dorina correu para os bastidores.
Terceiro sinal. Um velho maquinista aproximou-se dela e cuspiu três vezes sobre os seus sapatos. Não poderia cantar sem esta cerimónia.
Começou o prelúdio.
Doris correu para o seu camarim e pôs o chapéu. A Salvatori meteu-lhe na mão a longa bengala Império;
estava agora tão comovida como a própria Rossi. Fêz-Ihe o sinal da cruz sobre o peito. Por cima da porta, acendeu-se uma lâmpada vermelha. E ainda para maior segurança,
um empregado veio dizer:
- Daqui a três minutos.
Doris empurrou com o corpo a pesada porta de ferro que dava comunicação para o palco, passou, sem nada ver, através de um grupo de coristas e colocou-se nos bastidores.
Um chefe de canto, munido com a sua partitura, colocou-se junto dela. Era o homem que devia mandá-la avançar.
- Presto. - cantava Delmonte - presto, presto. Tremiam os joelhos de Doris. Não sentia o ar no
peito, não tinha som nenhum na garganta. Era demasiado tarde para pensar em aclarar a voz.
- Um, dois, - contou ela.
- Mário! - cantou, ainda, nos bastidores-Mário. Mário.
Cantava! Podia cantar!
Respirou, ao entrar em cena. Sentiu o público, sentiu o palco e, sobretudo, sentiu-se a si mesma com a sua voz-a sua voz maravilhosa e perfeitamente límpida.
Mas, no mesmo instante, foi transportada para muito longe, para a Roma de 1800. Era absolutamente a Tosca e, ao mesmo tempo, era a Doris a cantar a Tosca, um dos
seus melhores papéis, na Ópera Metropolitana.
Foi uma bela noite, embora Delmonte não estivesse muito feliz. Dava tudo quanto podia, o máximo, porque também ele queria obter êxito. Nunca o velho cavaliere cantava
tão bem como quando contracenava com a Rossi. Diziam os jornais que era por ela ser a sua melhor aluna, mas a Doris pensava: "é porque me detesta e tem inveja de
mim".
Unindo as suas mãos trémulas e úmidas, vieram agradecer, depois do primeiro acto. Quando o pano não tornou a subir, Delmonte voltou-se e, sem dizer uma palavra,
dirigiu-se para o seu camarim. A Rossi precipitou-se para o maestro Cranach que saía, limpando a transpiração, de uma escada subterrânea.
- A orquestra toca muito alto! - gritou-lhe ela Isto é uma ópera e não um concerto sinfónico. Se continuam assim, estaremos completamente mortos antes do fim do
terceiro acto.
- Bem sabemos que só podes cantar com a condição de fazeres grandes cenas nos intervalos. - respondeu tranquilamente o maestro.
Os maquinistas transportavam cenários, passando entre eles. A Salvatori levou a Rossi para o camarim.
- Muda de fato em vez de fazeres zaragata. Poupa a voz; esse homem não merece que te ocupes dele.
De repente, Doris teve a impressão de que aquele maestro era o seu maior inimigo. E disse, enquanto a Salvatori lhe tirava um vestido e enfiava outro:
- Faz de propósito. O que ele quere é salientar-se com a sua orquestra.
Murmurou ainda algumas acusações injustas, sabendo muito bem que o eram. Mas era um meio inconsciente para manter a excitação até ao primeiro sinal.
Pó de arroz. Sinal da cruz da Salvatori.
- Ajuda-me.-murmurou a Rossi, abrindo apressadamente a partitura e procurando a passagem onde sempre tropeçava.
Ressentida, pensou:
"Hoje, não lhe darei essa alegria."
Um dois e Pieta; um dois e Pieta. Luz vermelha. O acto está a começar. Doris encontra-se por trás de uma grande janela, a luz do projector passa por ela e cega-a.
Está bem assim. Não quere ver as coristas com as quais deve cantar a difícil cantata. Fecha os olhos. A sua voz sobe acima das outras, ascende e paira. Doris deixa-se
cair sobre um monte de cordas e, completamente oca, espera pela próxima entrada em cena.
A ópera continua com os seus acontecimentos ternos, cruéis e dramáticos. Doris representa com o cruel Scarpia enquanto o seu amante está a ser torturado no aposento
contíguo. Scarpia arranca-lhe a confissão, constrangendo-a a entregar-se. Ela mata-o num beijo
e coloca três velas perto da sua cabeça. Tudo aquilo é teatro. Nada tem que ver com a realidade. Tudo se passa num outro planeta onde as pessoas cantam em vez de
falar e onde os sentimentos são simples e nítidos como, na realidade, nunca se apresentam. Depois do segundo acto, Doris ficou alguns minutos no camarim e ehorou.
Chorava sempre na Tosca. As lágrimas vinham um pouco antes do fim da oração, paravam durante breves instantes e voltavam com o último rolar do tambor que subia ao
fundo da cena.
Tornou a pintar-se, lavou as mãos e deixou-se ficar com o mesmo vestido de seda branca com mil lantejoilas de prata. Só mais tarde devia deitar um abafo negro pelos
ombros.
Pôs-se a caminho, à procura do contra-regra que estava a um canto, discutindo em voz baixa com o homem dos holofotes.
- Fará o favor de lembrar ao cavaliere que eu venho da esquerda e que paro atrás dele. - pediu ela, com doçura.
- Porque lho não diz a senhora? - respondeu o interpelado, de mau modo.
A lua, que devia aparecer no fim do acto, ainda não estava acesa - aquela preciosa lua que deitaria a sua lívida luz sobre o cadáver do cruel Scarpia.
Doris bateu na porta do camarim de Delmonte. Entrou e começou por lhe beijar a mão. Ele consentiu: Rossi não era sua aluna?
- Queria só lembrar-lhe, cavaliere, que desço pela esquerda e paro atrás de si. - disse, com toda a humildade que ele poderia esperar dela.
Mas o velho cantor enfureceu-se de súbito.
- Mas por quem me toma, não me dirá? Serei um idiota, um parvo? Desces pela esquerda e, paras atrás de mim e depois eu volto-me. É uma interpretação ridícula, mas
está bem; consinto nisso. Não me fales mais em tal.
Pegou na cabeleira e pô-la na cabeça. Doris retirou-se.
Último acto. Doris está nos bastidores e ouve
Mário cantar-lhe o seu adeus. Gosta deste acto, dos sinos de Roma a tocar, da fresca voz infantil vindo de atrás do palco e da contida exaltação desse canto derradeiro.
- O Delmonte está a cantar maravilhosamente. disse ela à Salvatori de pé junto dela, com o abafo negro na mão.
Entrou em cena e deu seis passos para Delmonte. Parou atrás dele-e chegou o momento da sua entrada.
Mas Delmonte não cantou - e o coração de Doris parou. Esqueceu-se de tudo. Não se voltou e não cantou; escondia Doris e também a mão do maestro. Ela entrou fora
de tempo e ele também. Dificilmente, tropeçando, lá acabaram por tornar a meter-se no compasso, entrando de esguelha no duo para onde deviam ter deslizado como num
barco, em imponderável gôndola de sonho. A Doris teve, durante segundos, a sensação de que ia morrer ali mesmo, no palco, em pleno terceiro acto da Tosca. O seu
coração parou completamente durante algum tempo. Mas não deixou de cantar. Por fim, a invisível mão que bem conhecia, deu-lhe uma pancada e ele tornou a pôr-se em
movimento.
O duo, as derradeiras notas, o fim.
Doris subiu às ameias, cantou o seu si bemol e de cima do castelo de Saint-Ange lançou-se para cima do colchão que cheirava a pó. Aí ficou estendida, durante alguns
segundos, morta de cansaço.
- Rossi! Rossi! - pedia o público.
Pegando na trémula mão de Delmonte, a transpirar, ela veio até à boca da cena. Rajada de aplausos, assim como que a explosão de uma tempestade.
Viu no rosto do cavaliere que a envenenaria, se pudesse.
- É a última vez que canto contigo! - sibilou ele, enquanto o pano descia - Não quero deixar-me ridicularizar por uma principiante. Não será uma reles cantora, como
tu, que há-de inferiorizar-me.
Aplausos, saudações, sorrisos, beijos, aplausos. Depois ouviu-se Delmonte gritar:
- Toda a gente sabe de que meios ela se serve
para ter sucesso. Não são nem o canto, nem a voz, nem a arte!
E desapareceu no camarim. Doris precipitou-se para o seu, tomada de um riso histérico.
Muita gente a rodeava. Marcela com dois homens.
Murmurou-lhe ao ouvido:
- São jornalistas; é importante.
Dorina sorriu, tomando a expressão destinada ao público.
Havia uma senhora de rosto ponteagudo e sobrancelhas depiladas que falava alto e muito depressa, com sotaque inglês.
"É a Juddy", pensou Doris, sem ter absoluta certeza.
Beijos que cheiravam ao "Ouro" de Coty, nas duas faces. Outras pessoas, outros beijos. Um telegrama. Os telegramas só podiam ser entregues depois do espectáculo.
Contra todas as probabilidades, ela pensou: "Basilio". Mas os presos não podiam mandar telegramas. Era do Cowen: "Desolado renunciar colaboração Chander. Métodos
totalmente diversos. Desejo triunfo assim como ao pobre Nemiroff."
Doris apertou os lábios. No meio do camarim cheio, em plena glória, encontrava-se, de súbito, numa pequena estação aonde Cowen lhe trazia o Basilio. Sorriu inconscientemente
para um rapaz que lhe estendia um álbum de autógrafos e uma permanente, enquanto pensava: "Tenho que falar amanhã ao Cowen. Ele è incorruptível." E dando um pulo
para a ironia: "Esperemos que o tal senador Forster o não seja."
A Salvatori fez sorrir toda a gente e envolveu a cantora no seu casaco de peles, como se fosse uma criança. Ela bocejou, na escada. Parou em frente da lousa, como
todos os que saem do teatro, pela porta dos artistas. Às onze horas, ensaio de Eugênio Onéguine. Tornou a bocejar e resmungou:
- Querem dar cabo de nós.
Fora, esperava-a o velho Bryant. Ela pensou que o havia esquecido totalmente, mas ficou satisfeita, ao vê-lo. Estava acompanhado por Vanderfelt, o advogado da moda
que ficava lindamente, de casaca.
- Que vamos fazer ? -preguntou Bryant, depois de terem entrado para o pequeno carro barato que ele próprio guiava - Casino? Pátio? Stúdio-Club? Quinquagésima nona
rua ?
- A minha cama. - disse Doris - Estou morta. Tão cansada que nem vejo nada.
Inclinou a cabeça, não para as costas do assento, mas para cima do braço de Vanderfelt. Estava demasiado fatigada para reparar fosse no que fosse.
- Quando estiveres na cama, não poderás dormir, depois duma representação destas. - disse o velho Bryant, pondo o carro em marcha.
- É verdade. - concordou ela, com docilidade. Fechou os olhos, sorrindo.
Vanderfelt fez deslizar o seu olhar, de Doris para o velho. E observou que, depois da falência, ele tinha mais cabelos brancos do que agora. Se os pintava, para
alguma coisa era. E concluiu: "Não seria a primeira vez em que ele e eu estaríamos de acordo sobre a mesma mulher."
O velho Bryant tinha mais quatro anos do que ele, seu amigo de vinte anos.
Doris parecia ter adormecido mas, ao chegar ao Casino, estava perfeitamente acordada. A Nova Iorque um pouco periclitante e tão frágil, da crise. Algumas pessoas
deram palmas à entrada da Rossi. Vanderfeit tirou duas garrafas de champanhe de debaixo da mesa. Também Shugers ali se encontrava, com uma loira. E também Franklin
Bryant: tinha um chapelinho de papel na cabeça, e estava a cair de bêbado.
Doris tinha vertigens mas sentia-se feliz. Estava calma como depois de uma noite de amor ou de ter soluçado muito. O triunfo! Sim, o triunfo tem um sabor esplêndido,
não tão bom quando se possui, como quando se deseja, mas enfim. O Forster porá o Basilio em liberdade. "Ainda bem que ganho muito dinheiro", pensou ela. Sorriu ao
Shugers e piscou-lhe familiarmente um olho. Também ele fazia parte do público, portanto era preciso tratá-lo bem.
Às três da manhã, o velho Bryant conduziu-a até à
porta de casa, que abriu, enquanto ela pensava: "E tenho ensaio às onze . às onze."
- Boa noite. Cantaste maravilhosamente. - disse Bryant.
Estava na sua frente com o chapéu na mão; a neve caía-lhe em grossos blocos moles sobre o cabelo bem penteado. Doris reflectia.
- Queres subir ? - preguntou, bocejando.
- Subir ? Que ideia!-replicou Bryant, friamente.
- Sim, era para levares o Juju. Poderias tomar um highball.
- Obrigado. Estás a dormir em pé.-replicou ele, gentilmente - Amanhã, de dia, virei buscá-lo.
"Como quiseres", pensou Doris. Hesitou ainda um momento, antes de entrar em casa. Depois no ascensor, a cair de sono, murmurou: "Aqui está um que não quere nada."
Basílio estava sentado na biblioteca da Doris, à espera. Na sua frente, havia chá, bolos e uma garrafa de brandy. Mas não podia comer nem beber e custava-lhe a respirar.
A única coisa que fazia para encher aquela eternidade, era fumar, acendendo uns cigarros nos outros. Como não estava habituado, sentia vertigens e as pulsações do
coração acelerado. De tempos a tempos, aparecia uma senhora que se apresentava como a secretária de Doris, que lhe preguntava:
- Deseja alguma coisa ?
- Não, obrigado, faça favor de se não incomodar.
- respondia cada vez mais delicadamente.
Devagar, a cólera ia-se apoderando dele, exactamente como no dia em que pregara com uma pá na cabeça de um guarda. Uma semana de cela negra, a pão e água. E preciso
saber o que significam estas
palavras "cela negra", para uma pessoa se espantar por ele de lá ter saído em seu perfeito juízo.
E agora encontrava-se ali sentado, de uma forma ridícula, num sofá coberto por espesso cetim preto, na cabeceira do qual brilhavam duas lâmpadas em vasos chineses.
