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SEMENTES DO PASSADO P.2 / V. C. Andrews
SEMENTES DO PASSADO P.2 / V. C. Andrews

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

SEMENTES DO PASSADO

Segunda Parte

 

AMOR FRATERNAL

           A maior parte do caloroso mês de agosto tinha transcorrido enquanto Jory estava no hospital, e setembro chegou, com suas noites mais frescas, logo iniciando o colorido processo outonal. Chris e eu rastelávamos folhas depois de que os jardineiros partiram, considerando que tinham deixado uma grande quantidade delas.

            As folhas não cessavam de cair e era uma atividade que nós ambos gostávamos.

     Amontoávamo-las em fossas profundos, acendíamos um fósforo e nos agachávamos para observar o fogo que crepitava e esquentava nossas mãos e rostos frios. O fogo, aí abaixo, era tão seguro que podíamos desfrutar simplesmente com sua contemplação. Voltávamo-nos freqüentemente para nos olhar mutuamente e ver como o resplendor nos acendia o olhar e punha em nossa pele um adorável tom avermelhado. Chris me dedicava um olhar de amante, acariciava-me com ternura a bochecha com o reverso de sua mão e roçava meu cabelo com a ponta de seus dedos, me beijando o pescoço, me comovendo profundamente com seu constante amor.

           E enquanto isso, sempre encerrada em seu quarto naquela horrível casa, Melodie engordava cada vez mais.

           O mês de outubro se apresentou com um espetacular esplendor de cores que me tiravam a respiração e me enchia de um assombro que só a natureza pode causar. Essas que agora admirava eram as mesmas árvores cujas copas tínhamos vislumbrado do sótão. Quase podia nos ver os quatro quando elevava o olhar para as janelas do sótão; os gêmeos, só cinco anos, adoecendo, semelhantes a duendes de grandes olhos, e nossos rostos, pequenos e pálidos, grudados tristemente ao vidro sujo, olhando com anseio para fora, desejando ser livres para fazer o que agora aceitávamos como lógico e natural.

           Nossos fantasmas pareciam estar lá em cima. Cinza era a cor de nossos dias, assim estava acostumado a eu pensar naquela época. E cinza era agora a cor dos dias do Jory. Não podia contemplar a beleza do outono nas montanhas, nem cruzar os atalhos do bosque, nem dançar sobre a grama amarelada, nem inclinar-se para cheirar as flores caídas, nem brincar de correr junto à Melodie.

           As pistas de tênis permaneciam vazias desde que Bart as abandonou ao não ter par com quem jogar. Chris teria gostado de disputar uma partida na sábado ou no domingo com o Bart, mas Bart seguia ignorando-o.

         A grande piscina, que tinha constituído a delícia especial da Cindy, foi esvaziada, limpa e coberta. Na mansão se baixaram as persianas e se limparam os vidros antes de instalar as janelas protetoras contra as tormentas. A lenha ficou empilhada atrás da garagem, em montões cada vez maiores. Os caminhões trouxeram carvão para utilizá-lo se os aquecedores de petróleo ou a corrente elétrica falhassem. Embora dispuséssemos de uma unidade auxiliar para iluminar nossos aposentos, eu temia esse inverno como não tinha temido nenhum outro, exceto aqueles no sótão, onde congelávamos de frio, como se vivêssemos na zona ártica.

            Por fim teríamos a oportunidade de experimentar como era Foxworth quando mamãe desfrutava da vida com seus pais, amigos e o amante que encontrou, enquanto quatro meninos não desejados sofriam lá em cima, gelados e mortos de fome.

           As manhãs de domingo eram as melhores. Chris e eu gozávamos de nosso tempo juntos. Tomávamos o café da manhã no quarto do Jory para que ele não se sentisse tão separado da família. Em ocasiões muito raras consegui persuadir Bart e Melodie de que se reunissem conosco.

           — Vão passear — nos animava Jory, quando me via olhar várias vezes para a janela. — Não pensem que invejarei suas pernas porque as minhas estão imóveis. Não sou um bebê, nem tão egoísta.

           Obedecíamos ao Jory para que não pensasse que modificávamos nosso estilo de vida devido a ele. E assim prosseguíamos, confiando em que Melodie se reunisse a ele.

           Um dia despertamos tão cedo que a capa de gelo que cobria o solo era ainda grossa. O gelo parecia um doce, açúcar em pó, que logo se derreteria quando o sol acabasse de sair.

           Detivemo-nos em nosso passeio para observar no céu aos gansos canadenses que voavam para o sul, indicando que o inverno chegaria esse ano mais cedo. Escutamos o distante grasnido melancólico daquelas incansáveis aves até que se desvaneceu quando desapareceram entre as nuvens madrugadeiras. Voavam para a Carolina do Sul.

            Em meados de outubro se apresentou o ortopedista e com umas grandes tesouras elétricas partiu pela metade o gesso de Jory. Depois utilizou umas tesouras manuais para cortar com supremo cuidado o que ficava de gesso. Jory disse que se sentia como uma tartaruga sem sua concha. Seu corpo forte se deteriorou dentro daquele gesso.

           — Depois de umas semanas exercitando os braços, os músculos de seus ombros deixarão seu torso tão desenvolvido como sempre — o animou Chris. — Precisará ter os braços fortes, de modo que continua utilizando esse trapézio. Colocaremos, além disso, barras paralelas em sua saleta para que de vez em quando possa te elevar e ficar em pé. Não pense que a luta terminou para ti; que todo esse desafio ficou atrás e que agora nada importa. Faltam-lhe muitos quilômetros por percorrer ainda, não esqueça.

           — Sim — murmurou Jory fracamente, olhando com olhos inexpressivos para a porta que Melodie raramente cruzava. — Quilômetros e quilômetros a percorrer antes de encontrar outro corpo que funcione. Suponho que começarei a acreditar na reencarnação.

           Os dias frescos se tornaram frios em extremo, coroados por noites outonais que nos levavam com rapidez para as geadas. Os pássaros migratórios deixaram de voar por cima de nossas cabeças agora que o vento assobiava entre as copas das árvores, uivando ao redor da casa, filtrando-se dentro de nossos aposentos. A lua era de novo uma longa nave viking saqueadora, navegando a toda velocidade, alagando nosso leito com sua luz, avivando o fogo para um novo romance. Chris e eu desfrutávamos de um amor brilhante, frio e limpo que acendia nossos espíritos e nos indicava que não fomos realmente pecadores da pior espécie; não quando nosso amor perdurava ao longo dos anos, enquanto outros matrimônios se rompiam ao cabo de uns meses ou anos. Não podíamos estar pecando e sentir o que sentíamos o um para o outro. A quem fazíamos mal? A ninguém, em realidade. Em nossa opinião, Bart se feria a si mesmo.

           Entretanto, por que me atormentavam os pesadelos que diziam outra coisa? Tinha-me convertido em uma perita em afugentar pensamentos perturbadores e centrar minha atenção nos detalhes corriqueiros de minha vida. Nada me evadia tanto da realidade como a assombrosa beleza da natureza. Eu confiava em que ela fecharia minhas feridas e as do Jory. E inclusive, possivelmente, as do Bart.

           Com olhar escrutinador estudava tudo os sinais, como poderia fazê-lo um granjeiro, e informava ao Jory. Os coelhos engordaram, os esquilos pareciam armazenar mais nozes, e as larvas pareciam vagões peludos de trem avançando lentamente para a segurança..., ali onde se achasse.

           Não demorei para tirar os casacos de inverno que tinha tido intenção de doar à beneficência; suéteres pesados e saias de lã que jamais teria podido levar ao Havaí. Em setembro Cindy tinha partido em avião para o instituto na Carolina do Sul. Esse seria seu último ano em uma escola privada muito cara, que ela "adorava absolutamente". Como uma chuva cálida fora de temporada, recebíamos suas cartas, nas quais sempre pedia mais dinheiro para isto ou aquilo. A letra infantil e irregular de Cindy fluía, para nos comunicar que necessitava tudo, apesar dos presentes com que eu constantemente a obsequiava. Tinha dúzias de amigos; um novo a cada vez que nos escrevia. Necessitava roupas informais para sair com o moço que gostava de caça e de pesca; vestidos luxuosos para brilhar com o moço a quem entusiasmava a ópera e os concertos; jeans e blusas para ela mesma e roupa interior e pijamas luxuosos, pois não suportava dormir envolta em tecidos toscos.

           Suas cartas mostravam quão importante era para ela tudo quanto eu tinha sentido falta de quando tinha dezesseis anos. Recordei Clairmont, meus dias na casa do doutor Paul, Henny me ensinando a cozinhar com a prática, não com teorias. Eu tinha comprado um livro de cozinha entitulado “Como ganhar seu homem e conservá-lo lhe cozinhando os pratos adequados”. Que menina tinha sido! Suspirei. Cheirei papel perfumado de cor rosa, o preferido da Cindy, antes de guardar sua carta, e depois dediquei minha atenção ao presente e a todos os problemas que se abatiam sobre Foxworth Hall, já sem flores de papel no sótão.

           Dia após dia observava atentamente Bart quando estava com o Melodie e ia me convencendo de que passavam juntos boa parte do tempo. Jory em troca, pouco via sua mulher. Tentei acreditar que Melodie tentava consolar Bart por não ter herdado tanto como tinha esperado, mas, apesar de mim mesma, supus que em tudo isso havia algo mais que piedade.

           Como um fiel cachorrinho com um só amigo, Joel seguia ao Bart por toda parte, exceto em seu escritório e seu dormitório. Rezava naquele pequeno quarto antes de cada refeição. Rezava antes de deitar-se e enquanto perambulava pela casa, murmurando para si as partes da Bíblia adequadas a cada ocasião.

           A sua maneira, Chris estava no céu, desfrutando dos melhores anos de sua vida, ou dizia isso.

           — Eu adoro meu novo trabalho! Os homens com que trabalho são brilhantes, têm senso de humor e sempre estão contando histórias que rompem a monotonia do trabalho. Vamos todos os dias ao laboratório, pomos as batas brancas, comprovamos as retortas esperando algum milagre, fazemos uma careta e nos agüentamos quando descobrimos que os milagres não se produzem.

           Bart não era nem amigo nem inimigo do Jory; era simplesmente alguém que punha a cabeça pela porta e dizia algumas palavras antes de apressar-se a dedicar-se a algo que ele considerava mais importante que perder o tempo com um irmão inválido. Freqüentemente me perguntava no que ocuparia seu tempo, além de estudar os mercados financeiros e comprar e vender ações e bônus. Suspeitei que Bart estava arriscando boa parte de seus quinhentos mil dólares para nos demonstrar que era mais preparado que Chris e mais hábil que o mais ardiloso de todos os Foxworth: Malcolm.

           Pouco depois de Chris partir para trabalhar numa terça-feira pela manhã, no final de outubro, subi depressa pela escada para ver Jory e comprovar que estava convenientemente atendido. Chris tinha contratado um enfermeiro para que cuidasse de Jory, mas só ia em dias alternados.

           Jory quase nunca se lamentava de estar confinado na casa, embora freqüentemente voltasse a cabeça para a janela para contemplar o esplendoroso outono.

           — O verão foi embora — declarou com indiferença, enquanto o vento formava redemoinhos as folhas secas — e levou minhas pernas com ele.

           — O outono te trará motivos para ser feliz, Jory, e o inverno te converterá em pai. A vida te proporciona ainda muitas surpresas felizes, queira ou não acreditá-lo. Agora... vejamos o que podemos fazer para te proporcionar um substituto para as pernas. Como já está bastante forte para te sentar, não há razão para que não possa te transladar a essa cadeira de rodas que seu pai trouxe para casa. Jory, por favor. Desgosta-me ver-te todo o tempo na cama. Tenta ficar um pouco na cadeira, possivelmente não será tão aborrecido como você acredita.

            Jory, teimoso, negou com a cabeça. Ignorei sua negativa e, empregando meu tom mais persuasivo, prossegui:

            — Podemos te levar para fora com facilidade. Passearemos pelos bosques assim que Bart faça limpar os caminhos que poderiam obstaculizar o avanço das rodas. Neste momento, poderia estar sentado no terraço, ao sol e recuperar um pouco da cor que tinha. Logo fará muito frio para sair lá fora. E quando chegar o momento eu posso te empurrar pelos jardins e os bosques.

           Jory dirigiu à cadeira, colocada onde pudesse vê-la todos os dias, um olhar duro, depreciativo.

           — Essa coisa cairia.

           — Compraremos uma dessas cadeiras elétricas tão pesadas e bem equilibradas que não se podem derrubar.

           — Acredito que não, mãe. Sempre gostei do outono, mas este me entristece tanto... Tenho a sensação de que perdi o que de verdade me importava. Sou como uma bússola rota, girando em todas as direções sem conseguir marcar o norte. Nada parece valer a pena e por isso me sinto extorquido e ferido. Incomodam-me os dias, mas as noites são piores. Quero me aferrar ao verão e ao que estava acostumado a possuir. As folhas que caem são as lágrimas que guardo dentro de mim. O vento, assobiando pelas noites, não é mais que meus uivos de angústia. Os pássaros que voam para o sul anunciam que o verão de minha vida desapareceu e que jamais, jamais, voltarei a me sentir feliz. Agora não sou ninguém, mãe, ninguém.

            Rompia-me o coração. Ao voltar a cabeça, sentiu minha angústia e o rosto se encheu de vergonha. O sentimento de culpa o fez desviar o olhar.

           — Sinto muito, mãe. É a única a quem posso falar desta maneira. Com papai, que é maravilhoso, devo agir como um homem. Agora que te expliquei o que sinto, parece que já não está me roendo tanto por dentro. Me perdoe por descarregar sobre ti todos meus amargurados sentimentos!

           — Está bem. Nunca deixe de me contar como se sente. Só se me explica isso, saberei como te ajudar. Para isso estou aqui, Jory. Deve procurar o apoio de seus pais. Não pense que Chris não te compreenderia, se lhe falasse como me falaste. Expressa sem rodeios o que precisa dizer, não guarde isso. Pede algo razoável e Chris e eu lhe daremos o quanto possamos..., mas não nos peça impossíveis.

           Assentiu em silêncio e depois se esforçou por sorrir fracamente.

           — De acordo. Possivelmente, depois de tudo, algum dia possa suportar me sentar em uma cadeira de rodas elétrica.

           Diante dele, espalhadas sobre a mesa com rodas, havia muitas peças do navio clíper que estava laboriosamente montado. Jory ligava em raras ocasiões o toca-discos, como se a bela música fosse uma abominação para seus ouvidos agora que não podia dançar. Considerava ver a televisão uma perda de tempo e lia quando não se dedicava à construção do navio. Nesse momento sustentava uma diminuta peça com uma pinça, enquanto aplicava um pouco de cola; então, entreabrindo os olhos, revisou as instruções e completou o casco. Como por acaso, evitando meu olhar, perguntou-me:

           — Onde está minha mulher? Quase nunca me visita antes das cinco. Que demônios faz durante todo o dia?

           Nesse instante entrou o enfermeiro para nos dizer que tinha que partir para suas aulas. Saudou alegremente com a mão e se foi. Durante sua ausência, tínhamos combinado que Melodie ou eu cuidaríamos do Jory, procurando que se sentisse a gosto e se mantivesse distraído. O mais difícil era que estivesse ocupado. Sua atividade tinha sido física e agora tinha que contentar-se com atividades mentais. O mais próximo a um exercício físico para ele era pegar as peças desse navio.

           Eu supunha que Melodie viria, pelo menos, a lhe entreter em algum tempo.

           Eu não a via muito. A casa era tão grande que tornava muito fácil evitar aqueles que não se desejava ver. Ultimamente ela tinha se acostumado não só a tomar o café da manhã, mas também a comer em seu quarto, situado no outro lado da suíte de Jory.

           Chris trouxe para casa a cadeira de rodas elétrica que tinha conseguido. Jory poderia dirigi-la através de uma alavanca. O enfermeiro começou imediatamente a lhe ensinar como balançar o corpo para tirá-lo do leito e assim sentar-se em uma poltrona que havia junto à cama.

           Fazia mais de três meses que Jory estava inválido. Três tristes e longos meses. Para ele, tinham sido bem mais anos. Viu-se obrigado a converter-se em outra classe de pessoa, a classe de pessoa que não gostava.

           Passou outro dia sem que Melodie o visitasse. Jory me perguntou de novo onde estava ela e o que fazia.

           — Mamãe, ouviste minhas perguntas? Por favor, me explique o que faz minha esposa durante todo o dia. — Sua voz, normalmente agradável, tinha um tom mordaz. — Certamente, não está comigo, isso já sei. — Havia amargura em seu olhar quando o cravou em mim. — Quero que agora mesmo procure Melodie e lhe diga que desejo vê-la...! Agora! Não depois, quando ela queira..., pois ao que parece ela nunca quer!

           — Irei procurar já — respondi firmemente. — Sem dúvida estará em seu quarto escutando música de balé.

           Afastei-me tremendo de Jory, que continuou trabalhando no modelo de navio. Ao me voltar para olhar, vi através da janela que o vento formava redemoinhos com as folhas caídas e as empurrava para a casa; folhas douradas, escarlates e avermelhadas que Jory não queria ver... apesar de, em outro tempo, haver sentido a música das cores.

           "Olhe agora, Jory, olhe agora. Esta é uma beleza que possivelmente não voltará a ver. Não a ignore, toma-a e possua o dia, como estava acostumado a fazer."

           Mas, havia eu, antigamente...? Havia eu...? Enquanto estava ali em pé, olhando Jory, tratando de que voltasse a ser o mesmo de antes, o céu se obscureceu de súbito e todas as folhas brilhantes ficaram presas contra o vidro sob a copiosa chuva geada.

           — Papai estava acostumado a ocupar-se dos afazeres domésticos quando viviam no Gladstone — recordei. — Mamãe estava acostumada a queixar-se de que as janelas de proteção implicavam em mais trabalho para limpar.

           — Quero a minha mulher, mamãe, agora!

           Mostrava-me relutante em procurar Melodie sem saber o motivo. Na penumbra, Jory se viu obrigado a acender um abajur às dez da manhã.

           — Você gostaria que acendesse um alegre e crepitante fogo de lenha?

           — Só quero a minha esposa. Tenho que repeti-lo dez vezes? Quando estiver aqui, ela acenderá o fogo.

           Deixei-o sozinho ao me dar conta de que minha presença o irritava. Só queria Melodie, a única que podia lhe fazer voltar a ser o de antes.

           Melodie não se encontrava em seu quarto como eu esperava.

           Os corredores que percorri me pareciam os mesmos que tinha cruzado quando era uma jovenzinha. As portas fechadas diante das quais passei me pareciam as mesmas portas sólidas, pesadas, que eu tinha aberto sigilosamente quando tinha quatorze, quinze anos. Às minhas costas pressentia a presença onisciente de Malcolm e a maldade da avó hostil.

           Dirigi-me para a ala oeste, a ala do Bart. Quase automaticamente meus pés me conduziram ali. A intuição tinha governado a maior parte de minha vida e, ao que parece, também governaria meu futuro. Por que me dirigia para ali? Por que não procurava Melodie em outra parte? Que instinto me guiava para os aposentos de meu segundo filho, aos que ele não me permitia entrar?

           Ante as amplas portas duplas do Bart, luxuosamente recobertas com couro negro, marcadas com seu monograma em ouro e o escudo familiar, falei brandamente:

           — Bart, está aí?

           Não ouvi nada. As portas, fabricadas com carvalho sólido, cobertas pelo ostentoso recobrimento, impediam que passasse qualquer som e as paredes grossas sabiam guardar segredos. Não era de estranhar que tivesse sido tão fácil nos manter ocultos os quatro. Olhei a porta, esperando encontrá-la fechada. Não estava.

           Quase com sigilo entrei na saleta de estar do Bart, de aspecto imaculado, sem nenhum livro, nenhuma revista desordenada. Das paredes se penduravam raquetes de tênis e varas de pescar; um saco de golfe em um canto e uma máquina de remos dentro de um armário com a porta entreaberta. Vi as fotografias de seus esportistas favoritos. Freqüentemente pensava que Bart fingia admirar aos jogadores de futebol e jogadores de beisebol só para ter algo em comum com o resto de pessoas de seu sexo. Em minha opinião, teria sido mais sincero se houvesse coberto as paredes com fotografias daqueles que tinham ganhado fortunas no mercado de valores dirigindo empresas.

           Seus aposentos estavam decorados em negro e branco, com alguns detalhes vermelhos; espetacular, mas algo frio. Sentei-me em um sofá de couro branco, de uns três metros de comprimento, com almofadas de cetim e veludo negro no respaldo. Em um canto havia um bar maravilhoso, resplandecente, com garrafas de cristal, várias taças altas e toda classe de licores que Bart tinha ali para seu desfrute pessoal, junto com pequenos aperitivos. Também dispunha de uma pequena geladeira e um forno de microondas para derreter queijo ou preparar alguma comida ligeira.

           Todas as fotografias eram foscas, em negro ou vermelho e emolduradas em dourado. Três paredes estavam recobertas com tecido de muaré branco, e a outra revestida com couro negro acolchoado; uma parede enganosa. Um daqueles botões de couro ocultava um grande cofre onde Bart guardava seus certificados de ações e bônus. Sabia porque uma vez, pouco depois de havê-los decorado por completo, explicou-me seus aposentos. Tinha pulsado os botões secretos, feliz por exibir a complexidade que ele controlava. A caixa-forte de seu escritório do piso inferior ele utilizava para guardar documentos menos importantes.

           Voltei a cabeça para contemplar a porta que dava para seu dormitório: Bonita porta que conduzia a um magnífico dormitório decorado igual à saleta. Acreditei ter ouvido algo. O murmúrio suave de uma risada masculina... e a risadinha suave de uma mulher... Estaria equivocada? Acaso Bart tinha a habilidade de fazer Melodie rir quando o resto de nós não podia?

           Minha imaginação trabalhava febril, representando o que podiam estar fazendo e ao pensar no Jory, esperando com desejo em seu quarto... esperando uma esposa que nunca lhe visitava, sentia-me desfalecer de dor ante a possibilidade de que Bart pudesse trair Jory, seu próprio irmão, a quem tinha amado e admirado muitíssimo durante um curto tempo, um lamentável curto espaço de tempo, enquanto...

           Naquele momento a porta se abriu e Bart apareceu completamente nu. Movia-se com segurança, e suas pernas longas eram como uma mancha. Envergonhada ante sua nudez, encolhi-me nas brandas almofadas, esperando que não me visse. Nunca me perdoaria isso. Eu não devia estar ali.

           Por causa da repentina tormenta, a penumbra em sua sala de estar era tão densa que albergava a esperança de que ele não notasse minha presença. Dirigiu-se diretamente ao bem equipado bar e, com mãos rápidas e habilidosas, mesclou algumas bebidas. Cortou umas rodelas de limão, encheu dois copos de coquetel, colocou-os em uma bandeja de prata e se encaminhou de novo para seu dormitório. Fechou a porta detrás dele com o pé.

           Coquetéis pela manhã, antes das doze...? O que pensaria Joel disso?

           Continuei sentada, quase sem poder respirar. Rugia o trovão e cintilava o relâmpago, e a chuva golpeava os vidros da janela. Os raios ziguezagueavam iluminando a penumbra a cada poucos segundos.

           Situei-me no ponto mais oculto de seu quarto para me converter em parte das sombras, detrás de uma enorme planta, e aguardei.

           Parecia que tinha transcorrido uma eternidade quando a porta se abriu outra vez. Eu sabia que Jory estava esperando ansiosamente, possivelmente zangado, que Melodie aparecesse. Dois copos, dois. Melodie estava ali. Tinha que estar ali!

           Sob a tênue luz vi que Melodie saía do dormitório do Bart vestida com uma bata transparente que revelava que não levava nada debaixo. A claridade de um relâmpago a iluminou por um instante, mostrando o vulto do bebê que devia nascer em princípios de janeiro.

           "Oh, Melodie, como pode fazer isso ao Jory?"

           — Volta aqui — disse Bart, com voz satisfeita. — Está chovendo. O fogo daqui dentro é muito acolhedor... e não temos nada melhor que fazer.

           —Tenho que me banhar, me vestir e visitar o Jory — retrucou ela, titubeando na soleira, o olhando com aparente desejo. — Queria ficar, de verdade que eu gostaria, mas Jory me necessita de vez em quando.

           — Acaso pode te dar ele o que eu acabo de te dar?

           — Por favor, Bart! Ele precisa de mim! Você não sabe o que significa que necessitem de alguém.

           — Não, não sei. Tão somente os fracos dependem dos outros para seu sustento.

           — Não estiveste nunca apaixonado, Bart — replicou Melodie roucamente — de modo que não pode compreendê-lo. Você toma, usa-me, diz que sou maravilhosa, mas não me ama, nem me necessita realmente. Qualquer outra mulher te serviria exatamente igual a mim para seus propósitos. É agradável sentir que alguém necessita; saber que alguém te quer mais que a nenhuma outra pessoa.

           — Vai então — disse Bart, e seu tom feliz se tornou repentinamente gelado. — Naturalmente que não te necessito. Eu não necessito de ninguém! Não sei se o que sinto por ti é amor ou nada mais que desejo. Mesmo estando grávida, é uma mulher bonita. De todos os modos, nunca se sabe, e embora seu corpo me proporcione prazer agora, possivelmente amanhã já não será igual.

           Por sua expressão, adivinhei que Melodie se sentia ofendida.

           — Por que quer que venha todos os dias, todas as noites? — perguntou, com tom lastimoso. — Por que seus olhos me seguem onde quer que vá? Você me necessita, Bart! Você me ama! O que ocorre é que te envergonha admiti-lo. Por favor, não me fale com tanta crueldade. Fere-me. Seduziu-me quando Jory se achava ainda no hospital, aproveitando minha debilidade e meu medo. Me tomou quando eu necessitava dele e me convenceu de que era a ti de quem necessitava! Sabia que me aterrorizava que Jory morresse, que estava assustada e necessitava de alguém.

           — E isso é só o que sou eu? — rugiu Bart. — Uma necessidade? Acreditava que me amava, que realmente me amava!

           — Sim, amo-te, amo-te!

            — Não, não me ama! Como pode me amar e seguir falando dele? Anda, vai ter com ele. Vá ver o que pode te dar ele!

           Melodie se afastou, sua diáfana bata flutuando atrás dela, como um fantasma fugindo frenético em busca da vida. Ouviu-se uma batida atrás dela.

           Levantei-me com rigidez de minha poltrona, sentindo que o joelho me latejava cheio de dor, como sempre que chovia. Aproximei-me coxeando da porta fechada do dormitório do Bart. Não vacilei em abri-la de par em par. Antes que ele pudesse protestar, estendi a mão para pulsar o interruptor da luz e pôr em seu confortável quarto, iluminado pelo fogo da chaminé, um brilho elétrico.

           Bart se ergueu de um salto em sua cama.

           — Mãe! Que demônios está fazendo em meu dormitório? Vai embora, sai daqui!

            Avancei uns passos, cobrindo o grande espaço que separava a porta da cama em um segundo.

           — Que diabos está fazendo você, se deitando com a mulher de seu irmão? Com a esposa de seu irmão inválido?

           — Sai daqui! — bradou, cuidando de cobrir bem sua genitália, enquanto o arbusto de cabelo escuro de seu peito parecia arrepiar-se de indignação. — Como se atreve a me espiar?

           — Não grite, Bart Foxworth! Sou sua mãe e você não tem ainda trinta e cinco anos, de modo que não pode me jogar fora desta casa. Irei quando me convier e esse momento não chegou ainda. Deve-me tanto, Bart, tanto...

           — O que te devo, mãe? — perguntou sarcástico, com amargura na voz. — Te rogo que me diga por que te devo eu algo. Deveria te agradecer porque meu pai morreu por sua causa? Deveria te dizer obrigado por ter sido um menino acanhado e inseguro de mim mesmo? Deveria te dizer obrigado por me haver colocado em um terreno tão escorregadio que sinto que não sou um homem normal, capaz de inspirar amor? — Sua voz se rompeu enquanto inclinava a cabeça. — Não fique aí me acusando com esses malditos olhos azuis dos Foxworth! Não precisa me reprovar nada para me fazer sentir culpado, porque eu nasci me sentindo dessa maneira. Eu tomei Melodie quando ela estava chorando e necessitava de alguém que a apoiasse e lhe desse confiança e amor. Pela primeira vez encontrei a classe de amor de que ouvi falar durante toda minha vida e pela primeira vez também encontrei uma mulher nobre que somente teve a um homem. Dá-te conta de como é estranho isso? Melodie é a primeira mulher que tem feito me sentir verdadeiramente humano. Com ela posso descansar e baixar o guarda porque ela não tenta me ferir. Ama-me, mãe. Acredito que nunca fui mais feliz.

           — Como pode dizer isso quando acabo de ouvir as palavras que proferiram?

           Bart soluçou e se deixou cair para trás, girando de lado, de costas para mim, apenas coberto pelo lençol.

           — Eu estou na defensiva e Melodie também. Ela pensa que está traindo Jory ao me amar. Eu também me sinto assim. Algumas vezes conseguimos nos liberar do medo e a vergonha e então vivemos algo maravilhoso. Quando Jory estava no hospital e você e Chris permaneciam todo o tempo junto a ele, não me foi difícil seduzir Melodie. Caiu em meus braços sem opor grande resistência, contente por ter alguém que se preocupasse o suficiente com ela para compreender seus temores. Todas nossas brigas surgiram por um sentimento de culpa que a ambos atende. Sem Jory no meio, ela teria vindo a mim ansiosamente, seria minha mulher.

           — Bart! Não pode tirar a mulher do Jory. Ele necessita dela agora como nunca necessitou antes! Fez mal em seduzi-la quando se sentia débil, desesperada e sozinha. Renuncia a ela. Deixa de lhe fazer amor. Sê leal ao Jory, como ele foi a ti. Jory esteve sempre contigo... recorda isso.

           Bart saltou da cama, envolto pudicamente no lençol. Algo frágil se quebrou no profundo de seu olhar e o fez parecer vulnerável, de novo um menino patético, um menino pequeno, ferido, que não aceitava a si mesmo. Sua voz soou rouca ao dizer:

           — Sim, amo Melodie. A amo o suficiente para me casar com ela. A amo com cada osso, músculo e grama de minha carne. Ela me despertou de um profundo sono. Sabe? É a primeira mulher a quem amei. Nunca nenhuma mulher me comoveu e emocionou como o tem feito Melodie. Entrou em meu coração e agora não posso expulsá-la. Vem sigilosamente a meu dormitório, com roupas delicadas, com seu bonito e brilhante cabelo solto, cheirando a frescor, recém saída de um banho, e fica aí de pé, me rogando com os olhos, e eu sinto que meu coração pulsa mais depressa. Quando sonho, sonho com ela. Melodie se converteu no mais maravilhoso de minha vida. Não compreende que não posso renunciar a ela? Ela despertou em mim um desejo ardente que eu ignorava pudesse ter. Eu considerava que o sexo era pecado e nunca tinha me separado de uma mulher sem me sentir sujo, inclusive mais sujo do que a deixava. Quando fazia amor com outras mulheres, sempre me invadia um sentimento de culpa, como se dois corpos nus unindo-se na paixão fosse algo pecaminoso... Minha opinião mudou. Graças a ela dou conta de quão bonito pode ser o amor e agora não sei como poderia viver sem ela. Jory já nunca mais poderá ser um amante de verdade. Deixa que eu seja o marido que ela necessita e quer. Me ajude a construir uma vida normal para ela e para mim... ou senão... não sei..., não sei realmente o que pode acontecer... — Seus olhos escuros se voltaram para mim, me suplicando que compreendesse.

           Oh, ouvi-lo dizer tudo aquilo, quando durante toda sua vida eu tinha desejado obter sua confiança e agora que a tinha, o que podia fazer eu? Eu amava Bart tanto como Jory. Segui ali, imóvel, retorcendo as mãos, retorcendo também minha consciência e me atormentando com a culpa, pois de algum jeito eu tinha provocado essa situação ao descuidar Bart e favorecer ao Jory e Cindy. E agora, Jory e eu tínhamos que pagar o preço..., outra vez.

           Bart falou, com voz suave e balbuciada, o que o fazia parecer ainda mais jovem e vulnerável, tentando esconder sua felicidade em um lugar seguro, fora de meu alcance e, à sua maneira, defendê-la para sempre protegendo-a da destruição.

           — Mãe, por uma vez em sua vida, procura ver as coisas do meu ponto de vista. Eu não sou mau nem perverso e tampouco a besta que você muitas vezes me faz sentir. Sou só um homem que jamais se sentiu feliz com sua maneira de ser. Me ajude, mãe! Ajuda Melodie a conseguir o marido que agora necessita, porque Jory nunca mais será um homem de verdade.

           A chuva marcava no vidro da janela um repicar frenético, combinando com o ritmo de meu coração. O vento assobiava e uivava ao redor da casa, enquanto asas enfurecidas de morcegos batiam dentro de meu cérebro. Eu não podia dividir Melodie em duas metades iguais e repartir entre Jory e Bart. Tinha que me aferrar ao que eu sabia era justo, e o amor do Bart para Melodie não o era. Jory a necessitava mais. Entretanto continuava ali, enraizada ao tapete, afligida pela desesperada necessidade que sentia meu filho Bart de ser amado. No passado, tinha-lhe acreditado capaz de cometer qualquer maldade, mas ele sempre tinha demonstrado sua inocência... Era minha própria culpa por havê-lo trazido ao mundo que me enfaixava os olhos e me impedia de ver a bondade que talvez houvesse no Bart?

           — Está seguro, Bart? Amas de verdade Melodie... ou a desejas só porque pertence ao Jory?

           Deu a volta, e seu olhar se encontrou com a minha de forma sincera. Como suplicavam compreensão aqueles olhos escuros!

           — No princípio era assim, admito-o de todo coração. Queria lhe roubar aquilo que ele mais queria porque ele me tinha arrebatado o que eu mais necessitava: você! — Encolhi-me e ele prosseguiu: — Melodie rechaçou minhas insinuações tantas vezes que comecei a respeitá-la, a considerá-la distinta das outras mulheres, tão fáceis de conseguir. Quando mais ela me rechaçava, tão mais ardia meu desejo até me convencer de que devia conquistá-la ou morrer. A amo, sim! Tem-me feito vulnerável... e agora não sei como viver sem ela!

           Abri as mãos antes de me sentar a um lado de sua enorme cama.

           — Oh, Bart, que pena que não tivesse sido outra mulher, qualquer mulher exceto Melodie! Me alegro de que tenha conhecido o amor e saiba que não é sujo nem pecaminoso. Por que teria criado Deus aos homens e as mulheres como o fez se não tivesse pretendido que se unissem? Ele o projetou assim. Nos procriamos por meio do amor. Bart, tem que me prometer que não voltará a vê-la a sós. Espera que Melodie tenha seu bebê antes que os dois decidam algo.

           Seus olhos se encheram de esperança e gratidão.

           — Me ajudará então? — A incredulidade alagou seus olhos. — Nunca acreditei que você quisesse...

           — Espera, por favor, espera. Quando Melodie tiver dado à luz, fala com ela, e depois com o Jory, e enfrente a ele, Bart. Lhe explique o que sente por ela, mas não lhe roube a mulher sem lhe dar a oportunidade de dizer o que sente.

           — E o que pode dizer ele, mãe, que possa estabelecer alguma diferença? Jory já perdeu. Não pode dançar. Nem sequer caminhar. Além disso, está fisicamente acabado.

           Os segundos transcorriam e eu não encontrava as palavras adequadas para responder.

            — Mas está seguro do amor de Melodie? Eu estava em sua sala de estar, ouvi-a. Não esclareceu nada a respeito. Por isso, deduzo, debate-se entre o amor do Jory e sua necessidade de ti. Não te aproveite de sua debilidade nem da incapacidade do Jory. Concede a seu irmão tempo para recuperar-se.... e então faz o que achar oportuno. Não é justo roubar ao Jory quando ele não pode lutar por evitá-lo. Dá também tempo à Melodie para que aceite as condições físicas do Jory. Então, se ela ainda te quer, toma-a. Mas, o que faria você com o bebê do Jory? Tiraria dele esse filho, além de lhe arrebatar a sua mulher? Está pensando em não lhe deixar nada?

           Olhou-me com atenção e seus olhos brilharam perspicazes. Bart desviou a vista de repente para o teto.

           — Ainda não pensei no que ocorrerá com o bebê. Quero esquecer que o bebê nascerá. E você não tem por que ir correndo a procurar o Chris ou Jory para lhes contar tudo isto. Por uma vez em sua vida, me dê a oportunidade de ter algo que seja somente meu.

           — Bart...

           — Agora vai, por favor! Me deixe só para poder pensar. Estou cansado. Debilita a qualquer homem, mãe, com suas exigências e seus julgamentos. Esta vez só, te peço uma oportunidade justa para te demonstrar que não sou tão mau como você pensa, nem tão louco como eu mesmo acreditei em outros tempos.

           Não me repetiu que não explicasse nada ao Jory, ou ao Chris, como se soubesse que eu não o faria. Dei a volta e saí de seu quarto.

           De retorno para meus aposentos, pensei em me enfrentar com Melodie, mas estava muito alterada para encará-la sem considerá-lo antes com mais calma. Ela já estava bastante nervosa e eu devia ter em conta a saúde de seu futuro filho.

           A sós em meu quarto, sentei-me diante do fogo, me perguntando o que podia fazer. As necessidades do Jory vinham primeiro. Em três meses, suas fortes pernas tinham começado a murchar até converter-se em magros paus, que me recordavam as pernas do Bart quando era muito jovem; baixinho, com suas magras pernas sempre cobertas de arranhões, corte e vermelhões, devido a suas contínuas quedas. Bart, sempre castigando-se a si mesmo por ter nascido e não estar à altura da pauta que Jory tinha estabelecido. Essa lembrança longínqua me impulsionou a me dirigir para o dormitório do Jory.

           Fiquei na soleira de sua porta, sem rastro de lágrimas no rosto e os olhos refrescados com emplastros de gelo que tinha aplicado para lhes tirar o enrijecimento, e sorri com fingida alegria a meu primogênito.

           — Melodie está dormindo uma sesta, Jory, mas virá antes do jantar. Acredito que lhes seria agradável jantar sozinhos diante da lareira. A chuva no exterior criará um ambiente romântico. Pedi ao Trevor e Henry que subam umas lenhas e uma mesinha especial para o jantar. Planejei um menu com todos os pratos que vocês mais gostam. Agora vamos, ajudo-te a te vestir para que tenha o melhor aspecto!

           Jory fez um gesto de indiferença e encolheu os ombros. Antes do acidente se interessava pela roupa; sempre se tinha vestido à perfeição.

           — Que diferença faz, mãe, que diferença? Não a trouxeste contigo e por que demoraste tanto em voltar para me dizer que está dormindo?

           — O telefone soou... Jory, às vezes tenho que resolver alguns assuntos. Bem, que traje prefere?

           — Bastará o pijama e qualquer bata — respondeu, distante.

            — Escuta, Jory. Esta noite porá um dos trajes de seu pai, já que não trouxe roupa de inverno e se sentará nessa cadeira de rodas elétrica.

           Protestou imediatamente, mas insisti. Já tínhamos mandado recolher toda a roupa do Jory de Nova Iorque, mas Melodie se empenhou em que a dela ficasse onde estava. Isso acendia a ira em meu interior, embora nada dissesse.

           — Alguém se sente bem quando tem bom aspecto, e isso é meia batalha ganha. Deixaste que preocupar-se por sua aparência. Barbear-te-ei embora queira te deixar barba. É muito bonito para te ocultar atrás desse cabelo arrepiado. Tem uma boca preciosa e um queixo firme. São os homens com queixos débeis quem deveria esconder-se detrás de uma barba.

           Ao fim cedeu, sorrindo zombeteiro. Acedeu a tudo quanto quis lhe fazer para que se parecesse mais ao que tinha sido.

           — Mamãe, é formidável. Se preocupa de tal maneira por mim... mas não quero te perguntar por que. Agradeço que alguém cuide tanto de mim.

           Nesse momento, Chris retornou do Charlottesville, ansioso por colaborar. Barbeou o atraente rosto do Jory com uma navalha muito afiada, declarando que não havia nada como um barbeado para melhorar o aspecto de um homem. Sentada na cama, observei como Chris molhava o rosto do Jory com loção e colônia. Durante todo o tempo, Jory esperou com paciência. Eu não podia deixar de me perguntar o que estaria fazendo Bart e como diria a Melodie que sabia o que estava ocorrendo entre ela e meu segundo filho.

           Os braços do Jory já eram bastante fortes para balançar a parte superior de seu corpo e sentar-se na cadeira. Chris e eu retrocedemos sem intervir, contemplando-o, sem lhe oferecer ajuda, sabendo que Jory tinha que fazê-lo por si mesmo. Parecia um pouco humilhado e ao mesmo tempo orgulhoso por havê-lo conseguido sem muita dificuldade na primeira vez. Quando já estava na cadeira, Jory pareceu satisfeito, a seu pesar.

           — Não está tão mal — disse enquanto se examinava no espelho que eu sustentava diante dele. Ativou a cadeira e deu uma volta pelo quarto. — Fez uma careta. — É melhor que a cama. Devem acreditar que sou um bobo. Agora me será mais fácil terminar o navio antes de Natal. Possivelmente, com tantos mimos, eu consiga.

           — Nós nunca o duvidamos — assegurou Chris, jovial.

           — Agora fico contente, Jory. Vou procurar Melodie — disse, encantada com seu aspecto, o brilho de felicidade que cintilava em seus olhos e sua excitação por poder se mover outra vez, embora tivesse rodas em lugar de pernas. — Melodie já estará vestida e preparada para descer para o jantar. Como sabe nosso, em outros tempos descuidado, Bart, exige agora que se cumpram escrupulosamente as normas da vida elegante...

           — Diga a Melodie que se apresse — exclamou Jory enquanto saía, parecendo-se mais com seu antigo modo de ser. — Estou faminto e ver esse fogo ardendo me faz desejá-la muitíssimo.

           Encaminhei-me muito sobressaltada para a quarto do Melodie, consciente de que acabaria por me enfrentar com ela pelo que tinha descoberto e que, embora eu não o pretendesse, minhas palavras a jogariam nos braços ofegantes do Bart. Esse era o risco que corria.

           Um irmão ganharia; o outro perderia. E eu queria que ambos ganhassem.

 

A TRAIÇÃO DE MELODIE

           Dei uns golpes suaves na porta de Melodie. Através da pesada madeira se ouvia o som débil da música do lago dos cisnes. Devia ter o volume muito alto, pois, de outro modo, eu não tivesse podido escutá-lo. Chamei de novo. Ao não obter resposta, abri a porta, entrei e a fechei com muita suavidade. Seu quarto estava desordenado, com roupas jogadas pelo chão; os cosméticos invadiam o penteadeira.

           — Melodie, onde está?

            O quarto de banho estava vazio. Maldição! Foi-se junto com Bart. Em um instante saí dali e corri para os aposentos do Bart. Dava furiosos golpes na porta de seu dormitório.

           — Bart, Melodie.... não podem fazer isto ao Jory!

            Não se achavam ali. Baixei voando pela escada posterior e me encaminhei para a cozinha, com a esperança de que tivessem começado para jantar sem esperar ao Chris e a mim. Trevor estava preparando a mesa para dois, medindo com a vista a distância do prato até a borda da mesa com tanta precisão que era como se utilizasse uma regra. Fiz mais lento meu passo para entrar caminhando na cozinha.

           — Trevor, viu você a meu filho Bart?

           — Oh, sim, senhora — respondeu com seu cortês estilo britânico, sem deixar de colocar os talheres de prata. — O senhor Foxworth e a senhora Marquet acabam de sair para jantar em um restaurante. O senhor Foxworth me pediu que lhe dissesse que ele retornaria... logo.

           — O que disse realmente, Trevor? — perguntei.

           — Senhora, o senhor Foxworth estava algo ébrio. Não muito, de modo que não se preocupe com a chuva nem com acidentes. Estou seguro de que poderá controlar o automóvel e que a senhora Marquet estará bem. É uma noite adorável para conduzir, se gosta da chuva.

            Corri para a garagem, esperando chegar a tempo para os deter. Muito tarde, como tinha temido. Bart tinha levado Melodie em seu pequeno e veloz esportivo, o Jaguar vermelho.

           Meus passos eram de tartaruga ao subir as escadas. Jory estava mais animado devido ao champagnhe que tinha bebido enquanto esperava. Chris tinha ido ao nosso quarto para trocar-se para o jantar.

           — Onde está minha mulher? — perguntou Jory, sentado junto à mesinha que Henry e Trevor tinham subido à quarto.

           As flores frescas de nossa estufa dispostas no centro da mesa e o champanha esfriando em um cubo de prata com gelo criavam um ambiente festivo e sedutor, acentuado sobretudo pelos troncos de lenha que ardiam na chaminé para dissipar o frio úmido do quarto. Com as pernas ocultas e sem que se visse aquela cadeira de rodas que ele odiava, o aspecto do Jory era muito parecido com o de antigamente.

           Devia inventar alguma mentira esta vez, como tinha feito antes? O brilho de seus olhos desapareceu.

           — De modo que não virá — disse, abatido. — Agora nunca aparece por aqui. Pelo menos, nunca entra no quarto. Entretém-se na entrada e me fala com distância. — Sua voz rouca se quebrou um pouco e depois se rompeu em um soluço. — Torna-se difícil de suportar, mãe, de verdade que fica muito difícil aceitar esta situação e não estar amargurado. Quando vejo o que está acontecendo entre minha mulher e eu, fico destroçado por dentro. Sei o que ela está pensando, embora não diga nada. Já não sou um verdadeiro homem e ela não sabe como agir diante disso.

           Ajoelhei-me ao lado do Jory e o abracei.

           — Ela aprenderá, Jory, aprenderá. Todos devemos aprender a enfrentar o irremediável. Lhe conceda tempo. Espera até que o bebê nasça. Ela mudará. Prometo-te que mudará. Você lhe terá dado esse filho. Não há nada como um filho próprio; sustentar um bebê nos braços faz que o coração se encha de gozo. Não há nada como a doçura de um menino, a emoção de ter uma coisinha pequena, diminuta de humanidade, que depende por completo de ti. Jory, espera e verá como Melodie muda.

           Jory tinha deixado de chorar, mas a angústia permaneceu em seu olhar.

           — Não sei se poderei esperar — murmurou roucamente. — Quando há gente ao redor, sorrio e me comporto como se estivesse contente. Mas não paro de pensar em como acabar com tudo isto e liberar Melodie de toda obrigação. Não é honrado esperar que fique comigo. Esta noite lhe direi que pode partir se quiser, ou ficar até que o bebê nasça e ir-se depois e tramitar o divórcio. Não o negarei.

           — Não, Jory! — repliquei. — Não diga nada que possa inquietá-la mais... lhe dê tempo para que se amolde. O bebê a ajudará.

           — Mas, mamãe, não sei se agüentarei seguir vivendo assim. Penso continuamente no suicídio. Recordo meu pai e desejaria ter valor para fazer o que ele fez.

           — Não, querido, resista! Você nunca estará sozinho.

            Chris e eu nos sentamos junto à mesinha para lhe fazer companhia. Jory não pronunciou nem uma dúzia de palavras durante tudo o jantar.

           Antes de nos deitar para dormir, escondi com dissimulação as navalhas de barbear e aquilo com que Jory pudesse machucar-se. Aquela noite dormi no sofá de seu quarto, temerosa de que, em seu desespero, Jory pudesse tentar acabar com sua vida com o único propósito de dar liberdade a Melodie e permitir que ela partisse sem sentir-se culpado. Seus gemidos chegavam para mim como se eu estivesse sonhando...

           — Mel..., doem-me as pernas! — exclamava Jory em sonhos.

            Levantei-me para o consolar. Ele despertou e me olhou algo confuso.

            — Todas as noites me doem as costas e as pernas — respondeu sonolento às minhas perguntas. — Não necessito compreensão para minhas dores fantasmas. O único que quero é uma noite inteira de descanso.

           Durante toda a noite se retorceu de agonia. As pernas, que durante o dia não sentia, atormentavam-lhe a noite com uma dor constante. A parte baixa de suas costas lhe doía como se recebesse constantes navalhadas.

           — Por que me doem pelas noites, se não sinto nada durante o dia? — queixava-se enquanto o suor lhe descia pelo rosto e lhe grudava a jaqueta do pijama ao peito. — Eu gostaria de ter o mesmo valor que teve meu pai... Isso resolveria nossos problemas!

           — Não, não, não!

            Abracei-o e lhe cobri o rosto de beijos, lhe prometendo tudo, algo, para lhe infundir confiança.

           —Dará resultado, Jory, dará! Agüenta um pouco. Não desanime e te renda à maior provocação de sua vida. Tem-me e ao Chris e, cedo ou tarde, Melodie repensará e voltará a ser sua esposa.

           Jory fixou seu triste olhar em meu, como se eu lhe falasse de visões de fumantes de ópio feitas de fumaça.

           — Dorme em seu quarto, mãe. Faz-me sentir como um menino se ficar aqui. Prometo-te não fazer nada que te faça chorar outra vez.

           — Carinho, me prometa que chamará a seu pai ou a mim se necessitar alguma coisa. A nenhum dos dois importa nos levantar. Não chame o Melodie, pois poderia tropeçar e cair na escuridão. Eu sempre tive um sono ligeiro e não me custa voltar a conciliá-lo. Está me escutando, Jory?

           — Claro, estou escutando — respondeu com seus olhos inexpressivos e remotos. — Se houver alguma coisa em que agora sou bom, é escutando.

           — Logo o terapeuta te ajudará a te recuperar.

           — Me recuperar, mãe? — Seus olhos pareciam cansados e sombrios. — Se refere a esse suporte para as costas que me porão? Sim, claro, espero com impaciência poder utilizar essa coisa. Desfrutarei levando umas braçadeiras das pernas. Não é uma sorte que não as sinta? Para não mencionar esse engenhoso arnês de compressão que me fará pensar que me converti em cavalo. Ao menos me impedirá que caia. — Fez uma pausa e cobriu o rosto com as mãos um momento; depois jogou a cabeça para trás e suspirou. — Meu Deus, me dê fortaleça para suportá-lo; está me castigando por haver sentido muito orgulho de minhas pernas e meu corpo? Fez um maldito bom trabalho ao me humilhar!

           Suas mãos caíram. Em seus olhos brilhavam as lágrimas, que escorregavam por suas bochechas. Desculpou-se:

           — Sinto muito, mãe. As lágrimas de auto-compaixão não são prova de dignidade, verdade? Mas não posso me mostrar valente e forte sempre. Tenho meus momentos de debilidade, como qualquer outra pessoa. Volta para seu quarto. Não farei nada que lhes cause a ti e a papai mais dor. Boa noite. Dá boa-noite a Melodie por mim quando retornar.

           Chorei nos braços do Chris, o que suscitou nele mil perguntas que não quis responder. Frustrado e bastante ofendido, disse:

           — Não pode me enganar, Catherine. Oculta-me algo para não acrescentar uma nova carga às minhas preocupações, mas precisamente quando não saber o que ocorre é a mais pesada das cargas.

           Esperou minha resposta. Ao não obtê-la, dormiu. Chris tinha o irritante costume de poder dormir quando me parecia impossível. Eu desejava que estivesse acordado, que me obrigasse a responder às perguntas que eu acabava de esquivar. Mas ele dormia e dormia, voltando-se para me abraçar em seu sonho, enterrando seu rosto em meu cabelo.

           Despertei a cada hora para comprovar se Bart e Melodie tinham voltado para casa e se Jory se encontrava bem. Jory estava estendido na cama, com os olhos muito abertos; ao que parecia, esperando como eu que Melodie retornasse a casa.

           — Aliviou-se essa dor fantasma?

           — Sim, volta para a cama. Estou bem.

           Encontrei Joel no corredor, junto ao quarto do Bart. Ruborizou-se ao ver-me em um negligé branco de amarrar.

           — Joel, acreditava que tinha mudado de opinião a respeito de viver debaixo deste teto e te tinha instalado de novo no pequeno quarto sobre a garagem...

           — O fiz, Catherine, o fiz — murmurou. — Mas Bart me ordenou que retornasse à casa, pois, segundo ele, um Foxworth não deve ser tratado como um empregado.

            Seus olhos lacrimosos me dirigiam recriminações por não ter protestado quando ele nos informou que preferia o quarto da garagem ao bonito quarto situado na ala da casa onde habitava Bart.

            — Você não sabe o que significa ser velho e estar sozinho, sobrinha. Sofri de insônia durante anos e anos, atormentado por pesadelos, atacado por dores e aflições que me impediram de conseguir o sono profundo que desejo. Por isso me levanto para me cansar e ando por aí...

           Andar por aí? Espiar é o que ele fazia! Entretanto, ao olhar mais de perto, envergonhei-me de tal pensamento. Ali de pé, na penumbra do corredor, parecia tão frágil, tão doente e fraco... Estaria sendo injusta com o Joel? Sentia antipatia pelo seu detestável costume de murmurar para si passagens da Bíblia sem cessar, que me faziam retroceder no tempo até a época em que vivia nossa avó, recordar como ela insistia em que aprendêssemos cada dia uma frase do livro sagrado.

           — Boa noite, Joel — disse com mais amabilidade que de costume.

           Entretanto, enquanto ele continuava de pé ali, pensei no Bart, que me havia dito coisas dolorosas quando era moço, mas não desde que tinha amadurecido. Agora ele também lia a Bíblia e utilizava as palavras escritas nela para me demonstrar sua razão em um ponto discutível. Havia Joel colaborado em fazer reviver o que eu acreditava adormecido? Olhei fixamente ao velho homenzinho, que se separava de mim quase com temor.

           — Por que me olha assim? — perguntei, incisiva.

           — Como, Catherine?

           — Como se tivesse medo.

           Seu sorriso era leve, lastimoso.

           — É uma mulher temível, Catherine. Apesar de sua beleza loira, algumas vezes pode agir com tanta dureza como minha mãe.

           Eu me sobressaltei, assombrada de que acreditasse isso. Não era possível que eu fosse como aquela anciã malévola!

           — Também recorda a sua mãe — sussurrou com sua fina e quebradiça voz, envolvendo mais estreitamente seu corpo esquelético no penhoar. — E parece muito jovem para ter mais de cinqüenta anos. Meu pai estava acostumado a dizer que os malvados sempre se arrumavam para permanecer jovens e sãos muito mais tempo que aqueles que tinham um lugar reservado no céu.

           — Se seu pai se achar no céu, Joel, asseguro-te que irei na direção oposta com enorme prazer.

            Antes de afastar-se a passo lento, Joel me olhou como se eu fosse um objeto digno de lástima.

            Quando estive de novo ao lado do Chris, este despertou o tempo suficiente para que eu pudesse lhe contar a conversa que tínhamos mantido Joel e eu. Chris me lançou um olhar penetrante na escuridão.

           — Catherine, te comportaste de forma muito grosseira ao falar de maneira tão brusca a um homem velho como ele. É lógico que não pode expulsá-lo daqui. Em certo modo, tem mais direitos que nenhum de nós sobre este lugar que, segundo a lei, é a casa do Bart, embora nós tenhamos privilégios de residência para toda a vida.

           Enchi-me de ira.

           — Não pode reconhecer que Joel se converteu na figura de pai que Bart esteve procurando toda sua vida?

           Minhas palavras o feriram. Chris se ergueu e se deu a volta.

           — Boa noite, Catherine. Acredito que deveria ficar na cama e te ocupar de seus assuntos para variar. Joel é um velho solitário que se sente agradecido por ter um defensor como Bart e um lugar onde viver o resto de sua vida. Deixa de imaginar o Malcolm em cada ancião que encontra, já que, se vivo o tempo suficiente, também serei velho algum dia.

           — Se tiver o aspecto do Joel e agir como ele, também estarei contente de te perder de vista.

           Oh, como podia dizer isso ao homem a quem amava? Ele se separou de mim um pouco mais e depois recusou responder ao contato de minha mão em seu braço.

           — Chris, lamento. Não queria dizer isso.

            Acariciei-lhe o braço e depois deslizei a mão dentro da jaqueta de seu pijama.

           — Acredito que é melhor que guarde as mãos para ti mesma. Agora não estou de bom humor. Boa noite, Catherine. E recorda que quando um busca problemas está acostumado a encontrá-los.

           Ouvi que se fechava uma porta distante. Meu relógio de pulso com luz indicava as 3:30. Envolta em uma bata, dirigi-me ao quarto de Melodie e me sentei a esperá-la.

           Tinham passado já trinta minutos desde que chegaram à garagem. Teriam se detido ela e Bart para abraçar-se e beijar-se? Estariam sussurrando-se palavras amorosas que não podiam esperar até o dia seguinte? O que outra coisa podia entretê-la tanto tempo? A aurora já se insinuava assinalando o perfil das montanhas. Eu percorria a quarto de Melodie de um lado a outro, à medida que crescia minha impaciência. Por fim a ouvi chegar. Melodie apareceu na porta de seu quarto, cambaleando, com seus sapatos de salto alto em uma mão e na outra um pequeno objeto de prata.

           Estava em seu sexto mês de gravidez, mas com o largo traje negro mal se notava. Ergueu-se quando me viu me levantar de uma poltrona e a seguir retrocedeu, sufocada.

           — Bom, Melodie — disse com meu maior cinismo — que linda está!

           — Cathy, Jory está bem?

           — Se preocupa realmente?

           — Parece muito zangada comigo. Olha-me com tanta dureza... O que tenho feito, Cathy?

           — Como se não soubesse — respondi, dando rédea solta à minha irritação, esquecendo o tato com que tinha previsto agir. — Escapa às escondidas numa noite chuvosa com meu filho e volta para casa horas depois com marcas vermelhas no pescoço, o cabelo alvoroçado e ainda me pergunta o que tem feito. Por que não me diz você... o que tem feito?

           Melodie me olhou incrédula, com olhos que expressavam culpa e vergonha, mas também uma centelha de esperança.

           — Foste como uma mãe para mim, Cathy — exclamou, com voz cansada, como se me suplicasse compreensão. — Por favor, não me falte agora; agora que necessito mais que nunca uma mãe!

           — Mas você esquece que, acima de tudo, sou a mãe do Jory e também a do Bart. Traindo ao Jory, trai-me.

           Melodie chorou de novo e me rogou que a escutasse.

           — Não me vire agora às costas, Cathy, não tenho ninguém exceto a ti, que me compreenda. De verdade! De todo o mundo, você é a única que pode me compreender. Amo ao Jory, sempre o amarei...

           — E por isso te deita com o Bart? Que maneira tão elegante de demonstrar seu amor! — atalhei.

            Minha voz soava fria e dura.         Seu rosto se apoiou em meu regaço enquanto seus braços me rodeavam a cintura.

           — Cathy, por favor. Espera até que me tenha ouvido. — ergueu o rosto, manchado pelas lágrimas, negras por causa do rímel, o que lhe conferia um aspecto lastimosamente vulnerável. — Eu sou parte do mundo do balé, Cathy, e você sabe o que isso significa. Nós bailarinos sentimos a música dentro de nossos corpos e almas e a transmitimos a outros para que possam vê-la, e por isso temos que pagar um preço, um alto preço. Você conhece o preço. Dançamos com nossas almas nuas para que todos as contemplem e as critiquem se o desejam e, quando a dança finaliza, ouvimos os aplausos, aceitamos as rosas, saudamos; cai o pano de fundo e ouvimos os gritos de "bravo! bravo!". Então vamos a nossos camarins para tirar a maquiagem, nos vestimos como todos e compreendemos que o melhor de nós não é real, a não ser pura fantasia. Flutuando em umas alas de sensualidade tão capitalista que ninguém, salvo nós, dá-se conta da dor que causa quanto é insensível, cruel e brutal na realidade.

           Interrompeu-se para recuperar a fortaleza e prosseguir, enquanto eu permanecia sentada, assombrada por sua percepção, pois sabia reconhecer a verdade quando a ouvia.

           — Ali fora o público acredita que a maioria de nós é alegre. Não se dão conta de que nos deixamos arrastar pela música, que ela nos sustenta. Mas os cenários, os aplausos e as adulações são insuficientes para sobreviver. A gente ignora que fazer amor é o que de verdade nos sustenta. Jory e eu estávamos acostumados a cair apaixonadamente um em braços do outro assim que ficávamos sozinhos e era então quando achávamos o alívio necessário para relaxar o suficiente e assim poder dormir. Agora não tenho alívio, nem tampouco ele. Jory não quer escutar música e eu não posso desconectá-la.

