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Primeiro foi o ferryboat saindo lentamente da costa de Jersey ao amanhecer — o momento cristalizou-se como meu primeiro símbolo de Nova York. Cinco anos depois, quando eu tinha quinze anos, saía da escola e ia ao centro da cidade para ver Ina Claire em The Quaker Girl e Gertrude Bryan em Little Boy Blue. Indeciso em meu amor melancólico e sem esperança por ambas, não conseguia escolher entre as duas — então elas se fundiram numa deliciosa identidade, a garota. Ela foi meu segundo símbolo de Nova York. O ferryboat representava o triunfo; a garota, o romance. Com o tempo, eu conquistaria um pouco dos dois, mas houve um terceiro símbolo que perdi em algum lugar, e para sempre.
Encontrei-o numa tarde escura de abril, passados outros cinco anos.
“Oi, Bunny”, gritei. “Bunny!”
Ele não me ouviu — meu táxi ficou para trás e alcançou-o de novo meia quadra adiante. Havia poças escuras de chuva na calçada, e o vi caminhando rápido no meio da multidão, usando uma capa de chuva bege sobre o inevitável terno marrom; notei com espanto que ele carregava uma leve bengala.
“Bunny!”, chamei de novo, e desisti. Eu ainda era universitário de Princeton, enquanto ele tinha se tornado um nova-iorquino. Era sua caminhada vespertina, essa correria com a bengala no meio da chuva que caía, e como faltava uma hora para nosso encontro, pareceu-me uma intromissão ir ter com ele quando estava envolvido com sua vida privada. Entretanto, meu táxi continuou emparelhado com ele, continuei observando e fiquei impressionado. Ele já não era o pequeno e tímido acadêmico da Holder Court — andava com firmeza, absorto em seus pensamentos e olhando para a frente, deixando óbvio que seu novo cenário era de todo suficiente para ele. Eu sabia que ele tinha um apartamento onde morava com três outros homens, já livre de todos os tabus de estudante, mas havia algo mais que o nutria, e tive minha primeira impressão dessa novidade: o espírito metropolitano.
Até aquela época, eu só tinha visto a Nova York que se oferecia à inspeção — era como Dick Whittington,1 chegado do campo e boquiaberto com os ursos amestrados, ou um jovem do Midi deslumbrado com os bulevares de Paris. Eu tinha vindo só para ver o espetáculo, embora os projetistas do edifício Woolworth e do painel luminoso da corrida de bigas, os produtores de comédias musicais e peças de tese não pudessem desejar um espectador mais receptivo, já que o estilo e o brilho que eu atribuía a Nova York superavam as expectativas da própria cidade. Mas nunca aceitei nenhum dos convites praticamente anônimos para bailes de debutantes que costumavam aparecer na correspondência de qualquer universitário, talvez porque sentisse que nenhuma realidade estaria à altura da concepção que eu fazia do esplendor de Nova York. Além do mais, aquela que eu chamava insensatamente de “minha garota” era do Meio-Oeste, o que mantinha lá o centro afetivo do mundo, de modo que eu considerava Nova York essencialmente cínica e cruel — exceto por uma noite em que ela iluminou o terraço do Ritz numa breve aparição.
Mais tarde, no entanto, eu a perdera para sempre e queria um mundo masculino, e a visão que tive de Bunny me fez ver Nova York exatamente assim. Uma semana antes, Monsignor Fay me levara ao Lafayette, onde se estendia diante de nós uma fulguração de comida, chamada hors d’oeuvre, que acompanhamos com um clarete tão desafiador quanto a confiante bengala de Bunny — mas afinal de contas tratava-se de um restaurante, e depois teríamos de transpor uma ponte para voltarmos ao interior. A Nova York da dissipação estudantil, de restaurantes como o Bustanoby’s, o Shanley’s e o Jack’s, tinha se tornado um horror, e embora eu tenha voltado a ela, ai de mim, muitas vezes numa névoa de álcool, senti cada volta como uma traição a um idealismo persistente. Minha participação era mais lasciva que licenciosa, e restam poucas lembranças prazerosas daqueles dias. Como disse uma vez Ernest Hemingway, a única finalidade do cabaré é reunir homens descomprometidos e mulheres complacentes. O resto é perda de tempo numa atmosfera viciada.
Naquela noite, porém, no apartamento de Bunny, a vida era mansa e segura, o produto final de uma destilação de tudo que eu aprendera a amar em Princeton. O som agradável de um oboé se misturava aos ruídos urbanos que vinham da rua, penetrando na sala com dificuldade através de enormes barricadas de livros; a única nota dissonante era dada por um homem que rasgava envelopes de convites. Eu tinha encontrado um terceiro símbolo de Nova York e comecei a pensar em alugar um apartamento como aquele e em selecionar amigos com quem dividi-lo.
Improvável — durante os dois anos seguintes, tive tanto controle sobre meu destino quanto um preso sobre o corte de sua roupa. Quando voltei a Nova York, em 1919, minha vida estava tão enrolada que eu não podia nem sonhar com um tranquilo período monástico na Washington Square. O importante era ganhar dinheiro em publicidade, o bastante para alugar um pequeno apartamento no Bronx para duas pessoas. A garota em questão nunca tinha visto Nova York, mas era sensata o suficiente para estar um pouco relutante. E num halo de ansiedade e infelicidade, passei os quatro meses mais vulneráveis de minha vida.
Nova York tinha toda a iridescência do nascimento do mundo. Soldados vindos da guerra desfilaram pela Quinta Avenida, e as garotas eram atraídas instintivamente para leste e norte atrás deles — esta era a maior nação do mundo e havia um clima de gala no ar. Enquanto eu pairava como um fantasma no Salão Vermelho do Plaza numa tarde de sábado, ia a inebriantes festas no entorno da rua 60 Leste, ou bebia com o pessoal de Princeton no bar do Biltmore, era sempre assombrado por minha outra vida — meu quarto ordinário no Bronx, meus centímetros quadrados de metrô, minha obsessão pela carta diária do Alabama — chegaria, e o que diria? —, meus ternos surrados, minha pobreza e o amor. Enquanto meus amigos estavam se dando bem na vida, eu tinha empurrado meu barco precário para a correnteza. A juventude dourada que circulava em volta de Constance Bennett no Club de Vingt, os colegas do clube de Yale-Princeton animados em nossa primeira reunião depois do fim da guerra, o clima das casas de milionários que eu às vezes frequentava — tudo isso era vazio para mim, embora eu admitisse que era um cenário impressionante e lamentasse estar comprometido com outro romance. A mais divertida mesa de almoço ou o cabaré mais onírico — era tudo a mesma coisa. Eu voltava ansiosamente para minha casa na Claremont Avenue — porque poderia haver uma carta esperando diante da porta. Um por um, meus grandes sonhos com Nova York se corromperam. A lembrança do charme do apartamento de Bunny feneceu com todo o resto quando entrevistei uma senhoria desgrenhada no Greenwich Village. Ela disse que eu poderia trazer garotas para o meu quarto, e essa ideia me encheu de desânimo — por que eu ia querer trazer garotas para o meu quarto? Eu tinha uma garota. Perambulava pela cidade, pela rua 127, magoado com sua vitalidade vibrante; ou então comprava ingresso para algum teatro barato na farmácia Gray’s e tentava me perder por algumas horas em minha velha paixão pela Broadway. Eu era um fracasso — medíocre na publicidade e incapaz de me lançar como escritor. Odiando a cidade, bebia até meu último centavo e, caindo de bêbado e choroso, voltava para casa...
... Cidade imprevisível. O que aconteceu depois foi apenas uma entre milhares de histórias de sucesso daqueles dias agitados, mas desempenha um papel em meu próprio filme de Nova York. Quando voltei, seis meses depois, as salas das editoras estavam abertas para mim, agentes imploravam por peças, o cinema ansiava por roteiros. Para minha perplexidade, fui adotado não como um interiorano do Meio-Oeste, nem como observador participante, mas como o arquétipo daquilo que Nova York queria. Essa afirmação demanda certa descrição do que era a metrópole em 1920.
Já existia a cidade branca e alta de hoje, a atividade febricitante do boom, mas havia também uma desarticulação geral. Assim como outros, o colunista F. P. A.2 tomou o pulso da multidão, mas timidamente, como quem observa pela janela. A sociedade e as artes autóctones não se misturavam — Ellen Mackay ainda não se casara com Irving Berlin. Grande parte dos personagens de Peter Arno não teria nenhum significado para os cidadãos de 1920, e, fora a coluna de F. P. A., não existia uma tribuna para a civilidade metropolitana.
Então, por um instante, a ideia de “nova geração” tornou-se uma fusão de muitos elementos da vida de Nova York. Gente de cinquenta anos podia fingir que ainda existia uma nata da sociedade, ou Maxwell Bodenheim podia fingir que existia uma boêmia digna de sua pintura e seu traço — mas a mistura dos elementos brilhantes, alegres e vigorosos começou nessa época, e pela primeira vez apareceu uma sociedade um pouco mais animada que os circunspectos banquetes de Emily Price Post em salões de mogno. Se essa sociedade inventou o coquetel, também desenvolveu o espírito da Park Avenue, e pela primeira vez um europeu culto podia vislumbrar uma viagem a Nova York como algo mais divertido do que uma expedição em busca de ouro no interior da Austrália.
Só por um instante, antes que ficasse demonstrado que eu era incapaz de desempenhar o papel, eu, que sabia sobre Nova York menos que qualquer repórter com seis meses de residência na cidade, e menos sobre sua sociedade do que qualquer rapaz desacompanhado nos bailes do Ritz, fui elevado à posição não só de porta-voz da época, mas de típico produto do momento. Eu, melhor dizendo agora, “nós” não sabíamos exatamente o que Nova York esperava de nós e achamos aquilo muito confuso. Poucos meses depois de embarcar na aventura metropolitana, já mal sabíamos quem éramos e não tínhamos ideia do que éramos. Um mergulho numa fonte pública ou um esbarrão casual com agentes da lei era o bastante para nos levar às colunas de fofocas. Éramos citados com relação a uma vasta quantidade de assuntos sobre os quais nada sabíamos. Na verdade, nossos “contatos” se resumiam a meia dúzia de amigos solteiros da faculdade e uns poucos conhecidos recentes da área literária — lembro de um Natal solitário em que não tínhamos um só amigo na cidade nem uma casa aonde ir. Sem encontrar um núcleo ao qual nos agarrar, nós mesmos nos tornamos um núcleo e aos poucos ajustamos nossas personalidades conturbadas à cena da Nova York contemporânea. Ou melhor, Nova York nos esqueceu e nos deixou ficar.
Este não é um relato das mudanças da cidade, mas das mudanças dos sentimentos deste escritor pela cidade. Da confusão de 1920, lembro de andar na capota de um táxi pela Quinta Avenida deserta numa noite quente de domingo, de um almoço no sereno jardim japonês do Ritz com a melancólica Kay Laurel e George Jean Nathan, de escrever a noite toda repetidamente, de pagar caro por minúsculos apartamentos, e de comprar carros magníficos que enguiçavam toda hora. Tinham aparecido os primeiros bares clandestinos, passear estava fora de moda, o Montmartre era o lugar elegante para dançar e o cabelo louro de Lillian Tashman rodopiava na pista de dança entre universitários embriagados. As peças eram Declassée e Sacred and Profane Love, e no Midnight Frolic você dançava lado a lado com Marion Davies e talvez reconhecesse a animada Mary Hay entre as coristas. Pensávamos que estávamos distantes de tudo aquilo; talvez todo mundo pense que está distante de seu ambiente. Nos sentíamos como duas criancinhas num enorme galpão, iluminado e inexplorado. Reunidos no estúdio de Griffith em Long Island, tremíamos em presença dos rostos familiares do filme O nascimento de uma nação; mais tarde, compreendi que por trás do entretenimento que a cidade despejava sobre a nação não havia mais que um monte de gente perdida e solitária. O mundo dos astros de cinema era como o nosso, na medida em que eles estavam em Nova York, mas não eram de Nova York. Esse mundo tinha pouca noção de si mesmo e nenhum centro: quando conheci Dorothy Gish, tive a sensação de que estávamos os dois no polo Norte e que nevava. Desde então eles encontraram um lar, que não estava destinado a ser Nova York.
Quando nos entediávamos, encarávamos nossa cidade com um capricho à moda de Huysmans. Passávamos uma tarde sozinhos em nosso “apartamento”, comendo sanduíches de azeitona e bebendo um litro de uísque Bushmills que tínhamos ganhado de Zoë Akins, e então saíamos para a cidade enfeitiçada, entrando por portas estranhas em estranhos apartamentos com intermitentes sacolejos em táxis no meio das noites mansas. Pelo menos formávamos um todo com Nova York, levando-a conosco por cada portal. Até hoje entro em muitos apartamentos com a sensação de já ter estado lá antes, ou no de cima, ou no de baixo. Teria sido na noite em que tentei tirar a roupa no Scandals, ou na noite em que (como fiquei sabendo, com assombro, pelos jornais na manhã seguinte) “Fitzgerald esmurra policial até o outro lado do paraíso”? Como ganhar briga não fazia parte das minhas realizações, tentei em vão reconstruir a sequência de eventos que culminou naquele desfecho, no Webster Hall. Finalmente, daquele período, lembro de estar andando de táxi numa tarde entre edifícios altíssimos sob um céu rosa arroxeado; comecei a gritar que tinha tudo o que queria e sabia que nunca mais seria tão feliz.
Foi típico de nossa precária situação em Nova York o fato de que, quando nossa filha estava para nascer, decidimos proceder com segurança e voltamos para St. Paul — parecia inadequado trazer um bebê à luz no meio de todo aquele glamour e daquela solidão. Depois de um ano, porém, estávamos de volta, e começamos a fazer as mesmas coisas outra vez, sem gostar muito delas. Estávamos bastante rodados, embora conservássemos uma inocência quase teatral ao preferir o papel de observados ao de observadores. Mas a inocência não é um fim em si, e à medida que nossa mentalidade amadurecia, contra a nossa vontade, começamos a ver Nova York como um todo e a tentar salvar alguma coisa dela para quando chegassem os seres em que inevitavelmente nos transformaríamos.
Era tarde demais — ou cedo demais. Para nós, a cidade estava indissoluvelmente ligada a divertimentos etílicos, moderados ou fantásticos. Só pudemos nos organizar ao voltar para Long Island, e nem sempre lá. Não tínhamos estímulo para desfrutar a cidade pela metade. Meu primeiro símbolo era agora uma lembrança, pois eu sabia que o triunfo está em nós mesmos; o segundo tinha se transformado em lugar-comum — as duas atrizes que eu cultuava de longe lá pelos idos de 1913 tinham jantado em nossa casa. Mas dava-me certo medo que também o terceiro símbolo tivesse se turvado — não era fácil encontrar a tranquilidade do apartamento de Bunny na cidade sempre acelerada. Bunny tinha se casado e ia ser pai; outros amigos tinham ido para a Europa, e os solteiros frequentavam casas maiores e mais festivas que a nossa. Nessa época, conhecíamos “todo mundo” — ou seja, a maioria das pessoas que Ralph Barton retrataria em seus cartuns numa noite de estreia.
Mas já não éramos importantes. Em 1923, a melindrosa, em cuja conduta se baseara a popularidade de meus primeiros livros, tinha saído de moda — pelo menos no Leste. Decidi impactar a Broadway com uma peça, mas a Broadway mandou seus olheiros a Atlantic City e de saída cancelou a ideia, e assim senti que, naquele momento, a cidade e eu tínhamos pouco a oferecer um ao outro. Eu ia pegar a atmosfera de Long Island que respirara com familiaridade e materializá-la sob céus desconhecidos.
Passaram-se três anos até que víssemos Nova York outra vez. Enquanto o navio deslizava rio acima, a cidade explodia trovejando sobre nós no entardecer — a geleira branca da parte baixa de Nova York mergulhando como os cabos de uma ponte para erguer-se na parte alta da cidade, um milagre de luz e espuma suspenso pelas estrelas. Uma banda começou a tocar no convés, mas diante da majestade da cidade a marcha soava banal e metálica. A partir daquele momento, entendi que Nova York, não importava quantas vezes eu a deixasse, era minha casa.
O ritmo da cidade tinha mudado profundamente. As incertezas de 1920 tinham se afogado num contínuo fragor dourado, e muitos de nossos amigos tinham enriquecido. Mas a agitação da Nova York de 1927 beirava a histeria. As festas eram de arromba — as de Condé Nast, por exemplo, rivalizavam com os lendários bailes da década de 1890; o ritmo era mais acelerado — os convites à dissipação davam exemplo a Paris; os espetáculos eram maiores; os edifícios, mais altos; os costumes, mais lassos; e a bebida, mais barata. Mas todas essas benesses na verdade não proporcionavam muito deleite. Os jovens se desgastavam muito cedo — estavam insensíveis e frágeis aos vinte e um anos e, com exceção de Peter Arno, nenhum deles contribuiu com nada de novo. Talvez Peter Arno e seus colaboradores tenham dito tudo o que havia por dizer sobre os dias do boom de Nova York que não pudesse ser dito por uma orquestra de jazz. Muita gente que não era alcoólatra se embebedava quatro dias por semana, e havia nervos em frangalhos espalhados por toda parte; os grupos permaneciam reunidos por um nervosismo generalizado, e a ressaca tornou-se uma parte do dia tão natural quanto dormir a siesta para os espanhóis. A maior parte dos meus amigos bebia demais — quanto mais sintonizados com a época, mais bebiam. Assim, como o esforço por si só não tinha nenhum valor diante da absoluta permissividade da Nova York daqueles dias, inventou-se um nome pejorativo para ele: uma atividade de sucesso tornou-se uma pilantragem — eu estava na pilantragem literária.
Morávamos a poucas horas de Nova York, e descobri que cada vez que vinha à cidade era pilhado numa complicação de eventos que poucos dias depois me depositavam em estado de exaustão num trem para Delaware. Porções inteiras da cidade tinham crescido de modo insalubre, mas invariavelmente eu encontrava um momento de paz absoluta cruzando o Central Park, no escuro, em direção ao sul, onde as fachadas da rua 59 projetavam suas luzes através das árvores. Ali estava de novo minha cidade perdida, envolvida indiferente em seu mistério e suas promessas. Entretanto, meu afastamento nunca durava muito — da mesma forma que o trabalhador precisa viver no ventre da cidade, eu era compelido a viver em sua mente desordenada.
Como alternativa havia os bares clandestinos — a migração dos bares de luxo, que anunciavam nas publicações de Yale e Princeton, para cervejarias onde o rosto ranzinza do submundo espiava através da boa índole germânica do entretenimento, e depois para lugares estranhos e ainda mais sinistros, onde éramos observados por rapazes com rosto de pedra e nada restava da jovialidade, apenas uma brutalidade que contaminava o novo dia para o qual saíamos. Lembrei-me de 1920, quando choquei um jovem empresário em ascensão sugerindo um coquetel antes do almoço. Em 1929, havia bebida alcoólica em metade dos escritórios do centro e um bar clandestino em metade dos grandes edifícios.
Os bares clandestinos e a Park Avenue tornavam-se cada vez mais de domínio público. Na década anterior, Greenwich Village, Washington Square, Murray Hill e os casarões da Quinta Avenida tinham de certa forma desaparecido, ou se tornado inexpressivos. A cidade estava intumescida, desentranhada, estupidificada com pão e circo, e uma nova expressão — “Ah, é?” — resumia todo o entusiasmo evocado pelo anúncio dos últimos superarranha-céus. Meu barbeiro aposentou-se com o meio milhão ganhado em apostas no mercado, e eu tinha consciência de que os maîtres que me conduziam até minha mesa, ou que não o faziam, estavam muito, muito mais ricos do que eu. Isso não tinha graça — mais uma vez me fartei de Nova York e foi bom me sentir a salvo a bordo de um navio, em cujo bar continuou a festa ininterrupta a caminho da França.
“Quais são as últimas de Nova York?”
“As ações estão subindo. Um bebê matou um bandido.”
“Só isso?”
“Só. Os rádios se esgoelam na rua.”
Eu já chegara a pensar que não havia segundo ato na vida dos americanos, mas certamente haveria um segundo ato aos dias de boom de Nova York. Estávamos em algum lugar do Norte da África quando ouvimos um ruído abafado que ecoou nos cantos mais remotos do deserto.
“O que foi isso?”
“Você ouviu?”
“Não foi nada.”
“Você acha que devíamos voltar e ver?”
“Não. Não foi nada.”
No outono escuro, dois anos depois, vimos Nova York de novo. Passamos por funcionários da alfândega curiosamente corteses e, depois, de cabeça baixa e chapéu na mão, caminhei respeitosamente pela tumba ressonante. Entre as ruínas, uns poucos fantasmas infantis ainda brincavam para manter a farsa de que estavam vivos, porém eram traídos por suas vozes febris e feições frenéticas que revelavam a fragilidade da mascarada. Nos coquetéis, um último resquício oco dos dias de festança, ecoavam os lamentos dos feridos: “Me dê um tiro, pelo amor de Deus, alguém me dê um tiro!”, e os gemidos e queixumes dos moribundos: “Viu que a United States Steel caiu mais três pontos?”. Meu barbeiro voltou a trabalhar em sua loja; mais uma vez os maîtres acompanhavam as pessoas até as mesas, quando havia pessoas a acompanhar. Das ruínas, sozinho e indecifrável como uma esfinge, erguia-se o edifício Empire State e, assim como tinha sido um hábito meu subir ao terraço do Plaza para me despedir da linda cidade, que se estendia até onde a vista podia alcançar, desta vez fui ao último andar da última e mais esplêndida das torres. Foi então que vi que tudo se explicava: eu descobrira o erro fatal da cidade, sua caixa de Pandora. Cheio de empáfia, o nova-iorquino subira só para ver, desolado, o que nunca tinha suspeitado: a cidade não era uma sucessão infinita de cânions, como ele supunha, mas tinha limites — de cima da mais alta das estruturas, ele viu pela primeira vez que ela ia se apagando em direção ao campo por todos os lados, numa imensidão de verde e azul, essa sim sem limites. E com a terrível compreensão de que Nova York afinal era uma cidade, e não um universo, todo o edifício cintilante que ele criara em sua imaginação veio abaixo. Foi esse o presente desavisado de Alfred W. Smith aos cidadãos de Nova York.
Assim eu me despeço da minha cidade perdida. Vista do ferryboat, de manhã cedo, ela já não sugere sucessos fantásticos e eterna juventude. As moças alegres que saracoteiam diante de plateias vazias não me lembram a beleza inefável das garotas de meus sonhos em 1914. E Bunny, girando sobre os calcanhares cheio de si com sua bengala, a caminho de seu retiro num carnaval, aderiu ao comunismo e se preocupa com as injustiças contra os trabalhadores dos moinhos no Sul e os agricultores do Oeste, cujas vozes, quinze anos atrás, nunca teriam atravessado as paredes de seu estúdio.
Tudo está perdido salvo a lembrança, embora eu às vezes me imagine lendo uma edição de 1945 do Daily News: CINQUENTÃO PERDE A CABEÇA EM NOVA YORK
Modelo declara: Fitzgerald enriqueceu à custa de golpes
Abatido por pistoleiro furioso
Então talvez eu esteja destinado a voltar algum dia e encontrar na cidade novas experiências que até agora só vi no papel. Por enquanto, só posso chorar a perda de minha esplêndida miragem. Volte, ó branca e resplandecente, volte!
1 Dick Whittington e seu gato é um conto do folclore inglês sobre um menino pobre do século XIII que se torna um rico comerciante e termina como Lord Mayor de Londres devido à habilidade de seu gato como caçador de ratos. (N. T.)
2 Franklin Pierce Adams (1881-1960). (N. T.)
Primeiro foi o ferryboat saindo lentamente da costa de Jersey ao amanhecer — o momento cristalizou-se como meu primeiro símbolo de Nova York. Cinco anos depois, quando eu tinha quinze anos, saía da escola e ia ao centro da cidade para ver Ina Claire em The Quaker Girl e Gertrude Bryan em Little Boy Blue. Indeciso em meu amor melancólico e sem esperança por ambas, não conseguia escolher entre as duas — então elas se fundiram numa deliciosa identidade, a garota. Ela foi meu segundo símbolo de Nova York. O ferryboat representava o triunfo; a garota, o romance. Com o tempo, eu conquistaria um pouco dos dois, mas houve um terceiro símbolo que perdi em algum lugar, e para sempre.
Encontrei-o numa tarde escura de abril, passados outros cinco anos.
“Oi, Bunny”, gritei. “Bunny!”
Ele não me ouviu — meu táxi ficou para trás e alcançou-o de novo meia quadra adiante. Havia poças escuras de chuva na calçada, e o vi caminhando rápido no meio da multidão, usando uma capa de chuva bege sobre o inevitável terno marrom; notei com espanto que ele carregava uma leve bengala.
“Bunny!”, chamei de novo, e desisti. Eu ainda era universitário de Princeton, enquanto ele tinha se tornado um nova-iorquino. Era sua caminhada vespertina, essa correria com a bengala no meio da chuva que caía, e como faltava uma hora para nosso encontro, pareceu-me uma intromissão ir ter com ele quando estava envolvido com sua vida privada. Entretanto, meu táxi continuou emparelhado com ele, continuei observando e fiquei impressionado. Ele já não era o pequeno e tímido acadêmico da Holder Court — andava com firmeza, absorto em seus pensamentos e olhando para a frente, deixando óbvio que seu novo cenário era de todo suficiente para ele. Eu sabia que ele tinha um apartamento onde morava com três outros homens, já livre de todos os tabus de estudante, mas havia algo mais que o nutria, e tive minha primeira impressão dessa novidade: o espírito metropolitano.
Até aquela época, eu só tinha visto a Nova York que se oferecia à inspeção — era como Dick Whittington,1 chegado do campo e boquiaberto com os ursos amestrados, ou um jovem do Midi deslumbrado com os bulevares de Paris. Eu tinha vindo só para ver o espetáculo, embora os projetistas do edifício Woolworth e do painel luminoso da corrida de bigas, os produtores de comédias musicais e peças de tese não pudessem desejar um espectador mais receptivo, já que o estilo e o brilho que eu atribuía a Nova York superavam as expectativas da própria cidade. Mas nunca aceitei nenhum dos convites praticamente anônimos para bailes de debutantes que costumavam aparecer na correspondência de qualquer universitário, talvez porque sentisse que nenhuma realidade estaria à altura da concepção que eu fazia do esplendor de Nova York. Além do mais, aquela que eu chamava insensatamente de “minha garota” era do Meio-Oeste, o que mantinha lá o centro afetivo do mundo, de modo que eu considerava Nova York essencialmente cínica e cruel — exceto por uma noite em que ela iluminou o terraço do Ritz numa breve aparição.
Mais tarde, no entanto, eu a perdera para sempre e queria um mundo masculino, e a visão que tive de Bunny me fez ver Nova York exatamente assim. Uma semana antes, Monsignor Fay me levara ao Lafayette, onde se estendia diante de nós uma fulguração de comida, chamada hors d’oeuvre, que acompanhamos com um clarete tão desafiador quanto a confiante bengala de Bunny — mas afinal de contas tratava-se de um restaurante, e depois teríamos de transpor uma ponte para voltarmos ao interior. A Nova York da dissipação estudantil, de restaurantes como o Bustanoby’s, o Shanley’s e o Jack’s, tinha se tornado um horror, e embora eu tenha voltado a ela, ai de mim, muitas vezes numa névoa de álcool, senti cada volta como uma traição a um idealismo persistente. Minha participação era mais lasciva que licenciosa, e restam poucas lembranças prazerosas daqueles dias. Como disse uma vez Ernest Hemingway, a única finalidade do cabaré é reunir homens descomprometidos e mulheres complacentes. O resto é perda de tempo numa atmosfera viciada.
Naquela noite, porém, no apartamento de Bunny, a vida era mansa e segura, o produto final de uma destilação de tudo que eu aprendera a amar em Princeton. O som agradável de um oboé se misturava aos ruídos urbanos que vinham da rua, penetrando na sala com dificuldade através de enormes barricadas de livros; a única nota dissonante era dada por um homem que rasgava envelopes de convites. Eu tinha encontrado um terceiro símbolo de Nova York e comecei a pensar em alugar um apartamento como aquele e em selecionar amigos com quem dividi-lo.
Improvável — durante os dois anos seguintes, tive tanto controle sobre meu destino quanto um preso sobre o corte de sua roupa. Quando voltei a Nova York, em 1919, minha vida estava tão enrolada que eu não podia nem sonhar com um tranquilo período monástico na Washington Square. O importante era ganhar dinheiro em publicidade, o bastante para alugar um pequeno apartamento no Bronx para duas pessoas. A garota em questão nunca tinha visto Nova York, mas era sensata o suficiente para estar um pouco relutante. E num halo de ansiedade e infelicidade, passei os quatro meses mais vulneráveis de minha vida.
Nova York tinha toda a iridescência do nascimento do mundo. Soldados vindos da guerra desfilaram pela Quinta Avenida, e as garotas eram atraídas instintivamente para leste e norte atrás deles — esta era a maior nação do mundo e havia um clima de gala no ar. Enquanto eu pairava como um fantasma no Salão Vermelho do Plaza numa tarde de sábado, ia a inebriantes festas no entorno da rua 60 Leste, ou bebia com o pessoal de Princeton no bar do Biltmore, era sempre assombrado por minha outra vida — meu quarto ordinário no Bronx, meus centímetros quadrados de metrô, minha obsessão pela carta diária do Alabama — chegaria, e o que diria? —, meus ternos surrados, minha pobreza e o amor. Enquanto meus amigos estavam se dando bem na vida, eu tinha empurrado meu barco precário para a correnteza. A juventude dourada que circulava em volta de Constance Bennett no Club de Vingt, os colegas do clube de Yale-Princeton animados em nossa primeira reunião depois do fim da guerra, o clima das casas de milionários que eu às vezes frequentava — tudo isso era vazio para mim, embora eu admitisse que era um cenário impressionante e lamentasse estar comprometido com outro romance. A mais divertida mesa de almoço ou o cabaré mais onírico — era tudo a mesma coisa. Eu voltava ansiosamente para minha casa na Claremont Avenue — porque poderia haver uma carta esperando diante da porta. Um por um, meus grandes sonhos com Nova York se corromperam. A lembrança do charme do apartamento de Bunny feneceu com todo o resto quando entrevistei uma senhoria desgrenhada no Greenwich Village. Ela disse que eu poderia trazer garotas para o meu quarto, e essa ideia me encheu de desânimo — por que eu ia querer trazer garotas para o meu quarto? Eu tinha uma garota. Perambulava pela cidade, pela rua 127, magoado com sua vitalidade vibrante; ou então comprava ingresso para algum teatro barato na farmácia Gray’s e tentava me perder por algumas horas em minha velha paixão pela Broadway. Eu era um fracasso — medíocre na publicidade e incapaz de me lançar como escritor. Odiando a cidade, bebia até meu último centavo e, caindo de bêbado e choroso, voltava para casa...
... Cidade imprevisível. O que aconteceu depois foi apenas uma entre milhares de histórias de sucesso daqueles dias agitados, mas desempenha um papel em meu próprio filme de Nova York. Quando voltei, seis meses depois, as salas das editoras estavam abertas para mim, agentes imploravam por peças, o cinema ansiava por roteiros. Para minha perplexidade, fui adotado não como um interiorano do Meio-Oeste, nem como observador participante, mas como o arquétipo daquilo que Nova York queria. Essa afirmação demanda certa descrição do que era a metrópole em 1920.
Já existia a cidade branca e alta de hoje, a atividade febricitante do boom, mas havia também uma desarticulação geral. Assim como outros, o colunista F. P. A.2 tomou o pulso da multidão, mas timidamente, como quem observa pela janela. A sociedade e as artes autóctones não se misturavam — Ellen Mackay ainda não se casara com Irving Berlin. Grande parte dos personagens de Peter Arno não teria nenhum significado para os cidadãos de 1920, e, fora a coluna de F. P. A., não existia uma tribuna para a civilidade metropolitana.
Então, por um instante, a ideia de “nova geração” tornou-se uma fusão de muitos elementos da vida de Nova York. Gente de cinquenta anos podia fingir que ainda existia uma nata da sociedade, ou Maxwell Bodenheim podia fingir que existia uma boêmia digna de sua pintura e seu traço — mas a mistura dos elementos brilhantes, alegres e vigorosos começou nessa época, e pela primeira vez apareceu uma sociedade um pouco mais animada que os circunspectos banquetes de Emily Price Post em salões de mogno. Se essa sociedade inventou o coquetel, também desenvolveu o espírito da Park Avenue, e pela primeira vez um europeu culto podia vislumbrar uma viagem a Nova York como algo mais divertido do que uma expedição em busca de ouro no interior da Austrália.
Só por um instante, antes que ficasse demonstrado que eu era incapaz de desempenhar o papel, eu, que sabia sobre Nova York menos que qualquer repórter com seis meses de residência na cidade, e menos sobre sua sociedade do que qualquer rapaz desacompanhado nos bailes do Ritz, fui elevado à posição não só de porta-voz da época, mas de típico produto do momento. Eu, melhor dizendo agora, “nós” não sabíamos exatamente o que Nova York esperava de nós e achamos aquilo muito confuso. Poucos meses depois de embarcar na aventura metropolitana, já mal sabíamos quem éramos e não tínhamos ideia do que éramos. Um mergulho numa fonte pública ou um esbarrão casual com agentes da lei era o bastante para nos levar às colunas de fofocas. Éramos citados com relação a uma vasta quantidade de assuntos sobre os quais nada sabíamos. Na verdade, nossos “contatos” se resumiam a meia dúzia de amigos solteiros da faculdade e uns poucos conhecidos recentes da área literária — lembro de um Natal solitário em que não tínhamos um só amigo na cidade nem uma casa aonde ir. Sem encontrar um núcleo ao qual nos agarrar, nós mesmos nos tornamos um núcleo e aos poucos ajustamos nossas personalidades conturbadas à cena da Nova York contemporânea. Ou melhor, Nova York nos esqueceu e nos deixou ficar.
Este não é um relato das mudanças da cidade, mas das mudanças dos sentimentos deste escritor pela cidade. Da confusão de 1920, lembro de andar na capota de um táxi pela Quinta Avenida deserta numa noite quente de domingo, de um almoço no sereno jardim japonês do Ritz com a melancólica Kay Laurel e George Jean Nathan, de escrever a noite toda repetidamente, de pagar caro por minúsculos apartamentos, e de comprar carros magníficos que enguiçavam toda hora. Tinham aparecido os primeiros bares clandestinos, passear estava fora de moda, o Montmartre era o lugar elegante para dançar e o cabelo louro de Lillian Tashman rodopiava na pista de dança entre universitários embriagados. As peças eram Declassée e Sacred and Profane Love, e no Midnight Frolic você dançava lado a lado com Marion Davies e talvez reconhecesse a animada Mary Hay entre as coristas. Pensávamos que estávamos distantes de tudo aquilo; talvez todo mundo pense que está distante de seu ambiente. Nos sentíamos como duas criancinhas num enorme galpão, iluminado e inexplorado. Reunidos no estúdio de Griffith em Long Island, tremíamos em presença dos rostos familiares do filme O nascimento de uma nação; mais tarde, compreendi que por trás do entretenimento que a cidade despejava sobre a nação não havia mais que um monte de gente perdida e solitária. O mundo dos astros de cinema era como o nosso, na medida em que eles estavam em Nova York, mas não eram de Nova York. Esse mundo tinha pouca noção de si mesmo e nenhum centro: quando conheci Dorothy Gish, tive a sensação de que estávamos os dois no polo Norte e que nevava. Desde então eles encontraram um lar, que não estava destinado a ser Nova York.
Quando nos entediávamos, encarávamos nossa cidade com um capricho à moda de Huysmans. Passávamos uma tarde sozinhos em nosso “apartamento”, comendo sanduíches de azeitona e bebendo um litro de uísque Bushmills que tínhamos ganhado de Zoë Akins, e então saíamos para a cidade enfeitiçada, entrando por portas estranhas em estranhos apartamentos com intermitentes sacolejos em táxis no meio das noites mansas. Pelo menos formávamos um todo com Nova York, levando-a conosco por cada portal. Até hoje entro em muitos apartamentos com a sensação de já ter estado lá antes, ou no de cima, ou no de baixo. Teria sido na noite em que tentei tirar a roupa no Scandals, ou na noite em que (como fiquei sabendo, com assombro, pelos jornais na manhã seguinte) “Fitzgerald esmurra policial até o outro lado do paraíso”? Como ganhar briga não fazia parte das minhas realizações, tentei em vão reconstruir a sequência de eventos que culminou naquele desfecho, no Webster Hall. Finalmente, daquele período, lembro de estar andando de táxi numa tarde entre edifícios altíssimos sob um céu rosa arroxeado; comecei a gritar que tinha tudo o que queria e sabia que nunca mais seria tão feliz.
Foi típico de nossa precária situação em Nova York o fato de que, quando nossa filha estava para nascer, decidimos proceder com segurança e voltamos para St. Paul — parecia inadequado trazer um bebê à luz no meio de todo aquele glamour e daquela solidão. Depois de um ano, porém, estávamos de volta, e começamos a fazer as mesmas coisas outra vez, sem gostar muito delas. Estávamos bastante rodados, embora conservássemos uma inocência quase teatral ao preferir o papel de observados ao de observadores. Mas a inocência não é um fim em si, e à medida que nossa mentalidade amadurecia, contra a nossa vontade, começamos a ver Nova York como um todo e a tentar salvar alguma coisa dela para quando chegassem os seres em que inevitavelmente nos transformaríamos.
Era tarde demais — ou cedo demais. Para nós, a cidade estava indissoluvelmente ligada a divertimentos etílicos, moderados ou fantásticos. Só pudemos nos organizar ao voltar para Long Island, e nem sempre lá. Não tínhamos estímulo para desfrutar a cidade pela metade. Meu primeiro símbolo era agora uma lembrança, pois eu sabia que o triunfo está em nós mesmos; o segundo tinha se transformado em lugar-comum — as duas atrizes que eu cultuava de longe lá pelos idos de 1913 tinham jantado em nossa casa. Mas dava-me certo medo que também o terceiro símbolo tivesse se turvado — não era fácil encontrar a tranquilidade do apartamento de Bunny na cidade sempre acelerada. Bunny tinha se casado e ia ser pai; outros amigos tinham ido para a Europa, e os solteiros frequentavam casas maiores e mais festivas que a nossa. Nessa época, conhecíamos “todo mundo” — ou seja, a maioria das pessoas que Ralph Barton retrataria em seus cartuns numa noite de estreia.
Mas já não éramos importantes. Em 1923, a melindrosa, em cuja conduta se baseara a popularidade de meus primeiros livros, tinha saído de moda — pelo menos no Leste. Decidi impactar a Broadway com uma peça, mas a Broadway mandou seus olheiros a Atlantic City e de saída cancelou a ideia, e assim senti que, naquele momento, a cidade e eu tínhamos pouco a oferecer um ao outro. Eu ia pegar a atmosfera de Long Island que respirara com familiaridade e materializá-la sob céus desconhecidos.
Passaram-se três anos até que víssemos Nova York outra vez. Enquanto o navio deslizava rio acima, a cidade explodia trovejando sobre nós no entardecer — a geleira branca da parte baixa de Nova York mergulhando como os cabos de uma ponte para erguer-se na parte alta da cidade, um milagre de luz e espuma suspenso pelas estrelas. Uma banda começou a tocar no convés, mas diante da majestade da cidade a marcha soava banal e metálica. A partir daquele momento, entendi que Nova York, não importava quantas vezes eu a deixasse, era minha casa.
O ritmo da cidade tinha mudado profundamente. As incertezas de 1920 tinham se afogado num contínuo fragor dourado, e muitos de nossos amigos tinham enriquecido. Mas a agitação da Nova York de 1927 beirava a histeria. As festas eram de arromba — as de Condé Nast, por exemplo, rivalizavam com os lendários bailes da década de 1890; o ritmo era mais acelerado — os convites à dissipação davam exemplo a Paris; os espetáculos eram maiores; os edifícios, mais altos; os costumes, mais lassos; e a bebida, mais barata. Mas todas essas benesses na verdade não proporcionavam muito deleite. Os jovens se desgastavam muito cedo — estavam insensíveis e frágeis aos vinte e um anos e, com exceção de Peter Arno, nenhum deles contribuiu com nada de novo. Talvez Peter Arno e seus colaboradores tenham dito tudo o que havia por dizer sobre os dias do boom de Nova York que não pudesse ser dito por uma orquestra de jazz. Muita gente que não era alcoólatra se embebedava quatro dias por semana, e havia nervos em frangalhos espalhados por toda parte; os grupos permaneciam reunidos por um nervosismo generalizado, e a ressaca tornou-se uma parte do dia tão natural quanto dormir a siesta para os espanhóis. A maior parte dos meus amigos bebia demais — quanto mais sintonizados com a época, mais bebiam. Assim, como o esforço por si só não tinha nenhum valor diante da absoluta permissividade da Nova York daqueles dias, inventou-se um nome pejorativo para ele: uma atividade de sucesso tornou-se uma pilantragem — eu estava na pilantragem literária.
Morávamos a poucas horas de Nova York, e descobri que cada vez que vinha à cidade era pilhado numa complicação de eventos que poucos dias depois me depositavam em estado de exaustão num trem para Delaware. Porções inteiras da cidade tinham crescido de modo insalubre, mas invariavelmente eu encontrava um momento de paz absoluta cruzando o Central Park, no escuro, em direção ao sul, onde as fachadas da rua 59 projetavam suas luzes através das árvores. Ali estava de novo minha cidade perdida, envolvida indiferente em seu mistério e suas promessas. Entretanto, meu afastamento nunca durava muito — da mesma forma que o trabalhador precisa viver no ventre da cidade, eu era compelido a viver em sua mente desordenada.
Como alternativa havia os bares clandestinos — a migração dos bares de luxo, que anunciavam nas publicações de Yale e Princeton, para cervejarias onde o rosto ranzinza do submundo espiava através da boa índole germânica do entretenimento, e depois para lugares estranhos e ainda mais sinistros, onde éramos observados por rapazes com rosto de pedra e nada restava da jovialidade, apenas uma brutalidade que contaminava o novo dia para o qual saíamos. Lembrei-me de 1920, quando choquei um jovem empresário em ascensão sugerindo um coquetel antes do almoço. Em 1929, havia bebida alcoólica em metade dos escritórios do centro e um bar clandestino em metade dos grandes edifícios.
Os bares clandestinos e a Park Avenue tornavam-se cada vez mais de domínio público. Na década anterior, Greenwich Village, Washington Square, Murray Hill e os casarões da Quinta Avenida tinham de certa forma desaparecido, ou se tornado inexpressivos. A cidade estava intumescida, desentranhada, estupidificada com pão e circo, e uma nova expressão — “Ah, é?” — resumia todo o entusiasmo evocado pelo anúncio dos últimos superarranha-céus. Meu barbeiro aposentou-se com o meio milhão ganhado em apostas no mercado, e eu tinha consciência de que os maîtres que me conduziam até minha mesa, ou que não o faziam, estavam muito, muito mais ricos do que eu. Isso não tinha graça — mais uma vez me fartei de Nova York e foi bom me sentir a salvo a bordo de um navio, em cujo bar continuou a festa ininterrupta a caminho da França.
“Quais são as últimas de Nova York?”
“As ações estão subindo. Um bebê matou um bandido.”
“Só isso?”
“Só. Os rádios se esgoelam na rua.”
Eu já chegara a pensar que não havia segundo ato na vida dos americanos, mas certamente haveria um segundo ato aos dias de boom de Nova York. Estávamos em algum lugar do Norte da África quando ouvimos um ruído abafado que ecoou nos cantos mais remotos do deserto.
“O que foi isso?”
“Você ouviu?”
“Não foi nada.”
“Você acha que devíamos voltar e ver?”
“Não. Não foi nada.”
No outono escuro, dois anos depois, vimos Nova York de novo. Passamos por funcionários da alfândega curiosamente corteses e, depois, de cabeça baixa e chapéu na mão, caminhei respeitosamente pela tumba ressonante. Entre as ruínas, uns poucos fantasmas infantis ainda brincavam para manter a farsa de que estavam vivos, porém eram traídos por suas vozes febris e feições frenéticas que revelavam a fragilidade da mascarada. Nos coquetéis, um último resquício oco dos dias de festança, ecoavam os lamentos dos feridos: “Me dê um tiro, pelo amor de Deus, alguém me dê um tiro!”, e os gemidos e queixumes dos moribundos: “Viu que a United States Steel caiu mais três pontos?”. Meu barbeiro voltou a trabalhar em sua loja; mais uma vez os maîtres acompanhavam as pessoas até as mesas, quando havia pessoas a acompanhar. Das ruínas, sozinho e indecifrável como uma esfinge, erguia-se o edifício Empire State e, assim como tinha sido um hábito meu subir ao terraço do Plaza para me despedir da linda cidade, que se estendia até onde a vista podia alcançar, desta vez fui ao último andar da última e mais esplêndida das torres. Foi então que vi que tudo se explicava: eu descobrira o erro fatal da cidade, sua caixa de Pandora. Cheio de empáfia, o nova-iorquino subira só para ver, desolado, o que nunca tinha suspeitado: a cidade não era uma sucessão infinita de cânions, como ele supunha, mas tinha limites — de cima da mais alta das estruturas, ele viu pela primeira vez que ela ia se apagando em direção ao campo por todos os lados, numa imensidão de verde e azul, essa sim sem limites. E com a terrível compreensão de que Nova York afinal era uma cidade, e não um universo, todo o edifício cintilante que ele criara em sua imaginação veio abaixo. Foi esse o presente desavisado de Alfred W. Smith aos cidadãos de Nova York.
Assim eu me despeço da minha cidade perdida. Vista do ferryboat, de manhã cedo, ela já não sugere sucessos fantásticos e eterna juventude. As moças alegres que saracoteiam diante de plateias vazias não me lembram a beleza inefável das garotas de meus sonhos em 1914. E Bunny, girando sobre os calcanhares cheio de si com sua bengala, a caminho de seu retiro num carnaval, aderiu ao comunismo e se preocupa com as injustiças contra os trabalhadores dos moinhos no Sul e os agricultores do Oeste, cujas vozes, quinze anos atrás, nunca teriam atravessado as paredes de seu estúdio.
Tudo está perdido salvo a lembrança, embora eu às vezes me imagine lendo uma edição de 1945 do Daily News: CINQUENTÃO PERDE A CABEÇA EM NOVA YORK
Modelo declara: Fitzgerald enriqueceu à custa de golpes
Abatido por pistoleiro furioso
Então talvez eu esteja destinado a voltar algum dia e encontrar na cidade novas experiências que até agora só vi no papel. Por enquanto, só posso chorar a perda de minha esplêndida miragem. Volte, ó branca e resplandecente, volte!
1 Dick Whittington e seu gato é um conto do folclore inglês sobre um menino pobre do século XIII que se torna um rico comerciante e termina como Lord Mayor de Londres devido à habilidade de seu gato como caçador de ratos. (N. T.)
2 Franklin Pierce Adams (1881-1960). (N. T.)
Primeiro foi o ferryboat saindo lentamente da costa de Jersey ao amanhecer — o momento cristalizou-se como meu primeiro símbolo de Nova York. Cinco anos depois, quando eu tinha quinze anos, saía da escola e ia ao centro da cidade para ver Ina Claire em The Quaker Girl e Gertrude Bryan em Little Boy Blue. Indeciso em meu amor melancólico e sem esperança por ambas, não conseguia escolher entre as duas — então elas se fundiram numa deliciosa identidade, a garota. Ela foi meu segundo símbolo de Nova York. O ferryboat representava o triunfo; a garota, o romance. Com o tempo, eu conquistaria um pouco dos dois, mas houve um terceiro símbolo que perdi em algum lugar, e para sempre.
Encontrei-o numa tarde escura de abril, passados outros cinco anos.
“Oi, Bunny”, gritei. “Bunny!”
Ele não me ouviu — meu táxi ficou para trás e alcançou-o de novo meia quadra adiante. Havia poças escuras de chuva na calçada, e o vi caminhando rápido no meio da multidão, usando uma capa de chuva bege sobre o inevitável terno marrom; notei com espanto que ele carregava uma leve bengala.
“Bunny!”, chamei de novo, e desisti. Eu ainda era universitário de Princeton, enquanto ele tinha se tornado um nova-iorquino. Era sua caminhada vespertina, essa correria com a bengala no meio da chuva que caía, e como faltava uma hora para nosso encontro, pareceu-me uma intromissão ir ter com ele quando estava envolvido com sua vida privada. Entretanto, meu táxi continuou emparelhado com ele, continuei observando e fiquei impressionado. Ele já não era o pequeno e tímido acadêmico da Holder Court — andava com firmeza, absorto em seus pensamentos e olhando para a frente, deixando óbvio que seu novo cenário era de todo suficiente para ele. Eu sabia que ele tinha um apartamento onde morava com três outros homens, já livre de todos os tabus de estudante, mas havia algo mais que o nutria, e tive minha primeira impressão dessa novidade: o espírito metropolitano.
Até aquela época, eu só tinha visto a Nova York que se oferecia à inspeção — era como Dick Whittington,1 chegado do campo e boquiaberto com os ursos amestrados, ou um jovem do Midi deslumbrado com os bulevares de Paris. Eu tinha vindo só para ver o espetáculo, embora os projetistas do edifício Woolworth e do painel luminoso da corrida de bigas, os produtores de comédias musicais e peças de tese não pudessem desejar um espectador mais receptivo, já que o estilo e o brilho que eu atribuía a Nova York superavam as expectativas da própria cidade. Mas nunca aceitei nenhum dos convites praticamente anônimos para bailes de debutantes que costumavam aparecer na correspondência de qualquer universitário, talvez porque sentisse que nenhuma realidade estaria à altura da concepção que eu fazia do esplendor de Nova York. Além do mais, aquela que eu chamava insensatamente de “minha garota” era do Meio-Oeste, o que mantinha lá o centro afetivo do mundo, de modo que eu considerava Nova York essencialmente cínica e cruel — exceto por uma noite em que ela iluminou o terraço do Ritz numa breve aparição.
Mais tarde, no entanto, eu a perdera para sempre e queria um mundo masculino, e a visão que tive de Bunny me fez ver Nova York exatamente assim. Uma semana antes, Monsignor Fay me levara ao Lafayette, onde se estendia diante de nós uma fulguração de comida, chamada hors d’oeuvre, que acompanhamos com um clarete tão desafiador quanto a confiante bengala de Bunny — mas afinal de contas tratava-se de um restaurante, e depois teríamos de transpor uma ponte para voltarmos ao interior. A Nova York da dissipação estudantil, de restaurantes como o Bustanoby’s, o Shanley’s e o Jack’s, tinha se tornado um horror, e embora eu tenha voltado a ela, ai de mim, muitas vezes numa névoa de álcool, senti cada volta como uma traição a um idealismo persistente. Minha participação era mais lasciva que licenciosa, e restam poucas lembranças prazerosas daqueles dias. Como disse uma vez Ernest Hemingway, a única finalidade do cabaré é reunir homens descomprometidos e mulheres complacentes. O resto é perda de tempo numa atmosfera viciada.
Naquela noite, porém, no apartamento de Bunny, a vida era mansa e segura, o produto final de uma destilação de tudo que eu aprendera a amar em Princeton. O som agradável de um oboé se misturava aos ruídos urbanos que vinham da rua, penetrando na sala com dificuldade através de enormes barricadas de livros; a única nota dissonante era dada por um homem que rasgava envelopes de convites. Eu tinha encontrado um terceiro símbolo de Nova York e comecei a pensar em alugar um apartamento como aquele e em selecionar amigos com quem dividi-lo.
Improvável — durante os dois anos seguintes, tive tanto controle sobre meu destino quanto um preso sobre o corte de sua roupa. Quando voltei a Nova York, em 1919, minha vida estava tão enrolada que eu não podia nem sonhar com um tranquilo período monástico na Washington Square. O importante era ganhar dinheiro em publicidade, o bastante para alugar um pequeno apartamento no Bronx para duas pessoas. A garota em questão nunca tinha visto Nova York, mas era sensata o suficiente para estar um pouco relutante. E num halo de ansiedade e infelicidade, passei os quatro meses mais vulneráveis de minha vida.
Nova York tinha toda a iridescência do nascimento do mundo. Soldados vindos da guerra desfilaram pela Quinta Avenida, e as garotas eram atraídas instintivamente para leste e norte atrás deles — esta era a maior nação do mundo e havia um clima de gala no ar. Enquanto eu pairava como um fantasma no Salão Vermelho do Plaza numa tarde de sábado, ia a inebriantes festas no entorno da rua 60 Leste, ou bebia com o pessoal de Princeton no bar do Biltmore, era sempre assombrado por minha outra vida — meu quarto ordinário no Bronx, meus centímetros quadrados de metrô, minha obsessão pela carta diária do Alabama — chegaria, e o que diria? —, meus ternos surrados, minha pobreza e o amor. Enquanto meus amigos estavam se dando bem na vida, eu tinha empurrado meu barco precário para a correnteza. A juventude dourada que circulava em volta de Constance Bennett no Club de Vingt, os colegas do clube de Yale-Princeton animados em nossa primeira reunião depois do fim da guerra, o clima das casas de milionários que eu às vezes frequentava — tudo isso era vazio para mim, embora eu admitisse que era um cenário impressionante e lamentasse estar comprometido com outro romance. A mais divertida mesa de almoço ou o cabaré mais onírico — era tudo a mesma coisa. Eu voltava ansiosamente para minha casa na Claremont Avenue — porque poderia haver uma carta esperando diante da porta. Um por um, meus grandes sonhos com Nova York se corromperam. A lembrança do charme do apartamento de Bunny feneceu com todo o resto quando entrevistei uma senhoria desgrenhada no Greenwich Village. Ela disse que eu poderia trazer garotas para o meu quarto, e essa ideia me encheu de desânimo — por que eu ia querer trazer garotas para o meu quarto? Eu tinha uma garota. Perambulava pela cidade, pela rua 127, magoado com sua vitalidade vibrante; ou então comprava ingresso para algum teatro barato na farmácia Gray’s e tentava me perder por algumas horas em minha velha paixão pela Broadway. Eu era um fracasso — medíocre na publicidade e incapaz de me lançar como escritor. Odiando a cidade, bebia até meu último centavo e, caindo de bêbado e choroso, voltava para casa...
... Cidade imprevisível. O que aconteceu depois foi apenas uma entre milhares de histórias de sucesso daqueles dias agitados, mas desempenha um papel em meu próprio filme de Nova York. Quando voltei, seis meses depois, as salas das editoras estavam abertas para mim, agentes imploravam por peças, o cinema ansiava por roteiros. Para minha perplexidade, fui adotado não como um interiorano do Meio-Oeste, nem como observador participante, mas como o arquétipo daquilo que Nova York queria. Essa afirmação demanda certa descrição do que era a metrópole em 1920.
Já existia a cidade branca e alta de hoje, a atividade febricitante do boom, mas havia também uma desarticulação geral. Assim como outros, o colunista F. P. A.2 tomou o pulso da multidão, mas timidamente, como quem observa pela janela. A sociedade e as artes autóctones não se misturavam — Ellen Mackay ainda não se casara com Irving Berlin. Grande parte dos personagens de Peter Arno não teria nenhum significado para os cidadãos de 1920, e, fora a coluna de F. P. A., não existia uma tribuna para a civilidade metropolitana.
Então, por um instante, a ideia de “nova geração” tornou-se uma fusão de muitos elementos da vida de Nova York. Gente de cinquenta anos podia fingir que ainda existia uma nata da sociedade, ou Maxwell Bodenheim podia fingir que existia uma boêmia digna de sua pintura e seu traço — mas a mistura dos elementos brilhantes, alegres e vigorosos começou nessa época, e pela primeira vez apareceu uma sociedade um pouco mais animada que os circunspectos banquetes de Emily Price Post em salões de mogno. Se essa sociedade inventou o coquetel, também desenvolveu o espírito da Park Avenue, e pela primeira vez um europeu culto podia vislumbrar uma viagem a Nova York como algo mais divertido do que uma expedição em busca de ouro no interior da Austrália.
Só por um instante, antes que ficasse demonstrado que eu era incapaz de desempenhar o papel, eu, que sabia sobre Nova York menos que qualquer repórter com seis meses de residência na cidade, e menos sobre sua sociedade do que qualquer rapaz desacompanhado nos bailes do Ritz, fui elevado à posição não só de porta-voz da época, mas de típico produto do momento. Eu, melhor dizendo agora, “nós” não sabíamos exatamente o que Nova York esperava de nós e achamos aquilo muito confuso. Poucos meses depois de embarcar na aventura metropolitana, já mal sabíamos quem éramos e não tínhamos ideia do que éramos. Um mergulho numa fonte pública ou um esbarrão casual com agentes da lei era o bastante para nos levar às colunas de fofocas. Éramos citados com relação a uma vasta quantidade de assuntos sobre os quais nada sabíamos. Na verdade, nossos “contatos” se resumiam a meia dúzia de amigos solteiros da faculdade e uns poucos conhecidos recentes da área literária — lembro de um Natal solitário em que não tínhamos um só amigo na cidade nem uma casa aonde ir. Sem encontrar um núcleo ao qual nos agarrar, nós mesmos nos tornamos um núcleo e aos poucos ajustamos nossas personalidades conturbadas à cena da Nova York contemporânea. Ou melhor, Nova York nos esqueceu e nos deixou ficar.
Este não é um relato das mudanças da cidade, mas das mudanças dos sentimentos deste escritor pela cidade. Da confusão de 1920, lembro de andar na capota de um táxi pela Quinta Avenida deserta numa noite quente de domingo, de um almoço no sereno jardim japonês do Ritz com a melancólica Kay Laurel e George Jean Nathan, de escrever a noite toda repetidamente, de pagar caro por minúsculos apartamentos, e de comprar carros magníficos que enguiçavam toda hora. Tinham aparecido os primeiros bares clandestinos, passear estava fora de moda, o Montmartre era o lugar elegante para dançar e o cabelo louro de Lillian Tashman rodopiava na pista de dança entre universitários embriagados. As peças eram Declassée e Sacred and Profane Love, e no Midnight Frolic você dançava lado a lado com Marion Davies e talvez reconhecesse a animada Mary Hay entre as coristas. Pensávamos que estávamos distantes de tudo aquilo; talvez todo mundo pense que está distante de seu ambiente. Nos sentíamos como duas criancinhas num enorme galpão, iluminado e inexplorado. Reunidos no estúdio de Griffith em Long Island, tremíamos em presença dos rostos familiares do filme O nascimento de uma nação; mais tarde, compreendi que por trás do entretenimento que a cidade despejava sobre a nação não havia mais que um monte de gente perdida e solitária. O mundo dos astros de cinema era como o nosso, na medida em que eles estavam em Nova York, mas não eram de Nova York. Esse mundo tinha pouca noção de si mesmo e nenhum centro: quando conheci Dorothy Gish, tive a sensação de que estávamos os dois no polo Norte e que nevava. Desde então eles encontraram um lar, que não estava destinado a ser Nova York.
Quando nos entediávamos, encarávamos nossa cidade com um capricho à moda de Huysmans. Passávamos uma tarde sozinhos em nosso “apartamento”, comendo sanduíches de azeitona e bebendo um litro de uísque Bushmills que tínhamos ganhado de Zoë Akins, e então saíamos para a cidade enfeitiçada, entrando por portas estranhas em estranhos apartamentos com intermitentes sacolejos em táxis no meio das noites mansas. Pelo menos formávamos um todo com Nova York, levando-a conosco por cada portal. Até hoje entro em muitos apartamentos com a sensação de já ter estado lá antes, ou no de cima, ou no de baixo. Teria sido na noite em que tentei tirar a roupa no Scandals, ou na noite em que (como fiquei sabendo, com assombro, pelos jornais na manhã seguinte) “Fitzgerald esmurra policial até o outro lado do paraíso”? Como ganhar briga não fazia parte das minhas realizações, tentei em vão reconstruir a sequência de eventos que culminou naquele desfecho, no Webster Hall. Finalmente, daquele período, lembro de estar andando de táxi numa tarde entre edifícios altíssimos sob um céu rosa arroxeado; comecei a gritar que tinha tudo o que queria e sabia que nunca mais seria tão feliz.
Foi típico de nossa precária situação em Nova York o fato de que, quando nossa filha estava para nascer, decidimos proceder com segurança e voltamos para St. Paul — parecia inadequado trazer um bebê à luz no meio de todo aquele glamour e daquela solidão. Depois de um ano, porém, estávamos de volta, e começamos a fazer as mesmas coisas outra vez, sem gostar muito delas. Estávamos bastante rodados, embora conservássemos uma inocência quase teatral ao preferir o papel de observados ao de observadores. Mas a inocência não é um fim em si, e à medida que nossa mentalidade amadurecia, contra a nossa vontade, começamos a ver Nova York como um todo e a tentar salvar alguma coisa dela para quando chegassem os seres em que inevitavelmente nos transformaríamos.
Era tarde demais — ou cedo demais. Para nós, a cidade estava indissoluvelmente ligada a divertimentos etílicos, moderados ou fantásticos. Só pudemos nos organizar ao voltar para Long Island, e nem sempre lá. Não tínhamos estímulo para desfrutar a cidade pela metade. Meu primeiro símbolo era agora uma lembrança, pois eu sabia que o triunfo está em nós mesmos; o segundo tinha se transformado em lugar-comum — as duas atrizes que eu cultuava de longe lá pelos idos de 1913 tinham jantado em nossa casa. Mas dava-me certo medo que também o terceiro símbolo tivesse se turvado — não era fácil encontrar a tranquilidade do apartamento de Bunny na cidade sempre acelerada. Bunny tinha se casado e ia ser pai; outros amigos tinham ido para a Europa, e os solteiros frequentavam casas maiores e mais festivas que a nossa. Nessa época, conhecíamos “todo mundo” — ou seja, a maioria das pessoas que Ralph Barton retrataria em seus cartuns numa noite de estreia.
Mas já não éramos importantes. Em 1923, a melindrosa, em cuja conduta se baseara a popularidade de meus primeiros livros, tinha saído de moda — pelo menos no Leste. Decidi impactar a Broadway com uma peça, mas a Broadway mandou seus olheiros a Atlantic City e de saída cancelou a ideia, e assim senti que, naquele momento, a cidade e eu tínhamos pouco a oferecer um ao outro. Eu ia pegar a atmosfera de Long Island que respirara com familiaridade e materializá-la sob céus desconhecidos.
Passaram-se três anos até que víssemos Nova York outra vez. Enquanto o navio deslizava rio acima, a cidade explodia trovejando sobre nós no entardecer — a geleira branca da parte baixa de Nova York mergulhando como os cabos de uma ponte para erguer-se na parte alta da cidade, um milagre de luz e espuma suspenso pelas estrelas. Uma banda começou a tocar no convés, mas diante da majestade da cidade a marcha soava banal e metálica. A partir daquele momento, entendi que Nova York, não importava quantas vezes eu a deixasse, era minha casa.
O ritmo da cidade tinha mudado profundamente. As incertezas de 1920 tinham se afogado num contínuo fragor dourado, e muitos de nossos amigos tinham enriquecido. Mas a agitação da Nova York de 1927 beirava a histeria. As festas eram de arromba — as de Condé Nast, por exemplo, rivalizavam com os lendários bailes da década de 1890; o ritmo era mais acelerado — os convites à dissipação davam exemplo a Paris; os espetáculos eram maiores; os edifícios, mais altos; os costumes, mais lassos; e a bebida, mais barata. Mas todas essas benesses na verdade não proporcionavam muito deleite. Os jovens se desgastavam muito cedo — estavam insensíveis e frágeis aos vinte e um anos e, com exceção de Peter Arno, nenhum deles contribuiu com nada de novo. Talvez Peter Arno e seus colaboradores tenham dito tudo o que havia por dizer sobre os dias do boom de Nova York que não pudesse ser dito por uma orquestra de jazz. Muita gente que não era alcoólatra se embebedava quatro dias por semana, e havia nervos em frangalhos espalhados por toda parte; os grupos permaneciam reunidos por um nervosismo generalizado, e a ressaca tornou-se uma parte do dia tão natural quanto dormir a siesta para os espanhóis. A maior parte dos meus amigos bebia demais — quanto mais sintonizados com a época, mais bebiam. Assim, como o esforço por si só não tinha nenhum valor diante da absoluta permissividade da Nova York daqueles dias, inventou-se um nome pejorativo para ele: uma atividade de sucesso tornou-se uma pilantragem — eu estava na pilantragem literária.
Morávamos a poucas horas de Nova York, e descobri que cada vez que vinha à cidade era pilhado numa complicação de eventos que poucos dias depois me depositavam em estado de exaustão num trem para Delaware. Porções inteiras da cidade tinham crescido de modo insalubre, mas invariavelmente eu encontrava um momento de paz absoluta cruzando o Central Park, no escuro, em direção ao sul, onde as fachadas da rua 59 projetavam suas luzes através das árvores. Ali estava de novo minha cidade perdida, envolvida indiferente em seu mistério e suas promessas. Entretanto, meu afastamento nunca durava muito — da mesma forma que o trabalhador precisa viver no ventre da cidade, eu era compelido a viver em sua mente desordenada.
Como alternativa havia os bares clandestinos — a migração dos bares de luxo, que anunciavam nas publicações de Yale e Princeton, para cervejarias onde o rosto ranzinza do submundo espiava através da boa índole germânica do entretenimento, e depois para lugares estranhos e ainda mais sinistros, onde éramos observados por rapazes com rosto de pedra e nada restava da jovialidade, apenas uma brutalidade que contaminava o novo dia para o qual saíamos. Lembrei-me de 1920, quando choquei um jovem empresário em ascensão sugerindo um coquetel antes do almoço. Em 1929, havia bebida alcoólica em metade dos escritórios do centro e um bar clandestino em metade dos grandes edifícios.
Os bares clandestinos e a Park Avenue tornavam-se cada vez mais de domínio público. Na década anterior, Greenwich Village, Washington Square, Murray Hill e os casarões da Quinta Avenida tinham de certa forma desaparecido, ou se tornado inexpressivos. A cidade estava intumescida, desentranhada, estupidificada com pão e circo, e uma nova expressão — “Ah, é?” — resumia todo o entusiasmo evocado pelo anúncio dos últimos superarranha-céus. Meu barbeiro aposentou-se com o meio milhão ganhado em apostas no mercado, e eu tinha consciência de que os maîtres que me conduziam até minha mesa, ou que não o faziam, estavam muito, muito mais ricos do que eu. Isso não tinha graça — mais uma vez me fartei de Nova York e foi bom me sentir a salvo a bordo de um navio, em cujo bar continuou a festa ininterrupta a caminho da França.
“Quais são as últimas de Nova York?”
“As ações estão subindo. Um bebê matou um bandido.”
“Só isso?”
“Só. Os rádios se esgoelam na rua.”
Eu já chegara a pensar que não havia segundo ato na vida dos americanos, mas certamente haveria um segundo ato aos dias de boom de Nova York. Estávamos em algum lugar do Norte da África quando ouvimos um ruído abafado que ecoou nos cantos mais remotos do deserto.
“O que foi isso?”
“Você ouviu?”
“Não foi nada.”
“Você acha que devíamos voltar e ver?”
“Não. Não foi nada.”
