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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A HISTORIA O FALECIDO SENHOR ELBESHAM/H. G. Wells
A HISTORIA O FALECIDO SENHOR ELBESHAM/H. G. Wells

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Escrevo esta história, não com a esperança de que receba crédito, mas, se possível, para que prepare uma saída de fuga para a próxima vítima. Ele, talvez, tome proveito de meu infortúnio. Meu próprio caso, eu sei, é irremediável, e estou agora, de certo modo, preparado para encontrar com meu destino.
Meu nome é Edward George Eden. Nasci em Trentham, Staffordshire; meu pai empregado dos parques da região. Perdi minha mãe aos três anos de idade, e meu pai aos cinco; meu tio, George Eden, então me adotou como seu próprio filho. Ele era solteiro, autodidata e famoso em Birmingham como jornalista empreendedor; ele me educou com generosidade, atiçando minha ambição de sucesso no mundo, e, à sua morte, que ocorreu há quatro anos, deixou-me toda a sua fortuna, algo em torno de quinhentas libras após os gastos do falecimento. Eu tinha então dezoito. Ele me aconselhou em seu testamento a gastar o dinheiro com o término de minha educação. Eu já havia escolhido a profissão médica, e por meio de sua generosidade póstuma e minha boa sorte em uma competição para uma bolsa de estudos, tornei-me um estudante de medicina na University College, em Londres. À época do começo de minha história, eu habitava à rua University, número 11A, em um quartinho no primeiro andar, mal mobiliado e frio, com vista para o terreno de Shoolbred. Morava e dormia nesse quartinho porque queria esticar meus meios até o último centavo.
Levava um par de sapatos para remendar em um sapateiro na Tottenham Court quando encontrei pela primeira vez o velhote de cara amarela, com quem minha vida agora se tornou tão inextricavelmente enredada. Ele estava parado na calçada, encarando com dúvida o número na porta, quando eu a abri. Seus olhos — de uma cor de cinza embaçada e avermelhados sob a pálpebra — caíram sobre meu rosto, e sua fisionomia imediatamente assumiu uma expressão de amabilidade enrugada.

 

 

 

 

 

 

— Chegou na hora certa — ele disse. — Eu tinha esquecido o número de sua casa. Como vai, sr. Eden?

Fiquei um pouco surpreso com a intimidade do cumprimento, pois eu nunca tinha posto os olhos sobre esse homem. Fiquei um pouco irritado também, por ele ter me pego com as botas embaixo do braço. Ele percebeu minha falta de cordialidade.

— Está pensando quem diabos sou eu, é? Um amigo, posso lhe assegurar. Já o vi antes, embora você não tenha me visto. Podemos conversar em algum lugar?

Hesitei. A precariedade de meu quartinho lá em cima não era assunto para qualquer estranho.

— Talvez — disse —, possamos descer a rua. Infelizmente não posso... — Meu gesto explicou a frase antes que fosse pronunciada.

— Certo — ele concordou e olhou para um lado, depois para o outro. — A rua? Em que direção? — Coloquei minhas botas na passagem. — Olhe aqui! — ele disse abruptamente —, este meu assunto é complicado. Venha almoçar comigo, sr. Eden. Sou um homem velho, muito velho, e não sou bom em explicações, e com essa minha voz esganiçada e a barulheira do trânsito...

Pousou uma persuasiva mão ossuda, que tremia um pouco, sobre meu braço.

Eu não era tão velho para que um homem mais velho não pudesse me pagar um almoço. No entanto, ao mesmo tempo, não estava inteiramente satisfeito com o convite abrupto.

— Eu prefiro... — comecei.

— Mas eu prefiro — ele me interrompeu —, e certamente meus cabelos grisalhos merecem a civilidade.

E assim consenti e fui com ele.

Ele me levou ao Blavitiski’s; eu tive que andar lentamente para me adaptar às suas passadas; e durante um almoço sem igual em sabor, ele se esquivou de minha principal pergunta, e eu pude reparar mais em sua aparência. Seu rosto barbeado rente era magro e enrugado; seus lábios murchos caíam sobre dentes postiços, e seu cabelo branco era ralo e um tanto quanto comprido; parecia pequeno para mim — embora certamente a maioria das pessoas pareça pequena para mim —, e seus ombros eram curvos e caídos. E observando-o, não pude deixar de perceber que ele também tomava nota, correndo os olhos, com um curioso toque de ganância, sobre mim, de meus ombros largos para minhas mãos bronzeadas e depois de volta a meu rosto sardento.

— E agora — disse ele ao acendermos nossos cigarros —, devo contar-lhe sobre minha questão. — Devo contar-lhe que sou um homem velho, muito velho. — Pausou por um instante. — E acontece que tenho dinheiro que devo deixar, e não tenho filho algum para quem deixá-lo.

Pensei no truque da confiança e decidi ficar alerto aos vestígios de minhas quinhentas libras. Ele prosseguiu sobre a extensão de sua solidão, e a dificuldade que possuía em encontrar um fim adequado para seu dinheiro.

— Pesei este plano e aquele, caridades, instituições e bolsas de estudo e bibliotecas, e cheguei enfim a esta conclusão — fixou os olhos em meu rosto —, de que devo encontrar um jovem, ambicioso, de mente pura, pobre, saudável de mente e de corpo, e, em resumo, fazer dele meu herdeiro, dar-lhe tudo que possuo. — Ele repetiu: — Dar-lhe tudo que possuo. Para que ele possa subitamente ser erguido de todos os problemas e dificuldades nas quais suas disposições foram educadas, até alcançar a liberdade e a influência.

Tentei parecer desinteressado. Com hipocrisia transparente, falei:

— E quer minha ajuda, meus serviços profissionais talvez, para encontrar tal pessoa.

Ele sorriu, e me olhou por sobre seu cigarro, e eu ri de sua exposição muda de minha fingida modéstia.

— Que carreira tal homem pode ter! — ele disse. — Encho-me de inveja ao pensar como acumulei o que outro pode gastar... Mas há condições, claro, deveres impostos. Ele deve, por exemplo, pegar meu nome. Não pode esperar tudo sem nada em troca. E devo conhecer todas as circunstâncias de sua vida antes de aceitá-lo. Ele deve ser saudável. Eu preciso conhecer sua ascendência, como seus pais e avós morreram, fazer a mais rígida das investigações a respeito de sua moralidade.

Isso modificou um pouco minhas íntimas parabenizações secretas.

— E eu entendo — falei — que eu...

— Sim — ele disse, quase com ferocidade. — Você. Você.

Não respondi palavra. Minha imaginação dançava, furiosa, meu ceticismo inato inútil para modificar seus enlevos. Não havia uma partícula de gratidão em minha mente — não sabia o que dizer nem como dizer.

— Mas por que eu? — perguntei, por fim.

Por acaso, o professor Haslar falara de mim, como exemplo de um rapaz saudável e são, e ele desejava, tanto quanto possível, deixar seu dinheiro onde saúde e integridade fossem garantidas.

Esse foi meu primeiro encontro com o velhinho. Ele mantinha mistério a seu respeito; disse que ainda não informaria seu nome, e depois que respondi algumas de suas perguntas, me deixou na entrada do Blavitiski. Notei que retirou um punhado de moedas de ouro do bolso quando chegou a hora de pagar pelo almoço. Sua insistência na saúde corporal era curiosa. De acordo com nosso arranjo, nesse mesmo dia contratei um seguro de vida na Loyal Insurance Company, por uma bela quantia, e na semana seguinte fui exaustivamente atropelado pelos profissionais médicos dessa companhia. Nem isso o satisfez, e insistiu que eu fosse reexaminado pelo grande dr. Henderson.

Foi na sexta-feira da semana de Pentecostes que ele tomou a decisão. Pediu-me para descer, bem tarde da noite — quase nove —, tirando-me da minha compenetração nas equações químicas para o exame preliminar científico. Estava de pé na passagem, sob uma fraca lâmpada de gás, e seu rosto era uma interação grotesca de sombras. Parecia mais curvo do que a primeira vez em que o vi, e suas bochechas levemente encovadas.

Sua voz tremia de emoção:

— Tudo satisfatório, sr. Eden. Tudo muito, muito satisfatório. E esta noite, esta noite deve jantar comigo para celebrar sua... ascensão. — Foi interrompido pela tosse. — Não precisará esperar muito também — continuou, limpando os lábios com o lenço e pegando minha mão com a garra ossuda e longa que estava desocupada. — Certamente... não muito a esperar.

Fomos até a rua e chamamos uma carruagem. Lembro todos os incidentes desse percurso vividamente: a movimentação ligeira e confortável, o vívido contraste entre gás, óleo e eletricidade, as multidões nas ruas, o lugar na Regent para onde fomos e o suntuoso jantar servido ali. De início, fique desconcertado pelo olhar do garçom bem-vestido para as minhas vestes grosseiras, incomodado pelos caroços nas azeitonas, mas conforme a champanhe esquentava meu sangue, minha confiança se renovava. No começo, o velho falou sobre si. Já tinha me contado seu nome na carruagem; era Egbert Elvesham, o grande filósofo, cujo nome eu conhecia desde mancebo na escola. Parecia incrível para mim que este homem, cuja inteligência havia tão cedo dominado a minha, essa grande abstração, de repente se concretizasse como uma figura conhecida e decrépita. Ouso dizer que qualquer rapaz que tenha de repente se encontrado em meio a celebridades já sentiu um pouco de minha decepção. Contou-me sobre o futuro que os débeis córregos de sua vida deixariam em breve a seco para mim: casas, direitos autorais, investimentos. Nunca suspeitei que filósofos fossem tão ricos. Ele me observava beber e comer com uma pontada de inveja.

— Que capacidade para viver que possui! — E então, com um suspiro, um suspiro de alívio talvez: — Não vai demorar.

— Certo — disse eu, a cabeça já nadando em champanhe. — Tenho um futuro talvez... de um tipo razoavelmente satisfatório, graças ao senhor. Terei a honra de seu nome. Mas o senhor tem um passado. Tamanho passado que vale por todo o meu futuro.

Ele balançou a cabeça e sorriu, como pensei no momento, com gratidão um pouco triste pela minha admiração envaidecedora.

— Esse futuro — ele disse —, você, de fato, o mudaria? — O garçom veio com licores. — Não vai se importar, talvez, de tomar meu nome, minha posição, mas tomaria, por vontade própria, meus anos?

— Com suas façanhas — falei, cortês.

Ele sorriu outra vez.

— Kummel... os dois — ele disse para o garçom e voltou a atenção para um pequeno envelope que tirou do bolso. — Esta hora — falou —, esta hora após um jantar é a hora das pequenas coisas. Aqui está um pedaço de minha sabedoria inédita. — Abriu o envelope com os dedos amarelos e trêmulos e mostrou um pouco de pó rosado no papel. — Isto — continuou —, bem, você deve saber o que é. Mas Kummel, coloque uma pitada desse pó, e se torna Himmel1.

Seus grandes olhos cor de cinza observaram os meus com uma expressão inescrutável.

Foi um pouco chocante descobrir que este grande mestre se dedicava aos sabores dos licores. No entanto, fingi interesse nessa sua fraqueza, pois estava bêbado o suficiente para uma pequena adulação.

Ele dividiu o pó entre os dois copinhos, e, ficando subitamente de pé, com uma dignidade estranha e inesperada, estendeu a mão para mim. Imitei seu gesto, e os copos tilintaram.

— Para uma sucessão rápida — disse ele e levou o copo aos lábios.

— Isso não — apressei-me em dizer. — Isso não.

Interrompeu o movimento com o licor à altura do queixo, olhos fulminando os meus.

— Para uma vida longa — falei.

Ele hesitou.

— Para uma vida longa — repetiu, com um súbito ganido de gargalhada.

Com olhos fixos um no outro, viramos os copinhos. Seus olhos olharam bem dentro dos meus, e enquanto eu secava o líquido, sentia uma sensação intensa e curiosa. O primeiro golpe provocou tumulto em meu cérebro; eu parecia sentir um rebuliço físico dentro de meu crânio, e um zumbido fervilhante encheu meus ouvidos. Não notei o sabor em minha boca, o aroma em minha garganta; vi apenas a intensidade cinza do olhar perfurando o meu. A secura, a confusão mental, o barulho e a agitação em minha cabeça pareciam infinitos. Impressões vagas e curiosas de coisas semiesquecidas dançavam e desapareciam na beirada de minha consciência. Por fim, ele quebrou o feitiço. Com um suspiro súbito e explosivo, baixou o copo.

— E? — perguntou.

— Glorioso — respondi, embora não tivesse saboreado a substância.

Minha cabeça girava. Sentei-me. Meu cérebro estava um caos. Então minha percepção clareou e se intensificou, como se eu visse as coisas em um espelho côncavo. Seus modos pareciam ter se tornado nervosos e apressados. Pegou o relógio e fez um careta.

— Onze e sete! E esta noite eu devo... Sete e vinte e cinco. Waterloo! Preciso ir!

Ele pediu a conta e se atrapalhou com o casaco. Garçons prestativos vieram ajudá-lo. Em outro momento, despedia-me, sobre a plataforma de uma carruagem, e ainda com uma sensação absurda de nitidez detalhada, como se — como posso dizer? — eu não apenas visse, mas sentisse através de um binóculo de ópera em posição invertida.

— Aquela substância — ele disse e colocou a mão à testa —, não deveria lhe ter oferecido. Vai estourar sua cabeça amanhã. Espere um minuto. Aqui. — Ele me entregou um pacotinho fino que parecia pó de Seidlitz2. — Dilua na água e tome ao se deitar. A outra substância era uma droga. Atenção: somente ao se deitar. Vai desanuviar sua mente. Só isso. Mais um aperto... Futurus! —Segurei a garra encarquilhada. — Adeus — ele se despediu, e pelas pálpebras descaídas julguei que ele também estava um pouco sob a influência daquela beberagem destorcedora de cérebros.

De súbito, lembrou-se de algo, passou a mão sobre o bolso da frente do paletó e de lá tirou outra embalagem, um cilindro do tamanho e formato de um tubo de creme para barbear.

— Aqui — disse. — Quase esqueci. Não abra até amanhã... mas leve já.

Era tão pesado que quase o derrubei.

— Certinho! — falei, e ele sorriu para mim através da janela da carruagem enquanto o condutor estalava o chicote para acordar seu cavalo.

Era um pacote branco, com selos vermelhos, um de cada lado e ao longo da beirada. “Se não é dinheiro, é platina ou chumbo”, pensei. Enfiei com cuidado meticuloso no bolso, e com o cérebro rodopiante fui para casa andando em meio aos vagabundos da rua Regent e pelas ruelas além da rua Portland. Lembro com vivacidade das sensações dessa caminhada, por mais estranhas que tenham sido. Ainda estava tão alterado que pude perceber meu estranho estado mental e pensar se a substância que ingerira era ópio, uma droga com a qual não tinha experiência. É difícil agora descrever a peculiaridade de minha alteridade mental — duplicidade mental mal dá conta de expressar. Ao andar pela Regent, notei em minha mente a bizarra percepção de que estava na estação Waterloo, e tive o estranho impulso de entrar na Politécnica como se subisse em um trem. Esfreguei os olhos com o nó do dedo, e era a Regent. Como posso descrever? Você vê um ator habilidoso olhando para você, ele faz um careta e, olha!, outra pessoa. Seria muito extravagante dizer que me parecia que a rua Regent tivesse, por um momento, feito isso? Depois, certo de que era a Regent outra vez, fiquei confuso com reminiscências fantásticas que brotaram em mim. “Trinta anos atrás”, pensei, “foi aqui que briguei com meu irmão”. Então caí na gargalhada, para a surpresa e excitação de um grupo de gatunos da noite. Trinta anos antes, eu não existia, e nunca na minha vida tinha acertado um irmão. A substância era certamente loucura líquida, pois o arrependimento contundente pelo irmão falecido ainda se agarrava a mim.

Ao longo da Portland, a insânia ressurgiu. Comecei a me lembrar de oficinas desaparecidas e a comparar a rua com o que ela já tinha sido. Pensamentos confusos e alterados são compreensíveis depois da bebida, mas o que me intrigava eram essas memórias fantasmas curiosamente vivazes que tinham se infiltrado em minha mente, e não apenas as memórias infiltradas, mas também as que tinham escoado. Parei em frente ao Stevens’, o negociante de artefatos de história natural, e matutei para lembrar qual era sua relação comigo. Um ônibus passou e soou exatamente como o estrondo de um trem. Eu parecia estar afundando em um poço escuro e distante para alcançar a lembrança.

— Claro — falei em voz alta, por fim —, ele me prometeu três rãs para amanhã. Estranho eu ter esquecido.

Ainda mostram lanternas mágicas a crianças? Lembro que uma imagem aparecia primeiramente como um fantasma esmaecido, e depois crescia até expelir outra. Desse mesmo modo, parecia-me que um conjunto fantasma de novas sensações batalhava com aquelas de meu eu comum.

Passei pela rua Euston até a Tottenham Court, intrigado, e um pouco assustado, e mal notei o trajeto incomum que tomava, pois geralmente eu cortava pelo emaranhado de ruelas. Virei na University, para descobrir que tinha esquecido o número. Apenas com um esforço enorme recuperei 11A, e mesmo assim me pareceu algo que sei lá quem havia me dito. Tentei firmar minha mente rememorando os acontecimentos do jantar, e por nada nesse mundo pude conjurar uma imagem do rosto de meu anfitrião; vi-o apenas como um perfil ensombrecido, como alguém que se olha pelo reflexo do vidro de uma janela. No lugar dele, de algum modo, eu obtinha uma curiosa versão exterior de mim mesmo, sentado à mesa, enrubescido e falante, com olhos iluminados.

— Devo tomar este outro pó — falei. — Isto está impossível.

Fui para o lado errado do hall atrás de vela e fósforos, e não sabia ao certo em que andar ficava meu quarto.

— Estou bêbado, disso tenho certeza. — E vacilei sem necessidade pela escada para sustentar a hipótese.

À primeira vista, meu quarto não me era familiar.

— Que chiqueiro! — comentei ao olhar em volta.

O esforço pareceu me trazer de volta, e a estranha característica fantasmagórica se tornou algo concreto. Lá estava o velho armário de vidro, com minhas anotações nos albúmens colados no canto da moldura, minhas velhas roupas cotidianas esparramadas pelo chão. E, no entanto, não era tão real, afinal. Eu sentia uma persuasão absurda tentando entrar em minha mente, a de que estava em um trem que parava, e eu olhava pela janela para uma estação desconhecida. Agarrei o gradil da cama com força para me reafirmar.

— É clarividência, talvez — falei. — Preciso escrever para a Psychical Research Society3.

Coloquei o pacotinho sobre a penteadeira, sentei-me na cama e fui descalçar as botas. Era como se a imagem de minhas atuais sensações estivesse pintada sobre outra imagem que se esforçasse para sobressair.

— Maldição! Perdi o juízo ou estou em dois lugares ao mesmo tempo?

Seminu, joguei o pó em um copo. Efervesceu e se tornou de uma cor âmbar fluorescente. Bebi tudo. Antes de me deitar, minha mente já havia se tranquilizado. Senti o travesseiro no rosto, e devo ter adormecido logo em seguida.

* * *

Acordei abruptamente de um sonho com bestas estranhas e me encontrei deitado de costas. Provavelmente todos conhecem aquele sonho sombrio e emocional do qual se escapa, de fato acordado, mas estranhamente acuado. Havia um gosto curioso na boca, uma sensação cansada nos membros, uma impressão de desconforto na pele. Pousei a cabeça imóvel no travesseiro, esperando que o sentimento de estranheza e medo passasse, e que então eu adormecesse outra vez. Mas, em vez disso, as sensações misteriosas permaneceram. De início, não percebi nada de errado comigo. Havia uma luz fraca no quarto, tão fraca que era quase a escuridão, e a mobília se destacava nela como nódoas vagas de treva absoluta. Encarei pouco além da roupa de cama sobre mim.

Passou pela minha mente que alguém pudesse ter entrado em meu quarto para roubar meu rolo de dinheiro, porém, após mais alguns momentos deitado, respirando regularmente para simular o sono, percebi que isso era apenas imaginação. No entanto, a desconfortável certeza de que havia algo errado continuava presa a mim. Com esforço, levantei a cabeça do travesseiro e espiei o escuro. O que era eu não podia saber. Olhei para as formas sombrias a meu redor, a maior ou menor escuridão que indicava cortinas, mesa, lareira, prateleiras de livros e assim por diante. Então, comecei a notar algo desconhecido nas formas na escuridão. Teria a cama se virado? Acolá deviam estar as prateleiras, e algo amortalhado e pálido levantava-se ali, algo que não podia ser chamado de prateleira. No entanto, olhei. Era grande demais para ser minha camisa jogada sobre uma cadeira.

Superando o terror infantil, joguei a colcha para o lado e enfiei a perna para fora do leito. Em vez de sair sobre a gaveta embaixo de minha cama, meu pé mal alcançou a borda do colchão. Dei outro passo, como necessário, e sentei-me na beirada da cama. Ao lado dela, deveria haver uma vela, e fósforos sobre a cadeira quebrada. Estiquei a mão e toquei... nada. Sacudi a mão na escuridão, e ela tocou algo pesado pendurado, macio e grosso em sua textura, que farfalhou ao toque. Agarrei e puxei; parecia ser uma cortina suspensa pelo dossel.

Completamente acordado, comecei a perceber que estava em um quarto desconhecido. Fiquei intrigado. Tentei lembrar as circunstâncias da noite anterior, e as encontrei, dessa vez, curiosamente, vívidas em minha memória: a ceia, o recebimento das pequenas embalagens, minha dúvida se estaria intoxicado, meu lento despir, o frio do travesseiro em meu rosto enrubescido. Senti uma súbita desconfiança. Teria sido na última noite ou na anterior a esta? De qualquer modo, este quarto me era estranho, e não sabia dizer como teria ido parar ali. O perfil sombrio e pálido se clareava, e percebi que se tratava de uma janela, com o formato escuro de um espelho de tocador oval contra a fraca intimação da aurora que se infiltrava pela persiana. Fiquei de pé, e fui pego de surpresa por uma singular sensação de fraqueza e desequilíbrio. Com mãos trêmulas esticadas, andei devagar até a janela. Manuseei o vidro, que era grande e com belas arandelas de latão, para achar o cordão da cortina. Não encontrei cordão algum. Por sorte, tomei a borla na mão e rapidamente a veneziana subiu.

Deparei-me com uma paisagem totalmente alheia a mim. A noite nublada, e através do cinza flocado das nuvens amontoadas, a meia-luz do amanhecer se embrenhava. Na borda do céu, a copa de nuvens possuía uma orla vermelho-sangue. Abaixo, tudo escuro e indistinto, montes turvos à distância, uma massa vaga de construções subindo até os pináculos, árvores como tinta esparramada e abaixo da janela um entrelaçado de arbustos negros e caminhos de um cinza-claro. Tão desconhecido que por um momento pensei ainda sonhar. Passei a mão pela mesa de tocador; parecia feita de uma madeira polida, e elaboradamente guarnecida: pequenos frascos de mosaico de vidro e uma escova. Havia também um pequeno objeto esquisito. Era como uma ferradura com projeções lisas e duras sobre um pires. Não encontrei fósforos nem vela.

Voltei os olhos para o cômodo novamente. Agora, com a persiana aberta, espectros baços da mobília saíam da escuridão. Havia uma enorme cama cortinada, e uma lareira a seus pés cuja cornija branca possuía o lustro do mármore.

Apoiei-me na mesa de tocador, fechei os olhos e os abri outra vez, e tentei pensar. A coisa toda era real demais para ser sonho. Estava inclinado a pensar que ainda havia algum tipo de hiato em minha memória, consequência do entorno daquele estranho licor; que eu tinha me deparado com a herança e, talvez, perdido a lembrança de tudo que acontecera após o anúncio da boa fortuna. Talvez, se esperasse um pouco, as coisas se esclareceriam. No entanto, o jantar com o velho Elvesham estava singularmente vivo e recente. A champanhe, os garçons atenciosos, o pó e os licores — apostaria minha própria alma que tudo tinha acontecido havia poucas horas.

E então me ocorreu algo tão trivial e, no entanto, tão terrível que estremeço agora só de pensar. Falei em voz alta. Eu disse:

— Como diabos vim parar aqui? — ... E a voz não era a minha.

Não era a minha, era fraca; a dicção, indistinta; a ressonância em meus ossos faciais, diferente. Então, para me acalmar, passei uma mão sobre a outra, e senti as dobras soltas de pele, a lassidão dos ossos comum da idade.

— Certamente — falei, naquela voz horrível que de algum modo tinha se estabelecido em minha garganta —, certamente isto é um sonho!

Quase tão rápido quanto um gesto involuntário, enfiei os dedos na boca. Meus dentes não estavam lá. Deslizei a ponta dos dedos pela superfície flácida de uma fileira de gengivas engruvinhadas. Fiquei nauseado de consternação e nojo.

Senti então um desejo intenso de me ver, de observar de uma vez por todas o horror total da mudança apavorante que eu tinha sofrido. Vacilei até a cornija e tateei em busca de fósforos. Enquanto o fazia, uma tosse ladrante subiu até minha garganta, e me agarrei à camisola de flanela grossa na qual me encontrei vestido. Não havia fósforos ali, e subitamente percebi que minhas extremidades estavam frias. Espirrando e tossindo, gemendo um pouco, voltei para a cama.

— Certamente um sonho — sussurrei para mim mesmo ao subir de volta ao leito —, certamente um sonho. — Uma repetição senil.

Puxei as cobertas por sobre os ombros até as orelhas e enfiei a mão envelhecida sob o travesseiro, determinado a dormir. Claro que era um sonho. Pela manhã, sonho encerrado, e acordarei forte e vigoroso novamente, para minha juventude e meus estudos. Fechei os olhos, respirei regularmente, e, ainda acordado, comecei a contar lentamente na potência de três.

Mas o que desejei não recebi. Não conseguia dormir. E a persuasão da realidade inexorável da mudança pela qual passara crescia firmemente. Arregalei os olhos, as potências esquecidas, e com os dedos magros sobre as gengivas enrugadas, eu era, de fato, um velho. De algum modo inexplicável tinha atravessado a vida e atingido a velhice, de algum modo tinham-me roubado a melhor parte da vida, do amor, da luta, da força e da esperança. Prostrei-me no travesseiro e tentei me persuadir de que tal alucinação era impossível. Imperceptivelmente, constantemente, a aurora foi se clareando.

Por fim, renunciando ao sono, sentei-me na cama e olhei ao redor. Um lusco-fusco frio tornava todo o quarto visível. Era espaçoso e bem mobiliado, melhor do que qualquer quarto em que já dormira. Uma vela e fósforos se tornaram parcialmente visíveis sobre um pequeno pedestal em um recesso. Joguei a coberta de lado e, tremendo com a crueza da manhã, embora fosse verão, desci e acendi a vela. Então, chacoalhando terrivelmente, tanto que o apagador balançava no candeeiro, cambaleei até o espelho e vi... o rosto de Elvesham! Não foi, no entanto, menos horrível, pois eu já havia vagamente pressentido. Ele já me parecera fisicamente fraco e digno de lástima, mas visto naquele momento, vestido apenas na camisola de flanela grossa, que se abria revelando o pescoço fibroso, visto, naquele momento, como meu próprio corpo, não sou capaz de descrever sua desolada decrepitude. As bochechas encovadas, as dispersas mechas de cabelo cinza-escuro, os olhos remelentos e baços, os lábios trêmulos e rugosos, sendo que o inferior exibia o brilho de seu forro rosa, e aquelas terríveis gengivas escuras. Você que é mente e corpo unidos, em sua idade natural, não é capaz de imaginar o que esta prisão diabólica significou para mim. Ser jovem e cheio de vontade e energia da juventude, e ficar preso, e ser esmagado por esta ruína vacilante de corpo...

Mas me desvio do rumo do relato. Devo ter ficado muito tempo estupefato com a mudança que me ocorreu. Era dia quando consegui voltar a pensar. De um modo inexplicável, eu tinha sido alterado, embora como, exceto por meio de magia, não sabia dizer. E enquanto ponderava, a engenhosidade diabólica de Elvesham surgiu em minha mente. Ficou claro para mim que do mesmo modo que eu me encontrava nele, ele devia estar em posse de meu corpo, de minha força, ou seja, de meu futuro. Mas como provar? Então, enquanto pensava, a questão se tornou tão incrível, mesmo para mim, que minha mente titubeou, e tive que me beliscar, sentir as gengivas desdentadas, olhar-me no espelho e tocar tudo em mim antes que pudesse me aprumar para encarar os fatos outra vez. Seria tudo alucinação? Seria eu, de fato, Elvesham, e ele, eu? Teria eu sonhado com Eden? Existia um Eden? Mas se eu era Elvesham, devia lembrar onde estive na manhã anterior, o nome da cidade onde morava, o que aconteceu antes de o sonho começar. Lutei com meus pensamentos. Recordei-me da estranha duplicidade de minhas lembranças durante a noite. Mas agora minha mente estava limpa. Não o fantasma de lembrança alguma, mas aquelas próprias de Eden.

— Estou insano — gritei com minha voz esganiçada.

Fiquei de pé sem equilíbrio, arrastei os membros frágeis e pesados para o tocador e enfiei a cabeça grisalha em uma bacia de água fria. Duas vezes. Sem sucesso. Sentia sem sombra de dúvida que era de fato Eden, não Elvesham. Mas Eden no corpo de Elvesham!

Se eu fosse homem de outra época, poderia ter considerado meu destino como encantado. Mas nos atuais dias céticos, milagres não são comuns. Isso era algum truque psicológico. O que uma droga e um olhar fixo poderiam provocar, uma droga e um olhar fixo, ou algum tratamento semelhante, poderiam desfazer. Homens já haviam perdido a memória antes. Mas trocar de memória como se trocariam guarda-chuvas! Ri. Ah, mas não um riso saudável, um risinho chiante e senil. Pude imaginar o velho Elvesham rindo de meu apuro, e uma rajada de raiva petulante, pouco comum a mim, arrebatou meus sentimentos. Comecei a vestir com intento as roupas que achei pelo chão, e percebi ao ficar pronto que estava no terno da noite anterior. Abri o guarda-roupa e encontrei trajes mais comuns: um par de calças xadrez e uma camisa antiquada. Coloquei uma venerável cartola em minha cabeça veneranda e, tossindo um pouco pelo esforço, claudiquei até o patamar.

Era então quinze para as seis, e as cortinas estavam fechadas e a casa, silenciosa. O patamar era espaçoso, uma ampla e ricamente carpetada escada descia até a escuridão do hall abaixo, e diante de mim uma porta semiaberta mostrava uma escrivaninha, uma estante de livros giratória, o espaldar de uma cadeira e uma bela coleção de livros encapados, prateleira após prateleira.

— Meu escritório — murmurei e atravessei o patamar. Ao som de minha voz, surgiu um pensamento, e voltei ao quarto para colocar a dentadura. Elas se assentaram com a facilidade de um velho hábito. — Melhor assim — disse, rangendo-a, e retornei ao escritório.

As gavetas da escrivaninha estavam trancadas. Seu tampo removível também. Não via indício de chaves, e não havia nenhuma nos bolsos de minhas calças. Apressei-me para o quarto e vasculhei o terno, e depois os bolsos de todas as roupas que encontrava. Estava muito ansioso, e alguém, ao ver o quarto depois que terminei, poderia ter pensado que ladrões tinham trabalhado ali. Não apenas não havia chaves, mas nem mesmo uma moeda ou um pedaço de papel — exceto pela nota da conta do jantar anterior.

Um estranho cansaço se instalou. Sentei-me e observei as peças de roupa jogadas aqui e ali, os bolsos revirados. Meu primeiro frenesi já tinha se extinguido. A cada momento eu percebia mais e mais a imensa inteligência dos planos de meu inimigo, a ver claramente a desesperança de minha situação. Com esforço, fiquei de pé e corri coxeando para o escritório outra vez. Na escadaria, uma serviçal levantava as persianas. Ela encarou, creio, a expressão em meu rosto. Fechei a porta do escritório atrás de mim, e, com um atiçador, ataquei a escrivaninha. Foi assim que me encontraram. O tampo quebrado, o cadeado estraçalhado, as cartas arrancadas de seus compartimentos e espalhadas pelo cômodo. Em minha fúria senil, tinha jogado canetas e outros objetos de papelaria, e revirado potes de tinta. Além disso, um grande vaso sobre a cornija tinha sido quebrado — não sei como. Não achei talão de cheque ou dinheiro, nem indício algum de como recuperar meu corpo. Eu batia ensandecido as gavetas quando o mordomo, acompanhado de duas serviçais, irrompeu em minha direção.

* * *

Esta é, em resumo, a história de minha transformação. Ninguém dá crédito as minhas asserções frenéticas. Sou tratado como um demente, e mesmo neste instante estou sob vigilância. Mas sou são, absolutamente são, e para prová-lo sentei-me para escrever esta história exatamente como me aconteceu. Pergunto ao leitor se há algum traço de insanidade no estilo ou no método da história que está lendo. Sou um jovem preso no corpo de um velho. Mas o fato é inconcebível para todos. Naturalmente, soo demenciado para aqueles que não creem. Naturalmente não sei os nomes de meus secretários, dos médicos que vêm me visitar, de meus criados e vizinhos, desta cidade (qualquer que seja) onde me encontro. Naturalmente, perco-me em minha própria casa e sofro inconveniências de toda sorte. Naturalmente, faço as mais estranhas perguntas. Naturalmente, choro e grito e sofro um paroxismo de desespero. Não tenho dinheiro nem cheques. O banco não reconhece minha assinatura, pois, apesar da fraqueza de meus músculos, minha caligrafia continua sendo a de Eden. Essas pessoas a minha volta não me deixam ir sozinho ao banco. Parece, na verdade, que não há banco nesta cidade, e que possuo conta em algum lugar de Londres. Parece que Elvesham mantinha o nome de seu procurador em segredo de todos os criados. Não posso ter certeza de nada. Elvesham era, claro, um profundo estudioso da ciência mental, e todas as minhas declarações dos fatos do caso apenas confirmam a teoria de que minha insanidade é o resultado do excesso de reflexão sobre a psicologia. Desvarios de identidade pessoal, sem dúvida! Dois dias atrás, eu era um rapaz saudável, com a vida toda pela frente; agora, sou um velho furioso, desgrenhado e desesperado; vagando por uma enorme, luxuosa e desconhecida casa; vigiado, temido e evitado, como um lunático, por todos a minha volta. E em Londres, Elvesham recomeça a vida em um corpo vigoroso, e com o conhecimento e sabedoria acumulados durante setenta anos. Ele me roubou a vida.

O que aconteceu, não sei ao certo. No escritório, há volumes de notas manuscritas referindo-se principalmente à psicologia da memória, e trechos do que podem ser cálculos ou cifras em símbolos absolutamente desconhecidas por mim. Em algumas passagens, há indicações de que ele também se ocupava com a filosofia da matemática. Creio que tenha transferido todas as suas memórias, o acúmulo do que compunha sua personalidade, de seu velho e abatido cérebro para o meu, e também tenha transferido o que era meu para o seu cortiço paupérrimo. Ou seja, intercambiou corpos. Mas como tal mudança pode ser possível está fora do alcance de meu entendimento. Sempre fui um materialista durante toda a minha vida intelectual, mas aqui, subitamente, há um caso óbvio da separação do homem de sua matéria.

Estou prestes a tentar um experimento desesperado. Sento e escrevo aqui antes de me lançar ao caso. Hoje cedo, com a ajuda de uma faca que subtraí no café da manhã, consegui violar uma gaveta secreta na escrivaninha destruída. Encontrei apenas um pequeno frasco verde contendo um pó branco. Nele, uma etiqueta, e nela, apenas uma palavra: “libertação”. Isto deve ser, mais provavelmente, veneno. Compreendo por que Elvesham colocou veneno em meu caminho, e tenho certeza de que era sua intenção se livrar do único ser vivente que poderia testemunhar contra ele, apenas não entendi o esconderijo cuidadoso. O homem praticamente resolveu o mistério da imortalidade. Exceto por uma vingança do acaso, viverá em meu corpo até a idade avançada, e então, novamente, vai deixar esse corpo de lado e achar outra vítima jovem e forte. Quando se pensa em sua crueldade, é terrível refletir sobre quanto tempo ele vem praticando esse experimento... Há quanto tempo salta de corpo em corpo...? Mas me canso de escrever. O pó é solúvel em água. O sabor não é desagradável.

* * *

Assim termina a narrativa encontrada sobre a escrivaninha do sr. Elvesham. Seu cadáver deitado entre a mesa e a cadeira, caída para trás, provavelmente empurrada pelas derradeiras convulsões do homem. A história foi escrita a lápis e em uma caligrafia demenciada, bem diferente de suas costumeiras letras cuidadosas. Restam apenas dois fatos curiosos a ser registrados. Sem dúvidas, havia uma conexão entre Eden e Elvesham, já que todas as propriedades de Elvesham foram repassadas para o jovem. Porém, ele nunca as herdou. Quando Elvesham cometeu suicídio, Eden já estava, por mais bizarro que seja, morto. Vinte quatro horas antes, uma carruagem o acertara e morrera na hora, no cruzamento movimentado da interseção da Gower com a Euston. De modo que o único ser humano que poderia esclarecer essa narrativa fantástica não estava mais ao alcance das perguntas. Sem mais comentários, deixo a extraordinária questão para o julgamento individual do leitor.

 

1. Aqui o sr. Elvesham faz um trocadilho entre Kummel (alcaravia) com Himmel (céu, paraíso) (N.T.).


2. Digestivo efervescente composto por bicarbonato de sódio, acido tartárico e tartarato de sódio e potássio (N.T.).


3. Sociedade britânica que encoraja a pesquisa científica de fenômenos psíquicos e paranormais.

Escrevo esta história, não com a esperança de que receba crédito, mas, se possível, para que prepare uma saída de fuga para a próxima vítima. Ele, talvez, tome proveito de meu infortúnio. Meu próprio caso, eu sei, é irremediável, e estou agora, de certo modo, preparado para encontrar com meu destino.
Meu nome é Edward George Eden. Nasci em Trentham, Staffordshire; meu pai empregado dos parques da região. Perdi minha mãe aos três anos de idade, e meu pai aos cinco; meu tio, George Eden, então me adotou como seu próprio filho. Ele era solteiro, autodidata e famoso em Birmingham como jornalista empreendedor; ele me educou com generosidade, atiçando minha ambição de sucesso no mundo, e, à sua morte, que ocorreu há quatro anos, deixou-me toda a sua fortuna, algo em torno de quinhentas libras após os gastos do falecimento. Eu tinha então dezoito. Ele me aconselhou em seu testamento a gastar o dinheiro com o término de minha educação. Eu já havia escolhido a profissão médica, e por meio de sua generosidade póstuma e minha boa sorte em uma competição para uma bolsa de estudos, tornei-me um estudante de medicina na University College, em Londres. À época do começo de minha história, eu habitava à rua University, número 11A, em um quartinho no primeiro andar, mal mobiliado e frio, com vista para o terreno de Shoolbred. Morava e dormia nesse quartinho porque queria esticar meus meios até o último centavo.
Levava um par de sapatos para remendar em um sapateiro na Tottenham Court quando encontrei pela primeira vez o velhote de cara amarela, com quem minha vida agora se tornou tão inextricavelmente enredada. Ele estava parado na calçada, encarando com dúvida o número na porta, quando eu a abri. Seus olhos — de uma cor de cinza embaçada e avermelhados sob a pálpebra — caíram sobre meu rosto, e sua fisionomia imediatamente assumiu uma expressão de amabilidade enrugada.

 

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_HISTORIA_O_FALECIDO_SENHOR_ELBESHAM.png

 

 

— Chegou na hora certa — ele disse. — Eu tinha esquecido o número de sua casa. Como vai, sr. Eden?

Fiquei um pouco surpreso com a intimidade do cumprimento, pois eu nunca tinha posto os olhos sobre esse homem. Fiquei um pouco irritado também, por ele ter me pego com as botas embaixo do braço. Ele percebeu minha falta de cordialidade.

— Está pensando quem diabos sou eu, é? Um amigo, posso lhe assegurar. Já o vi antes, embora você não tenha me visto. Podemos conversar em algum lugar?

Hesitei. A precariedade de meu quartinho lá em cima não era assunto para qualquer estranho.

— Talvez — disse —, possamos descer a rua. Infelizmente não posso... — Meu gesto explicou a frase antes que fosse pronunciada.

— Certo — ele concordou e olhou para um lado, depois para o outro. — A rua? Em que direção? — Coloquei minhas botas na passagem. — Olhe aqui! — ele disse abruptamente —, este meu assunto é complicado. Venha almoçar comigo, sr. Eden. Sou um homem velho, muito velho, e não sou bom em explicações, e com essa minha voz esganiçada e a barulheira do trânsito...

Pousou uma persuasiva mão ossuda, que tremia um pouco, sobre meu braço.

Eu não era tão velho para que um homem mais velho não pudesse me pagar um almoço. No entanto, ao mesmo tempo, não estava inteiramente satisfeito com o convite abrupto.

— Eu prefiro... — comecei.

— Mas eu prefiro — ele me interrompeu —, e certamente meus cabelos grisalhos merecem a civilidade.

E assim consenti e fui com ele.

Ele me levou ao Blavitiski’s; eu tive que andar lentamente para me adaptar às suas passadas; e durante um almoço sem igual em sabor, ele se esquivou de minha principal pergunta, e eu pude reparar mais em sua aparência. Seu rosto barbeado rente era magro e enrugado; seus lábios murchos caíam sobre dentes postiços, e seu cabelo branco era ralo e um tanto quanto comprido; parecia pequeno para mim — embora certamente a maioria das pessoas pareça pequena para mim —, e seus ombros eram curvos e caídos. E observando-o, não pude deixar de perceber que ele também tomava nota, correndo os olhos, com um curioso toque de ganância, sobre mim, de meus ombros largos para minhas mãos bronzeadas e depois de volta a meu rosto sardento.

— E agora — disse ele ao acendermos nossos cigarros —, devo contar-lhe sobre minha questão. — Devo contar-lhe que sou um homem velho, muito velho. — Pausou por um instante. — E acontece que tenho dinheiro que devo deixar, e não tenho filho algum para quem deixá-lo.

Pensei no truque da confiança e decidi ficar alerto aos vestígios de minhas quinhentas libras. Ele prosseguiu sobre a extensão de sua solidão, e a dificuldade que possuía em encontrar um fim adequado para seu dinheiro.

— Pesei este plano e aquele, caridades, instituições e bolsas de estudo e bibliotecas, e cheguei enfim a esta conclusão — fixou os olhos em meu rosto —, de que devo encontrar um jovem, ambicioso, de mente pura, pobre, saudável de mente e de corpo, e, em resumo, fazer dele meu herdeiro, dar-lhe tudo que possuo. — Ele repetiu: — Dar-lhe tudo que possuo. Para que ele possa subitamente ser erguido de todos os problemas e dificuldades nas quais suas disposições foram educadas, até alcançar a liberdade e a influência.

Tentei parecer desinteressado. Com hipocrisia transparente, falei:

— E quer minha ajuda, meus serviços profissionais talvez, para encontrar tal pessoa.

Ele sorriu, e me olhou por sobre seu cigarro, e eu ri de sua exposição muda de minha fingida modéstia.

— Que carreira tal homem pode ter! — ele disse. — Encho-me de inveja ao pensar como acumulei o que outro pode gastar... Mas há condições, claro, deveres impostos. Ele deve, por exemplo, pegar meu nome. Não pode esperar tudo sem nada em troca. E devo conhecer todas as circunstâncias de sua vida antes de aceitá-lo. Ele deve ser saudável. Eu preciso conhecer sua ascendência, como seus pais e avós morreram, fazer a mais rígida das investigações a respeito de sua moralidade.

Isso modificou um pouco minhas íntimas parabenizações secretas.

— E eu entendo — falei — que eu...

— Sim — ele disse, quase com ferocidade. — Você. Você.

Não respondi palavra. Minha imaginação dançava, furiosa, meu ceticismo inato inútil para modificar seus enlevos. Não havia uma partícula de gratidão em minha mente — não sabia o que dizer nem como dizer.

— Mas por que eu? — perguntei, por fim.

Por acaso, o professor Haslar falara de mim, como exemplo de um rapaz saudável e são, e ele desejava, tanto quanto possível, deixar seu dinheiro onde saúde e integridade fossem garantidas.

Esse foi meu primeiro encontro com o velhinho. Ele mantinha mistério a seu respeito; disse que ainda não informaria seu nome, e depois que respondi algumas de suas perguntas, me deixou na entrada do Blavitiski. Notei que retirou um punhado de moedas de ouro do bolso quando chegou a hora de pagar pelo almoço. Sua insistência na saúde corporal era curiosa. De acordo com nosso arranjo, nesse mesmo dia contratei um seguro de vida na Loyal Insurance Company, por uma bela quantia, e na semana seguinte fui exaustivamente atropelado pelos profissionais médicos dessa companhia. Nem isso o satisfez, e insistiu que eu fosse reexaminado pelo grande dr. Henderson.

Foi na sexta-feira da semana de Pentecostes que ele tomou a decisão. Pediu-me para descer, bem tarde da noite — quase nove —, tirando-me da minha compenetração nas equações químicas para o exame preliminar científico. Estava de pé na passagem, sob uma fraca lâmpada de gás, e seu rosto era uma interação grotesca de sombras. Parecia mais curvo do que a primeira vez em que o vi, e suas bochechas levemente encovadas.

Sua voz tremia de emoção:

— Tudo satisfatório, sr. Eden. Tudo muito, muito satisfatório. E esta noite, esta noite deve jantar comigo para celebrar sua... ascensão. — Foi interrompido pela tosse. — Não precisará esperar muito também — continuou, limpando os lábios com o lenço e pegando minha mão com a garra ossuda e longa que estava desocupada. — Certamente... não muito a esperar.

Fomos até a rua e chamamos uma carruagem. Lembro todos os incidentes desse percurso vividamente: a movimentação ligeira e confortável, o vívido contraste entre gás, óleo e eletricidade, as multidões nas ruas, o lugar na Regent para onde fomos e o suntuoso jantar servido ali. De início, fique desconcertado pelo olhar do garçom bem-vestido para as minhas vestes grosseiras, incomodado pelos caroços nas azeitonas, mas conforme a champanhe esquentava meu sangue, minha confiança se renovava. No começo, o velho falou sobre si. Já tinha me contado seu nome na carruagem; era Egbert Elvesham, o grande filósofo, cujo nome eu conhecia desde mancebo na escola. Parecia incrível para mim que este homem, cuja inteligência havia tão cedo dominado a minha, essa grande abstração, de repente se concretizasse como uma figura conhecida e decrépita. Ouso dizer que qualquer rapaz que tenha de repente se encontrado em meio a celebridades já sentiu um pouco de minha decepção. Contou-me sobre o futuro que os débeis córregos de sua vida deixariam em breve a seco para mim: casas, direitos autorais, investimentos. Nunca suspeitei que filósofos fossem tão ricos. Ele me observava beber e comer com uma pontada de inveja.