           — Mas você tem um amante — respondi fracamente, compreendendo cada uma de suas palavras.

            Também eu, em outro tempo, tinha pairado nas grandiosas asas da música e tinha descido, abatida, porque não havia ninguém que me amasse e fizesse realidade o mundo de fantasia que eu amava mais que tudo.

           — Escuta, Cathy, por favor. me dê uma oportunidade para me explicar. Você sabe como é aborrecida esta casa. Nunca recebemos uma visita e quando o telefone soa, sempre perguntam pelo Bart. Você, Chris e Cindy estavam sempre no hospital com Jory. Eu, em troca, fiquei em casa como uma covarde, assustada, tão assustada que ele notou meu temor. Tentei ler, me entreter tecendo, como você, mas era incapaz. Renunciei a isso e esperei que o telefone soasse. Ninguém me chama nunca de Nova Iorque. Passeei, arranquei joio do jardim, chorei nos bosques, contemplei o céu, observei as mariposas e chorei um pouco mais. Uma noite, depois de que nos comunicaram que Jory jamais dançaria, Bart veio ao meu quarto. Fechou a porta e ficou ali, me olhando. Eu estava na cama, chorando como estava acostumada a fazer. Tinha estado tocando a música de balé com a qual tentava reviver os sentimentos que tinha ao longo de minha vida junto ao Jory. Bart estava ali, me olhando fixamente com esses olhos escuros magnéticos. Permaneceu imóvel, sem parar de me olhar, até que eu deixei de chorar e ele se aproximou para me enxugar as lágrimas do rosto. Seus olhos se enterneceram com amor e eu me sentei e fiquei olhando. Nunca tinha percebido tanto afeto, ternura e compaixão em seu olhar. Comoveu-me. Acariciou-me a bochecha, o cabelo, os lábios. Um calafrio percorreu minhas costas. Bart pôs suas mãos em meu cabelo, cravou seu olhar em meus olhos e lenta, muito lentamente, inclinou a cabeça até que seus lábios roçaram os meus. Eu nunca tinha suposto que pudesse ser tão gentil. Sempre tinha acreditado que Bart tomaria uma mulher pela força. Possivelmente se houvesse meio tocado com mãos rudes, agressivas, o teria rechaçado. Mas sua delicadeza me venceu. Recordou Jory.

           Oh, eu não queria ouvir nada mais! Tinha que fazê-la parar antes de sentir piedade e compaixão por ela e pelo Bart.

           — Não quero ouvir nada mais, Melodie — disse friamente, erguendo a cabeça para não contemplar aqueles sinais de amor que Jory poderia observar se a visse. — De modo que agora, quando Jory te necessita mais, falha e se entrega ao Bart — reprovei com amargura. —Que esposa tão maravilhosa é, Melodie! — Ela soluçou mais forte, cobrindo o rosto com as mãos. — Recordo o dia de suas bodas, quando se encontrava ante o altar e pronunciou seus votos de fidelidade, para o melhor e para o pior. E agora, quando pela primeira vez tem que enfrentar um momento difícil em seu matrimônio, busca um amante.

           Enquanto Melodie choramingava e tentava encontrar melhores palavras com que ganhar minha vontade, eu pensava no quanto se achava solitária e isolada nessa casa da montanha. Nós tínhamos deixado Melodie aí, porque estava muito alterada para desejar ir a alguma parte, descuidamos o que ela e Bart faziam, sem suspeitar nunca que ela podia refugiar-se nele; na mesma pessoa que parecia desgostá-la tanto.

           Choramingando e soluçando ainda, Melodie brincava com seu tirante. Seus olhos chorosos pareciam cansados.

           — Como pode me condenar, Cathy, quando o que você tem feito é pior?

           Levantei-me ofendida, para partir, sentindo que minhas pernas e meu coração se tornaram de chumbo. Melodie tinha razão. Eu não era melhor que ela. Eu, como ela, tampouco tinha agido como devia em mais de uma ocasião.

           — Esquecerá o Bart, afastar-te-á dele e convencerá Jory de que ainda o ama?

           — Eu ainda quero ao Jory, Cathy, embora pareça incrível. Mas amo Bart de um modo diferente, de uma forma estranha que nada tem que ver com o sentimento que me inspira Jory. Jory foi o amor de minha infância e meu melhor amigo. Nunca eu gostei de seu irmão menor, mas ele mudou, Cathy. De verdade, mudou. Nenhum homem que não ame realmente as mulheres pode fazer amor como ele faz...

           Apertei os lábios. Fiquei imóvel na soleira da porta, condenando Melodie, como antigamente minha avó me tinha condenado com seus implacáveis olhos ao me considerar uma pecadora da pior estirpe.

           — Não vá! Me deixe tentar te fazer compreender! — exclamou Melodie, estendendo os braços em gesto suplicante. Fechei a porta, pensando no Joel, e me apoiei contra ela.

           — Bem, ficarei, mas não vou compreender-te.

           — Bart me ama, Cathy, ama-me realmente. Quando ele o diz, não posso evitar acreditar. Deseja que me divorcie do Jory. Assegura que se casará comigo. — Sua voz diminuiu até converter-se em um rouco sussurro. — Eu não sei com certeza se poderia viver com um marido confinado a uma cadeira de rodas. — Soluçando com mais força que antes, derreou-se e se deixou cair desmaiadamente ao chão. — Eu não sou forte como você, Cathy. Sou incapaz de dar ao Jory o apoio que necessita. Não sei o que dizer nem o que fazer por ele. Queria poder retroceder no tempo e fazer retornar o Jory que eu estava acostumado a ter, pois não conheço o de agora. Nem sequer acredito que queira lhe conhecer..., e isso me envergonha. Meu único desejo agora é desaparecer.

           Minha voz se tornou cortante como o fio resistente de uma navalha.

           — Não evitará tão facilmente suas responsabilidades, Melodie. Estou aqui para procurar que cumpra as promessas que formulou o dia de suas bodas. Em primeiro lugar, romperá sua relação com Bart, o afastará de sua vida. Nunca mais permitirá que te toque. Cada vez que ele tentar algo, o rechaçará. Falarei com ele outra vez. Sim, já o tenho feito antes, mas nesta ocasião me mostrarei mais serena e, se considerar oportuno, contarei ao Chris o que está acontecendo. Como sabe, Chris é um homem muito paciente e controlado, mas não desculpará o que está fazendo com o Bart.

           — Por favor! — exclamou. — Amo Chris como um pai! Quero que siga me respeitando!

           — Então, abandona o Bart! Pensa em seu filho, que deveria ser o mais importante para ti. Agora não deveria fazer amor; às vezes não é seguro.

           Melodie fechou seus grandes olhos, retendo as lágrimas; depois assentiu e prometeu que jamais voltaria a fazer amor com o Bart. Mesmo enquanto estava jurando, não acreditei. Tampouco acreditei no Bart quando falei com ele antes de me deitar.

           Chegou a manhã e eu não tinha dormido nada. Levantei-me, cansada e inquieta, pondo em meu rosto um sorriso falso antes de bater na porta do Jory. Convidou-me a entrar. Parecia mais feliz que durante noite a passada, como se os pensamentos noturnos o tivessem acalmado.

           — Me alegro de que Melodie tenha a ti para apoiar-se — disse enquanto eu lhe ajudava a virar-se.

           Todos os dias, Chris, o enfermeiro e eu nos alternávamos para lhe mover as pernas e lhes fazer massagem quando o terapeuta não ia para fazê-lo. Dessa maneira os músculos não se atrofiariam. Suas pernas, devido à massagem, tinham recuperado algo de sua antiga forma, o que considerava um grande avanço. Esperança... nessa casa de tristeza sombria sempre nos aferrávamos à esperança, que pintávamos de amarelo, como o sol que poucas vezes tínhamos visto.

           — Esperava que Melodie viesse esta manhã — disse Jory pesaroso — já que nem sequer entrou ontem à noite para me dar boa-noite.

           Os dias transcorriam. Melodie desaparecia com freqüência, igual a Bart. Minha fé em Melodie se desvaneceu. Já não podia encontrar seu olhar e sorrir. Retrocedi em meu empenho de falar com Bart, e me refugiei no Jory em busca de companhia. Víamos televisão, jogávamos diversos jogos de mesa, competíamos fazendo quebra-cabeças para ver quem encontrava antes as peças adequadas; pela tarde, bebíamos vinho. Por volta das nove nos vencia o sonho e fingíamos, fingíamos que tudo acabaria bem com um pouco de esforço.

           Cansava-o cada vez mais ter que estar na cama a maior parte do tempo.

            — Deve-se à falta de exercício adequado — explicava, largando o trapézio sujeito à cabeceira de sua cama. — Pelo menos mantenho os braços fortes... Onde disse que está Melodie?

           Deixei o sapatinho que acabava de tecer e peguei lã para começar outro. Entre nossas partidas, eu fazia tricot e via televisão. Quando não acompanhava Jory, encerrava-me em meu quarto para escrever à máquina o livro que estava redigindo sobre nossas vidas. "Meu último livro", dizia-me. Que mais tinha que dizer? Que mais podia nos acontecer ainda?

           — Mamãe! Alguma vez me escuta? Perguntei-te se sabia onde está Melodie e o que está fazendo.

           — Está na cozinha, Jory — me apressei a responder — preparando seus pratos favoritos.

           Uma expressão de alívio iluminou sua cara.

           — Estou preocupado por minha mulher, mamãe. Vem e tenta me ajudar, mas seu coração não parece estar comigo. — Por seus olhos passou uma sombra que logo se dissipou ao observar meu atento olhar. — Digo a ti o que preciso expressar a ela. Dói-me observar como vai distanciando-se de mim pouco a pouco. Queria lhe falar e lhe explicar que sigo sendo o mesmo homem por dentro, mas não acredito que lhe interesse sabê-lo. Tenho a impressão de que ela precisa pensar que sou diferente porque não posso andar nem dançar, e assim lhe será mais fácil romper todos os laços que nos unem e afastar-se de mim. Nunca me fala do futuro. Nem tão sequer pensamos como chamaremos ao nosso filho. Estive olhando em livros para encontrar o nome adequado para nosso filho ou filha. Como você sugeriu, estive também lendo livros sobre a gravidez, só para compensar minha antiga falta de interesse...

           E assim falava e falava Jory, convencendo-se com suas próprias palavras de que era a gravidez a responsável pelas mudanças que se produziram em sua esposa.

           Clareei a garganta e aproveitei minha oportunidade.

           — Jory, refleti muito sobre o que vou dizer. Seu doutor disse uma vez que estaria melhor no hospital que aqui, pois assim alguém te ajudaria com a reabilitação. Você e Melodie poderiam alugar um pequeno apartamento perto do hospital e ela poderia te levar ao Rebach todos os dias no carro. Estamos quase no inverno, Jory. Você não sabe como são os invernos nesta parte montanhosa da Virginia. Aqui gela e o vento nunca cessa de soprar. Neva freqüentemente. Com freqüência se bloqueiam os caminhos que conduzem para o povoado. O estado mantém abertas as pistas e as estradas, mas os caminhos privados até esta propriedade ficam fechados freqüentemente. Portanto, muitos dias o enfermeiro ou o terapeuta não poderão vir e você necessita exercício diário. Se viver perto do hospital, poderá atender a todas suas necessidades físicas.

           Olhou-me com doída surpresa.

           — Isso significa que deseja se livrar de mim?

           — É obvio que não. Tem que admitir que você não gosta desta casa.

           Seus olhos se dirigiram para as janelas que a chuva açoitava com força. Folhas mortas e pétalas de rosas de floração tardia cobriam o chão. Todos os pássaros do verão partiram. O vento assediava a casa e abria caminho por pequenas frestas, uivando e ululando como o tinha feito no velho, velho Foxworth.

           Enquanto eu contemplava o jardim através da janela, Jory disse:

           — Eu gosto de como você e Mel decoraram estes aposentos. Proporcionaste-me um refúgio seguro contra o desprezo do mundo e agora não desejo partir daqui para viver com aqueles que estavam acostumados a admirar minha graça e habilidade. Não quero ter que me separar de ti e papai. Sinto que estamos muito mais perto do que jamais tínhamos estado; além disso, aproximam-se as festas. E se as estradas podem estar fechadas para o enfermeiro e o terapeuta, também o estarão para ti e papai. Não me afaste, mamãe. Desejo mais que nunca ficar aqui. Necessito-te. Necessito a papai. Inclusive necessito desta oportunidade para me aproximar mais do meu irmão. Recentemente estive pensando no Bart. Algumas vezes vem e se senta perto de mim, e falamos. Acredito que, por fim, começamos a ser a classe de amigos que fomos antes que sua mãe fosse viver naquela casa contígua à nossa, faz muito tempo, quando ele tinha nove anos...

           Eu me removia inquieta, pensando na duplicidade do Bart que, por um lado, visitava seu irmão para ser seu amigo, e por outro seduzia a sua mulher às suas costas.

           — Se for isso o que desejas, Jory, fique. Mas pensa um pouco. Chris e eu poderíamos nos transladar à cidade para estar contigo e Melodie, e procuraríamos que as coisas fossem para ti tão cômodas como são aqui.

           — Mas você não pode me dar outro irmão a esta altura; verdade, mamãe? Bart é o único irmão que tenho. Antes que eu morra, ou morra ele, desejo que saiba que me importa o que lhe acontece. Quero vê-lo feliz. Minha maior ilusão é que ele desfrute de um matrimônio tão feliz como o meu. Algum dia Bart se dará conta de que o dinheiro não pode comprar tudo e menos ainda o amor; não a classe de amor que Melodie e eu professamos.

           Parecia pensativo, enquanto eu chorava em meu interior por ele e por seu "amor"; então se ruborizou.

           — Pelo menos deveria acrescentar: o matrimônio que estávamos acostumados a ter. Na atualidade, não se parece muito a um matrimônio, sinto admiti-lo. Mas não cabe jogar a culpa em Melodie.

           Uma semana mais tarde, quando me encontrava sozinha em meu quarto escrevendo o livro, ouvi o ruído das fortes pisadas do Chris aproximar-se correndo pelo corredor. De repente entrou.

           — Cathy — disse muito excitado, tirando o casaco que jogou em uma cadeira. — Tenho maravilhosas notícias! Lembra-te daquele experimento que estávamos realizando? Teve resultados. — Ergueu-me de meu escritório e me conduziu para uma cadeira situada diante da luz da lareira. Explicou-me com todos os detalhes o que ele e outros cientistas estavam tentando conseguir. — Significa que estarei fora de casa cinco noites por semana, agora que chegou o inverno. A neve não se derrete até meio-dia e se tivesse que esperar até então para sair de casa, ficariam muito poucas horas para trabalhar no laboratório. Mas não te entristeça, estarei aqui todos os fins-de-semana. Não obstante, se te parecer mau, diga-me isso com franqueza. Minha primeira obrigação é para ti e nossa família.

           Seu entusiasmo por esse novo projeto era tão evidente que não me atrevi a turvá-lo com meus temores. Chris nos tinha dado muito a mim, Jory e Bart, e tinha recebido muito pouco reconhecimento em troca. Meus braços rodearam seu pescoço. Esquadrinhei seu rosto, familiar e querida. Ao redor de seus olhos azuis enxerguei sinais que não tinha notado com antecedência. Meus dedos entre seus cabelos encontraram prata que era mais áspera que o ouro. Em suas sobrancelhas havia alguns cabelos cinza.

           — Se isto te fizer infeliz, sempre posso deixá-lo, me esquecer da investigação e dedicar todo meu tempo a minha família. Mas te agradeceria que me desse esta oportunidade. Quando renunciei ao exercício da medicina na Califórnia, acreditava que nunca encontraria nada que voltasse a me interessar, mas estava equivocado. Possivelmente assim devia ser. Mas se for necessário posso renunciar e ficar aqui com minha família.

           Renunciar à medicina por completo? Chris tinha centrado a maior parte de sua vida em seu estudo. Retê-lo na casa, só para me agradar, sem fazer nada que contribuiria à humanidade, o destruiria.

           — Cathy — disse Chris, interrompendo meus pensamentos, enquanto voltava a colocar seu pesado casaco de lã — está bem? Por que tem esse aspecto tão estranho, tão triste? Retornarei todas as sextas-feiras de noite e não voltarei a partir até na segunda-feira pela manhã. Explique ao Jory. Não, pensando bem, passarei por seu quarto e eu mesmo contarei.

           — Se for isso o que desejas, isso é o que tem que fazer. Mas sentiremos falta de ti. Não sei como poderei dormir sem te ter a meu lado. Sabe? Falei com Jory e ele não quer ir ao Charlottesville. Acredito que acabou por sentir-se a gosto em seus aposentos. Quase terminou esse clíper. E seria uma lástima o privar de todas as comodidades de que desfruta aqui. Além disso, o Natal está muito longe. Cindy virá para casa o Dia de Ação de Graças para ficar até o Ano Novo. Chris, me prometa que fará todo o possível para voltar para casa todas as sextas-feiras. Jory necessita de sua fortaleza tanto como da minha, agora que Melodie o enganou.

           Oh! Tinha falado muito. Seus olhos se entreabriram.

           — O que está acontecendo que não me contaste?

           Tirou o pesado casaco e o pendurou com supremo cuidado. Tragando primeiro saliva, comecei a falar, tentando desviar meus olhos do feitiço dos seus... Mas aqueles olhos azuis me obrigaram a dizer:

           — Chris, consideraria algo terrível que Bart se apaixonasse por Melodie?

           Apertou os lábios.

           — Oh, isso! Já sei que Bart se sente atraído por ela desde o dia em que Melodie chegou. Surpreendi-o observando-a. Um dia encontrei os dois no salão posterior, sentados no sofá. Tinha-lhe aberto o vestido e lhe beijava os peitos. Afastei-me. Cathy, se Melodie não o quisesse, tê-lo-ia esbofeteado e o teria detido. Pode supor que sua relação está roubando ao Jory a esposa quando mais a necessita, mas Jory não necessita de uma mulher que já não o quer. Deixa que Bart fique com ela se a ama. Que bem pode fazer Melodie ao Jory agora?

           — Está defendendo o Bart? Acha que é justo o que tem feito?

           — Não, não acredito que seja justo. Quando foi justa a vida, Cathy? Foi justa quando Jory quebrou as costas, e agora que não pode caminhar? Não, não é justa. Estive muito tempo exercendo a medicina para não saber que a justiça não está distribuída com eqüidade. Os bons falecem antes que os maus; os meninos morrem antes que seus avós e quem vai dizer que isso é justo? Mas o que podemos fazer a respeito? A vida é um dom, e possivelmente a morte é outra classe de dom. E quem somos você e eu para opinar? Aceita o que aconteceu entre o Bart e Melodie e permanece perto do Jory. Faz que seja feliz até que chegue o dia que encontre outra mulher.

           Aturdida por suas palavras, sentia-me vaga e irreal.

           — E o bebê, o que acontece ao bebê?

           Agora a voz do Chris se tornou severa.

           — O bebê é outra questão. Ele ou ela pertencerão ao Jory, sem importar qual dos dois irmãos Melodie escolha. Esse menino ajudará Jory a superar o transe.... porque é provável que ele nunca possa fazer outro.

           — Chris, por favor. Fala com o Bart e o convença de que deixe Melodie. Eu não posso suportar ver o Jory perder a sua esposa neste momento de sua vida!

           Chris sacudiu a cabeça e disse que Bart nunca o escutava e que, sem eu sabê-lo, já tinha falado com Melodie.

           — Carinho, enfrente aos fatos. Melodie não necessita do Jory. Não se atreverá a admiti-lo, mas detrás de cada palavra que não pronuncia, detrás de todas suas desculpas, esconde-se a realidade: não quer seguir casada com um homem que não pode caminhar. Em minha opinião, seria cruel obrigá-la a ficar com ele, e também prejudicial para Jory. Se a forçarmos a ficar, cedo ou tarde o ferirá por não ser o homem que era, e eu quero economizar ao Jory esse sofrimento. É melhor que a deixemos partir antes que Melodie o fira muito mais que tendo uma aventura amorosa com o Bart.

           — Chris! — exclamei, perplexa ante seus argumentos. — Não podemos permitir que traia ao Jory!

           — Cathy, quem somos nós para julgar seu comportamento? Bom ou mau, deveríamos nós, a quem Bart considera uns pecadores, nos sentar e julgar?

           Pela manhã, Chris partiu em seu carro depois de me repetir que retornaria na sexta-feira ao redor das seis. Observei-o do meu quarto até que o automóvel se perdeu de vista.

           Que vazios aqueles dias sem o Chris, que tristes as noites sem que seus braços me estreitassem e seus murmúrios me assegurassem que tudo sairia bem! Eu sorria e ria pelo Jory, desejando que ele não notasse que tinha saudades do Chris em meu leito todas as noites. Sabia que Melodie e Bart seguiam sendo amantes; entretanto eram bastante discretos para me tentar ocultar isso Mas eu sabia pela forma com que Joel olhava a esposa do Jory, a quem considerava uma leviana. Era estranho que não olhasse Bart do mesmo modo, já que era tão culpado como ela. Mas os homens, inclusive os mais poderosos, como Joel, tinham uma maneira de pensar segundo a qual o que era justo para o ganso, era pecado para a gansa.

            Tinham transcorrido já duas semanas de novembro e nossos planos para o Dia de Ação de Graças estavam cancelados. O tempo piorou; os fortes ventos chegaram, a neve se foi acumulando ante nossas portas e gelava pelas noites, de modo que não podíamos sair de casa. Um após o outro, os empregados foram partindo até que só ficou Trevor para cozinhar, com minha ajuda esporádica.

           Cindy chegou de avião e alegrou nossas horas com sua risada fácil e suas maneiras sedutoras que encantavam a todos exceto ao Bart e Joel. Inclusive Melodie parecia um pouco mais feliz. Depois se meteu em sua cama para permanecer nela todo o dia, tentando evitar o frio agora que a eletricidade falhava tão freqüentemente. Quando assim ocorria, tínhamos que recorrer à estufa de carvão.

           Bart trazia a lenha que necessitava para a lareira de seu escritório e se esquecia de que a outros também gostavam de desfrutar do calor de um bom fogo.

           Bart e Joel estavam reunidos, falando em voz baixa do baile de Natal que Bart planejava, de modo que tive que levar a lenha suficiente para acender um fogo no quarto do Jory, onde ele e Cindy jogavam uma partida. Jory estava sentado em sua cadeira, envolto em uma manta de fio de lã e com os ombros cobertos com uma jaqueta. Sorria ao comprovar meus vãos intentos por acender a chama.

           — Abre o “respiro” da chaminé, mamãe. Isso sempre ajuda um pouco.

           Como tinha podido esquecê-lo? Logo o fogo ardia na lareira. O resplendor alegrava a quarto, que não parecia tão adequado no inverno, como o era no verão, tal como Bart tinha previsto. Agora uma pintura mais escura teria feito Jory sentir-se mais confortável.

           — Mamãe — exclamou Jory, que se mostrava de repente muito animado — faz dias que estou pensando em algo. Sou um bobo por agir como o faço. Você tem razão, sempre a teve. Não voltarei a me compadecer de mim mesmo quando ficar sozinho e ninguém possa ver-me, como o estive fazendo desde o acidente. Aceitarei o irremediável e tirarei o maior proveito desta difícil situação. Tal como você e papai fizeram quando estavam encerrados, converterei meus momentos de ócio em momentos de criatividade. Terei tempo demasiado para ler todos os livros que nunca pude ler antes; a próxima vez que papai se ofereça a me ensinar a pintar com as aquarelas, aceitarei. Sairei ao jardim e tentarei pintar paisagens. Possivelmente até me atreva com o óleo e com outros materiais. Quero agradecer a ambos os ânimos que me infundem para prosseguir. Sou um tipo afortunado por ter uns pais como vocês.

           Senti-me orgulhosa e emocionada. Pus-se a chorar, abracei-o, felicitando-o por voltar a ser o de sempre.

           Cindy tinha preparado uma mesa de bridge para dois, mas Jory logo voltou a trabalhar no clíper que estava decidido a terminar antes de Natal. Estava atando os barbantes, finos como fios, aos equipamentos de barco. Este era o último detalhe. A única coisa que faltava eram pequenos retoques de pintura aqui e lá.

           — O darei de presente a alguém muito especial, mamãe — afirmou. — No dia de Natal, uma pessoa desta casa terá minha primeira obra de artesanato.

           — Eu o comprei para ti, Jory, para que fosse um legado que deixasse a seus filhos. -Empalideci ao me ouvir dizer "filhos".

           — Está bem, mamãe, pois com este presente recuperarei o irmão mais jovem que me amou antes que esse velho viesse e o mudasse. Bart o deseja muito; vejo em seus olhos cada vez que entra e deve ver meus progressos. Além disso, sempre posso montar outro para meu filho. Neste momento desejo fazer algo para o Bart. Ele acredita que nenhum de nós o necessitamos ou o apreciamos. Nunca conheci nenhum homem tão inseguro de si mesmo e isso é tão triste!

 

FESTAS ALEGRES

           O Dia de Ação de Graças, Chris chegou à primeira hora da manhã. O enfermeiro do Jory compartilhou conosco a comida de Ação de Graças, sem afastar seu olhar amoroso da Cindy, como se a moça o tivesse enfeitiçado. Cindy se comportou como uma dama e me fez sentir muito orgulhosa dela. Ao dia seguinte, aceitou feliz nossa proposta de passar uns dias em Richmond. Melodie sacudiu a cabeça.

           — Sinto muito, não gostaria de ir.

           Chris, Cindy e eu fomos de carro, com a consciência tranqüila, sabendo que Bart fora de avião para Nova Iorque e não estaria com Melodie. O enfermeiro do Jory tinha prometido que ficaria com ele até que retornássemos.

           Nossas férias de três dias em Richmond refrescaram nossas mentes e nossas almas, e me fizeram sentir jovem, bela e muito apaixonada. Cindy desfrutou muitíssimo, gastando, gastando e gastando ainda um pouco mais.

            — Sabe? — disse com orgulho — eu não esbanjo todo esse dinheiro que me mandam. Economizo para comprar bonitos presentes para minha família. Já verão o que comprei para os dois. E me faz ilusão pensar que Jory se entusiasmará com seu presente. Quanto ao Bart, não me importa se gostará do que escolhi para ele.

           — E o que tem para seu tio Joel? — perguntei com curiosidade.

           Abraçou-me rindo:

           — Espera até que o veja.

           Horas depois, Chris conduzia pelo sinuoso caminho privado que levava a Foxworth Hall. Em uma das caixas que enchiam o porta-malas e o assento posterior do carro, havia um traje caro que eu tinha comprado para usar no baile de Natal de que tinha ouvido Bart falar com os fornecedores que tinham preparado sua festa de aniversário. Outra caixa semelhante à minha continha o vestido que Cindy tinha escolhido: espetacular, mas ao mesmo tempo maravilhosamente adequado.

           — Obrigado, mamãe, por não protestar — tinha sussurrado antes de me beijar.

           Durante nossa ausência não tinha ocorrido nada especial, exceto Jory ter completado por fim o clíper que se erguia altivo, terminado até o último detalhe com muita delicadeza, com um pequeno leme de cobre reluzente e velas inchadas pelos fortes ventos invisíveis.

           — Endureci-as com açúcar — revelou Jory com um sorriso — e funcionou. Peguei as velas e as dispus ao redor de uma garrafa, tal como indicam as instruções, e agora nossa primeira viagem está em plena marcha. — Estava orgulhoso de seu trabalho e sorria enquanto Chris admirava sua meticulosa habilidade.

           Tivemos que ajudar a levantar a nave para colocá-la em um molde de espuma sintética que o manteria seguro até que chegasse à mãos de seu novo proprietário.

           Seus belos olhos me dedicaram um olhar.

           — Obrigado por me dar algo que fazer durante todas estas longas e aborrecidas horas, mamãe. Quando o vi pela primeira vez me senti afligido, pensando que jamais seria capaz de fazer algo que parecia tão difícil. Mas dei o primeiro passo e assim, pouco a pouco, fui entendendo essas instruções tão complicadas.

           — Assim é como se ganham as batalhas, Jory — disse Chris, enquanto eu abraçava ao meu filho com força. — Não se contemplam as coisas em sua verdadeira perspectiva. Avança-se um passo, outro, outro... até que se chega a seu destino. Devo reconhecer que realizaste um magnífico trabalho com este navio. Está construído igual ao que teria feito um profissional; parece que tinha montado outros antes. Se Bart não apreciar o esforço que isto custou, terei uma desilusão. — Chris sorriu ao Jory. — Tem um aspecto mais são, mais forte. Não te dê por vencido com as aquarelas. É uma técnica difícil, mas acredito que desfrutará mais que com os óleos. Estou convencido que algum dia chegará a ser um excelente artista.

           No piso inferior, Bart falava por telefone, dando instruções a um empregado de um banco para que se ocupasse de um negócio fracassado. Depois falou com alguém mais sobre a festa de Natal que estava planejando, um baile que compensasse a tragédia de sua festa de aniversário. Fiquei de pé ante a porta aberta, pensando que felizmente não teria que pagar tudo o que estava encarregando de seus recursos pessoais, mas sim da Corrine Foxworth Winslow Trust, que concedia ao Bart quinhentos mil dólares ao ano como dinheiro "de bolso", para cobrir tão somente gastos pessoais. Irritava muito ao Bart ver-se obrigado a consultar Chris cada vez que ultrapassava a cifra dos dez mil dólares.

           Bart pendurou o auricular dando um bom golpe e me olhou zangado.

           — Mãe, tem que ficar aí, de pé na soleira, espiando? Não te disse que permaneça afastada de mim quando estou ocupado?

           — Quando posso ver-te então?

           — E por que quer ver-me?

           — Pela mesma razão que qualquer mãe quer ver seu filho.

           Seus olhos escuros se abrandaram.

           — Tem ao Jory e ele sempre parece ser mais que suficiente para ti.

           — Não, equivoca-te. Se não tivesse tido a ti, Jory teria sido suficiente. Mas tive a ti, e isso te converte em uma parte vital de minha vida.

           Inseguro, Bart se levantou e se aproximou de uma janela, me dando às costas. Sua voz chegou até mim profunda e resmungona, envolta em uma melancólica tristeza.

           — Lembra-te de quando eu estava acostumado a guardar o livro do Malcolm dentro de minha camisa? Malcolm escreveu tanto sobre sua mãe, sobre quanto a amava até que ela fugiu com seu amante e o abandonou com um pai a quem ele não queria... Temo que parte do ódio do Malcolm para com ela me contagiou. Cada vez que vejo tu e Chris subindo por estas escadas, ataca-me a necessidade de me limpar da vergonha que sinto e que vocês dois não sentem. Portanto, não comece a me exortar sobre Melodie, pois minha relação com ela é muito menos pecaminosa que a que você mantém com o Chris.

           Sem dúvida, Bart tinha razão e isso era o que mais me doía.

           Acostumei-me a ver o Chris só os fins-de-semana, embora me entristecesse sua ausência, e a cama me parecia enorme e solitária sem ele. Minhas manhãs em solidão eram tristes. Desejava ouvi-lo assoviar enquanto se barbeava e tomava banho; sua alegria, seu otimismo. Quando o tempo o reteve longe inclusive nos fins-de-semana, também fui capaz de me acostumar. Quão facilmente nos adaptamos os humanos às situações, que bem dispostos estamos a suportar qualquer horror, qualquer mudança, qualquer privação só para alcançar uns poucos minutos de gozo inapreciável!

           Contemplar, da janela, como Chris desembarcava de seu carro me enchia de uma excitação quase juvenil, tão entristecedora, que era como se esperasse o pai do Bart, que saía escondido de Foxworth Hall para encontrar-se comigo na cabana. O certo era que eu não agia com tanta placidez ao aceitá-lo agora como quando o via cada noite, cada manhã ao despertar. Os fins-de-semana se converteram em algo que esperava com ânsia e com que sonhava. Entretanto, Chris era ao mesmo tempo mais e menos para mim, mais um amante e menos um marido. Eu sentia falta do irmão que tinha sido e ao mesmo tempo desejava o marido-amante que me fazia esquecer o irmão que conheci um dia.

           Não havia modo nem palavras que pudessem nos separar já, depois de que eu o tinha aceitado e tomado como marido, desafiando o desprezo e as normas morais da sociedade.

           Entretanto, meu inconsciente utilizava uns truques peculiares para subtrair importância às possíveis contrariedades de minha consciência. Decididamente eu separava Chris homem do Chris moço que tinha sido meu irmão. Tratava-se de um jogo não planejado, inconsciente, que ambos tínhamos começado a levar com delicadeza. Não falávamos disso, não havia por que: Chris já não me chamava "minha dama Catherine", nem dizia: "Não deixe que os percevejos lhe remoam." Todos os encantos e as fantasias do passado, que tínhamos criado quando estávamos encerrados no sótão com o propósito de manter afastados os espíritos malignos, já não os necessitávamos, nos anos de nossa felicidade.

           Uma noite de sexta-feira, em dezembro, Chris chegou tarde em casa, esfregou os pés no tapete enquanto eu lhe observava das sombras na rotunda, tirou-se o casaco, que pendurou no armário dos convidados e subiu de dois em dois os degraus, me chamando. Saí das sombras e me joguei em seus ofegantes braços.

           — Chegaste tarde outra vez! — reprovei. — A quem encontra em seu laboratório que te arrebata tanto tempo?

            “Ninguém! Ninguém!”, asseguravam-me seus apaixonados beijos.

           Os fins-de-semana pareciam curtos, tremendamente curtos. Eu lhe contava o me inquietava, falava-lhe do Joel e seu estranho modo de vagabundear pela casa, mostrando sua desaprovação por tudo o que eu fazia. Referia-lhe minhas impressões sobre Bart e Melodie, e minha preocupação pelo Jory, que estava deprimido, suspirando por Melodie, odiando a indiferença de sua esposa e amando-a apesar disso, enquanto eu tentava recordar a Melodie suas responsabilidades a cada momento. O desapego de Melodie doía ao Jory, inclusive mais que sua invalidez.

           Chris, estendido a meu lado, sonolento, escutava minha longa conversa com silenciosa impaciência antes de dizer:

           — Catherine, algumas vezes me faz temer a volta para casa. — E ficava de lado, afastando-se de mim. — Danifica todo o maravilhoso e doce que existe entre nós dois com suas histórias suspicazes e desagradáveis. E a maior parte de tudo o que te incomoda está em sua mente. Não acredita que sempre tiveste muita imaginação? Cresce já, Catherine! Está transmitindo ao Jory suas suspeitas. Quando aprender a esperar só o bom das pessoas, então possivelmente será isso o que delas obtenha.

           — Já escutei antes sua filosofia, Christopher — repus com um matiz de amargura que cruzou por meu cérebro como um raio ao recordar a fé que Chris tinha em nossa mãe, e a bondade que, em sua devoção, esperava dela. "Chris, Chris, será que alguma vez aprenderá?", pensei. Mas não me atrevi a dizê-lo.

           Ali estava Chris, um homem de meia idade, embora não o parecesse, me dando de presente seu eterno otimismo juvenil de esplendor rosado. Embora tivesse podido o ridicularizar por isso, eu ansiava essa classe de fé redentora que lhe proporcionava paz, enquanto que eu vivia entre desejos, inquieta, me apoiando ora em um pé, ora no outro, como se estivesse sobre um ferro ardente.

           Bart estava sentado diante de um bom fogo, tentando concentrar-se no The Wall Street Journal enquanto Jory e eu envolvíamos os presentes de Natal sobre uma larga mesa da qual tínhamos tirado todos os adornos. De repente recordei, enquanto confeccionava laços de fantasia e recortava papel de estanho, que Cindy tinha chegado. Vagava como em sonhos pela casa, perdida em seu próprio mundo de tal modo que parecia como se não estivesse ali. Por causa da tranqüilidade que sua atitude mostrava, eu tinha descuidado suas necessidades enquanto atendia às do Jory. Não me surpreendi quando ela quis ir com o Chris a Charlottesville para terminar suas compras e ver um filme antes de retornar com ele na sexta-feira. Chris dispunha de um apartamento com um dormitório e pensava que Cindy podia dormir em seu sofá-cama.

           —De verdade, mamãe, minha surpresa especial de Natal te agradará.

           Só quando Cindy esteve fora, perguntei-me o que provocaria aquele secreto sorriso de prazer em seu lindo rosto.

           Enquanto Jory e eu adornávamos com os grandes laços de cetim os presentes e colocávamos as etiquetas com os nomes, ouvi o ruído das portas de um automóvel, umas pisadas fortes no pórtico e depois a voz do Chris, que me chamava. Eram duas da tarde quando entrou em nosso salão preferido, acompanhado pela Cindy a seu lado e, para meu assombro, um moço extraordinariamente atraente de uns dezoito anos. Eu já sabia que Cindy considerava qualquer menino que não tivesse pelo menos dois anos mais que ela, muito jovem para ela. “Quanto mais velhos e mais experientes, melhor”, estava ela acostumada a brincar.

           — Mamãe — exclamou Cindy, feliz, com o rosto radiante. — Aqui está a surpresa que você disse que eu podia trazer para casa.

            Em que pese a minha perplexidade, consegui sorrir. Cindy não tinha mencionado que sua surpresa secreta era um hóspede a quem tinha convidado sem pedir permissão. Fiquei de pé para que Chris pudesse nos apresentar ao amigo que Cindy tinha conhecido na Carolina do Sul. Lance Spalding, assim se chamava, demonstrou um aprumo considerável enquanto nos estreitava a mão a mim, ao Jory e Bart, que estava enfurecido.

           Chris me beijou na bochecha e abraçou ligeiramente ao Jory antes de dirigir-se com rapidez para a porta.

           — Cathy, me perdoe por partir tão cedo, mas voltarei amanhã cedo. Cindy não podia esperar até então para trazer para casa a seu convidado. Devo acabar algumas coisas na universidade. Além disso não terminei minhas compras. — Dedicou-me um brilhante sorriso cheio de encanto. — Querida, são duas semanas de férias, de modo que age com calma e guarda sua imaginação sob chave. — voltou-se para Lance. — Desfruta de suas férias, Lance.

           Cindy, muito orgulhosa de si mesmo, conduziu a seu amigo para a pessoa que, com segurança, mostrar-se-ia menos hospitaleiro com seu convidado.

           — Bart, sabia que não te importaria que convidasse Lance. Seu pai é o presidente da cadeia Chemical Banks, da Virginia.

           Palavras mágicas. Sorri ante a astúcia da Cindy. A atitude hostil do Bart se transformou imediatamente em interesse. Me sentia mal em presenciar como Bart tentava extrair toda a informação possível, por pequena que fosse, do jovem que, obviamente, sentia-se muito atraído pela Cindy.

           Cindy estava mais adorável que nunca, resplandecente em seu apertado suéter branco com listras de cor rosa combinando com suas estreitas calças de lã. Tinha uma figura maravilhosa e sabia exibi-la com decisão.

            Rido, exultante, agarrou a mão de Lance e o separou do Bart.

           — Lance, já verá quando te mostrar a casa. Temos duas armaduras autênticas, mas são muito pequenas para meu tamanho; para mamãe, possivelmente, mas não para mim. Imagine, acreditava-se que os cavalheiros eram homens fortes, grandes e não o eram. O salão de música é maior que este e meu quarto é o mais bonito de todos. A suíte que meus pais compartilham é incrível. Não fui convidada aos aposentos do Bart, mas estou segura que devem ser fabulosos.

            Ao dizer isto se voltou um pouco para dirigir ao Bart um sorriso malicioso, insinuante. A expressão depreciativa do Bart aumentou.

           — Não te aproxime de meus aposentos! — ordenou com aspereza. — Não te aproxime de meu escritório. E você, Lance, enquanto estiver aqui, recorde que está sob meu teto, e espero que trate a Cindy com decoro.

           O moço se ruborizou e respondeu com acanhamento:

           — Naturalmente. Compreendo.

           No mesmo instante em que o casal se perdeu de vista, embora ainda se ouvisse Cindy cantando elogios do Foxworth Hall, Bart me arrojou sua opinião sobre o amigo da Cindy.

           — Eu não gosto dele. É muito velho para ela e excessivamente meloso. Cindy ou eu devíamos censurá-lo se tomar certas confianças com ela. Além disso, sabe que eu não gosto dos convidados caídos do céu sem ser esperados.

           — Bart, estou de acordo contigo. Cindy devia ter nos avisado, mas possivelmente temia que você negasse. Por outro lado, parece-me um jovem agradável. Recorda o doce que Cindy foi desde dia de Ação de Graças. Não te causou nem um só problema. Está crescendo.

           — Esperemos que continue comportando-se bem — grunhiu Bart antes de forçar um sorriso de cumplicidade. — Viu como a olhava? Tem a esse pobre menino assanhado!

           Aliviada, acomodei-me sorrindo ao Bart, e depois ao Jory, que estava manuseando as luzes natalinas antes de começar a dispor os presentes sob a árvore.

           — Os Foxworth tinham a tradição de oferecer sempre um baile na noite de Natal —explicou Bart — e o tio Joel mandou por correio meus convites faz duas semanas. Espero pelo menos duzentos convidados, se o tempo se mantiver um pouco decente. Embora haja névoa, acredito que a metade da gente saberá arrumar-se para chegar aqui. Depois de tudo, não podem permitir-se me desgostar enquanto eu lhes proporciono tantos negócios. Virão banqueiros, advogados, corredores de Bolsa, médicos, empresários, todos eles acompanhados por suas mulheres e as amigas dos amigos, assim como o melhor da sociedade local. Também convidei a alguns de meus irmãos da fraternidade. Assim, por uma vez, mãe, não poderá te queixar de que nossas vidas ficam solitárias nesta zona isolada.

           Jory retomou a leitura de seu livro, decidido a não permitir que nada do que Bart dissesse ou fizesse o turvasse. À luz do fogo seu perfil clássico era perfeito. O cabelo escuro e encaracolado emoldurava seu rosto e cobria o pescoço de sua camisa. Bart vestia um traje de homem de negócios, como se em qualquer momento tivesse que levantar-se para presidir uma reunião corporativa.

           Melodie entrou usando um vestido cinza, sem forma, que se pendurava de seus ombros e se avultava no ventre como se debaixo houvesse um melão. Seu olhar pousou em Bart, que se levantou de um salto, virou a cabeça e saiu pressuroso do quarto, deixando detrás de si um pesado silêncio.

           — Encontrei-me com a Cindy lá em cima — disse Melodie evitando que seu olhar triste se cruzasse com o do Jory. Sentou-se perto do fogo e estirou as mãos para frente para esquentá-las. — Seu amigo parece um menino agradável e bem educado. Além disso, é muito bonito. — Não afastava a vista do fogo enquanto Jory tentava insistentemente obrigá-la a que o olhasse. A dor de seu coração se refletiu em seus olhos quando renunciou pesaroso e voltou para seu livro. — Me parece que a Cindy gosta dos homens de cabelo escuro que se parecem com seus irmãos — prosseguiu de um modo vago, distante, como se nada importasse.

           Jory elevou o olhar, irado.

           — Mel, nem sequer pode me saudar? — perguntou com voz rouca. — Estou aqui, estou vivo, fazendo tudo o que posso para sobreviver! Não pode dizer ou fazer algo para me indicar que recorda que sou seu marido?

           A contragosto, Melodie voltou a cabeça para ele e lhe dedicou um esvaído sorriso. Algo em seus olhos expressava que já não o via como o marido a quem tão apaixonadamente tinha amado e admirado. Só via um homem inválido em uma cadeira de rodas. Jory a fazia se sentir molestada e envergonhada.

           — Olá, Jory — disse.

           Por que não se levantava e o beijava? Acaso não percebia a súplica nos olhos do Jory? Por que não podia fazer um esforço, embora já não o amasse? Pouco a pouco, o rosto macilento do Jory foi se avermelhando. Baixou a cabeça e contemplou os presentes que tinha envolvido com amor.

           Eu estava a ponto de dizer algo cruel a Melodie, quando Cindy e Lance entraram. Ambos tinham os olhos brilhantes e os rostos ruborizados. Bart não demorou para aparecer detrás deles. Percorreu a quarto com o olhar e, ao comprovar que Melodie continuava ali, voltou a sair. Imediatamente, Melodie se levantou e desapareceu.

            Bart deve tê-la visto partir, pois pouco depois retornou e se sentou cruzando as pernas; parecia aliviado agora que Melodie não estava.

           O amigo da Cindy falou, olhando para o Bart e sorrindo amplamente.

           — Tenho entendido que tudo isto lhe pertence, senhor Foxworth.

           — O chame de Bart — ordenou Cindy.

           Bart franziu o sobrecenho.

           — Bart... — começou Lance balbuciando — realmente é uma casa notável. Obrigado por me convidar. — Eu dei uma olhada a Cindy, que se mantinha em seu lugar com firmeza, suportando o olhar de aborrecimento que Bart lhe dirigia enquanto Lance prosseguia inocentemente: — Cindy não me mostrou sua suíte nem seu escritório, mas espero que você o faça. Algum dia penso possuir algo como isto... e me apaixonam os engenhos eletrônicos; Cindy me contou que você tem.

            Imediatamente, Bart ficou em pé, orgulhoso de poder mostrar seu equipamento eletrônico.

           — É obvio, se quer ver meus aposentos e meu escritório, eu adorarei mostrar isso Mas preferiria que Cindy não nos acompanhasse.

           Depois de um jantar suntuoso, que Trevor serviu, conversamos no salão de música com Jory e Bart. Melodie estava em seu quarto, já deitada. Logo Bart disse que ia deitar porque tinha que levantar-se cedo no dia seguinte. Imediatamente, a conversação se interrompeu, todos nos levantamos e nos encaminhamos para a escada.

            Acompanhei Lance a um bonito quarto que tinha banho próprio. Achava-se na ala oriental, não muito longe dos aposentos do Bart, enquanto que o da Cindy estava perto dos nossos. Cindy sorriu com doçura e beijou na bochecha de Lance Spalding.

           — Boa noite, doce príncipe — murmurou. — O adeus é uma aflição muito doce...

           Com os braços cruzados sobre o peito, como Joel cruzava os seus, Bart contemplava às nossas costas a tenra cena, com ironia.

           — Esperemos que seja uma separação de verdade — disse, olhando Lance e depois Cindy, antes de dirigir-se a seu quarto.

           Primeiro acompanhei Cindy a seu dormitório e trocamos algumas palavras e nossos costumeiros beijos de boa-noite. Depois me detive ante a porta de Melodie, me perguntando se deveria chamar, entrar e tentar raciocinar com ela. Suspirei, reconhecendo que assim nada ajeitaria, pois já o tinha tentado antes muitas vezes. Encaminhei-me então para o quarto de Jory.

           Estava encolhido na cama, olhando para o teto. Seus escuros olhos azuis se dirigiram para mim, brilhantes pelas lágrimas não derramadas.

           — Faz já muito tempo que Melodie não vem me dar um beijo de boa-noite. Você e Cindy sempre encontram o momento para fazê-lo, mas minha esposa me ignora como se eu não existisse para ela. Não há nenhuma razão para que eu não possa dispor de uma cama mais larga onde ela durma a meu lado, mas não o faria embora o pedisse. Agora que terminei o clíper, não sei no que ocupar meu tempo. Em realidade não tenho vontade de começar outro navio para nosso filho. Sinto-me tão insatisfeito, tão em desigualdade com a vida, comigo mesmo e, sobretudo, com minha esposa... Eu quero me voltar para ela, mas me dá às costas. Mamãe, sem ti, sem papai e Cindy não saberia como viver cada dia.

           Sustentei-o em meus braços e introduzi meus dedos entre seus cabelos como estava acostumada a lhe fazer quando era um menino. Disse-lhe todas as coisas que devia lhe dizer Melodie. Senti pena por ela, mas também me causava desagrado sua debilidade e a odiei por não amar o suficiente, por não saber como dar, embora doesse.

           — Boa noite, meu doce príncipe — disse da porta do quarto. — Te aferre a seus sonhos, não os abandone agora, pois a vida oferece muitas oportunidades de felicidade, Jory. Tudo não terminou para ti.

           Jory sorriu e me deu boa-noite. Quando me dirigi à suíte da ala sul que compartilhava com Chris, Joel apareceu de repente diante de mim, me bloqueando o passo. Levava um velho penhoar andrajoso e descolorido. Seu cabelo grisalho e fino se formava redemoinhos em pequenos picos e o comprido extremo de um cordão arrastava detrás dele como uma cauda caída.

           — Catherine — disse com aspereza — dá-te conta do que essa garota está fazendo neste mesmo instante?

           — Essa garota? Que garota? — perguntei com idêntica brutalidade.

           — Sabe que me refiro a essa tua filha. Neste preciso momento, justo agora mesmo, está divertindo-se com esse jovem que trouxe para casa com ela!

           — Divertindo-se? O que quer dizer?

           Seu sorriso se voltou, torcido e maligno.

           — Vá, se alguém souber do assunto, essa é você, ou deveria sê-lo. Colocou esse moço em sua cama.

           — Não acredito!

           — Então vê e comprove você mesma — respondeu com certeza. — Nunca acredita em nada do que digo! Eu estava no vestíbulo de trás quando vi por acaso esse moço andando às escondidas pelos corredores e o segui. Antes que ele chegasse à porta da Cindy, ela já a tinha aberto e lhe permitiu entrar.

           — Não acredito — repeti eu, esta vez sem tanta convicção.

           — Tem medo de comprová-lo e descobrir que não minto? Isso te convenceria de que eu não sou o inimigo que você supõe?

           Eu não sabia o que dizer nem o que pensar. Cindy tinha prometido comportar-se bem. Ela era inocente, sabia que era. Agiu de forma correta, ajudando Jory, reprimindo sua tendência natural a discutir com o Bart. Joel tinha que estar mentindo. Dei a volta e me encaminhei para o quarto da Cindy com o Joel me seguindo os passos.

           — Está mentindo, Joel e vou demonstrar-lhe — disse isso enquanto quase corria.

           Ao chegar ante a porta da Cindy, detive-me e escutei; não ouvi nada. Levantei a mão para chamar.

           — Não! — sussurrou Joel. — Não os ponha de sobreaviso se quer saber toda a verdade. Te limite a abrir de repente a porta, entra no dormitório e comprova-o você mesma.

           Detive-me. Não queria nem sequer pensar que Joel pudesse ter razão. Além disso, eu não gostava que Joel me dissesse o que tinha que fazer. Olhei-o furiosa antes de chamar uma só vez. Esperei uns segundos, e então abri de par em par a porta do dormitório da Cindy e entrei em seu quarto, iluminado tão somente pela luz da lua que entrava em torrentes pelas janelas.

           Dois corpos nus estavam enlaçados na virginal cama da Cindy!

           Fiquei olhando, perplexa, sentindo que um grito morria em minha garganta. Ante meus assombrados olhos, Lance Spalding estava estendido sobre minha filha de dezesseis anos, movendo-se de maneira espasmódica. As mãos da Cindy se aferravam às nádegas dele, lhe cravando suas unhas vermelhas. A cabeça dela se movia de um lado a outro enquanto gemia de prazer, evidenciando que esta não era sua primeira vez.

           O que devia fazer eu? Fechar a porta sem dizer nada? Me deixar arrastar por uma corrente de ira e expulsar Lance de nossa casa? Apanhada em uma teia de indecisão, permaneci ali, imóvel, durante uns segundos, até que ouvi um débil ruído detrás de mim.

           Voltei-me e vi Bart, que também estava olhando para Cindy; esta se tinha posto em cima de Lance e o cavalgava com força, exclamando palavras vulgares entre gemidos de êxtase, alheia por completo a tudo o que não fosse o que estava fazendo com seu par.

           Bart não titubeou. Dirigiu-se diretamente à cama e, agarrando a Cindy pela cintura, arrancou-a com um poderoso impulso de cima do moço, que parecia indefeso em sua nudez e arroubo. Bart jogou Cindy no chão com rudeza e ela gritou ao cair de barriga para baixo sobre o tapete.

           Bart não ouvia. Estava muito ocupado golpeando o jovem. Uma e outra vez seus punhos caíram sobre o atraente rosto de Lance. Ouvi o estalo de seu nariz ao quebrar-se e o sangue o salpicou tudo.

           — Não sob meu teto! — rugia Bart, golpeando sem descanso o rosto de Lance. — Não quero pecado sob meu teto!

           Um momento antes talvez eu tivesse agido igual, mas em seguida reagi e corri para salvar o moço.

           — Bart, pare! Vai matá-lo!

           Cindy não cessava de chorar, histérica, enquanto tentava cobrir sua nudez com suas roupas que estavam atiradas no chão, mescladas com as de Lance. Joel, que tinha entrado no quarto, passeava seu olhar com desprezo pelo corpo da Cindy; depois se voltou para me olhar com uma evidente satisfação que me reprovava: "Vês? Disse-lhe isso. Tal mãe, tal filha."

           — Vê o que criaste com tantos mimos? — Joel entoou como se estivesse em um púlpito. — Desde a primeira vez que a vi me dei conta de que não era mais que uma rameira sob o teto da casa de meu pai.

           — Imbecil! — exclamei furiosa. — E quem é você para condenar a ninguém?

           — Você é a imbecil, Catherine. Igual a sua mãe, em muitas coisas. Também ela desejava todos os homens que conhecia, inclusive ao seu próprio meio-tio. Era como esta moça nua que se arrasta com luxúria pelo chão, disposta a deitar-se com tudo que levasse calças.

           De repente, Bart deixou Lance cair na cama e se lançou contra Joel.

           — Te cala! Não te atreva a comparar a minha mãe com a tua! Ela não é igual a sua mãe, não é!

           — Um dia me dará razão, Bart — repôs Joel com seu tom mais suave e cerimonioso. — Corrine recebeu o que merecia. Tal como sua mãe terá algum dia o que merece. E se a justiça e o direito ainda governam este mundo e Deus está no céu, esta indecente garota, que tenta cobrir sua nudez, encontrará seu fim nas furiosas chamas, como merece também.

         — Não volte a dizer nada parecido nunca mais! — uivou Bart, tão furioso com Joel que se esqueceu da Cindy e de Lance, que estavam colocando com pressa as roupas de dormir que tinham abandonado. Bart vacilou, como se o surpreendesse encontrar-se defendendo à garota que sempre tinha negado fosse sua irmã.

            — É minha vida, tio — disse com secura — e minha família. Eu distribuirei a justiça que for necessária, não você.

           Muito aflito e perturbado na aparência, inseguro como um velho, Joel se afastou arrastando os pés pelo corredor, mais que curvado, dobrado sobre si mesmo. Quando se perdeu de vista, Bart dirigiu sua fúria para mim.

           — Veja! — repreendeu-me. — Cindy acaba de demonstrar o que eu suspeitei durante tanto tempo! Não é boa, mãe! Não é boa! Fingiu ser doce uma vez que planejava como desfrutar quando Lançar viesse. Quero que parta desta casa e de minha vida para sempre!

           — Bart, não pode expulsar a Cindy... É minha filha! Se tiver que castigar a alguém, mais do que tem feito, expulsa Lance. Tem razão, é óbvio, Cindy não devia ter se comportado desta maneira, nem Lance tinha que aproveitar-se de sua hospitalidade.

           Conseguiu acalmar-se um pouco.

           — De acordo, Cindy pode ficar já que insiste em querê-la apesar de tudo. Mas este moço se irá esta noite! — Gritou a Lance: — Tenha pressa em fazer sua mala... porque dentro de cinco minutos te conduzirei ao aeroporto. E se alguma outra vez te atrever a tocar em Cindy, te romperei todos os ossos! E não pense que não me vou inteirar. Também tenho amigos na Carolina do Sul!

           Lance Spalding estava muito pálido enquanto se apressava a guardar suas roupas nas malas que acabava de esvaziar. Não ousava nem me olhar enquanto se movia depressa de um lado a outro, murmurando roucamente:

           — Sinto muito e estou tão envergonhado, senhora Sheffield...

            E em seguida se foi, apressado pelo Bart, que o empurrava de vez em quando para que avivasse o passo.

           Então me voltei para Cindy, que se havia coberto com uma bata muito recatada e se metido na cama. Olhava-me com os olhos muito abertos e aspecto assustado.

           — Está satisfeita, Cindy? — disse com frieza. — Me desiludiste de verdade. Esperava mais de ti. Prometeu-me isso. Acaso suas promessas não significam nada para ti?

           — Mamãe, por favor! — soluçou. — O amo e acredito que esperei bastante tempo. Era meu presente de Natal para ele... e para mim.

           — Não minta, Cynthia! Esta noite não foi a primeira vez que estiveste com ele. Não sou tão estúpida como você crê. Já foram amantes.

           Gemeu.

           — Mamãe, alguma vez mais me quererá? Não pode deixar de me querer, porque se o faz desejarei morrer! Não tenho outros pais que você e papai... e juro que não voltará a acontecer. Por favor, me perdoe, por favor!

           — Pensarei nisso — disse com secura enquanto fechava a porta.

            Na manhã seguinte, enquanto me vestia, Cindy entrou correndo em meu quarto, presa de um pranto histérico.

           — Mamãe, por favor, não permita que Bart me obrigue a partir também. Nunca desfrutei que um Natal feliz quando Bart esteve perto. Odeio-o! Odeio-o com toda minha alma! Destroçou o rosto de Lance.

           Era mais que possível que Cindy tivesse razão. Custou-me muito ensinar Bart a conter sua ira. Seria terrível para um moço de aparência tão agradável ter o nariz quebrado, para não mencionar seus olhos arroxeados e os cortes e golpes.

           Entretanto, depois da saída de Lance, algo peculiar assentou sua mão fantasmal sobre Bart e o tornou muito silencioso. Rugas que nunca antes eu tinha visto sulcaram seu rosto do nariz até seus lábios bem formados, apesar de que era muito jovem. Negava-se a falar ou olhar Cindy. Também me ignorava. Permanecia sentado, cansado e triste, me observando e depois pousava seu olhar de olhos escuros em Cindy, que sempre estava chorando; eu não podia recordar nenhuma outra vez em que Cindy nos tivesse permitido presenciar seu pranto.

           Por minha mente desfilaram toda classe de sinistros pensamentos. Onde poderia encontrar harmonia? Havia uma época para plantar, uma para maturar e outra para colher... onde estava nossa época de felicidade? Não tínhamos esperado o tempo suficiente?

           Naquela manhã, mais tarde, tive um bate-papo com Cindy:

           — Cindy, surpreende-me seu comportamento. Foi lógico que Bart se mostrasse tão furioso, embora eu desaprove o modo brutal em que tratou esse menino. Posso compreender a fúria do Bart, mas não seu comportamento. Qualquer homem jovem entrará em seu dormitório se você abrir alegremente a porta e o convidar a entrar, como fez com Lance. Cindy, tem que me prometer que não voltará a fazer uma coisa semelhante outra vez. Quando fizer dezoito anos, te converterá em sua própria proprietária.... mas até então e enquanto estiver debaixo deste teto, não se dedicará a jogos sexuais com ninguém, nem aqui, nem em nenhum outro lugar. Entendeste?

           Seus olhos azuis se aumentaram, brilhantes por causa das lágrimas a ponto de derramar-se.

           — Mamãe, não vivo no século XVIII! Todas as garotas o fazem! Eu agüentei muito mais tempo que a maioria e pelo que ouvi dizer de ti.... você também foi atrás dos homens.

           — Cindy! — repliquei com dureza. — Não te atreva nunca a me arrojar meu passado ou meu presente à cara! Você não sabe o que tive que suportar. Em troca, você só desfrutou de dias felizes, repletos de tudo aquilo que me foi negado.

           — Dias felizes? — perguntou com amargura. — Esqueceste todas as coisas desagradáveis e maliciosas que Bart me fazia? É certo, eu não estive encerrada com chave, nem faminta, nem fui maltratada, mas tive meus problemas, não pense que não os tive. Bart me faz sentir tão insegura de minha feminilidade que tenho que me provar diante de todos os moços que conheço. Não posso evitá-lo.

           Naquele momento nos achávamos no quarto da Cindy, enquanto Bart permanecia embaixo.

           Avancei um passo para abraçar a minha filha.

