Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ESTILHAÇA-ME
ESTILHAÇA-ME

 

 

                                                                                                                                                

 

 

 

 

 

 

40

Warner está prostrado.

Eu estou agitada e fugindo com sua arma.

Preciso encontrar Adam. Preciso roubar um carro. Preciso encontrar James e Kenji. Preciso aprender a dirigir. Preciso levar todos para um lugar seguro. Preciso fazer tudo exatamente nessa ordem.

Adam não pode estar morto.

Adam não está morto.

Adam não estará morto.

Meus pés pisoteiam a calçada em um ritmo constante, minha blusa e meu rosto respingados de sangue, minhas mãos tremendo de leve ao sol poente. Uma brisa forte me surpreende, sacudindo-me para fora da realidade enlouquecida em que pareço estar flutuando. Respiro de modo pesado, aperto os olhos para o céu, e percebo que não tenho muito tempo antes de perder a luz. As ruas, pelo menos, há muito foram evacuadas. Mas não faço a mínima ideia de onde os homens de Warner possam estar.

Indago-me se Warner também tem o soro rastreador. Indago-me se eles saberiam se ele estivesse morto.

Entro em esquinas escuras, tento interpretar as ruas em busca de pistas, tento lembrar onde Adam caiu, mas minha memória é tão fraca, tão distraída, meu cérebro tão incapaz de processar esses tipos de detalhe. Esse instante terrível é uma confusão de insanidade em minha mente. Não consigo tirar nenhum sentido disso e Adam poderia estar em qualquer lugar a esta altura. Eles poderiam ter feito qualquer coisa com ele.

Nem mesmo sei o que estou procurando.

Posso estar desperdiçando o meu tempo.

Ouço um movimento súbito e me lanço numa rua lateral, meus dedos apertando, com astúcia, a arma em minha mão. Agora que eu de fato disparei uma arma, sinto-me mais confiante com ela em minhas mãos, mais consciente do que esperar, como ela funciona. Mas eu não sei se deveria estar feliz ou aterrorizada com o fato de me sentir tão rapidamente à vontade com alguma coisa letal.

Passos.

Encosto na parede, meus braços e minhas pernas achatados contra a superfície áspera. Espero que eu esteja oculta nas sombras. Pergunto-me se alguém já encontrou Warner.

Observo o soldado passar por mim. Ele tem um rifle pendurado no peito, o menor tipo de arma automática nas mãos. Olho para arma na minha própria mão e percebo que não faço ideia de quantos tipos diferentes existem. Tudo o que sei é que algumas são maiores que outras. Algumas têm de ser recarregadas constantemente. Outras, como a que estou segurando, não. Talvez Adam possa ensinar as diferenças.

Adam.

Inspiro profundamente e me desloco o mais furtivamente que consigo pelas ruas. Localizo uma sombra particularmente escura em um trecho da calçada à minha frente e faço um esforço para evitá-la. Mas, à medida que me aproximo, vou percebendo que não é uma sombra. É uma mancha.

Sangue de Adam.

Aperto minha mandíbula até que a dor espante os gritos. Respiro acelerado, faltando-me o ar. Preciso me concentrar. Preciso usar essa informação. Preciso prestar atenção...

Preciso seguir o rastro de sangue.

Quem quer que tenha arrastado Adam ainda não voltou para limpar a sujeira. Há respingos constantes saindo das vias principais e entrando nas ruas laterais mal iluminadas. A luz é tão fraca que tenho de me recurvar para procurar pelas manchas no chão. Estou perdendo de vista para onde elas levam. Há menos aqui. Acho que elas desapareceram por completo. Não sei se as manchas escuras que encontro são sangue ou chiclete velho esmagado na calçada ou gotas de vida de outra pessoa. O trajeto de Adam desapareceu.

Recuo vários passos e refaço o percurso.

Preciso refazê-lo três vezes antes de perceber que eles devem tê-lo levado para dentro. Há uma antiga estrutura de aço com uma porta enferrujada ainda mais velha que parece nunca ter sido aberta. Parece não ser usada há anos. Não vejo quaisquer opções.

Mexo na maçaneta. Está travada.

Desloco meu peso todo para tentar abri-la à força, na violência, mas apenas consigo machucar meu corpo. Poderia colocá-la abaixo aos tiros, mas não estou certa de minha pontaria nem de minha habilidade com esta arma, não tenho certeza de que possa me permitir ao barulho. Não posso fazer minha presença ser notada.

Tem de haver outro modo de entrar neste edifício.

Não há outro modo de entrar neste edifício.

Minha frustração só aumenta. Meu desespero é incapacitante. Minha histeria ameaça me invalidar e quero gritar até meus pulmões entrarem em colapso. Adam está neste edifício. Ele tem de estar neste edifício.

Estou parada do lado de fora deste edifício e não consigo entrar.

Isso não pode estar acontecendo.

Fecho as mãos, tento repelir o fracasso desesperador que me envolve em seu abraço, mas me sinto enlouquecida. Selvagem. Insana. A adrenalina me escapa, meu foco me escapa, o Sol está se pondo no horizonte e eu recordo James e Kenji e Adam Adam Adam e as mãos de Warner sobre meu corpo e seus lábios em minha boca e sua língua provando meu pescoço e todo o sangue

por toda parte

por toda parte

por toda parte

e faço algo estúpido.

Eu esmurro a porta.

Em um instante minha mente alcança meus músculos e me preparo para o impacto do aço na pele, pronta para sentir a agonia de quebrar todos os ossos de meu braço direito. Mas meu punho penetra 30 centímetros de aço como se fosse feito de manteiga. Estou atordoada. Aproveito a mesma energia volátil e dou um pontapé na porta. Uso as mãos para rasgar o aço em tiras, atravessando o metal aos arranhões, como um animal feroz.

É incrível. Estimulante. Completamente selvagem.

Deve ser como quebrei o concreto da câmara de tortura de Warner. O que significa que ainda não faço ideia de como quebrei o concreto da câmara de tortura de Warner.

Escalo pelo buraco que criei e deslizo para as sombras. Não é difícil. Todo o lugar está envolto em trevas. Não há luzes, não há ruídos de máquinas ou eletricidade. Apenas outro depósito abandonado às intempéries.

Verifico o chão, mas não há sinal de sangue. Meu coração dispara e desacelera ao mesmo tempo. Preciso que ele esteja bem. Preciso que ele esteja vivo. Adam não está morto. Ele não pode estar.

Adam prometeu a James que voltaria para buscá-lo.

Ele nunca quebraria essa promessa.

Ando devagar no início, cautelosa, preocupada com o fato de que possa haver soldados ao redor, mas não demora muito para eu perceber que não há som de vida neste edifício. Decido correr.

Enfio a arma no bolso e espero que consiga pegá-la caso precise. Estou correndo através das portas, fazendo curvas, não deixando escapar nenhum detalhe. Este edifício não era apenas um depósito. Era uma fábrica.

Máquinas antigas entulhadas nas paredes, esteiras transportadoras paralisadas, milhares de caixas de estoque sobrepostas de forma precária em pilhas altas. Ouço uma respiração baixinha, uma tosse contida.

Estou disparando por uma série de portas duplas vai e vem, à procura do som fraco, lutando para me concentrar nos mínimos detalhes. Estico os ouvidos e escuto o som novamente.

Respiração difícil e pesada.

Quanto mais perto chego, mais claramente posso escutá-lo. Tem de ser ele. Minha arma está erguida e pronta para o disparo, meus olhos, agora cautelosos, antecipando-se aos agressores. Minhas pernas se movem ligeiramente, suavemente, silenciosamente. Quase atiro em uma sombra que as caixas projetaram no chão. Respiro firme. Viro para outro canto.

E quase entro em colapso.

Adam está pendurado pelos pulsos, sem camisa, ensanguentado e ferido por toda parte. A cabeça está inclinada, seu pescoço, frouxo, sua perna esquerda, ensopada de sangue, apesar do torniquete envolto em sua coxa. Não sei há quanto tempo o peso de seu corpo todo está suspenso pelos pulsos. Estou surpresa por ele não ter deslocado os ombros. Ele ainda deve estar lutando para manter-se firme.

A corda enrolada em seus pulsos está presa a algum tipo de haste metálica que atravessa o teto. Olho mais de perto e percebo que a haste é parte de uma esteira rolante. Que Adam está sobre uma esteira transportadora.

Que isto não é somente uma fábrica.

É um matadouro.

Sinto-me péssima demais para me dar ao luxo da histeria neste momento.

Preciso encontrar um modo de descê-lo, mas temo me aproximar. Meus olhos sondam o espaço, certa de que há guardas em algum lugar, soldados preparados para esse tipo de emboscada. Quando então me ocorre que talvez eu nunca tenha sido considerada uma ameaça de fato. Não se eles acreditam que Warner conseguiu me arrastar para longe.

Ninguém esperaria me encontrar aqui.

Subo em cima da esteira e Adam tenta erguer a cabeça. Tenho que ter cuidado para não olhar muito de perto suas feridas, para não deixar minha imaginação me incapacitar. Não aqui. Não agora.

— Adam...?

Sua cabeça se levanta bruscamente com uma súbita explosão de energia. Seus olhos me encontram. Seu rosto está quase incólume; há apenas pequenos cortes e escoriações dos quais prestar contas. Focar-me no que lhe resta de familiar me dá um pouco de calma.

— Juliette...?

— Preciso cortar a corda...

— Jesus, Juliette... como me encontrou? — Ele tosse. Ofega. Respira firme.

— Mais tarde. — Levanto a mão para tocar-lhe o rosto. — Vou lhe contar tudo mais tarde. Primeiro, preciso achar uma faca.

— Minhas calças...

— O quê?

— Dentro — ele engole — das minhas calças...

Alcanço seu bolso e ele balança a cabeça. Levanto os olhos.

— Onde...

— Há um bolso interno nas minhas calças...

Praticamente rasgo suas roupas. Há um pequeno bolso costurado no forro de suas calças cargo. Enfio a mão e encontro um canivete compacto. Um canivete butterfly. Já vi um desses antes.

Eles são ilegais.

Começo empilhando caixas na esteira transportadora. Escalo por elas e rogo a Deus que eu saiba o que estou fazendo. A faca é extremamente afiada, e corto rapidamente as amarras. Percebo um pouco tardiamente que a corda que o prende é a mesma que usamos para escapar.

Adam está livre. Estou descendo, dobrando a faca e enfiando-a em meu bolso. Não sei como vou tirar Adam daqui. Seus pulsos estão em carne viva, perdendo sangue, seu corpo moído de dor, sua perna sangrando com uma bala alojada.

Ele quase cai.

Tento retê-lo da forma mais delicada possível, tento segurá-lo, da melhor forma possível, sem machucá-lo. Ele não diz uma palavra sobre a dor, tenta com muito esforço esconder o fato de que está com dificuldades para respirar. Ele faz uma expressão de dor ante a tortura toda, mas não murmura uma só palavra de reclamação.

— Não consigo acreditar que você me encontrou — é tudo o que ele diz.

E sei que não deveria. Sei que agora não é hora. Sei que isso é impraticável. Mas, seja como for, eu o beijo.

— Você não vai morrer — digo a ele. — Vamos sair daqui. Vamos roubar um carro. Vamos encontrar James e Kenji. E então vamos ficar em segurança.

Ele olha para mim.

— Dá outro beijo — diz ele.

E eu o beijo.

Leva uma vida inteira para conseguir voltar para a porta. Adam fora ocultado nos recessos deste edifício, e encontrar o caminho para a entrada é ainda mais difícil do que previ. Adam está tentando a todo custo, andando tão rápido quanto pode, mas ele ainda não está rápido de modo algum.

— Eles disseram que Warner queria me matar com as próprias mãos — explica. — Que ele atirou em minha perna de propósito, apenas para me incapacitar. Isso dava chance para arrastar você para longe e voltar mais tarde para acabar comigo. Aparentemente, seu plano era me torturar até a morte. — Ele faz cara de dor. — Ele disse que queria saborear isso. Não queria uma morte rápida. — Uma risada expansiva. Uma tosse breve.

Suas mãos sobre meu corpo suas mãos sobre meu corpo suas mãos sobre meu corpo.

— Então eles simplesmente o amarraram pendurado e o largaram aqui?

— Eles disseram que ninguém me encontraria mesmo. Eles disseram que o prédio é todo feito de concreto e aço reforçado e que ninguém poderia arrombá-lo. Supostamente era para Warner voltar quando ele estivesse pronto. — Ele para. Olha para mim. — Deus, estou tão feliz que você esteja bem.