— Que capacidade para viver que possui! — E então, com um suspiro, um suspiro de alívio talvez: — Não vai demorar.

— Certo — disse eu, a cabeça já nadando em champanhe. — Tenho um futuro talvez... de um tipo razoavelmente satisfatório, graças ao senhor. Terei a honra de seu nome. Mas o senhor tem um passado. Tamanho passado que vale por todo o meu futuro.

Ele balançou a cabeça e sorriu, como pensei no momento, com gratidão um pouco triste pela minha admiração envaidecedora.

— Esse futuro — ele disse —, você, de fato, o mudaria? — O garçom veio com licores. — Não vai se importar, talvez, de tomar meu nome, minha posição, mas tomaria, por vontade própria, meus anos?

— Com suas façanhas — falei, cortês.

Ele sorriu outra vez.

— Kummel... os dois — ele disse para o garçom e voltou a atenção para um pequeno envelope que tirou do bolso. — Esta hora — falou —, esta hora após um jantar é a hora das pequenas coisas. Aqui está um pedaço de minha sabedoria inédita. — Abriu o envelope com os dedos amarelos e trêmulos e mostrou um pouco de pó rosado no papel. — Isto — continuou —, bem, você deve saber o que é. Mas Kummel, coloque uma pitada desse pó, e se torna Himmel1.

Seus grandes olhos cor de cinza observaram os meus com uma expressão inescrutável.

Foi um pouco chocante descobrir que este grande mestre se dedicava aos sabores dos licores. No entanto, fingi interesse nessa sua fraqueza, pois estava bêbado o suficiente para uma pequena adulação.

Ele dividiu o pó entre os dois copinhos, e, ficando subitamente de pé, com uma dignidade estranha e inesperada, estendeu a mão para mim. Imitei seu gesto, e os copos tilintaram.

— Para uma sucessão rápida — disse ele e levou o copo aos lábios.

— Isso não — apressei-me em dizer. — Isso não.

Interrompeu o movimento com o licor à altura do queixo, olhos fulminando os meus.

— Para uma vida longa — falei.

Ele hesitou.

— Para uma vida longa — repetiu, com um súbito ganido de gargalhada.

Com olhos fixos um no outro, viramos os copinhos. Seus olhos olharam bem dentro dos meus, e enquanto eu secava o líquido, sentia uma sensação intensa e curiosa. O primeiro golpe provocou tumulto em meu cérebro; eu parecia sentir um rebuliço físico dentro de meu crânio, e um zumbido fervilhante encheu meus ouvidos. Não notei o sabor em minha boca, o aroma em minha garganta; vi apenas a intensidade cinza do olhar perfurando o meu. A secura, a confusão mental, o barulho e a agitação em minha cabeça pareciam infinitos. Impressões vagas e curiosas de coisas semiesquecidas dançavam e desapareciam na beirada de minha consciência. Por fim, ele quebrou o feitiço. Com um suspiro súbito e explosivo, baixou o copo.

— E? — perguntou.

— Glorioso — respondi, embora não tivesse saboreado a substância.

Minha cabeça girava. Sentei-me. Meu cérebro estava um caos. Então minha percepção clareou e se intensificou, como se eu visse as coisas em um espelho côncavo. Seus modos pareciam ter se tornado nervosos e apressados. Pegou o relógio e fez um careta.

— Onze e sete! E esta noite eu devo... Sete e vinte e cinco. Waterloo! Preciso ir!

Ele pediu a conta e se atrapalhou com o casaco. Garçons prestativos vieram ajudá-lo. Em outro momento, despedia-me, sobre a plataforma de uma carruagem, e ainda com uma sensação absurda de nitidez detalhada, como se — como posso dizer? — eu não apenas visse, mas sentisse através de um binóculo de ópera em posição invertida.

— Aquela substância — ele disse e colocou a mão à testa —, não deveria lhe ter oferecido. Vai estourar sua cabeça amanhã. Espere um minuto. Aqui. — Ele me entregou um pacotinho fino que parecia pó de Seidlitz2. — Dilua na água e tome ao se deitar. A outra substância era uma droga. Atenção: somente ao se deitar. Vai desanuviar sua mente. Só isso. Mais um aperto... Futurus! —Segurei a garra encarquilhada. — Adeus — ele se despediu, e pelas pálpebras descaídas julguei que ele também estava um pouco sob a influência daquela beberagem destorcedora de cérebros.

De súbito, lembrou-se de algo, passou a mão sobre o bolso da frente do paletó e de lá tirou outra embalagem, um cilindro do tamanho e formato de um tubo de creme para barbear.

— Aqui — disse. — Quase esqueci. Não abra até amanhã... mas leve já.

Era tão pesado que quase o derrubei.

— Certinho! — falei, e ele sorriu para mim através da janela da carruagem enquanto o condutor estalava o chicote para acordar seu cavalo.

Era um pacote branco, com selos vermelhos, um de cada lado e ao longo da beirada. “Se não é dinheiro, é platina ou chumbo”, pensei. Enfiei com cuidado meticuloso no bolso, e com o cérebro rodopiante fui para casa andando em meio aos vagabundos da rua Regent e pelas ruelas além da rua Portland. Lembro com vivacidade das sensações dessa caminhada, por mais estranhas que tenham sido. Ainda estava tão alterado que pude perceber meu estranho estado mental e pensar se a substância que ingerira era ópio, uma droga com a qual não tinha experiência. É difícil agora descrever a peculiaridade de minha alteridade mental — duplicidade mental mal dá conta de expressar. Ao andar pela Regent, notei em minha mente a bizarra percepção de que estava na estação Waterloo, e tive o estranho impulso de entrar na Politécnica como se subisse em um trem. Esfreguei os olhos com o nó do dedo, e era a Regent. Como posso descrever? Você vê um ator habilidoso olhando para você, ele faz um careta e, olha!, outra pessoa. Seria muito extravagante dizer que me parecia que a rua Regent tivesse, por um momento, feito isso? Depois, certo de que era a Regent outra vez, fiquei confuso com reminiscências fantásticas que brotaram em mim. “Trinta anos atrás”, pensei, “foi aqui que briguei com meu irmão”. Então caí na gargalhada, para a surpresa e excitação de um grupo de gatunos da noite. Trinta anos antes, eu não existia, e nunca na minha vida tinha acertado um irmão. A substância era certamente loucura líquida, pois o arrependimento contundente pelo irmão falecido ainda se agarrava a mim.

Ao longo da Portland, a insânia ressurgiu. Comecei a me lembrar de oficinas desaparecidas e a comparar a rua com o que ela já tinha sido. Pensamentos confusos e alterados são compreensíveis depois da bebida, mas o que me intrigava eram essas memórias fantasmas curiosamente vivazes que tinham se infiltrado em minha mente, e não apenas as memórias infiltradas, mas também as que tinham escoado. Parei em frente ao Stevens’, o negociante de artefatos de história natural, e matutei para lembrar qual era sua relação comigo. Um ônibus passou e soou exatamente como o estrondo de um trem. Eu parecia estar afundando em um poço escuro e distante para alcançar a lembrança.

— Claro — falei em voz alta, por fim —, ele me prometeu três rãs para amanhã. Estranho eu ter esquecido.

Ainda mostram lanternas mágicas a crianças? Lembro que uma imagem aparecia primeiramente como um fantasma esmaecido, e depois crescia até expelir outra. Desse mesmo modo, parecia-me que um conjunto fantasma de novas sensações batalhava com aquelas de meu eu comum.

Passei pela rua Euston até a Tottenham Court, intrigado, e um pouco assustado, e mal notei o trajeto incomum que tomava, pois geralmente eu cortava pelo emaranhado de ruelas. Virei na University, para descobrir que tinha esquecido o número. Apenas com um esforço enorme recuperei 11A, e mesmo assim me pareceu algo que sei lá quem havia me dito. Tentei firmar minha mente rememorando os acontecimentos do jantar, e por nada nesse mundo pude conjurar uma imagem do rosto de meu anfitrião; vi-o apenas como um perfil ensombrecido, como alguém que se olha pelo reflexo do vidro de uma janela. No lugar dele, de algum modo, eu obtinha uma curiosa versão exterior de mim mesmo, sentado à mesa, enrubescido e falante, com olhos iluminados.

— Devo tomar este outro pó — falei. — Isto está impossível.

Fui para o lado errado do hall atrás de vela e fósforos, e não sabia ao certo em que andar ficava meu quarto.

— Estou bêbado, disso tenho certeza. — E vacilei sem necessidade pela escada para sustentar a hipótese.

À primeira vista, meu quarto não me era familiar.

— Que chiqueiro! — comentei ao olhar em volta.

O esforço pareceu me trazer de volta, e a estranha característica fantasmagórica se tornou algo concreto. Lá estava o velho armário de vidro, com minhas anotações nos albúmens colados no canto da moldura, minhas velhas roupas cotidianas esparramadas pelo chão. E, no entanto, não era tão real, afinal. Eu sentia uma persuasão absurda tentando entrar em minha mente, a de que estava em um trem que parava, e eu olhava pela janela para uma estação desconhecida. Agarrei o gradil da cama com força para me reafirmar.

— É clarividência, talvez — falei. — Preciso escrever para a Psychical Research Society3.

Coloquei o pacotinho sobre a penteadeira, sentei-me na cama e fui descalçar as botas. Era como se a imagem de minhas atuais sensações estivesse pintada sobre outra imagem que se esforçasse para sobressair.

— Maldição! Perdi o juízo ou estou em dois lugares ao mesmo tempo?

Seminu, joguei o pó em um copo. Efervesceu e se tornou de uma cor âmbar fluorescente. Bebi tudo. Antes de me deitar, minha mente já havia se tranquilizado. Senti o travesseiro no rosto, e devo ter adormecido logo em seguida.

* * *

Acordei abruptamente de um sonho com bestas estranhas e me encontrei deitado de costas. Provavelmente todos conhecem aquele sonho sombrio e emocional do qual se escapa, de fato acordado, mas estranhamente acuado. Havia um gosto curioso na boca, uma sensação cansada nos membros, uma impressão de desconforto na pele. Pousei a cabeça imóvel no travesseiro, esperando que o sentimento de estranheza e medo passasse, e que então eu adormecesse outra vez. Mas, em vez disso, as sensações misteriosas permaneceram. De início, não percebi nada de errado comigo. Havia uma luz fraca no quarto, tão fraca que era quase a escuridão, e a mobília se destacava nela como nódoas vagas de treva absoluta. Encarei pouco além da roupa de cama sobre mim.

Passou pela minha mente que alguém pudesse ter entrado em meu quarto para roubar meu rolo de dinheiro, porém, após mais alguns momentos deitado, respirando regularmente para simular o sono, percebi que isso era apenas imaginação. No entanto, a desconfortável certeza de que havia algo errado continuava presa a mim. Com esforço, levantei a cabeça do travesseiro e espiei o escuro. O que era eu não podia saber. Olhei para as formas sombrias a meu redor, a maior ou menor escuridão que indicava cortinas, mesa, lareira, prateleiras de livros e assim por diante. Então, comecei a notar algo desconhecido nas formas na escuridão. Teria a cama se virado? Acolá deviam estar as prateleiras, e algo amortalhado e pálido levantava-se ali, algo que não podia ser chamado de prateleira. No entanto, olhei. Era grande demais para ser minha camisa jogada sobre uma cadeira.

Superando o terror infantil, joguei a colcha para o lado e enfiei a perna para fora do leito. Em vez de sair sobre a gaveta embaixo de minha cama, meu pé mal alcançou a borda do colchão. Dei outro passo, como necessário, e sentei-me na beirada da cama. Ao lado dela, deveria haver uma vela, e fósforos sobre a cadeira quebrada. Estiquei a mão e toquei... nada. Sacudi a mão na escuridão, e ela tocou algo pesado pendurado, macio e grosso em sua textura, que farfalhou ao toque. Agarrei e puxei; parecia ser uma cortina suspensa pelo dossel.

Completamente acordado, comecei a perceber que estava em um quarto desconhecido. Fiquei intrigado. Tentei lembrar as circunstâncias da noite anterior, e as encontrei, dessa vez, curiosamente, vívidas em minha memória: a ceia, o recebimento das pequenas embalagens, minha dúvida se estaria intoxicado, meu lento despir, o frio do travesseiro em meu rosto enrubescido. Senti uma súbita desconfiança. Teria sido na última noite ou na anterior a esta? De qualquer modo, este quarto me era estranho, e não sabia dizer como teria ido parar ali. O perfil sombrio e pálido se clareava, e percebi que se tratava de uma janela, com o formato escuro de um espelho de tocador oval contra a fraca intimação da aurora que se infiltrava pela persiana. Fiquei de pé, e fui pego de surpresa por uma singular sensação de fraqueza e desequilíbrio. Com mãos trêmulas esticadas, andei devagar até a janela. Manuseei o vidro, que era grande e com belas arandelas de latão, para achar o cordão da cortina. Não encontrei cordão algum. Por sorte, tomei a borla na mão e rapidamente a veneziana subiu.

Deparei-me com uma paisagem totalmente alheia a mim. A noite nublada, e através do cinza flocado das nuvens amontoadas, a meia-luz do amanhecer se embrenhava. Na borda do céu, a copa de nuvens possuía uma orla vermelho-sangue. Abaixo, tudo escuro e indistinto, montes turvos à distância, uma massa vaga de construções subindo até os pináculos, árvores como tinta esparramada e abaixo da janela um entrelaçado de arbustos negros e caminhos de um cinza-claro. Tão desconhecido que por um momento pensei ainda sonhar. Passei a mão pela mesa de tocador; parecia feita de uma madeira polida, e elaboradamente guarnecida: pequenos frascos de mosaico de vidro e uma escova. Havia também um pequeno objeto esquisito. Era como uma ferradura com projeções lisas e duras sobre um pires. Não encontrei fósforos nem vela.

Voltei os olhos para o cômodo novamente. Agora, com a persiana aberta, espectros baços da mobília saíam da escuridão. Havia uma enorme cama cortinada, e uma lareira a seus pés cuja cornija branca possuía o lustro do mármore.

Apoiei-me na mesa de tocador, fechei os olhos e os abri outra vez, e tentei pensar. A coisa toda era real demais para ser sonho. Estava inclinado a pensar que ainda havia algum tipo de hiato em minha memória, consequência do entorno daquele estranho licor; que eu tinha me deparado com a herança e, talvez, perdido a lembrança de tudo que acontecera após o anúncio da boa fortuna. Talvez, se esperasse um pouco, as coisas se esclareceriam. No entanto, o jantar com o velho Elvesham estava singularmente vivo e recente. A champanhe, os garçons atenciosos, o pó e os licores — apostaria minha própria alma que tudo tinha acontecido havia poucas horas.

E então me ocorreu algo tão trivial e, no entanto, tão terrível que estremeço agora só de pensar. Falei em voz alta. Eu disse:

— Como diabos vim parar aqui? — ... E a voz não era a minha.

Não era a minha, era fraca; a dicção, indistinta; a ressonância em meus ossos faciais, diferente. Então, para me acalmar, passei uma mão sobre a outra, e senti as dobras soltas de pele, a lassidão dos ossos comum da idade.

— Certamente — falei, naquela voz horrível que de algum modo tinha se estabelecido em minha garganta —, certamente isto é um sonho!

Quase tão rápido quanto um gesto involuntário, enfiei os dedos na boca. Meus dentes não estavam lá. Deslizei a ponta dos dedos pela superfície flácida de uma fileira de gengivas engruvinhadas. Fiquei nauseado de consternação e nojo.

Senti então um desejo intenso de me ver, de observar de uma vez por todas o horror total da mudança apavorante que eu tinha sofrido. Vacilei até a cornija e tateei em busca de fósforos. Enquanto o fazia, uma tosse ladrante subiu até minha garganta, e me agarrei à camisola de flanela grossa na qual me encontrei vestido. Não havia fósforos ali, e subitamente percebi que minhas extremidades estavam frias. Espirrando e tossindo, gemendo um pouco, voltei para a cama.

— Certamente um sonho — sussurrei para mim mesmo ao subir de volta ao leito —, certamente um sonho. — Uma repetição senil.

Puxei as cobertas por sobre os ombros até as orelhas e enfiei a mão envelhecida sob o travesseiro, determinado a dormir. Claro que era um sonho. Pela manhã, sonho encerrado, e acordarei forte e vigoroso novamente, para minha juventude e meus estudos. Fechei os olhos, respirei regularmente, e, ainda acordado, comecei a contar lentamente na potência de três.

Mas o que desejei não recebi. Não conseguia dormir. E a persuasão da realidade inexorável da mudança pela qual passara crescia firmemente. Arregalei os olhos, as potências esquecidas, e com os dedos magros sobre as gengivas enrugadas, eu era, de fato, um velho. De algum modo inexplicável tinha atravessado a vida e atingido a velhice, de algum modo tinham-me roubado a melhor parte da vida, do amor, da luta, da força e da esperança. Prostrei-me no travesseiro e tentei me persuadir de que tal alucinação era impossível. Imperceptivelmente, constantemente, a aurora foi se clareando.

Por fim, renunciando ao sono, sentei-me na cama e olhei ao redor. Um lusco-fusco frio tornava todo o quarto visível. Era espaçoso e bem mobiliado, melhor do que qualquer quarto em que já dormira. Uma vela e fósforos se tornaram parcialmente visíveis sobre um pequeno pedestal em um recesso. Joguei a coberta de lado e, tremendo com a crueza da manhã, embora fosse verão, desci e acendi a vela. Então, chacoalhando terrivelmente, tanto que o apagador balançava no candeeiro, cambaleei até o espelho e vi... o rosto de Elvesham! Não foi, no entanto, menos horrível, pois eu já havia vagamente pressentido. Ele já me parecera fisicamente fraco e digno de lástima, mas visto naquele momento, vestido apenas na camisola de flanela grossa, que se abria revelando o pescoço fibroso, visto, naquele momento, como meu próprio corpo, não sou capaz de descrever sua desolada decrepitude. As bochechas encovadas, as dispersas mechas de cabelo cinza-escuro, os olhos remelentos e baços, os lábios trêmulos e rugosos, sendo que o inferior exibia o brilho de seu forro rosa, e aquelas terríveis gengivas escuras. Você que é mente e corpo unidos, em sua idade natural, não é capaz de imaginar o que esta prisão diabólica significou para mim. Ser jovem e cheio de vontade e energia da juventude, e ficar preso, e ser esmagado por esta ruína vacilante de corpo...

Mas me desvio do rumo do relato. Devo ter ficado muito tempo estupefato com a mudança que me ocorreu. Era dia quando consegui voltar a pensar. De um modo inexplicável, eu tinha sido alterado, embora como, exceto por meio de magia, não sabia dizer. E enquanto ponderava, a engenhosidade diabólica de Elvesham surgiu em minha mente. Ficou claro para mim que do mesmo modo que eu me encontrava nele, ele devia estar em posse de meu corpo, de minha força, ou seja, de meu futuro. Mas como provar? Então, enquanto pensava, a questão se tornou tão incrível, mesmo para mim, que minha mente titubeou, e tive que me beliscar, sentir as gengivas desdentadas, olhar-me no espelho e tocar tudo em mim antes que pudesse me aprumar para encarar os fatos outra vez. Seria tudo alucinação? Seria eu, de fato, Elvesham, e ele, eu? Teria eu sonhado com Eden? Existia um Eden? Mas se eu era Elvesham, devia lembrar onde estive na manhã anterior, o nome da cidade onde morava, o que aconteceu antes de o sonho começar. Lutei com meus pensamentos. Recordei-me da estranha duplicidade de minhas lembranças durante a noite. Mas agora minha mente estava limpa. Não o fantasma de lembrança alguma, mas aquelas próprias de Eden.

— Estou insano — gritei com minha voz esganiçada.

Fiquei de pé sem equilíbrio, arrastei os membros frágeis e pesados para o tocador e enfiei a cabeça grisalha em uma bacia de água fria. Duas vezes. Sem sucesso. Sentia sem sombra de dúvida que era de fato Eden, não Elvesham. Mas Eden no corpo de Elvesham!

Se eu fosse homem de outra época, poderia ter considerado meu destino como encantado. Mas nos atuais dias céticos, milagres não são comuns. Isso era algum truque psicológico. O que uma droga e um olhar fixo poderiam provocar, uma droga e um olhar fixo, ou algum tratamento semelhante, poderiam desfazer. Homens já haviam perdido a memória antes. Mas trocar de memória como se trocariam guarda-chuvas! Ri. Ah, mas não um riso saudável, um risinho chiante e senil. Pude imaginar o velho Elvesham rindo de meu apuro, e uma rajada de raiva petulante, pouco comum a mim, arrebatou meus sentimentos. Comecei a vestir com intento as roupas que achei pelo chão, e percebi ao ficar pronto que estava no terno da noite anterior. Abri o guarda-roupa e encontrei trajes mais comuns: um par de calças xadrez e uma camisa antiquada. Coloquei uma venerável cartola em minha cabeça veneranda e, tossindo um pouco pelo esforço, claudiquei até o patamar.

Era então quinze para as seis, e as cortinas estavam fechadas e a casa, silenciosa. O patamar era espaçoso, uma ampla e ricamente carpetada escada descia até a escuridão do hall abaixo, e diante de mim uma porta semiaberta mostrava uma escrivaninha, uma estante de livros giratória, o espaldar de uma cadeira e uma bela coleção de livros encapados, prateleira após prateleira.

— Meu escritório — murmurei e atravessei o patamar. Ao som de minha voz, surgiu um pensamento, e voltei ao quarto para colocar a dentadura. Elas se assentaram com a facilidade de um velho hábito. — Melhor assim — disse, rangendo-a, e retornei ao escritório.

As gavetas da escrivaninha estavam trancadas. Seu tampo removível também. Não via indício de chaves, e não havia nenhuma nos bolsos de minhas calças. Apressei-me para o quarto e vasculhei o terno, e depois os bolsos de todas as roupas que encontrava. Estava muito ansioso, e alguém, ao ver o quarto depois que terminei, poderia ter pensado que ladrões tinham trabalhado ali. Não apenas não havia chaves, mas nem mesmo uma moeda ou um pedaço de papel — exceto pela nota da conta do jantar anterior.

Um estranho cansaço se instalou. Sentei-me e observei as peças de roupa jogadas aqui e ali, os bolsos revirados. Meu primeiro frenesi já tinha se extinguido. A cada momento eu percebia mais e mais a imensa inteligência dos planos de meu inimigo, a ver claramente a desesperança de minha situação. Com esforço, fiquei de pé e corri coxeando para o escritório outra vez. Na escadaria, uma serviçal levantava as persianas. Ela encarou, creio, a expressão em meu rosto. Fechei a porta do escritório atrás de mim, e, com um atiçador, ataquei a escrivaninha. Foi assim que me encontraram. O tampo quebrado, o cadeado estraçalhado, as cartas arrancadas de seus compartimentos e espalhadas pelo cômodo. Em minha fúria senil, tinha jogado canetas e outros objetos de papelaria, e revirado potes de tinta. Além disso, um grande vaso sobre a cornija tinha sido quebrado — não sei como. Não achei talão de cheque ou dinheiro, nem indício algum de como recuperar meu corpo. Eu batia ensandecido as gavetas quando o mordomo, acompanhado de duas serviçais, irrompeu em minha direção.

* * *

Esta é, em resumo, a história de minha transformação. Ninguém dá crédito as minhas asserções frenéticas. Sou tratado como um demente, e mesmo neste instante estou sob vigilância. Mas sou são, absolutamente são, e para prová-lo sentei-me para escrever esta história exatamente como me aconteceu. Pergunto ao leitor se há algum traço de insanidade no estilo ou no método da história que está lendo. Sou um jovem preso no corpo de um velho. Mas o fato é inconcebível para todos. Naturalmente, soo demenciado para aqueles que não creem. Naturalmente não sei os nomes de meus secretários, dos médicos que vêm me visitar, de meus criados e vizinhos, desta cidade (qualquer que seja) onde me encontro. Naturalmente, perco-me em minha própria casa e sofro inconveniências de toda sorte. Naturalmente, faço as mais estranhas perguntas. Naturalmente, choro e grito e sofro um paroxismo de desespero. Não tenho dinheiro nem cheques. O banco não reconhece minha assinatura, pois, apesar da fraqueza de meus músculos, minha caligrafia continua sendo a de Eden. Essas pessoas a minha volta não me deixam ir sozinho ao banco. Parece, na verdade, que não há banco nesta cidade, e que possuo conta em algum lugar de Londres. Parece que Elvesham mantinha o nome de seu procurador em segredo de todos os criados. Não posso ter certeza de nada. Elvesham era, claro, um profundo estudioso da ciência mental, e todas as minhas declarações dos fatos do caso apenas confirmam a teoria de que minha insanidade é o resultado do excesso de reflexão sobre a psicologia. Desvarios de identidade pessoal, sem dúvida! Dois dias atrás, eu era um rapaz saudável, com a vida toda pela frente; agora, sou um velho furioso, desgrenhado e desesperado; vagando por uma enorme, luxuosa e desconhecida casa; vigiado, temido e evitado, como um lunático, por todos a minha volta. E em Londres, Elvesham recomeça a vida em um corpo vigoroso, e com o conhecimento e sabedoria acumulados durante setenta anos. Ele me roubou a vida.

O que aconteceu, não sei ao certo. No escritório, há volumes de notas manuscritas referindo-se principalmente à psicologia da memória, e trechos do que podem ser cálculos ou cifras em símbolos absolutamente desconhecidas por mim. Em algumas passagens, há indicações de que ele também se ocupava com a filosofia da matemática. Creio que tenha transferido todas as suas memórias, o acúmulo do que compunha sua personalidade, de seu velho e abatido cérebro para o meu, e também tenha transferido o que era meu para o seu cortiço paupérrimo. Ou seja, intercambiou corpos. Mas como tal mudança pode ser possível está fora do alcance de meu entendimento. Sempre fui um materialista durante toda a minha vida intelectual, mas aqui, subitamente, há um caso óbvio da separação do homem de sua matéria.

Estou prestes a tentar um experimento desesperado. Sento e escrevo aqui antes de me lançar ao caso. Hoje cedo, com a ajuda de uma faca que subtraí no café da manhã, consegui violar uma gaveta secreta na escrivaninha destruída. Encontrei apenas um pequeno frasco verde contendo um pó branco. Nele, uma etiqueta, e nela, apenas uma palavra: “libertação”. Isto deve ser, mais provavelmente, veneno. Compreendo por que Elvesham colocou veneno em meu caminho, e tenho certeza de que era sua intenção se livrar do único ser vivente que poderia testemunhar contra ele, apenas não entendi o esconderijo cuidadoso. O homem praticamente resolveu o mistério da imortalidade. Exceto por uma vingança do acaso, viverá em meu corpo até a idade avançada, e então, novamente, vai deixar esse corpo de lado e achar outra vítima jovem e forte. Quando se pensa em sua crueldade, é terrível refletir sobre quanto tempo ele vem praticando esse experimento... Há quanto tempo salta de corpo em corpo...? Mas me canso de escrever. O pó é solúvel em água. O sabor não é desagradável.

* * *

Assim termina a narrativa encontrada sobre a escrivaninha do sr. Elvesham. Seu cadáver deitado entre a mesa e a cadeira, caída para trás, provavelmente empurrada pelas derradeiras convulsões do homem. A história foi escrita a lápis e em uma caligrafia demenciada, bem diferente de suas costumeiras letras cuidadosas. Restam apenas dois fatos curiosos a ser registrados. Sem dúvidas, havia uma conexão entre Eden e Elvesham, já que todas as propriedades de Elvesham foram repassadas para o jovem. Porém, ele nunca as herdou. Quando Elvesham cometeu suicídio, Eden já estava, por mais bizarro que seja, morto. Vinte quatro horas antes, uma carruagem o acertara e morrera na hora, no cruzamento movimentado da interseção da Gower com a Euston. De modo que o único ser humano que poderia esclarecer essa narrativa fantástica não estava mais ao alcance das perguntas. Sem mais comentários, deixo a extraordinária questão para o julgamento individual do leitor.

 

1. Aqui o sr. Elvesham faz um trocadilho entre Kummel (alcaravia) com Himmel (céu, paraíso) (N.T.).


2. Digestivo efervescente composto por bicarbonato de sódio, acido tartárico e tartarato de sódio e potássio (N.T.).


3. Sociedade britânica que encoraja a pesquisa científica de fenômenos psíquicos e paranormais.

Escrevo esta história, não com a esperança de que receba crédito, mas, se possível, para que prepare uma saída de fuga para a próxima vítima. Ele, talvez, tome proveito de meu infortúnio. Meu próprio caso, eu sei, é irremediável, e estou agora, de certo modo, preparado para encontrar com meu destino.
Meu nome é Edward George Eden. Nasci em Trentham, Staffordshire; meu pai empregado dos parques da região. Perdi minha mãe aos três anos de idade, e meu pai aos cinco; meu tio, George Eden, então me adotou como seu próprio filho. Ele era solteiro, autodidata e famoso em Birmingham como jornalista empreendedor; ele me educou com generosidade, atiçando minha ambição de sucesso no mundo, e, à sua morte, que ocorreu há quatro anos, deixou-me toda a sua fortuna, algo em torno de quinhentas libras após os gastos do falecimento. Eu tinha então dezoito. Ele me aconselhou em seu testamento a gastar o dinheiro com o término de minha educação. Eu já havia escolhido a profissão médica, e por meio de sua generosidade póstuma e minha boa sorte em uma competição para uma bolsa de estudos, tornei-me um estudante de medicina na University College, em Londres. À época do começo de minha história, eu habitava à rua University, número 11A, em um quartinho no primeiro andar, mal mobiliado e frio, com vista para o terreno de Shoolbred. Morava e dormia nesse quartinho porque queria esticar meus meios até o último centavo.
Levava um par de sapatos para remendar em um sapateiro na Tottenham Court quando encontrei pela primeira vez o velhote de cara amarela, com quem minha vida agora se tornou tão inextricavelmente enredada. Ele estava parado na calçada, encarando com dúvida o número na porta, quando eu a abri. Seus olhos — de uma cor de cinza embaçada e avermelhados sob a pálpebra — caíram sobre meu rosto, e sua fisionomia imediatamente assumiu uma expressão de amabilidade enrugada.

 

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_HISTORIA_O_FALECIDO_SENHOR_ELBESHAM.png

 

 

— Chegou na hora certa — ele disse. — Eu tinha esquecido o número de sua casa. Como vai, sr. Eden?

Fiquei um pouco surpreso com a intimidade do cumprimento, pois eu nunca tinha posto os olhos sobre esse homem. Fiquei um pouco irritado também, por ele ter me pego com as botas embaixo do braço. Ele percebeu minha falta de cordialidade.

— Está pensando quem diabos sou eu, é? Um amigo, posso lhe assegurar. Já o vi antes, embora você não tenha me visto. Podemos conversar em algum lugar?

Hesitei. A precariedade de meu quartinho lá em cima não era assunto para qualquer estranho.

— Talvez — disse —, possamos descer a rua. Infelizmente não posso... — Meu gesto explicou a frase antes que fosse pronunciada.

— Certo — ele concordou e olhou para um lado, depois para o outro. — A rua? Em que direção? — Coloquei minhas botas na passagem. — Olhe aqui! — ele disse abruptamente —, este meu assunto é complicado. Venha almoçar comigo, sr. Eden. Sou um homem velho, muito velho, e não sou bom em explicações, e com essa minha voz esganiçada e a barulheira do trânsito...

Pousou uma persuasiva mão ossuda, que tremia um pouco, sobre meu braço.

Eu não era tão velho para que um homem mais velho não pudesse me pagar um almoço. No entanto, ao mesmo tempo, não estava inteiramente satisfeito com o convite abrupto.

— Eu prefiro... — comecei.

— Mas eu prefiro — ele me interrompeu —, e certamente meus cabelos grisalhos merecem a civilidade.

E assim consenti e fui com ele.

Ele me levou ao Blavitiski’s; eu tive que andar lentamente para me adaptar às suas passadas; e durante um almoço sem igual em sabor, ele se esquivou de minha principal pergunta, e eu pude reparar mais em sua aparência. Seu rosto barbeado rente era magro e enrugado; seus lábios murchos caíam sobre dentes postiços, e seu cabelo branco era ralo e um tanto quanto comprido; parecia pequeno para mim — embora certamente a maioria das pessoas pareça pequena para mim —, e seus ombros eram curvos e caídos. E observando-o, não pude deixar de perceber que ele também tomava nota, correndo os olhos, com um curioso toque de ganância, sobre mim, de meus ombros largos para minhas mãos bronzeadas e depois de volta a meu rosto sardento.

— E agora — disse ele ao acendermos nossos cigarros —, devo contar-lhe sobre minha questão. — Devo contar-lhe que sou um homem velho, muito velho. — Pausou por um instante. — E acontece que tenho dinheiro que devo deixar, e não tenho filho algum para quem deixá-lo.

Pensei no truque da confiança e decidi ficar alerto aos vestígios de minhas quinhentas libras. Ele prosseguiu sobre a extensão de sua solidão, e a dificuldade que possuía em encontrar um fim adequado para seu dinheiro.

— Pesei este plano e aquele, caridades, instituições e bolsas de estudo e bibliotecas, e cheguei enfim a esta conclusão — fixou os olhos em meu rosto —, de que devo encontrar um jovem, ambicioso, de mente pura, pobre, saudável de mente e de corpo, e, em resumo, fazer dele meu herdeiro, dar-lhe tudo que possuo. — Ele repetiu: — Dar-lhe tudo que possuo. Para que ele possa subitamente ser erguido de todos os problemas e dificuldades nas quais suas disposições foram educadas, até alcançar a liberdade e a influência.

Tentei parecer desinteressado. Com hipocrisia transparente, falei:

— E quer minha ajuda, meus serviços profissionais talvez, para encontrar tal pessoa.

Ele sorriu, e me olhou por sobre seu cigarro, e eu ri de sua exposição muda de minha fingida modéstia.

— Que carreira tal homem pode ter! — ele disse. — Encho-me de inveja ao pensar como acumulei o que outro pode gastar... Mas há condições, claro, deveres impostos. Ele deve, por exemplo, pegar meu nome. Não pode esperar tudo sem nada em troca. E devo conhecer todas as circunstâncias de sua vida antes de aceitá-lo. Ele deve ser saudável. Eu preciso conhecer sua ascendência, como seus pais e avós morreram, fazer a mais rígida das investigações a respeito de sua moralidade.

Isso modificou um pouco minhas íntimas parabenizações secretas.

— E eu entendo — falei — que eu...

— Sim — ele disse, quase com ferocidade. — Você. Você.

Não respondi palavra. Minha imaginação dançava, furiosa, meu ceticismo inato inútil para modificar seus enlevos. Não havia uma partícula de gratidão em minha mente — não sabia o que dizer nem como dizer.

— Mas por que eu? — perguntei, por fim.

Por acaso, o professor Haslar falara de mim, como exemplo de um rapaz saudável e são, e ele desejava, tanto quanto possível, deixar seu dinheiro onde saúde e integridade fossem garantidas.

Esse foi meu primeiro encontro com o velhinho. Ele mantinha mistério a seu respeito; disse que ainda não informaria seu nome, e depois que respondi algumas de suas perguntas, me deixou na entrada do Blavitiski. Notei que retirou um punhado de moedas de ouro do bolso quando chegou a hora de pagar pelo almoço. Sua insistência na saúde corporal era curiosa. De acordo com nosso arranjo, nesse mesmo dia contratei um seguro de vida na Loyal Insurance Company, por uma bela quantia, e na semana seguinte fui exaustivamente atropelado pelos profissionais médicos dessa companhia. Nem isso o satisfez, e insistiu que eu fosse reexaminado pelo grande dr. Henderson.

Foi na sexta-feira da semana de Pentecostes que ele tomou a decisão. Pediu-me para descer, bem tarde da noite — quase nove —, tirando-me da minha compenetração nas equações químicas para o exame preliminar científico. Estava de pé na passagem, sob uma fraca lâmpada de gás, e seu rosto era uma interação grotesca de sombras. Parecia mais curvo do que a primeira vez em que o vi, e suas bochechas levemente encovadas.

Sua voz tremia de emoção:

— Tudo satisfatório, sr. Eden. Tudo muito, muito satisfatório. E esta noite, esta noite deve jantar comigo para celebrar sua... ascensão. — Foi interrompido pela tosse. — Não precisará esperar muito também — continuou, limpando os lábios com o lenço e pegando minha mão com a garra ossuda e longa que estava desocupada. — Certamente... não muito a esperar.

Fomos até a rua e chamamos uma carruagem. Lembro todos os incidentes desse percurso vividamente: a movimentação ligeira e confortável, o vívido contraste entre gás, óleo e eletricidade, as multidões nas ruas, o lugar na Regent para onde fomos e o suntuoso jantar servido ali. De início, fique desconcertado pelo olhar do garçom bem-vestido para as minhas vestes grosseiras, incomodado pelos caroços nas azeitonas, mas conforme a champanhe esquentava meu sangue, minha confiança se renovava. No começo, o velho falou sobre si. Já tinha me contado seu nome na carruagem; era Egbert Elvesham, o grande filósofo, cujo nome eu conhecia desde mancebo na escola. Parecia incrível para mim que este homem, cuja inteligência havia tão cedo dominado a minha, essa grande abstração, de repente se concretizasse como uma figura conhecida e decrépita. Ouso dizer que qualquer rapaz que tenha de repente se encontrado em meio a celebridades já sentiu um pouco de minha decepção. Contou-me sobre o futuro que os débeis córregos de sua vida deixariam em breve a seco para mim: casas, direitos autorais, investimentos. Nunca suspeitei que filósofos fossem tão ricos. Ele me observava beber e comer com uma pontada de inveja.

— Que capacidade para viver que possui! — E então, com um suspiro, um suspiro de alívio talvez: — Não vai demorar.

— Certo — disse eu, a cabeça já nadando em champanhe. — Tenho um futuro talvez... de um tipo razoavelmente satisfatório, graças ao senhor. Terei a honra de seu nome. Mas o senhor tem um passado. Tamanho passado que vale por todo o meu futuro.

Ele balançou a cabeça e sorriu, como pensei no momento, com gratidão um pouco triste pela minha admiração envaidecedora.

— Esse futuro — ele disse —, você, de fato, o mudaria? — O garçom veio com licores. — Não vai se importar, talvez, de tomar meu nome, minha posição, mas tomaria, por vontade própria, meus anos?

— Com suas façanhas — falei, cortês.

Ele sorriu outra vez.

— Kummel... os dois — ele disse para o garçom e voltou a atenção para um pequeno envelope que tirou do bolso. — Esta hora — falou —, esta hora após um jantar é a hora das pequenas coisas. Aqui está um pedaço de minha sabedoria inédita. — Abriu o envelope com os dedos amarelos e trêmulos e mostrou um pouco de pó rosado no papel. — Isto — continuou —, bem, você deve saber o que é. Mas Kummel, coloque uma pitada desse pó, e se torna Himmel1.

Seus grandes olhos cor de cinza observaram os meus com uma expressão inescrutável.

Foi um pouco chocante descobrir que este grande mestre se dedicava aos sabores dos licores. No entanto, fingi interesse nessa sua fraqueza, pois estava bêbado o suficiente para uma pequena adulação.

Ele dividiu o pó entre os dois copinhos, e, ficando subitamente de pé, com uma dignidade estranha e inesperada, estendeu a mão para mim. Imitei seu gesto, e os copos tilintaram.

— Para uma sucessão rápida — disse ele e levou o copo aos lábios.

— Isso não — apressei-me em dizer. — Isso não.

Interrompeu o movimento com o licor à altura do queixo, olhos fulminando os meus.

— Para uma vida longa — falei.

Ele hesitou.

— Para uma vida longa — repetiu, com um súbito ganido de gargalhada.

Com olhos fixos um no outro, viramos os copinhos. Seus olhos olharam bem dentro dos meus, e enquanto eu secava o líquido, sentia uma sensação intensa e curiosa. O primeiro golpe provocou tumulto em meu cérebro; eu parecia sentir um rebuliço físico dentro de meu crânio, e um zumbido fervilhante encheu meus ouvidos. Não notei o sabor em minha boca, o aroma em minha garganta; vi apenas a intensidade cinza do olhar perfurando o meu. A secura, a confusão mental, o barulho e a agitação em minha cabeça pareciam infinitos. Impressões vagas e curiosas de coisas semiesquecidas dançavam e desapareciam na beirada de minha consciência. Por fim, ele quebrou o feitiço. Com um suspiro súbito e explosivo, baixou o copo.

— E? — perguntou.

— Glorioso — respondi, embora não tivesse saboreado a substância.

Minha cabeça girava. Sentei-me. Meu cérebro estava um caos. Então minha percepção clareou e se intensificou, como se eu visse as coisas em um espelho côncavo. Seus modos pareciam ter se tornado nervosos e apressados. Pegou o relógio e fez um careta.

— Onze e sete! E esta noite eu devo... Sete e vinte e cinco. Waterloo! Preciso ir!

Ele pediu a conta e se atrapalhou com o casaco. Garçons prestativos vieram ajudá-lo. Em outro momento, despedia-me, sobre a plataforma de uma carruagem, e ainda com uma sensação absurda de nitidez detalhada, como se — como posso dizer? — eu não apenas visse, mas sentisse através de um binóculo de ópera em posição invertida.

— Aquela substância — ele disse e colocou a mão à testa —, não deveria lhe ter oferecido. Vai estourar sua cabeça amanhã. Espere um minuto. Aqui. — Ele me entregou um pacotinho fino que parecia pó de Seidlitz2. — Dilua na água e tome ao se deitar. A outra substância era uma droga. Atenção: somente ao se deitar. Vai desanuviar sua mente. Só isso. Mais um aperto... Futurus! —Segurei a garra encarquilhada. — Adeus — ele se despediu, e pelas pálpebras descaídas julguei que ele também estava um pouco sob a influência daquela beberagem destorcedora de cérebros.

De súbito, lembrou-se de algo, passou a mão sobre o bolso da frente do paletó e de lá tirou outra embalagem, um cilindro do tamanho e formato de um tubo de creme para barbear.

— Aqui — disse. — Quase esqueci. Não abra até amanhã... mas leve já.

Era tão pesado que quase o derrubei.

— Certinho! — falei, e ele sorriu para mim através da janela da carruagem enquanto o condutor estalava o chicote para acordar seu cavalo.

Era um pacote branco, com selos vermelhos, um de cada lado e ao longo da beirada. “Se não é dinheiro, é platina ou chumbo”, pensei. Enfiei com cuidado meticuloso no bolso, e com o cérebro rodopiante fui para casa andando em meio aos vagabundos da rua Regent e pelas ruelas além da rua Portland. Lembro com vivacidade das sensações dessa caminhada, por mais estranhas que tenham sido. Ainda estava tão alterado que pude perceber meu estranho estado mental e pensar se a substância que ingerira era ópio, uma droga com a qual não tinha experiência. É difícil agora descrever a peculiaridade de minha alteridade mental — duplicidade mental mal dá conta de expressar. Ao andar pela Regent, notei em minha mente a bizarra percepção de que estava na estação Waterloo, e tive o estranho impulso de entrar na Politécnica como se subisse em um trem. Esfreguei os olhos com o nó do dedo, e era a Regent. Como posso descrever? Você vê um ator habilidoso olhando para você, ele faz um careta e, olha!, outra pessoa. Seria muito extravagante dizer que me parecia que a rua Regent tivesse, por um momento, feito isso? Depois, certo de que era a Regent outra vez, fiquei confuso com reminiscências fantásticas que brotaram em mim. “Trinta anos atrás”, pensei, “foi aqui que briguei com meu irmão”. Então caí na gargalhada, para a surpresa e excitação de um grupo de gatunos da noite. Trinta anos antes, eu não existia, e nunca na minha vida tinha acertado um irmão. A substância era certamente loucura líquida, pois o arrependimento contundente pelo irmão falecido ainda se agarrava a mim.

Ao longo da Portland, a insânia ressurgiu. Comecei a me lembrar de oficinas desaparecidas e a comparar a rua com o que ela já tinha sido. Pensamentos confusos e alterados são compreensíveis depois da bebida, mas o que me intrigava eram essas memórias fantasmas curiosamente vivazes que tinham se infiltrado em minha mente, e não apenas as memórias infiltradas, mas também as que tinham escoado. Parei em frente ao Stevens’, o negociante de artefatos de história natural, e matutei para lembrar qual era sua relação comigo. Um ônibus passou e soou exatamente como o estrondo de um trem. Eu parecia estar afundando em um poço escuro e distante para alcançar a lembrança.

— Claro — falei em voz alta, por fim —, ele me prometeu três rãs para amanhã. Estranho eu ter esquecido.

Ainda mostram lanternas mágicas a crianças? Lembro que uma imagem aparecia primeiramente como um fantasma esmaecido, e depois crescia até expelir outra. Desse mesmo modo, parecia-me que um conjunto fantasma de novas sensações batalhava com aquelas de meu eu comum.

Passei pela rua Euston até a Tottenham Court, intrigado, e um pouco assustado, e mal notei o trajeto incomum que tomava, pois geralmente eu cortava pelo emaranhado de ruelas. Virei na University, para descobrir que tinha esquecido o número. Apenas com um esforço enorme recuperei 11A, e mesmo assim me pareceu algo que sei lá quem havia me dito. Tentei firmar minha mente rememorando os acontecimentos do jantar, e por nada nesse mundo pude conjurar uma imagem do rosto de meu anfitrião; vi-o apenas como um perfil ensombrecido, como alguém que se olha pelo reflexo do vidro de uma janela. No lugar dele, de algum modo, eu obtinha uma curiosa versão exterior de mim mesmo, sentado à mesa, enrubescido e falante, com olhos iluminados.

— Devo tomar este outro pó — falei. — Isto está impossível.

Fui para o lado errado do hall atrás de vela e fósforos, e não sabia ao certo em que andar ficava meu quarto.

— Estou bêbado, disso tenho certeza. — E vacilei sem necessidade pela escada para sustentar a hipótese.

À primeira vista, meu quarto não me era familiar.

— Que chiqueiro! — comentei ao olhar em volta.

O esforço pareceu me trazer de volta, e a estranha característica fantasmagórica se tornou algo concreto. Lá estava o velho armário de vidro, com minhas anotações nos albúmens colados no canto da moldura, minhas velhas roupas cotidianas esparramadas pelo chão. E, no entanto, não era tão real, afinal. Eu sentia uma persuasão absurda tentando entrar em minha mente, a de que estava em um trem que parava, e eu olhava pela janela para uma estação desconhecida. Agarrei o gradil da cama com força para me reafirmar.

— É clarividência, talvez — falei. — Preciso escrever para a Psychical Research Society3.

Coloquei o pacotinho sobre a penteadeira, sentei-me na cama e fui descalçar as botas. Era como se a imagem de minhas atuais sensações estivesse pintada sobre outra imagem que se esforçasse para sobressair.

— Maldição! Perdi o juízo ou estou em dois lugares ao mesmo tempo?