           — Não chore, carinho. Compreendo como deve estar sofrendo, mas tem que tentar compreender como se sentem os pais com respeito a suas filhas. Seu pai e eu só desejamos o melhor para ti. Não queremos que saia prejudicada. Deixa que esta experiência com Lance te ensine uma lição e reprime seus impulsos até que tenha dezoito anos e possa raciocinar com maturidade. Espera ainda mais tempo, se te for possível. Quando alguém se aferra ao sexo muito jovem, este tem uma cruel maneira de te morder e te devolver todo aquilo que você já não quer. Assim me ocorreu. Por outro lado, ouvi-te dizer um milhar de vezes que você quer um palco e uma carreira cinematográfica, e os maridos e os bebês têm que esperar. Mais de uma garota viu frustradas suas esperanças pelo nascimento de um bebê, fruto de uma paixão incontrolada. Tome cuidado antes de te entregar e te comprometer com ninguém. Não te apaixone muito logo, pois quando o faz te torna vulnerável a muitos acontecimentos imprevisíveis. Dá uma oportunidade ao romance sem sexo, economize toda a dor de te haver entregado muito, e muito logo.

            Cindy me abraçou com força. A ternura que transluzia em seus olhos expressavam que éramos de novo mãe e filha.

           Depois ambas descemos ao piso inferior e contemplamos a paisagem, coberta pela neve branca, vagamente nebulosa na distância, nos isolando, com mais crueldade que nunca, do resto do mundo.

           — Agora todos os caminhos que partem de Charlottesville estarão bloqueados — falei com voz monótona. — O pior de tudo é que Melodie se comporta de uma forma tão estranha que temo pela saúde de seu bebê. Jory permanece em seu quarto como se não quisesse encontrar-se com ela nem com nenhum de nós. Por sua parte, Bart ronda por aí, como se fosse nosso amo, como o é desta casa. Oh, queria que Chris estivesse aqui! Odeio que esteja longe.

           Cindy me olhava quase com assombro. Ruborizou-se ao encontrar-se com meu olhar. Quando lhe perguntei pela causa de sua reação, murmurou:

           — Às vezes me pergunto como é possível que vocês dois se aferrem um ao outro, quando eu me apaixono e me desapaixono com tanta facilidade. Mamãe, algum dia terá que me contar como conseguir que um homem me ame de verdade, não só a meu corpo. Queria que os meninos me olhassem primeiro nos olhos, como papai olha nos teus; eu gostaria que se fixassem em meu rosto, pelo menos de vez em quando, já que não sou feia; mas o que com mais atenção olham são meus peitos. Desejaria que seus olhares me seguissem como o do Jory segue Melodie... — Cindy me rodeou com o braço e apoiou seu rosto em meu ombro. — Sinto tanto, mamãe! Lamento muitíssimo ter causado todo esse alvoroço na noite passada. Obrigado por não brigar mais do que fez. Estive pensando no que disse e tem razão. Lance pagou um preço muito alto e eu deveria saber fazer melhor as coisas. — Olhou-me com olhos suplicantes. — Mamãe, não menti quando expliquei que todas as garotas da escola começaram faz muito tempo, quando tinham onze, doze ou treze anos. E eu amo Lance. Contive-me, embora os meninos me perseguissem mais que às demais. Elas acreditavam que eu me deitava com eles, mas não era verdade. Simplesmente fingia. Um dia ouvi os meninos trocarem opiniões e todos estavam de acordo que não havia nada que fazer comigo. Falavam de mim como se eu fosse uma espécie de coisa estranha, uma lésbica possivelmente. Então decidi que permitiria que Lance me possuísse este Natal. Era o presente especial que guardava para ele.

           Olhei-a com severidade, me questionando se o que contava era verdade. Enquanto isso, ela insistia em afirmar que tinha sido a única moça de todo o grupo que tinha agüentado até os dezesseis anos sem fazê-lo e que isso era muito tarde para uma garota no mundo de hoje.

           — Por favor, não se envergonhe de mim, pois se você o está, então eu me sentirei assim também. Desejei fazer amor desde que fiz doze anos, mas resisti para não te desobedecer. Tem que compreender que o que tenho feito com Lance não era casual. Amo-o. E durante um momento, antes de que você e Bart entrassem... era... era... bom.

           O que podia dizer eu? Tinha escondido minha própria juventude rebelde em um canto da memória, disposta a saltar para fora e pôr ante mim a imagem do Paul; a maneira em que tinha desejado que ele me ensinasse todas as formas do amor; sobretudo porque minha primeira experiência sexual tinha sido tão devastadora, tinha me enchido de um sentimento de culpa tal que, inclusive agora, ao cabo de tantos anos, poderia chorar ao erguer o olhar para a lua que tinha sido testemunha do pecado do Chris e o meu.

           Ao redor das seis, Chris telefonou para nos dizer que tinha estado tentando falar comigo durante todo o dia, mas as linhas tinham estado cortadas.

           — Me verá na véspera de Natal — disse com voz jovial. — Aluguei uma máquina de limpar neve que abrirá caminho do meu automóvel até o Hall. Como vão as coisas?

           — Bem, muito bem — menti.

           Contei que o pai de Lance tinha caído pelas escadas e o menino tinha tido que retornar para casa de avião imediatamente. Logo expliquei que tudo estava preparado para o Natal, os presentes embrulhados, a árvore adornada; mas que Melodie, como de costume, negava-se a sair de seus aposentos como se eles fossem o único santuário do mundo.

           — Cathy — disse Chris com voz tensa. — Te agradeceria que, por uma vez, fosse franca comigo. Lance não pôde viajar de avião porque todos os aviões estão imobilizados em terra. Lance se encontra neste momento a menos de dez passos deste telefone. Veio a mim e me confessou tudo. Curei-lhe o nariz quebrado e as outras feridas e estive amaldiçoando Bart durante todos o momentos. Destroçou este moço!

            Na manhã seguinte, à primeira hora, ouvimos pela rádio que todos os caminhos até o povoado e à próxima cidade estavam cortados pela neve. Avisava-se a quem tivesse previsto empreender uma viagem que permanecesse em casa. Tivemos o rádio conectado todo o dia, escutando os meteorologistas como se eles controlassem nossas vidas. "Jamais no passado se viveu um inverno tão dramático como este” dizia a monótona voz, exaltando as extremas condições do tempo. Bateram-se todos os recordes.

           Cindy e eu permanecemos cada uma dessas tristes horas diante das janelas. Com freqüência Jory se unia a nós para contemplar a neve que caía com implacável determinação.

           Por minha mente desfilou o passado. Via-nos aos quatro, encerrados naquele mesmo quarto, sussurrando sobre Santa Claus e contando aos gêmeos que certamente ele os encontraria. Chris lhe tinha escrito uma carta. Oh, que lástima inspiravam aqueles dois pequenos irmãos gêmeos, despertando na manhã de Natal!

           Ao ouvir Jory tossir, voltei para o presente. Meu filho sofria acessos de tosse forte a cada poucos minutos. Olhei-o com temor. Em seguida se dirigiu na cadeira de rodas para seu quarto, dizendo que ele mesmo se meteria na cama. Teria desejado o acompanhar, mas sabia que Jory desejava fazer tudo o que pudesse por si mesmo.

           — Agora Jory se resfriou. Começo a odiar este lugar — grunhiu Cindy. — Por esta razão trouxe Lance comigo, sabendo que as coisas seriam assim. Confiava em que todas as noites celebrariam uma festa, e estando um pouco bêbada acabaria por me esquecer da insipidez que se supõe viver sob a sombra do Bart e desse velho escorregadio do Joel. Esperava que Lance alimentasse minha felicidade enquanto estivéssemos juntos. Agora não tenho a ninguém a não ser a ti, mamãe. Jory parece ausente; além disso, acredita que sou muito jovem para compreender seus problemas. Melodie nunca conta nada, nem a mim nem a ninguém. Bart vaga por aí como a morte sinistra... igual a esse velho, que me produz calafrios. Não temos amigos, ninguém nos visita. Estamos completamente sozinhos, nos crispando os nervos uns aos outros. E é Natal! Espero ansiosa por esse baile que Bart está organizando. Pelo menos, me dará a oportunidade de conhecer gente jovem e de sacudir a umidade que sinto que me sobe pelas pernas.

           De repente Bart estava ali, repreendendo Cindy.

           — Não tem por que ficar. Não é mais que uma bastarda que minha mãe quis ter!

           Cindy avermelhou.

           — Está tentando me ofender outra vez, imbecil? Agora não pode me ferir! Isso acabou!

           — Não te atreva a me chamar imbecil nunca mais, bastarda!

           — Rato, imbecil, rato, imbecil! — vociferava ela, retrocedendo e refugiando-se detrás de cadeiras e mesas, o incitando com premeditação para que a perseguisse e assim dar certa excitação ao seu dia sombrio.

           — Cindy! — exclamei, furiosa. — Como te atreve a falar dessa maneira ao Bart? Vamos, diga que sente muito... diga!

           — Não, não o direi, porque não sinto. — Não se dirigia para mim, e sim ao Bart. — É um bruto, um maníaco, um louco e está tentando nos tornar todos tão malucos como ele!

           — Pára! — ordenei, vendo que o rosto do Bart empalidecia.

            De repente se equilibrou e agarrou a Cindy pelo pescoço. Ela tentou defender-se, mas ele a tinha agarrado com força. Corri para impedir que a golpeasse com seu braço livre. Dominando-a, Bart a ameaçou:

           — Se alguma vez te atrever sequer a me dirigir a palavra, pequeninha, lamentará esse dia. Está muito orgulhosa de seu corpo, seu cabelo e sua cara. Um insulto mais e terá que te esconder nos armários e quebrar todos os espelhos.

           Seu tom grave indicava que falava a sério. Ajudei Cindy a levantar-se.

           — Bart, não fala a sério! Durante toda sua vida estiveste atormentando a Cindy. Pode culpá-la agora por desejar vingar-se?

           — De modo que, depois de tudo o que disse, põe-te de seu lado?

           — Diga que o lamenta, Cindy — roguei, me voltando para ela. Lancei depois um olhar suplicante ao Bart. — E você também, por favor.

           Nos ferozes olhos escuros do Bart vislumbrei um brilho de indecisão quando se deu conta de como eu estava alterada, mas se desvaneceu no momento em que Cindy exclamou:

           — Não! Eu não o lamento! E não lhe tenho medo! Bart é tão escorregadio e senil como esse velho imbecil que vaga por aí murmurando todo o dia para si. Menino, parece que sente debilidade como os velhos! Possivelmente esse seja seu ponto fraco, irmão!

           — Cindy! — sussurrei aflita — te desculpe com o Bart.

           — Nunca, nunca, nunca! Não, depois do que fez a Lance.

           A ira que se acendia no rosto do Bart me assustou. Precisamente nesse momento, Joel entrou devagar no quarto. Com os braços cruzados sobre o peito, enfrentou os ferozes olhos do Bart.

           — Filho.... deixa correr. O Senhor vê e ouve tudo e, quando chega a hora, distribui Sua própria justiça. Esta menina é como um pássaro piando nas árvores, guiada por instintos que nada sabem de moralidade. Age, fala e se move sem pensar. Não é nada comparada contigo, Bart. Você nasceu para mandar.

           Como se se transfigurasse, a ira do Bart se desvaneceu. Seguindo Joel, abandonou o quarto sem nos dirigir nenhum olhar. Ao ver meu filho caminhar atrás daquele velho, de forma tão obediente, sem nenhuma objeção, minha mente se encheu de novos temores. Como tinha podido Joel conseguir semelhante controle?

           Cindy se jogou em meus braços e chorou.

           — Mamãe, o que ocorre? O que tem que mau em mim e no Bart? Por que digo coisas tão odiosas para ofendê-lo? Por que me diz isso ele? Quero fazer mal ao Bart; que pague por cada uma das coisas feias que tem feito para me ferir!

           Soluçou em meus braços todas suas ansiedades até ficar calma.

           Em muitos aspectos, Cindy recordava a mim mesma; tão ansiosa por amar e ser amada, por viver uma vida plena, excitante, inclusive antes de ser o bastante amadurecida para aceitar as responsabilidades emocionais.

           Suspirei e a abracei com força. Algum dia, de algum jeito, todos os problemas familiares se resolveriam. Me aferrei a essa crença, rogando que Chris retornasse logo à casa.    

 

NATAL

            Como no passado, o Natal chegou com seu encanto e paz festivos para reinar sobre os espíritos turvados e conferiu, inclusive a Foxworth Hall, sua própria beleza. A neve seguia caindo, mas não era tão copiosa. Em nossa sala de reuniões favorita, Bart e Cindy, sob a direção de Jory, adornavam a gigantesca árvore de Natal. Cindy estava subindo em um lado da escada, Bart no segundo degrau, enquanto Jory permanecia em sua cadeira de rodas, formando, com tiras de luzes, coroas para ornar as portas. Os decoradores trabalhavam em outros aposentos para criar neles um ambiente festivo para as centenas de convidados que Bart esperava receber no baile. Estava muito excitado e vê-lo feliz e risonho, acrescentava alegria a meu coração, que se encheu quando Chris chegou à porta carregado com suas compras de última hora, como tinha por costume fazer.

            Corri a saudá-lo com meus ansiosos braços abertos e meus beijos ardentes, que Bart não podia ver de onde estava, atrás da árvore.

           — O que te atrasou tanto? — perguntei, e ele pôs-se a rir, me mostrando os presentes com seus belos embrulhos.

           — Fora, no carro, tenho mais — disse com um sorriso feliz. — Já sei que está pensando que devia ter feito minhas compras antes, mas parece que nunca encontro o momento. Quando quero me dar conta, já estamos em véspera de Natal, e acabo pagando o dobro por tudo, mas vais estar muito contente... E se não o está, não me diga isso.

           Melodie, sentada em um tamborete baixo perto da lareira no salão, oferecia um aspecto lamentável. De fato, quando a observei mais de perto, parecia estar sofrendo.

           — Encontra-te bem, Melodie? — perguntei.

           Ela assentiu e eu, sem mais, acreditei em sua palavra.

           Logo Chris também lhe perguntou, e ela se levantou e negou que algo fosse mau. Dirigiu ao Bart um olhar suplicante que este não viu e depois se encaminhou para a escada posterior. Com seu vestido sem forma, de cor apagada, Melodie parecia uma mulher que tivesse envelhecido dez anos desde o mês de julho. Jory, que sempre observava a sua esposa com atenção, voltou-se para olhá-la enquanto ela se afastava com passo vacilante, e em seus olhos apareceu uma terrível tristeza que lhe roubou o prazer da grata ocupação com que se entretinha. A réstia de lamparinas deslizou desde seu regaço para enredar-se nas rodas de sua cadeira, sem que Jory o notasse.

            Esteve um momento com os punhos fechados como se quisesse golpear o destino por lhe haver privado do uso de seu maravilhoso corpo e, com isso, do carinho da mulher que amava.

           À caminho da escada, Chris se deteve para dar umas palmadas carinhosas nas costas de Jory.

           — Tem um aspecto são e forte. Não se preocupe por Melodie. É normal que uma mulher em seu trimestre final de gravidez esteja irritável e de mau-humor. Também você estaria assim se tivesse que andar por aí com todo esse peso extra.

           — Pelo menos poderia me falar de vez em quando — se lamentou Jory — ou me olhar. Nem sequer se aproxima do Bart agora.

           Eu o olhei, alarmada. Saberia acaso que não fazia muito que Bart e Melodie eram amantes? Eu duvidava de que ainda fossem, o que explicaria a tristeza do Melodie. Tentei encontrar algo nos olhos do Jory, mas ele baixou o olhar e fingiu interessar-se de novo no adorno da árvore.

           Fazia muito tempo que Chris e eu tínhamos estabelecido a tradição de abrir um presente pelo menos na véspera de Natal. Quando chegou a noite, Chris e eu, sentados no melhor de nossos salões, brindamos com champanha um ao outro. Elevamos nossas taças.

           — Por todas nossas manhãs juntos — disse Chris, cujos quentes olhos estavam cheios de amor e felicidade.

           Repeti as mesmas palavras antes que Chris me entregasse meu presente "especial". Quando abri o pequeno estojo de joalheria, encontrei um diamante de dois quilates, em forma de pêra, que se pendurava de uma correntinha de ouro.

           — Agora não proteste nem diga que você não gosta das jóias — disse Chris com presteza quando fiquei contemplando o objeto que resplandecia e refletia as cores do arco-íris. — Nossa mãe nunca usou nada parecido. Na realidade, teria preferido comprar um longo colar de pérolas como os que ela estava acostumada a usar porque acredito que são, ao mesmo tempo, elegantes e harmoniosos. Mas, te conhecendo, esqueci-me das pérolas e me decidi por este bonito diamante. Tem forma de lágrima, Cathy, por todas as lágrimas que eu teria vertido interiormente se não me tivesse permitido te amar sempre.

           O modo em que o disse fez que meus olhos se umedecessem e inchou meu coração com a culpada tristeza de sermos nós, o gozo de sermos nós; as complicações de sermos nós algumas vezes resultavam muito entristecedoras. Em silêncio, entreguei-lhe meu presente "especial": um bonito anel, com uma safira em forma de estrela, para seu dedo indicador. Chris pôs-se a rir, dizendo que era ostentoso, mas muito belo.

           Acabavam de sair essas palavras de sua boca quando Melodie, Bart e Jory se reuniram a nós. Este sorriu ao ver o brilho de nossos olhos. Bart franziu o sobrecenho e Melodie se deixou cair em uma poltrona muito amaciada e pareceu desaparecer nas profundidades. Cindy também se aproximou correndo com campainhas que agitou com alegria, vestida com calças e suéter de cor vermelha. Por último Joel deslizou dentro da sala para permanecer em um canto com os braços cruzados em cima do peito, como um sombrio juiz observando a uns meninos maus e perigosos.

           Foi Jory o que primeiro respondeu ao encanto da Cindy, elevando sua taça ao alto e brindando.

           — Saudemos as alegrias da véspera de Natal! Que minha mãe e meu pai se olhem sempre como esta noite, com amor e ternura, com compaixão e compreensão. Que eu possa encontrar esta classe de amor nos olhos de minha esposa... logo.

           Estava desafiando diretamente Melodie, diante de todos nós, mas, por desgraça, tais momentos não eram os mais adequados para essa classe de enfrentamentos.

            Ela se encolheu mais ainda e evitou encontrar-se com o olhar de Jory, inclinando-se para olhar o fogo fixamente. A esperança se desvaneceu nos olhos do Jory, que afundou os ombros e deu meia-volta em sua cadeira para não ver sua esposa. Deixou a taça de champanha e cravou também seu olhar no fogo; parecia querer desvendar que simbolismo estava vendo ela. Na penumbra de seu distante canto, Joel sorriu.

           Embora Cindy tentasse impor a alegria, Bart acabou cedendo também ao abatimento corrosivo que Melodie emitia como uma neblina cinza. Na verdade, a reunião familiar em uma sala com uma decoração tão festiva estava se tornando um fracasso. Bart não olhava Melodie, agora que ela estava tão deformada pela gravidez.

           Logo Bart passeava inquieto de um lado a outro da sala, jogando olhares a todos os presentes colocados debaixo da árvore. Seus olhos se encontraram fortuitamente com os do Melodie, que o olhava esperançosa, mas se apressou a desviar o olhar, como se se envergonhasse da súplica muito evidente dela. Ao cabo de uns minutos, a própria Melodie se desculpou alegando em voz baixa que não se encontrava bem.

           — Posso fazer algo? — perguntou Chris imediatamente, levantando-se de um salto para ajudá-la a subir pela escada. Ela avançava pesadamente.

           — Estou bem — replicou com aspereza Melodie perto de uma das colunas. — Não necessito sua ajuda, nem a de ninguém!

           — E todos gozaram de uns felizes Natais! — entoou Bart, imitando Joel, que continuava de pé entre as sombras, vigiando, sempre vigiando.

           No momento em que Melodie saiu da sala, Jory manobrou bruscamente com sua cadeira antes de declarar, ele também, que estava cansado e não se sentia muito bem. O prolongado acesso de tosse que se seguiu às suas palavras revelou que era certo o que dizia.

           — Tenho a medicina que precisa — disse Chris, ficando de pé e encaminhando-se para a escada. — Não pode ir para a cama ainda, Jory. Fica um pouco mais. Temos que celebrar. Antes de te receitar algo que talvez não seja apropriado, preciso escutar seus pulmões.

           Bart se apoiou com indiferença contra o suporte da lareira, observando a amável cena que protagonizavam Jory e Chris, como se estivesse ciumento de sua relação. Chris veio para mim.

           — Possivelmente seja melhor que nos retiremos agora, para que possamos nos levantar de madrugada, tomar o café da manhã, abrir os presentes, e dormir depois um soninho antes de nos prepararmos para o baile de amanhã de noite.

            — Oh, glória, aleluia! — celebrou Cindy, dando voltas pela sala em uma pequena dança. — Gente, muita gente, embelezada com seus melhores ornamentos... Não poderei esperar amanhã de noite! Risadas, quanto desejo ouvir risadas! Brincadeiras e bate-papos inconseqüentes; como desejam meus ouvidos as escutar! Estou tão farta de estar séria, contemplando caras mal-humoradas incapazes de sorrir e escutando conversações tristes. Espero que todos esses velhos elegantes tragam com eles seus filhos universitários, ou a qualquer filho, desde que passe dos doze anos. Assim estou desesperada!

           Bart não era o único de nós que lançava olhares de desaprovação, que eram ignoradas por Cindy.

           — Dançarei toda a noite, dançarei toda a noite — cantarolava ela, dando voltas, fingindo abraçar ao seu par, sem permitir que suas ilusões se vissem diminuídas ante qualquer comentário que nós pudéssemos fazer. — E depois dançarei um pouco mais...

           Apesar de si mesmos, Jory e Chris estavam enfeitiçados pelos movimentos da Cindy e sua canção feliz e alegre. Chris sorriu antes de dizer:

            — Teriam que vir pelo menos vinte jovens aqui amanhã de noite. Mas trata de te conter agora; já que Jory parece tão cansado, vamos para a cama; amanhã será um longo dia.

           Parecia a melhor idéia. De repente Cindy se deixou cair em uma poltrona e se afundou nela como Melodie fazia, adotando um jeito triste.

           — Eu gostaria que Lance tivesse podido ficar. Preferiria ter ele a qualquer outro.

           Bart lhe dirigiu um olhar furioso.

           — Esse jovem nunca voltará a entrar nesta casa. — Depois se voltou para mim. — Não é preciso que Melodie participe da festa — prosseguiu com firmeza na voz e mantendo sua atitude irada — não, se tiver que parecer tão desgraçada e doente. Deixemos que amanhã pela manhã fique lamentando-se em seu quarto para que nós possamos nos alegrar abrindo os presentes. Acredito que fazer a sesta é uma boa idéia. Assim, amanhã de noite todos nós teremos um aspecto fresco por ter descansado e estaremos bem dispostos e felizes para minha festa.

           Jory se tinha adiantado e entrava no elevador por si mesmo, como querendo afirmar sua independência. Nós outros nos mostrávamos relutantes a ir. Enquanto permaneci ali sentada, escutando os canções de Natal que Bart tinha posto no toca-discos, estive pensando em todos os dispendiosos costumes que tinha adquirido meu filho menor.

           Quando era um menino, tinha-lhe encantado estar não só sujo, mas também asqueroso. Agora, em troca, tomava banho várias vezes ao dia e se mantinha imaculadamente elegante. Não se retirava para seu quarto até ter fiscalizado "sua casa" de cima a baixo, comprovando que as portas estavam fechadas com chave, assim como as janelas, e que o novo gatinho que Trevor tinha como animal de companhia não tivesse sujado o tapete. Bart tinha despedido Trevor uma dúzia de vezes, mas esse resistia a partir e Bart não tinha insistido.

           Bart se levantou para afofar os almofadões, alisar as rugas das suaves almofadas do sofá, recolher revistas e as empilhar ordenadamente. Todas aquelas coisas que os empregados descuidavam ele as fazia. No dia seguinte pela manhã, se equilibraria sobre Trevor e lhe ordenaria que as moças trabalhassem melhor ou seriam despedidas. Não era de estranhar que não pudéssemos conservar empregados. Unicamente Trevor permanecia fiel, ignorando as rudezas do Bart, a quem contemplava com piedade, embora ele não se desse conta disso.

           Tudo isso estava em minha mente enquanto tomava nota do crescente entusiasmo do Bart ante a festa do dia seguinte de noite. Joguei um olhar pela janela e vi que a neve seguia caindo e que alcançava em alguns lugares mais do meio metro de espessura.

           — Bart, amanhã de noite as estradas estarão cobertas de gelo, possivelmente as fechem e muitos de seus convidados não poderão chegar aqui para o tradicional baile de Foxworth.

           — Tolices! Os trarei de avião se ligarem para cancelar sua vinda. Um helicóptero poderia aterrissar na grama.

           Suspirei. Por alguma razão me inquietou o estranho olhar malicioso de Joel, que escolheu aquele momento para sair da sala.

           — Sua mãe tem razão, Bart — disse Chris bondoso — de modo que não te desiluda se só puderem vir alguns. Foi muito difícil chegar até aqui faz umas horas, e agora está nevando ainda com mais intensidade.

           Como se Chris não tivesse pronunciado nenhuma palavra, Bart me deu boa-noite e se encaminhou para a escada. Pouco depois, Chris, Cindy e eu subíamos para nossos aposentos.

           Enquanto Chris permanecia no dormitório do Jory para lhe dizer algumas palavras, eu esperei que Cindy saísse do banho. Depois de uma ducha (tomava duas pelo menos ao dia), saiu do quarto de banho, fresca e resplandecente embelezada com uma regata de dormir vermelha com pouco tecido.

           — Mamãe, não me venha outra vez com sermões. Não posso agüentar mais. Quando cheguei a esta casa, pareceu-me que era um palácio de conto de fadas, mas agora se converteu para mim em uma fortaleza sombria que tem a todos prisioneiros. Assim que termine o baile, irei... E ao inferno com o Bart! Quero bem a ti, papai e Jory. Em troca, Melodie me parece aborrecida e Bart nunca mudará. Sempre me odiará, de modo que deixarei de tentar ser amável com ele.

           Meteu-se entre os lençóis, agasalhou-se com as mantas e ficou de lado, me dando às costas.

           — Boa noite, mamãe. Apaga a luz quando for, por favor. Não é necessário que me peça que me porte bem amanhã de noite, pois penso ser um modelo de dama decorosa. Me desperta três horas antes que comece o baile.

           — Mas, Cindy, nem sequer quer compartilhar conosco a manhã de Natal?

           — Ora! — disse com indiferença — suponho que poderei despertar o tempo suficiente para abrir meus presentes e contemplar como os outros abrem os seus. Depois voltarei para a cama para poder ser a bela do baile amanhã de noite.

           — Quero-te, Cindy — disse enquanto apagava seu abajur, e me inclinava para lhe erguer o cabelo e beijá-la em sua nuca cálida.

           Voltando-se com rapidez rodeou-me o pescoço com seus esbeltos braços jovens e começou a soluçar.

           — Oh, mamãe, é a melhor das mães! Prometo me portar bem a partir de agora. Não permitirei que nenhum moço me segure nem sequer a mão. Mas me deixe escapar desta casa para ir a Nova Iorque e poder estar na festa de Ano Novo que minha melhor amiga organizou na sala de baile de um grande hotel.

           Assenti com a cabeça.

           — De acordo, se quer te divertir na festa de sua amiga, tudo bem; mas, por favor, procura não enfurecer o Bart amanhã. Já conhece seu problema e ele trabalhou muito duro para sobrepor-se a todas essas idéias perturbadoras implantadas em seu cérebro quando era muito pequeno. O ajude, Cindy, faça com que se dê conta de que tem uma família que o apóia.

           — Farei, mamãe. Prometo que o farei.

           Fechei a porta e fui dar boa-noite ao Jory, que se mostrava estranhamente silencioso.

           — Tudo sairá bem, carinho. Logo que o bebê tenha nascido, Melodie voltará para ti.

           — Voltará? — perguntou Jory com amargura. — Duvido. Então ela terá o bebê que absorverá todo seu tempo e seus pensamentos. Me necessitará ainda menos que agora.

           Meia hora depois, Chris me acolhia em seus braços e, ansiosamente, rendi-me ao único amor de minha vida que tinha durado o tempo suficiente para me deixar saber que tinha bem conseguido a felicidade, apesar de tudo o que podia ter arruinado aquilo que nós tínhamos cultivado e feito crescer na sombra.

           A primeira luz da alvorada entrou em meu quarto e me tirou de meu sonho antes que soasse o despertador. Levantei-me depressa e olhei pelas janelas; a neve tinha deixado de cair. Graças a Deus; Bart estaria contente. Voltei com presteza à cama para despertar Chris com um beijo.

           — Feliz Natal, querido doutor Christopher Sheffield — sussurrei em seu ouvido.

           — Preferiria que me chamasse querido e nada mais — murmurou enquanto se espreguiçava e olhava ao redor desorientado.

           Decidida a que o dia fosse um sucesso, fi-lo saltar da cama e logo os dois estávamos vestidos e nos dirigíamos à cozinha para tomar o café da manhã.

           Durante dois dias, tinham ido à casa homens e mulheres para repetir os preparativos do verão, embora nesta ocasião toda a planta ficasse transformada em uma fantasia natalina.

           Contemplei com certa indiferença aos trabalhadores que Bart tinha contratado e que estavam acabando de dar a nossa casa o aspecto do palácio das maravilhas.

            Cindy estava ao meu lado observando tudo o que se fazia para converter os aposentos em lugares extraordinariamente festivos, transbordantes de cor, velas, coroas e grinaldas. Também se instalou uma árvore de Natal muito alta que ultrapassava nosso abeto familiar.

           Tudo aquilo convenceu Cindy de que não devia perder melhor parte do dia estando na cama. Esqueceu-se de Lance e da solidão, pois o dia de Natal se tornava mais mágico que a véspera de Natal.

           — Note esse bolo, mamãe! É enorme. Four and twenty blackbirds baked in a pele[1] — cantou, subitamente resplandecente de vida. — Sinto haver me portado mal. Estive pensando. Esta noite haverá moços e montões de homens bonitos e ricos, de modo que possivelmente esta casa possa desprender algo mais que melancolia.

           — É obvio — interveio Bart, aproximando-se de nós para situar-se entre ambas, com os olhos brilhantes ao comprovar quanto tinha sido feito. Parecia feliz. — Deve te assegurar de usar um vestido decente e não cometer nenhum ato escandaloso. — Depois foi atrás dos trabalhadores, lhes dando instruções, rindo freqüentemente, inclusive para Jory, Cindy, Melodie e a mim, como se nos tivesse perdoado, por ser Natal.

           Dia após dia, como uma escura e sinistra sombra, Joel tinha estado como uma sombra do Bart, enquanto com sua velha voz queixosa entoava frases da Bíblia. Essa manhã, totalmente vestido já às seis e meia, declarava:

           — “Porque é mais fácil que um camelo passe pelo buraco da agulha que um homem rico entre no reino de Deus...”

            — Que demônios está insinuando, velho? — perguntou Bart com acidez.

           Por um instante os lacrimosos olhos do Joel brilharam furiosos, como uma faísca a ponto de acender açulada por um vento brusco e inesperado.

           — Está esbanjando milhares de dólares com a intenção de impressionar alguém e ninguém se impressionará, pois outros também têm dinheiro. Inclusive alguns vivem em casas melhores. Foxworth Hall foi a melhor em sua época, mas seu momento passou.  

           Bart se voltou para ele, irado.

           — Te cale! Sempre te empenha em danificar a felicidade que trato de alcançar. Todas as minhas ações são pecaminosas, segundo você! É um velho e consumaste já sua parte da vida; agora tenta danificar a minha. Este é meu momento: sou jovem e quero desfrutar com plenitude. Guarda para ti tuas entrevistas religiosas!

           — O orgulho desaparece antes da queda.

           — O orgulho desaparece antes da destruição — corrigiu Bart, olhando com fúria a seu tio-avô, me proporcionando assim uma deliciosa satisfação.

           Por fim Bart estava vendo no Joel uma ameaça e não o pai respeitável que ele tinha procurado toda sua vida.

           — O orgulho é o pecado dos imbecis — declarou Joel, olhando com desagrado tudo o que se tinha feito. Desperdiçaste um dinheiro que estaria melhor empregado em atos de caridade.

           — Vai-te! Vai para seu quarto e repense seu orgulho, tio! É óbvio que em seu coração não há nada a não ser ciúmes!

           Joel saiu cambaleando da sala, murmurando:

           — Já chegará a hora. Nada fica esquecido nem perdoado aqui nas colinas. Sei. Quem poderia saber o melhor que eu? Amargos, amargos são os dias dos Foxworth apesar de sua riqueza.

           Avancei um passo para abraçar Bart.

           — Não o escute, Bart. Terá uma festa maravilhosa. Todos poderão vir agora que o sol brilha e a neve está derretendo. Deus está ao seu lado neste dia, de modo que te alegre e desfruta como nunca em sua vida.

           Que olhar em seus olhos quando lhe falei assim, Oh! Que olhar de gratidão! Olhou-me tentando dizer algo, mas suas palavras não conseguiam tomar forma. Por fim, nada pôde a não ser me abraçar para afastar-se depois muito depressa, como se se sentisse envergonhado. Tinha que existir algum lugar onde Bart, um homem tão maravilhoso, se encaixasse.

           Aposentos que tinham permanecido fechados desde que começou o inverno foram abertos; tiraram-se as cobertas protetoras do pó e finalmente foram renovadas para que ninguém soubesse se alguma vez tínhamos feito um esforço para conservar o calor ou o dinheiro. Dedicou-se especial atenção aos quartos de banho e lavabos para fazê-los atraentes e deixá-los imaculados. Colocaram-se sabões caros e luxuosas toalhas para os hóspedes. Oferecia-se qualquer artigo de penteadeira que os convidados pudessem necessitar. Dos armários onde se guardavam os objetos de valor se tiraram a porcelana e o cristal especiais para tais festas, junto com os adornos natalinos, muito caros para que o fornecedor os trouxesse.

           Reunimo-nos ao redor da árvore de Natal por volta das onze. Bart acabava de barbear-se, e brilhava com um esplêndido aspecto, igual a Jory. Só Melodie parecia alheada, com o puído vestido de grávida que usava todos os dias. Tentando, como sempre, aliviar tensões, agarrei o Menino Jesus do presépio que parecia muito real e o sustentei em meus braços.

           — Bart, não tinha visto antes nada como isto. Compraste-o? Seja como for, nunca em minha vida tinha contemplado um jogo tão magnificamente esculpido de figuras natalinas.

           — Chegou ontem e hoje o desempacotei — respondeu Bart. — O comprei na Itália no inverno passado e mandei que me enviassem isso de navio.

           Continuei efusiva, feliz por vê-lo tão animado.

           — Este Menino Jesus parece um bebê de verdade, o que não se pode dizer da maioria, e a Virgem Maria é muito bela. E José parece tão bondoso e tão conformado...

           — Teria que sê-lo, não é certo? — comentou Jory, que estava inclinando-se para colocar alguns mais de seus presentes sob nossa árvore familiar. — Além de tudo, devia ser incrível que uma virgem pudesse ficar grávida de um Deus abstrato e invisível...

           — Não há o que duvidar — respondeu Bart, acariciando com o olhar as figuras de tamanho quase natural que tinha comprado. — A única coisa que se deve fazer é aceitar cegamente o que está escrito.

           — Então, por que discutiu com o Joel?

         — Jory..., não me leve tão a sério. Joel está me ajudando a me encontrar a mim mesmo. É um homem velho que viveu no pecado quando era jovem e procura redimir-se a sua avançada idade realizando boas ações. E eu sou um homem jovem que deseja pecar, sentindo que minha traumática infância já me redimiu.

           — Sugiro que desfrutes de algumas orgias em uma grande cidade; isso fará que volte aqui, tão velho e com um comportamento tão hipócrita como nosso tio-avô Joel — replicou Jory com temeridade. — Eu não gosto e você deveria ter o suficiente senso comum para obrigá-lo a partir, Bart. Dê-lhe algumas centenas de milhares de dólares e lhe diga adeus.

           Algo ofegante lutava no interior do Bart e se refletia em seus olhos, como se fosse isso o que na verdade desejasse fazer. Inclinou-se para olhar fixamente os olhos de Jory.

           — Por que você não gosta de Joel?

           — Não poderia precisar com exatidão a razão, Bart — respondeu Jory, que sempre tinha tido facilidade para perdoar. — Mas anda por aí observando sua casa como se tivesse que ser dele. Em várias ocasiões o surpreendi te olhando indignado quando você não lhe presta atenção. Não acredito que Joel seja seu amigo, mas sim bem mais seu inimigo.

           Perturbado e confuso, Bart saiu da sala, proferindo esta cínica observação:

           — E quando tive eu alguém a não ser inimigos?

           Ao cabo de poucos minutos, Bart retornou trazendo sua própria pilha de presentes. Necessitou três viagens desde seu escritório para colocar tudo quanto tinha comprado sob a árvore.

           Depois foi a vez do Chris, que colocou com cuidado todos seus presentes, o que requereu algum tempo. Os presentes alcançavam uma altura considerável, enchendo a maior parte de um canto.

           Melodie entrou, deslizando pela alegre sala como uma sombra sinistra para acomodar-se perto do lar. Sentada em atitude displicente, encontrava mais fascinação nas dançantes chamas que em qualquer outra coisa. Parecia desanimada, mal-humorada, reservada e só disposta a estar ali com seu corpo, deixando que seu espírito vagasse em liberdade. Tinha o ventre muito volumoso, embora lhe faltassem ainda algumas semanas, e apresentava marcadas olheiras.

           Logo todos nos esforçávamos por parecer uma amorosa família enquanto Cindy se fazia de Santa Claus. O Natal, segundo eu tinha sabido desde fazia muito tempo, oferecia seus próprios presentes. Podiam esquecer-se ofensas, perdoar inimizades como fazíamos nós, reunidos ao redor da árvore, acompanhados inclusive do Joel, sacudindo um por um nossos pacotes, tentando adivinhar para abrir no fim os pacotes, sufocando com nossas risadas as canções de Natal que eu tinha posto no toca-discos. Em seguida os papéis reluzentes e as fitas brilhantes cobriram o chão.

           Cindy entregou ao Joel o presente que tinha escolhido para ele. Este o aceitou como uma tentação, de igual maneira tinha tomado todos os nossos presentes, como se fôssemos hereges estúpidos, ignorantes do autêntico significado de um Natal que não requeria presentes. Seus olhos se abriram muito quando viu a camisola branca de dormir e o gorro bicudo que Cindy conseguiu encontrar depois de árdua busca. Não havia dúvida de que se parecia com o Scrooge, embelezado com aquelas roupas. Incluía também uma bengala de passeio de ébano, que Joel jogou no chão junto com a camisola e o gorro.

           — Está zombando de mim, moça?

           — Só pretendia te proporcionar roupas quentes para dormir, tio — respondeu Cindy muito séria, baixando seus resplandecentes olhos — e a bengala de passeio te ajudaria a caminhar mais depressa.

           — Para me afastar de ti? Quer dizer isso? — Joel se inclinou trabalhosamente para agarrar a bengala e a brandiu no ar. — Olha, possivelmente guardarei isto no fim de contas; é uma boa arma no caso de que alguém me ataque de noite enquanto passeio pelos jardins... ou pelos longos corredores.

            Permanecemos silenciosos durante uns segundos, incapazes de falar. Então Cindy pôs-se a rir.

           — Tio, já vê que pensei nisso! Sabia que um dia se sentiria ameaçado.

           Joel saiu então da sala. Quando acabamos de desembrulhar os primeiros presentes do dia, Jory ficou olhando com preocupação os papéis espalhados pelo chão para revisar depois toda a sala.

           — Não te esqueci, Bart — disse inquieto. — Cindy e papai me ajudaram a embrulhá-lo, mas depois o desembrulhei, repassei-o outra vez e voltei a empacotar eu mesmo depois de que Cindy me ajudou a colocá-lo na caixa. — Seguiu olhando a desordem de papéis e fitas. — Esta manhã, antes que se levantassem, desci e o coloquei debaixo da árvore. Onde demônios terá ido parar? É uma caixa grande, envolta em papel vermelho, pacote com fitas prateadas, e com certeza, a caixa maior que havia sob a árvore.

           Bart não pronunciou nenhuma palavra como se, acostumado às desilusões, a falta do presente do Jory carecesse de importância.

            É obvio que eu sabia o tanto que Jory tinha trabalhado durante meses e meses para terminar o navio de vela clíper de mais de um metro de comprimento e igual altura, com todos os frágeis arranjos colocados em seu lugar exato. Inclusive tinha pedido que lhe enviassem peças especiais de cobre e um leme de latão. Jory olhava com desespero ao redor.

           — Alguém viu uma caixa grande, envolta em papel vermelho, com o nome do Bart na etiqueta? — perguntou.

           Pus-me em pé e procurei entre o montão de pacotes vazios, papéis, fitas, tecidos, tarefa na qual Chris também colaborou. Por sua parte, Cindy começou sua própria busca no outro extremo da sala.

           — Oh! — gritou — aqui, atrás deste sofá. — Levou o presente ao Bart, colocando-o junto aos pés dele e lhe fazendo uma zombeteira reverência. — Para nosso amo e senhor — disse docemente, retrocedendo.

            — Acredito que sou um bobo por lhe dar de presente depois dos esforços que dediquei a esta coisa, mas possivelmente, por uma vez, saberá apreciá-lo.

           De repente, observei que Joel tinha retornado sub-repticiamente à sala para observar Bart. Tinha uma expressão estranha, muito estranha...

           Bart se despojou de sua afetada sofisticação como de uma roupa indesejável e se virou, com ânsia infantil, para abrir o presente. Enquanto rompia o pacote que Jory tinha embrulhado com tanto primor, Bart dirigia a seu irmão um sorriso cálido, amplo e feliz, com seus escuros olhos acesos com uma ilusão juvenil.

           — Não diga que é esse o navio clíper que montou, Jory! Realmente devia tê-lo guardado para ti... Mas, obrigado, muito obrigado! — Fez uma pausa e então deu um sorriso.

           Com o olhar fixo dentro da caixa, empalidecendo antes de erguê-la, sua felicidade desvanecida. Seus olhos se encheram de amargura.

           — Está destroçado, desfeito... — disse com tom sombrio — em pequenos pedaços. Nesta caixa não há nada mais que lascas e cordas enredadas.

           Sua voz se quebrou enquanto se levantava e deixava cair a caixa ao chão. Deu-lhe um violento chute antes de lançar um olhar severo a Melodie, que não tinha falado em nenhum momento, nem sequer enquanto abria seus presentes, que só agradeceu com inclinações de cabeça e débeis sorrisos.

           — Devia ter suposto que encontraria a maneira de me fazer pagar o fato de me haver deitado com sua mulher.

           Um silêncio estupefato ressonou com mais força que o trovão. Melodie se sentou, com o olhar fixo, fria, como uma concha vazia, enquanto murmurava uma e outra vez o quanto odiava aquela casa. Os olhos do Jory ficaram vazios de expressão. Tinha sabido todo o tempo? Com o rosto mudado, pousou seu olhar no Melodie.

           — Não te acredito, Bart. Sempre tiveste um modo malvado, odioso, de golpear ali onde mais dói.

           — Não estou mentindo — replicou Bart, sem lhe importar a dor que estava causando ao Jory, a mim e ao Chris. — Enquanto você jazia em sua cama do hospital, engessado, sua mulher e eu compartilhávamos meu leito e ela abria com grande ansiedade suas pernas para mim.

           Chris se levantou de um salto, mais furioso que nunca.

           — Bart, como te atreve a dizer semelhante coisa a seu irmão? Te desculpe com o Jory e com Melodie imediatamente! Como pode feri-lo de tal modo? Já não sofreu bastante? Ouve-me? Diga que todas as palavras que pronunciaste são mentira! Uma maldita mentira!

           — Não são mentiras — insistiu Bart. — Embora nunca mais façam caso de nada do que diga, podem me acreditar quando asseguro que Melodie foi uma companheira de cama com muita vontade de cooperar.

           Cindy lançou um chiado e depois ficou em pé com brutalidade para esbofetear a pálida cara do Melodie.

            — Como te atreveste a fazer isso ao Jory? — repreendeu. —Não sabe quanto ele te ama?

           Bart pôs-se a rir histericamente. Com voz ensurdecedora, Chris ordenou:

           — Te cale! Encare esta situação, Bart! A perda do navio de vela não é desculpa suficiente para tentar destruir o matrimônio de seu irmão. Onde estão sua honra e sua integridade?

           Em décimos de segundo, a risada do Bart se desvaneceu. Seus olhos se tornaram duros e frios como o cristal enquanto examinava Chris dose pés à cabeça.

           — E você me fala de honra e integridade? Onde estava a tua quando foi ao leito de sua irmã? Onde está agora que segue te deitando com ela? Não te dá conta de que suas relações me desequilibraram que tal forma que agora a única coisa que me preocupa é vê-los separados? Quero que minha mãe acabe sua vida como uma mulher decente e respeitável. E é você quem o impede! Você, Christopher, você!

           Mostrando em seu semblante um completo desprezo e nenhum remorso, Bart girou sobre seus sapatos e saiu da sala, nos deixando entre as ruínas de nossa alegria natalina. Ansiosa por imitá-lo, Melodie, levantou-se com rapidez; mas ficou de pé, tremendo, com a cabeça inclinada. Carrancuda, Cindy perguntou:

           — Deitaste-te com o Bart? Tem feito isso? Não pode manter a dúvida enquanto o coração do Jory está se destroçando.

           Os olhos escurecidos de Melodie pareceram afundar-se mais em seu rosto à medida que aumentavam, como se o medo dilatasse suas pupilas.

           —Por que não me deixam tranqüila? — suplicou lastimosamente. — Não pareço do mesmo aço que todos vocês. Não posso aceitar uma tragédia depois de outra! Jory convalescia no hospital incapaz de voltar a caminhar ou a dançar e Bart estava aqui quando eu necessitava de alguém. Ele me apoiou, consolou-me. Fechei os olhos e imaginei que Bart era Jory.

           Jory caiu para frente. Corri para sustentá-lo e o encontrei respirando entrecortadamente, tão aflito que não podia controlar o tremor de suas mãos. Segurei-o enquanto Chris tratava de impedir que Melodie subisse a escada correndo.

           — Tome cuidado! — advertiu. — Poderia cair e perder seu bebê!

           — Não me importa. — A réplica soou como um triste lamento antes que Melodie desaparecesse de nossa vista.

           Então Jory já tinha recuperado a integridade suficiente para enxugar as lágrimas e forçar um débil sorriso.

           — Bom, agora sei — disse com voz quebrada. — Faz muito tempo que suspeitei que ela e Bart tivessem algo entre eles, mas confiei em que só fossem temores sem motivo. Devia estar mais atento. Mel não sabe viver sem um homem a seu lado, em especial na cama... e não posso culpá-la, não acham?

           Profundamente alterada, comecei a recolher os papéis que tinham servido para embrulhar com primor os presentes e tinham acabado tão insensivelmente rasgados, como na vida, e do mesmo modo em que nós tratávamos de manter nossas ilusões quando as coisas raramente eram o que pareciam ser.

           Jory se desculpou dizendo que precisava estar sozinho.

           — Quem pôde destroçar esse maravilhoso navio? — murmurei eu. — Cindy ajudou Jory a embrulhá-lo; na última vez que ele retocou a pintura, eu estava ali, observando. O navio foi colocado cuidadosamente em um molde especial de espuma para sustentá-lo direito. Não deveria ter nenhuma fenda, nem nada quebrado.

           — Como poderia eu explicar o que acontece nesta casa? — respondeu Chris com tom angustiado.

            Ergueu o olhar e viu Bart de pé na soleira, com suas longas pernas separadas e os punhos nos quadris, observando furiosamente. Chris se dirigiu a ele:

            — O que parece, feito está, mas estou seguro de que Jory não tem culpa de que o clíper esteja quebrado. Suas intenções eram boas. Enquanto o estava construindo, dizia-nos que esse navio ocuparia o suporte de seu escritório.

           — Não duvido das boas intenções do Jory — disse Bart com indiferença, recuperado já seu controle. — Mas aí está minha querida irmãzinha que me odeia e quer vingar-se de mim por ter dado a seu amiguinho o que merecia. A próxima vez será ela a quem castigarei.

           — Possivelmente Jory deixou cair a caixa — interveio Joel com ar de santarrão.

            Cravei o olhar no velho e esperei minha oportunidade para dizer o que devia quando ninguém estivesse presente.

           — Não — negou Bart. — Tem que ser a Cindy! Tenho que admitir que meu irmão sempre me tratou com justiça, inclusive quando eu não a merecia.

           Enquanto Bart falava, eu observava o sorriso afetado e os olhos reluzentes e satisfeitos do Joel. Antes de me retirar para meu quarto, me apresentou a ocasião de enfrentá-lo. Estávamos em um corredor posterior do segundo piso.

            — Joel, Cindy não teria destruído o trabalho do Jory, destroçando o presente do Bart. Entretanto você gosta de semear o joio entre os membros de nossa família. Acredito que foi você quem destroçou o navio e depois o embrulhou de novo.

           Joel não respondeu; só verteu mais ódio de seu olhar inexoravelmente fixo:

           — Por que voltou, Joel? — perguntei. — Declara que odiava a seu pai e foi feliz no monastério italiano. Por que não ficou ali? Certamente durante esses anos fez alguns amigos. Devia ter suposto que aqui não encontraria nenhum. Minha mãe me disse que sempre odiou esta casa pela qual agora passeia como se fosse o amo.

           Joel continuou sem falar. Segui-o até o interior de seu quarto e olhei ao redor pela primeira vez; ilustrações bíblicas nas paredes e versículos da Bíblia em umas molduras baratos.

           Joel se colocou atrás de mim. Senti na nuca seu fôlego quente e asmático, que cheirava à velhice e enfermidade. Quando moveu os braços, parecia querer me estrangular. Surpreendida, dei a volta e o encontrei a poucos passos de mim.

           Quão silenciosa e rapidamente podia mover-se...

           — A mãe de meu pai se chamava Corrine — disse com a voz mais doce que soube empregar. — Minha irmã tinha o mesmo nome, que recebeu como uma espécie de castigo; uma lembrança constante para meu pai de sua pérfida mãe, que teria que servir para lhe demonstrar continuamente que não podia confiar em nenhuma mulher bonita..., e quanta razão tinha!

           Era um homem velho, octogenário, mas assentei-lhe uma forte bofetada. Retrocedeu cambaleando, perdeu o equilíbrio e caiu.

           — Lamentará este bofetão, Catherine — ameaçou muito mais irado do que até então o tinha visto. — Do mesmo modo que Corrine lamentou todos seus pecados, você também viverá o tempo suficiente para penar pelos teus!

           Saí correndo de seu quarto, temendo que o que dizia fosse muito certo.

 

O BAILE TRADICIONAL DO FOXWORTH

           O jantar do dia de Natal foi servido aproximadamente às cinco com o fim de proporcionar à família tempo demasiado para preparar-se para o grande acontecimento que começaria às nove e meia. Uma aura de felicidade rodeava Bart. Quando sua mão cálida se aproximou para cobrir a minha, estremeci de prazer, pois rara vez demonstrava afeto com contato físico.

           — Já que não posso dispor de toda minha riqueza em seguida, deveria ao menos ostentar todo o prestígio que merece ao proprietário desta casa.

           Sorri e acariciei a mão que segurava a minha.

           — Sim, entendo, e nós faremos todo o possível para que sua festa seja um grande êxito.

           Joel estava sentado perto, emitindo vibrações invisíveis. Sorria com cinismo.

           — Deus ajuda aos bobos que se enganam — murmurou.

           Bart fingiu não o haver escutado, mas eu estava preocupada. Alguém tinha destroçado o navio de vela de Jory, cuja única intenção tinha sido entregar a seu irmão um presente de reconciliação. Tinha que ter sido Joel o ser tão sem piedade que tinha destruído esse navio em que Jory trabalhou em excesso durante meses e meses. Que mais seria capaz de fazer?

           Meus olhos se encontraram com os do velho. Não havia mais que um adjetivo para descrever com exatidão seu aspecto nesse momento: dissimulado. Tomava sua comida com delicadeza, cortando o bolo de frutas em pequenos pedaços que juntava com seus longos dedos. Mastigava cada um desses pedacinhos com intensa concentração, utilizando somente os incisivos, da mesma maneira que um coelho comeria uma cenoura.

           — Me deitarei agora — anunciou Joel. — Não aprovo a festa desta noite, Bart; acredito que deveria sabê-lo. Recorda o acontecido em sua festa de aniversário. Deveria ser mais sensato. Insisto em que é um esbanjamento de dinheiro convidar pessoas que não conhece bastante bem. Também censuro a quem bebe, dança e se comporta de forma selvagem em um dia sagrado. O dia de hoje pertence ao Senhor e a seu Filho. Todos deveríamos ficar de joelhos e permanecer assim da aurora até a meia-noite, como fazíamos no monastério, enquanto, em silêncio, agradecíamos o fato de estarmos vivos. — Posto que ninguém de nós respondeu, Joel prosseguiu: — Eu sei que os homens e as mulheres embriagados tentarão fornicar com alguma pessoa alheia a seu par. Recordo sua festa de aniversário e o que ocorreu. A pecaminosa vida moderna contrasta claramente com a pureza do mundo quando eu era jovem. Nada é como estava acostumado a ser então. Naquela época a gente sabia comportar-se decentemente em público, sem importar o que se fizesse detrás das portas fechadas. Agora a ninguém importa que o vejam cometendo qualquer pecado. Quando eu era um moço, as mulheres não exibiam os seios, nem levantavam as saias diante do primeiro homem que pedisse. — Fixou seus frios olhos azuis em mim e depois na Cindy. —Aqueles que pecam uma e outra vez, sempre pagam muito caro, como algumas pessoas que estão aqui deveriam saber. — Então ficou olhando significativamente para Jory.  

           — Velho bastardo! — murmurou Cindy observando-o enquanto Joel saía da sala com o mesmo silêncio com que tinha entrado.

           — Cindy, que nunca mais te ouça dizer nada parecido! — exclamou Bart. — Ninguém profere obscenidades sob meu teto.

           — Já está bem, maldito seja! — replicou Cindy. — No outro dia te ouvi qualificar ao Joel assim. E ainda mais, Bart Foxworth, Eu chamarei o pão, pão, inclusive sob seu teto!

           — Vá para seu quarto e permaneça ali! — uivou Bart.

           — Que todo mundo continue divertindo-se — atravessou Jory, conduzindo sua cadeira para o elevador. — Quanto a mim, por todos os diabos! Tenho vontade de romper em mil pedaços meu cartão de sócio cristão.

           — Para começar, você nunca foi cristão — disse Bart. — Ninguém desta casa vai nunca à igreja. Mas num dia não muito longínquo todos os que estão aqui irão à igreja.

           Chris se levantou, deixou com muita calma seu guardanapo sobre a mesa, e fixou seu olhar firme no Bart e Cindy.

           — Já estou farto desta dialética infantil. Surpreende-me que todos vós, que acreditei adultos, convertam-se em meninos em um abrir e fechar de olhos.

            Mas Jory não podia conter-se esta vez. Girou bruscamente sua cadeira de rodas, com a ira refletida no rosto, quase sempre cometido, e com as aletas do nariz levantados.

           — Papai, sinto muito, mas tenho algo que dizer. — voltou-se para Bart que se pôs em pé. — Agora, me escute, irmãozinho. — Suas fortes mãos soltaram a alavanca da cadeira para fechar-se cerrando os punhos. — Eu acredito em Deus... mas não na religião, que só se utiliza para manipular e castigar. É aproveitada de mil maneiras para conseguir benefícios, pois inclusive na Igreja, o Deus real é ainda o dinheiro.

           — Bart — supliquei, temerosa de que voltasse a ferir Jory — já é hora de irmos para cima.

            Bart tinha empalidecido.

           — Não é de estranhar que te veja condenado a estar nessa cadeira se acreditas no que acaba de dizer. Deus te está castigando, tal como diz Joel.

           — Joel — repetiu Jory; o tom de sua voz evidenciava desprezo. — E a quem importa o que diz um velho estúpido como Joel? Sofro este castigo porque algum idiota umedeceu a areia! Deus não fez chover para que isso ocorresse. Foi uma mangueira do jardim que usurpou o lugar de Deus e por isso estou em uma cadeira de rodas e não no lugar que me corresponde. Logo que me seja possível irei daqui, Bart. Está fazendo com que esqueça que é meu irmão, ao qual sempre tentei amar e ajudar. Nunca mais o tentarei.

           — Hurra por ti, Jory! — exclamou Cindy, ficando em pé de um salto e aplaudindo.

           — Basta! — ordenei, agarrando Cindy por um braço enquanto Chris a agarrava pelo outro e a afastava do Bart. Não obstante, ela se retorcia, lutando por liberar-se.

           — Maldito monstro hipócrita! — repreendeu a Bart. — Já ouvi comentar em sua festa de aniversário que é um bom cliente do bordel local...

            Felizmente a porta do elevador se fechou detrás de nós e pudemos subir antes que Bart alcançasse Cindy.

           — Aprende a manter a boca fechada — aconselhou Jory. — Só consegue piorar as coisas, Cindy. Por minha parte, lamento o que acabo de dizer. Viu sua expressão? Não acredito que Bart finja quanto à religião. Fala muita a sério e parece acreditar de verdade. Embora Joel seja um hipócrita, Bart não.

            — Jory, Cindy, me escutem com atenção — disse Chris antes de sair do elevador. — Quero que esta noite os dois façam todo o possível para que a festa do Bart seja um êxito. Esqueçam suas diferenças, pelo menos por umas horas. Bart foi um moço com muitos problemas e, ao crescer, converteu-se em um homem com muitos mais. Necessita ajuda urgente, mas não com sessões de psiquiatras, a não ser com o apoio daqueles que mais o querem. Apesar de tudo, eu sei que os dois o amam, tanto como sua mãe e eu que, além disso, nos preocupamos com o que possa lhe acontecer. Quanto a Melodie, a fui ver antes do jantar e não se sente bastante bem para assistir à festa. Não me permitiu que a examinasse, embora eu insistisse. Diz que se sente muito gorda e prefere que os convidados não a vejam. Acredito que será a melhor solução para ela. Mas se quiserem, poderão falar com ela um momento e lhe transmitir umas palavras amáveis de ânimo, pois a inquietação está destroçando a essa pobre garota...

           Jory avançou pelo corredor e entrou diretamente em seu quarto, ignorando a porta fechada de Melodie. Tanto Chris como eu lançamos um suspiro.

           Cindy, obediente, tentou expressar algumas palavras de consolo à Melodie da parte exterior da porta fechada com chave. Depois, dando saltos, aproximou-se de nós.

           — Não permitirei que Melodie me atrapalhe a diversão. Acredito que está agindo como uma condenada boba e egoísta. Penso me divertir esta noite como nunca — disse Cindy, quando nos dirigíamos ao nosso quarto. — Não me importo nada com Bart e sua festa, mas não vou desdenhar a diversão que me proporcionar.

           — Estou preocupado com Cindy — disse Chris quando estávamos jogados em nossa ampla cama, tentando dormir um pouco. — Tenho a impressão de que não é muito comedida na hora de conceder seus favores.

            — Chris, não diga isso! O fato de que a pilhássemos com esse menino, Lance, não significa que seja uma moça fácil. O que faz é procurar, tratando de encontrar em todo jovem que conhece, seu par desejado. Se um lhe disser que a ama, ela acredita porque precisa acreditar. Não te dá conta de que Bart lhe roubou a confiança? Cindy teme ser o que Bart acredita que ela é. Em seu interior se debate entre ser tão perversa como ele crê e ser tão boa como nós pretendemos que seja. Cindy é uma jovem bonita e Bart a trata como se fosse lixo.

           Tinha sido um dia muito comprido para Chris. Fechou os olhos e ficou de lado para me abraçar.

           — Bart acabará por corrigir-se — murmurou. — Pela primeira vez vejo em seus olhos a necessidade de encontrar uma saída. Deseja desesperadamente encontrar alguém ou algo em quem acreditar. Algum dia achará o que necessita e então se liberará para converter-se no magnífico homem que existe debaixo dessa odiosa máscara.