No outono escuro, dois anos depois, vimos Nova York de novo. Passamos por funcionários da alfândega curiosamente corteses e, depois, de cabeça baixa e chapéu na mão, caminhei respeitosamente pela tumba ressonante. Entre as ruínas, uns poucos fantasmas infantis ainda brincavam para manter a farsa de que estavam vivos, porém eram traídos por suas vozes febris e feições frenéticas que revelavam a fragilidade da mascarada. Nos coquetéis, um último resquício oco dos dias de festança, ecoavam os lamentos dos feridos: “Me dê um tiro, pelo amor de Deus, alguém me dê um tiro!”, e os gemidos e queixumes dos moribundos: “Viu que a United States Steel caiu mais três pontos?”. Meu barbeiro voltou a trabalhar em sua loja; mais uma vez os maîtres acompanhavam as pessoas até as mesas, quando havia pessoas a acompanhar. Das ruínas, sozinho e indecifrável como uma esfinge, erguia-se o edifício Empire State e, assim como tinha sido um hábito meu subir ao terraço do Plaza para me despedir da linda cidade, que se estendia até onde a vista podia alcançar, desta vez fui ao último andar da última e mais esplêndida das torres. Foi então que vi que tudo se explicava: eu descobrira o erro fatal da cidade, sua caixa de Pandora. Cheio de empáfia, o nova-iorquino subira só para ver, desolado, o que nunca tinha suspeitado: a cidade não era uma sucessão infinita de cânions, como ele supunha, mas tinha limites — de cima da mais alta das estruturas, ele viu pela primeira vez que ela ia se apagando em direção ao campo por todos os lados, numa imensidão de verde e azul, essa sim sem limites. E com a terrível compreensão de que Nova York afinal era uma cidade, e não um universo, todo o edifício cintilante que ele criara em sua imaginação veio abaixo. Foi esse o presente desavisado de Alfred W. Smith aos cidadãos de Nova York.
Assim eu me despeço da minha cidade perdida. Vista do ferryboat, de manhã cedo, ela já não sugere sucessos fantásticos e eterna juventude. As moças alegres que saracoteiam diante de plateias vazias não me lembram a beleza inefável das garotas de meus sonhos em 1914. E Bunny, girando sobre os calcanhares cheio de si com sua bengala, a caminho de seu retiro num carnaval, aderiu ao comunismo e se preocupa com as injustiças contra os trabalhadores dos moinhos no Sul e os agricultores do Oeste, cujas vozes, quinze anos atrás, nunca teriam atravessado as paredes de seu estúdio.
Tudo está perdido salvo a lembrança, embora eu às vezes me imagine lendo uma edição de 1945 do Daily News: CINQUENTÃO PERDE A CABEÇA EM NOVA YORK
Modelo declara: Fitzgerald enriqueceu à custa de golpes
Abatido por pistoleiro furioso
Então talvez eu esteja destinado a voltar algum dia e encontrar na cidade novas experiências que até agora só vi no papel. Por enquanto, só posso chorar a perda de minha esplêndida miragem. Volte, ó branca e resplandecente, volte!
1 Dick Whittington e seu gato é um conto do folclore inglês sobre um menino pobre do século XIII que se torna um rico comerciante e termina como Lord Mayor de Londres devido à habilidade de seu gato como caçador de ratos. (N. T.)
2 Franklin Pierce Adams (1881-1960). (N. T.)
Primeiro foi o ferryboat saindo lentamente da costa de Jersey ao amanhecer — o momento cristalizou-se como meu primeiro símbolo de Nova York. Cinco anos depois, quando eu tinha quinze anos, saía da escola e ia ao centro da cidade para ver Ina Claire em The Quaker Girl e Gertrude Bryan em Little Boy Blue. Indeciso em meu amor melancólico e sem esperança por ambas, não conseguia escolher entre as duas — então elas se fundiram numa deliciosa identidade, a garota. Ela foi meu segundo símbolo de Nova York. O ferryboat representava o triunfo; a garota, o romance. Com o tempo, eu conquistaria um pouco dos dois, mas houve um terceiro símbolo que perdi em algum lugar, e para sempre.
Encontrei-o numa tarde escura de abril, passados outros cinco anos.
“Oi, Bunny”, gritei. “Bunny!”
Ele não me ouviu — meu táxi ficou para trás e alcançou-o de novo meia quadra adiante. Havia poças escuras de chuva na calçada, e o vi caminhando rápido no meio da multidão, usando uma capa de chuva bege sobre o inevitável terno marrom; notei com espanto que ele carregava uma leve bengala.
“Bunny!”, chamei de novo, e desisti. Eu ainda era universitário de Princeton, enquanto ele tinha se tornado um nova-iorquino. Era sua caminhada vespertina, essa correria com a bengala no meio da chuva que caía, e como faltava uma hora para nosso encontro, pareceu-me uma intromissão ir ter com ele quando estava envolvido com sua vida privada. Entretanto, meu táxi continuou emparelhado com ele, continuei observando e fiquei impressionado. Ele já não era o pequeno e tímido acadêmico da Holder Court — andava com firmeza, absorto em seus pensamentos e olhando para a frente, deixando óbvio que seu novo cenário era de todo suficiente para ele. Eu sabia que ele tinha um apartamento onde morava com três outros homens, já livre de todos os tabus de estudante, mas havia algo mais que o nutria, e tive minha primeira impressão dessa novidade: o espírito metropolitano.
Até aquela época, eu só tinha visto a Nova York que se oferecia à inspeção — era como Dick Whittington,1 chegado do campo e boquiaberto com os ursos amestrados, ou um jovem do Midi deslumbrado com os bulevares de Paris. Eu tinha vindo só para ver o espetáculo, embora os projetistas do edifício Woolworth e do painel luminoso da corrida de bigas, os produtores de comédias musicais e peças de tese não pudessem desejar um espectador mais receptivo, já que o estilo e o brilho que eu atribuía a Nova York superavam as expectativas da própria cidade. Mas nunca aceitei nenhum dos convites praticamente anônimos para bailes de debutantes que costumavam aparecer na correspondência de qualquer universitário, talvez porque sentisse que nenhuma realidade estaria à altura da concepção que eu fazia do esplendor de Nova York. Além do mais, aquela que eu chamava insensatamente de “minha garota” era do Meio-Oeste, o que mantinha lá o centro afetivo do mundo, de modo que eu considerava Nova York essencialmente cínica e cruel — exceto por uma noite em que ela iluminou o terraço do Ritz numa breve aparição.
Mais tarde, no entanto, eu a perdera para sempre e queria um mundo masculino, e a visão que tive de Bunny me fez ver Nova York exatamente assim. Uma semana antes, Monsignor Fay me levara ao Lafayette, onde se estendia diante de nós uma fulguração de comida, chamada hors d’oeuvre, que acompanhamos com um clarete tão desafiador quanto a confiante bengala de Bunny — mas afinal de contas tratava-se de um restaurante, e depois teríamos de transpor uma ponte para voltarmos ao interior. A Nova York da dissipação estudantil, de restaurantes como o Bustanoby’s, o Shanley’s e o Jack’s, tinha se tornado um horror, e embora eu tenha voltado a ela, ai de mim, muitas vezes numa névoa de álcool, senti cada volta como uma traição a um idealismo persistente. Minha participação era mais lasciva que licenciosa, e restam poucas lembranças prazerosas daqueles dias. Como disse uma vez Ernest Hemingway, a única finalidade do cabaré é reunir homens descomprometidos e mulheres complacentes. O resto é perda de tempo numa atmosfera viciada.
Naquela noite, porém, no apartamento de Bunny, a vida era mansa e segura, o produto final de uma destilação de tudo que eu aprendera a amar em Princeton. O som agradável de um oboé se misturava aos ruídos urbanos que vinham da rua, penetrando na sala com dificuldade através de enormes barricadas de livros; a única nota dissonante era dada por um homem que rasgava envelopes de convites. Eu tinha encontrado um terceiro símbolo de Nova York e comecei a pensar em alugar um apartamento como aquele e em selecionar amigos com quem dividi-lo.
Improvável — durante os dois anos seguintes, tive tanto controle sobre meu destino quanto um preso sobre o corte de sua roupa. Quando voltei a Nova York, em 1919, minha vida estava tão enrolada que eu não podia nem sonhar com um tranquilo período monástico na Washington Square. O importante era ganhar dinheiro em publicidade, o bastante para alugar um pequeno apartamento no Bronx para duas pessoas. A garota em questão nunca tinha visto Nova York, mas era sensata o suficiente para estar um pouco relutante. E num halo de ansiedade e infelicidade, passei os quatro meses mais vulneráveis de minha vida.
Nova York tinha toda a iridescência do nascimento do mundo. Soldados vindos da guerra desfilaram pela Quinta Avenida, e as garotas eram atraídas instintivamente para leste e norte atrás deles — esta era a maior nação do mundo e havia um clima de gala no ar. Enquanto eu pairava como um fantasma no Salão Vermelho do Plaza numa tarde de sábado, ia a inebriantes festas no entorno da rua 60 Leste, ou bebia com o pessoal de Princeton no bar do Biltmore, era sempre assombrado por minha outra vida — meu quarto ordinário no Bronx, meus centímetros quadrados de metrô, minha obsessão pela carta diária do Alabama — chegaria, e o que diria? —, meus ternos surrados, minha pobreza e o amor. Enquanto meus amigos estavam se dando bem na vida, eu tinha empurrado meu barco precário para a correnteza. A juventude dourada que circulava em volta de Constance Bennett no Club de Vingt, os colegas do clube de Yale-Princeton animados em nossa primeira reunião depois do fim da guerra, o clima das casas de milionários que eu às vezes frequentava — tudo isso era vazio para mim, embora eu admitisse que era um cenário impressionante e lamentasse estar comprometido com outro romance. A mais divertida mesa de almoço ou o cabaré mais onírico — era tudo a mesma coisa. Eu voltava ansiosamente para minha casa na Claremont Avenue — porque poderia haver uma carta esperando diante da porta. Um por um, meus grandes sonhos com Nova York se corromperam. A lembrança do charme do apartamento de Bunny feneceu com todo o resto quando entrevistei uma senhoria desgrenhada no Greenwich Village. Ela disse que eu poderia trazer garotas para o meu quarto, e essa ideia me encheu de desânimo — por que eu ia querer trazer garotas para o meu quarto? Eu tinha uma garota. Perambulava pela cidade, pela rua 127, magoado com sua vitalidade vibrante; ou então comprava ingresso para algum teatro barato na farmácia Gray’s e tentava me perder por algumas horas em minha velha paixão pela Broadway. Eu era um fracasso — medíocre na publicidade e incapaz de me lançar como escritor. Odiando a cidade, bebia até meu último centavo e, caindo de bêbado e choroso, voltava para casa...
... Cidade imprevisível. O que aconteceu depois foi apenas uma entre milhares de histórias de sucesso daqueles dias agitados, mas desempenha um papel em meu próprio filme de Nova York. Quando voltei, seis meses depois, as salas das editoras estavam abertas para mim, agentes imploravam por peças, o cinema ansiava por roteiros. Para minha perplexidade, fui adotado não como um interiorano do Meio-Oeste, nem como observador participante, mas como o arquétipo daquilo que Nova York queria. Essa afirmação demanda certa descrição do que era a metrópole em 1920.
Já existia a cidade branca e alta de hoje, a atividade febricitante do boom, mas havia também uma desarticulação geral. Assim como outros, o colunista F. P. A.2 tomou o pulso da multidão, mas timidamente, como quem observa pela janela. A sociedade e as artes autóctones não se misturavam — Ellen Mackay ainda não se casara com Irving Berlin. Grande parte dos personagens de Peter Arno não teria nenhum significado para os cidadãos de 1920, e, fora a coluna de F. P. A., não existia uma tribuna para a civilidade metropolitana.
Então, por um instante, a ideia de “nova geração” tornou-se uma fusão de muitos elementos da vida de Nova York. Gente de cinquenta anos podia fingir que ainda existia uma nata da sociedade, ou Maxwell Bodenheim podia fingir que existia uma boêmia digna de sua pintura e seu traço — mas a mistura dos elementos brilhantes, alegres e vigorosos começou nessa época, e pela primeira vez apareceu uma sociedade um pouco mais animada que os circunspectos banquetes de Emily Price Post em salões de mogno. Se essa sociedade inventou o coquetel, também desenvolveu o espírito da Park Avenue, e pela primeira vez um europeu culto podia vislumbrar uma viagem a Nova York como algo mais divertido do que uma expedição em busca de ouro no interior da Austrália.
Só por um instante, antes que ficasse demonstrado que eu era incapaz de desempenhar o papel, eu, que sabia sobre Nova York menos que qualquer repórter com seis meses de residência na cidade, e menos sobre sua sociedade do que qualquer rapaz desacompanhado nos bailes do Ritz, fui elevado à posição não só de porta-voz da época, mas de típico produto do momento. Eu, melhor dizendo agora, “nós” não sabíamos exatamente o que Nova York esperava de nós e achamos aquilo muito confuso. Poucos meses depois de embarcar na aventura metropolitana, já mal sabíamos quem éramos e não tínhamos ideia do que éramos. Um mergulho numa fonte pública ou um esbarrão casual com agentes da lei era o bastante para nos levar às colunas de fofocas. Éramos citados com relação a uma vasta quantidade de assuntos sobre os quais nada sabíamos. Na verdade, nossos “contatos” se resumiam a meia dúzia de amigos solteiros da faculdade e uns poucos conhecidos recentes da área literária — lembro de um Natal solitário em que não tínhamos um só amigo na cidade nem uma casa aonde ir. Sem encontrar um núcleo ao qual nos agarrar, nós mesmos nos tornamos um núcleo e aos poucos ajustamos nossas personalidades conturbadas à cena da Nova York contemporânea. Ou melhor, Nova York nos esqueceu e nos deixou ficar.
Este não é um relato das mudanças da cidade, mas das mudanças dos sentimentos deste escritor pela cidade. Da confusão de 1920, lembro de andar na capota de um táxi pela Quinta Avenida deserta numa noite quente de domingo, de um almoço no sereno jardim japonês do Ritz com a melancólica Kay Laurel e George Jean Nathan, de escrever a noite toda repetidamente, de pagar caro por minúsculos apartamentos, e de comprar carros magníficos que enguiçavam toda hora. Tinham aparecido os primeiros bares clandestinos, passear estava fora de moda, o Montmartre era o lugar elegante para dançar e o cabelo louro de Lillian Tashman rodopiava na pista de dança entre universitários embriagados. As peças eram Declassée e Sacred and Profane Love, e no Midnight Frolic você dançava lado a lado com Marion Davies e talvez reconhecesse a animada Mary Hay entre as coristas. Pensávamos que estávamos distantes de tudo aquilo; talvez todo mundo pense que está distante de seu ambiente. Nos sentíamos como duas criancinhas num enorme galpão, iluminado e inexplorado. Reunidos no estúdio de Griffith em Long Island, tremíamos em presença dos rostos familiares do filme O nascimento de uma nação; mais tarde, compreendi que por trás do entretenimento que a cidade despejava sobre a nação não havia mais que um monte de gente perdida e solitária. O mundo dos astros de cinema era como o nosso, na medida em que eles estavam em Nova York, mas não eram de Nova York. Esse mundo tinha pouca noção de si mesmo e nenhum centro: quando conheci Dorothy Gish, tive a sensação de que estávamos os dois no polo Norte e que nevava. Desde então eles encontraram um lar, que não estava destinado a ser Nova York.
Quando nos entediávamos, encarávamos nossa cidade com um capricho à moda de Huysmans. Passávamos uma tarde sozinhos em nosso “apartamento”, comendo sanduíches de azeitona e bebendo um litro de uísque Bushmills que tínhamos ganhado de Zoë Akins, e então saíamos para a cidade enfeitiçada, entrando por portas estranhas em estranhos apartamentos com intermitentes sacolejos em táxis no meio das noites mansas. Pelo menos formávamos um todo com Nova York, levando-a conosco por cada portal. Até hoje entro em muitos apartamentos com a sensação de já ter estado lá antes, ou no de cima, ou no de baixo. Teria sido na noite em que tentei tirar a roupa no Scandals, ou na noite em que (como fiquei sabendo, com assombro, pelos jornais na manhã seguinte) “Fitzgerald esmurra policial até o outro lado do paraíso”? Como ganhar briga não fazia parte das minhas realizações, tentei em vão reconstruir a sequência de eventos que culminou naquele desfecho, no Webster Hall. Finalmente, daquele período, lembro de estar andando de táxi numa tarde entre edifícios altíssimos sob um céu rosa arroxeado; comecei a gritar que tinha tudo o que queria e sabia que nunca mais seria tão feliz.
Foi típico de nossa precária situação em Nova York o fato de que, quando nossa filha estava para nascer, decidimos proceder com segurança e voltamos para St. Paul — parecia inadequado trazer um bebê à luz no meio de todo aquele glamour e daquela solidão. Depois de um ano, porém, estávamos de volta, e começamos a fazer as mesmas coisas outra vez, sem gostar muito delas. Estávamos bastante rodados, embora conservássemos uma inocência quase teatral ao preferir o papel de observados ao de observadores. Mas a inocência não é um fim em si, e à medida que nossa mentalidade amadurecia, contra a nossa vontade, começamos a ver Nova York como um todo e a tentar salvar alguma coisa dela para quando chegassem os seres em que inevitavelmente nos transformaríamos.
Era tarde demais — ou cedo demais. Para nós, a cidade estava indissoluvelmente ligada a divertimentos etílicos, moderados ou fantásticos. Só pudemos nos organizar ao voltar para Long Island, e nem sempre lá. Não tínhamos estímulo para desfrutar a cidade pela metade. Meu primeiro símbolo era agora uma lembrança, pois eu sabia que o triunfo está em nós mesmos; o segundo tinha se transformado em lugar-comum — as duas atrizes que eu cultuava de longe lá pelos idos de 1913 tinham jantado em nossa casa. Mas dava-me certo medo que também o terceiro símbolo tivesse se turvado — não era fácil encontrar a tranquilidade do apartamento de Bunny na cidade sempre acelerada. Bunny tinha se casado e ia ser pai; outros amigos tinham ido para a Europa, e os solteiros frequentavam casas maiores e mais festivas que a nossa. Nessa época, conhecíamos “todo mundo” — ou seja, a maioria das pessoas que Ralph Barton retrataria em seus cartuns numa noite de estreia.
Mas já não éramos importantes. Em 1923, a melindrosa, em cuja conduta se baseara a popularidade de meus primeiros livros, tinha saído de moda — pelo menos no Leste. Decidi impactar a Broadway com uma peça, mas a Broadway mandou seus olheiros a Atlantic City e de saída cancelou a ideia, e assim senti que, naquele momento, a cidade e eu tínhamos pouco a oferecer um ao outro. Eu ia pegar a atmosfera de Long Island que respirara com familiaridade e materializá-la sob céus desconhecidos.
Passaram-se três anos até que víssemos Nova York outra vez. Enquanto o navio deslizava rio acima, a cidade explodia trovejando sobre nós no entardecer — a geleira branca da parte baixa de Nova York mergulhando como os cabos de uma ponte para erguer-se na parte alta da cidade, um milagre de luz e espuma suspenso pelas estrelas. Uma banda começou a tocar no convés, mas diante da majestade da cidade a marcha soava banal e metálica. A partir daquele momento, entendi que Nova York, não importava quantas vezes eu a deixasse, era minha casa.
O ritmo da cidade tinha mudado profundamente. As incertezas de 1920 tinham se afogado num contínuo fragor dourado, e muitos de nossos amigos tinham enriquecido. Mas a agitação da Nova York de 1927 beirava a histeria. As festas eram de arromba — as de Condé Nast, por exemplo, rivalizavam com os lendários bailes da década de 1890; o ritmo era mais acelerado — os convites à dissipação davam exemplo a Paris; os espetáculos eram maiores; os edifícios, mais altos; os costumes, mais lassos; e a bebida, mais barata. Mas todas essas benesses na verdade não proporcionavam muito deleite. Os jovens se desgastavam muito cedo — estavam insensíveis e frágeis aos vinte e um anos e, com exceção de Peter Arno, nenhum deles contribuiu com nada de novo. Talvez Peter Arno e seus colaboradores tenham dito tudo o que havia por dizer sobre os dias do boom de Nova York que não pudesse ser dito por uma orquestra de jazz. Muita gente que não era alcoólatra se embebedava quatro dias por semana, e havia nervos em frangalhos espalhados por toda parte; os grupos permaneciam reunidos por um nervosismo generalizado, e a ressaca tornou-se uma parte do dia tão natural quanto dormir a siesta para os espanhóis. A maior parte dos meus amigos bebia demais — quanto mais sintonizados com a época, mais bebiam. Assim, como o esforço por si só não tinha nenhum valor diante da absoluta permissividade da Nova York daqueles dias, inventou-se um nome pejorativo para ele: uma atividade de sucesso tornou-se uma pilantragem — eu estava na pilantragem literária.
Morávamos a poucas horas de Nova York, e descobri que cada vez que vinha à cidade era pilhado numa complicação de eventos que poucos dias depois me depositavam em estado de exaustão num trem para Delaware. Porções inteiras da cidade tinham crescido de modo insalubre, mas invariavelmente eu encontrava um momento de paz absoluta cruzando o Central Park, no escuro, em direção ao sul, onde as fachadas da rua 59 projetavam suas luzes através das árvores. Ali estava de novo minha cidade perdida, envolvida indiferente em seu mistério e suas promessas. Entretanto, meu afastamento nunca durava muito — da mesma forma que o trabalhador precisa viver no ventre da cidade, eu era compelido a viver em sua mente desordenada.
Como alternativa havia os bares clandestinos — a migração dos bares de luxo, que anunciavam nas publicações de Yale e Princeton, para cervejarias onde o rosto ranzinza do submundo espiava através da boa índole germânica do entretenimento, e depois para lugares estranhos e ainda mais sinistros, onde éramos observados por rapazes com rosto de pedra e nada restava da jovialidade, apenas uma brutalidade que contaminava o novo dia para o qual saíamos. Lembrei-me de 1920, quando choquei um jovem empresário em ascensão sugerindo um coquetel antes do almoço. Em 1929, havia bebida alcoólica em metade dos escritórios do centro e um bar clandestino em metade dos grandes edifícios.
Os bares clandestinos e a Park Avenue tornavam-se cada vez mais de domínio público. Na década anterior, Greenwich Village, Washington Square, Murray Hill e os casarões da Quinta Avenida tinham de certa forma desaparecido, ou se tornado inexpressivos. A cidade estava intumescida, desentranhada, estupidificada com pão e circo, e uma nova expressão — “Ah, é?” — resumia todo o entusiasmo evocado pelo anúncio dos últimos superarranha-céus. Meu barbeiro aposentou-se com o meio milhão ganhado em apostas no mercado, e eu tinha consciência de que os maîtres que me conduziam até minha mesa, ou que não o faziam, estavam muito, muito mais ricos do que eu. Isso não tinha graça — mais uma vez me fartei de Nova York e foi bom me sentir a salvo a bordo de um navio, em cujo bar continuou a festa ininterrupta a caminho da França.
“Quais são as últimas de Nova York?”
“As ações estão subindo. Um bebê matou um bandido.”
“Só isso?”
“Só. Os rádios se esgoelam na rua.”
Eu já chegara a pensar que não havia segundo ato na vida dos americanos, mas certamente haveria um segundo ato aos dias de boom de Nova York. Estávamos em algum lugar do Norte da África quando ouvimos um ruído abafado que ecoou nos cantos mais remotos do deserto.
“O que foi isso?”
“Você ouviu?”
“Não foi nada.”
“Você acha que devíamos voltar e ver?”
“Não. Não foi nada.”
No outono escuro, dois anos depois, vimos Nova York de novo. Passamos por funcionários da alfândega curiosamente corteses e, depois, de cabeça baixa e chapéu na mão, caminhei respeitosamente pela tumba ressonante. Entre as ruínas, uns poucos fantasmas infantis ainda brincavam para manter a farsa de que estavam vivos, porém eram traídos por suas vozes febris e feições frenéticas que revelavam a fragilidade da mascarada. Nos coquetéis, um último resquício oco dos dias de festança, ecoavam os lamentos dos feridos: “Me dê um tiro, pelo amor de Deus, alguém me dê um tiro!”, e os gemidos e queixumes dos moribundos: “Viu que a United States Steel caiu mais três pontos?”. Meu barbeiro voltou a trabalhar em sua loja; mais uma vez os maîtres acompanhavam as pessoas até as mesas, quando havia pessoas a acompanhar. Das ruínas, sozinho e indecifrável como uma esfinge, erguia-se o edifício Empire State e, assim como tinha sido um hábito meu subir ao terraço do Plaza para me despedir da linda cidade, que se estendia até onde a vista podia alcançar, desta vez fui ao último andar da última e mais esplêndida das torres. Foi então que vi que tudo se explicava: eu descobrira o erro fatal da cidade, sua caixa de Pandora. Cheio de empáfia, o nova-iorquino subira só para ver, desolado, o que nunca tinha suspeitado: a cidade não era uma sucessão infinita de cânions, como ele supunha, mas tinha limites — de cima da mais alta das estruturas, ele viu pela primeira vez que ela ia se apagando em direção ao campo por todos os lados, numa imensidão de verde e azul, essa sim sem limites. E com a terrível compreensão de que Nova York afinal era uma cidade, e não um universo, todo o edifício cintilante que ele criara em sua imaginação veio abaixo. Foi esse o presente desavisado de Alfred W. Smith aos cidadãos de Nova York.
Assim eu me despeço da minha cidade perdida. Vista do ferryboat, de manhã cedo, ela já não sugere sucessos fantásticos e eterna juventude. As moças alegres que saracoteiam diante de plateias vazias não me lembram a beleza inefável das garotas de meus sonhos em 1914. E Bunny, girando sobre os calcanhares cheio de si com sua bengala, a caminho de seu retiro num carnaval, aderiu ao comunismo e se preocupa com as injustiças contra os trabalhadores dos moinhos no Sul e os agricultores do Oeste, cujas vozes, quinze anos atrás, nunca teriam atravessado as paredes de seu estúdio.
Tudo está perdido salvo a lembrança, embora eu às vezes me imagine lendo uma edição de 1945 do Daily News: CINQUENTÃO PERDE A CABEÇA EM NOVA YORK
Modelo declara: Fitzgerald enriqueceu à custa de golpes
Abatido por pistoleiro furioso
Então talvez eu esteja destinado a voltar algum dia e encontrar na cidade novas experiências que até agora só vi no papel. Por enquanto, só posso chorar a perda de minha esplêndida miragem. Volte, ó branca e resplandecente, volte!
1 Dick Whittington e seu gato é um conto do folclore inglês sobre um menino pobre do século XIII que se torna um rico comerciante e termina como Lord Mayor de Londres devido à habilidade de seu gato como caçador de ratos. (N. T.)
2 Franklin Pierce Adams (1881-1960). (N. T.)
Primeiro foi o ferryboat saindo lentamente da costa de Jersey ao amanhecer — o momento cristalizou-se como meu primeiro símbolo de Nova York. Cinco anos depois, quando eu tinha quinze anos, saía da escola e ia ao centro da cidade para ver Ina Claire em The Quaker Girl e Gertrude Bryan em Little Boy Blue. Indeciso em meu amor melancólico e sem esperança por ambas, não conseguia escolher entre as duas — então elas se fundiram numa deliciosa identidade, a garota. Ela foi meu segundo símbolo de Nova York. O ferryboat representava o triunfo; a garota, o romance. Com o tempo, eu conquistaria um pouco dos dois, mas houve um terceiro símbolo que perdi em algum lugar, e para sempre.
Encontrei-o numa tarde escura de abril, passados outros cinco anos.
“Oi, Bunny”, gritei. “Bunny!”
Ele não me ouviu — meu táxi ficou para trás e alcançou-o de novo meia quadra adiante. Havia poças escuras de chuva na calçada, e o vi caminhando rápido no meio da multidão, usando uma capa de chuva bege sobre o inevitável terno marrom; notei com espanto que ele carregava uma leve bengala.
“Bunny!”, chamei de novo, e desisti. Eu ainda era universitário de Princeton, enquanto ele tinha se tornado um nova-iorquino. Era sua caminhada vespertina, essa correria com a bengala no meio da chuva que caía, e como faltava uma hora para nosso encontro, pareceu-me uma intromissão ir ter com ele quando estava envolvido com sua vida privada. Entretanto, meu táxi continuou emparelhado com ele, continuei observando e fiquei impressionado. Ele já não era o pequeno e tímido acadêmico da Holder Court — andava com firmeza, absorto em seus pensamentos e olhando para a frente, deixando óbvio que seu novo cenário era de todo suficiente para ele. Eu sabia que ele tinha um apartamento onde morava com três outros homens, já livre de todos os tabus de estudante, mas havia algo mais que o nutria, e tive minha primeira impressão dessa novidade: o espírito metropolitano.
Até aquela época, eu só tinha visto a Nova York que se oferecia à inspeção — era como Dick Whittington,1 chegado do campo e boquiaberto com os ursos amestrados, ou um jovem do Midi deslumbrado com os bulevares de Paris. Eu tinha vindo só para ver o espetáculo, embora os projetistas do edifício Woolworth e do painel luminoso da corrida de bigas, os produtores de comédias musicais e peças de tese não pudessem desejar um espectador mais receptivo, já que o estilo e o brilho que eu atribuía a Nova York superavam as expectativas da própria cidade. Mas nunca aceitei nenhum dos convites praticamente anônimos para bailes de debutantes que costumavam aparecer na correspondência de qualquer universitário, talvez porque sentisse que nenhuma realidade estaria à altura da concepção que eu fazia do esplendor de Nova York. Além do mais, aquela que eu chamava insensatamente de “minha garota” era do Meio-Oeste, o que mantinha lá o centro afetivo do mundo, de modo que eu considerava Nova York essencialmente cínica e cruel — exceto por uma noite em que ela iluminou o terraço do Ritz numa breve aparição.
Mais tarde, no entanto, eu a perdera para sempre e queria um mundo masculino, e a visão que tive de Bunny me fez ver Nova York exatamente assim. Uma semana antes, Monsignor Fay me levara ao Lafayette, onde se estendia diante de nós uma fulguração de comida, chamada hors d’oeuvre, que acompanhamos com um clarete tão desafiador quanto a confiante bengala de Bunny — mas afinal de contas tratava-se de um restaurante, e depois teríamos de transpor uma ponte para voltarmos ao interior. A Nova York da dissipação estudantil, de restaurantes como o Bustanoby’s, o Shanley’s e o Jack’s, tinha se tornado um horror, e embora eu tenha voltado a ela, ai de mim, muitas vezes numa névoa de álcool, senti cada volta como uma traição a um idealismo persistente. Minha participação era mais lasciva que licenciosa, e restam poucas lembranças prazerosas daqueles dias. Como disse uma vez Ernest Hemingway, a única finalidade do cabaré é reunir homens descomprometidos e mulheres complacentes. O resto é perda de tempo numa atmosfera viciada.
Naquela noite, porém, no apartamento de Bunny, a vida era mansa e segura, o produto final de uma destilação de tudo que eu aprendera a amar em Princeton. O som agradável de um oboé se misturava aos ruídos urbanos que vinham da rua, penetrando na sala com dificuldade através de enormes barricadas de livros; a única nota dissonante era dada por um homem que rasgava envelopes de convites. Eu tinha encontrado um terceiro símbolo de Nova York e comecei a pensar em alugar um apartamento como aquele e em selecionar amigos com quem dividi-lo.
Improvável — durante os dois anos seguintes, tive tanto controle sobre meu destino quanto um preso sobre o corte de sua roupa. Quando voltei a Nova York, em 1919, minha vida estava tão enrolada que eu não podia nem sonhar com um tranquilo período monástico na Washington Square. O importante era ganhar dinheiro em publicidade, o bastante para alugar um pequeno apartamento no Bronx para duas pessoas. A garota em questão nunca tinha visto Nova York, mas era sensata o suficiente para estar um pouco relutante. E num halo de ansiedade e infelicidade, passei os quatro meses mais vulneráveis de minha vida.
Nova York tinha toda a iridescência do nascimento do mundo. Soldados vindos da guerra desfilaram pela Quinta Avenida, e as garotas eram atraídas instintivamente para leste e norte atrás deles — esta era a maior nação do mundo e havia um clima de gala no ar. Enquanto eu pairava como um fantasma no Salão Vermelho do Plaza numa tarde de sábado, ia a inebriantes festas no entorno da rua 60 Leste, ou bebia com o pessoal de Princeton no bar do Biltmore, era sempre assombrado por minha outra vida — meu quarto ordinário no Bronx, meus centímetros quadrados de metrô, minha obsessão pela carta diária do Alabama — chegaria, e o que diria? —, meus ternos surrados, minha pobreza e o amor. Enquanto meus amigos estavam se dando bem na vida, eu tinha empurrado meu barco precário para a correnteza. A juventude dourada que circulava em volta de Constance Bennett no Club de Vingt, os colegas do clube de Yale-Princeton animados em nossa primeira reunião depois do fim da guerra, o clima das casas de milionários que eu às vezes frequentava — tudo isso era vazio para mim, embora eu admitisse que era um cenário impressionante e lamentasse estar comprometido com outro romance. A mais divertida mesa de almoço ou o cabaré mais onírico — era tudo a mesma coisa. Eu voltava ansiosamente para minha casa na Claremont Avenue — porque poderia haver uma carta esperando diante da porta. Um por um, meus grandes sonhos com Nova York se corromperam. A lembrança do charme do apartamento de Bunny feneceu com todo o resto quando entrevistei uma senhoria desgrenhada no Greenwich Village. Ela disse que eu poderia trazer garotas para o meu quarto, e essa ideia me encheu de desânimo — por que eu ia querer trazer garotas para o meu quarto? Eu tinha uma garota. Perambulava pela cidade, pela rua 127, magoado com sua vitalidade vibrante; ou então comprava ingresso para algum teatro barato na farmácia Gray’s e tentava me perder por algumas horas em minha velha paixão pela Broadway. Eu era um fracasso — medíocre na publicidade e incapaz de me lançar como escritor. Odiando a cidade, bebia até meu último centavo e, caindo de bêbado e choroso, voltava para casa...
... Cidade imprevisível. O que aconteceu depois foi apenas uma entre milhares de histórias de sucesso daqueles dias agitados, mas desempenha um papel em meu próprio filme de Nova York. Quando voltei, seis meses depois, as salas das editoras estavam abertas para mim, agentes imploravam por peças, o cinema ansiava por roteiros. Para minha perplexidade, fui adotado não como um interiorano do Meio-Oeste, nem como observador participante, mas como o arquétipo daquilo que Nova York queria. Essa afirmação demanda certa descrição do que era a metrópole em 1920.
Já existia a cidade branca e alta de hoje, a atividade febricitante do boom, mas havia também uma desarticulação geral. Assim como outros, o colunista F. P. A.2 tomou o pulso da multidão, mas timidamente, como quem observa pela janela. A sociedade e as artes autóctones não se misturavam — Ellen Mackay ainda não se casara com Irving Berlin. Grande parte dos personagens de Peter Arno não teria nenhum significado para os cidadãos de 1920, e, fora a coluna de F. P. A., não existia uma tribuna para a civilidade metropolitana.
Então, por um instante, a ideia de “nova geração” tornou-se uma fusão de muitos elementos da vida de Nova York. Gente de cinquenta anos podia fingir que ainda existia uma nata da sociedade, ou Maxwell Bodenheim podia fingir que existia uma boêmia digna de sua pintura e seu traço — mas a mistura dos elementos brilhantes, alegres e vigorosos começou nessa época, e pela primeira vez apareceu uma sociedade um pouco mais animada que os circunspectos banquetes de Emily Price Post em salões de mogno. Se essa sociedade inventou o coquetel, também desenvolveu o espírito da Park Avenue, e pela primeira vez um europeu culto podia vislumbrar uma viagem a Nova York como algo mais divertido do que uma expedição em busca de ouro no interior da Austrália.
Só por um instante, antes que ficasse demonstrado que eu era incapaz de desempenhar o papel, eu, que sabia sobre Nova York menos que qualquer repórter com seis meses de residência na cidade, e menos sobre sua sociedade do que qualquer rapaz desacompanhado nos bailes do Ritz, fui elevado à posição não só de porta-voz da época, mas de típico produto do momento. Eu, melhor dizendo agora, “nós” não sabíamos exatamente o que Nova York esperava de nós e achamos aquilo muito confuso. Poucos meses depois de embarcar na aventura metropolitana, já mal sabíamos quem éramos e não tínhamos ideia do que éramos. Um mergulho numa fonte pública ou um esbarrão casual com agentes da lei era o bastante para nos levar às colunas de fofocas. Éramos citados com relação a uma vasta quantidade de assuntos sobre os quais nada sabíamos. Na verdade, nossos “contatos” se resumiam a meia dúzia de amigos solteiros da faculdade e uns poucos conhecidos recentes da área literária — lembro de um Natal solitário em que não tínhamos um só amigo na cidade nem uma casa aonde ir. Sem encontrar um núcleo ao qual nos agarrar, nós mesmos nos tornamos um núcleo e aos poucos ajustamos nossas personalidades conturbadas à cena da Nova York contemporânea. Ou melhor, Nova York nos esqueceu e nos deixou ficar.
Este não é um relato das mudanças da cidade, mas das mudanças dos sentimentos deste escritor pela cidade. Da confusão de 1920, lembro de andar na capota de um táxi pela Quinta Avenida deserta numa noite quente de domingo, de um almoço no sereno jardim japonês do Ritz com a melancólica Kay Laurel e George Jean Nathan, de escrever a noite toda repetidamente, de pagar caro por minúsculos apartamentos, e de comprar carros magníficos que enguiçavam toda hora. Tinham aparecido os primeiros bares clandestinos, passear estava fora de moda, o Montmartre era o lugar elegante para dançar e o cabelo louro de Lillian Tashman rodopiava na pista de dança entre universitários embriagados. As peças eram Declassée e Sacred and Profane Love, e no Midnight Frolic você dançava lado a lado com Marion Davies e talvez reconhecesse a animada Mary Hay entre as coristas. Pensávamos que estávamos distantes de tudo aquilo; talvez todo mundo pense que está distante de seu ambiente. Nos sentíamos como duas criancinhas num enorme galpão, iluminado e inexplorado. Reunidos no estúdio de Griffith em Long Island, tremíamos em presença dos rostos familiares do filme O nascimento de uma nação; mais tarde, compreendi que por trás do entretenimento que a cidade despejava sobre a nação não havia mais que um monte de gente perdida e solitária. O mundo dos astros de cinema era como o nosso, na medida em que eles estavam em Nova York, mas não eram de Nova York. Esse mundo tinha pouca noção de si mesmo e nenhum centro: quando conheci Dorothy Gish, tive a sensação de que estávamos os dois no polo Norte e que nevava. Desde então eles encontraram um lar, que não estava destinado a ser Nova York.
Quando nos entediávamos, encarávamos nossa cidade com um capricho à moda de Huysmans. Passávamos uma tarde sozinhos em nosso “apartamento”, comendo sanduíches de azeitona e bebendo um litro de uísque Bushmills que tínhamos ganhado de Zoë Akins, e então saíamos para a cidade enfeitiçada, entrando por portas estranhas em estranhos apartamentos com intermitentes sacolejos em táxis no meio das noites mansas. Pelo menos formávamos um todo com Nova York, levando-a conosco por cada portal. Até hoje entro em muitos apartamentos com a sensação de já ter estado lá antes, ou no de cima, ou no de baixo. Teria sido na noite em que tentei tirar a roupa no Scandals, ou na noite em que (como fiquei sabendo, com assombro, pelos jornais na manhã seguinte) “Fitzgerald esmurra policial até o outro lado do paraíso”? Como ganhar briga não fazia parte das minhas realizações, tentei em vão reconstruir a sequência de eventos que culminou naquele desfecho, no Webster Hall. Finalmente, daquele período, lembro de estar andando de táxi numa tarde entre edifícios altíssimos sob um céu rosa arroxeado; comecei a gritar que tinha tudo o que queria e sabia que nunca mais seria tão feliz.
Foi típico de nossa precária situação em Nova York o fato de que, quando nossa filha estava para nascer, decidimos proceder com segurança e voltamos para St. Paul — parecia inadequado trazer um bebê à luz no meio de todo aquele glamour e daquela solidão. Depois de um ano, porém, estávamos de volta, e começamos a fazer as mesmas coisas outra vez, sem gostar muito delas. Estávamos bastante rodados, embora conservássemos uma inocência quase teatral ao preferir o papel de observados ao de observadores. Mas a inocência não é um fim em si, e à medida que nossa mentalidade amadurecia, contra a nossa vontade, começamos a ver Nova York como um todo e a tentar salvar alguma coisa dela para quando chegassem os seres em que inevitavelmente nos transformaríamos.
Era tarde demais — ou cedo demais. Para nós, a cidade estava indissoluvelmente ligada a divertimentos etílicos, moderados ou fantásticos. Só pudemos nos organizar ao voltar para Long Island, e nem sempre lá. Não tínhamos estímulo para desfrutar a cidade pela metade. Meu primeiro símbolo era agora uma lembrança, pois eu sabia que o triunfo está em nós mesmos; o segundo tinha se transformado em lugar-comum — as duas atrizes que eu cultuava de longe lá pelos idos de 1913 tinham jantado em nossa casa. Mas dava-me certo medo que também o terceiro símbolo tivesse se turvado — não era fácil encontrar a tranquilidade do apartamento de Bunny na cidade sempre acelerada. Bunny tinha se casado e ia ser pai; outros amigos tinham ido para a Europa, e os solteiros frequentavam casas maiores e mais festivas que a nossa. Nessa época, conhecíamos “todo mundo” — ou seja, a maioria das pessoas que Ralph Barton retrataria em seus cartuns numa noite de estreia.
Mas já não éramos importantes. Em 1923, a melindrosa, em cuja conduta se baseara a popularidade de meus primeiros livros, tinha saído de moda — pelo menos no Leste. Decidi impactar a Broadway com uma peça, mas a Broadway mandou seus olheiros a Atlantic City e de saída cancelou a ideia, e assim senti que, naquele momento, a cidade e eu tínhamos pouco a oferecer um ao outro. Eu ia pegar a atmosfera de Long Island que respirara com familiaridade e materializá-la sob céus desconhecidos.
Passaram-se três anos até que víssemos Nova York outra vez. Enquanto o navio deslizava rio acima, a cidade explodia trovejando sobre nós no entardecer — a geleira branca da parte baixa de Nova York mergulhando como os cabos de uma ponte para erguer-se na parte alta da cidade, um milagre de luz e espuma suspenso pelas estrelas. Uma banda começou a tocar no convés, mas diante da majestade da cidade a marcha soava banal e metálica. A partir daquele momento, entendi que Nova York, não importava quantas vezes eu a deixasse, era minha casa.
O ritmo da cidade tinha mudado profundamente. As incertezas de 1920 tinham se afogado num contínuo fragor dourado, e muitos de nossos amigos tinham enriquecido. Mas a agitação da Nova York de 1927 beirava a histeria. As festas eram de arromba — as de Condé Nast, por exemplo, rivalizavam com os lendários bailes da década de 1890; o ritmo era mais acelerado — os convites à dissipação davam exemplo a Paris; os espetáculos eram maiores; os edifícios, mais altos; os costumes, mais lassos; e a bebida, mais barata. Mas todas essas benesses na verdade não proporcionavam muito deleite. Os jovens se desgastavam muito cedo — estavam insensíveis e frágeis aos vinte e um anos e, com exceção de Peter Arno, nenhum deles contribuiu com nada de novo. Talvez Peter Arno e seus colaboradores tenham dito tudo o que havia por dizer sobre os dias do boom de Nova York que não pudesse ser dito por uma orquestra de jazz. Muita gente que não era alcoólatra se embebedava quatro dias por semana, e havia nervos em frangalhos espalhados por toda parte; os grupos permaneciam reunidos por um nervosismo generalizado, e a ressaca tornou-se uma parte do dia tão natural quanto dormir a siesta para os espanhóis. A maior parte dos meus amigos bebia demais — quanto mais sintonizados com a época, mais bebiam. Assim, como o esforço por si só não tinha nenhum valor diante da absoluta permissividade da Nova York daqueles dias, inventou-se um nome pejorativo para ele: uma atividade de sucesso tornou-se uma pilantragem — eu estava na pilantragem literária.
Morávamos a poucas horas de Nova York, e descobri que cada vez que vinha à cidade era pilhado numa complicação de eventos que poucos dias depois me depositavam em estado de exaustão num trem para Delaware. Porções inteiras da cidade tinham crescido de modo insalubre, mas invariavelmente eu encontrava um momento de paz absoluta cruzando o Central Park, no escuro, em direção ao sul, onde as fachadas da rua 59 projetavam suas luzes através das árvores. Ali estava de novo minha cidade perdida, envolvida indiferente em seu mistério e suas promessas. Entretanto, meu afastamento nunca durava muito — da mesma forma que o trabalhador precisa viver no ventre da cidade, eu era compelido a viver em sua mente desordenada.
Como alternativa havia os bares clandestinos — a migração dos bares de luxo, que anunciavam nas publicações de Yale e Princeton, para cervejarias onde o rosto ranzinza do submundo espiava através da boa índole germânica do entretenimento, e depois para lugares estranhos e ainda mais sinistros, onde éramos observados por rapazes com rosto de pedra e nada restava da jovialidade, apenas uma brutalidade que contaminava o novo dia para o qual saíamos. Lembrei-me de 1920, quando choquei um jovem empresário em ascensão sugerindo um coquetel antes do almoço. Em 1929, havia bebida alcoólica em metade dos escritórios do centro e um bar clandestino em metade dos grandes edifícios.
Os bares clandestinos e a Park Avenue tornavam-se cada vez mais de domínio público. Na década anterior, Greenwich Village, Washington Square, Murray Hill e os casarões da Quinta Avenida tinham de certa forma desaparecido, ou se tornado inexpressivos. A cidade estava intumescida, desentranhada, estupidificada com pão e circo, e uma nova expressão — “Ah, é?” — resumia todo o entusiasmo evocado pelo anúncio dos últimos superarranha-céus. Meu barbeiro aposentou-se com o meio milhão ganhado em apostas no mercado, e eu tinha consciência de que os maîtres que me conduziam até minha mesa, ou que não o faziam, estavam muito, muito mais ricos do que eu. Isso não tinha graça — mais uma vez me fartei de Nova York e foi bom me sentir a salvo a bordo de um navio, em cujo bar continuou a festa ininterrupta a caminho da França.
“Quais são as últimas de Nova York?”
“As ações estão subindo. Um bebê matou um bandido.”
“Só isso?”
“Só. Os rádios se esgoelam na rua.”
Eu já chegara a pensar que não havia segundo ato na vida dos americanos, mas certamente haveria um segundo ato aos dias de boom de Nova York. Estávamos em algum lugar do Norte da África quando ouvimos um ruído abafado que ecoou nos cantos mais remotos do deserto.
“O que foi isso?”
“Você ouviu?”
“Não foi nada.”
“Você acha que devíamos voltar e ver?”
“Não. Não foi nada.”
No outono escuro, dois anos depois, vimos Nova York de novo. Passamos por funcionários da alfândega curiosamente corteses e, depois, de cabeça baixa e chapéu na mão, caminhei respeitosamente pela tumba ressonante. Entre as ruínas, uns poucos fantasmas infantis ainda brincavam para manter a farsa de que estavam vivos, porém eram traídos por suas vozes febris e feições frenéticas que revelavam a fragilidade da mascarada. Nos coquetéis, um último resquício oco dos dias de festança, ecoavam os lamentos dos feridos: “Me dê um tiro, pelo amor de Deus, alguém me dê um tiro!”, e os gemidos e queixumes dos moribundos: “Viu que a United States Steel caiu mais três pontos?”. Meu barbeiro voltou a trabalhar em sua loja; mais uma vez os maîtres acompanhavam as pessoas até as mesas, quando havia pessoas a acompanhar. Das ruínas, sozinho e indecifrável como uma esfinge, erguia-se o edifício Empire State e, assim como tinha sido um hábito meu subir ao terraço do Plaza para me despedir da linda cidade, que se estendia até onde a vista podia alcançar, desta vez fui ao último andar da última e mais esplêndida das torres. Foi então que vi que tudo se explicava: eu descobrira o erro fatal da cidade, sua caixa de Pandora. Cheio de empáfia, o nova-iorquino subira só para ver, desolado, o que nunca tinha suspeitado: a cidade não era uma sucessão infinita de cânions, como ele supunha, mas tinha limites — de cima da mais alta das estruturas, ele viu pela primeira vez que ela ia se apagando em direção ao campo por todos os lados, numa imensidão de verde e azul, essa sim sem limites. E com a terrível compreensão de que Nova York afinal era uma cidade, e não um universo, todo o edifício cintilante que ele criara em sua imaginação veio abaixo. Foi esse o presente desavisado de Alfred W. Smith aos cidadãos de Nova York.
Assim eu me despeço da minha cidade perdida. Vista do ferryboat, de manhã cedo, ela já não sugere sucessos fantásticos e eterna juventude. As moças alegres que saracoteiam diante de plateias vazias não me lembram a beleza inefável das garotas de meus sonhos em 1914. E Bunny, girando sobre os calcanhares cheio de si com sua bengala, a caminho de seu retiro num carnaval, aderiu ao comunismo e se preocupa com as injustiças contra os trabalhadores dos moinhos no Sul e os agricultores do Oeste, cujas vozes, quinze anos atrás, nunca teriam atravessado as paredes de seu estúdio.
Tudo está perdido salvo a lembrança, embora eu às vezes me imagine lendo uma edição de 1945 do Daily News: CINQUENTÃO PERDE A CABEÇA EM NOVA YORK
Modelo declara: Fitzgerald enriqueceu à custa de golpes
Abatido por pistoleiro furioso
Então talvez eu esteja destinado a voltar algum dia e encontrar na cidade novas experiências que até agora só vi no papel. Por enquanto, só posso chorar a perda de minha esplêndida miragem. Volte, ó branca e resplandecente, volte!
1 Dick Whittington e seu gato é um conto do folclore inglês sobre um menino pobre do século XIII que se torna um rico comerciante e termina como Lord Mayor de Londres devido à habilidade de seu gato como caçador de ratos. (N. T.)
2 Franklin Pierce Adams (1881-1960). (N. T.)
Primeiro foi o ferryboat saindo lentamente da costa de Jersey ao amanhecer — o momento cristalizou-se como meu primeiro símbolo de Nova York. Cinco anos depois, quando eu tinha quinze anos, saía da escola e ia ao centro da cidade para ver Ina Claire em The Quaker Girl e Gertrude Bryan em Little Boy Blue. Indeciso em meu amor melancólico e sem esperança por ambas, não conseguia escolher entre as duas — então elas se fundiram numa deliciosa identidade, a garota. Ela foi meu segundo símbolo de Nova York. O ferryboat representava o triunfo; a garota, o romance. Com o tempo, eu conquistaria um pouco dos dois, mas houve um terceiro símbolo que perdi em algum lugar, e para sempre.
Encontrei-o numa tarde escura de abril, passados outros cinco anos.
“Oi, Bunny”, gritei. “Bunny!”
Ele não me ouviu — meu táxi ficou para trás e alcançou-o de novo meia quadra adiante. Havia poças escuras de chuva na calçada, e o vi caminhando rápido no meio da multidão, usando uma capa de chuva bege sobre o inevitável terno marrom; notei com espanto que ele carregava uma leve bengala.
“Bunny!”, chamei de novo, e desisti. Eu ainda era universitário de Princeton, enquanto ele tinha se tornado um nova-iorquino. Era sua caminhada vespertina, essa correria com a bengala no meio da chuva que caía, e como faltava uma hora para nosso encontro, pareceu-me uma intromissão ir ter com ele quando estava envolvido com sua vida privada. Entretanto, meu táxi continuou emparelhado com ele, continuei observando e fiquei impressionado. Ele já não era o pequeno e tímido acadêmico da Holder Court — andava com firmeza, absorto em seus pensamentos e olhando para a frente, deixando óbvio que seu novo cenário era de todo suficiente para ele. Eu sabia que ele tinha um apartamento onde morava com três outros homens, já livre de todos os tabus de estudante, mas havia algo mais que o nutria, e tive minha primeira impressão dessa novidade: o espírito metropolitano.
Até aquela época, eu só tinha visto a Nova York que se oferecia à inspeção — era como Dick Whittington,1 chegado do campo e boquiaberto com os ursos amestrados, ou um jovem do Midi deslumbrado com os bulevares de Paris. Eu tinha vindo só para ver o espetáculo, embora os projetistas do edifício Woolworth e do painel luminoso da corrida de bigas, os produtores de comédias musicais e peças de tese não pudessem desejar um espectador mais receptivo, já que o estilo e o brilho que eu atribuía a Nova York superavam as expectativas da própria cidade. Mas nunca aceitei nenhum dos convites praticamente anônimos para bailes de debutantes que costumavam aparecer na correspondência de qualquer universitário, talvez porque sentisse que nenhuma realidade estaria à altura da concepção que eu fazia do esplendor de Nova York. Além do mais, aquela que eu chamava insensatamente de “minha garota” era do Meio-Oeste, o que mantinha lá o centro afetivo do mundo, de modo que eu considerava Nova York essencialmente cínica e cruel — exceto por uma noite em que ela iluminou o terraço do Ritz numa breve aparição.
Mais tarde, no entanto, eu a perdera para sempre e queria um mundo masculino, e a visão que tive de Bunny me fez ver Nova York exatamente assim. Uma semana antes, Monsignor Fay me levara ao Lafayette, onde se estendia diante de nós uma fulguração de comida, chamada hors d’oeuvre, que acompanhamos com um clarete tão desafiador quanto a confiante bengala de Bunny — mas afinal de contas tratava-se de um restaurante, e depois teríamos de transpor uma ponte para voltarmos ao interior. A Nova York da dissipação estudantil, de restaurantes como o Bustanoby’s, o Shanley’s e o Jack’s, tinha se tornado um horror, e embora eu tenha voltado a ela, ai de mim, muitas vezes numa névoa de álcool, senti cada volta como uma traição a um idealismo persistente. Minha participação era mais lasciva que licenciosa, e restam poucas lembranças prazerosas daqueles dias. Como disse uma vez Ernest Hemingway, a única finalidade do cabaré é reunir homens descomprometidos e mulheres complacentes. O resto é perda de tempo numa atmosfera viciada.
Naquela noite, porém, no apartamento de Bunny, a vida era mansa e segura, o produto final de uma destilação de tudo que eu aprendera a amar em Princeton. O som agradável de um oboé se misturava aos ruídos urbanos que vinham da rua, penetrando na sala com dificuldade através de enormes barricadas de livros; a única nota dissonante era dada por um homem que rasgava envelopes de convites. Eu tinha encontrado um terceiro símbolo de Nova York e comecei a pensar em alugar um apartamento como aquele e em selecionar amigos com quem dividi-lo.
Improvável — durante os dois anos seguintes, tive tanto controle sobre meu destino quanto um preso sobre o corte de sua roupa. Quando voltei a Nova York, em 1919, minha vida estava tão enrolada que eu não podia nem sonhar com um tranquilo período monástico na Washington Square. O importante era ganhar dinheiro em publicidade, o bastante para alugar um pequeno apartamento no Bronx para duas pessoas. A garota em questão nunca tinha visto Nova York, mas era sensata o suficiente para estar um pouco relutante. E num halo de ansiedade e infelicidade, passei os quatro meses mais vulneráveis de minha vida.
Nova York tinha toda a iridescência do nascimento do mundo. Soldados vindos da guerra desfilaram pela Quinta Avenida, e as garotas eram atraídas instintivamente para leste e norte atrás deles — esta era a maior nação do mundo e havia um clima de gala no ar. Enquanto eu pairava como um fantasma no Salão Vermelho do Plaza numa tarde de sábado, ia a inebriantes festas no entorno da rua 60 Leste, ou bebia com o pessoal de Princeton no bar do Biltmore, era sempre assombrado por minha outra vida — meu quarto ordinário no Bronx, meus centímetros quadrados de metrô, minha obsessão pela carta diária do Alabama — chegaria, e o que diria? —, meus ternos surrados, minha pobreza e o amor. Enquanto meus amigos estavam se dando bem na vida, eu tinha empurrado meu barco precário para a correnteza. A juventude dourada que circulava em volta de Constance Bennett no Club de Vingt, os colegas do clube de Yale-Princeton animados em nossa primeira reunião depois do fim da guerra, o clima das casas de milionários que eu às vezes frequentava — tudo isso era vazio para mim, embora eu admitisse que era um cenário impressionante e lamentasse estar comprometido com outro romance. A mais divertida mesa de almoço ou o cabaré mais onírico — era tudo a mesma coisa. Eu voltava ansiosamente para minha casa na Claremont Avenue — porque poderia haver uma carta esperando diante da porta. Um por um, meus grandes sonhos com Nova York se corromperam. A lembrança do charme do apartamento de Bunny feneceu com todo o resto quando entrevistei uma senhoria desgrenhada no Greenwich Village. Ela disse que eu poderia trazer garotas para o meu quarto, e essa ideia me encheu de desânimo — por que eu ia querer trazer garotas para o meu quarto? Eu tinha uma garota. Perambulava pela cidade, pela rua 127, magoado com sua vitalidade vibrante; ou então comprava ingresso para algum teatro barato na farmácia Gray’s e tentava me perder por algumas horas em minha velha paixão pela Broadway. Eu era um fracasso — medíocre na publicidade e incapaz de me lançar como escritor. Odiando a cidade, bebia até meu último centavo e, caindo de bêbado e choroso, voltava para casa...
... Cidade imprevisível. O que aconteceu depois foi apenas uma entre milhares de histórias de sucesso daqueles dias agitados, mas desempenha um papel em meu próprio filme de Nova York. Quando voltei, seis meses depois, as salas das editoras estavam abertas para mim, agentes imploravam por peças, o cinema ansiava por roteiros. Para minha perplexidade, fui adotado não como um interiorano do Meio-Oeste, nem como observador participante, mas como o arquétipo daquilo que Nova York queria. Essa afirmação demanda certa descrição do que era a metrópole em 1920.
Já existia a cidade branca e alta de hoje, a atividade febricitante do boom, mas havia também uma desarticulação geral. Assim como outros, o colunista F. P. A.2 tomou o pulso da multidão, mas timidamente, como quem observa pela janela. A sociedade e as artes autóctones não se misturavam — Ellen Mackay ainda não se casara com Irving Berlin. Grande parte dos personagens de Peter Arno não teria nenhum significado para os cidadãos de 1920, e, fora a coluna de F. P. A., não existia uma tribuna para a civilidade metropolitana.
Então, por um instante, a ideia de “nova geração” tornou-se uma fusão de muitos elementos da vida de Nova York. Gente de cinquenta anos podia fingir que ainda existia uma nata da sociedade, ou Maxwell Bodenheim podia fingir que existia uma boêmia digna de sua pintura e seu traço — mas a mistura dos elementos brilhantes, alegres e vigorosos começou nessa época, e pela primeira vez apareceu uma sociedade um pouco mais animada que os circunspectos banquetes de Emily Price Post em salões de mogno. Se essa sociedade inventou o coquetel, também desenvolveu o espírito da Park Avenue, e pela primeira vez um europeu culto podia vislumbrar uma viagem a Nova York como algo mais divertido do que uma expedição em busca de ouro no interior da Austrália.
Só por um instante, antes que ficasse demonstrado que eu era incapaz de desempenhar o papel, eu, que sabia sobre Nova York menos que qualquer repórter com seis meses de residência na cidade, e menos sobre sua sociedade do que qualquer rapaz desacompanhado nos bailes do Ritz, fui elevado à posição não só de porta-voz da época, mas de típico produto do momento. Eu, melhor dizendo agora, “nós” não sabíamos exatamente o que Nova York esperava de nós e achamos aquilo muito confuso. Poucos meses depois de embarcar na aventura metropolitana, já mal sabíamos quem éramos e não tínhamos ideia do que éramos. Um mergulho numa fonte pública ou um esbarrão casual com agentes da lei era o bastante para nos levar às colunas de fofocas. Éramos citados com relação a uma vasta quantidade de assuntos sobre os quais nada sabíamos. Na verdade, nossos “contatos” se resumiam a meia dúzia de amigos solteiros da faculdade e uns poucos conhecidos recentes da área literária — lembro de um Natal solitário em que não tínhamos um só amigo na cidade nem uma casa aonde ir. Sem encontrar um núcleo ao qual nos agarrar, nós mesmos nos tornamos um núcleo e aos poucos ajustamos nossas personalidades conturbadas à cena da Nova York contemporânea. Ou melhor, Nova York nos esqueceu e nos deixou ficar.
Este não é um relato das mudanças da cidade, mas das mudanças dos sentimentos deste escritor pela cidade. Da confusão de 1920, lembro de andar na capota de um táxi pela Quinta Avenida deserta numa noite quente de domingo, de um almoço no sereno jardim japonês do Ritz com a melancólica Kay Laurel e George Jean Nathan, de escrever a noite toda repetidamente, de pagar caro por minúsculos apartamentos, e de comprar carros magníficos que enguiçavam toda hora. Tinham aparecido os primeiros bares clandestinos, passear estava fora de moda, o Montmartre era o lugar elegante para dançar e o cabelo louro de Lillian Tashman rodopiava na pista de dança entre universitários embriagados. As peças eram Declassée e Sacred and Profane Love, e no Midnight Frolic você dançava lado a lado com Marion Davies e talvez reconhecesse a animada Mary Hay entre as coristas. Pensávamos que estávamos distantes de tudo aquilo; talvez todo mundo pense que está distante de seu ambiente. Nos sentíamos como duas criancinhas num enorme galpão, iluminado e inexplorado. Reunidos no estúdio de Griffith em Long Island, tremíamos em presença dos rostos familiares do filme O nascimento de uma nação; mais tarde, compreendi que por trás do entretenimento que a cidade despejava sobre a nação não havia mais que um monte de gente perdida e solitária. O mundo dos astros de cinema era como o nosso, na medida em que eles estavam em Nova York, mas não eram de Nova York. Esse mundo tinha pouca noção de si mesmo e nenhum centro: quando conheci Dorothy Gish, tive a sensação de que estávamos os dois no polo Norte e que nevava. Desde então eles encontraram um lar, que não estava destinado a ser Nova York.
Quando nos entediávamos, encarávamos nossa cidade com um capricho à moda de Huysmans. Passávamos uma tarde sozinhos em nosso “apartamento”, comendo sanduíches de azeitona e bebendo um litro de uísque Bushmills que tínhamos ganhado de Zoë Akins, e então saíamos para a cidade enfeitiçada, entrando por portas estranhas em estranhos apartamentos com intermitentes sacolejos em táxis no meio das noites mansas. Pelo menos formávamos um todo com Nova York, levando-a conosco por cada portal. Até hoje entro em muitos apartamentos com a sensação de já ter estado lá antes, ou no de cima, ou no de baixo. Teria sido na noite em que tentei tirar a roupa no Scandals, ou na noite em que (como fiquei sabendo, com assombro, pelos jornais na manhã seguinte) “Fitzgerald esmurra policial até o outro lado do paraíso”? Como ganhar briga não fazia parte das minhas realizações, tentei em vão reconstruir a sequência de eventos que culminou naquele desfecho, no Webster Hall. Finalmente, daquele período, lembro de estar andando de táxi numa tarde entre edifícios altíssimos sob um céu rosa arroxeado; comecei a gritar que tinha tudo o que queria e sabia que nunca mais seria tão feliz.
Foi típico de nossa precária situação em Nova York o fato de que, quando nossa filha estava para nascer, decidimos proceder com segurança e voltamos para St. Paul — parecia inadequado trazer um bebê à luz no meio de todo aquele glamour e daquela solidão. Depois de um ano, porém, estávamos de volta, e começamos a fazer as mesmas coisas outra vez, sem gostar muito delas. Estávamos bastante rodados, embora conservássemos uma inocência quase teatral ao preferir o papel de observados ao de observadores. Mas a inocência não é um fim em si, e à medida que nossa mentalidade amadurecia, contra a nossa vontade, começamos a ver Nova York como um todo e a tentar salvar alguma coisa dela para quando chegassem os seres em que inevitavelmente nos transformaríamos.
Era tarde demais — ou cedo demais. Para nós, a cidade estava indissoluvelmente ligada a divertimentos etílicos, moderados ou fantásticos. Só pudemos nos organizar ao voltar para Long Island, e nem sempre lá. Não tínhamos estímulo para desfrutar a cidade pela metade. Meu primeiro símbolo era agora uma lembrança, pois eu sabia que o triunfo está em nós mesmos; o segundo tinha se transformado em lugar-comum — as duas atrizes que eu cultuava de longe lá pelos idos de 1913 tinham jantado em nossa casa. Mas dava-me certo medo que também o terceiro símbolo tivesse se turvado — não era fácil encontrar a tranquilidade do apartamento de Bunny na cidade sempre acelerada. Bunny tinha se casado e ia ser pai; outros amigos tinham ido para a Europa, e os solteiros frequentavam casas maiores e mais festivas que a nossa. Nessa época, conhecíamos “todo mundo” — ou seja, a maioria das pessoas que Ralph Barton retrataria em seus cartuns numa noite de estreia.
Mas já não éramos importantes. Em 1923, a melindrosa, em cuja conduta se baseara a popularidade de meus primeiros livros, tinha saído de moda — pelo menos no Leste. Decidi impactar a Broadway com uma peça, mas a Broadway mandou seus olheiros a Atlantic City e de saída cancelou a ideia, e assim senti que, naquele momento, a cidade e eu tínhamos pouco a oferecer um ao outro. Eu ia pegar a atmosfera de Long Island que respirara com familiaridade e materializá-la sob céus desconhecidos.
Passaram-se três anos até que víssemos Nova York outra vez. Enquanto o navio deslizava rio acima, a cidade explodia trovejando sobre nós no entardecer — a geleira branca da parte baixa de Nova York mergulhando como os cabos de uma ponte para erguer-se na parte alta da cidade, um milagre de luz e espuma suspenso pelas estrelas. Uma banda começou a tocar no convés, mas diante da majestade da cidade a marcha soava banal e metálica. A partir daquele momento, entendi que Nova York, não importava quantas vezes eu a deixasse, era minha casa.
O ritmo da cidade tinha mudado profundamente. As incertezas de 1920 tinham se afogado num contínuo fragor dourado, e muitos de nossos amigos tinham enriquecido. Mas a agitação da Nova York de 1927 beirava a histeria. As festas eram de arromba — as de Condé Nast, por exemplo, rivalizavam com os lendários bailes da década de 1890; o ritmo era mais acelerado — os convites à dissipação davam exemplo a Paris; os espetáculos eram maiores; os edifícios, mais altos; os costumes, mais lassos; e a bebida, mais barata. Mas todas essas benesses na verdade não proporcionavam muito deleite. Os jovens se desgastavam muito cedo — estavam insensíveis e frágeis aos vinte e um anos e, com exceção de Peter Arno, nenhum deles contribuiu com nada de novo. Talvez Peter Arno e seus colaboradores tenham dito tudo o que havia por dizer sobre os dias do boom de Nova York que não pudesse ser dito por uma orquestra de jazz. Muita gente que não era alcoólatra se embebedava quatro dias por semana, e havia nervos em frangalhos espalhados por toda parte; os grupos permaneciam reunidos por um nervosismo generalizado, e a ressaca tornou-se uma parte do dia tão natural quanto dormir a siesta para os espanhóis. A maior parte dos meus amigos bebia demais — quanto mais sintonizados com a época, mais bebiam. Assim, como o esforço por si só não tinha nenhum valor diante da absoluta permissividade da Nova York daqueles dias, inventou-se um nome pejorativo para ele: uma atividade de sucesso tornou-se uma pilantragem — eu estava na pilantragem literária.