Ali não havia baratas e ratos a saltarem à cara das pessoas e só desejava não ter trazido consigo algum bicho para a elegante biblioteca de Doris. Pôs-se a rir,
de tal forma aquilo era um pensamento estúpido. A secretária da Doris. O chauffeur da Doris. Ela vivia ricamente e obrigava-o a esperar. Obtivera quarenta e oito
horas de licença. Durante cinco horas, fizera a viagem de Baxterville a Nova Iorque, com Mr. Hadlock, o motorista correcto e silencioso. Havia uma hora e meia que
esperava o regresso da Doris. Pegou num jornal, folheou-o e deixou-o cair.
- Pensou: "Porque não me vou embora?" Levantou-se. A secretária apareceu.
- Deseja alguma coisa?
- Acho que é melhor ir-me embora. - respondeu ele.
Deitou o cigarro para o chão e esmagou-o com o pé. A secretária ergueu as sobrancelhas e disse, retirando-se:
- Madame Rossi telefonou do teatro. Vem imediatamente.
Basílio deixou-se cair outra vez no sofá. Eram quási cinco da tarde. Naquelas quarenta e oito horas tinha gasto quási sete a esperá-la. E pensou: "Quando chegar,
dou-lhe uma sova".
- bom dia, Basílio. - disse ela, passados dez minutos.
No momento em que a viu entrar, ele sentiu que se lhe paralizavam as pernas e não conseguiu levantar-se.
- bom dia, Doris. - respondeu em voz abafada. Trazia um casaco de pele e um insolente chapelinho; a sua beleza era artificial e a sala ficou logo cheia do seu perfume.
Ainda nío passara o limiar e já ele sabia que a amava mais violentamente do que nunca, estando pronto a disparar outro tiro por sua causa.
Ela aproximou-se rapidamente, e esse trajecto, da porta ao sofá, pareceu-lhe muito longo. No meio, arrancou o casaco e o chapéu, deixou-os cair no chão e correu
para os seus braços.
O que devia ser uma sova, foi um beijo. Beijaram-se com raiva, com desespero, num beijo palpitante e sem fim. Depois, Basílio ficou em pé, na sua frente, com os
braços tombados e distendidos, notando, com surpresa, que ficara a sorrir. Ela pegou no lencito e colocou-o no lábio dele, que ficara a sangrar.
- Anda, sentemo-nos aqui.
Fechou a mão dele entre as suas, num gesto cheio de doçura e de antiga intimidade e puxou-o para o divã. Ele murmurou:
- Obrigado. Esperei por ti cerca de cem mil anos.
Ela acolheu esta brincadeira com desmedida alegria.
- Não mudaste, Basílio, és sempre o mesmo.
- Mas tu mudas; cada vez que te vejo, és outra mulher.
Ela riu-se e replicou:
- É porque tenho uma porção de envólucros, como a flor em botão. Como me viste primeiro, devia parecer-te muito simples. Anda cá, vou mostrar-te uma coisa.
Ele teve medo, ao vê-la abrir a porta do quarto, um aposento enorme que tinha qualquer coisa de falso e abafado. Tapetes brancos, flores de prata. Teve-lhe um ódio
súbito. Dava a impressão de que ela devia ter dormido ali com muitos homens. O leito era grande como um prado. Não queria vê-lo e não desfitava dele os olhos.
- Olha. - disse Doris, acendendo um candeeiro. Viu uma forma avermelhada, em barro frágil, que
não tinha mais de cinquenta centímetros de altura.
Que é? - preguntou, fingindo que a não reconhecia.
- Comprei-a. - disse ela, emocionada - Mandei o Raphaelson à sua procura e levámos quatro meses para a descobrir. Mas agora é minha.
Baixou-se rapidamente e depôs um beijo espontâneo mas teatral nas geométricas formas da pequena estátua. Basilio achava tudo aquilo ridículo, tanto a estátua como
a atitude da Doris. t
- É pena. - murmurou - Às vezes, ainda pensava que poderia ter chegado a ser um bom escultor. E não me lembrava então de ter feito semelhante porcaria. Mais uma
ilusão que se foi.
Doris, aflita, ergueu os olhos.
Pareceu-lhe mais pequena, ou antes, mais delgada, mais leve. Nunca tivera uns olhos assim tão grandes. Estava pintada, mas as veias apareciam sob a pele. De repente,
desejou-a de tal forma, que os lábios ficaram brancos.
- Vem . - murmurou.
Ela afastou-se dele, o que lhe fez dizer, com uma gargalhada que se parecia com uma tosse rouca:
- Ou tens outra pessoa?
Ela sacudiu a cabeça, abstracta, e disse em voz baixa:
- Agora tenho dinheiro para pagar.
O escultor compreendeu o que queria dizer, pensando: "Antigamente, tinha que pagar com o seu corpo."
Na verdade, nunca o ignorara. Na prisão e na "cela negra", habituara-se a pensar nisso, arquitectando pormenores dolorosos. A cólera, a raiva, o ódio pela nova riqueza
de Doris deram lugar à compaixão.
- Nós dois. - disse em voz baixa - Nós dois, tu e eu.
E tomou a cabeça dela na sua mão, encostando-a ao peito. Sentia-se grande e forte e adivinhava que também ela experimentava idêntica impressão. Ficaram nessa posição,
durante um tempo infinito, oscilando brandamente, como árvores. Fora, alguém chamou:
- Telefone!
Doris desprendeu-se. Pegou no auscultador que estava sobre a mesa de cabeceira e pôs-se a falar rápida e secamente:
- Não posso. Tenho muita pena. Há um limite para tudo. Disse não e é não.
Voltando-se para Basílio, comentou:
- Esvaziam-nos como se fôssemos laranjas e depois deitam-nos para o lixo. Estou morta; amanhã à tarde, devo cantar Dona Ana: por isso é-me completamente impossível
ensaiar de manhã.mas eles não querem compreender isto.
- Ah. deves cantar amanhã. - disse Basílio.
- Sim, mas hoje estou livre toda a noite, e amanhã até ao meio-dia e depois à tarde.
Pegou-lhe na mão e levou-o devagar para fora do quarto.
- Não calculas o que foi preciso lutar! Primeiro, tudo se tinha arranjado de outra forma, eu própria te devia ir buscar a Baxtervile, tendo três dias de liberdade
para tos dedicar. Mas neste maldito ofício, a gente não pertence a si própria. Ante-ontem, devíamos ter a primeira representação de Panam; uma ópera moderna e esquisita,
de um francês - mas o barítono caiu doente e, além disso, os ensaios não haviam sido suficientes. Ficou adiada. O ensaio geral também. Repertório modificado e é
preciso que vá cantar aquela porcaria em vez de ficar contigo.
Mais calmo, Basílio disse:
- Ao ver que me fazias esperar tanto tempo, tinha a intenção de te matar.
- Mais uma vez ? - preguntou ela, mas logo se calou, angustiada com a audácia da pregunta.
E ele pensou: "Podia ter dito tudo quanto há, menos isto. O sangue subiu-lhe lentamente à cabeça e sentiu um zumbido nos ouvidos.
Vivamente ela continuou:
- Estou muito contente por me ouvires cantar amanhã. Mas não sei se gostas de Mozart ?
"Completamente estúpida!" pensou ele, antes de responder:
- Esqueces sempre onde e como eu passo a minha vida.
Doris levantou-se logo do pequeno banco que estava diante do fogão e aproximou-se de Basílio, enlaçando-o.
- Telefone! - gritou a voz, lá de fora.
Largou-o e pegou no auscultador.
-Temos amanhã às onze horas uma conversa
com o advogado Chander. - disse para Basilio, que " tinha ido até à janela.
Contemplava Central Park. O que o excitava, era
a grandeza, a vastidão, a profundidade do que via.
- Se para lá voltas agora, espero que não seja senão por algumas semanas.-continuou ela-Chander tem a certeza de que Forster conseguirá o que desejamos. O velho
Bryant, que ainda tem boas relações, também anda a trabalhar. Consegui que o Bryant Júnior assinasse a petição .
- Que lhe deste para isso ? - preguntou Basilio, voltando-se rapidamente.
Ela sorriu-lhe, de uma forma que ele classificou de insolente. E replicou:
- Seis garrafas de whisky.
- Telefone !
Ao mesmo tempo que, de fora avisavam, a Salvatori entrou no quarto.
Enquanto a cantora atendia, a Salvatori avançou para Basilio e apertou-lhe a mão sem dizer palavra, como nos enterros. Surpreendido, ele viu o rosto da Doris a transformar-se,
enquanto falava ao telefone. Não conhecia ainda a sorridente máscara de cera que, habitualmente, apresentava em público.
Por toda a parte havia grandes jarras cheias de flores que começavam a murchar. Cheirava a êxito e a decomposição. O quarto dava a impressão de estar cheio de gente.
Abriam-se portas, continuamente, os canos da água murmuravam dentro das paredes, passos percorriam o corredor.
- com quantas pessoas vives ?
- com a cozinheira, são cinco. Mas ela vai-se embora à noite; está com um belo dançarino do Charleston Club.
Basilio sentia o tempo a fugir num imenso vácuo; não se fazia nem se dizia nada para o reter, para o encher com qualquer coisa que pudesse levar como
recordação para quando estivesse outra vez na sua cela ou na oficina de colchões.
com vivacidade, estendeu para ela a mão e fêz-lhe bem sentir, sob os dedos, a carne fresca do seu braço. Doris deu um gritinho e ele ficou satisfeito por lhe poder
fazer mal.
- Vem para junto de mim. Estás longe. Há tanta coisa entre nós!
Ela respondeu:
- Temos a noite inteira só para nós. E nem tu sabes o que isso representa. Devia ter cantado num concerto, com o Toscanini. Custou-me a recusa mil dólares e, além
disso, o Toscanini está capaz de me matar.
"Mil dólares!", pensou Basílio. "Toscanini". Nisto, ladrou uma gargalhada de forçado, que a si próprio causou péssima impressão.
- Que te apetece fazer hoje ? - preguntou Doris.
- Ir à casa Fifi. - respondeu ele, muito brusco. Ela contemplou-o, sem saber se havia de rir ou
chorar.
- Tens alguma coisa ?
Comeram na biblioteca sobre uma mesa pequenina que a secretária trouxera, afectando uma atitude demasiado discreta.
A comida deu a Basílio a impressão de estar a engolir ar. Quando saíram, visto que ele tinha fome de barulho e de Nova Iorque, a Salvatori acompanhou-os até ao ascensor
e disse:
- Não traga a senhora muito tarde; tem de cantar amanhã um papel difícil e precisa de repouso.
- Precisas de repouso ? - preguntou ele, quatro horas mais tarde, quando entraram em casa, com o fumo dos dancings nos olhos e no fato e o jazz de uma revista nos
ouvidos.
Doris não notou a ironia. Conduziu-o pelo tapete branco, para o grande leito. O seu calçado deixava vestígios negros. Estava mal vestido, não tinha boas maneiras,
apresentava rudes mãos de trabalhador e tornara-se pesado. Apenas o mesmo desejo pela Doris
lhe continuava a rumorejar nos ouvidos. Mas foi só quando tudo ficou às escuras que deixou de a detestar a ela e a si próprio. No entanto, assim que o apertou nos
braços, teve a impressão de abraçar a atmosfera.
- É terrível que o tempo passe mesmo quando se dorme- disse na manhã seguinte.
Eram nove horas. Vinte e uma horas preciosashaviam decorrido.
- No fundo, és feliz ? - preguntou à Doris que estava fazendo caracóis na cabeleira ruiva, um pouco achatada e poeirenta.
- Às vezes, quando canto. - replicou ela. Esquecia-se sempre de que ela era cantora.
Às onze, estavam no escritório de Chander, uma sala guarnecida de móveis e de almofadas de couro. Depois de terem falado com ele durante uma hora, ficaram com a
impressão de que Basílio não voltaria a Baxtervile senão para ir buscar a sua escova de dentes, tornando-se um homem completamente livre. Ao meio dia estavam num
grande armazém de confecções. Doris obrigou Basílio a entrar num fato novo e numa camisa nova. Sentia-se humilhado enquanto os empregados andavam em seu redor, e
ainda ficou mais quando Doris assinou um cheque.
Pensou com amargura: "Teve vergonha de mim!" E concluiu: "E com razão.
Era ela que pagava o alfaiate, o advogado, a libertação. Durante um segundo, jurou não sair da prisão por aquele preço - mas aquilo não durou mais do que um segundo.
Provisoriamente, a liberdade tornava-o nervoso e triste. Os automóveis andavam depressa de mais, o sol estava muito amarelo e cintilante, os transeuntes demasiado
absortos e brutais. Comeram numa confeitaria. Ao pequeno almoço, Doris limitara-se a tomar um gole de café.
Daí a pouco, ela deixou de falar para apenas cochichar.
- Estou rouca. Sou capaz de não poder cantar.
- Isso é que era bom! exclamou ele, com uma exuberante e inocente alegria.
Ela cessou de falar, por completo. Deixou-a à uma hora, mas já havia muito tempo que ela estava ausente.
Foi procurar o Cowen para lhe apaziguar o ressentimento. Foi aí que passou a sua primeira hora tranquila. com um cigarro na boca, contava coisas da cadeia e Cowen
compreendia-o. Custava-lhe que a Doris evitasse falar-lhe da prisão porque, afinal, era ali que ele passava a existência. É com este tacto que as pessoas que vêem,
fazem desesperar os cegos.
O sr. Hadlock veio buscá-lo ao simpático e enfumarado antro de Cowen e conduziu-o à Opera. No novo fato, que lhe parecia muito largo e muito quente comparado ao
uniforme de cotim, passou a tarde no fundo de um camarote e aborreceu-se mortalmente Até lhe vieram aos olhos lágrimas de raiva e desespero, ao ver que aquela gente
nunca mais acabava de cantar as suas árias e que três horas e meia decorriam em vão.
Também tinha uma certa dificuldade em reconhecer Doris entre todas as longínquas silhuetas cantantes do palco. Não eram nem a sua voz, nem o seu andar, nem os seus
gestos habituais que se podiam observar naquela Dona Ana de saia de balão e ridículo preciosismo.