           Dormir, sonhar em coisas impossíveis, como a harmonia familiar, em irmãos e uma irmã encontrando o mútuo amor. Sonha, sonhador.

           Ouvi que o antigo relógio do vestíbulo dava as sete, hora em que devíamos nos levantar da sesta para nos banhar e nos vestir. Despertei ao Chris e o apressei para que se vestisse. Ele se estirou, bocejou e se levantou prazerosamente para tomar banho enquanto eu tomava um rápido banho; depois se barbeou antes de colocar um fraque confeccionado à medida e se contemplou no espelho.

           — Cathy, estou engordando? — perguntou, inquieto.

           — Não, carinho, tem um aspecto "tremendo", como diria Cindy.

           — O que quer dizer?

           — É mais atraente cada ano que passa. — Rodeei-lhe a cintura com os braços, uma vez que apoiava a bochecha contra suas costas. — Te amo mais à medida que passa o tempo... e mesmo que fosse tão velho como Joel, eu te veria como agora é, tão arrumado em sua brilhante armadura, disposto a cavalgar um unicórnio branco. Na mão levará então uma lança de três metros com a cabeça do dragão verde cravada em sua ponta.

           Vi sua imagem no espelho; em seus olhos brilhavam umas lágrimas.

           — Depois de tanto tempo recorda ainda — disse com voz rouca. — Depois de tantos anos...

           — Como se fosse possível esquecer.

            — Mas aconteceu já muito, muito tempo...

           — E hoje a lua resplandeceu ao meio-dia — sussurrei, me colocando diante dele e deslizando meus braços ao redor de seu pescoço — e uma névoa envolveu seu unicórnio... e eu comprovei encantada que sempre tinha gozado de meu respeito.

            Duas lágrimas escorregaram lentamente por suas bochechas. Enxuguei-as com um beijo.

           — De modo que me perdoa, Catherine? Diga-o agora, enquanto ainda temos vida por diante, diga que me perdoa por haver feito acontecer este inferno. Já que Bart teria podido tornar-se diferente se eu tivesse sido seu tio e encontrado outra esposa.

            Tomei cuidado de não lhe manchar a jaqueta com minha maquiagem enquanto permanecia com a bochecha apoiada contra seu peito, escutando os batimentos do seu coração, tal como o tinha ouvido pela primeira vez quando nosso amor mudou para converter-se em algo maior do que deveria ter sido.

           — Se fechar os olhos, volto a ter doze anos e você, quatorze. Posso ver-te tal como foi então, mas não posso ver a mim; Chris, por que não posso ver-me?

           Seu sorriso era agridoce.

           — Porque monopolizei todas as lembranças do que você foi e as depositei em meu coração. Mas ainda não disse que me perdoa.

           — Estaria eu aqui, onde estou, se não fora por minha própria vontade?

           — Confio e rogo que não. — E me abraçou, abraçou-me com tanta força que me doeram as costelas.

           Fora, a neve começou a cair de novo. Dentro, meu Christopher Doll fazia retroceder o relógio e se a partida de Lance tinha roubado o romance de Cindy e para Melodie não havia magia naquela casa, havia-a mais que suficiente para mim se Chris estava ali para exercer seu feitiço.

            Às nove e meia nos sentamos preparados para nos levantar quando Trevor se apressasse a abrir a porta. Trevor se achava de pé, consultando freqüentemente seu relógio, nos jogando olhares com grande orgulho. Bart, Chris, Jory e eu, com nossos elegantes trajes de noite, encontrávamo-nos diante das janelas da frente, com seus esplêndidos cortinados. A formidável árvore de Natal do vestíbulo resplandecia coberta com um milhar de luzinhas brancas. Cinco pessoas tinham trabalhado umas horas adornando aquela árvore.

           Enquanto permanecia ali sentada, como uma grisalha de meia-idade que já tinha encontrado a seu príncipe e se casou com ele, apanhada ainda pelo feitiço do "e foram felizes", algo me fez elevar o olhar. Na penumbra da rotunda onde havia duas armaduras de cavalheiros com toda sua indumentária sobre dois pedestais, um frente ao outro, percebi o movimento de uma sombra. Acreditei identificar Joel, que se supunha dormindo em sua cama, ou rezando ajoelhado pelo perdão de nossas almas não cristãs e pecadoras.

            — Bart — disse com voz baixa a meu filho, que se levantou para aproximar-se de minha cadeira — esta festa não se celebrava com a intenção de que Joel reencontrasse as suas velhas amizades?

            — Sim — respondeu com um sussurro, colocando seu braço sobre meus ombros — mas isso era só a desculpa. Eu já sabia que ele não quereria assistir. A verdade é que poucos de seus amigos vivem ainda, embora vivam muitas das companheiras de colégio de minha avó. — Seus fortes dedos se fincaram na delicada carne de meu ombro. — Está adorável... como um anjo.

           Era um elogio ou uma sugestão? Esboçou um sorriso cínico, e depois afastou com aspereza o braço, como se este o tivesse traído. Pus-se a rir, nervosa.

           — Bom, algum dia serei tão velha como Joel e suponho que curvarei as costas e arrastarei os pés, e quando acabar de pecar recuperarei a aura que perdi faz tanto tempo quando ainda era uma adolescente...

           Tanto Bart como Chris, fizeram um gesto de desagrado para me ouvir falar daquela maneira. Senti-me melhor ao ver que a sombra do Joel se afastava.

           Enquanto uns empregados com libré preparavam as mesas do buffet, Bart se levantou e caminhou de um lado a outro, com um aspecto extremamente atraente, luzindo num fraque negro e a camisa engomada.

           Agarrei a mão de Jory e a apertei.

           — Está tão atraente como Bart — sussurrei.

           — Mamãe, dedicaste-lhe algum elogio? Tem um magnífico aspecto, magnífico de verdade, exatamente o homem que deve ter sido seu pai.

            Senti vergonha e me ruborizei.

           — Não, não lhe disse nenhuma palavra porque ele parece tão endiabradamente senhor de si mesmo que acredito que arrebentaria ao receber o menor elogio.

            — Equivoca-te, mamãe. Vamos, elogie a ele como me elogia. Possivelmente crê que eu necessito mais, mas acredito que é a ele a quem fazem falta suas palavras.

            Levantei-me e me aproximei do Bart, que estava esquadrinhando a avenida, que se alargava em curva descendente.

           — Não vejo nem um só farol — se lamentou, resmungão. — Já não neva e os caminhos estão claros. Além disso, o nosso tem cascalho por cima; onde demônios estão?

           — Nunca te tinha visto tão atraente como esta noite, Bart.

           Voltou-se para fixar seu olhar em meus olhos e depois jogou uma olhada para seu irmão.

           — Mais atraente que Jory?

           — Igualmente atraente.

           Franzindo o sobrecenho se voltou para a janela. Viu algo no exterior que o distraiu.

           — Ei... olhe! Já vêm!

            Contemplei a fila de faróis na distância, subindo pela colina.

           — Se preparem todos — apressou Bart, indicando ao Trevor, com um excitado gesto, que estivesse preparado para abrir as portas de par em par.

           Chris se aproximou da cadeira de rodas de Jory, que guiou habilmente, enquanto eu agarrava o braço do Bart, e todos juntos nos dispusemos a formar a fila de recepção. Trevor se apressou a nos dedicar um alegre sorriso.

           — Eu gosto das festas. Sempre gostei, sempre gostarei. Fazem pulsar o coração mais depressa. E conseguem que meus velhos ossos se sintam jovens outra vez. Posso predizer que a desta noite será uma festa de máximo esplendor.

           Trevor repetiu isso duas ou três vezes, em cada ocasião com menos convicção, já que nenhum par daqueles faróis ascendeu o bastante para chegar até nossa entrada.

            Ninguém apertou a campainha nem golpeou a porta com a aldabra. Os músicos estavam em seus postos debaixo da rotunda, sobre um estrado construído especialmente para eles situado no centro da curva da dupla escada. Afinavam uma e outra vez seus instrumentos enquanto meus pés, calçados com sapatos de festa de salto alto, começavam a me doer. Sentei-me de novo em uma elegante poltrona e me descalcei por debaixo das dobras de meu traje, que se tornava mais pesado e incômodo à medida que transcorriam os minutos. De momento, Chris se sentou junto a mim, e Bart ocupou uma poltrona a nossa direita; todos estávamos muito silenciosos, quase contendo a respiração. Jory, cuja cadeira lhe permitia girar quanto quisesse, ia de uma janela a outra, olhando fora e nos informando.

           Eu sabia que Cindy se achava no piso superior, vestida e pronta, esperando chegar tarde, como estava na moda, para impressionar a todo mundo quando descesse pela escada. Sem dúvida estaria impaciente.

           — Logo chegarão... — vaticinou Jory quando o relógio marcava as dez e meia. — Há muita neve amontoada nas estradas laterais que pode confundi-los...

           Bart tinha os lábios apertados. Em seus olhos imperava uma frieza pétrea.

           Ninguém dizia nada. Eu não me atrevia nem a especular por que ninguém tinha chegado. Trevor manifestava sua ansiedade quando acreditava que nós não o observávamos.

           Com o desejo de pensar em algo prazenteiro, fixei meu olhar nas mesas de buffet que tanto me recordavam o primeiro baile que eu tinha presenciado no Foxworth Hall original. Realmente se parecia muito ao que agora estava vendo. Toalhas de linho vermelho, bandejas e terrinas de prata; um jarro que jorrava champanha, enormes fontes, reluzentes, fumegantes, que despediam deliciosos aromas; montanhas e montanhas de comida em luxuosos pratos de cristal, porcelana, ouro e prata.

            Finalmente não pude resistir mais e me levantei para provar daqui e de lá enquanto Bart, com o sobrecenho franzido, queixava-se de que estava arruinando os delicados adornos. Dediquei-lhe um gesto carinhoso e zombador ao mesmo tempo em que entregava ao Chris um prato cheio de todos seus manjares favoritos. Jory não demorou para servir-se também.

           As velas de cera de cor vermelha diminuíam mais e mais. As altas obras-primas preparadas com gelatina começavam a afundar. Os queijos fundidos se endureciam e os molhos quentes se espessavam. A massa batida esperava ser estendida nas finas frigideiras, enquanto os cozinheiros se olhavam entristecidos.

            Tive que desviar o olhar. Nas chaminés, os fogos alegravam os salões principais, fazendo-os acolhedores, excepcionalmente agradáveis. Os empregados interinos, inquietos, pareciam ansiosos enquanto se agitavam e perambulavam, murmurando entre eles sem saber o que fazer.

           Cindy desceu pela escada com um vestido carmesim de saia ampla com aros. O traje, que lhe rodeava o corpo, tinha um decote franzido que lhe cobria ligeiramente na parte superior dos braços, deixando ao descoberto os ombros e criando um magnífico marco para seus opulentos e suaves seios, realçados por um decote muito baixo.

            A saia era uma obra-prima de franzidos, presos com flores brancas de seda bordadas com de gotas de chuva feitas de cristais iridescentes. Outros casulos brancos aninhavam seu cabelo, recolhido na parte superior da cabeça, com tal graça que até o Scarlett O'Hara teria invejado esse penteado.

            — Onde estão todos? — perguntou, olhando ao redor de uma vez que desaparecia sua expressão radiante. — Estive esperando ouvir a música, e depois fiquei como adormecida, pensando ao despertar que estaria perdendo toda a diversão. — Fez uma pausa e em seu rosto se refletiu uma expressão de desengano. — Não me digam que não vai vir ninguém! Não suportarei outra desilusão! — Estendeu os braços em um gesto dramático.

            — Não chegou ninguém ainda, senhorita — disse Trevor com tato. — Talvez se perdessem. Devo dizer que parece você parece um sonho adorável, como sua mamãe.

           — Obrigado — disse ela, aproximando-se delicadamente dele e roçando a bochecha do Trevor com um beijo filial. — Você mesmo tem um aspecto muito distinto. — Passou rápida ante o olhar assombrado do Bart e correu para o piano. — Por favor, posso? —perguntou ao jovem e atraente músico que parecia encantado de que por fim acontecesse alguma coisa.

           Cindy se sentou junto ao pianista, pousou suas mãos sobre as teclas, jogou a cabeça para trás e começou a cantar: "Oh, holy, night. Ob, night when stars are Shining..."

           Eu observava, como todos outros, aquela moça que acreditávamos conhecer tão bem. Não era uma peça fácil de cantar, mas ela o fez tão bem, imprimiu tal emoção, que inclusive Bart deixou de passear para contemplá-la com perplexidade.

           Em meus olhos havia lágrimas. "Oh, Cindy, como pudeste conservar essa voz como um segredo?" Não tocava o piano muito bem, mas sua voz, o sentimento que punha nas frases... Todos os músicos se uniram então para abafar o som do piano e acompanhar o de sua voz.

           Sentei-me, atônita, incapaz de acreditar que minha Cindy pudesse cantar tão maravilhosamente. Quando terminou, todos aplaudimos entusiasmados. Jory exclamou:

           — Sensacional! Fantástico! Absolutamente maravilhoso, Cindy! Marota... não havia dito que tinha continuado com suas lições de canto.

            — Não continuei. Canto só o que sinto.

            Cindy baixou o olhar, e depois lançou um dissimulado e malicioso olhar ao assombrado rosto do Bart, que mostrava, além de surpresa, agrado. Pela primeira vez tinha encontrado o que admirar na Cindy. O sorriso de satisfação da Cindy logo desapareceu, cedendo seu lugar a um sorriso triste, como se desejasse que Bart a apreciasse também por outros motivos.

           — Eu gosto das canções natalinas e as religiosas, causam-me um efeito especial. Uma vez, na escola, cantei “Balanço Low, Sweet Chariot”, e o professor disse que eu possuía o sentimento emocional necessário para me converter em uma grande cantora. Mas o que eu mais desejo é ser atriz.

            Rindo, feliz de novo, pediu-nos que uníssemos a ela e convertêssemos aquilo em uma festa de verdade, embora não se apresentassem os convidados. Começou a trautear uma toada parecida com o Joy to the World, seguida por Gingle Bells.

           Mas nesta ocasião Bart não se comoveu. Retornou outra vez às janelas para olhar fora, muito enrijecido e reto.

           — Não podem ignorar meus convites, não podem, se tiverem respondido... — murmurava para si.

           Eu não podia compreender como seus amigos de negócios se atreviam a lhe ofender quando Bart devia ser seu cliente mais importante. Por outro lado, a todo mundo atraía uma festa, em especial a que Bart tinha organizado, que prometia ser sensacional.

           De um modo ou outro, Bart estava fazendo milagres com seus quinhentos mil dólares anuais, aumentando-os por meios que Chris teria julgado arriscados.

            Bart o expôs todo em apostas calculadas que davam magníficos resultados. Pensei que possivelmente minha mãe tinha querido que assim fosse. Se tivesse entregue ao Bart toda a herança de uma só vez, ele não teria trabalhado com tanto empenho para ganhar sua própria fortuna, que chegaria, se continuava aumentando-a, a exceder em muito o que Malcolm lhe tinha legado; assim Bart mediria sua própria valia.

           Entretanto, o que importava o dinheiro se estava tão desanimado que não podia comer nada daqueles manjares tão esplendidamente dispostos? Em troca, a desilusão o conduziu ao licor e, em pouco momento, tinha esvaziado meia dúzia de taças fortes enquanto ia de um lado a outro do salão, cada vez mais enfurecido.

            Era-me quase insuportável contemplar sua decepção e muito em breve, apesar de mim mesma, as lágrimas correram silenciosamente por meu rosto.

           — Não podemos ir para a cama e o deixar aqui sozinho, Cathy — sussurrou Chris. — Bart está sofrendo. Olhe como passeia de um lado a outro; com cada passo, sua fúria vai crescendo. Alguém acabará pagando esta afronta.

           Às onze e meia, a única que estava divertindo-se era Cindy. Os músicos e os empregados pareciam adorá-la. Eles tocavam com gosto, e ela cantava ou dançava com todos os homens presentes, incluídos Trevor e outros empregados varões. Animou com gestos às moças, as convidando a dançar, e elas, contentes, uniram-se à festa que Cindy acabava de criar, enquanto os homens se alternavam para que ela, pelo menos, se divertisse.

           — Bebamos todos, comamos e estejamos alegres! — exclamava Cindy, sorrindo ao Bart. — Não é o fim do mundo, irmão Bart. Por que se preocupa? Temos muito dinheiro para que toda gente simpatize conosco, mas também somos muito ricos para nos compadecer de nós mesmos. E olhe, pelo menos temos vinte convidados... Dancemos, bebamos, comamos, nos divirtamos!

            Bart deteve seus passos para olhá-la fixamente. Cindy elevou sua taça de champanha.

           — Brindo por ti, irmão Bart. Por cada uma das coisas feias que me disse, eu te devolvo meus desejos de boa-vontade, boa saúde, longa vida e muito amor. — Bateu a taça de licor do Bart com sua taça de champanha e depois bebeu aos goles, sorrindo alegremente a seu irmão antes de lhe oferecer outro brinde. — Acredito que tem um aspecto tremendo e as garotas que não apareceram esta noite perderam a melhor oportunidade de suas vidas. De modo que aqui está, outro brinde pelo solteiro mais atraente do mundo. Desejo-te alegria, felicidade e amor. Desejaria sucesso, mas não o necessita.

            Bart não podia afastar seu olhar dela.

           — Por que não necessito sucesso? — perguntou.

           — Por que o que mais poderia desejar? Alcança-se o sucesso quando se têm milhões, e muito em breve você terá tanto dinheiro que não saberá o que fazer com ele.

           Bart inclinou a cabeça.

           — Não me sinto triunfador. Não posso, quando ninguém veio a minha festa. — Sua voz se quebrou enquanto voltava às costas.

            Levantei-me para me aproximar dele.

            — Quer dançar comigo, Bart?

           — Não! — exclamou, correndo para outra janela distante de onde podia observar todo o caminho.

            Cindy se tinha divertido muito com os músicos e os homens e as mulheres contratados para servir aos convidados do Bart. Entretanto, eu estava muito triste, sentindo pena do Bart, que tanto tinha esperado daquela festa. Por solidariedade, todos nós, exceto Cindy e os empregados, fomos ao salão da frente, onde nos sentamos arrumados com nossos trajes fabulosamente caros e esperamos os convidados que, como parecia óbvio, tinham aceitado só para depois desfazer do Bart... e dessa maneira expressar o que pensavam dos Foxworth da colina.

           No velho relógio de parede começaram a soar as doze. Bart se afastou da janela e se deixou cair no sofá diante das lenhas consumidas da lareira.

           — Devia ter suposto que isto ocorreria. — Lançou um amargo olhar a Jory. — Possivelmente vieram a minha festa de aniversário só para ver-te dançar, e agora, quando já não pode, me mandam ao inferno! Desprezaram-me... e pagarão por isso — disse com uma voz fria, dura, mais alta e forte que a do Joel, mas com a mesma classe de fúria ciumenta. — Quando tiver acabado com eles, não haverá nenhuma casa em um raio de trinta quilômetros que não me pertença. Os arruinarei. A todos eles. Com o respaldo da Fundação Foxworth, posso pedir emprestado milhões, comprar depois os bancos e exigir o pagamento de suas hipotecas. Apropriar-me-ei dos armazéns do povoado e os fecharei. Contratarei outros advogados, despedir-me-ei dos que tenho agora e me assegurarei de que percam seu diploma. Encontrarei novos corredores da Bolsa, procurarei novos agentes imobiliários, procurarei que os valores das propriedades imobiliárias sejam minados, e quando ficarem barato os comprarei. Quando tiver terminado não sobreviverá nenhuma só das velhas famílias aristocráticas da Virginia neste lado do Charlottesville! E meus colegas de negócios só terão dívidas que saldar!

           — Ficará então satisfeito? — perguntou Chris.

           — Não! — respondeu Bart, com olhos severos e reluzentes. — Não estarei satisfeito até que se faça justiça! Eu não mereço o que aconteceu esta noite! Só me esforcei para agir como nossos antepassados, e fui rechaçado! Pagarão, pagarão e seguirão pagando um pouco mais.

           — Sinto muito, Bart — disse, tratando de dissimular minha inquietação — mas não foi uma grande perda, não achas? Estamos todos juntos, sob um mesmo teto; a família reunida depois de tanto tempo. E a música e os cantos da Cindy fizeram festiva esta ocasião, apesar de tudo.

           Bart nem sequer me escutava. Contemplava a comida sem consumir, o champanha por desarrolhar, o vinho e o licor que teriam afrouxado mais de uma língua para lhe comunicar a informação que ele saberia utilizar. Olhou com raiva as moças com seus lindos uniformes que, ébrias, cambaleavam pelo salão; algumas dançavam ainda enquanto a música seguia incessante. Cravou seu olhar nos poucos garçons que ainda sustentavam bandejas com bebidas que já esquentaram. Alguns permaneceram de pé, olhando e esperando que Bart lhes indicasse que a noite tinha terminado. A impressionante peça central que dominava todas as mesas e representava um presépio de gelo, com três pastorzinhos, os Reis Magos e todos os animais, derreteu-se formando um atoleiro que derramou, obscurecendo a toalha vermelha.

           — Que afortunado foi ao dançar Quebra-nozes, Jory! — disse Bart enquanto se encaminhava pressuroso para a escada. — Foi o quebra-nozes feio que se converteu em um belo príncipe. Destacava por cima do resto dos papéis masculinos.... e cada vez conquistava a ballerine mais bonita. No Romeu e Julieta, em A Bela Adormecida, Giselle, O Lago dos Cisnes... sempre, exceto na última. E a última é a que conta, não é certo?

           Que cruel! Jory estremeceu e por uma vez mostrou seu sofrimento, acrescentando assim dor a meu coração.

           — Feliz Natal — disse Bart enquanto desaparecia no alto da escada. — Nunca mais celebraremos esta festa, nem qualquer outra, enquanto eu governar esta casa. Joel tinha razão. Ele me advertiu que não tentasse ser como os outros. Disse que não devia tentar fazer com que as gentes simpatizasse comigo ou me respeitasse. De agora em diante, serei como Malcolm. Ganharei o respeito impondo minha vontade sobre os outros, com mão de ferro e decisão implacável. Todos os que esta noite desfizeram de mim, padecerão sob meu poder.

           Voltei-me para o Chris quando Bart desapareceu de nossa vista.

           — Parece louco!

           — Não, carinho, não está louco. Simplesmente é Bart, vulnerável outra vez e muito, muito ofendido. Estava acostumado a quebrar os ossos quando era menino para castigar-se por ter falhado ante a sociedade e na escola. A partir de agora, danificará os outros. Não é uma lástima, Cathy, que nenhuma vez obtenha os resultados que deseja?

           Permaneci de pé junto à coluna da escada, olhando para cima, onde um velho, que se ocultava na penumbra, parecia sacudir-se em uma risada silenciosa.

           — Chris, sobe para o quarto. Eu irei dentro de uns segundos. — Chris queria saber o que eu planejava, de modo que menti e lhe disse que desejava falar um momento com mordomo sobre um assunto doméstico. Mas tinha em mente algo muito diferente.

           Assim que todos partiram, entrei no grande escritório do Bart, fechei a porta e comecei a procurar em seu escritório os cartões de respostas que tinham chegado fazia algumas semanas.

           A julgar pelas manchas de tinta dos envelopes, tinham sido manuseadas muitas vezes. Duzentos e cinqüenta cartões de aceitação. Mordi o lábio inferior. Nem um só negativo, nenhum só. A gente não agia dessa maneira, nem sequer com pessoas com quem não simpatiza. Se tivessem decidido não assistir à festa, teriam arrojado os convites ao cesto de papéis junto com o cartão de confirmação, ou teriam enviado o cartão alegando qualquer desculpa.

           Depositei os cartões em seu lugar com cuidado e me encaminhei pela escada posterior para o quarto do Joel.

           Abri a porta sem chamar e o encontrei sentado na borda de sua cama estreita, dobrado por causa do que parecia ser uma terrível dor de estômago ou aquela repugnante risada silenciosa. Em silêncio, convulsionava-se, estremecia-se, abraçando-se com seus fracos braços.

           Esperei até que parou aquele ataque histérico. Então Joel advertiu a sombra longa que eu projetava. Sem fôlego, com a boca afundada, pois sua dentadura se achava em um copo junto à cama, ficou me olhando.

           — Por que está aqui, sobrinha? — perguntou com aquela voz rouca e áspera. Seu escasso cabelo alvoroçado formava dois chifres diabólicos.

          —Lá em baixo, faz um momento, elevei o olhar e te vi entre as sombras da rotunda, rindo. Por que ria, Joel? Deve ter visto que Bart estava sofrendo.

            — Não sei — resmungou, se voltando um pouco para colocar a dentadura. Logo afastou seu cabelo revolto, embora uma mecha continuasse rígida. Já podia me olhar aos olhos. — Sua filha armou tanto barulho aí embaixo que não podia dormir. Suponho que os ver todos com seus trajes de festa esperando a uns convidados que não chegavam, terá avivado meu senso de humor.

           — Tem um senso de humor muito cruel, Joel. Eu acreditava que se preocupava com o Bart.

           — Quero bem a esse moço.

           — De verdade? — perguntei com azedume. — Não posso acreditá-lo. — Joguei uma olhada à quarto virtualmente vazio de móveis, refletindo. — Não foi você quem colocou no correio os convites para a festa?

           — Não recordo — respondeu com calma. — O tempo não significa muito para um velho como eu. O que aconteceu anos atrás parece mais claro em minha memória que o que aconteceu faz um mês.

           — Minha memória é muito melhor que a tua, Joel. — Sentei-me na única cadeira que havia no quarto. — Bart tinha uma entrevista importante e, segundo lembro, entregou a ti os convites. Enviou-os, Joel?

           — Claro que as enviei! — replicou com fúria.

           — Mas acaba de dizer que não o recorda muito bem.

            — Bom, sim, lembro desse dia. Demorei muito tempo para introduzir na fenda um por um.

           Enquanto falava, eu não tinha deixado de escrutinar seus olhos.

           — Está mentindo, Joel — disse, jogando uma isca. — Não enviou esses convites. Trouxe-os aqui e, na solidão deste quarto, abriu-os um atrás de outro, preencheu os espaços brancos ali onde rezava "Sim, agradar-nos-á assistir", e só depois os enviou nos envelopes que Bart tinha providenciado. Sabe? Encontrei-as no escritório do Bart. Nunca tinha visto tão estranho sortimento de letra torcida, em vários tons de tinta violeta, verde, negra e marrom. Joel, você trocou as penas para que parecesse que aqueles cartões estavam assinados pelos diferentes convidados e foi você quem as assinou todas!

           Joel se levantou muito devagar. Recolheu o invisível hábito pardo tecido por um piedoso monge e colocou suas mãos retorcidas pelas mangas imaginárias.

           — Acredito que perdeste o juízo, mulher — disse friamente. — Se assim o desejar, vá a seu filho e conte suas suspeitas, para ver se ele acredita.

           Me erguendo, encaminhei-me para a porta.

           — Isso é precisamente o que me proponho fazer! — Dei uma forte batida na porta detrás de mim e me afastei depressa.

           Bart se achava em seu escritório, sentado numa poltrona, com seu pijama coberto por uma bata de lã negra com bolinhas vermelhas. Estava bêbado e arrojava os cartões de resposta ao fogo. Vi, com grande tristeza, como ardia o último montão enquanto Bart se servia outro gole.

           — O que quer? — perguntou arrastando as palavras, com os olhos entreabertos.

           — Bart, tenho que te dizer algo, e você me tem que escutar com atenção. Acredito que Joel não levou ao correio seus convites e por essa razão seus convidados não vieram.

           Tentou fixar o olhar e sua mente, que devia estar confusa sob os efeitos de tudo o que tinha bebido.

           — Claro que o fez. Joel sempre cumpre com o que lhe ordeno. — Recostou as costas contra o respaldo da poltrona que se inclinou pela pressão que Bart aplicou, e fechou os olhos. — Agora estou cansado. Vai. Além disso, eles responderam... Não acabo de queimar suas respostas?

           — Bart, escuta. Não durma antes que explique tudo. Não te deste conta de que estranhas eram as assinaturas, todas com tintas de diferente cor? Não te chamou a atenção essa letra torcida? Joel não mandou seus convites por correio, mas sim os levou para seu quarto, abriu-os, tirou os cartões de resposta de confirmação e os envelopes correspondentes e, posto que você já tinha colocado os selos em todos eles, a única coisa que ficava por fazer era dirigir-se à agência de correios e te enviar alguns todos os dias.

           Seus olhos fechados se entreabriram.

           — Mãe, acredito que deveria ir à cama. Meu tio-avô é o melhor amigo que tive em minha vida. Jamais faria nada que me prejudicasse.

           — Bart, por favor, não deposite muita fé no Joel.

           — Sai daqui! — rugiu. — Não vieram por sua culpa! Por sua culpa e a desse homem com quem te deita!

           Parti, me sentindo derrotada e temerosa de que isso fosse verdade... e que Joel fora precisamente o que Bart e Chris acreditavam que era: um velho inofensivo que queria acabar seus dias naquela casa, perto da única pessoa que o respeitava e amava.

 

NASCEU UM MENINO...

           Acabou o dia de Natal. Estava deitada, aconchegada junto ao Chris, que estava acostumado a dormir profundamente, enquanto eu dava voltas na cama, desolada pelo anseio e o desassossego. Detrás de mim, o grande cisne mantinha alerta seu único olho de rubi, me fazendo olhar freqüentemente ao redor em busca do que ele estivesse vendo. Ouvi os toques profundos e suaves do velho relógio situado ao fundo do corredor. Eram três da madrugada. Uns minutos antes, tinha-me levantado para observar o carro vermelho do Bart descer pelas curvas da estrada, em direção ao botequim local onde, sem dúvida, afogaria suas penas com mais álcool e terminaria na cama de qualquer prostituta. Mais de uma vez tinha retornado a casa cheirando a álcool e perfume barato.

           As horas transcorreram lentamente enquanto eu esperava que Bart retornasse a casa. Temi toda classe de calamidades. Em uma noite como aquela, os bêbados estavam na rua e podiam ser mais mortíferos que o arsênico.

           Por que estar estendida, sem fazer nada? Deslizei para fora da cama, arrumei com cuidado as mantas por cima do Chris, beijei-o na bochecha e coloquei seus braços ao redor de um travesseiro para que ele pensasse que era eu; assim deve ter sido pela maneira em que se acomodou mais perto dele. Eu tinha a intenção de aguardar a volta do Bart em seu dormitório.

           Eram quase as cinco de uma crua e fria madrugada invernal, quando por fim ouvi seu carro aproximar-se. Eu estava enrolada com uma grossa bata de cor vermelha, encolhida em um dos sofás brancos do Bart, com as costas apoiada nas almofadas negras e vermelhas.

           Meio adormecida, ouvi-o subir pela escada e mover-se de um quarto a outro, chocando-se contra os móveis como lhe ocorria quando era um menino. Estava acostumado a entrar em todos os aposentos para comprovar que os empregados tinham arrumado tudo antes de deitar-se. Consternada ante sua demora em comparecer em seu próprio quarto, supus que devia estar fazendo isso agora. Não podiam ficar periódicos à vista; as revistas deviam estar ordenadamente empilhadas em seu lugar; não podia haver roupas no chão, nem casacos pendurados nos trincos ou abandonados sobre os respaldos das cadeiras.

           Poucos minutos depois, Bart entrou em seu quarto, e apertou o interruptor para acender os abajures. Balançou-se de um lado a outro e ficou me olhando. Achava-me na penumbra do quarto, onde tinha aceso um fogo que crepitava alegre na escuridão. As sombras dançavam nas brancas paredes, tingindo-as de laranja e de rosa, enquanto o couro negro da outra parede apanhava reflexos vermelhos, criando uma espécie de falso inferno.

            — Mãe, que demônios acontece? Não te disse que permanecesse afastada de meus aposentos? — Entretanto, em seu estado de embriaguez, parecia contente de ver-me.

           Aproximou-se com passo vacilante a uma poltrona; deteve-se procurando o ponto exato, deixou-se cair e fechou os olhos, cheios de escuras sombras. Levantei-me para lhe fazer uma massagem na nuca enquanto ele inclinava a cabeça para sustentá-la entre as mãos como se lhe doesse muitíssimo. Logo cobriu o rosto com as mãos, enquanto eu procurava aliviar sua dor. Depois suspirou, recostou-se em seu assento e me olhou nos olhos.

           — Deveria ter mais senso comum e não beber — murmurou, arrastando as palavras. Eu me sentei frente a ele. — Me impulsiona a cometer estupidez e depois me sinto mal. É uma idiotice seguir bebendo quando o álcool não tem feito nada por mim salvo me acrescentar problemas. Mãe, o que me ocorre? Nem sequer posso me embebedar para me aturdir. Sou muito sensível. Um dia ouvi por acaso que Jory te dizia que estava construindo esse maravilhoso clíper para me dar de presente e isso me manteve secretamente entusiasmado. Nunca ninguém dedicou meses e meses para me fazer um presente.... mas, já vê, está quebrado. Jory fez um bom trabalho, preocupou-se muito de que tudo fosse exato. E agora tudo está no lixo.

           Parecia infantil, vulnerável e acessível, e eu ia tentar chegar a ele, ia tentar lhe dar até o último grama de amor que eu tinha. Quando estava bêbado não era mesquinho, nem bobo; nada a não ser adorável e comovedor em sua humanidade.

            — Carinho, Jory te construirá outro com muito gosto — assegurei sem estar segura de que Jory gostasse de repetir aquela laboriosa tarefa.

           — Não, mãe. Agora já não o quero. Algo aconteceria também ao outro. Assim é como me trata a vida. Tem uma forma cruel de me arrebatar o que mais quero. Para mim não há felicidade nem amor me esperando à volta da esquina do amanhã. Nunca consigo o que realmente quero, o "desejo de meu coração", como eu estava acostumado a chamar os sonhos impossíveis de minha juventude. Não era isso infantil e tolo? Não é de estranhar que sentisse pena de mim... Eu queria muito, muito. Jamais estava satisfeito. Você e esse homem a quem amas, me deram tudo quanto eu dizia que desejava e muitas coisas que nem sequer tinha mencionado; entretanto, nunca me deram felicidade. De modo que decidi não me preocupar com nada; nunca mais. O baile de Natal não proporcionou alegria, embora os convidados tivessem comparecido, porque eu continuei sem lhes impressionar. Em meu interior, durante todo o tempo, sabia que minha festa acabaria sendo um fracasso a mais, como todas as outras festas que você estava acostumada a me oferecer. Apesar disso, segui adiante e me estimulei pensando que se esta noite tivesse êxito, marcaria um precedente, por assim dizê-lo, e minha vida melhoraria.

            Meu filho me estava falando como nunca tinha feito antes. O álcool o desinibia.

            — Que idiota, não achas? — prosseguiu. — Cindy tem razão quando me chama rato e imbecil. Me olho nos espelhos e vejo um homem atraente, muito parecido com meu pai, a quem assegura que amou mais que a qualquer outro homem. Mas sinto que por dentro não sou belo; por dentro sou mais feio que o pecado.

            Quando me acordo pelas manhãs, sinto o ar fresco da montanha, admiro o orvalho cintilante nas rosas, contemplo o sol de inverno brilhando na neve e todo isso me transmite que possivelmente a vida me ofereça uma oportunidade, apesar de tudo. Tenho a esperança de que algum dia encontrarei meu autêntico eu; o eu que pode me agradar. Por isso faz alguns meses decidi fazer deste Natal a mais feliz de nossas vidas, não só pelo Jory, que o merece, mas também por ti e por mim mesmo. Pensas que não quero ao Jory, mas eu o quero muito. — Apoiou a cabeça em suas mãos ansiosas e lançou um pesado suspiro. — É a hora das confissões, mãe. Também sinto ódio da Cindy. Não o negarei. Não sinto afeto algum por ela. Ela não tem feito mais que me roubar... Nem sequer é um de nós. Jory sempre levou a parte mais importante de seu carinho, a parte que te sobra depois de entregar o melhor a seu irmão. Eu nunca tive a melhor parte do carinho de ninguém. Pensava que Melodie me concedia tal privilégio. Agora sei que ela teria tomado qualquer homem para substituir Jory; qualquer homem que estivesse disponível e desejoso. Agora a odeio por isso, tanto quanto desprezo a Cindy.

           Afastou as mãos para mostrar como seus olhos brilhavam de amargura; os reflexos das chamas os convertiam em carvões acesos. As bebidas haviam tornado fedido seu fôlego. Meu coração quase deixou de bater. O que desejava Bart? Levantei-me e me coloquei detrás de sua poltrona para deslizar meus braços ao redor de seu pescoço antes que minha cabeça baixasse para descansar no topo de seu cabelo alvoroçado.

           — Bart, esta noite te foste no carro e me deixaste desvelada, esperando sua volta. Diga o que posso fazer para te ajudar. Ninguém te odeia aqui como você pensa, nem sequer Cindy. Com freqüência nos zanga, não porque o rechacemos, mas sim porque nos desilude.

            — Mande o Chris para longe. — Não havia nenhuma expressão em seu rosto, como se o dissesse sem esperança de que jamais o afastasse de minha vida. — Isso me indicará que me quer. Só quando romper com ele eu poderei me sentir bem comigo mesmo, e contigo.

           A dor me rasgava.

           — Sem mim ele morreria, Bart — murmurei. — Já sei que não pode compreender o que existe entre nós dois e eu mesma seria incapaz de explicar por que ambos nos necessitamos tanto. Talvez se deva a que quando fomos muito jovens e estávamos sozinhos em uma situação aterradora, não tínhamos mais que o um ao outro. Quando estávamos encerrados e isolados, criamos um mundo fantástico, como de sonhos e, ao fazê-lo, nós mesmos caímos em uma armadilha; agora, ao cabo de tanto tempo, ainda vivemos naquela fantasia. Não poderíamos sobreviver sem isso. Se agora o abandonasse, acabaria não só com ele, mas também comigo mesma.

           — Mas, mãe! — exclamou Bart com paixão, voltando-se para me abraçar, para pressionar sua cara contra meu peito — ainda me tem! — Elevou os olhos para me olhar o rosto, me rodeando a cintura com seus braços. — Quero que desencarda sua alma antes que seja muito tarde. O que está fazendo com o Chris vai contra as normas de Deus e da sociedade. Deixa que se vá, mãe. Por favor, deixa que se vá, antes que alguém cometa alguma atrocidade. Se separe do amor de seu irmão.

           Separei-me do Bart, jogando para trás uma mecha solta de meu cabelo. Sentia-me derrotada e desesperançada ante a impossibilidade de fazer o que Bart me pedia.

           — Far-me-ia mal, Bart?

            Mordeu o lábio, um costume infantil que retornava a ele quando estava perturbado.

           — Não sei. Algumas vezes eu gostaria, mais do que quero danificar a ele. Sorri com tanta doçura que desejo que nunca mude. Mas depois, quando estou na cama, ouço murmúrios dentro de minha cabeça que me dizem que é má e merece a morte. Quando penso em ti morta, as lágrimas alagam meus olhos e meu coração se sente vazio e quebrado, e estou perdido. Sinto-me frio, só e assustado. Mãe, estou louco? Por que não posso me apaixonar na confiança de que meu amor dure? Por que não posso esquecer o que você faz?

            Meditei durante um tempo sobre o que Melodie e eu tínhamos feito. Melodie me parecia perfeita e de repente começou a engordar e voltar a ser feia. Gemia, queixava-se e estava a desgosto em minha casa. Inclusive Cindy apreciava mais esta mansão. Levei-a aos melhores restaurantes, ao teatro e ao cinema, e tratei de lhe tirar o Jory da mente, mas ela não o esquecia. Seguia falando do balé, do muito que significava para ela e finalmente tive que aceitar que só era um substituto do Jory e ela nunca me tinha amado. Utilizava-me como um meio para esquecer sua perda durante um tempo. Agora nem sequer parece a garota por quem me apaixonei. Procura compaixão, não amor. Tomou meu amor e o sacudiu uma e outra vez, de modo que agora não posso suportar sua presença.

            Suspirando, baixou os olhos e disse com voz muito baixa, apenas audível:

           — Vejo essa menina, Cindy, e me dou conta de que deve ter o mesmo aspecto que você na sua idade. Uma pequena parte de mim compreende por que Chris se apaixonou por ti, o que me faz odiar a Cindy mais ainda. Ela me provoca, você sabe. A Cindy gostaria de meter-se debaixo de minhas cobertas, me obrigar a realizar algo tão pecaminoso como o que Chris faz contigo. Passeia por seu quarto sem levar nada mais que um soutien e calcinhas, sabendo que eu confiro seus aposentos antes de me retirar. Esta noite levava uma roupa tão transparente que pude vê-la inteira. E ela ficou ali de pé, permitindo que eu a contemplasse. Joel me disse que Cindy é uma puta.

           — Nesse caso, não vá o seu quarto — disse com grande controle. — Deus sabe que não temos por que ver ninguém que viva nesta casa se não queremos e Joel é um estúpido de mente estreita, cheio de pré-julgamentos. A geração da Cindy usa roupa interior que quase não cobre nada. Mas tem razão, não deveria exibir-se. Falarei com ela a respeito pela manhã. Está seguro de que ela se exibiu com premeditação?

           — Suspeito que você fazia o mesmo — disse Bart, me lançando uma triste acusação. — Todos aqueles anos encerrada lá em cima com o Chris. Mostrou-lhe seu corpo... deliberadamente?

           De que forma podia lhe explicar como tinha acontecido e fazê-lo compreender? Bart nunca compreenderia.

           — Tentamos ser decentes, Bart. Já faz tanto tempo... Não tenho vontade de recordar. Tento esquecer. Quero pensar que Chris é meu marido e não meu irmão. Não podemos ter filhos, nunca pudemos. Não nos faz isso melhores, algo melhores?

           Sacudiu a cabeça. Seus olhos se nublaram de repente.

            —Vai-te. Só me dá desculpas e faz que retornem as náuseas que senti quando descobri o que ocorria entre vocês dois. Eu não era mais que um menino que queria estar limpo e são. E ainda quero me sentir dessa maneira. Por isso me limpo com tanta freqüência, barbeio-me, asseio-me e ordeno aos criados que esfreguem e limpem o pó todos os dias. Estou tratando de eliminar a sujeira que você e Chris puseram em minha vida e não posso consegui-lo!

           Não achei consolo nos braços do Chris quando tentei dormir. Entrei em um sonho inquieto, que sumiu quando ouvi gritos distantes. Abandonando a cama pela segunda vez em uma mesma noite, corri para o lugar de onde procediam as vozes.

           No chão do comprido corredor encontrei Melodie, que parecia usar uma camisola branca com listras vermelhas desiguais. Arrastava-se, gemendo, o que me fez pensar que eu seguia sonhando. Seu comprido cabelo estava úmido e alvoroçado, pela fronte lhe corria o suor e deixava detrás dela um rastro de sangue!

           Me olhando com fixidez, quase sem ver-me, comovida, disse:

           — Cathy, meu bebê está chegando...! — gritou e, lenta, muito lentamente, seus olhos suplicantes ficaram brancos e se deprimiu.

           Corri ao quarto para procurar o Chris e o agitei para que despertasse.

           — É Melodie! — exclamei quando se sentou esfregando os olhos cansados. — Começou o parto. Neste momento está deprimida, de barriga para baixo no corredor; deixou um rastro de sangue detrás de seu corpo.

           — Tranqüilize-se — apaziguou Chris, saltando da cama e colocando uma roupa. Em primeiro lugar é que, quando é a primeira vez da mulher, o bebê demora para chegar.

            Entretanto, em seus olhos havia um brilho de ansiedade, como se estivesse calculando mentalmente quanto tempo levaria Melodie no parto.

            — Tenho todo o necessário em minha maleta — disse enquanto se trabalhava rápido, recolhendo mantas, lençóis limpos, toalhas.

            Ainda utilizava a mesma maleta negra de médico da qual gostava quando se graduou na Faculdade de Medicina, como se aquela maleta fosse sagrada para ele.

            — Não há tempo para levá-la ao hospital se sofre uma hemorragia como diz. Agora o que deve fazer é correr lá embaixo, à cozinha, e preparar a água quente que os médicos dos filmes parecem necessitar sempre.

           Suspeitando que Chris queria me tirar do meio, vociferei com impaciência:

           — Não estamos em um filme, Chris!

           Já no corredor, ele se agachou junto à Melodie.

           — Sei... mas seria uma grande ajuda que fizesse algo em lugar de correr a meu lado histérica. Te afaste para um lado, Catherine — ordenou enquanto se inclinava para segurar Melodie.

            Nos braços do Chris, Melodie parecia não pesar mais que uma pluma, apesar de seu ventre, semelhante a uma alta montanha.

           Transladamos Melodie para seu quarto. Chris colocou almofadões debaixo de seus quadris e me pediu mais toalhas brancas, lençóis e jornais enquanto me olhava com furor.

           — Te mova, Catherine, te mova! A posição do bebê é perfeita. Tem a cabeça para baixo e está bem encaixado. Corre! Tenho que esterilizar alguns instrumentos. Maldita seja Melodie por não haver dito que já tinham começado as contrações! Enquanto abríamos os presentes, ficou ali sentada, sem falar. Que demônios acontece com todo mundo nesta casa? A única coisa que ela tinha que fazer era falar, dizer algo!

           Quase antes que Chris acabasse de pronunciar estas palavras, que parecia dirigir a si mesmo, corri pelos corredores em penumbra e me precipitei escada abaixo pela parte posterior próxima à cozinha. Abri a torneira de água quente e pus a chaleira a ferver. Esperei ansiosamente, pensando que Melodie queria nos castigar. Possivelmente queria inclusive que seu bebê morresse para poder voltar livre a Nova Iorque sem um marido inválido e um menino sem pai.

           Quando se necessita, uma chaleira demora tanto a ferver! Mil pensamentos cruzaram por minha mente; maus pensamentos, enquanto observava a água esperando ver borbulhas. O que estava fazendo Chris? Deveria eu despertar Jory para o avisar? Por que tinha Melodie agido assim? Seria ela como Bart em alguns aspectos... auto-castigando-se por seus pecados? Por fim, depois do que me pareceu uma hora, a água começou a ferver. Com o vapor fumegando pelo bico da chaleira, subi correndo pela escada e percorri os intermináveis corredores até chegar ao dormitório de Melodie.

           Chris a tinha sentado, apoiando-a em muitas almofadas. Tinha os joelhos no alto e as pernas abertas, sustentadas por almofadões. Estava nua da cintura para baixo e pude ver que o sangue seguia emanando de seu corpo. Sentindo náuseas ao lembrar de algo semelhante, desviei o olhar para os montões de toalhas e lençóis que Chris tinha espalhado sobre os jornais para recolher o sangue.

            — Não posso conter a hemorragia — disse Chris preocupado. — Temo que o bebê possa sugar um pouco de sangue. — Deu-me uma olhada. — Cathy, ponha este par de luvas de borracha e usa as pinças que há em minha maleta para mergulhar esses instrumentos na água fervendo. Dar-me-á isso à medida que vá necessitando e lhe peça.

           Assenti, aterrada se por acaso não recordasse os nomes dos instrumentos.

           — Fique acordada, Melodie — repetia Chris. — Necessito sua ajuda. — Esbofeteou-a ligeiramente. — Cathy, empapa um pano em água fria e fica passando pela cara dela para reanimá-la e ver se pode ajudar o bebê a empurrar para fora.

           O pano frio sobre a fronte despertou a moça para uma realidade cheia de dor. Em seguida começou a gritar e tratou de afastar Chris com um empurrão e a cobrir-se com as roupas da cama.

           — Não lute comigo — disse Chris. — Seu bebê já quase está aqui, Melodie, mas você tem que empurrar e respirar fundo, e eu não posso ver o que faço se você se cobre.

           Gritando ainda de um modo espasmódico e convulsivo, Melodie tentou obedecer a Chris. O suor lhe corria pelo rosto e lhe umedecia o cabelo e o peito. Sua camisola, levantada até a cintura, logo estava empapada.

           — Ajuda-a, Cathy — apressou Chris, dirigindo o que eu acreditava eram fórceps.

            Pus as mãos onde ele me indicou e apertei.

           — Por favor, querida — sussurrei quando Melodie deixou de gritar o bastante para poder me ouvir — deve colaborar. Neste momento seu bebê está lutando por sobreviver e sair fora.

           Seus olhos, enlouquecidos pela dor e o medo, lutaram por enfocar a realidade.

           — Estou morrendo! — exclamou antes de fechar com força os olhos; respirou profundamente e depois apertou com mais firmeza.

           — Está agindo muito bem, Melodie — animou Chris. — Agora outro empurrão forte e poderei ver a cabeça de seu bebê.

           Suando, agarrando-se a minhas mãos e fechando os olhos com mais força ainda, Melodie fez um último esforço.

           — Bem, está indo muito bem! Já vejo a cabeça do bebê — disse Chris com tom feliz, me lançando um olhar de orgulho.

           Naquele momento, a cabeça de Melodie caiu para um lado e seus olhos se fecharam. Deprimiu-se de novo.

           — Não importa — disse Chris, jogando um olhar para sua cara. — realizou um bom trabalho e agora me toca atuar. Ela já fez o pior e pode descansar. Acreditei que teria que utilizar os fórceps, mas não será necessário.

            Com movimentos seguros, Chris deslizou com infinito cuidado a mão dentro do canal de nascimento e, de algum jeito, extraiu um pequeno bebê, que me entregou. Sustentei o diminuto, escorregadio e avermelhado bebê, contemplando com assombro o filho do Jory.

           Oh, que perfeita era aquela miniatura de menininho que agitava seus punhos no ar e esperneava com seus incríveis pezinhos. Contraía seu rosto, do tamanho de uma maçã, preparando-se para lançar um uivo enquanto Chris atava e cortava o cordão umbilical. Embargou-me uma emoção que me produziu calafrios e estremeci dos pés à cabeça. Da união de meu filho com sua esposa tinha nascido esse netinho perfeito que já se tornara dono do meu coração, inclusive antes de chorar. Com lágrimas nos olhos e meu coração pulsando feliz pelo Jory, que se sentiria tão contente, elevei o olhar e vi Chris, que estava extraindo de Melodie o que devia ser a placenta.

           De novo contemplei o bebê chorão, do tamanho de uma boneca, que parecia pesar menos de dois quilogramas; uma criatura nascida da paixão e a beleza do mundo do balé, nascida da música que devia ter sido tocada no momento de sua concepção. Apertei o menino contra meu coração, pensando que era o melhor milagre de Deus, mais bonito que uma árvore, mais duradouro que uma rosa; um ser humano nascido à Sua semelhança. Por minhas bochechas escorregaram as lágrimas, pois igual ao Filho de Deus, o bebê tinha nascido quase o dia de Natal. Meu neto!

            — Chris, é tão pequeno. Viverá?

           — É obvio — respondeu, absorto, enquanto continuava atendendo Melodie, franzindo o sobrecenho com perplexidade. — Por que não utiliza a balança e o pesa? E depois, se achar melhor, banha-o em água morna. Começará a sentir-se muito melhor. Utiliza a solução que preparei e coloquei em uma terrina azul para limpar-lhe os olhos e a solução da terrina rosa para lhe lavar a boca e as orelhas. Por aqui deve haver fraldas e mantas para envolvê-lo. Precisa estar aquecido.

           — Em sua mala — exclamei. Corri até o quarto de banho contíguo com o pequeno sobre meu braço dobrado e comecei a encher um recipiente de plástico rosa. — Faz semanas que Melodie tem preparadas e prontas as coisas do bebê.

            Eu estava excitada, exultante, e um pouco arrependida por não ter ido até Jory para lhe dar a oportunidade de ver nascer seu filho. Suspirei então, pensando que certamente seria seu único filho. Havia muito poucas possibilidades de que pudesse procriar outro. Que afortunado era por ter sido abençoado com aquele pequeno menino!

           O bebê era muito frágil. Uma penugem loira dava à parte superior de sua cabecinha um suave halo. Suas mãos e pés diminutos se agitavam no ar frio. Sua boca era como um casulo de rosa que se movia com gestos de sucção enquanto o pequeno tentava abrir uns olhos que pareciam estar grudados. Apesar de toda a sujeira do parto espalhada por sua pele avermelhada, meu coração estava transbordante daquela criatura. Era um bonito bebê, um querido e doce menininho que faria feliz a meu filho Jory. Eu ansiava ver a cor de seus olhos, mas os tinha hermeticamente fechados.

            Estava tão nervosa que dava a impressão de que nunca tivesse tido um recém-nascido próprio. Em certo modo, assim era, porque assim que nasceram meus dois filhos, cumpridos já os nove meses de gravidez, umas enfermeiras experimentadas tomaram conta deles.

           — Agasalha-o bem — me recordou Chris do outro quarto. — Te assegure de passar o dedo pelo interior de sua boca para tirar qualquer coágulo de sangue ou mucosa que possa haver. Os recém-nascidos correm o perigo de afogar-se com o que houver dentro de suas bocas.

           O bebê chorava com força pela perda do quente fluido familiar do seio onde tinha estado até esse momento, mas, logo que o mergulhei com suavidade na água morna, deixou de chorar e pareceu dormir. Aquele pequeno era tão novo, parecia tão acanhado que dava pena o incomodar como eu fazia. Mesmo dormindo, suas diminutas mãos, como de boneco, afastavam-se procurando a sua mãe e seus peitos. Seu diminuto pênis estava tenso enquanto eu vertia água morna sobre seus genitais. Então, para meu assombro, ouvi outro choro infantil!

           Envolvi rapidamente a meu netinho já limpo em uma grossa toalha branca e entrei depressa no dormitório para encontrar um segundo bebê.

           Chris ergueu o olhar com uma expressão estranha.

            — Uma menina — disse gentil. — Cabelo loiro, olhos azuis. Eu mesmo falei com o ginecologista e não comentou ter escutado dois corações. Algumas vezes isso acontece porque um bebê está situado atrás do outro... mas é muito estranho que nenhuma só vez... —interrompeu-se e depois continuou. — Os gêmeos tendem a ser menores que outros bebês e seu tamanho menor, somado ao peso do segundo que empurra, colabora a que o primeiro saia mais rapidamente que em um parto normal. Melodie teve sorte esta vez.

           — Oh... — sussurrei tomando a garotinha em meu braço livre para contemplá-la. Imediatamente soube quem eram. Carrie e Cory nascidos outra vez! — Chris, que maravilha! — exclamei, ditosa. Depois me entristeci pensando em meus amados gêmeos, mortos fazia tanto tempo. Entretanto, os seguia vendo com a mente, correndo pelo jardim traseiro de Gladstone ou jogando pelo lastimoso jardim do sótão, com flores e fauna de papel. — Os mesmos gêmeos, renascidos à vida.

           Chris elevou o olhar, com as luvas que cobriam suas mãos ensangüentadas.

           — Não, Cathy — declarou firme — não são renascidos. Estes não são os mesmos gêmeos que nasceram de novo. Recorda que então Carrie nasceu primeiro; esta vez o menino saiu antes. Estes não são um par de meninos desafortunados, porque ambos terão só o melhor. Agora, por favor, quer deixar de ser tonta e se dedicar a seus afazeres? A pequena também necessita um banho. E ponha fraldas no menino antes que espalhe porcaria por toda parte.

           Segurar aqueles escorregadios bebês não resultava fácil. Entretanto, soube arrumar isso, afligida pela felicidade. Apesar do que Chris havia dito, eu sabia bem os quais eram esses dois gêmeos: Cory e Carrie, renascidos para gozar da vida maravilhosa que lhes correspondia; a vida feliz que lhes tinha sido negada pela avareza e o egoísmo.

            — Não se preocupem — murmurei enquanto beijava suas pequenas bochechas vermelhas e suas mãos e pés diminutos. — Sua avó se encarregará de que sejam felizes. Não importa o que tenha que fazer, vocês dois desfrutarão de tudo o que Cory e Carrie não tiveram.

           Olhei para o dormitório, onde Melodie jazia esgotada, reanimando-se já de seu desmaio.

           Chris entrou no quarto de banho para pegar os dois bebês e me disse que acreditava que Melodie agradeceria uma agradável limpeza com a esponja. Enviou-me a atender à nova mãe enquanto ele realizava um novo exame mais completo nos meninos.

            Quando lavava Melodie e lhe punha uma camisola limpa de cor rosa, despertou e me olhou com olhos indiferentes, desinteressados.

            — Já terminou? — perguntou com um tom mal-humorado.

            Agarrei a escova do cabelo e comecei a desenredar seu cabelo úmido.

           — Sim, carinho, terminou. Já deste a luz.

           — O que é? Um menino? — Em seus olhos brilhava de repente um brilho de esperança, pela primeira vez desde fazia muito tempo.

           — Sim, carinho, um menino... e uma garota. Acaba de ter dois bonitos e perfeitos gêmeos.

            Seus olhos aumentaram, escuros, cheios de tanta ansiedade que parecia a ponto de deprimir-se outra vez.

           — São perfeitos — exclamei — com tudo o que se supõe têm que possuir.

           Ficou me olhando sem pestanejar, até que corri para lhe mostrar os gêmeos. Olhou-os com o maior assombro e sorriu fracamente.

           — Oh, são graciosos..., mas eu acreditava que seriam morenos, como Jory.

           Pus os dois bebês em seus braços e os contemplou como se tudo fosse irreal.

           — Dois — murmurava uma e outra vez — dois! — Fixou o olhar em um ponto indefinido do espaço. — Dois. Eu estava acostumada a dizer ao Jory que só queria ter dois filhos. Eu queria um menino e uma garota... mas não gêmeos. Gêmeos! Não é justo, não é justo!

           Com ternura, alisei-lhe o cabelo para trás.

           — Querida, esta é a maneira em que Deus abençoa a ti e ao Jory. Deu-lhes a família completa que queriam e já não terá que passar mais por este transe. E recorda que não está sozinha; nós faremos todo o possível para te ajudar. Contrataremos babás, enfermeiras, o melhor. Nem você nem eles carecerão de nada.

           — Estou cansada, Cathy, tão cansada... Suponho que é melhor ter aos dois, um menino e uma garota, agora que Jory não pode procriar mais. Confio em que isto compensará o que ele perdeu.... e se sentirá feliz.

           Depois destas palavras, Melodie se apagou em um profundo sonho enquanto eu seguia lhe escovando o cabelo. Seu cabelo, sempre adorável, estava áspero, sem vida. Teria que lavá-lo com xampu antes que Jory a visse. Quando se encontrasse com sua mulher, veria de novo a encantadora moça com quem se casou. Porque eu conseguiria reunir esse casal, mesmo que fosse a última coisa que fizesse.

           Chris se aproximou de mim e tomou os gêmeos dos braços de Melodie.

           — Agora vai, Cathy. Melodie está esgotada e necessita um longo descanso. Amanhã terá tempo para lhe lavar o cabelo.

           — Acaso disse isso em voz alta? Só estava pensando nisso.

            Chris pôs-se a rir.

           — Só o tinha pensado, mas estava passando os dedos entre seus cabelos e em seus olhos os pensamentos resplandeciam com claridade. Já sei que, segundo você, o cabelo limpo é o remédio para todas as depressões.

           Depois de beijá-lo e abraçá-lo com força o deixei com Melodie e fui despertar meu filho. Jory voltou de seus sonhos, esfregou os olhos e me olhou com o canto do olho.

           — O que ocorre agora? Mais problemas?

           — Esta vez não se trata de nenhum problema, carinho. — Levantei-me e lhe dirigi um sorriso malicioso. Deve ter pensado que eu tinha perdido a razão, porque parecia perplexo quando se ergueu apoiando-se nos cotovelos. — Tenho uns presentes de Natal para ti, Jory, embora venham com atraso, meu querido.

            Sacudiu a cabeça.

            — Mamãe, esse presente não teria podido esperar até manhã?

           — Não, este precisamente não. É pai, Jory! — Pus-se a rir e o abracei. — Oh, Jory, Deus é bondoso! Recorda que quando você e Melodie planejavam uma família, disse que queria dois filhos, primeiro um menino e depois uma garota? Bom, pois como um presente especial, chegado diretamente do céu, é pai de gêmeos! Um menino e uma garota!

           As lágrimas alagaram seus olhos. Balbuciou sua primeira preocupação.

           — Como está Mel?