Ofereço-lhe um sorriso. Tento evitar que meus órgãos saiam do lugar. Espero que os buracos em minha cabeça não estejam aparecendo.

Ele para quando chegamos à porta. O metal está destroçado. Parece que um animal selvagem o atacou e desapareceu.

— Como é que...

— Eu não sei — admito. Tento dar de ombros, ser indiferente. — Eu só dei um murro.

— Você só deu um murro?

— E chutei um pouco.

Ele está sorrindo e eu quero chorar em seus braços. Tento me focar em seu rosto. Não posso deixar meus olhos digerirem a imitação grotesca de seu corpo.

— Venha — digo a ele. — Vamos fazer algo ilegal.

Deixo Adam nas sombras e lanço-me até o limite da rua principal, à procura de veículos abandonados. Temos de percorrer três ruas laterais diferentes até finalmente encontrarmos um.

— Como está resistindo? — pergunto a ele, temendo ouvir a resposta.

Ele aperta os lábios. Faz um movimento que parece um sim com a cabeça.

— Tudo bem.

Isso não é bom.

— Espere aqui.

Está um breu intenso, nem uma só lâmpada à vista. Isso é bom. Ruim também. Isso me dá uma vantagem extra, e me torna mais vulnerável a ataques. Preciso ser cuidadosa. Ando na pontinha dos pés até o carro.

Estou totalmente preparada para quebrar o vidro, mas antes verifico a maçaneta. Só para garantir.

A porta está aberta.

As chaves estão na ignição.

Há uma sacola de compras no banco de trás.

Alguém deve ter entrado em pânico ao som do alarme e ao inesperado toque de recolher. Eles devem ter abandonado tudo e corrido para se proteger. Isso seria absolutamente perfeito se eu fizesse alguma ideia de como dirigir.

Volto correndo e ajudo Adam a ir mancando até o lado do passageiro. Assim que ele se senta, consigo perceber a intensidade da sua dor. Curvando o corpo de qualquer maneira. Colocando pressão sobre as costelas. Esticando seus músculos.

— Está tudo bem — diz para mim, mente para mim. — Não posso ficar de pé por muito tempo.

Chego à parte de trás e remexo as sacolas de supermercados. Tem comida de verdade dentro delas. Não só estranhos caldos de carne projetados para ir dentro de Automáticos, e sim frutas e vegetais. Mesmo Warner nunca deu bananas para nós.

Entrego a fruta amarela para Adam.

— Coma isso.

— Acho que não posso comer... — Ele olha para a forma em suas mãos. — Isso é o que eu penso que é?

— Acho que sim.

Não temos tempo para processar a impossibilidade. Descasco-a para ele. Encorajo-o a dar uma pequena mordida. Espero que seja boa. Ouvi dizer que bananas têm potássio. Espero que ele não vomite.

Tento me concentrar na máquina sob meus pés.

— Quanto tempo você acha que temos até Warner nos encontrar? — pergunta Adam.

— Eu não sei.

Uma pausa.

— Como você escapou dele...?

Estou olhando para além do para-brisa quando respondo.

— Atirei nele.

— Não. — Surpresa. Pavor. Assombro.

Mostro a arma de Warner. Há uma gravura especial no punho.

Adam está atordoado.

— Então ele está... morto?

— Eu não sei — finalmente admito, envergonhada. Baixo os olhos, estudo as ranhuras no volante. — Não tenho certeza. — Levei muito tempo para puxar o gatilho. Ele era mais duro que eu previa que fosse. Mais difícil segurar a arma entre minhas mãos do que eu tinha imaginado. Warner já estava me soltando quando a bala perfurou seu corpo. Eu estava mirando em seu coração.

Deus permita que eu não tenha errado.

Nós dois ficamos calados.

— Adam?

— Sim?

— Não sei dirigir.


41

— Você tem sorte por este não ser de câmbio manual. — Ele tenta rir.

— Câmbio manual? O que é isso?

— Algo um pouco mais complicado.

Mordo o lábio.

— Você lembra onde deixamos James e Kenji? — Nem quero considerar a possibilidade de que eles tenham se deslocado. Sido descobertos. Qualquer coisa. Não posso sequer pensar nessa ideia.

— Sim. — Eu sei que ele está pensando exatamente o que eu estou pensando.

— Como eu chego lá?

Adam diz para mim que o pedal direito é para acelerar. O da esquerda para frear. Tenho de mudar para o D para dirigir. Uso o volante para manobrar. Há espelhos que me ajudam a ver atrás de mim. Não consigo ligar os faróis dianteiros e terei de confiar na Lua para iluminar meu caminho.

Ligo a ignição, pressiono o freio, mudo a marcha para dirigir. A voz de Adam é o único GPS de que preciso. Libero o freio. Aperto o acelerador. Quase bato em um muro.

É assim que, finalmente, voltamos ao edifício abandonado.

Acelero. Freio. Acelero. Freio. Acelero muito. Freio muito. Adam não reclama e isso é quase pior. Só consigo imaginar o que minha condução está fazendo a seus ferimentos. Estou grata por, ao menos, não estarmos mortos, ainda não.

Não sei por que ainda ninguém nos localizou. Pergunto-me se talvez Warner esteja morto. Pergunto-me se tudo está um caos. Pergunto-me se é por isso que não há soldados nesta cidade. Todos eles desapareceram.

Penso eu.

Quase me esqueço de colocar o carro no estacionamento quando chegamos ao edifício arruinado e vagamente familiar. Adam tem de alcançar o volante e estacionar o carro para mim. Ajudo-o a passar para o banco traseiro, e ele me pergunta o porquê.

— Porque vou fazer Kenji de motorista, e não quero que seu irmão tenha de vê-lo desse jeito. Está escuro o suficiente para que ele não veja seu corpo. Não acho que ele deva vê-lo machucado.

Ele faz que sim com a cabeça depois de um momento infinito.

— Obrigado.

E corro rumo ao prédio destruído. Empurro as portas para abrirem. Mal distingo duas figuras no escuro. Pisco e elas entram em foco. James está adormecido com a cabeça no colo de Kenji. As mochilas de acampamento estão abertas, latas de comida descartadas no chão. Eles estão bem.

Obrigada a Deus por estarem bem.

Poderia morrer de alívio.

Kenji puxa James para cima e o encaixa em seus braços, pelejando um pouco com o peso. Seu rosto é calmo, sério, inabalável. Ele não sorri. Ele não diz qualquer coisa estúpida. Ele estuda meus olhos como se já os conhecesse, como se já entendesse por que demoramos tanto para voltar, como se houvesse apenas uma razão para explicar meu atual estado deplorável, o sangue que tenho por toda a blusa. Provavelmente no rosto. Por todas as minhas mãos.

— Como ele está?

E eu quase não o entendo ali.

— Preciso que você dirija.

Ele respira firme. Faz que sim com a cabeça várias vezes.

— Minha perna direita ainda está boa — diz para mim, mas não sei se me importaria com isso mesmo se ela não estivesse. Precisamos chegar a seu lugar seguro, e minha condução não nos levará a nenhum lugar.

Kenji coloca um James adormecido no lado do passageiro, e fico muito feliz por ele não estar acordado agora.

Apanho as mochilas de acampamento e levo-as até o banco traseiro. Kenji senta-se na frente. Olha pelo espelho retrovisor.

— É bom vê-lo vivo, Kent.

Adam quase sorri. Sacode a cabeça.

— Obrigado por cuidar de James.

— Confia em mim agora?

Um breve suspiro.

— Talvez.

— Ainda levo um talvez. — Ele sorri. Liga o carro. — Vamos dar o fora daqui.

Adam está tremendo.

Seu corpo nu está finalmente se rendendo ao frio, às horas de tortura, à tensão por ter-se mantido firme durante tanto tempo. Estou remexendo as mochilas, procurando um casaco, mas tudo o que encontro são camisas e suéteres. Não sei como vesti-los sem causar-lhe dor.

Decido cortá-los em pedaços. Pego o canivete butterfly e corto algumas de suas camisas, dispondo-as sobre seu corpo como um cobertor. Levanto os olhos.

— Kenji... este carro tem aquecedor.

— Está ligado, mas é bem vagabundo. Não está funcionando muito bem.

— Quanto tempo até chegarmos lá?

— Não muito.

— Viu alguém que possa estar nos seguindo?

— Não. — Ele pausa. — É estranho. Não entendo por que ninguém notou um carro voando por estas ruas depois do toque de recolher. Algo está errado.

— Eu sei.

— E eu não sei o que é, mas é óbvio que meu soro rastreador não está funcionando. Ou eles realmente não dão a mínima para mim, ou ele de fato não está funcionando, e eu não sei por quê.

Um detalhe minúsculo assenta-se nas margens de minha consciência. Examino-o.

— Você não disse que dormiu em um galpão? Naquela noite que você fugiu?

— Sim, por quê?

— Onde era...?

Ele encolhe os ombros.

— Não sei. Um campo enorme. Foi estranho. Coisas malucas crescem naquele lugar. Quase comi algo que pensei que era fruta, antes de perceber que cheirava a traseiro.

Prendo a respiração.

— Era um campo vazio? Árido? Totalmente abandonado?

— Sim.

— O campo nuclear — diz Adam, a compreensão raiando em sua voz.

— Que campo nuclear? — pergunta Kenji.

Levo um momento para explicar.

— Caralho! — Kenji aperta o volante. — Então eu podia ter morrido? E não morri?

Eu o ignoro.

— Mas, então, como eles nos encontraram? Como descobriram onde você morava...? — me dirigi a Adam.

— Eu não sei — Adam suspira. Fecha os olhos. — Talvez Kenji esteja mentindo para nós.

— Sem essa, cara, que diabos...

— Ou... — interrompe Adam —, talvez eles tenham comprado Benny.

— Não. — Sobressalto-me.

— É possível.

Todos nós ficamos em silêncio durante um longo tempo. Tento olhar pela janela, mas é quase inútil. O céu noturno é um barril de alcatrão sufocando o mundo ao nosso redor.

Viro para Adam e o encontro com a cabeça inclinada para trás, suas mãos apertadas, seus lábios quase brancos na escuridão. Enrolo os suéteres mais firmemente em seu corpo. Ele reprime um tremor.

— Adam... — Tiro alguns fios de cabelo de sua testa. Seus cabelos ficaram um pouco compridos e eu percebo que nunca realmente prestei atenção nisso antes. Eles têm sido aparados desde o dia em que Adam pisou na minha cela. Nunca teria imaginado que seus cabelos escuros seriam tão macios. Como chocolate derretido. Me pergunto quando ele parou de cortá-los.

Ele mexe a mandíbula. Mantém os lábios abertos. Mente para mim mais uma vez.

— Estou bem.

— Kenji...

— Cinco minutos, prometo... estou tentando acelerar esta coisa...

Toco seus pulsos, traço sua pele delicada com a ponta dos dedos. As cicatrizes ensanguentadas. Beijo a palma de sua mão. Ele respira de forma compassada.

— Você vai ficar bem — digo a ele.

Seus olhos ainda estão fechados. Ele tenta balançar a cabeça.

— Por que você não me disse que estavam juntos? — pergunta Kenji, inesperadamente. Sua voz é serena, indiferente.

— O quê? — Agora não é hora para ruborizar.

Kenji suspira. Olha de relance pelo retrovisor. O inchaço quase se foi de todo. Seu rosto está sarando.

— Teria de estar cego para deixar escapar algo assim. Digo, diabos, só o jeito que ele te olha. É tipo o cara que nunca viu uma mulher na vida. Tipo botar comida na frente de um homem morrendo de fome e dizer a ele que não pode comer.

Os olhos de Adam se abrem de súbito. Tento interpretá-lo, mas ele não olha para mim.

— Por que você simplesmente não contou para mim? — diz Kenji novamente.

— Eu nunca tive a chance de pedir — responde Adam. Sua voz é menor que um sussurro. Seus níveis de energia estão decaindo bem depressa. Não quero que ele tenha de falar. Ele precisa conservar sua força.

— Espere... você está falando para mim ou para ela? — Kenji olha para nós.

— Discutimos isso mais tarde... — tento dizer, mas Adam sacode a cabeça.

— Eu contei a James sem perguntar a você. Eu fiz... uma suposição. — Ele faz uma pausa. — Não deveria ter feito. Você deveria ter uma escolha. Deveria sempre ter uma escolha. E é sua escolha se quiser ficar comigo.