No momento exacto em que Basílio resolvera fugir e ir à quinquagésima sexta rua para aí encontrar talvez um sopro do passado, alguém lhe bateu no ombro, cortando-lhe
o projecto. A secretária arrastou-o até ao palco, através de múltiplos corredores. Estava enervado por ouvir as pesadas portas de ferro fechando-se atrás dele com
ruído definitivo. Por fim, encontrou-se no camarim da Doris, achando-se profundamente estúpido dentro do fato novo. Ela parecia um espectro, com manchas cor de sangue
ao canto dos olhos e tinta azul nas pálpebras. Estendeu-lhe a mão trémula e úmida. Ele pensou: "Se fosse um jumento, estaria coberto de espuma".
O camarim estava cheio de pessoas que falavam ao mesmo tempo. Ninguém lhe prestava atenção. Foi para um canto e divertiu-se a ver a figurinha de zinco colocada em
face do espelho. O homenzinho montado no seu búfalo mostrava-se de uma alegria perfeitamente estúpida.
Basílio disse-lhe:
- Não vejo motivo para estares tão contente. A vida não é uma coisa assim tão divertida, idiota.
A Doris passou perto dele e, durante um instante, fez pressão com o ombro no seu braço. Ficou excitado mas continuou aborrecido. Pensou: "Faz isto com toda a gente.
É uma das artimanhas."
Olhou para todos os homens que ali estavam, persuadido que ela já lhes pertencera. Um falava muito bem francês. Basílio achou-o simpático. Como vivera em Paris e
nas colónias, simpatizava com toda a gente que falava francês.
- Apresento-te o Renato. - disse Doris - Um amigo velho de quem vamos interpretar uma ópera. É o Basílio. sabes, Renato?
com grande à vontade, Renato explicou:
- A Doris falou-me muito de si.
Basílio procurou um comentário elegante e espirituoso mas não encontrou. Ao olhar fixamente para Renato, vendo-lhe a cabeça harmoniosa e o pescoço nu, teve bruscamente,
de uma forma inesperada e imprevista, vontade de esculpir. E demonstrou-o:
- Se não tivesse de voltar para a cadeia, pedia-lhe para posar para mim.
Falara-lhe em voz alta, mas como fora em francês ninguém prestou atenção.
- A Doris disse-me que, em breve, o libertariam sob palavra. - replicou Renato, inclinando-se amavelmente.
Coisa curiosa: esta certeza que não passava de cortesia, encheu o Basílio de um sólido optimismo: não acreditara em Chander, mas acreditava em Renato. De repente,
ficou absolutamente convencido de que a sua libertação não era senão uma questão de semanas.
- Até à vista. - disse o francês, quando, na escada, se separaram.
- Até breve. - respondeu Basílio, acentuando a frase como se se tratasse de uma verdadeira promessa.
- Ainda vibras como uma corda. - disse ele, passada uma hora, à Doris, com quem estava sentado em frente do fogão de sala.
Pegava-lhe nas mãos. De uma forma geral, comportava-se como um homem livre. O telefone tocou. Devia ser o velho Bryant. Ela fartou-se de dizer palavras amáveis ao
aparelho.
-Foi o velho Bryant que te comprou tudo isto?
- preguntou Basílio, designando com um gesto do braço toda a elegância verde-jade, da sala.
Doris desatou a rir.
- vou dizer-te o que ele me pagou: as minhas notas médias, do fá ao dó. O resto foi tudo arranjado por mim.
Puxou-lhe a cabeça para si e beijou-o nos olhos, que ele fechou, um pouco assustado, antes desse beijo.
- O telefone.
Ela atendeu e disse para o Basílio:
- É o Chander.
Enquanto ouvia, mostrava um sorriso aprovador.
- Falou pelo telefone com Forster. - anunciou, a meia voz. E depois:-Forster vai tratar de tudo; tem a certeza de conseguir. antes de um mês estás cá fora.
Quando largou o aparelho, ficou de pé alguns minutos, reflectindo profundamente como se fizesse um cálculo. Voltou, em seguida, para Basílio, sorrindo-lhe.
"Preciso de lhe dizer que não posso viver aqui." pensou ele. "Vou-me embora e entro outra vez na Legião Estrangeira." Aquilo parecia-lhe mais fácil do que levar
uma existência humilhante, sob a vigilância da polícia, ao lado de Doris, dessa gloriosa estrangeira que estava, agora, totalmente absorta em si própria.
Pensou que tinha de ser assim quando uma pessoa se queria tornar célebre e lembrou-se vagamente do
tempo em que, por causa do trabalho, repelia tudo que estava em seu redor.
Mas a ópera não merecia que Doris se deixasse devorar por ela. O ridículo pedaço de barro que ela tinha no seu quarto, também não merecia que ele lhe dedicasse toda
a sua existência. Andava de um lado para outro, esfregando nervosamente as calosidades das suas palmas das mãos.
- Vem; vamos passear. - interveio Doris, e ele ficou admirado ao ver que ela tinha notado a sua agitação.
- Então sabes guiar? - preguntou, quando já estavam no carro e que Doris o dirigia através as ruas, na movimentada noite, em direcção a Riversidedrive.
Ela olhava sempre em frente porque a prática ainda não era muita. Respondeu:
- O Renato ensinou-me quando estivemos na África do Norte.
Basílio reflectiu um instante nesta resposta. Tinha uma ferida ainda aberta no sítio onde estava situado o ciúme - não cicatrizara desde a noite de Greatneck.
- Foi teu amante?
- Não. - respondeu ela, rápida. E mais tarde:
- Foi. Tinha-me esquecido completamente. O Renato que está cá a fazer representar a sua ópera não tem o mínimo ponto de contacto com o Renato dessa época. Como se
pode mudar assim?
Desolado, ele retorquiu:
- Também eu já não sou o mesmo. Nem tu, Doris, nem tu!
A cantora tirou a mão direita do volante e colocou-a sobre a sua. O carro derrapou levemente.
Ficaram silenciosos durante algum tempo. Em seguida, tiveram a sensação de que o tempo acabara de parar.
Pela primeira vez, desde que viera da prisão, Basílio experimentava um pouco de liberdade. E felicidade até. É verdade: felicidade.
- E só és feliz quando cantas? - preguntou.
- É a mais agradável maneira de uma pessoa se suicidar. - replicou Doris, mais tarde, tendo levado algum tempo a ruminar a resposta.
- Que significa isso? -interrogou, assustado.
- Não sei. Não sei. é uma impressão. De resto, não temos senão uma limitada quantidade de vida para gastar - e gasta-se tanta em cada espectáculo! Sei lá quantas
vezes eu já morri. sinto-o no coração.
Estava comovido por ver que tomava assim, ao trágico, uma coisa tão absurda como é a ópera. E inquieto, também. Ao cabo de algum tempo, ela retirou a mão, que se
tornara fria. Sorrindo, preguntou:
- Podemos agora voltar para trás?
E em desajeitada manobra, com numerosas marchas para a frente e para trás, orientou o carro para casa.
- Deixa a luz acesa.-disse ele, alta noite, quando ela estendeu o braço para apagar o candeeiro.
Doris já estava deitada, mas Basilio, ainda vestido, andava, incessantemente, sobre o tapete branco. Por fim, murmurou:
- Quero dizer-te uma coisa.
Parou no meio do quarto e pôs-se a fixar a estatueta colocada no canto; precisava de se agarrar a qualquer coisa.
- Que é, Basilio?
A pregunta fora feita com doçura e, lembrando-se que no tempo em que pousava para ele, não tinha senão meiguice, encheu-se de coragem.
- De nada servirá a libertação sob palavra. Não poderei viver aqui. É pior do que a prisão. Quero voltar para a Legião Estrangeira.
- Para a Legião Estrangeira ?
- Sim.
- Meu Deus! - exclamou Doris, em voz apagada.
- Não vês que somos dois estranhos? Eu sou um condenado, um preso, e tu uma cantora de ópera. Enquanto só tinha de ti as cartas, não via como estavamos
longe um do outro. Agora já vi tudo. Não tens tempo. Telefone, maquilhagem, ópera, jornais, êxito, os amantes passados e futuros. Eu não quero estar misturado com
isso tudo.
- Vem cá, senta-te ao pé de mim. - pediu ela, em voz baixa.
Empalidecera de tal forma que ele se assustou.
- Não estás bem?
- Não.
Hesitante, aproximou-se do leito e ficou de pé.
- Senta-te.
Parecia-lhe que tudo se arranjaria se ele se sentasse. Ele fez-lhe a vontade e quis pegar-lhe na mão, mas ela retirou-a, escondendo-a debaixo da roupa.
- Não podes suportar o quê?
- Tudo. As três horas que me fizeste esperar ontem. Não sou um mendigo. Jamais esquecerei aquelas três horas.
- Duas. - rectificou Doris - Foram duas.
- Todas as pessoas que vejo aqui me parecem doidas. E tu também, sim, tu também! - gritou, vendo que ela queria interrompê-lo - Cala-te. Bem sei o que vais dizer..
Que também eu enlouqueci. É possível, não sei. É certo, até. Quando se sai da cadeia, já se não é um homem normal. Como vês tu o futuro? És rica, tens um casaco
de arminho, um maitre-dhotel e eu saio de lá com 117 dólares e 63 cents, na algibeira. Será preciso que eu vá à polícia duas vezes por semana e nem sequer terei
o direito de atravessar a ponte de Nova Iorque. Que farei aqui? A única coisa que sei fazer, é encher colchões. Queres ter um marido colchoeiro? Bem vi que não poderei
viver junto de ti; vou acabar o meu tempo e depois voltarei para a Legião.
- Que queres então que eu faça ? - murmurou Doris.
Admirou-se por ela não chorar. Viu-a estender o braço para apagar a luz. Na sombra, puxou Basílio para si. E repetiu:
- Que queres então que eu faça?
- Não podes deixar de cantar. - murmurou ele.
- Poderei retomar o meu trabalho no Schuhmacher.
Adivinhou que ela sorria, na escuridão. Acariciou-lhe o rosto: as pestanas estavam úmidas de lágrimas. De repente, tudo o que nele se acumulara durante anos, explodiu.
Chorou; foi como que um espasmo de sofrimento.
- Esqueceste completamente a nossa ilha? - preguntou Doris, inclinada sobre o seu rosto.
Foi só quando ele saiu de um longo, longo abraço, que respondeu:
- Iremos lá juntos?
- E já não é sem tempo. - replicou ela.
- Estou falando a sério, Doris.
- Também eu, juro-te.
- Farias isso? i Deixavas tudo e vinhas comigo para a ilha?
- É uma coisa combinada há muito tempo. disse a cantora. E em seguida, acrescentou:-E depois voltaríamos.
Basílio ligou o candeeiro. Queria ver-lhe a cara. Rosto tão pálido, de grandes olhos - rosto amado. Contemplou-a e disse:
- Posso ver o teu coração a brilhar sob a tua pele.
- Torno a encontrar-te.- disse ela, em voz sonhadora - Já estou quási a dormir. Na ilha, as mulheres lavam a roupa com pedras. A ilha chama-se Patikala. À quinta-feira,
vem um barco do Taiti. Quando lá chegarmos, haverá luar.
Julgou que ela falava, a dormir. Mas viu-a abrir os olhos e ouviu preguntar:
- E agora, está tudo bem?
Fez um sinal afirmativo. Amava-a irrevogàvelmente. Sem ela, não encontraria nunca o caminho da vida.
- Teremos bom tempo?
A pregunta parecia pueril, mas ele sentiu tudo quanto ela continha e replicou:
- Muito bom.
A ilha chama-se barco do Taiti.
- Preciso de ser indultado e, então, poderemos abandonar tudo isto.
Apagou, de novo, a luz. Um quadrante de relógio brilhava sobre a mesa de cabeceira. Duas e dez.
- Preciso de não perder o comboio. - disse Basílio.
- Pus o despertador. - replicou Doris, já meia a dormir sobre o seu ombro.
O despertador tocou e ela soergueu-se no leito.
"Às dez, ensaio com trajo de cena, foi o seu primeiro pensamento. O segundo foi para Basílio. Partira. Não lhe dissera adeus. Deixara ficar, sobre uma cadeira, o
fato novo que ela lhe comprara. Doris esfregou os olhos e os braços para deitar fora a noite. Havia semanas que se levantava tão cansada como estava à noite, ao
deitar-se. Reagiu, sacudiu-se, afim de entrar na realidade. A correspondência, os jornais, a massagem, o banho. Contar trinta e seis vezes até catorze e respirar,
Miss Butcher, Marcela. bom dia, sr. Hadlock. O camarim, a maquilhagem, o vestuário. Ensaio.
Este ensaio de Panam foi pior do que todos que Doris conhecera até então. A música era moderna até ao suicídio. A orquestra retraía-se. O maestro mal a compreendia.
Os cantores angustiavam-se. Os cenários não estavam acabados, o homem dos holofotes tinha raivas súbitas. Renato, o desgraçado compositor Renato Beauxcamps, não
falava senão francês, o que complicava tudo. Haviam começado às dez da manhã. Às seis da tarde, foram expulsos do palco porque era preciso colocar os cenários para
a noite. Espalhava-se uma histeria colectiva como no rebentar de uma guerra ou de uma revolução. Durante dez minutos, tiveram a impressão de que seria preciso tirar
a ópera do cartaz. Abatido, Renato agarrava-se a Doris, para se fazer consolar. Mas ela própria precisava de consolação. O coração trabalhava com má vontade - parecia-lhe
que o amor do Basílio lhe tirara tudo quanto lhe restava de força. A Salvatori atravessava os corredores nas pontas dos pés, mas os sapatos não deixavam de ranger;
anunciava um grande êxito porque as cartas se haviam mostrado favoráveis e, de resto, as zangas durante os ensaios eram prenúncios de sucesso. Juddy Long que, como
convidada, assistira ao ensaio, veio ao camarim e declarou-se entusiasmada. Vanderfelt mandou um talismã, um berloque de brilhantes, a cruz gamada, que usam os índios.
Era um presente bom de mais para um amigo que não devia esperar coisa nenhuma, em troca, mas por isso mesmo, podia ser que lhe desse sorte.