           — Chris está com ela agora, cuidando dela. Sabe? Melodie ficou com dores desde as primeiras horas de ontem e não disse nenhuma palavra.

           — Por que? — lamentou-se, cobrindo-a cara com as mãos. — Por que, se papai esteve aqui todo o tempo e teria podido ajudá-la?

           — Não sei, filho, mas não pensemos mais nisso. Melodie ficará bem, muito bem. Chris diz que nem sequer precisará ir ao hospital, embora queira levar ali os bebês para uma verificação. Esses bebês tão pequenos requerem mais cuidados que os que nascem com o tempo completo. Também disse que seria conveniente que Melodie fosse examinada por um ginecologista. Teve que praticar um corte, "episiotomia", chamou-o Chris. Sem a cirurgia, Melodie se teria machucado. Costurou-a bem, mas lhe doerá até que caiam os pontos. Sem dúvida, Chris levará ao hospital os bebês e Melodie no mesmo dia.

           — Deus é bondoso, mamãe — murmurou Jory com voz rouca, enxugando as lágrimas enquanto tentava sorrir. — Não posso esperar para vê-los. Mas demorarei muito em me levantar e ir lá; não me poderia trazê-los aqui?

           Primeiro teve que sentar-se antes de estar pronto para receber os gêmeos em seus braços. Quando saía para ir procurar os pequenos, voltei-me para olhar da soleira e pensei que nunca tinha visto um homem mais feliz.

           Durante minha ausência, Chris tinha feito uns berços com duas gavetas abertas e forradas com mantas suaves. Imediatamente se interessou em saber como tinha reagido Jory ante a notícia e sorriu ao ouvir como estava encantado. Deixou os dois bebês em meus braços com ternura.

           — Caminha com muito cuidado, meu amor — sussurrou antes de me beijar.

            Apressei-me a voltar junto a meu filho mais velho com seus primogênitos. Jory os recebeu como tenros pressente dos quais sempre devia cuidar, olhando com orgulho e amor os meninos que ele tinha procriado.

           — Parecem-se com o Cory e Carrie — disse com suavidade, na cálida penumbra de seu quarto. — São tão bonitos, embora sejam tão pequenos. Pensaste em algum nome?

           Jory se ruborizou e continuou admirando aos bebês que tinha nos braços.

           — Claro, já tenho alguns nomes, embora Mel nunca mencionasse a possibilidade de que fossem gêmeos. Isto compensa tantas coisas... — Elevou o olhar, com os olhos resplandecentes de esperança. — Mamãe, você dizia que Mel mudaria quando nascesse o bebê. Não tenho paciência para esperar o momento de vê-la; o momento de tê-la outra vez entre meus braços. — Fez uma pausa; ruborizou-se. — Bom, pelo menos poderíamos dormir juntos, embora não haja nada mais.

           — Jory, encontrará meios...

           Prosseguiu como se não me tivesse ouvido.

            — Construímos nossas vidas ao redor de um único plano, pensando que dançaríamos até que eu tivesse quarenta anos. Então ambos nos dedicaríamos ao ensino ou à coreografia. Não contamos com a possibilidade de um acidente ou uma desgraça repentina, como tampouco o fizeram seus pais. O certo é que acredito que minha mulher suportou bastante bem.

            Jory estava se mostrando bondoso, mais que bondoso! Melodie tinha sido a amante de seu irmão, algo que possivelmente Jory se negava a acreditar. Ou talvez tenha compreendido a debilidade dela e já tivesse perdoado não só Melodie, mas também Bart. Ligeiramente contrariado, Jory deixou que eu levasse os gêmeos.

           Já no quarto de Melodie, Chris disse:

           — Vou levar Melodie e os gêmeos ao hospital. Voltarei logo que me seja possível. Eu gostaria que outro médico examinasse Melodie e, é obvio, os gêmeos têm que ficar instalados em incubadoras até que pesem dois quilogramas duzentos e sessenta e oito gramas. O menino pesa um quilograma, setecentos e vinte e oito gramas e a garota um quilograma, quinhentos e cinqüenta e cinco gramas; mas são uns bebês muito sãos, apesar de seu pouco peso. Em seu coração aceitará estes novos gêmeos e os amará tanto como amou ao Cory e à Carrie.

           Como sabia Chris que cada vez que eu olhava para aqueles pequenos acudiam visões de "nossos" gêmeos para me atormentar?

           Jory estava na mesa do café da manhã, exultante, sentado junto ao Bart, quando entrei em nossa ensolarada sala reservada para manhãs especiais. Os pratos, de um vermelho brilhante, estavam dispostos sobre uma toalha branca e, como peça central, havia uma terrina com acebo recém cortado. Em toda parte havia flores vermelhas e brancas.

           — Bom dia, mamãe — me saudou Jory, me olhando aos olhos. — Hoje sou um homem muito feliz. Esperei para comunicar minhas notícias ao Bart até que você e Cindy chegassem.

           Na boca do Jory brincavam felizes sorrisinhos. Seus olhos brilhantes me rogavam que não me zangasse e quando Cindy entrou, vacilante, sonolenta e com aspecto desalinhado, Jory anunciou orgulhoso que era pai de gêmeos, um menino e uma menina aos quais ele e Melodie tinham decidido chamar Darren e Deidre.

           — Em outro tempo houve uns gêmeos cujos nomes começavam pela letra "C". Seguimos um pouco o precedente, mas avançamos no alfabeto.

           A expressão do rosto do Bart era de inveja e de desprezo também.

           — Gêmeos; um problema duplicado. Pobre Melodie, não é de sentir estranhar que ficasse tão enorme. É uma pena... Como se não tivesse suficientes problemas.

           Em troca, Cindy lançou um gritinho de alegria.

           — Gêmeos? De verdade? Que maravilha! Posso vê-los agora? Posso segurá-los?

           Jory estava ainda zangado pela cruel observação do Bart.

           — Não me despreze, Bart, só porque estou em má situação. Mel e eu não temos nenhum problema que não se possa resolver..., quando nós tivermos partido deste lugar.

           Bart se levantou e deixou seu café da manhã na mesa. Jory e Melodie iam partir levando os gêmeos consigo? Senti-me desfalecer. Minhas mãos se retorciam nervosas em meu regaço.

           Não vi a mão que agarrava as minhas e me apertava os dedos.

           — Mamãe, não te entristeça. Nós nunca afastaremos nem a ti nem a papai de nossas vidas. Lá aonde vão, ali iremos. Mas não podemos continuar aqui se Bart não começar a comportar-se de outra maneira. Quando precisar ver seus netos, só terá que gritar ou sussurrar.

           Pouco antes das dez, Chris retornou à casa com Melodie, que foi levada para a cama imediatamente.

           — Agora está bem, Jory. Teria preferido que tivesse permanecido no hospital durante uns dias, mas armou tanta confusão que a trouxe de volta. Deixei os gêmeos instalados em incubadoras diferentes até que ganhem peso.

           Chris se inclinou para me beijar na bochecha e depois sorriu amplamente.

           — Vê? Cathy, já te disse que tudo sairia bem. E eu gosto dos nomes que Melodie e você escolheram, Jory. São uns nomes realmente bonitos.

            Em seguida subi a levar uma bandeja para Melodie, que tinha se levantado e se achava ante a janela, olhando a neve. Começou a falar em seguida.

           — Estava pensando em quando era menina e quanto desejava ver a neve — disse com frouxidão, como se os bebês fora de sua vista estivessem também fora de sua mente. —Sempre desejei um Natal branco longe de Nova Iorque e, agora que o tenho, não pode me satisfazer. Não há magia alguma capaz de devolver ao Jory o uso de suas pernas.

           Melodie falava de uma maneira estranha, sonolenta, que me assustava.

           — Como me arrumarei com dois bebês? Um de cada vez é o que eu esperava. E Jory não vai ajudar-me em nada...

           — Não te disse que nós ajudaríamos? — interrompi, um pouco irritada, pois parecia que Melodie estava empenhada em compadecer-se de si mesma.

            Então compreendi: Bart estava na soleira da porta aberta. Sua cara séria não mostrava expressão alguma.

           — Felicidades, Melodie — disse com calma. — Cindy me fez levá-la ao hospital para ver seus gêmeos. São muito... muito... — vacilou e concluiu: — pequenos. — E se afastou. Melodie ficou olhando vagamente o lugar onde Bart tinha estado.

           Mais tarde Chris levou Jory, Cindy e a mim ao hospital para ver novamente os gêmeos. Melodie ficou na cama, profundamente adormecida e com aspecto esgotado. Cindy jogou outra olhada aos pequenos bebês metidos em urnas de vidro de cristal.

           — Oh, não é verdade que são adoráveis, Jory? Que orgulhoso deve estar! Vou ser a melhor tia, espera e verá. Morro de impaciência por tê-los em meus braços. — Cindy estava detrás da cadeira de rodas do Jory, inclinando-se para abraçá-lo. — Foste sempre um irmão tão especial... Muito obrigado por isso.

           Quando retornamos para casa, Melodie perguntou fracamente por seus filhos, para dormir outra vez assim que soube que estavam bem. O dia prosseguiu sem convidados inesperados, amigos que felicitassem Jory por ser pai. Que solitários estávamos na montanha!

 

AS SOMBRAS SE DESVANECEM

            Os dias tristes do inverno passaram, carregados de milhares de detalhes corriqueiros. Na noite de fim de ano tínhamos assistido a uma festa, acompanhados pela Cindy e Jory. Cindy, no fim, teve oportunidade de conhecer jovens da zona, entre os quais obteve um grande êxito. Bart declinou do convite, pensando que se divertiria mais em um clube exclusivo para homens de que era sócio.

           — Não é um clube exclusivo para homens — sussurrou Cindy, que acreditava ter todas as respostas. — Irá a alguma casa alegre.

           — Jamais volte a dizer nada semelhante! — briguei com ela. — O que Bart faça é coisa dele. Onde ouve essas falações?

            Naquela festa de véspera de ano novo se encontravam algumas das pessoas às quais Bart tinha convidado para sua festa e não demorei para me dedicar a indagar, com tato, se eles tinham recebido o convite do Bart. "Não" respondiam todos, embora olhassem atentamente ao Chris e a mim, e depois para Jory em sua cadeira de rodas, como se silenciassem pensamentos secretos que nunca declarariam.

            — Mãe, não te acredito — replicou Bart com extrema frieza quando lhe expliquei que os convidados a quem encontrei não tinham recebido seu cartão. — Você odeia Joel; só vê nele o Malcolm e, portanto, quer minar minha fé nesse ancião bom e piedoso. Joel jurou que enviou os convites e eu acredito.

           — E em mim, não acreditas?

           Encolheu os ombros.

           — Essa gente é, às vezes, enganosa. Possivelmente aqueles com quem falou ontem só fizeram foi mostrarem-se corteses.

           Cindy nos deixou para ir à universidade em 2 de janeiro, ansiosa por escapar do aborrecimento, que ela considerava inferno na terra. Terminaria o curso universitário naquela primavera e não tinha intenções de prosseguir seus estudos apesar de que Chris tinha tentado convencê-la.

           — Mesmo uma atriz necessita cultura.

            Mas não tinha adiantado. Nossa Cindy era tão teimosa como tinha sido Carrie.

            Melodie estava silenciosa, melancólica, e tão aborrecida que todos evitavam tê-la perto. Se ressentia por ter que cuidar dos bebês que eu tinha pensado que lhe proporcionariam tanto prazer e ocupariam seu tempo. Logo tivemos que contratar uma babá. Melodie, além disso, não ajudava Jory, de modo que eu realizava por ele o que ele não podia fazer por si mesmo.

            Chris continuava com seu trabalho, que o mantinha feliz e afastado de mim até as sextas-feiras às quatro, quando chegava à porta, igual a papai, que retornava para nós às sextas-feiras. O ciclo se repetia. Chris vivia seu próprio mundo laborioso; nós, na montanha, o nosso. Chris ia e vinha. Parecia fresco, alegre, crédulo e muito contente por passar conosco os fins-de-semana. Deixava os problemas de um lado, como se fossem refugos não merecedores de atenção.

           Nós, no Foxworth Hall, nunca íamos a nenhuma parte desde que Jory tinha optado por não sair da segurança de seus maravilhosos aposentos.

           Logo chegaria o trigésimo aniversário do nascimento de Jory. Teria que preparar algo especial. Então me ocorreu convidar a todos os membros de sua companhia de balé de Nova Iorque para que assistissem a sua festa. Mas, lógicamente, primeiro teria que discuti-lo com o Bart.

           Bart fez girar sua poltrona se afastando do computador.

           — Não! Não quero um grupo de bailarinos em minha casa! Nunca mais celebrarei uma festa, nem esbanjarei meu dinheiro em gente a que nem tão sequer desejo conhecer. Organiza outra coisa para ele, mas não convide essa gente.

           — Mas, Bart, uma vez te ouvi dizer que você gostaria que uma companhia de balé atuasse em suas festas.

           — Agora não. Mudei que opinião. Além disso, nunca aprovei realmente os bailarinos. Nunca os aprovei e nunca os aprovarei. Esta é a casa do Senhor... e na próxima primavera edificaremos um templo de adoração para celebrar seu domínio sobre todos nós.

           — O que quer dizer? Que se edificará um templo?

           Fez uma careta antes de voltar a dedicar sua atenção ao computador.

           — Uma capela; tão perto que não poderá evitá-la, mãe. Não será agradável? Cada domingo nos levantaremos cedo para assistir aos serviços. Todos nós.

           — E quem estará no púlpito para pronunciar os sermões? Você?

           — Não, mãe, eu não. Ainda não estou limpo de pecados. Meu tio será o ministro. É um homem santo, justo.

           — Chris e nós gostamos de nos levantar tarde os domingos pela manhã — disse, apesar de minha boa-vontade por mantê-lo sempre aplacado. — Nos agrada tomar o café da manhã na cama e no verão, o terraço do dormitório é o lugar ideal para iniciar um dia feliz. Quanto a Jory e Melodie, deveria discutir com eles este tema.

           — Já o fiz. Farão o que eu disser.

           — Bart, o aniversário do Jory será no dia quatorze. Recorda, nasceu no dia de São Valentín.

            Bart me olhou de novo.

           — Não é estranho, mas sim significativo que os bebês de nossa família nasçam freqüentemente em datas importantes ou muito perto delas? O tio Joel considera que significa algo, algo especial, ofensivo.

           — Sem dúvida! — repliquei com calor. — O querido Joel acredita que tudo é significativo e ofensivo aos olhos de seu Deus. É como se não só possuísse a Deus, mas também o controlasse. — Voltei-me para enfrentar o Joel, que nunca estava a mais de três metros de distância do Bart. Alterei-me porque, por alguma razão, Joel me assustou. — Deixa de incutir em meu filho essas idéias dementes, Joel!

           — Não tenho por que lhe incutir esse tipo de idéias, querida sobrinha. Você modelou seu cérebro muito antes que nascesse. Aquele bebê nasceu como fruto do ódio; necessariamente chega o anjo da salvação. Reflete sobre isto antes de me condenar.

           Uma manhã, os titulares do periódico local informaram que uma família importante a que minha mãe estava acostumada a mencionar com freqüência se arruinou. Li os detalhes, larguei o periódico e fiquei pensativa. Teria Bart algo que ver com o súbito desaparecimento da fortuna daquele homem? Era um dos convidados que não foi à festa.

           Outro dia, publicou-se que um homem tinha assassinado a sua esposa e seus dois filhos porque tinha investido a maior parte de suas economias em certas mercadorias comerciais e o trigo tinha baixado drasticamente de preço. Assim desaparecia outro dos inimigos do Bart, convidado um dia para aquele desafortunado baile de Natal. Mas se minhas suspeitas eram certas, como podia Bart manipular os mercados, as quebras?

           — Nada sei disso! — respondeu furioso quando lhe perguntei. — Essa gente cavou suas próprias tumbas com sua avareza. Quem pensa que sou eu? Deus? Dissestes um montão de tolices na noite de Natal, mas não estou tão louco como você pensa. Não tenho nenhuma intenção de pôr em perigo minha alma. Os parvos sempre conseguem dar seus próprios tropeços.

           Celebramos o aniversário do Jory com uma festa familiar; Cindy viajou de avião para passar conosco dois dias; feliz por festejar com o Jory. Nas malas trazia um montão de presentes que deviam mantê-lo ocupado.

           — Quando encontrar um homem como você, Jory, vou agarrar o a toda pressa! Ainda estou esperando comprovar se algum outro homem é a metade de maravilhoso que você é. Até o momento, Lance Spalding não demonstrou ser nem a metade de homem do que você é.

            — E como pode você saber isso? — disse Jory brincando, já que ignorava os detalhes da repentina partida de Lance.

           Dirigiu à sua esposa um severo olhar enquanto ela sustentava Darren e eu Deidre. Ambas estávamos lhes dando a mamadeira, sentadas ante o agradável fogo da lareira. Os bebês nos proporcionavam todos os motivos para esperar um futuro promissor. Acredito que Bart estava fascinado pela rapidez com que cresciam e o doces e quentes que pareciam nas poucas ocasiões em que os teve entre seus braços durante uns poucos segundos. Inclusive, me parecia, com certo orgulho.

           Melodie deixou Darren em um grande berço que Chris tinha comprado em uma loja de antiguidades e tinha restaurado de modo que quase parecia novo. Com um pé balancei o bebê, lançando um olhar irado para Bart antes de ficar contemplando o fogo. Melodie falava em muito raras ocasiões e não mostrava um autêntico interesse por seus filhos. Tampouco manifestava interesse por nenhum de nós, nem por nada do que fazíamos.

           Jory comprava por correio presentes que chegavam quase diariamente para surpreendê-la. Ela abria cada caixa, sorria levemente e proferia um débil "obrigado". Algumas vezes nem sequer abria o pacote e agradecia Jory sem olhar para ele. Doía-me ver Jory franzir o sobrecenho ou baixar a cabeça para ocultar sua expressão. Meu filho o estava tentando... por que ela não podia tentar?

            À medida que transcorriam os dias, Melodie se retraía cada vez mais, não só de seu marido, mas também, com grande assombro de minha parte, de seus filhos.

            O amor de Melodie era indeciso, incapaz de assumir um compromisso forte; era como o fraco bater de asas de uma mariposa sobre a chama maternal de uma vela. Era eu quem me levantava no meio da noite para alimentá-los; era eu quem ia de um lado a outro para trocar duas fraldas ao mesmo tempo, quem descia correndo à cozinha para preparar as mamadeiras e quem os sustentava no ombro para que arrotassem. Acostumara com a mania de balançá-los até que dormiam e lhes cantava doces canções de ninar enquanto seus grandes olhos azuis me olhavam fixamente, fascinados, até que o sonho os turvava e com grande contrariedade fechavam os olhos. Com freqüência pareciam seguir escutando, a julgar por seus pequenos sorrisos de complacência. Enchia-me de gozo vê-los crescer e ver que cada dia se pareciam mais com Cory e Carrie.

           Embora vivéssemos isolados da sociedade, não ficamos alheios aos maliciosos rumores que os empregados traziam para casa das lojas locais. Freqüentemente, ouvi-os murmurar enquanto picavam cebolas e pimentões ou preparavam os bolos e outras sobremesas que todos gostavam. Sabia que nossas moças se entretinham muito nos corredores dos fundos e faziam nossas camas enquanto nós estávamos ainda em cima porque, ao acreditar que estávamos sozinhos, falávamos de muitos segredos com os quais eles alimentavam sua fofoca.

           Algumas das coisas sobre as quais eles especulavam, conjeturava eu também. Bart estava em casa em muito raras ocasiões, e às vezes me sentia agradecida por isso. Com o Bart ausente, não havia ninguém que propiciasse discussões; Joel permanecia em seu quarto e rezava ou assim acreditava eu pelo menos.

           Uma manhã decidi que possivelmente eu também devia utilizar os mesmos truques que os empregados e me entreter na cozinha... Quando o fiz, ouvi a cozinheira e as moças comentarem os rumores que corriam pelo povoado. Bart, segundo eles, mantinha relações amorosas com as damas mais bonitas e ricas da sociedade, sem lhe importar que algumas fossem casadas. Bart tinha destroçado já um matrimônio; precisamente o de um dos casais que estava na lista de convidados de Natal. Também, segundo o que ouvi, Bart visitava com freqüência um bordel que se achava a dezesseis quilômetros de distância, fora dos limites de qualquer cidade.

           Eu tinha provas de que algumas daquelas histórias podiam ser certas. Tinha-o visto com freqüência retornar à casa bêbado, com maneiras mais suaves, que me faziam desejar, por desgraça, que seguisse bêbado. Era nessas ocasiões quando Bart podia sorrir e rir com facilidade.

           Um dia lhe perguntei:

           — O que faz todas essas noites que está fora até tão tarde?

           Ria com malícia quando bebia muito; nesta ocasião também soltou uma risadinha.

           — O tio Joel diz que os melhores evangelistas foram os piores pecadores, diz que tem que rodar na sujeira do esgoto para saber o que é estar limpo e se salvar.

           — E é isso o que faz todas essas noites, te derrubar na sujeira do esgoto?

           — Sim, minha querida mãe, pois maldito seja se conhecer o que é me sentir limpo ou salvo.

           A primavera se aproximava com precaução, como um tímido passarinho. Os frios ventos tempestuosos se suavizaram dando lugar às cálidas brisas do sul. O céu adquiriu aquele tom de azul que me fazia sentir jovem e cheia de esperança. Saía com freqüência aos jardins para rastelar folhas e arrancar as ervas daninhas que os jardineiros tinham descuidado.

            Desejava ver brotar o açafrão no chão dos bosques, não tinha paciência para esperar o nascimento das tulipas e as margaridas e ver florescer o cornejo. Logo que podia parava para admirar as azaléias em qualquer parte, fazendo da minha vida uma terra esplêndida cheia de encantos para os gêmeos, para todos nós. Elevava a vista e contemplava a maravilha das árvores que nunca pareciam tristes nem solitários. A natureza..., quanto poderíamos aprender com ela se quiséssemos!

           Acompanhava Jory tão longe quanto ele pudesse conduzir sua cadeira, cujas enormes rodas subiam a maioria dos aclives suaves.

           — Temos que encontrar um meio melhor para que possa te internar nos bosques — disse, pensativa. — Se colocássemos lajes por toda parte, seria muito bonito, mas após as geadas do inverno poderiam se sobressair e derrubar a cadeira. Embora eu deteste o cimento, teremos que usá-lo; isso ou alcatrão. Parece-me que prefiro o alcatrão; você o que opina?

           Jory ria ante minha simplicidade.

           — Tijolos vermelhos, mamãe. Os passeios com tijolos vermelhos são pitorescos. Além disso, esta minha cadeira é uma autêntica maravilha. — Olhou ao redor, sorrindo alegre, e depois jogou a cabeça para trás para que o sol lhe batesse no rosto e o esquentasse. —Meu único desejo é que Mel aceite o que me aconteceu e mostre mais interesse pelos gêmeos.

           Eu nada podia dizer, pois já tinha falado com Melodie sobre o tema mais de uma dúzia de vezes, e quanto mais eu falava, mais ressentimento ela mostrava.

            — Esta é minha vida, Cathy! — lamentava-se ela. — Minha vida... Não a tua! — Seu rosto era como uma máscara de fúria.

           O terapeuta do Jory lhe ensinou como baixar ao chão sem tanto esforço e como voltar a sentar-se em sua cadeira. Desse modo Jory podia me ajudar a plantar mais roseiras. Suas mãos fortes trabalhavam muito melhor que eu.

           Os jardineiros ensinaram Jory a podar os arbustos, fertilizar, colocar o esterco e o húmus ao redor das árvores para conservar a umidade e abrigar as raízes. Jory e eu convertemos a jardinagem, não tão somente em um passatempo, e sim em um estilo de vida que nos salvava da loucura. Ampliamos a estufa para poder cultivar flores exóticas e ali dentro desfrutávamos de um mundo próprio que podíamos controlar, transbordante de sua própria e silenciosa vitalidade. Mas não bastava para Jory, que decidiu dedicar-se à arte de uma ou outra maneira.

            — Papai não é o único desta família que pode pintar um céu nublado e te fazer sentir a umidade, ou colocar uma gota de orvalho em uma rosa grafite com tanto realismo que se pode cheirar — disse Jory com um amplo sorriso. — vou converter-me em um artista, mãe.

           Apesar de Melodie viver na mesma casa, Jory estava criando uma vida sem ela. Instalou uns suspensórios em sua cadeira de tal modo que se acomodassem a seus ombros para poder levar com ele aos gêmeos. Seu deleite ante os sorrisos dos pequenos quando o viam aproximar-se comovia meu coração; em troca fazia com que Melodie abandonasse bruscamente o quarto dos meninos.

           — Agora me querem, mamãe! Vê-se em seus olhos!

            Eles conheciam Jory melhor que a sua mãe. Dedicavam-lhe uns sorrisos vazios, possivelmente porque a expressão de Melodie era vazia e ausente quando os contemplava com fixidez.

            Sim, os gêmeos não somente amavam e sabiam quem era seu pai, mas também confiavam por completo nele. Quando Jory afastava as mãos para segurá-los, eles não pestanejavam temerosos de que os deixasse cair.

           Riam como se soubessem que nunca, nunca, permitiria que caíssem.

            Encontrei Melodie zangada em seu quarto. Estava realmente fraca; seu cabelo, tão bonito em outro tempo, esvaído e murcho.

            — Precisa-se tempo, Melodie, para desenvolver os instintos maternais — disse enquanto me sentava sem ter sido convidada e, portanto, importuna na aparência. — Permite que as criadas e eu cuidemos muito deles. Não lhe reconhecerão como mãe se te separar deles. O dia que ver como se acendem de alegria suas carinhas quando você entrar e lhe sorriem felizes ao ver-te, ao verem sua mãe, encontrará o amor que está procurando. Seu coração se derreterá. Suas necessidades lhe proporcionarão uma sorte que nada nem ninguém mais pode te dar e jamais sentirá para seus filhos nada mais que amor.

            Seu débil sorriso era amargo e logo se desvaneceu.

            — E quando me deste a oportunidade de ser mãe para meus filhos, Cathy? Quando me levanto de noite, você já está aí. Quando me apresento pelas manhãs você já os banhou e vestiu. Esses meninos não necessitam uma mãe se já dispuserem de uma avó como você.

           Fiquei assombrada por seu injusto ataque. Com freqüência eu tinha ouvido, em minha cama, o pranto dos gêmeos, que choravam e choravam até que tinha que me levantar para atender suas necessidades, atormentada depois de ter esperado em vão que Melodie se aproximasse deles. O que queria que fizesse? Devia fazer caso omisso do seu pranto? Tinha-lhe dado tempo suficiente. Seu quarto estava no outro lado do corredor, frente ao de seus filhos, enquanto que o meu se achava em outra ala da casa.

            Pareceu que Melodie tinha adivinhado meus pensamentos, pois sua voz soou quase como o assobio de uma serpente venenosa.

           — Sempre tem que te sair com a tua verdade, sogra? Sempre acertas para conseguir o que quer. Mas há algo que nunca conseguirá e é o amor e o respeito do Bart. Quando ele me amava e não duvide de que me amou em outro tempo, disse-me que te odiava, que te desprezava de verdade. Senti lástima dele então e mais lástima ainda de ti. Mas agora entendo por que Bart te detesta. Com uma mãe como você, Jory não necessita de uma esposa como eu!

           O dia seguinte era quinta-feira. Sentia uma grande pena ao pensar em todas as palavras desagradáveis que Melodie tinha proferido no dia anterior. Suspirei, levantei-me e me sentei na borda da cama para deslizar meus pés nas sapatilhas de cetim. Esperava-nos uma jornada muito ocupada, já que era o dia em que todos os empregados, exceto Trevor, estavam de folga. Às quintas-feiras eu era como mamãe, me preparando para a sexta-feira, quando me sentiria cheia de vida ao ver o homem a quem amava cruzar a porta.

            Jory estava soluçando quando entrei em seu quarto, levando os gêmeos recém lavados e trocados, em meus braços. Jory segurava nas mãos uma carta longa de cor creme.

           — Lê isto — balbuciou, deixando o papel junto à sua cadeira antes de estender as mãos para segurar seus filhos. Quando teve a ambos, inclinou a cara para apoiá-la primeiro no suave cabelo de seu filho e depois no de sua filha.

           Agarrei o papel; sempre levavam más notícias as cartas de cor creme procedentes do Foxworth Hall.

 

           Meu querido Jory:

           Sou uma covarde. Sempre o soube, mas esperava que nunca o descobrisse. Você foi sempre o que possuía a força. Amo-te e, sem dúvida, te amarei sempre, mas sou incapaz de viver com um homem que nunca mais poderá me fazer amor.

           Contemplo-te nessa horrível cadeira que acabaste por aceitar, quando eu nunca poderei aceitá-la, nem me resignar a aceitar sua invalidez. Seus pais vieram ao meu quarto e me enfrentaram, pressionaram-me para que fale contigo e te diga tudo o que sinto. Não me atrevo a fazê-lo, pois se o fizesse poderias dizer ou fazer algo que me fizesse mudar de opinião, e eu tenho que partir ou enlouquecerei.

           Meu amor, sinto-me triste nesta casa, esta horrível e odiosa casa, com toda sua enganosa beleza. Quando estou estendida em minha cama solitária, sonho com o balé e ouço a música, embora não esteja soando. Tenho que voltar lá onde possa ouvi-la e se for mau e for egoísta, e sei que é, me perdoe, se puder.

           Conte coisas amáveis de mim a nossos filhos quando tiverem idade suficiente para formular perguntas sobre sua mãe. Diga palavras bonitas embora não sejam certas, pois sei que falhei a ti tanto como a eles. Dei-te suficientes motivos para que me odeie, mas, por favor, não me recorde assim. Me recorde como estava acostumada a ser quando, mais jovens, tínhamos o controle de nossas vidas.

           Não te culpe nem culpe a ninguém por minha partida. Eu sou a responsável. Sabe? Não sou realista, nunca o fui e nunca o serei. Não posso enfrentar uma realidade cruel que destrói vidas e deixa atrás sonhos desfeitos. E também recorda isto: sou a fantasia que você ajudou a criar, pelo seu próprio desejo e pelo meu.

           De modo que, adeus para sempre, meu amor, meu primeiro e mais doce amor e possivelmente, e isto o escrevo com tristeza, meu único amor verdadeiro. Procura alguém tão especial como sua mãe que possa ocupar meu posto. Foi ela quem te deu a capacidade para enfrentar a realidade, por dura que tenha sido.

           Deus teria sido bondoso se me tivesse concedido uma mãe como a tua.

           Infelizmente tua,

            MEL.

 

           A carta caiu de minha mão, revoando pateticamente para o tapete. Jory e eu ficamos olhando aquele papel no chão, tão triste e definitivo.

           — Terminou, mamãe — disse Jory, com uma voz profunda e grave em que imperava a calma. — O que começou quando eu tinha doze anos e ela onze, terminou. Construí minha vida ao redor dela, pensando que duraria até a velhice. Dava à Melodie o melhor que podia lhe oferecer, o que resultou insuficiente quando desapareceu o feitiço.

           Como podia eu dizer que Melodie não teria durado a seu lado mesmo ele tendo continuado dançando em um palco? Algo nela se ressentia da força de meu filho, de sua habilidade inata para confrontar situações que ela não podia aceitar.

           Sacudi a cabeça. Não. Não era justa.

            — Sinto muito, Jory, sinto muitíssimo. — Não me atrevi a dizer: "Possivelmente estará melhor sem ela."

           — Também eu sinto — murmurou ele, evitando meu olhar. — Que mulher pode me querer agora?

           Jory possivelmente nunca voltaria a desfrutar de uma atividade sexual normal, e eu sabia que ele necessitava de alguém na cama durante aquelas noites longas e solitárias. Cada manhã lia em seu rosto que as noites eram a pior parte de sua vida, pois lhe davam um sentimento de isolamento e o tornavam emocionalmente vulnerável. Jory era como eu, que necessitava braços seguros que me sustentassem durante a noite e beijos que me cobrissem como um guarda-sol seguro de amor.

           — A madrugada passada ouvi assoviar o vento — me explicou Jory enquanto os gêmeos, sentados em suas cadeirinhas altas, sujavam a cara com o cereal pastoso e quente. — Despertei. Acreditei ouvir a respiração do Melodie a meu lado, mas não havia ninguém. Vi os pássaros, cheios de alegria, construir seus ninhos, ouvi-os piar, saudando o novo dia e então reparei na carta. Sabia, sem lê-la, o que ali tinha escrito, e continuei pensando nos pássaros, e suas canções de amor se converteram para mim nesse momento só em reivindicações territoriais. — Sua voz se quebrou enquanto baixava a cabeça para ocultar seu rosto. — Ouvi dizer que os cisnes, uma vez que se acasalam, não trocam nunca de companheiro; eu sigo vendo Melodie como o cisne leal para sempre, sejam quais forem as circunstâncias.

            — Carinho, sei, sei — lhe acalmava eu, acariciando-lhe os cachos escuros. — Mas o amor pode chegar de novo; te aferre a essa esperança... e não está sozinho.

           Jory assentiu, dizendo:

           — Obrigado por estar sempre aqui, quando necessito. Obrigado também a papai...

           Bruscamente, sentindo que ia começar a chorar, rodeei-o com meus braços.

           — Jory, Melodie partiu, mas te deixou um filho e uma filha; deve te sentir agradecido por isso. Agora que sua esposa te abandonou, eles são mais teus que nunca. Não abandonou só a ti, também a seus filhos. Pode se divorciar dela e aproveitar sua fortaleza para transmitir a seus filhos seu valor e decisão. Seguirá adiante sem ela, Jory, e enquanto necessitar sabe que pode contar com o apoio de seus pais.

           Eu não deixava de pensar que Melodie tinha sido descuidada de maneira deliberada a seus próprios filhos para fazer mais fácil a ruptura; não se tinha permitido amá-los, nem lhes tinha permitido que a amassem. Seu presente de despedida para seu amado da infância eram aqueles filhos.

           Jory enxugou as lágrimas e tratou de esboçar um sorriso. Quando o conseguiu, estava carregada de ironia.

 

O VERÃO DA CINDY

           De repente, Bart começou a realizar muitas viagens de negócios. Partia de avião para retornar só uns poucos dias depois, dois ou três dias, como se temesse que fôssemos aproveitar sua ausência para fugir com sua fortuna. Ele mesmo dizia:

           — Tenho que estar a par de todos meus assuntos. Não posso confiar em ninguém mais que em mim.

           Foi uma casualidade que se achasse ausente o dia que Melodie abandonou Foxworth Hall deixando aquela triste carta na mesinha de cabeceira do Jory. Bart não se alterou quando, ao retornar à casa, encontrou vazia a cadeira de Melodie junto à mesa.

           — Outra vez lamentando-se em seu quarto? — perguntou indiferente, assinalando a cadeira.

           — Não, Bart — eu respondi ao me dar conta de que Jory recusava lhe responder. — Melodie decidiu reatar sua carreira e partiu após deixar uma carta ao Jory.

           Sua sobrancelha esquerda se arqueou cinicamente e depois olhou o seu irmão, mas não pronunciou nenhuma palavra para lamentar o ocorrido nem dedicou uma expressão de condolência ao seu irmão.

           Mais tarde, depois de que Jory subisse ao seu quarto, Bart entrou e ficou ao meu lado enquanto eu trocava as fraldas dos gêmeos.

           — É uma pena que eu estivesse em Nova Iorque nesse momento. Teria gostado de ver a expressão do Jory quando leu a carta. A propósito, onde está? Eu gostaria de ler como ela justificou sua partida.

           Fiquei olhando-o fixamente. Pela primeira vez me ocorreu que Melodie podia ter combinado encontrar-se com ele em Nova Iorque.

          — Não, Bart, nunca lerá essa carta e espero muito que não tenha nada que ver com a decisão de Melodie.

           Zangado, ficou com a cara vermelha.

           — Eu estava em uma viagem de negócios! Não tinha dirigido nem duas palavras à Melodie desde o Natal. Por isso, no que me concerne, que tenha uma boa viagem.

           Em alguns aspectos estava-se melhor sem Melodie, que sempre estava mal-humorada, escurecendo os aposentos com sua terrível depressão. Impus-me o costume de visitar Jory antes de ir dormir para agasalhá-lo, abrir a janela, apagar as luzes e comprovar que tivesse água ao seu alcance. Meu beijo em sua bochecha tentava ser um substituto do beijo de uma esposa.

           Só depois da partida do Melodie, descobri que ela tinha colaborado um pouco ao levantar-se cedo de vez em quando para assear e alimentar aos bebês. Inclusive tinha se incomodado em lhes trocar as fraldas algumas vezes ao dia. Freqüentemente Bart entrava no quarto dos meninos e, como atraído por um ímã, ficava olhando os pequenos gêmeos que tinham aprendido a sorrir e descoberto, com grande deleite, que aquelas coisas que se agitavam diante deles eram seus próprios pés e suas próprias mãozinhas. Erguiam-nas para agarrar os móbiles de pássaros coloridos e pegavam neles para levá-los a suas bocas.

           — São graciosos — comentou Bart pensativo, o que me agradou. — Inclusive me ajudou um pouco me entregando o óleo infantil e o talco. Por desgraça, precisamente quando os gêmeos pareciam haver ganho sua atenção, Joel entrou no quarto e fez um gesto depreciativo para os bonitos pequeninos e a amabilidade e simpatia que Bart estava demonstrando se desvaneceram por completo. Ficou de pé junto a mim com ar de culpa.

           O ancião dirigiu aos gêmeos um olhar rápido e severo, antes de desviar seus olhos ofendidos.

           — Igual aos primeiros gêmeos, os malignos — murmurou Joel. — O cabelo loiro e os olhos azuis... nada de bom sairá tampouco deste casal.

           — O que quer dizer? — exclamei, enfurecida. — Cory e Carrie nunca fizeram mal a ninguém! Foram eles quem sofreram o dano. E foram sua irmã, sua mãe e seu pai que lhes infligiram tanta dor, Joel. Nunca o esqueça!

           Joel respondeu com o silêncio. Depois saiu do quarto, arrastando Bart consigo.

           Em meados de junho, Cindy chegou de avião para passar conosco o verão. Esforçou-se denodadamente para arrumar seu quarto, pendurando seus próprios vestidos, que antes estava acostumada a deixar no chão. Ajudava-me a trocar os gêmeos e segurava as mamadeiras enquanto os balançava até que dormiam. Ficava grata em vê-la sentada na cadeira de balanço, com um bebê em cada braço, tratando de segurar as duas mamadeiras ao mesmo tempo, vestida com um pijama e deixando que suas bonitas pernas longas ficassem encolhidas debaixo de seu corpo. Ela mesma parecia uma menina. Tomava banho tão freqüentemente que eu pensava que acabaria por enrugar-se como uma ameixa passa.

           Uma noite voltou de seu luxuoso quarto de banho com um aspecto fresco e radiante, cheirando como uma flor exótica do jardim.

           — Eu gosto do crepúsculo — exclamou entusiasmada, dando voltas e mais voltas. — Eu adoro passear pelo bosque quando a lua brilha no céu.

           Daquela vez estávamos todos sentados no terraço, tomando bebidas. Bart aguçou o ouvido e perguntou com aspereza:

           — Quem te espera nos bosques?

           — Não “quem” querido irmão, a não ser “o que” — Voltou a cabeça para lhe sorrir inocentemente de um modo encantador. — Vou ser amável contigo, Bart, embora você se mostre tão desagradável comigo. Compreendi que não posso ganhar amigos, lançando observações grosseiras e ofensivas.

           Bart a olhou suspicaz.

           — Sigo acreditando que te encontra com algum moço no bosque.

           — Obrigado, irmão Bart, por desejar me castigar com suas desagradáveis suspeitas. Há um moço na Carolina do Sul por quem me apaixonei loucamente e é um amante da natureza. Ensinou-me a apreciar todo aquilo que o dinheiro não pode comprar. Adoro as saídas e o pôr do sol. Quando as lebres correm eu as sigo. Ele e eu apanhamos estranhos exemplares de mariposas, que ele conserva. Comemos nos bosques, banhamo-nos nos lagos. Posto que aqui não me permite ter um amigo, vou subir, sozinha, ao alto de uma colina e tentarei caminhar lentamente para baixo. Torna-se divertido desafiar a gravidade tratando de não correr sem fôlego e descontrolada.

           — Que nome dá a essa gravidade? Bill, John, Mark ou Lance?

            — Esta vez não consentirei que me incomode — replicou Cindy com arrogância. — Eu gosto de contemplar o céu, contar as estrelas, descobrir as constelações e observar a lua se esconder. Algumas vezes o homem que habita na lua me pisca os olhos e eu lhe devolvo a piscada. Dennis me ensinou a permanecer absolutamente quieta para absorver a sensação da noite. Veja, estou vendo maravilhas que ignorava existissem porque estou apaixonada com loucura; apaixonada, ridícula e dementemente apaixonada.

           A inveja brilhou nos olhos escuros do Bart antes de perguntar.

           — E o que foi feito que Lance Spalding? Acreditava que era ele o objeto desse sentimento. Ou é que lhe destrocei sua bonita cara para sempre e agora não pode suportar olhar para ele?

           Cindy empalideceu.

           — Diferente de ti, Bart Foxworth, Lance é belo ainda, por dentro e por fora, como papai, e sigo lhe querendo ainda e também ao Dennis.

           As rugas na frente do Bart se acentuaram.

           — Sei tudo sobre sua natureza amorosa! O que você deseja é se estender de costas e abrir as pernas para algum idiota do povoado e não vou consentir!

           — O que acontece aqui? — perguntou Chris, perplexo ao voltar e encontrar desvanecida a paz anterior.

           Cindy ficou em pé de um salto e apoiando as mãos nos quadris, adotou uma postura desafiadora, olhou com raiva o rosto do Bart, lutando por manter aquele controle amadurecido que estava totalmente decidida a conservar ante ele.

            — E por que supõe sempre o pior quando se trata de mim? A única coisa que quero é passear à luz da lua e o povoado está a dezesseis quilômetros de distância. Que lástima que não possa compreender o que é ser humano.

           Sua resposta e seu olhar furioso pareceram irritar Bart muito mais.

           — Você não é minha irmã; só é uma pequena zorra ardilosa... igual a sua mãe!

           Esta vez foi Chris quem se levantou de um salto e esbofeteou Bart com inusitada violência. Este retrocedeu e elevou os punhos, como se estivesse disposto a golpear o seu agressor na mandíbula, quando eu me pus em pé e me coloquei diante do Chris.

           — Não, não te atreva a golpear o homem que tentou ser o melhor dos pais!

            Isso bastou para que meu filho dirigisse seu furioso olhar para mim. Seus olhos se mostravam tão ferozes que teriam podido iniciar um incêndio.

           — Por que não pode ver essa putinha como o que é? Ambos olham só o que de mau há em mim, mas fecham os olhos aos pecados de seus favoritos. Essa moça não é mais que uma prostituta, uma maldita prostituta de Deus! — ficou imóvel, com os olhos esbugalhados e perplexos.

           Acabava de pronunciar o nome de Deus em vão... Olhou ao redor procurando Joel, quem, por uma vez, estava fora da vista e o ouvido.

           — Vê, mãe, o que faz comigo? Corrompe-me, e em minha própria casa, além disso.

           Olhando Bart com desaprovação, Chris voltou a sentar-se enquanto Cindy entrava na casa. Eu a olhei tristemente enquanto saía, ao mesmo tempo em que Chris falava com aspereza ao Bart.

           — Não te dá conta de que Cindy está esforçando-se por te agradar? Desde que chegou em casa, tentou que mil maneiras te apaziguar, mas você não permite. Como pode ver algo mau em um passeio inocente por estes bosques solitários? A partir deste momento quero que a trate com respeito. Se não o faz é possível que a impulsione a dar um mau passo. Ter perdido Melodie já é suficiente para um verão.

           Era como se Chris não tivesse voz e Bart carecesse de ouvidos, dado o efeito que causaram essas palavras. Chris dirigiu ao Bart um olhar severo e mais palavras de reprimenda até que acabou por levantar-se e entrar na casa. Supus que subiria ao quarto da Cindy para consolá-la.

           Só com meu segundo filho, tentei raciocinar com ele, como sempre fazia.

           — Bart, por que falas com tanta aspereza à Cindy? Está em uma idade muito delicada e é um ser humano decente que precisa ser apreciado. Não é uma prostituta, nenhuma puta, nenhuma zorra, a não ser uma jovenzinha adorável, emocionada por ser bonita e atrair tanto a atenção dos moços. E isso não significa que ceda ante cada um deles. Tem escrúpulos, honra. Esse episódio com Lance Spalding não a corrompeu.

           — Mãe, ela já estava corrompida fazia muito tempo embora te negues a acreditar. Lance Spalding não era o primeiro.

           — Como te atreve a dizer isso? — perguntei, realmente zangada. — E que classe de homem é você, em todo caso? Deita-te com quem te agrada, faz o que quer, em troca, supõe-se que ela tem que ser um anjo com uma aura e asas nas costas. Sobe agora mesmo e te desculpa com a Cindy!

           — Uma desculpa? Isso é algo que Cindy nunca obterá de mim. — sentou-se para terminar sua bebida. — Os empregados falam da Cindy. Você não os ouve porque está muito ocupada com esses dois bebês que não pode deixar tranqüilos. Mas eu os escuto enquanto limpam. Sua Cindy parece uma boa peça. O problema reside em que você acredita que é um anjo porque tem aspecto de anjo.

           Acotovelei-me no vidro da mesa branca de ferro forjado, aflita, cansada. O mesmo fez Jory que não tinha pronunciado nenhuma palavra em favor ou contra Cindy. Permanecer um momento perto do Bart resultava tão exaustivo... o temor de dizer algo inapropriado mantinha todo o corpo em tensão.

           Meu olhar se cravou nas rosas carmesins que formavam o adorno floral na mesa.

           — Bart, te ocorreu alguma vez que Cindy pode sentir-se como se estivesse poluída, até o ponto de que já nada lhe importe? E o certo é que você não lhe dá motivos para valorizar sua própria estima.

           — É uma qualquer, uma prostituta perdida — disse com uma convicção absoluta.

           Minha voz se tornou tão fria como o gelo.

           — Até parece... pelo que eu ouço murmurar os empregados, te atrai precisamente essa classe de mulher que condenas.

           De pé, jogou na mesa um guardanapo e entrou com decisão na casa.

           — Vou jogar na rua cada maldito empregado que se atreva a murmurar de mim!

           Suspirei. Logo não poderíamos contratar nenhum criado se Bart seguia despedindo-os continuamente.

            — Mamãe, vou deitar-me — disse Jory. — Este agradável encontro no terraço resultou exatamente como eu poderia predizer.

           Naquela mesma noite, Bart despediu todos os empregados, menos Trevor, que em raras ocasiões falava com alguém, exceto comigo ou com o Chris. Se Trevor partisse cada vez que Bart o despedia, faria já muito tempo que não estaria mais conosco. Trevor possuía um peculiar instinto para compreender quando Bart falava a sério. Nunca, nunca replicou, nem se enfrentou diretamente com o olhar do Bart. Possivelmente por essa razão Bart pensava que Trevor tinha se acovardado. Entretanto, eu acreditava que Trevor perdoava Bart porque o compreendia e sentia lástima por ele.

           Quando me encaminhei para o quarto da Cindy, encontrei-me com o Chris, que descia.

           — Está muito alterada. Tenta acalmá-la, Cathy. Assegura que vai partir e jamais voltará.

           Cindy estava de barriga para baixo em sua cama. De sua garganta saíam pequenos gemidos e grunhidos.

           — Sempre estraga tudo — se queixou. — Eu nunca conheci nem a meu pai nem a minha mãe... e Bart quer me separar de ti e papai. — Sentei-me na borda de sua cama. — Agora está decidido a me estragar o verão e me fazer partir como conseguiu com Melodie.

           Sustentei seu ligeiro corpo em meus braços e a consolei o melhor que pude, enquanto pensava que deveria enviá-la longe para evitar que Bart a machucasse outra vez. Para onde podia enviar Cindy sem ferir seus sentimentos, que não agüentariam outro golpe cruel? Fui para a cama meditando sobre isso. Cindy escapara da casa para encontrar-se com um moço do povoado. Isso soube mais tarde.

           Tal e como Bart havia predito, a experiência de amor à natureza tinha um nome, Víctor Wade. E assim, enquanto eu jazia em minha cama e Chris dormia junto a mim, enquanto pensava como podia salvar Cindy sem perder seu amor e como conseguir que Bart não mostrasse sua pior faceta, nossa Cindy saía às escondidas da casa e ia com Víctor Wade a Charlottesville.

           Em Charlottesville, Cindy se divertiu dançando com Víctor Wade até furar os finos solados de suas frágeis e reluzentes sandálias com saltos de dez centímetros.

            Depois Víctor, fiel a sua palavra, levou-a de volta a Foxworth Hall. Mas antes de chegar, perto de um dos caminhos que conduziam à nossa colina, deteve o automóvel e atraiu Cindy para seus braços.

           — Apaixonei-me — sussurrou com voz rouca, fazendo chover hábeis beijos na cara dela, detrás das orelhas, percorrendo sua nuca até terminar nos seios, que despiu. — Nunca tinha conhecido a uma garota que fosse nem a metade divertida que você. E tinha razão; não as há melhores no Texas...

           Meio ébria por ter bebido muito vinho e envenenada pela destreza de seu jogo amoroso, os esforços da Cindy para resistir que lhe fizesse amor foram débeis, ineficazes. Muito em breve sua apaixonada natureza respondia às carícias do Víctor e, ofegante, ajudou-o a despir-se, enquanto ele desabotoava o vestido e o tirava, afastando-o junto com o resto da roupa. Víctor se colocou em cima dela... e subitamente Bart apareceu.

           Bramando como um touro enfurecido, Bart correu até o carro estacionado e surpreendeu Cindy e Víctor mesmo no ato da copulação.

           Ao ver seus corpos nus, os braços e pernas entrelaçados no assento traseiro, confirmaram-se todas suas suspeitas e ainda se encolerizou mais. Abriu a portinhola e agarrando Víctor pelos tornozelos, tirou-o pela força, de modo que o moço caiu de bruços no áspero cascalho da estrada. Sem lhe dar a oportunidade de recuperar-se, Bart o atacou, golpeando com os punhos, com brutalidade.

           Gritando de raiva, sem ter em conta sua nudez, Cindy atirou seu vestido à cara do Bart, o cegando durante uns instantes, que deram ao Víctor tempo para ficar em pé e lhe atirar por sua vez um murro que, por um momento, deteve o Bart. Mas o moço já sangrava pelo nariz e tinha um olho arroxeado.

           — Bart foi tão desumano, mamãe — explicava Cindy. — Tão horrendo! Parecia um louco, sobretudo quando Víctor conseguiu lhe encaixar um bom direto na mandíbula. Tentou dar-lhe um chute na genitália; acertou, mas não bastante forte. Bart se dobrou, gritou e depois se lançou contra Víctor com tal ferocidade que cheguei a temer que o matasse. Recuperou-se tão rápido daquela dor, mamãe, tão depressa... e eu sempre tinha ouvido dizer que isso detinha qualquer homem. — Cindy soluçava com sua cabeça em meu regaço. — Era como um demônio recém saído do inferno, proferindo insultos contra Víctor, empregando todas essas palavras obscenas que não me permite pronunciar. Fez Víctor cair e logo o golpeou até deixá-lo inconsciente. Então se ergueu sobre mim! Aterrorizava-me pensar que me golpearia na cara, me quebraria o nariz e me deixaria feia, como sempre ameaçou que faria. De algum jeito, tinha conseguido me pôr o vestido, mas os botões estavam abertos nas costas por completo. Agarrou-me pelos ombros e me sacudiu com tanta força que o vestido caiu até meus tornozelos e fiquei nua, mas Bart não olhou meu corpo. Com o olhar cravado em meu rosto, esbofeteou-me, de modo que minha cabeça ia de um lado a outro, até que me senti enjoada e aturdida. Tudo me dava voltas antes que Bart me recolhesse como um saco de batatas, me colocasse em seu ombro e me levasse através do bosque, deixando Víctor inconsciente no chão.

            Foi horrível, mamãe, e tão humilhante ser levada dessa maneira, como se fosse um animal. Chorei durante todo o caminho, suplicando a Bart que chamasse uma ambulância se por acaso Víctor estava ferido, mas não me escutava. Supliquei-lhe que me deixasse no chão e me permitisse me cobrir, mas Bart me ordenou que me calasse ou faria algo terrível. Então me levou a...

           Interrompeu-se de repente, olhando imóvel à frente, como se recordar a assustasse.

           — Onde te levou, Cindy? — perguntei.

            Sentia-me doente, como se sua humilhação fosse também a minha, e estava furiosa com o Bart e afligida pela tremenda experiência que tinha vivido Cindy. Ao mesmo tempo, estava muito zangada porque ela mesma tinha provocado essa situação ao desobedecer e não ter em conta tudo o que eu tinha tentado lhe ensinar.

           Com uma vozinha muito débil e a cabeça abaixada de modo que seu comprido cabelo lhe ocultava a cara, Cindy concluiu:

           — Só para casa, mamãe, só para casa.

           Havia algo mais nesse assunto, mas ela não quis me contar nada. Eu sentia desejos de brigar, castigá-la, lhe recordar que ela já conhecia o caráter do Bart e seu feroz temperamento, mas compreendia que Cindy já estava bastante afetada para escutar mais.

            Levantei-me para sair de seu quarto.

           — Retiro-te todos os privilégios, Cindy. Mandarei um criado aqui em cima para que retire o telefone, de modo que não possa chamar aos seus amigos para que a ajudem a escapar. Ouvi sua versão da história agora e Bart me contou a sua esta manhã. Não estou de acordo com seu modo de te castigar e a esse menino. Foi muito brutal e, por essa razão, desculpo-me. Entretanto parece que você é muito generosa com seus favores sexuais. Não pode seguir negando-o, pois eu mesma vi quando esse moço, Lance, esteve aqui. Dói-me descobrir que aprendeste tão pouco de tudo o que tentei te ensinar. Dou-me conta de que é duro ser jovem e diferente de seus semelhantes, mas de todos os modos, confiava em que esperaria até que soubesse como confrontar as relações íntimas. Eu não poderia suportar que um desconhecido me pusesse nem um dedo em cima e muito menos que me tomasse totalmente; em troca, você... acabava de conhecer esse moço, Cindy! Um perfeito desconhecido que poderia te machucar!

           Ergueu sua linda carinha lastimosa.

           — Mamãe, me ajude!

           — Não tenho feito o possível para te ajudar durante toda minha vida? Me escute, Cindy, por favor, atende por uma vez de verdade. A melhor parte do amor chega ao aprender a compreender a um homem, lhe permitindo que te conheça como pessoa antes que comece a pensar no sexo... não se escolhe o primeiro homem que se encontra!

           Com um gesto amargo, voltou-se para trás.

           — Mamãe, todos os livros falam do sexo. Em troca não mencionam o amor. A maioria dos psicólogos opina que o amor não existe. Você nunca me explicou claramente o que é o amor. Não sei nem sequer se existe. Acredito que o sexo é tão necessário na minha idade como a água e a comida e que o amor não é mais que a excitação sexual. É o sangue que se acende, o pulso que se acelera, o coração que palpita com força; em resumo: não é mais que uma necessidade natural, não pior que o desejo de dormir. De modo que, apesar de ti e suas idéias antiquadas, eu cedo quando um moço que eu gosto quer chegar até o final. Bom, agora não me olhe com tanta indignação! Não me violou; eu o permiti! Eu queria que ele fizesse precisamente o que fez! — Seus olhos azuis me desafiavam enquanto se elevava e me olhava diretamente à cara. — Agora vamos, me chame pecadora, como fez Bart. Grite e fale e repita que irei ao inferno, mas não acredito em ti, como tampouco acredito nele. Se fosse como vocês dizem, 99% da população mundial seria pecadora, incluindo a ti e a teu irmão!

           Assombrada, profundamente ferida, voltei-me e saí.

           Prosseguiram os bonitos dias do verão enquanto Cindy permanecia em seu quarto, zangada com Bart, comigo e inclusive com o Chris. Se negava a comer na mesa se Bart ou Joel estavam presentes. Deixou de tomar banho duas ou três vezes ao dia e seu cabelo, por falta de cuidado, tornou-se tão áspero e esvaído como o de Melodie, como se quisesse nos indicar que estava no caminho de nos abandonar como tinha feito Melodie, cuja conduta, ao que parece, tentava imitar na medida do possível.

            Entretanto, mesmo em sua melancolia, os olhos seguiam brilhando ardentes, e tinha um aspecto bonito apesar de sua falta de esmero.

           — A única coisa que assim consegue é te sentir miserável — falei um dia quando vi que desconectava rapidamente o aparelho de televisão que tinha em seu dormitório, como se pretendesse me fazer acreditar que não se divertia com nada, quando em seu quarto dispunha de todos os luxos possíveis, exceto do telefone, que eu tinha feito tirar para que não pudesse marcar entrevistas secretas com Víctor Wade ou qualquer outro.

           Cindy se sentou na cama me olhando ressentidamente.

           — Me deixe partir, por favor, mamãe. Vai e diga ao Bart que me deixe partir e nunca mais voltarei a incomodar. Jamais voltarei para esta casa! Jamais!

           — Aonde irá? O que vais fazer, Cindy? — perguntei preocupada, temerosa de que uma noite fugisse e jamais voltássemos a saber dela. E eu sabia que Cindy não tinha suficiente dinheiro economizado para poder passar mais de duas semanas.

           — Farei o que tenho que fazer! — exclamou, enquanto por suas pálidas bochechas corriam lágrimas de auto-compaixão. Sua tez estava perdendo já o bronzeado. — Você e papai foram generosos, de modo que não terei que vender meu corpo, se é que está pensando isso. A menos que queira, porque o certo é que neste momento me sinto como se eu fosse tudo aquilo que Bart não quer que eu seja e isso o ensinaria, ensinaria de verdade!

           — Em tal caso, ficará neste quarto até que se sinta como aquilo que eu quero que seja. Quando puder te dirigir a mim com respeito, sem gritar, e possa me expressar algumas das decisões amadurecidas em que tenta apoiar sua vida, te ajudarei a escapar desta casa.

           — Mamãe! — gemeu. — Não me odeie! Não posso evitar que me atraiam os moços! E eu os atraio. Eu gostaria de me reservar para o príncipe perfeito, mas nunca encontrei ninguém tão excepcional. Quando recuso suas propostas os meninos me deixam e vão diretamente para outra que não se nega. Como fez você, mamãe? Como conseguiu ter todos esses homens amando a ti, e somente a ti?

           Todos esses homens? Não soube responder, de modo que, como outros pais em um apuro, evitei dar uma resposta direta, que de todos os modos não tinha.

           — Cindy, seu pai e eu lhe queremos muito, deveria sabê-lo. Jory também te quer. E os gêmeos sorriem assim que a vêem se aproximar deles. Antes de agir com precipitação, fala com seu pai, com o Jory. Dá sua opinião e nos conte o que deseja para ti, e se for algo razoável nós faremos todo o possível para que você obtenha o que deseje.

           — Deixará o Bart intervir nisto? — perguntou Cindy.

            — Não, carinho. Bart demonstrou que não raciocina, quando se trata de ti. Desde o dia em que entrou para formar parte de nossa família, Bart esteve ressentido contigo e assim continuou até agora. Depois de tanto tempo, não parece que nós possamos fazer muito a respeito. Quanto ao Joel, tampouco eu gosto; além disso, não tem nenhum lugar em nossas discussões familiares sobre seu futuro.

           De repente Cindy jogou os braços ao pescoço.

            — Oh, mamãe, estou tão envergonhada por haver dito tantas coisas desagradáveis! Queria te ferir porque Bart me tinha envergonhado muitíssimo. Salve-me dele, mamãe. Encontra algum meio, por favor, por favor!

           Depois de que Chris, Jory, Cindy e eu deliberamos, encontramos um meio para salvar Cindy, não só do Bart, mas também dela mesma. Procurei apaziguar Bart, que se propunha castigá-la mais drasticamente.