Morávamos a poucas horas de Nova York, e descobri que cada vez que vinha à cidade era pilhado numa complicação de eventos que poucos dias depois me depositavam em estado de exaustão num trem para Delaware. Porções inteiras da cidade tinham crescido de modo insalubre, mas invariavelmente eu encontrava um momento de paz absoluta cruzando o Central Park, no escuro, em direção ao sul, onde as fachadas da rua 59 projetavam suas luzes através das árvores. Ali estava de novo minha cidade perdida, envolvida indiferente em seu mistério e suas promessas. Entretanto, meu afastamento nunca durava muito — da mesma forma que o trabalhador precisa viver no ventre da cidade, eu era compelido a viver em sua mente desordenada.
Como alternativa havia os bares clandestinos — a migração dos bares de luxo, que anunciavam nas publicações de Yale e Princeton, para cervejarias onde o rosto ranzinza do submundo espiava através da boa índole germânica do entretenimento, e depois para lugares estranhos e ainda mais sinistros, onde éramos observados por rapazes com rosto de pedra e nada restava da jovialidade, apenas uma brutalidade que contaminava o novo dia para o qual saíamos. Lembrei-me de 1920, quando choquei um jovem empresário em ascensão sugerindo um coquetel antes do almoço. Em 1929, havia bebida alcoólica em metade dos escritórios do centro e um bar clandestino em metade dos grandes edifícios.
Os bares clandestinos e a Park Avenue tornavam-se cada vez mais de domínio público. Na década anterior, Greenwich Village, Washington Square, Murray Hill e os casarões da Quinta Avenida tinham de certa forma desaparecido, ou se tornado inexpressivos. A cidade estava intumescida, desentranhada, estupidificada com pão e circo, e uma nova expressão — “Ah, é?” — resumia todo o entusiasmo evocado pelo anúncio dos últimos superarranha-céus. Meu barbeiro aposentou-se com o meio milhão ganhado em apostas no mercado, e eu tinha consciência de que os maîtres que me conduziam até minha mesa, ou que não o faziam, estavam muito, muito mais ricos do que eu. Isso não tinha graça — mais uma vez me fartei de Nova York e foi bom me sentir a salvo a bordo de um navio, em cujo bar continuou a festa ininterrupta a caminho da França.
“Quais são as últimas de Nova York?”
“As ações estão subindo. Um bebê matou um bandido.”
“Só isso?”
“Só. Os rádios se esgoelam na rua.”
Eu já chegara a pensar que não havia segundo ato na vida dos americanos, mas certamente haveria um segundo ato aos dias de boom de Nova York. Estávamos em algum lugar do Norte da África quando ouvimos um ruído abafado que ecoou nos cantos mais remotos do deserto.
“O que foi isso?”
“Você ouviu?”
“Não foi nada.”
“Você acha que devíamos voltar e ver?”
“Não. Não foi nada.”
No outono escuro, dois anos depois, vimos Nova York de novo. Passamos por funcionários da alfândega curiosamente corteses e, depois, de cabeça baixa e chapéu na mão, caminhei respeitosamente pela tumba ressonante. Entre as ruínas, uns poucos fantasmas infantis ainda brincavam para manter a farsa de que estavam vivos, porém eram traídos por suas vozes febris e feições frenéticas que revelavam a fragilidade da mascarada. Nos coquetéis, um último resquício oco dos dias de festança, ecoavam os lamentos dos feridos: “Me dê um tiro, pelo amor de Deus, alguém me dê um tiro!”, e os gemidos e queixumes dos moribundos: “Viu que a United States Steel caiu mais três pontos?”. Meu barbeiro voltou a trabalhar em sua loja; mais uma vez os maîtres acompanhavam as pessoas até as mesas, quando havia pessoas a acompanhar. Das ruínas, sozinho e indecifrável como uma esfinge, erguia-se o edifício Empire State e, assim como tinha sido um hábito meu subir ao terraço do Plaza para me despedir da linda cidade, que se estendia até onde a vista podia alcançar, desta vez fui ao último andar da última e mais esplêndida das torres. Foi então que vi que tudo se explicava: eu descobrira o erro fatal da cidade, sua caixa de Pandora. Cheio de empáfia, o nova-iorquino subira só para ver, desolado, o que nunca tinha suspeitado: a cidade não era uma sucessão infinita de cânions, como ele supunha, mas tinha limites — de cima da mais alta das estruturas, ele viu pela primeira vez que ela ia se apagando em direção ao campo por todos os lados, numa imensidão de verde e azul, essa sim sem limites. E com a terrível compreensão de que Nova York afinal era uma cidade, e não um universo, todo o edifício cintilante que ele criara em sua imaginação veio abaixo. Foi esse o presente desavisado de Alfred W. Smith aos cidadãos de Nova York.
Assim eu me despeço da minha cidade perdida. Vista do ferryboat, de manhã cedo, ela já não sugere sucessos fantásticos e eterna juventude. As moças alegres que saracoteiam diante de plateias vazias não me lembram a beleza inefável das garotas de meus sonhos em 1914. E Bunny, girando sobre os calcanhares cheio de si com sua bengala, a caminho de seu retiro num carnaval, aderiu ao comunismo e se preocupa com as injustiças contra os trabalhadores dos moinhos no Sul e os agricultores do Oeste, cujas vozes, quinze anos atrás, nunca teriam atravessado as paredes de seu estúdio.
Tudo está perdido salvo a lembrança, embora eu às vezes me imagine lendo uma edição de 1945 do Daily News: CINQUENTÃO PERDE A CABEÇA EM NOVA YORK
Modelo declara: Fitzgerald enriqueceu à custa de golpes
Abatido por pistoleiro furioso
Então talvez eu esteja destinado a voltar algum dia e encontrar na cidade novas experiências que até agora só vi no papel. Por enquanto, só posso chorar a perda de minha esplêndida miragem. Volte, ó branca e resplandecente, volte!
1 Dick Whittington e seu gato é um conto do folclore inglês sobre um menino pobre do século XIII que se torna um rico comerciante e termina como Lord Mayor de Londres devido à habilidade de seu gato como caçador de ratos. (N. T.)
2 Franklin Pierce Adams (1881-1960). (N. T.)
Primeiro foi o ferryboat saindo lentamente da costa de Jersey ao amanhecer — o momento cristalizou-se como meu primeiro símbolo de Nova York. Cinco anos depois, quando eu tinha quinze anos, saía da escola e ia ao centro da cidade para ver Ina Claire em The Quaker Girl e Gertrude Bryan em Little Boy Blue. Indeciso em meu amor melancólico e sem esperança por ambas, não conseguia escolher entre as duas — então elas se fundiram numa deliciosa identidade, a garota. Ela foi meu segundo símbolo de Nova York. O ferryboat representava o triunfo; a garota, o romance. Com o tempo, eu conquistaria um pouco dos dois, mas houve um terceiro símbolo que perdi em algum lugar, e para sempre.
Encontrei-o numa tarde escura de abril, passados outros cinco anos.
“Oi, Bunny”, gritei. “Bunny!”
Ele não me ouviu — meu táxi ficou para trás e alcançou-o de novo meia quadra adiante. Havia poças escuras de chuva na calçada, e o vi caminhando rápido no meio da multidão, usando uma capa de chuva bege sobre o inevitável terno marrom; notei com espanto que ele carregava uma leve bengala.
“Bunny!”, chamei de novo, e desisti. Eu ainda era universitário de Princeton, enquanto ele tinha se tornado um nova-iorquino. Era sua caminhada vespertina, essa correria com a bengala no meio da chuva que caía, e como faltava uma hora para nosso encontro, pareceu-me uma intromissão ir ter com ele quando estava envolvido com sua vida privada. Entretanto, meu táxi continuou emparelhado com ele, continuei observando e fiquei impressionado. Ele já não era o pequeno e tímido acadêmico da Holder Court — andava com firmeza, absorto em seus pensamentos e olhando para a frente, deixando óbvio que seu novo cenário era de todo suficiente para ele. Eu sabia que ele tinha um apartamento onde morava com três outros homens, já livre de todos os tabus de estudante, mas havia algo mais que o nutria, e tive minha primeira impressão dessa novidade: o espírito metropolitano.
Até aquela época, eu só tinha visto a Nova York que se oferecia à inspeção — era como Dick Whittington,1 chegado do campo e boquiaberto com os ursos amestrados, ou um jovem do Midi deslumbrado com os bulevares de Paris. Eu tinha vindo só para ver o espetáculo, embora os projetistas do edifício Woolworth e do painel luminoso da corrida de bigas, os produtores de comédias musicais e peças de tese não pudessem desejar um espectador mais receptivo, já que o estilo e o brilho que eu atribuía a Nova York superavam as expectativas da própria cidade. Mas nunca aceitei nenhum dos convites praticamente anônimos para bailes de debutantes que costumavam aparecer na correspondência de qualquer universitário, talvez porque sentisse que nenhuma realidade estaria à altura da concepção que eu fazia do esplendor de Nova York. Além do mais, aquela que eu chamava insensatamente de “minha garota” era do Meio-Oeste, o que mantinha lá o centro afetivo do mundo, de modo que eu considerava Nova York essencialmente cínica e cruel — exceto por uma noite em que ela iluminou o terraço do Ritz numa breve aparição.
Mais tarde, no entanto, eu a perdera para sempre e queria um mundo masculino, e a visão que tive de Bunny me fez ver Nova York exatamente assim. Uma semana antes, Monsignor Fay me levara ao Lafayette, onde se estendia diante de nós uma fulguração de comida, chamada hors d’oeuvre, que acompanhamos com um clarete tão desafiador quanto a confiante bengala de Bunny — mas afinal de contas tratava-se de um restaurante, e depois teríamos de transpor uma ponte para voltarmos ao interior. A Nova York da dissipação estudantil, de restaurantes como o Bustanoby’s, o Shanley’s e o Jack’s, tinha se tornado um horror, e embora eu tenha voltado a ela, ai de mim, muitas vezes numa névoa de álcool, senti cada volta como uma traição a um idealismo persistente. Minha participação era mais lasciva que licenciosa, e restam poucas lembranças prazerosas daqueles dias. Como disse uma vez Ernest Hemingway, a única finalidade do cabaré é reunir homens descomprometidos e mulheres complacentes. O resto é perda de tempo numa atmosfera viciada.
Naquela noite, porém, no apartamento de Bunny, a vida era mansa e segura, o produto final de uma destilação de tudo que eu aprendera a amar em Princeton. O som agradável de um oboé se misturava aos ruídos urbanos que vinham da rua, penetrando na sala com dificuldade através de enormes barricadas de livros; a única nota dissonante era dada por um homem que rasgava envelopes de convites. Eu tinha encontrado um terceiro símbolo de Nova York e comecei a pensar em alugar um apartamento como aquele e em selecionar amigos com quem dividi-lo.
Improvável — durante os dois anos seguintes, tive tanto controle sobre meu destino quanto um preso sobre o corte de sua roupa. Quando voltei a Nova York, em 1919, minha vida estava tão enrolada que eu não podia nem sonhar com um tranquilo período monástico na Washington Square. O importante era ganhar dinheiro em publicidade, o bastante para alugar um pequeno apartamento no Bronx para duas pessoas. A garota em questão nunca tinha visto Nova York, mas era sensata o suficiente para estar um pouco relutante. E num halo de ansiedade e infelicidade, passei os quatro meses mais vulneráveis de minha vida.
Nova York tinha toda a iridescência do nascimento do mundo. Soldados vindos da guerra desfilaram pela Quinta Avenida, e as garotas eram atraídas instintivamente para leste e norte atrás deles — esta era a maior nação do mundo e havia um clima de gala no ar. Enquanto eu pairava como um fantasma no Salão Vermelho do Plaza numa tarde de sábado, ia a inebriantes festas no entorno da rua 60 Leste, ou bebia com o pessoal de Princeton no bar do Biltmore, era sempre assombrado por minha outra vida — meu quarto ordinário no Bronx, meus centímetros quadrados de metrô, minha obsessão pela carta diária do Alabama — chegaria, e o que diria? —, meus ternos surrados, minha pobreza e o amor. Enquanto meus amigos estavam se dando bem na vida, eu tinha empurrado meu barco precário para a correnteza. A juventude dourada que circulava em volta de Constance Bennett no Club de Vingt, os colegas do clube de Yale-Princeton animados em nossa primeira reunião depois do fim da guerra, o clima das casas de milionários que eu às vezes frequentava — tudo isso era vazio para mim, embora eu admitisse que era um cenário impressionante e lamentasse estar comprometido com outro romance. A mais divertida mesa de almoço ou o cabaré mais onírico — era tudo a mesma coisa. Eu voltava ansiosamente para minha casa na Claremont Avenue — porque poderia haver uma carta esperando diante da porta. Um por um, meus grandes sonhos com Nova York se corromperam. A lembrança do charme do apartamento de Bunny feneceu com todo o resto quando entrevistei uma senhoria desgrenhada no Greenwich Village. Ela disse que eu poderia trazer garotas para o meu quarto, e essa ideia me encheu de desânimo — por que eu ia querer trazer garotas para o meu quarto? Eu tinha uma garota. Perambulava pela cidade, pela rua 127, magoado com sua vitalidade vibrante; ou então comprava ingresso para algum teatro barato na farmácia Gray’s e tentava me perder por algumas horas em minha velha paixão pela Broadway. Eu era um fracasso — medíocre na publicidade e incapaz de me lançar como escritor. Odiando a cidade, bebia até meu último centavo e, caindo de bêbado e choroso, voltava para casa...
... Cidade imprevisível. O que aconteceu depois foi apenas uma entre milhares de histórias de sucesso daqueles dias agitados, mas desempenha um papel em meu próprio filme de Nova York. Quando voltei, seis meses depois, as salas das editoras estavam abertas para mim, agentes imploravam por peças, o cinema ansiava por roteiros. Para minha perplexidade, fui adotado não como um interiorano do Meio-Oeste, nem como observador participante, mas como o arquétipo daquilo que Nova York queria. Essa afirmação demanda certa descrição do que era a metrópole em 1920.
Já existia a cidade branca e alta de hoje, a atividade febricitante do boom, mas havia também uma desarticulação geral. Assim como outros, o colunista F. P. A.2 tomou o pulso da multidão, mas timidamente, como quem observa pela janela. A sociedade e as artes autóctones não se misturavam — Ellen Mackay ainda não se casara com Irving Berlin. Grande parte dos personagens de Peter Arno não teria nenhum significado para os cidadãos de 1920, e, fora a coluna de F. P. A., não existia uma tribuna para a civilidade metropolitana.
Então, por um instante, a ideia de “nova geração” tornou-se uma fusão de muitos elementos da vida de Nova York. Gente de cinquenta anos podia fingir que ainda existia uma nata da sociedade, ou Maxwell Bodenheim podia fingir que existia uma boêmia digna de sua pintura e seu traço — mas a mistura dos elementos brilhantes, alegres e vigorosos começou nessa época, e pela primeira vez apareceu uma sociedade um pouco mais animada que os circunspectos banquetes de Emily Price Post em salões de mogno. Se essa sociedade inventou o coquetel, também desenvolveu o espírito da Park Avenue, e pela primeira vez um europeu culto podia vislumbrar uma viagem a Nova York como algo mais divertido do que uma expedição em busca de ouro no interior da Austrália.
Só por um instante, antes que ficasse demonstrado que eu era incapaz de desempenhar o papel, eu, que sabia sobre Nova York menos que qualquer repórter com seis meses de residência na cidade, e menos sobre sua sociedade do que qualquer rapaz desacompanhado nos bailes do Ritz, fui elevado à posição não só de porta-voz da época, mas de típico produto do momento. Eu, melhor dizendo agora, “nós” não sabíamos exatamente o que Nova York esperava de nós e achamos aquilo muito confuso. Poucos meses depois de embarcar na aventura metropolitana, já mal sabíamos quem éramos e não tínhamos ideia do que éramos. Um mergulho numa fonte pública ou um esbarrão casual com agentes da lei era o bastante para nos levar às colunas de fofocas. Éramos citados com relação a uma vasta quantidade de assuntos sobre os quais nada sabíamos. Na verdade, nossos “contatos” se resumiam a meia dúzia de amigos solteiros da faculdade e uns poucos conhecidos recentes da área literária — lembro de um Natal solitário em que não tínhamos um só amigo na cidade nem uma casa aonde ir. Sem encontrar um núcleo ao qual nos agarrar, nós mesmos nos tornamos um núcleo e aos poucos ajustamos nossas personalidades conturbadas à cena da Nova York contemporânea. Ou melhor, Nova York nos esqueceu e nos deixou ficar.
Este não é um relato das mudanças da cidade, mas das mudanças dos sentimentos deste escritor pela cidade. Da confusão de 1920, lembro de andar na capota de um táxi pela Quinta Avenida deserta numa noite quente de domingo, de um almoço no sereno jardim japonês do Ritz com a melancólica Kay Laurel e George Jean Nathan, de escrever a noite toda repetidamente, de pagar caro por minúsculos apartamentos, e de comprar carros magníficos que enguiçavam toda hora. Tinham aparecido os primeiros bares clandestinos, passear estava fora de moda, o Montmartre era o lugar elegante para dançar e o cabelo louro de Lillian Tashman rodopiava na pista de dança entre universitários embriagados. As peças eram Declassée e Sacred and Profane Love, e no Midnight Frolic você dançava lado a lado com Marion Davies e talvez reconhecesse a animada Mary Hay entre as coristas. Pensávamos que estávamos distantes de tudo aquilo; talvez todo mundo pense que está distante de seu ambiente. Nos sentíamos como duas criancinhas num enorme galpão, iluminado e inexplorado. Reunidos no estúdio de Griffith em Long Island, tremíamos em presença dos rostos familiares do filme O nascimento de uma nação; mais tarde, compreendi que por trás do entretenimento que a cidade despejava sobre a nação não havia mais que um monte de gente perdida e solitária. O mundo dos astros de cinema era como o nosso, na medida em que eles estavam em Nova York, mas não eram de Nova York. Esse mundo tinha pouca noção de si mesmo e nenhum centro: quando conheci Dorothy Gish, tive a sensação de que estávamos os dois no polo Norte e que nevava. Desde então eles encontraram um lar, que não estava destinado a ser Nova York.
Quando nos entediávamos, encarávamos nossa cidade com um capricho à moda de Huysmans. Passávamos uma tarde sozinhos em nosso “apartamento”, comendo sanduíches de azeitona e bebendo um litro de uísque Bushmills que tínhamos ganhado de Zoë Akins, e então saíamos para a cidade enfeitiçada, entrando por portas estranhas em estranhos apartamentos com intermitentes sacolejos em táxis no meio das noites mansas. Pelo menos formávamos um todo com Nova York, levando-a conosco por cada portal. Até hoje entro em muitos apartamentos com a sensação de já ter estado lá antes, ou no de cima, ou no de baixo. Teria sido na noite em que tentei tirar a roupa no Scandals, ou na noite em que (como fiquei sabendo, com assombro, pelos jornais na manhã seguinte) “Fitzgerald esmurra policial até o outro lado do paraíso”? Como ganhar briga não fazia parte das minhas realizações, tentei em vão reconstruir a sequência de eventos que culminou naquele desfecho, no Webster Hall. Finalmente, daquele período, lembro de estar andando de táxi numa tarde entre edifícios altíssimos sob um céu rosa arroxeado; comecei a gritar que tinha tudo o que queria e sabia que nunca mais seria tão feliz.
Foi típico de nossa precária situação em Nova York o fato de que, quando nossa filha estava para nascer, decidimos proceder com segurança e voltamos para St. Paul — parecia inadequado trazer um bebê à luz no meio de todo aquele glamour e daquela solidão. Depois de um ano, porém, estávamos de volta, e começamos a fazer as mesmas coisas outra vez, sem gostar muito delas. Estávamos bastante rodados, embora conservássemos uma inocência quase teatral ao preferir o papel de observados ao de observadores. Mas a inocência não é um fim em si, e à medida que nossa mentalidade amadurecia, contra a nossa vontade, começamos a ver Nova York como um todo e a tentar salvar alguma coisa dela para quando chegassem os seres em que inevitavelmente nos transformaríamos.
Era tarde demais — ou cedo demais. Para nós, a cidade estava indissoluvelmente ligada a divertimentos etílicos, moderados ou fantásticos. Só pudemos nos organizar ao voltar para Long Island, e nem sempre lá. Não tínhamos estímulo para desfrutar a cidade pela metade. Meu primeiro símbolo era agora uma lembrança, pois eu sabia que o triunfo está em nós mesmos; o segundo tinha se transformado em lugar-comum — as duas atrizes que eu cultuava de longe lá pelos idos de 1913 tinham jantado em nossa casa. Mas dava-me certo medo que também o terceiro símbolo tivesse se turvado — não era fácil encontrar a tranquilidade do apartamento de Bunny na cidade sempre acelerada. Bunny tinha se casado e ia ser pai; outros amigos tinham ido para a Europa, e os solteiros frequentavam casas maiores e mais festivas que a nossa. Nessa época, conhecíamos “todo mundo” — ou seja, a maioria das pessoas que Ralph Barton retrataria em seus cartuns numa noite de estreia.
Mas já não éramos importantes. Em 1923, a melindrosa, em cuja conduta se baseara a popularidade de meus primeiros livros, tinha saído de moda — pelo menos no Leste. Decidi impactar a Broadway com uma peça, mas a Broadway mandou seus olheiros a Atlantic City e de saída cancelou a ideia, e assim senti que, naquele momento, a cidade e eu tínhamos pouco a oferecer um ao outro. Eu ia pegar a atmosfera de Long Island que respirara com familiaridade e materializá-la sob céus desconhecidos.
Passaram-se três anos até que víssemos Nova York outra vez. Enquanto o navio deslizava rio acima, a cidade explodia trovejando sobre nós no entardecer — a geleira branca da parte baixa de Nova York mergulhando como os cabos de uma ponte para erguer-se na parte alta da cidade, um milagre de luz e espuma suspenso pelas estrelas. Uma banda começou a tocar no convés, mas diante da majestade da cidade a marcha soava banal e metálica. A partir daquele momento, entendi que Nova York, não importava quantas vezes eu a deixasse, era minha casa.
O ritmo da cidade tinha mudado profundamente. As incertezas de 1920 tinham se afogado num contínuo fragor dourado, e muitos de nossos amigos tinham enriquecido. Mas a agitação da Nova York de 1927 beirava a histeria. As festas eram de arromba — as de Condé Nast, por exemplo, rivalizavam com os lendários bailes da década de 1890; o ritmo era mais acelerado — os convites à dissipação davam exemplo a Paris; os espetáculos eram maiores; os edifícios, mais altos; os costumes, mais lassos; e a bebida, mais barata. Mas todas essas benesses na verdade não proporcionavam muito deleite. Os jovens se desgastavam muito cedo — estavam insensíveis e frágeis aos vinte e um anos e, com exceção de Peter Arno, nenhum deles contribuiu com nada de novo. Talvez Peter Arno e seus colaboradores tenham dito tudo o que havia por dizer sobre os dias do boom de Nova York que não pudesse ser dito por uma orquestra de jazz. Muita gente que não era alcoólatra se embebedava quatro dias por semana, e havia nervos em frangalhos espalhados por toda parte; os grupos permaneciam reunidos por um nervosismo generalizado, e a ressaca tornou-se uma parte do dia tão natural quanto dormir a siesta para os espanhóis. A maior parte dos meus amigos bebia demais — quanto mais sintonizados com a época, mais bebiam. Assim, como o esforço por si só não tinha nenhum valor diante da absoluta permissividade da Nova York daqueles dias, inventou-se um nome pejorativo para ele: uma atividade de sucesso tornou-se uma pilantragem — eu estava na pilantragem literária.
Morávamos a poucas horas de Nova York, e descobri que cada vez que vinha à cidade era pilhado numa complicação de eventos que poucos dias depois me depositavam em estado de exaustão num trem para Delaware. Porções inteiras da cidade tinham crescido de modo insalubre, mas invariavelmente eu encontrava um momento de paz absoluta cruzando o Central Park, no escuro, em direção ao sul, onde as fachadas da rua 59 projetavam suas luzes através das árvores. Ali estava de novo minha cidade perdida, envolvida indiferente em seu mistério e suas promessas. Entretanto, meu afastamento nunca durava muito — da mesma forma que o trabalhador precisa viver no ventre da cidade, eu era compelido a viver em sua mente desordenada.
Como alternativa havia os bares clandestinos — a migração dos bares de luxo, que anunciavam nas publicações de Yale e Princeton, para cervejarias onde o rosto ranzinza do submundo espiava através da boa índole germânica do entretenimento, e depois para lugares estranhos e ainda mais sinistros, onde éramos observados por rapazes com rosto de pedra e nada restava da jovialidade, apenas uma brutalidade que contaminava o novo dia para o qual saíamos. Lembrei-me de 1920, quando choquei um jovem empresário em ascensão sugerindo um coquetel antes do almoço. Em 1929, havia bebida alcoólica em metade dos escritórios do centro e um bar clandestino em metade dos grandes edifícios.
Os bares clandestinos e a Park Avenue tornavam-se cada vez mais de domínio público. Na década anterior, Greenwich Village, Washington Square, Murray Hill e os casarões da Quinta Avenida tinham de certa forma desaparecido, ou se tornado inexpressivos. A cidade estava intumescida, desentranhada, estupidificada com pão e circo, e uma nova expressão — “Ah, é?” — resumia todo o entusiasmo evocado pelo anúncio dos últimos superarranha-céus. Meu barbeiro aposentou-se com o meio milhão ganhado em apostas no mercado, e eu tinha consciência de que os maîtres que me conduziam até minha mesa, ou que não o faziam, estavam muito, muito mais ricos do que eu. Isso não tinha graça — mais uma vez me fartei de Nova York e foi bom me sentir a salvo a bordo de um navio, em cujo bar continuou a festa ininterrupta a caminho da França.
“Quais são as últimas de Nova York?”
“As ações estão subindo. Um bebê matou um bandido.”
“Só isso?”
“Só. Os rádios se esgoelam na rua.”
Eu já chegara a pensar que não havia segundo ato na vida dos americanos, mas certamente haveria um segundo ato aos dias de boom de Nova York. Estávamos em algum lugar do Norte da África quando ouvimos um ruído abafado que ecoou nos cantos mais remotos do deserto.
“O que foi isso?”
“Você ouviu?”
“Não foi nada.”
“Você acha que devíamos voltar e ver?”
“Não. Não foi nada.”
No outono escuro, dois anos depois, vimos Nova York de novo. Passamos por funcionários da alfândega curiosamente corteses e, depois, de cabeça baixa e chapéu na mão, caminhei respeitosamente pela tumba ressonante. Entre as ruínas, uns poucos fantasmas infantis ainda brincavam para manter a farsa de que estavam vivos, porém eram traídos por suas vozes febris e feições frenéticas que revelavam a fragilidade da mascarada. Nos coquetéis, um último resquício oco dos dias de festança, ecoavam os lamentos dos feridos: “Me dê um tiro, pelo amor de Deus, alguém me dê um tiro!”, e os gemidos e queixumes dos moribundos: “Viu que a United States Steel caiu mais três pontos?”. Meu barbeiro voltou a trabalhar em sua loja; mais uma vez os maîtres acompanhavam as pessoas até as mesas, quando havia pessoas a acompanhar. Das ruínas, sozinho e indecifrável como uma esfinge, erguia-se o edifício Empire State e, assim como tinha sido um hábito meu subir ao terraço do Plaza para me despedir da linda cidade, que se estendia até onde a vista podia alcançar, desta vez fui ao último andar da última e mais esplêndida das torres. Foi então que vi que tudo se explicava: eu descobrira o erro fatal da cidade, sua caixa de Pandora. Cheio de empáfia, o nova-iorquino subira só para ver, desolado, o que nunca tinha suspeitado: a cidade não era uma sucessão infinita de cânions, como ele supunha, mas tinha limites — de cima da mais alta das estruturas, ele viu pela primeira vez que ela ia se apagando em direção ao campo por todos os lados, numa imensidão de verde e azul, essa sim sem limites. E com a terrível compreensão de que Nova York afinal era uma cidade, e não um universo, todo o edifício cintilante que ele criara em sua imaginação veio abaixo. Foi esse o presente desavisado de Alfred W. Smith aos cidadãos de Nova York.
Assim eu me despeço da minha cidade perdida. Vista do ferryboat, de manhã cedo, ela já não sugere sucessos fantásticos e eterna juventude. As moças alegres que saracoteiam diante de plateias vazias não me lembram a beleza inefável das garotas de meus sonhos em 1914. E Bunny, girando sobre os calcanhares cheio de si com sua bengala, a caminho de seu retiro num carnaval, aderiu ao comunismo e se preocupa com as injustiças contra os trabalhadores dos moinhos no Sul e os agricultores do Oeste, cujas vozes, quinze anos atrás, nunca teriam atravessado as paredes de seu estúdio.
Tudo está perdido salvo a lembrança, embora eu às vezes me imagine lendo uma edição de 1945 do Daily News: CINQUENTÃO PERDE A CABEÇA EM NOVA YORK
Modelo declara: Fitzgerald enriqueceu à custa de golpes
Abatido por pistoleiro furioso
Então talvez eu esteja destinado a voltar algum dia e encontrar na cidade novas experiências que até agora só vi no papel. Por enquanto, só posso chorar a perda de minha esplêndida miragem. Volte, ó branca e resplandecente, volte!
1 Dick Whittington e seu gato é um conto do folclore inglês sobre um menino pobre do século XIII que se torna um rico comerciante e termina como Lord Mayor de Londres devido à habilidade de seu gato como caçador de ratos. (N. T.)
2 Franklin Pierce Adams (1881-1960). (N. T.)
Primeiro foi o ferryboat saindo lentamente da costa de Jersey ao amanhecer — o momento cristalizou-se como meu primeiro símbolo de Nova York. Cinco anos depois, quando eu tinha quinze anos, saía da escola e ia ao centro da cidade para ver Ina Claire em The Quaker Girl e Gertrude Bryan em Little Boy Blue. Indeciso em meu amor melancólico e sem esperança por ambas, não conseguia escolher entre as duas — então elas se fundiram numa deliciosa identidade, a garota. Ela foi meu segundo símbolo de Nova York. O ferryboat representava o triunfo; a garota, o romance. Com o tempo, eu conquistaria um pouco dos dois, mas houve um terceiro símbolo que perdi em algum lugar, e para sempre.
Encontrei-o numa tarde escura de abril, passados outros cinco anos.
“Oi, Bunny”, gritei. “Bunny!”
Ele não me ouviu — meu táxi ficou para trás e alcançou-o de novo meia quadra adiante. Havia poças escuras de chuva na calçada, e o vi caminhando rápido no meio da multidão, usando uma capa de chuva bege sobre o inevitável terno marrom; notei com espanto que ele carregava uma leve bengala.
“Bunny!”, chamei de novo, e desisti. Eu ainda era universitário de Princeton, enquanto ele tinha se tornado um nova-iorquino. Era sua caminhada vespertina, essa correria com a bengala no meio da chuva que caía, e como faltava uma hora para nosso encontro, pareceu-me uma intromissão ir ter com ele quando estava envolvido com sua vida privada. Entretanto, meu táxi continuou emparelhado com ele, continuei observando e fiquei impressionado. Ele já não era o pequeno e tímido acadêmico da Holder Court — andava com firmeza, absorto em seus pensamentos e olhando para a frente, deixando óbvio que seu novo cenário era de todo suficiente para ele. Eu sabia que ele tinha um apartamento onde morava com três outros homens, já livre de todos os tabus de estudante, mas havia algo mais que o nutria, e tive minha primeira impressão dessa novidade: o espírito metropolitano.
Até aquela época, eu só tinha visto a Nova York que se oferecia à inspeção — era como Dick Whittington,1 chegado do campo e boquiaberto com os ursos amestrados, ou um jovem do Midi deslumbrado com os bulevares de Paris. Eu tinha vindo só para ver o espetáculo, embora os projetistas do edifício Woolworth e do painel luminoso da corrida de bigas, os produtores de comédias musicais e peças de tese não pudessem desejar um espectador mais receptivo, já que o estilo e o brilho que eu atribuía a Nova York superavam as expectativas da própria cidade. Mas nunca aceitei nenhum dos convites praticamente anônimos para bailes de debutantes que costumavam aparecer na correspondência de qualquer universitário, talvez porque sentisse que nenhuma realidade estaria à altura da concepção que eu fazia do esplendor de Nova York. Além do mais, aquela que eu chamava insensatamente de “minha garota” era do Meio-Oeste, o que mantinha lá o centro afetivo do mundo, de modo que eu considerava Nova York essencialmente cínica e cruel — exceto por uma noite em que ela iluminou o terraço do Ritz numa breve aparição.
Mais tarde, no entanto, eu a perdera para sempre e queria um mundo masculino, e a visão que tive de Bunny me fez ver Nova York exatamente assim. Uma semana antes, Monsignor Fay me levara ao Lafayette, onde se estendia diante de nós uma fulguração de comida, chamada hors d’oeuvre, que acompanhamos com um clarete tão desafiador quanto a confiante bengala de Bunny — mas afinal de contas tratava-se de um restaurante, e depois teríamos de transpor uma ponte para voltarmos ao interior. A Nova York da dissipação estudantil, de restaurantes como o Bustanoby’s, o Shanley’s e o Jack’s, tinha se tornado um horror, e embora eu tenha voltado a ela, ai de mim, muitas vezes numa névoa de álcool, senti cada volta como uma traição a um idealismo persistente. Minha participação era mais lasciva que licenciosa, e restam poucas lembranças prazerosas daqueles dias. Como disse uma vez Ernest Hemingway, a única finalidade do cabaré é reunir homens descomprometidos e mulheres complacentes. O resto é perda de tempo numa atmosfera viciada.
Naquela noite, porém, no apartamento de Bunny, a vida era mansa e segura, o produto final de uma destilação de tudo que eu aprendera a amar em Princeton. O som agradável de um oboé se misturava aos ruídos urbanos que vinham da rua, penetrando na sala com dificuldade através de enormes barricadas de livros; a única nota dissonante era dada por um homem que rasgava envelopes de convites. Eu tinha encontrado um terceiro símbolo de Nova York e comecei a pensar em alugar um apartamento como aquele e em selecionar amigos com quem dividi-lo.
Improvável — durante os dois anos seguintes, tive tanto controle sobre meu destino quanto um preso sobre o corte de sua roupa. Quando voltei a Nova York, em 1919, minha vida estava tão enrolada que eu não podia nem sonhar com um tranquilo período monástico na Washington Square. O importante era ganhar dinheiro em publicidade, o bastante para alugar um pequeno apartamento no Bronx para duas pessoas. A garota em questão nunca tinha visto Nova York, mas era sensata o suficiente para estar um pouco relutante. E num halo de ansiedade e infelicidade, passei os quatro meses mais vulneráveis de minha vida.
Nova York tinha toda a iridescência do nascimento do mundo. Soldados vindos da guerra desfilaram pela Quinta Avenida, e as garotas eram atraídas instintivamente para leste e norte atrás deles — esta era a maior nação do mundo e havia um clima de gala no ar. Enquanto eu pairava como um fantasma no Salão Vermelho do Plaza numa tarde de sábado, ia a inebriantes festas no entorno da rua 60 Leste, ou bebia com o pessoal de Princeton no bar do Biltmore, era sempre assombrado por minha outra vida — meu quarto ordinário no Bronx, meus centímetros quadrados de metrô, minha obsessão pela carta diária do Alabama — chegaria, e o que diria? —, meus ternos surrados, minha pobreza e o amor. Enquanto meus amigos estavam se dando bem na vida, eu tinha empurrado meu barco precário para a correnteza. A juventude dourada que circulava em volta de Constance Bennett no Club de Vingt, os colegas do clube de Yale-Princeton animados em nossa primeira reunião depois do fim da guerra, o clima das casas de milionários que eu às vezes frequentava — tudo isso era vazio para mim, embora eu admitisse que era um cenário impressionante e lamentasse estar comprometido com outro romance. A mais divertida mesa de almoço ou o cabaré mais onírico — era tudo a mesma coisa. Eu voltava ansiosamente para minha casa na Claremont Avenue — porque poderia haver uma carta esperando diante da porta. Um por um, meus grandes sonhos com Nova York se corromperam. A lembrança do charme do apartamento de Bunny feneceu com todo o resto quando entrevistei uma senhoria desgrenhada no Greenwich Village. Ela disse que eu poderia trazer garotas para o meu quarto, e essa ideia me encheu de desânimo — por que eu ia querer trazer garotas para o meu quarto? Eu tinha uma garota. Perambulava pela cidade, pela rua 127, magoado com sua vitalidade vibrante; ou então comprava ingresso para algum teatro barato na farmácia Gray’s e tentava me perder por algumas horas em minha velha paixão pela Broadway. Eu era um fracasso — medíocre na publicidade e incapaz de me lançar como escritor. Odiando a cidade, bebia até meu último centavo e, caindo de bêbado e choroso, voltava para casa...
... Cidade imprevisível. O que aconteceu depois foi apenas uma entre milhares de histórias de sucesso daqueles dias agitados, mas desempenha um papel em meu próprio filme de Nova York. Quando voltei, seis meses depois, as salas das editoras estavam abertas para mim, agentes imploravam por peças, o cinema ansiava por roteiros. Para minha perplexidade, fui adotado não como um interiorano do Meio-Oeste, nem como observador participante, mas como o arquétipo daquilo que Nova York queria. Essa afirmação demanda certa descrição do que era a metrópole em 1920.
Já existia a cidade branca e alta de hoje, a atividade febricitante do boom, mas havia também uma desarticulação geral. Assim como outros, o colunista F. P. A.2 tomou o pulso da multidão, mas timidamente, como quem observa pela janela. A sociedade e as artes autóctones não se misturavam — Ellen Mackay ainda não se casara com Irving Berlin. Grande parte dos personagens de Peter Arno não teria nenhum significado para os cidadãos de 1920, e, fora a coluna de F. P. A., não existia uma tribuna para a civilidade metropolitana.
Então, por um instante, a ideia de “nova geração” tornou-se uma fusão de muitos elementos da vida de Nova York. Gente de cinquenta anos podia fingir que ainda existia uma nata da sociedade, ou Maxwell Bodenheim podia fingir que existia uma boêmia digna de sua pintura e seu traço — mas a mistura dos elementos brilhantes, alegres e vigorosos começou nessa época, e pela primeira vez apareceu uma sociedade um pouco mais animada que os circunspectos banquetes de Emily Price Post em salões de mogno. Se essa sociedade inventou o coquetel, também desenvolveu o espírito da Park Avenue, e pela primeira vez um europeu culto podia vislumbrar uma viagem a Nova York como algo mais divertido do que uma expedição em busca de ouro no interior da Austrália.
Só por um instante, antes que ficasse demonstrado que eu era incapaz de desempenhar o papel, eu, que sabia sobre Nova York menos que qualquer repórter com seis meses de residência na cidade, e menos sobre sua sociedade do que qualquer rapaz desacompanhado nos bailes do Ritz, fui elevado à posição não só de porta-voz da época, mas de típico produto do momento. Eu, melhor dizendo agora, “nós” não sabíamos exatamente o que Nova York esperava de nós e achamos aquilo muito confuso. Poucos meses depois de embarcar na aventura metropolitana, já mal sabíamos quem éramos e não tínhamos ideia do que éramos. Um mergulho numa fonte pública ou um esbarrão casual com agentes da lei era o bastante para nos levar às colunas de fofocas. Éramos citados com relação a uma vasta quantidade de assuntos sobre os quais nada sabíamos. Na verdade, nossos “contatos” se resumiam a meia dúzia de amigos solteiros da faculdade e uns poucos conhecidos recentes da área literária — lembro de um Natal solitário em que não tínhamos um só amigo na cidade nem uma casa aonde ir. Sem encontrar um núcleo ao qual nos agarrar, nós mesmos nos tornamos um núcleo e aos poucos ajustamos nossas personalidades conturbadas à cena da Nova York contemporânea. Ou melhor, Nova York nos esqueceu e nos deixou ficar.
Este não é um relato das mudanças da cidade, mas das mudanças dos sentimentos deste escritor pela cidade. Da confusão de 1920, lembro de andar na capota de um táxi pela Quinta Avenida deserta numa noite quente de domingo, de um almoço no sereno jardim japonês do Ritz com a melancólica Kay Laurel e George Jean Nathan, de escrever a noite toda repetidamente, de pagar caro por minúsculos apartamentos, e de comprar carros magníficos que enguiçavam toda hora. Tinham aparecido os primeiros bares clandestinos, passear estava fora de moda, o Montmartre era o lugar elegante para dançar e o cabelo louro de Lillian Tashman rodopiava na pista de dança entre universitários embriagados. As peças eram Declassée e Sacred and Profane Love, e no Midnight Frolic você dançava lado a lado com Marion Davies e talvez reconhecesse a animada Mary Hay entre as coristas. Pensávamos que estávamos distantes de tudo aquilo; talvez todo mundo pense que está distante de seu ambiente. Nos sentíamos como duas criancinhas num enorme galpão, iluminado e inexplorado. Reunidos no estúdio de Griffith em Long Island, tremíamos em presença dos rostos familiares do filme O nascimento de uma nação; mais tarde, compreendi que por trás do entretenimento que a cidade despejava sobre a nação não havia mais que um monte de gente perdida e solitária. O mundo dos astros de cinema era como o nosso, na medida em que eles estavam em Nova York, mas não eram de Nova York. Esse mundo tinha pouca noção de si mesmo e nenhum centro: quando conheci Dorothy Gish, tive a sensação de que estávamos os dois no polo Norte e que nevava. Desde então eles encontraram um lar, que não estava destinado a ser Nova York.
Quando nos entediávamos, encarávamos nossa cidade com um capricho à moda de Huysmans. Passávamos uma tarde sozinhos em nosso “apartamento”, comendo sanduíches de azeitona e bebendo um litro de uísque Bushmills que tínhamos ganhado de Zoë Akins, e então saíamos para a cidade enfeitiçada, entrando por portas estranhas em estranhos apartamentos com intermitentes sacolejos em táxis no meio das noites mansas. Pelo menos formávamos um todo com Nova York, levando-a conosco por cada portal. Até hoje entro em muitos apartamentos com a sensação de já ter estado lá antes, ou no de cima, ou no de baixo. Teria sido na noite em que tentei tirar a roupa no Scandals, ou na noite em que (como fiquei sabendo, com assombro, pelos jornais na manhã seguinte) “Fitzgerald esmurra policial até o outro lado do paraíso”? Como ganhar briga não fazia parte das minhas realizações, tentei em vão reconstruir a sequência de eventos que culminou naquele desfecho, no Webster Hall. Finalmente, daquele período, lembro de estar andando de táxi numa tarde entre edifícios altíssimos sob um céu rosa arroxeado; comecei a gritar que tinha tudo o que queria e sabia que nunca mais seria tão feliz.
Foi típico de nossa precária situação em Nova York o fato de que, quando nossa filha estava para nascer, decidimos proceder com segurança e voltamos para St. Paul — parecia inadequado trazer um bebê à luz no meio de todo aquele glamour e daquela solidão. Depois de um ano, porém, estávamos de volta, e começamos a fazer as mesmas coisas outra vez, sem gostar muito delas. Estávamos bastante rodados, embora conservássemos uma inocência quase teatral ao preferir o papel de observados ao de observadores. Mas a inocência não é um fim em si, e à medida que nossa mentalidade amadurecia, contra a nossa vontade, começamos a ver Nova York como um todo e a tentar salvar alguma coisa dela para quando chegassem os seres em que inevitavelmente nos transformaríamos.
Era tarde demais — ou cedo demais. Para nós, a cidade estava indissoluvelmente ligada a divertimentos etílicos, moderados ou fantásticos. Só pudemos nos organizar ao voltar para Long Island, e nem sempre lá. Não tínhamos estímulo para desfrutar a cidade pela metade. Meu primeiro símbolo era agora uma lembrança, pois eu sabia que o triunfo está em nós mesmos; o segundo tinha se transformado em lugar-comum — as duas atrizes que eu cultuava de longe lá pelos idos de 1913 tinham jantado em nossa casa. Mas dava-me certo medo que também o terceiro símbolo tivesse se turvado — não era fácil encontrar a tranquilidade do apartamento de Bunny na cidade sempre acelerada. Bunny tinha se casado e ia ser pai; outros amigos tinham ido para a Europa, e os solteiros frequentavam casas maiores e mais festivas que a nossa. Nessa época, conhecíamos “todo mundo” — ou seja, a maioria das pessoas que Ralph Barton retrataria em seus cartuns numa noite de estreia.
Mas já não éramos importantes. Em 1923, a melindrosa, em cuja conduta se baseara a popularidade de meus primeiros livros, tinha saído de moda — pelo menos no Leste. Decidi impactar a Broadway com uma peça, mas a Broadway mandou seus olheiros a Atlantic City e de saída cancelou a ideia, e assim senti que, naquele momento, a cidade e eu tínhamos pouco a oferecer um ao outro. Eu ia pegar a atmosfera de Long Island que respirara com familiaridade e materializá-la sob céus desconhecidos.
Passaram-se três anos até que víssemos Nova York outra vez. Enquanto o navio deslizava rio acima, a cidade explodia trovejando sobre nós no entardecer — a geleira branca da parte baixa de Nova York mergulhando como os cabos de uma ponte para erguer-se na parte alta da cidade, um milagre de luz e espuma suspenso pelas estrelas. Uma banda começou a tocar no convés, mas diante da majestade da cidade a marcha soava banal e metálica. A partir daquele momento, entendi que Nova York, não importava quantas vezes eu a deixasse, era minha casa.
O ritmo da cidade tinha mudado profundamente. As incertezas de 1920 tinham se afogado num contínuo fragor dourado, e muitos de nossos amigos tinham enriquecido. Mas a agitação da Nova York de 1927 beirava a histeria. As festas eram de arromba — as de Condé Nast, por exemplo, rivalizavam com os lendários bailes da década de 1890; o ritmo era mais acelerado — os convites à dissipação davam exemplo a Paris; os espetáculos eram maiores; os edifícios, mais altos; os costumes, mais lassos; e a bebida, mais barata. Mas todas essas benesses na verdade não proporcionavam muito deleite. Os jovens se desgastavam muito cedo — estavam insensíveis e frágeis aos vinte e um anos e, com exceção de Peter Arno, nenhum deles contribuiu com nada de novo. Talvez Peter Arno e seus colaboradores tenham dito tudo o que havia por dizer sobre os dias do boom de Nova York que não pudesse ser dito por uma orquestra de jazz. Muita gente que não era alcoólatra se embebedava quatro dias por semana, e havia nervos em frangalhos espalhados por toda parte; os grupos permaneciam reunidos por um nervosismo generalizado, e a ressaca tornou-se uma parte do dia tão natural quanto dormir a siesta para os espanhóis. A maior parte dos meus amigos bebia demais — quanto mais sintonizados com a época, mais bebiam. Assim, como o esforço por si só não tinha nenhum valor diante da absoluta permissividade da Nova York daqueles dias, inventou-se um nome pejorativo para ele: uma atividade de sucesso tornou-se uma pilantragem — eu estava na pilantragem literária.
Morávamos a poucas horas de Nova York, e descobri que cada vez que vinha à cidade era pilhado numa complicação de eventos que poucos dias depois me depositavam em estado de exaustão num trem para Delaware. Porções inteiras da cidade tinham crescido de modo insalubre, mas invariavelmente eu encontrava um momento de paz absoluta cruzando o Central Park, no escuro, em direção ao sul, onde as fachadas da rua 59 projetavam suas luzes através das árvores. Ali estava de novo minha cidade perdida, envolvida indiferente em seu mistério e suas promessas. Entretanto, meu afastamento nunca durava muito — da mesma forma que o trabalhador precisa viver no ventre da cidade, eu era compelido a viver em sua mente desordenada.
Como alternativa havia os bares clandestinos — a migração dos bares de luxo, que anunciavam nas publicações de Yale e Princeton, para cervejarias onde o rosto ranzinza do submundo espiava através da boa índole germânica do entretenimento, e depois para lugares estranhos e ainda mais sinistros, onde éramos observados por rapazes com rosto de pedra e nada restava da jovialidade, apenas uma brutalidade que contaminava o novo dia para o qual saíamos. Lembrei-me de 1920, quando choquei um jovem empresário em ascensão sugerindo um coquetel antes do almoço. Em 1929, havia bebida alcoólica em metade dos escritórios do centro e um bar clandestino em metade dos grandes edifícios.
Os bares clandestinos e a Park Avenue tornavam-se cada vez mais de domínio público. Na década anterior, Greenwich Village, Washington Square, Murray Hill e os casarões da Quinta Avenida tinham de certa forma desaparecido, ou se tornado inexpressivos. A cidade estava intumescida, desentranhada, estupidificada com pão e circo, e uma nova expressão — “Ah, é?” — resumia todo o entusiasmo evocado pelo anúncio dos últimos superarranha-céus. Meu barbeiro aposentou-se com o meio milhão ganhado em apostas no mercado, e eu tinha consciência de que os maîtres que me conduziam até minha mesa, ou que não o faziam, estavam muito, muito mais ricos do que eu. Isso não tinha graça — mais uma vez me fartei de Nova York e foi bom me sentir a salvo a bordo de um navio, em cujo bar continuou a festa ininterrupta a caminho da França.
“Quais são as últimas de Nova York?”
“As ações estão subindo. Um bebê matou um bandido.”
“Só isso?”
“Só. Os rádios se esgoelam na rua.”
Eu já chegara a pensar que não havia segundo ato na vida dos americanos, mas certamente haveria um segundo ato aos dias de boom de Nova York. Estávamos em algum lugar do Norte da África quando ouvimos um ruído abafado que ecoou nos cantos mais remotos do deserto.
“O que foi isso?”
“Você ouviu?”
“Não foi nada.”
“Você acha que devíamos voltar e ver?”
“Não. Não foi nada.”
No outono escuro, dois anos depois, vimos Nova York de novo. Passamos por funcionários da alfândega curiosamente corteses e, depois, de cabeça baixa e chapéu na mão, caminhei respeitosamente pela tumba ressonante. Entre as ruínas, uns poucos fantasmas infantis ainda brincavam para manter a farsa de que estavam vivos, porém eram traídos por suas vozes febris e feições frenéticas que revelavam a fragilidade da mascarada. Nos coquetéis, um último resquício oco dos dias de festança, ecoavam os lamentos dos feridos: “Me dê um tiro, pelo amor de Deus, alguém me dê um tiro!”, e os gemidos e queixumes dos moribundos: “Viu que a United States Steel caiu mais três pontos?”. Meu barbeiro voltou a trabalhar em sua loja; mais uma vez os maîtres acompanhavam as pessoas até as mesas, quando havia pessoas a acompanhar. Das ruínas, sozinho e indecifrável como uma esfinge, erguia-se o edifício Empire State e, assim como tinha sido um hábito meu subir ao terraço do Plaza para me despedir da linda cidade, que se estendia até onde a vista podia alcançar, desta vez fui ao último andar da última e mais esplêndida das torres. Foi então que vi que tudo se explicava: eu descobrira o erro fatal da cidade, sua caixa de Pandora. Cheio de empáfia, o nova-iorquino subira só para ver, desolado, o que nunca tinha suspeitado: a cidade não era uma sucessão infinita de cânions, como ele supunha, mas tinha limites — de cima da mais alta das estruturas, ele viu pela primeira vez que ela ia se apagando em direção ao campo por todos os lados, numa imensidão de verde e azul, essa sim sem limites. E com a terrível compreensão de que Nova York afinal era uma cidade, e não um universo, todo o edifício cintilante que ele criara em sua imaginação veio abaixo. Foi esse o presente desavisado de Alfred W. Smith aos cidadãos de Nova York.
Assim eu me despeço da minha cidade perdida. Vista do ferryboat, de manhã cedo, ela já não sugere sucessos fantásticos e eterna juventude. As moças alegres que saracoteiam diante de plateias vazias não me lembram a beleza inefável das garotas de meus sonhos em 1914. E Bunny, girando sobre os calcanhares cheio de si com sua bengala, a caminho de seu retiro num carnaval, aderiu ao comunismo e se preocupa com as injustiças contra os trabalhadores dos moinhos no Sul e os agricultores do Oeste, cujas vozes, quinze anos atrás, nunca teriam atravessado as paredes de seu estúdio.
Tudo está perdido salvo a lembrança, embora eu às vezes me imagine lendo uma edição de 1945 do Daily News: CINQUENTÃO PERDE A CABEÇA EM NOVA YORK
Modelo declara: Fitzgerald enriqueceu à custa de golpes
Abatido por pistoleiro furioso
Então talvez eu esteja destinado a voltar algum dia e encontrar na cidade novas experiências que até agora só vi no papel. Por enquanto, só posso chorar a perda de minha esplêndida miragem. Volte, ó branca e resplandecente, volte!
1 Dick Whittington e seu gato é um conto do folclore inglês sobre um menino pobre do século XIII que se torna um rico comerciante e termina como Lord Mayor de Londres devido à habilidade de seu gato como caçador de ratos. (N. T.)
2 Franklin Pierce Adams (1881-1960). (N. T.)
Primeiro foi o ferryboat saindo lentamente da costa de Jersey ao amanhecer — o momento cristalizou-se como meu primeiro símbolo de Nova York. Cinco anos depois, quando eu tinha quinze anos, saía da escola e ia ao centro da cidade para ver Ina Claire em The Quaker Girl e Gertrude Bryan em Little Boy Blue. Indeciso em meu amor melancólico e sem esperança por ambas, não conseguia escolher entre as duas — então elas se fundiram numa deliciosa identidade, a garota. Ela foi meu segundo símbolo de Nova York. O ferryboat representava o triunfo; a garota, o romance. Com o tempo, eu conquistaria um pouco dos dois, mas houve um terceiro símbolo que perdi em algum lugar, e para sempre.
Encontrei-o numa tarde escura de abril, passados outros cinco anos.
“Oi, Bunny”, gritei. “Bunny!”
Ele não me ouviu — meu táxi ficou para trás e alcançou-o de novo meia quadra adiante. Havia poças escuras de chuva na calçada, e o vi caminhando rápido no meio da multidão, usando uma capa de chuva bege sobre o inevitável terno marrom; notei com espanto que ele carregava uma leve bengala.
“Bunny!”, chamei de novo, e desisti. Eu ainda era universitário de Princeton, enquanto ele tinha se tornado um nova-iorquino. Era sua caminhada vespertina, essa correria com a bengala no meio da chuva que caía, e como faltava uma hora para nosso encontro, pareceu-me uma intromissão ir ter com ele quando estava envolvido com sua vida privada. Entretanto, meu táxi continuou emparelhado com ele, continuei observando e fiquei impressionado. Ele já não era o pequeno e tímido acadêmico da Holder Court — andava com firmeza, absorto em seus pensamentos e olhando para a frente, deixando óbvio que seu novo cenário era de todo suficiente para ele. Eu sabia que ele tinha um apartamento onde morava com três outros homens, já livre de todos os tabus de estudante, mas havia algo mais que o nutria, e tive minha primeira impressão dessa novidade: o espírito metropolitano.
Até aquela época, eu só tinha visto a Nova York que se oferecia à inspeção — era como Dick Whittington,1 chegado do campo e boquiaberto com os ursos amestrados, ou um jovem do Midi deslumbrado com os bulevares de Paris. Eu tinha vindo só para ver o espetáculo, embora os projetistas do edifício Woolworth e do painel luminoso da corrida de bigas, os produtores de comédias musicais e peças de tese não pudessem desejar um espectador mais receptivo, já que o estilo e o brilho que eu atribuía a Nova York superavam as expectativas da própria cidade. Mas nunca aceitei nenhum dos convites praticamente anônimos para bailes de debutantes que costumavam aparecer na correspondência de qualquer universitário, talvez porque sentisse que nenhuma realidade estaria à altura da concepção que eu fazia do esplendor de Nova York. Além do mais, aquela que eu chamava insensatamente de “minha garota” era do Meio-Oeste, o que mantinha lá o centro afetivo do mundo, de modo que eu considerava Nova York essencialmente cínica e cruel — exceto por uma noite em que ela iluminou o terraço do Ritz numa breve aparição.
Mais tarde, no entanto, eu a perdera para sempre e queria um mundo masculino, e a visão que tive de Bunny me fez ver Nova York exatamente assim. Uma semana antes, Monsignor Fay me levara ao Lafayette, onde se estendia diante de nós uma fulguração de comida, chamada hors d’oeuvre, que acompanhamos com um clarete tão desafiador quanto a confiante bengala de Bunny — mas afinal de contas tratava-se de um restaurante, e depois teríamos de transpor uma ponte para voltarmos ao interior. A Nova York da dissipação estudantil, de restaurantes como o Bustanoby’s, o Shanley’s e o Jack’s, tinha se tornado um horror, e embora eu tenha voltado a ela, ai de mim, muitas vezes numa névoa de álcool, senti cada volta como uma traição a um idealismo persistente. Minha participação era mais lasciva que licenciosa, e restam poucas lembranças prazerosas daqueles dias. Como disse uma vez Ernest Hemingway, a única finalidade do cabaré é reunir homens descomprometidos e mulheres complacentes. O resto é perda de tempo numa atmosfera viciada.
Naquela noite, porém, no apartamento de Bunny, a vida era mansa e segura, o produto final de uma destilação de tudo que eu aprendera a amar em Princeton. O som agradável de um oboé se misturava aos ruídos urbanos que vinham da rua, penetrando na sala com dificuldade através de enormes barricadas de livros; a única nota dissonante era dada por um homem que rasgava envelopes de convites. Eu tinha encontrado um terceiro símbolo de Nova York e comecei a pensar em alugar um apartamento como aquele e em selecionar amigos com quem dividi-lo.
Improvável — durante os dois anos seguintes, tive tanto controle sobre meu destino quanto um preso sobre o corte de sua roupa. Quando voltei a Nova York, em 1919, minha vida estava tão enrolada que eu não podia nem sonhar com um tranquilo período monástico na Washington Square. O importante era ganhar dinheiro em publicidade, o bastante para alugar um pequeno apartamento no Bronx para duas pessoas. A garota em questão nunca tinha visto Nova York, mas era sensata o suficiente para estar um pouco relutante. E num halo de ansiedade e infelicidade, passei os quatro meses mais vulneráveis de minha vida.
Nova York tinha toda a iridescência do nascimento do mundo. Soldados vindos da guerra desfilaram pela Quinta Avenida, e as garotas eram atraídas instintivamente para leste e norte atrás deles — esta era a maior nação do mundo e havia um clima de gala no ar. Enquanto eu pairava como um fantasma no Salão Vermelho do Plaza numa tarde de sábado, ia a inebriantes festas no entorno da rua 60 Leste, ou bebia com o pessoal de Princeton no bar do Biltmore, era sempre assombrado por minha outra vida — meu quarto ordinário no Bronx, meus centímetros quadrados de metrô, minha obsessão pela carta diária do Alabama — chegaria, e o que diria? —, meus ternos surrados, minha pobreza e o amor. Enquanto meus amigos estavam se dando bem na vida, eu tinha empurrado meu barco precário para a correnteza. A juventude dourada que circulava em volta de Constance Bennett no Club de Vingt, os colegas do clube de Yale-Princeton animados em nossa primeira reunião depois do fim da guerra, o clima das casas de milionários que eu às vezes frequentava — tudo isso era vazio para mim, embora eu admitisse que era um cenário impressionante e lamentasse estar comprometido com outro romance. A mais divertida mesa de almoço ou o cabaré mais onírico — era tudo a mesma coisa. Eu voltava ansiosamente para minha casa na Claremont Avenue — porque poderia haver uma carta esperando diante da porta. Um por um, meus grandes sonhos com Nova York se corromperam. A lembrança do charme do apartamento de Bunny feneceu com todo o resto quando entrevistei uma senhoria desgrenhada no Greenwich Village. Ela disse que eu poderia trazer garotas para o meu quarto, e essa ideia me encheu de desânimo — por que eu ia querer trazer garotas para o meu quarto? Eu tinha uma garota. Perambulava pela cidade, pela rua 127, magoado com sua vitalidade vibrante; ou então comprava ingresso para algum teatro barato na farmácia Gray’s e tentava me perder por algumas horas em minha velha paixão pela Broadway. Eu era um fracasso — medíocre na publicidade e incapaz de me lançar como escritor. Odiando a cidade, bebia até meu último centavo e, caindo de bêbado e choroso, voltava para casa...
... Cidade imprevisível. O que aconteceu depois foi apenas uma entre milhares de histórias de sucesso daqueles dias agitados, mas desempenha um papel em meu próprio filme de Nova York. Quando voltei, seis meses depois, as salas das editoras estavam abertas para mim, agentes imploravam por peças, o cinema ansiava por roteiros. Para minha perplexidade, fui adotado não como um interiorano do Meio-Oeste, nem como observador participante, mas como o arquétipo daquilo que Nova York queria. Essa afirmação demanda certa descrição do que era a metrópole em 1920.
Já existia a cidade branca e alta de hoje, a atividade febricitante do boom, mas havia também uma desarticulação geral. Assim como outros, o colunista F. P. A.2 tomou o pulso da multidão, mas timidamente, como quem observa pela janela. A sociedade e as artes autóctones não se misturavam — Ellen Mackay ainda não se casara com Irving Berlin. Grande parte dos personagens de Peter Arno não teria nenhum significado para os cidadãos de 1920, e, fora a coluna de F. P. A., não existia uma tribuna para a civilidade metropolitana.
Então, por um instante, a ideia de “nova geração” tornou-se uma fusão de muitos elementos da vida de Nova York. Gente de cinquenta anos podia fingir que ainda existia uma nata da sociedade, ou Maxwell Bodenheim podia fingir que existia uma boêmia digna de sua pintura e seu traço — mas a mistura dos elementos brilhantes, alegres e vigorosos começou nessa época, e pela primeira vez apareceu uma sociedade um pouco mais animada que os circunspectos banquetes de Emily Price Post em salões de mogno. Se essa sociedade inventou o coquetel, também desenvolveu o espírito da Park Avenue, e pela primeira vez um europeu culto podia vislumbrar uma viagem a Nova York como algo mais divertido do que uma expedição em busca de ouro no interior da Austrália.
Só por um instante, antes que ficasse demonstrado que eu era incapaz de desempenhar o papel, eu, que sabia sobre Nova York menos que qualquer repórter com seis meses de residência na cidade, e menos sobre sua sociedade do que qualquer rapaz desacompanhado nos bailes do Ritz, fui elevado à posição não só de porta-voz da época, mas de típico produto do momento. Eu, melhor dizendo agora, “nós” não sabíamos exatamente o que Nova York esperava de nós e achamos aquilo muito confuso. Poucos meses depois de embarcar na aventura metropolitana, já mal sabíamos quem éramos e não tínhamos ideia do que éramos. Um mergulho numa fonte pública ou um esbarrão casual com agentes da lei era o bastante para nos levar às colunas de fofocas. Éramos citados com relação a uma vasta quantidade de assuntos sobre os quais nada sabíamos. Na verdade, nossos “contatos” se resumiam a meia dúzia de amigos solteiros da faculdade e uns poucos conhecidos recentes da área literária — lembro de um Natal solitário em que não tínhamos um só amigo na cidade nem uma casa aonde ir. Sem encontrar um núcleo ao qual nos agarrar, nós mesmos nos tornamos um núcleo e aos poucos ajustamos nossas personalidades conturbadas à cena da Nova York contemporânea. Ou melhor, Nova York nos esqueceu e nos deixou ficar.
Este não é um relato das mudanças da cidade, mas das mudanças dos sentimentos deste escritor pela cidade. Da confusão de 1920, lembro de andar na capota de um táxi pela Quinta Avenida deserta numa noite quente de domingo, de um almoço no sereno jardim japonês do Ritz com a melancólica Kay Laurel e George Jean Nathan, de escrever a noite toda repetidamente, de pagar caro por minúsculos apartamentos, e de comprar carros magníficos que enguiçavam toda hora. Tinham aparecido os primeiros bares clandestinos, passear estava fora de moda, o Montmartre era o lugar elegante para dançar e o cabelo louro de Lillian Tashman rodopiava na pista de dança entre universitários embriagados. As peças eram Declassée e Sacred and Profane Love, e no Midnight Frolic você dançava lado a lado com Marion Davies e talvez reconhecesse a animada Mary Hay entre as coristas. Pensávamos que estávamos distantes de tudo aquilo; talvez todo mundo pense que está distante de seu ambiente. Nos sentíamos como duas criancinhas num enorme galpão, iluminado e inexplorado. Reunidos no estúdio de Griffith em Long Island, tremíamos em presença dos rostos familiares do filme O nascimento de uma nação; mais tarde, compreendi que por trás do entretenimento que a cidade despejava sobre a nação não havia mais que um monte de gente perdida e solitária. O mundo dos astros de cinema era como o nosso, na medida em que eles estavam em Nova York, mas não eram de Nova York. Esse mundo tinha pouca noção de si mesmo e nenhum centro: quando conheci Dorothy Gish, tive a sensação de que estávamos os dois no polo Norte e que nevava. Desde então eles encontraram um lar, que não estava destinado a ser Nova York.
Quando nos entediávamos, encarávamos nossa cidade com um capricho à moda de Huysmans. Passávamos uma tarde sozinhos em nosso “apartamento”, comendo sanduíches de azeitona e bebendo um litro de uísque Bushmills que tínhamos ganhado de Zoë Akins, e então saíamos para a cidade enfeitiçada, entrando por portas estranhas em estranhos apartamentos com intermitentes sacolejos em táxis no meio das noites mansas. Pelo menos formávamos um todo com Nova York, levando-a conosco por cada portal. Até hoje entro em muitos apartamentos com a sensação de já ter estado lá antes, ou no de cima, ou no de baixo. Teria sido na noite em que tentei tirar a roupa no Scandals, ou na noite em que (como fiquei sabendo, com assombro, pelos jornais na manhã seguinte) “Fitzgerald esmurra policial até o outro lado do paraíso”? Como ganhar briga não fazia parte das minhas realizações, tentei em vão reconstruir a sequência de eventos que culminou naquele desfecho, no Webster Hall. Finalmente, daquele período, lembro de estar andando de táxi numa tarde entre edifícios altíssimos sob um céu rosa arroxeado; comecei a gritar que tinha tudo o que queria e sabia que nunca mais seria tão feliz.
Foi típico de nossa precária situação em Nova York o fato de que, quando nossa filha estava para nascer, decidimos proceder com segurança e voltamos para St. Paul — parecia inadequado trazer um bebê à luz no meio de todo aquele glamour e daquela solidão. Depois de um ano, porém, estávamos de volta, e começamos a fazer as mesmas coisas outra vez, sem gostar muito delas. Estávamos bastante rodados, embora conservássemos uma inocência quase teatral ao preferir o papel de observados ao de observadores. Mas a inocência não é um fim em si, e à medida que nossa mentalidade amadurecia, contra a nossa vontade, começamos a ver Nova York como um todo e a tentar salvar alguma coisa dela para quando chegassem os seres em que inevitavelmente nos transformaríamos.
Era tarde demais — ou cedo demais. Para nós, a cidade estava indissoluvelmente ligada a divertimentos etílicos, moderados ou fantásticos. Só pudemos nos organizar ao voltar para Long Island, e nem sempre lá. Não tínhamos estímulo para desfrutar a cidade pela metade. Meu primeiro símbolo era agora uma lembrança, pois eu sabia que o triunfo está em nós mesmos; o segundo tinha se transformado em lugar-comum — as duas atrizes que eu cultuava de longe lá pelos idos de 1913 tinham jantado em nossa casa. Mas dava-me certo medo que também o terceiro símbolo tivesse se turvado — não era fácil encontrar a tranquilidade do apartamento de Bunny na cidade sempre acelerada. Bunny tinha se casado e ia ser pai; outros amigos tinham ido para a Europa, e os solteiros frequentavam casas maiores e mais festivas que a nossa. Nessa época, conhecíamos “todo mundo” — ou seja, a maioria das pessoas que Ralph Barton retrataria em seus cartuns numa noite de estreia.