Seminu, joguei o pó em um copo. Efervesceu e se tornou de uma cor âmbar fluorescente. Bebi tudo. Antes de me deitar, minha mente já havia se tranquilizado. Senti o travesseiro no rosto, e devo ter adormecido logo em seguida.

* * *

Acordei abruptamente de um sonho com bestas estranhas e me encontrei deitado de costas. Provavelmente todos conhecem aquele sonho sombrio e emocional do qual se escapa, de fato acordado, mas estranhamente acuado. Havia um gosto curioso na boca, uma sensação cansada nos membros, uma impressão de desconforto na pele. Pousei a cabeça imóvel no travesseiro, esperando que o sentimento de estranheza e medo passasse, e que então eu adormecesse outra vez. Mas, em vez disso, as sensações misteriosas permaneceram. De início, não percebi nada de errado comigo. Havia uma luz fraca no quarto, tão fraca que era quase a escuridão, e a mobília se destacava nela como nódoas vagas de treva absoluta. Encarei pouco além da roupa de cama sobre mim.

Passou pela minha mente que alguém pudesse ter entrado em meu quarto para roubar meu rolo de dinheiro, porém, após mais alguns momentos deitado, respirando regularmente para simular o sono, percebi que isso era apenas imaginação. No entanto, a desconfortável certeza de que havia algo errado continuava presa a mim. Com esforço, levantei a cabeça do travesseiro e espiei o escuro. O que era eu não podia saber. Olhei para as formas sombrias a meu redor, a maior ou menor escuridão que indicava cortinas, mesa, lareira, prateleiras de livros e assim por diante. Então, comecei a notar algo desconhecido nas formas na escuridão. Teria a cama se virado? Acolá deviam estar as prateleiras, e algo amortalhado e pálido levantava-se ali, algo que não podia ser chamado de prateleira. No entanto, olhei. Era grande demais para ser minha camisa jogada sobre uma cadeira.

Superando o terror infantil, joguei a colcha para o lado e enfiei a perna para fora do leito. Em vez de sair sobre a gaveta embaixo de minha cama, meu pé mal alcançou a borda do colchão. Dei outro passo, como necessário, e sentei-me na beirada da cama. Ao lado dela, deveria haver uma vela, e fósforos sobre a cadeira quebrada. Estiquei a mão e toquei... nada. Sacudi a mão na escuridão, e ela tocou algo pesado pendurado, macio e grosso em sua textura, que farfalhou ao toque. Agarrei e puxei; parecia ser uma cortina suspensa pelo dossel.

Completamente acordado, comecei a perceber que estava em um quarto desconhecido. Fiquei intrigado. Tentei lembrar as circunstâncias da noite anterior, e as encontrei, dessa vez, curiosamente, vívidas em minha memória: a ceia, o recebimento das pequenas embalagens, minha dúvida se estaria intoxicado, meu lento despir, o frio do travesseiro em meu rosto enrubescido. Senti uma súbita desconfiança. Teria sido na última noite ou na anterior a esta? De qualquer modo, este quarto me era estranho, e não sabia dizer como teria ido parar ali. O perfil sombrio e pálido se clareava, e percebi que se tratava de uma janela, com o formato escuro de um espelho de tocador oval contra a fraca intimação da aurora que se infiltrava pela persiana. Fiquei de pé, e fui pego de surpresa por uma singular sensação de fraqueza e desequilíbrio. Com mãos trêmulas esticadas, andei devagar até a janela. Manuseei o vidro, que era grande e com belas arandelas de latão, para achar o cordão da cortina. Não encontrei cordão algum. Por sorte, tomei a borla na mão e rapidamente a veneziana subiu.

Deparei-me com uma paisagem totalmente alheia a mim. A noite nublada, e através do cinza flocado das nuvens amontoadas, a meia-luz do amanhecer se embrenhava. Na borda do céu, a copa de nuvens possuía uma orla vermelho-sangue. Abaixo, tudo escuro e indistinto, montes turvos à distância, uma massa vaga de construções subindo até os pináculos, árvores como tinta esparramada e abaixo da janela um entrelaçado de arbustos negros e caminhos de um cinza-claro. Tão desconhecido que por um momento pensei ainda sonhar. Passei a mão pela mesa de tocador; parecia feita de uma madeira polida, e elaboradamente guarnecida: pequenos frascos de mosaico de vidro e uma escova. Havia também um pequeno objeto esquisito. Era como uma ferradura com projeções lisas e duras sobre um pires. Não encontrei fósforos nem vela.

Voltei os olhos para o cômodo novamente. Agora, com a persiana aberta, espectros baços da mobília saíam da escuridão. Havia uma enorme cama cortinada, e uma lareira a seus pés cuja cornija branca possuía o lustro do mármore.

Apoiei-me na mesa de tocador, fechei os olhos e os abri outra vez, e tentei pensar. A coisa toda era real demais para ser sonho. Estava inclinado a pensar que ainda havia algum tipo de hiato em minha memória, consequência do entorno daquele estranho licor; que eu tinha me deparado com a herança e, talvez, perdido a lembrança de tudo que acontecera após o anúncio da boa fortuna. Talvez, se esperasse um pouco, as coisas se esclareceriam. No entanto, o jantar com o velho Elvesham estava singularmente vivo e recente. A champanhe, os garçons atenciosos, o pó e os licores — apostaria minha própria alma que tudo tinha acontecido havia poucas horas.

E então me ocorreu algo tão trivial e, no entanto, tão terrível que estremeço agora só de pensar. Falei em voz alta. Eu disse:

— Como diabos vim parar aqui? — ... E a voz não era a minha.

Não era a minha, era fraca; a dicção, indistinta; a ressonância em meus ossos faciais, diferente. Então, para me acalmar, passei uma mão sobre a outra, e senti as dobras soltas de pele, a lassidão dos ossos comum da idade.

— Certamente — falei, naquela voz horrível que de algum modo tinha se estabelecido em minha garganta —, certamente isto é um sonho!

Quase tão rápido quanto um gesto involuntário, enfiei os dedos na boca. Meus dentes não estavam lá. Deslizei a ponta dos dedos pela superfície flácida de uma fileira de gengivas engruvinhadas. Fiquei nauseado de consternação e nojo.

Senti então um desejo intenso de me ver, de observar de uma vez por todas o horror total da mudança apavorante que eu tinha sofrido. Vacilei até a cornija e tateei em busca de fósforos. Enquanto o fazia, uma tosse ladrante subiu até minha garganta, e me agarrei à camisola de flanela grossa na qual me encontrei vestido. Não havia fósforos ali, e subitamente percebi que minhas extremidades estavam frias. Espirrando e tossindo, gemendo um pouco, voltei para a cama.

— Certamente um sonho — sussurrei para mim mesmo ao subir de volta ao leito —, certamente um sonho. — Uma repetição senil.

Puxei as cobertas por sobre os ombros até as orelhas e enfiei a mão envelhecida sob o travesseiro, determinado a dormir. Claro que era um sonho. Pela manhã, sonho encerrado, e acordarei forte e vigoroso novamente, para minha juventude e meus estudos. Fechei os olhos, respirei regularmente, e, ainda acordado, comecei a contar lentamente na potência de três.

Mas o que desejei não recebi. Não conseguia dormir. E a persuasão da realidade inexorável da mudança pela qual passara crescia firmemente. Arregalei os olhos, as potências esquecidas, e com os dedos magros sobre as gengivas enrugadas, eu era, de fato, um velho. De algum modo inexplicável tinha atravessado a vida e atingido a velhice, de algum modo tinham-me roubado a melhor parte da vida, do amor, da luta, da força e da esperança. Prostrei-me no travesseiro e tentei me persuadir de que tal alucinação era impossível. Imperceptivelmente, constantemente, a aurora foi se clareando.

Por fim, renunciando ao sono, sentei-me na cama e olhei ao redor. Um lusco-fusco frio tornava todo o quarto visível. Era espaçoso e bem mobiliado, melhor do que qualquer quarto em que já dormira. Uma vela e fósforos se tornaram parcialmente visíveis sobre um pequeno pedestal em um recesso. Joguei a coberta de lado e, tremendo com a crueza da manhã, embora fosse verão, desci e acendi a vela. Então, chacoalhando terrivelmente, tanto que o apagador balançava no candeeiro, cambaleei até o espelho e vi... o rosto de Elvesham! Não foi, no entanto, menos horrível, pois eu já havia vagamente pressentido. Ele já me parecera fisicamente fraco e digno de lástima, mas visto naquele momento, vestido apenas na camisola de flanela grossa, que se abria revelando o pescoço fibroso, visto, naquele momento, como meu próprio corpo, não sou capaz de descrever sua desolada decrepitude. As bochechas encovadas, as dispersas mechas de cabelo cinza-escuro, os olhos remelentos e baços, os lábios trêmulos e rugosos, sendo que o inferior exibia o brilho de seu forro rosa, e aquelas terríveis gengivas escuras. Você que é mente e corpo unidos, em sua idade natural, não é capaz de imaginar o que esta prisão diabólica significou para mim. Ser jovem e cheio de vontade e energia da juventude, e ficar preso, e ser esmagado por esta ruína vacilante de corpo...

Mas me desvio do rumo do relato. Devo ter ficado muito tempo estupefato com a mudança que me ocorreu. Era dia quando consegui voltar a pensar. De um modo inexplicável, eu tinha sido alterado, embora como, exceto por meio de magia, não sabia dizer. E enquanto ponderava, a engenhosidade diabólica de Elvesham surgiu em minha mente. Ficou claro para mim que do mesmo modo que eu me encontrava nele, ele devia estar em posse de meu corpo, de minha força, ou seja, de meu futuro. Mas como provar? Então, enquanto pensava, a questão se tornou tão incrível, mesmo para mim, que minha mente titubeou, e tive que me beliscar, sentir as gengivas desdentadas, olhar-me no espelho e tocar tudo em mim antes que pudesse me aprumar para encarar os fatos outra vez. Seria tudo alucinação? Seria eu, de fato, Elvesham, e ele, eu? Teria eu sonhado com Eden? Existia um Eden? Mas se eu era Elvesham, devia lembrar onde estive na manhã anterior, o nome da cidade onde morava, o que aconteceu antes de o sonho começar. Lutei com meus pensamentos. Recordei-me da estranha duplicidade de minhas lembranças durante a noite. Mas agora minha mente estava limpa. Não o fantasma de lembrança alguma, mas aquelas próprias de Eden.

— Estou insano — gritei com minha voz esganiçada.

Fiquei de pé sem equilíbrio, arrastei os membros frágeis e pesados para o tocador e enfiei a cabeça grisalha em uma bacia de água fria. Duas vezes. Sem sucesso. Sentia sem sombra de dúvida que era de fato Eden, não Elvesham. Mas Eden no corpo de Elvesham!

Se eu fosse homem de outra época, poderia ter considerado meu destino como encantado. Mas nos atuais dias céticos, milagres não são comuns. Isso era algum truque psicológico. O que uma droga e um olhar fixo poderiam provocar, uma droga e um olhar fixo, ou algum tratamento semelhante, poderiam desfazer. Homens já haviam perdido a memória antes. Mas trocar de memória como se trocariam guarda-chuvas! Ri. Ah, mas não um riso saudável, um risinho chiante e senil. Pude imaginar o velho Elvesham rindo de meu apuro, e uma rajada de raiva petulante, pouco comum a mim, arrebatou meus sentimentos. Comecei a vestir com intento as roupas que achei pelo chão, e percebi ao ficar pronto que estava no terno da noite anterior. Abri o guarda-roupa e encontrei trajes mais comuns: um par de calças xadrez e uma camisa antiquada. Coloquei uma venerável cartola em minha cabeça veneranda e, tossindo um pouco pelo esforço, claudiquei até o patamar.

Era então quinze para as seis, e as cortinas estavam fechadas e a casa, silenciosa. O patamar era espaçoso, uma ampla e ricamente carpetada escada descia até a escuridão do hall abaixo, e diante de mim uma porta semiaberta mostrava uma escrivaninha, uma estante de livros giratória, o espaldar de uma cadeira e uma bela coleção de livros encapados, prateleira após prateleira.

— Meu escritório — murmurei e atravessei o patamar. Ao som de minha voz, surgiu um pensamento, e voltei ao quarto para colocar a dentadura. Elas se assentaram com a facilidade de um velho hábito. — Melhor assim — disse, rangendo-a, e retornei ao escritório.

As gavetas da escrivaninha estavam trancadas. Seu tampo removível também. Não via indício de chaves, e não havia nenhuma nos bolsos de minhas calças. Apressei-me para o quarto e vasculhei o terno, e depois os bolsos de todas as roupas que encontrava. Estava muito ansioso, e alguém, ao ver o quarto depois que terminei, poderia ter pensado que ladrões tinham trabalhado ali. Não apenas não havia chaves, mas nem mesmo uma moeda ou um pedaço de papel — exceto pela nota da conta do jantar anterior.

Um estranho cansaço se instalou. Sentei-me e observei as peças de roupa jogadas aqui e ali, os bolsos revirados. Meu primeiro frenesi já tinha se extinguido. A cada momento eu percebia mais e mais a imensa inteligência dos planos de meu inimigo, a ver claramente a desesperança de minha situação. Com esforço, fiquei de pé e corri coxeando para o escritório outra vez. Na escadaria, uma serviçal levantava as persianas. Ela encarou, creio, a expressão em meu rosto. Fechei a porta do escritório atrás de mim, e, com um atiçador, ataquei a escrivaninha. Foi assim que me encontraram. O tampo quebrado, o cadeado estraçalhado, as cartas arrancadas de seus compartimentos e espalhadas pelo cômodo. Em minha fúria senil, tinha jogado canetas e outros objetos de papelaria, e revirado potes de tinta. Além disso, um grande vaso sobre a cornija tinha sido quebrado — não sei como. Não achei talão de cheque ou dinheiro, nem indício algum de como recuperar meu corpo. Eu batia ensandecido as gavetas quando o mordomo, acompanhado de duas serviçais, irrompeu em minha direção.

* * *

Esta é, em resumo, a história de minha transformação. Ninguém dá crédito as minhas asserções frenéticas. Sou tratado como um demente, e mesmo neste instante estou sob vigilância. Mas sou são, absolutamente são, e para prová-lo sentei-me para escrever esta história exatamente como me aconteceu. Pergunto ao leitor se há algum traço de insanidade no estilo ou no método da história que está lendo. Sou um jovem preso no corpo de um velho. Mas o fato é inconcebível para todos. Naturalmente, soo demenciado para aqueles que não creem. Naturalmente não sei os nomes de meus secretários, dos médicos que vêm me visitar, de meus criados e vizinhos, desta cidade (qualquer que seja) onde me encontro. Naturalmente, perco-me em minha própria casa e sofro inconveniências de toda sorte. Naturalmente, faço as mais estranhas perguntas. Naturalmente, choro e grito e sofro um paroxismo de desespero. Não tenho dinheiro nem cheques. O banco não reconhece minha assinatura, pois, apesar da fraqueza de meus músculos, minha caligrafia continua sendo a de Eden. Essas pessoas a minha volta não me deixam ir sozinho ao banco. Parece, na verdade, que não há banco nesta cidade, e que possuo conta em algum lugar de Londres. Parece que Elvesham mantinha o nome de seu procurador em segredo de todos os criados. Não posso ter certeza de nada. Elvesham era, claro, um profundo estudioso da ciência mental, e todas as minhas declarações dos fatos do caso apenas confirmam a teoria de que minha insanidade é o resultado do excesso de reflexão sobre a psicologia. Desvarios de identidade pessoal, sem dúvida! Dois dias atrás, eu era um rapaz saudável, com a vida toda pela frente; agora, sou um velho furioso, desgrenhado e desesperado; vagando por uma enorme, luxuosa e desconhecida casa; vigiado, temido e evitado, como um lunático, por todos a minha volta. E em Londres, Elvesham recomeça a vida em um corpo vigoroso, e com o conhecimento e sabedoria acumulados durante setenta anos. Ele me roubou a vida.

O que aconteceu, não sei ao certo. No escritório, há volumes de notas manuscritas referindo-se principalmente à psicologia da memória, e trechos do que podem ser cálculos ou cifras em símbolos absolutamente desconhecidas por mim. Em algumas passagens, há indicações de que ele também se ocupava com a filosofia da matemática. Creio que tenha transferido todas as suas memórias, o acúmulo do que compunha sua personalidade, de seu velho e abatido cérebro para o meu, e também tenha transferido o que era meu para o seu cortiço paupérrimo. Ou seja, intercambiou corpos. Mas como tal mudança pode ser possível está fora do alcance de meu entendimento. Sempre fui um materialista durante toda a minha vida intelectual, mas aqui, subitamente, há um caso óbvio da separação do homem de sua matéria.

Estou prestes a tentar um experimento desesperado. Sento e escrevo aqui antes de me lançar ao caso. Hoje cedo, com a ajuda de uma faca que subtraí no café da manhã, consegui violar uma gaveta secreta na escrivaninha destruída. Encontrei apenas um pequeno frasco verde contendo um pó branco. Nele, uma etiqueta, e nela, apenas uma palavra: “libertação”. Isto deve ser, mais provavelmente, veneno. Compreendo por que Elvesham colocou veneno em meu caminho, e tenho certeza de que era sua intenção se livrar do único ser vivente que poderia testemunhar contra ele, apenas não entendi o esconderijo cuidadoso. O homem praticamente resolveu o mistério da imortalidade. Exceto por uma vingança do acaso, viverá em meu corpo até a idade avançada, e então, novamente, vai deixar esse corpo de lado e achar outra vítima jovem e forte. Quando se pensa em sua crueldade, é terrível refletir sobre quanto tempo ele vem praticando esse experimento... Há quanto tempo salta de corpo em corpo...? Mas me canso de escrever. O pó é solúvel em água. O sabor não é desagradável.

* * *

Assim termina a narrativa encontrada sobre a escrivaninha do sr. Elvesham. Seu cadáver deitado entre a mesa e a cadeira, caída para trás, provavelmente empurrada pelas derradeiras convulsões do homem. A história foi escrita a lápis e em uma caligrafia demenciada, bem diferente de suas costumeiras letras cuidadosas. Restam apenas dois fatos curiosos a ser registrados. Sem dúvidas, havia uma conexão entre Eden e Elvesham, já que todas as propriedades de Elvesham foram repassadas para o jovem. Porém, ele nunca as herdou. Quando Elvesham cometeu suicídio, Eden já estava, por mais bizarro que seja, morto. Vinte quatro horas antes, uma carruagem o acertara e morrera na hora, no cruzamento movimentado da interseção da Gower com a Euston. De modo que o único ser humano que poderia esclarecer essa narrativa fantástica não estava mais ao alcance das perguntas. Sem mais comentários, deixo a extraordinária questão para o julgamento individual do leitor.

 

1. Aqui o sr. Elvesham faz um trocadilho entre Kummel (alcaravia) com Himmel (céu, paraíso) (N.T.).


2. Digestivo efervescente composto por bicarbonato de sódio, acido tartárico e tartarato de sódio e potássio (N.T.).


3. Sociedade britânica que encoraja a pesquisa científica de fenômenos psíquicos e paranormais.

Escrevo esta história, não com a esperança de que receba crédito, mas, se possível, para que prepare uma saída de fuga para a próxima vítima. Ele, talvez, tome proveito de meu infortúnio. Meu próprio caso, eu sei, é irremediável, e estou agora, de certo modo, preparado para encontrar com meu destino.
Meu nome é Edward George Eden. Nasci em Trentham, Staffordshire; meu pai empregado dos parques da região. Perdi minha mãe aos três anos de idade, e meu pai aos cinco; meu tio, George Eden, então me adotou como seu próprio filho. Ele era solteiro, autodidata e famoso em Birmingham como jornalista empreendedor; ele me educou com generosidade, atiçando minha ambição de sucesso no mundo, e, à sua morte, que ocorreu há quatro anos, deixou-me toda a sua fortuna, algo em torno de quinhentas libras após os gastos do falecimento. Eu tinha então dezoito. Ele me aconselhou em seu testamento a gastar o dinheiro com o término de minha educação. Eu já havia escolhido a profissão médica, e por meio de sua generosidade póstuma e minha boa sorte em uma competição para uma bolsa de estudos, tornei-me um estudante de medicina na University College, em Londres. À época do começo de minha história, eu habitava à rua University, número 11A, em um quartinho no primeiro andar, mal mobiliado e frio, com vista para o terreno de Shoolbred. Morava e dormia nesse quartinho porque queria esticar meus meios até o último centavo.
Levava um par de sapatos para remendar em um sapateiro na Tottenham Court quando encontrei pela primeira vez o velhote de cara amarela, com quem minha vida agora se tornou tão inextricavelmente enredada. Ele estava parado na calçada, encarando com dúvida o número na porta, quando eu a abri. Seus olhos — de uma cor de cinza embaçada e avermelhados sob a pálpebra — caíram sobre meu rosto, e sua fisionomia imediatamente assumiu uma expressão de amabilidade enrugada.

 

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_HISTORIA_O_FALECIDO_SENHOR_ELBESHAM.png

 

 

— Chegou na hora certa — ele disse. — Eu tinha esquecido o número de sua casa. Como vai, sr. Eden?

Fiquei um pouco surpreso com a intimidade do cumprimento, pois eu nunca tinha posto os olhos sobre esse homem. Fiquei um pouco irritado também, por ele ter me pego com as botas embaixo do braço. Ele percebeu minha falta de cordialidade.

— Está pensando quem diabos sou eu, é? Um amigo, posso lhe assegurar. Já o vi antes, embora você não tenha me visto. Podemos conversar em algum lugar?

Hesitei. A precariedade de meu quartinho lá em cima não era assunto para qualquer estranho.

— Talvez — disse —, possamos descer a rua. Infelizmente não posso... — Meu gesto explicou a frase antes que fosse pronunciada.

— Certo — ele concordou e olhou para um lado, depois para o outro. — A rua? Em que direção? — Coloquei minhas botas na passagem. — Olhe aqui! — ele disse abruptamente —, este meu assunto é complicado. Venha almoçar comigo, sr. Eden. Sou um homem velho, muito velho, e não sou bom em explicações, e com essa minha voz esganiçada e a barulheira do trânsito...

Pousou uma persuasiva mão ossuda, que tremia um pouco, sobre meu braço.

Eu não era tão velho para que um homem mais velho não pudesse me pagar um almoço. No entanto, ao mesmo tempo, não estava inteiramente satisfeito com o convite abrupto.

— Eu prefiro... — comecei.

— Mas eu prefiro — ele me interrompeu —, e certamente meus cabelos grisalhos merecem a civilidade.

E assim consenti e fui com ele.

Ele me levou ao Blavitiski’s; eu tive que andar lentamente para me adaptar às suas passadas; e durante um almoço sem igual em sabor, ele se esquivou de minha principal pergunta, e eu pude reparar mais em sua aparência. Seu rosto barbeado rente era magro e enrugado; seus lábios murchos caíam sobre dentes postiços, e seu cabelo branco era ralo e um tanto quanto comprido; parecia pequeno para mim — embora certamente a maioria das pessoas pareça pequena para mim —, e seus ombros eram curvos e caídos. E observando-o, não pude deixar de perceber que ele também tomava nota, correndo os olhos, com um curioso toque de ganância, sobre mim, de meus ombros largos para minhas mãos bronzeadas e depois de volta a meu rosto sardento.

— E agora — disse ele ao acendermos nossos cigarros —, devo contar-lhe sobre minha questão. — Devo contar-lhe que sou um homem velho, muito velho. — Pausou por um instante. — E acontece que tenho dinheiro que devo deixar, e não tenho filho algum para quem deixá-lo.

Pensei no truque da confiança e decidi ficar alerto aos vestígios de minhas quinhentas libras. Ele prosseguiu sobre a extensão de sua solidão, e a dificuldade que possuía em encontrar um fim adequado para seu dinheiro.

— Pesei este plano e aquele, caridades, instituições e bolsas de estudo e bibliotecas, e cheguei enfim a esta conclusão — fixou os olhos em meu rosto —, de que devo encontrar um jovem, ambicioso, de mente pura, pobre, saudável de mente e de corpo, e, em resumo, fazer dele meu herdeiro, dar-lhe tudo que possuo. — Ele repetiu: — Dar-lhe tudo que possuo. Para que ele possa subitamente ser erguido de todos os problemas e dificuldades nas quais suas disposições foram educadas, até alcançar a liberdade e a influência.

Tentei parecer desinteressado. Com hipocrisia transparente, falei:

— E quer minha ajuda, meus serviços profissionais talvez, para encontrar tal pessoa.

Ele sorriu, e me olhou por sobre seu cigarro, e eu ri de sua exposição muda de minha fingida modéstia.

— Que carreira tal homem pode ter! — ele disse. — Encho-me de inveja ao pensar como acumulei o que outro pode gastar... Mas há condições, claro, deveres impostos. Ele deve, por exemplo, pegar meu nome. Não pode esperar tudo sem nada em troca. E devo conhecer todas as circunstâncias de sua vida antes de aceitá-lo. Ele deve ser saudável. Eu preciso conhecer sua ascendência, como seus pais e avós morreram, fazer a mais rígida das investigações a respeito de sua moralidade.

Isso modificou um pouco minhas íntimas parabenizações secretas.

— E eu entendo — falei — que eu...

— Sim — ele disse, quase com ferocidade. — Você. Você.

Não respondi palavra. Minha imaginação dançava, furiosa, meu ceticismo inato inútil para modificar seus enlevos. Não havia uma partícula de gratidão em minha mente — não sabia o que dizer nem como dizer.

— Mas por que eu? — perguntei, por fim.

Por acaso, o professor Haslar falara de mim, como exemplo de um rapaz saudável e são, e ele desejava, tanto quanto possível, deixar seu dinheiro onde saúde e integridade fossem garantidas.

Esse foi meu primeiro encontro com o velhinho. Ele mantinha mistério a seu respeito; disse que ainda não informaria seu nome, e depois que respondi algumas de suas perguntas, me deixou na entrada do Blavitiski. Notei que retirou um punhado de moedas de ouro do bolso quando chegou a hora de pagar pelo almoço. Sua insistência na saúde corporal era curiosa. De acordo com nosso arranjo, nesse mesmo dia contratei um seguro de vida na Loyal Insurance Company, por uma bela quantia, e na semana seguinte fui exaustivamente atropelado pelos profissionais médicos dessa companhia. Nem isso o satisfez, e insistiu que eu fosse reexaminado pelo grande dr. Henderson.

Foi na sexta-feira da semana de Pentecostes que ele tomou a decisão. Pediu-me para descer, bem tarde da noite — quase nove —, tirando-me da minha compenetração nas equações químicas para o exame preliminar científico. Estava de pé na passagem, sob uma fraca lâmpada de gás, e seu rosto era uma interação grotesca de sombras. Parecia mais curvo do que a primeira vez em que o vi, e suas bochechas levemente encovadas.

Sua voz tremia de emoção:

— Tudo satisfatório, sr. Eden. Tudo muito, muito satisfatório. E esta noite, esta noite deve jantar comigo para celebrar sua... ascensão. — Foi interrompido pela tosse. — Não precisará esperar muito também — continuou, limpando os lábios com o lenço e pegando minha mão com a garra ossuda e longa que estava desocupada. — Certamente... não muito a esperar.

Fomos até a rua e chamamos uma carruagem. Lembro todos os incidentes desse percurso vividamente: a movimentação ligeira e confortável, o vívido contraste entre gás, óleo e eletricidade, as multidões nas ruas, o lugar na Regent para onde fomos e o suntuoso jantar servido ali. De início, fique desconcertado pelo olhar do garçom bem-vestido para as minhas vestes grosseiras, incomodado pelos caroços nas azeitonas, mas conforme a champanhe esquentava meu sangue, minha confiança se renovava. No começo, o velho falou sobre si. Já tinha me contado seu nome na carruagem; era Egbert Elvesham, o grande filósofo, cujo nome eu conhecia desde mancebo na escola. Parecia incrível para mim que este homem, cuja inteligência havia tão cedo dominado a minha, essa grande abstração, de repente se concretizasse como uma figura conhecida e decrépita. Ouso dizer que qualquer rapaz que tenha de repente se encontrado em meio a celebridades já sentiu um pouco de minha decepção. Contou-me sobre o futuro que os débeis córregos de sua vida deixariam em breve a seco para mim: casas, direitos autorais, investimentos. Nunca suspeitei que filósofos fossem tão ricos. Ele me observava beber e comer com uma pontada de inveja.

— Que capacidade para viver que possui! — E então, com um suspiro, um suspiro de alívio talvez: — Não vai demorar.

— Certo — disse eu, a cabeça já nadando em champanhe. — Tenho um futuro talvez... de um tipo razoavelmente satisfatório, graças ao senhor. Terei a honra de seu nome. Mas o senhor tem um passado. Tamanho passado que vale por todo o meu futuro.

Ele balançou a cabeça e sorriu, como pensei no momento, com gratidão um pouco triste pela minha admiração envaidecedora.

— Esse futuro — ele disse —, você, de fato, o mudaria? — O garçom veio com licores. — Não vai se importar, talvez, de tomar meu nome, minha posição, mas tomaria, por vontade própria, meus anos?

— Com suas façanhas — falei, cortês.

Ele sorriu outra vez.

— Kummel... os dois — ele disse para o garçom e voltou a atenção para um pequeno envelope que tirou do bolso. — Esta hora — falou —, esta hora após um jantar é a hora das pequenas coisas. Aqui está um pedaço de minha sabedoria inédita. — Abriu o envelope com os dedos amarelos e trêmulos e mostrou um pouco de pó rosado no papel. — Isto — continuou —, bem, você deve saber o que é. Mas Kummel, coloque uma pitada desse pó, e se torna Himmel1.

Seus grandes olhos cor de cinza observaram os meus com uma expressão inescrutável.

Foi um pouco chocante descobrir que este grande mestre se dedicava aos sabores dos licores. No entanto, fingi interesse nessa sua fraqueza, pois estava bêbado o suficiente para uma pequena adulação.

Ele dividiu o pó entre os dois copinhos, e, ficando subitamente de pé, com uma dignidade estranha e inesperada, estendeu a mão para mim. Imitei seu gesto, e os copos tilintaram.

— Para uma sucessão rápida — disse ele e levou o copo aos lábios.

— Isso não — apressei-me em dizer. — Isso não.

Interrompeu o movimento com o licor à altura do queixo, olhos fulminando os meus.

— Para uma vida longa — falei.

Ele hesitou.

— Para uma vida longa — repetiu, com um súbito ganido de gargalhada.

Com olhos fixos um no outro, viramos os copinhos. Seus olhos olharam bem dentro dos meus, e enquanto eu secava o líquido, sentia uma sensação intensa e curiosa. O primeiro golpe provocou tumulto em meu cérebro; eu parecia sentir um rebuliço físico dentro de meu crânio, e um zumbido fervilhante encheu meus ouvidos. Não notei o sabor em minha boca, o aroma em minha garganta; vi apenas a intensidade cinza do olhar perfurando o meu. A secura, a confusão mental, o barulho e a agitação em minha cabeça pareciam infinitos. Impressões vagas e curiosas de coisas semiesquecidas dançavam e desapareciam na beirada de minha consciência. Por fim, ele quebrou o feitiço. Com um suspiro súbito e explosivo, baixou o copo.

— E? — perguntou.

— Glorioso — respondi, embora não tivesse saboreado a substância.

Minha cabeça girava. Sentei-me. Meu cérebro estava um caos. Então minha percepção clareou e se intensificou, como se eu visse as coisas em um espelho côncavo. Seus modos pareciam ter se tornado nervosos e apressados. Pegou o relógio e fez um careta.

— Onze e sete! E esta noite eu devo... Sete e vinte e cinco. Waterloo! Preciso ir!

Ele pediu a conta e se atrapalhou com o casaco. Garçons prestativos vieram ajudá-lo. Em outro momento, despedia-me, sobre a plataforma de uma carruagem, e ainda com uma sensação absurda de nitidez detalhada, como se — como posso dizer? — eu não apenas visse, mas sentisse através de um binóculo de ópera em posição invertida.

— Aquela substância — ele disse e colocou a mão à testa —, não deveria lhe ter oferecido. Vai estourar sua cabeça amanhã. Espere um minuto. Aqui. — Ele me entregou um pacotinho fino que parecia pó de Seidlitz2. — Dilua na água e tome ao se deitar. A outra substância era uma droga. Atenção: somente ao se deitar. Vai desanuviar sua mente. Só isso. Mais um aperto... Futurus! —Segurei a garra encarquilhada. — Adeus — ele se despediu, e pelas pálpebras descaídas julguei que ele também estava um pouco sob a influência daquela beberagem destorcedora de cérebros.

De súbito, lembrou-se de algo, passou a mão sobre o bolso da frente do paletó e de lá tirou outra embalagem, um cilindro do tamanho e formato de um tubo de creme para barbear.

— Aqui — disse. — Quase esqueci. Não abra até amanhã... mas leve já.

Era tão pesado que quase o derrubei.

— Certinho! — falei, e ele sorriu para mim através da janela da carruagem enquanto o condutor estalava o chicote para acordar seu cavalo.

Era um pacote branco, com selos vermelhos, um de cada lado e ao longo da beirada. “Se não é dinheiro, é platina ou chumbo”, pensei. Enfiei com cuidado meticuloso no bolso, e com o cérebro rodopiante fui para casa andando em meio aos vagabundos da rua Regent e pelas ruelas além da rua Portland. Lembro com vivacidade das sensações dessa caminhada, por mais estranhas que tenham sido. Ainda estava tão alterado que pude perceber meu estranho estado mental e pensar se a substância que ingerira era ópio, uma droga com a qual não tinha experiência. É difícil agora descrever a peculiaridade de minha alteridade mental — duplicidade mental mal dá conta de expressar. Ao andar pela Regent, notei em minha mente a bizarra percepção de que estava na estação Waterloo, e tive o estranho impulso de entrar na Politécnica como se subisse em um trem. Esfreguei os olhos com o nó do dedo, e era a Regent. Como posso descrever? Você vê um ator habilidoso olhando para você, ele faz um careta e, olha!, outra pessoa. Seria muito extravagante dizer que me parecia que a rua Regent tivesse, por um momento, feito isso? Depois, certo de que era a Regent outra vez, fiquei confuso com reminiscências fantásticas que brotaram em mim. “Trinta anos atrás”, pensei, “foi aqui que briguei com meu irmão”. Então caí na gargalhada, para a surpresa e excitação de um grupo de gatunos da noite. Trinta anos antes, eu não existia, e nunca na minha vida tinha acertado um irmão. A substância era certamente loucura líquida, pois o arrependimento contundente pelo irmão falecido ainda se agarrava a mim.

Ao longo da Portland, a insânia ressurgiu. Comecei a me lembrar de oficinas desaparecidas e a comparar a rua com o que ela já tinha sido. Pensamentos confusos e alterados são compreensíveis depois da bebida, mas o que me intrigava eram essas memórias fantasmas curiosamente vivazes que tinham se infiltrado em minha mente, e não apenas as memórias infiltradas, mas também as que tinham escoado. Parei em frente ao Stevens’, o negociante de artefatos de história natural, e matutei para lembrar qual era sua relação comigo. Um ônibus passou e soou exatamente como o estrondo de um trem. Eu parecia estar afundando em um poço escuro e distante para alcançar a lembrança.

— Claro — falei em voz alta, por fim —, ele me prometeu três rãs para amanhã. Estranho eu ter esquecido.

Ainda mostram lanternas mágicas a crianças? Lembro que uma imagem aparecia primeiramente como um fantasma esmaecido, e depois crescia até expelir outra. Desse mesmo modo, parecia-me que um conjunto fantasma de novas sensações batalhava com aquelas de meu eu comum.

Passei pela rua Euston até a Tottenham Court, intrigado, e um pouco assustado, e mal notei o trajeto incomum que tomava, pois geralmente eu cortava pelo emaranhado de ruelas. Virei na University, para descobrir que tinha esquecido o número. Apenas com um esforço enorme recuperei 11A, e mesmo assim me pareceu algo que sei lá quem havia me dito. Tentei firmar minha mente rememorando os acontecimentos do jantar, e por nada nesse mundo pude conjurar uma imagem do rosto de meu anfitrião; vi-o apenas como um perfil ensombrecido, como alguém que se olha pelo reflexo do vidro de uma janela. No lugar dele, de algum modo, eu obtinha uma curiosa versão exterior de mim mesmo, sentado à mesa, enrubescido e falante, com olhos iluminados.

— Devo tomar este outro pó — falei. — Isto está impossível.

Fui para o lado errado do hall atrás de vela e fósforos, e não sabia ao certo em que andar ficava meu quarto.

— Estou bêbado, disso tenho certeza. — E vacilei sem necessidade pela escada para sustentar a hipótese.

À primeira vista, meu quarto não me era familiar.

— Que chiqueiro! — comentei ao olhar em volta.

O esforço pareceu me trazer de volta, e a estranha característica fantasmagórica se tornou algo concreto. Lá estava o velho armário de vidro, com minhas anotações nos albúmens colados no canto da moldura, minhas velhas roupas cotidianas esparramadas pelo chão. E, no entanto, não era tão real, afinal. Eu sentia uma persuasão absurda tentando entrar em minha mente, a de que estava em um trem que parava, e eu olhava pela janela para uma estação desconhecida. Agarrei o gradil da cama com força para me reafirmar.

— É clarividência, talvez — falei. — Preciso escrever para a Psychical Research Society3.

Coloquei o pacotinho sobre a penteadeira, sentei-me na cama e fui descalçar as botas. Era como se a imagem de minhas atuais sensações estivesse pintada sobre outra imagem que se esforçasse para sobressair.

— Maldição! Perdi o juízo ou estou em dois lugares ao mesmo tempo?

Seminu, joguei o pó em um copo. Efervesceu e se tornou de uma cor âmbar fluorescente. Bebi tudo. Antes de me deitar, minha mente já havia se tranquilizado. Senti o travesseiro no rosto, e devo ter adormecido logo em seguida.

* * *

Acordei abruptamente de um sonho com bestas estranhas e me encontrei deitado de costas. Provavelmente todos conhecem aquele sonho sombrio e emocional do qual se escapa, de fato acordado, mas estranhamente acuado. Havia um gosto curioso na boca, uma sensação cansada nos membros, uma impressão de desconforto na pele. Pousei a cabeça imóvel no travesseiro, esperando que o sentimento de estranheza e medo passasse, e que então eu adormecesse outra vez. Mas, em vez disso, as sensações misteriosas permaneceram. De início, não percebi nada de errado comigo. Havia uma luz fraca no quarto, tão fraca que era quase a escuridão, e a mobília se destacava nela como nódoas vagas de treva absoluta. Encarei pouco além da roupa de cama sobre mim.

Passou pela minha mente que alguém pudesse ter entrado em meu quarto para roubar meu rolo de dinheiro, porém, após mais alguns momentos deitado, respirando regularmente para simular o sono, percebi que isso era apenas imaginação. No entanto, a desconfortável certeza de que havia algo errado continuava presa a mim. Com esforço, levantei a cabeça do travesseiro e espiei o escuro. O que era eu não podia saber. Olhei para as formas sombrias a meu redor, a maior ou menor escuridão que indicava cortinas, mesa, lareira, prateleiras de livros e assim por diante. Então, comecei a notar algo desconhecido nas formas na escuridão. Teria a cama se virado? Acolá deviam estar as prateleiras, e algo amortalhado e pálido levantava-se ali, algo que não podia ser chamado de prateleira. No entanto, olhei. Era grande demais para ser minha camisa jogada sobre uma cadeira.

Superando o terror infantil, joguei a colcha para o lado e enfiei a perna para fora do leito. Em vez de sair sobre a gaveta embaixo de minha cama, meu pé mal alcançou a borda do colchão. Dei outro passo, como necessário, e sentei-me na beirada da cama. Ao lado dela, deveria haver uma vela, e fósforos sobre a cadeira quebrada. Estiquei a mão e toquei... nada. Sacudi a mão na escuridão, e ela tocou algo pesado pendurado, macio e grosso em sua textura, que farfalhou ao toque. Agarrei e puxei; parecia ser uma cortina suspensa pelo dossel.

Completamente acordado, comecei a perceber que estava em um quarto desconhecido. Fiquei intrigado. Tentei lembrar as circunstâncias da noite anterior, e as encontrei, dessa vez, curiosamente, vívidas em minha memória: a ceia, o recebimento das pequenas embalagens, minha dúvida se estaria intoxicado, meu lento despir, o frio do travesseiro em meu rosto enrubescido. Senti uma súbita desconfiança. Teria sido na última noite ou na anterior a esta? De qualquer modo, este quarto me era estranho, e não sabia dizer como teria ido parar ali. O perfil sombrio e pálido se clareava, e percebi que se tratava de uma janela, com o formato escuro de um espelho de tocador oval contra a fraca intimação da aurora que se infiltrava pela persiana. Fiquei de pé, e fui pego de surpresa por uma singular sensação de fraqueza e desequilíbrio. Com mãos trêmulas esticadas, andei devagar até a janela. Manuseei o vidro, que era grande e com belas arandelas de latão, para achar o cordão da cortina. Não encontrei cordão algum. Por sorte, tomei a borla na mão e rapidamente a veneziana subiu.

Deparei-me com uma paisagem totalmente alheia a mim. A noite nublada, e através do cinza flocado das nuvens amontoadas, a meia-luz do amanhecer se embrenhava. Na borda do céu, a copa de nuvens possuía uma orla vermelho-sangue. Abaixo, tudo escuro e indistinto, montes turvos à distância, uma massa vaga de construções subindo até os pináculos, árvores como tinta esparramada e abaixo da janela um entrelaçado de arbustos negros e caminhos de um cinza-claro. Tão desconhecido que por um momento pensei ainda sonhar. Passei a mão pela mesa de tocador; parecia feita de uma madeira polida, e elaboradamente guarnecida: pequenos frascos de mosaico de vidro e uma escova. Havia também um pequeno objeto esquisito. Era como uma ferradura com projeções lisas e duras sobre um pires. Não encontrei fósforos nem vela.

Voltei os olhos para o cômodo novamente. Agora, com a persiana aberta, espectros baços da mobília saíam da escuridão. Havia uma enorme cama cortinada, e uma lareira a seus pés cuja cornija branca possuía o lustro do mármore.

Apoiei-me na mesa de tocador, fechei os olhos e os abri outra vez, e tentei pensar. A coisa toda era real demais para ser sonho. Estava inclinado a pensar que ainda havia algum tipo de hiato em minha memória, consequência do entorno daquele estranho licor; que eu tinha me deparado com a herança e, talvez, perdido a lembrança de tudo que acontecera após o anúncio da boa fortuna. Talvez, se esperasse um pouco, as coisas se esclareceriam. No entanto, o jantar com o velho Elvesham estava singularmente vivo e recente. A champanhe, os garçons atenciosos, o pó e os licores — apostaria minha própria alma que tudo tinha acontecido havia poucas horas.

E então me ocorreu algo tão trivial e, no entanto, tão terrível que estremeço agora só de pensar. Falei em voz alta. Eu disse:

— Como diabos vim parar aqui? — ... E a voz não era a minha.

Não era a minha, era fraca; a dicção, indistinta; a ressonância em meus ossos faciais, diferente. Então, para me acalmar, passei uma mão sobre a outra, e senti as dobras soltas de pele, a lassidão dos ossos comum da idade.

— Certamente — falei, naquela voz horrível que de algum modo tinha se estabelecido em minha garganta —, certamente isto é um sonho!

Quase tão rápido quanto um gesto involuntário, enfiei os dedos na boca. Meus dentes não estavam lá. Deslizei a ponta dos dedos pela superfície flácida de uma fileira de gengivas engruvinhadas. Fiquei nauseado de consternação e nojo.

Senti então um desejo intenso de me ver, de observar de uma vez por todas o horror total da mudança apavorante que eu tinha sofrido. Vacilei até a cornija e tateei em busca de fósforos. Enquanto o fazia, uma tosse ladrante subiu até minha garganta, e me agarrei à camisola de flanela grossa na qual me encontrei vestido. Não havia fósforos ali, e subitamente percebi que minhas extremidades estavam frias. Espirrando e tossindo, gemendo um pouco, voltei para a cama.

— Certamente um sonho — sussurrei para mim mesmo ao subir de volta ao leito —, certamente um sonho. — Uma repetição senil.

Puxei as cobertas por sobre os ombros até as orelhas e enfiei a mão envelhecida sob o travesseiro, determinado a dormir. Claro que era um sonho. Pela manhã, sonho encerrado, e acordarei forte e vigoroso novamente, para minha juventude e meus estudos. Fechei os olhos, respirei regularmente, e, ainda acordado, comecei a contar lentamente na potência de três.

Mas o que desejei não recebi. Não conseguia dormir. E a persuasão da realidade inexorável da mudança pela qual passara crescia firmemente. Arregalei os olhos, as potências esquecidas, e com os dedos magros sobre as gengivas enrugadas, eu era, de fato, um velho. De algum modo inexplicável tinha atravessado a vida e atingido a velhice, de algum modo tinham-me roubado a melhor parte da vida, do amor, da luta, da força e da esperança. Prostrei-me no travesseiro e tentei me persuadir de que tal alucinação era impossível. Imperceptivelmente, constantemente, a aurora foi se clareando.

Por fim, renunciando ao sono, sentei-me na cama e olhei ao redor. Um lusco-fusco frio tornava todo o quarto visível. Era espaçoso e bem mobiliado, melhor do que qualquer quarto em que já dormira. Uma vela e fósforos se tornaram parcialmente visíveis sobre um pequeno pedestal em um recesso. Joguei a coberta de lado e, tremendo com a crueza da manhã, embora fosse verão, desci e acendi a vela. Então, chacoalhando terrivelmente, tanto que o apagador balançava no candeeiro, cambaleei até o espelho e vi... o rosto de Elvesham! Não foi, no entanto, menos horrível, pois eu já havia vagamente pressentido. Ele já me parecera fisicamente fraco e digno de lástima, mas visto naquele momento, vestido apenas na camisola de flanela grossa, que se abria revelando o pescoço fibroso, visto, naquele momento, como meu próprio corpo, não sou capaz de descrever sua desolada decrepitude. As bochechas encovadas, as dispersas mechas de cabelo cinza-escuro, os olhos remelentos e baços, os lábios trêmulos e rugosos, sendo que o inferior exibia o brilho de seu forro rosa, e aquelas terríveis gengivas escuras. Você que é mente e corpo unidos, em sua idade natural, não é capaz de imaginar o que esta prisão diabólica significou para mim. Ser jovem e cheio de vontade e energia da juventude, e ficar preso, e ser esmagado por esta ruína vacilante de corpo...