           — A única coisa que faz é acrescentar lenha ao fogo que já está ardendo no povoado — vociferou quando entramos em seu escritório. — Eu tento levar uma vida decente, graças a Deus... de modo que não me venha dizendo que você ouviu contar outras coisas. Admito que me deitei na lama durante um tempo, mas as coisas mudaram. Eu não gozo com essas mulheres. Melodie foi a única que me entregou algo um pouco parecido ao amor.

           Tentei limpar a expressão mal-humorada de meu semblante. Observando todos os objetos valiosos de seu escritório, perguntei-me uma vez mais se Bart não amaria as coisas mais que as pessoas. Contemplei as luxuosas peças orientais antigas pelas quais tinha pagado em leilões centenas de milhares de dólares. O mobiliário faria envergonhar o da Casa Branca. Bart acabaria por converter-se no homem mais rico do mundo se, como até então, seguisse duplicando seus quinhentos mil anuais a cada poucos meses. Inclusive antes de sua independência, já teria alcançado os primeiros mil e milhões. Bart era inteligente, rápido, brilhante. O que tornava lamentável que não fora nada mais que outro milionário, egoísta e avaro.

           — Me deixe agora, mãe. Faz-me perder tempo. — Fez girar sua poltrona e olhou através da janela para os belos jardins em plena floração. — Envia Cindy para longe... a qualquer parte. O que deve fazer é tirar isso de cima de mim.

           — Cindy nos disse a noite passada que gostaria de passar o resto do verão em uma escola de arte dramática de Nova Inglaterra. Tem o nome e a direção de uma que gosta. Chris ligou para comprová-lo e parece ser de confiança e ter uma boa reputação. Portanto, Cindy partirá dentro de três dias.

           — É são desfazer-se do lixo — disse com indiferença.

           Lancei-lhe um olhar compassivo.

           — Antes de condenar tão duramente a Cindy, Bart, pensa um pouco em ti mesmo. Fez ela algo pior do que você tem feito?

            Bart começou a trabalhar com o computador sem responder.

            Bati a porta atrás de mim.

           Três dias depois, eu ajudava Cindy a terminar de preparar sua bagagem. Tínhamos ido às compras, de modo que tinha roupa mais que suficiente, seis pares de sapatos novos e dois trajes de banho também novos. Deu um beijo de despedida ao Jory e depois se entreteve com os gêmeos.

           — Queridos bebês, pequenininhos — cantarolou com eles nos braços. — Voltarei. Entrarei e sairei às escondidas para que Bart não me descubra. Jory, você também deveria partir, com mamãe e papai.

            A contragosto deixou aos gêmeos no parquinho e se aproximou para me abraçar e me beijar. Eu já estava chorando. Estava perdendo a minha filha. Sabia por seu modo de me olhar, que indicava que nada entre nós voltaria a ser igual nunca mais.

           Entretanto, abraçou-me.

           — Papai me levará a aeroporto — disse enquanto apoiava sua cabeça em meu ombro. — Você também pode vir se não chorar e sentir pena de mim, porque eu estou contente por me liberar desta maldita casa. É uma mansão maligna e agora odeio seu espírito tanto como em outro tempo amei sua beleza.

           Fomos de carro ao aeroporto sem que Cindy se despedisse do Bart nem do Joel.

           Não precisou pronunciar nenhuma palavra, pois sua expressão me dizia isso tudo. Mostrou-se mais carinhosa com o Chris, a quem beijou ao despedir-se. Só me saudou com a mão.

           — Não fiquem esperando a que meu avião decole. Vou daqui com grande alegria —disse, enquanto corria para a porta de embarque.

           — Escreverá? — perguntou Chris.

           — Claro, quando tiver tempo.

           — Cindy — disse apesar de mim mesma, querendo protegê-la de novo — escreve pelo menos uma vez por semana. Preocupa-nos o que possa te acontecer. Estaremos aqui para fazer o que pudermos quando necessitar de nós. E, cedo ou tarde, Bart encontrará o que está procurando e mudará. Eu me ocuparei de que mude. Lutarei para que voltemos a ser uma família.

           — Bart não encontrará sua alma, mamãe — replicou Cindy, fria, afastando-se mais ainda. — Nasceu sem alma.

           Antes que seu avião decolasse, minhas lágrimas deixaram de brotar e minha decisão se afirmou em uma meta. Na verdade antes que morresse, ia ver minha família reunida, inteira e sã, embora para isso necessitasse todo o resto de minha vida.

           Chris tentou me tirar de minha depressão enquanto me conduzia para o que se supunha era um lar.

           — Que tal a nova empregada?

            Minha preocupação pela Cindy me tinha tido tão absorta que tinha dedicado pouca atenção à bela enfermeira, de cabelo escuro, que Chris tinha contratado recentemente para nos ajudar a cuidar dos gêmeos e Jory. Fazia alguns dias que estava na casa e eu apenas lhe tinha dirigido meia dúzia de palavras.

           — O que opina Jory sobre Toni? — perguntou Chris. — Sofri muito para encontrar a pessoa adequada. Em minha opinião, é um autêntico achado.

           — Não acredito que Jory a tenha analisado nenhuma só vez, Chris. Está tão ocupado com suas pinturas e os gêmeos... Já começam a engatinhar sem esforço. Bom, ontem vi que Cory, quero dizer Darren, recolhia um inseto da grama e tratava de levar-lhe à boca. Foi Toni quem correu para impedi-lo. E não recordo que Jory lhe dirigisse nenhum olhar.

           — Fixar-se-á nela antes ou depois. E, ouça, Cathy, tem que deixar de pensar nestes gêmeos como se fossem Cory e Carrie. Se Jory te ouvir chamá-los Cory ou Carrie, se zangará. Não são os nossos gêmeos; são do Jory.

           Chris não disse nada mais durante o comprido trajeto de volta a Foxworth Hall, nem sequer quando girou por nossa avenida para entrar lentamente na garagem.

           — O que ocorre nesta casa de loucos? — perguntou Jory assim que saímos do terraço onde estava sentado no chão, sobre uma esteira de ginástica. Os gêmeos se achavam com ele, brincando alegremente, sob o sol. — Pouco depois de que vocês partiram para acompanhar Cindy ao aeroporto, chegou uma equipe de pedreiros que estiveram golpeando e alvoroçando nesse quartinho onde Joel está acostumado a rezar. Não vi Bart e não queria falar com o Joel. E há algo mais...

            — Não entendo...

            — É essa condenada enfermeira que você e papai contrataram, mamãe. É esplêndida e muito boa em seu trabalho... quando aparece. Faz dez minutos que a estou chamando e não respondeu. Os gêmeos estão empapados e não há suficientes fraldas, de modo que não posso trocá-los. Se entrar na casa para procurar mais, teria que deixá-los sozinhos aqui fora. Agora choram quando tento sujeitá-los com as correias. Querem andar por si só, em especial Deidre.

           Troquei as fraldas dos gêmeos e os deitei. Depois fui procurar o membro mais recente de nosso lar. Para meu assombro, encontrei-a na nova piscina, com o Bart; ambos riam, salpicando-se mutuamente de água.

           — Olá, mãe! — saudou Bart, bronzeado e são, como não o tinha visto dos dias em que acreditava estar apaixonado por Melodie. — Toni joga tênis de maneira extraordinária. É formidável tê-la aqui. Os dois estávamos tão acalorados depois do esforço que decidimos nos refrescar na piscina.

           A expressão de meus olhos foi corretamente interpretada por Antonia Winters. Saiu imediatamente da piscina, começou a secar seu encaracolado cabelo escuro e depois se envolveu com a mesma toalha branca.

            — Bart me pediu que o chamasse por seu nome. Não se importará se o faço, verdade, senhora Sheffield?

           Observei-a avaliando-a, me perguntando se seria o bastante responsável para se encarregar do Jory e dos gêmeos. Eu gostei de seu cabelo escuro, que arrumou formando suaves ondas e cachos que emolduravam esplendidamente seu rosto sem maquiagem. Mediria ao redor de um metro e setenta e tinha tantas curvas voluptuosas como Cindy, curvas que, embora Bart tivesse desprezado em sua irmã, na figura da enfermeira mereciam toda sua aprovação, a julgar pela maneira em que a contemplava.

           — Toni — disse, me dominando — Jory, a quem tem que ajudar, pois para isso a contratamos, esteve te chamando para que lhe levasse mais fraldas para os gêmeos. Encontrava-se no terraço com seus filhos e você deveria ter estado com ele, não com o Bart. A empregamos para que te ocupasse de que nem Jory nem seus filhos ficassem desatendidos.

           Ruborizou-se envergonhada.

           — Sinto muito, mas Bart... — vacilou e pareceu mais sobressaltada enquanto lhe jogava um olhar.

           — Está bem, Toni. Aceito a culpa — disse Bart. — Eu lhe assegurei que Jory estava bem e era capaz de cuidar de si mesmo e dos gêmeos. Tenho a impressão de que se preocupa muito de mostrar-se independente.

            — Procura que isto não volte a acontecer, Toni — disse, ignorando Bart.

           Esse condenado ia tornar-nos todos loucos! Então me ocorreu uma brilhante idéia.

           — Bart, você e Toni teriam feito um grande favor ao Jory, o incluindo em sua festa na piscina. Jory pode utilizar os braços. De fato, tem uns braços poderosos. Por outro lado, deveria ter presente, Bart, que é bastante perigoso que uma piscina como esta não disponha do amparo de uma cerca, sobretudo havendo dois meninos pequenos. De modo que, Toni, eu gostaria que você e Jory começassem a ensinar aos gêmeos... no caso de...

           Bart ficou me olhando pensativo, como se lesse meus pensamentos. Jogou um olhar a Antonia, que já se encaminhava para a casa.

           — Assim, vão continuar aqui?

           — Acaso não quer que fiquemos?

           — Sim, é obvio, sobretudo agora que Toni veio para alegrar minhas horas solitárias.

           Seu sorriso irradiava o encanto de seu defunto pai.

           — Deixa-a em paz, Bart!

           Ele fez uma careta maliciosa e começou a nadar de costas e, com um movimento, impulsionou-se para onde eu estava. Então me agarrou pelos tornozelos com tal força que me machucou e por um momento temi que me faria cair na piscina e danificaria o vestido de seda que usava.

           Olhei para baixo e observei seus olhos escuros, repentinamente ameaçadores.

           — Me solte. Já nadei esta manhã.

           — E por que não nada comigo alguma vez?

           O que veria Bart em mim que a ameaça se desvaneceu cedendo passo à tristeza, refletida em um olhar tão melancólico? Inclinou-se para me beijar os dedos dos pés, que apareciam pelas sandálias. Nesse momento me rompeu o coração. Falou exatamente com o mesmo tom de seu defunto pai.

           — Acredito que nunca encontrarei ninguém tão adorável como você... — Elevou o olhar. — Ouça, mãe, eu também tenho um pouco de talento artístico.

            Essa era minha oportunidade. Bart estava vulnerável, comovido por algo que via em meu rosto.

           — Sim, claro que o tem, Bart, mas, não te entristece um pouco que Cindy partiu?

           Seus escuros olhos se endureceram.

            — Não, absolutamente. Estou contente de que se foi. Não te demonstrei o que ela era em realidade?

           — Só me demonstrou quão odioso pode chegar a ser.

           Seu olhar se obscureceu mais, tornando-se tão ferozmente decidido que me assustou. Voltou à vista para a casa para ouvir um leve arrastar de pés. Olhei para ali. Joel acabava de sair e se achava na zona de grama que rodeava a larga piscina oval.

           Joel nos condenou silenciosamente com seus pálidos olhos azuis, enquanto suas ossudas mãos de compridos dedos lhe sustentavam o queixo. Inclinou a cabeça para trás e olhou o céu. Sua doce voz e queixosa nos chegou em balbucio.

           — Faz esperar ao Senhor, Bart, enquanto está perdendo tempo.

           Desesperançada observei que os olhos do Bart se alagavam de culpa. Saiu com rapidez da piscina e, por um momento, ficou em pé, mostrando toda sua jovem masculinidade gloriosa, suas longas e fortes pernas bronzeadas, seu ventre duro e liso, seus amplos ombros e seus firmes músculos. Por um segundo acreditei que estava esticando seus poderosos músculos, preparando-se para uma investida de leão que o catapultaria diretamente à garganta do Joel. Fiquei rígida, me perguntando se alguma vez Bart tinha pensado na possibilidade de golpear o seu tio.

           Uma nuvem cobriu o sol. De algum jeito fez que as sombras dos abajures apagados junto à piscina formassem uma cruz no chão. Bart olhou para baixo.

           — Já vê, Bart — disse Joel com um tom premente que nunca antes lhe tinha ouvido — você esquece seus deveres e o sol desaparece. Deus te envia este signo da cruz. Ele sempre está vigilante. Ele ouve. Ele te conhece. Porque você foi escolhido.

           Escolhido para que?

           Quase como se Joel lhe tivesse hipnotizado, Bart seguiu a seu tio-avô dentro da casa, me deixando junto à piscina. Apressei-me a contar ao Chris o acontecido com o Joel.

           — O que pode querer dizer, Chris, quando declara que Bart foi escolhido?

           Chris me obrigou a me sentar, a relaxar. Inclusive me preparou minha bebida favorita antes de tomar assento junto a mim no pequeno balcão que dava para os jardins e as montanhas.

           — Acabo de trocar umas palavras com o Joel. Parece que Bart contratou trabalhadores para que construam uma pequena capela nesse quarto vazio que Joel utiliza para suas preces.

           — Uma capela? — perguntei muito assombrada. — E para que necessitamos uma capela?

           — Não acredito que a construam para nós. É para Bart e Joel; um lugar onde poderão rezar sem ir ao povoado e enfrentar-se com todos os aldeões que desprezam aos Foxworth. E se isso é o que Bart acredita que o ajudará a encontrar-se a si mesmo, pelo amor de Deus, não diga nenhuma palavra para condenar o que está fazendo junto com o Joel. Cathy, eu não acredito que esse ancião seja um homem malvado, mas sim está tentando converter-se em um candidato para a santidade.

           — Um santo? Vá, isso seria como coroar com uma aura a cabeça do Malcolm!

           Chris se impacientou comigo.

           — Deixa que Bart faça o que lhe agrade. De todos os modos decidi que já é hora de que partamos daqui. Não posso falar contigo nesta casa e esperar uma resposta sensata. Mudaremos para Charlottesville, junto com Jory, os gêmeos e Toni, assim que encontre uma moradia adequada.

           Sem que eu notasse Jory tinha entrado em nossos aposentos e me surpreendeu ao lhe ouvir falar.

            — Mamãe, papai pode ter razão. Possivelmente Joel seja o santo bondoso e benigno que às vezes parece ser. Em ocasiões acredito que você e eu somos muito suspicazes, embora, claro, freqüentemente você tenha razão. Observo Joel quando está distraído e me parece que em muitos aspectos ele tenta não ser o que nós mais tememos; uma réplica do avô que vocês dois odiaram.

           — Tudo isto é ridículo! Certamente que Joel não é como seu pai ou, do contrário, não o teria odiado tanto — interveio Chris com uma irritação repentina e anormal, com expressão dura, totalmente esgotada a paciência, não só comigo, mas também com o Jory. — Todo este palavrório sobre almas que se reencarnam em gerações posteriores é uma absoluta tolice. Não precisamos acrescentar mais complicações a nossas vidas, bastante complicadas por si mesmas.

           Na segunda-feira seguinte, Chris partiu de novo em seu carro para dirigir-se ao trabalho que gostava tanto como em outro tempo gostava do exercício da medicina. Eu fiquei olhando seu veículo, sentindo que meu rival era sua florescente aventura amorosa com a bioquímica.

           A mesa parecia solitária sem a presença do Chris e Cindy. Toni estava em cima, deitando os gêmeos, o que incomodava enormemente ao Bart, que tinha insinuado ao Jory que a enfermeira já estava loucamente apaixonada por ele, o Bart. Tal informação não afetou ao Jory absolutamente, pois estava muito absorto em seus próprios pensamentos. Não tinha pronunciado nem duas palavras durante toda a refeição e tampouco o fez quando finalmente Toni se uniu a nós.

           Chegou outra tarde de sexta-feira e com ela voltou Chris, tal como papai tinha feito em outro tempo, retornando para casa todas as sextas-feiras. De um modo ou outro me incomodava o paralelismo entre nossa vida e a de nossos pais. No sábado passamos a maior parte do dia na piscina, com Jory e os gêmeos; Toni e eu segurávamos os bebês, enquanto Chris ajudava Jory, que realmente não necessitava muita ajuda. Atreveu-se a cruzar a piscina, nadando com destreza, compensando, com sobra, com seus vigorosos braços as pernas inúteis que flutuavam inertes detrás dele. Na piscina, com as pernas sob a água, Jory se parecia mais consigo mesmo, o que se refletia em seu rosto feliz.

           — Mãe, isto é formidável! Não nos mudemos ainda para Charlottesville. Ali não há muitas casas com piscina como esta. Além disso, necessito dos corredores largos e do elevador. E já me acostumei com Bart e até com o Joel.    

            — Possivelmente eu não possa vir o próximo fim-de-semana. — Chris fugiu meu olhar enquanto soltava esta surpreendente informação em nossa mesa do café-da-manhã dominical. Evitando encontrar-se com os olhos dos presentes, prosseguiu: — Vai haver uma convenção de bioquímicos em Chicago e eu gostaria de assistir. Estarei fora duas semanas. Se quiser me acompanhar, Cathy, agradeceria muito isso.

           Bart afundou a colher no melão maduro. Seus olhos escuros tinham uma expressão de impaciente espera, como se toda sua vida dependesse de minha resposta. Eu desejava ir com o Chris, desejava ardentemente escapar daquela casa e seus problemas, para estar a sós com o homem a quem amava. Desejava permanecer perto dele, mas tinha que lhe negar esse desejo e fazer um último grande esforço para salvar Bart.

           — Eu gostaria muitíssimo de ir contigo, Chris. Mas Jory se envergonha de pedir a Toni que o ajude em certas coisas íntimas. Necessita-me aqui.

           — Pelo amor de Deus! Para isso a contratamos. É uma enfermeira!

           — Chris, sob meu teto, não pronuncie em vão o nome do Senhor.

           Olhando furiosamente Bart após estas palavras, ficou em pé.

            — Perdi o apetite subitamente. Tomarei o café-da-manhã na cidade, se é que recupero a vontade de comer.

            Olhou-me com irritação, acusador. Jogando uma olhada furiosa ao Bart, colocou levemente a mão no ombro do Jory e partiu. Tinha sido um acerto que tivesse pedido que empregasse uma enfermeira antes que isso acontecesse.

           Depois de minha negativa a lhe acompanhar, era mais que provável que Chris não quisesse escutar o que me propunha fazer por meus dois filhos que, de um modo ou outro, estavam abrindo uma brecha na família. Entretanto eu não podia abandonar Jory sem estar realmente segura de que Toni cuidaria dele à perfeição; ainda não.

           Toni se uniu a nós na mesa, vestida com um uniforme branco recém engomado. Nós três, ao redor da mesa, falamos do tempo e outras trivialidades enquanto ela permanecia sentada com os olhos cravados no Bart. Aqueles olhos cinzas, belos, suaves e luminosos estavam cheios de assombro... e apaixonados. Era tão óbvio que eu estive tentada a adverti-la que olhasse Jory e não ao homem que, com toda segurança, a destruiria.

           Pressentindo sua admiração, Bart exibiu seu encanto, rindo e contando algumas histórias bobas que zombavam do menininho que tinha sido. Cada palavra que ele pronunciava a enfeitiçava mais, enquanto Jory permanecia sentado e esquecido em sua detestada cadeira de rodas, fingindo ler o periódico da manhã.

           Dia após dia, eu via como crescia o amor do Toni pelo Bart, inclusive enquanto atendia aos gêmeos com carinho e fazia pacientemente todo o necessário pelo Jory. Meu primogênito estava melancólico, esperando continuamente chamadas telefônicas de Melodie, cartas que não recebia; esperando que alguém o ajudasse com as coisas que estava acostumada a fazer por ele e já ninguém fazia. Eu sofria por sua impaciência, que se manifestava quando os empregados demoravam muito em lhe fazer a cama, assear seu quarto, ou afastar-se de seu caminho e o deixar sozinho.

           Jory se dedicava à pintura sem descanso e contratou um professor de arte para que três vezes por semana ensinasse as técnicas distintas. Trabalho, trabalho, trabalho... Estava entregando-se com afã para chegar a ser o melhor artista possível, como em outro tempo se dedicou a seus exercícios de balé: manhã, tarde e noite.

           As quatro "D" do mundo do balé nunca morriam em alguns de nós: determinação, dedicação, desejo e decisão.

           — Acredita que Toni é uma babá adequada para os bebês? — perguntei uma tarde enquanto ela se afastava pela avenida, passeando os gêmeos no carrinho duplo.

           Os pequenos gostavam de estar ao ar livre e só o fato de ver o carrinho provocava neles gritinhos de prazer e excitação. Não tinham terminado de sair as palavras de minha boca quando ambos vimos que Bart se apressava para reunir-se com a enfermeira. Ambos começaram então a empurrar o carrinho.

           Intranqüila, esperei que Jory falasse, mas não disse nada. Notei sua expressão de amargura enquanto contemplava Bart acompanhar seus filhos e a enfermeira que tínhamos contratado para ele. Era como se eu pudesse ler seus pensamentos. Já não tinha nenhuma oportunidade de conquistar uma mulher estando naquela cadeira de rodas, sem poder dançar, nem sequer caminhar. Entretanto, os médicos haviam dito ao Chris e a mim que muitos homens inválidos se casavam e levavam uma vida mais ou menos normal. As percentagens de matrimônios eram mais altos para os homens que para as mulheres inválidas.

           — As mulheres são mais sensíveis que os homens. A maioria deles, por não terem problemas físicos, pensam mais em suas próprias necessidades. Precisa um homem excepcionalmente compassivo e minucioso para casar-se com uma mulher que não seja fisicamente normal.

            — Jory, tem saudades ainda de Melodie?

           Jory olhou com tristeza para a frente, desviando o olhar de Toni e Bart, que se tinham detido para sentar-se a falar em um tronco de árvore.

            — Tento não pensar muito. É uma boa maneira para não preocupar-se com os anos que me esperam e de como vou me arrumar; cedo ou tarde estarei sozinho e esse dia sim que eu temo, pois acredito que será mais duro do que eu posso suportar.

           — Chris e eu sempre estaremos contigo, enquanto você necessite e nós vivamos; mas muito antes que algum de nós morra você já haverá encontrado alguma outra pessoa. Sei que isso acontecerá.

           — Como sabe? Eu não estou seguro nem de que possa necessitar de ninguém. Agora me envergonharia ter uma esposa. Trato de encontrar algo que encha o vazio que deixou a dança em mim e até o momento não achei. O melhor de minha vida são agora os gêmeos e meus pais.

            Olhei de novo o casal sentado no tronco da árvore, a tempo para ver o Bart tirar os gêmeos do carrinho duplo e os deixar na grama junto ao caminho, onde começou a brincar com eles. Os bebês gostavam de todo o mundo e, inclusive, tentaram conquistar Joel, que nunca os tocava, nem lhes falava como fazíamos nós. Ao longe ouvia a risada dos meninos que cada dia se faziam mais bonitos. Bart parecia e agia como um homem feliz. Disse a mim mesma que ele necessitava de alguém tão desesperadamente como Jory. De certo modo, Bart o necessitava com mais urgência que seu irmão, pois este encontraria seu caminho, com ou sem uma esposa. Bart era diferente.

            Ficamos sentados, contemplando o casal que brincava com os gêmeos. Ergueu-se uma lua cheia, com um aspecto impressionante e dourado à luz do crepúsculo. Um pássaro sobre o lago, não muito longe, lançou seu grito solitário.

            — O que é isso? — perguntei, me pondo muito rígida. — Nunca antes tinha ouvido um pássaro como esse por aqui.

           — É um mergulhador — respondeu Jory, olhando em direção do lago. — Algumas vezes a tempestade os arrasta até aqui. Mel e eu estávamos acostumados a alugar uma casinha na ilha Mount Desert, e ouvíamos os gritos dos mergulhadores, que considerávamos românticos. Pergunto-me por que pensaríamos isso. Agora esse grito só me sugere tristeza; parece-me fantasmagórico, inclusive.

           Das sombras, perto dos arbustos, Joel falou.

           — Alguns dizem que as almas perdidas habitam os corpos dos mergulhadores.

           Voltei-me com brutalidade e fiquei olhando-o.

           — O que é uma alma perdida, Joel? — perguntei.

           Sua voz benevolente respondeu com suavidade:

            — São aqueles que não conseguem encontrar a paz em suas tumbas, Catherine; aqueles que vacilam entre o céu e o inferno, olhando para trás, para sua estadia na terra para ver o que deixaram sem terminar. Por olhar para trás, ficam apanhados para sempre, ou pelo menos até que tenham completado o trabalho de sua vida.

           Estremeci como se um vento frio tivesse soprado do cemitério.

            — Não precisa tolerar isso, mamãe — disse Jory com impaciência. — Eu gostaria de poder usar algum dos descritivos adjetivos que os jovens da idade da Cindy lançam com tanta facilidade sem me sentir vulgar. É estranho — acrescentou, pensativo, enquanto Joel desaparecia na escuridão — quando estava em Nova Iorque e me desgostava, impacientava ou zangava, também empregava uma linguagem vulgar. Agora, mesmo que às vezes pense em usar essas palavras, algo me detém e não o faço.

           Jory não precisava me esclarecer isso. Sabia exatamente o que queria dizer. Estava na atmosfera que nos rodeava, na claridade do ar das montanhas, na cercania das estrelas; era a presença de um Deus estrito e exigente. Em toda a parte.

 

OS NOVOS AMANTES

          Encontravam-se na penumbra. Beijavam-se nos corredores. Freqüentavam os ensolarados e espaçosos jardins, por onde passeavam à luz da lua. Nadavam juntos, jogavam tênis juntos, passeavam de mãos dadas pelas ribeiras do lago, corriam por entre as árvores, comiam na beira da piscina, junto ao lago, no bosque. Foram dançar, aos restaurantes, ao teatro e ao cinema.

           Viviam em seu próprio mundo, enquanto nós parecíamos invisíveis, nem vistos nem ouvidos por eles; e assim seria enquanto eles pudessem olhar o um ao outro através da mesa com os olhos enfeitiçados, como se tivessem apanhado o mundo pela cauda e nunca quisessem soltá-lo. Senti-me envolta em seu romance com pesar, emocionada por ter perto de mim uns jovens amantes tão belos e resplandecentes, parecidos entre si pelo cabelo escuro, quase do mesmo tom. Sentia-me de uma vez feliz e infeliz, encantada e, entretanto, triste porque não era Jory quem tinha encontrado outra mulher a quem amar. Queria advertir Toni de que se achava em um terreno traiçoeiro, que não deveria confiar no Bart, mas então via o rosto radiante do Bart, limpo de culpa ou vergonha, pois nesta ocasião não estava roubando nada que pertencesse a seu irmão. Assim minhas palavras de crítica se desvaneciam sem terem sido pronunciadas. Quem era eu para lhe indicar a quem podia ou não podia amar? Eu devia permanecer casada e lhe permitir que tivesse sua oportunidade. Aquilo era diferente da aventura com Melodie; Toni não pertencia ao Jory.

           Bart manifestava sua felicidade mostrando-se mais simples e, com a segurança de seu recente amor, esqueceu seus peculiares costumes e sua obsessiva preocupação pelo esmero e até se permitiu relaxar vestindo roupas mais informais. No passado, um traje de mil dólares acompanhado de camisas de seda e gravatas caras simbolizavam sua posição social. Agora não se preocupava, já que Toni tinha dado outro sentido ao seu poder. Podia adivinhar que, pela primeira vez em sua vida, Bart tinha encontrado um chão firme sobre o qual caminhar.

           Bart sorriu e me beijou várias vezes na bochecha.

           — Já sei que você não queria que acontecesse assim, sei. Sei! Mas é a mim quem ela ama, mãe. A mim! Toni encontra em mim algo maravilhoso e nobre! Dá-te conta de como me faz sentir? Melodie também estava acostumada a dizer que via essas qualidades em mim, mas eu não me sentia nobre nem maravilhoso porque sabia o dano que estava causando ao Jory. Agora é diferente. Toni nunca esteve casada, não tinha tido antes nenhum amante, mas sim montões de amigos. Mãe, pensa nisso! Sou seu primeiro amante! Faz-me sentir tão especial ser aquele que ela esperava. Mãe, um pouco maravilhosamente especial. Ela aprecia em mim as mesmas coisas que você vê no Jory.

           — Acredito que isso é estupendo, Bart. Os dois me fazem feliz. — Seus olhos escuros ficaram sérios enquanto procuravam confirmar a sinceridade de minha declaração.

           Antes que pudesse lhe responder, Joel falou da soleira da porta aberta do escritório do Bart.

            — Bobo estúpido! Crê que essa enfermeira quer a ti na realidade? Essa mulher vê a nobreza em seu dinheiro! São suas contas bancárias que lhe interessam, Bart Foxworth! Observaste a maneira em que perambula por esta casa, com os olhos entreabertos, com a clara pretensão de que é a proprietária de tudo? Ela não te ama. Utiliza-te para conseguir o que querem todas as mulheres. Dinheiro, controle, poder e depois mais dinheiro ainda. Uma vez se tenham casado, ela já terá a vida solucionada, mesmo que você mais tarde se divorciasse.

           — Te cale! — atalhou Bart, voltando-se para olhar furiosamente ao velho. — Tem ciúmes porque não me sobra tempo para dedicar a ti. Este é o amor mais limpo, o mais puro de minha vida... e não permitirei que você me arruíne isso!

           Joel inclinou a cabeça com submissão, como que abatido, enquanto juntava as palmas das mãos debaixo do queixo antes de encaminhar-se, sem dúvida, para aquele quartinho que Bart tinha convertido em uma capela familiar, embora só ele e Joel rezassem ali. Eu nem me tinha incomodado em jogar um olhar para dentro.

           Pus-me nas pontas dos pés para beijar Bart na bochecha, o abraçar e lhe desejar boa-sorte.

           — Sinto-me feliz por ti, Bart, sinceramente feliz. Admito que abrigava a esperança de que Toni se apaixonasse pelo Jory e o compensasse pela perda de Melodie. Desejava que os gêmeos tivessem uma mãe enquanto ainda são bebês. Que ela tivesse tido a oportunidade de aprender a querê-los como seus e eles não tivessem recordado a outra mãe mais que a ela. Mas já que isso não aconteceu, só vendo sua felicidade e a dela, sinto-me ditosa.

            Aqueles olhos escuros afundavam, escrutinavam, tentando ler em minha alma.

           — Te casará com ela? — perguntei.

           Suas mãos descansaram ligeiramente em meus ombros.

           — Sim, logo a pedirei, quando estiver seguro de que ela não está me enganando. Idealizei um método para pô-la a prova.

           — Bart, isso não é justo. Quando se ama tem que confiar.

           — Ter uma fé cega em alguém que não seja Deus, é uma idiotice.

           Eu recordava muito bem o que Chris sempre estava me dizendo: "Busca e encontrará." Eu conhecia aquele sentimento à perfeição. Sempre me tinha mostrado desconfiada com o melhor que a vida me concedia e muito em breve acabava perdendo-o por causa de meu receio.

           — Mãe... — começou Bart com surpreendente candura — sei bem que Melodie nunca me teria permitido nem tocá-la, se Jory tivesse conservado suas pernas de bailarino. Amava a ele, não a mim. Inclusive pode ter imaginado que eu era ele, pois algumas vezes noto certa semelhança entre nós dois. Também acredito que Melodie via em mim o que desejava e recorreu a mim porque Jory já não podia satisfazer suas necessidades físicas. Eu fui um amante substituto de meu irmão, da mesma maneira que sempre fui o substituto do Jory. Só com Toni sou o primeiro.

           — Nisso tem razão, Bart. Toni nem sequer vê o Jory em sua cadeira de rodas. Só vê a ti, unicamente a ti.

           Seus lábios se torceram com ironia.

           — Claro..., mas está esquecendo que eu me sustento sobre minhas pernas e ele está incapacitado. Eu possuo muitíssimo dinheiro e ele uma miséria, em comparação. E Jory já suporta a carga de dois meninos que não seriam dela. Três pontos contra Jory..., de modo que eu ganho.

           Essa vez eu queria que ele ganhasse; Bart necessitava de Toni dez vezes mais que Jory. Meu primogênito era forte, mesmo estando incapacitado; Bart, em troca, era vulnerável e inseguro, embora tivesse uma saúde perfeita.

           — Bart, se você mesmo não te aceitar tal como é, como espera que outra pessoa te ame? Tem que começar por acreditar que, mesmo não tendo dinheiro, Toni te amaria da mesma maneira.

           — Muito em breve o descobriremos — disse indiferente, com certa expressão em seus olhos que recordava Joel. Bart me despedia em seguida: — Mãe, tenho trabalho. Te verei mais tarde... — e sorriu com mais amor do que me tinha demonstrado desde que tinha nove anos.

           Contraditório, complicado, assombroso, arrogante; assim era o homem em que se converteu meu pequeno e problemático Bart...

           Cindy tinha escrito para nos contar como eram fabulosos eram seus dias do verão assistindo às aulas de arte dramática em Nova Inglaterra.

           “Trabalhamos em produções de verdade, mamãe, em pátios que se convertem em teatros de maneira provisória. Eu adoro todos e cada um dos aspectos do espetáculo."

           Com freqüência sentia falta da Cindy, à medida que passavam os dias do verão. Todos nós nadávamos no lago ou na piscina, incluídos os gêmeos, que cresciam rapidamente para apreciar todas as maravilhas da natureza. Já tinham dentinhos e ambos andavam para onde queriam ir, que era em toda parte.

           Nada estava a salvo de suas mãozinhas ávidas, que consideravam todos os objetos apropriados para sua nutrição. Seu cabelo loiro estava formando abundantes cachos que rodeavam suas cabeças. Seus lábios tinham uma sã cor rosada e o sol tinha colorido suas bochechas. Seus grandes olhos, azuis e inocentes, devoravam todos os rostos, absorvendo cada uma das primeiras impressões.

           Passaram gloriosos os calorosos dias do verão, imortalizados por cada uma das fotografias que encheriam os álbuns, impedindo que os momentos e os dias felizes desaparecessem de todo. Clique, clique, clique, máquinas diferentes, enquanto Chris, Jory e eu fazíamos uma fotografia atrás da outra de nossos maravilhosos gêmeos. Encantava a eles estar ao ar livre, cheirando as flores, tocando a casca das árvores, observando os pássaros, os esquilos, as lebres, os mapaches, os patos e os gansos que freqüentemente invadiam nossa piscina, sendo afugentados rapidamente dali pelos adultos.

           Antes que me desse conta, o verão tinha passado e já tínhamos outra vez em cima o outono. Naquele ano Jory poderia desfrutar dessa mágica estação nas montanhas. As árvores dos bosques nas ladeiras das montanhas flamejavam com suas espetaculares cores.

            — Faz um ano eu me achava em um inferno — disse Jory, contemplando as árvores e as montanhas e dando uma olhada à sua mão esquerda, que já não levava a aliança de ouro de matrimônio. — Chegaram os documentos definitivos para o divórcio e, sabe? Não senti nada, como se estivesse atordoado. Perdi a minha esposa no mesmo dia que perdi o uso de minhas pernas; mas ainda sobrevivo pensando que a vida continua e que pode ser boa apesar de ter que ser vivida em uma cadeira de rodas.

           Rodeei-o com meus braços.

           — Porque tem força, Jory, e decisão. Tem a seus filhos, de modo que seu matrimônio teve sua compensação. Ainda é famoso, não esqueça e, se quiser, pode começar a dar aulas de balé.

           — Não, não posso desatender a meus filhos; não posso, já que não têm mãe. — inclinou a cabeça e me sorriu. — Não é que você não cumpra à perfeição o papel de mãe, mas quero que você e papai vivam suas vidas; que não tenham que carregar com meninos pequenos que podem impedir seus planos.

           Rindo, alvorocei seus negros cachos.

           — Que planos, Jory? Chris e eu somos felizes onde estamos, com nossos filhos e nossos netos.

           Pouco a pouco, os calorosos dias foram esfriando-se e o vento trazia o aroma acre dos fogos de lenha. Eu gostava de sair cedo todas as manhãs, acompanhada por Jory e os gêmeos. Os pequenos estavam aprendendo a sustentar-se em pé, agarrando-se às mãos de outros ou a algum móvel. Deidre se tinha atrevido, inclusive, a dar uns passos vacilantes, com as perninhas muito abertas, com o bumbum volumoso pelas fraldas e as calcinhas de plástico, coberto por um lindo macacãozinho que ela parecia adorar. Darren se dava por satisfeito com seu engatinho que o transportava com rapidez aonde queria ir. Um dia o apanhei descendo pela alta escada principal, seguido muito de perto por Deidre.

           Num precioso dia de outubro, Deidre, sentada no regaço do Jory, tagarelava alegremente consigo mesma, enquanto eu levava Darren, mais comedido, percorrendo os novos atalhos que Bart, muito amavelmente, tinha ordenado nivelar para que Jory pudesse conduzir sua cadeira pelos bosques. Custou uma soma considerável de dinheiro arrancar as raízes das árvores que podiam derrubar sua cadeira de rodas. Desde que Bart tinha seu próprio amor, tratava a seu irmão com muito mais consideração e respeito.

           — Mamãe, Bart e Toni são amantes, verdade? — perguntou de repente Jory.

           — Sim — admiti a contragosto.

           Então me disse algo que me assombrou:

           — Não é estranho que nasçamos em famílias e tenhamos que aceitar o que nos dá? Não nos escolhemos uns aos outros e, entretanto, permanecemos amarrados toda nossa vida a pessoas com as que jamais teríamos trocado duas palavras se não tivéssemos relação de sangue.

           — Jory, na realidade, você não encontra Bart tão desprezível, não é certo?

            — Não estou falando do Bart, mamãe. Estes últimos meses andou bastante bem. É desse velho que diz ser seu tio que eu não gosto. Quanto mais o vejo, mais o detesto. No princípio, quando se apresentou, deu-me pena. Agora olho Joel e vejo algo mau em seus esvaídos olhos azuis. De algum jeito, recorda John Amos Jackson. Acredito que está nos utilizando, mamãe, não só por razões práticas, para ter uma casa e comida que levar à boca, mas sim me parece que trama algo. Hoje precisamente ouvi por acaso o que Joel murmurava ao Bart no vestíbulo. Por isso ouvi sem querer, Bart tem intenção de contar a Toni toda a verdade sobre seu passado; já sabe, seus problemas psicológicos. Também vai anunciar que se alguma vez o encerrassem em um manicômio perderia toda sua herança. Joel é quem o empurra a fazer isso. Mamãe, não deveria dizer-lhe, porque se Toni o amar de verdade, aceitará o fato de que Bart tenha tido seus problemas. Parece-me, pelo que vejo, que meu irmão é agora normal e tão brilhante que está aumentando sua fortuna.

           Inclinei a cabeça.

            — Sim, Jory. Bart comentou que queria fazer isso, mas está pensando nessas revelações, como se ele mesmo acreditasse que ela procura seu dinheiro.

           Jory assentiu, segurando com força Deidre, que estava tentando descer de seu regaço e empreender sua própria exploração. Darren, ao ver sua irmã, sentiu ansiedade de imitá-la.

           — Joel disse algo que indique que pudesse tentar anular o testamento de sua irmã para ficar com o dinheiro que Bart espera herdar o dia que fizer trinta e cinco anos?

           A risada do Jory foi seca, breve.

           — Mamãe, esse velho nunca diz nada que não seja com dupla intenção. Não gosta de mim e me evita tanto quanto lhe é possível. Desaprova que eu fosse bailarino em outro tempo e que saísse ao palco com pouca roupa. Te censura também. Surpreendo-o às vezes te observando com os olhos entreabertos e murmurando para si: "Igual à sua mãe... mas pior, muito pior." Sinto te dizer isto, mas esse homem dá medo, mamãe. É um velho sinistro na verdade. Olha papai com ódio. Perambula pela casa durante a noite. Desde que estou inválido, meus ouvidos se aguçaram muito; ouço ranger as pranchas do corredor onde está meu quarto e algumas vezes a porta de meu dormitório se abre ligeiramente. É Joel. Sei que é ele.

           — Mas, por que tinha que farejar em seu quarto?

            — Ignoro-o.

           Mordi o lábio inferior, imitando o costume nervoso do Bart.

           — Agora é você quem está me assustando, Jory. Também tenho razões para acreditar que Joel não nos aprecia absolutamente. Suspeito que foi ele quem destroçou o navio de vela que você construiu para o Bart e presumo que Joel nunca enviou aqueles convites de Natal pelo correio. Queria machucar Bart, de modo que os levou ao seu quarto, tirou os cartões de resposta e os assinou como se aceitassem os convites; então os jogou ao correio para que Bart recebesse. É a única explicação a que ninguém aparecesse.

            — Mamãe, por que não me explicou isto antes?

           Como podia eu lhe haver contado todas minhas suspeitas sobre o Joel, sem que reagisse de um modo parecido ao do Chris? Chris tinha rechaçado totalmente minha conjectura sobre como Joel tinha tratado de ferir o Bart. Algumas vezes, inclusive eu pensava que era muito imaginativa e julgava Joel pior do que em realidade era.

           — E ainda mais, Jory, acredito que foi Joel quem escutou os empregados comentar na cozinha que Cindy falou com esse moço, Víctor Wade, e em seguida transmitiu a informação ao Bart. Como teria podido averiguá-lo Bart de outro modo? Os empregados são para o Bart como os desenhos do papel da parede, não merecedores de sua atenção. É Joel quem se dedica a escutar às escondidas para poder informar ao Bart o que eles dizem.

           — Mamãe, acredito que possivelmente tenha razão sobre o navio, os convites e também sobre a Cindy. Joel está preparando algo para todos nós e temo que não é para nosso bem.

           Absorta em meus pensamentos, Jory teve que me dizer duas vezes que pusesse em seu regaço o seu filho, para que, sentado sobre sua outra perna, avançássemos mais depressa pelo bosque. Embora só fosse um menino, já era uma pesada carga para levar em uma distância longa, de modo que, com muito prazer, deixei Darren no regaço de seu pai. Deidre gritou de alegria e abraçou seu irmãozinho.

           — Mamãe, acredito que, se Toni amar de verdade ao Bart, ficará, sem lhe importar qual seja o passado dele..., ou o que deva herdar.

           — Jory, isso é exatamente o que Bart está tentando pôr à prova.

           Ao redor da meia-noite, quando já quase estava dormindo, uns golpes suaves soaram na porta de meu quarto. Era Toni.

           Entrou embelezada com uma bonita bata rosada, com seu comprido cabelo escuro solto. Ao andar, mostrava suas longas pernas, enquanto se aproximava da cama.

           — Espero que não a incomode, senhora Sheffield. Queria falar com você quando não estivesse com seu marido.

           — Me chame Cathy — disse, enquanto me sentava e agarrava minha bata. — Não estava dormindo; só pensando, e eu gosto de ter outra mulher com quem possa falar.

           Toni começou a passear de um lado a outro.

           — Também eu tenho que falar com uma mulher; com alguém capaz de me compreender com mais facilidade que um homem. Por isso estou aqui.

           — Sente-se, estou disposta a escutar.

            Sentou-se na beira do sofá, retorcendo uma e outra vez uma mecha de seu negro cabelo, que algumas vezes apertava entre seus lábios.

           — Estou terrivelmente perturbada, Cathy. Bart me contou hoje alguns feitos muito inquietantes. Assegurou que você já está à corrente do nosso... de nosso amor. Temo que você nos tenha surpreendido em algum quarto em momentos mais íntimos. Agradeço-lhe que fingisse não vê-lo, para que não me sentisse envergonhada. Sou fiel a muitos princípios que a maioria da gente crê antiquados. — Dedicou-me um sorriso nervoso, procurando minha compreensão. — No momento em que vi o Bart, apaixonei-me. Há algo magnético em seus olhos escuros, tão místicos e cativantes.

           Esta noite me levou a seu escritório, sentou-se em seu escritório e, como um estranho, distante e frio, contou-me uma longa história sobre si mesmo, como se estivesse referindo-se a outra pessoa; a alguém que não gostasse. Sentia-me como um cliente de negócios a quem estivesse medindo cada uma de suas reações. Não sei o que esperava que eu lhe demonstrasse. Talvez pensasse que ia mostrar-me assombrada ou desgostada. Ao mesmo tempo seus olhos eram tão suplicantes...

           — Cathy, Bart te ama. Quer-te até o ponto da obsessão — disse Toni, fazendo que me sentasse muito reta, perplexa ante uma opinião tão louca. — Acredito que nem ele se dá conta do muito que te adora. Está convencido de que te odeia por causa de sua relação com seu irmão. — Ao dizer isto, ruborizou-se e baixou o olhar. — Sinto havê-lo mencionado, mas estou tentando ser sincera.

            — Adiante! — animei.

            — Já que Bart acredita que deveria te odiar por isso, concordo que assim seja. Entretanto, algo em ti, nele, o impede de confirmar a emoção que tem que dominar, se o amor ou o ódio. Em realidade, quer uma mulher como você, mas o ignora.

            Fez uma pausa erguendo as pálpebras para encontrar-se com meus olhos, muito abertos e interessados.

           — Cathy, disse-lhe que eu acreditava sinceramente que ele estava procurando uma mulher como sua mãe. Então empalideceu. Parecia escandalizado em extremo ante tal idéia.

           Fez uma pausa para observar minha reação.

           — Toni, tem que estar equivocada. Bart não quer uma mulher como eu, a não ser justamente o contrário.

           — Cathy, estudei psicologia. Bart fala muito contra ti, de modo que, enquanto o escutava, procurei manter a mente aberta. Bart também falou que nunca foi mentalmente estável e que qualquer dia poderia perder o juízo e com ele, sua herança. É como se pretendesse que eu o odiasse, que cortasse todos os laços e me pusesse a correr... — Soluçou, cobrindo o rosto com as mãos de modo que as lágrimas se filtravam por entre seus dedos, compridos e elegantes. — Tanto que o amo... e acreditava que ele me amava... Não posso continuar querendo e me deitando com um homem que tem tão pouca fé em minha integridade e pior ainda, em sua própria integridade.

           Tinha-me aproximado dela para consolá-la.

           — Não parta, por favor, Toni, fique. Dá outra oportunidade ao Bart. Conceda-lhe tempo para que medite um pouco sobre tudo isto. Bart sempre se deixou levar por seus impulsos. Além disso, tem esse velho parente que lhe murmura que você o quer somente por seu dinheiro. Não é Bart quem está louco, e sim o Joel, que lhe diz o que tem que procurar em uma futura parceira.

           Ela me olhou fixamente, esperançada, tentando controlar suas lágrimas. Eu prossegui, decidida a ajudar ao Bart a liberar-se desse sentimento infantil de não valer nada e da influência do Joel.

           — Toni, os gêmeos a adoram, e eu não posso atender a tudo. Fica para ajudar Jory e a mim. Jory necessita ajuda profissional para afiançar seus progressos. Tenha em conta que Bart é imprevisível, algumas vezes irracional, mas te ama. Tem me dito várias vezes quanto te ama e admira. Está provando seu amor com mentiras. De menino, era mentalmente instável, mas existiam boas razões que provocaram esse transtorno mental. Te aferre à sua confiança nele e poderá salvá-lo de si mesmo e de seu tio-avô.

           Toni ficou e a vida seguiu como de costume. Antes de seu primeiro aniversário, Deidre já caminhava e ia aonde queria, ao menos até onde nós lhe permitíamos chegar. Pequena e delicada, com seus dourados risinhos brincalhões, nós adorávamos a todos com seu incessante balbucio, que logo se converteu em palavras singelas, empreendendo um caminho que Darren seguiu.

           Quando Deidre se ouviu falar, já não pôde deter-se. Embora Darren fosse mais lento em caminhar, não o era em explorar lugares escuros e tenebrosos que assustavam a sua irmã gêmea. Darren investigava continuamente; ele era quem tinha que agarrar tudo para examinar, de modo que tivemos que colocar os objetos artísticos, delicados e caros, em prateleiras que ele não pudesse alcançar.

           Recebemos uma carta da Cindy, em que declarava que tinha saudades a sua família e queria passar o Natal em casa. Depois, como tinha sido convidada a uma fabulosa festa de fim de ano, retornaria a Nova Iorque de avião para assistir a ela.

           Entreguei a carta ao Jory para que a lesse. Sorridente, ergueu o olhar.

           — Contaste à Cindy os amores do Bart com a Toni?

           — Não — respondi.

           Queria que ela o descobrisse por si mesmo. Naturalmente, antes que Cindy partisse no verão passado, Toni tão somente estava a dois dias conosco, mas naquela época Cindy tinha estado tão descontente que não tinha prestado atenção a quem considerava só uma nova faxineira contratada.

           O dia em que esperávamos a chegada da Cindy foi extremamente frio. Chris e eu estávamos no aeroporto quando ela cruzou a porta de entrada, vestida de vermelho, tão bonita que toda a gente do aeroporto se voltou para contemplá-la.

           — Mamãe! Papai! — saudou alegremente, arrojando-se primeiro a meus braços e depois nos de Chris. — Me sinto muito feliz de vê-los. E antes que me advirtam, prometo não fazer nem dizer nada que possa fazer derrubar esse tonto chamado Bart. Neste Natal serei o anjinho doce e perfeito que ele quer que seja, embora, sem dúvida, Bart encontrará algo que me criticar; mas não farei conta.

           A seguir se interessou pelo Jory e os gêmeos e deixou escapar uma inundação de perguntas; sabíamos um pouco de Melodie? Que resultado estava dando a nova enfermeira? Tínhamos ainda o mesmo cozinheiro? Era Trevor tão amável como sempre?

            De uma ou outra maneira, Cindy me transmitia a sensação de que, apesar de tudo, éramos uma família autêntica e isso bastava para me fazer muito ditosa.

           Quando chegamos ao grande vestíbulo, Toni, Bart e Jory com os gêmeos em seu regaço, esperavam para nos dar as boas-vindas. Unicamente Joel ficou atrás e se negou a saudar nossa filha. Bart estreitou a mão da Cindy com calor, o que me produziu muito alívio e prazer. Ela pôs-se a rir.

            — Algum dia, irmão Bart, se sentirá mais que contente em ver-me e, possivelmente, então permita que seus castos lábios depositem um beijo em minha impura bochecha.

           Bart se ruborizou e jogou um olhar inquieto à Toni.

           —Tenho que te fazer uma confissão, Toni. No passado, Cindy e eu não nunca nos entendemos.

           — Bom, isso é um eufemismo — disse Cindy. — Mas fica tranqüilo, Bart, não vim para causar problemas, nem trouxe nenhum amigo. Me portarei bem. Vim porque quero a minha família e não podia suportar estar longe durante as férias.

            As festas daquele ano não podiam ser melhores, a menos que tivéssemos podido fazer retroceder o tempo, restituindo ao Jory sua antiga plenitude física e lhe devolvendo Melodie.

           Em questão de poucos dias, Cindy e Toni se fizeram muito amigas. Toni foi conosco fazer compras e Jory se ocupou dos gêmeos com a ajuda de uma empregada. O tempo voava como jamais ocorria quando Cindy estava longe. Os quatro anos de diferença de idade entre ela e Toni careciam de importância. Generosamente, Cindy lhe emprestou um de seus mais bonitos vestidos para a viagem a Charlottesville, na véspera de Natal, onde minha filha poderia dançar com um dos filhos de um médico que tinha conhecido no ano anterior. Jory também nos acompanhou e permaneceu sentado com aspecto infeliz enquanto Bart dançava com Toni.

           — Mamãe — murmurou Cindy quando retornou à nossa mesa. — Acredito que Bart mudou. Agora é uma pessoa muito mais sensível. Olha, começo a pensar inclusive que é um ser humano.

           Assenti sorrindo, mas ainda não podia evitar pensar no excessivo tempo que Joel e Bart passavam naquele quartinho que tinham convertido em capela. Por que? Nos arredores havia igrejas em qualquer parte.

           Chegou a véspera de fim de ano e Bart e Toni decidiram viajar de avião a Nova Iorque com Cindy, para celebrá-lo ali. Chris, Jory e eu nos deveríamos arrumar o melhor que pudéssemos sem eles. Aproveitamos aquela oportunidade para convidar alguns dos colegas do Chris, junto com suas esposas, para a nossa casa, conscientes de que Joel informaria disso ao Bart quando retornasse. Entretanto, não nos importava.

           Uma noite topei com Joel quando eu saía do quarto dos meninos. Sorrindo enfrentei a seu olhar.

           — Olha, Joel, parece que meu filho não dependerá tanto de ti quando se casar com Toni.

           — Bart nunca se casará com ela — disse Joel na sua maneira áspera e agoureira. — Bart é, como todos os jovens apaixonados, um bobo incapaz de ver a verdade. Ela quer seu dinheiro, não a ele, e muito em breve Bart o descobrirá.

           — Joel — disse com compassiva suavidade — Bart é um homem jovem muito atraente e apaixonado e, mesmo que fosse um picador de pedra, as garotas se apaixonariam por ele. Quando esquece sua obsessão por demonstrar ao mundo quão brilhante é, se torna um homem muito agradável. Deixe-o tranqüilo, deixa de tentar convertê-lo em algo que te agradará, mas que a ele pode não convir. Deixe que encontre sozinho seu próprio caminho porque isso será o melhor para ele, embora sua decisão não coincida com o que você tem previsto para ele.

           Joel me olhou depreciativamente de cima a baixo.

           — E o que sabe você do que está bem e do que está mal, sobrinha? Não demonstraste já que não tem nenhuma percepção da moralidade? Bart nunca encontrará a si mesmo sem um guia. Não esteve procurando toda sua vida em vão? Ajudou-o você com antecedência? Está lhe ajudando agora? Deus proverá para o Bart, Catherine, enquanto você continua castigando o Bart com seus pecados.

            Voltou-se e se afastou pelo corredor arrastando os pés.

            Enquanto Bart esteve em Nova Iorque com Toni e Cindy, Jory completou sua aquarela mais impressionante, que mostrava Foxworth Hall. Obscureceu os tijolos rosados com um tom mais velho, poeirento e desgastado, convertendo os imaculados jardins em um exuberante matagal de ervas daninhas; pôs o cemitério mais perto, de modo que as tumbas apareciam à esquerda, arrojando umas sombras longas que apanhavam a mansão em sua malha. Foxworth Hall parecia ter mais de dois mil anos e estar habitado por espectros.

           — Guarda isso bem guardado, Jory, e tenta um tema mais alegre — aconselhei, sentindo arrepios. — Acredito que foi a única aquarela feita pelo Jory que eu não gostei.

            Bart e Toni retornaram a casa de Nova Iorque e imediatamente notei a mudança. Já não se olhavam nem se falavam, dirigiram-se diretamente aos seus aposentos sem nos dar detalhes das diversões de que tinham desfrutado. Quando tentei abordar o tema, ambos recusaram falar.

           — Me deixe tranqüilo! — rugiu Bart. — Essa não é mais que uma mulher, no fim das contas.

           — Não lhe posso contar isso, Cathy — gemeu Toni. — Não me ama, isso é tudo!

           Janeiro passou voando e chegou fevereiro, quando Jory faria trinta e um anos. Preparamos um enorme bolo para ele, com forma de um coração recoberto com brilho vermelho para representar o presente de São Valentin que ele tinha significado. Escrevemos seu nome em branco e colocamos rosas brancas. Os gêmeos adoraram e gritaram ao ver Jory soprar as velas. Ambos estavam sentados em cadeirinhas altas, um a cada lado de seu pai, e antes que Jory pudesse cortar o bolo, Deidre e Darren estenderam simultaneamente as mãozinhas e agarraram punhados da macia guloseima. Todos ficamos olhando no que tinham convertido aquela obra de arte, enquanto os meninos enchiam de bolo suas bocas e se manchavam a cara de vermelho.

           — O que ficou é ainda comestível — disse Jory sorrindo.

           Silenciosamente, Toni se levantou para lavar as mãos e as caras daqueles dois peraltas de um ano de idade. Bart seguia os movimentos de Toni com olhos tristes e meditabundos.

            Ficamos presos, todos nós, entre as névoas invernais, presos no tempo gelado, tendo que nos conformar uns com os outros, quando outras pessoas teriam sido bem acolhidas, mesmo que alguns de nós seguíssemos querendo à pessoa errada.

           Chegou o dia em que a neve cessou e Chris pôde retornar com sua equipe de investigação do câncer, que trabalhava e trabalhava em excesso, continuamente, sem chegar nunca a conclusões definitivas.

           Uma nova nevasca reteve Chris em Charlottesville; assim transcorreram lentamente duas semanas, embora falássemos por telefone todos os dias em que as linhas não estavam cortadas; mas não eram conversações consoladoras. Eu sempre tinha a sensação de que alguém estava escutando em outro telefone.

           Chris me chamou na quinta-feira seguinte para me dizer que viria para casa, que acendesse o fogo da lareira, que preparasse um filete de carne, salada... e pusesse "aquela nova camisola branca que te dei de presente no Natal". Ansiosamente esperei diante de uma janela do piso superior para ver o carro azul do Chris dar a volta pela avenida. Quando o vi, desci correndo pela escada até a garagem para estar ali quando ele estacionasse. Abraçamo-nos como amantes que, depois de uma larga separação, corressem o risco de não poder abraçar-se e beijar-se nunca mais. Mas não foi até que estivéssemos no santuário de nossos aposentos, com as portas fechadas, que meus braços rodearam de novo seu pescoço.

           — Ainda está frio, de modo que, para te esquentar, escutará todas as coisas tristes que acontecem por aqui..., e com todos os detalhes. A noite passada ouvi que Joel dizia outra vez ao Bart que Toni somente procura seu dinheiro.

           — E é certo? — perguntou Chris, me mordiscando a orelha.

           — Duvido, Chris. Acredito que ela o ama de verdade, mas não estou segura de quanto durará o amor dela ou o dele. Parece que quando foram com Cindy para Nova Iorque, na véspera de fim de ano, Bart brigou sem piedade outra vez com Cindy, humilhando-a em um local noturno. Cindy conta em sua carta que depois ele brigou com Toni por dançar com outro homem. À Toni escandalizaram tanto suas brutais acusações que depois não foi mais a mesma. Acredito que tem medo dos ciúmes do Bart.

            Chris arqueou interrogativamente as sobrancelhas, embora não dissesse nada para me recordar que se tratava de "meu Bart".

            — E Jory, como vai?

           — Está uma maravilha, mas se sente sozinho e melancólico, com a esperança de que Melodie escreva. Se acorda durante a noite, pronuncia seu nome. Algumas vezes me chama Mel sem dar-se conta. Li um pequeno artigo no Variety sobre Melodie. Uniu-se à sua antiga companhia de balé e tem outro par. Hoje mesmo o mostrei ao Jory, acreditando que devia sabê-lo. Seus olhos se velaram. Deixou de um lado as aquarelas, precisamente quando estava pintando o mais bonito céu invernal e se negou a acabar a obra. De todo o modo, pus a pintura em lugar seguro, pensando que a terminará mais adiante.

           — Sim... Tudo sairá bem ao final. — E com isso nos rendemos o um ao outro, esquecendo nossos problemas durante o êxtase que tão bem sabíamos como criar.

           O tempo voava, esbanjado em amenidades. Bart e Toni encetavam diariamente discussões concernentes à atitude dele para com a Cindy, com quem Toni simpatizava de verdade, assim como as suspeitas que Bart albergava em relação à lealdade do Toni para com ele, e somente ele.

           — Não devia ter dançado com aquele homem que acabava de conhecer!

           E assim uma e outra vez. Também discutiam diariamente sobre os gêmeos e como deviam ser tratados. Muito em breve o estreito golfo que os separava se alargou para converter-se em um oceano.

            Irritávamo-nos uns aos outros. Nos ver e nos ouvir, viver tão perto tinha seu preço.

           Eu não contribuía em nada para evitar ou animar as brigas diárias de Toni e Bart. Estava convencida de que tinham que resolver entre eles suas diferenças e eu somente podia complicar mais a situação. Bart começou a visitar de novo os bares da localidade e freqüentemente ficava no povoado toda a noite. Eu suspeitava que passava a noite em bordéis, a menos que tivesse encontrado alguma outra mulher na cidade. Toni dedicava mais tempo aos gêmeos e, posto que Jory estava tentando lhes ensinar a dançar e falar mais claramente, também permanecia mais horas com ele.