Mas já não éramos importantes. Em 1923, a melindrosa, em cuja conduta se baseara a popularidade de meus primeiros livros, tinha saído de moda — pelo menos no Leste. Decidi impactar a Broadway com uma peça, mas a Broadway mandou seus olheiros a Atlantic City e de saída cancelou a ideia, e assim senti que, naquele momento, a cidade e eu tínhamos pouco a oferecer um ao outro. Eu ia pegar a atmosfera de Long Island que respirara com familiaridade e materializá-la sob céus desconhecidos.
Passaram-se três anos até que víssemos Nova York outra vez. Enquanto o navio deslizava rio acima, a cidade explodia trovejando sobre nós no entardecer — a geleira branca da parte baixa de Nova York mergulhando como os cabos de uma ponte para erguer-se na parte alta da cidade, um milagre de luz e espuma suspenso pelas estrelas. Uma banda começou a tocar no convés, mas diante da majestade da cidade a marcha soava banal e metálica. A partir daquele momento, entendi que Nova York, não importava quantas vezes eu a deixasse, era minha casa.
O ritmo da cidade tinha mudado profundamente. As incertezas de 1920 tinham se afogado num contínuo fragor dourado, e muitos de nossos amigos tinham enriquecido. Mas a agitação da Nova York de 1927 beirava a histeria. As festas eram de arromba — as de Condé Nast, por exemplo, rivalizavam com os lendários bailes da década de 1890; o ritmo era mais acelerado — os convites à dissipação davam exemplo a Paris; os espetáculos eram maiores; os edifícios, mais altos; os costumes, mais lassos; e a bebida, mais barata. Mas todas essas benesses na verdade não proporcionavam muito deleite. Os jovens se desgastavam muito cedo — estavam insensíveis e frágeis aos vinte e um anos e, com exceção de Peter Arno, nenhum deles contribuiu com nada de novo. Talvez Peter Arno e seus colaboradores tenham dito tudo o que havia por dizer sobre os dias do boom de Nova York que não pudesse ser dito por uma orquestra de jazz. Muita gente que não era alcoólatra se embebedava quatro dias por semana, e havia nervos em frangalhos espalhados por toda parte; os grupos permaneciam reunidos por um nervosismo generalizado, e a ressaca tornou-se uma parte do dia tão natural quanto dormir a siesta para os espanhóis. A maior parte dos meus amigos bebia demais — quanto mais sintonizados com a época, mais bebiam. Assim, como o esforço por si só não tinha nenhum valor diante da absoluta permissividade da Nova York daqueles dias, inventou-se um nome pejorativo para ele: uma atividade de sucesso tornou-se uma pilantragem — eu estava na pilantragem literária.
Morávamos a poucas horas de Nova York, e descobri que cada vez que vinha à cidade era pilhado numa complicação de eventos que poucos dias depois me depositavam em estado de exaustão num trem para Delaware. Porções inteiras da cidade tinham crescido de modo insalubre, mas invariavelmente eu encontrava um momento de paz absoluta cruzando o Central Park, no escuro, em direção ao sul, onde as fachadas da rua 59 projetavam suas luzes através das árvores. Ali estava de novo minha cidade perdida, envolvida indiferente em seu mistério e suas promessas. Entretanto, meu afastamento nunca durava muito — da mesma forma que o trabalhador precisa viver no ventre da cidade, eu era compelido a viver em sua mente desordenada.
Como alternativa havia os bares clandestinos — a migração dos bares de luxo, que anunciavam nas publicações de Yale e Princeton, para cervejarias onde o rosto ranzinza do submundo espiava através da boa índole germânica do entretenimento, e depois para lugares estranhos e ainda mais sinistros, onde éramos observados por rapazes com rosto de pedra e nada restava da jovialidade, apenas uma brutalidade que contaminava o novo dia para o qual saíamos. Lembrei-me de 1920, quando choquei um jovem empresário em ascensão sugerindo um coquetel antes do almoço. Em 1929, havia bebida alcoólica em metade dos escritórios do centro e um bar clandestino em metade dos grandes edifícios.
Os bares clandestinos e a Park Avenue tornavam-se cada vez mais de domínio público. Na década anterior, Greenwich Village, Washington Square, Murray Hill e os casarões da Quinta Avenida tinham de certa forma desaparecido, ou se tornado inexpressivos. A cidade estava intumescida, desentranhada, estupidificada com pão e circo, e uma nova expressão — “Ah, é?” — resumia todo o entusiasmo evocado pelo anúncio dos últimos superarranha-céus. Meu barbeiro aposentou-se com o meio milhão ganhado em apostas no mercado, e eu tinha consciência de que os maîtres que me conduziam até minha mesa, ou que não o faziam, estavam muito, muito mais ricos do que eu. Isso não tinha graça — mais uma vez me fartei de Nova York e foi bom me sentir a salvo a bordo de um navio, em cujo bar continuou a festa ininterrupta a caminho da França.
“Quais são as últimas de Nova York?”
“As ações estão subindo. Um bebê matou um bandido.”
“Só isso?”
“Só. Os rádios se esgoelam na rua.”
Eu já chegara a pensar que não havia segundo ato na vida dos americanos, mas certamente haveria um segundo ato aos dias de boom de Nova York. Estávamos em algum lugar do Norte da África quando ouvimos um ruído abafado que ecoou nos cantos mais remotos do deserto.
“O que foi isso?”
“Você ouviu?”
“Não foi nada.”
“Você acha que devíamos voltar e ver?”
“Não. Não foi nada.”
No outono escuro, dois anos depois, vimos Nova York de novo. Passamos por funcionários da alfândega curiosamente corteses e, depois, de cabeça baixa e chapéu na mão, caminhei respeitosamente pela tumba ressonante. Entre as ruínas, uns poucos fantasmas infantis ainda brincavam para manter a farsa de que estavam vivos, porém eram traídos por suas vozes febris e feições frenéticas que revelavam a fragilidade da mascarada. Nos coquetéis, um último resquício oco dos dias de festança, ecoavam os lamentos dos feridos: “Me dê um tiro, pelo amor de Deus, alguém me dê um tiro!”, e os gemidos e queixumes dos moribundos: “Viu que a United States Steel caiu mais três pontos?”. Meu barbeiro voltou a trabalhar em sua loja; mais uma vez os maîtres acompanhavam as pessoas até as mesas, quando havia pessoas a acompanhar. Das ruínas, sozinho e indecifrável como uma esfinge, erguia-se o edifício Empire State e, assim como tinha sido um hábito meu subir ao terraço do Plaza para me despedir da linda cidade, que se estendia até onde a vista podia alcançar, desta vez fui ao último andar da última e mais esplêndida das torres. Foi então que vi que tudo se explicava: eu descobrira o erro fatal da cidade, sua caixa de Pandora. Cheio de empáfia, o nova-iorquino subira só para ver, desolado, o que nunca tinha suspeitado: a cidade não era uma sucessão infinita de cânions, como ele supunha, mas tinha limites — de cima da mais alta das estruturas, ele viu pela primeira vez que ela ia se apagando em direção ao campo por todos os lados, numa imensidão de verde e azul, essa sim sem limites. E com a terrível compreensão de que Nova York afinal era uma cidade, e não um universo, todo o edifício cintilante que ele criara em sua imaginação veio abaixo. Foi esse o presente desavisado de Alfred W. Smith aos cidadãos de Nova York.
Assim eu me despeço da minha cidade perdida. Vista do ferryboat, de manhã cedo, ela já não sugere sucessos fantásticos e eterna juventude. As moças alegres que saracoteiam diante de plateias vazias não me lembram a beleza inefável das garotas de meus sonhos em 1914. E Bunny, girando sobre os calcanhares cheio de si com sua bengala, a caminho de seu retiro num carnaval, aderiu ao comunismo e se preocupa com as injustiças contra os trabalhadores dos moinhos no Sul e os agricultores do Oeste, cujas vozes, quinze anos atrás, nunca teriam atravessado as paredes de seu estúdio.
Tudo está perdido salvo a lembrança, embora eu às vezes me imagine lendo uma edição de 1945 do Daily News: CINQUENTÃO PERDE A CABEÇA EM NOVA YORK
Modelo declara: Fitzgerald enriqueceu à custa de golpes
Abatido por pistoleiro furioso
Então talvez eu esteja destinado a voltar algum dia e encontrar na cidade novas experiências que até agora só vi no papel. Por enquanto, só posso chorar a perda de minha esplêndida miragem. Volte, ó branca e resplandecente, volte!
1 Dick Whittington e seu gato é um conto do folclore inglês sobre um menino pobre do século XIII que se torna um rico comerciante e termina como Lord Mayor de Londres devido à habilidade de seu gato como caçador de ratos. (N. T.)
2 Franklin Pierce Adams (1881-1960). (N. T.)
Primeiro foi o ferryboat saindo lentamente da costa de Jersey ao amanhecer — o momento cristalizou-se como meu primeiro símbolo de Nova York. Cinco anos depois, quando eu tinha quinze anos, saía da escola e ia ao centro da cidade para ver Ina Claire em The Quaker Girl e Gertrude Bryan em Little Boy Blue. Indeciso em meu amor melancólico e sem esperança por ambas, não conseguia escolher entre as duas — então elas se fundiram numa deliciosa identidade, a garota. Ela foi meu segundo símbolo de Nova York. O ferryboat representava o triunfo; a garota, o romance. Com o tempo, eu conquistaria um pouco dos dois, mas houve um terceiro símbolo que perdi em algum lugar, e para sempre.
Encontrei-o numa tarde escura de abril, passados outros cinco anos.
“Oi, Bunny”, gritei. “Bunny!”
Ele não me ouviu — meu táxi ficou para trás e alcançou-o de novo meia quadra adiante. Havia poças escuras de chuva na calçada, e o vi caminhando rápido no meio da multidão, usando uma capa de chuva bege sobre o inevitável terno marrom; notei com espanto que ele carregava uma leve bengala.
“Bunny!”, chamei de novo, e desisti. Eu ainda era universitário de Princeton, enquanto ele tinha se tornado um nova-iorquino. Era sua caminhada vespertina, essa correria com a bengala no meio da chuva que caía, e como faltava uma hora para nosso encontro, pareceu-me uma intromissão ir ter com ele quando estava envolvido com sua vida privada. Entretanto, meu táxi continuou emparelhado com ele, continuei observando e fiquei impressionado. Ele já não era o pequeno e tímido acadêmico da Holder Court — andava com firmeza, absorto em seus pensamentos e olhando para a frente, deixando óbvio que seu novo cenário era de todo suficiente para ele. Eu sabia que ele tinha um apartamento onde morava com três outros homens, já livre de todos os tabus de estudante, mas havia algo mais que o nutria, e tive minha primeira impressão dessa novidade: o espírito metropolitano.
Até aquela época, eu só tinha visto a Nova York que se oferecia à inspeção — era como Dick Whittington,1 chegado do campo e boquiaberto com os ursos amestrados, ou um jovem do Midi deslumbrado com os bulevares de Paris. Eu tinha vindo só para ver o espetáculo, embora os projetistas do edifício Woolworth e do painel luminoso da corrida de bigas, os produtores de comédias musicais e peças de tese não pudessem desejar um espectador mais receptivo, já que o estilo e o brilho que eu atribuía a Nova York superavam as expectativas da própria cidade. Mas nunca aceitei nenhum dos convites praticamente anônimos para bailes de debutantes que costumavam aparecer na correspondência de qualquer universitário, talvez porque sentisse que nenhuma realidade estaria à altura da concepção que eu fazia do esplendor de Nova York. Além do mais, aquela que eu chamava insensatamente de “minha garota” era do Meio-Oeste, o que mantinha lá o centro afetivo do mundo, de modo que eu considerava Nova York essencialmente cínica e cruel — exceto por uma noite em que ela iluminou o terraço do Ritz numa breve aparição.
Mais tarde, no entanto, eu a perdera para sempre e queria um mundo masculino, e a visão que tive de Bunny me fez ver Nova York exatamente assim. Uma semana antes, Monsignor Fay me levara ao Lafayette, onde se estendia diante de nós uma fulguração de comida, chamada hors d’oeuvre, que acompanhamos com um clarete tão desafiador quanto a confiante bengala de Bunny — mas afinal de contas tratava-se de um restaurante, e depois teríamos de transpor uma ponte para voltarmos ao interior. A Nova York da dissipação estudantil, de restaurantes como o Bustanoby’s, o Shanley’s e o Jack’s, tinha se tornado um horror, e embora eu tenha voltado a ela, ai de mim, muitas vezes numa névoa de álcool, senti cada volta como uma traição a um idealismo persistente. Minha participação era mais lasciva que licenciosa, e restam poucas lembranças prazerosas daqueles dias. Como disse uma vez Ernest Hemingway, a única finalidade do cabaré é reunir homens descomprometidos e mulheres complacentes. O resto é perda de tempo numa atmosfera viciada.
Naquela noite, porém, no apartamento de Bunny, a vida era mansa e segura, o produto final de uma destilação de tudo que eu aprendera a amar em Princeton. O som agradável de um oboé se misturava aos ruídos urbanos que vinham da rua, penetrando na sala com dificuldade através de enormes barricadas de livros; a única nota dissonante era dada por um homem que rasgava envelopes de convites. Eu tinha encontrado um terceiro símbolo de Nova York e comecei a pensar em alugar um apartamento como aquele e em selecionar amigos com quem dividi-lo.
Improvável — durante os dois anos seguintes, tive tanto controle sobre meu destino quanto um preso sobre o corte de sua roupa. Quando voltei a Nova York, em 1919, minha vida estava tão enrolada que eu não podia nem sonhar com um tranquilo período monástico na Washington Square. O importante era ganhar dinheiro em publicidade, o bastante para alugar um pequeno apartamento no Bronx para duas pessoas. A garota em questão nunca tinha visto Nova York, mas era sensata o suficiente para estar um pouco relutante. E num halo de ansiedade e infelicidade, passei os quatro meses mais vulneráveis de minha vida.
Nova York tinha toda a iridescência do nascimento do mundo. Soldados vindos da guerra desfilaram pela Quinta Avenida, e as garotas eram atraídas instintivamente para leste e norte atrás deles — esta era a maior nação do mundo e havia um clima de gala no ar. Enquanto eu pairava como um fantasma no Salão Vermelho do Plaza numa tarde de sábado, ia a inebriantes festas no entorno da rua 60 Leste, ou bebia com o pessoal de Princeton no bar do Biltmore, era sempre assombrado por minha outra vida — meu quarto ordinário no Bronx, meus centímetros quadrados de metrô, minha obsessão pela carta diária do Alabama — chegaria, e o que diria? —, meus ternos surrados, minha pobreza e o amor. Enquanto meus amigos estavam se dando bem na vida, eu tinha empurrado meu barco precário para a correnteza. A juventude dourada que circulava em volta de Constance Bennett no Club de Vingt, os colegas do clube de Yale-Princeton animados em nossa primeira reunião depois do fim da guerra, o clima das casas de milionários que eu às vezes frequentava — tudo isso era vazio para mim, embora eu admitisse que era um cenário impressionante e lamentasse estar comprometido com outro romance. A mais divertida mesa de almoço ou o cabaré mais onírico — era tudo a mesma coisa. Eu voltava ansiosamente para minha casa na Claremont Avenue — porque poderia haver uma carta esperando diante da porta. Um por um, meus grandes sonhos com Nova York se corromperam. A lembrança do charme do apartamento de Bunny feneceu com todo o resto quando entrevistei uma senhoria desgrenhada no Greenwich Village. Ela disse que eu poderia trazer garotas para o meu quarto, e essa ideia me encheu de desânimo — por que eu ia querer trazer garotas para o meu quarto? Eu tinha uma garota. Perambulava pela cidade, pela rua 127, magoado com sua vitalidade vibrante; ou então comprava ingresso para algum teatro barato na farmácia Gray’s e tentava me perder por algumas horas em minha velha paixão pela Broadway. Eu era um fracasso — medíocre na publicidade e incapaz de me lançar como escritor. Odiando a cidade, bebia até meu último centavo e, caindo de bêbado e choroso, voltava para casa...
... Cidade imprevisível. O que aconteceu depois foi apenas uma entre milhares de histórias de sucesso daqueles dias agitados, mas desempenha um papel em meu próprio filme de Nova York. Quando voltei, seis meses depois, as salas das editoras estavam abertas para mim, agentes imploravam por peças, o cinema ansiava por roteiros. Para minha perplexidade, fui adotado não como um interiorano do Meio-Oeste, nem como observador participante, mas como o arquétipo daquilo que Nova York queria. Essa afirmação demanda certa descrição do que era a metrópole em 1920.
Já existia a cidade branca e alta de hoje, a atividade febricitante do boom, mas havia também uma desarticulação geral. Assim como outros, o colunista F. P. A.2 tomou o pulso da multidão, mas timidamente, como quem observa pela janela. A sociedade e as artes autóctones não se misturavam — Ellen Mackay ainda não se casara com Irving Berlin. Grande parte dos personagens de Peter Arno não teria nenhum significado para os cidadãos de 1920, e, fora a coluna de F. P. A., não existia uma tribuna para a civilidade metropolitana.
Então, por um instante, a ideia de “nova geração” tornou-se uma fusão de muitos elementos da vida de Nova York. Gente de cinquenta anos podia fingir que ainda existia uma nata da sociedade, ou Maxwell Bodenheim podia fingir que existia uma boêmia digna de sua pintura e seu traço — mas a mistura dos elementos brilhantes, alegres e vigorosos começou nessa época, e pela primeira vez apareceu uma sociedade um pouco mais animada que os circunspectos banquetes de Emily Price Post em salões de mogno. Se essa sociedade inventou o coquetel, também desenvolveu o espírito da Park Avenue, e pela primeira vez um europeu culto podia vislumbrar uma viagem a Nova York como algo mais divertido do que uma expedição em busca de ouro no interior da Austrália.
Só por um instante, antes que ficasse demonstrado que eu era incapaz de desempenhar o papel, eu, que sabia sobre Nova York menos que qualquer repórter com seis meses de residência na cidade, e menos sobre sua sociedade do que qualquer rapaz desacompanhado nos bailes do Ritz, fui elevado à posição não só de porta-voz da época, mas de típico produto do momento. Eu, melhor dizendo agora, “nós” não sabíamos exatamente o que Nova York esperava de nós e achamos aquilo muito confuso. Poucos meses depois de embarcar na aventura metropolitana, já mal sabíamos quem éramos e não tínhamos ideia do que éramos. Um mergulho numa fonte pública ou um esbarrão casual com agentes da lei era o bastante para nos levar às colunas de fofocas. Éramos citados com relação a uma vasta quantidade de assuntos sobre os quais nada sabíamos. Na verdade, nossos “contatos” se resumiam a meia dúzia de amigos solteiros da faculdade e uns poucos conhecidos recentes da área literária — lembro de um Natal solitário em que não tínhamos um só amigo na cidade nem uma casa aonde ir. Sem encontrar um núcleo ao qual nos agarrar, nós mesmos nos tornamos um núcleo e aos poucos ajustamos nossas personalidades conturbadas à cena da Nova York contemporânea. Ou melhor, Nova York nos esqueceu e nos deixou ficar.
Este não é um relato das mudanças da cidade, mas das mudanças dos sentimentos deste escritor pela cidade. Da confusão de 1920, lembro de andar na capota de um táxi pela Quinta Avenida deserta numa noite quente de domingo, de um almoço no sereno jardim japonês do Ritz com a melancólica Kay Laurel e George Jean Nathan, de escrever a noite toda repetidamente, de pagar caro por minúsculos apartamentos, e de comprar carros magníficos que enguiçavam toda hora. Tinham aparecido os primeiros bares clandestinos, passear estava fora de moda, o Montmartre era o lugar elegante para dançar e o cabelo louro de Lillian Tashman rodopiava na pista de dança entre universitários embriagados. As peças eram Declassée e Sacred and Profane Love, e no Midnight Frolic você dançava lado a lado com Marion Davies e talvez reconhecesse a animada Mary Hay entre as coristas. Pensávamos que estávamos distantes de tudo aquilo; talvez todo mundo pense que está distante de seu ambiente. Nos sentíamos como duas criancinhas num enorme galpão, iluminado e inexplorado. Reunidos no estúdio de Griffith em Long Island, tremíamos em presença dos rostos familiares do filme O nascimento de uma nação; mais tarde, compreendi que por trás do entretenimento que a cidade despejava sobre a nação não havia mais que um monte de gente perdida e solitária. O mundo dos astros de cinema era como o nosso, na medida em que eles estavam em Nova York, mas não eram de Nova York. Esse mundo tinha pouca noção de si mesmo e nenhum centro: quando conheci Dorothy Gish, tive a sensação de que estávamos os dois no polo Norte e que nevava. Desde então eles encontraram um lar, que não estava destinado a ser Nova York.
Quando nos entediávamos, encarávamos nossa cidade com um capricho à moda de Huysmans. Passávamos uma tarde sozinhos em nosso “apartamento”, comendo sanduíches de azeitona e bebendo um litro de uísque Bushmills que tínhamos ganhado de Zoë Akins, e então saíamos para a cidade enfeitiçada, entrando por portas estranhas em estranhos apartamentos com intermitentes sacolejos em táxis no meio das noites mansas. Pelo menos formávamos um todo com Nova York, levando-a conosco por cada portal. Até hoje entro em muitos apartamentos com a sensação de já ter estado lá antes, ou no de cima, ou no de baixo. Teria sido na noite em que tentei tirar a roupa no Scandals, ou na noite em que (como fiquei sabendo, com assombro, pelos jornais na manhã seguinte) “Fitzgerald esmurra policial até o outro lado do paraíso”? Como ganhar briga não fazia parte das minhas realizações, tentei em vão reconstruir a sequência de eventos que culminou naquele desfecho, no Webster Hall. Finalmente, daquele período, lembro de estar andando de táxi numa tarde entre edifícios altíssimos sob um céu rosa arroxeado; comecei a gritar que tinha tudo o que queria e sabia que nunca mais seria tão feliz.
Foi típico de nossa precária situação em Nova York o fato de que, quando nossa filha estava para nascer, decidimos proceder com segurança e voltamos para St. Paul — parecia inadequado trazer um bebê à luz no meio de todo aquele glamour e daquela solidão. Depois de um ano, porém, estávamos de volta, e começamos a fazer as mesmas coisas outra vez, sem gostar muito delas. Estávamos bastante rodados, embora conservássemos uma inocência quase teatral ao preferir o papel de observados ao de observadores. Mas a inocência não é um fim em si, e à medida que nossa mentalidade amadurecia, contra a nossa vontade, começamos a ver Nova York como um todo e a tentar salvar alguma coisa dela para quando chegassem os seres em que inevitavelmente nos transformaríamos.
Era tarde demais — ou cedo demais. Para nós, a cidade estava indissoluvelmente ligada a divertimentos etílicos, moderados ou fantásticos. Só pudemos nos organizar ao voltar para Long Island, e nem sempre lá. Não tínhamos estímulo para desfrutar a cidade pela metade. Meu primeiro símbolo era agora uma lembrança, pois eu sabia que o triunfo está em nós mesmos; o segundo tinha se transformado em lugar-comum — as duas atrizes que eu cultuava de longe lá pelos idos de 1913 tinham jantado em nossa casa. Mas dava-me certo medo que também o terceiro símbolo tivesse se turvado — não era fácil encontrar a tranquilidade do apartamento de Bunny na cidade sempre acelerada. Bunny tinha se casado e ia ser pai; outros amigos tinham ido para a Europa, e os solteiros frequentavam casas maiores e mais festivas que a nossa. Nessa época, conhecíamos “todo mundo” — ou seja, a maioria das pessoas que Ralph Barton retrataria em seus cartuns numa noite de estreia.
Mas já não éramos importantes. Em 1923, a melindrosa, em cuja conduta se baseara a popularidade de meus primeiros livros, tinha saído de moda — pelo menos no Leste. Decidi impactar a Broadway com uma peça, mas a Broadway mandou seus olheiros a Atlantic City e de saída cancelou a ideia, e assim senti que, naquele momento, a cidade e eu tínhamos pouco a oferecer um ao outro. Eu ia pegar a atmosfera de Long Island que respirara com familiaridade e materializá-la sob céus desconhecidos.
Passaram-se três anos até que víssemos Nova York outra vez. Enquanto o navio deslizava rio acima, a cidade explodia trovejando sobre nós no entardecer — a geleira branca da parte baixa de Nova York mergulhando como os cabos de uma ponte para erguer-se na parte alta da cidade, um milagre de luz e espuma suspenso pelas estrelas. Uma banda começou a tocar no convés, mas diante da majestade da cidade a marcha soava banal e metálica. A partir daquele momento, entendi que Nova York, não importava quantas vezes eu a deixasse, era minha casa.
O ritmo da cidade tinha mudado profundamente. As incertezas de 1920 tinham se afogado num contínuo fragor dourado, e muitos de nossos amigos tinham enriquecido. Mas a agitação da Nova York de 1927 beirava a histeria. As festas eram de arromba — as de Condé Nast, por exemplo, rivalizavam com os lendários bailes da década de 1890; o ritmo era mais acelerado — os convites à dissipação davam exemplo a Paris; os espetáculos eram maiores; os edifícios, mais altos; os costumes, mais lassos; e a bebida, mais barata. Mas todas essas benesses na verdade não proporcionavam muito deleite. Os jovens se desgastavam muito cedo — estavam insensíveis e frágeis aos vinte e um anos e, com exceção de Peter Arno, nenhum deles contribuiu com nada de novo. Talvez Peter Arno e seus colaboradores tenham dito tudo o que havia por dizer sobre os dias do boom de Nova York que não pudesse ser dito por uma orquestra de jazz. Muita gente que não era alcoólatra se embebedava quatro dias por semana, e havia nervos em frangalhos espalhados por toda parte; os grupos permaneciam reunidos por um nervosismo generalizado, e a ressaca tornou-se uma parte do dia tão natural quanto dormir a siesta para os espanhóis. A maior parte dos meus amigos bebia demais — quanto mais sintonizados com a época, mais bebiam. Assim, como o esforço por si só não tinha nenhum valor diante da absoluta permissividade da Nova York daqueles dias, inventou-se um nome pejorativo para ele: uma atividade de sucesso tornou-se uma pilantragem — eu estava na pilantragem literária.
Morávamos a poucas horas de Nova York, e descobri que cada vez que vinha à cidade era pilhado numa complicação de eventos que poucos dias depois me depositavam em estado de exaustão num trem para Delaware. Porções inteiras da cidade tinham crescido de modo insalubre, mas invariavelmente eu encontrava um momento de paz absoluta cruzando o Central Park, no escuro, em direção ao sul, onde as fachadas da rua 59 projetavam suas luzes através das árvores. Ali estava de novo minha cidade perdida, envolvida indiferente em seu mistério e suas promessas. Entretanto, meu afastamento nunca durava muito — da mesma forma que o trabalhador precisa viver no ventre da cidade, eu era compelido a viver em sua mente desordenada.
Como alternativa havia os bares clandestinos — a migração dos bares de luxo, que anunciavam nas publicações de Yale e Princeton, para cervejarias onde o rosto ranzinza do submundo espiava através da boa índole germânica do entretenimento, e depois para lugares estranhos e ainda mais sinistros, onde éramos observados por rapazes com rosto de pedra e nada restava da jovialidade, apenas uma brutalidade que contaminava o novo dia para o qual saíamos. Lembrei-me de 1920, quando choquei um jovem empresário em ascensão sugerindo um coquetel antes do almoço. Em 1929, havia bebida alcoólica em metade dos escritórios do centro e um bar clandestino em metade dos grandes edifícios.
Os bares clandestinos e a Park Avenue tornavam-se cada vez mais de domínio público. Na década anterior, Greenwich Village, Washington Square, Murray Hill e os casarões da Quinta Avenida tinham de certa forma desaparecido, ou se tornado inexpressivos. A cidade estava intumescida, desentranhada, estupidificada com pão e circo, e uma nova expressão — “Ah, é?” — resumia todo o entusiasmo evocado pelo anúncio dos últimos superarranha-céus. Meu barbeiro aposentou-se com o meio milhão ganhado em apostas no mercado, e eu tinha consciência de que os maîtres que me conduziam até minha mesa, ou que não o faziam, estavam muito, muito mais ricos do que eu. Isso não tinha graça — mais uma vez me fartei de Nova York e foi bom me sentir a salvo a bordo de um navio, em cujo bar continuou a festa ininterrupta a caminho da França.
“Quais são as últimas de Nova York?”
“As ações estão subindo. Um bebê matou um bandido.”
“Só isso?”
“Só. Os rádios se esgoelam na rua.”
Eu já chegara a pensar que não havia segundo ato na vida dos americanos, mas certamente haveria um segundo ato aos dias de boom de Nova York. Estávamos em algum lugar do Norte da África quando ouvimos um ruído abafado que ecoou nos cantos mais remotos do deserto.
“O que foi isso?”
“Você ouviu?”
“Não foi nada.”
“Você acha que devíamos voltar e ver?”
“Não. Não foi nada.”
No outono escuro, dois anos depois, vimos Nova York de novo. Passamos por funcionários da alfândega curiosamente corteses e, depois, de cabeça baixa e chapéu na mão, caminhei respeitosamente pela tumba ressonante. Entre as ruínas, uns poucos fantasmas infantis ainda brincavam para manter a farsa de que estavam vivos, porém eram traídos por suas vozes febris e feições frenéticas que revelavam a fragilidade da mascarada. Nos coquetéis, um último resquício oco dos dias de festança, ecoavam os lamentos dos feridos: “Me dê um tiro, pelo amor de Deus, alguém me dê um tiro!”, e os gemidos e queixumes dos moribundos: “Viu que a United States Steel caiu mais três pontos?”. Meu barbeiro voltou a trabalhar em sua loja; mais uma vez os maîtres acompanhavam as pessoas até as mesas, quando havia pessoas a acompanhar. Das ruínas, sozinho e indecifrável como uma esfinge, erguia-se o edifício Empire State e, assim como tinha sido um hábito meu subir ao terraço do Plaza para me despedir da linda cidade, que se estendia até onde a vista podia alcançar, desta vez fui ao último andar da última e mais esplêndida das torres. Foi então que vi que tudo se explicava: eu descobrira o erro fatal da cidade, sua caixa de Pandora. Cheio de empáfia, o nova-iorquino subira só para ver, desolado, o que nunca tinha suspeitado: a cidade não era uma sucessão infinita de cânions, como ele supunha, mas tinha limites — de cima da mais alta das estruturas, ele viu pela primeira vez que ela ia se apagando em direção ao campo por todos os lados, numa imensidão de verde e azul, essa sim sem limites. E com a terrível compreensão de que Nova York afinal era uma cidade, e não um universo, todo o edifício cintilante que ele criara em sua imaginação veio abaixo. Foi esse o presente desavisado de Alfred W. Smith aos cidadãos de Nova York.
Assim eu me despeço da minha cidade perdida. Vista do ferryboat, de manhã cedo, ela já não sugere sucessos fantásticos e eterna juventude. As moças alegres que saracoteiam diante de plateias vazias não me lembram a beleza inefável das garotas de meus sonhos em 1914. E Bunny, girando sobre os calcanhares cheio de si com sua bengala, a caminho de seu retiro num carnaval, aderiu ao comunismo e se preocupa com as injustiças contra os trabalhadores dos moinhos no Sul e os agricultores do Oeste, cujas vozes, quinze anos atrás, nunca teriam atravessado as paredes de seu estúdio.
Tudo está perdido salvo a lembrança, embora eu às vezes me imagine lendo uma edição de 1945 do Daily News: CINQUENTÃO PERDE A CABEÇA EM NOVA YORK
Modelo declara: Fitzgerald enriqueceu à custa de golpes
Abatido por pistoleiro furioso
Então talvez eu esteja destinado a voltar algum dia e encontrar na cidade novas experiências que até agora só vi no papel. Por enquanto, só posso chorar a perda de minha esplêndida miragem. Volte, ó branca e resplandecente, volte!
1 Dick Whittington e seu gato é um conto do folclore inglês sobre um menino pobre do século XIII que se torna um rico comerciante e termina como Lord Mayor de Londres devido à habilidade de seu gato como caçador de ratos. (N. T.)
2 Franklin Pierce Adams (1881-1960). (N. T.)
Primeiro foi o ferryboat saindo lentamente da costa de Jersey ao amanhecer — o momento cristalizou-se como meu primeiro símbolo de Nova York. Cinco anos depois, quando eu tinha quinze anos, saía da escola e ia ao centro da cidade para ver Ina Claire em The Quaker Girl e Gertrude Bryan em Little Boy Blue. Indeciso em meu amor melancólico e sem esperança por ambas, não conseguia escolher entre as duas — então elas se fundiram numa deliciosa identidade, a garota. Ela foi meu segundo símbolo de Nova York. O ferryboat representava o triunfo; a garota, o romance. Com o tempo, eu conquistaria um pouco dos dois, mas houve um terceiro símbolo que perdi em algum lugar, e para sempre.
Encontrei-o numa tarde escura de abril, passados outros cinco anos.
“Oi, Bunny”, gritei. “Bunny!”
Ele não me ouviu — meu táxi ficou para trás e alcançou-o de novo meia quadra adiante. Havia poças escuras de chuva na calçada, e o vi caminhando rápido no meio da multidão, usando uma capa de chuva bege sobre o inevitável terno marrom; notei com espanto que ele carregava uma leve bengala.
“Bunny!”, chamei de novo, e desisti. Eu ainda era universitário de Princeton, enquanto ele tinha se tornado um nova-iorquino. Era sua caminhada vespertina, essa correria com a bengala no meio da chuva que caía, e como faltava uma hora para nosso encontro, pareceu-me uma intromissão ir ter com ele quando estava envolvido com sua vida privada. Entretanto, meu táxi continuou emparelhado com ele, continuei observando e fiquei impressionado. Ele já não era o pequeno e tímido acadêmico da Holder Court — andava com firmeza, absorto em seus pensamentos e olhando para a frente, deixando óbvio que seu novo cenário era de todo suficiente para ele. Eu sabia que ele tinha um apartamento onde morava com três outros homens, já livre de todos os tabus de estudante, mas havia algo mais que o nutria, e tive minha primeira impressão dessa novidade: o espírito metropolitano.
Até aquela época, eu só tinha visto a Nova York que se oferecia à inspeção — era como Dick Whittington,1 chegado do campo e boquiaberto com os ursos amestrados, ou um jovem do Midi deslumbrado com os bulevares de Paris. Eu tinha vindo só para ver o espetáculo, embora os projetistas do edifício Woolworth e do painel luminoso da corrida de bigas, os produtores de comédias musicais e peças de tese não pudessem desejar um espectador mais receptivo, já que o estilo e o brilho que eu atribuía a Nova York superavam as expectativas da própria cidade. Mas nunca aceitei nenhum dos convites praticamente anônimos para bailes de debutantes que costumavam aparecer na correspondência de qualquer universitário, talvez porque sentisse que nenhuma realidade estaria à altura da concepção que eu fazia do esplendor de Nova York. Além do mais, aquela que eu chamava insensatamente de “minha garota” era do Meio-Oeste, o que mantinha lá o centro afetivo do mundo, de modo que eu considerava Nova York essencialmente cínica e cruel — exceto por uma noite em que ela iluminou o terraço do Ritz numa breve aparição.
Mais tarde, no entanto, eu a perdera para sempre e queria um mundo masculino, e a visão que tive de Bunny me fez ver Nova York exatamente assim. Uma semana antes, Monsignor Fay me levara ao Lafayette, onde se estendia diante de nós uma fulguração de comida, chamada hors d’oeuvre, que acompanhamos com um clarete tão desafiador quanto a confiante bengala de Bunny — mas afinal de contas tratava-se de um restaurante, e depois teríamos de transpor uma ponte para voltarmos ao interior. A Nova York da dissipação estudantil, de restaurantes como o Bustanoby’s, o Shanley’s e o Jack’s, tinha se tornado um horror, e embora eu tenha voltado a ela, ai de mim, muitas vezes numa névoa de álcool, senti cada volta como uma traição a um idealismo persistente. Minha participação era mais lasciva que licenciosa, e restam poucas lembranças prazerosas daqueles dias. Como disse uma vez Ernest Hemingway, a única finalidade do cabaré é reunir homens descomprometidos e mulheres complacentes. O resto é perda de tempo numa atmosfera viciada.
Naquela noite, porém, no apartamento de Bunny, a vida era mansa e segura, o produto final de uma destilação de tudo que eu aprendera a amar em Princeton. O som agradável de um oboé se misturava aos ruídos urbanos que vinham da rua, penetrando na sala com dificuldade através de enormes barricadas de livros; a única nota dissonante era dada por um homem que rasgava envelopes de convites. Eu tinha encontrado um terceiro símbolo de Nova York e comecei a pensar em alugar um apartamento como aquele e em selecionar amigos com quem dividi-lo.
Improvável — durante os dois anos seguintes, tive tanto controle sobre meu destino quanto um preso sobre o corte de sua roupa. Quando voltei a Nova York, em 1919, minha vida estava tão enrolada que eu não podia nem sonhar com um tranquilo período monástico na Washington Square. O importante era ganhar dinheiro em publicidade, o bastante para alugar um pequeno apartamento no Bronx para duas pessoas. A garota em questão nunca tinha visto Nova York, mas era sensata o suficiente para estar um pouco relutante. E num halo de ansiedade e infelicidade, passei os quatro meses mais vulneráveis de minha vida.
Nova York tinha toda a iridescência do nascimento do mundo. Soldados vindos da guerra desfilaram pela Quinta Avenida, e as garotas eram atraídas instintivamente para leste e norte atrás deles — esta era a maior nação do mundo e havia um clima de gala no ar. Enquanto eu pairava como um fantasma no Salão Vermelho do Plaza numa tarde de sábado, ia a inebriantes festas no entorno da rua 60 Leste, ou bebia com o pessoal de Princeton no bar do Biltmore, era sempre assombrado por minha outra vida — meu quarto ordinário no Bronx, meus centímetros quadrados de metrô, minha obsessão pela carta diária do Alabama — chegaria, e o que diria? —, meus ternos surrados, minha pobreza e o amor. Enquanto meus amigos estavam se dando bem na vida, eu tinha empurrado meu barco precário para a correnteza. A juventude dourada que circulava em volta de Constance Bennett no Club de Vingt, os colegas do clube de Yale-Princeton animados em nossa primeira reunião depois do fim da guerra, o clima das casas de milionários que eu às vezes frequentava — tudo isso era vazio para mim, embora eu admitisse que era um cenário impressionante e lamentasse estar comprometido com outro romance. A mais divertida mesa de almoço ou o cabaré mais onírico — era tudo a mesma coisa. Eu voltava ansiosamente para minha casa na Claremont Avenue — porque poderia haver uma carta esperando diante da porta. Um por um, meus grandes sonhos com Nova York se corromperam. A lembrança do charme do apartamento de Bunny feneceu com todo o resto quando entrevistei uma senhoria desgrenhada no Greenwich Village. Ela disse que eu poderia trazer garotas para o meu quarto, e essa ideia me encheu de desânimo — por que eu ia querer trazer garotas para o meu quarto? Eu tinha uma garota. Perambulava pela cidade, pela rua 127, magoado com sua vitalidade vibrante; ou então comprava ingresso para algum teatro barato na farmácia Gray’s e tentava me perder por algumas horas em minha velha paixão pela Broadway. Eu era um fracasso — medíocre na publicidade e incapaz de me lançar como escritor. Odiando a cidade, bebia até meu último centavo e, caindo de bêbado e choroso, voltava para casa...
... Cidade imprevisível. O que aconteceu depois foi apenas uma entre milhares de histórias de sucesso daqueles dias agitados, mas desempenha um papel em meu próprio filme de Nova York. Quando voltei, seis meses depois, as salas das editoras estavam abertas para mim, agentes imploravam por peças, o cinema ansiava por roteiros. Para minha perplexidade, fui adotado não como um interiorano do Meio-Oeste, nem como observador participante, mas como o arquétipo daquilo que Nova York queria. Essa afirmação demanda certa descrição do que era a metrópole em 1920.
Já existia a cidade branca e alta de hoje, a atividade febricitante do boom, mas havia também uma desarticulação geral. Assim como outros, o colunista F. P. A.2 tomou o pulso da multidão, mas timidamente, como quem observa pela janela. A sociedade e as artes autóctones não se misturavam — Ellen Mackay ainda não se casara com Irving Berlin. Grande parte dos personagens de Peter Arno não teria nenhum significado para os cidadãos de 1920, e, fora a coluna de F. P. A., não existia uma tribuna para a civilidade metropolitana.
Então, por um instante, a ideia de “nova geração” tornou-se uma fusão de muitos elementos da vida de Nova York. Gente de cinquenta anos podia fingir que ainda existia uma nata da sociedade, ou Maxwell Bodenheim podia fingir que existia uma boêmia digna de sua pintura e seu traço — mas a mistura dos elementos brilhantes, alegres e vigorosos começou nessa época, e pela primeira vez apareceu uma sociedade um pouco mais animada que os circunspectos banquetes de Emily Price Post em salões de mogno. Se essa sociedade inventou o coquetel, também desenvolveu o espírito da Park Avenue, e pela primeira vez um europeu culto podia vislumbrar uma viagem a Nova York como algo mais divertido do que uma expedição em busca de ouro no interior da Austrália.
Só por um instante, antes que ficasse demonstrado que eu era incapaz de desempenhar o papel, eu, que sabia sobre Nova York menos que qualquer repórter com seis meses de residência na cidade, e menos sobre sua sociedade do que qualquer rapaz desacompanhado nos bailes do Ritz, fui elevado à posição não só de porta-voz da época, mas de típico produto do momento. Eu, melhor dizendo agora, “nós” não sabíamos exatamente o que Nova York esperava de nós e achamos aquilo muito confuso. Poucos meses depois de embarcar na aventura metropolitana, já mal sabíamos quem éramos e não tínhamos ideia do que éramos. Um mergulho numa fonte pública ou um esbarrão casual com agentes da lei era o bastante para nos levar às colunas de fofocas. Éramos citados com relação a uma vasta quantidade de assuntos sobre os quais nada sabíamos. Na verdade, nossos “contatos” se resumiam a meia dúzia de amigos solteiros da faculdade e uns poucos conhecidos recentes da área literária — lembro de um Natal solitário em que não tínhamos um só amigo na cidade nem uma casa aonde ir. Sem encontrar um núcleo ao qual nos agarrar, nós mesmos nos tornamos um núcleo e aos poucos ajustamos nossas personalidades conturbadas à cena da Nova York contemporânea. Ou melhor, Nova York nos esqueceu e nos deixou ficar.
Este não é um relato das mudanças da cidade, mas das mudanças dos sentimentos deste escritor pela cidade. Da confusão de 1920, lembro de andar na capota de um táxi pela Quinta Avenida deserta numa noite quente de domingo, de um almoço no sereno jardim japonês do Ritz com a melancólica Kay Laurel e George Jean Nathan, de escrever a noite toda repetidamente, de pagar caro por minúsculos apartamentos, e de comprar carros magníficos que enguiçavam toda hora. Tinham aparecido os primeiros bares clandestinos, passear estava fora de moda, o Montmartre era o lugar elegante para dançar e o cabelo louro de Lillian Tashman rodopiava na pista de dança entre universitários embriagados. As peças eram Declassée e Sacred and Profane Love, e no Midnight Frolic você dançava lado a lado com Marion Davies e talvez reconhecesse a animada Mary Hay entre as coristas. Pensávamos que estávamos distantes de tudo aquilo; talvez todo mundo pense que está distante de seu ambiente. Nos sentíamos como duas criancinhas num enorme galpão, iluminado e inexplorado. Reunidos no estúdio de Griffith em Long Island, tremíamos em presença dos rostos familiares do filme O nascimento de uma nação; mais tarde, compreendi que por trás do entretenimento que a cidade despejava sobre a nação não havia mais que um monte de gente perdida e solitária. O mundo dos astros de cinema era como o nosso, na medida em que eles estavam em Nova York, mas não eram de Nova York. Esse mundo tinha pouca noção de si mesmo e nenhum centro: quando conheci Dorothy Gish, tive a sensação de que estávamos os dois no polo Norte e que nevava. Desde então eles encontraram um lar, que não estava destinado a ser Nova York.
Quando nos entediávamos, encarávamos nossa cidade com um capricho à moda de Huysmans. Passávamos uma tarde sozinhos em nosso “apartamento”, comendo sanduíches de azeitona e bebendo um litro de uísque Bushmills que tínhamos ganhado de Zoë Akins, e então saíamos para a cidade enfeitiçada, entrando por portas estranhas em estranhos apartamentos com intermitentes sacolejos em táxis no meio das noites mansas. Pelo menos formávamos um todo com Nova York, levando-a conosco por cada portal. Até hoje entro em muitos apartamentos com a sensação de já ter estado lá antes, ou no de cima, ou no de baixo. Teria sido na noite em que tentei tirar a roupa no Scandals, ou na noite em que (como fiquei sabendo, com assombro, pelos jornais na manhã seguinte) “Fitzgerald esmurra policial até o outro lado do paraíso”? Como ganhar briga não fazia parte das minhas realizações, tentei em vão reconstruir a sequência de eventos que culminou naquele desfecho, no Webster Hall. Finalmente, daquele período, lembro de estar andando de táxi numa tarde entre edifícios altíssimos sob um céu rosa arroxeado; comecei a gritar que tinha tudo o que queria e sabia que nunca mais seria tão feliz.
Foi típico de nossa precária situação em Nova York o fato de que, quando nossa filha estava para nascer, decidimos proceder com segurança e voltamos para St. Paul — parecia inadequado trazer um bebê à luz no meio de todo aquele glamour e daquela solidão. Depois de um ano, porém, estávamos de volta, e começamos a fazer as mesmas coisas outra vez, sem gostar muito delas. Estávamos bastante rodados, embora conservássemos uma inocência quase teatral ao preferir o papel de observados ao de observadores. Mas a inocência não é um fim em si, e à medida que nossa mentalidade amadurecia, contra a nossa vontade, começamos a ver Nova York como um todo e a tentar salvar alguma coisa dela para quando chegassem os seres em que inevitavelmente nos transformaríamos.
Era tarde demais — ou cedo demais. Para nós, a cidade estava indissoluvelmente ligada a divertimentos etílicos, moderados ou fantásticos. Só pudemos nos organizar ao voltar para Long Island, e nem sempre lá. Não tínhamos estímulo para desfrutar a cidade pela metade. Meu primeiro símbolo era agora uma lembrança, pois eu sabia que o triunfo está em nós mesmos; o segundo tinha se transformado em lugar-comum — as duas atrizes que eu cultuava de longe lá pelos idos de 1913 tinham jantado em nossa casa. Mas dava-me certo medo que também o terceiro símbolo tivesse se turvado — não era fácil encontrar a tranquilidade do apartamento de Bunny na cidade sempre acelerada. Bunny tinha se casado e ia ser pai; outros amigos tinham ido para a Europa, e os solteiros frequentavam casas maiores e mais festivas que a nossa. Nessa época, conhecíamos “todo mundo” — ou seja, a maioria das pessoas que Ralph Barton retrataria em seus cartuns numa noite de estreia.
Mas já não éramos importantes. Em 1923, a melindrosa, em cuja conduta se baseara a popularidade de meus primeiros livros, tinha saído de moda — pelo menos no Leste. Decidi impactar a Broadway com uma peça, mas a Broadway mandou seus olheiros a Atlantic City e de saída cancelou a ideia, e assim senti que, naquele momento, a cidade e eu tínhamos pouco a oferecer um ao outro. Eu ia pegar a atmosfera de Long Island que respirara com familiaridade e materializá-la sob céus desconhecidos.
Passaram-se três anos até que víssemos Nova York outra vez. Enquanto o navio deslizava rio acima, a cidade explodia trovejando sobre nós no entardecer — a geleira branca da parte baixa de Nova York mergulhando como os cabos de uma ponte para erguer-se na parte alta da cidade, um milagre de luz e espuma suspenso pelas estrelas. Uma banda começou a tocar no convés, mas diante da majestade da cidade a marcha soava banal e metálica. A partir daquele momento, entendi que Nova York, não importava quantas vezes eu a deixasse, era minha casa.
O ritmo da cidade tinha mudado profundamente. As incertezas de 1920 tinham se afogado num contínuo fragor dourado, e muitos de nossos amigos tinham enriquecido. Mas a agitação da Nova York de 1927 beirava a histeria. As festas eram de arromba — as de Condé Nast, por exemplo, rivalizavam com os lendários bailes da década de 1890; o ritmo era mais acelerado — os convites à dissipação davam exemplo a Paris; os espetáculos eram maiores; os edifícios, mais altos; os costumes, mais lassos; e a bebida, mais barata. Mas todas essas benesses na verdade não proporcionavam muito deleite. Os jovens se desgastavam muito cedo — estavam insensíveis e frágeis aos vinte e um anos e, com exceção de Peter Arno, nenhum deles contribuiu com nada de novo. Talvez Peter Arno e seus colaboradores tenham dito tudo o que havia por dizer sobre os dias do boom de Nova York que não pudesse ser dito por uma orquestra de jazz. Muita gente que não era alcoólatra se embebedava quatro dias por semana, e havia nervos em frangalhos espalhados por toda parte; os grupos permaneciam reunidos por um nervosismo generalizado, e a ressaca tornou-se uma parte do dia tão natural quanto dormir a siesta para os espanhóis. A maior parte dos meus amigos bebia demais — quanto mais sintonizados com a época, mais bebiam. Assim, como o esforço por si só não tinha nenhum valor diante da absoluta permissividade da Nova York daqueles dias, inventou-se um nome pejorativo para ele: uma atividade de sucesso tornou-se uma pilantragem — eu estava na pilantragem literária.
Morávamos a poucas horas de Nova York, e descobri que cada vez que vinha à cidade era pilhado numa complicação de eventos que poucos dias depois me depositavam em estado de exaustão num trem para Delaware. Porções inteiras da cidade tinham crescido de modo insalubre, mas invariavelmente eu encontrava um momento de paz absoluta cruzando o Central Park, no escuro, em direção ao sul, onde as fachadas da rua 59 projetavam suas luzes através das árvores. Ali estava de novo minha cidade perdida, envolvida indiferente em seu mistério e suas promessas. Entretanto, meu afastamento nunca durava muito — da mesma forma que o trabalhador precisa viver no ventre da cidade, eu era compelido a viver em sua mente desordenada.
Como alternativa havia os bares clandestinos — a migração dos bares de luxo, que anunciavam nas publicações de Yale e Princeton, para cervejarias onde o rosto ranzinza do submundo espiava através da boa índole germânica do entretenimento, e depois para lugares estranhos e ainda mais sinistros, onde éramos observados por rapazes com rosto de pedra e nada restava da jovialidade, apenas uma brutalidade que contaminava o novo dia para o qual saíamos. Lembrei-me de 1920, quando choquei um jovem empresário em ascensão sugerindo um coquetel antes do almoço. Em 1929, havia bebida alcoólica em metade dos escritórios do centro e um bar clandestino em metade dos grandes edifícios.
Os bares clandestinos e a Park Avenue tornavam-se cada vez mais de domínio público. Na década anterior, Greenwich Village, Washington Square, Murray Hill e os casarões da Quinta Avenida tinham de certa forma desaparecido, ou se tornado inexpressivos. A cidade estava intumescida, desentranhada, estupidificada com pão e circo, e uma nova expressão — “Ah, é?” — resumia todo o entusiasmo evocado pelo anúncio dos últimos superarranha-céus. Meu barbeiro aposentou-se com o meio milhão ganhado em apostas no mercado, e eu tinha consciência de que os maîtres que me conduziam até minha mesa, ou que não o faziam, estavam muito, muito mais ricos do que eu. Isso não tinha graça — mais uma vez me fartei de Nova York e foi bom me sentir a salvo a bordo de um navio, em cujo bar continuou a festa ininterrupta a caminho da França.
“Quais são as últimas de Nova York?”
“As ações estão subindo. Um bebê matou um bandido.”
“Só isso?”
“Só. Os rádios se esgoelam na rua.”
Eu já chegara a pensar que não havia segundo ato na vida dos americanos, mas certamente haveria um segundo ato aos dias de boom de Nova York. Estávamos em algum lugar do Norte da África quando ouvimos um ruído abafado que ecoou nos cantos mais remotos do deserto.
“O que foi isso?”
“Você ouviu?”
“Não foi nada.”
“Você acha que devíamos voltar e ver?”
“Não. Não foi nada.”
No outono escuro, dois anos depois, vimos Nova York de novo. Passamos por funcionários da alfândega curiosamente corteses e, depois, de cabeça baixa e chapéu na mão, caminhei respeitosamente pela tumba ressonante. Entre as ruínas, uns poucos fantasmas infantis ainda brincavam para manter a farsa de que estavam vivos, porém eram traídos por suas vozes febris e feições frenéticas que revelavam a fragilidade da mascarada. Nos coquetéis, um último resquício oco dos dias de festança, ecoavam os lamentos dos feridos: “Me dê um tiro, pelo amor de Deus, alguém me dê um tiro!”, e os gemidos e queixumes dos moribundos: “Viu que a United States Steel caiu mais três pontos?”. Meu barbeiro voltou a trabalhar em sua loja; mais uma vez os maîtres acompanhavam as pessoas até as mesas, quando havia pessoas a acompanhar. Das ruínas, sozinho e indecifrável como uma esfinge, erguia-se o edifício Empire State e, assim como tinha sido um hábito meu subir ao terraço do Plaza para me despedir da linda cidade, que se estendia até onde a vista podia alcançar, desta vez fui ao último andar da última e mais esplêndida das torres. Foi então que vi que tudo se explicava: eu descobrira o erro fatal da cidade, sua caixa de Pandora. Cheio de empáfia, o nova-iorquino subira só para ver, desolado, o que nunca tinha suspeitado: a cidade não era uma sucessão infinita de cânions, como ele supunha, mas tinha limites — de cima da mais alta das estruturas, ele viu pela primeira vez que ela ia se apagando em direção ao campo por todos os lados, numa imensidão de verde e azul, essa sim sem limites. E com a terrível compreensão de que Nova York afinal era uma cidade, e não um universo, todo o edifício cintilante que ele criara em sua imaginação veio abaixo. Foi esse o presente desavisado de Alfred W. Smith aos cidadãos de Nova York.
Assim eu me despeço da minha cidade perdida. Vista do ferryboat, de manhã cedo, ela já não sugere sucessos fantásticos e eterna juventude. As moças alegres que saracoteiam diante de plateias vazias não me lembram a beleza inefável das garotas de meus sonhos em 1914. E Bunny, girando sobre os calcanhares cheio de si com sua bengala, a caminho de seu retiro num carnaval, aderiu ao comunismo e se preocupa com as injustiças contra os trabalhadores dos moinhos no Sul e os agricultores do Oeste, cujas vozes, quinze anos atrás, nunca teriam atravessado as paredes de seu estúdio.
Tudo está perdido salvo a lembrança, embora eu às vezes me imagine lendo uma edição de 1945 do Daily News: CINQUENTÃO PERDE A CABEÇA EM NOVA YORK
Modelo declara: Fitzgerald enriqueceu à custa de golpes
Abatido por pistoleiro furioso
Então talvez eu esteja destinado a voltar algum dia e encontrar na cidade novas experiências que até agora só vi no papel. Por enquanto, só posso chorar a perda de minha esplêndida miragem. Volte, ó branca e resplandecente, volte!
1 Dick Whittington e seu gato é um conto do folclore inglês sobre um menino pobre do século XIII que se torna um rico comerciante e termina como Lord Mayor de Londres devido à habilidade de seu gato como caçador de ratos. (N. T.)
2 Franklin Pierce Adams (1881-1960). (N. T.)
Primeiro foi o ferryboat saindo lentamente da costa de Jersey ao amanhecer — o momento cristalizou-se como meu primeiro símbolo de Nova York. Cinco anos depois, quando eu tinha quinze anos, saía da escola e ia ao centro da cidade para ver Ina Claire em The Quaker Girl e Gertrude Bryan em Little Boy Blue. Indeciso em meu amor melancólico e sem esperança por ambas, não conseguia escolher entre as duas — então elas se fundiram numa deliciosa identidade, a garota. Ela foi meu segundo símbolo de Nova York. O ferryboat representava o triunfo; a garota, o romance. Com o tempo, eu conquistaria um pouco dos dois, mas houve um terceiro símbolo que perdi em algum lugar, e para sempre.
Encontrei-o numa tarde escura de abril, passados outros cinco anos.
“Oi, Bunny”, gritei. “Bunny!”
Ele não me ouviu — meu táxi ficou para trás e alcançou-o de novo meia quadra adiante. Havia poças escuras de chuva na calçada, e o vi caminhando rápido no meio da multidão, usando uma capa de chuva bege sobre o inevitável terno marrom; notei com espanto que ele carregava uma leve bengala.
“Bunny!”, chamei de novo, e desisti. Eu ainda era universitário de Princeton, enquanto ele tinha se tornado um nova-iorquino. Era sua caminhada vespertina, essa correria com a bengala no meio da chuva que caía, e como faltava uma hora para nosso encontro, pareceu-me uma intromissão ir ter com ele quando estava envolvido com sua vida privada. Entretanto, meu táxi continuou emparelhado com ele, continuei observando e fiquei impressionado. Ele já não era o pequeno e tímido acadêmico da Holder Court — andava com firmeza, absorto em seus pensamentos e olhando para a frente, deixando óbvio que seu novo cenário era de todo suficiente para ele. Eu sabia que ele tinha um apartamento onde morava com três outros homens, já livre de todos os tabus de estudante, mas havia algo mais que o nutria, e tive minha primeira impressão dessa novidade: o espírito metropolitano.
Até aquela época, eu só tinha visto a Nova York que se oferecia à inspeção — era como Dick Whittington,1 chegado do campo e boquiaberto com os ursos amestrados, ou um jovem do Midi deslumbrado com os bulevares de Paris. Eu tinha vindo só para ver o espetáculo, embora os projetistas do edifício Woolworth e do painel luminoso da corrida de bigas, os produtores de comédias musicais e peças de tese não pudessem desejar um espectador mais receptivo, já que o estilo e o brilho que eu atribuía a Nova York superavam as expectativas da própria cidade. Mas nunca aceitei nenhum dos convites praticamente anônimos para bailes de debutantes que costumavam aparecer na correspondência de qualquer universitário, talvez porque sentisse que nenhuma realidade estaria à altura da concepção que eu fazia do esplendor de Nova York. Além do mais, aquela que eu chamava insensatamente de “minha garota” era do Meio-Oeste, o que mantinha lá o centro afetivo do mundo, de modo que eu considerava Nova York essencialmente cínica e cruel — exceto por uma noite em que ela iluminou o terraço do Ritz numa breve aparição.
Mais tarde, no entanto, eu a perdera para sempre e queria um mundo masculino, e a visão que tive de Bunny me fez ver Nova York exatamente assim. Uma semana antes, Monsignor Fay me levara ao Lafayette, onde se estendia diante de nós uma fulguração de comida, chamada hors d’oeuvre, que acompanhamos com um clarete tão desafiador quanto a confiante bengala de Bunny — mas afinal de contas tratava-se de um restaurante, e depois teríamos de transpor uma ponte para voltarmos ao interior. A Nova York da dissipação estudantil, de restaurantes como o Bustanoby’s, o Shanley’s e o Jack’s, tinha se tornado um horror, e embora eu tenha voltado a ela, ai de mim, muitas vezes numa névoa de álcool, senti cada volta como uma traição a um idealismo persistente. Minha participação era mais lasciva que licenciosa, e restam poucas lembranças prazerosas daqueles dias. Como disse uma vez Ernest Hemingway, a única finalidade do cabaré é reunir homens descomprometidos e mulheres complacentes. O resto é perda de tempo numa atmosfera viciada.
Naquela noite, porém, no apartamento de Bunny, a vida era mansa e segura, o produto final de uma destilação de tudo que eu aprendera a amar em Princeton. O som agradável de um oboé se misturava aos ruídos urbanos que vinham da rua, penetrando na sala com dificuldade através de enormes barricadas de livros; a única nota dissonante era dada por um homem que rasgava envelopes de convites. Eu tinha encontrado um terceiro símbolo de Nova York e comecei a pensar em alugar um apartamento como aquele e em selecionar amigos com quem dividi-lo.
Improvável — durante os dois anos seguintes, tive tanto controle sobre meu destino quanto um preso sobre o corte de sua roupa. Quando voltei a Nova York, em 1919, minha vida estava tão enrolada que eu não podia nem sonhar com um tranquilo período monástico na Washington Square. O importante era ganhar dinheiro em publicidade, o bastante para alugar um pequeno apartamento no Bronx para duas pessoas. A garota em questão nunca tinha visto Nova York, mas era sensata o suficiente para estar um pouco relutante. E num halo de ansiedade e infelicidade, passei os quatro meses mais vulneráveis de minha vida.
Nova York tinha toda a iridescência do nascimento do mundo. Soldados vindos da guerra desfilaram pela Quinta Avenida, e as garotas eram atraídas instintivamente para leste e norte atrás deles — esta era a maior nação do mundo e havia um clima de gala no ar. Enquanto eu pairava como um fantasma no Salão Vermelho do Plaza numa tarde de sábado, ia a inebriantes festas no entorno da rua 60 Leste, ou bebia com o pessoal de Princeton no bar do Biltmore, era sempre assombrado por minha outra vida — meu quarto ordinário no Bronx, meus centímetros quadrados de metrô, minha obsessão pela carta diária do Alabama — chegaria, e o que diria? —, meus ternos surrados, minha pobreza e o amor. Enquanto meus amigos estavam se dando bem na vida, eu tinha empurrado meu barco precário para a correnteza. A juventude dourada que circulava em volta de Constance Bennett no Club de Vingt, os colegas do clube de Yale-Princeton animados em nossa primeira reunião depois do fim da guerra, o clima das casas de milionários que eu às vezes frequentava — tudo isso era vazio para mim, embora eu admitisse que era um cenário impressionante e lamentasse estar comprometido com outro romance. A mais divertida mesa de almoço ou o cabaré mais onírico — era tudo a mesma coisa. Eu voltava ansiosamente para minha casa na Claremont Avenue — porque poderia haver uma carta esperando diante da porta. Um por um, meus grandes sonhos com Nova York se corromperam. A lembrança do charme do apartamento de Bunny feneceu com todo o resto quando entrevistei uma senhoria desgrenhada no Greenwich Village. Ela disse que eu poderia trazer garotas para o meu quarto, e essa ideia me encheu de desânimo — por que eu ia querer trazer garotas para o meu quarto? Eu tinha uma garota. Perambulava pela cidade, pela rua 127, magoado com sua vitalidade vibrante; ou então comprava ingresso para algum teatro barato na farmácia Gray’s e tentava me perder por algumas horas em minha velha paixão pela Broadway. Eu era um fracasso — medíocre na publicidade e incapaz de me lançar como escritor. Odiando a cidade, bebia até meu último centavo e, caindo de bêbado e choroso, voltava para casa...
... Cidade imprevisível. O que aconteceu depois foi apenas uma entre milhares de histórias de sucesso daqueles dias agitados, mas desempenha um papel em meu próprio filme de Nova York. Quando voltei, seis meses depois, as salas das editoras estavam abertas para mim, agentes imploravam por peças, o cinema ansiava por roteiros. Para minha perplexidade, fui adotado não como um interiorano do Meio-Oeste, nem como observador participante, mas como o arquétipo daquilo que Nova York queria. Essa afirmação demanda certa descrição do que era a metrópole em 1920.
Já existia a cidade branca e alta de hoje, a atividade febricitante do boom, mas havia também uma desarticulação geral. Assim como outros, o colunista F. P. A.2 tomou o pulso da multidão, mas timidamente, como quem observa pela janela. A sociedade e as artes autóctones não se misturavam — Ellen Mackay ainda não se casara com Irving Berlin. Grande parte dos personagens de Peter Arno não teria nenhum significado para os cidadãos de 1920, e, fora a coluna de F. P. A., não existia uma tribuna para a civilidade metropolitana.
Então, por um instante, a ideia de “nova geração” tornou-se uma fusão de muitos elementos da vida de Nova York. Gente de cinquenta anos podia fingir que ainda existia uma nata da sociedade, ou Maxwell Bodenheim podia fingir que existia uma boêmia digna de sua pintura e seu traço — mas a mistura dos elementos brilhantes, alegres e vigorosos começou nessa época, e pela primeira vez apareceu uma sociedade um pouco mais animada que os circunspectos banquetes de Emily Price Post em salões de mogno. Se essa sociedade inventou o coquetel, também desenvolveu o espírito da Park Avenue, e pela primeira vez um europeu culto podia vislumbrar uma viagem a Nova York como algo mais divertido do que uma expedição em busca de ouro no interior da Austrália.
Só por um instante, antes que ficasse demonstrado que eu era incapaz de desempenhar o papel, eu, que sabia sobre Nova York menos que qualquer repórter com seis meses de residência na cidade, e menos sobre sua sociedade do que qualquer rapaz desacompanhado nos bailes do Ritz, fui elevado à posição não só de porta-voz da época, mas de típico produto do momento. Eu, melhor dizendo agora, “nós” não sabíamos exatamente o que Nova York esperava de nós e achamos aquilo muito confuso. Poucos meses depois de embarcar na aventura metropolitana, já mal sabíamos quem éramos e não tínhamos ideia do que éramos. Um mergulho numa fonte pública ou um esbarrão casual com agentes da lei era o bastante para nos levar às colunas de fofocas. Éramos citados com relação a uma vasta quantidade de assuntos sobre os quais nada sabíamos. Na verdade, nossos “contatos” se resumiam a meia dúzia de amigos solteiros da faculdade e uns poucos conhecidos recentes da área literária — lembro de um Natal solitário em que não tínhamos um só amigo na cidade nem uma casa aonde ir. Sem encontrar um núcleo ao qual nos agarrar, nós mesmos nos tornamos um núcleo e aos poucos ajustamos nossas personalidades conturbadas à cena da Nova York contemporânea. Ou melhor, Nova York nos esqueceu e nos deixou ficar.
Este não é um relato das mudanças da cidade, mas das mudanças dos sentimentos deste escritor pela cidade. Da confusão de 1920, lembro de andar na capota de um táxi pela Quinta Avenida deserta numa noite quente de domingo, de um almoço no sereno jardim japonês do Ritz com a melancólica Kay Laurel e George Jean Nathan, de escrever a noite toda repetidamente, de pagar caro por minúsculos apartamentos, e de comprar carros magníficos que enguiçavam toda hora. Tinham aparecido os primeiros bares clandestinos, passear estava fora de moda, o Montmartre era o lugar elegante para dançar e o cabelo louro de Lillian Tashman rodopiava na pista de dança entre universitários embriagados. As peças eram Declassée e Sacred and Profane Love, e no Midnight Frolic você dançava lado a lado com Marion Davies e talvez reconhecesse a animada Mary Hay entre as coristas. Pensávamos que estávamos distantes de tudo aquilo; talvez todo mundo pense que está distante de seu ambiente. Nos sentíamos como duas criancinhas num enorme galpão, iluminado e inexplorado. Reunidos no estúdio de Griffith em Long Island, tremíamos em presença dos rostos familiares do filme O nascimento de uma nação; mais tarde, compreendi que por trás do entretenimento que a cidade despejava sobre a nação não havia mais que um monte de gente perdida e solitária. O mundo dos astros de cinema era como o nosso, na medida em que eles estavam em Nova York, mas não eram de Nova York. Esse mundo tinha pouca noção de si mesmo e nenhum centro: quando conheci Dorothy Gish, tive a sensação de que estávamos os dois no polo Norte e que nevava. Desde então eles encontraram um lar, que não estava destinado a ser Nova York.