Mas me desvio do rumo do relato. Devo ter ficado muito tempo estupefato com a mudança que me ocorreu. Era dia quando consegui voltar a pensar. De um modo inexplicável, eu tinha sido alterado, embora como, exceto por meio de magia, não sabia dizer. E enquanto ponderava, a engenhosidade diabólica de Elvesham surgiu em minha mente. Ficou claro para mim que do mesmo modo que eu me encontrava nele, ele devia estar em posse de meu corpo, de minha força, ou seja, de meu futuro. Mas como provar? Então, enquanto pensava, a questão se tornou tão incrível, mesmo para mim, que minha mente titubeou, e tive que me beliscar, sentir as gengivas desdentadas, olhar-me no espelho e tocar tudo em mim antes que pudesse me aprumar para encarar os fatos outra vez. Seria tudo alucinação? Seria eu, de fato, Elvesham, e ele, eu? Teria eu sonhado com Eden? Existia um Eden? Mas se eu era Elvesham, devia lembrar onde estive na manhã anterior, o nome da cidade onde morava, o que aconteceu antes de o sonho começar. Lutei com meus pensamentos. Recordei-me da estranha duplicidade de minhas lembranças durante a noite. Mas agora minha mente estava limpa. Não o fantasma de lembrança alguma, mas aquelas próprias de Eden.

— Estou insano — gritei com minha voz esganiçada.

Fiquei de pé sem equilíbrio, arrastei os membros frágeis e pesados para o tocador e enfiei a cabeça grisalha em uma bacia de água fria. Duas vezes. Sem sucesso. Sentia sem sombra de dúvida que era de fato Eden, não Elvesham. Mas Eden no corpo de Elvesham!

Se eu fosse homem de outra época, poderia ter considerado meu destino como encantado. Mas nos atuais dias céticos, milagres não são comuns. Isso era algum truque psicológico. O que uma droga e um olhar fixo poderiam provocar, uma droga e um olhar fixo, ou algum tratamento semelhante, poderiam desfazer. Homens já haviam perdido a memória antes. Mas trocar de memória como se trocariam guarda-chuvas! Ri. Ah, mas não um riso saudável, um risinho chiante e senil. Pude imaginar o velho Elvesham rindo de meu apuro, e uma rajada de raiva petulante, pouco comum a mim, arrebatou meus sentimentos. Comecei a vestir com intento as roupas que achei pelo chão, e percebi ao ficar pronto que estava no terno da noite anterior. Abri o guarda-roupa e encontrei trajes mais comuns: um par de calças xadrez e uma camisa antiquada. Coloquei uma venerável cartola em minha cabeça veneranda e, tossindo um pouco pelo esforço, claudiquei até o patamar.

Era então quinze para as seis, e as cortinas estavam fechadas e a casa, silenciosa. O patamar era espaçoso, uma ampla e ricamente carpetada escada descia até a escuridão do hall abaixo, e diante de mim uma porta semiaberta mostrava uma escrivaninha, uma estante de livros giratória, o espaldar de uma cadeira e uma bela coleção de livros encapados, prateleira após prateleira.

— Meu escritório — murmurei e atravessei o patamar. Ao som de minha voz, surgiu um pensamento, e voltei ao quarto para colocar a dentadura. Elas se assentaram com a facilidade de um velho hábito. — Melhor assim — disse, rangendo-a, e retornei ao escritório.

As gavetas da escrivaninha estavam trancadas. Seu tampo removível também. Não via indício de chaves, e não havia nenhuma nos bolsos de minhas calças. Apressei-me para o quarto e vasculhei o terno, e depois os bolsos de todas as roupas que encontrava. Estava muito ansioso, e alguém, ao ver o quarto depois que terminei, poderia ter pensado que ladrões tinham trabalhado ali. Não apenas não havia chaves, mas nem mesmo uma moeda ou um pedaço de papel — exceto pela nota da conta do jantar anterior.

Um estranho cansaço se instalou. Sentei-me e observei as peças de roupa jogadas aqui e ali, os bolsos revirados. Meu primeiro frenesi já tinha se extinguido. A cada momento eu percebia mais e mais a imensa inteligência dos planos de meu inimigo, a ver claramente a desesperança de minha situação. Com esforço, fiquei de pé e corri coxeando para o escritório outra vez. Na escadaria, uma serviçal levantava as persianas. Ela encarou, creio, a expressão em meu rosto. Fechei a porta do escritório atrás de mim, e, com um atiçador, ataquei a escrivaninha. Foi assim que me encontraram. O tampo quebrado, o cadeado estraçalhado, as cartas arrancadas de seus compartimentos e espalhadas pelo cômodo. Em minha fúria senil, tinha jogado canetas e outros objetos de papelaria, e revirado potes de tinta. Além disso, um grande vaso sobre a cornija tinha sido quebrado — não sei como. Não achei talão de cheque ou dinheiro, nem indício algum de como recuperar meu corpo. Eu batia ensandecido as gavetas quando o mordomo, acompanhado de duas serviçais, irrompeu em minha direção.

* * *

Esta é, em resumo, a história de minha transformação. Ninguém dá crédito as minhas asserções frenéticas. Sou tratado como um demente, e mesmo neste instante estou sob vigilância. Mas sou são, absolutamente são, e para prová-lo sentei-me para escrever esta história exatamente como me aconteceu. Pergunto ao leitor se há algum traço de insanidade no estilo ou no método da história que está lendo. Sou um jovem preso no corpo de um velho. Mas o fato é inconcebível para todos. Naturalmente, soo demenciado para aqueles que não creem. Naturalmente não sei os nomes de meus secretários, dos médicos que vêm me visitar, de meus criados e vizinhos, desta cidade (qualquer que seja) onde me encontro. Naturalmente, perco-me em minha própria casa e sofro inconveniências de toda sorte. Naturalmente, faço as mais estranhas perguntas. Naturalmente, choro e grito e sofro um paroxismo de desespero. Não tenho dinheiro nem cheques. O banco não reconhece minha assinatura, pois, apesar da fraqueza de meus músculos, minha caligrafia continua sendo a de Eden. Essas pessoas a minha volta não me deixam ir sozinho ao banco. Parece, na verdade, que não há banco nesta cidade, e que possuo conta em algum lugar de Londres. Parece que Elvesham mantinha o nome de seu procurador em segredo de todos os criados. Não posso ter certeza de nada. Elvesham era, claro, um profundo estudioso da ciência mental, e todas as minhas declarações dos fatos do caso apenas confirmam a teoria de que minha insanidade é o resultado do excesso de reflexão sobre a psicologia. Desvarios de identidade pessoal, sem dúvida! Dois dias atrás, eu era um rapaz saudável, com a vida toda pela frente; agora, sou um velho furioso, desgrenhado e desesperado; vagando por uma enorme, luxuosa e desconhecida casa; vigiado, temido e evitado, como um lunático, por todos a minha volta. E em Londres, Elvesham recomeça a vida em um corpo vigoroso, e com o conhecimento e sabedoria acumulados durante setenta anos. Ele me roubou a vida.

O que aconteceu, não sei ao certo. No escritório, há volumes de notas manuscritas referindo-se principalmente à psicologia da memória, e trechos do que podem ser cálculos ou cifras em símbolos absolutamente desconhecidas por mim. Em algumas passagens, há indicações de que ele também se ocupava com a filosofia da matemática. Creio que tenha transferido todas as suas memórias, o acúmulo do que compunha sua personalidade, de seu velho e abatido cérebro para o meu, e também tenha transferido o que era meu para o seu cortiço paupérrimo. Ou seja, intercambiou corpos. Mas como tal mudança pode ser possível está fora do alcance de meu entendimento. Sempre fui um materialista durante toda a minha vida intelectual, mas aqui, subitamente, há um caso óbvio da separação do homem de sua matéria.

Estou prestes a tentar um experimento desesperado. Sento e escrevo aqui antes de me lançar ao caso. Hoje cedo, com a ajuda de uma faca que subtraí no café da manhã, consegui violar uma gaveta secreta na escrivaninha destruída. Encontrei apenas um pequeno frasco verde contendo um pó branco. Nele, uma etiqueta, e nela, apenas uma palavra: “libertação”. Isto deve ser, mais provavelmente, veneno. Compreendo por que Elvesham colocou veneno em meu caminho, e tenho certeza de que era sua intenção se livrar do único ser vivente que poderia testemunhar contra ele, apenas não entendi o esconderijo cuidadoso. O homem praticamente resolveu o mistério da imortalidade. Exceto por uma vingança do acaso, viverá em meu corpo até a idade avançada, e então, novamente, vai deixar esse corpo de lado e achar outra vítima jovem e forte. Quando se pensa em sua crueldade, é terrível refletir sobre quanto tempo ele vem praticando esse experimento... Há quanto tempo salta de corpo em corpo...? Mas me canso de escrever. O pó é solúvel em água. O sabor não é desagradável.

* * *

Assim termina a narrativa encontrada sobre a escrivaninha do sr. Elvesham. Seu cadáver deitado entre a mesa e a cadeira, caída para trás, provavelmente empurrada pelas derradeiras convulsões do homem. A história foi escrita a lápis e em uma caligrafia demenciada, bem diferente de suas costumeiras letras cuidadosas. Restam apenas dois fatos curiosos a ser registrados. Sem dúvidas, havia uma conexão entre Eden e Elvesham, já que todas as propriedades de Elvesham foram repassadas para o jovem. Porém, ele nunca as herdou. Quando Elvesham cometeu suicídio, Eden já estava, por mais bizarro que seja, morto. Vinte quatro horas antes, uma carruagem o acertara e morrera na hora, no cruzamento movimentado da interseção da Gower com a Euston. De modo que o único ser humano que poderia esclarecer essa narrativa fantástica não estava mais ao alcance das perguntas. Sem mais comentários, deixo a extraordinária questão para o julgamento individual do leitor.

 

1. Aqui o sr. Elvesham faz um trocadilho entre Kummel (alcaravia) com Himmel (céu, paraíso) (N.T.).


2. Digestivo efervescente composto por bicarbonato de sódio, acido tartárico e tartarato de sódio e potássio (N.T.).


3. Sociedade britânica que encoraja a pesquisa científica de fenômenos psíquicos e paranormais.

Escrevo esta história, não com a esperança de que receba crédito, mas, se possível, para que prepare uma saída de fuga para a próxima vítima. Ele, talvez, tome proveito de meu infortúnio. Meu próprio caso, eu sei, é irremediável, e estou agora, de certo modo, preparado para encontrar com meu destino.
Meu nome é Edward George Eden. Nasci em Trentham, Staffordshire; meu pai empregado dos parques da região. Perdi minha mãe aos três anos de idade, e meu pai aos cinco; meu tio, George Eden, então me adotou como seu próprio filho. Ele era solteiro, autodidata e famoso em Birmingham como jornalista empreendedor; ele me educou com generosidade, atiçando minha ambição de sucesso no mundo, e, à sua morte, que ocorreu há quatro anos, deixou-me toda a sua fortuna, algo em torno de quinhentas libras após os gastos do falecimento. Eu tinha então dezoito. Ele me aconselhou em seu testamento a gastar o dinheiro com o término de minha educação. Eu já havia escolhido a profissão médica, e por meio de sua generosidade póstuma e minha boa sorte em uma competição para uma bolsa de estudos, tornei-me um estudante de medicina na University College, em Londres. À época do começo de minha história, eu habitava à rua University, número 11A, em um quartinho no primeiro andar, mal mobiliado e frio, com vista para o terreno de Shoolbred. Morava e dormia nesse quartinho porque queria esticar meus meios até o último centavo.
Levava um par de sapatos para remendar em um sapateiro na Tottenham Court quando encontrei pela primeira vez o velhote de cara amarela, com quem minha vida agora se tornou tão inextricavelmente enredada. Ele estava parado na calçada, encarando com dúvida o número na porta, quando eu a abri. Seus olhos — de uma cor de cinza embaçada e avermelhados sob a pálpebra — caíram sobre meu rosto, e sua fisionomia imediatamente assumiu uma expressão de amabilidade enrugada.

 

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_HISTORIA_O_FALECIDO_SENHOR_ELBESHAM.png

 

 

— Chegou na hora certa — ele disse. — Eu tinha esquecido o número de sua casa. Como vai, sr. Eden?

Fiquei um pouco surpreso com a intimidade do cumprimento, pois eu nunca tinha posto os olhos sobre esse homem. Fiquei um pouco irritado também, por ele ter me pego com as botas embaixo do braço. Ele percebeu minha falta de cordialidade.

— Está pensando quem diabos sou eu, é? Um amigo, posso lhe assegurar. Já o vi antes, embora você não tenha me visto. Podemos conversar em algum lugar?

Hesitei. A precariedade de meu quartinho lá em cima não era assunto para qualquer estranho.

— Talvez — disse —, possamos descer a rua. Infelizmente não posso... — Meu gesto explicou a frase antes que fosse pronunciada.

— Certo — ele concordou e olhou para um lado, depois para o outro. — A rua? Em que direção? — Coloquei minhas botas na passagem. — Olhe aqui! — ele disse abruptamente —, este meu assunto é complicado. Venha almoçar comigo, sr. Eden. Sou um homem velho, muito velho, e não sou bom em explicações, e com essa minha voz esganiçada e a barulheira do trânsito...

Pousou uma persuasiva mão ossuda, que tremia um pouco, sobre meu braço.

Eu não era tão velho para que um homem mais velho não pudesse me pagar um almoço. No entanto, ao mesmo tempo, não estava inteiramente satisfeito com o convite abrupto.

— Eu prefiro... — comecei.

— Mas eu prefiro — ele me interrompeu —, e certamente meus cabelos grisalhos merecem a civilidade.

E assim consenti e fui com ele.

Ele me levou ao Blavitiski’s; eu tive que andar lentamente para me adaptar às suas passadas; e durante um almoço sem igual em sabor, ele se esquivou de minha principal pergunta, e eu pude reparar mais em sua aparência. Seu rosto barbeado rente era magro e enrugado; seus lábios murchos caíam sobre dentes postiços, e seu cabelo branco era ralo e um tanto quanto comprido; parecia pequeno para mim — embora certamente a maioria das pessoas pareça pequena para mim —, e seus ombros eram curvos e caídos. E observando-o, não pude deixar de perceber que ele também tomava nota, correndo os olhos, com um curioso toque de ganância, sobre mim, de meus ombros largos para minhas mãos bronzeadas e depois de volta a meu rosto sardento.

— E agora — disse ele ao acendermos nossos cigarros —, devo contar-lhe sobre minha questão. — Devo contar-lhe que sou um homem velho, muito velho. — Pausou por um instante. — E acontece que tenho dinheiro que devo deixar, e não tenho filho algum para quem deixá-lo.

Pensei no truque da confiança e decidi ficar alerto aos vestígios de minhas quinhentas libras. Ele prosseguiu sobre a extensão de sua solidão, e a dificuldade que possuía em encontrar um fim adequado para seu dinheiro.

— Pesei este plano e aquele, caridades, instituições e bolsas de estudo e bibliotecas, e cheguei enfim a esta conclusão — fixou os olhos em meu rosto —, de que devo encontrar um jovem, ambicioso, de mente pura, pobre, saudável de mente e de corpo, e, em resumo, fazer dele meu herdeiro, dar-lhe tudo que possuo. — Ele repetiu: — Dar-lhe tudo que possuo. Para que ele possa subitamente ser erguido de todos os problemas e dificuldades nas quais suas disposições foram educadas, até alcançar a liberdade e a influência.

Tentei parecer desinteressado. Com hipocrisia transparente, falei:

— E quer minha ajuda, meus serviços profissionais talvez, para encontrar tal pessoa.

Ele sorriu, e me olhou por sobre seu cigarro, e eu ri de sua exposição muda de minha fingida modéstia.

— Que carreira tal homem pode ter! — ele disse. — Encho-me de inveja ao pensar como acumulei o que outro pode gastar... Mas há condições, claro, deveres impostos. Ele deve, por exemplo, pegar meu nome. Não pode esperar tudo sem nada em troca. E devo conhecer todas as circunstâncias de sua vida antes de aceitá-lo. Ele deve ser saudável. Eu preciso conhecer sua ascendência, como seus pais e avós morreram, fazer a mais rígida das investigações a respeito de sua moralidade.

Isso modificou um pouco minhas íntimas parabenizações secretas.

— E eu entendo — falei — que eu...

— Sim — ele disse, quase com ferocidade. — Você. Você.

Não respondi palavra. Minha imaginação dançava, furiosa, meu ceticismo inato inútil para modificar seus enlevos. Não havia uma partícula de gratidão em minha mente — não sabia o que dizer nem como dizer.

— Mas por que eu? — perguntei, por fim.

Por acaso, o professor Haslar falara de mim, como exemplo de um rapaz saudável e são, e ele desejava, tanto quanto possível, deixar seu dinheiro onde saúde e integridade fossem garantidas.

Esse foi meu primeiro encontro com o velhinho. Ele mantinha mistério a seu respeito; disse que ainda não informaria seu nome, e depois que respondi algumas de suas perguntas, me deixou na entrada do Blavitiski. Notei que retirou um punhado de moedas de ouro do bolso quando chegou a hora de pagar pelo almoço. Sua insistência na saúde corporal era curiosa. De acordo com nosso arranjo, nesse mesmo dia contratei um seguro de vida na Loyal Insurance Company, por uma bela quantia, e na semana seguinte fui exaustivamente atropelado pelos profissionais médicos dessa companhia. Nem isso o satisfez, e insistiu que eu fosse reexaminado pelo grande dr. Henderson.

Foi na sexta-feira da semana de Pentecostes que ele tomou a decisão. Pediu-me para descer, bem tarde da noite — quase nove —, tirando-me da minha compenetração nas equações químicas para o exame preliminar científico. Estava de pé na passagem, sob uma fraca lâmpada de gás, e seu rosto era uma interação grotesca de sombras. Parecia mais curvo do que a primeira vez em que o vi, e suas bochechas levemente encovadas.

Sua voz tremia de emoção:

— Tudo satisfatório, sr. Eden. Tudo muito, muito satisfatório. E esta noite, esta noite deve jantar comigo para celebrar sua... ascensão. — Foi interrompido pela tosse. — Não precisará esperar muito também — continuou, limpando os lábios com o lenço e pegando minha mão com a garra ossuda e longa que estava desocupada. — Certamente... não muito a esperar.

Fomos até a rua e chamamos uma carruagem. Lembro todos os incidentes desse percurso vividamente: a movimentação ligeira e confortável, o vívido contraste entre gás, óleo e eletricidade, as multidões nas ruas, o lugar na Regent para onde fomos e o suntuoso jantar servido ali. De início, fique desconcertado pelo olhar do garçom bem-vestido para as minhas vestes grosseiras, incomodado pelos caroços nas azeitonas, mas conforme a champanhe esquentava meu sangue, minha confiança se renovava. No começo, o velho falou sobre si. Já tinha me contado seu nome na carruagem; era Egbert Elvesham, o grande filósofo, cujo nome eu conhecia desde mancebo na escola. Parecia incrível para mim que este homem, cuja inteligência havia tão cedo dominado a minha, essa grande abstração, de repente se concretizasse como uma figura conhecida e decrépita. Ouso dizer que qualquer rapaz que tenha de repente se encontrado em meio a celebridades já sentiu um pouco de minha decepção. Contou-me sobre o futuro que os débeis córregos de sua vida deixariam em breve a seco para mim: casas, direitos autorais, investimentos. Nunca suspeitei que filósofos fossem tão ricos. Ele me observava beber e comer com uma pontada de inveja.

— Que capacidade para viver que possui! — E então, com um suspiro, um suspiro de alívio talvez: — Não vai demorar.

— Certo — disse eu, a cabeça já nadando em champanhe. — Tenho um futuro talvez... de um tipo razoavelmente satisfatório, graças ao senhor. Terei a honra de seu nome. Mas o senhor tem um passado. Tamanho passado que vale por todo o meu futuro.

Ele balançou a cabeça e sorriu, como pensei no momento, com gratidão um pouco triste pela minha admiração envaidecedora.

— Esse futuro — ele disse —, você, de fato, o mudaria? — O garçom veio com licores. — Não vai se importar, talvez, de tomar meu nome, minha posição, mas tomaria, por vontade própria, meus anos?

— Com suas façanhas — falei, cortês.

Ele sorriu outra vez.

— Kummel... os dois — ele disse para o garçom e voltou a atenção para um pequeno envelope que tirou do bolso. — Esta hora — falou —, esta hora após um jantar é a hora das pequenas coisas. Aqui está um pedaço de minha sabedoria inédita. — Abriu o envelope com os dedos amarelos e trêmulos e mostrou um pouco de pó rosado no papel. — Isto — continuou —, bem, você deve saber o que é. Mas Kummel, coloque uma pitada desse pó, e se torna Himmel1.

Seus grandes olhos cor de cinza observaram os meus com uma expressão inescrutável.

Foi um pouco chocante descobrir que este grande mestre se dedicava aos sabores dos licores. No entanto, fingi interesse nessa sua fraqueza, pois estava bêbado o suficiente para uma pequena adulação.

Ele dividiu o pó entre os dois copinhos, e, ficando subitamente de pé, com uma dignidade estranha e inesperada, estendeu a mão para mim. Imitei seu gesto, e os copos tilintaram.

— Para uma sucessão rápida — disse ele e levou o copo aos lábios.

— Isso não — apressei-me em dizer. — Isso não.

Interrompeu o movimento com o licor à altura do queixo, olhos fulminando os meus.

— Para uma vida longa — falei.

Ele hesitou.

— Para uma vida longa — repetiu, com um súbito ganido de gargalhada.

Com olhos fixos um no outro, viramos os copinhos. Seus olhos olharam bem dentro dos meus, e enquanto eu secava o líquido, sentia uma sensação intensa e curiosa. O primeiro golpe provocou tumulto em meu cérebro; eu parecia sentir um rebuliço físico dentro de meu crânio, e um zumbido fervilhante encheu meus ouvidos. Não notei o sabor em minha boca, o aroma em minha garganta; vi apenas a intensidade cinza do olhar perfurando o meu. A secura, a confusão mental, o barulho e a agitação em minha cabeça pareciam infinitos. Impressões vagas e curiosas de coisas semiesquecidas dançavam e desapareciam na beirada de minha consciência. Por fim, ele quebrou o feitiço. Com um suspiro súbito e explosivo, baixou o copo.

— E? — perguntou.

— Glorioso — respondi, embora não tivesse saboreado a substância.

Minha cabeça girava. Sentei-me. Meu cérebro estava um caos. Então minha percepção clareou e se intensificou, como se eu visse as coisas em um espelho côncavo. Seus modos pareciam ter se tornado nervosos e apressados. Pegou o relógio e fez um careta.

— Onze e sete! E esta noite eu devo... Sete e vinte e cinco. Waterloo! Preciso ir!

Ele pediu a conta e se atrapalhou com o casaco. Garçons prestativos vieram ajudá-lo. Em outro momento, despedia-me, sobre a plataforma de uma carruagem, e ainda com uma sensação absurda de nitidez detalhada, como se — como posso dizer? — eu não apenas visse, mas sentisse através de um binóculo de ópera em posição invertida.

— Aquela substância — ele disse e colocou a mão à testa —, não deveria lhe ter oferecido. Vai estourar sua cabeça amanhã. Espere um minuto. Aqui. — Ele me entregou um pacotinho fino que parecia pó de Seidlitz2. — Dilua na água e tome ao se deitar. A outra substância era uma droga. Atenção: somente ao se deitar. Vai desanuviar sua mente. Só isso. Mais um aperto... Futurus! —Segurei a garra encarquilhada. — Adeus — ele se despediu, e pelas pálpebras descaídas julguei que ele também estava um pouco sob a influência daquela beberagem destorcedora de cérebros.

De súbito, lembrou-se de algo, passou a mão sobre o bolso da frente do paletó e de lá tirou outra embalagem, um cilindro do tamanho e formato de um tubo de creme para barbear.

— Aqui — disse. — Quase esqueci. Não abra até amanhã... mas leve já.

Era tão pesado que quase o derrubei.

— Certinho! — falei, e ele sorriu para mim através da janela da carruagem enquanto o condutor estalava o chicote para acordar seu cavalo.

Era um pacote branco, com selos vermelhos, um de cada lado e ao longo da beirada. “Se não é dinheiro, é platina ou chumbo”, pensei. Enfiei com cuidado meticuloso no bolso, e com o cérebro rodopiante fui para casa andando em meio aos vagabundos da rua Regent e pelas ruelas além da rua Portland. Lembro com vivacidade das sensações dessa caminhada, por mais estranhas que tenham sido. Ainda estava tão alterado que pude perceber meu estranho estado mental e pensar se a substância que ingerira era ópio, uma droga com a qual não tinha experiência. É difícil agora descrever a peculiaridade de minha alteridade mental — duplicidade mental mal dá conta de expressar. Ao andar pela Regent, notei em minha mente a bizarra percepção de que estava na estação Waterloo, e tive o estranho impulso de entrar na Politécnica como se subisse em um trem. Esfreguei os olhos com o nó do dedo, e era a Regent. Como posso descrever? Você vê um ator habilidoso olhando para você, ele faz um careta e, olha!, outra pessoa. Seria muito extravagante dizer que me parecia que a rua Regent tivesse, por um momento, feito isso? Depois, certo de que era a Regent outra vez, fiquei confuso com reminiscências fantásticas que brotaram em mim. “Trinta anos atrás”, pensei, “foi aqui que briguei com meu irmão”. Então caí na gargalhada, para a surpresa e excitação de um grupo de gatunos da noite. Trinta anos antes, eu não existia, e nunca na minha vida tinha acertado um irmão. A substância era certamente loucura líquida, pois o arrependimento contundente pelo irmão falecido ainda se agarrava a mim.

Ao longo da Portland, a insânia ressurgiu. Comecei a me lembrar de oficinas desaparecidas e a comparar a rua com o que ela já tinha sido. Pensamentos confusos e alterados são compreensíveis depois da bebida, mas o que me intrigava eram essas memórias fantasmas curiosamente vivazes que tinham se infiltrado em minha mente, e não apenas as memórias infiltradas, mas também as que tinham escoado. Parei em frente ao Stevens’, o negociante de artefatos de história natural, e matutei para lembrar qual era sua relação comigo. Um ônibus passou e soou exatamente como o estrondo de um trem. Eu parecia estar afundando em um poço escuro e distante para alcançar a lembrança.

— Claro — falei em voz alta, por fim —, ele me prometeu três rãs para amanhã. Estranho eu ter esquecido.

Ainda mostram lanternas mágicas a crianças? Lembro que uma imagem aparecia primeiramente como um fantasma esmaecido, e depois crescia até expelir outra. Desse mesmo modo, parecia-me que um conjunto fantasma de novas sensações batalhava com aquelas de meu eu comum.

Passei pela rua Euston até a Tottenham Court, intrigado, e um pouco assustado, e mal notei o trajeto incomum que tomava, pois geralmente eu cortava pelo emaranhado de ruelas. Virei na University, para descobrir que tinha esquecido o número. Apenas com um esforço enorme recuperei 11A, e mesmo assim me pareceu algo que sei lá quem havia me dito. Tentei firmar minha mente rememorando os acontecimentos do jantar, e por nada nesse mundo pude conjurar uma imagem do rosto de meu anfitrião; vi-o apenas como um perfil ensombrecido, como alguém que se olha pelo reflexo do vidro de uma janela. No lugar dele, de algum modo, eu obtinha uma curiosa versão exterior de mim mesmo, sentado à mesa, enrubescido e falante, com olhos iluminados.

— Devo tomar este outro pó — falei. — Isto está impossível.

Fui para o lado errado do hall atrás de vela e fósforos, e não sabia ao certo em que andar ficava meu quarto.

— Estou bêbado, disso tenho certeza. — E vacilei sem necessidade pela escada para sustentar a hipótese.

À primeira vista, meu quarto não me era familiar.

— Que chiqueiro! — comentei ao olhar em volta.

O esforço pareceu me trazer de volta, e a estranha característica fantasmagórica se tornou algo concreto. Lá estava o velho armário de vidro, com minhas anotações nos albúmens colados no canto da moldura, minhas velhas roupas cotidianas esparramadas pelo chão. E, no entanto, não era tão real, afinal. Eu sentia uma persuasão absurda tentando entrar em minha mente, a de que estava em um trem que parava, e eu olhava pela janela para uma estação desconhecida. Agarrei o gradil da cama com força para me reafirmar.

— É clarividência, talvez — falei. — Preciso escrever para a Psychical Research Society3.

Coloquei o pacotinho sobre a penteadeira, sentei-me na cama e fui descalçar as botas. Era como se a imagem de minhas atuais sensações estivesse pintada sobre outra imagem que se esforçasse para sobressair.

— Maldição! Perdi o juízo ou estou em dois lugares ao mesmo tempo?

Seminu, joguei o pó em um copo. Efervesceu e se tornou de uma cor âmbar fluorescente. Bebi tudo. Antes de me deitar, minha mente já havia se tranquilizado. Senti o travesseiro no rosto, e devo ter adormecido logo em seguida.

* * *

Acordei abruptamente de um sonho com bestas estranhas e me encontrei deitado de costas. Provavelmente todos conhecem aquele sonho sombrio e emocional do qual se escapa, de fato acordado, mas estranhamente acuado. Havia um gosto curioso na boca, uma sensação cansada nos membros, uma impressão de desconforto na pele. Pousei a cabeça imóvel no travesseiro, esperando que o sentimento de estranheza e medo passasse, e que então eu adormecesse outra vez. Mas, em vez disso, as sensações misteriosas permaneceram. De início, não percebi nada de errado comigo. Havia uma luz fraca no quarto, tão fraca que era quase a escuridão, e a mobília se destacava nela como nódoas vagas de treva absoluta. Encarei pouco além da roupa de cama sobre mim.

Passou pela minha mente que alguém pudesse ter entrado em meu quarto para roubar meu rolo de dinheiro, porém, após mais alguns momentos deitado, respirando regularmente para simular o sono, percebi que isso era apenas imaginação. No entanto, a desconfortável certeza de que havia algo errado continuava presa a mim. Com esforço, levantei a cabeça do travesseiro e espiei o escuro. O que era eu não podia saber. Olhei para as formas sombrias a meu redor, a maior ou menor escuridão que indicava cortinas, mesa, lareira, prateleiras de livros e assim por diante. Então, comecei a notar algo desconhecido nas formas na escuridão. Teria a cama se virado? Acolá deviam estar as prateleiras, e algo amortalhado e pálido levantava-se ali, algo que não podia ser chamado de prateleira. No entanto, olhei. Era grande demais para ser minha camisa jogada sobre uma cadeira.

Superando o terror infantil, joguei a colcha para o lado e enfiei a perna para fora do leito. Em vez de sair sobre a gaveta embaixo de minha cama, meu pé mal alcançou a borda do colchão. Dei outro passo, como necessário, e sentei-me na beirada da cama. Ao lado dela, deveria haver uma vela, e fósforos sobre a cadeira quebrada. Estiquei a mão e toquei... nada. Sacudi a mão na escuridão, e ela tocou algo pesado pendurado, macio e grosso em sua textura, que farfalhou ao toque. Agarrei e puxei; parecia ser uma cortina suspensa pelo dossel.

Completamente acordado, comecei a perceber que estava em um quarto desconhecido. Fiquei intrigado. Tentei lembrar as circunstâncias da noite anterior, e as encontrei, dessa vez, curiosamente, vívidas em minha memória: a ceia, o recebimento das pequenas embalagens, minha dúvida se estaria intoxicado, meu lento despir, o frio do travesseiro em meu rosto enrubescido. Senti uma súbita desconfiança. Teria sido na última noite ou na anterior a esta? De qualquer modo, este quarto me era estranho, e não sabia dizer como teria ido parar ali. O perfil sombrio e pálido se clareava, e percebi que se tratava de uma janela, com o formato escuro de um espelho de tocador oval contra a fraca intimação da aurora que se infiltrava pela persiana. Fiquei de pé, e fui pego de surpresa por uma singular sensação de fraqueza e desequilíbrio. Com mãos trêmulas esticadas, andei devagar até a janela. Manuseei o vidro, que era grande e com belas arandelas de latão, para achar o cordão da cortina. Não encontrei cordão algum. Por sorte, tomei a borla na mão e rapidamente a veneziana subiu.

Deparei-me com uma paisagem totalmente alheia a mim. A noite nublada, e através do cinza flocado das nuvens amontoadas, a meia-luz do amanhecer se embrenhava. Na borda do céu, a copa de nuvens possuía uma orla vermelho-sangue. Abaixo, tudo escuro e indistinto, montes turvos à distância, uma massa vaga de construções subindo até os pináculos, árvores como tinta esparramada e abaixo da janela um entrelaçado de arbustos negros e caminhos de um cinza-claro. Tão desconhecido que por um momento pensei ainda sonhar. Passei a mão pela mesa de tocador; parecia feita de uma madeira polida, e elaboradamente guarnecida: pequenos frascos de mosaico de vidro e uma escova. Havia também um pequeno objeto esquisito. Era como uma ferradura com projeções lisas e duras sobre um pires. Não encontrei fósforos nem vela.

Voltei os olhos para o cômodo novamente. Agora, com a persiana aberta, espectros baços da mobília saíam da escuridão. Havia uma enorme cama cortinada, e uma lareira a seus pés cuja cornija branca possuía o lustro do mármore.

Apoiei-me na mesa de tocador, fechei os olhos e os abri outra vez, e tentei pensar. A coisa toda era real demais para ser sonho. Estava inclinado a pensar que ainda havia algum tipo de hiato em minha memória, consequência do entorno daquele estranho licor; que eu tinha me deparado com a herança e, talvez, perdido a lembrança de tudo que acontecera após o anúncio da boa fortuna. Talvez, se esperasse um pouco, as coisas se esclareceriam. No entanto, o jantar com o velho Elvesham estava singularmente vivo e recente. A champanhe, os garçons atenciosos, o pó e os licores — apostaria minha própria alma que tudo tinha acontecido havia poucas horas.

E então me ocorreu algo tão trivial e, no entanto, tão terrível que estremeço agora só de pensar. Falei em voz alta. Eu disse:

— Como diabos vim parar aqui? — ... E a voz não era a minha.

Não era a minha, era fraca; a dicção, indistinta; a ressonância em meus ossos faciais, diferente. Então, para me acalmar, passei uma mão sobre a outra, e senti as dobras soltas de pele, a lassidão dos ossos comum da idade.

— Certamente — falei, naquela voz horrível que de algum modo tinha se estabelecido em minha garganta —, certamente isto é um sonho!

Quase tão rápido quanto um gesto involuntário, enfiei os dedos na boca. Meus dentes não estavam lá. Deslizei a ponta dos dedos pela superfície flácida de uma fileira de gengivas engruvinhadas. Fiquei nauseado de consternação e nojo.

Senti então um desejo intenso de me ver, de observar de uma vez por todas o horror total da mudança apavorante que eu tinha sofrido. Vacilei até a cornija e tateei em busca de fósforos. Enquanto o fazia, uma tosse ladrante subiu até minha garganta, e me agarrei à camisola de flanela grossa na qual me encontrei vestido. Não havia fósforos ali, e subitamente percebi que minhas extremidades estavam frias. Espirrando e tossindo, gemendo um pouco, voltei para a cama.

— Certamente um sonho — sussurrei para mim mesmo ao subir de volta ao leito —, certamente um sonho. — Uma repetição senil.

Puxei as cobertas por sobre os ombros até as orelhas e enfiei a mão envelhecida sob o travesseiro, determinado a dormir. Claro que era um sonho. Pela manhã, sonho encerrado, e acordarei forte e vigoroso novamente, para minha juventude e meus estudos. Fechei os olhos, respirei regularmente, e, ainda acordado, comecei a contar lentamente na potência de três.

Mas o que desejei não recebi. Não conseguia dormir. E a persuasão da realidade inexorável da mudança pela qual passara crescia firmemente. Arregalei os olhos, as potências esquecidas, e com os dedos magros sobre as gengivas enrugadas, eu era, de fato, um velho. De algum modo inexplicável tinha atravessado a vida e atingido a velhice, de algum modo tinham-me roubado a melhor parte da vida, do amor, da luta, da força e da esperança. Prostrei-me no travesseiro e tentei me persuadir de que tal alucinação era impossível. Imperceptivelmente, constantemente, a aurora foi se clareando.

Por fim, renunciando ao sono, sentei-me na cama e olhei ao redor. Um lusco-fusco frio tornava todo o quarto visível. Era espaçoso e bem mobiliado, melhor do que qualquer quarto em que já dormira. Uma vela e fósforos se tornaram parcialmente visíveis sobre um pequeno pedestal em um recesso. Joguei a coberta de lado e, tremendo com a crueza da manhã, embora fosse verão, desci e acendi a vela. Então, chacoalhando terrivelmente, tanto que o apagador balançava no candeeiro, cambaleei até o espelho e vi... o rosto de Elvesham! Não foi, no entanto, menos horrível, pois eu já havia vagamente pressentido. Ele já me parecera fisicamente fraco e digno de lástima, mas visto naquele momento, vestido apenas na camisola de flanela grossa, que se abria revelando o pescoço fibroso, visto, naquele momento, como meu próprio corpo, não sou capaz de descrever sua desolada decrepitude. As bochechas encovadas, as dispersas mechas de cabelo cinza-escuro, os olhos remelentos e baços, os lábios trêmulos e rugosos, sendo que o inferior exibia o brilho de seu forro rosa, e aquelas terríveis gengivas escuras. Você que é mente e corpo unidos, em sua idade natural, não é capaz de imaginar o que esta prisão diabólica significou para mim. Ser jovem e cheio de vontade e energia da juventude, e ficar preso, e ser esmagado por esta ruína vacilante de corpo...

Mas me desvio do rumo do relato. Devo ter ficado muito tempo estupefato com a mudança que me ocorreu. Era dia quando consegui voltar a pensar. De um modo inexplicável, eu tinha sido alterado, embora como, exceto por meio de magia, não sabia dizer. E enquanto ponderava, a engenhosidade diabólica de Elvesham surgiu em minha mente. Ficou claro para mim que do mesmo modo que eu me encontrava nele, ele devia estar em posse de meu corpo, de minha força, ou seja, de meu futuro. Mas como provar? Então, enquanto pensava, a questão se tornou tão incrível, mesmo para mim, que minha mente titubeou, e tive que me beliscar, sentir as gengivas desdentadas, olhar-me no espelho e tocar tudo em mim antes que pudesse me aprumar para encarar os fatos outra vez. Seria tudo alucinação? Seria eu, de fato, Elvesham, e ele, eu? Teria eu sonhado com Eden? Existia um Eden? Mas se eu era Elvesham, devia lembrar onde estive na manhã anterior, o nome da cidade onde morava, o que aconteceu antes de o sonho começar. Lutei com meus pensamentos. Recordei-me da estranha duplicidade de minhas lembranças durante a noite. Mas agora minha mente estava limpa. Não o fantasma de lembrança alguma, mas aquelas próprias de Eden.

— Estou insano — gritei com minha voz esganiçada.

Fiquei de pé sem equilíbrio, arrastei os membros frágeis e pesados para o tocador e enfiei a cabeça grisalha em uma bacia de água fria. Duas vezes. Sem sucesso. Sentia sem sombra de dúvida que era de fato Eden, não Elvesham. Mas Eden no corpo de Elvesham!

Se eu fosse homem de outra época, poderia ter considerado meu destino como encantado. Mas nos atuais dias céticos, milagres não são comuns. Isso era algum truque psicológico. O que uma droga e um olhar fixo poderiam provocar, uma droga e um olhar fixo, ou algum tratamento semelhante, poderiam desfazer. Homens já haviam perdido a memória antes. Mas trocar de memória como se trocariam guarda-chuvas! Ri. Ah, mas não um riso saudável, um risinho chiante e senil. Pude imaginar o velho Elvesham rindo de meu apuro, e uma rajada de raiva petulante, pouco comum a mim, arrebatou meus sentimentos. Comecei a vestir com intento as roupas que achei pelo chão, e percebi ao ficar pronto que estava no terno da noite anterior. Abri o guarda-roupa e encontrei trajes mais comuns: um par de calças xadrez e uma camisa antiquada. Coloquei uma venerável cartola em minha cabeça veneranda e, tossindo um pouco pelo esforço, claudiquei até o patamar.

Era então quinze para as seis, e as cortinas estavam fechadas e a casa, silenciosa. O patamar era espaçoso, uma ampla e ricamente carpetada escada descia até a escuridão do hall abaixo, e diante de mim uma porta semiaberta mostrava uma escrivaninha, uma estante de livros giratória, o espaldar de uma cadeira e uma bela coleção de livros encapados, prateleira após prateleira.

— Meu escritório — murmurei e atravessei o patamar. Ao som de minha voz, surgiu um pensamento, e voltei ao quarto para colocar a dentadura. Elas se assentaram com a facilidade de um velho hábito. — Melhor assim — disse, rangendo-a, e retornei ao escritório.

As gavetas da escrivaninha estavam trancadas. Seu tampo removível também. Não via indício de chaves, e não havia nenhuma nos bolsos de minhas calças. Apressei-me para o quarto e vasculhei o terno, e depois os bolsos de todas as roupas que encontrava. Estava muito ansioso, e alguém, ao ver o quarto depois que terminei, poderia ter pensado que ladrões tinham trabalhado ali. Não apenas não havia chaves, mas nem mesmo uma moeda ou um pedaço de papel — exceto pela nota da conta do jantar anterior.

Um estranho cansaço se instalou. Sentei-me e observei as peças de roupa jogadas aqui e ali, os bolsos revirados. Meu primeiro frenesi já tinha se extinguido. A cada momento eu percebia mais e mais a imensa inteligência dos planos de meu inimigo, a ver claramente a desesperança de minha situação. Com esforço, fiquei de pé e corri coxeando para o escritório outra vez. Na escadaria, uma serviçal levantava as persianas. Ela encarou, creio, a expressão em meu rosto. Fechei a porta do escritório atrás de mim, e, com um atiçador, ataquei a escrivaninha. Foi assim que me encontraram. O tampo quebrado, o cadeado estraçalhado, as cartas arrancadas de seus compartimentos e espalhadas pelo cômodo. Em minha fúria senil, tinha jogado canetas e outros objetos de papelaria, e revirado potes de tinta. Além disso, um grande vaso sobre a cornija tinha sido quebrado — não sei como. Não achei talão de cheque ou dinheiro, nem indício algum de como recuperar meu corpo. Eu batia ensandecido as gavetas quando o mordomo, acompanhado de duas serviçais, irrompeu em minha direção.

* * *

Esta é, em resumo, a história de minha transformação. Ninguém dá crédito as minhas asserções frenéticas. Sou tratado como um demente, e mesmo neste instante estou sob vigilância. Mas sou são, absolutamente são, e para prová-lo sentei-me para escrever esta história exatamente como me aconteceu. Pergunto ao leitor se há algum traço de insanidade no estilo ou no método da história que está lendo. Sou um jovem preso no corpo de um velho. Mas o fato é inconcebível para todos. Naturalmente, soo demenciado para aqueles que não creem. Naturalmente não sei os nomes de meus secretários, dos médicos que vêm me visitar, de meus criados e vizinhos, desta cidade (qualquer que seja) onde me encontro. Naturalmente, perco-me em minha própria casa e sofro inconveniências de toda sorte. Naturalmente, faço as mais estranhas perguntas. Naturalmente, choro e grito e sofro um paroxismo de desespero. Não tenho dinheiro nem cheques. O banco não reconhece minha assinatura, pois, apesar da fraqueza de meus músculos, minha caligrafia continua sendo a de Eden. Essas pessoas a minha volta não me deixam ir sozinho ao banco. Parece, na verdade, que não há banco nesta cidade, e que possuo conta em algum lugar de Londres. Parece que Elvesham mantinha o nome de seu procurador em segredo de todos os criados. Não posso ter certeza de nada. Elvesham era, claro, um profundo estudioso da ciência mental, e todas as minhas declarações dos fatos do caso apenas confirmam a teoria de que minha insanidade é o resultado do excesso de reflexão sobre a psicologia. Desvarios de identidade pessoal, sem dúvida! Dois dias atrás, eu era um rapaz saudável, com a vida toda pela frente; agora, sou um velho furioso, desgrenhado e desesperado; vagando por uma enorme, luxuosa e desconhecida casa; vigiado, temido e evitado, como um lunático, por todos a minha volta. E em Londres, Elvesham recomeça a vida em um corpo vigoroso, e com o conhecimento e sabedoria acumulados durante setenta anos. Ele me roubou a vida.

O que aconteceu, não sei ao certo. No escritório, há volumes de notas manuscritas referindo-se principalmente à psicologia da memória, e trechos do que podem ser cálculos ou cifras em símbolos absolutamente desconhecidas por mim. Em algumas passagens, há indicações de que ele também se ocupava com a filosofia da matemática. Creio que tenha transferido todas as suas memórias, o acúmulo do que compunha sua personalidade, de seu velho e abatido cérebro para o meu, e também tenha transferido o que era meu para o seu cortiço paupérrimo. Ou seja, intercambiou corpos. Mas como tal mudança pode ser possível está fora do alcance de meu entendimento. Sempre fui um materialista durante toda a minha vida intelectual, mas aqui, subitamente, há um caso óbvio da separação do homem de sua matéria.

Estou prestes a tentar um experimento desesperado. Sento e escrevo aqui antes de me lançar ao caso. Hoje cedo, com a ajuda de uma faca que subtraí no café da manhã, consegui violar uma gaveta secreta na escrivaninha destruída. Encontrei apenas um pequeno frasco verde contendo um pó branco. Nele, uma etiqueta, e nela, apenas uma palavra: “libertação”. Isto deve ser, mais provavelmente, veneno. Compreendo por que Elvesham colocou veneno em meu caminho, e tenho certeza de que era sua intenção se livrar do único ser vivente que poderia testemunhar contra ele, apenas não entendi o esconderijo cuidadoso. O homem praticamente resolveu o mistério da imortalidade. Exceto por uma vingança do acaso, viverá em meu corpo até a idade avançada, e então, novamente, vai deixar esse corpo de lado e achar outra vítima jovem e forte. Quando se pensa em sua crueldade, é terrível refletir sobre quanto tempo ele vem praticando esse experimento... Há quanto tempo salta de corpo em corpo...? Mas me canso de escrever. O pó é solúvel em água. O sabor não é desagradável.

* * *

Assim termina a narrativa encontrada sobre a escrivaninha do sr. Elvesham. Seu cadáver deitado entre a mesa e a cadeira, caída para trás, provavelmente empurrada pelas derradeiras convulsões do homem. A história foi escrita a lápis e em uma caligrafia demenciada, bem diferente de suas costumeiras letras cuidadosas. Restam apenas dois fatos curiosos a ser registrados. Sem dúvidas, havia uma conexão entre Eden e Elvesham, já que todas as propriedades de Elvesham foram repassadas para o jovem. Porém, ele nunca as herdou. Quando Elvesham cometeu suicídio, Eden já estava, por mais bizarro que seja, morto. Vinte quatro horas antes, uma carruagem o acertara e morrera na hora, no cruzamento movimentado da interseção da Gower com a Euston. De modo que o único ser humano que poderia esclarecer essa narrativa fantástica não estava mais ao alcance das perguntas. Sem mais comentários, deixo a extraordinária questão para o julgamento individual do leitor.