A ópera foi alvo de um lisongeiro insucesso. Quando o velho Bryant a levou a casa, depois do espectáculo, teve a impressão de que os seus nervos se iriam partir
de repente, como acontecia às vezes, às cordas da harpa. Deitou-se na vasta cama sem conseguir dormir, pois estava demasiado fatigada.
Representaram a ópera três vezes e depois enterraram-na. Foi o enterro de três meses de trabalho. Começaram logo a ensaiar outra.
Renato voltou para Paris, zangado com o mundo e consigo próprio. Doris mandou-lhe para o comboio um amável telegrama de despedida. Respondeu com um frio postal.
E mais nada.
com todas as forças que lhe restavam, Doris lançou-se, a fundo, nas negociações com Chander. Sentia que, se queria ir à ilha, tinha que apressar as coisas. A última
noite passada com o Basilio soldara-a a ele com a mesma violência do que a primeira, de outrora. O telefone funcionou activamente entre Nova Iorque e Albany. A petição
encontrava-se nas mãos de Forster, que falara com o Board of Patole, o qual dera a sua aprovação. Na quarta-feira, seria entregue ao governador, que dera uma opinião
favorável em conversa privada. Correndo tudo bem, a decisão podia dar-se na quinta-feira. E não havia a menor dúvida de que seria favorável. Doris mandou um telegrama
ao Basilio e outro ao director da cadeia, Taylor, pedindo-lhe para fazer seguir o primeiro.
"Mais um dia de paciência e depois para sempre", telegrafou.
À noite, cantou a Santuzza e foi dançar com Vanderfelt. Como não podia dormir, mais valia passar a noite a dançar com uma pessoa qualquer. Muito nervosa, com os
olhos ainda maiores, via-se no espelho, encostada à elegante silhueta do advogado encasacado. Ele apertava-a contra si, de vez em quando, e ela respondia-lhe, sorrindo.
Era quási tão idoso como o velho Bryant. Estava persuadida de que não se mostrava empreendedor senão por delicadeza.
Na quinta-feira, nada se passou. Na sexta, apareceram alguns Jornais da tarde com grandes títulos. O senador Forster estava envolvido num escândalo, atribuiam-lhe
toda a espécie de irregularidades, acusavam-no de desfalques e negócios sujos - enfim, era um homem desonesto, que se vendia.
Doris ficou surpreendida, ao ler estas notícias. Não compreendia por que motivo faziam os jornais tamanho barulho com histórias que quási toda a gente conhecia.
Chamou Chander, ao telefone. Da primeira vez, fêz-se declarar ausente. À segunda chamada, pronunciou umas frases optimistas e ocas. O coração de Doris parou, enquanto
o ouvia. Nos últimos meses consagrara tudo que tinha e não tinha ao indulto do Basílio. Não lhe contara o que fizera para comprar convenientemente aquele Forster.
Não lhe dissera como a sua vida inteira se concentrara exclusivamente num ponto: a sua liberdade e a partida para a ilha, longe de tudo aquilo. Em amor, cala-se
o essencial, não se dizendo senão as coisas secundárias.
O indulto foi recusado. Â opinião pública insurgira-se contra a aplicação demasiado indulgente das leis. O escândalo Forster revelava uma quantidade de torpezas:
directores de prisões corrompidos, gangsters e assassinos postos em liberdade - uma bizarra mistura de política e de crime. Os burgueses sentiam-se bruscamente rodeados
de perigosos prisioneiros postos em liberdade, cedo de mais.
Doris obteve uma breve licença e correu para o Board of Parole, atrás dos três homens silenciosos e importantes que iam, de prisão em prisão, fixar a sorte
dos prisioneiros propostos para a libertação sob palavra. Não conseguiu nada. O melhor conselho que lhe deram, foi o de deixar o assunto em paz, pelo menos durante
um ano, esperando o apaziguamento da opinião pública. O procedimento do Basílio cheirava um pouco a comunismo e a sua conduta, na prisão, não fora irrepreensível:
vias de facto contra um guarda, participação numa revolta. Encolher de ombros: muita pena, mas impossível. Escreveu-lhe:
"Tem paciência, Basílio, tem paciência." Voltou para Nova Iorque, depois destas peregrinações, e começou por ver o dr. Williams.
- Tenho a sensação de que o meu coração permanece sempre frio de um lado. Como quando a gente está sentada em frente de um fogão: queima de um lado e gela do outro.
Ele examinou-a e bateu-lhe com o dedo dobrado. Mandou-a ir no dia seguinte, estendeu-a, então, numa mesa, e injectou-lhe uma substância horrível nas veias. Sentiu-se
morrer pela milésima vez e foi sacudida por um espasmo; mas depois encontrou-se no estado desejado pelo médico para fazer uma boa radiografia.
- Não há nada de grave. - disse-lhe - O que está é muito fatigada. Vive e canta como se possuísse um coração em bom estado. Precisa agora de passar algumas semanas
como se estivesse doente. Nenhuma excitação.
- Nem alegria, nem dor, bem sei. - disse ela, ironicamente.
O dr. Williams ficou um pouco vexado. E disse:
- Está prevenida.
Doris foi para a Ópera e cantou a Tosca. Enganou-se no segundo acto, como de costume, e Delmonte fez o mesmo no terceiro, no momento em que ela, vindo da esquerda,
parava por trás dele. Mas, tirando isto, cantou melhor do que nunca. Já não era um papel, era ela própria, e o seu amante, que estavam a torturar, era o Basílio.
Absolutamente exausta, repousou dois dias. cantou o papel da Tatiana e o da Carmen. Tentava convencer-se de que não custariam muito a passar os quatro derradeiros
anos de prisão. Queria convencer-se de que não seria muito longo e que esperaria até lá. Tornou a cantar a Tosca; o coração continuava a estar frio de um lado-o
lado direito. E uma rede de dores derivava dessa zona fria para o peito. Na semana seguinte, teve que renunciar a respirar trinta e seis vezes, de manhã. Obrigou-se
a comer mais para ter forças. Esbofeteou um barítono que lhe fez uma declaração. Vexou a Salvatori uma vez em cada hora. Teve cenas sucessivas com todos os cantores
da Ópera e os jornais encheram-se de anedotas referentes ao seu diabólico feitio.
O Basílio estava na prisão e ela sentia o seu coração a morrer! Deixava-a, milímetro a milímetro, recusando-se, lentamente, a trabalhar.
Um homem de cabeça rapada bateu-lhe, um dia, à porta. Estava embriagado e trazia uma carta do Basílio. "Espero que este camarada, que findou o seu tempo, te poderá
entregar uma carta. Sê gentil para com ele e ajuda-o no que puderes. Não compreendo o que se passou. Não posso aqui estar mais tempo. Nunca me deveriam ter deixado
sair secretamente, depois é impossível! Se não saio, em breve, faço uma asneira. É aqui que se formam os assassinos. Doze anos, doze anos por uma coisa que não diz
respeito senão a ti e a mim! Peço-te: tira-me daqui, leva-me para a nossa ilha, antes que eu cometa qualquer acção que torne isso impossível! Dizem que nos vão tirar
o Taylor que nos tratou bem de mais. Se fosse verdade."
A carta detinha-se aqui; decerto não tivera possibilidade de a prosseguir. Doris deu dinheiro ao homem embriagado e fez-lhe presente do fato novo que o Basilio deixara.
Cantou ainda a Santuzza. E a Aida. Nessa noite, sentiu-se melhor e cantou bem. O "ritorna vincitor" estalou como uma bandeira ao vento. No intervalo, Doris ficou
algum tempo imóvel no seu camarim tendo
o coolie nos joelhos, acariciando-lhe o metal cinzento e macio. O velho Bryant mandou um raminho de violetas, de vinte cents. A Salvatori batia um ovo com azeite.
Para lá das paredes o coro feminino repetia, uma última vez, o final da ópera.
Doris viu-se no espelho. Estava pintada de castanho, com as sobrancelhas erguidas, conforme Potter lhe aconselhara. Estudara com ele o papel da princesa-escrava
etíope. Sentiu a sua falta. Tinha frio: desejaria o calor de todos os homens com os quais trocara um pouco de prostituição por um valor qualquer. Sinal sonoro. Sinal
luminoso. Doris estava nos bastidores e esperava a sua entrada. Chegou a sua vez. Cantou e a sua voz tomou corpo, desdobrou-se, planando, no grande final do segundo
acto, excedendo as outras vozes, os coros dos sacerdotes, dos guerreiros, dos prisioneiros, do povo, as vozes dos solistas e a orquestra inteira. Durante um estranho
momento de vertigem, sentiu que a sua voz era tão alta e grande como a casa inteira, tão vasta como aquele teatro com as cenas principais e as secundárias, os bastidores,
os armazéns e os subterrâneos.
Então deu-se qualquer coisa. A invisível mão veio, mais uma vez, bater-lhe no coração. Faltou-lhe a respiração. Mas continuou a cantar. "vou morrer!" pensou. Já
tudo escurecia, em seu redor. O teatro oscilava e ruía sob ela. Estava em pé e continuava a cantar, embora já se considerasse morta. Só caiu depois de ter descido
o pano.
A pintura castanha ainda não havia desaparecido por completo quando, dois dias mais tarde, o velho Bryant conseguiu que o deixassem entrar no quarto. Caminhou nas
pontas dos pés e contemplou-a. Dormia com uma expressão de esforço; o peito erguia-se na sua curta respiração. Em redor dos olhos, junto
dos cabelos e perto das orelhas, ainda havia pintura, ocre. O velho Bryant sentou-se e esperou. Doris sorriu quando, ao despertar, o viu.
- Não fales. - disse ele, desesperado.
Era como antigamente, no hospital. Não falar, não se mexer.
Ela murmurou:
- Quando te vi, pela primeira vez, também estava doente.
- Hás-de curar-te, -disse ele, em tom consolador. Ela ergueu, a custo, a mão da colcha, observou-a
atentamente, sacudiu a cabeça e deixou-a cair.
- Quem está a cantar a Tosca ?
- Mudaram o programa.
Mentia porque o dr. Williams dissera que o coração da Doris não poderia suportar o peso nem de um grama.
Estava deitada. Às vezes, não pensava em coisa nenhuma e outras, várias ideias lhe passavam, ao mesmo tempo, pelo espírito. Não mais cantar! Era o que pensava acima
de tudo. "E que vai ser de mim ? E que vai ser do Basílio ? E não morri! Dizia isto a si própria como se tivesse sido uma grande habilidade que fizera. Era verdade:
parecia que não tinha morrido porque o não tinha querido. "E verás, não deixarei de ir contigo para a nossa ilha." Afirmação que, no presente momento, não tinha
a mínima base sólida.
Mas a Doris estava, na realidade, apenas por um fio. Encontrava-se deitada, muito doente e num grande perigo; voava, ao mesmo tempo, através do passado e do presente,
através das regiões próximas e longínquas. Â escada da quinquagésima sexta rua; Salzburgo; uma ruasita de Biskra; a confeitaria de Baxterville; uma nuvem que, à
noite, pairava sobre a cúpula de Milão; a ilha. Por fim e sempre, ia aterrar por cima das palmeiras, na ilha Patikala.
Só ao cabo de um mês começou a andar. O velho Bryant estava lá. Conduziu-a da sua cama até à janela e, depois, outra vez até à cama. Março chegava já a Central Park.
Não tinha notícias do Basílio e ele ignorava a sua doença.
- E agora?- pensava, exausta.
- Se quisesses podiamo-nos casar no princípio de Maio. - disse o velho Bryant - Pensei nisto. Precisas de repouso. Tê-lo-ias em minha casa.
O coração da Doris parou mais uma vez.
- Mas eu não posso casar contigo! - disse ela, mais surpreendida do que nunca havia estado.
- Não? Porquê?
Não respondeu. Era, sob todos os pontos de vista, uma solução inacreditável. E como a resposta não vinha, ele acrescentou:
- Terias uma vida agradável, em minha casa.
- Queria deitar-me outra vez,
O velho Bryant despiu-a como se fosse uma criança e pousou-a no leito. A casa começara a desagregar-se. Miss Butcher encontrara outro lugar. A Marcela fora despedida.
Apenas a Salvatori ali estava.
- Mas, afinal, porque pensaste em casar comigo ?
- Eu não falei de amor.
- Então porque é?
- Porque nos damos bem. Tu precisas de repouso e eu já vivi muito: agora posso-to oferecer. E depois.
- E depois ? - preguntou ela, ao vê-lo deter-se.
- Principalmente porque me deste o Juju. Olha, não há senão duas espécies de pessoas: os que dão e os que recebem. Tu deste-me uma coisa, o que é um acontecimento
raro na minha vida. Que me tivesses dado o Juju, exactamente no momento em que tu própria estavas numa situação difícil.
O Juju, deitado na colcha da Doris, mesmo a dormir, arrebitou as orelhas cheias de seda quando o seu nome foi pronunciado. Bryant arranjou a almofada da Doris. Ela
já não achava o seu projecto tão insensato.
- Mas eu tornei-me horrivelmente egoísta. disse ela.
Ele ergueu as mãos num gesto indulgente, que significava:
- Eu sei. eu sei.
- Sabes que não quero senão uma coisa e que a hei-de ter. - afirmou Doris, com ar obstinado.
Bryant levantou-se e dirigiu-se para a janela, voltando-lhe as costas. Disse então:
- Ao Basílio, ainda faltam quatro anos. Em quatro anos tudo pode mudar. Comecemos por nos casar.
- Bem sei. Julgas que já não viverei quatro anos. Pois fica sabendo que os hei-de viver. Não morrerei antes dele sair. Desta vez também não morri. Farei tudo para
o libertar, assim que puder mexer-me e, no dia em que estiver cá fora, partirei com ele. Já vês que não posso casar contigo.