Quando nos entediávamos, encarávamos nossa cidade com um capricho à moda de Huysmans. Passávamos uma tarde sozinhos em nosso “apartamento”, comendo sanduíches de azeitona e bebendo um litro de uísque Bushmills que tínhamos ganhado de Zoë Akins, e então saíamos para a cidade enfeitiçada, entrando por portas estranhas em estranhos apartamentos com intermitentes sacolejos em táxis no meio das noites mansas. Pelo menos formávamos um todo com Nova York, levando-a conosco por cada portal. Até hoje entro em muitos apartamentos com a sensação de já ter estado lá antes, ou no de cima, ou no de baixo. Teria sido na noite em que tentei tirar a roupa no Scandals, ou na noite em que (como fiquei sabendo, com assombro, pelos jornais na manhã seguinte) “Fitzgerald esmurra policial até o outro lado do paraíso”? Como ganhar briga não fazia parte das minhas realizações, tentei em vão reconstruir a sequência de eventos que culminou naquele desfecho, no Webster Hall. Finalmente, daquele período, lembro de estar andando de táxi numa tarde entre edifícios altíssimos sob um céu rosa arroxeado; comecei a gritar que tinha tudo o que queria e sabia que nunca mais seria tão feliz.
Foi típico de nossa precária situação em Nova York o fato de que, quando nossa filha estava para nascer, decidimos proceder com segurança e voltamos para St. Paul — parecia inadequado trazer um bebê à luz no meio de todo aquele glamour e daquela solidão. Depois de um ano, porém, estávamos de volta, e começamos a fazer as mesmas coisas outra vez, sem gostar muito delas. Estávamos bastante rodados, embora conservássemos uma inocência quase teatral ao preferir o papel de observados ao de observadores. Mas a inocência não é um fim em si, e à medida que nossa mentalidade amadurecia, contra a nossa vontade, começamos a ver Nova York como um todo e a tentar salvar alguma coisa dela para quando chegassem os seres em que inevitavelmente nos transformaríamos.
Era tarde demais — ou cedo demais. Para nós, a cidade estava indissoluvelmente ligada a divertimentos etílicos, moderados ou fantásticos. Só pudemos nos organizar ao voltar para Long Island, e nem sempre lá. Não tínhamos estímulo para desfrutar a cidade pela metade. Meu primeiro símbolo era agora uma lembrança, pois eu sabia que o triunfo está em nós mesmos; o segundo tinha se transformado em lugar-comum — as duas atrizes que eu cultuava de longe lá pelos idos de 1913 tinham jantado em nossa casa. Mas dava-me certo medo que também o terceiro símbolo tivesse se turvado — não era fácil encontrar a tranquilidade do apartamento de Bunny na cidade sempre acelerada. Bunny tinha se casado e ia ser pai; outros amigos tinham ido para a Europa, e os solteiros frequentavam casas maiores e mais festivas que a nossa. Nessa época, conhecíamos “todo mundo” — ou seja, a maioria das pessoas que Ralph Barton retrataria em seus cartuns numa noite de estreia.
Mas já não éramos importantes. Em 1923, a melindrosa, em cuja conduta se baseara a popularidade de meus primeiros livros, tinha saído de moda — pelo menos no Leste. Decidi impactar a Broadway com uma peça, mas a Broadway mandou seus olheiros a Atlantic City e de saída cancelou a ideia, e assim senti que, naquele momento, a cidade e eu tínhamos pouco a oferecer um ao outro. Eu ia pegar a atmosfera de Long Island que respirara com familiaridade e materializá-la sob céus desconhecidos.
Passaram-se três anos até que víssemos Nova York outra vez. Enquanto o navio deslizava rio acima, a cidade explodia trovejando sobre nós no entardecer — a geleira branca da parte baixa de Nova York mergulhando como os cabos de uma ponte para erguer-se na parte alta da cidade, um milagre de luz e espuma suspenso pelas estrelas. Uma banda começou a tocar no convés, mas diante da majestade da cidade a marcha soava banal e metálica. A partir daquele momento, entendi que Nova York, não importava quantas vezes eu a deixasse, era minha casa.
O ritmo da cidade tinha mudado profundamente. As incertezas de 1920 tinham se afogado num contínuo fragor dourado, e muitos de nossos amigos tinham enriquecido. Mas a agitação da Nova York de 1927 beirava a histeria. As festas eram de arromba — as de Condé Nast, por exemplo, rivalizavam com os lendários bailes da década de 1890; o ritmo era mais acelerado — os convites à dissipação davam exemplo a Paris; os espetáculos eram maiores; os edifícios, mais altos; os costumes, mais lassos; e a bebida, mais barata. Mas todas essas benesses na verdade não proporcionavam muito deleite. Os jovens se desgastavam muito cedo — estavam insensíveis e frágeis aos vinte e um anos e, com exceção de Peter Arno, nenhum deles contribuiu com nada de novo. Talvez Peter Arno e seus colaboradores tenham dito tudo o que havia por dizer sobre os dias do boom de Nova York que não pudesse ser dito por uma orquestra de jazz. Muita gente que não era alcoólatra se embebedava quatro dias por semana, e havia nervos em frangalhos espalhados por toda parte; os grupos permaneciam reunidos por um nervosismo generalizado, e a ressaca tornou-se uma parte do dia tão natural quanto dormir a siesta para os espanhóis. A maior parte dos meus amigos bebia demais — quanto mais sintonizados com a época, mais bebiam. Assim, como o esforço por si só não tinha nenhum valor diante da absoluta permissividade da Nova York daqueles dias, inventou-se um nome pejorativo para ele: uma atividade de sucesso tornou-se uma pilantragem — eu estava na pilantragem literária.
Morávamos a poucas horas de Nova York, e descobri que cada vez que vinha à cidade era pilhado numa complicação de eventos que poucos dias depois me depositavam em estado de exaustão num trem para Delaware. Porções inteiras da cidade tinham crescido de modo insalubre, mas invariavelmente eu encontrava um momento de paz absoluta cruzando o Central Park, no escuro, em direção ao sul, onde as fachadas da rua 59 projetavam suas luzes através das árvores. Ali estava de novo minha cidade perdida, envolvida indiferente em seu mistério e suas promessas. Entretanto, meu afastamento nunca durava muito — da mesma forma que o trabalhador precisa viver no ventre da cidade, eu era compelido a viver em sua mente desordenada.
Como alternativa havia os bares clandestinos — a migração dos bares de luxo, que anunciavam nas publicações de Yale e Princeton, para cervejarias onde o rosto ranzinza do submundo espiava através da boa índole germânica do entretenimento, e depois para lugares estranhos e ainda mais sinistros, onde éramos observados por rapazes com rosto de pedra e nada restava da jovialidade, apenas uma brutalidade que contaminava o novo dia para o qual saíamos. Lembrei-me de 1920, quando choquei um jovem empresário em ascensão sugerindo um coquetel antes do almoço. Em 1929, havia bebida alcoólica em metade dos escritórios do centro e um bar clandestino em metade dos grandes edifícios.
Os bares clandestinos e a Park Avenue tornavam-se cada vez mais de domínio público. Na década anterior, Greenwich Village, Washington Square, Murray Hill e os casarões da Quinta Avenida tinham de certa forma desaparecido, ou se tornado inexpressivos. A cidade estava intumescida, desentranhada, estupidificada com pão e circo, e uma nova expressão — “Ah, é?” — resumia todo o entusiasmo evocado pelo anúncio dos últimos superarranha-céus. Meu barbeiro aposentou-se com o meio milhão ganhado em apostas no mercado, e eu tinha consciência de que os maîtres que me conduziam até minha mesa, ou que não o faziam, estavam muito, muito mais ricos do que eu. Isso não tinha graça — mais uma vez me fartei de Nova York e foi bom me sentir a salvo a bordo de um navio, em cujo bar continuou a festa ininterrupta a caminho da França.
“Quais são as últimas de Nova York?”
“As ações estão subindo. Um bebê matou um bandido.”
“Só isso?”
“Só. Os rádios se esgoelam na rua.”
Eu já chegara a pensar que não havia segundo ato na vida dos americanos, mas certamente haveria um segundo ato aos dias de boom de Nova York. Estávamos em algum lugar do Norte da África quando ouvimos um ruído abafado que ecoou nos cantos mais remotos do deserto.
“O que foi isso?”
“Você ouviu?”
“Não foi nada.”
“Você acha que devíamos voltar e ver?”
“Não. Não foi nada.”
No outono escuro, dois anos depois, vimos Nova York de novo. Passamos por funcionários da alfândega curiosamente corteses e, depois, de cabeça baixa e chapéu na mão, caminhei respeitosamente pela tumba ressonante. Entre as ruínas, uns poucos fantasmas infantis ainda brincavam para manter a farsa de que estavam vivos, porém eram traídos por suas vozes febris e feições frenéticas que revelavam a fragilidade da mascarada. Nos coquetéis, um último resquício oco dos dias de festança, ecoavam os lamentos dos feridos: “Me dê um tiro, pelo amor de Deus, alguém me dê um tiro!”, e os gemidos e queixumes dos moribundos: “Viu que a United States Steel caiu mais três pontos?”. Meu barbeiro voltou a trabalhar em sua loja; mais uma vez os maîtres acompanhavam as pessoas até as mesas, quando havia pessoas a acompanhar. Das ruínas, sozinho e indecifrável como uma esfinge, erguia-se o edifício Empire State e, assim como tinha sido um hábito meu subir ao terraço do Plaza para me despedir da linda cidade, que se estendia até onde a vista podia alcançar, desta vez fui ao último andar da última e mais esplêndida das torres. Foi então que vi que tudo se explicava: eu descobrira o erro fatal da cidade, sua caixa de Pandora. Cheio de empáfia, o nova-iorquino subira só para ver, desolado, o que nunca tinha suspeitado: a cidade não era uma sucessão infinita de cânions, como ele supunha, mas tinha limites — de cima da mais alta das estruturas, ele viu pela primeira vez que ela ia se apagando em direção ao campo por todos os lados, numa imensidão de verde e azul, essa sim sem limites. E com a terrível compreensão de que Nova York afinal era uma cidade, e não um universo, todo o edifício cintilante que ele criara em sua imaginação veio abaixo. Foi esse o presente desavisado de Alfred W. Smith aos cidadãos de Nova York.
Assim eu me despeço da minha cidade perdida. Vista do ferryboat, de manhã cedo, ela já não sugere sucessos fantásticos e eterna juventude. As moças alegres que saracoteiam diante de plateias vazias não me lembram a beleza inefável das garotas de meus sonhos em 1914. E Bunny, girando sobre os calcanhares cheio de si com sua bengala, a caminho de seu retiro num carnaval, aderiu ao comunismo e se preocupa com as injustiças contra os trabalhadores dos moinhos no Sul e os agricultores do Oeste, cujas vozes, quinze anos atrás, nunca teriam atravessado as paredes de seu estúdio.
Tudo está perdido salvo a lembrança, embora eu às vezes me imagine lendo uma edição de 1945 do Daily News: CINQUENTÃO PERDE A CABEÇA EM NOVA YORK
Modelo declara: Fitzgerald enriqueceu à custa de golpes
Abatido por pistoleiro furioso
Então talvez eu esteja destinado a voltar algum dia e encontrar na cidade novas experiências que até agora só vi no papel. Por enquanto, só posso chorar a perda de minha esplêndida miragem. Volte, ó branca e resplandecente, volte!
1 Dick Whittington e seu gato é um conto do folclore inglês sobre um menino pobre do século XIII que se torna um rico comerciante e termina como Lord Mayor de Londres devido à habilidade de seu gato como caçador de ratos. (N. T.)
2 Franklin Pierce Adams (1881-1960). (N. T.)
Primeiro foi o ferryboat saindo lentamente da costa de Jersey ao amanhecer — o momento cristalizou-se como meu primeiro símbolo de Nova York. Cinco anos depois, quando eu tinha quinze anos, saía da escola e ia ao centro da cidade para ver Ina Claire em The Quaker Girl e Gertrude Bryan em Little Boy Blue. Indeciso em meu amor melancólico e sem esperança por ambas, não conseguia escolher entre as duas — então elas se fundiram numa deliciosa identidade, a garota. Ela foi meu segundo símbolo de Nova York. O ferryboat representava o triunfo; a garota, o romance. Com o tempo, eu conquistaria um pouco dos dois, mas houve um terceiro símbolo que perdi em algum lugar, e para sempre.
Encontrei-o numa tarde escura de abril, passados outros cinco anos.
“Oi, Bunny”, gritei. “Bunny!”
Ele não me ouviu — meu táxi ficou para trás e alcançou-o de novo meia quadra adiante. Havia poças escuras de chuva na calçada, e o vi caminhando rápido no meio da multidão, usando uma capa de chuva bege sobre o inevitável terno marrom; notei com espanto que ele carregava uma leve bengala.
“Bunny!”, chamei de novo, e desisti. Eu ainda era universitário de Princeton, enquanto ele tinha se tornado um nova-iorquino. Era sua caminhada vespertina, essa correria com a bengala no meio da chuva que caía, e como faltava uma hora para nosso encontro, pareceu-me uma intromissão ir ter com ele quando estava envolvido com sua vida privada. Entretanto, meu táxi continuou emparelhado com ele, continuei observando e fiquei impressionado. Ele já não era o pequeno e tímido acadêmico da Holder Court — andava com firmeza, absorto em seus pensamentos e olhando para a frente, deixando óbvio que seu novo cenário era de todo suficiente para ele. Eu sabia que ele tinha um apartamento onde morava com três outros homens, já livre de todos os tabus de estudante, mas havia algo mais que o nutria, e tive minha primeira impressão dessa novidade: o espírito metropolitano.
Até aquela época, eu só tinha visto a Nova York que se oferecia à inspeção — era como Dick Whittington,1 chegado do campo e boquiaberto com os ursos amestrados, ou um jovem do Midi deslumbrado com os bulevares de Paris. Eu tinha vindo só para ver o espetáculo, embora os projetistas do edifício Woolworth e do painel luminoso da corrida de bigas, os produtores de comédias musicais e peças de tese não pudessem desejar um espectador mais receptivo, já que o estilo e o brilho que eu atribuía a Nova York superavam as expectativas da própria cidade. Mas nunca aceitei nenhum dos convites praticamente anônimos para bailes de debutantes que costumavam aparecer na correspondência de qualquer universitário, talvez porque sentisse que nenhuma realidade estaria à altura da concepção que eu fazia do esplendor de Nova York. Além do mais, aquela que eu chamava insensatamente de “minha garota” era do Meio-Oeste, o que mantinha lá o centro afetivo do mundo, de modo que eu considerava Nova York essencialmente cínica e cruel — exceto por uma noite em que ela iluminou o terraço do Ritz numa breve aparição.
Mais tarde, no entanto, eu a perdera para sempre e queria um mundo masculino, e a visão que tive de Bunny me fez ver Nova York exatamente assim. Uma semana antes, Monsignor Fay me levara ao Lafayette, onde se estendia diante de nós uma fulguração de comida, chamada hors d’oeuvre, que acompanhamos com um clarete tão desafiador quanto a confiante bengala de Bunny — mas afinal de contas tratava-se de um restaurante, e depois teríamos de transpor uma ponte para voltarmos ao interior. A Nova York da dissipação estudantil, de restaurantes como o Bustanoby’s, o Shanley’s e o Jack’s, tinha se tornado um horror, e embora eu tenha voltado a ela, ai de mim, muitas vezes numa névoa de álcool, senti cada volta como uma traição a um idealismo persistente. Minha participação era mais lasciva que licenciosa, e restam poucas lembranças prazerosas daqueles dias. Como disse uma vez Ernest Hemingway, a única finalidade do cabaré é reunir homens descomprometidos e mulheres complacentes. O resto é perda de tempo numa atmosfera viciada.
Naquela noite, porém, no apartamento de Bunny, a vida era mansa e segura, o produto final de uma destilação de tudo que eu aprendera a amar em Princeton. O som agradável de um oboé se misturava aos ruídos urbanos que vinham da rua, penetrando na sala com dificuldade através de enormes barricadas de livros; a única nota dissonante era dada por um homem que rasgava envelopes de convites. Eu tinha encontrado um terceiro símbolo de Nova York e comecei a pensar em alugar um apartamento como aquele e em selecionar amigos com quem dividi-lo.
Improvável — durante os dois anos seguintes, tive tanto controle sobre meu destino quanto um preso sobre o corte de sua roupa. Quando voltei a Nova York, em 1919, minha vida estava tão enrolada que eu não podia nem sonhar com um tranquilo período monástico na Washington Square. O importante era ganhar dinheiro em publicidade, o bastante para alugar um pequeno apartamento no Bronx para duas pessoas. A garota em questão nunca tinha visto Nova York, mas era sensata o suficiente para estar um pouco relutante. E num halo de ansiedade e infelicidade, passei os quatro meses mais vulneráveis de minha vida.
Nova York tinha toda a iridescência do nascimento do mundo. Soldados vindos da guerra desfilaram pela Quinta Avenida, e as garotas eram atraídas instintivamente para leste e norte atrás deles — esta era a maior nação do mundo e havia um clima de gala no ar. Enquanto eu pairava como um fantasma no Salão Vermelho do Plaza numa tarde de sábado, ia a inebriantes festas no entorno da rua 60 Leste, ou bebia com o pessoal de Princeton no bar do Biltmore, era sempre assombrado por minha outra vida — meu quarto ordinário no Bronx, meus centímetros quadrados de metrô, minha obsessão pela carta diária do Alabama — chegaria, e o que diria? —, meus ternos surrados, minha pobreza e o amor. Enquanto meus amigos estavam se dando bem na vida, eu tinha empurrado meu barco precário para a correnteza. A juventude dourada que circulava em volta de Constance Bennett no Club de Vingt, os colegas do clube de Yale-Princeton animados em nossa primeira reunião depois do fim da guerra, o clima das casas de milionários que eu às vezes frequentava — tudo isso era vazio para mim, embora eu admitisse que era um cenário impressionante e lamentasse estar comprometido com outro romance. A mais divertida mesa de almoço ou o cabaré mais onírico — era tudo a mesma coisa. Eu voltava ansiosamente para minha casa na Claremont Avenue — porque poderia haver uma carta esperando diante da porta. Um por um, meus grandes sonhos com Nova York se corromperam. A lembrança do charme do apartamento de Bunny feneceu com todo o resto quando entrevistei uma senhoria desgrenhada no Greenwich Village. Ela disse que eu poderia trazer garotas para o meu quarto, e essa ideia me encheu de desânimo — por que eu ia querer trazer garotas para o meu quarto? Eu tinha uma garota. Perambulava pela cidade, pela rua 127, magoado com sua vitalidade vibrante; ou então comprava ingresso para algum teatro barato na farmácia Gray’s e tentava me perder por algumas horas em minha velha paixão pela Broadway. Eu era um fracasso — medíocre na publicidade e incapaz de me lançar como escritor. Odiando a cidade, bebia até meu último centavo e, caindo de bêbado e choroso, voltava para casa...
... Cidade imprevisível. O que aconteceu depois foi apenas uma entre milhares de histórias de sucesso daqueles dias agitados, mas desempenha um papel em meu próprio filme de Nova York. Quando voltei, seis meses depois, as salas das editoras estavam abertas para mim, agentes imploravam por peças, o cinema ansiava por roteiros. Para minha perplexidade, fui adotado não como um interiorano do Meio-Oeste, nem como observador participante, mas como o arquétipo daquilo que Nova York queria. Essa afirmação demanda certa descrição do que era a metrópole em 1920.
Já existia a cidade branca e alta de hoje, a atividade febricitante do boom, mas havia também uma desarticulação geral. Assim como outros, o colunista F. P. A.2 tomou o pulso da multidão, mas timidamente, como quem observa pela janela. A sociedade e as artes autóctones não se misturavam — Ellen Mackay ainda não se casara com Irving Berlin. Grande parte dos personagens de Peter Arno não teria nenhum significado para os cidadãos de 1920, e, fora a coluna de F. P. A., não existia uma tribuna para a civilidade metropolitana.
Então, por um instante, a ideia de “nova geração” tornou-se uma fusão de muitos elementos da vida de Nova York. Gente de cinquenta anos podia fingir que ainda existia uma nata da sociedade, ou Maxwell Bodenheim podia fingir que existia uma boêmia digna de sua pintura e seu traço — mas a mistura dos elementos brilhantes, alegres e vigorosos começou nessa época, e pela primeira vez apareceu uma sociedade um pouco mais animada que os circunspectos banquetes de Emily Price Post em salões de mogno. Se essa sociedade inventou o coquetel, também desenvolveu o espírito da Park Avenue, e pela primeira vez um europeu culto podia vislumbrar uma viagem a Nova York como algo mais divertido do que uma expedição em busca de ouro no interior da Austrália.
Só por um instante, antes que ficasse demonstrado que eu era incapaz de desempenhar o papel, eu, que sabia sobre Nova York menos que qualquer repórter com seis meses de residência na cidade, e menos sobre sua sociedade do que qualquer rapaz desacompanhado nos bailes do Ritz, fui elevado à posição não só de porta-voz da época, mas de típico produto do momento. Eu, melhor dizendo agora, “nós” não sabíamos exatamente o que Nova York esperava de nós e achamos aquilo muito confuso. Poucos meses depois de embarcar na aventura metropolitana, já mal sabíamos quem éramos e não tínhamos ideia do que éramos. Um mergulho numa fonte pública ou um esbarrão casual com agentes da lei era o bastante para nos levar às colunas de fofocas. Éramos citados com relação a uma vasta quantidade de assuntos sobre os quais nada sabíamos. Na verdade, nossos “contatos” se resumiam a meia dúzia de amigos solteiros da faculdade e uns poucos conhecidos recentes da área literária — lembro de um Natal solitário em que não tínhamos um só amigo na cidade nem uma casa aonde ir. Sem encontrar um núcleo ao qual nos agarrar, nós mesmos nos tornamos um núcleo e aos poucos ajustamos nossas personalidades conturbadas à cena da Nova York contemporânea. Ou melhor, Nova York nos esqueceu e nos deixou ficar.
Este não é um relato das mudanças da cidade, mas das mudanças dos sentimentos deste escritor pela cidade. Da confusão de 1920, lembro de andar na capota de um táxi pela Quinta Avenida deserta numa noite quente de domingo, de um almoço no sereno jardim japonês do Ritz com a melancólica Kay Laurel e George Jean Nathan, de escrever a noite toda repetidamente, de pagar caro por minúsculos apartamentos, e de comprar carros magníficos que enguiçavam toda hora. Tinham aparecido os primeiros bares clandestinos, passear estava fora de moda, o Montmartre era o lugar elegante para dançar e o cabelo louro de Lillian Tashman rodopiava na pista de dança entre universitários embriagados. As peças eram Declassée e Sacred and Profane Love, e no Midnight Frolic você dançava lado a lado com Marion Davies e talvez reconhecesse a animada Mary Hay entre as coristas. Pensávamos que estávamos distantes de tudo aquilo; talvez todo mundo pense que está distante de seu ambiente. Nos sentíamos como duas criancinhas num enorme galpão, iluminado e inexplorado. Reunidos no estúdio de Griffith em Long Island, tremíamos em presença dos rostos familiares do filme O nascimento de uma nação; mais tarde, compreendi que por trás do entretenimento que a cidade despejava sobre a nação não havia mais que um monte de gente perdida e solitária. O mundo dos astros de cinema era como o nosso, na medida em que eles estavam em Nova York, mas não eram de Nova York. Esse mundo tinha pouca noção de si mesmo e nenhum centro: quando conheci Dorothy Gish, tive a sensação de que estávamos os dois no polo Norte e que nevava. Desde então eles encontraram um lar, que não estava destinado a ser Nova York.
Quando nos entediávamos, encarávamos nossa cidade com um capricho à moda de Huysmans. Passávamos uma tarde sozinhos em nosso “apartamento”, comendo sanduíches de azeitona e bebendo um litro de uísque Bushmills que tínhamos ganhado de Zoë Akins, e então saíamos para a cidade enfeitiçada, entrando por portas estranhas em estranhos apartamentos com intermitentes sacolejos em táxis no meio das noites mansas. Pelo menos formávamos um todo com Nova York, levando-a conosco por cada portal. Até hoje entro em muitos apartamentos com a sensação de já ter estado lá antes, ou no de cima, ou no de baixo. Teria sido na noite em que tentei tirar a roupa no Scandals, ou na noite em que (como fiquei sabendo, com assombro, pelos jornais na manhã seguinte) “Fitzgerald esmurra policial até o outro lado do paraíso”? Como ganhar briga não fazia parte das minhas realizações, tentei em vão reconstruir a sequência de eventos que culminou naquele desfecho, no Webster Hall. Finalmente, daquele período, lembro de estar andando de táxi numa tarde entre edifícios altíssimos sob um céu rosa arroxeado; comecei a gritar que tinha tudo o que queria e sabia que nunca mais seria tão feliz.
Foi típico de nossa precária situação em Nova York o fato de que, quando nossa filha estava para nascer, decidimos proceder com segurança e voltamos para St. Paul — parecia inadequado trazer um bebê à luz no meio de todo aquele glamour e daquela solidão. Depois de um ano, porém, estávamos de volta, e começamos a fazer as mesmas coisas outra vez, sem gostar muito delas. Estávamos bastante rodados, embora conservássemos uma inocência quase teatral ao preferir o papel de observados ao de observadores. Mas a inocência não é um fim em si, e à medida que nossa mentalidade amadurecia, contra a nossa vontade, começamos a ver Nova York como um todo e a tentar salvar alguma coisa dela para quando chegassem os seres em que inevitavelmente nos transformaríamos.
Era tarde demais — ou cedo demais. Para nós, a cidade estava indissoluvelmente ligada a divertimentos etílicos, moderados ou fantásticos. Só pudemos nos organizar ao voltar para Long Island, e nem sempre lá. Não tínhamos estímulo para desfrutar a cidade pela metade. Meu primeiro símbolo era agora uma lembrança, pois eu sabia que o triunfo está em nós mesmos; o segundo tinha se transformado em lugar-comum — as duas atrizes que eu cultuava de longe lá pelos idos de 1913 tinham jantado em nossa casa. Mas dava-me certo medo que também o terceiro símbolo tivesse se turvado — não era fácil encontrar a tranquilidade do apartamento de Bunny na cidade sempre acelerada. Bunny tinha se casado e ia ser pai; outros amigos tinham ido para a Europa, e os solteiros frequentavam casas maiores e mais festivas que a nossa. Nessa época, conhecíamos “todo mundo” — ou seja, a maioria das pessoas que Ralph Barton retrataria em seus cartuns numa noite de estreia.
Mas já não éramos importantes. Em 1923, a melindrosa, em cuja conduta se baseara a popularidade de meus primeiros livros, tinha saído de moda — pelo menos no Leste. Decidi impactar a Broadway com uma peça, mas a Broadway mandou seus olheiros a Atlantic City e de saída cancelou a ideia, e assim senti que, naquele momento, a cidade e eu tínhamos pouco a oferecer um ao outro. Eu ia pegar a atmosfera de Long Island que respirara com familiaridade e materializá-la sob céus desconhecidos.
Passaram-se três anos até que víssemos Nova York outra vez. Enquanto o navio deslizava rio acima, a cidade explodia trovejando sobre nós no entardecer — a geleira branca da parte baixa de Nova York mergulhando como os cabos de uma ponte para erguer-se na parte alta da cidade, um milagre de luz e espuma suspenso pelas estrelas. Uma banda começou a tocar no convés, mas diante da majestade da cidade a marcha soava banal e metálica. A partir daquele momento, entendi que Nova York, não importava quantas vezes eu a deixasse, era minha casa.
O ritmo da cidade tinha mudado profundamente. As incertezas de 1920 tinham se afogado num contínuo fragor dourado, e muitos de nossos amigos tinham enriquecido. Mas a agitação da Nova York de 1927 beirava a histeria. As festas eram de arromba — as de Condé Nast, por exemplo, rivalizavam com os lendários bailes da década de 1890; o ritmo era mais acelerado — os convites à dissipação davam exemplo a Paris; os espetáculos eram maiores; os edifícios, mais altos; os costumes, mais lassos; e a bebida, mais barata. Mas todas essas benesses na verdade não proporcionavam muito deleite. Os jovens se desgastavam muito cedo — estavam insensíveis e frágeis aos vinte e um anos e, com exceção de Peter Arno, nenhum deles contribuiu com nada de novo. Talvez Peter Arno e seus colaboradores tenham dito tudo o que havia por dizer sobre os dias do boom de Nova York que não pudesse ser dito por uma orquestra de jazz. Muita gente que não era alcoólatra se embebedava quatro dias por semana, e havia nervos em frangalhos espalhados por toda parte; os grupos permaneciam reunidos por um nervosismo generalizado, e a ressaca tornou-se uma parte do dia tão natural quanto dormir a siesta para os espanhóis. A maior parte dos meus amigos bebia demais — quanto mais sintonizados com a época, mais bebiam. Assim, como o esforço por si só não tinha nenhum valor diante da absoluta permissividade da Nova York daqueles dias, inventou-se um nome pejorativo para ele: uma atividade de sucesso tornou-se uma pilantragem — eu estava na pilantragem literária.
Morávamos a poucas horas de Nova York, e descobri que cada vez que vinha à cidade era pilhado numa complicação de eventos que poucos dias depois me depositavam em estado de exaustão num trem para Delaware. Porções inteiras da cidade tinham crescido de modo insalubre, mas invariavelmente eu encontrava um momento de paz absoluta cruzando o Central Park, no escuro, em direção ao sul, onde as fachadas da rua 59 projetavam suas luzes através das árvores. Ali estava de novo minha cidade perdida, envolvida indiferente em seu mistério e suas promessas. Entretanto, meu afastamento nunca durava muito — da mesma forma que o trabalhador precisa viver no ventre da cidade, eu era compelido a viver em sua mente desordenada.
Como alternativa havia os bares clandestinos — a migração dos bares de luxo, que anunciavam nas publicações de Yale e Princeton, para cervejarias onde o rosto ranzinza do submundo espiava através da boa índole germânica do entretenimento, e depois para lugares estranhos e ainda mais sinistros, onde éramos observados por rapazes com rosto de pedra e nada restava da jovialidade, apenas uma brutalidade que contaminava o novo dia para o qual saíamos. Lembrei-me de 1920, quando choquei um jovem empresário em ascensão sugerindo um coquetel antes do almoço. Em 1929, havia bebida alcoólica em metade dos escritórios do centro e um bar clandestino em metade dos grandes edifícios.
Os bares clandestinos e a Park Avenue tornavam-se cada vez mais de domínio público. Na década anterior, Greenwich Village, Washington Square, Murray Hill e os casarões da Quinta Avenida tinham de certa forma desaparecido, ou se tornado inexpressivos. A cidade estava intumescida, desentranhada, estupidificada com pão e circo, e uma nova expressão — “Ah, é?” — resumia todo o entusiasmo evocado pelo anúncio dos últimos superarranha-céus. Meu barbeiro aposentou-se com o meio milhão ganhado em apostas no mercado, e eu tinha consciência de que os maîtres que me conduziam até minha mesa, ou que não o faziam, estavam muito, muito mais ricos do que eu. Isso não tinha graça — mais uma vez me fartei de Nova York e foi bom me sentir a salvo a bordo de um navio, em cujo bar continuou a festa ininterrupta a caminho da França.
“Quais são as últimas de Nova York?”
“As ações estão subindo. Um bebê matou um bandido.”
“Só isso?”
“Só. Os rádios se esgoelam na rua.”
Eu já chegara a pensar que não havia segundo ato na vida dos americanos, mas certamente haveria um segundo ato aos dias de boom de Nova York. Estávamos em algum lugar do Norte da África quando ouvimos um ruído abafado que ecoou nos cantos mais remotos do deserto.
“O que foi isso?”
“Você ouviu?”
“Não foi nada.”
“Você acha que devíamos voltar e ver?”
“Não. Não foi nada.”
No outono escuro, dois anos depois, vimos Nova York de novo. Passamos por funcionários da alfândega curiosamente corteses e, depois, de cabeça baixa e chapéu na mão, caminhei respeitosamente pela tumba ressonante. Entre as ruínas, uns poucos fantasmas infantis ainda brincavam para manter a farsa de que estavam vivos, porém eram traídos por suas vozes febris e feições frenéticas que revelavam a fragilidade da mascarada. Nos coquetéis, um último resquício oco dos dias de festança, ecoavam os lamentos dos feridos: “Me dê um tiro, pelo amor de Deus, alguém me dê um tiro!”, e os gemidos e queixumes dos moribundos: “Viu que a United States Steel caiu mais três pontos?”. Meu barbeiro voltou a trabalhar em sua loja; mais uma vez os maîtres acompanhavam as pessoas até as mesas, quando havia pessoas a acompanhar. Das ruínas, sozinho e indecifrável como uma esfinge, erguia-se o edifício Empire State e, assim como tinha sido um hábito meu subir ao terraço do Plaza para me despedir da linda cidade, que se estendia até onde a vista podia alcançar, desta vez fui ao último andar da última e mais esplêndida das torres. Foi então que vi que tudo se explicava: eu descobrira o erro fatal da cidade, sua caixa de Pandora. Cheio de empáfia, o nova-iorquino subira só para ver, desolado, o que nunca tinha suspeitado: a cidade não era uma sucessão infinita de cânions, como ele supunha, mas tinha limites — de cima da mais alta das estruturas, ele viu pela primeira vez que ela ia se apagando em direção ao campo por todos os lados, numa imensidão de verde e azul, essa sim sem limites. E com a terrível compreensão de que Nova York afinal era uma cidade, e não um universo, todo o edifício cintilante que ele criara em sua imaginação veio abaixo. Foi esse o presente desavisado de Alfred W. Smith aos cidadãos de Nova York.
Assim eu me despeço da minha cidade perdida. Vista do ferryboat, de manhã cedo, ela já não sugere sucessos fantásticos e eterna juventude. As moças alegres que saracoteiam diante de plateias vazias não me lembram a beleza inefável das garotas de meus sonhos em 1914. E Bunny, girando sobre os calcanhares cheio de si com sua bengala, a caminho de seu retiro num carnaval, aderiu ao comunismo e se preocupa com as injustiças contra os trabalhadores dos moinhos no Sul e os agricultores do Oeste, cujas vozes, quinze anos atrás, nunca teriam atravessado as paredes de seu estúdio.
Tudo está perdido salvo a lembrança, embora eu às vezes me imagine lendo uma edição de 1945 do Daily News: CINQUENTÃO PERDE A CABEÇA EM NOVA YORK
Modelo declara: Fitzgerald enriqueceu à custa de golpes
Abatido por pistoleiro furioso
Então talvez eu esteja destinado a voltar algum dia e encontrar na cidade novas experiências que até agora só vi no papel. Por enquanto, só posso chorar a perda de minha esplêndida miragem. Volte, ó branca e resplandecente, volte!
1 Dick Whittington e seu gato é um conto do folclore inglês sobre um menino pobre do século XIII que se torna um rico comerciante e termina como Lord Mayor de Londres devido à habilidade de seu gato como caçador de ratos. (N. T.)
2 Franklin Pierce Adams (1881-1960). (N. T.)
Primeiro foi o ferryboat saindo lentamente da costa de Jersey ao amanhecer — o momento cristalizou-se como meu primeiro símbolo de Nova York. Cinco anos depois, quando eu tinha quinze anos, saía da escola e ia ao centro da cidade para ver Ina Claire em The Quaker Girl e Gertrude Bryan em Little Boy Blue. Indeciso em meu amor melancólico e sem esperança por ambas, não conseguia escolher entre as duas — então elas se fundiram numa deliciosa identidade, a garota. Ela foi meu segundo símbolo de Nova York. O ferryboat representava o triunfo; a garota, o romance. Com o tempo, eu conquistaria um pouco dos dois, mas houve um terceiro símbolo que perdi em algum lugar, e para sempre.
Encontrei-o numa tarde escura de abril, passados outros cinco anos.
“Oi, Bunny”, gritei. “Bunny!”
Ele não me ouviu — meu táxi ficou para trás e alcançou-o de novo meia quadra adiante. Havia poças escuras de chuva na calçada, e o vi caminhando rápido no meio da multidão, usando uma capa de chuva bege sobre o inevitável terno marrom; notei com espanto que ele carregava uma leve bengala.
“Bunny!”, chamei de novo, e desisti. Eu ainda era universitário de Princeton, enquanto ele tinha se tornado um nova-iorquino. Era sua caminhada vespertina, essa correria com a bengala no meio da chuva que caía, e como faltava uma hora para nosso encontro, pareceu-me uma intromissão ir ter com ele quando estava envolvido com sua vida privada. Entretanto, meu táxi continuou emparelhado com ele, continuei observando e fiquei impressionado. Ele já não era o pequeno e tímido acadêmico da Holder Court — andava com firmeza, absorto em seus pensamentos e olhando para a frente, deixando óbvio que seu novo cenário era de todo suficiente para ele. Eu sabia que ele tinha um apartamento onde morava com três outros homens, já livre de todos os tabus de estudante, mas havia algo mais que o nutria, e tive minha primeira impressão dessa novidade: o espírito metropolitano.
Até aquela época, eu só tinha visto a Nova York que se oferecia à inspeção — era como Dick Whittington,1 chegado do campo e boquiaberto com os ursos amestrados, ou um jovem do Midi deslumbrado com os bulevares de Paris. Eu tinha vindo só para ver o espetáculo, embora os projetistas do edifício Woolworth e do painel luminoso da corrida de bigas, os produtores de comédias musicais e peças de tese não pudessem desejar um espectador mais receptivo, já que o estilo e o brilho que eu atribuía a Nova York superavam as expectativas da própria cidade. Mas nunca aceitei nenhum dos convites praticamente anônimos para bailes de debutantes que costumavam aparecer na correspondência de qualquer universitário, talvez porque sentisse que nenhuma realidade estaria à altura da concepção que eu fazia do esplendor de Nova York. Além do mais, aquela que eu chamava insensatamente de “minha garota” era do Meio-Oeste, o que mantinha lá o centro afetivo do mundo, de modo que eu considerava Nova York essencialmente cínica e cruel — exceto por uma noite em que ela iluminou o terraço do Ritz numa breve aparição.
Mais tarde, no entanto, eu a perdera para sempre e queria um mundo masculino, e a visão que tive de Bunny me fez ver Nova York exatamente assim. Uma semana antes, Monsignor Fay me levara ao Lafayette, onde se estendia diante de nós uma fulguração de comida, chamada hors d’oeuvre, que acompanhamos com um clarete tão desafiador quanto a confiante bengala de Bunny — mas afinal de contas tratava-se de um restaurante, e depois teríamos de transpor uma ponte para voltarmos ao interior. A Nova York da dissipação estudantil, de restaurantes como o Bustanoby’s, o Shanley’s e o Jack’s, tinha se tornado um horror, e embora eu tenha voltado a ela, ai de mim, muitas vezes numa névoa de álcool, senti cada volta como uma traição a um idealismo persistente. Minha participação era mais lasciva que licenciosa, e restam poucas lembranças prazerosas daqueles dias. Como disse uma vez Ernest Hemingway, a única finalidade do cabaré é reunir homens descomprometidos e mulheres complacentes. O resto é perda de tempo numa atmosfera viciada.
Naquela noite, porém, no apartamento de Bunny, a vida era mansa e segura, o produto final de uma destilação de tudo que eu aprendera a amar em Princeton. O som agradável de um oboé se misturava aos ruídos urbanos que vinham da rua, penetrando na sala com dificuldade através de enormes barricadas de livros; a única nota dissonante era dada por um homem que rasgava envelopes de convites. Eu tinha encontrado um terceiro símbolo de Nova York e comecei a pensar em alugar um apartamento como aquele e em selecionar amigos com quem dividi-lo.
Improvável — durante os dois anos seguintes, tive tanto controle sobre meu destino quanto um preso sobre o corte de sua roupa. Quando voltei a Nova York, em 1919, minha vida estava tão enrolada que eu não podia nem sonhar com um tranquilo período monástico na Washington Square. O importante era ganhar dinheiro em publicidade, o bastante para alugar um pequeno apartamento no Bronx para duas pessoas. A garota em questão nunca tinha visto Nova York, mas era sensata o suficiente para estar um pouco relutante. E num halo de ansiedade e infelicidade, passei os quatro meses mais vulneráveis de minha vida.
Nova York tinha toda a iridescência do nascimento do mundo. Soldados vindos da guerra desfilaram pela Quinta Avenida, e as garotas eram atraídas instintivamente para leste e norte atrás deles — esta era a maior nação do mundo e havia um clima de gala no ar. Enquanto eu pairava como um fantasma no Salão Vermelho do Plaza numa tarde de sábado, ia a inebriantes festas no entorno da rua 60 Leste, ou bebia com o pessoal de Princeton no bar do Biltmore, era sempre assombrado por minha outra vida — meu quarto ordinário no Bronx, meus centímetros quadrados de metrô, minha obsessão pela carta diária do Alabama — chegaria, e o que diria? —, meus ternos surrados, minha pobreza e o amor. Enquanto meus amigos estavam se dando bem na vida, eu tinha empurrado meu barco precário para a correnteza. A juventude dourada que circulava em volta de Constance Bennett no Club de Vingt, os colegas do clube de Yale-Princeton animados em nossa primeira reunião depois do fim da guerra, o clima das casas de milionários que eu às vezes frequentava — tudo isso era vazio para mim, embora eu admitisse que era um cenário impressionante e lamentasse estar comprometido com outro romance. A mais divertida mesa de almoço ou o cabaré mais onírico — era tudo a mesma coisa. Eu voltava ansiosamente para minha casa na Claremont Avenue — porque poderia haver uma carta esperando diante da porta. Um por um, meus grandes sonhos com Nova York se corromperam. A lembrança do charme do apartamento de Bunny feneceu com todo o resto quando entrevistei uma senhoria desgrenhada no Greenwich Village. Ela disse que eu poderia trazer garotas para o meu quarto, e essa ideia me encheu de desânimo — por que eu ia querer trazer garotas para o meu quarto? Eu tinha uma garota. Perambulava pela cidade, pela rua 127, magoado com sua vitalidade vibrante; ou então comprava ingresso para algum teatro barato na farmácia Gray’s e tentava me perder por algumas horas em minha velha paixão pela Broadway. Eu era um fracasso — medíocre na publicidade e incapaz de me lançar como escritor. Odiando a cidade, bebia até meu último centavo e, caindo de bêbado e choroso, voltava para casa...
... Cidade imprevisível. O que aconteceu depois foi apenas uma entre milhares de histórias de sucesso daqueles dias agitados, mas desempenha um papel em meu próprio filme de Nova York. Quando voltei, seis meses depois, as salas das editoras estavam abertas para mim, agentes imploravam por peças, o cinema ansiava por roteiros. Para minha perplexidade, fui adotado não como um interiorano do Meio-Oeste, nem como observador participante, mas como o arquétipo daquilo que Nova York queria. Essa afirmação demanda certa descrição do que era a metrópole em 1920.
Já existia a cidade branca e alta de hoje, a atividade febricitante do boom, mas havia também uma desarticulação geral. Assim como outros, o colunista F. P. A.2 tomou o pulso da multidão, mas timidamente, como quem observa pela janela. A sociedade e as artes autóctones não se misturavam — Ellen Mackay ainda não se casara com Irving Berlin. Grande parte dos personagens de Peter Arno não teria nenhum significado para os cidadãos de 1920, e, fora a coluna de F. P. A., não existia uma tribuna para a civilidade metropolitana.
Então, por um instante, a ideia de “nova geração” tornou-se uma fusão de muitos elementos da vida de Nova York. Gente de cinquenta anos podia fingir que ainda existia uma nata da sociedade, ou Maxwell Bodenheim podia fingir que existia uma boêmia digna de sua pintura e seu traço — mas a mistura dos elementos brilhantes, alegres e vigorosos começou nessa época, e pela primeira vez apareceu uma sociedade um pouco mais animada que os circunspectos banquetes de Emily Price Post em salões de mogno. Se essa sociedade inventou o coquetel, também desenvolveu o espírito da Park Avenue, e pela primeira vez um europeu culto podia vislumbrar uma viagem a Nova York como algo mais divertido do que uma expedição em busca de ouro no interior da Austrália.
Só por um instante, antes que ficasse demonstrado que eu era incapaz de desempenhar o papel, eu, que sabia sobre Nova York menos que qualquer repórter com seis meses de residência na cidade, e menos sobre sua sociedade do que qualquer rapaz desacompanhado nos bailes do Ritz, fui elevado à posição não só de porta-voz da época, mas de típico produto do momento. Eu, melhor dizendo agora, “nós” não sabíamos exatamente o que Nova York esperava de nós e achamos aquilo muito confuso. Poucos meses depois de embarcar na aventura metropolitana, já mal sabíamos quem éramos e não tínhamos ideia do que éramos. Um mergulho numa fonte pública ou um esbarrão casual com agentes da lei era o bastante para nos levar às colunas de fofocas. Éramos citados com relação a uma vasta quantidade de assuntos sobre os quais nada sabíamos. Na verdade, nossos “contatos” se resumiam a meia dúzia de amigos solteiros da faculdade e uns poucos conhecidos recentes da área literária — lembro de um Natal solitário em que não tínhamos um só amigo na cidade nem uma casa aonde ir. Sem encontrar um núcleo ao qual nos agarrar, nós mesmos nos tornamos um núcleo e aos poucos ajustamos nossas personalidades conturbadas à cena da Nova York contemporânea. Ou melhor, Nova York nos esqueceu e nos deixou ficar.
Este não é um relato das mudanças da cidade, mas das mudanças dos sentimentos deste escritor pela cidade. Da confusão de 1920, lembro de andar na capota de um táxi pela Quinta Avenida deserta numa noite quente de domingo, de um almoço no sereno jardim japonês do Ritz com a melancólica Kay Laurel e George Jean Nathan, de escrever a noite toda repetidamente, de pagar caro por minúsculos apartamentos, e de comprar carros magníficos que enguiçavam toda hora. Tinham aparecido os primeiros bares clandestinos, passear estava fora de moda, o Montmartre era o lugar elegante para dançar e o cabelo louro de Lillian Tashman rodopiava na pista de dança entre universitários embriagados. As peças eram Declassée e Sacred and Profane Love, e no Midnight Frolic você dançava lado a lado com Marion Davies e talvez reconhecesse a animada Mary Hay entre as coristas. Pensávamos que estávamos distantes de tudo aquilo; talvez todo mundo pense que está distante de seu ambiente. Nos sentíamos como duas criancinhas num enorme galpão, iluminado e inexplorado. Reunidos no estúdio de Griffith em Long Island, tremíamos em presença dos rostos familiares do filme O nascimento de uma nação; mais tarde, compreendi que por trás do entretenimento que a cidade despejava sobre a nação não havia mais que um monte de gente perdida e solitária. O mundo dos astros de cinema era como o nosso, na medida em que eles estavam em Nova York, mas não eram de Nova York. Esse mundo tinha pouca noção de si mesmo e nenhum centro: quando conheci Dorothy Gish, tive a sensação de que estávamos os dois no polo Norte e que nevava. Desde então eles encontraram um lar, que não estava destinado a ser Nova York.
Quando nos entediávamos, encarávamos nossa cidade com um capricho à moda de Huysmans. Passávamos uma tarde sozinhos em nosso “apartamento”, comendo sanduíches de azeitona e bebendo um litro de uísque Bushmills que tínhamos ganhado de Zoë Akins, e então saíamos para a cidade enfeitiçada, entrando por portas estranhas em estranhos apartamentos com intermitentes sacolejos em táxis no meio das noites mansas. Pelo menos formávamos um todo com Nova York, levando-a conosco por cada portal. Até hoje entro em muitos apartamentos com a sensação de já ter estado lá antes, ou no de cima, ou no de baixo. Teria sido na noite em que tentei tirar a roupa no Scandals, ou na noite em que (como fiquei sabendo, com assombro, pelos jornais na manhã seguinte) “Fitzgerald esmurra policial até o outro lado do paraíso”? Como ganhar briga não fazia parte das minhas realizações, tentei em vão reconstruir a sequência de eventos que culminou naquele desfecho, no Webster Hall. Finalmente, daquele período, lembro de estar andando de táxi numa tarde entre edifícios altíssimos sob um céu rosa arroxeado; comecei a gritar que tinha tudo o que queria e sabia que nunca mais seria tão feliz.
Foi típico de nossa precária situação em Nova York o fato de que, quando nossa filha estava para nascer, decidimos proceder com segurança e voltamos para St. Paul — parecia inadequado trazer um bebê à luz no meio de todo aquele glamour e daquela solidão. Depois de um ano, porém, estávamos de volta, e começamos a fazer as mesmas coisas outra vez, sem gostar muito delas. Estávamos bastante rodados, embora conservássemos uma inocência quase teatral ao preferir o papel de observados ao de observadores. Mas a inocência não é um fim em si, e à medida que nossa mentalidade amadurecia, contra a nossa vontade, começamos a ver Nova York como um todo e a tentar salvar alguma coisa dela para quando chegassem os seres em que inevitavelmente nos transformaríamos.
Era tarde demais — ou cedo demais. Para nós, a cidade estava indissoluvelmente ligada a divertimentos etílicos, moderados ou fantásticos. Só pudemos nos organizar ao voltar para Long Island, e nem sempre lá. Não tínhamos estímulo para desfrutar a cidade pela metade. Meu primeiro símbolo era agora uma lembrança, pois eu sabia que o triunfo está em nós mesmos; o segundo tinha se transformado em lugar-comum — as duas atrizes que eu cultuava de longe lá pelos idos de 1913 tinham jantado em nossa casa. Mas dava-me certo medo que também o terceiro símbolo tivesse se turvado — não era fácil encontrar a tranquilidade do apartamento de Bunny na cidade sempre acelerada. Bunny tinha se casado e ia ser pai; outros amigos tinham ido para a Europa, e os solteiros frequentavam casas maiores e mais festivas que a nossa. Nessa época, conhecíamos “todo mundo” — ou seja, a maioria das pessoas que Ralph Barton retrataria em seus cartuns numa noite de estreia.
Mas já não éramos importantes. Em 1923, a melindrosa, em cuja conduta se baseara a popularidade de meus primeiros livros, tinha saído de moda — pelo menos no Leste. Decidi impactar a Broadway com uma peça, mas a Broadway mandou seus olheiros a Atlantic City e de saída cancelou a ideia, e assim senti que, naquele momento, a cidade e eu tínhamos pouco a oferecer um ao outro. Eu ia pegar a atmosfera de Long Island que respirara com familiaridade e materializá-la sob céus desconhecidos.
Passaram-se três anos até que víssemos Nova York outra vez. Enquanto o navio deslizava rio acima, a cidade explodia trovejando sobre nós no entardecer — a geleira branca da parte baixa de Nova York mergulhando como os cabos de uma ponte para erguer-se na parte alta da cidade, um milagre de luz e espuma suspenso pelas estrelas. Uma banda começou a tocar no convés, mas diante da majestade da cidade a marcha soava banal e metálica. A partir daquele momento, entendi que Nova York, não importava quantas vezes eu a deixasse, era minha casa.
O ritmo da cidade tinha mudado profundamente. As incertezas de 1920 tinham se afogado num contínuo fragor dourado, e muitos de nossos amigos tinham enriquecido. Mas a agitação da Nova York de 1927 beirava a histeria. As festas eram de arromba — as de Condé Nast, por exemplo, rivalizavam com os lendários bailes da década de 1890; o ritmo era mais acelerado — os convites à dissipação davam exemplo a Paris; os espetáculos eram maiores; os edifícios, mais altos; os costumes, mais lassos; e a bebida, mais barata. Mas todas essas benesses na verdade não proporcionavam muito deleite. Os jovens se desgastavam muito cedo — estavam insensíveis e frágeis aos vinte e um anos e, com exceção de Peter Arno, nenhum deles contribuiu com nada de novo. Talvez Peter Arno e seus colaboradores tenham dito tudo o que havia por dizer sobre os dias do boom de Nova York que não pudesse ser dito por uma orquestra de jazz. Muita gente que não era alcoólatra se embebedava quatro dias por semana, e havia nervos em frangalhos espalhados por toda parte; os grupos permaneciam reunidos por um nervosismo generalizado, e a ressaca tornou-se uma parte do dia tão natural quanto dormir a siesta para os espanhóis. A maior parte dos meus amigos bebia demais — quanto mais sintonizados com a época, mais bebiam. Assim, como o esforço por si só não tinha nenhum valor diante da absoluta permissividade da Nova York daqueles dias, inventou-se um nome pejorativo para ele: uma atividade de sucesso tornou-se uma pilantragem — eu estava na pilantragem literária.
Morávamos a poucas horas de Nova York, e descobri que cada vez que vinha à cidade era pilhado numa complicação de eventos que poucos dias depois me depositavam em estado de exaustão num trem para Delaware. Porções inteiras da cidade tinham crescido de modo insalubre, mas invariavelmente eu encontrava um momento de paz absoluta cruzando o Central Park, no escuro, em direção ao sul, onde as fachadas da rua 59 projetavam suas luzes através das árvores. Ali estava de novo minha cidade perdida, envolvida indiferente em seu mistério e suas promessas. Entretanto, meu afastamento nunca durava muito — da mesma forma que o trabalhador precisa viver no ventre da cidade, eu era compelido a viver em sua mente desordenada.
Como alternativa havia os bares clandestinos — a migração dos bares de luxo, que anunciavam nas publicações de Yale e Princeton, para cervejarias onde o rosto ranzinza do submundo espiava através da boa índole germânica do entretenimento, e depois para lugares estranhos e ainda mais sinistros, onde éramos observados por rapazes com rosto de pedra e nada restava da jovialidade, apenas uma brutalidade que contaminava o novo dia para o qual saíamos. Lembrei-me de 1920, quando choquei um jovem empresário em ascensão sugerindo um coquetel antes do almoço. Em 1929, havia bebida alcoólica em metade dos escritórios do centro e um bar clandestino em metade dos grandes edifícios.
Os bares clandestinos e a Park Avenue tornavam-se cada vez mais de domínio público. Na década anterior, Greenwich Village, Washington Square, Murray Hill e os casarões da Quinta Avenida tinham de certa forma desaparecido, ou se tornado inexpressivos. A cidade estava intumescida, desentranhada, estupidificada com pão e circo, e uma nova expressão — “Ah, é?” — resumia todo o entusiasmo evocado pelo anúncio dos últimos superarranha-céus. Meu barbeiro aposentou-se com o meio milhão ganhado em apostas no mercado, e eu tinha consciência de que os maîtres que me conduziam até minha mesa, ou que não o faziam, estavam muito, muito mais ricos do que eu. Isso não tinha graça — mais uma vez me fartei de Nova York e foi bom me sentir a salvo a bordo de um navio, em cujo bar continuou a festa ininterrupta a caminho da França.
“Quais são as últimas de Nova York?”
“As ações estão subindo. Um bebê matou um bandido.”
“Só isso?”
“Só. Os rádios se esgoelam na rua.”
Eu já chegara a pensar que não havia segundo ato na vida dos americanos, mas certamente haveria um segundo ato aos dias de boom de Nova York. Estávamos em algum lugar do Norte da África quando ouvimos um ruído abafado que ecoou nos cantos mais remotos do deserto.
“O que foi isso?”
“Você ouviu?”
“Não foi nada.”
“Você acha que devíamos voltar e ver?”
“Não. Não foi nada.”
No outono escuro, dois anos depois, vimos Nova York de novo. Passamos por funcionários da alfândega curiosamente corteses e, depois, de cabeça baixa e chapéu na mão, caminhei respeitosamente pela tumba ressonante. Entre as ruínas, uns poucos fantasmas infantis ainda brincavam para manter a farsa de que estavam vivos, porém eram traídos por suas vozes febris e feições frenéticas que revelavam a fragilidade da mascarada. Nos coquetéis, um último resquício oco dos dias de festança, ecoavam os lamentos dos feridos: “Me dê um tiro, pelo amor de Deus, alguém me dê um tiro!”, e os gemidos e queixumes dos moribundos: “Viu que a United States Steel caiu mais três pontos?”. Meu barbeiro voltou a trabalhar em sua loja; mais uma vez os maîtres acompanhavam as pessoas até as mesas, quando havia pessoas a acompanhar. Das ruínas, sozinho e indecifrável como uma esfinge, erguia-se o edifício Empire State e, assim como tinha sido um hábito meu subir ao terraço do Plaza para me despedir da linda cidade, que se estendia até onde a vista podia alcançar, desta vez fui ao último andar da última e mais esplêndida das torres. Foi então que vi que tudo se explicava: eu descobrira o erro fatal da cidade, sua caixa de Pandora. Cheio de empáfia, o nova-iorquino subira só para ver, desolado, o que nunca tinha suspeitado: a cidade não era uma sucessão infinita de cânions, como ele supunha, mas tinha limites — de cima da mais alta das estruturas, ele viu pela primeira vez que ela ia se apagando em direção ao campo por todos os lados, numa imensidão de verde e azul, essa sim sem limites. E com a terrível compreensão de que Nova York afinal era uma cidade, e não um universo, todo o edifício cintilante que ele criara em sua imaginação veio abaixo. Foi esse o presente desavisado de Alfred W. Smith aos cidadãos de Nova York.
Assim eu me despeço da minha cidade perdida. Vista do ferryboat, de manhã cedo, ela já não sugere sucessos fantásticos e eterna juventude. As moças alegres que saracoteiam diante de plateias vazias não me lembram a beleza inefável das garotas de meus sonhos em 1914. E Bunny, girando sobre os calcanhares cheio de si com sua bengala, a caminho de seu retiro num carnaval, aderiu ao comunismo e se preocupa com as injustiças contra os trabalhadores dos moinhos no Sul e os agricultores do Oeste, cujas vozes, quinze anos atrás, nunca teriam atravessado as paredes de seu estúdio.
Tudo está perdido salvo a lembrança, embora eu às vezes me imagine lendo uma edição de 1945 do Daily News: CINQUENTÃO PERDE A CABEÇA EM NOVA YORK
Modelo declara: Fitzgerald enriqueceu à custa de golpes
Abatido por pistoleiro furioso
Então talvez eu esteja destinado a voltar algum dia e encontrar na cidade novas experiências que até agora só vi no papel. Por enquanto, só posso chorar a perda de minha esplêndida miragem. Volte, ó branca e resplandecente, volte!
1 Dick Whittington e seu gato é um conto do folclore inglês sobre um menino pobre do século XIII que se torna um rico comerciante e termina como Lord Mayor de Londres devido à habilidade de seu gato como caçador de ratos. (N. T.)
2 Franklin Pierce Adams (1881-1960). (N. T.)
Primeiro foi o ferryboat saindo lentamente da costa de Jersey ao amanhecer — o momento cristalizou-se como meu primeiro símbolo de Nova York. Cinco anos depois, quando eu tinha quinze anos, saía da escola e ia ao centro da cidade para ver Ina Claire em The Quaker Girl e Gertrude Bryan em Little Boy Blue. Indeciso em meu amor melancólico e sem esperança por ambas, não conseguia escolher entre as duas — então elas se fundiram numa deliciosa identidade, a garota. Ela foi meu segundo símbolo de Nova York. O ferryboat representava o triunfo; a garota, o romance. Com o tempo, eu conquistaria um pouco dos dois, mas houve um terceiro símbolo que perdi em algum lugar, e para sempre.
Encontrei-o numa tarde escura de abril, passados outros cinco anos.
“Oi, Bunny”, gritei. “Bunny!”
Ele não me ouviu — meu táxi ficou para trás e alcançou-o de novo meia quadra adiante. Havia poças escuras de chuva na calçada, e o vi caminhando rápido no meio da multidão, usando uma capa de chuva bege sobre o inevitável terno marrom; notei com espanto que ele carregava uma leve bengala.
“Bunny!”, chamei de novo, e desisti. Eu ainda era universitário de Princeton, enquanto ele tinha se tornado um nova-iorquino. Era sua caminhada vespertina, essa correria com a bengala no meio da chuva que caía, e como faltava uma hora para nosso encontro, pareceu-me uma intromissão ir ter com ele quando estava envolvido com sua vida privada. Entretanto, meu táxi continuou emparelhado com ele, continuei observando e fiquei impressionado. Ele já não era o pequeno e tímido acadêmico da Holder Court — andava com firmeza, absorto em seus pensamentos e olhando para a frente, deixando óbvio que seu novo cenário era de todo suficiente para ele. Eu sabia que ele tinha um apartamento onde morava com três outros homens, já livre de todos os tabus de estudante, mas havia algo mais que o nutria, e tive minha primeira impressão dessa novidade: o espírito metropolitano.
Até aquela época, eu só tinha visto a Nova York que se oferecia à inspeção — era como Dick Whittington,1 chegado do campo e boquiaberto com os ursos amestrados, ou um jovem do Midi deslumbrado com os bulevares de Paris. Eu tinha vindo só para ver o espetáculo, embora os projetistas do edifício Woolworth e do painel luminoso da corrida de bigas, os produtores de comédias musicais e peças de tese não pudessem desejar um espectador mais receptivo, já que o estilo e o brilho que eu atribuía a Nova York superavam as expectativas da própria cidade. Mas nunca aceitei nenhum dos convites praticamente anônimos para bailes de debutantes que costumavam aparecer na correspondência de qualquer universitário, talvez porque sentisse que nenhuma realidade estaria à altura da concepção que eu fazia do esplendor de Nova York. Além do mais, aquela que eu chamava insensatamente de “minha garota” era do Meio-Oeste, o que mantinha lá o centro afetivo do mundo, de modo que eu considerava Nova York essencialmente cínica e cruel — exceto por uma noite em que ela iluminou o terraço do Ritz numa breve aparição.
Mais tarde, no entanto, eu a perdera para sempre e queria um mundo masculino, e a visão que tive de Bunny me fez ver Nova York exatamente assim. Uma semana antes, Monsignor Fay me levara ao Lafayette, onde se estendia diante de nós uma fulguração de comida, chamada hors d’oeuvre, que acompanhamos com um clarete tão desafiador quanto a confiante bengala de Bunny — mas afinal de contas tratava-se de um restaurante, e depois teríamos de transpor uma ponte para voltarmos ao interior. A Nova York da dissipação estudantil, de restaurantes como o Bustanoby’s, o Shanley’s e o Jack’s, tinha se tornado um horror, e embora eu tenha voltado a ela, ai de mim, muitas vezes numa névoa de álcool, senti cada volta como uma traição a um idealismo persistente. Minha participação era mais lasciva que licenciosa, e restam poucas lembranças prazerosas daqueles dias. Como disse uma vez Ernest Hemingway, a única finalidade do cabaré é reunir homens descomprometidos e mulheres complacentes. O resto é perda de tempo numa atmosfera viciada.
Naquela noite, porém, no apartamento de Bunny, a vida era mansa e segura, o produto final de uma destilação de tudo que eu aprendera a amar em Princeton. O som agradável de um oboé se misturava aos ruídos urbanos que vinham da rua, penetrando na sala com dificuldade através de enormes barricadas de livros; a única nota dissonante era dada por um homem que rasgava envelopes de convites. Eu tinha encontrado um terceiro símbolo de Nova York e comecei a pensar em alugar um apartamento como aquele e em selecionar amigos com quem dividi-lo.
Improvável — durante os dois anos seguintes, tive tanto controle sobre meu destino quanto um preso sobre o corte de sua roupa. Quando voltei a Nova York, em 1919, minha vida estava tão enrolada que eu não podia nem sonhar com um tranquilo período monástico na Washington Square. O importante era ganhar dinheiro em publicidade, o bastante para alugar um pequeno apartamento no Bronx para duas pessoas. A garota em questão nunca tinha visto Nova York, mas era sensata o suficiente para estar um pouco relutante. E num halo de ansiedade e infelicidade, passei os quatro meses mais vulneráveis de minha vida.
Nova York tinha toda a iridescência do nascimento do mundo. Soldados vindos da guerra desfilaram pela Quinta Avenida, e as garotas eram atraídas instintivamente para leste e norte atrás deles — esta era a maior nação do mundo e havia um clima de gala no ar. Enquanto eu pairava como um fantasma no Salão Vermelho do Plaza numa tarde de sábado, ia a inebriantes festas no entorno da rua 60 Leste, ou bebia com o pessoal de Princeton no bar do Biltmore, era sempre assombrado por minha outra vida — meu quarto ordinário no Bronx, meus centímetros quadrados de metrô, minha obsessão pela carta diária do Alabama — chegaria, e o que diria? —, meus ternos surrados, minha pobreza e o amor. Enquanto meus amigos estavam se dando bem na vida, eu tinha empurrado meu barco precário para a correnteza. A juventude dourada que circulava em volta de Constance Bennett no Club de Vingt, os colegas do clube de Yale-Princeton animados em nossa primeira reunião depois do fim da guerra, o clima das casas de milionários que eu às vezes frequentava — tudo isso era vazio para mim, embora eu admitisse que era um cenário impressionante e lamentasse estar comprometido com outro romance. A mais divertida mesa de almoço ou o cabaré mais onírico — era tudo a mesma coisa. Eu voltava ansiosamente para minha casa na Claremont Avenue — porque poderia haver uma carta esperando diante da porta. Um por um, meus grandes sonhos com Nova York se corromperam. A lembrança do charme do apartamento de Bunny feneceu com todo o resto quando entrevistei uma senhoria desgrenhada no Greenwich Village. Ela disse que eu poderia trazer garotas para o meu quarto, e essa ideia me encheu de desânimo — por que eu ia querer trazer garotas para o meu quarto? Eu tinha uma garota. Perambulava pela cidade, pela rua 127, magoado com sua vitalidade vibrante; ou então comprava ingresso para algum teatro barato na farmácia Gray’s e tentava me perder por algumas horas em minha velha paixão pela Broadway. Eu era um fracasso — medíocre na publicidade e incapaz de me lançar como escritor. Odiando a cidade, bebia até meu último centavo e, caindo de bêbado e choroso, voltava para casa...
... Cidade imprevisível. O que aconteceu depois foi apenas uma entre milhares de histórias de sucesso daqueles dias agitados, mas desempenha um papel em meu próprio filme de Nova York. Quando voltei, seis meses depois, as salas das editoras estavam abertas para mim, agentes imploravam por peças, o cinema ansiava por roteiros. Para minha perplexidade, fui adotado não como um interiorano do Meio-Oeste, nem como observador participante, mas como o arquétipo daquilo que Nova York queria. Essa afirmação demanda certa descrição do que era a metrópole em 1920.
Já existia a cidade branca e alta de hoje, a atividade febricitante do boom, mas havia também uma desarticulação geral. Assim como outros, o colunista F. P. A.2 tomou o pulso da multidão, mas timidamente, como quem observa pela janela. A sociedade e as artes autóctones não se misturavam — Ellen Mackay ainda não se casara com Irving Berlin. Grande parte dos personagens de Peter Arno não teria nenhum significado para os cidadãos de 1920, e, fora a coluna de F. P. A., não existia uma tribuna para a civilidade metropolitana.
Então, por um instante, a ideia de “nova geração” tornou-se uma fusão de muitos elementos da vida de Nova York. Gente de cinquenta anos podia fingir que ainda existia uma nata da sociedade, ou Maxwell Bodenheim podia fingir que existia uma boêmia digna de sua pintura e seu traço — mas a mistura dos elementos brilhantes, alegres e vigorosos começou nessa época, e pela primeira vez apareceu uma sociedade um pouco mais animada que os circunspectos banquetes de Emily Price Post em salões de mogno. Se essa sociedade inventou o coquetel, também desenvolveu o espírito da Park Avenue, e pela primeira vez um europeu culto podia vislumbrar uma viagem a Nova York como algo mais divertido do que uma expedição em busca de ouro no interior da Austrália.