 

1. Aqui o sr. Elvesham faz um trocadilho entre Kummel (alcaravia) com Himmel (céu, paraíso) (N.T.).


2. Digestivo efervescente composto por bicarbonato de sódio, acido tartárico e tartarato de sódio e potássio (N.T.).


3. Sociedade britânica que encoraja a pesquisa científica de fenômenos psíquicos e paranormais.

Escrevo esta história, não com a esperança de que receba crédito, mas, se possível, para que prepare uma saída de fuga para a próxima vítima. Ele, talvez, tome proveito de meu infortúnio. Meu próprio caso, eu sei, é irremediável, e estou agora, de certo modo, preparado para encontrar com meu destino.
Meu nome é Edward George Eden. Nasci em Trentham, Staffordshire; meu pai empregado dos parques da região. Perdi minha mãe aos três anos de idade, e meu pai aos cinco; meu tio, George Eden, então me adotou como seu próprio filho. Ele era solteiro, autodidata e famoso em Birmingham como jornalista empreendedor; ele me educou com generosidade, atiçando minha ambição de sucesso no mundo, e, à sua morte, que ocorreu há quatro anos, deixou-me toda a sua fortuna, algo em torno de quinhentas libras após os gastos do falecimento. Eu tinha então dezoito. Ele me aconselhou em seu testamento a gastar o dinheiro com o término de minha educação. Eu já havia escolhido a profissão médica, e por meio de sua generosidade póstuma e minha boa sorte em uma competição para uma bolsa de estudos, tornei-me um estudante de medicina na University College, em Londres. À época do começo de minha história, eu habitava à rua University, número 11A, em um quartinho no primeiro andar, mal mobiliado e frio, com vista para o terreno de Shoolbred. Morava e dormia nesse quartinho porque queria esticar meus meios até o último centavo.
Levava um par de sapatos para remendar em um sapateiro na Tottenham Court quando encontrei pela primeira vez o velhote de cara amarela, com quem minha vida agora se tornou tão inextricavelmente enredada. Ele estava parado na calçada, encarando com dúvida o número na porta, quando eu a abri. Seus olhos — de uma cor de cinza embaçada e avermelhados sob a pálpebra — caíram sobre meu rosto, e sua fisionomia imediatamente assumiu uma expressão de amabilidade enrugada.

 

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_HISTORIA_O_FALECIDO_SENHOR_ELBESHAM.png

 

 

— Chegou na hora certa — ele disse. — Eu tinha esquecido o número de sua casa. Como vai, sr. Eden?

Fiquei um pouco surpreso com a intimidade do cumprimento, pois eu nunca tinha posto os olhos sobre esse homem. Fiquei um pouco irritado também, por ele ter me pego com as botas embaixo do braço. Ele percebeu minha falta de cordialidade.

— Está pensando quem diabos sou eu, é? Um amigo, posso lhe assegurar. Já o vi antes, embora você não tenha me visto. Podemos conversar em algum lugar?

Hesitei. A precariedade de meu quartinho lá em cima não era assunto para qualquer estranho.

— Talvez — disse —, possamos descer a rua. Infelizmente não posso... — Meu gesto explicou a frase antes que fosse pronunciada.

— Certo — ele concordou e olhou para um lado, depois para o outro. — A rua? Em que direção? — Coloquei minhas botas na passagem. — Olhe aqui! — ele disse abruptamente —, este meu assunto é complicado. Venha almoçar comigo, sr. Eden. Sou um homem velho, muito velho, e não sou bom em explicações, e com essa minha voz esganiçada e a barulheira do trânsito...

Pousou uma persuasiva mão ossuda, que tremia um pouco, sobre meu braço.

Eu não era tão velho para que um homem mais velho não pudesse me pagar um almoço. No entanto, ao mesmo tempo, não estava inteiramente satisfeito com o convite abrupto.

— Eu prefiro... — comecei.

— Mas eu prefiro — ele me interrompeu —, e certamente meus cabelos grisalhos merecem a civilidade.

E assim consenti e fui com ele.

Ele me levou ao Blavitiski’s; eu tive que andar lentamente para me adaptar às suas passadas; e durante um almoço sem igual em sabor, ele se esquivou de minha principal pergunta, e eu pude reparar mais em sua aparência. Seu rosto barbeado rente era magro e enrugado; seus lábios murchos caíam sobre dentes postiços, e seu cabelo branco era ralo e um tanto quanto comprido; parecia pequeno para mim — embora certamente a maioria das pessoas pareça pequena para mim —, e seus ombros eram curvos e caídos. E observando-o, não pude deixar de perceber que ele também tomava nota, correndo os olhos, com um curioso toque de ganância, sobre mim, de meus ombros largos para minhas mãos bronzeadas e depois de volta a meu rosto sardento.

— E agora — disse ele ao acendermos nossos cigarros —, devo contar-lhe sobre minha questão. — Devo contar-lhe que sou um homem velho, muito velho. — Pausou por um instante. — E acontece que tenho dinheiro que devo deixar, e não tenho filho algum para quem deixá-lo.

Pensei no truque da confiança e decidi ficar alerto aos vestígios de minhas quinhentas libras. Ele prosseguiu sobre a extensão de sua solidão, e a dificuldade que possuía em encontrar um fim adequado para seu dinheiro.

— Pesei este plano e aquele, caridades, instituições e bolsas de estudo e bibliotecas, e cheguei enfim a esta conclusão — fixou os olhos em meu rosto —, de que devo encontrar um jovem, ambicioso, de mente pura, pobre, saudável de mente e de corpo, e, em resumo, fazer dele meu herdeiro, dar-lhe tudo que possuo. — Ele repetiu: — Dar-lhe tudo que possuo. Para que ele possa subitamente ser erguido de todos os problemas e dificuldades nas quais suas disposições foram educadas, até alcançar a liberdade e a influência.

Tentei parecer desinteressado. Com hipocrisia transparente, falei:

— E quer minha ajuda, meus serviços profissionais talvez, para encontrar tal pessoa.

Ele sorriu, e me olhou por sobre seu cigarro, e eu ri de sua exposição muda de minha fingida modéstia.

— Que carreira tal homem pode ter! — ele disse. — Encho-me de inveja ao pensar como acumulei o que outro pode gastar... Mas há condições, claro, deveres impostos. Ele deve, por exemplo, pegar meu nome. Não pode esperar tudo sem nada em troca. E devo conhecer todas as circunstâncias de sua vida antes de aceitá-lo. Ele deve ser saudável. Eu preciso conhecer sua ascendência, como seus pais e avós morreram, fazer a mais rígida das investigações a respeito de sua moralidade.

Isso modificou um pouco minhas íntimas parabenizações secretas.

— E eu entendo — falei — que eu...

— Sim — ele disse, quase com ferocidade. — Você. Você.

Não respondi palavra. Minha imaginação dançava, furiosa, meu ceticismo inato inútil para modificar seus enlevos. Não havia uma partícula de gratidão em minha mente — não sabia o que dizer nem como dizer.

— Mas por que eu? — perguntei, por fim.

Por acaso, o professor Haslar falara de mim, como exemplo de um rapaz saudável e são, e ele desejava, tanto quanto possível, deixar seu dinheiro onde saúde e integridade fossem garantidas.

Esse foi meu primeiro encontro com o velhinho. Ele mantinha mistério a seu respeito; disse que ainda não informaria seu nome, e depois que respondi algumas de suas perguntas, me deixou na entrada do Blavitiski. Notei que retirou um punhado de moedas de ouro do bolso quando chegou a hora de pagar pelo almoço. Sua insistência na saúde corporal era curiosa. De acordo com nosso arranjo, nesse mesmo dia contratei um seguro de vida na Loyal Insurance Company, por uma bela quantia, e na semana seguinte fui exaustivamente atropelado pelos profissionais médicos dessa companhia. Nem isso o satisfez, e insistiu que eu fosse reexaminado pelo grande dr. Henderson.

Foi na sexta-feira da semana de Pentecostes que ele tomou a decisão. Pediu-me para descer, bem tarde da noite — quase nove —, tirando-me da minha compenetração nas equações químicas para o exame preliminar científico. Estava de pé na passagem, sob uma fraca lâmpada de gás, e seu rosto era uma interação grotesca de sombras. Parecia mais curvo do que a primeira vez em que o vi, e suas bochechas levemente encovadas.

Sua voz tremia de emoção:

— Tudo satisfatório, sr. Eden. Tudo muito, muito satisfatório. E esta noite, esta noite deve jantar comigo para celebrar sua... ascensão. — Foi interrompido pela tosse. — Não precisará esperar muito também — continuou, limpando os lábios com o lenço e pegando minha mão com a garra ossuda e longa que estava desocupada. — Certamente... não muito a esperar.

Fomos até a rua e chamamos uma carruagem. Lembro todos os incidentes desse percurso vividamente: a movimentação ligeira e confortável, o vívido contraste entre gás, óleo e eletricidade, as multidões nas ruas, o lugar na Regent para onde fomos e o suntuoso jantar servido ali. De início, fique desconcertado pelo olhar do garçom bem-vestido para as minhas vestes grosseiras, incomodado pelos caroços nas azeitonas, mas conforme a champanhe esquentava meu sangue, minha confiança se renovava. No começo, o velho falou sobre si. Já tinha me contado seu nome na carruagem; era Egbert Elvesham, o grande filósofo, cujo nome eu conhecia desde mancebo na escola. Parecia incrível para mim que este homem, cuja inteligência havia tão cedo dominado a minha, essa grande abstração, de repente se concretizasse como uma figura conhecida e decrépita. Ouso dizer que qualquer rapaz que tenha de repente se encontrado em meio a celebridades já sentiu um pouco de minha decepção. Contou-me sobre o futuro que os débeis córregos de sua vida deixariam em breve a seco para mim: casas, direitos autorais, investimentos. Nunca suspeitei que filósofos fossem tão ricos. Ele me observava beber e comer com uma pontada de inveja.

— Que capacidade para viver que possui! — E então, com um suspiro, um suspiro de alívio talvez: — Não vai demorar.

— Certo — disse eu, a cabeça já nadando em champanhe. — Tenho um futuro talvez... de um tipo razoavelmente satisfatório, graças ao senhor. Terei a honra de seu nome. Mas o senhor tem um passado. Tamanho passado que vale por todo o meu futuro.

Ele balançou a cabeça e sorriu, como pensei no momento, com gratidão um pouco triste pela minha admiração envaidecedora.

— Esse futuro — ele disse —, você, de fato, o mudaria? — O garçom veio com licores. — Não vai se importar, talvez, de tomar meu nome, minha posição, mas tomaria, por vontade própria, meus anos?

— Com suas façanhas — falei, cortês.

Ele sorriu outra vez.

— Kummel... os dois — ele disse para o garçom e voltou a atenção para um pequeno envelope que tirou do bolso. — Esta hora — falou —, esta hora após um jantar é a hora das pequenas coisas. Aqui está um pedaço de minha sabedoria inédita. — Abriu o envelope com os dedos amarelos e trêmulos e mostrou um pouco de pó rosado no papel. — Isto — continuou —, bem, você deve saber o que é. Mas Kummel, coloque uma pitada desse pó, e se torna Himmel1.

Seus grandes olhos cor de cinza observaram os meus com uma expressão inescrutável.

Foi um pouco chocante descobrir que este grande mestre se dedicava aos sabores dos licores. No entanto, fingi interesse nessa sua fraqueza, pois estava bêbado o suficiente para uma pequena adulação.

Ele dividiu o pó entre os dois copinhos, e, ficando subitamente de pé, com uma dignidade estranha e inesperada, estendeu a mão para mim. Imitei seu gesto, e os copos tilintaram.

— Para uma sucessão rápida — disse ele e levou o copo aos lábios.

— Isso não — apressei-me em dizer. — Isso não.

Interrompeu o movimento com o licor à altura do queixo, olhos fulminando os meus.

— Para uma vida longa — falei.

Ele hesitou.

— Para uma vida longa — repetiu, com um súbito ganido de gargalhada.

Com olhos fixos um no outro, viramos os copinhos. Seus olhos olharam bem dentro dos meus, e enquanto eu secava o líquido, sentia uma sensação intensa e curiosa. O primeiro golpe provocou tumulto em meu cérebro; eu parecia sentir um rebuliço físico dentro de meu crânio, e um zumbido fervilhante encheu meus ouvidos. Não notei o sabor em minha boca, o aroma em minha garganta; vi apenas a intensidade cinza do olhar perfurando o meu. A secura, a confusão mental, o barulho e a agitação em minha cabeça pareciam infinitos. Impressões vagas e curiosas de coisas semiesquecidas dançavam e desapareciam na beirada de minha consciência. Por fim, ele quebrou o feitiço. Com um suspiro súbito e explosivo, baixou o copo.

— E? — perguntou.

— Glorioso — respondi, embora não tivesse saboreado a substância.

Minha cabeça girava. Sentei-me. Meu cérebro estava um caos. Então minha percepção clareou e se intensificou, como se eu visse as coisas em um espelho côncavo. Seus modos pareciam ter se tornado nervosos e apressados. Pegou o relógio e fez um careta.

— Onze e sete! E esta noite eu devo... Sete e vinte e cinco. Waterloo! Preciso ir!

Ele pediu a conta e se atrapalhou com o casaco. Garçons prestativos vieram ajudá-lo. Em outro momento, despedia-me, sobre a plataforma de uma carruagem, e ainda com uma sensação absurda de nitidez detalhada, como se — como posso dizer? — eu não apenas visse, mas sentisse através de um binóculo de ópera em posição invertida.

— Aquela substância — ele disse e colocou a mão à testa —, não deveria lhe ter oferecido. Vai estourar sua cabeça amanhã. Espere um minuto. Aqui. — Ele me entregou um pacotinho fino que parecia pó de Seidlitz2. — Dilua na água e tome ao se deitar. A outra substância era uma droga. Atenção: somente ao se deitar. Vai desanuviar sua mente. Só isso. Mais um aperto... Futurus! —Segurei a garra encarquilhada. — Adeus — ele se despediu, e pelas pálpebras descaídas julguei que ele também estava um pouco sob a influência daquela beberagem destorcedora de cérebros.

De súbito, lembrou-se de algo, passou a mão sobre o bolso da frente do paletó e de lá tirou outra embalagem, um cilindro do tamanho e formato de um tubo de creme para barbear.

— Aqui — disse. — Quase esqueci. Não abra até amanhã... mas leve já.

Era tão pesado que quase o derrubei.

— Certinho! — falei, e ele sorriu para mim através da janela da carruagem enquanto o condutor estalava o chicote para acordar seu cavalo.

Era um pacote branco, com selos vermelhos, um de cada lado e ao longo da beirada. “Se não é dinheiro, é platina ou chumbo”, pensei. Enfiei com cuidado meticuloso no bolso, e com o cérebro rodopiante fui para casa andando em meio aos vagabundos da rua Regent e pelas ruelas além da rua Portland. Lembro com vivacidade das sensações dessa caminhada, por mais estranhas que tenham sido. Ainda estava tão alterado que pude perceber meu estranho estado mental e pensar se a substância que ingerira era ópio, uma droga com a qual não tinha experiência. É difícil agora descrever a peculiaridade de minha alteridade mental — duplicidade mental mal dá conta de expressar. Ao andar pela Regent, notei em minha mente a bizarra percepção de que estava na estação Waterloo, e tive o estranho impulso de entrar na Politécnica como se subisse em um trem. Esfreguei os olhos com o nó do dedo, e era a Regent. Como posso descrever? Você vê um ator habilidoso olhando para você, ele faz um careta e, olha!, outra pessoa. Seria muito extravagante dizer que me parecia que a rua Regent tivesse, por um momento, feito isso? Depois, certo de que era a Regent outra vez, fiquei confuso com reminiscências fantásticas que brotaram em mim. “Trinta anos atrás”, pensei, “foi aqui que briguei com meu irmão”. Então caí na gargalhada, para a surpresa e excitação de um grupo de gatunos da noite. Trinta anos antes, eu não existia, e nunca na minha vida tinha acertado um irmão. A substância era certamente loucura líquida, pois o arrependimento contundente pelo irmão falecido ainda se agarrava a mim.

Ao longo da Portland, a insânia ressurgiu. Comecei a me lembrar de oficinas desaparecidas e a comparar a rua com o que ela já tinha sido. Pensamentos confusos e alterados são compreensíveis depois da bebida, mas o que me intrigava eram essas memórias fantasmas curiosamente vivazes que tinham se infiltrado em minha mente, e não apenas as memórias infiltradas, mas também as que tinham escoado. Parei em frente ao Stevens’, o negociante de artefatos de história natural, e matutei para lembrar qual era sua relação comigo. Um ônibus passou e soou exatamente como o estrondo de um trem. Eu parecia estar afundando em um poço escuro e distante para alcançar a lembrança.

— Claro — falei em voz alta, por fim —, ele me prometeu três rãs para amanhã. Estranho eu ter esquecido.

Ainda mostram lanternas mágicas a crianças? Lembro que uma imagem aparecia primeiramente como um fantasma esmaecido, e depois crescia até expelir outra. Desse mesmo modo, parecia-me que um conjunto fantasma de novas sensações batalhava com aquelas de meu eu comum.

Passei pela rua Euston até a Tottenham Court, intrigado, e um pouco assustado, e mal notei o trajeto incomum que tomava, pois geralmente eu cortava pelo emaranhado de ruelas. Virei na University, para descobrir que tinha esquecido o número. Apenas com um esforço enorme recuperei 11A, e mesmo assim me pareceu algo que sei lá quem havia me dito. Tentei firmar minha mente rememorando os acontecimentos do jantar, e por nada nesse mundo pude conjurar uma imagem do rosto de meu anfitrião; vi-o apenas como um perfil ensombrecido, como alguém que se olha pelo reflexo do vidro de uma janela. No lugar dele, de algum modo, eu obtinha uma curiosa versão exterior de mim mesmo, sentado à mesa, enrubescido e falante, com olhos iluminados.

— Devo tomar este outro pó — falei. — Isto está impossível.

Fui para o lado errado do hall atrás de vela e fósforos, e não sabia ao certo em que andar ficava meu quarto.

— Estou bêbado, disso tenho certeza. — E vacilei sem necessidade pela escada para sustentar a hipótese.

À primeira vista, meu quarto não me era familiar.

— Que chiqueiro! — comentei ao olhar em volta.

O esforço pareceu me trazer de volta, e a estranha característica fantasmagórica se tornou algo concreto. Lá estava o velho armário de vidro, com minhas anotações nos albúmens colados no canto da moldura, minhas velhas roupas cotidianas esparramadas pelo chão. E, no entanto, não era tão real, afinal. Eu sentia uma persuasão absurda tentando entrar em minha mente, a de que estava em um trem que parava, e eu olhava pela janela para uma estação desconhecida. Agarrei o gradil da cama com força para me reafirmar.

— É clarividência, talvez — falei. — Preciso escrever para a Psychical Research Society3.

Coloquei o pacotinho sobre a penteadeira, sentei-me na cama e fui descalçar as botas. Era como se a imagem de minhas atuais sensações estivesse pintada sobre outra imagem que se esforçasse para sobressair.

— Maldição! Perdi o juízo ou estou em dois lugares ao mesmo tempo?

Seminu, joguei o pó em um copo. Efervesceu e se tornou de uma cor âmbar fluorescente. Bebi tudo. Antes de me deitar, minha mente já havia se tranquilizado. Senti o travesseiro no rosto, e devo ter adormecido logo em seguida.

* * *

Acordei abruptamente de um sonho com bestas estranhas e me encontrei deitado de costas. Provavelmente todos conhecem aquele sonho sombrio e emocional do qual se escapa, de fato acordado, mas estranhamente acuado. Havia um gosto curioso na boca, uma sensação cansada nos membros, uma impressão de desconforto na pele. Pousei a cabeça imóvel no travesseiro, esperando que o sentimento de estranheza e medo passasse, e que então eu adormecesse outra vez. Mas, em vez disso, as sensações misteriosas permaneceram. De início, não percebi nada de errado comigo. Havia uma luz fraca no quarto, tão fraca que era quase a escuridão, e a mobília se destacava nela como nódoas vagas de treva absoluta. Encarei pouco além da roupa de cama sobre mim.

Passou pela minha mente que alguém pudesse ter entrado em meu quarto para roubar meu rolo de dinheiro, porém, após mais alguns momentos deitado, respirando regularmente para simular o sono, percebi que isso era apenas imaginação. No entanto, a desconfortável certeza de que havia algo errado continuava presa a mim. Com esforço, levantei a cabeça do travesseiro e espiei o escuro. O que era eu não podia saber. Olhei para as formas sombrias a meu redor, a maior ou menor escuridão que indicava cortinas, mesa, lareira, prateleiras de livros e assim por diante. Então, comecei a notar algo desconhecido nas formas na escuridão. Teria a cama se virado? Acolá deviam estar as prateleiras, e algo amortalhado e pálido levantava-se ali, algo que não podia ser chamado de prateleira. No entanto, olhei. Era grande demais para ser minha camisa jogada sobre uma cadeira.

Superando o terror infantil, joguei a colcha para o lado e enfiei a perna para fora do leito. Em vez de sair sobre a gaveta embaixo de minha cama, meu pé mal alcançou a borda do colchão. Dei outro passo, como necessário, e sentei-me na beirada da cama. Ao lado dela, deveria haver uma vela, e fósforos sobre a cadeira quebrada. Estiquei a mão e toquei... nada. Sacudi a mão na escuridão, e ela tocou algo pesado pendurado, macio e grosso em sua textura, que farfalhou ao toque. Agarrei e puxei; parecia ser uma cortina suspensa pelo dossel.

Completamente acordado, comecei a perceber que estava em um quarto desconhecido. Fiquei intrigado. Tentei lembrar as circunstâncias da noite anterior, e as encontrei, dessa vez, curiosamente, vívidas em minha memória: a ceia, o recebimento das pequenas embalagens, minha dúvida se estaria intoxicado, meu lento despir, o frio do travesseiro em meu rosto enrubescido. Senti uma súbita desconfiança. Teria sido na última noite ou na anterior a esta? De qualquer modo, este quarto me era estranho, e não sabia dizer como teria ido parar ali. O perfil sombrio e pálido se clareava, e percebi que se tratava de uma janela, com o formato escuro de um espelho de tocador oval contra a fraca intimação da aurora que se infiltrava pela persiana. Fiquei de pé, e fui pego de surpresa por uma singular sensação de fraqueza e desequilíbrio. Com mãos trêmulas esticadas, andei devagar até a janela. Manuseei o vidro, que era grande e com belas arandelas de latão, para achar o cordão da cortina. Não encontrei cordão algum. Por sorte, tomei a borla na mão e rapidamente a veneziana subiu.

Deparei-me com uma paisagem totalmente alheia a mim. A noite nublada, e através do cinza flocado das nuvens amontoadas, a meia-luz do amanhecer se embrenhava. Na borda do céu, a copa de nuvens possuía uma orla vermelho-sangue. Abaixo, tudo escuro e indistinto, montes turvos à distância, uma massa vaga de construções subindo até os pináculos, árvores como tinta esparramada e abaixo da janela um entrelaçado de arbustos negros e caminhos de um cinza-claro. Tão desconhecido que por um momento pensei ainda sonhar. Passei a mão pela mesa de tocador; parecia feita de uma madeira polida, e elaboradamente guarnecida: pequenos frascos de mosaico de vidro e uma escova. Havia também um pequeno objeto esquisito. Era como uma ferradura com projeções lisas e duras sobre um pires. Não encontrei fósforos nem vela.

Voltei os olhos para o cômodo novamente. Agora, com a persiana aberta, espectros baços da mobília saíam da escuridão. Havia uma enorme cama cortinada, e uma lareira a seus pés cuja cornija branca possuía o lustro do mármore.

Apoiei-me na mesa de tocador, fechei os olhos e os abri outra vez, e tentei pensar. A coisa toda era real demais para ser sonho. Estava inclinado a pensar que ainda havia algum tipo de hiato em minha memória, consequência do entorno daquele estranho licor; que eu tinha me deparado com a herança e, talvez, perdido a lembrança de tudo que acontecera após o anúncio da boa fortuna. Talvez, se esperasse um pouco, as coisas se esclareceriam. No entanto, o jantar com o velho Elvesham estava singularmente vivo e recente. A champanhe, os garçons atenciosos, o pó e os licores — apostaria minha própria alma que tudo tinha acontecido havia poucas horas.

E então me ocorreu algo tão trivial e, no entanto, tão terrível que estremeço agora só de pensar. Falei em voz alta. Eu disse:

— Como diabos vim parar aqui? — ... E a voz não era a minha.

Não era a minha, era fraca; a dicção, indistinta; a ressonância em meus ossos faciais, diferente. Então, para me acalmar, passei uma mão sobre a outra, e senti as dobras soltas de pele, a lassidão dos ossos comum da idade.

— Certamente — falei, naquela voz horrível que de algum modo tinha se estabelecido em minha garganta —, certamente isto é um sonho!

Quase tão rápido quanto um gesto involuntário, enfiei os dedos na boca. Meus dentes não estavam lá. Deslizei a ponta dos dedos pela superfície flácida de uma fileira de gengivas engruvinhadas. Fiquei nauseado de consternação e nojo.

Senti então um desejo intenso de me ver, de observar de uma vez por todas o horror total da mudança apavorante que eu tinha sofrido. Vacilei até a cornija e tateei em busca de fósforos. Enquanto o fazia, uma tosse ladrante subiu até minha garganta, e me agarrei à camisola de flanela grossa na qual me encontrei vestido. Não havia fósforos ali, e subitamente percebi que minhas extremidades estavam frias. Espirrando e tossindo, gemendo um pouco, voltei para a cama.

— Certamente um sonho — sussurrei para mim mesmo ao subir de volta ao leito —, certamente um sonho. — Uma repetição senil.

Puxei as cobertas por sobre os ombros até as orelhas e enfiei a mão envelhecida sob o travesseiro, determinado a dormir. Claro que era um sonho. Pela manhã, sonho encerrado, e acordarei forte e vigoroso novamente, para minha juventude e meus estudos. Fechei os olhos, respirei regularmente, e, ainda acordado, comecei a contar lentamente na potência de três.

Mas o que desejei não recebi. Não conseguia dormir. E a persuasão da realidade inexorável da mudança pela qual passara crescia firmemente. Arregalei os olhos, as potências esquecidas, e com os dedos magros sobre as gengivas enrugadas, eu era, de fato, um velho. De algum modo inexplicável tinha atravessado a vida e atingido a velhice, de algum modo tinham-me roubado a melhor parte da vida, do amor, da luta, da força e da esperança. Prostrei-me no travesseiro e tentei me persuadir de que tal alucinação era impossível. Imperceptivelmente, constantemente, a aurora foi se clareando.

Por fim, renunciando ao sono, sentei-me na cama e olhei ao redor. Um lusco-fusco frio tornava todo o quarto visível. Era espaçoso e bem mobiliado, melhor do que qualquer quarto em que já dormira. Uma vela e fósforos se tornaram parcialmente visíveis sobre um pequeno pedestal em um recesso. Joguei a coberta de lado e, tremendo com a crueza da manhã, embora fosse verão, desci e acendi a vela. Então, chacoalhando terrivelmente, tanto que o apagador balançava no candeeiro, cambaleei até o espelho e vi... o rosto de Elvesham! Não foi, no entanto, menos horrível, pois eu já havia vagamente pressentido. Ele já me parecera fisicamente fraco e digno de lástima, mas visto naquele momento, vestido apenas na camisola de flanela grossa, que se abria revelando o pescoço fibroso, visto, naquele momento, como meu próprio corpo, não sou capaz de descrever sua desolada decrepitude. As bochechas encovadas, as dispersas mechas de cabelo cinza-escuro, os olhos remelentos e baços, os lábios trêmulos e rugosos, sendo que o inferior exibia o brilho de seu forro rosa, e aquelas terríveis gengivas escuras. Você que é mente e corpo unidos, em sua idade natural, não é capaz de imaginar o que esta prisão diabólica significou para mim. Ser jovem e cheio de vontade e energia da juventude, e ficar preso, e ser esmagado por esta ruína vacilante de corpo...

Mas me desvio do rumo do relato. Devo ter ficado muito tempo estupefato com a mudança que me ocorreu. Era dia quando consegui voltar a pensar. De um modo inexplicável, eu tinha sido alterado, embora como, exceto por meio de magia, não sabia dizer. E enquanto ponderava, a engenhosidade diabólica de Elvesham surgiu em minha mente. Ficou claro para mim que do mesmo modo que eu me encontrava nele, ele devia estar em posse de meu corpo, de minha força, ou seja, de meu futuro. Mas como provar? Então, enquanto pensava, a questão se tornou tão incrível, mesmo para mim, que minha mente titubeou, e tive que me beliscar, sentir as gengivas desdentadas, olhar-me no espelho e tocar tudo em mim antes que pudesse me aprumar para encarar os fatos outra vez. Seria tudo alucinação? Seria eu, de fato, Elvesham, e ele, eu? Teria eu sonhado com Eden? Existia um Eden? Mas se eu era Elvesham, devia lembrar onde estive na manhã anterior, o nome da cidade onde morava, o que aconteceu antes de o sonho começar. Lutei com meus pensamentos. Recordei-me da estranha duplicidade de minhas lembranças durante a noite. Mas agora minha mente estava limpa. Não o fantasma de lembrança alguma, mas aquelas próprias de Eden.

— Estou insano — gritei com minha voz esganiçada.

Fiquei de pé sem equilíbrio, arrastei os membros frágeis e pesados para o tocador e enfiei a cabeça grisalha em uma bacia de água fria. Duas vezes. Sem sucesso. Sentia sem sombra de dúvida que era de fato Eden, não Elvesham. Mas Eden no corpo de Elvesham!

Se eu fosse homem de outra época, poderia ter considerado meu destino como encantado. Mas nos atuais dias céticos, milagres não são comuns. Isso era algum truque psicológico. O que uma droga e um olhar fixo poderiam provocar, uma droga e um olhar fixo, ou algum tratamento semelhante, poderiam desfazer. Homens já haviam perdido a memória antes. Mas trocar de memória como se trocariam guarda-chuvas! Ri. Ah, mas não um riso saudável, um risinho chiante e senil. Pude imaginar o velho Elvesham rindo de meu apuro, e uma rajada de raiva petulante, pouco comum a mim, arrebatou meus sentimentos. Comecei a vestir com intento as roupas que achei pelo chão, e percebi ao ficar pronto que estava no terno da noite anterior. Abri o guarda-roupa e encontrei trajes mais comuns: um par de calças xadrez e uma camisa antiquada. Coloquei uma venerável cartola em minha cabeça veneranda e, tossindo um pouco pelo esforço, claudiquei até o patamar.

Era então quinze para as seis, e as cortinas estavam fechadas e a casa, silenciosa. O patamar era espaçoso, uma ampla e ricamente carpetada escada descia até a escuridão do hall abaixo, e diante de mim uma porta semiaberta mostrava uma escrivaninha, uma estante de livros giratória, o espaldar de uma cadeira e uma bela coleção de livros encapados, prateleira após prateleira.

— Meu escritório — murmurei e atravessei o patamar. Ao som de minha voz, surgiu um pensamento, e voltei ao quarto para colocar a dentadura. Elas se assentaram com a facilidade de um velho hábito. — Melhor assim — disse, rangendo-a, e retornei ao escritório.

As gavetas da escrivaninha estavam trancadas. Seu tampo removível também. Não via indício de chaves, e não havia nenhuma nos bolsos de minhas calças. Apressei-me para o quarto e vasculhei o terno, e depois os bolsos de todas as roupas que encontrava. Estava muito ansioso, e alguém, ao ver o quarto depois que terminei, poderia ter pensado que ladrões tinham trabalhado ali. Não apenas não havia chaves, mas nem mesmo uma moeda ou um pedaço de papel — exceto pela nota da conta do jantar anterior.

Um estranho cansaço se instalou. Sentei-me e observei as peças de roupa jogadas aqui e ali, os bolsos revirados. Meu primeiro frenesi já tinha se extinguido. A cada momento eu percebia mais e mais a imensa inteligência dos planos de meu inimigo, a ver claramente a desesperança de minha situação. Com esforço, fiquei de pé e corri coxeando para o escritório outra vez. Na escadaria, uma serviçal levantava as persianas. Ela encarou, creio, a expressão em meu rosto. Fechei a porta do escritório atrás de mim, e, com um atiçador, ataquei a escrivaninha. Foi assim que me encontraram. O tampo quebrado, o cadeado estraçalhado, as cartas arrancadas de seus compartimentos e espalhadas pelo cômodo. Em minha fúria senil, tinha jogado canetas e outros objetos de papelaria, e revirado potes de tinta. Além disso, um grande vaso sobre a cornija tinha sido quebrado — não sei como. Não achei talão de cheque ou dinheiro, nem indício algum de como recuperar meu corpo. Eu batia ensandecido as gavetas quando o mordomo, acompanhado de duas serviçais, irrompeu em minha direção.

* * *

Esta é, em resumo, a história de minha transformação. Ninguém dá crédito as minhas asserções frenéticas. Sou tratado como um demente, e mesmo neste instante estou sob vigilância. Mas sou são, absolutamente são, e para prová-lo sentei-me para escrever esta história exatamente como me aconteceu. Pergunto ao leitor se há algum traço de insanidade no estilo ou no método da história que está lendo. Sou um jovem preso no corpo de um velho. Mas o fato é inconcebível para todos. Naturalmente, soo demenciado para aqueles que não creem. Naturalmente não sei os nomes de meus secretários, dos médicos que vêm me visitar, de meus criados e vizinhos, desta cidade (qualquer que seja) onde me encontro. Naturalmente, perco-me em minha própria casa e sofro inconveniências de toda sorte. Naturalmente, faço as mais estranhas perguntas. Naturalmente, choro e grito e sofro um paroxismo de desespero. Não tenho dinheiro nem cheques. O banco não reconhece minha assinatura, pois, apesar da fraqueza de meus músculos, minha caligrafia continua sendo a de Eden. Essas pessoas a minha volta não me deixam ir sozinho ao banco. Parece, na verdade, que não há banco nesta cidade, e que possuo conta em algum lugar de Londres. Parece que Elvesham mantinha o nome de seu procurador em segredo de todos os criados. Não posso ter certeza de nada. Elvesham era, claro, um profundo estudioso da ciência mental, e todas as minhas declarações dos fatos do caso apenas confirmam a teoria de que minha insanidade é o resultado do excesso de reflexão sobre a psicologia. Desvarios de identidade pessoal, sem dúvida! Dois dias atrás, eu era um rapaz saudável, com a vida toda pela frente; agora, sou um velho furioso, desgrenhado e desesperado; vagando por uma enorme, luxuosa e desconhecida casa; vigiado, temido e evitado, como um lunático, por todos a minha volta. E em Londres, Elvesham recomeça a vida em um corpo vigoroso, e com o conhecimento e sabedoria acumulados durante setenta anos. Ele me roubou a vida.

O que aconteceu, não sei ao certo. No escritório, há volumes de notas manuscritas referindo-se principalmente à psicologia da memória, e trechos do que podem ser cálculos ou cifras em símbolos absolutamente desconhecidas por mim. Em algumas passagens, há indicações de que ele também se ocupava com a filosofia da matemática. Creio que tenha transferido todas as suas memórias, o acúmulo do que compunha sua personalidade, de seu velho e abatido cérebro para o meu, e também tenha transferido o que era meu para o seu cortiço paupérrimo. Ou seja, intercambiou corpos. Mas como tal mudança pode ser possível está fora do alcance de meu entendimento. Sempre fui um materialista durante toda a minha vida intelectual, mas aqui, subitamente, há um caso óbvio da separação do homem de sua matéria.

Estou prestes a tentar um experimento desesperado. Sento e escrevo aqui antes de me lançar ao caso. Hoje cedo, com a ajuda de uma faca que subtraí no café da manhã, consegui violar uma gaveta secreta na escrivaninha destruída. Encontrei apenas um pequeno frasco verde contendo um pó branco. Nele, uma etiqueta, e nela, apenas uma palavra: “libertação”. Isto deve ser, mais provavelmente, veneno. Compreendo por que Elvesham colocou veneno em meu caminho, e tenho certeza de que era sua intenção se livrar do único ser vivente que poderia testemunhar contra ele, apenas não entendi o esconderijo cuidadoso. O homem praticamente resolveu o mistério da imortalidade. Exceto por uma vingança do acaso, viverá em meu corpo até a idade avançada, e então, novamente, vai deixar esse corpo de lado e achar outra vítima jovem e forte. Quando se pensa em sua crueldade, é terrível refletir sobre quanto tempo ele vem praticando esse experimento... Há quanto tempo salta de corpo em corpo...? Mas me canso de escrever. O pó é solúvel em água. O sabor não é desagradável.

* * *

Assim termina a narrativa encontrada sobre a escrivaninha do sr. Elvesham. Seu cadáver deitado entre a mesa e a cadeira, caída para trás, provavelmente empurrada pelas derradeiras convulsões do homem. A história foi escrita a lápis e em uma caligrafia demenciada, bem diferente de suas costumeiras letras cuidadosas. Restam apenas dois fatos curiosos a ser registrados. Sem dúvidas, havia uma conexão entre Eden e Elvesham, já que todas as propriedades de Elvesham foram repassadas para o jovem. Porém, ele nunca as herdou. Quando Elvesham cometeu suicídio, Eden já estava, por mais bizarro que seja, morto. Vinte quatro horas antes, uma carruagem o acertara e morrera na hora, no cruzamento movimentado da interseção da Gower com a Euston. De modo que o único ser humano que poderia esclarecer essa narrativa fantástica não estava mais ao alcance das perguntas. Sem mais comentários, deixo a extraordinária questão para o julgamento individual do leitor.

 

1. Aqui o sr. Elvesham faz um trocadilho entre Kummel (alcaravia) com Himmel (céu, paraíso) (N.T.).


2. Digestivo efervescente composto por bicarbonato de sódio, acido tartárico e tartarato de sódio e potássio (N.T.).


3. Sociedade britânica que encoraja a pesquisa científica de fenômenos psíquicos e paranormais.

Escrevo esta história, não com a esperança de que receba crédito, mas, se possível, para que prepare uma saída de fuga para a próxima vítima. Ele, talvez, tome proveito de meu infortúnio. Meu próprio caso, eu sei, é irremediável, e estou agora, de certo modo, preparado para encontrar com meu destino.
Meu nome é Edward George Eden. Nasci em Trentham, Staffordshire; meu pai empregado dos parques da região. Perdi minha mãe aos três anos de idade, e meu pai aos cinco; meu tio, George Eden, então me adotou como seu próprio filho. Ele era solteiro, autodidata e famoso em Birmingham como jornalista empreendedor; ele me educou com generosidade, atiçando minha ambição de sucesso no mundo, e, à sua morte, que ocorreu há quatro anos, deixou-me toda a sua fortuna, algo em torno de quinhentas libras após os gastos do falecimento. Eu tinha então dezoito. Ele me aconselhou em seu testamento a gastar o dinheiro com o término de minha educação. Eu já havia escolhido a profissão médica, e por meio de sua generosidade póstuma e minha boa sorte em uma competição para uma bolsa de estudos, tornei-me um estudante de medicina na University College, em Londres. À época do começo de minha história, eu habitava à rua University, número 11A, em um quartinho no primeiro andar, mal mobiliado e frio, com vista para o terreno de Shoolbred. Morava e dormia nesse quartinho porque queria esticar meus meios até o último centavo.
Levava um par de sapatos para remendar em um sapateiro na Tottenham Court quando encontrei pela primeira vez o velhote de cara amarela, com quem minha vida agora se tornou tão inextricavelmente enredada. Ele estava parado na calçada, encarando com dúvida o número na porta, quando eu a abri. Seus olhos — de uma cor de cinza embaçada e avermelhados sob a pálpebra — caíram sobre meu rosto, e sua fisionomia imediatamente assumiu uma expressão de amabilidade enrugada.

 

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_HISTORIA_O_FALECIDO_SENHOR_ELBESHAM.png

 

 

— Chegou na hora certa — ele disse. — Eu tinha esquecido o número de sua casa. Como vai, sr. Eden?

Fiquei um pouco surpreso com a intimidade do cumprimento, pois eu nunca tinha posto os olhos sobre esse homem. Fiquei um pouco irritado também, por ele ter me pego com as botas embaixo do braço. Ele percebeu minha falta de cordialidade.

— Está pensando quem diabos sou eu, é? Um amigo, posso lhe assegurar. Já o vi antes, embora você não tenha me visto. Podemos conversar em algum lugar?

Hesitei. A precariedade de meu quartinho lá em cima não era assunto para qualquer estranho.

— Talvez — disse —, possamos descer a rua. Infelizmente não posso... — Meu gesto explicou a frase antes que fosse pronunciada.

— Certo — ele concordou e olhou para um lado, depois para o outro. — A rua? Em que direção? — Coloquei minhas botas na passagem. — Olhe aqui! — ele disse abruptamente —, este meu assunto é complicado. Venha almoçar comigo, sr. Eden. Sou um homem velho, muito velho, e não sou bom em explicações, e com essa minha voz esganiçada e a barulheira do trânsito...

Pousou uma persuasiva mão ossuda, que tremia um pouco, sobre meu braço.

Eu não era tão velho para que um homem mais velho não pudesse me pagar um almoço. No entanto, ao mesmo tempo, não estava inteiramente satisfeito com o convite abrupto.

— Eu prefiro... — comecei.

— Mas eu prefiro — ele me interrompeu —, e certamente meus cabelos grisalhos merecem a civilidade.

E assim consenti e fui com ele.

Ele me levou ao Blavitiski’s; eu tive que andar lentamente para me adaptar às suas passadas; e durante um almoço sem igual em sabor, ele se esquivou de minha principal pergunta, e eu pude reparar mais em sua aparência. Seu rosto barbeado rente era magro e enrugado; seus lábios murchos caíam sobre dentes postiços, e seu cabelo branco era ralo e um tanto quanto comprido; parecia pequeno para mim — embora certamente a maioria das pessoas pareça pequena para mim —, e seus ombros eram curvos e caídos. E observando-o, não pude deixar de perceber que ele também tomava nota, correndo os olhos, com um curioso toque de ganância, sobre mim, de meus ombros largos para minhas mãos bronzeadas e depois de volta a meu rosto sardento.

— E agora — disse ele ao acendermos nossos cigarros —, devo contar-lhe sobre minha questão. — Devo contar-lhe que sou um homem velho, muito velho. — Pausou por um instante. — E acontece que tenho dinheiro que devo deixar, e não tenho filho algum para quem deixá-lo.

Pensei no truque da confiança e decidi ficar alerto aos vestígios de minhas quinhentas libras. Ele prosseguiu sobre a extensão de sua solidão, e a dificuldade que possuía em encontrar um fim adequado para seu dinheiro.

— Pesei este plano e aquele, caridades, instituições e bolsas de estudo e bibliotecas, e cheguei enfim a esta conclusão — fixou os olhos em meu rosto —, de que devo encontrar um jovem, ambicioso, de mente pura, pobre, saudável de mente e de corpo, e, em resumo, fazer dele meu herdeiro, dar-lhe tudo que possuo. — Ele repetiu: — Dar-lhe tudo que possuo. Para que ele possa subitamente ser erguido de todos os problemas e dificuldades nas quais suas disposições foram educadas, até alcançar a liberdade e a influência.

Tentei parecer desinteressado. Com hipocrisia transparente, falei:

— E quer minha ajuda, meus serviços profissionais talvez, para encontrar tal pessoa.

Ele sorriu, e me olhou por sobre seu cigarro, e eu ri de sua exposição muda de minha fingida modéstia.

— Que carreira tal homem pode ter! — ele disse. — Encho-me de inveja ao pensar como acumulei o que outro pode gastar... Mas há condições, claro, deveres impostos. Ele deve, por exemplo, pegar meu nome. Não pode esperar tudo sem nada em troca. E devo conhecer todas as circunstâncias de sua vida antes de aceitá-lo. Ele deve ser saudável. Eu preciso conhecer sua ascendência, como seus pais e avós morreram, fazer a mais rígida das investigações a respeito de sua moralidade.

Isso modificou um pouco minhas íntimas parabenizações secretas.

— E eu entendo — falei — que eu...

— Sim — ele disse, quase com ferocidade. — Você. Você.

Não respondi palavra. Minha imaginação dançava, furiosa, meu ceticismo inato inútil para modificar seus enlevos. Não havia uma partícula de gratidão em minha mente — não sabia o que dizer nem como dizer.

— Mas por que eu? — perguntei, por fim.

Por acaso, o professor Haslar falara de mim, como exemplo de um rapaz saudável e são, e ele desejava, tanto quanto possível, deixar seu dinheiro onde saúde e integridade fossem garantidas.

Esse foi meu primeiro encontro com o velhinho. Ele mantinha mistério a seu respeito; disse que ainda não informaria seu nome, e depois que respondi algumas de suas perguntas, me deixou na entrada do Blavitiski. Notei que retirou um punhado de moedas de ouro do bolso quando chegou a hora de pagar pelo almoço. Sua insistência na saúde corporal era curiosa. De acordo com nosso arranjo, nesse mesmo dia contratei um seguro de vida na Loyal Insurance Company, por uma bela quantia, e na semana seguinte fui exaustivamente atropelado pelos profissionais médicos dessa companhia. Nem isso o satisfez, e insistiu que eu fosse reexaminado pelo grande dr. Henderson.

Foi na sexta-feira da semana de Pentecostes que ele tomou a decisão. Pediu-me para descer, bem tarde da noite — quase nove —, tirando-me da minha compenetração nas equações químicas para o exame preliminar científico. Estava de pé na passagem, sob uma fraca lâmpada de gás, e seu rosto era uma interação grotesca de sombras. Parecia mais curvo do que a primeira vez em que o vi, e suas bochechas levemente encovadas.

Sua voz tremia de emoção:

— Tudo satisfatório, sr. Eden. Tudo muito, muito satisfatório. E esta noite, esta noite deve jantar comigo para celebrar sua... ascensão. — Foi interrompido pela tosse. — Não precisará esperar muito também — continuou, limpando os lábios com o lenço e pegando minha mão com a garra ossuda e longa que estava desocupada. — Certamente... não muito a esperar.

Fomos até a rua e chamamos uma carruagem. Lembro todos os incidentes desse percurso vividamente: a movimentação ligeira e confortável, o vívido contraste entre gás, óleo e eletricidade, as multidões nas ruas, o lugar na Regent para onde fomos e o suntuoso jantar servido ali. De início, fique desconcertado pelo olhar do garçom bem-vestido para as minhas vestes grosseiras, incomodado pelos caroços nas azeitonas, mas conforme a champanhe esquentava meu sangue, minha confiança se renovava. No começo, o velho falou sobre si. Já tinha me contado seu nome na carruagem; era Egbert Elvesham, o grande filósofo, cujo nome eu conhecia desde mancebo na escola. Parecia incrível para mim que este homem, cuja inteligência havia tão cedo dominado a minha, essa grande abstração, de repente se concretizasse como uma figura conhecida e decrépita. Ouso dizer que qualquer rapaz que tenha de repente se encontrado em meio a celebridades já sentiu um pouco de minha decepção. Contou-me sobre o futuro que os débeis córregos de sua vida deixariam em breve a seco para mim: casas, direitos autorais, investimentos. Nunca suspeitei que filósofos fossem tão ricos. Ele me observava beber e comer com uma pontada de inveja.