- Queria agora plantar tulipas no meu jardim.- disse Bryant, como se não tivesse ouvido as palavras de Doris - Gostava tanto que me ajudasses a escolher as cores
I! Ah, como tudo isto é estúpido! - exclamou subitamente, saindo de junto da janela e caminhando rapidamente para o leito - Não; não penso que vais morrer. Sou um
velho, Doris. Bem vês. Para mim, seria uma grande felicidade passar alguns anos contigo. Tenho que economizar o tempo. Acho que nos podíamos arriscar a dar esse
passo. Casas comigo, começas por me consagrar os meses mais próximos e prometo-te que não te reterei, de modo algum, quando o teu Basilio estiver livre.
Doris quis pegar no Juju: ele resistiu e deu um pulo, fazendo uma bela trajectória e indo aterrar sobre uma mesa, na outra extremidade do quarto. Ela ficou a reflectir.
O velho Bryant estava sentado numa atitude cheia de à-vontade mas cortês, confiante e amável.
- Bem se vê que já assinaste muitos contratos na tua vida. - E riu, a custo, o que lhe fez doer o pulmão
- Isso chegou como um trovão em pleno céu azul.
- Como, no céu azul ? - replicou ele, alegremente -iPois nunca reparaste que estou apaixonado por ti?.. Já que é preciso empregar esta palavra vulgar. Nova Iorque
inteira considera-te como uma Messalina, como uma grande artista em matéria amorosa. Pois asseguro-te que nunca tive tanto trabalho para conquistar uma mulher como
nos oito anos das nossas relações.
Doris sorriu.
- É gentil o que estás a dizer.- murmurou.
E pensou: "É o velho Bryant, um dos cinco ou seis reis da nossa época. Perdeu a fortuna, mas conservou o bom gosto, a dignidade. Esta última palavra, raramente se
emprega. Mas a ele fica-lhe bem."
- Queres que te faça uma chávena de chá? preguntou, ao vê-la arrepiada.
- Não, obrigada.-respondeu, distraída - Que vai ser de mim ? Uma casinha em Nova-Jersey, um carrinho, uma pequena mensalidade. E tulipas no jardim.
- E com uma súbita explosão de cinismo - i Teremos o grande prazer de jogar todas as noites o bridge?
Vendo um relâmpago de ironia na sua pregunta, o velho Bryant pensou: "O dr. Williams está enganado; ela há-de viver mais de seis semanas."
- Isso . não posso prometer. - replicou ele, sorrindo.
Houve um silêncio. O Juju aproximou-se, com ar submisso: apoderou-se, de súbito, do relógio colocado sobre a mesa de cabeceira e fugiu, apressado, com o seu roubo.
Era um animal capaz de se rir, quando conseguia fazer uma partida destas. Instalou-se, pois, num canto e desatou a rir com o seu agudo rosto de raposa astuciosa.
- Então ? - preguntou Bryant.
- Se queres arriscar-te .-replicou Doris, depois de imperceptível hesitação.
Então, o velho Bryant pegou-lhe primeiro na frágil mão e depois inclinou-se sobre ela para a beijar. Tinha os lábios macios, quentes e agradáveis. As faces cheiravam
bem, a bom creme de barbear. Depois de tantos gestos teatrais, Doris repousou no fresco calor desse beijo.
- Posso agora fazer-te chá ?
E Doris, com os olhos distraidamente voltados para a luz do candeeiro, respondeu:
- Agradeço-te muito.
- bom dia Roy, como está? -preguntou Doris, quando finalmente foi admitida no escritório de Vanderfelt.
Soergueu-se na cadeira. Na parede, por trás dele, via-se um retrato de Lincoln.
- bom dia, Dorina. Mas que surpresa!
Ela trazia um tailleur cinzento e uma gardénia na botoeira. Um minúsculo chapéu de plumas cor de madre-pérola envolvia-lhe a cabeça não deixando ver nem um só cabelo.
Tinha algumas rugas delgadas na testa, o que lhe dava um aspecto surpreendido e pensativo. Trazia luvas brancas e sapatos de desporto cinzentos. O último número
da Vogue publicara o seu retrato naquela toilette, com o sub-título: "A perfeita lady mrs. F. Ó. B. esposa de um conhecido banqueiro."
- O Bryant queixa-se de não o ver. Faz-nos muita falta. - disse ela, sentando-se à secretária, em face de Vanderfelt.
Era uma vasta mesa com numerosas campainhas eléctricas e um dictógrafo, pelo qual, de vez em quando, eram filtradas as novidades. O escritório de um homem importante.
- Estou mais vezes em avião entre Nova Iorque e Washington do que em terra firme. - replicou Vanderfelt. E inclinado para o dictógrafo: - Ele que torne a ligar daqui
a vinte minutos. Cigarros? Um copo de brandy?
- Obrigada. O dr. Williams proíbe-me tudo isso. Que pouca sorte! i Exactamente no momento em que vocês aboliram a lei seca, agora que toda a gente se pode embriagar
legalmente.
- Acho-a muito bem, Dorina. - disse ele, olhando-lhe não para o rosto, mas para o seio, para a leve curva do seu casaco cinzento. A gardénia exalava um forte aroma;
as escurecidas beiras das pétalas começavam a enrugar-se.
- Você tornou-se uma espécie de coluna da nossa casa, não nos podemos habituar a não o ter para jantar, todas as semanas.
- Sim, mas a política é uma antropóloga, creia, Dorina. - suspirou vaidosamente o advogado. Havia dois anos que se voltara para a política, ligando-se ao partido
que triunfava, e que utilizava a sua experiência, o seu conhecimento dos homens e a sua brilhante eloquência. Agora, tinha um lugar no Department of Justice. --
Irei lá na primeira noite livre que tiver, prometo. E como vai tudo lá por Nova-Jersey?
- Obrigada, o Bryant está bem, obteve uma bela soma quando concluiu a transacção com os United Airlines. Ofereceu-me um casaco de vison. Se não estivesse tanto calor,
tê-lo-ia trazido, para lho mostrar.
Era mentira: o casaco pesava muito e ela não tinha força para o poder usar. A pele que lhe cobria os ombros tornara-se tão fina, que o mínimo peso a magoava.
- Iremos dançar, como antigamente, e apresentar-me-á ao seu novo casaco. - disse Vanderfelt. Depois dirigiu-se ao dictógrafo: - Neste momento, não posso.
A Doris bem via que ele estava impaciente, mas ainda não tinha coragem para abordar directamente o seu assunto. E sentia-o resolvido a deixar arrastar-se a conversa
até ao instante em que ela própria chegasse ao facto que ali a trouxera. Antes de entrar na política, fora o advogado mais perito em divórcios, de Nova Iorque, de
modo que possuía uma técnica especial para manejar as mulheres nervosas.
- Tivemos um grande desgosto. - contava Doris
- O Juju morreu. Teve um abcesso no cérebro . muitas convulsões.- Interrompeu-se porque não podia descrever a morte daquele amigo, sem, ela própria, ficar em perigo.
O coração bateu, de novo. Então, mudou de assunto: - Comprámos um pedaço de terreno e o Bryant mandou plantar legumes. Imagine que já comemos minúsculas cenouras
do nosso quintal. E, em breve, teremos rabanetes.
- Como tem podido resistir ? -preguntou subitamente Vanderfelt, inclinando-se para ela, por sobre a mesa - Às vezes, pregunto a mim próprio: como pode ela agOentar-se
? Não cantar, não ter a Ópera, não ser célebre. Como pode ?
Depois de ter ressoado, por algum tempo, esta frase, Doris disse em voz baixa:
- Mas não é uma coisa assim tão importante, a ópera.
- A mim, não precisa de mentir. - replicou ele, vivamente - Conheço bem o seu caso.
Doris sorriu ao ouvir classificar aquilo como "um caso".
- Quando se está lá dentro, a gente julga que mais nada existe no mundo. Quando se está cá fora é que se avalia a vida de cão que lá se levava.
- Quanto a isso, é exactamente como na política. e como na maior parte dos ofícios.
- Bryant sabe tão bem viver!
- Isso é verdade. Quando um homem de sessenta e três anos tem a coragem de casar com a Rossi, é porque sabe viver. - replicou Vanderfelt, que ficou à espera do resto.
Mal lhe tinham dado o cartão da Doris, ficara logo convencido de que o vinha consultar por causa do seu divórcio. Levantou-se, deu volta à mesa e colocou-se por
trás dela. Colocou-lhe as mãos nos ombros e ela descaiu um pouco. Ficou-lhe nas mãos o calor daquele contacto.
- Trata-se do Basílio. - disse ela.
O lábio inferior de Vanderfelt cresceu.
- O Bryant disse-me que o senhor é hoje o homem mais indicado para obter o seu indulto.
- Muito amável. - murmurou com azedume. Depois reflectiu. E preguntou:
-i Então o Bryant é suficientemente estúpido para lhe dar conselhos sobre a maneira de libertar Nemiroff ?
- Gritou depois para o dictógrafo: - Disse daqui a dez minutos, agora não posso.
Doris sorria vagamente e as rugas da testa subiam-lhe até ao chapéu.
- Bem sabe como ele é bom. - disse apenas.
Vanderfelt nada respondeu. com uma grossa lapiseira de ouro, pôs-se a desenhar silhuetas no mata-borrão.
- Veio de propósito para isso a Washington?- preguntou, passado algum tempo.
- Há nove anos que o Basílio está preso. Já é tempo de se fazer alguma coisa.
Sentia que era uma expressão muito fraca para a importância enorme, extraordinária, que aquilo tomara depois da conversa que tivera com o dr. Williams. O advogado
ergueu os olhos do mata-borrão. Tinha lindos dentes, que gostava de mostrar, no rosto envelhecido.
- i Porque não deixa as coisas seguirem o seu curso?-disse, de mau humor-Sairá daqui a três anos. E então, as complicações serão muitas. Ainda um dia se arrependerá
de ele não ter ficado onde está, creia.
- Não viverei três anos. - replicou ela, com doçura mas firmemente.
- Não viverá três anos?
- Não.
- Oiça, Dorina, você exagera. Está magnífica! palavra que não é um elogio. nunca a vi tão bonita. Deus do céu, - exclamou, rindo-se e parando diante dela - quando
penso na insignificante criaturita que você era quando, pela primeira vez, veio ao meu cartório! E já, nesse tempo, entoava a mesma canção: não tenho tempo. uma
bala no peito, etc. Desde então, muitas vezes me admirei, ao ver como é robusta. É capaz de enterrar dez homens vigorosos com a sua bala no peito.
Doris mordeu os lábios e reflectiu. As costas das mãos cobriam-se de transpiração. Era um dos desagradáveis sintomas da fraqueza e do perigo que iam aumentando sempre.
Friamente, pensou: "Devia fazer agora uma grande cena". Tentou entusiasmar-se para o conseguir, mas o impulso quebrou-se lamentavelmente. "Pieta. pieta." pensou
obscuramente. A Tosca ajoelhada em frente de Scarpia. "Que estupidez!", concluiu no mesmo instante.
- Diga-me se poderá libertar o Basilio, quando quiser. Agraciar, não. Libertação com homenagem, não: inteiramente livre.
- Talvez. - respondeu o advogado, com vago sorriso um tanto insolente.
- Mas você era meu amigo .
Tentou fazer nascer as lágrimas. No palco conseguia-o sempre, mas ali foi-lhe impossível.
E pensou: "O Basilio. os seus cabelos a rarear, a careta que faz para sorrir, a separação, todas as separações." As pálpebras continuavam secas, embora lhe ardessem.
- Contava absolutamente consigo. Foi sempre meu amigo. - disse em voz rouca.
- Pela força das circunstâncias.
Depois de ter dito isto, Vanderfelt tornou a sentar-se e recomeçou a desenhar. Lincoln fitava-o com o seu olhar fixo. Doris apertava as mãos úmidas nas suas correctas
luvas brancas.
- Dê-me um cigarro. - pediu. Ele acendeu-lho.
- Então ?
- Então? - repetiu Vanderfelt - Você vem procurar-me e dizer-me com toda a simplicidade: tire da prisão o meu homem. E porque motivo o hei-de eu fazer, não me dirá?
Contribui, convictamente, para o meter lá. Você está casada com um dos meus melhores amigos e prevejo uma quantidade de complicações quando ele estiver cá fora.
i Então porque hei-de fazer o que me pede. porquê? E logo hei-de ser eu?! i Que lucrarei com isso, não me dirá?
- Bem sabe, Roy, que não tenho dinheiro. Julgo que o Bryant me dará uma pequena mensalidade, quando nos separarmos, mas não posso, realmente, pedir-lhe dinheiro
para libertar o Basilio.
- Mas a mim pode pedir-mo, comigo não faz cerimónia! - gritou Vanderfelt, irritado.
Embora estivesse triste, Doris não pôde deixar de se rir.
- Mas eu não casei consigo, Roy.- disse em voz meiga.
Estava furiosa consigo mesma. Tudo o que dizia, soava falso e, no entanto, sabia como deveria proceder: lágrimas, súplicas, joelhos no chão - grande ópera.
- O quê? - preguntou, porque não ouvira a resposta do advogado.
- A não ser que você queira ser gentil comigo ..
- repetiu ele.
Doris não acreditava no que ouvia, de tal modo aquilo parecia uma cena cómica como as que o Renato improvizava ao piano. Schrum. schrum. Era o mais baixo impudor,
o atrevimento mais grosseiro. E pensou: "O sr. Wallert."
- Não compreendo.
Também estas palavras faziam parte da cena cómica.
- Oiça, Dorina, aluguei uma pequena casa nos Catskills. Na próxima sexta-feira vou lá e demorar-me-ei até segunda ou terça. É em plena e primitiva natureza, sabe?
Pesca de trutas e tudo a dizer. Venha comigo e discutiremos então o que se poderá fazer por esse Basílio.
- Não posso. E, de resto, você está, com certeza, a brincar. - murmurou ela, assustada.
Podia esperar tudo, menos aquilo.
- Mas porque hei-de estar a brincar? i Porque hei-de ser menos sério do que os outros? E porque não? Ora diga-me porque se nega a fazer uma coisa tão simples: um
pequeno week-end. Acho que não deve ser o primeiro da sua vida.
- Mas, Roy, você é o melhor amigo do Bryant, que tem, em si, uma confiança absoluta, i Não vê como é uma coisa impossível? Vocês envelheceram juntos. Foi o nosso
hóspede de todos os dias. Mas em que situação nos quere colocar?