— Ei, então, só estou fingindo que não posso mais escutar vocês, OK? —Kenji faz um movimento aleatório com a mão. — Vão em frente e tenham o momento de vocês.

Mas estou ocupada demais estudando os olhos de Adam, seus lábios macios macios. Sua testa franzida.

Inclino-me ao seu ouvido, diminuo o tom de voz. Sussurro as palavras que somente ele pode escutar.

— Você vai ficar melhor — prometo a ele. — E, quando estiver melhor, vou lhe mostrar perfeitamente a escolha que fiz. Vou memorizar cada centímetro de seu corpo com meus lábios.

Ele expira subitamente, trêmulo, irregular. Engole em seco.

Seus olhos estão queimando em mim. Ele parece quase febril, e me indago se estou piorando as coisas.

Eu recuo, e ele me detém. Pousa a mão em minha coxa.

— Não vá — diz ele. — Seu toque é a única coisa que me impede de enlouquecer.


42

— Aqui estamos, e é tarde da noite. Então, de acordo com meus cálculos, não devemos ter feito nada de errado.

Kenji entra no estacionamento. Estamos novamente no subsolo, em uma espécie de garagem complicada. Há um minuto estávamos sobre o solo, no minuto seguinte desaparecemos em uma vala. É quase impossível se localizar, muito menos avistar algo na escuridão. Kenji estava dizendo a verdade sobre este esconderijo.

Estive ocupada nos últimos minutos tentando manter Adam acordado. Seu corpo está lutando contra a exaustão, a perda de sangue, a fome, um milhão de pontos diferentes de dor. Sinto-me completamente impotente.

— Adam tem que ir direto para a ala médica — anuncia Kenji.

— Eles têm uma ala médica? — Meu coração está descendo de parapente na estação da primavera.

Kenji sorri.

— Este lugar tem tudo. Você vai pirar. — Ele aperta um interruptor no teto. Uma luz fraca ilumina o velho sedã. Kenji sai do carro. — Espere aqui... Vou arranjar alguém para trazer uma maca.

— E quanto a James?

— Ah. — A boca de Kenji se contorce. — Eh, hã... ele vai ficar dormindo por muito mais tempo.

— O que você quer dizer...?

Ele limpa a garganta. Uma. Duas vezes. Alisa as rugas na camisa.

— Eu, hã, posso ou não posso ter lhe dado algo para... atenuar o sofrimento desta viagem.

— Você deu para um garoto de dez anos? Um comprimido para dormir? — Estou com medo de quebrar-lhe o pescoço.

— Você preferia que ele estivesse acordado ao longo de tudo isso?

— Adam vai matá-lo.

Kenji olha para as pálpebras descaídas de Adam.

— Sim, bem, acho que tenho sorte por ele não ser capaz de me matar esta noite. — Ele hesita. Entra rapidamente no carro para passar os dedos pelos cabelos de James. Sorri um pouco. — Este garoto é um santo. Estará perfeito pela manhã.

— Não acredito que você...

— Ei, ei... — Ele levanta as mãos. — Confie em mim. Ele vai ficar bem. Só não queria que ele ficasse ainda mais traumatizado do que já estava. — Ele encolhe os ombros. — Diabos, Adam talvez concorde comigo.

— Vou matar você. — A voz de Adam é um resmungo suave.

Kenji ri.

— Força, irmão, ou vou pensar que você não quis realmente dizer isso.

Kenji desaparece.

Tomo conta de Adam, encorajo-o a permanecer acordado. Digo que ele está quase são e salvo. Toco meus lábios em sua testa. Estudo cada sombra, cada contorno, cada corte e escoriação de seu rosto. Seus músculos relaxam, suas feições perdem a tensão. Ele expira com um pouco mais de facilidade. Beijo-lhe o lábio superior. Beijo-lhe o lábio inferior. Beijo-lhe as bochechas. Beijo-lhe o nariz. Beijo-lhe o queixo.

Tudo acontece tão depressa depois disso.

Quatro pessoas correm em direção ao carro. Duas mais velhas que eu, duas mais velhas que as primeiras. Dois homens. Duas mulheres.

— Onde ele está? — pergunta a mulher mais velha. Eles estão olhando em volta, ansiosos. Pergunto-me se eles podem ver que estou olhando fixo para eles.

Kenji abre a porta de Adam. Kenji não está mais sorrindo. Na verdade, ele parece... diferente. Mais forte. Mais rápido. Maior, até. Ele está no controle. Uma figura de autoridade. Estas pessoas o conhecem.

Adam é erguido em cima de uma maca e imediatamente avaliado. Todos estão falando ao mesmo tempo. Alguma coisa sobre costelas quebradas. Alguma coisa sobre perda de sangue. Alguma coisa sobre vias aéreas e capacidade pulmonar e “o que aconteceu com seus pulsos?”. Alguma coisa sobre medir seu pulso e “há quanto ele está sangrando?”. O rapaz jovem e a mulher olham em minha direção. Todos estão vestindo roupas estranhas.

Trajes estranhos.

Tudo branco com listras cinzentas ao lado. Fico me perguntando se é um uniforme médico.

Eles estão levando Adam embora.

— Esperem... — Saio do carro. — Esperem! Quero ir com ele...

— Agora não. — Kenji me detém. Suaviza o tom de voz. — Você não pode ficar com ele durante tudo o que eles precisam fazer. Não agora.

— O que quer dizer? O que eles vão fazer com ele? — O mundo está entrando e saindo de foco, tons de cinza tremeluzindo como formas rebuscadas, movimentos interrompidos. De repente nada faz sentido. De repente tudo está me confundindo. De repente minha cabeça é um pedaço de calçada e eu estou sendo pisoteada até a morte. Não sei onde nós estamos. Não sei quem é Kenji. Kenji era amigo de Adam. Adam o conhece. Adam. Meu Adam. Adam, que está sendo levado de mim, e eu não posso ir com ele e eu quero ir com ele, mas eles não me deixam e eu não sei por quê...

— Eles vão ajudá-lo... Juliette... você precisa se concentrar. Você não pode perder o autocontrole agora. Sei que tem sido um dia louco... mas preciso que você fique calma. — Sua voz. Tão firme. Repentinamente tão articulada.

— Quem é você...? — Estou começando a entrar em pânico. Quero pegar James e fugir, mas não posso. Ele fez algo a James e, ainda que eu soubesse como despertá-lo, não posso tocá-lo. Quero arrancar minhas unhas. — Quem é você...

Kenji suspira.

— Você está morrendo de fome. Está exausta. Está processando o choque e um milhão de outras emoções neste instante. Seja sensata. Não vou machucá-lo. Você está a salvo agora. Adam está a salvo. James está a salvo.

— Quero ficar com ele... quero ver o que vão fazer com ele...

— Não posso deixá-la fazer isso.

— O que você vai fazer comigo? Por que me trouxe aqui...? Meus olhos estão arregalados, atirando-se a um milhão de direções. Estou girando, encalhada no meio do oceano de minha própria imaginação. Não sei como nadar. — O que você quer de mim?

Kenji baixa os olhos. Esfrega a testa. Enfia a mão no bolso.

— Realmente não queria ter de fazer isto.

Acho que estou gritando.


43

Sou uma velha escadaria rangendo quando acordo.

Alguém me lavou. Minha pele está como cetim. Meus cílios estão suaves, meu cabelo está liso, escovado; ele brilha à luz artificial, um rio de chocolate marulhando-se junto à pálida orla de minha pele, ondas suaves em cascata ao redor de minha clavícula. Minhas articulações doem; meus olhos queimam de exaustão insaciável. Meu corpo está nu sob o pesado lençol. Nunca me senti tão imaculada.

Estou cansada demais para ficar incomodada com isso.

Meus olhos sonolentos varrem o espaço em que estou, mas não há muito a considerar. Estou deitada na cama. Há quatro paredes. Uma porta. Uma mesinha ao lado. Um copo de água sobre ela. Luzes fluorescentes zunindo sobre mim. Tudo é branco.

Tudo o que já conheci está mudando.

Tento pegar o copo de água e a porta se abre. Puxo o lençol o mais alto que ele chega.

— Como está se sentindo?

Um homem alto está usando óculos de plástico. Armações pretas. Um simples suéter. Calças apertadas. Seus cabelos louros tom de areia caem-lhe aos olhos. Ele está segurando uma prancheta.

— Quem é você?

Ele pega uma cadeira que não reparei que estava no canto. Empurra-a para a frente. Senta-se ao lado da cama.

— Sente-se zonza? Desorientada?

— Onde está Adam?

Ele está segurando uma caneta sobre uma folha de papel. Escreve alguma coisa.

— Seu nome se soletra com dois erres? Ou só um?

— O que vocês fizeram com James? Onde está Kenji?

Ele para. Levanta os olhos. Ele não pode ter mais que 30. Ele tem um nariz curvo. Barba por fazer.

— Posso ao menos me certificar de que está tudo bem com você? Então responderei a suas perguntas. Prometo. Deixa só eu terminar aqui o protocolo básico.

Pisco.

Como me sinto. Eu não sei.

Tive sonhos. Acho que não.

Sei onde estou. Não.

Acho que estou a salvo. Não sei.

Lembro o que aconteceu. Sim.

Que idade tenho. Dezessete.

De que cor são meus olhos. Não sei.

— Você não sabe? — Ele rebaixa a caneta. Tira os óculos. — Você se lembra exatamente do que aconteceu ontem, mas não sabe a cor dos próprios olhos?

— Acho que são verdes. Ou azuis. Não tenho certeza. Por que isso importa?

— Quero ter certeza de que você pode reconhecer a si mesma. De que não perdeu de vista sua pessoa.

— Mas nunca soube mesmo a cor de meus olhos. Só me olhei no espelho uma vez nos últimos três anos.

O estranho olha fixo para mim, seus olhos vincados de preocupação. Por fim tenho de desviar o olhar.

— Como você me tocou? — pergunto.

— Perdão?

— Meu corpo. Minha pele. Estou tão... limpa.

— Ah. — Ele morde o dedo polegar. Marca alguma coisa no papel. — Certo. Bem, você estava coberta de sangue e sujeira quando chegou, e estava com alguns cortes pequenos e escoriações. Não queríamos que desse uma infecção. Lamento pela intrusão... mas não podemos permitir que alguém traga algum tipo de bactéria aqui dentro. Tivemos de proceder a uma desintoxicação superficial.

— Tudo bem... compreendo — digo apressada. — Mas como?

— Perdão?

— Como você me tocou? — Certamente ele sabe. Como poderia não saber? Deus, espero que ele saiba.

— Ah... — Ele abana a cabeça, distraído pelas palavras que ele está rabiscando em sua prancheta. Aperta os olhos à página. — Látex.

— O quê?

— Látex. — Ele levanta os olhos por um segundo. Percebe minha confusão. — Luvas?

— Certo. — É claro. Luvas. Até Warner usava luvas até descobrir que não precisava delas.

Até descobrir que não precisava delas. Até descobrir que não precisava delas. Até descobrir que não precisava delas.

Rebobino o momento várias e várias vezes na minha cabeça. A fração de segundo que demorei para pular da janela. O momento de hesitação que mudou tudo. O instante em que perdi todo o controle. Todo o poder. Qualquer propósito de domínio. Ele nunca vai parar até me encontrar, e isso é tudo culpa minha.

Preciso saber se ele está morto.

Tenho de me forçar para ficar imóvel. Tenho de me forçar para não tremer, ou vomitar. Preciso mudar de assunto.

— Onde estão minhas roupas? — Brinco com o lençol de um branco perfeito que esconde meus ossos.

— Foram destruídas pelas mesmas necessidades de desinfecção. — Ele levanta os óculos. Recoloca-os rapidamente. — Temos um traje especial para você. Acho que ele vai tornar sua vida muito mais fácil.

— Um traje especial? — Levanto os olhos. Aparto os lábios em surpresa.

— Sim. Vamos chegar a essa parte um pouco mais tarde. — Ele faz uma pausa. Sorri. Há uma covinha em seu queixo. — Você não vai me atacar como atacou Kenji, vai?

— Eu ataquei Kenji? — recuo de susto.

— Só um pouco. — Ele encolhe os ombros. — Pelo menos agora sabemos que ele não é imune ao seu toque.

— Eu toquei nele? — Sento-me ereta e quase me esqueço de puxar o lençol comigo. Estou em chamas da cabeça aos pés, ruborizando por causa da lembrança, agarrando-me ao lençol como a uma tábua de salvação. — Lamento muito...