Só por um instante, antes que ficasse demonstrado que eu era incapaz de desempenhar o papel, eu, que sabia sobre Nova York menos que qualquer repórter com seis meses de residência na cidade, e menos sobre sua sociedade do que qualquer rapaz desacompanhado nos bailes do Ritz, fui elevado à posição não só de porta-voz da época, mas de típico produto do momento. Eu, melhor dizendo agora, “nós” não sabíamos exatamente o que Nova York esperava de nós e achamos aquilo muito confuso. Poucos meses depois de embarcar na aventura metropolitana, já mal sabíamos quem éramos e não tínhamos ideia do que éramos. Um mergulho numa fonte pública ou um esbarrão casual com agentes da lei era o bastante para nos levar às colunas de fofocas. Éramos citados com relação a uma vasta quantidade de assuntos sobre os quais nada sabíamos. Na verdade, nossos “contatos” se resumiam a meia dúzia de amigos solteiros da faculdade e uns poucos conhecidos recentes da área literária — lembro de um Natal solitário em que não tínhamos um só amigo na cidade nem uma casa aonde ir. Sem encontrar um núcleo ao qual nos agarrar, nós mesmos nos tornamos um núcleo e aos poucos ajustamos nossas personalidades conturbadas à cena da Nova York contemporânea. Ou melhor, Nova York nos esqueceu e nos deixou ficar.
Este não é um relato das mudanças da cidade, mas das mudanças dos sentimentos deste escritor pela cidade. Da confusão de 1920, lembro de andar na capota de um táxi pela Quinta Avenida deserta numa noite quente de domingo, de um almoço no sereno jardim japonês do Ritz com a melancólica Kay Laurel e George Jean Nathan, de escrever a noite toda repetidamente, de pagar caro por minúsculos apartamentos, e de comprar carros magníficos que enguiçavam toda hora. Tinham aparecido os primeiros bares clandestinos, passear estava fora de moda, o Montmartre era o lugar elegante para dançar e o cabelo louro de Lillian Tashman rodopiava na pista de dança entre universitários embriagados. As peças eram Declassée e Sacred and Profane Love, e no Midnight Frolic você dançava lado a lado com Marion Davies e talvez reconhecesse a animada Mary Hay entre as coristas. Pensávamos que estávamos distantes de tudo aquilo; talvez todo mundo pense que está distante de seu ambiente. Nos sentíamos como duas criancinhas num enorme galpão, iluminado e inexplorado. Reunidos no estúdio de Griffith em Long Island, tremíamos em presença dos rostos familiares do filme O nascimento de uma nação; mais tarde, compreendi que por trás do entretenimento que a cidade despejava sobre a nação não havia mais que um monte de gente perdida e solitária. O mundo dos astros de cinema era como o nosso, na medida em que eles estavam em Nova York, mas não eram de Nova York. Esse mundo tinha pouca noção de si mesmo e nenhum centro: quando conheci Dorothy Gish, tive a sensação de que estávamos os dois no polo Norte e que nevava. Desde então eles encontraram um lar, que não estava destinado a ser Nova York.
Quando nos entediávamos, encarávamos nossa cidade com um capricho à moda de Huysmans. Passávamos uma tarde sozinhos em nosso “apartamento”, comendo sanduíches de azeitona e bebendo um litro de uísque Bushmills que tínhamos ganhado de Zoë Akins, e então saíamos para a cidade enfeitiçada, entrando por portas estranhas em estranhos apartamentos com intermitentes sacolejos em táxis no meio das noites mansas. Pelo menos formávamos um todo com Nova York, levando-a conosco por cada portal. Até hoje entro em muitos apartamentos com a sensação de já ter estado lá antes, ou no de cima, ou no de baixo. Teria sido na noite em que tentei tirar a roupa no Scandals, ou na noite em que (como fiquei sabendo, com assombro, pelos jornais na manhã seguinte) “Fitzgerald esmurra policial até o outro lado do paraíso”? Como ganhar briga não fazia parte das minhas realizações, tentei em vão reconstruir a sequência de eventos que culminou naquele desfecho, no Webster Hall. Finalmente, daquele período, lembro de estar andando de táxi numa tarde entre edifícios altíssimos sob um céu rosa arroxeado; comecei a gritar que tinha tudo o que queria e sabia que nunca mais seria tão feliz.
Foi típico de nossa precária situação em Nova York o fato de que, quando nossa filha estava para nascer, decidimos proceder com segurança e voltamos para St. Paul — parecia inadequado trazer um bebê à luz no meio de todo aquele glamour e daquela solidão. Depois de um ano, porém, estávamos de volta, e começamos a fazer as mesmas coisas outra vez, sem gostar muito delas. Estávamos bastante rodados, embora conservássemos uma inocência quase teatral ao preferir o papel de observados ao de observadores. Mas a inocência não é um fim em si, e à medida que nossa mentalidade amadurecia, contra a nossa vontade, começamos a ver Nova York como um todo e a tentar salvar alguma coisa dela para quando chegassem os seres em que inevitavelmente nos transformaríamos.
Era tarde demais — ou cedo demais. Para nós, a cidade estava indissoluvelmente ligada a divertimentos etílicos, moderados ou fantásticos. Só pudemos nos organizar ao voltar para Long Island, e nem sempre lá. Não tínhamos estímulo para desfrutar a cidade pela metade. Meu primeiro símbolo era agora uma lembrança, pois eu sabia que o triunfo está em nós mesmos; o segundo tinha se transformado em lugar-comum — as duas atrizes que eu cultuava de longe lá pelos idos de 1913 tinham jantado em nossa casa. Mas dava-me certo medo que também o terceiro símbolo tivesse se turvado — não era fácil encontrar a tranquilidade do apartamento de Bunny na cidade sempre acelerada. Bunny tinha se casado e ia ser pai; outros amigos tinham ido para a Europa, e os solteiros frequentavam casas maiores e mais festivas que a nossa. Nessa época, conhecíamos “todo mundo” — ou seja, a maioria das pessoas que Ralph Barton retrataria em seus cartuns numa noite de estreia.
Mas já não éramos importantes. Em 1923, a melindrosa, em cuja conduta se baseara a popularidade de meus primeiros livros, tinha saído de moda — pelo menos no Leste. Decidi impactar a Broadway com uma peça, mas a Broadway mandou seus olheiros a Atlantic City e de saída cancelou a ideia, e assim senti que, naquele momento, a cidade e eu tínhamos pouco a oferecer um ao outro. Eu ia pegar a atmosfera de Long Island que respirara com familiaridade e materializá-la sob céus desconhecidos.
Passaram-se três anos até que víssemos Nova York outra vez. Enquanto o navio deslizava rio acima, a cidade explodia trovejando sobre nós no entardecer — a geleira branca da parte baixa de Nova York mergulhando como os cabos de uma ponte para erguer-se na parte alta da cidade, um milagre de luz e espuma suspenso pelas estrelas. Uma banda começou a tocar no convés, mas diante da majestade da cidade a marcha soava banal e metálica. A partir daquele momento, entendi que Nova York, não importava quantas vezes eu a deixasse, era minha casa.
O ritmo da cidade tinha mudado profundamente. As incertezas de 1920 tinham se afogado num contínuo fragor dourado, e muitos de nossos amigos tinham enriquecido. Mas a agitação da Nova York de 1927 beirava a histeria. As festas eram de arromba — as de Condé Nast, por exemplo, rivalizavam com os lendários bailes da década de 1890; o ritmo era mais acelerado — os convites à dissipação davam exemplo a Paris; os espetáculos eram maiores; os edifícios, mais altos; os costumes, mais lassos; e a bebida, mais barata. Mas todas essas benesses na verdade não proporcionavam muito deleite. Os jovens se desgastavam muito cedo — estavam insensíveis e frágeis aos vinte e um anos e, com exceção de Peter Arno, nenhum deles contribuiu com nada de novo. Talvez Peter Arno e seus colaboradores tenham dito tudo o que havia por dizer sobre os dias do boom de Nova York que não pudesse ser dito por uma orquestra de jazz. Muita gente que não era alcoólatra se embebedava quatro dias por semana, e havia nervos em frangalhos espalhados por toda parte; os grupos permaneciam reunidos por um nervosismo generalizado, e a ressaca tornou-se uma parte do dia tão natural quanto dormir a siesta para os espanhóis. A maior parte dos meus amigos bebia demais — quanto mais sintonizados com a época, mais bebiam. Assim, como o esforço por si só não tinha nenhum valor diante da absoluta permissividade da Nova York daqueles dias, inventou-se um nome pejorativo para ele: uma atividade de sucesso tornou-se uma pilantragem — eu estava na pilantragem literária.
Morávamos a poucas horas de Nova York, e descobri que cada vez que vinha à cidade era pilhado numa complicação de eventos que poucos dias depois me depositavam em estado de exaustão num trem para Delaware. Porções inteiras da cidade tinham crescido de modo insalubre, mas invariavelmente eu encontrava um momento de paz absoluta cruzando o Central Park, no escuro, em direção ao sul, onde as fachadas da rua 59 projetavam suas luzes através das árvores. Ali estava de novo minha cidade perdida, envolvida indiferente em seu mistério e suas promessas. Entretanto, meu afastamento nunca durava muito — da mesma forma que o trabalhador precisa viver no ventre da cidade, eu era compelido a viver em sua mente desordenada.
Como alternativa havia os bares clandestinos — a migração dos bares de luxo, que anunciavam nas publicações de Yale e Princeton, para cervejarias onde o rosto ranzinza do submundo espiava através da boa índole germânica do entretenimento, e depois para lugares estranhos e ainda mais sinistros, onde éramos observados por rapazes com rosto de pedra e nada restava da jovialidade, apenas uma brutalidade que contaminava o novo dia para o qual saíamos. Lembrei-me de 1920, quando choquei um jovem empresário em ascensão sugerindo um coquetel antes do almoço. Em 1929, havia bebida alcoólica em metade dos escritórios do centro e um bar clandestino em metade dos grandes edifícios.
Os bares clandestinos e a Park Avenue tornavam-se cada vez mais de domínio público. Na década anterior, Greenwich Village, Washington Square, Murray Hill e os casarões da Quinta Avenida tinham de certa forma desaparecido, ou se tornado inexpressivos. A cidade estava intumescida, desentranhada, estupidificada com pão e circo, e uma nova expressão — “Ah, é?” — resumia todo o entusiasmo evocado pelo anúncio dos últimos superarranha-céus. Meu barbeiro aposentou-se com o meio milhão ganhado em apostas no mercado, e eu tinha consciência de que os maîtres que me conduziam até minha mesa, ou que não o faziam, estavam muito, muito mais ricos do que eu. Isso não tinha graça — mais uma vez me fartei de Nova York e foi bom me sentir a salvo a bordo de um navio, em cujo bar continuou a festa ininterrupta a caminho da França.
“Quais são as últimas de Nova York?”
“As ações estão subindo. Um bebê matou um bandido.”
“Só isso?”
“Só. Os rádios se esgoelam na rua.”
Eu já chegara a pensar que não havia segundo ato na vida dos americanos, mas certamente haveria um segundo ato aos dias de boom de Nova York. Estávamos em algum lugar do Norte da África quando ouvimos um ruído abafado que ecoou nos cantos mais remotos do deserto.
“O que foi isso?”
“Você ouviu?”
“Não foi nada.”
“Você acha que devíamos voltar e ver?”
“Não. Não foi nada.”
No outono escuro, dois anos depois, vimos Nova York de novo. Passamos por funcionários da alfândega curiosamente corteses e, depois, de cabeça baixa e chapéu na mão, caminhei respeitosamente pela tumba ressonante. Entre as ruínas, uns poucos fantasmas infantis ainda brincavam para manter a farsa de que estavam vivos, porém eram traídos por suas vozes febris e feições frenéticas que revelavam a fragilidade da mascarada. Nos coquetéis, um último resquício oco dos dias de festança, ecoavam os lamentos dos feridos: “Me dê um tiro, pelo amor de Deus, alguém me dê um tiro!”, e os gemidos e queixumes dos moribundos: “Viu que a United States Steel caiu mais três pontos?”. Meu barbeiro voltou a trabalhar em sua loja; mais uma vez os maîtres acompanhavam as pessoas até as mesas, quando havia pessoas a acompanhar. Das ruínas, sozinho e indecifrável como uma esfinge, erguia-se o edifício Empire State e, assim como tinha sido um hábito meu subir ao terraço do Plaza para me despedir da linda cidade, que se estendia até onde a vista podia alcançar, desta vez fui ao último andar da última e mais esplêndida das torres. Foi então que vi que tudo se explicava: eu descobrira o erro fatal da cidade, sua caixa de Pandora. Cheio de empáfia, o nova-iorquino subira só para ver, desolado, o que nunca tinha suspeitado: a cidade não era uma sucessão infinita de cânions, como ele supunha, mas tinha limites — de cima da mais alta das estruturas, ele viu pela primeira vez que ela ia se apagando em direção ao campo por todos os lados, numa imensidão de verde e azul, essa sim sem limites. E com a terrível compreensão de que Nova York afinal era uma cidade, e não um universo, todo o edifício cintilante que ele criara em sua imaginação veio abaixo. Foi esse o presente desavisado de Alfred W. Smith aos cidadãos de Nova York.
Assim eu me despeço da minha cidade perdida. Vista do ferryboat, de manhã cedo, ela já não sugere sucessos fantásticos e eterna juventude. As moças alegres que saracoteiam diante de plateias vazias não me lembram a beleza inefável das garotas de meus sonhos em 1914. E Bunny, girando sobre os calcanhares cheio de si com sua bengala, a caminho de seu retiro num carnaval, aderiu ao comunismo e se preocupa com as injustiças contra os trabalhadores dos moinhos no Sul e os agricultores do Oeste, cujas vozes, quinze anos atrás, nunca teriam atravessado as paredes de seu estúdio.
Tudo está perdido salvo a lembrança, embora eu às vezes me imagine lendo uma edição de 1945 do Daily News: CINQUENTÃO PERDE A CABEÇA EM NOVA YORK
Modelo declara: Fitzgerald enriqueceu à custa de golpes
Abatido por pistoleiro furioso
Então talvez eu esteja destinado a voltar algum dia e encontrar na cidade novas experiências que até agora só vi no papel. Por enquanto, só posso chorar a perda de minha esplêndida miragem. Volte, ó branca e resplandecente, volte!
1 Dick Whittington e seu gato é um conto do folclore inglês sobre um menino pobre do século XIII que se torna um rico comerciante e termina como Lord Mayor de Londres devido à habilidade de seu gato como caçador de ratos. (N. T.)
2 Franklin Pierce Adams (1881-1960). (N. T.)
Primeiro foi o ferryboat saindo lentamente da costa de Jersey ao amanhecer — o momento cristalizou-se como meu primeiro símbolo de Nova York. Cinco anos depois, quando eu tinha quinze anos, saía da escola e ia ao centro da cidade para ver Ina Claire em The Quaker Girl e Gertrude Bryan em Little Boy Blue. Indeciso em meu amor melancólico e sem esperança por ambas, não conseguia escolher entre as duas — então elas se fundiram numa deliciosa identidade, a garota. Ela foi meu segundo símbolo de Nova York. O ferryboat representava o triunfo; a garota, o romance. Com o tempo, eu conquistaria um pouco dos dois, mas houve um terceiro símbolo que perdi em algum lugar, e para sempre.
Encontrei-o numa tarde escura de abril, passados outros cinco anos.
“Oi, Bunny”, gritei. “Bunny!”
Ele não me ouviu — meu táxi ficou para trás e alcançou-o de novo meia quadra adiante. Havia poças escuras de chuva na calçada, e o vi caminhando rápido no meio da multidão, usando uma capa de chuva bege sobre o inevitável terno marrom; notei com espanto que ele carregava uma leve bengala.
“Bunny!”, chamei de novo, e desisti. Eu ainda era universitário de Princeton, enquanto ele tinha se tornado um nova-iorquino. Era sua caminhada vespertina, essa correria com a bengala no meio da chuva que caía, e como faltava uma hora para nosso encontro, pareceu-me uma intromissão ir ter com ele quando estava envolvido com sua vida privada. Entretanto, meu táxi continuou emparelhado com ele, continuei observando e fiquei impressionado. Ele já não era o pequeno e tímido acadêmico da Holder Court — andava com firmeza, absorto em seus pensamentos e olhando para a frente, deixando óbvio que seu novo cenário era de todo suficiente para ele. Eu sabia que ele tinha um apartamento onde morava com três outros homens, já livre de todos os tabus de estudante, mas havia algo mais que o nutria, e tive minha primeira impressão dessa novidade: o espírito metropolitano.
Até aquela época, eu só tinha visto a Nova York que se oferecia à inspeção — era como Dick Whittington,1 chegado do campo e boquiaberto com os ursos amestrados, ou um jovem do Midi deslumbrado com os bulevares de Paris. Eu tinha vindo só para ver o espetáculo, embora os projetistas do edifício Woolworth e do painel luminoso da corrida de bigas, os produtores de comédias musicais e peças de tese não pudessem desejar um espectador mais receptivo, já que o estilo e o brilho que eu atribuía a Nova York superavam as expectativas da própria cidade. Mas nunca aceitei nenhum dos convites praticamente anônimos para bailes de debutantes que costumavam aparecer na correspondência de qualquer universitário, talvez porque sentisse que nenhuma realidade estaria à altura da concepção que eu fazia do esplendor de Nova York. Além do mais, aquela que eu chamava insensatamente de “minha garota” era do Meio-Oeste, o que mantinha lá o centro afetivo do mundo, de modo que eu considerava Nova York essencialmente cínica e cruel — exceto por uma noite em que ela iluminou o terraço do Ritz numa breve aparição.
Mais tarde, no entanto, eu a perdera para sempre e queria um mundo masculino, e a visão que tive de Bunny me fez ver Nova York exatamente assim. Uma semana antes, Monsignor Fay me levara ao Lafayette, onde se estendia diante de nós uma fulguração de comida, chamada hors d’oeuvre, que acompanhamos com um clarete tão desafiador quanto a confiante bengala de Bunny — mas afinal de contas tratava-se de um restaurante, e depois teríamos de transpor uma ponte para voltarmos ao interior. A Nova York da dissipação estudantil, de restaurantes como o Bustanoby’s, o Shanley’s e o Jack’s, tinha se tornado um horror, e embora eu tenha voltado a ela, ai de mim, muitas vezes numa névoa de álcool, senti cada volta como uma traição a um idealismo persistente. Minha participação era mais lasciva que licenciosa, e restam poucas lembranças prazerosas daqueles dias. Como disse uma vez Ernest Hemingway, a única finalidade do cabaré é reunir homens descomprometidos e mulheres complacentes. O resto é perda de tempo numa atmosfera viciada.
Naquela noite, porém, no apartamento de Bunny, a vida era mansa e segura, o produto final de uma destilação de tudo que eu aprendera a amar em Princeton. O som agradável de um oboé se misturava aos ruídos urbanos que vinham da rua, penetrando na sala com dificuldade através de enormes barricadas de livros; a única nota dissonante era dada por um homem que rasgava envelopes de convites. Eu tinha encontrado um terceiro símbolo de Nova York e comecei a pensar em alugar um apartamento como aquele e em selecionar amigos com quem dividi-lo.
Improvável — durante os dois anos seguintes, tive tanto controle sobre meu destino quanto um preso sobre o corte de sua roupa. Quando voltei a Nova York, em 1919, minha vida estava tão enrolada que eu não podia nem sonhar com um tranquilo período monástico na Washington Square. O importante era ganhar dinheiro em publicidade, o bastante para alugar um pequeno apartamento no Bronx para duas pessoas. A garota em questão nunca tinha visto Nova York, mas era sensata o suficiente para estar um pouco relutante. E num halo de ansiedade e infelicidade, passei os quatro meses mais vulneráveis de minha vida.
Nova York tinha toda a iridescência do nascimento do mundo. Soldados vindos da guerra desfilaram pela Quinta Avenida, e as garotas eram atraídas instintivamente para leste e norte atrás deles — esta era a maior nação do mundo e havia um clima de gala no ar. Enquanto eu pairava como um fantasma no Salão Vermelho do Plaza numa tarde de sábado, ia a inebriantes festas no entorno da rua 60 Leste, ou bebia com o pessoal de Princeton no bar do Biltmore, era sempre assombrado por minha outra vida — meu quarto ordinário no Bronx, meus centímetros quadrados de metrô, minha obsessão pela carta diária do Alabama — chegaria, e o que diria? —, meus ternos surrados, minha pobreza e o amor. Enquanto meus amigos estavam se dando bem na vida, eu tinha empurrado meu barco precário para a correnteza. A juventude dourada que circulava em volta de Constance Bennett no Club de Vingt, os colegas do clube de Yale-Princeton animados em nossa primeira reunião depois do fim da guerra, o clima das casas de milionários que eu às vezes frequentava — tudo isso era vazio para mim, embora eu admitisse que era um cenário impressionante e lamentasse estar comprometido com outro romance. A mais divertida mesa de almoço ou o cabaré mais onírico — era tudo a mesma coisa. Eu voltava ansiosamente para minha casa na Claremont Avenue — porque poderia haver uma carta esperando diante da porta. Um por um, meus grandes sonhos com Nova York se corromperam. A lembrança do charme do apartamento de Bunny feneceu com todo o resto quando entrevistei uma senhoria desgrenhada no Greenwich Village. Ela disse que eu poderia trazer garotas para o meu quarto, e essa ideia me encheu de desânimo — por que eu ia querer trazer garotas para o meu quarto? Eu tinha uma garota. Perambulava pela cidade, pela rua 127, magoado com sua vitalidade vibrante; ou então comprava ingresso para algum teatro barato na farmácia Gray’s e tentava me perder por algumas horas em minha velha paixão pela Broadway. Eu era um fracasso — medíocre na publicidade e incapaz de me lançar como escritor. Odiando a cidade, bebia até meu último centavo e, caindo de bêbado e choroso, voltava para casa...
... Cidade imprevisível. O que aconteceu depois foi apenas uma entre milhares de histórias de sucesso daqueles dias agitados, mas desempenha um papel em meu próprio filme de Nova York. Quando voltei, seis meses depois, as salas das editoras estavam abertas para mim, agentes imploravam por peças, o cinema ansiava por roteiros. Para minha perplexidade, fui adotado não como um interiorano do Meio-Oeste, nem como observador participante, mas como o arquétipo daquilo que Nova York queria. Essa afirmação demanda certa descrição do que era a metrópole em 1920.
Já existia a cidade branca e alta de hoje, a atividade febricitante do boom, mas havia também uma desarticulação geral. Assim como outros, o colunista F. P. A.2 tomou o pulso da multidão, mas timidamente, como quem observa pela janela. A sociedade e as artes autóctones não se misturavam — Ellen Mackay ainda não se casara com Irving Berlin. Grande parte dos personagens de Peter Arno não teria nenhum significado para os cidadãos de 1920, e, fora a coluna de F. P. A., não existia uma tribuna para a civilidade metropolitana.
Então, por um instante, a ideia de “nova geração” tornou-se uma fusão de muitos elementos da vida de Nova York. Gente de cinquenta anos podia fingir que ainda existia uma nata da sociedade, ou Maxwell Bodenheim podia fingir que existia uma boêmia digna de sua pintura e seu traço — mas a mistura dos elementos brilhantes, alegres e vigorosos começou nessa época, e pela primeira vez apareceu uma sociedade um pouco mais animada que os circunspectos banquetes de Emily Price Post em salões de mogno. Se essa sociedade inventou o coquetel, também desenvolveu o espírito da Park Avenue, e pela primeira vez um europeu culto podia vislumbrar uma viagem a Nova York como algo mais divertido do que uma expedição em busca de ouro no interior da Austrália.
Só por um instante, antes que ficasse demonstrado que eu era incapaz de desempenhar o papel, eu, que sabia sobre Nova York menos que qualquer repórter com seis meses de residência na cidade, e menos sobre sua sociedade do que qualquer rapaz desacompanhado nos bailes do Ritz, fui elevado à posição não só de porta-voz da época, mas de típico produto do momento. Eu, melhor dizendo agora, “nós” não sabíamos exatamente o que Nova York esperava de nós e achamos aquilo muito confuso. Poucos meses depois de embarcar na aventura metropolitana, já mal sabíamos quem éramos e não tínhamos ideia do que éramos. Um mergulho numa fonte pública ou um esbarrão casual com agentes da lei era o bastante para nos levar às colunas de fofocas. Éramos citados com relação a uma vasta quantidade de assuntos sobre os quais nada sabíamos. Na verdade, nossos “contatos” se resumiam a meia dúzia de amigos solteiros da faculdade e uns poucos conhecidos recentes da área literária — lembro de um Natal solitário em que não tínhamos um só amigo na cidade nem uma casa aonde ir. Sem encontrar um núcleo ao qual nos agarrar, nós mesmos nos tornamos um núcleo e aos poucos ajustamos nossas personalidades conturbadas à cena da Nova York contemporânea. Ou melhor, Nova York nos esqueceu e nos deixou ficar.
Este não é um relato das mudanças da cidade, mas das mudanças dos sentimentos deste escritor pela cidade. Da confusão de 1920, lembro de andar na capota de um táxi pela Quinta Avenida deserta numa noite quente de domingo, de um almoço no sereno jardim japonês do Ritz com a melancólica Kay Laurel e George Jean Nathan, de escrever a noite toda repetidamente, de pagar caro por minúsculos apartamentos, e de comprar carros magníficos que enguiçavam toda hora. Tinham aparecido os primeiros bares clandestinos, passear estava fora de moda, o Montmartre era o lugar elegante para dançar e o cabelo louro de Lillian Tashman rodopiava na pista de dança entre universitários embriagados. As peças eram Declassée e Sacred and Profane Love, e no Midnight Frolic você dançava lado a lado com Marion Davies e talvez reconhecesse a animada Mary Hay entre as coristas. Pensávamos que estávamos distantes de tudo aquilo; talvez todo mundo pense que está distante de seu ambiente. Nos sentíamos como duas criancinhas num enorme galpão, iluminado e inexplorado. Reunidos no estúdio de Griffith em Long Island, tremíamos em presença dos rostos familiares do filme O nascimento de uma nação; mais tarde, compreendi que por trás do entretenimento que a cidade despejava sobre a nação não havia mais que um monte de gente perdida e solitária. O mundo dos astros de cinema era como o nosso, na medida em que eles estavam em Nova York, mas não eram de Nova York. Esse mundo tinha pouca noção de si mesmo e nenhum centro: quando conheci Dorothy Gish, tive a sensação de que estávamos os dois no polo Norte e que nevava. Desde então eles encontraram um lar, que não estava destinado a ser Nova York.
Quando nos entediávamos, encarávamos nossa cidade com um capricho à moda de Huysmans. Passávamos uma tarde sozinhos em nosso “apartamento”, comendo sanduíches de azeitona e bebendo um litro de uísque Bushmills que tínhamos ganhado de Zoë Akins, e então saíamos para a cidade enfeitiçada, entrando por portas estranhas em estranhos apartamentos com intermitentes sacolejos em táxis no meio das noites mansas. Pelo menos formávamos um todo com Nova York, levando-a conosco por cada portal. Até hoje entro em muitos apartamentos com a sensação de já ter estado lá antes, ou no de cima, ou no de baixo. Teria sido na noite em que tentei tirar a roupa no Scandals, ou na noite em que (como fiquei sabendo, com assombro, pelos jornais na manhã seguinte) “Fitzgerald esmurra policial até o outro lado do paraíso”? Como ganhar briga não fazia parte das minhas realizações, tentei em vão reconstruir a sequência de eventos que culminou naquele desfecho, no Webster Hall. Finalmente, daquele período, lembro de estar andando de táxi numa tarde entre edifícios altíssimos sob um céu rosa arroxeado; comecei a gritar que tinha tudo o que queria e sabia que nunca mais seria tão feliz.
Foi típico de nossa precária situação em Nova York o fato de que, quando nossa filha estava para nascer, decidimos proceder com segurança e voltamos para St. Paul — parecia inadequado trazer um bebê à luz no meio de todo aquele glamour e daquela solidão. Depois de um ano, porém, estávamos de volta, e começamos a fazer as mesmas coisas outra vez, sem gostar muito delas. Estávamos bastante rodados, embora conservássemos uma inocência quase teatral ao preferir o papel de observados ao de observadores. Mas a inocência não é um fim em si, e à medida que nossa mentalidade amadurecia, contra a nossa vontade, começamos a ver Nova York como um todo e a tentar salvar alguma coisa dela para quando chegassem os seres em que inevitavelmente nos transformaríamos.
Era tarde demais — ou cedo demais. Para nós, a cidade estava indissoluvelmente ligada a divertimentos etílicos, moderados ou fantásticos. Só pudemos nos organizar ao voltar para Long Island, e nem sempre lá. Não tínhamos estímulo para desfrutar a cidade pela metade. Meu primeiro símbolo era agora uma lembrança, pois eu sabia que o triunfo está em nós mesmos; o segundo tinha se transformado em lugar-comum — as duas atrizes que eu cultuava de longe lá pelos idos de 1913 tinham jantado em nossa casa. Mas dava-me certo medo que também o terceiro símbolo tivesse se turvado — não era fácil encontrar a tranquilidade do apartamento de Bunny na cidade sempre acelerada. Bunny tinha se casado e ia ser pai; outros amigos tinham ido para a Europa, e os solteiros frequentavam casas maiores e mais festivas que a nossa. Nessa época, conhecíamos “todo mundo” — ou seja, a maioria das pessoas que Ralph Barton retrataria em seus cartuns numa noite de estreia.
Mas já não éramos importantes. Em 1923, a melindrosa, em cuja conduta se baseara a popularidade de meus primeiros livros, tinha saído de moda — pelo menos no Leste. Decidi impactar a Broadway com uma peça, mas a Broadway mandou seus olheiros a Atlantic City e de saída cancelou a ideia, e assim senti que, naquele momento, a cidade e eu tínhamos pouco a oferecer um ao outro. Eu ia pegar a atmosfera de Long Island que respirara com familiaridade e materializá-la sob céus desconhecidos.
Passaram-se três anos até que víssemos Nova York outra vez. Enquanto o navio deslizava rio acima, a cidade explodia trovejando sobre nós no entardecer — a geleira branca da parte baixa de Nova York mergulhando como os cabos de uma ponte para erguer-se na parte alta da cidade, um milagre de luz e espuma suspenso pelas estrelas. Uma banda começou a tocar no convés, mas diante da majestade da cidade a marcha soava banal e metálica. A partir daquele momento, entendi que Nova York, não importava quantas vezes eu a deixasse, era minha casa.
O ritmo da cidade tinha mudado profundamente. As incertezas de 1920 tinham se afogado num contínuo fragor dourado, e muitos de nossos amigos tinham enriquecido. Mas a agitação da Nova York de 1927 beirava a histeria. As festas eram de arromba — as de Condé Nast, por exemplo, rivalizavam com os lendários bailes da década de 1890; o ritmo era mais acelerado — os convites à dissipação davam exemplo a Paris; os espetáculos eram maiores; os edifícios, mais altos; os costumes, mais lassos; e a bebida, mais barata. Mas todas essas benesses na verdade não proporcionavam muito deleite. Os jovens se desgastavam muito cedo — estavam insensíveis e frágeis aos vinte e um anos e, com exceção de Peter Arno, nenhum deles contribuiu com nada de novo. Talvez Peter Arno e seus colaboradores tenham dito tudo o que havia por dizer sobre os dias do boom de Nova York que não pudesse ser dito por uma orquestra de jazz. Muita gente que não era alcoólatra se embebedava quatro dias por semana, e havia nervos em frangalhos espalhados por toda parte; os grupos permaneciam reunidos por um nervosismo generalizado, e a ressaca tornou-se uma parte do dia tão natural quanto dormir a siesta para os espanhóis. A maior parte dos meus amigos bebia demais — quanto mais sintonizados com a época, mais bebiam. Assim, como o esforço por si só não tinha nenhum valor diante da absoluta permissividade da Nova York daqueles dias, inventou-se um nome pejorativo para ele: uma atividade de sucesso tornou-se uma pilantragem — eu estava na pilantragem literária.
Morávamos a poucas horas de Nova York, e descobri que cada vez que vinha à cidade era pilhado numa complicação de eventos que poucos dias depois me depositavam em estado de exaustão num trem para Delaware. Porções inteiras da cidade tinham crescido de modo insalubre, mas invariavelmente eu encontrava um momento de paz absoluta cruzando o Central Park, no escuro, em direção ao sul, onde as fachadas da rua 59 projetavam suas luzes através das árvores. Ali estava de novo minha cidade perdida, envolvida indiferente em seu mistério e suas promessas. Entretanto, meu afastamento nunca durava muito — da mesma forma que o trabalhador precisa viver no ventre da cidade, eu era compelido a viver em sua mente desordenada.
Como alternativa havia os bares clandestinos — a migração dos bares de luxo, que anunciavam nas publicações de Yale e Princeton, para cervejarias onde o rosto ranzinza do submundo espiava através da boa índole germânica do entretenimento, e depois para lugares estranhos e ainda mais sinistros, onde éramos observados por rapazes com rosto de pedra e nada restava da jovialidade, apenas uma brutalidade que contaminava o novo dia para o qual saíamos. Lembrei-me de 1920, quando choquei um jovem empresário em ascensão sugerindo um coquetel antes do almoço. Em 1929, havia bebida alcoólica em metade dos escritórios do centro e um bar clandestino em metade dos grandes edifícios.
Os bares clandestinos e a Park Avenue tornavam-se cada vez mais de domínio público. Na década anterior, Greenwich Village, Washington Square, Murray Hill e os casarões da Quinta Avenida tinham de certa forma desaparecido, ou se tornado inexpressivos. A cidade estava intumescida, desentranhada, estupidificada com pão e circo, e uma nova expressão — “Ah, é?” — resumia todo o entusiasmo evocado pelo anúncio dos últimos superarranha-céus. Meu barbeiro aposentou-se com o meio milhão ganhado em apostas no mercado, e eu tinha consciência de que os maîtres que me conduziam até minha mesa, ou que não o faziam, estavam muito, muito mais ricos do que eu. Isso não tinha graça — mais uma vez me fartei de Nova York e foi bom me sentir a salvo a bordo de um navio, em cujo bar continuou a festa ininterrupta a caminho da França.
“Quais são as últimas de Nova York?”
“As ações estão subindo. Um bebê matou um bandido.”
“Só isso?”
“Só. Os rádios se esgoelam na rua.”
Eu já chegara a pensar que não havia segundo ato na vida dos americanos, mas certamente haveria um segundo ato aos dias de boom de Nova York. Estávamos em algum lugar do Norte da África quando ouvimos um ruído abafado que ecoou nos cantos mais remotos do deserto.
“O que foi isso?”
“Você ouviu?”
“Não foi nada.”
“Você acha que devíamos voltar e ver?”
“Não. Não foi nada.”
No outono escuro, dois anos depois, vimos Nova York de novo. Passamos por funcionários da alfândega curiosamente corteses e, depois, de cabeça baixa e chapéu na mão, caminhei respeitosamente pela tumba ressonante. Entre as ruínas, uns poucos fantasmas infantis ainda brincavam para manter a farsa de que estavam vivos, porém eram traídos por suas vozes febris e feições frenéticas que revelavam a fragilidade da mascarada. Nos coquetéis, um último resquício oco dos dias de festança, ecoavam os lamentos dos feridos: “Me dê um tiro, pelo amor de Deus, alguém me dê um tiro!”, e os gemidos e queixumes dos moribundos: “Viu que a United States Steel caiu mais três pontos?”. Meu barbeiro voltou a trabalhar em sua loja; mais uma vez os maîtres acompanhavam as pessoas até as mesas, quando havia pessoas a acompanhar. Das ruínas, sozinho e indecifrável como uma esfinge, erguia-se o edifício Empire State e, assim como tinha sido um hábito meu subir ao terraço do Plaza para me despedir da linda cidade, que se estendia até onde a vista podia alcançar, desta vez fui ao último andar da última e mais esplêndida das torres. Foi então que vi que tudo se explicava: eu descobrira o erro fatal da cidade, sua caixa de Pandora. Cheio de empáfia, o nova-iorquino subira só para ver, desolado, o que nunca tinha suspeitado: a cidade não era uma sucessão infinita de cânions, como ele supunha, mas tinha limites — de cima da mais alta das estruturas, ele viu pela primeira vez que ela ia se apagando em direção ao campo por todos os lados, numa imensidão de verde e azul, essa sim sem limites. E com a terrível compreensão de que Nova York afinal era uma cidade, e não um universo, todo o edifício cintilante que ele criara em sua imaginação veio abaixo. Foi esse o presente desavisado de Alfred W. Smith aos cidadãos de Nova York.
Assim eu me despeço da minha cidade perdida. Vista do ferryboat, de manhã cedo, ela já não sugere sucessos fantásticos e eterna juventude. As moças alegres que saracoteiam diante de plateias vazias não me lembram a beleza inefável das garotas de meus sonhos em 1914. E Bunny, girando sobre os calcanhares cheio de si com sua bengala, a caminho de seu retiro num carnaval, aderiu ao comunismo e se preocupa com as injustiças contra os trabalhadores dos moinhos no Sul e os agricultores do Oeste, cujas vozes, quinze anos atrás, nunca teriam atravessado as paredes de seu estúdio.
Tudo está perdido salvo a lembrança, embora eu às vezes me imagine lendo uma edição de 1945 do Daily News: CINQUENTÃO PERDE A CABEÇA EM NOVA YORK
Modelo declara: Fitzgerald enriqueceu à custa de golpes
Abatido por pistoleiro furioso
Então talvez eu esteja destinado a voltar algum dia e encontrar na cidade novas experiências que até agora só vi no papel. Por enquanto, só posso chorar a perda de minha esplêndida miragem. Volte, ó branca e resplandecente, volte!
1 Dick Whittington e seu gato é um conto do folclore inglês sobre um menino pobre do século XIII que se torna um rico comerciante e termina como Lord Mayor de Londres devido à habilidade de seu gato como caçador de ratos. (N. T.)
2 Franklin Pierce Adams (1881-1960). (N. T.)
Primeiro foi o ferryboat saindo lentamente da costa de Jersey ao amanhecer — o momento cristalizou-se como meu primeiro símbolo de Nova York. Cinco anos depois, quando eu tinha quinze anos, saía da escola e ia ao centro da cidade para ver Ina Claire em The Quaker Girl e Gertrude Bryan em Little Boy Blue. Indeciso em meu amor melancólico e sem esperança por ambas, não conseguia escolher entre as duas — então elas se fundiram numa deliciosa identidade, a garota. Ela foi meu segundo símbolo de Nova York. O ferryboat representava o triunfo; a garota, o romance. Com o tempo, eu conquistaria um pouco dos dois, mas houve um terceiro símbolo que perdi em algum lugar, e para sempre.
Encontrei-o numa tarde escura de abril, passados outros cinco anos.
“Oi, Bunny”, gritei. “Bunny!”
Ele não me ouviu — meu táxi ficou para trás e alcançou-o de novo meia quadra adiante. Havia poças escuras de chuva na calçada, e o vi caminhando rápido no meio da multidão, usando uma capa de chuva bege sobre o inevitável terno marrom; notei com espanto que ele carregava uma leve bengala.
“Bunny!”, chamei de novo, e desisti. Eu ainda era universitário de Princeton, enquanto ele tinha se tornado um nova-iorquino. Era sua caminhada vespertina, essa correria com a bengala no meio da chuva que caía, e como faltava uma hora para nosso encontro, pareceu-me uma intromissão ir ter com ele quando estava envolvido com sua vida privada. Entretanto, meu táxi continuou emparelhado com ele, continuei observando e fiquei impressionado. Ele já não era o pequeno e tímido acadêmico da Holder Court — andava com firmeza, absorto em seus pensamentos e olhando para a frente, deixando óbvio que seu novo cenário era de todo suficiente para ele. Eu sabia que ele tinha um apartamento onde morava com três outros homens, já livre de todos os tabus de estudante, mas havia algo mais que o nutria, e tive minha primeira impressão dessa novidade: o espírito metropolitano.
Até aquela época, eu só tinha visto a Nova York que se oferecia à inspeção — era como Dick Whittington,1 chegado do campo e boquiaberto com os ursos amestrados, ou um jovem do Midi deslumbrado com os bulevares de Paris. Eu tinha vindo só para ver o espetáculo, embora os projetistas do edifício Woolworth e do painel luminoso da corrida de bigas, os produtores de comédias musicais e peças de tese não pudessem desejar um espectador mais receptivo, já que o estilo e o brilho que eu atribuía a Nova York superavam as expectativas da própria cidade. Mas nunca aceitei nenhum dos convites praticamente anônimos para bailes de debutantes que costumavam aparecer na correspondência de qualquer universitário, talvez porque sentisse que nenhuma realidade estaria à altura da concepção que eu fazia do esplendor de Nova York. Além do mais, aquela que eu chamava insensatamente de “minha garota” era do Meio-Oeste, o que mantinha lá o centro afetivo do mundo, de modo que eu considerava Nova York essencialmente cínica e cruel — exceto por uma noite em que ela iluminou o terraço do Ritz numa breve aparição.
Mais tarde, no entanto, eu a perdera para sempre e queria um mundo masculino, e a visão que tive de Bunny me fez ver Nova York exatamente assim. Uma semana antes, Monsignor Fay me levara ao Lafayette, onde se estendia diante de nós uma fulguração de comida, chamada hors d’oeuvre, que acompanhamos com um clarete tão desafiador quanto a confiante bengala de Bunny — mas afinal de contas tratava-se de um restaurante, e depois teríamos de transpor uma ponte para voltarmos ao interior. A Nova York da dissipação estudantil, de restaurantes como o Bustanoby’s, o Shanley’s e o Jack’s, tinha se tornado um horror, e embora eu tenha voltado a ela, ai de mim, muitas vezes numa névoa de álcool, senti cada volta como uma traição a um idealismo persistente. Minha participação era mais lasciva que licenciosa, e restam poucas lembranças prazerosas daqueles dias. Como disse uma vez Ernest Hemingway, a única finalidade do cabaré é reunir homens descomprometidos e mulheres complacentes. O resto é perda de tempo numa atmosfera viciada.
Naquela noite, porém, no apartamento de Bunny, a vida era mansa e segura, o produto final de uma destilação de tudo que eu aprendera a amar em Princeton. O som agradável de um oboé se misturava aos ruídos urbanos que vinham da rua, penetrando na sala com dificuldade através de enormes barricadas de livros; a única nota dissonante era dada por um homem que rasgava envelopes de convites. Eu tinha encontrado um terceiro símbolo de Nova York e comecei a pensar em alugar um apartamento como aquele e em selecionar amigos com quem dividi-lo.
Improvável — durante os dois anos seguintes, tive tanto controle sobre meu destino quanto um preso sobre o corte de sua roupa. Quando voltei a Nova York, em 1919, minha vida estava tão enrolada que eu não podia nem sonhar com um tranquilo período monástico na Washington Square. O importante era ganhar dinheiro em publicidade, o bastante para alugar um pequeno apartamento no Bronx para duas pessoas. A garota em questão nunca tinha visto Nova York, mas era sensata o suficiente para estar um pouco relutante. E num halo de ansiedade e infelicidade, passei os quatro meses mais vulneráveis de minha vida.
Nova York tinha toda a iridescência do nascimento do mundo. Soldados vindos da guerra desfilaram pela Quinta Avenida, e as garotas eram atraídas instintivamente para leste e norte atrás deles — esta era a maior nação do mundo e havia um clima de gala no ar. Enquanto eu pairava como um fantasma no Salão Vermelho do Plaza numa tarde de sábado, ia a inebriantes festas no entorno da rua 60 Leste, ou bebia com o pessoal de Princeton no bar do Biltmore, era sempre assombrado por minha outra vida — meu quarto ordinário no Bronx, meus centímetros quadrados de metrô, minha obsessão pela carta diária do Alabama — chegaria, e o que diria? —, meus ternos surrados, minha pobreza e o amor. Enquanto meus amigos estavam se dando bem na vida, eu tinha empurrado meu barco precário para a correnteza. A juventude dourada que circulava em volta de Constance Bennett no Club de Vingt, os colegas do clube de Yale-Princeton animados em nossa primeira reunião depois do fim da guerra, o clima das casas de milionários que eu às vezes frequentava — tudo isso era vazio para mim, embora eu admitisse que era um cenário impressionante e lamentasse estar comprometido com outro romance. A mais divertida mesa de almoço ou o cabaré mais onírico — era tudo a mesma coisa. Eu voltava ansiosamente para minha casa na Claremont Avenue — porque poderia haver uma carta esperando diante da porta. Um por um, meus grandes sonhos com Nova York se corromperam. A lembrança do charme do apartamento de Bunny feneceu com todo o resto quando entrevistei uma senhoria desgrenhada no Greenwich Village. Ela disse que eu poderia trazer garotas para o meu quarto, e essa ideia me encheu de desânimo — por que eu ia querer trazer garotas para o meu quarto? Eu tinha uma garota. Perambulava pela cidade, pela rua 127, magoado com sua vitalidade vibrante; ou então comprava ingresso para algum teatro barato na farmácia Gray’s e tentava me perder por algumas horas em minha velha paixão pela Broadway. Eu era um fracasso — medíocre na publicidade e incapaz de me lançar como escritor. Odiando a cidade, bebia até meu último centavo e, caindo de bêbado e choroso, voltava para casa...
... Cidade imprevisível. O que aconteceu depois foi apenas uma entre milhares de histórias de sucesso daqueles dias agitados, mas desempenha um papel em meu próprio filme de Nova York. Quando voltei, seis meses depois, as salas das editoras estavam abertas para mim, agentes imploravam por peças, o cinema ansiava por roteiros. Para minha perplexidade, fui adotado não como um interiorano do Meio-Oeste, nem como observador participante, mas como o arquétipo daquilo que Nova York queria. Essa afirmação demanda certa descrição do que era a metrópole em 1920.
Já existia a cidade branca e alta de hoje, a atividade febricitante do boom, mas havia também uma desarticulação geral. Assim como outros, o colunista F. P. A.2 tomou o pulso da multidão, mas timidamente, como quem observa pela janela. A sociedade e as artes autóctones não se misturavam — Ellen Mackay ainda não se casara com Irving Berlin. Grande parte dos personagens de Peter Arno não teria nenhum significado para os cidadãos de 1920, e, fora a coluna de F. P. A., não existia uma tribuna para a civilidade metropolitana.
Então, por um instante, a ideia de “nova geração” tornou-se uma fusão de muitos elementos da vida de Nova York. Gente de cinquenta anos podia fingir que ainda existia uma nata da sociedade, ou Maxwell Bodenheim podia fingir que existia uma boêmia digna de sua pintura e seu traço — mas a mistura dos elementos brilhantes, alegres e vigorosos começou nessa época, e pela primeira vez apareceu uma sociedade um pouco mais animada que os circunspectos banquetes de Emily Price Post em salões de mogno. Se essa sociedade inventou o coquetel, também desenvolveu o espírito da Park Avenue, e pela primeira vez um europeu culto podia vislumbrar uma viagem a Nova York como algo mais divertido do que uma expedição em busca de ouro no interior da Austrália.
Só por um instante, antes que ficasse demonstrado que eu era incapaz de desempenhar o papel, eu, que sabia sobre Nova York menos que qualquer repórter com seis meses de residência na cidade, e menos sobre sua sociedade do que qualquer rapaz desacompanhado nos bailes do Ritz, fui elevado à posição não só de porta-voz da época, mas de típico produto do momento. Eu, melhor dizendo agora, “nós” não sabíamos exatamente o que Nova York esperava de nós e achamos aquilo muito confuso. Poucos meses depois de embarcar na aventura metropolitana, já mal sabíamos quem éramos e não tínhamos ideia do que éramos. Um mergulho numa fonte pública ou um esbarrão casual com agentes da lei era o bastante para nos levar às colunas de fofocas. Éramos citados com relação a uma vasta quantidade de assuntos sobre os quais nada sabíamos. Na verdade, nossos “contatos” se resumiam a meia dúzia de amigos solteiros da faculdade e uns poucos conhecidos recentes da área literária — lembro de um Natal solitário em que não tínhamos um só amigo na cidade nem uma casa aonde ir. Sem encontrar um núcleo ao qual nos agarrar, nós mesmos nos tornamos um núcleo e aos poucos ajustamos nossas personalidades conturbadas à cena da Nova York contemporânea. Ou melhor, Nova York nos esqueceu e nos deixou ficar.
Este não é um relato das mudanças da cidade, mas das mudanças dos sentimentos deste escritor pela cidade. Da confusão de 1920, lembro de andar na capota de um táxi pela Quinta Avenida deserta numa noite quente de domingo, de um almoço no sereno jardim japonês do Ritz com a melancólica Kay Laurel e George Jean Nathan, de escrever a noite toda repetidamente, de pagar caro por minúsculos apartamentos, e de comprar carros magníficos que enguiçavam toda hora. Tinham aparecido os primeiros bares clandestinos, passear estava fora de moda, o Montmartre era o lugar elegante para dançar e o cabelo louro de Lillian Tashman rodopiava na pista de dança entre universitários embriagados. As peças eram Declassée e Sacred and Profane Love, e no Midnight Frolic você dançava lado a lado com Marion Davies e talvez reconhecesse a animada Mary Hay entre as coristas. Pensávamos que estávamos distantes de tudo aquilo; talvez todo mundo pense que está distante de seu ambiente. Nos sentíamos como duas criancinhas num enorme galpão, iluminado e inexplorado. Reunidos no estúdio de Griffith em Long Island, tremíamos em presença dos rostos familiares do filme O nascimento de uma nação; mais tarde, compreendi que por trás do entretenimento que a cidade despejava sobre a nação não havia mais que um monte de gente perdida e solitária. O mundo dos astros de cinema era como o nosso, na medida em que eles estavam em Nova York, mas não eram de Nova York. Esse mundo tinha pouca noção de si mesmo e nenhum centro: quando conheci Dorothy Gish, tive a sensação de que estávamos os dois no polo Norte e que nevava. Desde então eles encontraram um lar, que não estava destinado a ser Nova York.
Quando nos entediávamos, encarávamos nossa cidade com um capricho à moda de Huysmans. Passávamos uma tarde sozinhos em nosso “apartamento”, comendo sanduíches de azeitona e bebendo um litro de uísque Bushmills que tínhamos ganhado de Zoë Akins, e então saíamos para a cidade enfeitiçada, entrando por portas estranhas em estranhos apartamentos com intermitentes sacolejos em táxis no meio das noites mansas. Pelo menos formávamos um todo com Nova York, levando-a conosco por cada portal. Até hoje entro em muitos apartamentos com a sensação de já ter estado lá antes, ou no de cima, ou no de baixo. Teria sido na noite em que tentei tirar a roupa no Scandals, ou na noite em que (como fiquei sabendo, com assombro, pelos jornais na manhã seguinte) “Fitzgerald esmurra policial até o outro lado do paraíso”? Como ganhar briga não fazia parte das minhas realizações, tentei em vão reconstruir a sequência de eventos que culminou naquele desfecho, no Webster Hall. Finalmente, daquele período, lembro de estar andando de táxi numa tarde entre edifícios altíssimos sob um céu rosa arroxeado; comecei a gritar que tinha tudo o que queria e sabia que nunca mais seria tão feliz.
Foi típico de nossa precária situação em Nova York o fato de que, quando nossa filha estava para nascer, decidimos proceder com segurança e voltamos para St. Paul — parecia inadequado trazer um bebê à luz no meio de todo aquele glamour e daquela solidão. Depois de um ano, porém, estávamos de volta, e começamos a fazer as mesmas coisas outra vez, sem gostar muito delas. Estávamos bastante rodados, embora conservássemos uma inocência quase teatral ao preferir o papel de observados ao de observadores. Mas a inocência não é um fim em si, e à medida que nossa mentalidade amadurecia, contra a nossa vontade, começamos a ver Nova York como um todo e a tentar salvar alguma coisa dela para quando chegassem os seres em que inevitavelmente nos transformaríamos.
Era tarde demais — ou cedo demais. Para nós, a cidade estava indissoluvelmente ligada a divertimentos etílicos, moderados ou fantásticos. Só pudemos nos organizar ao voltar para Long Island, e nem sempre lá. Não tínhamos estímulo para desfrutar a cidade pela metade. Meu primeiro símbolo era agora uma lembrança, pois eu sabia que o triunfo está em nós mesmos; o segundo tinha se transformado em lugar-comum — as duas atrizes que eu cultuava de longe lá pelos idos de 1913 tinham jantado em nossa casa. Mas dava-me certo medo que também o terceiro símbolo tivesse se turvado — não era fácil encontrar a tranquilidade do apartamento de Bunny na cidade sempre acelerada. Bunny tinha se casado e ia ser pai; outros amigos tinham ido para a Europa, e os solteiros frequentavam casas maiores e mais festivas que a nossa. Nessa época, conhecíamos “todo mundo” — ou seja, a maioria das pessoas que Ralph Barton retrataria em seus cartuns numa noite de estreia.
Mas já não éramos importantes. Em 1923, a melindrosa, em cuja conduta se baseara a popularidade de meus primeiros livros, tinha saído de moda — pelo menos no Leste. Decidi impactar a Broadway com uma peça, mas a Broadway mandou seus olheiros a Atlantic City e de saída cancelou a ideia, e assim senti que, naquele momento, a cidade e eu tínhamos pouco a oferecer um ao outro. Eu ia pegar a atmosfera de Long Island que respirara com familiaridade e materializá-la sob céus desconhecidos.
Passaram-se três anos até que víssemos Nova York outra vez. Enquanto o navio deslizava rio acima, a cidade explodia trovejando sobre nós no entardecer — a geleira branca da parte baixa de Nova York mergulhando como os cabos de uma ponte para erguer-se na parte alta da cidade, um milagre de luz e espuma suspenso pelas estrelas. Uma banda começou a tocar no convés, mas diante da majestade da cidade a marcha soava banal e metálica. A partir daquele momento, entendi que Nova York, não importava quantas vezes eu a deixasse, era minha casa.
O ritmo da cidade tinha mudado profundamente. As incertezas de 1920 tinham se afogado num contínuo fragor dourado, e muitos de nossos amigos tinham enriquecido. Mas a agitação da Nova York de 1927 beirava a histeria. As festas eram de arromba — as de Condé Nast, por exemplo, rivalizavam com os lendários bailes da década de 1890; o ritmo era mais acelerado — os convites à dissipação davam exemplo a Paris; os espetáculos eram maiores; os edifícios, mais altos; os costumes, mais lassos; e a bebida, mais barata. Mas todas essas benesses na verdade não proporcionavam muito deleite. Os jovens se desgastavam muito cedo — estavam insensíveis e frágeis aos vinte e um anos e, com exceção de Peter Arno, nenhum deles contribuiu com nada de novo. Talvez Peter Arno e seus colaboradores tenham dito tudo o que havia por dizer sobre os dias do boom de Nova York que não pudesse ser dito por uma orquestra de jazz. Muita gente que não era alcoólatra se embebedava quatro dias por semana, e havia nervos em frangalhos espalhados por toda parte; os grupos permaneciam reunidos por um nervosismo generalizado, e a ressaca tornou-se uma parte do dia tão natural quanto dormir a siesta para os espanhóis. A maior parte dos meus amigos bebia demais — quanto mais sintonizados com a época, mais bebiam. Assim, como o esforço por si só não tinha nenhum valor diante da absoluta permissividade da Nova York daqueles dias, inventou-se um nome pejorativo para ele: uma atividade de sucesso tornou-se uma pilantragem — eu estava na pilantragem literária.
Morávamos a poucas horas de Nova York, e descobri que cada vez que vinha à cidade era pilhado numa complicação de eventos que poucos dias depois me depositavam em estado de exaustão num trem para Delaware. Porções inteiras da cidade tinham crescido de modo insalubre, mas invariavelmente eu encontrava um momento de paz absoluta cruzando o Central Park, no escuro, em direção ao sul, onde as fachadas da rua 59 projetavam suas luzes através das árvores. Ali estava de novo minha cidade perdida, envolvida indiferente em seu mistério e suas promessas. Entretanto, meu afastamento nunca durava muito — da mesma forma que o trabalhador precisa viver no ventre da cidade, eu era compelido a viver em sua mente desordenada.
Como alternativa havia os bares clandestinos — a migração dos bares de luxo, que anunciavam nas publicações de Yale e Princeton, para cervejarias onde o rosto ranzinza do submundo espiava através da boa índole germânica do entretenimento, e depois para lugares estranhos e ainda mais sinistros, onde éramos observados por rapazes com rosto de pedra e nada restava da jovialidade, apenas uma brutalidade que contaminava o novo dia para o qual saíamos. Lembrei-me de 1920, quando choquei um jovem empresário em ascensão sugerindo um coquetel antes do almoço. Em 1929, havia bebida alcoólica em metade dos escritórios do centro e um bar clandestino em metade dos grandes edifícios.
Os bares clandestinos e a Park Avenue tornavam-se cada vez mais de domínio público. Na década anterior, Greenwich Village, Washington Square, Murray Hill e os casarões da Quinta Avenida tinham de certa forma desaparecido, ou se tornado inexpressivos. A cidade estava intumescida, desentranhada, estupidificada com pão e circo, e uma nova expressão — “Ah, é?” — resumia todo o entusiasmo evocado pelo anúncio dos últimos superarranha-céus. Meu barbeiro aposentou-se com o meio milhão ganhado em apostas no mercado, e eu tinha consciência de que os maîtres que me conduziam até minha mesa, ou que não o faziam, estavam muito, muito mais ricos do que eu. Isso não tinha graça — mais uma vez me fartei de Nova York e foi bom me sentir a salvo a bordo de um navio, em cujo bar continuou a festa ininterrupta a caminho da França.
“Quais são as últimas de Nova York?”
“As ações estão subindo. Um bebê matou um bandido.”
“Só isso?”
“Só. Os rádios se esgoelam na rua.”
Eu já chegara a pensar que não havia segundo ato na vida dos americanos, mas certamente haveria um segundo ato aos dias de boom de Nova York. Estávamos em algum lugar do Norte da África quando ouvimos um ruído abafado que ecoou nos cantos mais remotos do deserto.
“O que foi isso?”
“Você ouviu?”
“Não foi nada.”
“Você acha que devíamos voltar e ver?”
“Não. Não foi nada.”
No outono escuro, dois anos depois, vimos Nova York de novo. Passamos por funcionários da alfândega curiosamente corteses e, depois, de cabeça baixa e chapéu na mão, caminhei respeitosamente pela tumba ressonante. Entre as ruínas, uns poucos fantasmas infantis ainda brincavam para manter a farsa de que estavam vivos, porém eram traídos por suas vozes febris e feições frenéticas que revelavam a fragilidade da mascarada. Nos coquetéis, um último resquício oco dos dias de festança, ecoavam os lamentos dos feridos: “Me dê um tiro, pelo amor de Deus, alguém me dê um tiro!”, e os gemidos e queixumes dos moribundos: “Viu que a United States Steel caiu mais três pontos?”. Meu barbeiro voltou a trabalhar em sua loja; mais uma vez os maîtres acompanhavam as pessoas até as mesas, quando havia pessoas a acompanhar. Das ruínas, sozinho e indecifrável como uma esfinge, erguia-se o edifício Empire State e, assim como tinha sido um hábito meu subir ao terraço do Plaza para me despedir da linda cidade, que se estendia até onde a vista podia alcançar, desta vez fui ao último andar da última e mais esplêndida das torres. Foi então que vi que tudo se explicava: eu descobrira o erro fatal da cidade, sua caixa de Pandora. Cheio de empáfia, o nova-iorquino subira só para ver, desolado, o que nunca tinha suspeitado: a cidade não era uma sucessão infinita de cânions, como ele supunha, mas tinha limites — de cima da mais alta das estruturas, ele viu pela primeira vez que ela ia se apagando em direção ao campo por todos os lados, numa imensidão de verde e azul, essa sim sem limites. E com a terrível compreensão de que Nova York afinal era uma cidade, e não um universo, todo o edifício cintilante que ele criara em sua imaginação veio abaixo. Foi esse o presente desavisado de Alfred W. Smith aos cidadãos de Nova York.
Assim eu me despeço da minha cidade perdida. Vista do ferryboat, de manhã cedo, ela já não sugere sucessos fantásticos e eterna juventude. As moças alegres que saracoteiam diante de plateias vazias não me lembram a beleza inefável das garotas de meus sonhos em 1914. E Bunny, girando sobre os calcanhares cheio de si com sua bengala, a caminho de seu retiro num carnaval, aderiu ao comunismo e se preocupa com as injustiças contra os trabalhadores dos moinhos no Sul e os agricultores do Oeste, cujas vozes, quinze anos atrás, nunca teriam atravessado as paredes de seu estúdio.
Tudo está perdido salvo a lembrança, embora eu às vezes me imagine lendo uma edição de 1945 do Daily News: CINQUENTÃO PERDE A CABEÇA EM NOVA YORK
Modelo declara: Fitzgerald enriqueceu à custa de golpes
Abatido por pistoleiro furioso
Então talvez eu esteja destinado a voltar algum dia e encontrar na cidade novas experiências que até agora só vi no papel. Por enquanto, só posso chorar a perda de minha esplêndida miragem. Volte, ó branca e resplandecente, volte!
1 Dick Whittington e seu gato é um conto do folclore inglês sobre um menino pobre do século XIII que se torna um rico comerciante e termina como Lord Mayor de Londres devido à habilidade de seu gato como caçador de ratos. (N. T.)
2 Franklin Pierce Adams (1881-1960). (N. T.)
Primeiro foi o ferryboat saindo lentamente da costa de Jersey ao amanhecer — o momento cristalizou-se como meu primeiro símbolo de Nova York. Cinco anos depois, quando eu tinha quinze anos, saía da escola e ia ao centro da cidade para ver Ina Claire em The Quaker Girl e Gertrude Bryan em Little Boy Blue. Indeciso em meu amor melancólico e sem esperança por ambas, não conseguia escolher entre as duas — então elas se fundiram numa deliciosa identidade, a garota. Ela foi meu segundo símbolo de Nova York. O ferryboat representava o triunfo; a garota, o romance. Com o tempo, eu conquistaria um pouco dos dois, mas houve um terceiro símbolo que perdi em algum lugar, e para sempre.
Encontrei-o numa tarde escura de abril, passados outros cinco anos.
“Oi, Bunny”, gritei. “Bunny!”
Ele não me ouviu — meu táxi ficou para trás e alcançou-o de novo meia quadra adiante. Havia poças escuras de chuva na calçada, e o vi caminhando rápido no meio da multidão, usando uma capa de chuva bege sobre o inevitável terno marrom; notei com espanto que ele carregava uma leve bengala.
“Bunny!”, chamei de novo, e desisti. Eu ainda era universitário de Princeton, enquanto ele tinha se tornado um nova-iorquino. Era sua caminhada vespertina, essa correria com a bengala no meio da chuva que caía, e como faltava uma hora para nosso encontro, pareceu-me uma intromissão ir ter com ele quando estava envolvido com sua vida privada. Entretanto, meu táxi continuou emparelhado com ele, continuei observando e fiquei impressionado. Ele já não era o pequeno e tímido acadêmico da Holder Court — andava com firmeza, absorto em seus pensamentos e olhando para a frente, deixando óbvio que seu novo cenário era de todo suficiente para ele. Eu sabia que ele tinha um apartamento onde morava com três outros homens, já livre de todos os tabus de estudante, mas havia algo mais que o nutria, e tive minha primeira impressão dessa novidade: o espírito metropolitano.
Até aquela época, eu só tinha visto a Nova York que se oferecia à inspeção — era como Dick Whittington,1 chegado do campo e boquiaberto com os ursos amestrados, ou um jovem do Midi deslumbrado com os bulevares de Paris. Eu tinha vindo só para ver o espetáculo, embora os projetistas do edifício Woolworth e do painel luminoso da corrida de bigas, os produtores de comédias musicais e peças de tese não pudessem desejar um espectador mais receptivo, já que o estilo e o brilho que eu atribuía a Nova York superavam as expectativas da própria cidade. Mas nunca aceitei nenhum dos convites praticamente anônimos para bailes de debutantes que costumavam aparecer na correspondência de qualquer universitário, talvez porque sentisse que nenhuma realidade estaria à altura da concepção que eu fazia do esplendor de Nova York. Além do mais, aquela que eu chamava insensatamente de “minha garota” era do Meio-Oeste, o que mantinha lá o centro afetivo do mundo, de modo que eu considerava Nova York essencialmente cínica e cruel — exceto por uma noite em que ela iluminou o terraço do Ritz numa breve aparição.
Mais tarde, no entanto, eu a perdera para sempre e queria um mundo masculino, e a visão que tive de Bunny me fez ver Nova York exatamente assim. Uma semana antes, Monsignor Fay me levara ao Lafayette, onde se estendia diante de nós uma fulguração de comida, chamada hors d’oeuvre, que acompanhamos com um clarete tão desafiador quanto a confiante bengala de Bunny — mas afinal de contas tratava-se de um restaurante, e depois teríamos de transpor uma ponte para voltarmos ao interior. A Nova York da dissipação estudantil, de restaurantes como o Bustanoby’s, o Shanley’s e o Jack’s, tinha se tornado um horror, e embora eu tenha voltado a ela, ai de mim, muitas vezes numa névoa de álcool, senti cada volta como uma traição a um idealismo persistente. Minha participação era mais lasciva que licenciosa, e restam poucas lembranças prazerosas daqueles dias. Como disse uma vez Ernest Hemingway, a única finalidade do cabaré é reunir homens descomprometidos e mulheres complacentes. O resto é perda de tempo numa atmosfera viciada.
Naquela noite, porém, no apartamento de Bunny, a vida era mansa e segura, o produto final de uma destilação de tudo que eu aprendera a amar em Princeton. O som agradável de um oboé se misturava aos ruídos urbanos que vinham da rua, penetrando na sala com dificuldade através de enormes barricadas de livros; a única nota dissonante era dada por um homem que rasgava envelopes de convites. Eu tinha encontrado um terceiro símbolo de Nova York e comecei a pensar em alugar um apartamento como aquele e em selecionar amigos com quem dividi-lo.
Improvável — durante os dois anos seguintes, tive tanto controle sobre meu destino quanto um preso sobre o corte de sua roupa. Quando voltei a Nova York, em 1919, minha vida estava tão enrolada que eu não podia nem sonhar com um tranquilo período monástico na Washington Square. O importante era ganhar dinheiro em publicidade, o bastante para alugar um pequeno apartamento no Bronx para duas pessoas. A garota em questão nunca tinha visto Nova York, mas era sensata o suficiente para estar um pouco relutante. E num halo de ansiedade e infelicidade, passei os quatro meses mais vulneráveis de minha vida.