           Por fim chegou maio, com os ventos fortes e as copiosas chuvas, mas portador também de leves sinais que pressagiavam a primavera. Eu observava Toni atentamente, esperando indícios que me informassem que via Jory mais como um homem e menos como um paciente. Os olhos do Jory a seguiam aonde ela fosse. Durante algumas semanas, quando estive na cama com um forte resfriado, ela assumiu todos os deveres, incluindo lavar as costas do Jory e dar massagem em suas longas pernas que, pouco a pouco, foram perdendo seu bom aspecto. Eu odiava ver como aquelas bonitas pernas foram convertendo-se em paus magros. Sugeri a Toni que lhe fizesse massagem várias vezes ao dia.

           — Sempre se sentiu muito orgulhoso de suas pernas, Toni. Sabia-as utilizar tão bem e tinha um aspecto tão magnífico em suas malhas... Embora não caminhem nem dancem, nem sequer se movam, faça tudo o que possa para que não percam sua forma. Assim Jory poderá conservar um pouco de seu orgulho.

           — Cathy, suas pernas são bonitas ainda; magras, mas bem formadas. É um homem maravilhoso, bom e minucioso, e sempre mostra alegria. Durante muito tempo não vi ninguém mais que o Bart.

           — Achas que Bart é igualmente belo?

            Sua expressão se endureceu.

           — Assim estava acostumada a acreditar. Agora me dou conta de que é muito atraente, mas não belo na medida em que o é Jory. Em outro tempo o considerei perfeito, mas durante nossa estadia em Nova Iorque, mostrou-se tão odioso com a Cindy e comigo que comecei a vê-lo de outro modo. Foi desagradável e cruel com ambas. Antes que eu soubesse o que acontecia, envergonhou-me em um clube noturno criticando meu vestido, que era perfeitamente correto. Possivelmente tinha um decote um pouco pronunciado, mas todas as demais garotas tinham vestidos parecidos. Retornei aqui, depois dessa viagem, sentindo um pouco de medo do Bart. E todos os dias cresce esse medo; parece muito estrito a respeito a coisas inofensivas, supõe que todo mundo é malvado. Acredito que se corrompe a si mesmo com seus pensamentos e se esquece de que a beleza sai da alma. Precisamente na noite passada me acusou de tentar excitar sexualmente ao seu irmão. Não me falaria dessa maneira se me quisesse realmente.

            — Cathy, ele nunca me amará como eu desejo e preciso ser amada. Esta manhã despertei com um grande vazio em meu coração ao compreender que o que sentia pelo Bart terminou. Ele arruinou o que havia entre nós ao me dar a conhecer o que posso chegar a sofrer se me casar com ele — prosseguiu Toni, soluçando. — Bart tem um modelo ideal da mulher perfeita e eu não o sou. Acredita que seu único defeito é seu amor para com o Chris. Sei que se alguma vez Bart encontrar a uma mulher a quem considere perfeita no princípio, seguirá procurando até que encontre algo que possa odiar nela. Portanto renuncio ao Bart.

           Sentia vergonha por ter que perguntar, mas devia sabê-lo:

           — Mas..., são amantes ainda, você e Bart, apesar de seus desacordos?

           Toni sacudiu a cabeça furiosamente.

           — Não! Naturalmente que não! Bart se transforma todos os dias, convertendo-se em alguém que nem sequer eu gosto. Encontrou a religião, Cathy, e segundo a maneira em que a interpreta, a religião vai salvar-lhe. Todos os dias me diz que deveria rezar mais, ir à igreja... e me afastar do Jory. Se continuar assim, acabarei odiando-o, e não quero que isso aconteça. Era tão bonito o que houve entre nós no princípio... Quero conservar a lembrança dessa época maravilhosa como uma flor que possa imprensar entre as páginas de minha memória.

           Levantou-se para partir, enxugando as lágrimas com o lenço feito uma bola, tirado de sua estreita saia branca e tentando sorrir.

           — Se preferir que vá para que possam contratar a outra enfermeira para o Jory e seus filhos, partirei.

           — Não, Toni, fica — disse rapidamente, temerosa de que partisse de todo modo.

           Não queria que se fosse, agora que acabava de comunicar abertamente que já não amava ao Bart. Por sua parte, Jory tinha renunciado a suas esperanças de que Melodie retornasse a seu lado e posto os olhos na mulher que acreditava ser a amante de seu irmão. Portanto, assim que fosse possível, o informaria de que não era assim.

           Toni saiu do quart e, comecei a refletir sobre o Bart e como era triste que não pudesse conservar o amor quando já o possuía. Destruía-o de propósito por medo de sentir-se escravo do amor, como freqüentemente me acusava de ter escravizado ao Chris, meu próprio irmão?

           Os dias passavam intermináveis. O olhar de Toni já não seguia melancolicamente ofegante ao Bart, lhe suplicando em silêncio que a amasse de novo como no princípio.

            Comecei a admirar a maneira em que podia manter sua dignidade apesar de algumas das insultantes observações que Bart lhe dirigia durante as refeições. Bart utilizou o antigo amor de Toni para ele para arrojar-lo contra ela mesma, fazendo-a parecer com uma mulher ligeira, depravada e imoral que o tinha seduzido com artimanhas.

           Refeição após refeição, eu os observava, notando-os cada vez mais distantes, por causa das feias palavras que Bart proferia com tanta facilidade.

           Toni ocupou meu lugar e entretinha Jory com os jogos que eu estava acostumada a lhe distrair; mas ela sabia fazê-lo de modo que os olhos do Jory se iluminassem ao sentir novamente que era um homem.

           Pouco a pouco, os dias se suavizaram. Na grama pardacenta se apreciavam fibras de verde fresco e o açafrão brotou nos bosques; floresceram os narcisos, as tulipas se entumeceram e as anêmonas gregas que Jory e eu tínhamos plantado ali onde não crescia a grama, converteram as colinas em palhetas de pintor, salpicadas de pigmentos. Chris e eu voltávamos a nos sentar no terraço para contemplar os gansos que voavam para o norte enquanto víamos nossa velha amiga, algumas vezes inimiga, a lua.

           A vida melhorou com a chegada do verão, quando a neve não podia reter o Chris afastado durante os fins de semana.

           Em junho os gêmeos completaram um ano e meio e eram capazes de correr livremente até onde nós lhes permitíamos ir. Instalamos balanços nos ramos das árvores, e que felizes eram de subir bem alto.... ou o que eles consideravam suficientemente alto para ser perigoso. Arrancavam os casulos de minhas melhores flores, mas não me zangava. Tínhamos milhares de flores, suficientes para encher todos os dias os aposentos com ramalhetes frescos.

           Bart insistia em que não só os gêmeos deviam assistir aos serviços religiosos, mas também Chris, Jory, Toni e eu. Não era um grande esforço. Cada domingo nos acomodávamos nas filas dianteiras e contemplávamos no alto a bonita janela com vidraça coloridas atrás do púlpito. Os gêmeos sempre se sentavam entre Jory e eu. Joel vestia uma batina negra enquanto pregava sermões de fogo e enxofre. Bart se sentava a meu lado, sustentando minha mão com tanta força que eu tinha que escutar ou me expor a que me rompesse os ossos. Junto a Toni, deliberadamente separada de mim por meu filho menor, achava-se Chris. Eu sabia que aqueles sermões nos estavam dedicados, para nos salvar dos fogos eternos do inferno. Os gêmeos se inquietavam, como todos os meninos de sua idade, e não gostavam de estar confinados ali, pois lhes aborreciam aqueles tristes serviços religiosos excessivamente longos. Só quando nos levantávamos para cantar hinos, eles elevavam seu olhar para nós e pareciam encantados.

           — Cantem, cantem — os animava Bart um dia, inclinando-se para beliscar seus bracinhos ou balançar os seus cachos de ouro.

           —Tira as mãos de meus filhos! — ordenou bruscamente Jory. — Eles cantarão ou não, conforme gostem.

           Reatava-se a guerra entre irmãos. Chegou o outono de novo. No dia do Halloween seguramos os gêmeos por suas mãozinhas e os levamos para a casa de um vizinho que consideramos o suficientemente confiável para não nos recriminar, nem a nós nem aos meninos. Nossos pequenos espíritos aceitaram, com seu acanhamento, a primeira guloseima do Halloween e estiveram gritando todo o caminho de volta a casa, emocionados por suas duas barras de caramelo e o par de pacotes de chiclete de sua propriedade.

           Passou o inverno, o Natal e o novo ano se iniciou sem nenhum acontecimento especial, pois este ano Cindy não veio para casa. Estava muito ocupada com sua incipiente carreira, de modo que só podia nos telefonar ou nos escrever cartas curtas, mas bastante informativas.

           Bart e Toni já se moviam em universos distintos. Talvez não fosse eu a única que tinha adivinhado que Jory se apaixonou profundamente por Toni, agora que todos seus intentos para restabelecer uma relação fraternal com o Bart tinham fracassado. Eu não podia culpar Jory, sobretudo se tinha em conta que tinha sido Bart quem tinha tomado Melodie e a tinha afugentado dali. Mesmo agora estava tentando reter Toni unicamente porque sentia o crescente interesse do Jory. Estava rondando outra vez Toni para evitar que seu irmão pudesse consegui-la.

           Amar Toni proporcionou ao Jory novas razões para viver. Estava escrito em seus olhos, em seu novo interesse por levantar-se cedo pelas manhãs e realizar aqueles duros exercícios, ficando em pé pela primeira vez com a ajuda das barras paralelas que tínhamos instalado em seu quarto. Logo que a água esquentou o suficiente, Jory nadava três vezes o comprimento da grande piscina e voltava a repeti-lo na última hora da tarde.

           Possivelmente Toni estava esperando ainda que Bart a fizesse sua esposa, embora freqüentemente o negasse.

           — Não, Cathy, agora não o quero. O que acontece é que me inspira lástima porque nem ele mesmo sabe quem é, nem ainda mais importante, o que quer ele além de dinheiro e mais dinheiro.

           Me ocorreu pensar que, de maneira inexplicável, Toni estava tão enraizada naquela casa como qualquer de nós.

           Os serviços religiosos do domingo me irritavam e me cansavam. As palavras fortes proferidas dos débeis pulmões de um ancião me faziam recordar a outro homem velho a quem somente tinha visto uma vez. "Produto do diabo; semente do diabo; má semente plantada em chão mau." Até mesmo os maus pensamentos eram julgados com a mesma severidade que as más ações. No fim de contas, o que não era pecaminoso para o Joel? Nada. Absolutamente nada.

           — Não assistiremos mais — disse com decisão ao Chris. — Fomos uns bobos em tentar agradar ao Bart. Eu não gosto do tipo de idéias que Joel está inculcando nas mentes impressionáveis dos gêmeos.

           Como Chris estava de acordo, ambos recusamos assistir aos serviços religiosos ou permitir que os gêmeos ouvissem todos esses gritos sobre o inferno e seus castigos.

           Joel se apresentou na zona de jogo dos jardins, onde, junto a uma pilha de areia, achavam-se os balanços, um tobogã e um aparelho para dar voltas que encantava aos gêmeos. Era um bonito dia ensolarado de julho e Joel parecia mais bem emocionado e doce ao sentar-se entre os meninos e começar a lhes ensinar um jogo com a corda, retorcendo-a e intrigando aos curiosos gêmeos. Abandonaram a pilha de areia sob o lindo toldinho protetor e se sentaram junto a Joel, olhando com a vã esperança de fazer um novo amigo de um velho inimigo.

           — Um velho sabe muitos pequenos truques para entreter aos pequenos. Sabem que posso construir aeroplanos e navios com papel? E os navios navegarão pela água.

            Eu não gostei de seus olhos redondos de assombro. Franzi o sobrecenho. Qualquer um podia fazer aquilo.

           — Conserva suas energias para escrever novos sermões, Joel — disse, me encontrando com seus olhos lacrimosos, humildes. — Já me cansei dos antigos. Por que não apóia seus sermões no Novo Testamento? Ensina ao Bart algo sobre isso. Cristo nasceu. Ele pronunciou seu sermão na montanha. Pronuncia ante o Bart esse sermão em especial, tio. Nos fale de perdão, de fazer aos outros o que faria a ti mesmo. Nos fale do pão arrojado às águas, do perdão que nos será retornado.

           — Me perdoe se fui negligente com o único filho de nosso Senhor — disse com falsa humildade.

           — Vamos, Cory, Carrie — chamei, me levantando para partir. — Vamos ver o que faz papai.

           A cabeça de Joel se ergueu de repente. Seus descoloridos olhos azuis adquiriram um azul muito mais profundo. Mordi a língua ao observar o sorriso retorcido que Joel mostrou. Assentiu sabiamente.

           — Sim, sei. Para ti são os outros gêmeos, aqueles nascidos de má semente plantada em chão mau.

            — Como te atreve a dizer isso!? — repliquei, irada.

            Não me dava conta nesse momento que, ao chamar os gêmeos do Jory pelo nome de meus adoráveis gêmeos defuntos, o que estava fazendo era acrescentar mais combustível ao fogo, a um fogo que já estava, sem que eu soubesse, levantando pequenas faíscas vermelhas de enxofre.

 

CHEGA UMA MANHÃ ESCURA

           A tormenta ameaçava um perfeito dia do verão com suas sinistras nuvens escuras, o que me obrigou a sair cedo ao jardim para cortar minhas flores enquanto ainda estavam frescas pelo orvalho. Detive-me o ver Toni segurar margaridas brancas e amarelas que levou a Jory, dentro de um pequeno copo de leite. Colocou-as perto da mesa onde meu filho trabalhava em outra aquarela que representava uma adorável mulher de cabelo escuro, bastante parecida com Toni recolhendo flores. Ocultavam-me os densos arbustos e só podia jogar uma olhada de vez em quando sem que nenhum deles me visse. Por alguma estranha razão, meu instinto me advertiu que devia permanecer quieta e silenciosa.

            Jory agradeceu a Toni com cortesia, dedicou-lhe um leve sorriso, enxaguou o pincel em água limpa, colocou-o em sua tinta azul e deu alguns retoques aqui e lá.

           — Nunca consigo mesclar a cor exata do céu — murmurou como para si mesmo. — O céu sempre está mudando... Oh, quanto daria de ter Turner como professor!

           Toni ficou de pé, contemplando como o sol brincava com o cabelo negro e ondulado do Jory. Este não tinha se barbeado, o que o fazia parecer mais viril. De súbito, ele ergue os olhos e observou o longo olhar do Toni.

           — Desculpo-me pelo aspecto que tenho, Toni — disse como que envergonhado. — Estava ansioso por me levantar e trabalhar em excesso esta manhã antes que chegue a chuva e me estrague outro dia. Odeio os dias que não posso sair ao jardim.

           Ela continuou sem falar, enquanto o sol glorificava sua pele, belamente bronzeada. Os olhos do Jory se entretiveram no rosto limpo e fresco do Toni antes que, por um instante, baixasse o olhar e observasse o resto de seu corpo.      

            — Agradeço-te as margaridas. Supõe-se que combinem. Qual é o segredo?

           Agachando-se, Toni recolheu alguns esboços que ele tinha arrojado ao cesto de papéis sem acertar. Antes de atirá-los ao cesto, Toni dedicou sua atenção aos temas e então seu adorável rosto se ruborizou.

           — Estiveste me desenhando — sussurrou.

           — Atira-os fora! — ordenou Jory quase zangado. — Não são bons. Posso pintar flores e montanhas e fazer algumas paisagens medianamente boas, mas os retratos são tão difíceis! Nunca posso captar sua essência.

           — Acredito que estes são muito bons — protestou ela, estudando-os outra vez. — Não deveria atirar fora seus rascunhos. Posso guardá-los?

           Com grande esmero, Toni tentou alisar as rugas dos papéis e os colocou depois em uma mesa pondo pesados livros em cima deles.

           — Contrataram-me para que cuidasse de ti e os gêmeos. Mas você nunca me pede que te ajude em nada. E a sua mãe gosta de brincar com os gêmeos pelas manhãs, de modo que isso me proporciona um pouco de tempo livre, o suficiente para poder fazer muitas outras coisas. O que posso fazer agora por ti?

           O pincel gotejando cinza coloriu o fundo das nuvens antes que Jory fizesse uma pausa e virasse sua cadeira para poder olhá-la de frente. Um sorriso malicioso passou por seus lábios.

            — Em outro tempo teria podido pensar em algo. Agora te sugiro que me deixe sozinho. Os inválidos não brincam de nada excitante, sinto dizer isso.

            — Creio que era o homem mais maravilhoso que existia — disse ela com tristeza. — Porém suponho que já não posso confiar em meu discernimento. Pensei que Bart queria casar-se comigo e agora grita e me ordena que desapareça de sua vista, depois me chama e me suplica que o perdoe. Desejo abandonar esta casa e nunca mais voltar, porém algo me retém aqui, algo que me sussurra baixinho que ainda não é o momento de partir.

           Desiludida pelo aparente fracasso, Toni se deixou cair em uma poltrona, larga e cômoda.

           — Agora está dizendo o mesmo que Bart repete sempre: "Vai-te!", ordena-me. "Me deixe sozinho!". Não acreditei que você fosse igual a ele.

            — Por que não? — perguntou Jory com amargura. — Somos irmãos, meio-irmãos. Ambos temos nossos momentos odiosos... então é melhor nos deixar sozinhos.

           — Sim — disse Jory, pintando de novo com traços cuidadosos, inclinando o tecido para fazer correr suas cores e criar fusões acidentais que em algumas ocasiões davam um belo resultado. — Assim é Foxworth Hall. Uma vez que cruzamos suas portas, é muito raro que se volte a sair.

            — Sua esposa escapou.

           — Certo.

           — Parece tão amargurado.

           — Não estou amargurado, estou azedo. Desfruto minha vida. Fui apanhado entre o céu e o inferno em uma espécie de purgatório onde os fantasmas do passado vagam pelos corredores durante a noite. Posso ouvir o som metálico das cadeias que arrastam e agradeço que nunca apareçam; possivelmente o som silencioso das rodas de borracha de minha cadeira os assusta e afasta.

           — Por que fica se pensa dessa maneira?

           Jory se separou de seu quadro e fixou nela seus olhos escuros.

           — Que demônios está fazendo aqui comigo? Vai para junto do seu amante, pois ao que parece você gosta da maneira que te trata. Seria bastante fácil fugir porque não está aqui atada pelas lembranças, cheia de esperanças ou sonhos que não se fazem realidade. Você não é uma Foxworth, nem uma Sheffield. Este Hall não tem cadeias que a atem.

           — Por que o odeia?

            — Por que não o odeia você?

            — Algumas vezes o odeio sim.

           — Confia em sua sensatez e vai. Vai-te antes que te transforme, por contágio, no que somos nós.

            — E, o que é você?

           Jory aproximou sua cadeira da beira das lajes, onde começavam os maciços de flores, e olhou fixamente para as montanhas.

           — Em outros tempos fui um bailarino e não pretendi nada mais do que isso. Agora que não posso dançar, devo supor que não sou nada importante para ninguém. De modo que fico pensando que pertenço a este lugar mais que a qualquer outro.

            — Como pode dizer o que acabo de escutar? Não acredita que é importante para seus pais, sua irmã e, sobretudo para seus filhos?

           — Eles não precisam de mim na realidade, ou não é assim? Meus pais têm um ao outro, meus filhos têm a eles, Bart tem a ti e Cindy tem sua carreira. Isso deixa a mim como o homem que sobra.

           Toni se levantou, colocou-se atrás da cadeira de rodas e começou a lhe fazer uma massagem na nuca com dedos hábeis.

            — As costas continuam te incomodando durante a noite?

            — Não — respondeu ele roucamente. Mentia.

           Oculta detrás dos arbustos, prossegui cortando rosas, pressentindo que eles ignoravam que eu me encontrava ali.

         — Se alguma vez te doer outra vez as costas, me chame e te farei uma massagem que te alivie a dor.

           Girando sua cadeira para encarar Toni, Jory a olhou com ferocidade. Ela teve que retroceder de um salto para não ser derrubada.

           — De modo que parece que, já que não pode conseguir um irmão, conforma-te com o outro, inválido, que não poderá resistir a seus muitos encantos, verdade? Obrigado, mas não, obrigado. Minha mãe me fará massagens se as costas me doerem.

           Toni se afastou com lentidão, voltando um par de vezes para o olhar. Sem dar-se conta de que o deixava com o coração ferido. Toni fechou uma das portas detrás dela sem fazer ruído. Eu deixei de cortar rosas para a mesa do café da manhã e me sentei na grama. Atrás de mim os gêmeos estavam brincando.

           Seguindo as instruções do Chris, estávamos fazendo todo o possível para incrementar seu vocabulário diariamente, e parecia dar resultado.

            — E o Senhor disse a Eva: "Vai-te deste lugar." — A voz infantil do Darren estava cheia de risinhos.

           Voltei-me para olhá-los. Ambos tinham tirado as roupas e as sandálias brancas para tomar sol. Deidre pôs uma folha no pequeno órgão viril de seu irmão e depois olhou para seu próprio lugar íntimo. Franziu o sobrecenho.

           — Der, o que é pecar?

           — É como correr — respondeu seu irmão. — Mau quando se está descalço.

           Ambos riram com malícia e se levantaram ligeiros para correr para mim. Tomei-os em meus braços e sustentei seus corpos suaves, quentes e nus perto de mim, banhando seus rostos com uma chuva de beijos.

           — Tomaram o café da manhã já?

           — Sim, avozinha. Toni nos deu suco de toronja, que é horrível. Comemos tudo menos os ovos. Nós não gostamos.

           Essa foi Deidre, que era a que falava quase sempre em nome do Darren, da mesma maneira que Carrie tinha sido a voz do Cory a maior parte do tempo.

            — Mamãe..., quanto tempo faz que está aqui? — perguntou Jory. Parecia um pouco envergonhado.

           Me levantando, sustentei os gêmeos nus em meus braços e me encaminhei para meu filho.

           — Encontrei Toni na piscina ensinando os gêmeos a nadar; pedi-lhe que devia ver como estava você enquanto eu cuidava dos pequenos. Adiantaram-se muito. Movem-se na água com muita mais soltura. Por que não nos acompanhaste esta manhã?

           — Por que te ocultaste?

           — Só estive colhendo rosas, como todas as manhãs, Jory. Sabe que o faço todos os dias. As flores recém cortadas, com que todas as manhãs adorno os aposentos, fazem a casa mais acolhedora e lhe dão maior calor. — Jocosamente lhe pus uma rosa vermelha detrás da orelha. Jory a tirou com brutalidade e a colocou com as margaridas que Toni lhe tinha dado.

           — Ouviste Toni e a mim, verdade?

            — Jory, quando estou ao ar livre em agosto, sabendo que setembro está chegando, aproveito todos os momentos e lhes dou o valor que têm. O aroma da rosa me faz pensar que estou no céu, ou no jardim do Patufi. Tinha os jardins mais preciosos que possa haver. Eram de todas as classes, divididas em zonas que representavam jardins ingleses, japoneses, italianos...

           — Ouvi tudo isso muitas vezes! — atalhou Jory com impaciência. — Te perguntei se nos ouviste.

           — Sim. Ouvi cada uma de suas fascinantes palavras e quando tive ocasião, dei uma olhadinha por cima das rosas para observá-los.

           O semblante do Jory se escureceu, enquanto eu deixava no chão os gêmeos e dava um tapinha em seus traseiros nus, lhes dizendo que procurassem Toni para que os ajudasse a vestir-se. Eles se afastaram correndo, como pequenos bonecos nus.

           Sentei-me e sorri ao Jory, que me lançou um olhar furioso e acusador. Parecia-se muito mais com o Bart quando se zangava.

           — De verdade, Jory, não queria bisbilhotar. Estava aí antes que vocês saíssem. — Fiz uma pausa e olhei sua cara zangada. — Amas Toni, verdade?

           — Não a amo! É do Bart! Maldito seja se for ficar outra vez com as sobras do Bart!

           — Outra vez?

           — Vamos, mamãe. Sabe tão bem como eu o motivo pelo qual Mel partiu desta casa. Bart o deixou bastante claro, e também ela, aquela manhã que o clíper foi destroçado tão misteriosamente. Melodie teria ficado aqui para sempre se Bart se mantivesse em sua posição de meu substituto. Acredito que ela se apaixonou por ele sem dar-se conta, enquanto tratava de satisfazer sua necessidade de mim e o sexo que compartilhávamos. Encolhido em minha cama, a ouvia chorar pelas noites, e me compadecia dela, mais que de mim mesmo. Era um inferno então e segue sendo um inferno agora; uma classe distinta de inferno.

           — Jory, o que posso fazer para te ajudar?

           Jory se inclinou, me olhando aos olhos com tal intensidade que me lembrei do Julian e das muitas maneiras em que eu o tinha enganado.

           — Mamãe, apesar de tudo o que esta casa representa para ti, eu terminei por senti-la como se fosse meu lar. Os corredores e as portas são largos. Disponho de um elevador para subir e descer em minha cadeira. Há uma piscina, terraços, jardins e bosques. Realmente... é uma espécie de paraíso, exceto por algumas falhas. Antes sofria porque nunca chegava o momento de me afastar. Agora não desejo partir. Embora não deseje acrescentar novas preocupações às que já tem, preciso falar.

           Esperei, angustiada, ouvir essas poucas "falhas".

           — Quando eu era menino, acreditava que o mundo transbordava de maravilhas e que os milagres podiam acontecer; os cegos veriam algum dia, os inválidos caminhariam e assim sucessivamente. Pensando dessa maneira, todas as injustiças que via ao redor e toda a fealdade, meu olhar melhorava. Acredito que o balé não me permitiu crescer de todo e por isso mantive a idéia de que os milagres podiam ocorrer de verdade se a gente acreditava neles com veemência, como nessa canção: "Quando formula um desejo para uma estrela, os sonhos se fazem realidade."

           Como no balé os milagres ocorrem continuamente, segui sendo menino até depois de me converter em adulto. Ainda estava convencido de que no mundo exterior, no mundo real, tudo acabaria bem se eu o desejasse com suficiente fé. Mel e eu compartilhávamos essa crença. Há algo no balé que te mantém virginal, para dizê-lo de algum jeito. Não vê o mal, não o ouve, embora isso não signifique que não se dele fale. Já sabe o que quero dizer, estou seguro, pois também esse foi seu mundo.

           Fez uma pausa e olhou para o céu ameaçador.

           — Nesse mundo eu tive uma esposa que me amava. No mundo exterior, o mundo real, ela encontrou rapidamente um amante que me substituiu. Eu odiava Bart por haver me arrebatado isso quando eu mais necessitava. Depois odiei Mel por permitir ao Bart que a utilizasse como um meio a mais para me machucar. E continua machucando, mamãe. Não te contaria tudo o que está acontecendo se não fosse porque algumas vezes temo por minha vida. Tenho medo por meus filhos.

           Eu escutava, tratando de não demonstrar assombro, enquanto Jory falava de tudo aquilo que antes nem sequer tinha insinuado.

           — Recorda as barras paralelas onde eu realizava exercícios para aprender a usar os suportes das costas e as pernas? Bom, pois alguém raspou o metal, de modo que, quando deslizei as mãos pelas barras, cravaram-se pedacinhos de metal na pele de minhas mãos. Papai extraiu isso e me prometeu que não lhe diria nada.

           Senti um profundo estremecimento em meu interior.

           — Que houve mais, Jory? Isso não é tudo, posso adivinhar por sua expressão.

           — Não há muito mais, mamãe. Coisas pequenas cujo único propósito é me amargurar a vida: insetos no café, no chá ou no leite, o pote de açúcar cheio de sal, o saleiro cheio de açúcar..., truques estúpidos, travessuras infantis que, entretanto, poderiam se tornar perigosas. Tachinhas na cama, no assento de minha cadeira de rodas...

            Nesta casa, sempre é Halloween para mim. Algumas vezes poderia rir porque é tudo tão estúpido... Mas quando coloco o pé em um sapato e há na ponta um prego que meus dedos não podem sentir e me causa uma infecção porque a circulação de minha perna não é muito boa, esta já não é uma questão de risada. Poderia me custar uma perna. Perco muito tempo revisando tudo antes de usar, como, por exemplo, os barbeadores elétricos com lâminas novas que, de repente, estão oxidadas.

           Olhou ao redor como se quisesse comprovar que Joel ou Bart não estavam à escuta e, embora não visse nada, pois eu olhei também, o volume de sua voz baixou até converter-se em murmúrio. .

           — Ontem fez muito calor, recorda? Você mesma abriu três das janelas de meu quarto para que eu tivesse brisa fresca; depois o vento mudou, soprou do norte e se tornou muito frio. Apressou-te a fechar as janelas e me cobrir com outra manta. Eu dormi. Meia hora depois despertei como se me achasse no Pólo Norte. As janelas, as seis janelas, estavam completamente abertas, permitindo que a chuva entrasse e molhasse minha cama. Mas isso não era o pior. Tinham-me tirado as mantas. Ia apertar a campainha para que alguém fosse me ajudar, mas não estava lá. Sentei-me e tentei agarrar a cadeira de rodas. Não estava onde normalmente a deixo, junto à minha cama. Por um momento me senti aterrorizado. Então, graças a que agora tenho mais força nos braços, baixei até o chão e os utilizei para me sentar em uma cadeira normal que pude colocar perto das janelas. Pensei que, do assento da cadeira, poderia fechar as janelas com facilidade, mas fui incapaz de fechar a primeira janela. Aproximei-me de outra e tampouco aquela podia fechar-se. Estava presa com a capa de pintura fresca que mandamos dar faz algumas semanas. Dei-me conta de que era inútil que tentasse com as outras quatro, enfrentando aquela chuva geada e o vento frio que passavam nos vãos abertos. Entretanto, teimoso, como diz freqüentemente que sou, insisti. Não tive sorte. Então deslizei para o chão e me arrastei para a porta. Estava fechada com chave. Percorri todo o quarto, me ajudando com as pernas dos móveis, até chegar ao armário, onde me coloquei, peguei um casaco de inverno, com o qual me cobri e fiquei dormindo.

           O que ocorria a meu rosto? Sentia-me tão aturdida que não podia mover os lábios, nem pensar, nem sequer mostrar assombro. Jory me olhava com severidade.

           — Mamãe, está escutando? Está pensando? Vamos... não faça comentários até que termine minha história. Como acabo de dizer, fiquei dormindo no armário, empapado de água. Quando despertei achava-me outra vez na cama e ela estava seca. Tinham me agasalhado com os lençóis e as mantas, e usava um pijama limpo. — Fez uma dramática pausa e olhou diretamente a meus olhos horrorizados. — Mamãe, se alguém desta casa queria que eu contraísse uma pneumonia e morresse, teria me deitado outra vez na cama e teria me abrigado? Papai não se encontrava em casa para me segurar e você não tem força suficiente.

           — Mas Bart não te odeia tanto — murmurei. — Não te odeia absolutamente.

           — Possivelmente foi Trevor quem me encontrou e não Bart. Mas, de todo modo, não acredito que Trevor seja bastante jovem e forte para me levantar. Entretanto, alguém desta casa me odeia — declarou firmemente. — Alguém gostaria que eu partisse. Estive refletindo sobre isto atentamente e cheguei à conclusão de que teria que ser Bart quem me encontrou no armário e me pôs na cama. Te ocorreu pensar que se você, papai e os gêmeos não ficarem no caminho, Bart teria nosso dinheiro além do seu próprio?

           — Mas se já é escandalosamente rico! Não necessita mais!

           Jory fez girar sua cadeira de rodas de modo que a virou para o este.

           — Em realidade, Bart nunca antes me tinha dado medo. Sempre tinha me inspirado lástima e tinha querido ajudar. Pensei em partir daqui com os gêmeos, contigo e com papai..., mas essa é a saída covarde. Se foi Bart quem abriu essas janelas para que entrassem a chuva e o vento, mais tarde mudou de idéia e decidiu me resgatar. Penso no clíper e em como foi destroçado e sei que Bart não pôde ser responsável por isso, já que o desejava muito. E penso no Joel, a quem você crê responsável, e logo me pergunto quem entre nós tem mais influência sobre o Bart. Alguém está agindo sobre o Bart, fazendo retroceder o relógio para que volte a ser aquele menininho atormentado de dez anos que queria que você e sua avó morressem no fogo para serem redimidas...

           — Por favor, Jory, disse-me que nunca mencionaria de novo esse período de nossas vidas.

           Produziu-se um silêncio; um silêncio prolongado, interminável, antes que Jory prosseguisse.

           — Os peixes de meu aquário morreram a noite passada. Alguém desconectou seu filtro de ar e o controle de temperatura estava destroçado. — De novo fez uma pausa, observando atentamente meu rosto. — Acredita no que acabo de te contar?

            Fixei o olhar nas vagas montanhas azuladas, de topos suaves e arredondados que me evocavam a imagem de antigas virgens gigantescas mortas, abandonadas em fileiras curvadas, ficando delas somente seus seios firmes, cobertos de musgo. Meu olhar se elevou ao céu, profundamente azul, onde nuvens tormentosas se alargavam como plumas junto a outras leves, reluzentes e douradas, que, detrás daquelas, prenunciavam um dia melhor.

           Sob um céu como aquele, rodeados pelas mesmas montanhas, Chris, Cory, Carrie e eu tínhamos confrontado o horror enquanto Deus nos observava. Meus dedos afastaram nervosamente aquelas invisíveis lembranças, tentando encontrar as palavras adequadas.

           — Mamãe, embora muito me desagrade ter que dizê-lo, acredito que temos que renunciar à esperança de que Bart mude. Não podemos confiar em seu esporádico amor por nós. Bart necessita outra vez ajuda profissional. Sempre tinha acreditado sinceramente que levava dentro dele uma grande quantidade de amor que era incapaz de expressar ou tirar de seu interior, mas aqui estou agora, pensando que já não tem remédio nem salvação. Não podemos tirá-lo de sua própria casa... a menos que o declarem demente e o internem em um sanatório psiquiátrico. Não quero que isso aconteça e sei que você tampouco. Portanto, só o que podemos fazer é partir. E é estranho, mas agora não tenho vontade de ir, embora sinta que minha vida está ameaçada. Me acostumei a esta casa; amo estar aqui, e não me importa arriscar minha vida nem a sua. A curiosidade do que possa acontecer hoje impede que me sinta aborrecido. Mamãe, a maior tortura de minha vida é o aborrecimento.

            Eu não estava escutando Jory. Meus olhos aumentavam ao ver Deidre e o Darren seguirem Joel e o Bart, para a pequena capela, que dispunha de sua própria porta exterior e na qual se podia acessar pelos jardins. Desapareceram dentro e a porta se fechou.

           Esqueci meu cesto de rosas recém cortadas e me pus em pé de um salto. Onde estava Toni? Por que não estava protegendo os gêmeos do Bart e do Joel? Então me senti como uma parva; por que devia acreditar Toni que Bart ou Joel fossem uma ameaça para aquelas duas criaturas pequenas e inocentes? Despedi-me apressadamente do Jory, disse-lhe que não se preocupasse, que voltaria ao cabo de uns minutos com o Darren e Deidre para que todos comêssemos juntos.

           — Jory, não te importa se te deixo sozinho alguns minutos?

           — Claro, mamãe. Vá procurar os meus pequenos. Esta manhã falei com o Trevor e me deu um intercomunicador que funciona com baterias e nos mantém em contato. Pode-se confiar totalmente no Trevor.

           Com a tranqüilidade que me dava a lealdade de nosso mordomo, apressei-me a ir encontrar os quatro que já estavam dentro da capela.

           Poucos minutos depois, deslizava pela pequena escada que conduzia à porta interior para entrar na capela que, segundo Joel havia dito ao Bart, era imprescindível se este desejava redimir sua alma do pecado. Era um quarto pequeno que tentava imitar os oratórios de que muitos velhos castelos e palácios dispunham para o recolhimento religioso da família. Ali estava Bart, ajoelhado detrás da primeira fila de assentos, com Darren a um lado e Deidre no outro. Joel se achava de pé no púlpito, com a cabeça inclinada, como se começasse a rezar. Com o maior sigilo possível, aproximei-me devagar para me esconder na sombra de uma coluna.

           — Nós não gostamos de estar aqui — se queixou Deidre em um murmúrio.

           — Fica quieta. Esta é a casa de Deus — advertiu Bart.

           — Ouço que meu gatinho está chorando — disse Darren fracamente, afastando-se temeroso do Bart.

            — Não pode ouvir seu gato de maneira nenhuma, nem a nenhum gato que chore a tanta distância. Além disso, não é teu, mas sim do Trevor, que te permite brincar com ele.

           Os gêmeos começaram a escoicear, tentando sufocar soluços de angústia. Ambos adoravam os gatinhos, os cachorrinhos, os pássaros, qualquer animal que fosse pequeno.

           — Silêncio! — ordenou Bart. — Não ouço nada procedente do exterior, mas se escutarem com atenção, Deus falará e lhes dirá como sobreviver.

           — O que é sobreviver?

           — Darren, por que permite que sua irmã faça sempre todas as perguntas?

           — Ela pergunta melhor.

           — Por que está tão escuro aqui dentro, tio Bart?

           — Deidre, como todas as mulheres, falas muito.

           A pequena começou a gemer.

           — Não é certo! A avozinha gosta que lhe fale...

           — A sua avó gosta que qualquer pessoa fale, desde que não eu seja — respondeu Bart amargamente, beliscando Deidre em seu diminuto braço para fazer com que ficasse quieta.

           No estrado, onde Joel erguia a cabeça, ardiam dúzias de velas. Os arquitetos tinham disposto a construção para que os pontos do teto convergissem naquele que se achasse no púlpito, de modo que Joel ficava enquadrado bem no centro de uma cruz luminosa e mística.

            Com voz clara e alta, Joel disse:

           — Elevaremo-nos e cantaremos louvores ao Senhor, antes que se inicie o sermão de hoje. — Sua voz ressoava segura e autoritária.

           Tinha me instalado em incômoda postura atrás da coluna de onde podia espiar sem ser vista. Como dois pequenos robôs, os gêmeos, que pareciam ter estado ali outras muitas vezes, sem que seu pai, Chris, Toni ou eu nos inteirássemos, estavam bem adestrados ou intimidados. Levantaram-se muito obedientes, um a cada lado do Bart, que pressionava com as mãos os ombros dos pequenos, e começaram, com ele, a entoar hinos. Suas vozes eram débeis, balbuciantes, incapazes de seguir bem a canção. Entretanto, esforçavam-se por manter o tom com o do Bart, que me surpreendeu com uma assombrosa voz de excelente barítono.

           Por que Bart não tinha cantado de igual maneira quando nós assistíamos aos serviços religiosos? Acaso Chris, Jory e eu intimidávamos ao Bart de tal modo que escondia o que devia ser um dom natural com o qual Deus lhe tinha abençoado? Quando tínhamos elogiado Cindy por sua bonita voz, Bart tinha franzido o sobrecenho sem dizer nada que indicasse que ele também possuía essa mesma faculdade para o canto. Oh, essa complexidade do Bart me conduziria à loucura!

           Em outras circunstâncias menos sinistras, teria me emocionado em ouvir a voz do Bart elevando-se tão gozosa enquanto punha nela todo seu coração. Através das vidraças das janelas se filtrava a luz do sol, glorificando a cara do Bart com tons púrpura, rosa e verde. Que bonito parecia enquanto cantava, com os olhos elevados, como se realmente estivesse inspirado pelo Espírito Santo!

           Comoveu-me sua fé em Deus. A meus olhos acudiram lágrimas enquanto me invadia uma sensação de alívio que fazia me sentir triste.

           “Oh, Bart, não pode ser de todo mau se canta dessa maneira e tem esse aspecto. Não é muito tarde para te salvar, não pode sê-lo!".

            Não era de estranhar que Melodie o tivesse amado, nem que Toni fosse incapaz de dar meia-volta e abandonar um homem semelhante.

           "Oh, cantem esta canção... esta canção de amor para Ti. Em Deus confiamos, em Deus confiamos..." Sua voz se elevava, afogando as vozes dos gêmeos. Senti-me transportada, fora de mim, desejando acreditar nos poderes de Deus. Fiquei de joelhos, inclinando a cabeça.

           — Obrigado, Meu Deus — murmurei. — Obrigado por salvar meu filho.

           Então o observei de novo, me acolhendo ao Espírito Santo e desejando acreditar em tudo o que Bart fazia.

           De repente, chegaram-me palavras do passado, palavras que Bart tinha escutado um dia.

           “Temos que tomar cuidado com o Jory” tinha advertido Chris. “Seu sistema de imunidade ficou desequilibrado. Não podemos permitir que contraia um resfriado que possa encher de líquido seus pulmões...”

           Entretanto, eu seguia ajoelhada, transfigurada. Nesses momentos não podia acreditar que Bart fosse nada mais que um homem jovem muito angustiado, tentando com enorme desespero encontrar o que era justo para ele.

         A voz poderosa do Bart acabou o hino. Oh, se Cindy tivesse podido ouvir! Se ambos tivessem podido cantar juntos, amigos por fim, unidos por seus talentos. Não havia ninguém para aplaudir quando terminou seu canto. Só ficaram o silêncio e o palpitar de meu alvoroçado coração.

           Os gêmeos olharam ao Bart com seus olhos azuis, grandes e inocentes.

           — Canta outra vez, tio Bart! — suplicou Deidre. — Canta aquilo a respeito da rocha...

           Agora já sabia por que os meninos iam à capela: para ouvir seu tio cantar, para sentir o que eu estava sentindo: uma presença invisível, cálida e consoladora.

           Sem nenhum acompanhamento, Bart cantou “Rocha dos Tempos”. Já então eu era uma confusão de emoções. Com uma voz como aquela, Bart podia ter o mundo a seus pés e, em vez disso, preferia encerrar sob chave seu talento em um escritório.

           — Com isso basta, sobrinho — disse Joel quando a segunda canção foi terminada. — Agora sentem-se todos, começaremos o sermão de hoje.

           Bart, obediente, tomou assento e obrigou a os gêmeos a sentarem-se os dois junto a ele. Manteve o braço protetor sobre os ombros dos pequenos de tal modo que de novo me emocionei até chorar. Bart amava os filhos do Jory? Tinha fingido durante todo o tempo que lhe desagradavam porque se pareciam com os malignos gêmeos do passado?

            — Inclinemos nossas cabeças e roguemos — disse Joel.

           Minha cabeça também se inclinou. Escutei sua reza com incredulidade. Parecia grandemente profissional, preocupado por aqueles que nunca tinham experimentado o gozo de serem "salvos" e pertencer inteiramente a Cristo.

           — Quando abrem seus corações e deixam que Cristo entre, Ele vos enche de amor. Quando amam ao Senhor, amem a seu Filho, que morreu por vós, e creiam nos caminhos justos de Deus e de seu Filho crucificado de modo tão cruel, encontrarão a paz cheia de plenitude que sempre lhes foi esquiva anteriormente. Abandonem seus pecados, suas espadas, suas couraças, sua ambição de poder e de dinheiro. Abandonem suas apetências terrestres que desejam os prazeres da carne. Abandonem todos os seus desejos terrestres que nunca podem satisfazer-se e acreditem! Acreditem! Sigam os passos de Cristo, sigam para onde Ele os conduza, acreditem em seus ensinamentos e serão salvos. Restos da seara das maldades deste mundo pecador e ambicioso de sexo e de poder. Salvem-se antes que seja muito tarde!

           Seu ardoroso zelo era terrível. Como podia eu acreditar em seu feroz sermão como acreditava na bela voz do Bart? Por que iam para mim visões de vento e chuva caindo sobre o Jory que afastavam de mim a oratória evangélica do Joel? Senti que tinha traído ao Jory com minha crença momentânea de que mesmo Joel era o que parecia ser nesse momento.

            Havia mais em seu sermão. Fiquei sobressaltada ante o inusitado tom coloquial que adquiriu nesse momento, como se estivesse falando diretamente com o Bart.

           — As vozes do povoado sossegaram por enquanto, porque construímos, nesta grande mansão da montanha, um pequeno templo dedicado a adorar ao Senhor. Os trabalhadores que construíram esta casa divina de adoração e criaram os complicados adornos lhes contaram o que temos feito, e outros correram a voz de que os Foxworth estão tratando de salvar suas almas. Eles só falam de vingança contra os Foxworth, que lhes governaram durante mais de duzentos anos. No mais profundo de seus corações permanecem enterradas muitas ofensas pelo mal que lhes causaram no passado nossos ascendentes ambiciosos e egoístas. Eles não esqueceram nem perdoaram os pecados de Corrine Foxworth, que se casou com seu meio-tio, nem perdoaram os pecados de sua mãe, Bart, e o irmão a quem ama. Sob seu mesmo teto... lhe dá ainda o prazer de gozar de seu corpo, como ela toma o prazer do dele... e sob o próprio céu azul de Deus, ambos jazem nus antes de fundir-se dois em um. Não podem ser um sem o outro, como se fossem viciados em alguma das muitas drogas que abundam em nossa sociedade de hoje: sem rumo, imoral, egoísta e obstinada.

           O médico, seu próprio irmão, redime-se um pouco com seus esforços por servir à humanidade, dedicando sua vida profissional à medicina e à ciência. De modo que ele pode ser perdoado com mais facilidade que a mulher pecadora, sua mãe, que nada oferece ao mundo, salvo uma filha pervertida que se tornará, possivelmente, ainda pior, e um primogênito que dançava de forma indecente, por dinheiro e para glorificar seu corpo. Por tal pecado teve que pagar, e pagou um alto preço, perdendo o uso de suas pernas; e ao perder suas pernas, perdeu seu corpo; e ao perder seu corpo, perdeu a sua esposa... O destino demonstra uma sabedoria infinita quando decide a quem castigar e a quem ajudar.

           Fez uma pausa, para produzir um efeito dramático, antes de cravar no Bart seu penetrante olhar cheio de fanatismo, como se quisesse imprimir sua vontade no cérebro de meu filho pela força bruta.

           — Agora, meu filho, conheço o amor que sente por sua mãe e sei que algumas vezes perdoaria tudo... Engano, engano... por que, a perdoará Deus? Não, não acredito que o faça. Salva-a, por que como pode Deus perdoá-la se ela for culpada de seduzir o seu irmão atraindo-o para seus braços?

           Fez uma nova pausa, com seus pálidos olhos iluminados por um ardor religioso, esperando que Bart lhe respondesse.

           — Tenho fome! — gemeu Deidre de repente.

           — Eu também — ameaçou Darren.

           — Ficarão e farão o que têm que fazer, ou sofrerão as conseqüências! — ameaçou Joel do púlpito.

           Os gêmeos se encolheram até converter-se em pequenas conchas, olhando fixamente para Joel com os olhos aumentados pelo medo. O que tinha feito Joel para lhes inspirar tanto temor? Oh, Meu deus! Haveria eu facilitado ao Joel e Bart uma oportunidade para machucar de algum jeito os pequenos?

           Transcorreram longos minutos, como se Joel os estivesse pondo a prova deliberadamente. Eu queria me levantar de um salto e ordenar ao Joel que cessasse de inculcar pensamentos malignos em uns meninos inocentes. Mas ali estava Bart, como se não ouvisse as palavras do Joel. Tinha seus escuros olhos fixos na magnífica janela com vidraça coloridas situada depois do púlpito, que mostrava Jesus com os meninos a seus pés, lhe olhando o rosto com adoração; a mesma adoração que via na cara do Bart. Não estava escutando a seu tio-avô, e sim enchendo-se com a presença que inclusive eu podia sentir nesse lugar.

           Deus existia; sempre tinha estado ali, mesmo que eu tivesse querido negá-lo.

           As palavras de Cristo tinham, na verdade, um significado no mundo de hoje e, de algum jeito, seus ensinamentos tinham penetrado e encontrado um lugar nas perturbadas ondas cerebrais do Bart.

           — Bart, seus sobrinhos estão dormindo! — reprovou Joel muito zangado. — Está descuidando de seus deveres! Desperta-os! Imediatamente!

           — Tolera os pequenos, tio Joel — disse Bart. — Seus sermões duram muito e eles se aborrecem e se inquietam. Não são maus nem estão corrompidos. Nasceram dentro dos votos sagrados do matrimônio. Não são aqueles primeiros gêmeos, os gêmeos nascidos do mesmo sangue. Tio, não são os gêmeos malignos...

            Embora visse Bart erguer Darren e Deidre em seus braços, sustentando-os de uma maneira protetora, senti temor e, ao mesmo tempo, esperança. Bart estava demonstrando que era tão puro e nobre como seu pai.

           De repente ouvi palavras que me gelaram o sangue. Fiquei atônita nas sombras. Bart tinha se levantado com os gêmeos em seus braços.

            — Estou a ver!Vamos! — ordenou Joel.

           Tinha terminado seu sermão e sua voz forte voltava a seu débil sussurro habitual. Tinha esgotado seu fornecimento de energia, de modo que já era ineficaz?

            Roguei que assim fosse.

           — Agora, meninos que não aprenderam como controlar as exigências físicas, repitam as lições que eu tenho tentado lhes ensinar. Falem, me digam, Darren, Deidre! Pronunciem as palavras que têm que guardar para sempre em suas mentes e corações. Falem! E deixem que Deus os ouça.

           Os pequenos tinham vozes idênticas finas e infantis. Poucas vezes diziam mais que umas poucas palavras ao mesmo tempo. Freqüentemente utilizavam mal a sintaxe... mas nesta ocasião entoaram e se expressaram correta e gravemente como adultos.

            Bart escutava com atenção, como se tivesse que ajudar em sua aprendizagem.

           — Nós somos meninos nascidos de má semente. Somos sucessores do diabo, procriação dele. Herdamos todos os genes maus que conduzem a uma relação inces... incestuosa.

           Contentes com eles mesmos, sorriram com alegria por havê-lo dito bem, sem compreender o significado das palavras nem um pouquinho. Depois, ambos voltaram seus graves olhos azuis para aquele terrível velho do púlpito.

           — Amanhã continuaremos com nossas lições — disse Joel fechando sua enorme Bíblia negra.

           Bart agarrou os gêmeos, beijou-lhes a bochecha e lhes disse que agora colocariam umas calças limpas e secas, comeriam o almoço, se banhariam e, depois de uma boa sesta, assistiriam de novo aos serviços na capela.

           Nesse momento me levantei e avancei um passo em plena luz.

            — Bart, o que está tentando fazer com os filhos do Jory?

           Ficou me olhando de um lado a outro, ao mesmo tempo em que empalidecia sua tez bronzeada.

           — Mãe, supõe-se que você não tem que vir aqui, exceto aos domingos...

           — Por que? Espera me manter afastada para que você possa moldar os gêmeos até convertê-los em seres humanos retorcidos que mais tarde possa castigar? É esse seu propósito?

           — Quem torceu a ti te convertendo no que é? — perguntou-me Joel com frieza em seus olhos pequenos e duros.

           Em um selvagem ataque de raiva, dei a volta para enfrentá-lo.

           — Seus pais! — exclamei. — Sua irmã, Joel, encerrou-nos com chave e nos deixou isolados, vivendo de promessas um ano atrás de outro, enquanto Chris e eu nos convertíamos em adultos sem ninguém a quem amar, salvo um ao outro. Portanto, culpa aqueles que fizeram do Chris e de mim o que somos. Mas antes que pronuncie outra palavra mais, me deixe falar.

           Amo Chris e não me envergonho. Acredita que não dei nada ao mundo que seja importante e, entretanto, aqui tem o seu sobrinho-neto, sustentando os meus netos, E no terraço se acha outro de meus filhos. E eles não estão corrompidos! Não são filhos do diabo, ou procriação dele. Nunca te atreva, por muito que vivas, a dizer essas palavras outra vez a qualquer dos que me pertencem ou te prometo que me encarregarei de que seja declarado senil e o encerrem!

           A cor voltou para rosto do Bart enquanto a pele pastosa do Joel ficava pálida. Seu olhar procurava desesperadamente o do Bart, mas este estava me olhando com fixidez como se nunca me tivesse visto até esse momento.

           — Mãe — disse fracamente, e teria dito mais, mas os gêmeos se arrancaram de seus braços e se aproximaram de mim correndo.

           — Fome, avozinha, fome...

            Meu olhar se cravou nos olhos do Bart.

           — Tem a voz mais bonita que já tinha ouvido em minha vida — disse, retrocedendo e levando comigo os meninos. — Seja você mesmo, Bart. Não necessita do Joel. Você encontrou seu talento, utiliza-o.

           Bart ficou ali imóvel, como se tivesse um monte de coisas que dizer, mas Joel estava agarrado em seu braço, suplicante, do mesmo modo que os gêmeos pediam a comida.

 

O CÉU NÃO PODE ESPERAR

            Poucos dias depois, Jory adoeceu de um resfriado que não queria desaparecer. O frio, a chuva e o vento tinham feito seu trabalho. Estava encolhido na cama, débil, com as sobrancelhas cobertas de suor, retorcendo-se e girando a cabeça continuamente de um lado a outro, enquanto gemia, grunhia e chamava Melodie sem descanso. Notei que Toni franzia o sobrecenho cada vez que Jory repetia o nome de Melodie, apesar de se esforçar por lhe cuidar.

           Enquanto os observava juntos, dava-me conta de que na verdade Toni estava preocupada com Jory; se fazia patente em cada gesto que lhe prodigalizava, em seus olhos suaves e compassivos e em seus lábios, que roçavam a cara de meu filho quando ela acreditava que eu não a olhava.

           Toni se voltou para me dedicar um valente sorriso.

           — Tenta não preocupar-se muito, Cathy — me suplicou, umedecendo o peito nu do Jory com água fria. — A maioria das pessoas ignora que uma febre costuma ser muito útil para queimar o vírus. Como esposa de um médico, estou segura de que você já sabe e que está angustiada se por acaso contrair uma pneumonia. Mas isso não ocorrerá.

           — Rezemos para que assim seja...

           Mas eu seguia inquieta, porque ela só era uma boa enfermeira, mas carecia da habilidade médica do Chris. Eu telefonava a ele todas as horas, tentando encontrá-lo naquele enorme laboratório da universidade. Por que não respondia Chris às minhas chamadas urgentes? Comecei a sentir, além de preocupação, raiva por não poder lhe encontrar. Não tinha prometido estar sempre perto quando eu necessitasse?

           Tinham transcorrido dois dias desde que Joel pregou seu sermão e Chris não tinha telefonado.

           O tempo sufocante, úmido, a chuva intermitente e as tormentas só contribuíam para criar mais tristeza e confusão em minha mente.

           O estampido do trovão rugia sobre nossas cabeças. O resplendor dos relâmpagos iluminava por instantes um céu terrível, escuro. Perto de meus pés, os gêmeos brincavam e sussurravam que era a hora de ir às lições da capela.

           — Por favor, avozinha. Tio Joel diz que temos que ir.

           — Deidre, Darren, quero que me escutem com muita atenção e esqueçam o que tio Joel e tio Bart lhes dizem. Seu pai quer que fiquem comigo e com Toni, perto dele. Já sabem que seu papai está doente e a última coisa que desejaria é que seus filhos visitem essa capela onde.... onde... — vacilei. Porque... o que podia eu dizer do Joel que mais tarde não se voltasse contra mim?

           Ele estava ensinando aos meninos o que acreditava justo. Se pelo menos não lhes tivesse ensinado aquelas frases... "Filhos do diabo. Procriação do diabo."

           Os dois gemeram, como uma só voz.

           — O papaizinho morrerá? — perguntaram ao mesmo tempo.

           — Não, claro que não morrerá. E o que sabem vocês dois da morte?

           Expliquei-lhes que seu avô era um médico maravilhoso e que chegaria a qualquer momento em casa. Ficaram me olhando sem entender nada até que me dei conta de que freqüentemente eles pronunciavam palavras que tinham aprendido de cor sem compreender seu significado. A morte... O que podiam saber eles da morte? Toni se voltou para me dirigir um estranho olhar.

            — Sabe uma coisa? Enquanto ajudo estes dois pequenos a vestir-se e despir-se, e os banho, eles conversam sem cessar. Na verdade são uns meninos notáveis e brilhantes. Suponho que, ao passar tanto tempo com os adultos, aprenderam mais depressa que brincando com outros meninos de sua idade. A maior parte do que dizem enquanto brincam sozinhos são tolices, mas, de repente, entre esse falatório de bobagens, surgem palavras graves, palavras de adultos. Então, lhes aumentam os olhos, murmuram, olham ao redor e parecem assustados. É como se esperassem ver alguém de repente. Sussurrando, falam-se um ao outro de Deus e sua ira. Alarmam-me.

            Passou seu olhar de mim aos gêmeos e de novo ao Jory.

           — Toni, escuta com atenção. Nunca perca de vista aos gêmeos. Os mantenha junto a ti durante todo o dia, a menos que saiba com toda segurança que estão comigo, com o Jory ou meu marido. Quando estiver cuidando do Jory e muito ocupada para vigiar seus passos, me chame e eu os atenderei. Sobretudo não os permita ir com o Joel. — E, por muito que odiasse ter que fazê-lo, tive que acrescentar o nome do Bart.

           Ela me dirigiu outro olhar de inquietação.

           — Cathy, acredito que não só foi o que aconteceu em Nova Iorque com a Cindy e comigo, mas também o que Joel deve ter dito quando retornamos, o que fez que Bart começasse a me olhar como se eu fosse uma pecadora da pior espécie. Dói que o homem a quem acredita amar te lance acusações tão feias. — De novo refrescava os braços e o peito do Jory. — Jory nunca diria coisas tão horríveis, apesar do que eu fizesse. Algumas vezes parece enfurecido, mas, mesmo então, é o bastante delicado para não expressar nada que possa me ofender. Nunca tinha conhecido a um homem tão minucioso e considerado.

           — Está dizendo que ama ao Jory? — perguntei, querendo acreditar que assim era, mas temerosa de que sua desilusão com o Bart provocasse um rebote que lhe fizesse amar ao Jory como um substituto.

            Ruborizou-se e baixou a cabeça.

           — Faz quase dois anos que estou nesta casa e vi e ouvi muitíssimas coisas. Aqui encontrei satisfação sexual com o Bart, mas não era romântico nem delicado, somente excitante. É agora quando estou começando a sentir o amor de um homem que tenta me compreender e me dar o que necessito. Seus olhos nunca condenam. De seus lábios nunca saem palavras terríveis. Meu amor por Bart foi um fogo ardente, acalorado nas chamas do primeiro dia que nos conhecemos, enquanto meus pés se assentavam em areias movediças, sem saber que ele procurava alguém como você...

           — Eu gostaria que deixasse de dizer isso, Toni — protestei molestada.

            Bart desprezava tanto a si mesmo que temia que uma mulher o rechaçasse primeiro. Para evitar que isso acontecesse, descartou Melodie antes que ela tivesse oportunidade de lhe voltar às costas. Mais tarde, dirigiu sua ira contra Toni antes que ela pudesse lhe odiá-lo e o abandonar. Suspirei outra vez.

           Toni esteve de acordo em que nunca discutiria sobre o Bart comigo e então, com minha ajuda, começou a pôr uma jaqueta de pijama limpa em Jory. Juntas trabalhávamos como uma equipe, enquanto os gêmeos brincavam no chão, empurrando carrinhos e caminhões, como uma vez Cory e Carrie tinham feito.

           — Te assegure bem de saber a que irmão ama antes de machucar os dois. Falarei de novo com meu marido e com o Jory e tentarei por todos os meios os convencer a partimos desta casa logo que Jory se recupere. Pode vir conosco se assim o desejar.

           Seus bonitos olhos cinzas se animaram. Olhou-me primeiro e depois passou seu olhar ao Jory, que ficou de lado e murmurou incoerentemente em seu delírio.

           — Mel... é nosso turno? — acreditei que dizia.

           — Não, sou Toni, sua enfermeira — disse ela, lhe acariciando o cabelo e retirando-o para trás de sua testa suarenta. — Tiveste um resfriado... mas logo te encontrará perfeitamente bem.

           Jory ergueu o olhar para Toni, confuso, como se tentasse distinguir essa mulher daquela com que sonhava todas as noites. Durante o dia, Jory só tinha olhos para Toni, mas de noites Melodie voltava para o atormentar. O que há na condição humana que nos aferra à tragédia com tanta tenacidade e nos faz esquecer facilmente a felicidade que temos a nosso alcance?