— Estou certo de que ele vai gostar do pedido de desculpas. — O loirão está estudando suas notas religiosamente, de repente fascinado por sua própria caligrafia. — Mas está tudo certo. Estávamos esperando algumas tendências destrutivas. Você teve uma semana infernal.

— Você é psicólogo?

— Mais ou menos. — Ele tira o cabelo da testa.

— Mais ou menos?

Ele ri. Interrompe. Gira a caneta entre os dedos.

— Sim. Para todos os efeitos, sou psicólogo. Às vezes.

— O que é que isso quer dizer...?

Ele separa os lábios. Aperta-os. Ele parece considerar responder, mas em vez disso me examina. Ele me encara por tanto tempo que sinto meu rosto pegar fogo. Ele começa a rabiscar furiosamente.

— O que estou fazendo aqui? — pergunto a ele.

— Recuperando-se.

— Há quanto tempo estou aqui?

— Você dormiu por quase 14 horas. Demos para você um sedativo bem poderoso. — Olha para seu relógio. — Você parece estar indo bem. — Hesita. — Na verdade, você parece muito bem. Impressionante, realmente.

Tenho um punhado de palavras embaralhadas na minha boca. Meu rosto está corando.

— Onde está Adam?

Ele respira fundo. Sublinha alguma coisa em seus papéis. Seus lábios se contorcem em um sorriso.

— Onde ele está?

— Recuperando-se. — Ele finalmente levanta os olhos.

— Ele está bem?

Faz que sim com a cabeça.

— Ele está bem.

Eu o encaro.

— O que quer dizer?

Duas batidas à porta.

O estranho de óculos não se move. Ele relê suas notas.

— Entre — convida ele.

Kenji entra, de início um pouco hesitante. Ele me espia, seus olhos cautelosos. Nunca pensei que ficaria tão feliz em vê-lo. No entanto, apesar do alívio em ver um rosto conhecido, meu estômago imediatamente se retorce em um nó de culpa, revirando-me por dentro. Pergunto-me se devo tê-lo machucado muito. Ele dá um passo à frente.

Minha culpa desaparece.

Olho mais de perto e percebo que ele está perfeitamente ileso. Sua perna está funcionando bem. Seu rosto voltou ao normal. Seus olhos não estão mais inchados, sua testa está curada, lisa, intacta. Ele estava certo.

Ele tem um rosto espetacular.

Uma marcante linha de mandíbula. Sobrancelhas perfeitas. Olhos tão negros quanto seus cabelos. Astuto. Forte. Um tanto perigoso.

— Ei, lindeza.

— Desculpa se quase matei você — digo impulsivamente.

— Ah. — Ele se surpreende. Enfia as mãos nos bolsos. — Ora, fico feliz que acabamos com isso. — Reparo que ele está usando uma camiseta destruída. Jeans pretos. Há muito não vejo alguém usando jeans. Uniformes do exército, roupas básicas de algodão e vestidos extravagantes são tudo o que tenho visto ultimamente.

Não consigo mesmo olhar para ele.

— Entrei em pânico — tento explicar. Entrelaço e desentrelaço os dedos.

— Imaginei. — Ele ergue uma sobrancelha.

— Lamento.

— Eu sei.

Aceno com a cabeça.

— Você parece melhor.

Ele abre um sorriso. Espreguiça-se. Recosta-se na parede, braços cruzados ao peito, pernas cruzadas nos tornozelos.

— Isso deve ser difícil para você.

— Perdão?

— Olhar para o meu rosto. Perceber que eu estava certo. Perceber que você tomou a decisão errada. — Ele encolhe os ombros. — Eu entendo. Não sou um homem orgulhoso, você sabe. Estaria disposto a perdoá-la.

Olho boquiaberta para ele, sem saber se dou uma risada ou lhe jogo alguma coisa.

— Não me faça tocar em você.

Ele sacode a cabeça.

— É incrível como algumas pessoas aparentam estar em pleno juízo e fazem escolhas tão erradas. Kent é um sortudo.

— Lamento... — O psicólogo se levanta. — Vocês dois terminaram aqui? — Ele olha para Kenji. — Pensei que você tivesse um propósito.

Kenji se desgruda da parede. Endireita as costas.

— Certo. Sim. Castle quer conhecê-la.


44

— Agora? — O loirão está mais confuso que eu. — Mas não terminei de examiná-la.

Kenji encolhe os ombros.

— Ele quer conhecê-la.

— Quem é Castle? — pergunto.

O loirão e Kenji olham para mim. Kenji desvia o olhar. Loirão não.

Ele inclina a cabeça.

— Kenji não lhe disse nada sobre este lugar?

— Não. — Vacilo, incerta, olhando para Kenji, que não olha para mim. — Ele nunca explicou nada. Ele disse que conhecia alguém que tinha um lugar seguro e achava que ele pudesse nos ajudar...

Loirão fica boquiaberto. Ri tanto que tosse. Levanta-se. Limpa os óculos com a barra da camisa.

— Você é um asno — diz ele para Kenji. — Por que não contou a ela a verdade?

— Ela nunca teria vindo se eu tivesse lhe contado a verdade.

— Como você sabe?

— Ela quase me matou...

Meus olhos se lançam de um rosto para o outro. Do cabelo loiro para o cabelo preto, e vice-versa.

— O que está havendo? — Exijo: — Quero ver Adam. Quero ver James. E quero um conjunto de roupas...

— Você está pelada? — Kenji de repente está estudando meu lençol e não se preocupa em ser sutil nesse intento.

Ruborizo, apesar dos meus maiores esforços, confusa, frustrada.

— O loirão disse que destruíram minhas roupas.

— Loirão? — O homem loiro está ofendido.

— Você nunca me disse seu nome.

— Winston. Meu nome é Winston. — Ele não está mais sorrindo.

— Você não disse que tinha um traje para mim?

Ele franze as sobrancelhas. Olha o relógio.

— Não teremos tempo de terminar isso agora. — Suspira. — Dê algo para ela vestir temporariamente, sim? — Ele está falando com Kenji. Kenji é quem ainda me encara.

— Quero ver Adam.

— Adam ainda não está pronto para vê-la. — LoirãoWinston enfia sua caneta em um bolso. — Vamos informá-la quando ele estiver.

— Como poderia confiar em qualquer um de vocês se nem mesmo me deixam vê-lo? Se não me deixam ver James? Nem sequer tenho minhas coisas básicas. Quero sair desta cama e preciso de algo para vestir.

— Vai buscar, Moto. — Winston está reajustando seu relógio.

— Não sou seu cachorro, Loirão. — Kenji fala asperamente. — E eu disse para você não me chamar de Moto.

Winston aperta o alto do nariz.

— Sem problemas. Também posso dizer a Castle que a culpa é sua por ela não estar se encontrando com ele neste exato momento.

Kenji murmura baixinho algo obsceno. Afasta-se altivamente. Quase bate a porta.

Alguns minutos se passam em uma espécie tensa de silêncio.

Respiro fundo.

— Então, o que Moto quer dizer?

Winston revira os olhos.

— Nada. É só um apelido... seu sobrenome é Yamamoto. Ele fica louco quando lhe cortamos metade. Ele se dói todo com isso.

— E então por que cortar?

Ele ri em deboche.

— Porque é difícil pra cacete pronunciar.

— E isso é justificativa?

Ele franze a testa.

— Como?

— Você ficou louco porque eu te chamei de Loirão e não de Winston. Por que ele não tem o direito de ficar louco porque você o chama de Moto em vez de Kenji?

Ele resmunga algo que soa como “Não é a mesma coisa”.

Escorrego um pouco para baixo. Descanso minha cabeça no travesseiro.

— Não seja hipócrita.


45

Sinto-me uma palhaça nestas roupas extragrandes. Estou usando a camiseta de alguém. Calças do pijama de alguém. Chinelos de alguém. Kenji diz que eles tiveram de destruir também as roupas que estava dentro da mochila de acampamento, de tal modo que não faço ideia de quem sejam as roupas que, no momento, estão penduradas no meu corpo. Estou praticamente flutuando no tecido.

Tento dar nós no pano, mas Kenji me impede.

— Você vai detonar minha camiseta — reclama.

Baixo as mãos.

— Você me deu roupas suas?

— Ora, o que você esperava? A gente não costuma ter vestidos a mais espalhados por aí. — Ele me lança um olhar, como se eu devesse estar grata por ele dividir suas roupas comigo.

Bem. Acho que é melhor que ficar nua. — Então, mais uma vez, quem é Castle?

— Ele é responsável por tudo — Kenji diz para mim. — O mentor de todo este movimento.

Meus ouvidos se levantam.

— Movimento?

Winston suspira. Ele parece tão tenso. Gostaria de saber o porquê.

— Se Kenji ainda não lhe disse nada, você deveria esperar para ouvir diretamente de Castle. Aguenta aí. Prometo que vamos responder a suas perguntas.

— Mas e quanto a Adam? Onde está James...

— Opa. — Winston passa uma mão pelo cabelo desleixado. — Você não vai simplesmente desistir, não é?

— Ele está bem, Juliette — intervém Kenji. — Ele só precisa de um pouco mais de tempo para se recuperar. Você tem que começar a confiar em nós. Ninguém aqui vai machucá-la, ou machucar Adam, ou James. Os dois estão bem. Tudo está bem.

Mas eu não sei se eles estão bem é bom o bastante.

Estamos caminhando por uma cidade subterrânea completa, corredores e travessias, pisos de pedra lisa, paredes ásperas mantidas intactas. Há discos circulares perfurados no chão, brilhando com luz artificial a cada poucos metros. Reparo em computadores, todos os tipos de engenhoca que não sou capaz de identificar, portas abertas revelam salas repletas de nada senão maquinário tecnológico.

— Como se encontra eletricidade necessária para fazer este lugar funcionar? — Olho mais de perto as máquinas não identificáveis, as telas tremulantes, o inconfundível zunido de centenas de computadores embutidos no âmbito deste mundo subterrâneo.

Kenji puxa uma mecha desgarrada de meu cabelo. Eu me viro.

— Confiscamos isso. — Ele sorri. Acena para um caminho estreito. — Por aqui.

Pessoas jovens e velhas, e de todas as diferentes feições e etnias, misturam-se entrando e saindo de salas, ao longo dos corredores. Muitas delas nos encaram, muitas delas estão distraídas demais para reparar em nós. Algumas delas estão vestidas como os homens e as mulheres que se precipitaram em direção ao nosso carro na noite passada. É um tipo estranho de uniforme. Parece desnecessário.

— Então... todo mundo se veste assim? — Sussurro, gesticulando o mais discretamente possível por causa dos estranhos que passam.

Kenji coça a cabeça. Leva tempo para responder.

— Não todo mundo. Não o tempo todo.

— E quanto a você? — pergunto a ele.

— Hoje não.

Decido não ceder a suas tendências enigmáticas e, em vez disso, faço mais uma pergunta direta.

— Então você nunca vai me dizer como você se curou tão depressa?

— Sim — diz Kenji, inabalável. — Na verdade, vamos lhe contar muita coisa. — Viramos bruscamente em um corredor inesperado. — Mas, primeiro — Kenji para diante de uma enorme porta de madeira —, Castle quer conhecê-la. Foi ele quem solicitou você.

— Solicitou?

— Sim. — Kenji parece desconfortável por um hesitante segundo.

— Espere... o que quer dizer...

— Quero dizer que não foi por acaso que acabei no exército, Juliette. — Ele suspira. — Não foi por acaso que apareci na porta de Adam. E eu não deveria ter levado um tiro nem ter sido espancado quase até a morte, mas aconteceu. Só não aconteceu de eu ter sido deixado ao chão daquela porta por um cara qualquer. — Ele quase sorri. — Sempre soube onde Adam morava. Era meu trabalho saber. — Uma pausa. — Estávamos todos procurando você.

Minha boca está repousada sobre a rótula de meus joelhos. Minhas sobrancelhas estão penduradas no teto.

— Vá em frente. — Kenji me empurra para dentro. — Ele vai sair quando estiver pronto.

— Boa sorte — é tudo o que Winston diz para mim.

Mil trezentos e vinte segundos até ele aparecer.

Ele se move de maneira metódica, seu rosto, uma máscara de neutralidade enquanto ele toca as mechas caprichosas de um rabo de cavalo e se senta na frente da sala. Ele é magro, em boa forma, impecavelmente vestido em um terno simples. Azul-escuro. Camisa branca. Sem gravata. Não há linhas em seu rosto, mas há uma só mecha prateada em seus cabelos e seus olhos confessam que ele viveu pelo menos cem anos. Ele deve ter seus quarenta. Olho ao redor.