— Que capacidade para viver que possui! — E então, com um suspiro, um suspiro de alívio talvez: — Não vai demorar.

— Certo — disse eu, a cabeça já nadando em champanhe. — Tenho um futuro talvez... de um tipo razoavelmente satisfatório, graças ao senhor. Terei a honra de seu nome. Mas o senhor tem um passado. Tamanho passado que vale por todo o meu futuro.

Ele balançou a cabeça e sorriu, como pensei no momento, com gratidão um pouco triste pela minha admiração envaidecedora.

— Esse futuro — ele disse —, você, de fato, o mudaria? — O garçom veio com licores. — Não vai se importar, talvez, de tomar meu nome, minha posição, mas tomaria, por vontade própria, meus anos?

— Com suas façanhas — falei, cortês.

Ele sorriu outra vez.

— Kummel... os dois — ele disse para o garçom e voltou a atenção para um pequeno envelope que tirou do bolso. — Esta hora — falou —, esta hora após um jantar é a hora das pequenas coisas. Aqui está um pedaço de minha sabedoria inédita. — Abriu o envelope com os dedos amarelos e trêmulos e mostrou um pouco de pó rosado no papel. — Isto — continuou —, bem, você deve saber o que é. Mas Kummel, coloque uma pitada desse pó, e se torna Himmel1.

Seus grandes olhos cor de cinza observaram os meus com uma expressão inescrutável.

Foi um pouco chocante descobrir que este grande mestre se dedicava aos sabores dos licores. No entanto, fingi interesse nessa sua fraqueza, pois estava bêbado o suficiente para uma pequena adulação.

Ele dividiu o pó entre os dois copinhos, e, ficando subitamente de pé, com uma dignidade estranha e inesperada, estendeu a mão para mim. Imitei seu gesto, e os copos tilintaram.

— Para uma sucessão rápida — disse ele e levou o copo aos lábios.

— Isso não — apressei-me em dizer. — Isso não.

Interrompeu o movimento com o licor à altura do queixo, olhos fulminando os meus.

— Para uma vida longa — falei.

Ele hesitou.

— Para uma vida longa — repetiu, com um súbito ganido de gargalhada.

Com olhos fixos um no outro, viramos os copinhos. Seus olhos olharam bem dentro dos meus, e enquanto eu secava o líquido, sentia uma sensação intensa e curiosa. O primeiro golpe provocou tumulto em meu cérebro; eu parecia sentir um rebuliço físico dentro de meu crânio, e um zumbido fervilhante encheu meus ouvidos. Não notei o sabor em minha boca, o aroma em minha garganta; vi apenas a intensidade cinza do olhar perfurando o meu. A secura, a confusão mental, o barulho e a agitação em minha cabeça pareciam infinitos. Impressões vagas e curiosas de coisas semiesquecidas dançavam e desapareciam na beirada de minha consciência. Por fim, ele quebrou o feitiço. Com um suspiro súbito e explosivo, baixou o copo.

— E? — perguntou.

— Glorioso — respondi, embora não tivesse saboreado a substância.

Minha cabeça girava. Sentei-me. Meu cérebro estava um caos. Então minha percepção clareou e se intensificou, como se eu visse as coisas em um espelho côncavo. Seus modos pareciam ter se tornado nervosos e apressados. Pegou o relógio e fez um careta.

— Onze e sete! E esta noite eu devo... Sete e vinte e cinco. Waterloo! Preciso ir!

Ele pediu a conta e se atrapalhou com o casaco. Garçons prestativos vieram ajudá-lo. Em outro momento, despedia-me, sobre a plataforma de uma carruagem, e ainda com uma sensação absurda de nitidez detalhada, como se — como posso dizer? — eu não apenas visse, mas sentisse através de um binóculo de ópera em posição invertida.

— Aquela substância — ele disse e colocou a mão à testa —, não deveria lhe ter oferecido. Vai estourar sua cabeça amanhã. Espere um minuto. Aqui. — Ele me entregou um pacotinho fino que parecia pó de Seidlitz2. — Dilua na água e tome ao se deitar. A outra substância era uma droga. Atenção: somente ao se deitar. Vai desanuviar sua mente. Só isso. Mais um aperto... Futurus! —Segurei a garra encarquilhada. — Adeus — ele se despediu, e pelas pálpebras descaídas julguei que ele também estava um pouco sob a influência daquela beberagem destorcedora de cérebros.

De súbito, lembrou-se de algo, passou a mão sobre o bolso da frente do paletó e de lá tirou outra embalagem, um cilindro do tamanho e formato de um tubo de creme para barbear.

— Aqui — disse. — Quase esqueci. Não abra até amanhã... mas leve já.

Era tão pesado que quase o derrubei.

— Certinho! — falei, e ele sorriu para mim através da janela da carruagem enquanto o condutor estalava o chicote para acordar seu cavalo.

Era um pacote branco, com selos vermelhos, um de cada lado e ao longo da beirada. “Se não é dinheiro, é platina ou chumbo”, pensei. Enfiei com cuidado meticuloso no bolso, e com o cérebro rodopiante fui para casa andando em meio aos vagabundos da rua Regent e pelas ruelas além da rua Portland. Lembro com vivacidade das sensações dessa caminhada, por mais estranhas que tenham sido. Ainda estava tão alterado que pude perceber meu estranho estado mental e pensar se a substância que ingerira era ópio, uma droga com a qual não tinha experiência. É difícil agora descrever a peculiaridade de minha alteridade mental — duplicidade mental mal dá conta de expressar. Ao andar pela Regent, notei em minha mente a bizarra percepção de que estava na estação Waterloo, e tive o estranho impulso de entrar na Politécnica como se subisse em um trem. Esfreguei os olhos com o nó do dedo, e era a Regent. Como posso descrever? Você vê um ator habilidoso olhando para você, ele faz um careta e, olha!, outra pessoa. Seria muito extravagante dizer que me parecia que a rua Regent tivesse, por um momento, feito isso? Depois, certo de que era a Regent outra vez, fiquei confuso com reminiscências fantásticas que brotaram em mim. “Trinta anos atrás”, pensei, “foi aqui que briguei com meu irmão”. Então caí na gargalhada, para a surpresa e excitação de um grupo de gatunos da noite. Trinta anos antes, eu não existia, e nunca na minha vida tinha acertado um irmão. A substância era certamente loucura líquida, pois o arrependimento contundente pelo irmão falecido ainda se agarrava a mim.

Ao longo da Portland, a insânia ressurgiu. Comecei a me lembrar de oficinas desaparecidas e a comparar a rua com o que ela já tinha sido. Pensamentos confusos e alterados são compreensíveis depois da bebida, mas o que me intrigava eram essas memórias fantasmas curiosamente vivazes que tinham se infiltrado em minha mente, e não apenas as memórias infiltradas, mas também as que tinham escoado. Parei em frente ao Stevens’, o negociante de artefatos de história natural, e matutei para lembrar qual era sua relação comigo. Um ônibus passou e soou exatamente como o estrondo de um trem. Eu parecia estar afundando em um poço escuro e distante para alcançar a lembrança.

— Claro — falei em voz alta, por fim —, ele me prometeu três rãs para amanhã. Estranho eu ter esquecido.

Ainda mostram lanternas mágicas a crianças? Lembro que uma imagem aparecia primeiramente como um fantasma esmaecido, e depois crescia até expelir outra. Desse mesmo modo, parecia-me que um conjunto fantasma de novas sensações batalhava com aquelas de meu eu comum.

Passei pela rua Euston até a Tottenham Court, intrigado, e um pouco assustado, e mal notei o trajeto incomum que tomava, pois geralmente eu cortava pelo emaranhado de ruelas. Virei na University, para descobrir que tinha esquecido o número. Apenas com um esforço enorme recuperei 11A, e mesmo assim me pareceu algo que sei lá quem havia me dito. Tentei firmar minha mente rememorando os acontecimentos do jantar, e por nada nesse mundo pude conjurar uma imagem do rosto de meu anfitrião; vi-o apenas como um perfil ensombrecido, como alguém que se olha pelo reflexo do vidro de uma janela. No lugar dele, de algum modo, eu obtinha uma curiosa versão exterior de mim mesmo, sentado à mesa, enrubescido e falante, com olhos iluminados.

— Devo tomar este outro pó — falei. — Isto está impossível.

Fui para o lado errado do hall atrás de vela e fósforos, e não sabia ao certo em que andar ficava meu quarto.

— Estou bêbado, disso tenho certeza. — E vacilei sem necessidade pela escada para sustentar a hipótese.

À primeira vista, meu quarto não me era familiar.

— Que chiqueiro! — comentei ao olhar em volta.

O esforço pareceu me trazer de volta, e a estranha característica fantasmagórica se tornou algo concreto. Lá estava o velho armário de vidro, com minhas anotações nos albúmens colados no canto da moldura, minhas velhas roupas cotidianas esparramadas pelo chão. E, no entanto, não era tão real, afinal. Eu sentia uma persuasão absurda tentando entrar em minha mente, a de que estava em um trem que parava, e eu olhava pela janela para uma estação desconhecida. Agarrei o gradil da cama com força para me reafirmar.

— É clarividência, talvez — falei. — Preciso escrever para a Psychical Research Society3.

Coloquei o pacotinho sobre a penteadeira, sentei-me na cama e fui descalçar as botas. Era como se a imagem de minhas atuais sensações estivesse pintada sobre outra imagem que se esforçasse para sobressair.

— Maldição! Perdi o juízo ou estou em dois lugares ao mesmo tempo?

Seminu, joguei o pó em um copo. Efervesceu e se tornou de uma cor âmbar fluorescente. Bebi tudo. Antes de me deitar, minha mente já havia se tranquilizado. Senti o travesseiro no rosto, e devo ter adormecido logo em seguida.

* * *

Acordei abruptamente de um sonho com bestas estranhas e me encontrei deitado de costas. Provavelmente todos conhecem aquele sonho sombrio e emocional do qual se escapa, de fato acordado, mas estranhamente acuado. Havia um gosto curioso na boca, uma sensação cansada nos membros, uma impressão de desconforto na pele. Pousei a cabeça imóvel no travesseiro, esperando que o sentimento de estranheza e medo passasse, e que então eu adormecesse outra vez. Mas, em vez disso, as sensações misteriosas permaneceram. De início, não percebi nada de errado comigo. Havia uma luz fraca no quarto, tão fraca que era quase a escuridão, e a mobília se destacava nela como nódoas vagas de treva absoluta. Encarei pouco além da roupa de cama sobre mim.

Passou pela minha mente que alguém pudesse ter entrado em meu quarto para roubar meu rolo de dinheiro, porém, após mais alguns momentos deitado, respirando regularmente para simular o sono, percebi que isso era apenas imaginação. No entanto, a desconfortável certeza de que havia algo errado continuava presa a mim. Com esforço, levantei a cabeça do travesseiro e espiei o escuro. O que era eu não podia saber. Olhei para as formas sombrias a meu redor, a maior ou menor escuridão que indicava cortinas, mesa, lareira, prateleiras de livros e assim por diante. Então, comecei a notar algo desconhecido nas formas na escuridão. Teria a cama se virado? Acolá deviam estar as prateleiras, e algo amortalhado e pálido levantava-se ali, algo que não podia ser chamado de prateleira. No entanto, olhei. Era grande demais para ser minha camisa jogada sobre uma cadeira.

Superando o terror infantil, joguei a colcha para o lado e enfiei a perna para fora do leito. Em vez de sair sobre a gaveta embaixo de minha cama, meu pé mal alcançou a borda do colchão. Dei outro passo, como necessário, e sentei-me na beirada da cama. Ao lado dela, deveria haver uma vela, e fósforos sobre a cadeira quebrada. Estiquei a mão e toquei... nada. Sacudi a mão na escuridão, e ela tocou algo pesado pendurado, macio e grosso em sua textura, que farfalhou ao toque. Agarrei e puxei; parecia ser uma cortina suspensa pelo dossel.

Completamente acordado, comecei a perceber que estava em um quarto desconhecido. Fiquei intrigado. Tentei lembrar as circunstâncias da noite anterior, e as encontrei, dessa vez, curiosamente, vívidas em minha memória: a ceia, o recebimento das pequenas embalagens, minha dúvida se estaria intoxicado, meu lento despir, o frio do travesseiro em meu rosto enrubescido. Senti uma súbita desconfiança. Teria sido na última noite ou na anterior a esta? De qualquer modo, este quarto me era estranho, e não sabia dizer como teria ido parar ali. O perfil sombrio e pálido se clareava, e percebi que se tratava de uma janela, com o formato escuro de um espelho de tocador oval contra a fraca intimação da aurora que se infiltrava pela persiana. Fiquei de pé, e fui pego de surpresa por uma singular sensação de fraqueza e desequilíbrio. Com mãos trêmulas esticadas, andei devagar até a janela. Manuseei o vidro, que era grande e com belas arandelas de latão, para achar o cordão da cortina. Não encontrei cordão algum. Por sorte, tomei a borla na mão e rapidamente a veneziana subiu.

Deparei-me com uma paisagem totalmente alheia a mim. A noite nublada, e através do cinza flocado das nuvens amontoadas, a meia-luz do amanhecer se embrenhava. Na borda do céu, a copa de nuvens possuía uma orla vermelho-sangue. Abaixo, tudo escuro e indistinto, montes turvos à distância, uma massa vaga de construções subindo até os pináculos, árvores como tinta esparramada e abaixo da janela um entrelaçado de arbustos negros e caminhos de um cinza-claro. Tão desconhecido que por um momento pensei ainda sonhar. Passei a mão pela mesa de tocador; parecia feita de uma madeira polida, e elaboradamente guarnecida: pequenos frascos de mosaico de vidro e uma escova. Havia também um pequeno objeto esquisito. Era como uma ferradura com projeções lisas e duras sobre um pires. Não encontrei fósforos nem vela.

Voltei os olhos para o cômodo novamente. Agora, com a persiana aberta, espectros baços da mobília saíam da escuridão. Havia uma enorme cama cortinada, e uma lareira a seus pés cuja cornija branca possuía o lustro do mármore.

Apoiei-me na mesa de tocador, fechei os olhos e os abri outra vez, e tentei pensar. A coisa toda era real demais para ser sonho. Estava inclinado a pensar que ainda havia algum tipo de hiato em minha memória, consequência do entorno daquele estranho licor; que eu tinha me deparado com a herança e, talvez, perdido a lembrança de tudo que acontecera após o anúncio da boa fortuna. Talvez, se esperasse um pouco, as coisas se esclareceriam. No entanto, o jantar com o velho Elvesham estava singularmente vivo e recente. A champanhe, os garçons atenciosos, o pó e os licores — apostaria minha própria alma que tudo tinha acontecido havia poucas horas.

E então me ocorreu algo tão trivial e, no entanto, tão terrível que estremeço agora só de pensar. Falei em voz alta. Eu disse:

— Como diabos vim parar aqui? — ... E a voz não era a minha.

Não era a minha, era fraca; a dicção, indistinta; a ressonância em meus ossos faciais, diferente. Então, para me acalmar, passei uma mão sobre a outra, e senti as dobras soltas de pele, a lassidão dos ossos comum da idade.

— Certamente — falei, naquela voz horrível que de algum modo tinha se estabelecido em minha garganta —, certamente isto é um sonho!

Quase tão rápido quanto um gesto involuntário, enfiei os dedos na boca. Meus dentes não estavam lá. Deslizei a ponta dos dedos pela superfície flácida de uma fileira de gengivas engruvinhadas. Fiquei nauseado de consternação e nojo.

Senti então um desejo intenso de me ver, de observar de uma vez por todas o horror total da mudança apavorante que eu tinha sofrido. Vacilei até a cornija e tateei em busca de fósforos. Enquanto o fazia, uma tosse ladrante subiu até minha garganta, e me agarrei à camisola de flanela grossa na qual me encontrei vestido. Não havia fósforos ali, e subitamente percebi que minhas extremidades estavam frias. Espirrando e tossindo, gemendo um pouco, voltei para a cama.

— Certamente um sonho — sussurrei para mim mesmo ao subir de volta ao leito —, certamente um sonho. — Uma repetição senil.

Puxei as cobertas por sobre os ombros até as orelhas e enfiei a mão envelhecida sob o travesseiro, determinado a dormir. Claro que era um sonho. Pela manhã, sonho encerrado, e acordarei forte e vigoroso novamente, para minha juventude e meus estudos. Fechei os olhos, respirei regularmente, e, ainda acordado, comecei a contar lentamente na potência de três.

Mas o que desejei não recebi. Não conseguia dormir. E a persuasão da realidade inexorável da mudança pela qual passara crescia firmemente. Arregalei os olhos, as potências esquecidas, e com os dedos magros sobre as gengivas enrugadas, eu era, de fato, um velho. De algum modo inexplicável tinha atravessado a vida e atingido a velhice, de algum modo tinham-me roubado a melhor parte da vida, do amor, da luta, da força e da esperança. Prostrei-me no travesseiro e tentei me persuadir de que tal alucinação era impossível. Imperceptivelmente, constantemente, a aurora foi se clareando.

Por fim, renunciando ao sono, sentei-me na cama e olhei ao redor. Um lusco-fusco frio tornava todo o quarto visível. Era espaçoso e bem mobiliado, melhor do que qualquer quarto em que já dormira. Uma vela e fósforos se tornaram parcialmente visíveis sobre um pequeno pedestal em um recesso. Joguei a coberta de lado e, tremendo com a crueza da manhã, embora fosse verão, desci e acendi a vela. Então, chacoalhando terrivelmente, tanto que o apagador balançava no candeeiro, cambaleei até o espelho e vi... o rosto de Elvesham! Não foi, no entanto, menos horrível, pois eu já havia vagamente pressentido. Ele já me parecera fisicamente fraco e digno de lástima, mas visto naquele momento, vestido apenas na camisola de flanela grossa, que se abria revelando o pescoço fibroso, visto, naquele momento, como meu próprio corpo, não sou capaz de descrever sua desolada decrepitude. As bochechas encovadas, as dispersas mechas de cabelo cinza-escuro, os olhos remelentos e baços, os lábios trêmulos e rugosos, sendo que o inferior exibia o brilho de seu forro rosa, e aquelas terríveis gengivas escuras. Você que é mente e corpo unidos, em sua idade natural, não é capaz de imaginar o que esta prisão diabólica significou para mim. Ser jovem e cheio de vontade e energia da juventude, e ficar preso, e ser esmagado por esta ruína vacilante de corpo...

Mas me desvio do rumo do relato. Devo ter ficado muito tempo estupefato com a mudança que me ocorreu. Era dia quando consegui voltar a pensar. De um modo inexplicável, eu tinha sido alterado, embora como, exceto por meio de magia, não sabia dizer. E enquanto ponderava, a engenhosidade diabólica de Elvesham surgiu em minha mente. Ficou claro para mim que do mesmo modo que eu me encontrava nele, ele devia estar em posse de meu corpo, de minha força, ou seja, de meu futuro. Mas como provar? Então, enquanto pensava, a questão se tornou tão incrível, mesmo para mim, que minha mente titubeou, e tive que me beliscar, sentir as gengivas desdentadas, olhar-me no espelho e tocar tudo em mim antes que pudesse me aprumar para encarar os fatos outra vez. Seria tudo alucinação? Seria eu, de fato, Elvesham, e ele, eu? Teria eu sonhado com Eden? Existia um Eden? Mas se eu era Elvesham, devia lembrar onde estive na manhã anterior, o nome da cidade onde morava, o que aconteceu antes de o sonho começar. Lutei com meus pensamentos. Recordei-me da estranha duplicidade de minhas lembranças durante a noite. Mas agora minha mente estava limpa. Não o fantasma de lembrança alguma, mas aquelas próprias de Eden.

— Estou insano — gritei com minha voz esganiçada.

Fiquei de pé sem equilíbrio, arrastei os membros frágeis e pesados para o tocador e enfiei a cabeça grisalha em uma bacia de água fria. Duas vezes. Sem sucesso. Sentia sem sombra de dúvida que era de fato Eden, não Elvesham. Mas Eden no corpo de Elvesham!

Se eu fosse homem de outra época, poderia ter considerado meu destino como encantado. Mas nos atuais dias céticos, milagres não são comuns. Isso era algum truque psicológico. O que uma droga e um olhar fixo poderiam provocar, uma droga e um olhar fixo, ou algum tratamento semelhante, poderiam desfazer. Homens já haviam perdido a memória antes. Mas trocar de memória como se trocariam guarda-chuvas! Ri. Ah, mas não um riso saudável, um risinho chiante e senil. Pude imaginar o velho Elvesham rindo de meu apuro, e uma rajada de raiva petulante, pouco comum a mim, arrebatou meus sentimentos. Comecei a vestir com intento as roupas que achei pelo chão, e percebi ao ficar pronto que estava no terno da noite anterior. Abri o guarda-roupa e encontrei trajes mais comuns: um par de calças xadrez e uma camisa antiquada. Coloquei uma venerável cartola em minha cabeça veneranda e, tossindo um pouco pelo esforço, claudiquei até o patamar.

Era então quinze para as seis, e as cortinas estavam fechadas e a casa, silenciosa. O patamar era espaçoso, uma ampla e ricamente carpetada escada descia até a escuridão do hall abaixo, e diante de mim uma porta semiaberta mostrava uma escrivaninha, uma estante de livros giratória, o espaldar de uma cadeira e uma bela coleção de livros encapados, prateleira após prateleira.

— Meu escritório — murmurei e atravessei o patamar. Ao som de minha voz, surgiu um pensamento, e voltei ao quarto para colocar a dentadura. Elas se assentaram com a facilidade de um velho hábito. — Melhor assim — disse, rangendo-a, e retornei ao escritório.

As gavetas da escrivaninha estavam trancadas. Seu tampo removível também. Não via indício de chaves, e não havia nenhuma nos bolsos de minhas calças. Apressei-me para o quarto e vasculhei o terno, e depois os bolsos de todas as roupas que encontrava. Estava muito ansioso, e alguém, ao ver o quarto depois que terminei, poderia ter pensado que ladrões tinham trabalhado ali. Não apenas não havia chaves, mas nem mesmo uma moeda ou um pedaço de papel — exceto pela nota da conta do jantar anterior.

Um estranho cansaço se instalou. Sentei-me e observei as peças de roupa jogadas aqui e ali, os bolsos revirados. Meu primeiro frenesi já tinha se extinguido. A cada momento eu percebia mais e mais a imensa inteligência dos planos de meu inimigo, a ver claramente a desesperança de minha situação. Com esforço, fiquei de pé e corri coxeando para o escritório outra vez. Na escadaria, uma serviçal levantava as persianas. Ela encarou, creio, a expressão em meu rosto. Fechei a porta do escritório atrás de mim, e, com um atiçador, ataquei a escrivaninha. Foi assim que me encontraram. O tampo quebrado, o cadeado estraçalhado, as cartas arrancadas de seus compartimentos e espalhadas pelo cômodo. Em minha fúria senil, tinha jogado canetas e outros objetos de papelaria, e revirado potes de tinta. Além disso, um grande vaso sobre a cornija tinha sido quebrado — não sei como. Não achei talão de cheque ou dinheiro, nem indício algum de como recuperar meu corpo. Eu batia ensandecido as gavetas quando o mordomo, acompanhado de duas serviçais, irrompeu em minha direção.

* * *

Esta é, em resumo, a história de minha transformação. Ninguém dá crédito as minhas asserções frenéticas. Sou tratado como um demente, e mesmo neste instante estou sob vigilância. Mas sou são, absolutamente são, e para prová-lo sentei-me para escrever esta história exatamente como me aconteceu. Pergunto ao leitor se há algum traço de insanidade no estilo ou no método da história que está lendo. Sou um jovem preso no corpo de um velho. Mas o fato é inconcebível para todos. Naturalmente, soo demenciado para aqueles que não creem. Naturalmente não sei os nomes de meus secretários, dos médicos que vêm me visitar, de meus criados e vizinhos, desta cidade (qualquer que seja) onde me encontro. Naturalmente, perco-me em minha própria casa e sofro inconveniências de toda sorte. Naturalmente, faço as mais estranhas perguntas. Naturalmente, choro e grito e sofro um paroxismo de desespero. Não tenho dinheiro nem cheques. O banco não reconhece minha assinatura, pois, apesar da fraqueza de meus músculos, minha caligrafia continua sendo a de Eden. Essas pessoas a minha volta não me deixam ir sozinho ao banco. Parece, na verdade, que não há banco nesta cidade, e que possuo conta em algum lugar de Londres. Parece que Elvesham mantinha o nome de seu procurador em segredo de todos os criados. Não posso ter certeza de nada. Elvesham era, claro, um profundo estudioso da ciência mental, e todas as minhas declarações dos fatos do caso apenas confirmam a teoria de que minha insanidade é o resultado do excesso de reflexão sobre a psicologia. Desvarios de identidade pessoal, sem dúvida! Dois dias atrás, eu era um rapaz saudável, com a vida toda pela frente; agora, sou um velho furioso, desgrenhado e desesperado; vagando por uma enorme, luxuosa e desconhecida casa; vigiado, temido e evitado, como um lunático, por todos a minha volta. E em Londres, Elvesham recomeça a vida em um corpo vigoroso, e com o conhecimento e sabedoria acumulados durante setenta anos. Ele me roubou a vida.

O que aconteceu, não sei ao certo. No escritório, há volumes de notas manuscritas referindo-se principalmente à psicologia da memória, e trechos do que podem ser cálculos ou cifras em símbolos absolutamente desconhecidas por mim. Em algumas passagens, há indicações de que ele também se ocupava com a filosofia da matemática. Creio que tenha transferido todas as suas memórias, o acúmulo do que compunha sua personalidade, de seu velho e abatido cérebro para o meu, e também tenha transferido o que era meu para o seu cortiço paupérrimo. Ou seja, intercambiou corpos. Mas como tal mudança pode ser possível está fora do alcance de meu entendimento. Sempre fui um materialista durante toda a minha vida intelectual, mas aqui, subitamente, há um caso óbvio da separação do homem de sua matéria.

Estou prestes a tentar um experimento desesperado. Sento e escrevo aqui antes de me lançar ao caso. Hoje cedo, com a ajuda de uma faca que subtraí no café da manhã, consegui violar uma gaveta secreta na escrivaninha destruída. Encontrei apenas um pequeno frasco verde contendo um pó branco. Nele, uma etiqueta, e nela, apenas uma palavra: “libertação”. Isto deve ser, mais provavelmente, veneno. Compreendo por que Elvesham colocou veneno em meu caminho, e tenho certeza de que era sua intenção se livrar do único ser vivente que poderia testemunhar contra ele, apenas não entendi o esconderijo cuidadoso. O homem praticamente resolveu o mistério da imortalidade. Exceto por uma vingança do acaso, viverá em meu corpo até a idade avançada, e então, novamente, vai deixar esse corpo de lado e achar outra vítima jovem e forte. Quando se pensa em sua crueldade, é terrível refletir sobre quanto tempo ele vem praticando esse experimento... Há quanto tempo salta de corpo em corpo...? Mas me canso de escrever. O pó é solúvel em água. O sabor não é desagradável.

* * *

Assim termina a narrativa encontrada sobre a escrivaninha do sr. Elvesham. Seu cadáver deitado entre a mesa e a cadeira, caída para trás, provavelmente empurrada pelas derradeiras convulsões do homem. A história foi escrita a lápis e em uma caligrafia demenciada, bem diferente de suas costumeiras letras cuidadosas. Restam apenas dois fatos curiosos a ser registrados. Sem dúvidas, havia uma conexão entre Eden e Elvesham, já que todas as propriedades de Elvesham foram repassadas para o jovem. Porém, ele nunca as herdou. Quando Elvesham cometeu suicídio, Eden já estava, por mais bizarro que seja, morto. Vinte quatro horas antes, uma carruagem o acertara e morrera na hora, no cruzamento movimentado da interseção da Gower com a Euston. De modo que o único ser humano que poderia esclarecer essa narrativa fantástica não estava mais ao alcance das perguntas. Sem mais comentários, deixo a extraordinária questão para o julgamento individual do leitor.

 

1. Aqui o sr. Elvesham faz um trocadilho entre Kummel (alcaravia) com Himmel (céu, paraíso) (N.T.).


2. Digestivo efervescente composto por bicarbonato de sódio, acido tartárico e tartarato de sódio e potássio (N.T.).


3. Sociedade britânica que encoraja a pesquisa científica de fenômenos psíquicos e paranormais.

Escrevo esta história, não com a esperança de que receba crédito, mas, se possível, para que prepare uma saída de fuga para a próxima vítima. Ele, talvez, tome proveito de meu infortúnio. Meu próprio caso, eu sei, é irremediável, e estou agora, de certo modo, preparado para encontrar com meu destino.
Meu nome é Edward George Eden. Nasci em Trentham, Staffordshire; meu pai empregado dos parques da região. Perdi minha mãe aos três anos de idade, e meu pai aos cinco; meu tio, George Eden, então me adotou como seu próprio filho. Ele era solteiro, autodidata e famoso em Birmingham como jornalista empreendedor; ele me educou com generosidade, atiçando minha ambição de sucesso no mundo, e, à sua morte, que ocorreu há quatro anos, deixou-me toda a sua fortuna, algo em torno de quinhentas libras após os gastos do falecimento. Eu tinha então dezoito. Ele me aconselhou em seu testamento a gastar o dinheiro com o término de minha educação. Eu já havia escolhido a profissão médica, e por meio de sua generosidade póstuma e minha boa sorte em uma competição para uma bolsa de estudos, tornei-me um estudante de medicina na University College, em Londres. À época do começo de minha história, eu habitava à rua University, número 11A, em um quartinho no primeiro andar, mal mobiliado e frio, com vista para o terreno de Shoolbred. Morava e dormia nesse quartinho porque queria esticar meus meios até o último centavo.
Levava um par de sapatos para remendar em um sapateiro na Tottenham Court quando encontrei pela primeira vez o velhote de cara amarela, com quem minha vida agora se tornou tão inextricavelmente enredada. Ele estava parado na calçada, encarando com dúvida o número na porta, quando eu a abri. Seus olhos — de uma cor de cinza embaçada e avermelhados sob a pálpebra — caíram sobre meu rosto, e sua fisionomia imediatamente assumiu uma expressão de amabilidade enrugada.

 

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_HISTORIA_O_FALECIDO_SENHOR_ELBESHAM.png

 

 

— Chegou na hora certa — ele disse. — Eu tinha esquecido o número de sua casa. Como vai, sr. Eden?

Fiquei um pouco surpreso com a intimidade do cumprimento, pois eu nunca tinha posto os olhos sobre esse homem. Fiquei um pouco irritado também, por ele ter me pego com as botas embaixo do braço. Ele percebeu minha falta de cordialidade.

— Está pensando quem diabos sou eu, é? Um amigo, posso lhe assegurar. Já o vi antes, embora você não tenha me visto. Podemos conversar em algum lugar?

Hesitei. A precariedade de meu quartinho lá em cima não era assunto para qualquer estranho.

— Talvez — disse —, possamos descer a rua. Infelizmente não posso... — Meu gesto explicou a frase antes que fosse pronunciada.

— Certo — ele concordou e olhou para um lado, depois para o outro. — A rua? Em que direção? — Coloquei minhas botas na passagem. — Olhe aqui! — ele disse abruptamente —, este meu assunto é complicado. Venha almoçar comigo, sr. Eden. Sou um homem velho, muito velho, e não sou bom em explicações, e com essa minha voz esganiçada e a barulheira do trânsito...

Pousou uma persuasiva mão ossuda, que tremia um pouco, sobre meu braço.

Eu não era tão velho para que um homem mais velho não pudesse me pagar um almoço. No entanto, ao mesmo tempo, não estava inteiramente satisfeito com o convite abrupto.

— Eu prefiro... — comecei.

— Mas eu prefiro — ele me interrompeu —, e certamente meus cabelos grisalhos merecem a civilidade.

E assim consenti e fui com ele.

Ele me levou ao Blavitiski’s; eu tive que andar lentamente para me adaptar às suas passadas; e durante um almoço sem igual em sabor, ele se esquivou de minha principal pergunta, e eu pude reparar mais em sua aparência. Seu rosto barbeado rente era magro e enrugado; seus lábios murchos caíam sobre dentes postiços, e seu cabelo branco era ralo e um tanto quanto comprido; parecia pequeno para mim — embora certamente a maioria das pessoas pareça pequena para mim —, e seus ombros eram curvos e caídos. E observando-o, não pude deixar de perceber que ele também tomava nota, correndo os olhos, com um curioso toque de ganância, sobre mim, de meus ombros largos para minhas mãos bronzeadas e depois de volta a meu rosto sardento.

— E agora — disse ele ao acendermos nossos cigarros —, devo contar-lhe sobre minha questão. — Devo contar-lhe que sou um homem velho, muito velho. — Pausou por um instante. — E acontece que tenho dinheiro que devo deixar, e não tenho filho algum para quem deixá-lo.

Pensei no truque da confiança e decidi ficar alerto aos vestígios de minhas quinhentas libras. Ele prosseguiu sobre a extensão de sua solidão, e a dificuldade que possuía em encontrar um fim adequado para seu dinheiro.

— Pesei este plano e aquele, caridades, instituições e bolsas de estudo e bibliotecas, e cheguei enfim a esta conclusão — fixou os olhos em meu rosto —, de que devo encontrar um jovem, ambicioso, de mente pura, pobre, saudável de mente e de corpo, e, em resumo, fazer dele meu herdeiro, dar-lhe tudo que possuo. — Ele repetiu: — Dar-lhe tudo que possuo. Para que ele possa subitamente ser erguido de todos os problemas e dificuldades nas quais suas disposições foram educadas, até alcançar a liberdade e a influência.

Tentei parecer desinteressado. Com hipocrisia transparente, falei:

— E quer minha ajuda, meus serviços profissionais talvez, para encontrar tal pessoa.

Ele sorriu, e me olhou por sobre seu cigarro, e eu ri de sua exposição muda de minha fingida modéstia.

— Que carreira tal homem pode ter! — ele disse. — Encho-me de inveja ao pensar como acumulei o que outro pode gastar... Mas há condições, claro, deveres impostos. Ele deve, por exemplo, pegar meu nome. Não pode esperar tudo sem nada em troca. E devo conhecer todas as circunstâncias de sua vida antes de aceitá-lo. Ele deve ser saudável. Eu preciso conhecer sua ascendência, como seus pais e avós morreram, fazer a mais rígida das investigações a respeito de sua moralidade.

Isso modificou um pouco minhas íntimas parabenizações secretas.

— E eu entendo — falei — que eu...

— Sim — ele disse, quase com ferocidade. — Você. Você.

Não respondi palavra. Minha imaginação dançava, furiosa, meu ceticismo inato inútil para modificar seus enlevos. Não havia uma partícula de gratidão em minha mente — não sabia o que dizer nem como dizer.

— Mas por que eu? — perguntei, por fim.

Por acaso, o professor Haslar falara de mim, como exemplo de um rapaz saudável e são, e ele desejava, tanto quanto possível, deixar seu dinheiro onde saúde e integridade fossem garantidas.

Esse foi meu primeiro encontro com o velhinho. Ele mantinha mistério a seu respeito; disse que ainda não informaria seu nome, e depois que respondi algumas de suas perguntas, me deixou na entrada do Blavitiski. Notei que retirou um punhado de moedas de ouro do bolso quando chegou a hora de pagar pelo almoço. Sua insistência na saúde corporal era curiosa. De acordo com nosso arranjo, nesse mesmo dia contratei um seguro de vida na Loyal Insurance Company, por uma bela quantia, e na semana seguinte fui exaustivamente atropelado pelos profissionais médicos dessa companhia. Nem isso o satisfez, e insistiu que eu fosse reexaminado pelo grande dr. Henderson.

Foi na sexta-feira da semana de Pentecostes que ele tomou a decisão. Pediu-me para descer, bem tarde da noite — quase nove —, tirando-me da minha compenetração nas equações químicas para o exame preliminar científico. Estava de pé na passagem, sob uma fraca lâmpada de gás, e seu rosto era uma interação grotesca de sombras. Parecia mais curvo do que a primeira vez em que o vi, e suas bochechas levemente encovadas.

Sua voz tremia de emoção:

— Tudo satisfatório, sr. Eden. Tudo muito, muito satisfatório. E esta noite, esta noite deve jantar comigo para celebrar sua... ascensão. — Foi interrompido pela tosse. — Não precisará esperar muito também — continuou, limpando os lábios com o lenço e pegando minha mão com a garra ossuda e longa que estava desocupada. — Certamente... não muito a esperar.

Fomos até a rua e chamamos uma carruagem. Lembro todos os incidentes desse percurso vividamente: a movimentação ligeira e confortável, o vívido contraste entre gás, óleo e eletricidade, as multidões nas ruas, o lugar na Regent para onde fomos e o suntuoso jantar servido ali. De início, fique desconcertado pelo olhar do garçom bem-vestido para as minhas vestes grosseiras, incomodado pelos caroços nas azeitonas, mas conforme a champanhe esquentava meu sangue, minha confiança se renovava. No começo, o velho falou sobre si. Já tinha me contado seu nome na carruagem; era Egbert Elvesham, o grande filósofo, cujo nome eu conhecia desde mancebo na escola. Parecia incrível para mim que este homem, cuja inteligência havia tão cedo dominado a minha, essa grande abstração, de repente se concretizasse como uma figura conhecida e decrépita. Ouso dizer que qualquer rapaz que tenha de repente se encontrado em meio a celebridades já sentiu um pouco de minha decepção. Contou-me sobre o futuro que os débeis córregos de sua vida deixariam em breve a seco para mim: casas, direitos autorais, investimentos. Nunca suspeitei que filósofos fossem tão ricos. Ele me observava beber e comer com uma pontada de inveja.

— Que capacidade para viver que possui! — E então, com um suspiro, um suspiro de alívio talvez: — Não vai demorar.

— Certo — disse eu, a cabeça já nadando em champanhe. — Tenho um futuro talvez... de um tipo razoavelmente satisfatório, graças ao senhor. Terei a honra de seu nome. Mas o senhor tem um passado. Tamanho passado que vale por todo o meu futuro.

Ele balançou a cabeça e sorriu, como pensei no momento, com gratidão um pouco triste pela minha admiração envaidecedora.

— Esse futuro — ele disse —, você, de fato, o mudaria? — O garçom veio com licores. — Não vai se importar, talvez, de tomar meu nome, minha posição, mas tomaria, por vontade própria, meus anos?

— Com suas façanhas — falei, cortês.

Ele sorriu outra vez.

— Kummel... os dois — ele disse para o garçom e voltou a atenção para um pequeno envelope que tirou do bolso. — Esta hora — falou —, esta hora após um jantar é a hora das pequenas coisas. Aqui está um pedaço de minha sabedoria inédita. — Abriu o envelope com os dedos amarelos e trêmulos e mostrou um pouco de pó rosado no papel. — Isto — continuou —, bem, você deve saber o que é. Mas Kummel, coloque uma pitada desse pó, e se torna Himmel1.

Seus grandes olhos cor de cinza observaram os meus com uma expressão inescrutável.

Foi um pouco chocante descobrir que este grande mestre se dedicava aos sabores dos licores. No entanto, fingi interesse nessa sua fraqueza, pois estava bêbado o suficiente para uma pequena adulação.

Ele dividiu o pó entre os dois copinhos, e, ficando subitamente de pé, com uma dignidade estranha e inesperada, estendeu a mão para mim. Imitei seu gesto, e os copos tilintaram.

— Para uma sucessão rápida — disse ele e levou o copo aos lábios.

— Isso não — apressei-me em dizer. — Isso não.

Interrompeu o movimento com o licor à altura do queixo, olhos fulminando os meus.

— Para uma vida longa — falei.

Ele hesitou.

— Para uma vida longa — repetiu, com um súbito ganido de gargalhada.

Com olhos fixos um no outro, viramos os copinhos. Seus olhos olharam bem dentro dos meus, e enquanto eu secava o líquido, sentia uma sensação intensa e curiosa. O primeiro golpe provocou tumulto em meu cérebro; eu parecia sentir um rebuliço físico dentro de meu crânio, e um zumbido fervilhante encheu meus ouvidos. Não notei o sabor em minha boca, o aroma em minha garganta; vi apenas a intensidade cinza do olhar perfurando o meu. A secura, a confusão mental, o barulho e a agitação em minha cabeça pareciam infinitos. Impressões vagas e curiosas de coisas semiesquecidas dançavam e desapareciam na beirada de minha consciência. Por fim, ele quebrou o feitiço. Com um suspiro súbito e explosivo, baixou o copo.

— E? — perguntou.

— Glorioso — respondi, embora não tivesse saboreado a substância.

Minha cabeça girava. Sentei-me. Meu cérebro estava um caos. Então minha percepção clareou e se intensificou, como se eu visse as coisas em um espelho côncavo. Seus modos pareciam ter se tornado nervosos e apressados. Pegou o relógio e fez um careta.

— Onze e sete! E esta noite eu devo... Sete e vinte e cinco. Waterloo! Preciso ir!

Ele pediu a conta e se atrapalhou com o casaco. Garçons prestativos vieram ajudá-lo. Em outro momento, despedia-me, sobre a plataforma de uma carruagem, e ainda com uma sensação absurda de nitidez detalhada, como se — como posso dizer? — eu não apenas visse, mas sentisse através de um binóculo de ópera em posição invertida.

— Aquela substância — ele disse e colocou a mão à testa —, não deveria lhe ter oferecido. Vai estourar sua cabeça amanhã. Espere um minuto. Aqui. — Ele me entregou um pacotinho fino que parecia pó de Seidlitz2. — Dilua na água e tome ao se deitar. A outra substância era uma droga. Atenção: somente ao se deitar. Vai desanuviar sua mente. Só isso. Mais um aperto... Futurus! —Segurei a garra encarquilhada. — Adeus — ele se despediu, e pelas pálpebras descaídas julguei que ele também estava um pouco sob a influência daquela beberagem destorcedora de cérebros.

De súbito, lembrou-se de algo, passou a mão sobre o bolso da frente do paletó e de lá tirou outra embalagem, um cilindro do tamanho e formato de um tubo de creme para barbear.

— Aqui — disse. — Quase esqueci. Não abra até amanhã... mas leve já.

Era tão pesado que quase o derrubei.

— Certinho! — falei, e ele sorriu para mim através da janela da carruagem enquanto o condutor estalava o chicote para acordar seu cavalo.

Era um pacote branco, com selos vermelhos, um de cada lado e ao longo da beirada. “Se não é dinheiro, é platina ou chumbo”, pensei. Enfiei com cuidado meticuloso no bolso, e com o cérebro rodopiante fui para casa andando em meio aos vagabundos da rua Regent e pelas ruelas além da rua Portland. Lembro com vivacidade das sensações dessa caminhada, por mais estranhas que tenham sido. Ainda estava tão alterado que pude perceber meu estranho estado mental e pensar se a substância que ingerira era ópio, uma droga com a qual não tinha experiência. É difícil agora descrever a peculiaridade de minha alteridade mental — duplicidade mental mal dá conta de expressar. Ao andar pela Regent, notei em minha mente a bizarra percepção de que estava na estação Waterloo, e tive o estranho impulso de entrar na Politécnica como se subisse em um trem. Esfreguei os olhos com o nó do dedo, e era a Regent. Como posso descrever? Você vê um ator habilidoso olhando para você, ele faz um careta e, olha!, outra pessoa. Seria muito extravagante dizer que me parecia que a rua Regent tivesse, por um momento, feito isso? Depois, certo de que era a Regent outra vez, fiquei confuso com reminiscências fantásticas que brotaram em mim. “Trinta anos atrás”, pensei, “foi aqui que briguei com meu irmão”. Então caí na gargalhada, para a surpresa e excitação de um grupo de gatunos da noite. Trinta anos antes, eu não existia, e nunca na minha vida tinha acertado um irmão. A substância era certamente loucura líquida, pois o arrependimento contundente pelo irmão falecido ainda se agarrava a mim.

Ao longo da Portland, a insânia ressurgiu. Comecei a me lembrar de oficinas desaparecidas e a comparar a rua com o que ela já tinha sido. Pensamentos confusos e alterados são compreensíveis depois da bebida, mas o que me intrigava eram essas memórias fantasmas curiosamente vivazes que tinham se infiltrado em minha mente, e não apenas as memórias infiltradas, mas também as que tinham escoado. Parei em frente ao Stevens’, o negociante de artefatos de história natural, e matutei para lembrar qual era sua relação comigo. Um ônibus passou e soou exatamente como o estrondo de um trem. Eu parecia estar afundando em um poço escuro e distante para alcançar a lembrança.

— Claro — falei em voz alta, por fim —, ele me prometeu três rãs para amanhã. Estranho eu ter esquecido.

Ainda mostram lanternas mágicas a crianças? Lembro que uma imagem aparecia primeiramente como um fantasma esmaecido, e depois crescia até expelir outra. Desse mesmo modo, parecia-me que um conjunto fantasma de novas sensações batalhava com aquelas de meu eu comum.

Passei pela rua Euston até a Tottenham Court, intrigado, e um pouco assustado, e mal notei o trajeto incomum que tomava, pois geralmente eu cortava pelo emaranhado de ruelas. Virei na University, para descobrir que tinha esquecido o número. Apenas com um esforço enorme recuperei 11A, e mesmo assim me pareceu algo que sei lá quem havia me dito. Tentei firmar minha mente rememorando os acontecimentos do jantar, e por nada nesse mundo pude conjurar uma imagem do rosto de meu anfitrião; vi-o apenas como um perfil ensombrecido, como alguém que se olha pelo reflexo do vidro de uma janela. No lugar dele, de algum modo, eu obtinha uma curiosa versão exterior de mim mesmo, sentado à mesa, enrubescido e falante, com olhos iluminados.

— Devo tomar este outro pó — falei. — Isto está impossível.

Fui para o lado errado do hall atrás de vela e fósforos, e não sabia ao certo em que andar ficava meu quarto.

— Estou bêbado, disso tenho certeza. — E vacilei sem necessidade pela escada para sustentar a hipótese.

À primeira vista, meu quarto não me era familiar.

— Que chiqueiro! — comentei ao olhar em volta.

O esforço pareceu me trazer de volta, e a estranha característica fantasmagórica se tornou algo concreto. Lá estava o velho armário de vidro, com minhas anotações nos albúmens colados no canto da moldura, minhas velhas roupas cotidianas esparramadas pelo chão. E, no entanto, não era tão real, afinal. Eu sentia uma persuasão absurda tentando entrar em minha mente, a de que estava em um trem que parava, e eu olhava pela janela para uma estação desconhecida. Agarrei o gradil da cama com força para me reafirmar.

— É clarividência, talvez — falei. — Preciso escrever para a Psychical Research Society3.

Coloquei o pacotinho sobre a penteadeira, sentei-me na cama e fui descalçar as botas. Era como se a imagem de minhas atuais sensações estivesse pintada sobre outra imagem que se esforçasse para sobressair.

— Maldição! Perdi o juízo ou estou em dois lugares ao mesmo tempo?

Seminu, joguei o pó em um copo. Efervesceu e se tornou de uma cor âmbar fluorescente. Bebi tudo. Antes de me deitar, minha mente já havia se tranquilizado. Senti o travesseiro no rosto, e devo ter adormecido logo em seguida.