- Se não me engano, foi Napoleão que disse: na guerra e no amor, tudo é permitido.
Doris sentiu subir em si uma raiva doida, quando ouviu a palavra "amor". Teve desejo de fazer então a grande cena. Mas ainda se conteve.
E disse, com simplicidade:
- Mas eu não o amo .
- Isso sei eu! - gritou Vanderfelt, aproximando-se
- Bem o demonstrou. De resto, eu não peço tanto, visto que não acredito nos sentimentos, Quem passou a vida a divorciar gente. Mas quero-a. É claro e directo. Quero
possuí-la. Sempre o quis. E porque não, eu? Você não foi sempre assim tão difícil. Toda a gente a teve. Nova Iorque inteira dormiu consigo. Agora chegou a minha
vez.
Doris observava o advogado, que estava fora de si, com penetrante curiosidade. Sim, era sobretudo a curiosidade que a dominava, à medida que Vanderfelt ia acumulando
as injúrias sobre ela.
-i O que tenho eu de horroroso para ser repelido assim, pura e simplesmente? - clamou - i Não sou tão encantador como o sr. Shugers, nem tão velho e podre como o
centenário Potter? Seguia-a sempre, através dos anos. Não quero citar todos os nomes, todas as mãos por que passou. Quero simplesmente que seja minha também - mais
nada.
com a testa enrugada, Doris pensou: "com certeza que o fiz sofrer, alguma vez."
Em voz baixa, disse:
- Oiça, Roy, oiça-me tranquilamente. Estou doente, muito mesmo. Falei com o dr. Williams. Desta vez é o fim. Dá-me tão pouco tempo que nem quero pensar nisso. Que
quere de mim? Estou quási morta, sofro cada vez que respiro, já não posso ser uma amante. Comigo, nenhum prazer teria. Vai por mau caminho, creia. E eu preciso de
estar algum tempo com o Basílio, meu Deus! Até hoje não vivi. Fui apenas um fantasma em toda a minha vida, apenas um animal perseguido - e sempre me aconteceu o
que eu não queria. Não me arraste, portanto, para uma aventura de que também se arrependeria. Eu não sou companhia que sirva para um alegre week-end. i Não tem medo
que lhe fique nas mãos?
Doris começara a falar em voz baixa. Mas à medida que se animava, o seu tom elevava-se, e as palavras saiam mais rápidas. Sentia prazer ao sentir a voz
cada vez mais forte. Ainda não conseguia chorar, mas a grande cena ia já em bom caminho. Quando parou, colou as mãos no rosto, um pouco acalmada, como após a ária
inicial, na ópera.
Ironicamente, Vanderfelt replicou:
- Não represente, Dorina. Isso comigo não pega. Sei, por profissão, como se actua sobre as glândulas lacrimais. Há oito anos que recita a mesma lição. Foi com essas
artimanhas que você tirou uma porção de dinheiro ao velho Bryant. Para mim, seria preciso inventar outra coisa.
Escondida sob a ogiva das suas mãos, Doris ouviu cair sobre ela esta nova saraivada de insultos. Não sabia por que motivo aquele homem a detestava assim. Era vaidoso
e, decerto lhe ferira, alguma vez, a vaidade. Retirou as mãos do rosto e pegou num cigarro da cigarreira que estava entre eles em cima da mesa.
Observou-a em silêncio, enquanto ela, com ar de desafio, aspirava o fumo, mandando-o para o pulmão rebelde. Reflectia. Tinha verificado, com riso sarcástico, que
não derramara uma única lágrima por trás das mãos dramaticamente erguidas.
"Trata-se do Basílio", pensava ela. "Não tem importância nenhuma, é uma ridícula formalidade. E ainda é barato."
Tinha um tailleur cinzento e luvas brancas. Era a esposa do velho Bryant que a arrancara à arena da profissão onde se paga, mas se exige. Quando atingira a glória,
respirara finalmente, porque já não era obrigada a vender-se. E agora, naquele cartório, sob o retrato severo de Lincoln, era projectada para fora da sua tranquilidade
de mulher casada, bem colocada na sociedade, para as humilhações da sua antiga carreira. Lançada, de novo, para um sr. Wallert. Mas tratava-se do Basílio, hoje como
quando sofrera o sr. Wallert por trinta dólares. "Bem", pensou, resoluta. "Não tenho tempo a perder. Depressa, porque senão é capaz de aumentar o preço."
Deitou fora o cigarro e tornou a dominar-se.
- Vamos fazer as pazes? - pediu.
Agora que já não eram precisas, as lágrimas chegaram.
Vanderfelt sentia-se aliviado, depois de ter vomitado os insultos que o sufocavam, havia anos. Pegou-lhe na mão, tirou a luva, voltou-a com a palma para cima, o
que deu a Doris uma sensação de nudez quási obscena, e beijou-a.
Tinha um pequeno bigode arrogante, cujos pêlos lhe faziam cócegas na pele úmida.
- Então? - preguntou, sorrindo e olhando-lhe para o rosto.
Ela sacudiu a cabeça e tornou a calçar a luva. O dictógrafo filtrou algumas palavras. Pensava no velho Bryant. "Parece impossível ter-me casado! E é um matrimónio
a valer: protecção e comunhão. O Juju morreu. Agora, também o coolie vai deixar de assoprar na sua alegre flautazinha."
- Bem. estou pronta a acompanhá-lo à pesca das trutas.
Quando o navio entrou no pequeno porto de Patikala, ergueu-se das águas um grande pássaro de asas cinzentas. Era um meio-dia resplandecente. No mar, não havia um
único barco. As colinas que se encontravam por trás da aldeia, as palmeiras à beira do regato, não pareciam verdes: o sol cobria-as de prata. Os cimos oscilavam
ao vento com pesada vivacidade. Uma barca de indígenas foi trazida por dois rapazes bronzeados que tinham colocado flores vermelhas sob os lenços claros que traziam
na cabeça. Dois brancos, apoiados impacientemente à amurada, estavam no navio a chamar outros dois, envergando um fato colonial. Doris olhou de lado, para o Basílio.
Parecia tão apaixonadamente interessado que sorriu, emocionada. Não olhava para ela, preocupava-se apenas com o porto mas apertava-lhe a mão com tanta força que
lhe fazia doer. O homem que tinha um boné branco e lhe dirigira a palavra durante a viagem, desde Taiti, aproximou-se.
- Os simples mortais, como nós, têm que esperar pela visita das autoridades superiores. - disse alegremente, indicando os dois franceses que desciam a escada da
escotilha, instalando-se na canoa dos indígenas.
- O Papeete é um barco judicial. - acrescentou Dá volta a todas estas pequenas ilhas para administrar justiça.
A máquina parara. Deslizavam doce e silenciosamente. Aproximara-se um segundo barco; carregavam nele os sacos de correspondência. Duas crianças gritaram qualquer
coisa, em incompreensível francês da Oceania. Na margem, afastada uns cem metros, ouviu-se então um rítmico chamamento. Em frente dos depósitos, pintados de branco,
e da alfândega, encontrava-se um grupo de indígenas magros, de compridas pernas, vestidos com casacos brancos e panos em volta dos rins. Estava calor, mas menos
do que durante a viagem.
- Voltá-los-ei a ver no hotel.-disse o homem do boné branco, abrindo caminho por entre os marinheiros que manejavam as correntes e as cordas. Doris olhou de novo,
para o rosto de Basílio. Rosto amado, expressivo e forte, cheio de sofrimento, vencido por um belo sorriso novo. Tirou a mão, com cuidado, e resolveu chamar-lhe
a atenção. Meigamente, disse:
- Acho que poderemos descer.
Ele acordou imediatamente e sorriu-lhe, antes de, docilmente, ir tratar da bagagem. Tinham duas malas grandes, a velha mala preta e outra nova que pesava muito;
coberta de lona de vela, a primeira mostrava que tinha dado volta ao mundo.
Depois voltou e pegou-lhe outra vez na mão. Logo que as suas mãos se juntavam, ficavam logo molhadas de calor. Por cima da água, o ar agitava-se num prateado tremor.
No alto da escada, ela pensou: "vou ter uma vertigem." Mas não teve. E pensou ainda: "Tem graça, agora estou sem perturbação alguma."
Basílio desceu atrás dela, levando a maleta e a máquina fotográfica. Mal desembarcaram, desembaraçou-se dos dois objectos e tornou a pegar na mão de
Doris. Ela não percebia se aquilo era para se agarrar a ela, se para a proteger.
No minúsculo cais estava um francês com o chapéu colonial e que tinha uma espécie de insígnia oficial no casaco. A seu lado, um indígena protegia-o do sol com um
velho guarda-chuva preto.
Inclinando-se, disse:
- Esperam pelos senhores, no hotel. Desejo que a nossa pequena ilha lhes agrade.
E ficou a olhar para Doris com ar de admiração.
O solo vacilou levemente sob ela, quando deu os primeiros passos. Já assim acontecera quando da sua primeira visita a Patikala. Voltou-se para Basílio, que a seguia,
no caminho feito com estreitos cubos de pedra. O funcionário francês continuava a não desfitar Doris, a qual lhe dedicou o sorriso destinado ao público, esquecendo-o
logo a seguir.
Dois porquitos cinzentos, de patas singularmente compridas, surgiram e afastaram-se, fazendo barulho nas pranchas.
À beira do caminho nasciam flores desconhecidas, e ali estava o perfume da ilha estrangeira, aquele perfume que ela, tanta vez, imaginara em sonho: fumo de madeira,
aroma de qualquer doce, flor desconhecida, fruta queimada pelo sol e, vindo do mar, o cheiro a sal e a peixe.
"Ainda estou viva!" pensou Doris. Não era bem um pensamento, mas antes uma sensação triunfante e irresistível. Vivia! O Basílio estava livre! Estavam ambos na ilha!
Nada mais lhes podia acontecer.
No hotel, eram esperados pelo proprietário, um chinês vestido à europeia. Obsequioso, apressou-se a dizer:
- A senhora escreveu. A senhora já cá esteve. A senhora foi muito amável em ter voltado. Patikala é muito linda, sem serpentes, muito linda, todos que passam voltam.
Reservamos o quarto grande para a senhora. para a senhora e o senhor.
Parecia um parisiense, precedendo-os até à última porta que dava da varanda para o edifício.
Era o quarto onde ela já passara uma noite. Os leitos estavam ao centro, alvos sob os mosquiteiros. Num canto, o Bryant, completamente bêbedo, ressonara. A lua desaparecera
e o dia, com os seus véus verdes e os seus gritos de pássaros, erguera-se sobre o aviltamento de Doris. Agora tudo estava modificado, purificado. Depois da saída
do hoteleiro, ficou de pé no meio do quarto. Ele murmurou:
- Dorochka. - e tinha a mesma entoação de outrora.
Sorrindo, ela comentou:
- Não dizes uma palavra, há quatro horas. Sorrindo também, ele replicou:
- Lembras-te? Nunca fui muito falador. E ela declarou que se lembrava.
Um rapaz, de pernas nuas e rosto alegre, trouxe as malas e ajudou a desfazê-las. Trouxe também duas bilhas estreitas e altas, cheias de água fresca. Indicou com
um gesto o canto do aposento onde havia um nicho e colocou lá as bilhas. Doris não compreendeu o que ele dizia, mas o Basílio respondeu em francês, o que levou o
rapaz a colocar a mão na frente da boca, para se rir melhor, o que decerto era uma alta marca de cortesia. Depois desapareceu.
- Que disse ele?-preguntou Doris, em tom alegre. Aproximou-se da janela e respirou profundamente.
O ar era leve, apesar do calor; sentia-se bem.
- Propôs-me deitar-te água no corpo e eu respondi-lhe que preferia eu próprio dar banho à minha mulher. - disse Basílio, sorrindo.
Reaprendera a sorrir. Estavam a caminho havia seis semanas. Em cada dia, ele transformava-se.
Doris lembrava-se das primeiras noites passadas no barco do Pacífico, como de um mau sonho. A impotente raiva de Basílio, os seus soluços, o ódio contra tudo, mesmo
contra ela, a sua misantropia que raiava pela loucura, em seguida, a sua transformação, dia a dia, hora a hora.
Reparou no que ele estava a fazer: estendia o fato na cama; tinha tirado a camisa, e o torso nu, com os
músculos visíveis, dava uma agradável impressão de vigor.
Ela perturbou-se, mas disse apenas:
- Como estás queimado, já!
- Também tu. - replicou ele, dando volta à cama para a ir beijar.
Nesse beijo, ela sentiu uma sensação de força, como nunca havia experimentado. Nesse minuto, pareceu-lhe inacreditável que tivesse pensado, alguma vez, em ter estado
doente, receando morrer antes da libertação do Basílio. Estava cheia duma vida tenaz e vigorosa. Depois de ele ter descolado os lábios, ela ainda ficou agarrada
ao seu ombro.
Na pueril linguagem dos indígenas, ele disse:
- Agora senhora tomar banho frio.
A imitação foi tão boa que ela desatou a rir.
Continuou a sua cena cómica. Já tirava os sapatos de lona e esforçava-se por caminhar sem fazer barulho, como o rapaz que trouxera a água. Pegou na Doris, sentou-a
no leito e começou a despi-la: tinha as duas mãos dela presas sob os braços, como se se tratasse de uma criança recalcitrante. Levou-a até ao nicho, ergueu a bilha
e, com precaução, deitou-lhe a água fria no peito e nas costas. Ela gritou, não porque achasse o banho desagradável, mas para o divertir. Enxugou-a" pegou-lhe outra
vez nos braços, colocou-a sobre o ombro, como se fosse um saco, e levou-a para a cama.
Os raros cabelos que tinha nas fontes já nem grisalhos estavam, quási não tinham cor. Mas possuía dentro de si uma força indestrutível que o fazia ressuscitar, depois
de ter estado morto durante oito anos.