É um espaço vazio, impressionante na sua escassez. Os pisos e tetos são construídos por tijolos cuidadosamente reunidos. Tudo parece velho e antigo, mas de algum modo a tecnologia moderna está mantendo vivo este lugar. Iluminação artificial clareia as dimensões cavernosas, pequenos monitores estão embutidos nas paredes de pedra. Não sei o que estou fazendo aqui. Não sei o que esperar. Não faço ideia de que tipo de pessoa Castle é, mas, depois de passar tanto tempo com Warner, estou tentando não cultivar grandes esperanças. Nem mesmo percebo que parei de respirar até que ele pronuncie a primeira palavra.

— Espero que você esteja desfrutando de sua estada até aqui.

Meu pescoço se ergue bruscamente para encontrar seus olhos escuros, sua voz suave, sedosa e forte. Seus olhos estão cintilando de genuína curiosidade, um pouco surpresos. Esqueci que sei como se fala.

— Kenji disse que você queria me conhecer — é a única resposta que me ocorre.

— Kenji pode estar correto. — Ele leva um tempo para respirar. Leva um tempo para mudar de posição em seu lugar. Leva um tempo estudando meus olhos, escolhendo as palavras, tocando dois dedos em seus lábios. Ele parece ter dominado o conceito de tempo. Impaciência provavelmente não é uma palavra em seu vocabulário. — Ouvi... histórias. Sobre você. — Sorri. — Simplesmente quis saber se elas eram verdadeiras.

— O que você ouviu?

Ele sorri com dentes tão brancos que parece neve caindo sobre os vales de chocolate de seu rosto. Ele abre as mãos. Examina-as por um momento. Levanta os olhos.

— Você pode matar um homem usando somente as mãos nuas. Você pode esmagar um metro e meio de concreto com a palma de sua mão.

Estou escalando uma montanha de ar e meus pés ficam escorregando. Preciso me agarrar em algo.

— É verdade? — pergunta ele.

— Rumores são mais propensos a matá-lo do que eu sou.

Ele me estuda por bastante tempo.

— Gostaria de lhe mostrar algo — diz ele depois de um momento.

— Quero respostas a minhas perguntas. — Isso já foi longe demais. Não quero ser induzida a uma falsa sensação de segurança. Não quero considerar que Adam e James estão bem. Não quero confiar em ninguém até que tenha provas. Não posso fingir que tudo isso está certo. Ainda não.

— Quero saber se estou a salvo — digo a ele. — E quero saber se meus amigos estão a salvo. Havia um garoto de dez anos conosco quando chegamos, e eu quero vê-lo. Preciso me certificar de que ele está saudável e ileso. Caso contrário, não vou cooperar.

Seus olhos me inspecionam por alguns momentos.

— Sua lealdade é revigorante — diz ele, e ele quer dizer isso. — Você fará bem aqui.

— Meus amigos...

— Sim, é claro. — Ele fica de pé. — Siga-me.

Este lugar é muito mais complexo, muito mais organizado do que jamais imaginei que fosse. Há centenas de direções diferentes nas quais se perder, quase como muitas das salas, algumas maiores que outras, cada uma dedicada a diferentes atividades.

— A sala de jantar. — Castle diz para mim.

— Os dormitórios. — Na ala oposta.

— As instalações de treinamento. — Descendo um corredor.

— As salas comuns. — Por aqui.

— Os banheiros. — Em cada extremidade do andar.

— As salas de reunião. — Só passar aquela porta.

Cada espaço é um “zum-zum” de corpos, cada corpo adaptado a uma rotina particular. As pessoas levantam os olhos quando nos veem. Algumas acenam, sorriem, alegram-se. Percebo que todas olham para Castle. Ele acena com a cabeça. Seus olhos são bondosos, humildes. Seu sorriso é forte, tranquilizador.

Ele é o líder de todo esse movimento, foi o que Kenji disse. Estas pessoas dependem dele por algo mais que mera sobrevivência. Isto é mais que um abrigo nuclear. Isto é muito mais que um esconderijo. Existe um objetivo maior em mente. Um propósito maior.

— Bem-vinda — diz Castle para mim, gesticulando com uma mão — ao Ponto Ômega.


46

— Ponto Ômega?

— A última letra do alfabeto grego. O desenvolvimento final, o último de uma série. — Ele para na minha frente e, pela primeira vez, reparo no símbolo ômega costurado na parte de trás do casaco. — Somos a única esperança que restou de nossa civilização.

— Mas agora... com número tão reduzido... como você pode esperar competir...

— Há muito tempo estamos arquitetando, Juliette. — Foi a primeira vez em que ele disse meu nome. Sua voz é forte, tranquila, firme. — Estamos planejando, organizando, delineando nossas estratégias há muitos anos. O colapso da sociedade humana não deve vir como uma surpresa. Nós o causamos a nós mesmos.

— A questão não era se as coisas iriam desmoronar — continua ele. — Apenas quando. Era um jogo de espera. Uma questão de quem tentaria tomar o poder e como eles tentariam usá-lo. O medo — diz ele para mim, voltando-se por um momento, seus passos silenciosos contra a pedra — é um grande motivador.

— Isso é patético.

— Concordo. É por isso que parte do meu trabalho é reavivar os corações que perderam toda a esperança. —Viramos em outro corredor. — E lhe dizer que quase tudo o que você aprendeu sobre o estado de nosso mundo é uma mentira.

Paro no lugar. Quase caio.

— O que quer dizer?

— Quero dizer que as coisas não estão tão ruins quanto O Restabelecimento quer que pensemos que estão.

— Mas não há comida...

— Às quais eles permitam o seu acesso.

— Os animais...

— São mantidos em segredo. Geneticamente modificados. Criados em pastagens secretas.

— Mas o ar... as estações... o tempo...

— Não está tão ruim quanto querem nos fazer crer. Provavelmente é o nosso único verdadeiro problema... mais um causado pelas manipulações irracionais da mãe natureza. Manipulações promovidas pelo homem e que ainda podemos corrigir. — Ele se vira para me encarar. Concentra-se em minha mente com um olhar firme.

— Ainda há uma chance para mudar as coisas. Podemos fornecer água potável e fresca para todas as pessoas. Podemos garantir que as colheitas não sejam regulamentadas para o lucro. Podemos assegurar que elas não sejam geneticamente alteradas para beneficiar fabricantes. Nosso povo está morrendo porque o estamos alimentando com veneno. Animais estão morrendo porque os estamos obrigando a comer sobras, forçando-os a viver na sua própria imundície, aprisionando-os juntos e abusando deles. As plantas estão murchando porque estamos atirando produtos químicos na terra, produtos que as tornam perigosas a nossa saúde. Mas estas são coisas que podemos corrigir. Somos alimentados de mentiras porque acreditar nelas nos torna fracos, vulneráveis, maleáveis. Dependemos de outros para nossa alimentação, saúde, sustento. Isso nos enfraquece. Cria covardes de nosso povo. Escravos. É hora de revidarmos. — Seus olhos estão brilhantes de sentimento, suas mãos fechadas demonstram fervor. Suas palavras são poderosas, cheias de convicção, articuladas e expressivas. Não tenho dúvidas de que ele influenciou muitas pessoas com esses pensamentos fantasiosos. Esperança de um futuro que parece perdido. Inspiração em um mundo sombrio, sem nada a oferecer. Ele é um líder natural. Um orador talentoso.

Tenho dificuldade de acreditar nele.

— Como você sabe com certeza que suas teorias estão corretas? Tem provas?

Suas mãos relaxam. Seus olhos se aquietam. Seus lábios formam um pequeno sorriso.

— É claro. — Ele quase ri.

— Por que é tão engraçado?

Ele sacode a cabeça. Só um pouco.

— Estou entretido com seu ceticismo. Na verdade, admiro isso. Nunca é uma boa ideia acreditar em tudo que se escuta.

Pego seu duplo sentido. Reconheço-o.

— Touché, senhor Castle.

Uma pausa.

— Você é francesa, senhorita Ferrars?

Minha mãe, talvez. Desvio o olhar.

— Então, onde estão as provas?

— Este movimento inteiro é prova o bastante. Sobrevivemos por causa destas verdades. Procuramos comida e suprimentos em vários depósitos que O Restabelecimento construiu. Encontramos seus campos, suas fazendas, seus animais. Eles têm centenas de hectares dedicados a colheitas. Os agricultores são escravos, trabalhando sob a ameaça da morte deles ou de seus familiares. O restante da sociedade ou é morto ou encurralado em setores, que são seccionados para ser monitorados, cuidadosamente inspecionados.

Mantenho meu rosto sem interesse, liso, neutro. Ainda não me decidi se acredito ou não nele.

— E para que você precisa de mim? Por que se importa que eu esteja aqui?

Ele para diante de uma parede de vidro. Aponta para a sala do outro lado. Não responde à minha pergunta.

— Seu Adam está se curando por causa de nosso povo.

Quase tropeço na pressa de vê-lo. Pressiono minhas mãos contra o vidro e espreito o espaço vivamente iluminado. Adam está dormindo, seu rosto perfeito, sereno. Esta deve ser a ala médica.

— Olhe mais de perto — diz Castle para mim. — Não há agulhas presas ao seu corpo. Não há máquinas mantendo-o vivo. Ele chegou com três costelas quebradas. Pulmões perto do colapso. Uma bala na coxa. Seus rins estavam machucados, bem como o restante de seu corpo. Pele rachada, pulsos sangrando. Uma torção de tornozelo. Ele tinha perdido mais sangue que a maioria dos hospitais seria capaz de repor.

Meu coração está prestes a sair de meu corpo. Quero quebrar o vidro e deitá-lo em meus braços.

— Há perto de duzentas pessoas no Ponto Ômega — diz Castle. — Quase metade delas tem algum tipo de dom.

Viro-me, atordoada.

— Eu trouxe você aqui — diz ele cuidadosamente, calmamente para mim — porque este é o lugar a que você pertence. Porque você precisa saber que não está sozinha.


47

Meu queixo chega ao meu cadarço.

— Você seria inestimável à nossa resistência — diz ele para mim.

— Há outros... como eu? — Mal consigo respirar.

Castle lança-me olhos que me falam à alma.

— Fui o primeiro a perceber que minha aflição não poderia ser só minha. Procurei outros, seguindo rumores, escutando histórias, lendo jornais em busca de anormalidades no comportamento humano. De início, isso era apenas por companhia. — Ele faz uma pausa. — Estava cansado da insanidade. De acreditar que eu não era um humano; que eu era monstro. Mas então percebi que o que parecia ser uma fraqueza era na verdade uma força. Que, juntos, poderíamos ser algo extraordinário. Algo bom.

Não consigo recuperar o fôlego. Não consigo reencontrar o chão. Não consigo expelir a impossibilidade presa na minha garganta.

Castle está esperando por minha reação.

Sinto-me tão nervosa...

— Qual é o seu... dom? — pergunto a ele.

Seu sorriso desarma minha insegurança. Ele estende a mão. Inclina a cabeça. Escuto o ranger de uma porta distante se abrindo. O som de ar e metal; movimento. Volto-me para o som apenas para ver algo vindo velozmente na minha direção. Baixo a cabeça. Castle ri. Pega esse algo na mão.

Respiro ofegante.

Ele me mostra a chave agora prensada entre os dedos.

— Você consegue mover coisas com sua mente? — Nem mesmo sei onde encontro as palavras para falar.

— Tenho um nível incrivelmente avançado de telecinesia. — Seus lábios desenham um sorriso. — Então, sim.

— Existe um nome para isso? — Acho que estou gritando. Tento me firmar.

— Para o meu caso? Sim. Para o seu? — Ele faz uma pausa. — Tenho dúvidas.

— E os outros... o que... eles são...

— Você pode conhecê-los, se quiser.

— Eu... sim... quero sim — gaguejo, excitada, quatro anos de idade e acreditando em fadas.

Congelo a um som repentino.

Passos estão batendo na pedra. Respiro tensamente.

— Senhor... — grita alguém.

Castle se vira. Contorna um canto em direção ao mensageiro.

— Brendan?

— Senhor! — Ele arqueja novamente. Engole bastante ar.

— Tem novidades? O que você viu?

— Estamos ouvindo coisas no rádio — começa ele, suas palavras entrecortadas com um pesado sotaque britânico. — Nossas câmeras estão captando mais tanques do que o habitual patrulhando a área. Achamos que eles podem estar mais perto...