* * *

Acordei abruptamente de um sonho com bestas estranhas e me encontrei deitado de costas. Provavelmente todos conhecem aquele sonho sombrio e emocional do qual se escapa, de fato acordado, mas estranhamente acuado. Havia um gosto curioso na boca, uma sensação cansada nos membros, uma impressão de desconforto na pele. Pousei a cabeça imóvel no travesseiro, esperando que o sentimento de estranheza e medo passasse, e que então eu adormecesse outra vez. Mas, em vez disso, as sensações misteriosas permaneceram. De início, não percebi nada de errado comigo. Havia uma luz fraca no quarto, tão fraca que era quase a escuridão, e a mobília se destacava nela como nódoas vagas de treva absoluta. Encarei pouco além da roupa de cama sobre mim.

Passou pela minha mente que alguém pudesse ter entrado em meu quarto para roubar meu rolo de dinheiro, porém, após mais alguns momentos deitado, respirando regularmente para simular o sono, percebi que isso era apenas imaginação. No entanto, a desconfortável certeza de que havia algo errado continuava presa a mim. Com esforço, levantei a cabeça do travesseiro e espiei o escuro. O que era eu não podia saber. Olhei para as formas sombrias a meu redor, a maior ou menor escuridão que indicava cortinas, mesa, lareira, prateleiras de livros e assim por diante. Então, comecei a notar algo desconhecido nas formas na escuridão. Teria a cama se virado? Acolá deviam estar as prateleiras, e algo amortalhado e pálido levantava-se ali, algo que não podia ser chamado de prateleira. No entanto, olhei. Era grande demais para ser minha camisa jogada sobre uma cadeira.

Superando o terror infantil, joguei a colcha para o lado e enfiei a perna para fora do leito. Em vez de sair sobre a gaveta embaixo de minha cama, meu pé mal alcançou a borda do colchão. Dei outro passo, como necessário, e sentei-me na beirada da cama. Ao lado dela, deveria haver uma vela, e fósforos sobre a cadeira quebrada. Estiquei a mão e toquei... nada. Sacudi a mão na escuridão, e ela tocou algo pesado pendurado, macio e grosso em sua textura, que farfalhou ao toque. Agarrei e puxei; parecia ser uma cortina suspensa pelo dossel.

Completamente acordado, comecei a perceber que estava em um quarto desconhecido. Fiquei intrigado. Tentei lembrar as circunstâncias da noite anterior, e as encontrei, dessa vez, curiosamente, vívidas em minha memória: a ceia, o recebimento das pequenas embalagens, minha dúvida se estaria intoxicado, meu lento despir, o frio do travesseiro em meu rosto enrubescido. Senti uma súbita desconfiança. Teria sido na última noite ou na anterior a esta? De qualquer modo, este quarto me era estranho, e não sabia dizer como teria ido parar ali. O perfil sombrio e pálido se clareava, e percebi que se tratava de uma janela, com o formato escuro de um espelho de tocador oval contra a fraca intimação da aurora que se infiltrava pela persiana. Fiquei de pé, e fui pego de surpresa por uma singular sensação de fraqueza e desequilíbrio. Com mãos trêmulas esticadas, andei devagar até a janela. Manuseei o vidro, que era grande e com belas arandelas de latão, para achar o cordão da cortina. Não encontrei cordão algum. Por sorte, tomei a borla na mão e rapidamente a veneziana subiu.

Deparei-me com uma paisagem totalmente alheia a mim. A noite nublada, e através do cinza flocado das nuvens amontoadas, a meia-luz do amanhecer se embrenhava. Na borda do céu, a copa de nuvens possuía uma orla vermelho-sangue. Abaixo, tudo escuro e indistinto, montes turvos à distância, uma massa vaga de construções subindo até os pináculos, árvores como tinta esparramada e abaixo da janela um entrelaçado de arbustos negros e caminhos de um cinza-claro. Tão desconhecido que por um momento pensei ainda sonhar. Passei a mão pela mesa de tocador; parecia feita de uma madeira polida, e elaboradamente guarnecida: pequenos frascos de mosaico de vidro e uma escova. Havia também um pequeno objeto esquisito. Era como uma ferradura com projeções lisas e duras sobre um pires. Não encontrei fósforos nem vela.

Voltei os olhos para o cômodo novamente. Agora, com a persiana aberta, espectros baços da mobília saíam da escuridão. Havia uma enorme cama cortinada, e uma lareira a seus pés cuja cornija branca possuía o lustro do mármore.

Apoiei-me na mesa de tocador, fechei os olhos e os abri outra vez, e tentei pensar. A coisa toda era real demais para ser sonho. Estava inclinado a pensar que ainda havia algum tipo de hiato em minha memória, consequência do entorno daquele estranho licor; que eu tinha me deparado com a herança e, talvez, perdido a lembrança de tudo que acontecera após o anúncio da boa fortuna. Talvez, se esperasse um pouco, as coisas se esclareceriam. No entanto, o jantar com o velho Elvesham estava singularmente vivo e recente. A champanhe, os garçons atenciosos, o pó e os licores — apostaria minha própria alma que tudo tinha acontecido havia poucas horas.

E então me ocorreu algo tão trivial e, no entanto, tão terrível que estremeço agora só de pensar. Falei em voz alta. Eu disse:

— Como diabos vim parar aqui? — ... E a voz não era a minha.

Não era a minha, era fraca; a dicção, indistinta; a ressonância em meus ossos faciais, diferente. Então, para me acalmar, passei uma mão sobre a outra, e senti as dobras soltas de pele, a lassidão dos ossos comum da idade.

— Certamente — falei, naquela voz horrível que de algum modo tinha se estabelecido em minha garganta —, certamente isto é um sonho!

Quase tão rápido quanto um gesto involuntário, enfiei os dedos na boca. Meus dentes não estavam lá. Deslizei a ponta dos dedos pela superfície flácida de uma fileira de gengivas engruvinhadas. Fiquei nauseado de consternação e nojo.

Senti então um desejo intenso de me ver, de observar de uma vez por todas o horror total da mudança apavorante que eu tinha sofrido. Vacilei até a cornija e tateei em busca de fósforos. Enquanto o fazia, uma tosse ladrante subiu até minha garganta, e me agarrei à camisola de flanela grossa na qual me encontrei vestido. Não havia fósforos ali, e subitamente percebi que minhas extremidades estavam frias. Espirrando e tossindo, gemendo um pouco, voltei para a cama.

— Certamente um sonho — sussurrei para mim mesmo ao subir de volta ao leito —, certamente um sonho. — Uma repetição senil.

Puxei as cobertas por sobre os ombros até as orelhas e enfiei a mão envelhecida sob o travesseiro, determinado a dormir. Claro que era um sonho. Pela manhã, sonho encerrado, e acordarei forte e vigoroso novamente, para minha juventude e meus estudos. Fechei os olhos, respirei regularmente, e, ainda acordado, comecei a contar lentamente na potência de três.

Mas o que desejei não recebi. Não conseguia dormir. E a persuasão da realidade inexorável da mudança pela qual passara crescia firmemente. Arregalei os olhos, as potências esquecidas, e com os dedos magros sobre as gengivas enrugadas, eu era, de fato, um velho. De algum modo inexplicável tinha atravessado a vida e atingido a velhice, de algum modo tinham-me roubado a melhor parte da vida, do amor, da luta, da força e da esperança. Prostrei-me no travesseiro e tentei me persuadir de que tal alucinação era impossível. Imperceptivelmente, constantemente, a aurora foi se clareando.

Por fim, renunciando ao sono, sentei-me na cama e olhei ao redor. Um lusco-fusco frio tornava todo o quarto visível. Era espaçoso e bem mobiliado, melhor do que qualquer quarto em que já dormira. Uma vela e fósforos se tornaram parcialmente visíveis sobre um pequeno pedestal em um recesso. Joguei a coberta de lado e, tremendo com a crueza da manhã, embora fosse verão, desci e acendi a vela. Então, chacoalhando terrivelmente, tanto que o apagador balançava no candeeiro, cambaleei até o espelho e vi... o rosto de Elvesham! Não foi, no entanto, menos horrível, pois eu já havia vagamente pressentido. Ele já me parecera fisicamente fraco e digno de lástima, mas visto naquele momento, vestido apenas na camisola de flanela grossa, que se abria revelando o pescoço fibroso, visto, naquele momento, como meu próprio corpo, não sou capaz de descrever sua desolada decrepitude. As bochechas encovadas, as dispersas mechas de cabelo cinza-escuro, os olhos remelentos e baços, os lábios trêmulos e rugosos, sendo que o inferior exibia o brilho de seu forro rosa, e aquelas terríveis gengivas escuras. Você que é mente e corpo unidos, em sua idade natural, não é capaz de imaginar o que esta prisão diabólica significou para mim. Ser jovem e cheio de vontade e energia da juventude, e ficar preso, e ser esmagado por esta ruína vacilante de corpo...

Mas me desvio do rumo do relato. Devo ter ficado muito tempo estupefato com a mudança que me ocorreu. Era dia quando consegui voltar a pensar. De um modo inexplicável, eu tinha sido alterado, embora como, exceto por meio de magia, não sabia dizer. E enquanto ponderava, a engenhosidade diabólica de Elvesham surgiu em minha mente. Ficou claro para mim que do mesmo modo que eu me encontrava nele, ele devia estar em posse de meu corpo, de minha força, ou seja, de meu futuro. Mas como provar? Então, enquanto pensava, a questão se tornou tão incrível, mesmo para mim, que minha mente titubeou, e tive que me beliscar, sentir as gengivas desdentadas, olhar-me no espelho e tocar tudo em mim antes que pudesse me aprumar para encarar os fatos outra vez. Seria tudo alucinação? Seria eu, de fato, Elvesham, e ele, eu? Teria eu sonhado com Eden? Existia um Eden? Mas se eu era Elvesham, devia lembrar onde estive na manhã anterior, o nome da cidade onde morava, o que aconteceu antes de o sonho começar. Lutei com meus pensamentos. Recordei-me da estranha duplicidade de minhas lembranças durante a noite. Mas agora minha mente estava limpa. Não o fantasma de lembrança alguma, mas aquelas próprias de Eden.

— Estou insano — gritei com minha voz esganiçada.

Fiquei de pé sem equilíbrio, arrastei os membros frágeis e pesados para o tocador e enfiei a cabeça grisalha em uma bacia de água fria. Duas vezes. Sem sucesso. Sentia sem sombra de dúvida que era de fato Eden, não Elvesham. Mas Eden no corpo de Elvesham!

Se eu fosse homem de outra época, poderia ter considerado meu destino como encantado. Mas nos atuais dias céticos, milagres não são comuns. Isso era algum truque psicológico. O que uma droga e um olhar fixo poderiam provocar, uma droga e um olhar fixo, ou algum tratamento semelhante, poderiam desfazer. Homens já haviam perdido a memória antes. Mas trocar de memória como se trocariam guarda-chuvas! Ri. Ah, mas não um riso saudável, um risinho chiante e senil. Pude imaginar o velho Elvesham rindo de meu apuro, e uma rajada de raiva petulante, pouco comum a mim, arrebatou meus sentimentos. Comecei a vestir com intento as roupas que achei pelo chão, e percebi ao ficar pronto que estava no terno da noite anterior. Abri o guarda-roupa e encontrei trajes mais comuns: um par de calças xadrez e uma camisa antiquada. Coloquei uma venerável cartola em minha cabeça veneranda e, tossindo um pouco pelo esforço, claudiquei até o patamar.

Era então quinze para as seis, e as cortinas estavam fechadas e a casa, silenciosa. O patamar era espaçoso, uma ampla e ricamente carpetada escada descia até a escuridão do hall abaixo, e diante de mim uma porta semiaberta mostrava uma escrivaninha, uma estante de livros giratória, o espaldar de uma cadeira e uma bela coleção de livros encapados, prateleira após prateleira.

— Meu escritório — murmurei e atravessei o patamar. Ao som de minha voz, surgiu um pensamento, e voltei ao quarto para colocar a dentadura. Elas se assentaram com a facilidade de um velho hábito. — Melhor assim — disse, rangendo-a, e retornei ao escritório.

As gavetas da escrivaninha estavam trancadas. Seu tampo removível também. Não via indício de chaves, e não havia nenhuma nos bolsos de minhas calças. Apressei-me para o quarto e vasculhei o terno, e depois os bolsos de todas as roupas que encontrava. Estava muito ansioso, e alguém, ao ver o quarto depois que terminei, poderia ter pensado que ladrões tinham trabalhado ali. Não apenas não havia chaves, mas nem mesmo uma moeda ou um pedaço de papel — exceto pela nota da conta do jantar anterior.

Um estranho cansaço se instalou. Sentei-me e observei as peças de roupa jogadas aqui e ali, os bolsos revirados. Meu primeiro frenesi já tinha se extinguido. A cada momento eu percebia mais e mais a imensa inteligência dos planos de meu inimigo, a ver claramente a desesperança de minha situação. Com esforço, fiquei de pé e corri coxeando para o escritório outra vez. Na escadaria, uma serviçal levantava as persianas. Ela encarou, creio, a expressão em meu rosto. Fechei a porta do escritório atrás de mim, e, com um atiçador, ataquei a escrivaninha. Foi assim que me encontraram. O tampo quebrado, o cadeado estraçalhado, as cartas arrancadas de seus compartimentos e espalhadas pelo cômodo. Em minha fúria senil, tinha jogado canetas e outros objetos de papelaria, e revirado potes de tinta. Além disso, um grande vaso sobre a cornija tinha sido quebrado — não sei como. Não achei talão de cheque ou dinheiro, nem indício algum de como recuperar meu corpo. Eu batia ensandecido as gavetas quando o mordomo, acompanhado de duas serviçais, irrompeu em minha direção.

* * *

Esta é, em resumo, a história de minha transformação. Ninguém dá crédito as minhas asserções frenéticas. Sou tratado como um demente, e mesmo neste instante estou sob vigilância. Mas sou são, absolutamente são, e para prová-lo sentei-me para escrever esta história exatamente como me aconteceu. Pergunto ao leitor se há algum traço de insanidade no estilo ou no método da história que está lendo. Sou um jovem preso no corpo de um velho. Mas o fato é inconcebível para todos. Naturalmente, soo demenciado para aqueles que não creem. Naturalmente não sei os nomes de meus secretários, dos médicos que vêm me visitar, de meus criados e vizinhos, desta cidade (qualquer que seja) onde me encontro. Naturalmente, perco-me em minha própria casa e sofro inconveniências de toda sorte. Naturalmente, faço as mais estranhas perguntas. Naturalmente, choro e grito e sofro um paroxismo de desespero. Não tenho dinheiro nem cheques. O banco não reconhece minha assinatura, pois, apesar da fraqueza de meus músculos, minha caligrafia continua sendo a de Eden. Essas pessoas a minha volta não me deixam ir sozinho ao banco. Parece, na verdade, que não há banco nesta cidade, e que possuo conta em algum lugar de Londres. Parece que Elvesham mantinha o nome de seu procurador em segredo de todos os criados. Não posso ter certeza de nada. Elvesham era, claro, um profundo estudioso da ciência mental, e todas as minhas declarações dos fatos do caso apenas confirmam a teoria de que minha insanidade é o resultado do excesso de reflexão sobre a psicologia. Desvarios de identidade pessoal, sem dúvida! Dois dias atrás, eu era um rapaz saudável, com a vida toda pela frente; agora, sou um velho furioso, desgrenhado e desesperado; vagando por uma enorme, luxuosa e desconhecida casa; vigiado, temido e evitado, como um lunático, por todos a minha volta. E em Londres, Elvesham recomeça a vida em um corpo vigoroso, e com o conhecimento e sabedoria acumulados durante setenta anos. Ele me roubou a vida.

O que aconteceu, não sei ao certo. No escritório, há volumes de notas manuscritas referindo-se principalmente à psicologia da memória, e trechos do que podem ser cálculos ou cifras em símbolos absolutamente desconhecidas por mim. Em algumas passagens, há indicações de que ele também se ocupava com a filosofia da matemática. Creio que tenha transferido todas as suas memórias, o acúmulo do que compunha sua personalidade, de seu velho e abatido cérebro para o meu, e também tenha transferido o que era meu para o seu cortiço paupérrimo. Ou seja, intercambiou corpos. Mas como tal mudança pode ser possível está fora do alcance de meu entendimento. Sempre fui um materialista durante toda a minha vida intelectual, mas aqui, subitamente, há um caso óbvio da separação do homem de sua matéria.

Estou prestes a tentar um experimento desesperado. Sento e escrevo aqui antes de me lançar ao caso. Hoje cedo, com a ajuda de uma faca que subtraí no café da manhã, consegui violar uma gaveta secreta na escrivaninha destruída. Encontrei apenas um pequeno frasco verde contendo um pó branco. Nele, uma etiqueta, e nela, apenas uma palavra: “libertação”. Isto deve ser, mais provavelmente, veneno. Compreendo por que Elvesham colocou veneno em meu caminho, e tenho certeza de que era sua intenção se livrar do único ser vivente que poderia testemunhar contra ele, apenas não entendi o esconderijo cuidadoso. O homem praticamente resolveu o mistério da imortalidade. Exceto por uma vingança do acaso, viverá em meu corpo até a idade avançada, e então, novamente, vai deixar esse corpo de lado e achar outra vítima jovem e forte. Quando se pensa em sua crueldade, é terrível refletir sobre quanto tempo ele vem praticando esse experimento... Há quanto tempo salta de corpo em corpo...? Mas me canso de escrever. O pó é solúvel em água. O sabor não é desagradável.

* * *

Assim termina a narrativa encontrada sobre a escrivaninha do sr. Elvesham. Seu cadáver deitado entre a mesa e a cadeira, caída para trás, provavelmente empurrada pelas derradeiras convulsões do homem. A história foi escrita a lápis e em uma caligrafia demenciada, bem diferente de suas costumeiras letras cuidadosas. Restam apenas dois fatos curiosos a ser registrados. Sem dúvidas, havia uma conexão entre Eden e Elvesham, já que todas as propriedades de Elvesham foram repassadas para o jovem. Porém, ele nunca as herdou. Quando Elvesham cometeu suicídio, Eden já estava, por mais bizarro que seja, morto. Vinte quatro horas antes, uma carruagem o acertara e morrera na hora, no cruzamento movimentado da interseção da Gower com a Euston. De modo que o único ser humano que poderia esclarecer essa narrativa fantástica não estava mais ao alcance das perguntas. Sem mais comentários, deixo a extraordinária questão para o julgamento individual do leitor.

 

1. Aqui o sr. Elvesham faz um trocadilho entre Kummel (alcaravia) com Himmel (céu, paraíso) (N.T.).


2. Digestivo efervescente composto por bicarbonato de sódio, acido tartárico e tartarato de sódio e potássio (N.T.).


3. Sociedade britânica que encoraja a pesquisa científica de fenômenos psíquicos e paranormais.

Escrevo esta história, não com a esperança de que receba crédito, mas, se possível, para que prepare uma saída de fuga para a próxima vítima. Ele, talvez, tome proveito de meu infortúnio. Meu próprio caso, eu sei, é irremediável, e estou agora, de certo modo, preparado para encontrar com meu destino.
Meu nome é Edward George Eden. Nasci em Trentham, Staffordshire; meu pai empregado dos parques da região. Perdi minha mãe aos três anos de idade, e meu pai aos cinco; meu tio, George Eden, então me adotou como seu próprio filho. Ele era solteiro, autodidata e famoso em Birmingham como jornalista empreendedor; ele me educou com generosidade, atiçando minha ambição de sucesso no mundo, e, à sua morte, que ocorreu há quatro anos, deixou-me toda a sua fortuna, algo em torno de quinhentas libras após os gastos do falecimento. Eu tinha então dezoito. Ele me aconselhou em seu testamento a gastar o dinheiro com o término de minha educação. Eu já havia escolhido a profissão médica, e por meio de sua generosidade póstuma e minha boa sorte em uma competição para uma bolsa de estudos, tornei-me um estudante de medicina na University College, em Londres. À época do começo de minha história, eu habitava à rua University, número 11A, em um quartinho no primeiro andar, mal mobiliado e frio, com vista para o terreno de Shoolbred. Morava e dormia nesse quartinho porque queria esticar meus meios até o último centavo.
Levava um par de sapatos para remendar em um sapateiro na Tottenham Court quando encontrei pela primeira vez o velhote de cara amarela, com quem minha vida agora se tornou tão inextricavelmente enredada. Ele estava parado na calçada, encarando com dúvida o número na porta, quando eu a abri. Seus olhos — de uma cor de cinza embaçada e avermelhados sob a pálpebra — caíram sobre meu rosto, e sua fisionomia imediatamente assumiu uma expressão de amabilidade enrugada.

 

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_HISTORIA_O_FALECIDO_SENHOR_ELBESHAM.png

 

 

— Chegou na hora certa — ele disse. — Eu tinha esquecido o número de sua casa. Como vai, sr. Eden?

Fiquei um pouco surpreso com a intimidade do cumprimento, pois eu nunca tinha posto os olhos sobre esse homem. Fiquei um pouco irritado também, por ele ter me pego com as botas embaixo do braço. Ele percebeu minha falta de cordialidade.

— Está pensando quem diabos sou eu, é? Um amigo, posso lhe assegurar. Já o vi antes, embora você não tenha me visto. Podemos conversar em algum lugar?

Hesitei. A precariedade de meu quartinho lá em cima não era assunto para qualquer estranho.

— Talvez — disse —, possamos descer a rua. Infelizmente não posso... — Meu gesto explicou a frase antes que fosse pronunciada.

— Certo — ele concordou e olhou para um lado, depois para o outro. — A rua? Em que direção? — Coloquei minhas botas na passagem. — Olhe aqui! — ele disse abruptamente —, este meu assunto é complicado. Venha almoçar comigo, sr. Eden. Sou um homem velho, muito velho, e não sou bom em explicações, e com essa minha voz esganiçada e a barulheira do trânsito...

Pousou uma persuasiva mão ossuda, que tremia um pouco, sobre meu braço.

Eu não era tão velho para que um homem mais velho não pudesse me pagar um almoço. No entanto, ao mesmo tempo, não estava inteiramente satisfeito com o convite abrupto.

— Eu prefiro... — comecei.

— Mas eu prefiro — ele me interrompeu —, e certamente meus cabelos grisalhos merecem a civilidade.

E assim consenti e fui com ele.

Ele me levou ao Blavitiski’s; eu tive que andar lentamente para me adaptar às suas passadas; e durante um almoço sem igual em sabor, ele se esquivou de minha principal pergunta, e eu pude reparar mais em sua aparência. Seu rosto barbeado rente era magro e enrugado; seus lábios murchos caíam sobre dentes postiços, e seu cabelo branco era ralo e um tanto quanto comprido; parecia pequeno para mim — embora certamente a maioria das pessoas pareça pequena para mim —, e seus ombros eram curvos e caídos. E observando-o, não pude deixar de perceber que ele também tomava nota, correndo os olhos, com um curioso toque de ganância, sobre mim, de meus ombros largos para minhas mãos bronzeadas e depois de volta a meu rosto sardento.

— E agora — disse ele ao acendermos nossos cigarros —, devo contar-lhe sobre minha questão. — Devo contar-lhe que sou um homem velho, muito velho. — Pausou por um instante. — E acontece que tenho dinheiro que devo deixar, e não tenho filho algum para quem deixá-lo.

Pensei no truque da confiança e decidi ficar alerto aos vestígios de minhas quinhentas libras. Ele prosseguiu sobre a extensão de sua solidão, e a dificuldade que possuía em encontrar um fim adequado para seu dinheiro.

— Pesei este plano e aquele, caridades, instituições e bolsas de estudo e bibliotecas, e cheguei enfim a esta conclusão — fixou os olhos em meu rosto —, de que devo encontrar um jovem, ambicioso, de mente pura, pobre, saudável de mente e de corpo, e, em resumo, fazer dele meu herdeiro, dar-lhe tudo que possuo. — Ele repetiu: — Dar-lhe tudo que possuo. Para que ele possa subitamente ser erguido de todos os problemas e dificuldades nas quais suas disposições foram educadas, até alcançar a liberdade e a influência.

Tentei parecer desinteressado. Com hipocrisia transparente, falei:

— E quer minha ajuda, meus serviços profissionais talvez, para encontrar tal pessoa.

Ele sorriu, e me olhou por sobre seu cigarro, e eu ri de sua exposição muda de minha fingida modéstia.

— Que carreira tal homem pode ter! — ele disse. — Encho-me de inveja ao pensar como acumulei o que outro pode gastar... Mas há condições, claro, deveres impostos. Ele deve, por exemplo, pegar meu nome. Não pode esperar tudo sem nada em troca. E devo conhecer todas as circunstâncias de sua vida antes de aceitá-lo. Ele deve ser saudável. Eu preciso conhecer sua ascendência, como seus pais e avós morreram, fazer a mais rígida das investigações a respeito de sua moralidade.

Isso modificou um pouco minhas íntimas parabenizações secretas.

— E eu entendo — falei — que eu...

— Sim — ele disse, quase com ferocidade. — Você. Você.

Não respondi palavra. Minha imaginação dançava, furiosa, meu ceticismo inato inútil para modificar seus enlevos. Não havia uma partícula de gratidão em minha mente — não sabia o que dizer nem como dizer.

— Mas por que eu? — perguntei, por fim.

Por acaso, o professor Haslar falara de mim, como exemplo de um rapaz saudável e são, e ele desejava, tanto quanto possível, deixar seu dinheiro onde saúde e integridade fossem garantidas.

Esse foi meu primeiro encontro com o velhinho. Ele mantinha mistério a seu respeito; disse que ainda não informaria seu nome, e depois que respondi algumas de suas perguntas, me deixou na entrada do Blavitiski. Notei que retirou um punhado de moedas de ouro do bolso quando chegou a hora de pagar pelo almoço. Sua insistência na saúde corporal era curiosa. De acordo com nosso arranjo, nesse mesmo dia contratei um seguro de vida na Loyal Insurance Company, por uma bela quantia, e na semana seguinte fui exaustivamente atropelado pelos profissionais médicos dessa companhia. Nem isso o satisfez, e insistiu que eu fosse reexaminado pelo grande dr. Henderson.

Foi na sexta-feira da semana de Pentecostes que ele tomou a decisão. Pediu-me para descer, bem tarde da noite — quase nove —, tirando-me da minha compenetração nas equações químicas para o exame preliminar científico. Estava de pé na passagem, sob uma fraca lâmpada de gás, e seu rosto era uma interação grotesca de sombras. Parecia mais curvo do que a primeira vez em que o vi, e suas bochechas levemente encovadas.

Sua voz tremia de emoção:

— Tudo satisfatório, sr. Eden. Tudo muito, muito satisfatório. E esta noite, esta noite deve jantar comigo para celebrar sua... ascensão. — Foi interrompido pela tosse. — Não precisará esperar muito também — continuou, limpando os lábios com o lenço e pegando minha mão com a garra ossuda e longa que estava desocupada. — Certamente... não muito a esperar.

Fomos até a rua e chamamos uma carruagem. Lembro todos os incidentes desse percurso vividamente: a movimentação ligeira e confortável, o vívido contraste entre gás, óleo e eletricidade, as multidões nas ruas, o lugar na Regent para onde fomos e o suntuoso jantar servido ali. De início, fique desconcertado pelo olhar do garçom bem-vestido para as minhas vestes grosseiras, incomodado pelos caroços nas azeitonas, mas conforme a champanhe esquentava meu sangue, minha confiança se renovava. No começo, o velho falou sobre si. Já tinha me contado seu nome na carruagem; era Egbert Elvesham, o grande filósofo, cujo nome eu conhecia desde mancebo na escola. Parecia incrível para mim que este homem, cuja inteligência havia tão cedo dominado a minha, essa grande abstração, de repente se concretizasse como uma figura conhecida e decrépita. Ouso dizer que qualquer rapaz que tenha de repente se encontrado em meio a celebridades já sentiu um pouco de minha decepção. Contou-me sobre o futuro que os débeis córregos de sua vida deixariam em breve a seco para mim: casas, direitos autorais, investimentos. Nunca suspeitei que filósofos fossem tão ricos. Ele me observava beber e comer com uma pontada de inveja.

— Que capacidade para viver que possui! — E então, com um suspiro, um suspiro de alívio talvez: — Não vai demorar.

— Certo — disse eu, a cabeça já nadando em champanhe. — Tenho um futuro talvez... de um tipo razoavelmente satisfatório, graças ao senhor. Terei a honra de seu nome. Mas o senhor tem um passado. Tamanho passado que vale por todo o meu futuro.

Ele balançou a cabeça e sorriu, como pensei no momento, com gratidão um pouco triste pela minha admiração envaidecedora.

— Esse futuro — ele disse —, você, de fato, o mudaria? — O garçom veio com licores. — Não vai se importar, talvez, de tomar meu nome, minha posição, mas tomaria, por vontade própria, meus anos?

— Com suas façanhas — falei, cortês.

Ele sorriu outra vez.

— Kummel... os dois — ele disse para o garçom e voltou a atenção para um pequeno envelope que tirou do bolso. — Esta hora — falou —, esta hora após um jantar é a hora das pequenas coisas. Aqui está um pedaço de minha sabedoria inédita. — Abriu o envelope com os dedos amarelos e trêmulos e mostrou um pouco de pó rosado no papel. — Isto — continuou —, bem, você deve saber o que é. Mas Kummel, coloque uma pitada desse pó, e se torna Himmel1.

Seus grandes olhos cor de cinza observaram os meus com uma expressão inescrutável.

Foi um pouco chocante descobrir que este grande mestre se dedicava aos sabores dos licores. No entanto, fingi interesse nessa sua fraqueza, pois estava bêbado o suficiente para uma pequena adulação.

Ele dividiu o pó entre os dois copinhos, e, ficando subitamente de pé, com uma dignidade estranha e inesperada, estendeu a mão para mim. Imitei seu gesto, e os copos tilintaram.

— Para uma sucessão rápida — disse ele e levou o copo aos lábios.

— Isso não — apressei-me em dizer. — Isso não.

Interrompeu o movimento com o licor à altura do queixo, olhos fulminando os meus.

— Para uma vida longa — falei.

Ele hesitou.

— Para uma vida longa — repetiu, com um súbito ganido de gargalhada.

Com olhos fixos um no outro, viramos os copinhos. Seus olhos olharam bem dentro dos meus, e enquanto eu secava o líquido, sentia uma sensação intensa e curiosa. O primeiro golpe provocou tumulto em meu cérebro; eu parecia sentir um rebuliço físico dentro de meu crânio, e um zumbido fervilhante encheu meus ouvidos. Não notei o sabor em minha boca, o aroma em minha garganta; vi apenas a intensidade cinza do olhar perfurando o meu. A secura, a confusão mental, o barulho e a agitação em minha cabeça pareciam infinitos. Impressões vagas e curiosas de coisas semiesquecidas dançavam e desapareciam na beirada de minha consciência. Por fim, ele quebrou o feitiço. Com um suspiro súbito e explosivo, baixou o copo.

— E? — perguntou.

— Glorioso — respondi, embora não tivesse saboreado a substância.

Minha cabeça girava. Sentei-me. Meu cérebro estava um caos. Então minha percepção clareou e se intensificou, como se eu visse as coisas em um espelho côncavo. Seus modos pareciam ter se tornado nervosos e apressados. Pegou o relógio e fez um careta.

— Onze e sete! E esta noite eu devo... Sete e vinte e cinco. Waterloo! Preciso ir!

Ele pediu a conta e se atrapalhou com o casaco. Garçons prestativos vieram ajudá-lo. Em outro momento, despedia-me, sobre a plataforma de uma carruagem, e ainda com uma sensação absurda de nitidez detalhada, como se — como posso dizer? — eu não apenas visse, mas sentisse através de um binóculo de ópera em posição invertida.

— Aquela substância — ele disse e colocou a mão à testa —, não deveria lhe ter oferecido. Vai estourar sua cabeça amanhã. Espere um minuto. Aqui. — Ele me entregou um pacotinho fino que parecia pó de Seidlitz2. — Dilua na água e tome ao se deitar. A outra substância era uma droga. Atenção: somente ao se deitar. Vai desanuviar sua mente. Só isso. Mais um aperto... Futurus! —Segurei a garra encarquilhada. — Adeus — ele se despediu, e pelas pálpebras descaídas julguei que ele também estava um pouco sob a influência daquela beberagem destorcedora de cérebros.

De súbito, lembrou-se de algo, passou a mão sobre o bolso da frente do paletó e de lá tirou outra embalagem, um cilindro do tamanho e formato de um tubo de creme para barbear.

— Aqui — disse. — Quase esqueci. Não abra até amanhã... mas leve já.

Era tão pesado que quase o derrubei.

— Certinho! — falei, e ele sorriu para mim através da janela da carruagem enquanto o condutor estalava o chicote para acordar seu cavalo.

Era um pacote branco, com selos vermelhos, um de cada lado e ao longo da beirada. “Se não é dinheiro, é platina ou chumbo”, pensei. Enfiei com cuidado meticuloso no bolso, e com o cérebro rodopiante fui para casa andando em meio aos vagabundos da rua Regent e pelas ruelas além da rua Portland. Lembro com vivacidade das sensações dessa caminhada, por mais estranhas que tenham sido. Ainda estava tão alterado que pude perceber meu estranho estado mental e pensar se a substância que ingerira era ópio, uma droga com a qual não tinha experiência. É difícil agora descrever a peculiaridade de minha alteridade mental — duplicidade mental mal dá conta de expressar. Ao andar pela Regent, notei em minha mente a bizarra percepção de que estava na estação Waterloo, e tive o estranho impulso de entrar na Politécnica como se subisse em um trem. Esfreguei os olhos com o nó do dedo, e era a Regent. Como posso descrever? Você vê um ator habilidoso olhando para você, ele faz um careta e, olha!, outra pessoa. Seria muito extravagante dizer que me parecia que a rua Regent tivesse, por um momento, feito isso? Depois, certo de que era a Regent outra vez, fiquei confuso com reminiscências fantásticas que brotaram em mim. “Trinta anos atrás”, pensei, “foi aqui que briguei com meu irmão”. Então caí na gargalhada, para a surpresa e excitação de um grupo de gatunos da noite. Trinta anos antes, eu não existia, e nunca na minha vida tinha acertado um irmão. A substância era certamente loucura líquida, pois o arrependimento contundente pelo irmão falecido ainda se agarrava a mim.

Ao longo da Portland, a insânia ressurgiu. Comecei a me lembrar de oficinas desaparecidas e a comparar a rua com o que ela já tinha sido. Pensamentos confusos e alterados são compreensíveis depois da bebida, mas o que me intrigava eram essas memórias fantasmas curiosamente vivazes que tinham se infiltrado em minha mente, e não apenas as memórias infiltradas, mas também as que tinham escoado. Parei em frente ao Stevens’, o negociante de artefatos de história natural, e matutei para lembrar qual era sua relação comigo. Um ônibus passou e soou exatamente como o estrondo de um trem. Eu parecia estar afundando em um poço escuro e distante para alcançar a lembrança.

— Claro — falei em voz alta, por fim —, ele me prometeu três rãs para amanhã. Estranho eu ter esquecido.

Ainda mostram lanternas mágicas a crianças? Lembro que uma imagem aparecia primeiramente como um fantasma esmaecido, e depois crescia até expelir outra. Desse mesmo modo, parecia-me que um conjunto fantasma de novas sensações batalhava com aquelas de meu eu comum.

Passei pela rua Euston até a Tottenham Court, intrigado, e um pouco assustado, e mal notei o trajeto incomum que tomava, pois geralmente eu cortava pelo emaranhado de ruelas. Virei na University, para descobrir que tinha esquecido o número. Apenas com um esforço enorme recuperei 11A, e mesmo assim me pareceu algo que sei lá quem havia me dito. Tentei firmar minha mente rememorando os acontecimentos do jantar, e por nada nesse mundo pude conjurar uma imagem do rosto de meu anfitrião; vi-o apenas como um perfil ensombrecido, como alguém que se olha pelo reflexo do vidro de uma janela. No lugar dele, de algum modo, eu obtinha uma curiosa versão exterior de mim mesmo, sentado à mesa, enrubescido e falante, com olhos iluminados.

— Devo tomar este outro pó — falei. — Isto está impossível.

Fui para o lado errado do hall atrás de vela e fósforos, e não sabia ao certo em que andar ficava meu quarto.

— Estou bêbado, disso tenho certeza. — E vacilei sem necessidade pela escada para sustentar a hipótese.

À primeira vista, meu quarto não me era familiar.

— Que chiqueiro! — comentei ao olhar em volta.

O esforço pareceu me trazer de volta, e a estranha característica fantasmagórica se tornou algo concreto. Lá estava o velho armário de vidro, com minhas anotações nos albúmens colados no canto da moldura, minhas velhas roupas cotidianas esparramadas pelo chão. E, no entanto, não era tão real, afinal. Eu sentia uma persuasão absurda tentando entrar em minha mente, a de que estava em um trem que parava, e eu olhava pela janela para uma estação desconhecida. Agarrei o gradil da cama com força para me reafirmar.

— É clarividência, talvez — falei. — Preciso escrever para a Psychical Research Society3.

Coloquei o pacotinho sobre a penteadeira, sentei-me na cama e fui descalçar as botas. Era como se a imagem de minhas atuais sensações estivesse pintada sobre outra imagem que se esforçasse para sobressair.

— Maldição! Perdi o juízo ou estou em dois lugares ao mesmo tempo?

Seminu, joguei o pó em um copo. Efervesceu e se tornou de uma cor âmbar fluorescente. Bebi tudo. Antes de me deitar, minha mente já havia se tranquilizado. Senti o travesseiro no rosto, e devo ter adormecido logo em seguida.

* * *

Acordei abruptamente de um sonho com bestas estranhas e me encontrei deitado de costas. Provavelmente todos conhecem aquele sonho sombrio e emocional do qual se escapa, de fato acordado, mas estranhamente acuado. Havia um gosto curioso na boca, uma sensação cansada nos membros, uma impressão de desconforto na pele. Pousei a cabeça imóvel no travesseiro, esperando que o sentimento de estranheza e medo passasse, e que então eu adormecesse outra vez. Mas, em vez disso, as sensações misteriosas permaneceram. De início, não percebi nada de errado comigo. Havia uma luz fraca no quarto, tão fraca que era quase a escuridão, e a mobília se destacava nela como nódoas vagas de treva absoluta. Encarei pouco além da roupa de cama sobre mim.

Passou pela minha mente que alguém pudesse ter entrado em meu quarto para roubar meu rolo de dinheiro, porém, após mais alguns momentos deitado, respirando regularmente para simular o sono, percebi que isso era apenas imaginação. No entanto, a desconfortável certeza de que havia algo errado continuava presa a mim. Com esforço, levantei a cabeça do travesseiro e espiei o escuro. O que era eu não podia saber. Olhei para as formas sombrias a meu redor, a maior ou menor escuridão que indicava cortinas, mesa, lareira, prateleiras de livros e assim por diante. Então, comecei a notar algo desconhecido nas formas na escuridão. Teria a cama se virado? Acolá deviam estar as prateleiras, e algo amortalhado e pálido levantava-se ali, algo que não podia ser chamado de prateleira. No entanto, olhei. Era grande demais para ser minha camisa jogada sobre uma cadeira.

Superando o terror infantil, joguei a colcha para o lado e enfiei a perna para fora do leito. Em vez de sair sobre a gaveta embaixo de minha cama, meu pé mal alcançou a borda do colchão. Dei outro passo, como necessário, e sentei-me na beirada da cama. Ao lado dela, deveria haver uma vela, e fósforos sobre a cadeira quebrada. Estiquei a mão e toquei... nada. Sacudi a mão na escuridão, e ela tocou algo pesado pendurado, macio e grosso em sua textura, que farfalhou ao toque. Agarrei e puxei; parecia ser uma cortina suspensa pelo dossel.

Completamente acordado, comecei a perceber que estava em um quarto desconhecido. Fiquei intrigado. Tentei lembrar as circunstâncias da noite anterior, e as encontrei, dessa vez, curiosamente, vívidas em minha memória: a ceia, o recebimento das pequenas embalagens, minha dúvida se estaria intoxicado, meu lento despir, o frio do travesseiro em meu rosto enrubescido. Senti uma súbita desconfiança. Teria sido na última noite ou na anterior a esta? De qualquer modo, este quarto me era estranho, e não sabia dizer como teria ido parar ali. O perfil sombrio e pálido se clareava, e percebi que se tratava de uma janela, com o formato escuro de um espelho de tocador oval contra a fraca intimação da aurora que se infiltrava pela persiana. Fiquei de pé, e fui pego de surpresa por uma singular sensação de fraqueza e desequilíbrio. Com mãos trêmulas esticadas, andei devagar até a janela. Manuseei o vidro, que era grande e com belas arandelas de latão, para achar o cordão da cortina. Não encontrei cordão algum. Por sorte, tomei a borla na mão e rapidamente a veneziana subiu.

Deparei-me com uma paisagem totalmente alheia a mim. A noite nublada, e através do cinza flocado das nuvens amontoadas, a meia-luz do amanhecer se embrenhava. Na borda do céu, a copa de nuvens possuía uma orla vermelho-sangue. Abaixo, tudo escuro e indistinto, montes turvos à distância, uma massa vaga de construções subindo até os pináculos, árvores como tinta esparramada e abaixo da janela um entrelaçado de arbustos negros e caminhos de um cinza-claro. Tão desconhecido que por um momento pensei ainda sonhar. Passei a mão pela mesa de tocador; parecia feita de uma madeira polida, e elaboradamente guarnecida: pequenos frascos de mosaico de vidro e uma escova. Havia também um pequeno objeto esquisito. Era como uma ferradura com projeções lisas e duras sobre um pires. Não encontrei fósforos nem vela.

Voltei os olhos para o cômodo novamente. Agora, com a persiana aberta, espectros baços da mobília saíam da escuridão. Havia uma enorme cama cortinada, e uma lareira a seus pés cuja cornija branca possuía o lustro do mármore.

Apoiei-me na mesa de tocador, fechei os olhos e os abri outra vez, e tentei pensar. A coisa toda era real demais para ser sonho. Estava inclinado a pensar que ainda havia algum tipo de hiato em minha memória, consequência do entorno daquele estranho licor; que eu tinha me deparado com a herança e, talvez, perdido a lembrança de tudo que acontecera após o anúncio da boa fortuna. Talvez, se esperasse um pouco, as coisas se esclareceriam. No entanto, o jantar com o velho Elvesham estava singularmente vivo e recente. A champanhe, os garçons atenciosos, o pó e os licores — apostaria minha própria alma que tudo tinha acontecido havia poucas horas.

E então me ocorreu algo tão trivial e, no entanto, tão terrível que estremeço agora só de pensar. Falei em voz alta. Eu disse:

— Como diabos vim parar aqui? — ... E a voz não era a minha.

Não era a minha, era fraca; a dicção, indistinta; a ressonância em meus ossos faciais, diferente. Então, para me acalmar, passei uma mão sobre a outra, e senti as dobras soltas de pele, a lassidão dos ossos comum da idade.

— Certamente — falei, naquela voz horrível que de algum modo tinha se estabelecido em minha garganta —, certamente isto é um sonho!

Quase tão rápido quanto um gesto involuntário, enfiei os dedos na boca. Meus dentes não estavam lá. Deslizei a ponta dos dedos pela superfície flácida de uma fileira de gengivas engruvinhadas. Fiquei nauseado de consternação e nojo.

Senti então um desejo intenso de me ver, de observar de uma vez por todas o horror total da mudança apavorante que eu tinha sofrido. Vacilei até a cornija e tateei em busca de fósforos. Enquanto o fazia, uma tosse ladrante subiu até minha garganta, e me agarrei à camisola de flanela grossa na qual me encontrei vestido. Não havia fósforos ali, e subitamente percebi que minhas extremidades estavam frias. Espirrando e tossindo, gemendo um pouco, voltei para a cama.

— Certamente um sonho — sussurrei para mim mesmo ao subir de volta ao leito —, certamente um sonho. — Uma repetição senil.

Puxei as cobertas por sobre os ombros até as orelhas e enfiei a mão envelhecida sob o travesseiro, determinado a dormir. Claro que era um sonho. Pela manhã, sonho encerrado, e acordarei forte e vigoroso novamente, para minha juventude e meus estudos. Fechei os olhos, respirei regularmente, e, ainda acordado, comecei a contar lentamente na potência de três.

Mas o que desejei não recebi. Não conseguia dormir. E a persuasão da realidade inexorável da mudança pela qual passara crescia firmemente. Arregalei os olhos, as potências esquecidas, e com os dedos magros sobre as gengivas enrugadas, eu era, de fato, um velho. De algum modo inexplicável tinha atravessado a vida e atingido a velhice, de algum modo tinham-me roubado a melhor parte da vida, do amor, da luta, da força e da esperança. Prostrei-me no travesseiro e tentei me persuadir de que tal alucinação era impossível. Imperceptivelmente, constantemente, a aurora foi se clareando.

Por fim, renunciando ao sono, sentei-me na cama e olhei ao redor. Um lusco-fusco frio tornava todo o quarto visível. Era espaçoso e bem mobiliado, melhor do que qualquer quarto em que já dormira. Uma vela e fósforos se tornaram parcialmente visíveis sobre um pequeno pedestal em um recesso. Joguei a coberta de lado e, tremendo com a crueza da manhã, embora fosse verão, desci e acendi a vela. Então, chacoalhando terrivelmente, tanto que o apagador balançava no candeeiro, cambaleei até o espelho e vi... o rosto de Elvesham! Não foi, no entanto, menos horrível, pois eu já havia vagamente pressentido. Ele já me parecera fisicamente fraco e digno de lástima, mas visto naquele momento, vestido apenas na camisola de flanela grossa, que se abria revelando o pescoço fibroso, visto, naquele momento, como meu próprio corpo, não sou capaz de descrever sua desolada decrepitude. As bochechas encovadas, as dispersas mechas de cabelo cinza-escuro, os olhos remelentos e baços, os lábios trêmulos e rugosos, sendo que o inferior exibia o brilho de seu forro rosa, e aquelas terríveis gengivas escuras. Você que é mente e corpo unidos, em sua idade natural, não é capaz de imaginar o que esta prisão diabólica significou para mim. Ser jovem e cheio de vontade e energia da juventude, e ficar preso, e ser esmagado por esta ruína vacilante de corpo...

Mas me desvio do rumo do relato. Devo ter ficado muito tempo estupefato com a mudança que me ocorreu. Era dia quando consegui voltar a pensar. De um modo inexplicável, eu tinha sido alterado, embora como, exceto por meio de magia, não sabia dizer. E enquanto ponderava, a engenhosidade diabólica de Elvesham surgiu em minha mente. Ficou claro para mim que do mesmo modo que eu me encontrava nele, ele devia estar em posse de meu corpo, de minha força, ou seja, de meu futuro. Mas como provar? Então, enquanto pensava, a questão se tornou tão incrível, mesmo para mim, que minha mente titubeou, e tive que me beliscar, sentir as gengivas desdentadas, olhar-me no espelho e tocar tudo em mim antes que pudesse me aprumar para encarar os fatos outra vez. Seria tudo alucinação? Seria eu, de fato, Elvesham, e ele, eu? Teria eu sonhado com Eden? Existia um Eden? Mas se eu era Elvesham, devia lembrar onde estive na manhã anterior, o nome da cidade onde morava, o que aconteceu antes de o sonho começar. Lutei com meus pensamentos. Recordei-me da estranha duplicidade de minhas lembranças durante a noite. Mas agora minha mente estava limpa. Não o fantasma de lembrança alguma, mas aquelas próprias de Eden.