Ao crepúsculo, sentaram-se serenamente na varanda, porque o homem do boné branco viera bater-lhes à porta, dizendo que, por ser o primeiro dia, não deviam deixar
de ver o pôr do sol. Balouçavam-se devagarinho nas suas cadeiras, enquanto um pouco de frescura se erguia e, mais longe, o mar assistia àquele grande espectáculo
em tons de cobre, verdes e purpúreos. Sem dar por isso, ela pusera-se a entoar uma canção alemã, uma ária de Schubert: "O mar cintilava ao longe."
Como os outros homens, Basílio colocara a seu lado um copo de whisky e soda. Parecia ter os olhos fechados, mas via-se com que intensidade a fitava. Era maravilhoso
ver como os seus gestos, as palavras, a expressão da personalidade lhe voltavam.
De repente, ouviu-se, na aldeia, um coro de gemidos sonoros e teatrais. Uma criada mulata passou a correr e desapareceu entre os hibiscos.
- Começou o julgamento.-disse o homem do boné, sem fazer um gesto - Mauí matou a mulher, por ciúme; apunhalou-a e está convencido de que tinha o direito de o fazer.
Se for condenado, a família ficará desolada.
Basílio conteve-se algum tempo, mas como os gemidos pararam e depois recomeçaram, preguntou:
- E que vão fazer dele?
- Trabalhos forçados. Os franceses têm uma cadeia especial para os indígenas, numa das ilhas. disse o homem, com indolência britânica.
- Pobre diabo!-lamentou Basilio, com indiferença. E continuou a balouçar-se.
Coisa curiosa: nem ele nem Doris viam o que havia de comum entre o seu destino e o do pobre Mauí.
- Os senhores contam estar aqui muito tempo?- preguntou o inglês - Eu sou o dr. Higgins, o homem que lhes dará quinino, quando precisarem. Mas não há muito paludismo,
aqui. Ter cuidado depois da estação das chuvas. Poderão beber a água do rio, tal como é, e fazer ferver a dos poços. Já convenci esta gente do hotel a fazê-lo, mas
não os aconselho a ficarem cá.
Basílio declarou que, realmente, gostariam de alugar ou comprar um bungalow. Higgins sabia de um que lhes conviria.
-Podem alugar a casa do Bragnol, está bem situada, em sítio alto e tem uma espécie de sala de banho. O Bragnol está na Europa a gozar um ano de licença. O governo
francês trata os seus funcionários coloniais com muito cuidado.
O sol acabara a sua apoteose. Quando Doris ergueu os olhos, já era noite. Sorriram ambos, na sombra. Sentia, com uma feliz certeza, que ele estava junto
de si para nunca mais a deixar, que estava próximo em todos os instantes, compreendendo-a e pensando o mesmo que ela. O Basílio havia caído outra vez no silêncio.
- Bem, vou-me embora. Habito lá em cima. disse o dr. Higgins.
Indicava uma direcção qualquer na brusca e estridente noite dos trópicos.
- Hei-de tornar a vê-los e estou à vossa disposição se qualquer coisa for precisa. - Subiu os degraus da varanda e depois aconselhou: - Será bom usarem uma cinta
de lã enquanto não estiverem habituados às nossas noites. Isto parece muito quente, mas, às vezes, é horrivelmente frio. Até breve.
Depois de ter dito estas palavras, a noite engoliu-o. Não se ouviu mais do que o seu passo no saibro. E em seguida, mais nada.
Depois de um intervalo, Doris preguntou:
- Era assim que tinhas imaginado isto? Basílio ajoelhou-se na sua frente e encostou a cabeça aos seus joelhos, como um animal ávido de contacto. Ela acariciou-lhe
a nuca que o sol havia fortemente marcado e, por cima dele, mergulhou a vista na escuridão. Como o céu estava claro por cima do porto negro, os contornos das palmeiras
e das casas reapareciam timidamente.
- Tem graça! Já não discutimos . - murmurou ela, comovida.
Ele ergueu a cabeça e Doris sentiu passar-lhe a sua respiração pelo rosto.
- Agora vejo-te na sombra.
- Mentiroso.
Cada uma das suas insignificantes palavras estava cheia de doçura e felicidade.
- A lua vai aparecer em breve. - disse ela, em ar preguiçoso.
- já reparaste - respondeu ele - que a gente sente sempre saudade? Tão perto um do outro, e assim mesmo a sentimos!
Ela riu com meiguice, pois são estas observações que tornam felizes os apaixonados.
- Sim, mas custa menos.
O hoteleiro veio pendurar na varanda um candeeiro de acetilene, muito pesado, que lançava uma luz branca e crua, exactamente como ela vira na África do Norte. Foi
imediatamente rodeada por uma nuvem de borboletas que se tocavam, procurando-se e repelindo-se mutuamente. O rosto de Basílio permanecia na luz branca. Os seus lábios
encontravam-se fechados numa linha sólida, dolorosa e bela.
- Em que pensas? - preguntou Doris.
- Reparaste na linha de ombros do rapaz que nos trouxe a água? Exactamente como um egípcio: a clavícula não desce para tornar a subir como em ti e em mim, mas dá-se
o contrário.
- Vais fazer uma estátua? - preguntou Doris, depois de ter dominado um segundo de ciúme.
Basílio sacudiu a cabeça.
- Acho que isso acabou!
Nessa altura, veio o hoteleiro dizer:
- O senhor e a senhora estão servidos.
Basílio levantou-se, espreguiçou-se e estendeu a mão a Doris para a ajudar a sair da sua cadeira: acariciou-lhe discretamente o braço nu, contacto que o encheu de
felicidade. Na aldeia, já não choravam; cantavam, o que ainda era mais triste. O canto de milhares de grandes cigarras vibrava no ar calmo.
Doris entrou na primitiva sala de jantar, que já conhecia. Por cima da comprida mesa comum, havia um grande candeeiro de petróleo. Estavam ali dois homens que, cheios
de curiosidade, fizeram algumas preguntas. Depois puseram-se a jogar o xadrês. O hoteleiro explicou ao ouvido de Basílio que eram os representantes da companhia
a que pertenciam as plantações de cana de açúcar que havia no interior da ilha. Doris admirou-se que houvesse "um interior. Na sua ideia, a ilha era minúscula, limitada
aos locais que conhecia: o porto, o hotel, o regato e as palmeiras nocturnas.
Um motor de automóvel fez barulho e depois qualquer pássaro lançou um apelo com voz humana.
- Anda, vamos passear. - disse Doris quando o rapaz de belos ombros (sabiam já que se chamava Matoata), veio levantar a mesa.
- Tenho preguiça. - respondeu Basílio, espreguiçando-se.
- É preciso andar, mandrião.
Era maravilhoso poderem, de novo, gracejar e fazer comentários destituídos de senso. E rirem.
Por fim, ele ergueu-se e deixou-se conduzir. Desceram os degraus e ela levou-o ao longo dos arbustos até ao sitio onde o regato corria na descida, entre as palmeiras.
- Olha para as estrelas. Mas Basílio não a desfitava. E preguntou-lhe:
- Não estás cansada?
Ele tinha os ouvidos a zumbir de fadiga. Ela riu-se e cantou:
- As minhas forças são inexgotáveis. Nunca me canso.
- É verdade! -concordou ele, espantado.
Ela nunca enjoara, a bordo, enquanto que nos dias de forte balanço, ele não saíra da cabine.
Estava fresco, perto do regato. Grandes morcegos cruzavam-se por cima das suas cabeças. Podiam agora ouvir o leve murmúrio da água, ruído paradisíaco naquela paisagem
tropical. A erva alta e pesada em que as suas mãos tocavam, era fresca e estava úmida de orvalho. Na aldeia, continuavam a cantar com um acompanhamento surdo e ritmado.
A Doris, parecia-lhe que não caminhava pela terra mas sobre uma nuvem colocada entre ela e o caminho estrangeiro por onde caminhava na estrangeira noite. O ar tornava-se
cada vez mais diáfano e ardente e, de repente, a lua apareceu, branca e luminosa, súbita como um holofote. Doris olhou-a, erguendo o queixo, e viu-a subir por trás
das colinas. Mas tudo aquilo parecia irreal.
Pensou: "Hei-de tornar a cantar."
E quando falou, a ideia transformou-se:
- Hás-de tornar a fazer estátuas.
O Basílio voltou-se vivamente para ela e parou, dizendo:
- Estava precisamente a pensar nisso. vou tentar fazer o teu busto. Aqui há decerto argila ou lama
- esta gente fabrica as vasilhas com uma terra vermelha. Já reparaste? E é possível que também haja greda. Amanhã talvez possamos ir de carro ou a cavalo ao interior
da ilha.
Ela admirava-se da forma como o seu olhar atingia a realidade com força e senso prático.
O caminho parava bruscamente na mata e Doris estendeu-lhe a mão. Ele colocou-lhe um braço em redor dos ombros e ela sentiu-se em segurança.
- Há uma ponte. - murmurou Basílio. Durante um momento, ela encontrou-se em Baxterville no caminho nocturno que conduzia à prisão. As valetas cheiravam a erva e
a água estagnada como nesta longínqua terra. Tudo parecia ter sido sonhado: o passado e o presente.
- Agarra-te a mim . - disse ele, levando-a para a ponte que não era mais do que uma trança elástica, oscilando como um baloiço. No meio da ponte pararam e beijaram-se.
Doris pensou: "Que pena não poder fazer parar o tempo!" Era a felicidade plena, sem sombra, vibrante - colocada a tal altura que era tão impossível lá permanecer,
como na mais aguda nota duma ópera. Como se respondesse ao seu pensamento, ele murmurou:
- Agora há-de ser sempre assim .
Por cima deles, atrás das árvores, a lua flutuava num vasto céu cheio de desconhecidas estrelas. Um arco-íris acompanhava-a, um grande círculo de prata sombria,
a rodeá-la com fulgor.
A casa de Bragnol, que alugaram passados dois dias, ficava a meia encosta. Mais acima e mais abaixo, encontravam-se as dos outros europeus que ali viviam e que eram
raros. Estavam rodeadas de hibiscos que floresciam em sete cores diferentes e cheiravam através das janelas abertas, guarnecidas de mosquiteiros.
A casa tinha uma vasta varanda para a qual davam todas as portas. Os pés das camas assentavam sobre pequenas tegelas cheias de petróleo e a casa estava construída
sobre paus, por causa das formigas. O Basílio divertia-se com o rumorejar e a multiplicidade de vida que animavam o mínimo centímetro deste mundo tropical e também
com o medo que Doris tinha de todos os animais.
- O Juju gostaria de cá estar. - disse ela, com voz abstracta.
E ele respondeu:
- Havemos de ir à África buscar outro Juju.
Doris reflectiu muito tempo nesta frase que representava confiança no futuro. Mexeu-se muito durante os primeiros dias da instalação. Mudou os móveis burgueses do
funcionário, deixando intacto apenas o quarto infantil. Os Bragnol deviam ter um rapazinho; os seus brinquedos haviam ficado numa velha caixa de açúcar: um quartel
francês, uma espingarda de pau e uma mirrada estrela do mar. Doris ficou a pensar na criança, imaginando-a. Na sala de jantar, estava exposta uma cruel fotografia
da família Bragnol, mas o petiz estava lá apenas como um bebé nos braços da mãe, de cabelo revolto. "Uma criança?" pensava Doris, sentada na nursery com as mãos
juntas e fixando com o olhar o caixote do açúcar. "E porque não?" Era uma ideia absolutamente nova e bastante bizarra, quando, dois meses antes, ainda receava morrer
no comboio, entre Nova Iorque e S. Francisco. Olhou para as mãos que, cada dia, escureciam mais. Sentia, nas veias, o pulso regular e satisfeito. O coração portava-se
bem, a respiração fazia-se sem esforço no prateado ar de Patikala e nunca a mão invisível vinha bater-lhe no peito, ameaçando-a de morte brusca. Trabalhou muito,
nesses dias, sem se sentir fatigada. Apenas, sob os seus pés, o solo permanecia elástico e oscilante como uma nuvem - mas ela habituava-se a tal fenómeno. Era, sem
dúvida, uma parte de todas as coisas sobrenaturais e felizes que a rodeavam.
- Ando por cima de nuvens.-anunciou, a rir, a Basílio que ouvindo tais palavras a ergueu nos braços,
levando-a para aquilo a que chamavam jardim, junto dos hibiscos.
Cozinhou no esquisito fogão, ajudada por uma palradora indígena a que haviam dado o nome de Antonieta. O seu vestido, sem mangas, ficava impregnado do calor e do
aroma do cuny. com Basílio, foi ao interior da ilha procurar argila e greda num carro pre-histórico que o dr. Higgins pusera à sua disposição. Parecia que a construção
das estradas não dera grandes cuidados ao governo francês. Doris cantava enquanto guiava, e sentia constantemente que Basílio estava a seu lado - sentia-o de uma
forma penetrante e integral. Havia apenas uma semana que se encontravam na ilha - e já os anos anteriores se começavam a apagar. De resto, não encontraram greda
nem barro e o Basílio não entristeceu por isso. Ela não insistia para que ele trabalhasse e, pelo seu lado, parecia ter medo do velho piano que os Bragnol tinham
na sala. Estava, no entanto, convencida de que tornaria a cantar.
A ilha era um excelente local para recuperar a saúde e esquecer. Depois, tornariam a entrar na vida, de que haviam fugido. Como presente de boas-vindas, o dr. Higgins
trouxe-lhes uma garrafa de verdadeiro Haig and Haig. Informou-se acerca da saúde de ambos e esforçou-se por descobrir quem eram e o que vinham ali fazer. Basílio
transformou-se, perante os cintilantes e divertidos olhos da Doris, numa espécie de Gauguin; lançou um fogo de artifício de termos impressionistas, falou da areia
vermelha e das sombras azuis e afirmou que aquela pequena ilha era um elo indispensável na corrente da sua carreira artística. O médico retirou-se, algo desorientado.
Em geral, não se via, na ilha, senão pessoas que tinham assuntos a tratar com o Estado ou compradores de copra.
- Naturalmente, teremos que fazer algumas visitas . - disse Doris, sentindo ainda a influência da educação mundana de miss Butcher.
E o Basílio respondeu:
- No paraíso não se fazem visitas.