O som de energia estática. Eletricidade estática. Vozes distorcidas grasnando por uma frágil linha de rádio.

Brendan pragueja baixinho.

— Desculpe, senhor... não é frequente essa distorção... só não aprendi a controlar as cargas ainda...

— Não se preocupe. Você só precisa praticar. Seu treinamento vai indo bem?

— Muito bem, senhor. Tenho quase tudo sob meu controle. — Brendan faz uma pausa. — A maior parte.

— Excelente. Nesse meio-tempo, me mantenha informado se os tanques chegarem mais perto. Não estou surpreso por ouvir que eles estejam mais vigilantes. Preste atenção a qualquer menção de ataque. O Restabelecimento tenta localizar nosso paradeiro há anos, mas agora temos uma pessoa particularmente valiosa a seus esforços e estou certo de que eles a querem de volta. Tenho o pressentimento de que as coisas vão progredir muito rapidamente a partir de agora.

Um momento de confusão.

— Senhor?

— Há uma pessoa que eu gostaria que você conhecesse.

Silêncio.

Brendan e Castle contornam o canto. Entram em meu campo de visão. E eu tenho de fazer um esforço consciente para evitar que meu maxilar se arrombe. Não consigo parar de encarar.

A pessoa é branca da cabeça aos pés.

Não apenas seu estranho uniforme, que é de um ofuscante tom de branco cintilante, como também sua pele é mais pálida que a minha. Até seu cabelo é tão loiro que só pode ser corretamente descrito como branco. Seus olhos são hipnotizantes. Eles são do tom mais claro de azul que já vi. Penetrante. Praticamente transparente. Ele parece ter minha idade.

Ele não parece ser real.

— Brendan, esta é Juliette. — Castle nos apresenta. — Ela chegou ontem. Estava lhe dando um panorama do Ponto Ômega.

O sorriso de Brendan é tão luminoso que eu quase hesito. Ele estende a mão e eu quase entro em pânico, antes de ele franzir a testa. Ele recua, diz:

— Hum, espere... desculpe... — e flexiona as mãos. Estala os dedos. Algumas faíscas saem de seus dedos. Estou boquiaberta.

Ele recua. Sorri um pouco, timidamente.

— Às vezes eletrocuto pessoas por acidente.

Algo em minha pesada armadura se desprende. Derrete-se. Sinto de repente que sou compreendida. Sinto não ter medo de ser eu mesma. Não consigo segurar o sorriso.

— Não se preocupe — digo a ele. — Se eu apertar sua mão, posso matar você.

— Caramba! — Ele pisca. Encara. Espera por mim para recolher a mão. — Está falando sério?

— Muito.

Ele ri.

— Certo, então. Nada de toques. — Inclina-se. Baixa o tom de voz. —Eu mesmo tenho um pouco de problema com isso, você sabe. As garotas estão sempre falando sobre dar eletricidade a seus romances, mas nenhuma aparentemente fica muito feliz em ser eletrocutada de verdade. Confusão dos infernos, é isso que é. — Ele encolhe os ombros.

Meu sorriso é mais vasto que o oceano Pacífico. Meu coração está tão cheio de alívio, conforto, aceitação. Adam estava certo. Talvez as coisas possam ficar bem. Talvez eu não tenha de ser um monstro. Talvez eu tenha uma escolha.

Acho que vou gostar daqui.

Brendan pisca.

— Foi muito bom conhecê-la, Juliette. Vou vê-la mais vezes?

Faço que sim com a cabeça.

— Penso que sim.

— Brilhante. — Ele me lança outro sorriso. Vira-se para Castle. — Vou informá-lo se ouvir qualquer coisa, senhor.

— Perfeito.

E Brendan desaparece.

Volto-me para a parede de vidro que me mantém apartada da outra metade de meu coração. Pressiono minha cabeça contra a superfície fria. Gostaria que ele acordasse.

— Gostaria de dizer olá?

Levanto os olhos para Castle, que ainda está me estudando. Sempre me analisando. De algum modo sua atenção não me deixa desconfortável.

— Sim — digo a ele. — Quero dizer olá.


48

Castle usa a chave em sua mão para abrir a porta.

— Por que a ala médica tem que ser trancada? — pergunto a ele.

Ele se vira para mim. Ele não é muito alto, percebo pela primeira vez.

— Se você soubesse onde encontrá-lo... você teria esperado pacientemente atrás desta porta?

Baixo meus olhos. Não respondo. Espero não estar corando.

Ele tenta ser encorajador.

— A cura é um processo delicado. Ela não pode ser interrompida ou influenciada por emoções instáveis. Temos muita sorte de termos duas curadoras entre nós... gêmeas, na verdade. Mas o mais fascinante é que cada uma delas se concentra em um elemento diferente... uma nas incapacitações físicas, e a outra nas mentais. Ambas as facetas devem ser abordadas, caso contrário a cura será incompleta, frágil, insuficiente. — Ele se volta para a maçaneta da porta. — Mas eu acho que é seguro para Adam vê-la agora.

Entro, e meus sentidos são quase imediatamente assaltados pela essência de jasmim. Examino o espaço à procura das flores, mas não encontro nenhuma. Pergunto-me se é de um perfume. É inebriante.

— Estarei do lado de fora — Castle diz para mim.

O quarto está repleto de uma longa fila de leitos, fabricados de forma simples. Todos os vinte, aproximadamente, estão vazios, exceto o de Adam. Há uma porta ao final do quarto que provavelmente leva a outro espaço. Mas agora estou nervosa demais para ficar curiosa.

Puxo uma cadeira e tento ser o mais silenciosa possível. Não quero acordá-lo, quero saber se ele está bem. Entrelaço e desentrelaço as mãos. Estou bem consciente do meu coração acelerado. E eu sei que talvez não devesse tocá-lo, mas não consigo me segurar. Cubro sua mão com a minha. Seus dedos estão quentes.

Seus olhos se agitam por apenas um instante. Eles não se abrem. Ele respira subitamente e eu congelo.

Quase desmorono em lágrimas.

— O que você está fazendo?

Meu pescoço se vira bruscamente ao som da voz, em pânico, de Castle.

Solto a mão de Adam. Afasto-me da cama, olhos arregalados, preocupada.

— Como assim?

— Por que você... você só... você pode tocar nele...? — Nunca pensei que veria Castle tão confuso, tão perplexo. Ele perdeu sua compostura, uma mão meio estendida em uma tentativa de me impedir.

— Claro que posso toc... — Paro. Tento me acalmar. — Kenji não lhe disse?

— Este jovem tem imunidade ao seu toque? — As palavras de Castle são sussurradas, atônitas.

— Sim. — Meus olhos passam dele para Adam, ainda dormindo. Isso também acontece com Warner.

— Isso é... espantoso.

— É?

— Muito. — Os olhos de Castle estão luminosos, tão intensos. — Seguramente não é uma coincidência. Não existe coincidência nesse tipo de situação. — Ele faz uma pausa. Anda a passos lentos. — Fascinante. Tantas possibilidades... tantas teorias... — Ele nem está mais falando comigo. Sua mente está trabalhando muito rapidamente para que eu acompanhe. Ele respira fundo. Parece se lembrar de que eu ainda estou na sala. — Minhas desculpas. Por favor, continue. As garotas sairão em breve... elas estão assistindo James no momento. Devo relatar esta nova informação o mais rápido possível.

— Espere...

Ele levanta os olhos.

— Sim?

— Você tem teorias? — pergunto a ele. — Você... você sabe por que essas coisas estão acontecendo... comigo?

— Você quer dizer conosco? — Castle me oferece um sorriso gentil.

Tento não corar. Consigo e faço um sim com a cabeça.

— Há anos temos feito extensas pesquisas — diz ele. — Pensamos ter uma boa ideia sobre isso.

— E? — Mal consigo respirar.

— Se você decidir ficar no Ponto Ômega, teremos essa conversa muito em breve, prometo. Além disso, estou certo de que agora não é o melhor momento. — Ele acena para Adam.

— Ah. — Sinto meu rosto pegar fogo. — É claro.

Castle se vira para ir embora.

— Mas você não acha que Adam. — As palavras saem muito rapidamente da minha boca. Tento me tranquilizar. — Você acha que ele também... é como nós?

Castle se vira de volta. Estuda meus olhos.

— Penso... — diz ele cuidadosamente — que é totalmente possível.

Sobressalto-me.

— Desculpe — diz ele —, mas eu realmente devo ir. E não queria interromper o momento de vocês.

Quero dizer sim, claro, evidentemente. Quero sorrir e acenar e dizer-lhe que não tem problema. Mas eu tenho tantas perguntas, sinto que posso explodir; quero que ele me diga tudo o que sabe.

— Sei que é muita informação para receber de uma vez só. — Ele faz uma pausa junto à porta. — Mas vamos ter muitas oportunidades para conversar. Você deve estar exausta e estou certo de que você gostaria de dormir um pouco. As garotas vão cuidar de você... elas a estão esperando. Na realidade, elas serão suas novas companheiras de quarto aqui no Ponto Ômega. Tenho certeza de que elas ficarão felizes em responder a quaisquer perguntas que você tenha. — Ele aperta meus ombros antes de ir. — É uma honra tê-la conosco, senhorita Ferrars. Espero que você considere seriamente juntar-se à nossa base permanente.

Faço que sim com a cabeça, entorpecida.

E ele se foi.

“Há anos temos feito extensas pesquisas”, disse ele. “Pensamos ter uma boa ideia sobre isso”, disse ele. “Teremos essa conversa muito em breve, prometo.”

Pela primeira vez na minha vida, pude finalmente compreender o que eu sou, e isso não parece possível. E Adam. Adam. Estremeço e sento-me ao lado dele. Aperto os dedos. Castle poderia estar errado. Talvez isso tudo seja coincidência.

Tenho de me concentrar.

Pergunto-me se alguém ouviu falar de Warner nos últimos tempos.

— Juliette?

Seus olhos estão semicerrados. Ele está olhando para mim como se não tivesse certeza de que sou real.

— Adam! — Tenho de me forçar para ficar tranquila.

Ele sorri e o esforço parece exauri-lo.

— Deus, como é bom vê-la.

— Você está bem. — Seguro sua mão, resisto à vontade de puxá-lo para os meus braços. — Você está bem mesmo.

Seu sorriso fica maior.

— Estou tão cansado. Sinto como se pudesse dormir por anos.

— Não se preocupe, o sedativo vai passar em breve.

Viro-me. Duas garotas com exatamente os mesmos olhos verdes estão nos fitando. Elas sorriem ao mesmo tempo. Seus longos cabelos castanhos são grossos e elas têm altos rabos de cavalo na cabeça. Elas estão vestindo collants prateados parecidos. Sapatilhas de bailarina douradas.

— Sou Sonya — diz a garota da esquerda.

— Sou Sara — acrescenta sua irmã.

Não faço ideia de como diferenciá-las.

— É muito bom conhecê-la — dizem exatamente ao mesmo tempo.

— Sou Juliette — consigo dizer. — Também é um prazer conhecê-las.

— Adam está quase pronto para a alta — diz uma delas para mim.

— Sonya é uma excelente curadora — a outra entra na conversa.

— Sara é melhor que eu — diz a primeira.

— Ele deve estar bem para ter alta assim que o efeito do sedativo passar — dizem juntas, sorrindo.

— Ah... isso é ótimo... muito obrigada... — Não sei para quem olhar. Para quem responder. Olho novamente para Adam. Ele parece estar se divertindo muito.

— Onde está James? — pergunta ele.

— Ele está brincando com as outras crianças. — Acho que é Sara quem diz isso.

— Acabamos de levá-lo ao banheiro — diz a outra.

— Você gostaria de vê-lo? — Volta para Sara.

— Há outras crianças? — Meus olhos são mais amplos que meu rosto.

As garotas fazem que sim ao mesmo tempo.

— Vamos pegá-lo — as duas dizem em coro. E desaparecem.

— Elas parecem legais — diz Adam depois de um momento.

— Sim. Elas parecem. — Todo este lugar parece legal.

Sonya e Sara voltam com James, que parece mais feliz do que já o vi estar, quase mais feliz que ao ver Adam naquela primeira vez, na porta de sua casa. Ele está empolgadíssimo por estar aqui. Empolgadíssimo por estar com outras crianças, empolgadíssimo por estar com “as lindas garotas que cuidam de mim porque elas são muito legais e tem muita comida e eles me deram chocolate, Adam... você já experimentou chocolate?” e ele tem uma cama grande e amanhã ele vai às aulas com as outras crianças e ele já está animado.