Nova York tinha toda a iridescência do nascimento do mundo. Soldados vindos da guerra desfilaram pela Quinta Avenida, e as garotas eram atraídas instintivamente para leste e norte atrás deles — esta era a maior nação do mundo e havia um clima de gala no ar. Enquanto eu pairava como um fantasma no Salão Vermelho do Plaza numa tarde de sábado, ia a inebriantes festas no entorno da rua 60 Leste, ou bebia com o pessoal de Princeton no bar do Biltmore, era sempre assombrado por minha outra vida — meu quarto ordinário no Bronx, meus centímetros quadrados de metrô, minha obsessão pela carta diária do Alabama — chegaria, e o que diria? —, meus ternos surrados, minha pobreza e o amor. Enquanto meus amigos estavam se dando bem na vida, eu tinha empurrado meu barco precário para a correnteza. A juventude dourada que circulava em volta de Constance Bennett no Club de Vingt, os colegas do clube de Yale-Princeton animados em nossa primeira reunião depois do fim da guerra, o clima das casas de milionários que eu às vezes frequentava — tudo isso era vazio para mim, embora eu admitisse que era um cenário impressionante e lamentasse estar comprometido com outro romance. A mais divertida mesa de almoço ou o cabaré mais onírico — era tudo a mesma coisa. Eu voltava ansiosamente para minha casa na Claremont Avenue — porque poderia haver uma carta esperando diante da porta. Um por um, meus grandes sonhos com Nova York se corromperam. A lembrança do charme do apartamento de Bunny feneceu com todo o resto quando entrevistei uma senhoria desgrenhada no Greenwich Village. Ela disse que eu poderia trazer garotas para o meu quarto, e essa ideia me encheu de desânimo — por que eu ia querer trazer garotas para o meu quarto? Eu tinha uma garota. Perambulava pela cidade, pela rua 127, magoado com sua vitalidade vibrante; ou então comprava ingresso para algum teatro barato na farmácia Gray’s e tentava me perder por algumas horas em minha velha paixão pela Broadway. Eu era um fracasso — medíocre na publicidade e incapaz de me lançar como escritor. Odiando a cidade, bebia até meu último centavo e, caindo de bêbado e choroso, voltava para casa...
... Cidade imprevisível. O que aconteceu depois foi apenas uma entre milhares de histórias de sucesso daqueles dias agitados, mas desempenha um papel em meu próprio filme de Nova York. Quando voltei, seis meses depois, as salas das editoras estavam abertas para mim, agentes imploravam por peças, o cinema ansiava por roteiros. Para minha perplexidade, fui adotado não como um interiorano do Meio-Oeste, nem como observador participante, mas como o arquétipo daquilo que Nova York queria. Essa afirmação demanda certa descrição do que era a metrópole em 1920.
Já existia a cidade branca e alta de hoje, a atividade febricitante do boom, mas havia também uma desarticulação geral. Assim como outros, o colunista F. P. A.2 tomou o pulso da multidão, mas timidamente, como quem observa pela janela. A sociedade e as artes autóctones não se misturavam — Ellen Mackay ainda não se casara com Irving Berlin. Grande parte dos personagens de Peter Arno não teria nenhum significado para os cidadãos de 1920, e, fora a coluna de F. P. A., não existia uma tribuna para a civilidade metropolitana.
Então, por um instante, a ideia de “nova geração” tornou-se uma fusão de muitos elementos da vida de Nova York. Gente de cinquenta anos podia fingir que ainda existia uma nata da sociedade, ou Maxwell Bodenheim podia fingir que existia uma boêmia digna de sua pintura e seu traço — mas a mistura dos elementos brilhantes, alegres e vigorosos começou nessa época, e pela primeira vez apareceu uma sociedade um pouco mais animada que os circunspectos banquetes de Emily Price Post em salões de mogno. Se essa sociedade inventou o coquetel, também desenvolveu o espírito da Park Avenue, e pela primeira vez um europeu culto podia vislumbrar uma viagem a Nova York como algo mais divertido do que uma expedição em busca de ouro no interior da Austrália.
Só por um instante, antes que ficasse demonstrado que eu era incapaz de desempenhar o papel, eu, que sabia sobre Nova York menos que qualquer repórter com seis meses de residência na cidade, e menos sobre sua sociedade do que qualquer rapaz desacompanhado nos bailes do Ritz, fui elevado à posição não só de porta-voz da época, mas de típico produto do momento. Eu, melhor dizendo agora, “nós” não sabíamos exatamente o que Nova York esperava de nós e achamos aquilo muito confuso. Poucos meses depois de embarcar na aventura metropolitana, já mal sabíamos quem éramos e não tínhamos ideia do que éramos. Um mergulho numa fonte pública ou um esbarrão casual com agentes da lei era o bastante para nos levar às colunas de fofocas. Éramos citados com relação a uma vasta quantidade de assuntos sobre os quais nada sabíamos. Na verdade, nossos “contatos” se resumiam a meia dúzia de amigos solteiros da faculdade e uns poucos conhecidos recentes da área literária — lembro de um Natal solitário em que não tínhamos um só amigo na cidade nem uma casa aonde ir. Sem encontrar um núcleo ao qual nos agarrar, nós mesmos nos tornamos um núcleo e aos poucos ajustamos nossas personalidades conturbadas à cena da Nova York contemporânea. Ou melhor, Nova York nos esqueceu e nos deixou ficar.
Este não é um relato das mudanças da cidade, mas das mudanças dos sentimentos deste escritor pela cidade. Da confusão de 1920, lembro de andar na capota de um táxi pela Quinta Avenida deserta numa noite quente de domingo, de um almoço no sereno jardim japonês do Ritz com a melancólica Kay Laurel e George Jean Nathan, de escrever a noite toda repetidamente, de pagar caro por minúsculos apartamentos, e de comprar carros magníficos que enguiçavam toda hora. Tinham aparecido os primeiros bares clandestinos, passear estava fora de moda, o Montmartre era o lugar elegante para dançar e o cabelo louro de Lillian Tashman rodopiava na pista de dança entre universitários embriagados. As peças eram Declassée e Sacred and Profane Love, e no Midnight Frolic você dançava lado a lado com Marion Davies e talvez reconhecesse a animada Mary Hay entre as coristas. Pensávamos que estávamos distantes de tudo aquilo; talvez todo mundo pense que está distante de seu ambiente. Nos sentíamos como duas criancinhas num enorme galpão, iluminado e inexplorado. Reunidos no estúdio de Griffith em Long Island, tremíamos em presença dos rostos familiares do filme O nascimento de uma nação; mais tarde, compreendi que por trás do entretenimento que a cidade despejava sobre a nação não havia mais que um monte de gente perdida e solitária. O mundo dos astros de cinema era como o nosso, na medida em que eles estavam em Nova York, mas não eram de Nova York. Esse mundo tinha pouca noção de si mesmo e nenhum centro: quando conheci Dorothy Gish, tive a sensação de que estávamos os dois no polo Norte e que nevava. Desde então eles encontraram um lar, que não estava destinado a ser Nova York.
Quando nos entediávamos, encarávamos nossa cidade com um capricho à moda de Huysmans. Passávamos uma tarde sozinhos em nosso “apartamento”, comendo sanduíches de azeitona e bebendo um litro de uísque Bushmills que tínhamos ganhado de Zoë Akins, e então saíamos para a cidade enfeitiçada, entrando por portas estranhas em estranhos apartamentos com intermitentes sacolejos em táxis no meio das noites mansas. Pelo menos formávamos um todo com Nova York, levando-a conosco por cada portal. Até hoje entro em muitos apartamentos com a sensação de já ter estado lá antes, ou no de cima, ou no de baixo. Teria sido na noite em que tentei tirar a roupa no Scandals, ou na noite em que (como fiquei sabendo, com assombro, pelos jornais na manhã seguinte) “Fitzgerald esmurra policial até o outro lado do paraíso”? Como ganhar briga não fazia parte das minhas realizações, tentei em vão reconstruir a sequência de eventos que culminou naquele desfecho, no Webster Hall. Finalmente, daquele período, lembro de estar andando de táxi numa tarde entre edifícios altíssimos sob um céu rosa arroxeado; comecei a gritar que tinha tudo o que queria e sabia que nunca mais seria tão feliz.
Foi típico de nossa precária situação em Nova York o fato de que, quando nossa filha estava para nascer, decidimos proceder com segurança e voltamos para St. Paul — parecia inadequado trazer um bebê à luz no meio de todo aquele glamour e daquela solidão. Depois de um ano, porém, estávamos de volta, e começamos a fazer as mesmas coisas outra vez, sem gostar muito delas. Estávamos bastante rodados, embora conservássemos uma inocência quase teatral ao preferir o papel de observados ao de observadores. Mas a inocência não é um fim em si, e à medida que nossa mentalidade amadurecia, contra a nossa vontade, começamos a ver Nova York como um todo e a tentar salvar alguma coisa dela para quando chegassem os seres em que inevitavelmente nos transformaríamos.
Era tarde demais — ou cedo demais. Para nós, a cidade estava indissoluvelmente ligada a divertimentos etílicos, moderados ou fantásticos. Só pudemos nos organizar ao voltar para Long Island, e nem sempre lá. Não tínhamos estímulo para desfrutar a cidade pela metade. Meu primeiro símbolo era agora uma lembrança, pois eu sabia que o triunfo está em nós mesmos; o segundo tinha se transformado em lugar-comum — as duas atrizes que eu cultuava de longe lá pelos idos de 1913 tinham jantado em nossa casa. Mas dava-me certo medo que também o terceiro símbolo tivesse se turvado — não era fácil encontrar a tranquilidade do apartamento de Bunny na cidade sempre acelerada. Bunny tinha se casado e ia ser pai; outros amigos tinham ido para a Europa, e os solteiros frequentavam casas maiores e mais festivas que a nossa. Nessa época, conhecíamos “todo mundo” — ou seja, a maioria das pessoas que Ralph Barton retrataria em seus cartuns numa noite de estreia.
Mas já não éramos importantes. Em 1923, a melindrosa, em cuja conduta se baseara a popularidade de meus primeiros livros, tinha saído de moda — pelo menos no Leste. Decidi impactar a Broadway com uma peça, mas a Broadway mandou seus olheiros a Atlantic City e de saída cancelou a ideia, e assim senti que, naquele momento, a cidade e eu tínhamos pouco a oferecer um ao outro. Eu ia pegar a atmosfera de Long Island que respirara com familiaridade e materializá-la sob céus desconhecidos.
Passaram-se três anos até que víssemos Nova York outra vez. Enquanto o navio deslizava rio acima, a cidade explodia trovejando sobre nós no entardecer — a geleira branca da parte baixa de Nova York mergulhando como os cabos de uma ponte para erguer-se na parte alta da cidade, um milagre de luz e espuma suspenso pelas estrelas. Uma banda começou a tocar no convés, mas diante da majestade da cidade a marcha soava banal e metálica. A partir daquele momento, entendi que Nova York, não importava quantas vezes eu a deixasse, era minha casa.
O ritmo da cidade tinha mudado profundamente. As incertezas de 1920 tinham se afogado num contínuo fragor dourado, e muitos de nossos amigos tinham enriquecido. Mas a agitação da Nova York de 1927 beirava a histeria. As festas eram de arromba — as de Condé Nast, por exemplo, rivalizavam com os lendários bailes da década de 1890; o ritmo era mais acelerado — os convites à dissipação davam exemplo a Paris; os espetáculos eram maiores; os edifícios, mais altos; os costumes, mais lassos; e a bebida, mais barata. Mas todas essas benesses na verdade não proporcionavam muito deleite. Os jovens se desgastavam muito cedo — estavam insensíveis e frágeis aos vinte e um anos e, com exceção de Peter Arno, nenhum deles contribuiu com nada de novo. Talvez Peter Arno e seus colaboradores tenham dito tudo o que havia por dizer sobre os dias do boom de Nova York que não pudesse ser dito por uma orquestra de jazz. Muita gente que não era alcoólatra se embebedava quatro dias por semana, e havia nervos em frangalhos espalhados por toda parte; os grupos permaneciam reunidos por um nervosismo generalizado, e a ressaca tornou-se uma parte do dia tão natural quanto dormir a siesta para os espanhóis. A maior parte dos meus amigos bebia demais — quanto mais sintonizados com a época, mais bebiam. Assim, como o esforço por si só não tinha nenhum valor diante da absoluta permissividade da Nova York daqueles dias, inventou-se um nome pejorativo para ele: uma atividade de sucesso tornou-se uma pilantragem — eu estava na pilantragem literária.
Morávamos a poucas horas de Nova York, e descobri que cada vez que vinha à cidade era pilhado numa complicação de eventos que poucos dias depois me depositavam em estado de exaustão num trem para Delaware. Porções inteiras da cidade tinham crescido de modo insalubre, mas invariavelmente eu encontrava um momento de paz absoluta cruzando o Central Park, no escuro, em direção ao sul, onde as fachadas da rua 59 projetavam suas luzes através das árvores. Ali estava de novo minha cidade perdida, envolvida indiferente em seu mistério e suas promessas. Entretanto, meu afastamento nunca durava muito — da mesma forma que o trabalhador precisa viver no ventre da cidade, eu era compelido a viver em sua mente desordenada.
Como alternativa havia os bares clandestinos — a migração dos bares de luxo, que anunciavam nas publicações de Yale e Princeton, para cervejarias onde o rosto ranzinza do submundo espiava através da boa índole germânica do entretenimento, e depois para lugares estranhos e ainda mais sinistros, onde éramos observados por rapazes com rosto de pedra e nada restava da jovialidade, apenas uma brutalidade que contaminava o novo dia para o qual saíamos. Lembrei-me de 1920, quando choquei um jovem empresário em ascensão sugerindo um coquetel antes do almoço. Em 1929, havia bebida alcoólica em metade dos escritórios do centro e um bar clandestino em metade dos grandes edifícios.
Os bares clandestinos e a Park Avenue tornavam-se cada vez mais de domínio público. Na década anterior, Greenwich Village, Washington Square, Murray Hill e os casarões da Quinta Avenida tinham de certa forma desaparecido, ou se tornado inexpressivos. A cidade estava intumescida, desentranhada, estupidificada com pão e circo, e uma nova expressão — “Ah, é?” — resumia todo o entusiasmo evocado pelo anúncio dos últimos superarranha-céus. Meu barbeiro aposentou-se com o meio milhão ganhado em apostas no mercado, e eu tinha consciência de que os maîtres que me conduziam até minha mesa, ou que não o faziam, estavam muito, muito mais ricos do que eu. Isso não tinha graça — mais uma vez me fartei de Nova York e foi bom me sentir a salvo a bordo de um navio, em cujo bar continuou a festa ininterrupta a caminho da França.
“Quais são as últimas de Nova York?”
“As ações estão subindo. Um bebê matou um bandido.”
“Só isso?”
“Só. Os rádios se esgoelam na rua.”
Eu já chegara a pensar que não havia segundo ato na vida dos americanos, mas certamente haveria um segundo ato aos dias de boom de Nova York. Estávamos em algum lugar do Norte da África quando ouvimos um ruído abafado que ecoou nos cantos mais remotos do deserto.
“O que foi isso?”
“Você ouviu?”
“Não foi nada.”
“Você acha que devíamos voltar e ver?”
“Não. Não foi nada.”
No outono escuro, dois anos depois, vimos Nova York de novo. Passamos por funcionários da alfândega curiosamente corteses e, depois, de cabeça baixa e chapéu na mão, caminhei respeitosamente pela tumba ressonante. Entre as ruínas, uns poucos fantasmas infantis ainda brincavam para manter a farsa de que estavam vivos, porém eram traídos por suas vozes febris e feições frenéticas que revelavam a fragilidade da mascarada. Nos coquetéis, um último resquício oco dos dias de festança, ecoavam os lamentos dos feridos: “Me dê um tiro, pelo amor de Deus, alguém me dê um tiro!”, e os gemidos e queixumes dos moribundos: “Viu que a United States Steel caiu mais três pontos?”. Meu barbeiro voltou a trabalhar em sua loja; mais uma vez os maîtres acompanhavam as pessoas até as mesas, quando havia pessoas a acompanhar. Das ruínas, sozinho e indecifrável como uma esfinge, erguia-se o edifício Empire State e, assim como tinha sido um hábito meu subir ao terraço do Plaza para me despedir da linda cidade, que se estendia até onde a vista podia alcançar, desta vez fui ao último andar da última e mais esplêndida das torres. Foi então que vi que tudo se explicava: eu descobrira o erro fatal da cidade, sua caixa de Pandora. Cheio de empáfia, o nova-iorquino subira só para ver, desolado, o que nunca tinha suspeitado: a cidade não era uma sucessão infinita de cânions, como ele supunha, mas tinha limites — de cima da mais alta das estruturas, ele viu pela primeira vez que ela ia se apagando em direção ao campo por todos os lados, numa imensidão de verde e azul, essa sim sem limites. E com a terrível compreensão de que Nova York afinal era uma cidade, e não um universo, todo o edifício cintilante que ele criara em sua imaginação veio abaixo. Foi esse o presente desavisado de Alfred W. Smith aos cidadãos de Nova York.
Assim eu me despeço da minha cidade perdida. Vista do ferryboat, de manhã cedo, ela já não sugere sucessos fantásticos e eterna juventude. As moças alegres que saracoteiam diante de plateias vazias não me lembram a beleza inefável das garotas de meus sonhos em 1914. E Bunny, girando sobre os calcanhares cheio de si com sua bengala, a caminho de seu retiro num carnaval, aderiu ao comunismo e se preocupa com as injustiças contra os trabalhadores dos moinhos no Sul e os agricultores do Oeste, cujas vozes, quinze anos atrás, nunca teriam atravessado as paredes de seu estúdio.
Tudo está perdido salvo a lembrança, embora eu às vezes me imagine lendo uma edição de 1945 do Daily News: CINQUENTÃO PERDE A CABEÇA EM NOVA YORK
Modelo declara: Fitzgerald enriqueceu à custa de golpes
Abatido por pistoleiro furioso
Então talvez eu esteja destinado a voltar algum dia e encontrar na cidade novas experiências que até agora só vi no papel. Por enquanto, só posso chorar a perda de minha esplêndida miragem. Volte, ó branca e resplandecente, volte!
1 Dick Whittington e seu gato é um conto do folclore inglês sobre um menino pobre do século XIII que se torna um rico comerciante e termina como Lord Mayor de Londres devido à habilidade de seu gato como caçador de ratos. (N. T.)
2 Franklin Pierce Adams (1881-1960). (N. T.)
Primeiro foi o ferryboat saindo lentamente da costa de Jersey ao amanhecer — o momento cristalizou-se como meu primeiro símbolo de Nova York. Cinco anos depois, quando eu tinha quinze anos, saía da escola e ia ao centro da cidade para ver Ina Claire em The Quaker Girl e Gertrude Bryan em Little Boy Blue. Indeciso em meu amor melancólico e sem esperança por ambas, não conseguia escolher entre as duas — então elas se fundiram numa deliciosa identidade, a garota. Ela foi meu segundo símbolo de Nova York. O ferryboat representava o triunfo; a garota, o romance. Com o tempo, eu conquistaria um pouco dos dois, mas houve um terceiro símbolo que perdi em algum lugar, e para sempre.
Encontrei-o numa tarde escura de abril, passados outros cinco anos.
“Oi, Bunny”, gritei. “Bunny!”
Ele não me ouviu — meu táxi ficou para trás e alcançou-o de novo meia quadra adiante. Havia poças escuras de chuva na calçada, e o vi caminhando rápido no meio da multidão, usando uma capa de chuva bege sobre o inevitável terno marrom; notei com espanto que ele carregava uma leve bengala.
“Bunny!”, chamei de novo, e desisti. Eu ainda era universitário de Princeton, enquanto ele tinha se tornado um nova-iorquino. Era sua caminhada vespertina, essa correria com a bengala no meio da chuva que caía, e como faltava uma hora para nosso encontro, pareceu-me uma intromissão ir ter com ele quando estava envolvido com sua vida privada. Entretanto, meu táxi continuou emparelhado com ele, continuei observando e fiquei impressionado. Ele já não era o pequeno e tímido acadêmico da Holder Court — andava com firmeza, absorto em seus pensamentos e olhando para a frente, deixando óbvio que seu novo cenário era de todo suficiente para ele. Eu sabia que ele tinha um apartamento onde morava com três outros homens, já livre de todos os tabus de estudante, mas havia algo mais que o nutria, e tive minha primeira impressão dessa novidade: o espírito metropolitano.
Até aquela época, eu só tinha visto a Nova York que se oferecia à inspeção — era como Dick Whittington,1 chegado do campo e boquiaberto com os ursos amestrados, ou um jovem do Midi deslumbrado com os bulevares de Paris. Eu tinha vindo só para ver o espetáculo, embora os projetistas do edifício Woolworth e do painel luminoso da corrida de bigas, os produtores de comédias musicais e peças de tese não pudessem desejar um espectador mais receptivo, já que o estilo e o brilho que eu atribuía a Nova York superavam as expectativas da própria cidade. Mas nunca aceitei nenhum dos convites praticamente anônimos para bailes de debutantes que costumavam aparecer na correspondência de qualquer universitário, talvez porque sentisse que nenhuma realidade estaria à altura da concepção que eu fazia do esplendor de Nova York. Além do mais, aquela que eu chamava insensatamente de “minha garota” era do Meio-Oeste, o que mantinha lá o centro afetivo do mundo, de modo que eu considerava Nova York essencialmente cínica e cruel — exceto por uma noite em que ela iluminou o terraço do Ritz numa breve aparição.
Mais tarde, no entanto, eu a perdera para sempre e queria um mundo masculino, e a visão que tive de Bunny me fez ver Nova York exatamente assim. Uma semana antes, Monsignor Fay me levara ao Lafayette, onde se estendia diante de nós uma fulguração de comida, chamada hors d’oeuvre, que acompanhamos com um clarete tão desafiador quanto a confiante bengala de Bunny — mas afinal de contas tratava-se de um restaurante, e depois teríamos de transpor uma ponte para voltarmos ao interior. A Nova York da dissipação estudantil, de restaurantes como o Bustanoby’s, o Shanley’s e o Jack’s, tinha se tornado um horror, e embora eu tenha voltado a ela, ai de mim, muitas vezes numa névoa de álcool, senti cada volta como uma traição a um idealismo persistente. Minha participação era mais lasciva que licenciosa, e restam poucas lembranças prazerosas daqueles dias. Como disse uma vez Ernest Hemingway, a única finalidade do cabaré é reunir homens descomprometidos e mulheres complacentes. O resto é perda de tempo numa atmosfera viciada.
Naquela noite, porém, no apartamento de Bunny, a vida era mansa e segura, o produto final de uma destilação de tudo que eu aprendera a amar em Princeton. O som agradável de um oboé se misturava aos ruídos urbanos que vinham da rua, penetrando na sala com dificuldade através de enormes barricadas de livros; a única nota dissonante era dada por um homem que rasgava envelopes de convites. Eu tinha encontrado um terceiro símbolo de Nova York e comecei a pensar em alugar um apartamento como aquele e em selecionar amigos com quem dividi-lo.
Improvável — durante os dois anos seguintes, tive tanto controle sobre meu destino quanto um preso sobre o corte de sua roupa. Quando voltei a Nova York, em 1919, minha vida estava tão enrolada que eu não podia nem sonhar com um tranquilo período monástico na Washington Square. O importante era ganhar dinheiro em publicidade, o bastante para alugar um pequeno apartamento no Bronx para duas pessoas. A garota em questão nunca tinha visto Nova York, mas era sensata o suficiente para estar um pouco relutante. E num halo de ansiedade e infelicidade, passei os quatro meses mais vulneráveis de minha vida.
Nova York tinha toda a iridescência do nascimento do mundo. Soldados vindos da guerra desfilaram pela Quinta Avenida, e as garotas eram atraídas instintivamente para leste e norte atrás deles — esta era a maior nação do mundo e havia um clima de gala no ar. Enquanto eu pairava como um fantasma no Salão Vermelho do Plaza numa tarde de sábado, ia a inebriantes festas no entorno da rua 60 Leste, ou bebia com o pessoal de Princeton no bar do Biltmore, era sempre assombrado por minha outra vida — meu quarto ordinário no Bronx, meus centímetros quadrados de metrô, minha obsessão pela carta diária do Alabama — chegaria, e o que diria? —, meus ternos surrados, minha pobreza e o amor. Enquanto meus amigos estavam se dando bem na vida, eu tinha empurrado meu barco precário para a correnteza. A juventude dourada que circulava em volta de Constance Bennett no Club de Vingt, os colegas do clube de Yale-Princeton animados em nossa primeira reunião depois do fim da guerra, o clima das casas de milionários que eu às vezes frequentava — tudo isso era vazio para mim, embora eu admitisse que era um cenário impressionante e lamentasse estar comprometido com outro romance. A mais divertida mesa de almoço ou o cabaré mais onírico — era tudo a mesma coisa. Eu voltava ansiosamente para minha casa na Claremont Avenue — porque poderia haver uma carta esperando diante da porta. Um por um, meus grandes sonhos com Nova York se corromperam. A lembrança do charme do apartamento de Bunny feneceu com todo o resto quando entrevistei uma senhoria desgrenhada no Greenwich Village. Ela disse que eu poderia trazer garotas para o meu quarto, e essa ideia me encheu de desânimo — por que eu ia querer trazer garotas para o meu quarto? Eu tinha uma garota. Perambulava pela cidade, pela rua 127, magoado com sua vitalidade vibrante; ou então comprava ingresso para algum teatro barato na farmácia Gray’s e tentava me perder por algumas horas em minha velha paixão pela Broadway. Eu era um fracasso — medíocre na publicidade e incapaz de me lançar como escritor. Odiando a cidade, bebia até meu último centavo e, caindo de bêbado e choroso, voltava para casa...
... Cidade imprevisível. O que aconteceu depois foi apenas uma entre milhares de histórias de sucesso daqueles dias agitados, mas desempenha um papel em meu próprio filme de Nova York. Quando voltei, seis meses depois, as salas das editoras estavam abertas para mim, agentes imploravam por peças, o cinema ansiava por roteiros. Para minha perplexidade, fui adotado não como um interiorano do Meio-Oeste, nem como observador participante, mas como o arquétipo daquilo que Nova York queria. Essa afirmação demanda certa descrição do que era a metrópole em 1920.
Já existia a cidade branca e alta de hoje, a atividade febricitante do boom, mas havia também uma desarticulação geral. Assim como outros, o colunista F. P. A.2 tomou o pulso da multidão, mas timidamente, como quem observa pela janela. A sociedade e as artes autóctones não se misturavam — Ellen Mackay ainda não se casara com Irving Berlin. Grande parte dos personagens de Peter Arno não teria nenhum significado para os cidadãos de 1920, e, fora a coluna de F. P. A., não existia uma tribuna para a civilidade metropolitana.
Então, por um instante, a ideia de “nova geração” tornou-se uma fusão de muitos elementos da vida de Nova York. Gente de cinquenta anos podia fingir que ainda existia uma nata da sociedade, ou Maxwell Bodenheim podia fingir que existia uma boêmia digna de sua pintura e seu traço — mas a mistura dos elementos brilhantes, alegres e vigorosos começou nessa época, e pela primeira vez apareceu uma sociedade um pouco mais animada que os circunspectos banquetes de Emily Price Post em salões de mogno. Se essa sociedade inventou o coquetel, também desenvolveu o espírito da Park Avenue, e pela primeira vez um europeu culto podia vislumbrar uma viagem a Nova York como algo mais divertido do que uma expedição em busca de ouro no interior da Austrália.
Só por um instante, antes que ficasse demonstrado que eu era incapaz de desempenhar o papel, eu, que sabia sobre Nova York menos que qualquer repórter com seis meses de residência na cidade, e menos sobre sua sociedade do que qualquer rapaz desacompanhado nos bailes do Ritz, fui elevado à posição não só de porta-voz da época, mas de típico produto do momento. Eu, melhor dizendo agora, “nós” não sabíamos exatamente o que Nova York esperava de nós e achamos aquilo muito confuso. Poucos meses depois de embarcar na aventura metropolitana, já mal sabíamos quem éramos e não tínhamos ideia do que éramos. Um mergulho numa fonte pública ou um esbarrão casual com agentes da lei era o bastante para nos levar às colunas de fofocas. Éramos citados com relação a uma vasta quantidade de assuntos sobre os quais nada sabíamos. Na verdade, nossos “contatos” se resumiam a meia dúzia de amigos solteiros da faculdade e uns poucos conhecidos recentes da área literária — lembro de um Natal solitário em que não tínhamos um só amigo na cidade nem uma casa aonde ir. Sem encontrar um núcleo ao qual nos agarrar, nós mesmos nos tornamos um núcleo e aos poucos ajustamos nossas personalidades conturbadas à cena da Nova York contemporânea. Ou melhor, Nova York nos esqueceu e nos deixou ficar.
Este não é um relato das mudanças da cidade, mas das mudanças dos sentimentos deste escritor pela cidade. Da confusão de 1920, lembro de andar na capota de um táxi pela Quinta Avenida deserta numa noite quente de domingo, de um almoço no sereno jardim japonês do Ritz com a melancólica Kay Laurel e George Jean Nathan, de escrever a noite toda repetidamente, de pagar caro por minúsculos apartamentos, e de comprar carros magníficos que enguiçavam toda hora. Tinham aparecido os primeiros bares clandestinos, passear estava fora de moda, o Montmartre era o lugar elegante para dançar e o cabelo louro de Lillian Tashman rodopiava na pista de dança entre universitários embriagados. As peças eram Declassée e Sacred and Profane Love, e no Midnight Frolic você dançava lado a lado com Marion Davies e talvez reconhecesse a animada Mary Hay entre as coristas. Pensávamos que estávamos distantes de tudo aquilo; talvez todo mundo pense que está distante de seu ambiente. Nos sentíamos como duas criancinhas num enorme galpão, iluminado e inexplorado. Reunidos no estúdio de Griffith em Long Island, tremíamos em presença dos rostos familiares do filme O nascimento de uma nação; mais tarde, compreendi que por trás do entretenimento que a cidade despejava sobre a nação não havia mais que um monte de gente perdida e solitária. O mundo dos astros de cinema era como o nosso, na medida em que eles estavam em Nova York, mas não eram de Nova York. Esse mundo tinha pouca noção de si mesmo e nenhum centro: quando conheci Dorothy Gish, tive a sensação de que estávamos os dois no polo Norte e que nevava. Desde então eles encontraram um lar, que não estava destinado a ser Nova York.
Quando nos entediávamos, encarávamos nossa cidade com um capricho à moda de Huysmans. Passávamos uma tarde sozinhos em nosso “apartamento”, comendo sanduíches de azeitona e bebendo um litro de uísque Bushmills que tínhamos ganhado de Zoë Akins, e então saíamos para a cidade enfeitiçada, entrando por portas estranhas em estranhos apartamentos com intermitentes sacolejos em táxis no meio das noites mansas. Pelo menos formávamos um todo com Nova York, levando-a conosco por cada portal. Até hoje entro em muitos apartamentos com a sensação de já ter estado lá antes, ou no de cima, ou no de baixo. Teria sido na noite em que tentei tirar a roupa no Scandals, ou na noite em que (como fiquei sabendo, com assombro, pelos jornais na manhã seguinte) “Fitzgerald esmurra policial até o outro lado do paraíso”? Como ganhar briga não fazia parte das minhas realizações, tentei em vão reconstruir a sequência de eventos que culminou naquele desfecho, no Webster Hall. Finalmente, daquele período, lembro de estar andando de táxi numa tarde entre edifícios altíssimos sob um céu rosa arroxeado; comecei a gritar que tinha tudo o que queria e sabia que nunca mais seria tão feliz.
Foi típico de nossa precária situação em Nova York o fato de que, quando nossa filha estava para nascer, decidimos proceder com segurança e voltamos para St. Paul — parecia inadequado trazer um bebê à luz no meio de todo aquele glamour e daquela solidão. Depois de um ano, porém, estávamos de volta, e começamos a fazer as mesmas coisas outra vez, sem gostar muito delas. Estávamos bastante rodados, embora conservássemos uma inocência quase teatral ao preferir o papel de observados ao de observadores. Mas a inocência não é um fim em si, e à medida que nossa mentalidade amadurecia, contra a nossa vontade, começamos a ver Nova York como um todo e a tentar salvar alguma coisa dela para quando chegassem os seres em que inevitavelmente nos transformaríamos.
Era tarde demais — ou cedo demais. Para nós, a cidade estava indissoluvelmente ligada a divertimentos etílicos, moderados ou fantásticos. Só pudemos nos organizar ao voltar para Long Island, e nem sempre lá. Não tínhamos estímulo para desfrutar a cidade pela metade. Meu primeiro símbolo era agora uma lembrança, pois eu sabia que o triunfo está em nós mesmos; o segundo tinha se transformado em lugar-comum — as duas atrizes que eu cultuava de longe lá pelos idos de 1913 tinham jantado em nossa casa. Mas dava-me certo medo que também o terceiro símbolo tivesse se turvado — não era fácil encontrar a tranquilidade do apartamento de Bunny na cidade sempre acelerada. Bunny tinha se casado e ia ser pai; outros amigos tinham ido para a Europa, e os solteiros frequentavam casas maiores e mais festivas que a nossa. Nessa época, conhecíamos “todo mundo” — ou seja, a maioria das pessoas que Ralph Barton retrataria em seus cartuns numa noite de estreia.
Mas já não éramos importantes. Em 1923, a melindrosa, em cuja conduta se baseara a popularidade de meus primeiros livros, tinha saído de moda — pelo menos no Leste. Decidi impactar a Broadway com uma peça, mas a Broadway mandou seus olheiros a Atlantic City e de saída cancelou a ideia, e assim senti que, naquele momento, a cidade e eu tínhamos pouco a oferecer um ao outro. Eu ia pegar a atmosfera de Long Island que respirara com familiaridade e materializá-la sob céus desconhecidos.
Passaram-se três anos até que víssemos Nova York outra vez. Enquanto o navio deslizava rio acima, a cidade explodia trovejando sobre nós no entardecer — a geleira branca da parte baixa de Nova York mergulhando como os cabos de uma ponte para erguer-se na parte alta da cidade, um milagre de luz e espuma suspenso pelas estrelas. Uma banda começou a tocar no convés, mas diante da majestade da cidade a marcha soava banal e metálica. A partir daquele momento, entendi que Nova York, não importava quantas vezes eu a deixasse, era minha casa.
O ritmo da cidade tinha mudado profundamente. As incertezas de 1920 tinham se afogado num contínuo fragor dourado, e muitos de nossos amigos tinham enriquecido. Mas a agitação da Nova York de 1927 beirava a histeria. As festas eram de arromba — as de Condé Nast, por exemplo, rivalizavam com os lendários bailes da década de 1890; o ritmo era mais acelerado — os convites à dissipação davam exemplo a Paris; os espetáculos eram maiores; os edifícios, mais altos; os costumes, mais lassos; e a bebida, mais barata. Mas todas essas benesses na verdade não proporcionavam muito deleite. Os jovens se desgastavam muito cedo — estavam insensíveis e frágeis aos vinte e um anos e, com exceção de Peter Arno, nenhum deles contribuiu com nada de novo. Talvez Peter Arno e seus colaboradores tenham dito tudo o que havia por dizer sobre os dias do boom de Nova York que não pudesse ser dito por uma orquestra de jazz. Muita gente que não era alcoólatra se embebedava quatro dias por semana, e havia nervos em frangalhos espalhados por toda parte; os grupos permaneciam reunidos por um nervosismo generalizado, e a ressaca tornou-se uma parte do dia tão natural quanto dormir a siesta para os espanhóis. A maior parte dos meus amigos bebia demais — quanto mais sintonizados com a época, mais bebiam. Assim, como o esforço por si só não tinha nenhum valor diante da absoluta permissividade da Nova York daqueles dias, inventou-se um nome pejorativo para ele: uma atividade de sucesso tornou-se uma pilantragem — eu estava na pilantragem literária.
Morávamos a poucas horas de Nova York, e descobri que cada vez que vinha à cidade era pilhado numa complicação de eventos que poucos dias depois me depositavam em estado de exaustão num trem para Delaware. Porções inteiras da cidade tinham crescido de modo insalubre, mas invariavelmente eu encontrava um momento de paz absoluta cruzando o Central Park, no escuro, em direção ao sul, onde as fachadas da rua 59 projetavam suas luzes através das árvores. Ali estava de novo minha cidade perdida, envolvida indiferente em seu mistério e suas promessas. Entretanto, meu afastamento nunca durava muito — da mesma forma que o trabalhador precisa viver no ventre da cidade, eu era compelido a viver em sua mente desordenada.
Como alternativa havia os bares clandestinos — a migração dos bares de luxo, que anunciavam nas publicações de Yale e Princeton, para cervejarias onde o rosto ranzinza do submundo espiava através da boa índole germânica do entretenimento, e depois para lugares estranhos e ainda mais sinistros, onde éramos observados por rapazes com rosto de pedra e nada restava da jovialidade, apenas uma brutalidade que contaminava o novo dia para o qual saíamos. Lembrei-me de 1920, quando choquei um jovem empresário em ascensão sugerindo um coquetel antes do almoço. Em 1929, havia bebida alcoólica em metade dos escritórios do centro e um bar clandestino em metade dos grandes edifícios.
Os bares clandestinos e a Park Avenue tornavam-se cada vez mais de domínio público. Na década anterior, Greenwich Village, Washington Square, Murray Hill e os casarões da Quinta Avenida tinham de certa forma desaparecido, ou se tornado inexpressivos. A cidade estava intumescida, desentranhada, estupidificada com pão e circo, e uma nova expressão — “Ah, é?” — resumia todo o entusiasmo evocado pelo anúncio dos últimos superarranha-céus. Meu barbeiro aposentou-se com o meio milhão ganhado em apostas no mercado, e eu tinha consciência de que os maîtres que me conduziam até minha mesa, ou que não o faziam, estavam muito, muito mais ricos do que eu. Isso não tinha graça — mais uma vez me fartei de Nova York e foi bom me sentir a salvo a bordo de um navio, em cujo bar continuou a festa ininterrupta a caminho da França.
“Quais são as últimas de Nova York?”
“As ações estão subindo. Um bebê matou um bandido.”
“Só isso?”
“Só. Os rádios se esgoelam na rua.”
Eu já chegara a pensar que não havia segundo ato na vida dos americanos, mas certamente haveria um segundo ato aos dias de boom de Nova York. Estávamos em algum lugar do Norte da África quando ouvimos um ruído abafado que ecoou nos cantos mais remotos do deserto.
“O que foi isso?”
“Você ouviu?”
“Não foi nada.”
“Você acha que devíamos voltar e ver?”
“Não. Não foi nada.”
No outono escuro, dois anos depois, vimos Nova York de novo. Passamos por funcionários da alfândega curiosamente corteses e, depois, de cabeça baixa e chapéu na mão, caminhei respeitosamente pela tumba ressonante. Entre as ruínas, uns poucos fantasmas infantis ainda brincavam para manter a farsa de que estavam vivos, porém eram traídos por suas vozes febris e feições frenéticas que revelavam a fragilidade da mascarada. Nos coquetéis, um último resquício oco dos dias de festança, ecoavam os lamentos dos feridos: “Me dê um tiro, pelo amor de Deus, alguém me dê um tiro!”, e os gemidos e queixumes dos moribundos: “Viu que a United States Steel caiu mais três pontos?”. Meu barbeiro voltou a trabalhar em sua loja; mais uma vez os maîtres acompanhavam as pessoas até as mesas, quando havia pessoas a acompanhar. Das ruínas, sozinho e indecifrável como uma esfinge, erguia-se o edifício Empire State e, assim como tinha sido um hábito meu subir ao terraço do Plaza para me despedir da linda cidade, que se estendia até onde a vista podia alcançar, desta vez fui ao último andar da última e mais esplêndida das torres. Foi então que vi que tudo se explicava: eu descobrira o erro fatal da cidade, sua caixa de Pandora. Cheio de empáfia, o nova-iorquino subira só para ver, desolado, o que nunca tinha suspeitado: a cidade não era uma sucessão infinita de cânions, como ele supunha, mas tinha limites — de cima da mais alta das estruturas, ele viu pela primeira vez que ela ia se apagando em direção ao campo por todos os lados, numa imensidão de verde e azul, essa sim sem limites. E com a terrível compreensão de que Nova York afinal era uma cidade, e não um universo, todo o edifício cintilante que ele criara em sua imaginação veio abaixo. Foi esse o presente desavisado de Alfred W. Smith aos cidadãos de Nova York.
Assim eu me despeço da minha cidade perdida. Vista do ferryboat, de manhã cedo, ela já não sugere sucessos fantásticos e eterna juventude. As moças alegres que saracoteiam diante de plateias vazias não me lembram a beleza inefável das garotas de meus sonhos em 1914. E Bunny, girando sobre os calcanhares cheio de si com sua bengala, a caminho de seu retiro num carnaval, aderiu ao comunismo e se preocupa com as injustiças contra os trabalhadores dos moinhos no Sul e os agricultores do Oeste, cujas vozes, quinze anos atrás, nunca teriam atravessado as paredes de seu estúdio.
Tudo está perdido salvo a lembrança, embora eu às vezes me imagine lendo uma edição de 1945 do Daily News: CINQUENTÃO PERDE A CABEÇA EM NOVA YORK
Modelo declara: Fitzgerald enriqueceu à custa de golpes
Abatido por pistoleiro furioso
Então talvez eu esteja destinado a voltar algum dia e encontrar na cidade novas experiências que até agora só vi no papel. Por enquanto, só posso chorar a perda de minha esplêndida miragem. Volte, ó branca e resplandecente, volte!
1 Dick Whittington e seu gato é um conto do folclore inglês sobre um menino pobre do século XIII que se torna um rico comerciante e termina como Lord Mayor de Londres devido à habilidade de seu gato como caçador de ratos. (N. T.)
2 Franklin Pierce Adams (1881-1960). (N. T.)
Primeiro foi o ferryboat saindo lentamente da costa de Jersey ao amanhecer — o momento cristalizou-se como meu primeiro símbolo de Nova York. Cinco anos depois, quando eu tinha quinze anos, saía da escola e ia ao centro da cidade para ver Ina Claire em The Quaker Girl e Gertrude Bryan em Little Boy Blue. Indeciso em meu amor melancólico e sem esperança por ambas, não conseguia escolher entre as duas — então elas se fundiram numa deliciosa identidade, a garota. Ela foi meu segundo símbolo de Nova York. O ferryboat representava o triunfo; a garota, o romance. Com o tempo, eu conquistaria um pouco dos dois, mas houve um terceiro símbolo que perdi em algum lugar, e para sempre.
Encontrei-o numa tarde escura de abril, passados outros cinco anos.
“Oi, Bunny”, gritei. “Bunny!”
Ele não me ouviu — meu táxi ficou para trás e alcançou-o de novo meia quadra adiante. Havia poças escuras de chuva na calçada, e o vi caminhando rápido no meio da multidão, usando uma capa de chuva bege sobre o inevitável terno marrom; notei com espanto que ele carregava uma leve bengala.
“Bunny!”, chamei de novo, e desisti. Eu ainda era universitário de Princeton, enquanto ele tinha se tornado um nova-iorquino. Era sua caminhada vespertina, essa correria com a bengala no meio da chuva que caía, e como faltava uma hora para nosso encontro, pareceu-me uma intromissão ir ter com ele quando estava envolvido com sua vida privada. Entretanto, meu táxi continuou emparelhado com ele, continuei observando e fiquei impressionado. Ele já não era o pequeno e tímido acadêmico da Holder Court — andava com firmeza, absorto em seus pensamentos e olhando para a frente, deixando óbvio que seu novo cenário era de todo suficiente para ele. Eu sabia que ele tinha um apartamento onde morava com três outros homens, já livre de todos os tabus de estudante, mas havia algo mais que o nutria, e tive minha primeira impressão dessa novidade: o espírito metropolitano.
Até aquela época, eu só tinha visto a Nova York que se oferecia à inspeção — era como Dick Whittington,1 chegado do campo e boquiaberto com os ursos amestrados, ou um jovem do Midi deslumbrado com os bulevares de Paris. Eu tinha vindo só para ver o espetáculo, embora os projetistas do edifício Woolworth e do painel luminoso da corrida de bigas, os produtores de comédias musicais e peças de tese não pudessem desejar um espectador mais receptivo, já que o estilo e o brilho que eu atribuía a Nova York superavam as expectativas da própria cidade. Mas nunca aceitei nenhum dos convites praticamente anônimos para bailes de debutantes que costumavam aparecer na correspondência de qualquer universitário, talvez porque sentisse que nenhuma realidade estaria à altura da concepção que eu fazia do esplendor de Nova York. Além do mais, aquela que eu chamava insensatamente de “minha garota” era do Meio-Oeste, o que mantinha lá o centro afetivo do mundo, de modo que eu considerava Nova York essencialmente cínica e cruel — exceto por uma noite em que ela iluminou o terraço do Ritz numa breve aparição.
Mais tarde, no entanto, eu a perdera para sempre e queria um mundo masculino, e a visão que tive de Bunny me fez ver Nova York exatamente assim. Uma semana antes, Monsignor Fay me levara ao Lafayette, onde se estendia diante de nós uma fulguração de comida, chamada hors d’oeuvre, que acompanhamos com um clarete tão desafiador quanto a confiante bengala de Bunny — mas afinal de contas tratava-se de um restaurante, e depois teríamos de transpor uma ponte para voltarmos ao interior. A Nova York da dissipação estudantil, de restaurantes como o Bustanoby’s, o Shanley’s e o Jack’s, tinha se tornado um horror, e embora eu tenha voltado a ela, ai de mim, muitas vezes numa névoa de álcool, senti cada volta como uma traição a um idealismo persistente. Minha participação era mais lasciva que licenciosa, e restam poucas lembranças prazerosas daqueles dias. Como disse uma vez Ernest Hemingway, a única finalidade do cabaré é reunir homens descomprometidos e mulheres complacentes. O resto é perda de tempo numa atmosfera viciada.
Naquela noite, porém, no apartamento de Bunny, a vida era mansa e segura, o produto final de uma destilação de tudo que eu aprendera a amar em Princeton. O som agradável de um oboé se misturava aos ruídos urbanos que vinham da rua, penetrando na sala com dificuldade através de enormes barricadas de livros; a única nota dissonante era dada por um homem que rasgava envelopes de convites. Eu tinha encontrado um terceiro símbolo de Nova York e comecei a pensar em alugar um apartamento como aquele e em selecionar amigos com quem dividi-lo.
Improvável — durante os dois anos seguintes, tive tanto controle sobre meu destino quanto um preso sobre o corte de sua roupa. Quando voltei a Nova York, em 1919, minha vida estava tão enrolada que eu não podia nem sonhar com um tranquilo período monástico na Washington Square. O importante era ganhar dinheiro em publicidade, o bastante para alugar um pequeno apartamento no Bronx para duas pessoas. A garota em questão nunca tinha visto Nova York, mas era sensata o suficiente para estar um pouco relutante. E num halo de ansiedade e infelicidade, passei os quatro meses mais vulneráveis de minha vida.
Nova York tinha toda a iridescência do nascimento do mundo. Soldados vindos da guerra desfilaram pela Quinta Avenida, e as garotas eram atraídas instintivamente para leste e norte atrás deles — esta era a maior nação do mundo e havia um clima de gala no ar. Enquanto eu pairava como um fantasma no Salão Vermelho do Plaza numa tarde de sábado, ia a inebriantes festas no entorno da rua 60 Leste, ou bebia com o pessoal de Princeton no bar do Biltmore, era sempre assombrado por minha outra vida — meu quarto ordinário no Bronx, meus centímetros quadrados de metrô, minha obsessão pela carta diária do Alabama — chegaria, e o que diria? —, meus ternos surrados, minha pobreza e o amor. Enquanto meus amigos estavam se dando bem na vida, eu tinha empurrado meu barco precário para a correnteza. A juventude dourada que circulava em volta de Constance Bennett no Club de Vingt, os colegas do clube de Yale-Princeton animados em nossa primeira reunião depois do fim da guerra, o clima das casas de milionários que eu às vezes frequentava — tudo isso era vazio para mim, embora eu admitisse que era um cenário impressionante e lamentasse estar comprometido com outro romance. A mais divertida mesa de almoço ou o cabaré mais onírico — era tudo a mesma coisa. Eu voltava ansiosamente para minha casa na Claremont Avenue — porque poderia haver uma carta esperando diante da porta. Um por um, meus grandes sonhos com Nova York se corromperam. A lembrança do charme do apartamento de Bunny feneceu com todo o resto quando entrevistei uma senhoria desgrenhada no Greenwich Village. Ela disse que eu poderia trazer garotas para o meu quarto, e essa ideia me encheu de desânimo — por que eu ia querer trazer garotas para o meu quarto? Eu tinha uma garota. Perambulava pela cidade, pela rua 127, magoado com sua vitalidade vibrante; ou então comprava ingresso para algum teatro barato na farmácia Gray’s e tentava me perder por algumas horas em minha velha paixão pela Broadway. Eu era um fracasso — medíocre na publicidade e incapaz de me lançar como escritor. Odiando a cidade, bebia até meu último centavo e, caindo de bêbado e choroso, voltava para casa...
... Cidade imprevisível. O que aconteceu depois foi apenas uma entre milhares de histórias de sucesso daqueles dias agitados, mas desempenha um papel em meu próprio filme de Nova York. Quando voltei, seis meses depois, as salas das editoras estavam abertas para mim, agentes imploravam por peças, o cinema ansiava por roteiros. Para minha perplexidade, fui adotado não como um interiorano do Meio-Oeste, nem como observador participante, mas como o arquétipo daquilo que Nova York queria. Essa afirmação demanda certa descrição do que era a metrópole em 1920.
Já existia a cidade branca e alta de hoje, a atividade febricitante do boom, mas havia também uma desarticulação geral. Assim como outros, o colunista F. P. A.2 tomou o pulso da multidão, mas timidamente, como quem observa pela janela. A sociedade e as artes autóctones não se misturavam — Ellen Mackay ainda não se casara com Irving Berlin. Grande parte dos personagens de Peter Arno não teria nenhum significado para os cidadãos de 1920, e, fora a coluna de F. P. A., não existia uma tribuna para a civilidade metropolitana.
Então, por um instante, a ideia de “nova geração” tornou-se uma fusão de muitos elementos da vida de Nova York. Gente de cinquenta anos podia fingir que ainda existia uma nata da sociedade, ou Maxwell Bodenheim podia fingir que existia uma boêmia digna de sua pintura e seu traço — mas a mistura dos elementos brilhantes, alegres e vigorosos começou nessa época, e pela primeira vez apareceu uma sociedade um pouco mais animada que os circunspectos banquetes de Emily Price Post em salões de mogno. Se essa sociedade inventou o coquetel, também desenvolveu o espírito da Park Avenue, e pela primeira vez um europeu culto podia vislumbrar uma viagem a Nova York como algo mais divertido do que uma expedição em busca de ouro no interior da Austrália.
Só por um instante, antes que ficasse demonstrado que eu era incapaz de desempenhar o papel, eu, que sabia sobre Nova York menos que qualquer repórter com seis meses de residência na cidade, e menos sobre sua sociedade do que qualquer rapaz desacompanhado nos bailes do Ritz, fui elevado à posição não só de porta-voz da época, mas de típico produto do momento. Eu, melhor dizendo agora, “nós” não sabíamos exatamente o que Nova York esperava de nós e achamos aquilo muito confuso. Poucos meses depois de embarcar na aventura metropolitana, já mal sabíamos quem éramos e não tínhamos ideia do que éramos. Um mergulho numa fonte pública ou um esbarrão casual com agentes da lei era o bastante para nos levar às colunas de fofocas. Éramos citados com relação a uma vasta quantidade de assuntos sobre os quais nada sabíamos. Na verdade, nossos “contatos” se resumiam a meia dúzia de amigos solteiros da faculdade e uns poucos conhecidos recentes da área literária — lembro de um Natal solitário em que não tínhamos um só amigo na cidade nem uma casa aonde ir. Sem encontrar um núcleo ao qual nos agarrar, nós mesmos nos tornamos um núcleo e aos poucos ajustamos nossas personalidades conturbadas à cena da Nova York contemporânea. Ou melhor, Nova York nos esqueceu e nos deixou ficar.
Este não é um relato das mudanças da cidade, mas das mudanças dos sentimentos deste escritor pela cidade. Da confusão de 1920, lembro de andar na capota de um táxi pela Quinta Avenida deserta numa noite quente de domingo, de um almoço no sereno jardim japonês do Ritz com a melancólica Kay Laurel e George Jean Nathan, de escrever a noite toda repetidamente, de pagar caro por minúsculos apartamentos, e de comprar carros magníficos que enguiçavam toda hora. Tinham aparecido os primeiros bares clandestinos, passear estava fora de moda, o Montmartre era o lugar elegante para dançar e o cabelo louro de Lillian Tashman rodopiava na pista de dança entre universitários embriagados. As peças eram Declassée e Sacred and Profane Love, e no Midnight Frolic você dançava lado a lado com Marion Davies e talvez reconhecesse a animada Mary Hay entre as coristas. Pensávamos que estávamos distantes de tudo aquilo; talvez todo mundo pense que está distante de seu ambiente. Nos sentíamos como duas criancinhas num enorme galpão, iluminado e inexplorado. Reunidos no estúdio de Griffith em Long Island, tremíamos em presença dos rostos familiares do filme O nascimento de uma nação; mais tarde, compreendi que por trás do entretenimento que a cidade despejava sobre a nação não havia mais que um monte de gente perdida e solitária. O mundo dos astros de cinema era como o nosso, na medida em que eles estavam em Nova York, mas não eram de Nova York. Esse mundo tinha pouca noção de si mesmo e nenhum centro: quando conheci Dorothy Gish, tive a sensação de que estávamos os dois no polo Norte e que nevava. Desde então eles encontraram um lar, que não estava destinado a ser Nova York.
Quando nos entediávamos, encarávamos nossa cidade com um capricho à moda de Huysmans. Passávamos uma tarde sozinhos em nosso “apartamento”, comendo sanduíches de azeitona e bebendo um litro de uísque Bushmills que tínhamos ganhado de Zoë Akins, e então saíamos para a cidade enfeitiçada, entrando por portas estranhas em estranhos apartamentos com intermitentes sacolejos em táxis no meio das noites mansas. Pelo menos formávamos um todo com Nova York, levando-a conosco por cada portal. Até hoje entro em muitos apartamentos com a sensação de já ter estado lá antes, ou no de cima, ou no de baixo. Teria sido na noite em que tentei tirar a roupa no Scandals, ou na noite em que (como fiquei sabendo, com assombro, pelos jornais na manhã seguinte) “Fitzgerald esmurra policial até o outro lado do paraíso”? Como ganhar briga não fazia parte das minhas realizações, tentei em vão reconstruir a sequência de eventos que culminou naquele desfecho, no Webster Hall. Finalmente, daquele período, lembro de estar andando de táxi numa tarde entre edifícios altíssimos sob um céu rosa arroxeado; comecei a gritar que tinha tudo o que queria e sabia que nunca mais seria tão feliz.
Foi típico de nossa precária situação em Nova York o fato de que, quando nossa filha estava para nascer, decidimos proceder com segurança e voltamos para St. Paul — parecia inadequado trazer um bebê à luz no meio de todo aquele glamour e daquela solidão. Depois de um ano, porém, estávamos de volta, e começamos a fazer as mesmas coisas outra vez, sem gostar muito delas. Estávamos bastante rodados, embora conservássemos uma inocência quase teatral ao preferir o papel de observados ao de observadores. Mas a inocência não é um fim em si, e à medida que nossa mentalidade amadurecia, contra a nossa vontade, começamos a ver Nova York como um todo e a tentar salvar alguma coisa dela para quando chegassem os seres em que inevitavelmente nos transformaríamos.
Era tarde demais — ou cedo demais. Para nós, a cidade estava indissoluvelmente ligada a divertimentos etílicos, moderados ou fantásticos. Só pudemos nos organizar ao voltar para Long Island, e nem sempre lá. Não tínhamos estímulo para desfrutar a cidade pela metade. Meu primeiro símbolo era agora uma lembrança, pois eu sabia que o triunfo está em nós mesmos; o segundo tinha se transformado em lugar-comum — as duas atrizes que eu cultuava de longe lá pelos idos de 1913 tinham jantado em nossa casa. Mas dava-me certo medo que também o terceiro símbolo tivesse se turvado — não era fácil encontrar a tranquilidade do apartamento de Bunny na cidade sempre acelerada. Bunny tinha se casado e ia ser pai; outros amigos tinham ido para a Europa, e os solteiros frequentavam casas maiores e mais festivas que a nossa. Nessa época, conhecíamos “todo mundo” — ou seja, a maioria das pessoas que Ralph Barton retrataria em seus cartuns numa noite de estreia.
Mas já não éramos importantes. Em 1923, a melindrosa, em cuja conduta se baseara a popularidade de meus primeiros livros, tinha saído de moda — pelo menos no Leste. Decidi impactar a Broadway com uma peça, mas a Broadway mandou seus olheiros a Atlantic City e de saída cancelou a ideia, e assim senti que, naquele momento, a cidade e eu tínhamos pouco a oferecer um ao outro. Eu ia pegar a atmosfera de Long Island que respirara com familiaridade e materializá-la sob céus desconhecidos.
Passaram-se três anos até que víssemos Nova York outra vez. Enquanto o navio deslizava rio acima, a cidade explodia trovejando sobre nós no entardecer — a geleira branca da parte baixa de Nova York mergulhando como os cabos de uma ponte para erguer-se na parte alta da cidade, um milagre de luz e espuma suspenso pelas estrelas. Uma banda começou a tocar no convés, mas diante da majestade da cidade a marcha soava banal e metálica. A partir daquele momento, entendi que Nova York, não importava quantas vezes eu a deixasse, era minha casa.
O ritmo da cidade tinha mudado profundamente. As incertezas de 1920 tinham se afogado num contínuo fragor dourado, e muitos de nossos amigos tinham enriquecido. Mas a agitação da Nova York de 1927 beirava a histeria. As festas eram de arromba — as de Condé Nast, por exemplo, rivalizavam com os lendários bailes da década de 1890; o ritmo era mais acelerado — os convites à dissipação davam exemplo a Paris; os espetáculos eram maiores; os edifícios, mais altos; os costumes, mais lassos; e a bebida, mais barata. Mas todas essas benesses na verdade não proporcionavam muito deleite. Os jovens se desgastavam muito cedo — estavam insensíveis e frágeis aos vinte e um anos e, com exceção de Peter Arno, nenhum deles contribuiu com nada de novo. Talvez Peter Arno e seus colaboradores tenham dito tudo o que havia por dizer sobre os dias do boom de Nova York que não pudesse ser dito por uma orquestra de jazz. Muita gente que não era alcoólatra se embebedava quatro dias por semana, e havia nervos em frangalhos espalhados por toda parte; os grupos permaneciam reunidos por um nervosismo generalizado, e a ressaca tornou-se uma parte do dia tão natural quanto dormir a siesta para os espanhóis. A maior parte dos meus amigos bebia demais — quanto mais sintonizados com a época, mais bebiam. Assim, como o esforço por si só não tinha nenhum valor diante da absoluta permissividade da Nova York daqueles dias, inventou-se um nome pejorativo para ele: uma atividade de sucesso tornou-se uma pilantragem — eu estava na pilantragem literária.
Morávamos a poucas horas de Nova York, e descobri que cada vez que vinha à cidade era pilhado numa complicação de eventos que poucos dias depois me depositavam em estado de exaustão num trem para Delaware. Porções inteiras da cidade tinham crescido de modo insalubre, mas invariavelmente eu encontrava um momento de paz absoluta cruzando o Central Park, no escuro, em direção ao sul, onde as fachadas da rua 59 projetavam suas luzes através das árvores. Ali estava de novo minha cidade perdida, envolvida indiferente em seu mistério e suas promessas. Entretanto, meu afastamento nunca durava muito — da mesma forma que o trabalhador precisa viver no ventre da cidade, eu era compelido a viver em sua mente desordenada.
Como alternativa havia os bares clandestinos — a migração dos bares de luxo, que anunciavam nas publicações de Yale e Princeton, para cervejarias onde o rosto ranzinza do submundo espiava através da boa índole germânica do entretenimento, e depois para lugares estranhos e ainda mais sinistros, onde éramos observados por rapazes com rosto de pedra e nada restava da jovialidade, apenas uma brutalidade que contaminava o novo dia para o qual saíamos. Lembrei-me de 1920, quando choquei um jovem empresário em ascensão sugerindo um coquetel antes do almoço. Em 1929, havia bebida alcoólica em metade dos escritórios do centro e um bar clandestino em metade dos grandes edifícios.
Os bares clandestinos e a Park Avenue tornavam-se cada vez mais de domínio público. Na década anterior, Greenwich Village, Washington Square, Murray Hill e os casarões da Quinta Avenida tinham de certa forma desaparecido, ou se tornado inexpressivos. A cidade estava intumescida, desentranhada, estupidificada com pão e circo, e uma nova expressão — “Ah, é?” — resumia todo o entusiasmo evocado pelo anúncio dos últimos superarranha-céus. Meu barbeiro aposentou-se com o meio milhão ganhado em apostas no mercado, e eu tinha consciência de que os maîtres que me conduziam até minha mesa, ou que não o faziam, estavam muito, muito mais ricos do que eu. Isso não tinha graça — mais uma vez me fartei de Nova York e foi bom me sentir a salvo a bordo de um navio, em cujo bar continuou a festa ininterrupta a caminho da França.
“Quais são as últimas de Nova York?”
“As ações estão subindo. Um bebê matou um bandido.”
“Só isso?”
“Só. Os rádios se esgoelam na rua.”
Eu já chegara a pensar que não havia segundo ato na vida dos americanos, mas certamente haveria um segundo ato aos dias de boom de Nova York. Estávamos em algum lugar do Norte da África quando ouvimos um ruído abafado que ecoou nos cantos mais remotos do deserto.
“O que foi isso?”
“Você ouviu?”
“Não foi nada.”
“Você acha que devíamos voltar e ver?”
“Não. Não foi nada.”
No outono escuro, dois anos depois, vimos Nova York de novo. Passamos por funcionários da alfândega curiosamente corteses e, depois, de cabeça baixa e chapéu na mão, caminhei respeitosamente pela tumba ressonante. Entre as ruínas, uns poucos fantasmas infantis ainda brincavam para manter a farsa de que estavam vivos, porém eram traídos por suas vozes febris e feições frenéticas que revelavam a fragilidade da mascarada. Nos coquetéis, um último resquício oco dos dias de festança, ecoavam os lamentos dos feridos: “Me dê um tiro, pelo amor de Deus, alguém me dê um tiro!”, e os gemidos e queixumes dos moribundos: “Viu que a United States Steel caiu mais três pontos?”. Meu barbeiro voltou a trabalhar em sua loja; mais uma vez os maîtres acompanhavam as pessoas até as mesas, quando havia pessoas a acompanhar. Das ruínas, sozinho e indecifrável como uma esfinge, erguia-se o edifício Empire State e, assim como tinha sido um hábito meu subir ao terraço do Plaza para me despedir da linda cidade, que se estendia até onde a vista podia alcançar, desta vez fui ao último andar da última e mais esplêndida das torres. Foi então que vi que tudo se explicava: eu descobrira o erro fatal da cidade, sua caixa de Pandora. Cheio de empáfia, o nova-iorquino subira só para ver, desolado, o que nunca tinha suspeitado: a cidade não era uma sucessão infinita de cânions, como ele supunha, mas tinha limites — de cima da mais alta das estruturas, ele viu pela primeira vez que ela ia se apagando em direção ao campo por todos os lados, numa imensidão de verde e azul, essa sim sem limites. E com a terrível compreensão de que Nova York afinal era uma cidade, e não um universo, todo o edifício cintilante que ele criara em sua imaginação veio abaixo. Foi esse o presente desavisado de Alfred W. Smith aos cidadãos de Nova York.
Assim eu me despeço da minha cidade perdida. Vista do ferryboat, de manhã cedo, ela já não sugere sucessos fantásticos e eterna juventude. As moças alegres que saracoteiam diante de plateias vazias não me lembram a beleza inefável das garotas de meus sonhos em 1914. E Bunny, girando sobre os calcanhares cheio de si com sua bengala, a caminho de seu retiro num carnaval, aderiu ao comunismo e se preocupa com as injustiças contra os trabalhadores dos moinhos no Sul e os agricultores do Oeste, cujas vozes, quinze anos atrás, nunca teriam atravessado as paredes de seu estúdio.
Tudo está perdido salvo a lembrança, embora eu às vezes me imagine lendo uma edição de 1945 do Daily News: CINQUENTÃO PERDE A CABEÇA EM NOVA YORK
Modelo declara: Fitzgerald enriqueceu à custa de golpes
Abatido por pistoleiro furioso
Então talvez eu esteja destinado a voltar algum dia e encontrar na cidade novas experiências que até agora só vi no papel. Por enquanto, só posso chorar a perda de minha esplêndida miragem. Volte, ó branca e resplandecente, volte!
1 Dick Whittington e seu gato é um conto do folclore inglês sobre um menino pobre do século XIII que se torna um rico comerciante e termina como Lord Mayor de Londres devido à habilidade de seu gato como caçador de ratos. (N. T.)
2 Franklin Pierce Adams (1881-1960). (N. T.)
Primeiro foi o ferryboat saindo lentamente da costa de Jersey ao amanhecer — o momento cristalizou-se como meu primeiro símbolo de Nova York. Cinco anos depois, quando eu tinha quinze anos, saía da escola e ia ao centro da cidade para ver Ina Claire em The Quaker Girl e Gertrude Bryan em Little Boy Blue. Indeciso em meu amor melancólico e sem esperança por ambas, não conseguia escolher entre as duas — então elas se fundiram numa deliciosa identidade, a garota. Ela foi meu segundo símbolo de Nova York. O ferryboat representava o triunfo; a garota, o romance. Com o tempo, eu conquistaria um pouco dos dois, mas houve um terceiro símbolo que perdi em algum lugar, e para sempre.
Encontrei-o numa tarde escura de abril, passados outros cinco anos.
“Oi, Bunny”, gritei. “Bunny!”
Ele não me ouviu — meu táxi ficou para trás e alcançou-o de novo meia quadra adiante. Havia poças escuras de chuva na calçada, e o vi caminhando rápido no meio da multidão, usando uma capa de chuva bege sobre o inevitável terno marrom; notei com espanto que ele carregava uma leve bengala.
“Bunny!”, chamei de novo, e desisti. Eu ainda era universitário de Princeton, enquanto ele tinha se tornado um nova-iorquino. Era sua caminhada vespertina, essa correria com a bengala no meio da chuva que caía, e como faltava uma hora para nosso encontro, pareceu-me uma intromissão ir ter com ele quando estava envolvido com sua vida privada. Entretanto, meu táxi continuou emparelhado com ele, continuei observando e fiquei impressionado. Ele já não era o pequeno e tímido acadêmico da Holder Court — andava com firmeza, absorto em seus pensamentos e olhando para a frente, deixando óbvio que seu novo cenário era de todo suficiente para ele. Eu sabia que ele tinha um apartamento onde morava com três outros homens, já livre de todos os tabus de estudante, mas havia algo mais que o nutria, e tive minha primeira impressão dessa novidade: o espírito metropolitano.
Até aquela época, eu só tinha visto a Nova York que se oferecia à inspeção — era como Dick Whittington,1 chegado do campo e boquiaberto com os ursos amestrados, ou um jovem do Midi deslumbrado com os bulevares de Paris. Eu tinha vindo só para ver o espetáculo, embora os projetistas do edifício Woolworth e do painel luminoso da corrida de bigas, os produtores de comédias musicais e peças de tese não pudessem desejar um espectador mais receptivo, já que o estilo e o brilho que eu atribuía a Nova York superavam as expectativas da própria cidade. Mas nunca aceitei nenhum dos convites praticamente anônimos para bailes de debutantes que costumavam aparecer na correspondência de qualquer universitário, talvez porque sentisse que nenhuma realidade estaria à altura da concepção que eu fazia do esplendor de Nova York. Além do mais, aquela que eu chamava insensatamente de “minha garota” era do Meio-Oeste, o que mantinha lá o centro afetivo do mundo, de modo que eu considerava Nova York essencialmente cínica e cruel — exceto por uma noite em que ela iluminou o terraço do Ritz numa breve aparição.