Estava sentado ao sol, protegido por uma sombrinha de folha de palmeira e vigiava um coco aberto que colocara sob os ardentes raios solares. Antonieta dissera-lhe
que, ao cabo de três horas, formar-se-ia uma bebida mágica, bastante forte para embriagar seis homens. Doris sentia muita vontade de o ir beijar, mas não o fazia,
com medo de gastar muito depressa o seu amor. Ele ria-se e comentava:
- Imaginas que o amor é um pedaço de bolo que a gente não tem o direito de comer inteiro? Ora dize: é assim que tu imaginas o amor?
Ela ria-se também. Não era bem assim, mas, por exemplo, como a lua que nunca se sabia, ao certo, quando diminuía - mas que diminuía fatalmente. Ouvindo essa nova
imagem, ele riu ainda mais. Antonieta saiu da cozinha e tomou parte na hilariedade, sem saber do que se tratava. Todas as tardes desciam a colina e seguiam o regato
até à ponte. Ficavam alguns minutos na oscilante trança, muito encostados um ao outro, ou, pelo contrário, afastados, mas de mãos dadas. Em seguida, voltavam para
casa. Como um estreito estojo, a casa encerrava a sua felicidade. A lua diminuíra e Dórís mostrou-a em ar de censura:
- Vês? Vês?
Basílio começou por se rir, depois tornou-se grave e preguntou:
- Há quanto tempo estamos aqui ?
Fizeram cálculos e descobriram, finalmente, que havia doze dias, contando com o da chegada. Tinham perdido a noção do tempo; parecia-lhes que sempre ali haviam vivido
e, no entanto, estavam há tão pouco tempo, que ainda não conheciam as caras dos indígenas. Na aldeia, tocaram tambor à noite; o dr. Higgins passou lá por casa, bebeu
muito whisky do que lhes tinha dado e lançou com negligência:
- Realmente, condenaram o Mauí à morte.
- Quem?-preguntou Basílio, que estava ocupado a fazer uma espécie de trança com folhas de palmeira.
Embora fosse indigno de um homem fazer destes entrançados, a Antonieta ensinava-lhe os ofícios da ilha.
-Já lho disse: é aquele tipo que apunhalou a mulher. - explicou Higgins.
Ele deixou o trabalho e Doris deitou-lhe um breve olhar interrogativo. Abriu a boca e fechou-a sem dizer nada. Apenas a linha que separava os lábios fechados, se
cavou um pouco mais. Tinha duas profundas rugas que lhe ensombravam o rosto e que Doris não podia contemplar sem se sentir devorada pelo amor e pela compaixão. Fora
assim logo de princípio, na casa da quinquagésima sexta rua. Para lhe vir em auxílio, ela disse:
- A pretensa justiça é, realmente, uma boa porcaria .
- Ora. o governo viu-se obrigado a dar um exemplo, senão os indígenas convencer-se-iam de que podiam cortar-se mutuamente o pescoço, todas as vezes que lhes desse
na real gana.
Higgins acabou de falar, num bocejo. Sacudiu a garrafa de whisky e foi-se embora. Basílio ficou calado ainda durante meia hora, inclinado para o trabalho. Depois
rasgou-o e deitou-o para longe.
Disse:
- Acho que me vou pôr a desenhar.
Na escala seguinte, o barco de Taiti trouxe uma carta do velho Bryant. O carteiro era um velho que possuía uma barbicha grisalha no rosto mongólico. Inclinou-se,
esfregou o chato nariz de animal e disse, ou antes, cantou um longo palavriado que Doris tomou por cumprimentos. Basílio saiu do aposento, furioso. Tinha ciúme do
ar que ela respirava, dos lagartos que corriam pelas paredes, das flores que Doris preferia. Ciumento dos seus sonhos e de todos os homens que lhe haviam sido úteis
durante o tempo em que ele estivera na prisão. O velho Bryant escrevia assim:
"Querida Doris:
"Esta carta leva-te as minhas felicitações pela chegada à tua pátria de eleição. Não duvidas que me preocupo muito contigo. Envia-me imediatamente um telegrama,
informando-me do teu estado de saúde. Teria desejado saber-te num sítio onde mais facilmente
pudesse ir ter contigo. Mas a vontade do homem é sagrada - é o seu paraíso na terra - e espero que será o paraíso o que tu encontrarás nessa ilha cujo nome não consigo
pronunciar.
"Aqui, não há novidades. O Dogwood tenta discretamente florir, a estação teatral foi boa e, pelo que um profano pode compreender, os vestidos de noite têm maior
profusão de guarnições. O Juju faz-me falta; deveria arranjar um cão para que a casa ficasse menos silenciosa - mas não me atrevo a fazê-lo. O Júnior veio ver-me;
está a fazer uma espécie de cura de desintoxicação. Encarregou-me de te apresentar cumprimentos. Não voltei à Ópera.
"E agora, queria agradecer-te o tempo que me concedeste. Foram os dezoito meses mais preciosos da minha existência - e tu és demasiado nova para o compreenderes.
Não quero tornar-me sentimental nem influenciar-te; desejo apenas que o poder superior que deve existir em qualquer parte acima de nós te conserve a saúde e te dê
um período tão feliz como aquele que te deve este velho egoísta."
Doris dobrou a carta e meteu-a entre as páginas de um livro que encontrara na estante dos Bragnol: A Fauna e a Flora das Ilhas da Amizade, Era um livro antigo com
reproduções de flores e de animais, imagens de cores vivas e exageradas, mas com um desenho de uma exactidão meticulosa. Ficou depois sentada algum tempo na varanda,
com as mãos cruzadas, olhando para o pequeno porto, onde três barcos de pescadores se dirigiam para o mar alto.
Na cozinha, Antonieta cantava uma incompreensível melodia. Quando se calou, reinou um tal silêncio que Doris ouviu o bater das asas de um pássaro azul que cortava
o ar.
Passados dois dias, Basílio anunciou que ia tentar fazer o seu retrato. Nesses dois dias, Doris mostrara-se um tanto impaciente, tendo-lhe dito:
- Não podes ficar indefinidamente sentado ao lado dos cocos verdes, à espera que fermentem .
De resto, não obtivera o mínimo êxito com os
cocos e o seu trabalho de entrançar também não dera melhores resultados. Fora à aldeia e descobrira uma velha que vendia redes. Comprou uma que fixou entre as colunas
da varanda e disse a Doris para lá se deitar, acrescentando:
- Tens aspecto fatigado; precisas de repousar.
- Já nem sei o que é estar cansada. - respondeu ela.
Parecia-lhe que ficaria sempre em movimento, que faria muitas coisas, que se encontraria simultaneamente em múltiplos lugares e que nunca lhe faltaria nada. Sim,
a sensação bem conhecida que a acompanhara durante anos, voltara: o medo de deixar passar o tempo e de lhe fugir o essencial.
Mas embora tivesse muita vontade de continuar a pisar a terra instável e plena de nuvens, Doris obedeceu a Basílio e deixou-se levar para a rede.
- Que tens? - preguntou ele, depois de lhe haver beijado levemente a face.
- Eu ? Que hei-de ter ?
Instalou-se, enquanto ele foi a casa buscar papel e lápis. Depois sentou-se numa esteira e ergueu os olhos para ela. As grandes sombras irregulares de uma árvore-do-pão,
brincavam-lhe na cara. Disse:
- Estás com um falso colorido. O teu rosto está cor de bronze e tens as pálpebras fixas. E os lábios também.
- Gauguin ? - preguntou ela, a rir.
Não respondeu e prosseguiu na sua observação. com um estremecimento de alegria, Doris reconheceu-lhe o olhar, ao mesmo tempo abstracto e analítico, que tinha nas
primeiras semanas, em Nova Iorque.
- Como queres que eu me ponha?-preguntou, docilmente, erguendo-se sobre os cotovelos.
Fez um gesto de impaciência, sem ainda se dispor a começar.
Um pouco enervado, replicou:
- O melhor era se pudesses adormecer. Sabes? Às vezes, vi-te dormir, não aqui, mas outrora. Era. era uma coisa importante na minha vida. Ver dormir
um ser que se ama. Se eu pudesse desenhar-te o rosto, tal como é quando dormes, se realmente eu pudesse. então retomaria coragem, ficaria convencido de que a prisão
não me inutilizou por completo.
Desde que fora indultado, era a primeira vez que falava da prisão. A palavra ficou suspensa no ar e o seu eco soou muito tempo depois de ter sido pronunciada. Doris
fechou os olhos, com a aplicação de um modelo profissional.
- Está bem assim ? Ele riu-se.
- Pareces uma criança malcriada que finge estar a dormir.
Ela tentou manter imóveis as pálpebras. Ele levantou-se e aproximou-se. Avançou a face até muito perto dos seus olhos para receber a suave carícia que haviam inventado
uma noite - como antes deles mil apaixonados. Ela tocou-lhe na face com as pestanas, como com duas escovas minúsculas e ágeis.
- Os americanos chamam a isto um beijo de borboleta.
Desde que estavam na ilha, em geral falavam francês.
Basílio afastou-se vivamente e pegou no lápis.
- Um beijo de borboleta ? Encantador. - disse, em ar sombrio - Onde aprendeste isso ?
- Contaram-me..-respondeu ela, em voz baixa. Houve um silêncio doloroso, durante o qual ele pensou: "Fez exactamente o mesmo com outros homens." E ela pensava: "Não
o fiz com ninguém." Mas nem um nem outro podiam exprimir estes pensamentos. Aquilo erguia-se entre eles, no espaço, como uma parede invisível. Doris deixou tombar
a cabeça para trás e tornou a fechar os olhos. Realmente tinha as pálpebras roxas. Sentia também o coração: não lhe fazia doer, não parava, mas marcava a sua presença.
Basílio pegou bruscamente no papel e desenhou alguns traços. Ela abriu os olhos e fitou-o, de lado. Havia impulso na sua mão e tornava a encontrar-lhe no olhar a
luz agressiva e que gostava.
- É verdade que, na cadeia, não desenhavas realmente senão comboios?
Depois de ter feito a pregunta, ficou aterrada, pois era um assunto em que nunca tocavam. com efeito, ele, empregando uma palavra de Antonieta, exclamou:
- Tabu!
Ela desviou a conversa e quis gracejar:
- Sou um círculo ou um quadrado?
Não respondeu à pregunta; disse apenas, com vivacidade:
- Fica; está bem assim.
Durante momentos, reinou o silêncio. Não se ouvia senão o zumbido de grandes insectos por cima das silvas e, em baixo, no porto, o ranger de um remo de encontro
a metal.
com os olhos fechados, ela preguntou:
- Porque nunca falamos nisso?
A rede começara a baloiçar, e também a casa, a ilha; brandamente, tudo oscilava em seu redor. Ele reflectiu antes de responder:
- Não se pode falar nisso; lembra-te que, depois da guerra, ninguém podia falar nela. Foi preciso que decorressem dez anos para que os homens abrissem a boca e aparecessem
alguns bons livros com narrativas da guerra. Talvez daqui a dez anos eu te possa contar o que lá passei.
- Disseste um dia que te batiam. É verdade? Ela tinha sempre os olhos fechados e ouvia o lápis a correr pelo papel.
- É verdade. Por duas vezes bati-lhes também. Senão teria saído mais cedo.
- Pois é; terias saído mais cedo. - murmurou Doris.
Abriu os olhos. Pareceu-lhe que o sol havia desaparecido e que estava mais escuro. A árvore-do-pão tinha folhas negras, dentadas, maiores do que habitualmente. Agitava-se
e aproximava-se dela. Fechou os olhos e viu círculos negros e também outros de uma cor que não existia.
- Mas saíste a tempo. - murmurou ela.
--Que dizes?- preguntou ele, sem compreender.
- Saíste a tempo. Às vezes, tinha medo que saísses demasiado tarde. Mas não saíste tarde.
- Fica assim.. ? Bem . Não te mexas. Numa voz que ele mal ouviu, preguntou: - Somos felizes, não achas?
A entoação era tão estranha que ele pousou o lápis e aproximou-se mais.
Ela ergueu-se e contemplou-o com um olhar que o encheu de pavor. De súbito, suspirou profundamente, gemendo.
- Não me baloices. - pediu - Não . olha que me fazes ficar tonta.
- Mas, Dorochka, não estou a balouçar-te. disse ele, surpreendido.
- Estás. - replicou ela, em voz opressa. Pára. não posso mais. Pára!
com rapidez, ele pegou-lhe nas mãos e agarrou-se à rede a fim de a impedir absolutamente de mexer. Doris fechou os olhos e as suas mãos abriram-se. Sorrindo, com
os olhos fechados, murmurou:
- O amor. é uma coisa de que se não deve falar. Tabu.
- Sim. Não falemos nele. - redarguiu Basílio, voltando-se para o seu desenho.
- Talvez, daqui a dez anos. poderás falar. dizer quanto nos amámos.
- Não acabará nunca. Já venceu demasiados obstáculos para poder findar.
De repente, Doris sentou-se e abriu os olhos. Abriu também a boca. Estendeu as mãos para ele, dobrando os dedos de forma esquisita.
- Ó Basílio. Basílio. Basílio.- murmurou. A rede começara a oscilar. Ele precipitou-se para a fazer parar. Viu então que as suas pálpebras estavam quási pretas,
quási tão pretas como a sua boca aberta. Sob os olhos, as faces começavam a sumir-se.
Antonieta cantava, na cozinha. Um pássaro voou do hibisco vermelho e foi pousar num amarelo. Os remos rangiam no porto. Tudo estava claro e nítido.
- Que tens, Dorochka?-gritou - Olha para mim! Que tens?
Ela voltou para ele a cabeça e os olhos, mas não o viu. Não via senão coisas escuras e o sol desaparecera. Uma enorme, imensa mão batia-lhe no coração, que ressoava
como um sino. Depois tudo acalmou. Sorriu com a boca pintada.
- Nada. - murmurou.
Estendeu-se outra vez e afastou as mãos do Basílio. Em voz baixa, mas distinta, disse:
- Tenho pena. Tenho tanta pena! Basílio curvou-se para ela. O lápis caiu. A criada continuava a cantar.
Doris ainda tinha os olhos abertos mas já estava morta.

                                                                

                   Vicki Baum

 

 

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