— Estou tão feliz de ver que você está acordado — diz para Adam, praticamente pulando sobre a cama. — Eles disseram que você ficou doente e que você estava descansando e agora você está acordado então isso quer dizer que você está melhor, certo? E nós estamos a salvo? Não me lembro mesmo do que aconteceu no nosso caminho até aqui — admite ele, um pouco constrangido. — Acho que caí no sono.

Acho que Adam está pronto para quebrar o pescoço de Kenji neste exato momento.

— Sim, estamos a salvo — diz Adam para ele, passando a mão por seu cabelo loiro bagunçado.

James volta correndo para o quarto de jogos na companhia das outras crianças. Sonya e Sara inventam uma desculpa para sair, de modo que temos alguma privacidade. Estou gostando dele mais e mais.

— Alguém já lhe contou sobre este lugar? — pergunta Adam para mim. Ele consegue se sentar. Seus lençóis escorregam. Seu peito é exposto. Sua pele está perfeitamente curada... mal consigo conciliar a imagem que tenho na memória com a que está na minha frente. Esqueço-me de responder à sua pergunta.

— Você não tem cicatrizes. — Toco sua pele como se eu mesma precisasse senti-la.

Ele tenta sorrir.

— Eles não são muito tradicionais em suas práticas médicas por aqui.

Levanto os olhos, surpresa.

— Você... sabe?

— Você já conheceu Castle?

Faço que sim com a cabeça, perplexa.

Ele muda de posição. Suspira.

— Há muito tempo escuto rumores sobre este lugar. Fiquei especialista em ouvir sussurros principalmente porque precisava me proteger. Mas no exército escutamos coisas. Todo e qualquer tipo de ameaça inimiga. Possíveis emboscadas. Havia um falatório sobre um raro movimento subterrâneo na época de meu alistamento. A maioria disse que isso era uma besteira. Que era algum tipo de lixo inventado para assustar as pessoas... que não havia como ser real. Mas sempre tive esperanças de que isso tivesse uma base verdadeira, só não sabia para quem perguntar. Não tinha contatos... meios de saber como encontrá-los. — Ele sacudiu a cabeça. — Se não fosse por Kenji...

— Ele disse que estava procurando por mim.

Adam assente com a cabeça. Ri.

— Assim como eu procurava por você. Assim como Warner procurava por você.

— Não entendo — resmungo. — Especialmente agora que sei que existem outros como eu... mais fortes, até... por que Warner queria a mim?

— Ele descobriu você antes de Castle — diz Adam. — É como se ele a reivindicasse há muito tempo. — Adam se recosta. — Warner é um monte de coisas, mas não é estúpido. Estou certo de que ele sabia haver alguma verdade naqueles rumores... e ele estava fascinado, porque, tanto quanto Castle queria usar suas habilidades para o bem, Warner queria manipular essas habilidades em causa própria. Ele queria se tornar algum tipo de superpotência. — Uma pausa. — Ele investiu muito tempo e energia apenas estudando você. Não acho que ele queira ver todo esse esforço indo pelo ralo.

— Adam — sussurro.

Ele pega minha mão.

— Sim?

— Não acho que ele esteja morto.


49

— Ele não está.

Adam se vira. Fecha a cara ao ouvir a voz.

— O que está fazendo aqui?

— Puxa. Que maneira de me receber, Kent. Cuidado para não estirar um músculo ao me agradecer por salvar sua vida.

— Você mentiu para todos nós.

— Não há de quê.

— Você sedou meu irmão de dez anos!

— Ainda não há de quê.

— Ei, Kenji. — Eu o cumprimento.

— Minhas roupas ficaram bem em você. — Ele se aproxima um pouco, sorri.

Reviro os olhos. Adam examina meu traje pela primeira vez.

— Não tinha nada mais para vestir — explico.

Adam abana a cabeça um tanto lentamente. Olha para Kenji.

— Tem alguma mensagem para entregar?

— Sim. Devo mostrar onde vocês vão ficar.

— O que quer dizer?

Kenji ri.

— Você e James vão ser meus novos companheiros de quarto.

Adam xinga em sussurro.

— Foi mal, irmão, mas não temos aqui quartos suficientes para que você e as “mãos quentes” tenham seu lugarzinho particular. — Ele pisca para mim. — Sem ofensas.

— Tenho que sair agora?

— Sim, cara. Quero ir dormir logo. Não tenho o dia todo para ficar esperando esta sua preguiça.

— Preguiçoso...?

Apresso-me para interromper antes que Adam tenha uma chance de revidar.

— O que quer dizer, você quer ir dormir? Que horas são?

— São quase dez horas — Kenji responde. — É difícil saber no subterrâneo, mas todos nós tentamos estar cientes do relógio. Temos monitores nos corredores, e a maioria de nós tenta usar relógio. Perder a noção de dia e noite pode nos confundir bem depressa. E agora não é hora de nos acomodarmos demais.

— Como sabe que Warner não está morto? — pergunto, nervosa.

— Acabamos de vê-lo na câmera — diz Kenji. Ele e seus homens estão com patrulha pesada nesta área. Consegui ouvir algumas de suas conversas. Acontece que Warner levou um tiro.

Seguro a respiração, tento silenciar meus batimentos.

— Foi por isso que tivemos sorte ontem à noite... aparentemente os soldados foram chamados de volta à base, porque pensaram que Warner estava morto. Houve, por um minuto, uma mudança de poder. Ninguém sabia o que fazer. Que ordens seguir. Mas, então, descobriu-se que Warner não estava morto. Apenas gravemente ferido. Seu braço estava todo costurado e em uma tipoia — acrescenta Kenji.

Adam encontra sua voz antes de eu encontrar a minha.

— Quanto este lugar está seguro de ataques?

Kenji ri.

— Seguro pra cacete. Nem sei como eles conseguiram chegar tão perto como chegaram. Mas eles nunca serão capazes de descobrir nossa localização exata. E, mesmo se conseguirem, nunca serão capazes de entrar à força. Nossa segurança é quase completamente impenetrável. E tem mais, temos câmeras por toda parte. Podemos ver o que eles estão fazendo antes mesmo de planejarem fazer.

— Mais isso de nada importa — continua ele —, porque eles estão procurando briga, e nós também estamos. Não tememos um ataque. Além disso, eles não fazem ideia do que somos capazes. E temos treinado para esta merda desde sempre.

— Você... — Interrompo. Ruborizo. — Você pode... digo, você também tem um... dom?

Kenji sorri. E desaparece.

Ele realmente se foi.

Fico de pé. Tento tocar o espaço em que ele estava colocado.

Ele reaparece a tempo de pular fora de meu alcance.

— Opa... pare, cuidado... só porque estou invisível não quer dizer que eu não possa sentir nada...

— Ah! — Recuo. Encolho-me de medo. — Sinto muito...

— Você consegue ficar invisível? — Adam parece mais irritado que interessado.

— Ficou piradão com meu poder, hein?

— Há quanto tempo você está me espionando? — Adam aperta os olhos.

— Desde que precisei espionar. — Mas seu sorriso é ornado com malícia.

— Você então é... corpóreo? — pergunto.

— Olhe pra você, usando palavras difíceis. — Kenji cruza os braços. Recosta-se na parede.

— Digo... você não pode, tipo, atravessar paredes ou coisas do gênero, pode?

Ele bufa.

— Não, não sou um fantasma. Consigo apenas... me mesclar, suponho que seja a melhor palavra. Posso me mesclar com o fundo de qualquer espaço. Alterar o que sou para combinar com o meu redor. Levei muito tempo para descobrir isso.

— Uau!

— Costumava seguir Adam até em casa. Foi como eu descobri onde ele morava. E foi como consegui fugir... porque eles realmente não puderam me ver. De qualquer modo, eles tentaram atirar em mim — acrescenta ele, amargo — mas consegui sair vivo, pelo menos.

— Espere, mas por que você estava seguindo Adam até a casa dele? Pensei que você estivesse procurando por mim — pergunto a ele.

— Sim... bem, eu me alistei pouco depois de nos inteirarmos do grande projeto de Warner. — Ele acena na minha direção. — Estávamos tentando encontrar você, mas Warner tinha alguma credencial de segurança e acesso a mais informações que nós... estávamos passando um mau bocado na tentativa de rastreá-la. Castle pensou que seria mais fácil ter alguém infiltrado prestando atenção a toda a merda demente que Warner estava planejando. Então, quando escutei que Adam era o principal homem envolvido neste projeto em particular e que ele tinha esta história com você, enviei a informação a Castle. Ele disse para eu me precaver também em relação a Adam... você sabe, em caso de Adam se revelar tão psicopata quanto Warner. Ele queria se certificar de que ele não era uma ameaça a você ou a seus planos. Mas não fazia ideia de que vocês tentariam fugir juntos. Vocês me ferraram legal!

Todos ficamos em silêncio por um instante.

— Então, quanto você me espionou? — Adam pergunta para ele.

— Ora, ora, ora. — Kenji inclina a cabeça. — O senhor Adam Kent está se sentindo um pouco intimidado?

— Não seja estúpido.

— Escondia alguma coisa?

— Sim. Minha arma...

— Ei! — Kenji entrelaça as mãos. — Então! Estamos prontos para dar o fora daqui, ou o quê?

— Preciso de um par de calças.

Kenji parece abruptamente irritado.

— Falando sério, Kent? Não quero ouvir essa merda.

— Bem, a menos que você queira me ver pelado, sugiro que faça algo sobre isso.

Kenji lança um olhar desagradável para Adam e sai de modo arrogante, resmungando algo sobre emprestar às pessoas todas as suas roupas. A porta se fecha atrás dele.

— Não estou nu de verdade — Adam diz para mim.

— Ah — sobressalto-me. Levanto a cabeça. Meus olhos me traem.

Não consigo conter o sorriso a tempo. Seus dedos roçam minha bochecha.

— Só queria que ele nos deixasse sozinhos por um segundo.

Coro até os ossos. Busco algo para dizer.

— Estou tão feliz que você esteja bem.

Ele diz algo que não escuto.

Pega minha mão. Puxa-me para o seu lado.

Ele se inclina, e eu me inclino, até que estou praticamente sobre ele, e ele está me deslizando para os seus braços e me beijando com um novo tipo de desespero, um novo tipo de paixão, uma necessidade ardente. Suas mãos estão enroscadas em meus cabelos, seus lábios tão macios, tão urgentes contra os meus, como fogo e mel explodindo em minha boca. Meu corpo inteiro está ardendo, pulsando com uma corrente elétrica que envia excitações por minha espinha. Quero derreter em sua boca. Estendo a mão em direção a seu corpo.

Adam recua um pouquinho. Beija meu lábio inferior. Morde-o só por um segundo. Sua pele está 100 graus mais quente do que estava um momento atrás. Seus lábios são pressionados contra meu pescoço e minhas mãos estão em uma jornada decrescente pela parte superior de seu corpo, e eu estou me perguntando por que há tantos trens de carga em meu coração, por que meu peito é uma gaita quebrada. Estou traçando o pássaro preso eternamente em voo sobre sua pele e percebo, pela primeira vez, que ele me deu suas próprias asas. Ele me ajudou a voar para longe e agora estou presa em movimento centrípeto, planando bem para o centro de tudo. Provoco seus lábios a retornarem aos meus.

— Juliette — diz ele. Um suspiro. Um beijo. Dez dedos provocando minha pele. — Preciso vê-la esta noite.

— Sim.

— Por favor.

Duas fortes batidas mandam nos afastar.

Kenji abre fortemente a porta.

— Vocês notaram que esta parede é feita de vidro, não? — Ele parece que mordeu a cabeça de um verme. — Ninguém quer ver isso.

Ele joga um par de calças para Adam.

Acena para mim.

— Vamos, vou levá-la para Sonya e Sara. Elas vão prepará-la para esta noite. — Vira-se para Adam. — E nunca me devolva essas calças.

— O que acontece se eu não quiser dormir? — pergunta Adam, descarado. — Não tenho permissão para deixar meu quarto?

Kenji aperta os lábios. Encolhe os olhos.

— Eu não uso estas palavras com frequência, Kent, mas, por favor, não tente nenhuma porra de fuga secreta mirabolante. As coisas são reguladas aqui por uma razão. É o único modo de sobreviver. Portanto, faça um favor a todos e mantenha as calças no lugar. Você vai vê-la pela manhã.