Mais tarde, no entanto, eu a perdera para sempre e queria um mundo masculino, e a visão que tive de Bunny me fez ver Nova York exatamente assim. Uma semana antes, Monsignor Fay me levara ao Lafayette, onde se estendia diante de nós uma fulguração de comida, chamada hors d’oeuvre, que acompanhamos com um clarete tão desafiador quanto a confiante bengala de Bunny — mas afinal de contas tratava-se de um restaurante, e depois teríamos de transpor uma ponte para voltarmos ao interior. A Nova York da dissipação estudantil, de restaurantes como o Bustanoby’s, o Shanley’s e o Jack’s, tinha se tornado um horror, e embora eu tenha voltado a ela, ai de mim, muitas vezes numa névoa de álcool, senti cada volta como uma traição a um idealismo persistente. Minha participação era mais lasciva que licenciosa, e restam poucas lembranças prazerosas daqueles dias. Como disse uma vez Ernest Hemingway, a única finalidade do cabaré é reunir homens descomprometidos e mulheres complacentes. O resto é perda de tempo numa atmosfera viciada.
Naquela noite, porém, no apartamento de Bunny, a vida era mansa e segura, o produto final de uma destilação de tudo que eu aprendera a amar em Princeton. O som agradável de um oboé se misturava aos ruídos urbanos que vinham da rua, penetrando na sala com dificuldade através de enormes barricadas de livros; a única nota dissonante era dada por um homem que rasgava envelopes de convites. Eu tinha encontrado um terceiro símbolo de Nova York e comecei a pensar em alugar um apartamento como aquele e em selecionar amigos com quem dividi-lo.
Improvável — durante os dois anos seguintes, tive tanto controle sobre meu destino quanto um preso sobre o corte de sua roupa. Quando voltei a Nova York, em 1919, minha vida estava tão enrolada que eu não podia nem sonhar com um tranquilo período monástico na Washington Square. O importante era ganhar dinheiro em publicidade, o bastante para alugar um pequeno apartamento no Bronx para duas pessoas. A garota em questão nunca tinha visto Nova York, mas era sensata o suficiente para estar um pouco relutante. E num halo de ansiedade e infelicidade, passei os quatro meses mais vulneráveis de minha vida.
Nova York tinha toda a iridescência do nascimento do mundo. Soldados vindos da guerra desfilaram pela Quinta Avenida, e as garotas eram atraídas instintivamente para leste e norte atrás deles — esta era a maior nação do mundo e havia um clima de gala no ar. Enquanto eu pairava como um fantasma no Salão Vermelho do Plaza numa tarde de sábado, ia a inebriantes festas no entorno da rua 60 Leste, ou bebia com o pessoal de Princeton no bar do Biltmore, era sempre assombrado por minha outra vida — meu quarto ordinário no Bronx, meus centímetros quadrados de metrô, minha obsessão pela carta diária do Alabama — chegaria, e o que diria? —, meus ternos surrados, minha pobreza e o amor. Enquanto meus amigos estavam se dando bem na vida, eu tinha empurrado meu barco precário para a correnteza. A juventude dourada que circulava em volta de Constance Bennett no Club de Vingt, os colegas do clube de Yale-Princeton animados em nossa primeira reunião depois do fim da guerra, o clima das casas de milionários que eu às vezes frequentava — tudo isso era vazio para mim, embora eu admitisse que era um cenário impressionante e lamentasse estar comprometido com outro romance. A mais divertida mesa de almoço ou o cabaré mais onírico — era tudo a mesma coisa. Eu voltava ansiosamente para minha casa na Claremont Avenue — porque poderia haver uma carta esperando diante da porta. Um por um, meus grandes sonhos com Nova York se corromperam. A lembrança do charme do apartamento de Bunny feneceu com todo o resto quando entrevistei uma senhoria desgrenhada no Greenwich Village. Ela disse que eu poderia trazer garotas para o meu quarto, e essa ideia me encheu de desânimo — por que eu ia querer trazer garotas para o meu quarto? Eu tinha uma garota. Perambulava pela cidade, pela rua 127, magoado com sua vitalidade vibrante; ou então comprava ingresso para algum teatro barato na farmácia Gray’s e tentava me perder por algumas horas em minha velha paixão pela Broadway. Eu era um fracasso — medíocre na publicidade e incapaz de me lançar como escritor. Odiando a cidade, bebia até meu último centavo e, caindo de bêbado e choroso, voltava para casa...
... Cidade imprevisível. O que aconteceu depois foi apenas uma entre milhares de histórias de sucesso daqueles dias agitados, mas desempenha um papel em meu próprio filme de Nova York. Quando voltei, seis meses depois, as salas das editoras estavam abertas para mim, agentes imploravam por peças, o cinema ansiava por roteiros. Para minha perplexidade, fui adotado não como um interiorano do Meio-Oeste, nem como observador participante, mas como o arquétipo daquilo que Nova York queria. Essa afirmação demanda certa descrição do que era a metrópole em 1920.
Já existia a cidade branca e alta de hoje, a atividade febricitante do boom, mas havia também uma desarticulação geral. Assim como outros, o colunista F. P. A.2 tomou o pulso da multidão, mas timidamente, como quem observa pela janela. A sociedade e as artes autóctones não se misturavam — Ellen Mackay ainda não se casara com Irving Berlin. Grande parte dos personagens de Peter Arno não teria nenhum significado para os cidadãos de 1920, e, fora a coluna de F. P. A., não existia uma tribuna para a civilidade metropolitana.
Então, por um instante, a ideia de “nova geração” tornou-se uma fusão de muitos elementos da vida de Nova York. Gente de cinquenta anos podia fingir que ainda existia uma nata da sociedade, ou Maxwell Bodenheim podia fingir que existia uma boêmia digna de sua pintura e seu traço — mas a mistura dos elementos brilhantes, alegres e vigorosos começou nessa época, e pela primeira vez apareceu uma sociedade um pouco mais animada que os circunspectos banquetes de Emily Price Post em salões de mogno. Se essa sociedade inventou o coquetel, também desenvolveu o espírito da Park Avenue, e pela primeira vez um europeu culto podia vislumbrar uma viagem a Nova York como algo mais divertido do que uma expedição em busca de ouro no interior da Austrália.
Só por um instante, antes que ficasse demonstrado que eu era incapaz de desempenhar o papel, eu, que sabia sobre Nova York menos que qualquer repórter com seis meses de residência na cidade, e menos sobre sua sociedade do que qualquer rapaz desacompanhado nos bailes do Ritz, fui elevado à posição não só de porta-voz da época, mas de típico produto do momento. Eu, melhor dizendo agora, “nós” não sabíamos exatamente o que Nova York esperava de nós e achamos aquilo muito confuso. Poucos meses depois de embarcar na aventura metropolitana, já mal sabíamos quem éramos e não tínhamos ideia do que éramos. Um mergulho numa fonte pública ou um esbarrão casual com agentes da lei era o bastante para nos levar às colunas de fofocas. Éramos citados com relação a uma vasta quantidade de assuntos sobre os quais nada sabíamos. Na verdade, nossos “contatos” se resumiam a meia dúzia de amigos solteiros da faculdade e uns poucos conhecidos recentes da área literária — lembro de um Natal solitário em que não tínhamos um só amigo na cidade nem uma casa aonde ir. Sem encontrar um núcleo ao qual nos agarrar, nós mesmos nos tornamos um núcleo e aos poucos ajustamos nossas personalidades conturbadas à cena da Nova York contemporânea. Ou melhor, Nova York nos esqueceu e nos deixou ficar.
Este não é um relato das mudanças da cidade, mas das mudanças dos sentimentos deste escritor pela cidade. Da confusão de 1920, lembro de andar na capota de um táxi pela Quinta Avenida deserta numa noite quente de domingo, de um almoço no sereno jardim japonês do Ritz com a melancólica Kay Laurel e George Jean Nathan, de escrever a noite toda repetidamente, de pagar caro por minúsculos apartamentos, e de comprar carros magníficos que enguiçavam toda hora. Tinham aparecido os primeiros bares clandestinos, passear estava fora de moda, o Montmartre era o lugar elegante para dançar e o cabelo louro de Lillian Tashman rodopiava na pista de dança entre universitários embriagados. As peças eram Declassée e Sacred and Profane Love, e no Midnight Frolic você dançava lado a lado com Marion Davies e talvez reconhecesse a animada Mary Hay entre as coristas. Pensávamos que estávamos distantes de tudo aquilo; talvez todo mundo pense que está distante de seu ambiente. Nos sentíamos como duas criancinhas num enorme galpão, iluminado e inexplorado. Reunidos no estúdio de Griffith em Long Island, tremíamos em presença dos rostos familiares do filme O nascimento de uma nação; mais tarde, compreendi que por trás do entretenimento que a cidade despejava sobre a nação não havia mais que um monte de gente perdida e solitária. O mundo dos astros de cinema era como o nosso, na medida em que eles estavam em Nova York, mas não eram de Nova York. Esse mundo tinha pouca noção de si mesmo e nenhum centro: quando conheci Dorothy Gish, tive a sensação de que estávamos os dois no polo Norte e que nevava. Desde então eles encontraram um lar, que não estava destinado a ser Nova York.
Quando nos entediávamos, encarávamos nossa cidade com um capricho à moda de Huysmans. Passávamos uma tarde sozinhos em nosso “apartamento”, comendo sanduíches de azeitona e bebendo um litro de uísque Bushmills que tínhamos ganhado de Zoë Akins, e então saíamos para a cidade enfeitiçada, entrando por portas estranhas em estranhos apartamentos com intermitentes sacolejos em táxis no meio das noites mansas. Pelo menos formávamos um todo com Nova York, levando-a conosco por cada portal. Até hoje entro em muitos apartamentos com a sensação de já ter estado lá antes, ou no de cima, ou no de baixo. Teria sido na noite em que tentei tirar a roupa no Scandals, ou na noite em que (como fiquei sabendo, com assombro, pelos jornais na manhã seguinte) “Fitzgerald esmurra policial até o outro lado do paraíso”? Como ganhar briga não fazia parte das minhas realizações, tentei em vão reconstruir a sequência de eventos que culminou naquele desfecho, no Webster Hall. Finalmente, daquele período, lembro de estar andando de táxi numa tarde entre edifícios altíssimos sob um céu rosa arroxeado; comecei a gritar que tinha tudo o que queria e sabia que nunca mais seria tão feliz.
Foi típico de nossa precária situação em Nova York o fato de que, quando nossa filha estava para nascer, decidimos proceder com segurança e voltamos para St. Paul — parecia inadequado trazer um bebê à luz no meio de todo aquele glamour e daquela solidão. Depois de um ano, porém, estávamos de volta, e começamos a fazer as mesmas coisas outra vez, sem gostar muito delas. Estávamos bastante rodados, embora conservássemos uma inocência quase teatral ao preferir o papel de observados ao de observadores. Mas a inocência não é um fim em si, e à medida que nossa mentalidade amadurecia, contra a nossa vontade, começamos a ver Nova York como um todo e a tentar salvar alguma coisa dela para quando chegassem os seres em que inevitavelmente nos transformaríamos.
Era tarde demais — ou cedo demais. Para nós, a cidade estava indissoluvelmente ligada a divertimentos etílicos, moderados ou fantásticos. Só pudemos nos organizar ao voltar para Long Island, e nem sempre lá. Não tínhamos estímulo para desfrutar a cidade pela metade. Meu primeiro símbolo era agora uma lembrança, pois eu sabia que o triunfo está em nós mesmos; o segundo tinha se transformado em lugar-comum — as duas atrizes que eu cultuava de longe lá pelos idos de 1913 tinham jantado em nossa casa. Mas dava-me certo medo que também o terceiro símbolo tivesse se turvado — não era fácil encontrar a tranquilidade do apartamento de Bunny na cidade sempre acelerada. Bunny tinha se casado e ia ser pai; outros amigos tinham ido para a Europa, e os solteiros frequentavam casas maiores e mais festivas que a nossa. Nessa época, conhecíamos “todo mundo” — ou seja, a maioria das pessoas que Ralph Barton retrataria em seus cartuns numa noite de estreia.
Mas já não éramos importantes. Em 1923, a melindrosa, em cuja conduta se baseara a popularidade de meus primeiros livros, tinha saído de moda — pelo menos no Leste. Decidi impactar a Broadway com uma peça, mas a Broadway mandou seus olheiros a Atlantic City e de saída cancelou a ideia, e assim senti que, naquele momento, a cidade e eu tínhamos pouco a oferecer um ao outro. Eu ia pegar a atmosfera de Long Island que respirara com familiaridade e materializá-la sob céus desconhecidos.
Passaram-se três anos até que víssemos Nova York outra vez. Enquanto o navio deslizava rio acima, a cidade explodia trovejando sobre nós no entardecer — a geleira branca da parte baixa de Nova York mergulhando como os cabos de uma ponte para erguer-se na parte alta da cidade, um milagre de luz e espuma suspenso pelas estrelas. Uma banda começou a tocar no convés, mas diante da majestade da cidade a marcha soava banal e metálica. A partir daquele momento, entendi que Nova York, não importava quantas vezes eu a deixasse, era minha casa.
O ritmo da cidade tinha mudado profundamente. As incertezas de 1920 tinham se afogado num contínuo fragor dourado, e muitos de nossos amigos tinham enriquecido. Mas a agitação da Nova York de 1927 beirava a histeria. As festas eram de arromba — as de Condé Nast, por exemplo, rivalizavam com os lendários bailes da década de 1890; o ritmo era mais acelerado — os convites à dissipação davam exemplo a Paris; os espetáculos eram maiores; os edifícios, mais altos; os costumes, mais lassos; e a bebida, mais barata. Mas todas essas benesses na verdade não proporcionavam muito deleite. Os jovens se desgastavam muito cedo — estavam insensíveis e frágeis aos vinte e um anos e, com exceção de Peter Arno, nenhum deles contribuiu com nada de novo. Talvez Peter Arno e seus colaboradores tenham dito tudo o que havia por dizer sobre os dias do boom de Nova York que não pudesse ser dito por uma orquestra de jazz. Muita gente que não era alcoólatra se embebedava quatro dias por semana, e havia nervos em frangalhos espalhados por toda parte; os grupos permaneciam reunidos por um nervosismo generalizado, e a ressaca tornou-se uma parte do dia tão natural quanto dormir a siesta para os espanhóis. A maior parte dos meus amigos bebia demais — quanto mais sintonizados com a época, mais bebiam. Assim, como o esforço por si só não tinha nenhum valor diante da absoluta permissividade da Nova York daqueles dias, inventou-se um nome pejorativo para ele: uma atividade de sucesso tornou-se uma pilantragem — eu estava na pilantragem literária.
Morávamos a poucas horas de Nova York, e descobri que cada vez que vinha à cidade era pilhado numa complicação de eventos que poucos dias depois me depositavam em estado de exaustão num trem para Delaware. Porções inteiras da cidade tinham crescido de modo insalubre, mas invariavelmente eu encontrava um momento de paz absoluta cruzando o Central Park, no escuro, em direção ao sul, onde as fachadas da rua 59 projetavam suas luzes através das árvores. Ali estava de novo minha cidade perdida, envolvida indiferente em seu mistério e suas promessas. Entretanto, meu afastamento nunca durava muito — da mesma forma que o trabalhador precisa viver no ventre da cidade, eu era compelido a viver em sua mente desordenada.
Como alternativa havia os bares clandestinos — a migração dos bares de luxo, que anunciavam nas publicações de Yale e Princeton, para cervejarias onde o rosto ranzinza do submundo espiava através da boa índole germânica do entretenimento, e depois para lugares estranhos e ainda mais sinistros, onde éramos observados por rapazes com rosto de pedra e nada restava da jovialidade, apenas uma brutalidade que contaminava o novo dia para o qual saíamos. Lembrei-me de 1920, quando choquei um jovem empresário em ascensão sugerindo um coquetel antes do almoço. Em 1929, havia bebida alcoólica em metade dos escritórios do centro e um bar clandestino em metade dos grandes edifícios.
Os bares clandestinos e a Park Avenue tornavam-se cada vez mais de domínio público. Na década anterior, Greenwich Village, Washington Square, Murray Hill e os casarões da Quinta Avenida tinham de certa forma desaparecido, ou se tornado inexpressivos. A cidade estava intumescida, desentranhada, estupidificada com pão e circo, e uma nova expressão — “Ah, é?” — resumia todo o entusiasmo evocado pelo anúncio dos últimos superarranha-céus. Meu barbeiro aposentou-se com o meio milhão ganhado em apostas no mercado, e eu tinha consciência de que os maîtres que me conduziam até minha mesa, ou que não o faziam, estavam muito, muito mais ricos do que eu. Isso não tinha graça — mais uma vez me fartei de Nova York e foi bom me sentir a salvo a bordo de um navio, em cujo bar continuou a festa ininterrupta a caminho da França.
“Quais são as últimas de Nova York?”
“As ações estão subindo. Um bebê matou um bandido.”
“Só isso?”
“Só. Os rádios se esgoelam na rua.”
Eu já chegara a pensar que não havia segundo ato na vida dos americanos, mas certamente haveria um segundo ato aos dias de boom de Nova York. Estávamos em algum lugar do Norte da África quando ouvimos um ruído abafado que ecoou nos cantos mais remotos do deserto.
“O que foi isso?”
“Você ouviu?”
“Não foi nada.”
“Você acha que devíamos voltar e ver?”
“Não. Não foi nada.”
No outono escuro, dois anos depois, vimos Nova York de novo. Passamos por funcionários da alfândega curiosamente corteses e, depois, de cabeça baixa e chapéu na mão, caminhei respeitosamente pela tumba ressonante. Entre as ruínas, uns poucos fantasmas infantis ainda brincavam para manter a farsa de que estavam vivos, porém eram traídos por suas vozes febris e feições frenéticas que revelavam a fragilidade da mascarada. Nos coquetéis, um último resquício oco dos dias de festança, ecoavam os lamentos dos feridos: “Me dê um tiro, pelo amor de Deus, alguém me dê um tiro!”, e os gemidos e queixumes dos moribundos: “Viu que a United States Steel caiu mais três pontos?”. Meu barbeiro voltou a trabalhar em sua loja; mais uma vez os maîtres acompanhavam as pessoas até as mesas, quando havia pessoas a acompanhar. Das ruínas, sozinho e indecifrável como uma esfinge, erguia-se o edifício Empire State e, assim como tinha sido um hábito meu subir ao terraço do Plaza para me despedir da linda cidade, que se estendia até onde a vista podia alcançar, desta vez fui ao último andar da última e mais esplêndida das torres. Foi então que vi que tudo se explicava: eu descobrira o erro fatal da cidade, sua caixa de Pandora. Cheio de empáfia, o nova-iorquino subira só para ver, desolado, o que nunca tinha suspeitado: a cidade não era uma sucessão infinita de cânions, como ele supunha, mas tinha limites — de cima da mais alta das estruturas, ele viu pela primeira vez que ela ia se apagando em direção ao campo por todos os lados, numa imensidão de verde e azul, essa sim sem limites. E com a terrível compreensão de que Nova York afinal era uma cidade, e não um universo, todo o edifício cintilante que ele criara em sua imaginação veio abaixo. Foi esse o presente desavisado de Alfred W. Smith aos cidadãos de Nova York.
Assim eu me despeço da minha cidade perdida. Vista do ferryboat, de manhã cedo, ela já não sugere sucessos fantásticos e eterna juventude. As moças alegres que saracoteiam diante de plateias vazias não me lembram a beleza inefável das garotas de meus sonhos em 1914. E Bunny, girando sobre os calcanhares cheio de si com sua bengala, a caminho de seu retiro num carnaval, aderiu ao comunismo e se preocupa com as injustiças contra os trabalhadores dos moinhos no Sul e os agricultores do Oeste, cujas vozes, quinze anos atrás, nunca teriam atravessado as paredes de seu estúdio.
Tudo está perdido salvo a lembrança, embora eu às vezes me imagine lendo uma edição de 1945 do Daily News: CINQUENTÃO PERDE A CABEÇA EM NOVA YORK
Modelo declara: Fitzgerald enriqueceu à custa de golpes
Abatido por pistoleiro furioso
Então talvez eu esteja destinado a voltar algum dia e encontrar na cidade novas experiências que até agora só vi no papel. Por enquanto, só posso chorar a perda de minha esplêndida miragem. Volte, ó branca e resplandecente, volte!
1 Dick Whittington e seu gato é um conto do folclore inglês sobre um menino pobre do século XIII que se torna um rico comerciante e termina como Lord Mayor de Londres devido à habilidade de seu gato como caçador de ratos. (N. T.)
2 Franklin Pierce Adams (1881-1960). (N. T.)
Primeiro foi o ferryboat saindo lentamente da costa de Jersey ao amanhecer — o momento cristalizou-se como meu primeiro símbolo de Nova York. Cinco anos depois, quando eu tinha quinze anos, saía da escola e ia ao centro da cidade para ver Ina Claire em The Quaker Girl e Gertrude Bryan em Little Boy Blue. Indeciso em meu amor melancólico e sem esperança por ambas, não conseguia escolher entre as duas — então elas se fundiram numa deliciosa identidade, a garota. Ela foi meu segundo símbolo de Nova York. O ferryboat representava o triunfo; a garota, o romance. Com o tempo, eu conquistaria um pouco dos dois, mas houve um terceiro símbolo que perdi em algum lugar, e para sempre.
Encontrei-o numa tarde escura de abril, passados outros cinco anos.
“Oi, Bunny”, gritei. “Bunny!”
Ele não me ouviu — meu táxi ficou para trás e alcançou-o de novo meia quadra adiante. Havia poças escuras de chuva na calçada, e o vi caminhando rápido no meio da multidão, usando uma capa de chuva bege sobre o inevitável terno marrom; notei com espanto que ele carregava uma leve bengala.
“Bunny!”, chamei de novo, e desisti. Eu ainda era universitário de Princeton, enquanto ele tinha se tornado um nova-iorquino. Era sua caminhada vespertina, essa correria com a bengala no meio da chuva que caía, e como faltava uma hora para nosso encontro, pareceu-me uma intromissão ir ter com ele quando estava envolvido com sua vida privada. Entretanto, meu táxi continuou emparelhado com ele, continuei observando e fiquei impressionado. Ele já não era o pequeno e tímido acadêmico da Holder Court — andava com firmeza, absorto em seus pensamentos e olhando para a frente, deixando óbvio que seu novo cenário era de todo suficiente para ele. Eu sabia que ele tinha um apartamento onde morava com três outros homens, já livre de todos os tabus de estudante, mas havia algo mais que o nutria, e tive minha primeira impressão dessa novidade: o espírito metropolitano.
Até aquela época, eu só tinha visto a Nova York que se oferecia à inspeção — era como Dick Whittington,1 chegado do campo e boquiaberto com os ursos amestrados, ou um jovem do Midi deslumbrado com os bulevares de Paris. Eu tinha vindo só para ver o espetáculo, embora os projetistas do edifício Woolworth e do painel luminoso da corrida de bigas, os produtores de comédias musicais e peças de tese não pudessem desejar um espectador mais receptivo, já que o estilo e o brilho que eu atribuía a Nova York superavam as expectativas da própria cidade. Mas nunca aceitei nenhum dos convites praticamente anônimos para bailes de debutantes que costumavam aparecer na correspondência de qualquer universitário, talvez porque sentisse que nenhuma realidade estaria à altura da concepção que eu fazia do esplendor de Nova York. Além do mais, aquela que eu chamava insensatamente de “minha garota” era do Meio-Oeste, o que mantinha lá o centro afetivo do mundo, de modo que eu considerava Nova York essencialmente cínica e cruel — exceto por uma noite em que ela iluminou o terraço do Ritz numa breve aparição.
Mais tarde, no entanto, eu a perdera para sempre e queria um mundo masculino, e a visão que tive de Bunny me fez ver Nova York exatamente assim. Uma semana antes, Monsignor Fay me levara ao Lafayette, onde se estendia diante de nós uma fulguração de comida, chamada hors d’oeuvre, que acompanhamos com um clarete tão desafiador quanto a confiante bengala de Bunny — mas afinal de contas tratava-se de um restaurante, e depois teríamos de transpor uma ponte para voltarmos ao interior. A Nova York da dissipação estudantil, de restaurantes como o Bustanoby’s, o Shanley’s e o Jack’s, tinha se tornado um horror, e embora eu tenha voltado a ela, ai de mim, muitas vezes numa névoa de álcool, senti cada volta como uma traição a um idealismo persistente. Minha participação era mais lasciva que licenciosa, e restam poucas lembranças prazerosas daqueles dias. Como disse uma vez Ernest Hemingway, a única finalidade do cabaré é reunir homens descomprometidos e mulheres complacentes. O resto é perda de tempo numa atmosfera viciada.
Naquela noite, porém, no apartamento de Bunny, a vida era mansa e segura, o produto final de uma destilação de tudo que eu aprendera a amar em Princeton. O som agradável de um oboé se misturava aos ruídos urbanos que vinham da rua, penetrando na sala com dificuldade através de enormes barricadas de livros; a única nota dissonante era dada por um homem que rasgava envelopes de convites. Eu tinha encontrado um terceiro símbolo de Nova York e comecei a pensar em alugar um apartamento como aquele e em selecionar amigos com quem dividi-lo.
Improvável — durante os dois anos seguintes, tive tanto controle sobre meu destino quanto um preso sobre o corte de sua roupa. Quando voltei a Nova York, em 1919, minha vida estava tão enrolada que eu não podia nem sonhar com um tranquilo período monástico na Washington Square. O importante era ganhar dinheiro em publicidade, o bastante para alugar um pequeno apartamento no Bronx para duas pessoas. A garota em questão nunca tinha visto Nova York, mas era sensata o suficiente para estar um pouco relutante. E num halo de ansiedade e infelicidade, passei os quatro meses mais vulneráveis de minha vida.
Nova York tinha toda a iridescência do nascimento do mundo. Soldados vindos da guerra desfilaram pela Quinta Avenida, e as garotas eram atraídas instintivamente para leste e norte atrás deles — esta era a maior nação do mundo e havia um clima de gala no ar. Enquanto eu pairava como um fantasma no Salão Vermelho do Plaza numa tarde de sábado, ia a inebriantes festas no entorno da rua 60 Leste, ou bebia com o pessoal de Princeton no bar do Biltmore, era sempre assombrado por minha outra vida — meu quarto ordinário no Bronx, meus centímetros quadrados de metrô, minha obsessão pela carta diária do Alabama — chegaria, e o que diria? —, meus ternos surrados, minha pobreza e o amor. Enquanto meus amigos estavam se dando bem na vida, eu tinha empurrado meu barco precário para a correnteza. A juventude dourada que circulava em volta de Constance Bennett no Club de Vingt, os colegas do clube de Yale-Princeton animados em nossa primeira reunião depois do fim da guerra, o clima das casas de milionários que eu às vezes frequentava — tudo isso era vazio para mim, embora eu admitisse que era um cenário impressionante e lamentasse estar comprometido com outro romance. A mais divertida mesa de almoço ou o cabaré mais onírico — era tudo a mesma coisa. Eu voltava ansiosamente para minha casa na Claremont Avenue — porque poderia haver uma carta esperando diante da porta. Um por um, meus grandes sonhos com Nova York se corromperam. A lembrança do charme do apartamento de Bunny feneceu com todo o resto quando entrevistei uma senhoria desgrenhada no Greenwich Village. Ela disse que eu poderia trazer garotas para o meu quarto, e essa ideia me encheu de desânimo — por que eu ia querer trazer garotas para o meu quarto? Eu tinha uma garota. Perambulava pela cidade, pela rua 127, magoado com sua vitalidade vibrante; ou então comprava ingresso para algum teatro barato na farmácia Gray’s e tentava me perder por algumas horas em minha velha paixão pela Broadway. Eu era um fracasso — medíocre na publicidade e incapaz de me lançar como escritor. Odiando a cidade, bebia até meu último centavo e, caindo de bêbado e choroso, voltava para casa...
... Cidade imprevisível. O que aconteceu depois foi apenas uma entre milhares de histórias de sucesso daqueles dias agitados, mas desempenha um papel em meu próprio filme de Nova York. Quando voltei, seis meses depois, as salas das editoras estavam abertas para mim, agentes imploravam por peças, o cinema ansiava por roteiros. Para minha perplexidade, fui adotado não como um interiorano do Meio-Oeste, nem como observador participante, mas como o arquétipo daquilo que Nova York queria. Essa afirmação demanda certa descrição do que era a metrópole em 1920.
Já existia a cidade branca e alta de hoje, a atividade febricitante do boom, mas havia também uma desarticulação geral. Assim como outros, o colunista F. P. A.2 tomou o pulso da multidão, mas timidamente, como quem observa pela janela. A sociedade e as artes autóctones não se misturavam — Ellen Mackay ainda não se casara com Irving Berlin. Grande parte dos personagens de Peter Arno não teria nenhum significado para os cidadãos de 1920, e, fora a coluna de F. P. A., não existia uma tribuna para a civilidade metropolitana.
Então, por um instante, a ideia de “nova geração” tornou-se uma fusão de muitos elementos da vida de Nova York. Gente de cinquenta anos podia fingir que ainda existia uma nata da sociedade, ou Maxwell Bodenheim podia fingir que existia uma boêmia digna de sua pintura e seu traço — mas a mistura dos elementos brilhantes, alegres e vigorosos começou nessa época, e pela primeira vez apareceu uma sociedade um pouco mais animada que os circunspectos banquetes de Emily Price Post em salões de mogno. Se essa sociedade inventou o coquetel, também desenvolveu o espírito da Park Avenue, e pela primeira vez um europeu culto podia vislumbrar uma viagem a Nova York como algo mais divertido do que uma expedição em busca de ouro no interior da Austrália.
Só por um instante, antes que ficasse demonstrado que eu era incapaz de desempenhar o papel, eu, que sabia sobre Nova York menos que qualquer repórter com seis meses de residência na cidade, e menos sobre sua sociedade do que qualquer rapaz desacompanhado nos bailes do Ritz, fui elevado à posição não só de porta-voz da época, mas de típico produto do momento. Eu, melhor dizendo agora, “nós” não sabíamos exatamente o que Nova York esperava de nós e achamos aquilo muito confuso. Poucos meses depois de embarcar na aventura metropolitana, já mal sabíamos quem éramos e não tínhamos ideia do que éramos. Um mergulho numa fonte pública ou um esbarrão casual com agentes da lei era o bastante para nos levar às colunas de fofocas. Éramos citados com relação a uma vasta quantidade de assuntos sobre os quais nada sabíamos. Na verdade, nossos “contatos” se resumiam a meia dúzia de amigos solteiros da faculdade e uns poucos conhecidos recentes da área literária — lembro de um Natal solitário em que não tínhamos um só amigo na cidade nem uma casa aonde ir. Sem encontrar um núcleo ao qual nos agarrar, nós mesmos nos tornamos um núcleo e aos poucos ajustamos nossas personalidades conturbadas à cena da Nova York contemporânea. Ou melhor, Nova York nos esqueceu e nos deixou ficar.
Este não é um relato das mudanças da cidade, mas das mudanças dos sentimentos deste escritor pela cidade. Da confusão de 1920, lembro de andar na capota de um táxi pela Quinta Avenida deserta numa noite quente de domingo, de um almoço no sereno jardim japonês do Ritz com a melancólica Kay Laurel e George Jean Nathan, de escrever a noite toda repetidamente, de pagar caro por minúsculos apartamentos, e de comprar carros magníficos que enguiçavam toda hora. Tinham aparecido os primeiros bares clandestinos, passear estava fora de moda, o Montmartre era o lugar elegante para dançar e o cabelo louro de Lillian Tashman rodopiava na pista de dança entre universitários embriagados. As peças eram Declassée e Sacred and Profane Love, e no Midnight Frolic você dançava lado a lado com Marion Davies e talvez reconhecesse a animada Mary Hay entre as coristas. Pensávamos que estávamos distantes de tudo aquilo; talvez todo mundo pense que está distante de seu ambiente. Nos sentíamos como duas criancinhas num enorme galpão, iluminado e inexplorado. Reunidos no estúdio de Griffith em Long Island, tremíamos em presença dos rostos familiares do filme O nascimento de uma nação; mais tarde, compreendi que por trás do entretenimento que a cidade despejava sobre a nação não havia mais que um monte de gente perdida e solitária. O mundo dos astros de cinema era como o nosso, na medida em que eles estavam em Nova York, mas não eram de Nova York. Esse mundo tinha pouca noção de si mesmo e nenhum centro: quando conheci Dorothy Gish, tive a sensação de que estávamos os dois no polo Norte e que nevava. Desde então eles encontraram um lar, que não estava destinado a ser Nova York.
Quando nos entediávamos, encarávamos nossa cidade com um capricho à moda de Huysmans. Passávamos uma tarde sozinhos em nosso “apartamento”, comendo sanduíches de azeitona e bebendo um litro de uísque Bushmills que tínhamos ganhado de Zoë Akins, e então saíamos para a cidade enfeitiçada, entrando por portas estranhas em estranhos apartamentos com intermitentes sacolejos em táxis no meio das noites mansas. Pelo menos formávamos um todo com Nova York, levando-a conosco por cada portal. Até hoje entro em muitos apartamentos com a sensação de já ter estado lá antes, ou no de cima, ou no de baixo. Teria sido na noite em que tentei tirar a roupa no Scandals, ou na noite em que (como fiquei sabendo, com assombro, pelos jornais na manhã seguinte) “Fitzgerald esmurra policial até o outro lado do paraíso”? Como ganhar briga não fazia parte das minhas realizações, tentei em vão reconstruir a sequência de eventos que culminou naquele desfecho, no Webster Hall. Finalmente, daquele período, lembro de estar andando de táxi numa tarde entre edifícios altíssimos sob um céu rosa arroxeado; comecei a gritar que tinha tudo o que queria e sabia que nunca mais seria tão feliz.
Foi típico de nossa precária situação em Nova York o fato de que, quando nossa filha estava para nascer, decidimos proceder com segurança e voltamos para St. Paul — parecia inadequado trazer um bebê à luz no meio de todo aquele glamour e daquela solidão. Depois de um ano, porém, estávamos de volta, e começamos a fazer as mesmas coisas outra vez, sem gostar muito delas. Estávamos bastante rodados, embora conservássemos uma inocência quase teatral ao preferir o papel de observados ao de observadores. Mas a inocência não é um fim em si, e à medida que nossa mentalidade amadurecia, contra a nossa vontade, começamos a ver Nova York como um todo e a tentar salvar alguma coisa dela para quando chegassem os seres em que inevitavelmente nos transformaríamos.
Era tarde demais — ou cedo demais. Para nós, a cidade estava indissoluvelmente ligada a divertimentos etílicos, moderados ou fantásticos. Só pudemos nos organizar ao voltar para Long Island, e nem sempre lá. Não tínhamos estímulo para desfrutar a cidade pela metade. Meu primeiro símbolo era agora uma lembrança, pois eu sabia que o triunfo está em nós mesmos; o segundo tinha se transformado em lugar-comum — as duas atrizes que eu cultuava de longe lá pelos idos de 1913 tinham jantado em nossa casa. Mas dava-me certo medo que também o terceiro símbolo tivesse se turvado — não era fácil encontrar a tranquilidade do apartamento de Bunny na cidade sempre acelerada. Bunny tinha se casado e ia ser pai; outros amigos tinham ido para a Europa, e os solteiros frequentavam casas maiores e mais festivas que a nossa. Nessa época, conhecíamos “todo mundo” — ou seja, a maioria das pessoas que Ralph Barton retrataria em seus cartuns numa noite de estreia.
Mas já não éramos importantes. Em 1923, a melindrosa, em cuja conduta se baseara a popularidade de meus primeiros livros, tinha saído de moda — pelo menos no Leste. Decidi impactar a Broadway com uma peça, mas a Broadway mandou seus olheiros a Atlantic City e de saída cancelou a ideia, e assim senti que, naquele momento, a cidade e eu tínhamos pouco a oferecer um ao outro. Eu ia pegar a atmosfera de Long Island que respirara com familiaridade e materializá-la sob céus desconhecidos.
Passaram-se três anos até que víssemos Nova York outra vez. Enquanto o navio deslizava rio acima, a cidade explodia trovejando sobre nós no entardecer — a geleira branca da parte baixa de Nova York mergulhando como os cabos de uma ponte para erguer-se na parte alta da cidade, um milagre de luz e espuma suspenso pelas estrelas. Uma banda começou a tocar no convés, mas diante da majestade da cidade a marcha soava banal e metálica. A partir daquele momento, entendi que Nova York, não importava quantas vezes eu a deixasse, era minha casa.
O ritmo da cidade tinha mudado profundamente. As incertezas de 1920 tinham se afogado num contínuo fragor dourado, e muitos de nossos amigos tinham enriquecido. Mas a agitação da Nova York de 1927 beirava a histeria. As festas eram de arromba — as de Condé Nast, por exemplo, rivalizavam com os lendários bailes da década de 1890; o ritmo era mais acelerado — os convites à dissipação davam exemplo a Paris; os espetáculos eram maiores; os edifícios, mais altos; os costumes, mais lassos; e a bebida, mais barata. Mas todas essas benesses na verdade não proporcionavam muito deleite. Os jovens se desgastavam muito cedo — estavam insensíveis e frágeis aos vinte e um anos e, com exceção de Peter Arno, nenhum deles contribuiu com nada de novo. Talvez Peter Arno e seus colaboradores tenham dito tudo o que havia por dizer sobre os dias do boom de Nova York que não pudesse ser dito por uma orquestra de jazz. Muita gente que não era alcoólatra se embebedava quatro dias por semana, e havia nervos em frangalhos espalhados por toda parte; os grupos permaneciam reunidos por um nervosismo generalizado, e a ressaca tornou-se uma parte do dia tão natural quanto dormir a siesta para os espanhóis. A maior parte dos meus amigos bebia demais — quanto mais sintonizados com a época, mais bebiam. Assim, como o esforço por si só não tinha nenhum valor diante da absoluta permissividade da Nova York daqueles dias, inventou-se um nome pejorativo para ele: uma atividade de sucesso tornou-se uma pilantragem — eu estava na pilantragem literária.
Morávamos a poucas horas de Nova York, e descobri que cada vez que vinha à cidade era pilhado numa complicação de eventos que poucos dias depois me depositavam em estado de exaustão num trem para Delaware. Porções inteiras da cidade tinham crescido de modo insalubre, mas invariavelmente eu encontrava um momento de paz absoluta cruzando o Central Park, no escuro, em direção ao sul, onde as fachadas da rua 59 projetavam suas luzes através das árvores. Ali estava de novo minha cidade perdida, envolvida indiferente em seu mistério e suas promessas. Entretanto, meu afastamento nunca durava muito — da mesma forma que o trabalhador precisa viver no ventre da cidade, eu era compelido a viver em sua mente desordenada.
Como alternativa havia os bares clandestinos — a migração dos bares de luxo, que anunciavam nas publicações de Yale e Princeton, para cervejarias onde o rosto ranzinza do submundo espiava através da boa índole germânica do entretenimento, e depois para lugares estranhos e ainda mais sinistros, onde éramos observados por rapazes com rosto de pedra e nada restava da jovialidade, apenas uma brutalidade que contaminava o novo dia para o qual saíamos. Lembrei-me de 1920, quando choquei um jovem empresário em ascensão sugerindo um coquetel antes do almoço. Em 1929, havia bebida alcoólica em metade dos escritórios do centro e um bar clandestino em metade dos grandes edifícios.
Os bares clandestinos e a Park Avenue tornavam-se cada vez mais de domínio público. Na década anterior, Greenwich Village, Washington Square, Murray Hill e os casarões da Quinta Avenida tinham de certa forma desaparecido, ou se tornado inexpressivos. A cidade estava intumescida, desentranhada, estupidificada com pão e circo, e uma nova expressão — “Ah, é?” — resumia todo o entusiasmo evocado pelo anúncio dos últimos superarranha-céus. Meu barbeiro aposentou-se com o meio milhão ganhado em apostas no mercado, e eu tinha consciência de que os maîtres que me conduziam até minha mesa, ou que não o faziam, estavam muito, muito mais ricos do que eu. Isso não tinha graça — mais uma vez me fartei de Nova York e foi bom me sentir a salvo a bordo de um navio, em cujo bar continuou a festa ininterrupta a caminho da França.
“Quais são as últimas de Nova York?”
“As ações estão subindo. Um bebê matou um bandido.”
“Só isso?”
“Só. Os rádios se esgoelam na rua.”
Eu já chegara a pensar que não havia segundo ato na vida dos americanos, mas certamente haveria um segundo ato aos dias de boom de Nova York. Estávamos em algum lugar do Norte da África quando ouvimos um ruído abafado que ecoou nos cantos mais remotos do deserto.
“O que foi isso?”
“Você ouviu?”
“Não foi nada.”
“Você acha que devíamos voltar e ver?”
“Não. Não foi nada.”
No outono escuro, dois anos depois, vimos Nova York de novo. Passamos por funcionários da alfândega curiosamente corteses e, depois, de cabeça baixa e chapéu na mão, caminhei respeitosamente pela tumba ressonante. Entre as ruínas, uns poucos fantasmas infantis ainda brincavam para manter a farsa de que estavam vivos, porém eram traídos por suas vozes febris e feições frenéticas que revelavam a fragilidade da mascarada. Nos coquetéis, um último resquício oco dos dias de festança, ecoavam os lamentos dos feridos: “Me dê um tiro, pelo amor de Deus, alguém me dê um tiro!”, e os gemidos e queixumes dos moribundos: “Viu que a United States Steel caiu mais três pontos?”. Meu barbeiro voltou a trabalhar em sua loja; mais uma vez os maîtres acompanhavam as pessoas até as mesas, quando havia pessoas a acompanhar. Das ruínas, sozinho e indecifrável como uma esfinge, erguia-se o edifício Empire State e, assim como tinha sido um hábito meu subir ao terraço do Plaza para me despedir da linda cidade, que se estendia até onde a vista podia alcançar, desta vez fui ao último andar da última e mais esplêndida das torres. Foi então que vi que tudo se explicava: eu descobrira o erro fatal da cidade, sua caixa de Pandora. Cheio de empáfia, o nova-iorquino subira só para ver, desolado, o que nunca tinha suspeitado: a cidade não era uma sucessão infinita de cânions, como ele supunha, mas tinha limites — de cima da mais alta das estruturas, ele viu pela primeira vez que ela ia se apagando em direção ao campo por todos os lados, numa imensidão de verde e azul, essa sim sem limites. E com a terrível compreensão de que Nova York afinal era uma cidade, e não um universo, todo o edifício cintilante que ele criara em sua imaginação veio abaixo. Foi esse o presente desavisado de Alfred W. Smith aos cidadãos de Nova York.
Assim eu me despeço da minha cidade perdida. Vista do ferryboat, de manhã cedo, ela já não sugere sucessos fantásticos e eterna juventude. As moças alegres que saracoteiam diante de plateias vazias não me lembram a beleza inefável das garotas de meus sonhos em 1914. E Bunny, girando sobre os calcanhares cheio de si com sua bengala, a caminho de seu retiro num carnaval, aderiu ao comunismo e se preocupa com as injustiças contra os trabalhadores dos moinhos no Sul e os agricultores do Oeste, cujas vozes, quinze anos atrás, nunca teriam atravessado as paredes de seu estúdio.
Tudo está perdido salvo a lembrança, embora eu às vezes me imagine lendo uma edição de 1945 do Daily News: CINQUENTÃO PERDE A CABEÇA EM NOVA YORK
Modelo declara: Fitzgerald enriqueceu à custa de golpes
Abatido por pistoleiro furioso
Então talvez eu esteja destinado a voltar algum dia e encontrar na cidade novas experiências que até agora só vi no papel. Por enquanto, só posso chorar a perda de minha esplêndida miragem. Volte, ó branca e resplandecente, volte!
1 Dick Whittington e seu gato é um conto do folclore inglês sobre um menino pobre do século XIII que se torna um rico comerciante e termina como Lord Mayor de Londres devido à habilidade de seu gato como caçador de ratos. (N. T.)
2 Franklin Pierce Adams (1881-1960). (N. T.)
Primeiro foi o ferryboat saindo lentamente da costa de Jersey ao amanhecer — o momento cristalizou-se como meu primeiro símbolo de Nova York. Cinco anos depois, quando eu tinha quinze anos, saía da escola e ia ao centro da cidade para ver Ina Claire em The Quaker Girl e Gertrude Bryan em Little Boy Blue. Indeciso em meu amor melancólico e sem esperança por ambas, não conseguia escolher entre as duas — então elas se fundiram numa deliciosa identidade, a garota. Ela foi meu segundo símbolo de Nova York. O ferryboat representava o triunfo; a garota, o romance. Com o tempo, eu conquistaria um pouco dos dois, mas houve um terceiro símbolo que perdi em algum lugar, e para sempre.
Encontrei-o numa tarde escura de abril, passados outros cinco anos.
“Oi, Bunny”, gritei. “Bunny!”
Ele não me ouviu — meu táxi ficou para trás e alcançou-o de novo meia quadra adiante. Havia poças escuras de chuva na calçada, e o vi caminhando rápido no meio da multidão, usando uma capa de chuva bege sobre o inevitável terno marrom; notei com espanto que ele carregava uma leve bengala.
“Bunny!”, chamei de novo, e desisti. Eu ainda era universitário de Princeton, enquanto ele tinha se tornado um nova-iorquino. Era sua caminhada vespertina, essa correria com a bengala no meio da chuva que caía, e como faltava uma hora para nosso encontro, pareceu-me uma intromissão ir ter com ele quando estava envolvido com sua vida privada. Entretanto, meu táxi continuou emparelhado com ele, continuei observando e fiquei impressionado. Ele já não era o pequeno e tímido acadêmico da Holder Court — andava com firmeza, absorto em seus pensamentos e olhando para a frente, deixando óbvio que seu novo cenário era de todo suficiente para ele. Eu sabia que ele tinha um apartamento onde morava com três outros homens, já livre de todos os tabus de estudante, mas havia algo mais que o nutria, e tive minha primeira impressão dessa novidade: o espírito metropolitano.
Até aquela época, eu só tinha visto a Nova York que se oferecia à inspeção — era como Dick Whittington,1 chegado do campo e boquiaberto com os ursos amestrados, ou um jovem do Midi deslumbrado com os bulevares de Paris. Eu tinha vindo só para ver o espetáculo, embora os projetistas do edifício Woolworth e do painel luminoso da corrida de bigas, os produtores de comédias musicais e peças de tese não pudessem desejar um espectador mais receptivo, já que o estilo e o brilho que eu atribuía a Nova York superavam as expectativas da própria cidade. Mas nunca aceitei nenhum dos convites praticamente anônimos para bailes de debutantes que costumavam aparecer na correspondência de qualquer universitário, talvez porque sentisse que nenhuma realidade estaria à altura da concepção que eu fazia do esplendor de Nova York. Além do mais, aquela que eu chamava insensatamente de “minha garota” era do Meio-Oeste, o que mantinha lá o centro afetivo do mundo, de modo que eu considerava Nova York essencialmente cínica e cruel — exceto por uma noite em que ela iluminou o terraço do Ritz numa breve aparição.
Mais tarde, no entanto, eu a perdera para sempre e queria um mundo masculino, e a visão que tive de Bunny me fez ver Nova York exatamente assim. Uma semana antes, Monsignor Fay me levara ao Lafayette, onde se estendia diante de nós uma fulguração de comida, chamada hors d’oeuvre, que acompanhamos com um clarete tão desafiador quanto a confiante bengala de Bunny — mas afinal de contas tratava-se de um restaurante, e depois teríamos de transpor uma ponte para voltarmos ao interior. A Nova York da dissipação estudantil, de restaurantes como o Bustanoby’s, o Shanley’s e o Jack’s, tinha se tornado um horror, e embora eu tenha voltado a ela, ai de mim, muitas vezes numa névoa de álcool, senti cada volta como uma traição a um idealismo persistente. Minha participação era mais lasciva que licenciosa, e restam poucas lembranças prazerosas daqueles dias. Como disse uma vez Ernest Hemingway, a única finalidade do cabaré é reunir homens descomprometidos e mulheres complacentes. O resto é perda de tempo numa atmosfera viciada.
Naquela noite, porém, no apartamento de Bunny, a vida era mansa e segura, o produto final de uma destilação de tudo que eu aprendera a amar em Princeton. O som agradável de um oboé se misturava aos ruídos urbanos que vinham da rua, penetrando na sala com dificuldade através de enormes barricadas de livros; a única nota dissonante era dada por um homem que rasgava envelopes de convites. Eu tinha encontrado um terceiro símbolo de Nova York e comecei a pensar em alugar um apartamento como aquele e em selecionar amigos com quem dividi-lo.
Improvável — durante os dois anos seguintes, tive tanto controle sobre meu destino quanto um preso sobre o corte de sua roupa. Quando voltei a Nova York, em 1919, minha vida estava tão enrolada que eu não podia nem sonhar com um tranquilo período monástico na Washington Square. O importante era ganhar dinheiro em publicidade, o bastante para alugar um pequeno apartamento no Bronx para duas pessoas. A garota em questão nunca tinha visto Nova York, mas era sensata o suficiente para estar um pouco relutante. E num halo de ansiedade e infelicidade, passei os quatro meses mais vulneráveis de minha vida.
Nova York tinha toda a iridescência do nascimento do mundo. Soldados vindos da guerra desfilaram pela Quinta Avenida, e as garotas eram atraídas instintivamente para leste e norte atrás deles — esta era a maior nação do mundo e havia um clima de gala no ar. Enquanto eu pairava como um fantasma no Salão Vermelho do Plaza numa tarde de sábado, ia a inebriantes festas no entorno da rua 60 Leste, ou bebia com o pessoal de Princeton no bar do Biltmore, era sempre assombrado por minha outra vida — meu quarto ordinário no Bronx, meus centímetros quadrados de metrô, minha obsessão pela carta diária do Alabama — chegaria, e o que diria? —, meus ternos surrados, minha pobreza e o amor. Enquanto meus amigos estavam se dando bem na vida, eu tinha empurrado meu barco precário para a correnteza. A juventude dourada que circulava em volta de Constance Bennett no Club de Vingt, os colegas do clube de Yale-Princeton animados em nossa primeira reunião depois do fim da guerra, o clima das casas de milionários que eu às vezes frequentava — tudo isso era vazio para mim, embora eu admitisse que era um cenário impressionante e lamentasse estar comprometido com outro romance. A mais divertida mesa de almoço ou o cabaré mais onírico — era tudo a mesma coisa. Eu voltava ansiosamente para minha casa na Claremont Avenue — porque poderia haver uma carta esperando diante da porta. Um por um, meus grandes sonhos com Nova York se corromperam. A lembrança do charme do apartamento de Bunny feneceu com todo o resto quando entrevistei uma senhoria desgrenhada no Greenwich Village. Ela disse que eu poderia trazer garotas para o meu quarto, e essa ideia me encheu de desânimo — por que eu ia querer trazer garotas para o meu quarto? Eu tinha uma garota. Perambulava pela cidade, pela rua 127, magoado com sua vitalidade vibrante; ou então comprava ingresso para algum teatro barato na farmácia Gray’s e tentava me perder por algumas horas em minha velha paixão pela Broadway. Eu era um fracasso — medíocre na publicidade e incapaz de me lançar como escritor. Odiando a cidade, bebia até meu último centavo e, caindo de bêbado e choroso, voltava para casa...
... Cidade imprevisível. O que aconteceu depois foi apenas uma entre milhares de histórias de sucesso daqueles dias agitados, mas desempenha um papel em meu próprio filme de Nova York. Quando voltei, seis meses depois, as salas das editoras estavam abertas para mim, agentes imploravam por peças, o cinema ansiava por roteiros. Para minha perplexidade, fui adotado não como um interiorano do Meio-Oeste, nem como observador participante, mas como o arquétipo daquilo que Nova York queria. Essa afirmação demanda certa descrição do que era a metrópole em 1920.
Já existia a cidade branca e alta de hoje, a atividade febricitante do boom, mas havia também uma desarticulação geral. Assim como outros, o colunista F. P. A.2 tomou o pulso da multidão, mas timidamente, como quem observa pela janela. A sociedade e as artes autóctones não se misturavam — Ellen Mackay ainda não se casara com Irving Berlin. Grande parte dos personagens de Peter Arno não teria nenhum significado para os cidadãos de 1920, e, fora a coluna de F. P. A., não existia uma tribuna para a civilidade metropolitana.
Então, por um instante, a ideia de “nova geração” tornou-se uma fusão de muitos elementos da vida de Nova York. Gente de cinquenta anos podia fingir que ainda existia uma nata da sociedade, ou Maxwell Bodenheim podia fingir que existia uma boêmia digna de sua pintura e seu traço — mas a mistura dos elementos brilhantes, alegres e vigorosos começou nessa época, e pela primeira vez apareceu uma sociedade um pouco mais animada que os circunspectos banquetes de Emily Price Post em salões de mogno. Se essa sociedade inventou o coquetel, também desenvolveu o espírito da Park Avenue, e pela primeira vez um europeu culto podia vislumbrar uma viagem a Nova York como algo mais divertido do que uma expedição em busca de ouro no interior da Austrália.
Só por um instante, antes que ficasse demonstrado que eu era incapaz de desempenhar o papel, eu, que sabia sobre Nova York menos que qualquer repórter com seis meses de residência na cidade, e menos sobre sua sociedade do que qualquer rapaz desacompanhado nos bailes do Ritz, fui elevado à posição não só de porta-voz da época, mas de típico produto do momento. Eu, melhor dizendo agora, “nós” não sabíamos exatamente o que Nova York esperava de nós e achamos aquilo muito confuso. Poucos meses depois de embarcar na aventura metropolitana, já mal sabíamos quem éramos e não tínhamos ideia do que éramos. Um mergulho numa fonte pública ou um esbarrão casual com agentes da lei era o bastante para nos levar às colunas de fofocas. Éramos citados com relação a uma vasta quantidade de assuntos sobre os quais nada sabíamos. Na verdade, nossos “contatos” se resumiam a meia dúzia de amigos solteiros da faculdade e uns poucos conhecidos recentes da área literária — lembro de um Natal solitário em que não tínhamos um só amigo na cidade nem uma casa aonde ir. Sem encontrar um núcleo ao qual nos agarrar, nós mesmos nos tornamos um núcleo e aos poucos ajustamos nossas personalidades conturbadas à cena da Nova York contemporânea. Ou melhor, Nova York nos esqueceu e nos deixou ficar.
Este não é um relato das mudanças da cidade, mas das mudanças dos sentimentos deste escritor pela cidade. Da confusão de 1920, lembro de andar na capota de um táxi pela Quinta Avenida deserta numa noite quente de domingo, de um almoço no sereno jardim japonês do Ritz com a melancólica Kay Laurel e George Jean Nathan, de escrever a noite toda repetidamente, de pagar caro por minúsculos apartamentos, e de comprar carros magníficos que enguiçavam toda hora. Tinham aparecido os primeiros bares clandestinos, passear estava fora de moda, o Montmartre era o lugar elegante para dançar e o cabelo louro de Lillian Tashman rodopiava na pista de dança entre universitários embriagados. As peças eram Declassée e Sacred and Profane Love, e no Midnight Frolic você dançava lado a lado com Marion Davies e talvez reconhecesse a animada Mary Hay entre as coristas. Pensávamos que estávamos distantes de tudo aquilo; talvez todo mundo pense que está distante de seu ambiente. Nos sentíamos como duas criancinhas num enorme galpão, iluminado e inexplorado. Reunidos no estúdio de Griffith em Long Island, tremíamos em presença dos rostos familiares do filme O nascimento de uma nação; mais tarde, compreendi que por trás do entretenimento que a cidade despejava sobre a nação não havia mais que um monte de gente perdida e solitária. O mundo dos astros de cinema era como o nosso, na medida em que eles estavam em Nova York, mas não eram de Nova York. Esse mundo tinha pouca noção de si mesmo e nenhum centro: quando conheci Dorothy Gish, tive a sensação de que estávamos os dois no polo Norte e que nevava. Desde então eles encontraram um lar, que não estava destinado a ser Nova York.
Quando nos entediávamos, encarávamos nossa cidade com um capricho à moda de Huysmans. Passávamos uma tarde sozinhos em nosso “apartamento”, comendo sanduíches de azeitona e bebendo um litro de uísque Bushmills que tínhamos ganhado de Zoë Akins, e então saíamos para a cidade enfeitiçada, entrando por portas estranhas em estranhos apartamentos com intermitentes sacolejos em táxis no meio das noites mansas. Pelo menos formávamos um todo com Nova York, levando-a conosco por cada portal. Até hoje entro em muitos apartamentos com a sensação de já ter estado lá antes, ou no de cima, ou no de baixo. Teria sido na noite em que tentei tirar a roupa no Scandals, ou na noite em que (como fiquei sabendo, com assombro, pelos jornais na manhã seguinte) “Fitzgerald esmurra policial até o outro lado do paraíso”? Como ganhar briga não fazia parte das minhas realizações, tentei em vão reconstruir a sequência de eventos que culminou naquele desfecho, no Webster Hall. Finalmente, daquele período, lembro de estar andando de táxi numa tarde entre edifícios altíssimos sob um céu rosa arroxeado; comecei a gritar que tinha tudo o que queria e sabia que nunca mais seria tão feliz.
Foi típico de nossa precária situação em Nova York o fato de que, quando nossa filha estava para nascer, decidimos proceder com segurança e voltamos para St. Paul — parecia inadequado trazer um bebê à luz no meio de todo aquele glamour e daquela solidão. Depois de um ano, porém, estávamos de volta, e começamos a fazer as mesmas coisas outra vez, sem gostar muito delas. Estávamos bastante rodados, embora conservássemos uma inocência quase teatral ao preferir o papel de observados ao de observadores. Mas a inocência não é um fim em si, e à medida que nossa mentalidade amadurecia, contra a nossa vontade, começamos a ver Nova York como um todo e a tentar salvar alguma coisa dela para quando chegassem os seres em que inevitavelmente nos transformaríamos.
Era tarde demais — ou cedo demais. Para nós, a cidade estava indissoluvelmente ligada a divertimentos etílicos, moderados ou fantásticos. Só pudemos nos organizar ao voltar para Long Island, e nem sempre lá. Não tínhamos estímulo para desfrutar a cidade pela metade. Meu primeiro símbolo era agora uma lembrança, pois eu sabia que o triunfo está em nós mesmos; o segundo tinha se transformado em lugar-comum — as duas atrizes que eu cultuava de longe lá pelos idos de 1913 tinham jantado em nossa casa. Mas dava-me certo medo que também o terceiro símbolo tivesse se turvado — não era fácil encontrar a tranquilidade do apartamento de Bunny na cidade sempre acelerada. Bunny tinha se casado e ia ser pai; outros amigos tinham ido para a Europa, e os solteiros frequentavam casas maiores e mais festivas que a nossa. Nessa época, conhecíamos “todo mundo” — ou seja, a maioria das pessoas que Ralph Barton retrataria em seus cartuns numa noite de estreia.
Mas já não éramos importantes. Em 1923, a melindrosa, em cuja conduta se baseara a popularidade de meus primeiros livros, tinha saído de moda — pelo menos no Leste. Decidi impactar a Broadway com uma peça, mas a Broadway mandou seus olheiros a Atlantic City e de saída cancelou a ideia, e assim senti que, naquele momento, a cidade e eu tínhamos pouco a oferecer um ao outro. Eu ia pegar a atmosfera de Long Island que respirara com familiaridade e materializá-la sob céus desconhecidos.
Passaram-se três anos até que víssemos Nova York outra vez. Enquanto o navio deslizava rio acima, a cidade explodia trovejando sobre nós no entardecer — a geleira branca da parte baixa de Nova York mergulhando como os cabos de uma ponte para erguer-se na parte alta da cidade, um milagre de luz e espuma suspenso pelas estrelas. Uma banda começou a tocar no convés, mas diante da majestade da cidade a marcha soava banal e metálica. A partir daquele momento, entendi que Nova York, não importava quantas vezes eu a deixasse, era minha casa.
O ritmo da cidade tinha mudado profundamente. As incertezas de 1920 tinham se afogado num contínuo fragor dourado, e muitos de nossos amigos tinham enriquecido. Mas a agitação da Nova York de 1927 beirava a histeria. As festas eram de arromba — as de Condé Nast, por exemplo, rivalizavam com os lendários bailes da década de 1890; o ritmo era mais acelerado — os convites à dissipação davam exemplo a Paris; os espetáculos eram maiores; os edifícios, mais altos; os costumes, mais lassos; e a bebida, mais barata. Mas todas essas benesses na verdade não proporcionavam muito deleite. Os jovens se desgastavam muito cedo — estavam insensíveis e frágeis aos vinte e um anos e, com exceção de Peter Arno, nenhum deles contribuiu com nada de novo. Talvez Peter Arno e seus colaboradores tenham dito tudo o que havia por dizer sobre os dias do boom de Nova York que não pudesse ser dito por uma orquestra de jazz. Muita gente que não era alcoólatra se embebedava quatro dias por semana, e havia nervos em frangalhos espalhados por toda parte; os grupos permaneciam reunidos por um nervosismo generalizado, e a ressaca tornou-se uma parte do dia tão natural quanto dormir a siesta para os espanhóis. A maior parte dos meus amigos bebia demais — quanto mais sintonizados com a época, mais bebiam. Assim, como o esforço por si só não tinha nenhum valor diante da absoluta permissividade da Nova York daqueles dias, inventou-se um nome pejorativo para ele: uma atividade de sucesso tornou-se uma pilantragem — eu estava na pilantragem literária.
Morávamos a poucas horas de Nova York, e descobri que cada vez que vinha à cidade era pilhado numa complicação de eventos que poucos dias depois me depositavam em estado de exaustão num trem para Delaware. Porções inteiras da cidade tinham crescido de modo insalubre, mas invariavelmente eu encontrava um momento de paz absoluta cruzando o Central Park, no escuro, em direção ao sul, onde as fachadas da rua 59 projetavam suas luzes através das árvores. Ali estava de novo minha cidade perdida, envolvida indiferente em seu mistério e suas promessas. Entretanto, meu afastamento nunca durava muito — da mesma forma que o trabalhador precisa viver no ventre da cidade, eu era compelido a viver em sua mente desordenada.
Como alternativa havia os bares clandestinos — a migração dos bares de luxo, que anunciavam nas publicações de Yale e Princeton, para cervejarias onde o rosto ranzinza do submundo espiava através da boa índole germânica do entretenimento, e depois para lugares estranhos e ainda mais sinistros, onde éramos observados por rapazes com rosto de pedra e nada restava da jovialidade, apenas uma brutalidade que contaminava o novo dia para o qual saíamos. Lembrei-me de 1920, quando choquei um jovem empresário em ascensão sugerindo um coquetel antes do almoço. Em 1929, havia bebida alcoólica em metade dos escritórios do centro e um bar clandestino em metade dos grandes edifícios.
Os bares clandestinos e a Park Avenue tornavam-se cada vez mais de domínio público. Na década anterior, Greenwich Village, Washington Square, Murray Hill e os casarões da Quinta Avenida tinham de certa forma desaparecido, ou se tornado inexpressivos. A cidade estava intumescida, desentranhada, estupidificada com pão e circo, e uma nova expressão — “Ah, é?” — resumia todo o entusiasmo evocado pelo anúncio dos últimos superarranha-céus. Meu barbeiro aposentou-se com o meio milhão ganhado em apostas no mercado, e eu tinha consciência de que os maîtres que me conduziam até minha mesa, ou que não o faziam, estavam muito, muito mais ricos do que eu. Isso não tinha graça — mais uma vez me fartei de Nova York e foi bom me sentir a salvo a bordo de um navio, em cujo bar continuou a festa ininterrupta a caminho da França.
“Quais são as últimas de Nova York?”
“As ações estão subindo. Um bebê matou um bandido.”
“Só isso?”
“Só. Os rádios se esgoelam na rua.”
Eu já chegara a pensar que não havia segundo ato na vida dos americanos, mas certamente haveria um segundo ato aos dias de boom de Nova York. Estávamos em algum lugar do Norte da África quando ouvimos um ruído abafado que ecoou nos cantos mais remotos do deserto.
“O que foi isso?”
“Você ouviu?”
“Não foi nada.”
“Você acha que devíamos voltar e ver?”
“Não. Não foi nada.”
No outono escuro, dois anos depois, vimos Nova York de novo. Passamos por funcionários da alfândega curiosamente corteses e, depois, de cabeça baixa e chapéu na mão, caminhei respeitosamente pela tumba ressonante. Entre as ruínas, uns poucos fantasmas infantis ainda brincavam para manter a farsa de que estavam vivos, porém eram traídos por suas vozes febris e feições frenéticas que revelavam a fragilidade da mascarada. Nos coquetéis, um último resquício oco dos dias de festança, ecoavam os lamentos dos feridos: “Me dê um tiro, pelo amor de Deus, alguém me dê um tiro!”, e os gemidos e queixumes dos moribundos: “Viu que a United States Steel caiu mais três pontos?”. Meu barbeiro voltou a trabalhar em sua loja; mais uma vez os maîtres acompanhavam as pessoas até as mesas, quando havia pessoas a acompanhar. Das ruínas, sozinho e indecifrável como uma esfinge, erguia-se o edifício Empire State e, assim como tinha sido um hábito meu subir ao terraço do Plaza para me despedir da linda cidade, que se estendia até onde a vista podia alcançar, desta vez fui ao último andar da última e mais esplêndida das torres. Foi então que vi que tudo se explicava: eu descobrira o erro fatal da cidade, sua caixa de Pandora. Cheio de empáfia, o nova-iorquino subira só para ver, desolado, o que nunca tinha suspeitado: a cidade não era uma sucessão infinita de cânions, como ele supunha, mas tinha limites — de cima da mais alta das estruturas, ele viu pela primeira vez que ela ia se apagando em direção ao campo por todos os lados, numa imensidão de verde e azul, essa sim sem limites. E com a terrível compreensão de que Nova York afinal era uma cidade, e não um universo, todo o edifício cintilante que ele criara em sua imaginação veio abaixo. Foi esse o presente desavisado de Alfred W. Smith aos cidadãos de Nova York.
Assim eu me despeço da minha cidade perdida. Vista do ferryboat, de manhã cedo, ela já não sugere sucessos fantásticos e eterna juventude. As moças alegres que saracoteiam diante de plateias vazias não me lembram a beleza inefável das garotas de meus sonhos em 1914. E Bunny, girando sobre os calcanhares cheio de si com sua bengala, a caminho de seu retiro num carnaval, aderiu ao comunismo e se preocupa com as injustiças contra os trabalhadores dos moinhos no Sul e os agricultores do Oeste, cujas vozes, quinze anos atrás, nunca teriam atravessado as paredes de seu estúdio.
Tudo está perdido salvo a lembrança, embora eu às vezes me imagine lendo uma edição de 1945 do Daily News: CINQUENTÃO PERDE A CABEÇA EM NOVA YORK
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Abatido por pistoleiro furioso
Então talvez eu esteja destinado a voltar algum dia e encontrar na cidade novas experiências que até agora só vi no papel. Por enquanto, só posso chorar a perda de minha esplêndida miragem. Volte, ó branca e resplandecente, volte!
1 Dick Whittington e seu gato é um conto do folclore inglês sobre um menino pobre do século XIII que se torna um rico comerciante e termina como Lord Mayor de Londres devido à habilidade de seu gato como caçador de ratos. (N. T.)
2 Franklin Pierce Adams (1881-1960). (N. T.)
F. Scott Fitzgerald
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