— Estou insano — gritei com minha voz esganiçada.

Fiquei de pé sem equilíbrio, arrastei os membros frágeis e pesados para o tocador e enfiei a cabeça grisalha em uma bacia de água fria. Duas vezes. Sem sucesso. Sentia sem sombra de dúvida que era de fato Eden, não Elvesham. Mas Eden no corpo de Elvesham!

Se eu fosse homem de outra época, poderia ter considerado meu destino como encantado. Mas nos atuais dias céticos, milagres não são comuns. Isso era algum truque psicológico. O que uma droga e um olhar fixo poderiam provocar, uma droga e um olhar fixo, ou algum tratamento semelhante, poderiam desfazer. Homens já haviam perdido a memória antes. Mas trocar de memória como se trocariam guarda-chuvas! Ri. Ah, mas não um riso saudável, um risinho chiante e senil. Pude imaginar o velho Elvesham rindo de meu apuro, e uma rajada de raiva petulante, pouco comum a mim, arrebatou meus sentimentos. Comecei a vestir com intento as roupas que achei pelo chão, e percebi ao ficar pronto que estava no terno da noite anterior. Abri o guarda-roupa e encontrei trajes mais comuns: um par de calças xadrez e uma camisa antiquada. Coloquei uma venerável cartola em minha cabeça veneranda e, tossindo um pouco pelo esforço, claudiquei até o patamar.

Era então quinze para as seis, e as cortinas estavam fechadas e a casa, silenciosa. O patamar era espaçoso, uma ampla e ricamente carpetada escada descia até a escuridão do hall abaixo, e diante de mim uma porta semiaberta mostrava uma escrivaninha, uma estante de livros giratória, o espaldar de uma cadeira e uma bela coleção de livros encapados, prateleira após prateleira.

— Meu escritório — murmurei e atravessei o patamar. Ao som de minha voz, surgiu um pensamento, e voltei ao quarto para colocar a dentadura. Elas se assentaram com a facilidade de um velho hábito. — Melhor assim — disse, rangendo-a, e retornei ao escritório.

As gavetas da escrivaninha estavam trancadas. Seu tampo removível também. Não via indício de chaves, e não havia nenhuma nos bolsos de minhas calças. Apressei-me para o quarto e vasculhei o terno, e depois os bolsos de todas as roupas que encontrava. Estava muito ansioso, e alguém, ao ver o quarto depois que terminei, poderia ter pensado que ladrões tinham trabalhado ali. Não apenas não havia chaves, mas nem mesmo uma moeda ou um pedaço de papel — exceto pela nota da conta do jantar anterior.

Um estranho cansaço se instalou. Sentei-me e observei as peças de roupa jogadas aqui e ali, os bolsos revirados. Meu primeiro frenesi já tinha se extinguido. A cada momento eu percebia mais e mais a imensa inteligência dos planos de meu inimigo, a ver claramente a desesperança de minha situação. Com esforço, fiquei de pé e corri coxeando para o escritório outra vez. Na escadaria, uma serviçal levantava as persianas. Ela encarou, creio, a expressão em meu rosto. Fechei a porta do escritório atrás de mim, e, com um atiçador, ataquei a escrivaninha. Foi assim que me encontraram. O tampo quebrado, o cadeado estraçalhado, as cartas arrancadas de seus compartimentos e espalhadas pelo cômodo. Em minha fúria senil, tinha jogado canetas e outros objetos de papelaria, e revirado potes de tinta. Além disso, um grande vaso sobre a cornija tinha sido quebrado — não sei como. Não achei talão de cheque ou dinheiro, nem indício algum de como recuperar meu corpo. Eu batia ensandecido as gavetas quando o mordomo, acompanhado de duas serviçais, irrompeu em minha direção.

* * *

Esta é, em resumo, a história de minha transformação. Ninguém dá crédito as minhas asserções frenéticas. Sou tratado como um demente, e mesmo neste instante estou sob vigilância. Mas sou são, absolutamente são, e para prová-lo sentei-me para escrever esta história exatamente como me aconteceu. Pergunto ao leitor se há algum traço de insanidade no estilo ou no método da história que está lendo. Sou um jovem preso no corpo de um velho. Mas o fato é inconcebível para todos. Naturalmente, soo demenciado para aqueles que não creem. Naturalmente não sei os nomes de meus secretários, dos médicos que vêm me visitar, de meus criados e vizinhos, desta cidade (qualquer que seja) onde me encontro. Naturalmente, perco-me em minha própria casa e sofro inconveniências de toda sorte. Naturalmente, faço as mais estranhas perguntas. Naturalmente, choro e grito e sofro um paroxismo de desespero. Não tenho dinheiro nem cheques. O banco não reconhece minha assinatura, pois, apesar da fraqueza de meus músculos, minha caligrafia continua sendo a de Eden. Essas pessoas a minha volta não me deixam ir sozinho ao banco. Parece, na verdade, que não há banco nesta cidade, e que possuo conta em algum lugar de Londres. Parece que Elvesham mantinha o nome de seu procurador em segredo de todos os criados. Não posso ter certeza de nada. Elvesham era, claro, um profundo estudioso da ciência mental, e todas as minhas declarações dos fatos do caso apenas confirmam a teoria de que minha insanidade é o resultado do excesso de reflexão sobre a psicologia. Desvarios de identidade pessoal, sem dúvida! Dois dias atrás, eu era um rapaz saudável, com a vida toda pela frente; agora, sou um velho furioso, desgrenhado e desesperado; vagando por uma enorme, luxuosa e desconhecida casa; vigiado, temido e evitado, como um lunático, por todos a minha volta. E em Londres, Elvesham recomeça a vida em um corpo vigoroso, e com o conhecimento e sabedoria acumulados durante setenta anos. Ele me roubou a vida.

O que aconteceu, não sei ao certo. No escritório, há volumes de notas manuscritas referindo-se principalmente à psicologia da memória, e trechos do que podem ser cálculos ou cifras em símbolos absolutamente desconhecidas por mim. Em algumas passagens, há indicações de que ele também se ocupava com a filosofia da matemática. Creio que tenha transferido todas as suas memórias, o acúmulo do que compunha sua personalidade, de seu velho e abatido cérebro para o meu, e também tenha transferido o que era meu para o seu cortiço paupérrimo. Ou seja, intercambiou corpos. Mas como tal mudança pode ser possível está fora do alcance de meu entendimento. Sempre fui um materialista durante toda a minha vida intelectual, mas aqui, subitamente, há um caso óbvio da separação do homem de sua matéria.

Estou prestes a tentar um experimento desesperado. Sento e escrevo aqui antes de me lançar ao caso. Hoje cedo, com a ajuda de uma faca que subtraí no café da manhã, consegui violar uma gaveta secreta na escrivaninha destruída. Encontrei apenas um pequeno frasco verde contendo um pó branco. Nele, uma etiqueta, e nela, apenas uma palavra: “libertação”. Isto deve ser, mais provavelmente, veneno. Compreendo por que Elvesham colocou veneno em meu caminho, e tenho certeza de que era sua intenção se livrar do único ser vivente que poderia testemunhar contra ele, apenas não entendi o esconderijo cuidadoso. O homem praticamente resolveu o mistério da imortalidade. Exceto por uma vingança do acaso, viverá em meu corpo até a idade avançada, e então, novamente, vai deixar esse corpo de lado e achar outra vítima jovem e forte. Quando se pensa em sua crueldade, é terrível refletir sobre quanto tempo ele vem praticando esse experimento... Há quanto tempo salta de corpo em corpo...? Mas me canso de escrever. O pó é solúvel em água. O sabor não é desagradável.

* * *

Assim termina a narrativa encontrada sobre a escrivaninha do sr. Elvesham. Seu cadáver deitado entre a mesa e a cadeira, caída para trás, provavelmente empurrada pelas derradeiras convulsões do homem. A história foi escrita a lápis e em uma caligrafia demenciada, bem diferente de suas costumeiras letras cuidadosas. Restam apenas dois fatos curiosos a ser registrados. Sem dúvidas, havia uma conexão entre Eden e Elvesham, já que todas as propriedades de Elvesham foram repassadas para o jovem. Porém, ele nunca as herdou. Quando Elvesham cometeu suicídio, Eden já estava, por mais bizarro que seja, morto. Vinte quatro horas antes, uma carruagem o acertara e morrera na hora, no cruzamento movimentado da interseção da Gower com a Euston. De modo que o único ser humano que poderia esclarecer essa narrativa fantástica não estava mais ao alcance das perguntas. Sem mais comentários, deixo a extraordinária questão para o julgamento individual do leitor.

 

1. Aqui o sr. Elvesham faz um trocadilho entre Kummel (alcaravia) com Himmel (céu, paraíso) (N.T.).


2. Digestivo efervescente composto por bicarbonato de sódio, acido tartárico e tartarato de sódio e potássio (N.T.).


3. Sociedade britânica que encoraja a pesquisa científica de fenômenos psíquicos e paranormais.

Escrevo esta história, não com a esperança de que receba crédito, mas, se possível, para que prepare uma saída de fuga para a próxima vítima. Ele, talvez, tome proveito de meu infortúnio. Meu próprio caso, eu sei, é irremediável, e estou agora, de certo modo, preparado para encontrar com meu destino.
Meu nome é Edward George Eden. Nasci em Trentham, Staffordshire; meu pai empregado dos parques da região. Perdi minha mãe aos três anos de idade, e meu pai aos cinco; meu tio, George Eden, então me adotou como seu próprio filho. Ele era solteiro, autodidata e famoso em Birmingham como jornalista empreendedor; ele me educou com generosidade, atiçando minha ambição de sucesso no mundo, e, à sua morte, que ocorreu há quatro anos, deixou-me toda a sua fortuna, algo em torno de quinhentas libras após os gastos do falecimento. Eu tinha então dezoito. Ele me aconselhou em seu testamento a gastar o dinheiro com o término de minha educação. Eu já havia escolhido a profissão médica, e por meio de sua generosidade póstuma e minha boa sorte em uma competição para uma bolsa de estudos, tornei-me um estudante de medicina na University College, em Londres. À época do começo de minha história, eu habitava à rua University, número 11A, em um quartinho no primeiro andar, mal mobiliado e frio, com vista para o terreno de Shoolbred. Morava e dormia nesse quartinho porque queria esticar meus meios até o último centavo.
Levava um par de sapatos para remendar em um sapateiro na Tottenham Court quando encontrei pela primeira vez o velhote de cara amarela, com quem minha vida agora se tornou tão inextricavelmente enredada. Ele estava parado na calçada, encarando com dúvida o número na porta, quando eu a abri. Seus olhos — de uma cor de cinza embaçada e avermelhados sob a pálpebra — caíram sobre meu rosto, e sua fisionomia imediatamente assumiu uma expressão de amabilidade enrugada.

 

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_HISTORIA_O_FALECIDO_SENHOR_ELBESHAM.png

 

 

— Chegou na hora certa — ele disse. — Eu tinha esquecido o número de sua casa. Como vai, sr. Eden?

Fiquei um pouco surpreso com a intimidade do cumprimento, pois eu nunca tinha posto os olhos sobre esse homem. Fiquei um pouco irritado também, por ele ter me pego com as botas embaixo do braço. Ele percebeu minha falta de cordialidade.

— Está pensando quem diabos sou eu, é? Um amigo, posso lhe assegurar. Já o vi antes, embora você não tenha me visto. Podemos conversar em algum lugar?

Hesitei. A precariedade de meu quartinho lá em cima não era assunto para qualquer estranho.

— Talvez — disse —, possamos descer a rua. Infelizmente não posso... — Meu gesto explicou a frase antes que fosse pronunciada.

— Certo — ele concordou e olhou para um lado, depois para o outro. — A rua? Em que direção? — Coloquei minhas botas na passagem. — Olhe aqui! — ele disse abruptamente —, este meu assunto é complicado. Venha almoçar comigo, sr. Eden. Sou um homem velho, muito velho, e não sou bom em explicações, e com essa minha voz esganiçada e a barulheira do trânsito...

Pousou uma persuasiva mão ossuda, que tremia um pouco, sobre meu braço.

Eu não era tão velho para que um homem mais velho não pudesse me pagar um almoço. No entanto, ao mesmo tempo, não estava inteiramente satisfeito com o convite abrupto.

— Eu prefiro... — comecei.

— Mas eu prefiro — ele me interrompeu —, e certamente meus cabelos grisalhos merecem a civilidade.

E assim consenti e fui com ele.

Ele me levou ao Blavitiski’s; eu tive que andar lentamente para me adaptar às suas passadas; e durante um almoço sem igual em sabor, ele se esquivou de minha principal pergunta, e eu pude reparar mais em sua aparência. Seu rosto barbeado rente era magro e enrugado; seus lábios murchos caíam sobre dentes postiços, e seu cabelo branco era ralo e um tanto quanto comprido; parecia pequeno para mim — embora certamente a maioria das pessoas pareça pequena para mim —, e seus ombros eram curvos e caídos. E observando-o, não pude deixar de perceber que ele também tomava nota, correndo os olhos, com um curioso toque de ganância, sobre mim, de meus ombros largos para minhas mãos bronzeadas e depois de volta a meu rosto sardento.

— E agora — disse ele ao acendermos nossos cigarros —, devo contar-lhe sobre minha questão. — Devo contar-lhe que sou um homem velho, muito velho. — Pausou por um instante. — E acontece que tenho dinheiro que devo deixar, e não tenho filho algum para quem deixá-lo.

Pensei no truque da confiança e decidi ficar alerto aos vestígios de minhas quinhentas libras. Ele prosseguiu sobre a extensão de sua solidão, e a dificuldade que possuía em encontrar um fim adequado para seu dinheiro.

— Pesei este plano e aquele, caridades, instituições e bolsas de estudo e bibliotecas, e cheguei enfim a esta conclusão — fixou os olhos em meu rosto —, de que devo encontrar um jovem, ambicioso, de mente pura, pobre, saudável de mente e de corpo, e, em resumo, fazer dele meu herdeiro, dar-lhe tudo que possuo. — Ele repetiu: — Dar-lhe tudo que possuo. Para que ele possa subitamente ser erguido de todos os problemas e dificuldades nas quais suas disposições foram educadas, até alcançar a liberdade e a influência.

Tentei parecer desinteressado. Com hipocrisia transparente, falei:

— E quer minha ajuda, meus serviços profissionais talvez, para encontrar tal pessoa.

Ele sorriu, e me olhou por sobre seu cigarro, e eu ri de sua exposição muda de minha fingida modéstia.

— Que carreira tal homem pode ter! — ele disse. — Encho-me de inveja ao pensar como acumulei o que outro pode gastar... Mas há condições, claro, deveres impostos. Ele deve, por exemplo, pegar meu nome. Não pode esperar tudo sem nada em troca. E devo conhecer todas as circunstâncias de sua vida antes de aceitá-lo. Ele deve ser saudável. Eu preciso conhecer sua ascendência, como seus pais e avós morreram, fazer a mais rígida das investigações a respeito de sua moralidade.

Isso modificou um pouco minhas íntimas parabenizações secretas.

— E eu entendo — falei — que eu...

— Sim — ele disse, quase com ferocidade. — Você. Você.

Não respondi palavra. Minha imaginação dançava, furiosa, meu ceticismo inato inútil para modificar seus enlevos. Não havia uma partícula de gratidão em minha mente — não sabia o que dizer nem como dizer.

— Mas por que eu? — perguntei, por fim.

Por acaso, o professor Haslar falara de mim, como exemplo de um rapaz saudável e são, e ele desejava, tanto quanto possível, deixar seu dinheiro onde saúde e integridade fossem garantidas.

Esse foi meu primeiro encontro com o velhinho. Ele mantinha mistério a seu respeito; disse que ainda não informaria seu nome, e depois que respondi algumas de suas perguntas, me deixou na entrada do Blavitiski. Notei que retirou um punhado de moedas de ouro do bolso quando chegou a hora de pagar pelo almoço. Sua insistência na saúde corporal era curiosa. De acordo com nosso arranjo, nesse mesmo dia contratei um seguro de vida na Loyal Insurance Company, por uma bela quantia, e na semana seguinte fui exaustivamente atropelado pelos profissionais médicos dessa companhia. Nem isso o satisfez, e insistiu que eu fosse reexaminado pelo grande dr. Henderson.

Foi na sexta-feira da semana de Pentecostes que ele tomou a decisão. Pediu-me para descer, bem tarde da noite — quase nove —, tirando-me da minha compenetração nas equações químicas para o exame preliminar científico. Estava de pé na passagem, sob uma fraca lâmpada de gás, e seu rosto era uma interação grotesca de sombras. Parecia mais curvo do que a primeira vez em que o vi, e suas bochechas levemente encovadas.

Sua voz tremia de emoção:

— Tudo satisfatório, sr. Eden. Tudo muito, muito satisfatório. E esta noite, esta noite deve jantar comigo para celebrar sua... ascensão. — Foi interrompido pela tosse. — Não precisará esperar muito também — continuou, limpando os lábios com o lenço e pegando minha mão com a garra ossuda e longa que estava desocupada. — Certamente... não muito a esperar.

Fomos até a rua e chamamos uma carruagem. Lembro todos os incidentes desse percurso vividamente: a movimentação ligeira e confortável, o vívido contraste entre gás, óleo e eletricidade, as multidões nas ruas, o lugar na Regent para onde fomos e o suntuoso jantar servido ali. De início, fique desconcertado pelo olhar do garçom bem-vestido para as minhas vestes grosseiras, incomodado pelos caroços nas azeitonas, mas conforme a champanhe esquentava meu sangue, minha confiança se renovava. No começo, o velho falou sobre si. Já tinha me contado seu nome na carruagem; era Egbert Elvesham, o grande filósofo, cujo nome eu conhecia desde mancebo na escola. Parecia incrível para mim que este homem, cuja inteligência havia tão cedo dominado a minha, essa grande abstração, de repente se concretizasse como uma figura conhecida e decrépita. Ouso dizer que qualquer rapaz que tenha de repente se encontrado em meio a celebridades já sentiu um pouco de minha decepção. Contou-me sobre o futuro que os débeis córregos de sua vida deixariam em breve a seco para mim: casas, direitos autorais, investimentos. Nunca suspeitei que filósofos fossem tão ricos. Ele me observava beber e comer com uma pontada de inveja.

— Que capacidade para viver que possui! — E então, com um suspiro, um suspiro de alívio talvez: — Não vai demorar.

— Certo — disse eu, a cabeça já nadando em champanhe. — Tenho um futuro talvez... de um tipo razoavelmente satisfatório, graças ao senhor. Terei a honra de seu nome. Mas o senhor tem um passado. Tamanho passado que vale por todo o meu futuro.

Ele balançou a cabeça e sorriu, como pensei no momento, com gratidão um pouco triste pela minha admiração envaidecedora.

— Esse futuro — ele disse —, você, de fato, o mudaria? — O garçom veio com licores. — Não vai se importar, talvez, de tomar meu nome, minha posição, mas tomaria, por vontade própria, meus anos?

— Com suas façanhas — falei, cortês.

Ele sorriu outra vez.

— Kummel... os dois — ele disse para o garçom e voltou a atenção para um pequeno envelope que tirou do bolso. — Esta hora — falou —, esta hora após um jantar é a hora das pequenas coisas. Aqui está um pedaço de minha sabedoria inédita. — Abriu o envelope com os dedos amarelos e trêmulos e mostrou um pouco de pó rosado no papel. — Isto — continuou —, bem, você deve saber o que é. Mas Kummel, coloque uma pitada desse pó, e se torna Himmel1.

Seus grandes olhos cor de cinza observaram os meus com uma expressão inescrutável.

Foi um pouco chocante descobrir que este grande mestre se dedicava aos sabores dos licores. No entanto, fingi interesse nessa sua fraqueza, pois estava bêbado o suficiente para uma pequena adulação.

Ele dividiu o pó entre os dois copinhos, e, ficando subitamente de pé, com uma dignidade estranha e inesperada, estendeu a mão para mim. Imitei seu gesto, e os copos tilintaram.

— Para uma sucessão rápida — disse ele e levou o copo aos lábios.

— Isso não — apressei-me em dizer. — Isso não.

Interrompeu o movimento com o licor à altura do queixo, olhos fulminando os meus.

— Para uma vida longa — falei.

Ele hesitou.

— Para uma vida longa — repetiu, com um súbito ganido de gargalhada.

Com olhos fixos um no outro, viramos os copinhos. Seus olhos olharam bem dentro dos meus, e enquanto eu secava o líquido, sentia uma sensação intensa e curiosa. O primeiro golpe provocou tumulto em meu cérebro; eu parecia sentir um rebuliço físico dentro de meu crânio, e um zumbido fervilhante encheu meus ouvidos. Não notei o sabor em minha boca, o aroma em minha garganta; vi apenas a intensidade cinza do olhar perfurando o meu. A secura, a confusão mental, o barulho e a agitação em minha cabeça pareciam infinitos. Impressões vagas e curiosas de coisas semiesquecidas dançavam e desapareciam na beirada de minha consciência. Por fim, ele quebrou o feitiço. Com um suspiro súbito e explosivo, baixou o copo.

— E? — perguntou.

— Glorioso — respondi, embora não tivesse saboreado a substância.

Minha cabeça girava. Sentei-me. Meu cérebro estava um caos. Então minha percepção clareou e se intensificou, como se eu visse as coisas em um espelho côncavo. Seus modos pareciam ter se tornado nervosos e apressados. Pegou o relógio e fez um careta.

— Onze e sete! E esta noite eu devo... Sete e vinte e cinco. Waterloo! Preciso ir!

Ele pediu a conta e se atrapalhou com o casaco. Garçons prestativos vieram ajudá-lo. Em outro momento, despedia-me, sobre a plataforma de uma carruagem, e ainda com uma sensação absurda de nitidez detalhada, como se — como posso dizer? — eu não apenas visse, mas sentisse através de um binóculo de ópera em posição invertida.

— Aquela substância — ele disse e colocou a mão à testa —, não deveria lhe ter oferecido. Vai estourar sua cabeça amanhã. Espere um minuto. Aqui. — Ele me entregou um pacotinho fino que parecia pó de Seidlitz2. — Dilua na água e tome ao se deitar. A outra substância era uma droga. Atenção: somente ao se deitar. Vai desanuviar sua mente. Só isso. Mais um aperto... Futurus! —Segurei a garra encarquilhada. — Adeus — ele se despediu, e pelas pálpebras descaídas julguei que ele também estava um pouco sob a influência daquela beberagem destorcedora de cérebros.

De súbito, lembrou-se de algo, passou a mão sobre o bolso da frente do paletó e de lá tirou outra embalagem, um cilindro do tamanho e formato de um tubo de creme para barbear.

— Aqui — disse. — Quase esqueci. Não abra até amanhã... mas leve já.

Era tão pesado que quase o derrubei.

— Certinho! — falei, e ele sorriu para mim através da janela da carruagem enquanto o condutor estalava o chicote para acordar seu cavalo.

Era um pacote branco, com selos vermelhos, um de cada lado e ao longo da beirada. “Se não é dinheiro, é platina ou chumbo”, pensei. Enfiei com cuidado meticuloso no bolso, e com o cérebro rodopiante fui para casa andando em meio aos vagabundos da rua Regent e pelas ruelas além da rua Portland. Lembro com vivacidade das sensações dessa caminhada, por mais estranhas que tenham sido. Ainda estava tão alterado que pude perceber meu estranho estado mental e pensar se a substância que ingerira era ópio, uma droga com a qual não tinha experiência. É difícil agora descrever a peculiaridade de minha alteridade mental — duplicidade mental mal dá conta de expressar. Ao andar pela Regent, notei em minha mente a bizarra percepção de que estava na estação Waterloo, e tive o estranho impulso de entrar na Politécnica como se subisse em um trem. Esfreguei os olhos com o nó do dedo, e era a Regent. Como posso descrever? Você vê um ator habilidoso olhando para você, ele faz um careta e, olha!, outra pessoa. Seria muito extravagante dizer que me parecia que a rua Regent tivesse, por um momento, feito isso? Depois, certo de que era a Regent outra vez, fiquei confuso com reminiscências fantásticas que brotaram em mim. “Trinta anos atrás”, pensei, “foi aqui que briguei com meu irmão”. Então caí na gargalhada, para a surpresa e excitação de um grupo de gatunos da noite. Trinta anos antes, eu não existia, e nunca na minha vida tinha acertado um irmão. A substância era certamente loucura líquida, pois o arrependimento contundente pelo irmão falecido ainda se agarrava a mim.

Ao longo da Portland, a insânia ressurgiu. Comecei a me lembrar de oficinas desaparecidas e a comparar a rua com o que ela já tinha sido. Pensamentos confusos e alterados são compreensíveis depois da bebida, mas o que me intrigava eram essas memórias fantasmas curiosamente vivazes que tinham se infiltrado em minha mente, e não apenas as memórias infiltradas, mas também as que tinham escoado. Parei em frente ao Stevens’, o negociante de artefatos de história natural, e matutei para lembrar qual era sua relação comigo. Um ônibus passou e soou exatamente como o estrondo de um trem. Eu parecia estar afundando em um poço escuro e distante para alcançar a lembrança.

— Claro — falei em voz alta, por fim —, ele me prometeu três rãs para amanhã. Estranho eu ter esquecido.

Ainda mostram lanternas mágicas a crianças? Lembro que uma imagem aparecia primeiramente como um fantasma esmaecido, e depois crescia até expelir outra. Desse mesmo modo, parecia-me que um conjunto fantasma de novas sensações batalhava com aquelas de meu eu comum.

Passei pela rua Euston até a Tottenham Court, intrigado, e um pouco assustado, e mal notei o trajeto incomum que tomava, pois geralmente eu cortava pelo emaranhado de ruelas. Virei na University, para descobrir que tinha esquecido o número. Apenas com um esforço enorme recuperei 11A, e mesmo assim me pareceu algo que sei lá quem havia me dito. Tentei firmar minha mente rememorando os acontecimentos do jantar, e por nada nesse mundo pude conjurar uma imagem do rosto de meu anfitrião; vi-o apenas como um perfil ensombrecido, como alguém que se olha pelo reflexo do vidro de uma janela. No lugar dele, de algum modo, eu obtinha uma curiosa versão exterior de mim mesmo, sentado à mesa, enrubescido e falante, com olhos iluminados.

— Devo tomar este outro pó — falei. — Isto está impossível.

Fui para o lado errado do hall atrás de vela e fósforos, e não sabia ao certo em que andar ficava meu quarto.

— Estou bêbado, disso tenho certeza. — E vacilei sem necessidade pela escada para sustentar a hipótese.

À primeira vista, meu quarto não me era familiar.

— Que chiqueiro! — comentei ao olhar em volta.

O esforço pareceu me trazer de volta, e a estranha característica fantasmagórica se tornou algo concreto. Lá estava o velho armário de vidro, com minhas anotações nos albúmens colados no canto da moldura, minhas velhas roupas cotidianas esparramadas pelo chão. E, no entanto, não era tão real, afinal. Eu sentia uma persuasão absurda tentando entrar em minha mente, a de que estava em um trem que parava, e eu olhava pela janela para uma estação desconhecida. Agarrei o gradil da cama com força para me reafirmar.

— É clarividência, talvez — falei. — Preciso escrever para a Psychical Research Society3.

Coloquei o pacotinho sobre a penteadeira, sentei-me na cama e fui descalçar as botas. Era como se a imagem de minhas atuais sensações estivesse pintada sobre outra imagem que se esforçasse para sobressair.

— Maldição! Perdi o juízo ou estou em dois lugares ao mesmo tempo?

Seminu, joguei o pó em um copo. Efervesceu e se tornou de uma cor âmbar fluorescente. Bebi tudo. Antes de me deitar, minha mente já havia se tranquilizado. Senti o travesseiro no rosto, e devo ter adormecido logo em seguida.

* * *

Acordei abruptamente de um sonho com bestas estranhas e me encontrei deitado de costas. Provavelmente todos conhecem aquele sonho sombrio e emocional do qual se escapa, de fato acordado, mas estranhamente acuado. Havia um gosto curioso na boca, uma sensação cansada nos membros, uma impressão de desconforto na pele. Pousei a cabeça imóvel no travesseiro, esperando que o sentimento de estranheza e medo passasse, e que então eu adormecesse outra vez. Mas, em vez disso, as sensações misteriosas permaneceram. De início, não percebi nada de errado comigo. Havia uma luz fraca no quarto, tão fraca que era quase a escuridão, e a mobília se destacava nela como nódoas vagas de treva absoluta. Encarei pouco além da roupa de cama sobre mim.

Passou pela minha mente que alguém pudesse ter entrado em meu quarto para roubar meu rolo de dinheiro, porém, após mais alguns momentos deitado, respirando regularmente para simular o sono, percebi que isso era apenas imaginação. No entanto, a desconfortável certeza de que havia algo errado continuava presa a mim. Com esforço, levantei a cabeça do travesseiro e espiei o escuro. O que era eu não podia saber. Olhei para as formas sombrias a meu redor, a maior ou menor escuridão que indicava cortinas, mesa, lareira, prateleiras de livros e assim por diante. Então, comecei a notar algo desconhecido nas formas na escuridão. Teria a cama se virado? Acolá deviam estar as prateleiras, e algo amortalhado e pálido levantava-se ali, algo que não podia ser chamado de prateleira. No entanto, olhei. Era grande demais para ser minha camisa jogada sobre uma cadeira.

Superando o terror infantil, joguei a colcha para o lado e enfiei a perna para fora do leito. Em vez de sair sobre a gaveta embaixo de minha cama, meu pé mal alcançou a borda do colchão. Dei outro passo, como necessário, e sentei-me na beirada da cama. Ao lado dela, deveria haver uma vela, e fósforos sobre a cadeira quebrada. Estiquei a mão e toquei... nada. Sacudi a mão na escuridão, e ela tocou algo pesado pendurado, macio e grosso em sua textura, que farfalhou ao toque. Agarrei e puxei; parecia ser uma cortina suspensa pelo dossel.

Completamente acordado, comecei a perceber que estava em um quarto desconhecido. Fiquei intrigado. Tentei lembrar as circunstâncias da noite anterior, e as encontrei, dessa vez, curiosamente, vívidas em minha memória: a ceia, o recebimento das pequenas embalagens, minha dúvida se estaria intoxicado, meu lento despir, o frio do travesseiro em meu rosto enrubescido. Senti uma súbita desconfiança. Teria sido na última noite ou na anterior a esta? De qualquer modo, este quarto me era estranho, e não sabia dizer como teria ido parar ali. O perfil sombrio e pálido se clareava, e percebi que se tratava de uma janela, com o formato escuro de um espelho de tocador oval contra a fraca intimação da aurora que se infiltrava pela persiana. Fiquei de pé, e fui pego de surpresa por uma singular sensação de fraqueza e desequilíbrio. Com mãos trêmulas esticadas, andei devagar até a janela. Manuseei o vidro, que era grande e com belas arandelas de latão, para achar o cordão da cortina. Não encontrei cordão algum. Por sorte, tomei a borla na mão e rapidamente a veneziana subiu.

Deparei-me com uma paisagem totalmente alheia a mim. A noite nublada, e através do cinza flocado das nuvens amontoadas, a meia-luz do amanhecer se embrenhava. Na borda do céu, a copa de nuvens possuía uma orla vermelho-sangue. Abaixo, tudo escuro e indistinto, montes turvos à distância, uma massa vaga de construções subindo até os pináculos, árvores como tinta esparramada e abaixo da janela um entrelaçado de arbustos negros e caminhos de um cinza-claro. Tão desconhecido que por um momento pensei ainda sonhar. Passei a mão pela mesa de tocador; parecia feita de uma madeira polida, e elaboradamente guarnecida: pequenos frascos de mosaico de vidro e uma escova. Havia também um pequeno objeto esquisito. Era como uma ferradura com projeções lisas e duras sobre um pires. Não encontrei fósforos nem vela.

Voltei os olhos para o cômodo novamente. Agora, com a persiana aberta, espectros baços da mobília saíam da escuridão. Havia uma enorme cama cortinada, e uma lareira a seus pés cuja cornija branca possuía o lustro do mármore.

Apoiei-me na mesa de tocador, fechei os olhos e os abri outra vez, e tentei pensar. A coisa toda era real demais para ser sonho. Estava inclinado a pensar que ainda havia algum tipo de hiato em minha memória, consequência do entorno daquele estranho licor; que eu tinha me deparado com a herança e, talvez, perdido a lembrança de tudo que acontecera após o anúncio da boa fortuna. Talvez, se esperasse um pouco, as coisas se esclareceriam. No entanto, o jantar com o velho Elvesham estava singularmente vivo e recente. A champanhe, os garçons atenciosos, o pó e os licores — apostaria minha própria alma que tudo tinha acontecido havia poucas horas.

E então me ocorreu algo tão trivial e, no entanto, tão terrível que estremeço agora só de pensar. Falei em voz alta. Eu disse:

— Como diabos vim parar aqui? — ... E a voz não era a minha.

Não era a minha, era fraca; a dicção, indistinta; a ressonância em meus ossos faciais, diferente. Então, para me acalmar, passei uma mão sobre a outra, e senti as dobras soltas de pele, a lassidão dos ossos comum da idade.

— Certamente — falei, naquela voz horrível que de algum modo tinha se estabelecido em minha garganta —, certamente isto é um sonho!

Quase tão rápido quanto um gesto involuntário, enfiei os dedos na boca. Meus dentes não estavam lá. Deslizei a ponta dos dedos pela superfície flácida de uma fileira de gengivas engruvinhadas. Fiquei nauseado de consternação e nojo.

Senti então um desejo intenso de me ver, de observar de uma vez por todas o horror total da mudança apavorante que eu tinha sofrido. Vacilei até a cornija e tateei em busca de fósforos. Enquanto o fazia, uma tosse ladrante subiu até minha garganta, e me agarrei à camisola de flanela grossa na qual me encontrei vestido. Não havia fósforos ali, e subitamente percebi que minhas extremidades estavam frias. Espirrando e tossindo, gemendo um pouco, voltei para a cama.

— Certamente um sonho — sussurrei para mim mesmo ao subir de volta ao leito —, certamente um sonho. — Uma repetição senil.

Puxei as cobertas por sobre os ombros até as orelhas e enfiei a mão envelhecida sob o travesseiro, determinado a dormir. Claro que era um sonho. Pela manhã, sonho encerrado, e acordarei forte e vigoroso novamente, para minha juventude e meus estudos. Fechei os olhos, respirei regularmente, e, ainda acordado, comecei a contar lentamente na potência de três.

Mas o que desejei não recebi. Não conseguia dormir. E a persuasão da realidade inexorável da mudança pela qual passara crescia firmemente. Arregalei os olhos, as potências esquecidas, e com os dedos magros sobre as gengivas enrugadas, eu era, de fato, um velho. De algum modo inexplicável tinha atravessado a vida e atingido a velhice, de algum modo tinham-me roubado a melhor parte da vida, do amor, da luta, da força e da esperança. Prostrei-me no travesseiro e tentei me persuadir de que tal alucinação era impossível. Imperceptivelmente, constantemente, a aurora foi se clareando.

Por fim, renunciando ao sono, sentei-me na cama e olhei ao redor. Um lusco-fusco frio tornava todo o quarto visível. Era espaçoso e bem mobiliado, melhor do que qualquer quarto em que já dormira. Uma vela e fósforos se tornaram parcialmente visíveis sobre um pequeno pedestal em um recesso. Joguei a coberta de lado e, tremendo com a crueza da manhã, embora fosse verão, desci e acendi a vela. Então, chacoalhando terrivelmente, tanto que o apagador balançava no candeeiro, cambaleei até o espelho e vi... o rosto de Elvesham! Não foi, no entanto, menos horrível, pois eu já havia vagamente pressentido. Ele já me parecera fisicamente fraco e digno de lástima, mas visto naquele momento, vestido apenas na camisola de flanela grossa, que se abria revelando o pescoço fibroso, visto, naquele momento, como meu próprio corpo, não sou capaz de descrever sua desolada decrepitude. As bochechas encovadas, as dispersas mechas de cabelo cinza-escuro, os olhos remelentos e baços, os lábios trêmulos e rugosos, sendo que o inferior exibia o brilho de seu forro rosa, e aquelas terríveis gengivas escuras. Você que é mente e corpo unidos, em sua idade natural, não é capaz de imaginar o que esta prisão diabólica significou para mim. Ser jovem e cheio de vontade e energia da juventude, e ficar preso, e ser esmagado por esta ruína vacilante de corpo...

Mas me desvio do rumo do relato. Devo ter ficado muito tempo estupefato com a mudança que me ocorreu. Era dia quando consegui voltar a pensar. De um modo inexplicável, eu tinha sido alterado, embora como, exceto por meio de magia, não sabia dizer. E enquanto ponderava, a engenhosidade diabólica de Elvesham surgiu em minha mente. Ficou claro para mim que do mesmo modo que eu me encontrava nele, ele devia estar em posse de meu corpo, de minha força, ou seja, de meu futuro. Mas como provar? Então, enquanto pensava, a questão se tornou tão incrível, mesmo para mim, que minha mente titubeou, e tive que me beliscar, sentir as gengivas desdentadas, olhar-me no espelho e tocar tudo em mim antes que pudesse me aprumar para encarar os fatos outra vez. Seria tudo alucinação? Seria eu, de fato, Elvesham, e ele, eu? Teria eu sonhado com Eden? Existia um Eden? Mas se eu era Elvesham, devia lembrar onde estive na manhã anterior, o nome da cidade onde morava, o que aconteceu antes de o sonho começar. Lutei com meus pensamentos. Recordei-me da estranha duplicidade de minhas lembranças durante a noite. Mas agora minha mente estava limpa. Não o fantasma de lembrança alguma, mas aquelas próprias de Eden.

— Estou insano — gritei com minha voz esganiçada.

Fiquei de pé sem equilíbrio, arrastei os membros frágeis e pesados para o tocador e enfiei a cabeça grisalha em uma bacia de água fria. Duas vezes. Sem sucesso. Sentia sem sombra de dúvida que era de fato Eden, não Elvesham. Mas Eden no corpo de Elvesham!

Se eu fosse homem de outra época, poderia ter considerado meu destino como encantado. Mas nos atuais dias céticos, milagres não são comuns. Isso era algum truque psicológico. O que uma droga e um olhar fixo poderiam provocar, uma droga e um olhar fixo, ou algum tratamento semelhante, poderiam desfazer. Homens já haviam perdido a memória antes. Mas trocar de memória como se trocariam guarda-chuvas! Ri. Ah, mas não um riso saudável, um risinho chiante e senil. Pude imaginar o velho Elvesham rindo de meu apuro, e uma rajada de raiva petulante, pouco comum a mim, arrebatou meus sentimentos. Comecei a vestir com intento as roupas que achei pelo chão, e percebi ao ficar pronto que estava no terno da noite anterior. Abri o guarda-roupa e encontrei trajes mais comuns: um par de calças xadrez e uma camisa antiquada. Coloquei uma venerável cartola em minha cabeça veneranda e, tossindo um pouco pelo esforço, claudiquei até o patamar.

Era então quinze para as seis, e as cortinas estavam fechadas e a casa, silenciosa. O patamar era espaçoso, uma ampla e ricamente carpetada escada descia até a escuridão do hall abaixo, e diante de mim uma porta semiaberta mostrava uma escrivaninha, uma estante de livros giratória, o espaldar de uma cadeira e uma bela coleção de livros encapados, prateleira após prateleira.

— Meu escritório — murmurei e atravessei o patamar. Ao som de minha voz, surgiu um pensamento, e voltei ao quarto para colocar a dentadura. Elas se assentaram com a facilidade de um velho hábito. — Melhor assim — disse, rangendo-a, e retornei ao escritório.

As gavetas da escrivaninha estavam trancadas. Seu tampo removível também. Não via indício de chaves, e não havia nenhuma nos bolsos de minhas calças. Apressei-me para o quarto e vasculhei o terno, e depois os bolsos de todas as roupas que encontrava. Estava muito ansioso, e alguém, ao ver o quarto depois que terminei, poderia ter pensado que ladrões tinham trabalhado ali. Não apenas não havia chaves, mas nem mesmo uma moeda ou um pedaço de papel — exceto pela nota da conta do jantar anterior.

Um estranho cansaço se instalou. Sentei-me e observei as peças de roupa jogadas aqui e ali, os bolsos revirados. Meu primeiro frenesi já tinha se extinguido. A cada momento eu percebia mais e mais a imensa inteligência dos planos de meu inimigo, a ver claramente a desesperança de minha situação. Com esforço, fiquei de pé e corri coxeando para o escritório outra vez. Na escadaria, uma serviçal levantava as persianas. Ela encarou, creio, a expressão em meu rosto. Fechei a porta do escritório atrás de mim, e, com um atiçador, ataquei a escrivaninha. Foi assim que me encontraram. O tampo quebrado, o cadeado estraçalhado, as cartas arrancadas de seus compartimentos e espalhadas pelo cômodo. Em minha fúria senil, tinha jogado canetas e outros objetos de papelaria, e revirado potes de tinta. Além disso, um grande vaso sobre a cornija tinha sido quebrado — não sei como. Não achei talão de cheque ou dinheiro, nem indício algum de como recuperar meu corpo. Eu batia ensandecido as gavetas quando o mordomo, acompanhado de duas serviçais, irrompeu em minha direção.

* * *

Esta é, em resumo, a história de minha transformação. Ninguém dá crédito as minhas asserções frenéticas. Sou tratado como um demente, e mesmo neste instante estou sob vigilância. Mas sou são, absolutamente são, e para prová-lo sentei-me para escrever esta história exatamente como me aconteceu. Pergunto ao leitor se há algum traço de insanidade no estilo ou no método da história que está lendo. Sou um jovem preso no corpo de um velho. Mas o fato é inconcebível para todos. Naturalmente, soo demenciado para aqueles que não creem. Naturalmente não sei os nomes de meus secretários, dos médicos que vêm me visitar, de meus criados e vizinhos, desta cidade (qualquer que seja) onde me encontro. Naturalmente, perco-me em minha própria casa e sofro inconveniências de toda sorte. Naturalmente, faço as mais estranhas perguntas. Naturalmente, choro e grito e sofro um paroxismo de desespero. Não tenho dinheiro nem cheques. O banco não reconhece minha assinatura, pois, apesar da fraqueza de meus músculos, minha caligrafia continua sendo a de Eden. Essas pessoas a minha volta não me deixam ir sozinho ao banco. Parece, na verdade, que não há banco nesta cidade, e que possuo conta em algum lugar de Londres. Parece que Elvesham mantinha o nome de seu procurador em segredo de todos os criados. Não posso ter certeza de nada. Elvesham era, claro, um profundo estudioso da ciência mental, e todas as minhas declarações dos fatos do caso apenas confirmam a teoria de que minha insanidade é o resultado do excesso de reflexão sobre a psicologia. Desvarios de identidade pessoal, sem dúvida! Dois dias atrás, eu era um rapaz saudável, com a vida toda pela frente; agora, sou um velho furioso, desgrenhado e desesperado; vagando por uma enorme, luxuosa e desconhecida casa; vigiado, temido e evitado, como um lunático, por todos a minha volta. E em Londres, Elvesham recomeça a vida em um corpo vigoroso, e com o conhecimento e sabedoria acumulados durante setenta anos. Ele me roubou a vida.

O que aconteceu, não sei ao certo. No escritório, há volumes de notas manuscritas referindo-se principalmente à psicologia da memória, e trechos do que podem ser cálculos ou cifras em símbolos absolutamente desconhecidas por mim. Em algumas passagens, há indicações de que ele também se ocupava com a filosofia da matemática. Creio que tenha transferido todas as suas memórias, o acúmulo do que compunha sua personalidade, de seu velho e abatido cérebro para o meu, e também tenha transferido o que era meu para o seu cortiço paupérrimo. Ou seja, intercambiou corpos. Mas como tal mudança pode ser possível está fora do alcance de meu entendimento. Sempre fui um materialista durante toda a minha vida intelectual, mas aqui, subitamente, há um caso óbvio da separação do homem de sua matéria.

Estou prestes a tentar um experimento desesperado. Sento e escrevo aqui antes de me lançar ao caso. Hoje cedo, com a ajuda de uma faca que subtraí no café da manhã, consegui violar uma gaveta secreta na escrivaninha destruída. Encontrei apenas um pequeno frasco verde contendo um pó branco. Nele, uma etiqueta, e nela, apenas uma palavra: “libertação”. Isto deve ser, mais provavelmente, veneno. Compreendo por que Elvesham colocou veneno em meu caminho, e tenho certeza de que era sua intenção se livrar do único ser vivente que poderia testemunhar contra ele, apenas não entendi o esconderijo cuidadoso. O homem praticamente resolveu o mistério da imortalidade. Exceto por uma vingança do acaso, viverá em meu corpo até a idade avançada, e então, novamente, vai deixar esse corpo de lado e achar outra vítima jovem e forte. Quando se pensa em sua crueldade, é terrível refletir sobre quanto tempo ele vem praticando esse experimento... Há quanto tempo salta de corpo em corpo...? Mas me canso de escrever. O pó é solúvel em água. O sabor não é desagradável.

* * *

Assim termina a narrativa encontrada sobre a escrivaninha do sr. Elvesham. Seu cadáver deitado entre a mesa e a cadeira, caída para trás, provavelmente empurrada pelas derradeiras convulsões do homem. A história foi escrita a lápis e em uma caligrafia demenciada, bem diferente de suas costumeiras letras cuidadosas. Restam apenas dois fatos curiosos a ser registrados. Sem dúvidas, havia uma conexão entre Eden e Elvesham, já que todas as propriedades de Elvesham foram repassadas para o jovem. Porém, ele nunca as herdou. Quando Elvesham cometeu suicídio, Eden já estava, por mais bizarro que seja, morto. Vinte quatro horas antes, uma carruagem o acertara e morrera na hora, no cruzamento movimentado da interseção da Gower com a Euston. De modo que o único ser humano que poderia esclarecer essa narrativa fantástica não estava mais ao alcance das perguntas. Sem mais comentários, deixo a extraordinária questão para o julgamento individual do leitor.

 

1. Aqui o sr. Elvesham faz um trocadilho entre Kummel (alcaravia) com Himmel (céu, paraíso) (N.T.).


2. Digestivo efervescente composto por bicarbonato de sódio, acido tartárico e tartarato de sódio e potássio (N.T.).


3. Sociedade britânica que encoraja a pesquisa científica de fenômenos psíquicos e paranormais.

 

 

                                                                  H. G. Wells

 

 

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