Mas a manhã parece ser daqui a milhões de anos.


50

As gêmeas ainda estão dormindo quando alguém bate. Sonya e Sara me mostraram onde ficam os banheiros femininos, assim tive a oportunidade de tomar um banho ontem à noite, mas ainda estou vestindo as roupas extragrandes de Kenji. Sinto-me um pouco ridícula ao andar em direção à porta.

Abro-a.

Pisco.

— Oi, Winston.

Ele me olha de cima a baixo.

— Castle achou que você fosse gostar de trocar essas roupas.

— Você tem algo para eu vestir?

— Sim... lembra? Fizemos para você algo sob medida.

— Ah. Puxa. Sim, parece ótimo.

Saio silenciosamente, acompanhando Winston pelos corredores escuros. O mundo subterrâneo é silencioso, seus habitantes ainda dormem. Pergunto a Winston por que estamos de pé tão cedo.

— Imaginei que você quisesse conhecer todo mundo no café da manhã. Deste modo você pode entrar na rotina regular das coisas por aqui... até iniciar seu treinamento. — Ele olha para trás. — Todos nós temos de aprender a utilizar nossas habilidades da maneira mais eficaz possível. Não é bom não ter controle sobre o seu corpo.

— Espera... você também tem uma habilidade?

— Há exatamente 56 de nós que têm. O restante são nossos familiares, filhos ou amigos próximos que ajudam com tudo o mais. Então, sim, sou um desses 56. Assim como você.

Estou quase pisando em seus pés em um esforço para acompanhar suas longas pernas.

— Então, o que você pode fazer?

Ele não responde. E eu não posso ter certeza, mas ele está corando.

— Desculpe-me... — retrato-me. — Não pretendia me intrometer... não devia ter perguntado...

— Está tudo bem — ele me corta. — Só acho meio estúpido. — Ele ri uma risada breve, dura. — De todas as coisas que eu deveria ser capaz de fazer — ele suspira —, pelo menos você pode fazer algo interessante.

Eu paro de andar, atordoada. Horrorizada.

— Você acha que isso é uma competição? Para ver qual truque de mágica é mais excêntrico? Para ver quem pode infligir mais dor?

— Não foi isso que eu quis dizer...

— Não acho que seja interessante ser capaz de matar alguém por acidente. Não acho que seja interessante ter medo de tocar uma coisa viva.

Ele fica tenso.

— Não queria dizer isso desse jeito. Eu só... gostaria de ser mais útil. Isso é tudo.

Cruzo os braços.

— Você não tem que me contar se não quiser.

Ele revira os olhos. Passa uma mão pelo cabelo.

— Eu só... sou muito... flexível — diz ele.

Levo um momento para processar sua confissão.

— Tipo... você consegue se entrelaçar todo?

— Claro. Ou me esticar se for preciso.

Deve ser constrangedora a cara de idiota que estou fazendo.

— Posso ver?

Ele morde o lábio. Reajusta os óculos. Olha para os dois lados do corredor vazio. E enlaça um braço pela cintura. Dando duas voltas.

Estou tão boquiaberta quanto um peixe morto.

— Uau!

— Isso é estúpido — resmunga. — E inútil.

— Você está louco? — Inclino-me para trás para olhar para ele. — Isso é inacreditável.

Mas seu braço já voltou ao normal e ele está caminhando novamente. Tenho de correr para alcançá-lo.

— Não seja tão duro consigo mesmo — tento dizer a ele. — Não há nada do que se envergonhar. — Mas ele não está ouvindo e eu estou me perguntando quando foi que me tornei uma palestrante motivacional. Quando deixei de odiar a mim mesma e passei a me aceitar. Quando ficou tudo bem para mim a escolha de minha própria vida.

Winston me leva para o quarto onde o conheci. As mesmas paredes brancas. A mesma cama pequena. Só que, desta vez, Adam e Kenji estão lá dentro esperando. Meu coração dispara e estou subitamente nervosa.

Adam está de pé. Ele não se apoia em nada e parece perfeito. Belo. Incólume. Ele avança apenas com um ligeiro desconforto, sorri para mim sem dificuldade. Sua pele está um pouco mais pálida que o normal, mas positivamente radiante se comparada à sua tez na noite em que chegamos e mais radiante que ontem à noite. Seu bronzeado natural confere a um par de olhos azuis um matiz do céu da meia-noite.

— Juliette — diz ele.

Não consigo parar de fitá-lo. Admirá-lo. Maravilhada pela incrível sensação de saber que ele está bem.

— Ei — consigo sorrir.

— Bom dia para você também — intromete-se Kenji.

Fico surpresa. Estou mais corada que o pôr do sol de verão, e me encolhendo o mais rapidamente.

— Ah, oi. — Aceno uma mão frouxa em sua direção.

Ele bufa.

— Tudo bem. Vamos acabar com isso, então? — Winston caminha até uma das paredes, que se revela um armário no qual há uma explosão de cores. Ele a retira do cabide.

— Posso, é, ter um momento a sós com ela?

Winston tira os óculos. Esfrega os olhos.

— Preciso seguir o protocolo. Tenho de explicar tudo...

— Eu sei... está bem... você pode fazer isso depois. — Adam diz. — Só preciso de um minuto, prometo. Não tive a oportunidade de conversar com ela desde que chegamos aqui.

Winston franze as sobrancelhas. Olha para mim. Olha para Adam. Suspira.

— Tudo bem. Mas voltaremos. Tenho que me certificar de que tudo serviu e tenho que verificar o...

— Perfeito. Parece ótimo. Obrigado, cara... — e ele o está empurrando porta afora.

— Espere! — Winston abre novamente a porta. — Pelo menos pegue o traje para ela vestir enquanto aguardamos.

Adam olha para o tecido na mão estendida de Winston, que coça a testa e resmunga algo sobre pessoas que sempre desperdiçam o tempo dele, e Adam reprime um sorriso. Olha para mim. Encolho os ombros.

— OK — diz ele, apanhando o traje. — Mas agora vocês têm que sair... — E empurra os dois de volta para o corredor.

— Vamos ficar bem aqui fora! — grita Kenji. — A cinco segundos de distância...

Adam fecha a porta atrás deles. Vira-se. Seus olhos estão ardentes em mim.

Não sei como acalmar meu coração. Tento falar e falho.

Ele encontra sua voz primeiro.

— Ainda não lhe falei obrigado por ter salvado minha vida. — diz ele.

Baixo os olhos. Finjo que o calor não está subindo pelo meu rosto. Eu me belisco sem nenhum motivo.

Ele avança. Inclina-se. Pega minhas mãos.

— Estou tão feliz que você esteja bem — é tudo o que consigo dizer.

Ele está olhando para os meus lábios e eu estou por toda parte me doendo de desejo. Se ele me beijar neste momento, não sei se o deixarei parar. Ele respira bruscamente. Parece lembrar que está segurando algo.

— Ah. Talvez você devesse vestir isto. — Ele me entrega uma peça colante de alguma coisa roxa. Parece minúscula. Como um macacão que pudesse servir em uma criança pequena. Ela pesa menos que nada.

Ofereço a Adam um olhar vazio.

Ele sorri.

— Prove.

Olho de forma diferente.

— Ah. — Ele recua, um pouco acanhado. — Certo... vou só... ficar de costas...

Espero até que suas costas estejam viradas para mim antes de expirar. Olho em volta. Parece não haver qualquer espelho neste quarto. Tiro a roupa extragrande. Deixo cair cada peça no chão. Estou aqui de pé, nua, e por um momento fico apavorada demais para me mover. Mas Adam não se vira. Ele não diz uma palavra. Examino o tecido roxo reluzente. Imagino que ele deva esticar.

Ele estica.

Na realidade, é inesperadamente fácil vesti-lo... como se ele fosse desenhado para o meu corpo. Há um forro embutido onde deviam estar as roupas íntimas, suporte extra para o meu peito, um colarinho que vai até meu pescoço, mangas que tocam meus pulsos, pernas que tocam meus tornozelos, um zíper que liga tudo. Examino o tecido ultrafino. Parece que não estou vestindo nada. É do mais vivo tom de roxo; justo, mas de modo nenhum apertado. Ele permite respirar, e é extraordinariamente confortável.

— E que tal...? — pergunta Adam. Ele soa nervoso.

— Pode me ajudar a subir o zíper?

Ele se vira. Seus lábios se apartam, vacilam, formam um sorriso inacreditável. Suas sobrancelhas estão tocando o teto. Estou ruborizando tanto que nem mesmo sei para onde olhar. Ele avança e eu me viro, ansiosa por esconder meu rosto. Adam toca meu cabelo e eu percebo que ele está quase me tomando as costas todas. Talvez seja a hora de cortá-lo.

Seus dedos são tão cuidadosos. Ele tira as ondas de cabelo sobre meus ombros de modo que elas não se enganchem no zíper. Traça a linha da base de meu pescoço até o início da costura, que desce até a região lombar. Mal consigo me manter ereta. Minha espinha está conduzindo eletricidade suficiente para iluminar uma cidade. Ele leva um tempo subindo o zíper. Desce as mãos pela extensão de minha silhueta.

— Céus, você está incrível — é a primeira coisa que ele diz para mim.

Volto-me. Ele está apertando a mão junto à boca, tentando esconder o sorriso, tentando impedir que as palavras caiam de seus lábios.

Toco o tecido. Decido que devo dizer alguma coisa.

— É muito... confortável.

— Sexy.

Levanto os olhos.

Ele está sacudindo a cabeça.

— É sexy pra cacete!

— Pareço uma ginasta — murmuro.

— Não — sussurra ele, quente quente quente contra os meus lábios. — Você parece um super-herói.


Epílogo

Ainda estou formigando quando Kenji e Winston irrompem na sala.

— Então, como este traje deveria tornar minha vida mais fácil? — pergunto a quem quer que vá me responder.

Mas Kenji está congelado no lugar, olhando sem disfarces. Abre a boca. Fecha-a. Enfia as mãos nos bolsos.

Winston intervém.

— Ele deve ajudar com o lance do toque — diz para mim. — Você não precisa se preocupar em se cobrir dos pés à cabeça neste clima imprevisível. O material é projetado para mantê-la esfriada ou aquecida, com base na temperatura. É leve e permite respirar, de tal modo que não sufoque a sua pele. Vai mantê-la livre de machucar alguém de modo não intencional, mas lhe oferece flexibilidade de tocar alguém... intencionalmente, também. Se é que já precisou tocar.

— Isso é incrível.

Ele sorri. Grande.

— De nada.

Estudo o traje mais de perto. Percebo algo.

— Mas minhas mãos e meus pés estão totalmente expostos. Como é que isso deveria...

— Ah... droga — interrompe Winston. — Quase me esqueci. — Ele vai correndo até o armário e retira um par de botas pretas de cano baixo sem salto e um par de luvas pretas que param bem antes do cotovelo. Ele as entrega para mim. Estudo o couro macio dos acessórios e me maravilho com a elasticidade e flexibilidade das botas. Poderia dançar balé e correr 10 quilômetros nestes calçados.

— Essas devem servir. Elas completam o traje.

Visto as luvas e flexiono os pulsos, os dedos, deleitando-me com a sensação de uma nova vestimenta. Sinto-me invencível. Realmente gostaria, pela primeira vez em minha vida, que houvesse aqui um espelho. Olho para Kenji, de Kenji para Adam, de Adam para Winston.

— O que acham? Está... bom?

Kenji faz um barulho estranho.

Winston parece entediado.

Adam não para de sorrir.

Ele e eu acompanhamos Kenji e Winston para fora do quarto, mas Adam faz uma pausa para tirar minha luva esquerda. Ele toma minha mão. Entrelaça nossos dedos. Oferece-me um sorriso que consegue beijar-me o coração.

E eu olho em volta.

Flexiono minha mão.

Toco o tecido que abraça minha pele.

Sinto-me incrível. Sinto meus ossos rejuvenescidos, minha pele vibrante, saudável. Tomo grandes goles de ar e aprecio o sabor.

As coisas estão mudando, mas desta vez não estou com medo. Desta vez eu sei quem eu sou. Desta vez eu fiz a escolha certa e estou lutando pela equipe certa. Sinto-me segura. Confiante.

Animada, até.

Por que desta vez?

Estou pronta.

 

 

                                                                                                    Tahereh Mafi

 

 

 

                                          Voltar a Série

 

 

 

                                       

O melhor da literatura para todos os gostos e idades