           Jory teve um violento acesso de tosse, que lhe produziu sufocos e expulsou abundante mucosidade. Toni lhe sustentou com ternura a cabeça e depois arrojou os lenços de papel sujos.

            Tudo quanto Toni fazia pelo Jory, o fazia com ternura; lhe afofar os travesseiros, lhe fazer massagens nas costas, lhe mover as pernas para as manter flexíveis, mesmo que ele não pudesse controlá-las. Eu não podia evitar me sentir impressionada com tudo o que ela se preocupava para que Jory se sentisse a gosto.

           Retrocedi para a porta, com a sensação de que era uma intrusa presenciando um momento íntimo muito importante, quando Jory conseguiu focar o olhar o suficiente para agarrar a mão de Toni e olhá-la aos olhos. Embora estivesse muito doente, algo em seus olhos falava com ela. Em silêncio tomei a mão de Darren e a de Deidre depois.

          — Temos que ir agora — sussurrei enquanto contemplava como Toni, tremendo, inclinava a cabeça.

           Ante minha surpresa, antes que eu fechasse a porta, ela levou a mão do Jory aos lábios e lhe beijou cada um dos dedos.

           — Estou me aproveitando de ti — murmurou — em um momento em que não pode te defender, mas preciso lhe dizer como fui tola. Você esteve aqui todo o tempo, e eu nunca te vi. Não me fixei em ti porque Bart se interpunha.

           Com olhos calorosos, Jory respondeu fracamente, enquanto bebia a sinceridade das palavras de Toni acima de tudo, na expressão amorosa e ardente dela.

            — Suponho que é fácil não ver um homem que está em uma cadeira de rodas e possivelmente isso foi suficiente para te cegar. Mas eu estive aqui, esperando, confiando...

           — Oh, Jory, não me guarde rancor porque permiti que Bart me enfeitiçasse com seu encanto. Estava aflita e como que aturdida ao notar que ele me achava tão desejável. Arrebatou-me por completo. Acredito que todas as mulheres, em segredo, desejam um homem que não esteja disposto a aceitar uma negativa e nos persiga incansável até que nos rendamos. Me perdoe por ter sido uma parva e uma conquista fácil.

           — Está bem, está bem — sussurrou ele, fechando os olhos. — Não deixe que o que sente por mim seja piedade... ou saberei.

           — Você é o que eu desejava que Bart fosse! — exclamou ela enquanto seus lábios se aproximavam dos dele.

           Fechei a porta. De retorno aos meus próprios aposentos, sentei-me perto do telefone esperando que Chris me chamasse em resposta às minhas muitas mensagens urgentes. À beira do sono, com os gêmeos agasalhados cuidadosamente em minha cama fazendo sua sesta, o telefone soou. Agarrei-o depressa e respondi. Uma voz profunda, resmungona, perguntou pela senhora Sheffield, e eu me identifiquei.

           — Não a queremos aqui, nem a você nem a sua espécie — disse essa voz, profunda, aterradora. — Sabemos o que está acontecendo aí em cima. Essa pequena capela que construíram não nos engana. É um escudo atrás do qual se ocultam enquanto burlam as normas da decência impostas por Deus. Parta... antes de que nós executemos a lei de Deus com nossas mãos e façamos sair de nossas montanhas até o último membro de sua família.

            Incapaz de encontrar uma resposta inteligente, permaneci em silêncio, perplexa e tremendo até que quem quer que fosse desligou. Durante um longo momento fiquei ali sentada com o auricular na mão. O sol se filtrou entre as nuvens e esquentou meu rosto, e nesse momento desabei. Olhei os aposentos que eu tinha decorado para satisfazer meu próprio gosto e descobri que esses aposentos já não recordavam minha mãe e seu segundo marido. Ali só ficavam restos do passado que eu queria recordar.

           As fotografias do Cory e Carrie quando eram bebês emolduradas em prata sobre a minha penteadeira, colocadas junto às do Darren e Deidre. Eram gêmeos parecidos, mas quando se conheciam bem se comprovava que não eram exatos. Meu olhar passou ao outro porta-retrato de prata, de onde Paul me sorria, Henny estava em outro. Julian fazia uma careta do seu, de uma maneira que ele acreditava sedutora. Também tinha ali algumas fotos instantâneas de sua mãe, madame Marisha, emoldurada perto de seu filho. Mas não havia nenhuma fotografia do Bartholomew Winslow. Contemplei a de meu próprio pai, que tinha morrido quando eu tinha doze anos. Parecia-se muito com Chris, embora agora este parecesse mais velho. Damos a volta e o moço que conhecemos tão bem já é um homem. Os anos voavam tão depressa! Em outro tempo, um momento tinha parecido mais longo do que era um ano agora.

           De novo olhei os dois casais de gêmeos. Unicamente alguém muito familiarizado com ambos distinguiria as ligeiras diferenças. Nos filhos do Jory se apreciava uma leve semelhança com Melodie. Olhei outra fotografia, com o Chris e eu mesma, feita quando vivíamos ainda em Gladstone, Pensylvania. Eu tinha dez anos e ele acabava de fazer treze. Estávamos de pé na neve junto ao boneco que acabávamos de fazer, sorrindo para papai enquanto ele fotografava. Nossa mãe tinha guardado aquela fotografia, agora amarelada, em seu álbum azul. Nosso álbum azul, agora.

           Naqueles pequenos pedaços quadrados de papel brilhante, tinha guardados lembranças de nossas vidas, congeladas para sempre no tempo; como aquela Catherine Doll sentada no batente da janela do sótão, vestida com uma camisola transparente enquanto Chris tirava a fotografia, nas sombras. Como tinha conseguido eu me sentar tão quieta e manter aquela expressão? Como? Através da camisola se adivinhava a forma tenra de uns seios jovens e naquele perfil adolescente a tristeza melancólica que eu havia sentido naquela época.

           Que adorável era aquela moça ... eu mesma. Contemplei-a longa e minuciosamente. Aquela jovem fraca, esbelta, fazia muito tempo que se converteu na mulher de meia-idade que eu era. Suspirei pela perda daquela garota especial com a cabeça cheia de sonhos. Tratei de desviar o olhar, mas, em lugar disso, levantei-me para segurar a fotografia que Chris tinha levado com ele à universidade, à Faculdade de Medicina. Quando era interno, ainda levava essa fotografia consigo. Era aquele papel que eu tinha na mão que tinha conservado tão constante seu amor por mim? Esse rosto de uma garota de quinze anos, sentada à luz da lua? Ofegante, sempre desejando um amor que durasse sempre? Já não me parecia com aquela jovem cuja fotografia sustentava em minha mão. Parecia-me com minha mãe na noite que ela queimou o Foxworth Hall original. O toque do telefone me surpreendeu e voltei para presente.

     — Arrebentou um pneu de meu automóvel — disse Chris ao ouvir minha voz débil. — Fui a outro laboratório e ali passei algumas horas, de modo que só quando voltei encontrei todas essas mensagens sobre o Jory. Não está pior, verdade?

           — Não, carinho, não está pior.

           — Cathy, o que aconteceu?

           — Contarei isso quando retornar.

           Chris chegou em casa uma hora depois e entrou correndo para me abraçar, antes de ir para junto do Jory.

           — Como está meu filho? — perguntou ao sentar-se na cama do Jory e tomar o pulso. — Sua mãe me explicou que alguém abriu todas suas janelas e ficou empapado pela chuva.

           — Oh! — exclamou Toni. — Quem pôde fazer algo tão cruel? Sinto muito, doutor Sheffield. Tenho o costume de comprovar que tudo vá bem com o Jory, quero dizer o senhor Marquet, embora ele não me tenha chamado.

           Jory lhe deu uma piscada alegre e feliz.

           — Acredito que pode deixar de me chamar senhor Marquet agora, Toni. — Sua voz era muito débil e rouca. — E tudo isso aconteceu em seu dia livre.

           — É — disse ela. — Deve ter sido na manhã que fui à cidade para visitar minha amiga.

            — É só um resfriado, Jory — disse Chris, apalpando seu tórax. — Não há indícios de líquido nos pulmões e pelos sintomas que apresenta não tem uma gripe. De modo que toma seu remédio, bebe os líquidos que Toni te trouxer e deixa de te inquietar por Melodie.

           Mais tarde, acomodado em sua poltrona favorita em nossa sala de estar, Chris escutou tudo quanto eu tinha para lhe contar.

            — Reconheceu a voz?

           — Chris, não conheço ninguém do povoado bastante bem para isso. Procuro permanecer afastada deles.

           — E como sabe que era do povoado?

           Não me tinha ocorrido antes. O que eu tinha feito era supor.

            — Em todo caso, logo que Jory estivesse suficientemente recuperado, partiremos dessa casa.

           — Se for isso o que precisa — disse Chris, olhando ao redor com pena. — Devo admitir que eu gosto disto. Eu gosto do entorno que nos rodeia, dos jardins, dos empregados que nos atendem, e sentirei partir daqui. Mas não fujamos para muito longe. Não quero ter que deixar meu trabalho na universidade.

           — Chris, não se preocupe. Não quero te separar disso. Quando formos daqui, nos instalaremos em Charlottesville e rogaremos a Deus que ninguém dali saiba que sou sua irmã.

            — Cathy, minha esposa, a mais querida e a mais doce, não acredito que mesmo que soubessem, isso lhes importasse um pouquinho. Além disso, parece mais minha filha que minha esposa.

           Graças a sua doçura tão maravilhosa, Chris podia dizer isso com honestidade nos olhos. Eu sabia que estava cego quando me olhava. Chris só via o que queria ver, e que ainda era a garota que eu tinha sido.

           Pôs-se a rir diante da minha expressão dúbia.

           — Amo a mulher em que te converteste. Assim não comece a procurar defeitos quando eu te mostro uma honestidade de dezoito quilates. De modo que dou o melhor que tenho: meu amor, que crê de todo coração que é bela interior e exteriormente.

           Cindy se apresentou em uma de suas visitas rápidas que revolucionavam toda a casa, vertendo sem respirar todos os detalhes de sua vida, desde a última vez que nos tinha visto. Parecia incrível que pudessem acontecer tantas coisas a uma garota de dezenove anos.

           No momento em que chegamos ao grande vestíbulo, Cindy subiu correndo pela escada para jogar-se nos braços do Jory com tanto ímpeto que eu temi que fizesse derrubar a cadeira.

           — Realmente — disse Jory — pesas menos que uma pluma, Cindy. — Beijou-a, examinou-a de pés a cabeça e pôs-se a rir. — Oh! Que tipo de traje é este? Ah! Por Deus!

           — Um que sem dúvida encherá de horror os olhos de certo irmão chamado Bart. Escolhi este precisamente para chatear a ele e ao querido tio Joel.

           Jory se voltou solene.

            — Cindy, se eu estivesse em seu lugar, deixaria de estender armadilhas ao Bart. Já não é um menininho.

           Sem que Cindy notasse, Toni tinha entrado no quarto e esperava pacientemente para tomar a temperatura do Jory.

           — Oh! — disse Cindy, voltando-se para Toni ao notar sua presença. — Pensava que depois daquela terrível cena que Bart fez em Nova Iorque te daria conta de como é ele na realidade e partiria deste lugar. — O olhar nos olhos de Toni fez que Cindy jogasse outra olhada ao Jory, de novo olhasse a Toni, e se pusesse a rir. — Ah, agora sim demonstraste senso comum! Leio em seus olhos, Toni, Jory. Estão apaixonados! Hurra! — Correu a abraçar e beijar Toni antes de sentar-se junto à cadeira de Jory olhando-o com adoração. — Encontrei Melodie em Nova Iorque. Chorou muito quando lhe expliquei como estão lindos os gêmeos... mas no dia seguinte ao que saiu seu divórcio, Melodie se casou com outro bailarino. Jory, parece-se muito contigo, embora não seja nem a metade de bonito, nem dança tão bem como você.

           Jory conservou seu leve sorriso e voltou a cabeça para fazer uma careta a Toni.

            — Bom, aí vai meu pagamento de pensão alimentícia. Pelo menos deveria ter podido me avisar.

           De novo Cindy ficou olhando Toni.

           — E que tal Bart?

           — O que acontece comigo? — perguntou uma voz de barítono da soleira da porta aberta.

           Só então nos demos conta de que Bart estava ali, apoiado indolentemente contra o marco da porta, atendendo ao que dizíamos e fazíamos como se fôssemos espécimes em seu zoológico especial de raridades familiares.

           — Ah! — disse arrastando as palavras — tão seguro quanto viva, que nossa pequena imitação da Marilyn Monroe veio para nos impressionar com seu espetacular presença.

            — Não é assim como eu descreveria meus sentimentos ao ver-te outra vez — replicou Cindy com os olhos acesos. — Eu estou fria, não impressionada.

           Bart a examinou de cima a baixo, notando as calças de couro douradas e estreitas e o suéter de algodão branco e dourado que vestia. As listras horizontais ressaltavam seus seios, que se agitavam com liberdade cada vez que ela se movia e umas botas douradas, altas até os joelhos, cobriam seus pés e pernas.

           — Quando irá embora? — perguntou Bart, olhando Toni que, sentada na cama, segurava a mão do Jory.

            Chris estava sentado junto a mim em um sofá, tentando ficar em dia com algumas cartas que tinham sido enviadas para a casa e não a seu escritório.

           — Querido irmão, não importa o que queira; não me importa. vim ver meus pais e ao resto de minha família. Logo irei. Nem umas cadeias de aço poderiam me reter aqui mais tempo do necessário. — Pôs-se a rir, aproximou-se dele e o olhou diretamente à cara. — Não tem por que simpatizar comigo nem me aprovar. E embora abra seu bocão só para dizer algo insultante, eu rirei outra vez. Encontrei um homem que me ama e também te faz parecer como um porco extraído do pântano sinistro!

           — Cindy! — interrompeu Chris asperamente, deixando as cartas sem abrir. — Enquanto estiver aqui, te vestirá adequadamente e tratará ao Bart com respeito, como ele trataria a ti. Estou farto destas discussões infantis sobre idiotices!

           Cindy o olhou com olhos doídos.

           — Querida, é a casa do Bart — intervi. — E algumas vezes eu gostaria de ver-te vestir roupa menos ajustada.

           Os olhos azuis da Cindy mudaram, deixando de ser os de uma mulher para converter-se nos de uma menina. Gemeu:

           — Os dois se põem do seu lado, apesar de saber que é um intrigante louco, disposto a nos amargurar a todos?

            Toni estava sentada manifestando certa inquietação, até que Jory se inclinou para lhe sussurrar algo ao ouvido que a fez sorrir.

            — Não tem importância — ouvi que Jory dizia. — Acredito que Bart e Cindy se alegram atormentando-se.

           Desgraçadamente a atenção do Bart já não estava centrada em Cindy. Observava Jory, que tinha o braço por cima dos ombros do Toni. Fez um gesto de desprezo e depois um sinal a Toni.

           — Venha comigo. Quero te mostrar o interior da capela com todas as coisas novas.

           — Uma capela? E por que necessitamos uma capela? — exclamou Cindy, que não tinha sido informada da última transformação daquele quarto.

           — Cindy, Bart quis acrescentar uma capela a seu lar.

           — Bom, mamãe, se alguém necessitou alguma vez de uma capela por perto, à mão, é o intrigante da colina e do Hall.

           Meu segundo filho não pronunciou nenhuma palavra. Toni se negou a acompanhá-lo com a desculpa de que devia banhar os gêmeos. Por instantes, os olhos do Bart brilharam de ira, ficando depois ali, de pé, com um aspecto estranhamente desolado. Levantei-me para lhe segurar a mão.

           — Carinho, eu gostaria de ver essas coisas novas que têm feito na capela.

           — Em outro momento — disse.

           Estive observando dissimuladamente enquanto jantávamos. Cindy chateava Bart com maneiras bem mais ridículas que nos teriam feito rir aos outros se ele tivesse podido apreciar o humor que ela mostrava. Entretanto, Bart nunca tinha sido capaz de rir de si mesmo, uma lástima! Tomava tudo muito a sério.

           — Sabe, Bart? — dizia. — Eu posso deixar de lado minhas debilidades infantis, inclusive as físicas, mas você não pode afastar nada do que te avinagra as vísceras e te rói o cérebro. É como um esgoto, disposto a conservar o podre e fedido, sem renunciar nunca a isso.

           Bart seguia sem dizer nada.

           — Cindy — interveio Chris, que tinha permanecido silencioso até então — te desculpe com o Bart.

           — Não.

            — Então te levanta, abandona a mesa e jante em seu quarto até que aprenda a falar de um modo correto e amável.

           Seus olhos cintilaram com ódio, mas desta vez dirigido ao Chris.

           — De acordo! Me retirarei para meu quarto, mas amanhã partirei desta casa e nunca mais voltarei. Nunca mais!

           Por fim Bart teve algo que dizer.

           — Faz anos que não ouvia tão boas notícias.

           Cindy chorava enquanto cruzava o arco da cozinha. Dessa vez não me levantei para acompanhá-la. Segui sentada fingindo que nada ia mal. No passado sempre tinha protegido Cindy, castigando Bart, mas nesse momento o via com novos olhos. O filho que nunca tinha conhecido tinha facetas que não eram escuras e perigosas.

           — Por que não vai para junto de Cindy como sempre tem feito, mãe? — perguntou Bart, como se estivesse me desafiando.

           — Ainda não terminei de jantar, Bart. E Cindy tem que aprender a respeitar as opiniões dos outros.

           Bart ficou me olhando como se minha resposta o assombrasse.

            Na manhã seguinte cedo, Cindy entrou intempestivamente em nosso quarto, sem chamar, me surpreendendo envolta em uma toalha, recém saída do banho, e ao Chris barbeando-se ainda.

           — Mamãe, papai, vou embora — disse rigidamente. — Aqui não me divirto. Pergunto-me por que me terei incomodado em vir. Está claro que decidiram se pôr do lado do Bart em cada discussão e sendo esse o caso, eu estou acabada. No próximo abril terei vinte anos, idade suficiente para não necessitar uma família. — Seus olhos se encheram de lágrimas a seu pesar. Sua voz se tornou fraca. — Quero lhes agradecer por terem sido uns pais maravilhosos quando eu era pequena e necessitava de alguém como vocês. Terei saudades de ti, papai, Jory, Darren e Deidre, mas cada vez que venho aqui me ponho doente. Se alguma vez decidirem viver em algum lugar longe do Bart, possivelmente então me verão outra vez..., possivelmente.

           — Oh, Cindy! — exclamei abraçando-a. — Não vá!

           — Parto, mamãe! — disse Cindy com determinação. — Retorno para Nova Iorque. Meus amigos me oferecerão uma festa das melhores. Em Nova Iorque tudo fazem melhor.

           Mas suas lágrimas fluíam mais rápidas e copiosas. Chris limpou a espuma de barbear da cara e se aproximou para abraçá-la.

            — Compreendo como se sente, Cindy. Bart pode ser irritante, mas você chegou muito longe na noite passada. Em alguns aspectos era divertida, mas por desgraça Bart não sabe apreciar isso. Tem que saber a quem pode fazer brincadeiras e a quem não. Exasperaste o Bart, Cindy. Por outro lado, não nos oporemos se quer ir tão logo, mas antes que o faça queremos que saiba que sua mãe e eu nos mudaremos, junto com o Jory, seus filhos, e também Toni, para Charlottesville. Encontraremos uma casa grande e nos estabeleceremos entre outras pessoas, de modo que quando voltar, não se sentirá sozinha. Bart seguirá aqui, no alto da colina, longe de ti.

           Soluçando, Cindy se abraçou ao Chris.

           — Sinto muito, papai. fui desagradável com ele, mas sempre me diz coisas desagradáveis e eu tenho que lhe devolver o golpe, pois senão me sinto pisoteada. Eu não gosto que me pisoteiem... e Bart é como um esgoto, é!

           — Espero que algum dia o veja de outra maneira — disse Chris com suavidade, erguendo sua linda carinha coberta de lágrimas e beijando-a ligeiramente. — De modo que beija a sua mãe, te despeça do Jory, Toni, Darren e Deidre... mas não diga que não voltará a nos visitar. Todos nos sentiríamos muito desgraçados se isso acontecesse. Você nos proporciona muita alegria e nada deveria estragar isso.

           Enquanto ajudava Cindy a guardar na mala os vestidos que acabava de desempacotar, notei que ela estava indecisa; queria ficar e esperava que eu o pedisse. Por desgraça tínhamos deixado a porta aberta e ao me voltar vi o Joel na soleira, nos vigiando.

           Joel dirigiu seu pálido olhar para a Cindy.

           — Por que tem os olhos avermelhados, menininha?

           — Não sou uma menininha! — protestou ela. Lançou um olhar de ódio ao Joel. — Você está de acordo com ele, não é certo? Você o ajuda a ser o que é. Está aí, de pé, jubiloso porque estou fazendo a bagagem, não é certo? Alegra-te de que eu vá... mas antes de partir, digo-te que vá também você, velho. E não me importa se meus pais brigam por não mostrar respeito a um ancião. — aproximou-se dele, ereta, dominando a forma encolhida do Joel. — Te odeio, velho! Odeio-te por impedir que meu irmão seja normal, como teria podido ser sem ti! Odeio-te!

           Ao ouvir isso, Chris, que tinha estado sentado perto da janela, enfureceu-se.

           — Cindy, por que? Teria podido partir sem dizer nada.

            Joel tinha desaparecido imediatamente. Cindy olhava para Chris com olhos sombrios.

           — Cindy — disse Chris brandamente, levando a mão para lhe acariciar o cabelo — Joel é um homem velho que está morrendo de câncer. Não estará muito tempo entre nós.

           — O que quer dizer? — perguntou ela. — Parece mais são do que quando veio.

           — Possivelmente experimentou uma ligeira melhora. Nega-se a que um médico o atenda e não permite que eu o examine. Diz que está resignado a morrer logo.

           — Suponho que agora quererão que me desculpe com ele... Bom, pois não o farei! Tudo o que disse é certo! Aquela vez em Nova Iorque, quando Bart era tão feliz com a Toni, e pareciam tão apaixonados, apareceu de repente naquela festa um velho que se parecia com o Joel... e Bart se transformou imediatamente. tornou-se mesquinho, odioso, como se lhe tivessem jogado uma maldição e começou a criticar meus trajes. Disse que o bonito vestido da Toni era vergonhoso... e fazia só uns minutos que tinha elogiado esse mesmo vestido. Assim, não negue que Joel tem muito que ver com o comportamento demente do Bart.

           Em seguida concordei com as opiniões da Cindy.

           — Vê, Chris? Cindy pensa como eu. Se Joel não estivesse utilizando sua influência, Bart se endireitaria. Tira o Joel desta casa, Chris, antes de que seja muito tarde.

           — Sim, papai, faz com que esse homem parta. Lhe dê dinheiro, livre-se dele.

           — E como explico ao Bart? — perguntou Chris nos olhando. — Não se dão conta de que é Bart quem tem que ver o Joel tal como ele é? Nós não podemos fazer ele compreender que Joel é uma influência daninha. Bart tem que descobri-lo por si mesmo.

           Pouco depois dessa conversa fomos no carro até Richmond para acompanhar Cindy ao avião que a levaria para Nova Iorque. Cindy tinha previsto transladar-se a Hollywood ao cabo de uma semana para iniciar sua carreira cinematográfica.

           — Nunca voltarei para Foxworth Hall, mamãe — repetia. — Te quero e quero a papai, embora agora esteja zangado comigo por haver dito o que pensava. Diga ao Jory que lhe quero, a ele e a seus filhos. Não posso viver nessa casa, porque assim que de novo entro nela, acossam-me maus pensamentos. Parte dali, mamãe, papai. Parte antes de que seja muito tarde.

           Eu assentia, confusa.

           — Mamãe, recorda a noite que Bart deu aquela surra em Víctor Wade? Me arrastou para casa nua.., e me conduziu ao quarto do Joel. Sujeitou-me de modo que Joel pudesse ver-me inteira e esse velho me cuspiu e me amaldiçoou. Então fui incapaz de lhe explicar isso. Os dois me assustam quando estão juntos. Sem o Joel, Bart poderia ser bom, mas com ele e sua influência, pode ser perigoso.

           Logo estava a bordo e ficamos em terra contemplando o avião que a afastava.

           Cindy partia para a luz. Nós voltávamos para casa; para as trevas.

           A situação não podia durar muito. Para salvar Jory, Chris, os gêmeos e a mim mesma, devíamos partir, embora isso significasse não ver nunca mais o Bart.

 

JARDIM NO CÉU

           Pobre Cindy, pensava eu, como estaria em Hollywood? Suspirei e depois procurei os gêmeos. Estavam sentados com grande solenidade em sua caixa de areia, protegidos do sol pelo toldo; embora estando a princípios de setembro, o tempo se tornava mais frio de maneira paulatina. Não brincavam de encher de areia os lindos cubos, nem de construir castelos de areia. Não faziam nada.

           — Escutamos só como sopra o vento — disse Deidre.

            — Eu não gosto do vento — acrescentou Darren.

            Antes de que eu pudesse responder, Chris se aproximou de nós e em seguida disse:

           — Cindy acaba de telefonar de Hollywood. Diz que já tem montões de amigos. Não sei se é certo ou não. Já chamei um de meus amigos para lhe pedir que a controle.

           — É melhor assim — disse Chris lançando um suspiro de inquietação. — Parece que nada pode resultar de bem para a Cindy estando aqui. Não se entende com o Bart e agora também se tornou inimiga do Joel. De fato, ela acredita que Joel é pior que Bart.

           — Ele é, Chris! Acaso ainda o duvida a esta altura?

           Chris se impacientou, apesar de que eu acreditava tê-lo convencido.

           — Está carregada de precauções contra ele porque é filho do Malcolm; isso é o que ocorre. Durante um tempo, quando Cindy também o condenava, as duas quase chegaram a me convencer, mas Joel não está fazendo nada para influenciar o Bart. Este, pelo que ouço contar, é um jovem impetuoso que está se divertindo muitíssimo, embora você não saiba. Joel já não viverá muito tempo. Esse câncer lhe está devorando dia após dia, apesar de que siga mantendo seu peso. Provavelmente não agüentará mais de um ou dois meses.

            Não me afetou. Nem sequer me senti culpada ou envergonhada naquele momento. Considerava que Joel estava obtendo da vida o único que merecia.

           — E como sabe que está doente de câncer?

           — Ele me disse que por essa razão voltou, para morrer na terra de seu lar. Quer ser enterrado no cemitério familiar.

           — Chris, como disse Cindy, ele agora tem melhor aspecto que quando chegou.

           — Porque está bem alimentado e bem agasalhado. Naquele monastério vivia na pobreza. Você o vê de uma maneira e eu de outra. Ele confia em mim, Catherine, e me explica quanto se esforçou por granjear o seu afeto. Lhe enchem os olhos de lágrimas. "E ela se parece tanto com sua querida mãe, minha querida irmã", repete uma e outra vez.

           Nem por um momento, depois de ter presenciado o ocorrido naquela capela, voltaria a acreditar naquele velho maligno. Embora contasse ao Chris o incidente da capela com todos os detalhes, ele não o julgou tão terrível até que lhe mencionei o que Joel tinha ensinado aos gêmeos.

           — Você ouviu isso? Ouviu realmente que os pequenos diziam que eram filhos do diabo? — Em seus olhos azuis se notava claramente que lhe custava a acreditar.

           — Não te soa familiar? Não vê de novo Cory e Carrie ajoelhados junto a suas camas rogando a Deus que lhes perdoasse por terem nascido filhos do diabo? Nem eles mesmos sabiam o que significava isso Quem conhece, melhor que você e que eu, o dano que podem causar essas idéias imbuídas em mentes tão jovens? Chris, temos que ir logo! Não depois de que Joel morra. Assim que nos seja possível!

           Chris disse exatamente o que eu tinha temido que dissesse. Tínhamos que pensar no Jory, que necessitava uma moradia e um equipamento especiais.

           — Necessitará um elevador. Teremos que alargar as portas. Os corredores têm que ser amplos. Além disso..., Jory possivelmente se case com Toni. Perguntou-me o que opinava eu a respeito, querendo saber se eu acreditava que ele estava capacitado para fazer Toni feliz. Disse-lhe que sim, que naturalmente era possível. O amor entre eles cresce dia a dia. Eu gosto da maneira em que ela o trata, como se não visse a cadeira de rodas ou o que ele não é capaz de realizar. Só se fixa no que ele pode fazer.

           Além disso Cathy, não foi amor o que existiu entre Toni e Bart, houve só paixão física, glândulas atraídas por glândulas ... chama-o como quer, mas não era amor. Não nossa classe de amor eterno.

           — Não... — falei, suspirando — não da classe que perdura com o passar do tempo...

           Dois dias depois, Chris telefonou de Charlottesville, para me comunicar que tinha encontrado uma casa.

           — Como é?

           — Parecerá pequena comparada com Foxworth Hall. Não obstante, os aposentos são espaçosos, arejados e alegres. Tem quatro banheiros e um closet, cinco dormitórios, um quarto para hóspedes e um banheiro a mais em cima da garagem. No segundo piso há um grande quarto que poderíamos converter em estudo para o Jory, e um dos dormitórios que sobram poderia ser meu escritório. Você gostará desta casa.

           Duvidei de que fosse a certa, pois a tinha encontrado muito depressa, embora fosse isso o que eu lhe tinha pedido que fizesse. Parecia tão contente que me fez abrigar felizes esperanças. Chris pôs-se a rir e depois explicou um pouco mais.

           — É bonita, Cathy, realmente a classe de casa que sempre te ouvi dizer que queria; não muito grande nem muito pequena, com muita intimidade. Há maciços de flores em toda a parte.

            Combinamos que assim que fizéssemos as malas e empacotássemos os muitos pertences pessoais acumulados durante os anos que tínhamos vivido em Foxworth Hall, mudaríamos dali.

            De algum modo, eu sentia tristeza quando cruzava os grandes salões que pouco a pouco tinha feito agradáveis decorando-os segundo meu gosto. Bart se tinha queixado mais de uma vez de que estava trocando o que nunca deveria trocar-se. Mas mesmo ele, quando tinha visto que as melhoras convertiam aquilo em um lar e não em um museu, tinha concordado em que prosseguisse com a tarefa.

           Chris retornou na sexta-feira de noite e me dedicou um tenro olhar.

           — Assim, minha bela, agüenta uns dias mais e me deixa voltar para Charlottesville para revisar essa casa mais atentamente antes que assinemos o contrato. Encontrei um bonito apartamento que poderíamos alugar antes de fechar o negócio da casa. Além disso, tenho assuntos pendentes no laboratório; acredito que poderei tirar alguns dias livres para ajudar a nos instalar. Como te dizia por telefone, acredito que duas semanas de trabalho, depois de formalizado o contrato, bastarão para que nossa nova casa esteja a ponto para acolher a todos nós... Rampas, elevador e todo o resto.

           Delicadamente Chris não mencionou todos os anos que tinha vivido com o Bart, sabendo que era como viver com uma bomba oculta em alguma parte, pronta a explodir cedo ou tarde. Nunca proferiu uma palavra de recriminação para mim por lhe haver dado um filho desrespeitoso e desafiador que se negava a apreciar tanto amor que lhe dava.

           Quanta agonia teria sofrido Chris por causa do Bart e, entretanto, não pronunciou nenhuma palavra para me condenar por ter ido, com intenções deliberadas, atrás do segundo marido de minha mãe. Levei as mãos à cabeça notando que aquela profunda dor começava de novo.

           Christopher saiu cedo pela manhã em seu carro. Eu estava nervosa, sabendo que me aguardava outro dia inquieto. Com o transcurso dos anos eu tinha chegado a depender mais dele, embora em outros tempos me vangloriasse de ser independente e capaz de seguir meu próprio caminho e não necessitar de ninguém como outros me necessitavam

           Tinha vivido a vida de maneira tão egoísta quando era jovem... Minhas necessidades vinham em primeiro. Em troca agora antepunha as necessidades dos outros às minhas.

          Perambulava pela casa, inquieta, vigiando de perto a quem amava, observando atentamente o Bart quando retornava para casa, morrendo por lhe lançar toda classe de acusações e, entretanto, me compadecendo dele. Bart se sentava em seu escritório, com o aspecto digno de jovem executivo perfeito. Sem culpa. Não sentia nenhuma vergonha enquanto regateava, manipulava, negociava; ganhando mais e mais dinheiro com suas conversações telefônicas ou se comunicando em seu computador. Ergueu o olhar para mim e esboçou um autêntico sorriso de boas-vindas.

           — Quando Joel me disse que Cindy tinha decidido partir, alegrou-me o dia, e ainda me sinto eufórico.

           Entretanto, que coisa estranha havia detrás da escuridão de seus olhos? Por que me olhava como se estivesse a ponto de chorar?

           — Bart, se alguma vez desejas confiar em mim...

           — Não tenho nada para te confiar, mãe. — Sua voz era suave. Muito suave, como se falasse com alguém que logo tinha que partir... partir para sempre.

            — Talvez não saiba apreciá-lo, Bart, mas o homem a quem tanto odeia, meu irmão e teu tio, fez todo o possível para ser um bom pai.

           Bart negou com a cabeça.

           — Fazer todo o possível teria sido romper essa incestuosa relação contigo, sua irmã, e não o fez. Teria podido amá-lo se tivesse seguido sendo meu tio. Você devia ter agido melhor e não tratar de me enganar. Devia saber que todos os meninos crescem, formulam perguntas e recordam cenas que os adultos esquecem logo; mas esses meninos não esquecem. Guardam-se as lembranças e as enterram no mais profundo de seus cérebros para desenterrá-las quando ao fim podem entender as coisas. E tudo o que eu recordo me indica que vocês dois estão presos de modo indissolúvel até a morte.

           Meu coração se acelerou. Sob o teto de Foxworth Hall, sob o sol e as estrelas, Chris e eu tínhamos feito votos de nos amar até a eternidade. Que jovens e inocentes fomos para estender nossas próprias armadilhas...

           Ultimamente as lágrimas vinham com tanta facilidade a meus olhos...

           — Bart, como poderia eu viver sem ele?

           — Oh, mãe, poderia. Você sabe que poderia. O deixe partir, mãe. Me dê o tipo de mãe decente, temerosa de Deus, que sempre necessitei para manter meu juízo.

           — E se eu não disser adeus ao Chris..., o que ocorrerá, Bart?

           Sua cabeça escura se inclinou.

           — Que Deus te ajude, mãe, porque eu não poderei. Deus também me ajuda. Apesar disso, tenho que pensar em minha própria alma imortal.

           Afastei-me dali.

           Durante toda aquela noite estive sonhando com fogo, com coisas terríveis. Despertei. Não recordava quase nada do sonho, salvo o fogo. Entretanto, tinha havido algo mais, alguma coisa terrível do passado que eu empurrava, incansável, para o fundo de minha mente. O que? O que? Incapaz de me sobrepor à inexplicável fatiga que me abatia, voltei a dormir e sumi outra vez em um contínuo pesadelo, em que apareciam os gêmeos do Jory como se fossem Cory e Carrie, que eram arrastados para serem devorados. Pela segunda vez me esforcei por despertar. Propus-me me levantar, embora a cabeça me doesse tremendamente.

            Com a mente confusa, como se estivesse embriagada, dispus-me a me dedicar a meus afazeres diários. Os gêmeos me seguiam, fazendo mil e uma perguntas, sobretudo Deidre. Recordava-me muito a Carrie com seu “por que?”, “onde?”, e “de quem é?” Bate-papo de conversa, uma e outra vez, enquanto Darren, por sua parte, explorava nos armários, abria gavetas, examinava envelopes e folheava revistas que, no processo de busca, deixava imprestáveis para a leitura.

           — Cory, deixa isso quieto! — via-me obrigada a dizer. — Pertencem a seu avô e ele gosta de ler o texto, embora você só goste das ilustrações. Carrie, quer ficar quieta embora sejam cinco minutos? Somente cinco? — Isso, naturalmente, provocava novas perguntas para averiguar quem eram Cory e Carrie e por que os chamava sempre com esses nomes tão divertidos.

           Finalmente, Toni foi me salvar daqueles pequenos muito inquisitivos.

           — Sinto muito, Cathy, mas Jory queria que hoje posasse para ele no jardim antes que todas as rosas morressem...

           “Antes que todas as rosas morressem?” Olhei-a fixamente e depois sacudi a cabeça, pensando que estava procurando interpretações exageradas em palavras correntes. Pois as rosas viveriam até que se produzisse uma forte geada e o inverno demoraria meses em chegar.

           Ao redor das duas da tarde, soou o telefone de meu quarto. Eu acabava de me deitar para descansar um pouco. Era Chris.

           — Carinho, não pude evitar me sentir inquieto pelo que pudesse acontecer. Acredito que me transmitiste teus temores. Tenha paciência. Te verei dentro de uma hora. Está bem?

            — Por que não teria que estar?

           — Não, nada. Tive um mau pressentimento; quero-te.

           — Eu também te quero.

            Os gêmeos estavam inquietos. Não queriam brincar em sua caixa de areia nem de nada do que eu lhes sugeria.

           — Dei-dei não quer pular corda — disse Deidre, que não sabia pronunciar seu nome, ou melhor dizendo, negava-se a fazê-lo. Quanto mais tentávamos acostumá-la à maneira correta, tanto mais balbuciava. Era tão teimosa como tinha sido Carrie. Darren sempre estava mais que disposto a segui-la aonde o conduzisse e imitava seu balbucio. E que diferença havia se um menininho de sua idade brincava de casinha?

            Acomodei os gêmeos para sua sesta. Protestaram ruidosamente e não pararam até que Toni, como tinha prometido, leu-lhes um conto. E eu acabava de lhes ler aquela condenada história três vezes! Muito em breve, dormiram em seu lindo quarto, com as cortinas fechadas. Que doces pareciam, deitados de lado, frente a frente, tal como Cory e Carrie faziam!

           Em meu próprio quarto, depois de ter visto Jory, que estava absorto lendo um livro sobre como excitar certos músculos sexuais, me dediquei a meu manuscrito esquecido e o pus em dia. Quando me cansei, distraída pelo absoluto silêncio da casa, fui despertar os gêmeos.

           Não estavam em suas caminhas! Encontrei Jory e Toni no terraço, estendidos de lado na esteira acolchoada para exercícios. Estavam abraçados, beijando-se longa e apaixonadamente.

            — Sinto interromper — me desculpei envergonhada por ter que intervir em sua intimidade e estragar o que devia ser uma experiência maravilhosa para Jory... e para ela. — Onde estão os meninos?

           — Acreditávamos que estavam contigo — respondeu Jory, me piscando os olhos antes de voltar-se para Toni. — Corre para buscá-los, mamãe... Estou ocupado com a lição de hoje.

           Dirigi-me à capela pelo caminho mais curto. Corri pelos jardins, jogando olhadas inquietas ao bosque que ocultava o cemitério. As sombras das árvores começavam a alargar-se no chão, cruzando-se, enquanto eu me aproximava da porta da capela. Um estranho aroma flutuava na cálida brisa de verão: incenso. Corri até chegar à capela sem fôlego, com o coração palpitante. Da última vez que tinha estado ali tinha sido instalado um órgão. Entrei tão sigilosamente como pude.

           Joel estava sentado ao órgão, tocando esplendidamente, demonstrando que em outro tempo tinha sido um músico profissional de notável habilidade. Bart se levantou para cantar. Relaxei quando vi os gêmeos na primeira fila, com aspecto satisfeito, enquanto cravavam o olhar em seu tio, que cantou tão bem que quase dissipou meu medo e me encheu de paz.

           Quando o hino terminou, os gêmeos, como autômatos, ajoelharam-se e colocaram as pequenas palmas de suas mãos debaixo de seus queixos. Pareciam querubins... Ou cordeiros dispostos ao sacrifício.

           Por que tinha surgido tal pensamento? Esse era um lugar sagrado.

           — E embora caminhemos pelo vale das sombras da morte, não temeremos o mal... —disse Bart, também ajoelhado. — Repitam depois de mim, Darren, Deidre.

           — E embora caminhemos pelo vale das sombras da morte, não temeremos o mal — obedeceu Deidre, com sua vozinha aguda guiando o caminho que Darren devia seguir.

            — Porque Você está comigo...

            — Porque Você está comigo ...

           — Seu poder e Seu bastão me consolarão.

            — Seu poder e Seu bastão me consolarão.

           Avancei um passo.

           — Bart, que demônios está fazendo? Nem estamos em domingo, nem morreu ninguém.

           Bart ergueu a cabeça. Seus olhos escuros mostravam tanta aflição...

           — Vai, mãe, por favor.

           Eu corri para os pequenos, que ficaram em pé, e os agarrei nos braços.

            — Nós não gostamos de estar aqui — murmurou Deidre. — Odeio este lugar!

           Joel tinha se levantado. Parecia alto e esbelto entre as sombras, e as cores da vidraça se refletiam em sua cara larga e macilenta. Não tinha pronunciado nenhuma palavra. Limitava-se a me olhar de cima a baixo..., causticamente.

           — Volta para seus aposentos, mãe, por favor, por favor!

           — Não tem nenhum direito a ensinar estes meninos a temer a Deus. Quando se ensina religião, Bart, fala-se do amor de Deus, não de sua ira.

           — Eles não temem a Deus, mãe. Está falando de seu próprio temor.

           Comecei a retroceder, levando aos meninos comigo.

           — Algum dia compreenderá o que é o amor, Bart. Descobrirá que não aparece porque o queira ou o necessite, mas sim, só é teu quando ganha. Vem a ti quando menos o espera, cruza a porta e a fecha brandamente e, quando é justo, permanece. Não intriga, nem seduz para conquistar o outro. Tem que merecê-lo, ou nunca terá ninguém que fique o tempo suficiente ao seu lado.

           Seus olhos escuros pareciam frios. Levantou-se, e sua figura dominou a capela. Então avançou, baixando os três degraus.

           — Iremos embora todos, Bart. Isso deveria te alegrar. Nenhum de nós voltará para te incomodar outra vez, Bart. Jory e Toni virão conosco. Você será absolutamente independente.

Cada um dos aposentos desta solitária e monstruosa Foxworth Hall serão totalmente teus. Se assim o desejar, Chris cederá a tutela ao Joel até que você faça os trinta e cinco anos.

           Por um momento, um breve momento revelador, o medo se refletiu na cara do Bart, do mesmo modo que o júbilo encheu os olhos lacrimosos do Joel.

           — Que Chris ceda a tutela a meu advogado — disse Bart rapidamente.

           — Muito bem, se assim o quiser.

            Sorri ao Joel, que voltou a cara. Dirigiu um duro olhar de desilusão ao Bart, o que confirmava minhas suspeitas... Estava zangado porque Bart receberia o que poderia ter sido dele...

            — Pela manhã teremos partido, todos nós — murmurei.

           — Sim, mãe. Desejo-te boa viagem e boa sorte.

            Fiquei olhando o meu segundo filho, que se achava a uns metros de distância de mim. Onde tinha ouvido eu dizer isso por última vez? Oh sim, fazia tanto tempo.

            O cobrador alto do trem noturno em que tínhamos viajado quando, sendo uns meninos, nos dirigíamos a Foxworth Hall. Tinha permanecido de pé no estribo da cabine dormitório e nos disse aquilo, ao mesmo tempo em que o trem fazia soar um triste assovio de despedida.

           Ao me encontrar com o endurecido olhar do Bart, me ocorreu que deveria pronunciar agora minhas palavras de despedida, naquela capela de sua casa, e renunciar a dizer algo no dia seguinte, quando provavelmente me poria a chorar.

           Bart falou primeiro.

           — Parece que as mães sempre fogem e abandonam os filhos aos seus sofrimentos. Por que me abandona?

           O tom dolorido de sua voz me encheu de angústia. Entretanto disse o que era preciso dizer.

           — Porque você me abandonou faz muitos anos — respondi com voz quebrada.            — Eu te quero Bart. Sempre te quis, embora você não pareça acreditar nisso. Também Chris te quer, mas você não deseja seu carinho. Diz a ti mesmo, todos os dias de sua vida, que seu verdadeiro pai teria sido um pai melhor. Mas não sabe como teria sido. Ele não foi fiel à sua esposa, minha mãe... E te asseguro que eu não fui sua primeira amante. Não quero falar sem respeito de um homem ao qual amei muito naquele tempo, mas ele não era da mesma classe de homem que é Chris. Ele não te teria dado tanto de si mesmo.

           O sol que se filtrava pelas vidraças acendeu com vermelho de fogo o rosto do Bart. Movia a cabeça de um lado a outro, atormentado uma vez mais. Suas mãos se fecharam em fortes punhos.

           — Não diga nenhuma palavra mais do pai que eu quero, que sempre quis! — exclamou. — Chris não me deu nada salvo vergonha e desgosto. Parte! Alegro-me de que vão. Levem com vocês sua sujeira e esqueçam de que existo!

           Passavam as horas e Chris não chegava. Telefonei ao laboratório da universidade. Sua secretária assegurou que tinha saído três horas antes.

           — Já deveria estar aí, senhora Sheffield.

           Imediatamente, pensamentos sobre meu próprio pai foram à minha mente. Um acidente na estrada. Estávamos repetindo o ato de nossa mãe à inversa, fugindo de, e não para Foxworth Hall? Tic-tac, os relógios não se detinham. Bum bum bum, ressonavam os batimentos de meu coração. Tive que ler poesias infantis para aos gêmeos para que dormissem e deixassem de fazer perguntas.

           "Little Tommy Tucker, sing for your supper. When You wish upon a star. dancing in the dark... all our lleve, dancing in the dark ... "

           — Mãe, por favor, deixa de andar de um lado para outro — ordenou Jory. — Me crispa os nervos. Por que tanta pressa por ir? Me diga o porquê por favor, diga algo.

           Joel e Bart entraram para unir-se a nós.

           — Não vieste jantar, mãe. Direi ao cozinheiro que te prepare uma bandeja. — Jogou um olhar a Toni. — Você pode ficar.

            — Não, obrigado, Bart. Jory pediu que me case com ele. — Ergueu o queixo em um gesto de desafio. — Me ama de uma maneira que você nunca poderia igualar.

           Bart dirigiu seus olhos doídos, traídos, para seu irmão.

           — Você não pode te casar. Que tipo de marido acredita que pode ser agora?

           — Exatamente o tipo de marido que eu quero! — replicou Toni, avançando para colocar-se junto à cadeira do Jory e pousar a mão em seu ombro.

           — Se quiser dinheiro, ele não tem nem a centésima parte do que eu possuo.

           — Não me preocuparia mesmo que não tivesse nada— retrucou ela com orgulho, enfrentando-se com seu olhar dominante, escuro. — Eu o amo como nunca amei ninguém antes.

           —Sente pena dele — sentenciou Bart sem lhe dar mais importância.

           Jory franziu o sobrecenho, mas não falou. Parecia saber que Toni precisava esclarecer as coisas com o Bart.

           — Em outros tempos me inspirava pena — admitiu ela com sinceridade. — Pensei que era terrível que um homem tão maravilhoso e com tanto talento tivesse ficado inválido. Agora, entretanto, já não o vejo como um inválido. Sabe, Bart? Todos nós estamos inválidos de algum jeito. Jory o é fisicamente. Em troca, sua invalidez está oculta, é uma enfermidade impalpável. Você está tão doente que agora eu sinto pena... de ti.

           Ardentes emoções retorceram as faces de Bart. Por alguma razão joguei um olhar a Joel, que olhava fixamente para Bart, como se lhe ordenasse que permanecesse silencioso.

           Dando a volta, Bart me repreendeu:

           — Por que estão todos reunidos neste quarto? Por que não vai para a cama? É tarde.

            — Estamos esperando a que Chris chegue.

           — Aconteceu um acidente na estrada — disse Joel. — Ouvi as notícias pelo rádio. Um homem morreu. — Parecia encantado de me dar tal notícia.

           Meu coração pareceu afundar-se no infinito. Outro Foxworth morto em um acidente?      Não Chris, não meu Christopher Doll. Não, ainda não, ainda não.

           Ouvi fracamente que se abria e fechava a porta da cozinha. Pensei que seria o cozinheiro que iria a seu apartamento em cima da garagem. Ou possivelmente Chris.

            Esperançosa, dirigi-me para a garagem. Não encontrei olhos azuis brilhantes, nem sorrisos, nem uns braços dispostos a me abraçar. Ninguém cruzou a porta.

            Durante vários minutos todos nos olhávamos com inquietação. O coração me pulsava dolorosamente; já devia ter chegado a casa. Tinha transcorrido tempo suficiente.

           Joel me observava com fixidez, com os lábios apertados de uma forma especialmente odiosa, como se soubesse mais do que dizia. Voltei-me para Jory, ajoelhei-me junto a sua cadeira de rodas e deixei que me abraçasse com força.

           — Estou assustada, Jory — solucei. — Já deveria estar em casa. Não pode demorar três horas para vir, nem sequer no inverno e com as estradas escorregadias.

           Ninguém disse nada. Nem Jory, que me sustentava fortemente, nem Toni, nem Bart. Tampouco Joel. Eu evocava a cena dos dois policiais que foram para nos comunicar a morte de meu pai.

           Senti que em minha garganta nascia um grito disposto a brotar, quando vi que um carro branco subia por nosso caminho privado, com uma luz vermelha dando voltas no teto.

           O tempo retrocedeu. Não! Não! Não! Uma e outra vez, meu cérebro gritava, inclusive enquanto eles narravam os detalhes do acidente: o doutor tinha saltado de seu automóvel para ajudar às vítimas feridas e moribundas tombadas na sarjeta e ao cruzar correndo a estrada foi atropelado por um veículo que fugiu do lugar.

           Cuidadosa e respeitosamente, depositaram seus objetos pessoais sobre uma mesa, da mesma maneira que deixaram as pertences de meu pai em outra mesa, no Gladstone.

            Pela segunda vez eu contemplava as coisas que Chris estava acostumado a levar em seus bolsos. Tudo era irreal, outro pesadelo do qual despertaria... não era minha fotografia que sempre levava em sua carteira, nem aqueles o relógio de pulso e o anel com a safira que eu lhe tinha presenteado no Natal. Não meu Christopher Doll, não, não, não.

           Os objetos se fizeram vagos, confusos. A escuridão do crepúsculo me invadiu, me deixando em nenhuma parte, em nenhuma parte. Os policiais diminuíram. Jory e Bart pareciam estar longe à muita distância. Toni, em troca, aumentou quando se aproximou para me ajudar a levantar.

           — Cathy, sinto-o tanto... Sinto-o tantíssimo...

           Acredito que disse algo mais. Eu me desprendi de suas mãos e corri, corri como se todos os pesadelos que me tinham atormentado estivessem me agarrando.

           Correndo sem cessar, tentando escapar da verdade, cheguei à capela. Joguei-me no chão frente ao púlpito e comecei a orar como se nunca o tivesse feito antes.

           — Por favor, Meu deus, não pode fazer isto ao Chris e a mim! Não existe um homem melhor que Chris... Você deve sabê-lo... — E então rompi em soluços.

           Brotaram lágrimas por meu pai, que tinha sido um homem maravilhoso, sem que isso tivesse servido para liberá-lo de seu triste final. O destino não escolhia os desprezados, abandonados, os não queridos ou não necessitados. O destino era uma forma sem corpo com uma mão cruel que erguia ao azar, descuidadamente, e golpeava sem nenhuma piedade.

           Enterraram o corpo de meu Christopher Doll, não no terreno sagrado da família Foxworth, mas no cemitério onde Paul, minha mãe, o pai do Bart e Julian jaziam clandestinamente. Não muito longe dali se achava a pequena tumba de Carrie.

           Eu já tinha dada ordem de que o corpo de meu pai fosse exumado daquele terreno frio, duro e solitário em Gladstone, Pensylvania, para que ele também pudesse descansar com o resto da família. Acreditei que gostaria disso, se pudesse saber.

           Eu era a última das quatro “Bonecas de Dresden”. Só ficara eu... E não desejava continuar!

           O sol era ardente, brilhante. Um bom dia para pescar, nadar, jogar tênis e divertir-se, e eles puseram o meu Christopher na terra escura.

           Tentei não vê-lo ali abaixo, com seus olhos azuis fechados para sempre. Olhei fixamente ao Bart, que pronunciou o panegírico com lágrimas nos olhos. Ouvia sua voz como se estivesse a muita distância, pronunciando todas as palavras que devia ter pronunciado quando Chris estava vivo; assim teria podido apreciar todas aquelas palavras amáveis, carinhosas.

           — Diz-se na Bíblia — começou Bart com a voz bela e persuasiva que sabia empregar quando queria — que nunca é muito tarde para pedir perdão. Espero e rogo que seja verdade, pois eu peço a este homem que jaz diante de mim, que sua alma me contemple do céu e me perdoe por não ter sido o filho amante que devia e poderia ter sido. Este pai, a quem nunca aceitei como tal, salvou muitas vezes minha vida, e eu estou aqui com o coração transbordante de culpa e vergonha por uma infância e uma juventude desperdiçadas que poderiam ter feito mais feliz sua vida. — Inclinou sua cabeça escura de modo que o sol fez brilhar seu cabelo e suas lágrimas vertidas. — Eu te amo, Christopher Sheffield Foxworth. Espero que me ouça. Rogo e confio em receber o perdão por ter estado cego ao que você foi.

            As lágrimas escorregavam por suas bochechas. Sua voz se tornou rouca. Todos acompanharam seu pranto.

           Unicamente eu tinha secos os olhos; seco o coração.

            — O doutor Christopher Sheffield rechaçou seu sobrenome Foxworth — prosseguiu Bart quando recuperou de novo a voz. — Agora sei que assim devia ser. Foi médico até o último momento, entregue a aliviar o sofrimento humano, enquanto eu, seu filho, negava-lhe o direito de ser meu pai. Humilhado, com remorsos e envergonhado, inclino minha cabeça e rezo esta prece...

           E assim prosseguiu enquanto eu fechava meus ouvidos e desviava o olhar, aturdida pela aflição.

           — Não foi um tributo maravilhoso, mamãe? — perguntou Jory em um dia escuro. —Chorei, não pude evitá-lo. Bart se humilhou, mãe, e diante de tanta gente... Nunca antes o tinha visto humilhar-se. Tem que lhe conceder isso pelo menos.

           Seus olhos azuis me suplicavam.

           — Mamãe, tem que chorar também. Não é bom para ti ficar sentada, olhando o vazio. Já aconteceram duas semanas. Não está sozinha, tem a nós. Joel retornou de avião ao monastério para morrer ali. Nunca mais o veremos. Deixou por escrito que não queria ser enterrado em terreno dos Foxworth. Tem a mim, tem a Toni, Bart, Cindy e seus netos. A queremos e precisamos de você. Os gêmeos não compreendem por que não brinca com eles. Não nos deixe de fora. Sempre te recuperaste depois de cada tragédia. Volta outra vez, sai de sua aflição, sobretudo pelo bem do Bart, pois se você te deixa arrastar pela angústia até a morte, o destruirá.

           Pelo bem do Bart permaneci em Foxworth Hall, tentando me adaptar a um mundo que realmente já não precisa de mim.

           Transcorreram nove solitários meses. Em cada céu azul via os olhos azuis do Chris. Em cada brilho dourado via a cor de seu cabelo. Detinha-me nas ruas para contemplar meninos que se pareciam com o Chris quando ele tinha sua idade; olhava os jovens que me recordavam Chris adolescente; observava nostálgica as costas dos homens altos, robustos, de cabelo loiro encanecido, desejando que se voltassem e eu pudesse ver outra vez o Chris sorrir. Em algumas ocasiões me devolviam o olhar, como se pressentissem o ardor ansioso em meus olhos, e eu desviava a vista, pois não eram ele, nunca eram ele!

            Errei pelos bosques e as colinas, o sentindo junto a mim, fora de meu alcance, mas junto a mim.

           Enquanto caminhava sozinha, mas acompanhada pelo espírito do Chris, me ocorreu que havia um modelo em nossas vidas, e nada do que acontecia era infeliz.

            De todas as maneiras possíveis, Bart tentou me fazer voltar a ser a que era antes, e eu sorria, esforçava-me em rir e, desse modo, proporcionava-lhe a paz e a confiança que meu filho sempre tinha necessitado para apreciar em si mesmo seu autêntico valor.

            Entretanto, quem e o que era eu, agora que Bart se encontrou a si mesmo? Essa sensação de conhecer o modelo para o qual se estendia, cresceu mais e mais, enquanto eu permanecia com freqüência sentada, sozinha, na fastuosa elegância do Foxworth Hall.

           Da escuridão, da angústia, das aparentes tragédias infelizes e dos acontecimentos patéticos de nossas vidas, por fim compreendi. Por que nenhum dos psiquiatras do Bart se deu conta, quando ele era mais jovem, que estava provando, procurando, tentando encontrar o papel que melhor podia desempenhar? Durante a agonia de sua infância, durante sua juventude, ele tinha atacado implacavelmente suas falhas, rechaçando a fealdade que ele acreditava empanava sua alma, sujeitando-se com força à crença de que o bem triunfaria sobre o mal. E, a seus olhos, Chris e eu tínhamos representado o mal.

           Finalmente, depois de tanto tempo, Bart tinha encontrado seu lugar no esquema do que tinha que ser. Tudo o que eu devia fazer era conectar a televisão qualquer domingo pela manhã e algumas vezes na metade de semana, e ver meu filho cantando e pregando, reconhecido como o evangelista mais carismático do mundo. Agudamente penetrantes, suas palavras se cravavam na consciência de todos, propiciando que o dinheiro afluísse a seus cofres em milhões; milhões que Bart utilizava para estender seu ministério.

           Num domingo pela manhã me deparei com a surpresa de ver Cindy, que se levantava para unir-se ao Bart no palco. De pé junto a ele, enlaçou seu braço no do Bart, que sorriu com orgulho antes de anunciar:

           — Minha irmã e eu dedicamos esta canção a nossa mãe. Mãe, se nos está vendo, saberá exatamente quanto significa esta canção, não somente para nós dois, mas também para ti.

           Juntos, como irmão e irmã, cantaram meu hino favorito. Fazia muito tempo que eu tinha renunciado à religião, convencida de que não me satisfazia, dado que tanta gente religiosa estava cheia de culpas, e era cruel e curto de idéias. Entretanto, as lágrimas sulcaram meu rosto... Chorei pela primeira vez desde que Chris fora atropelado naquela estrada; depois de tanto tempo, estava esgotando aquele poço sem fundo de minhas lágrimas.

            Bart tinha eliminado até o último fragmento venenoso dos genes do Malcolm e tinha conservado somente os bons

           Para criar a ele, as flores de papel tinham florescido no sótão poeirento; para criar a ele, os fogos tinham queimado casas; nossa mãe e nosso pai tinham morrido. Tudo tinha sido necessário para criar o líder que afastaria a humanidade do caminho para a destruição.

           Desconectei o aparelho de televisão quando terminou o programa do Bart, o único que eu via. Não muito longe de Foxworth Hall se estava construindo um enorme monumento comemorativo em honra de meu Christopher.

 

CENTRO INVESTIGADOR DO CÂNCER

EM MEMÓRIA DO CHISTOPHER SHEFFIELD.

 

            Era justo que se denominasse assim. Em Greenglenna, Carolina do Sul, Bart tinha criado também uma fundação para jovens advogados, chamada FUNDAÇÃO BARTHOLOMEW WINSLOW.

           Eu sabia que Bart estava tentando compensar com o bem todo o mal que tinha causado ao negar ao homem que tinha posto seu melhor empenho em ser seu pai. Uma centena de vezes tive que tranqüilizá-lo, dizendo que Chris se sentiria muito feliz.

           Jory e Toni se casaram. Os gêmeos a adoravam. Cindy tinha assinado um contrato cinematográfico que a estava elevando rapidamente ao estrelato. Parecia-me estranho, depois de me haver entregado toda uma vida, primeiro aos gêmeos de minha mãe, depois a meus maridos, meus filhos e netos, que já não me necessitassem. Não tinha um lugar próprio. Agora eu era a que sobrava.

           — Mamãe! — disse Jory um dia. — Toni está grávida! Não pode imaginar o que isso significa para mim. Se tivermos um filho se chamará Christopher, e se for menina, Catherine. E agora não trate de nos dissuadir, porque o faremos de todos os modos.

           Rezei para que tivessem um filho semelhante ao Christopher, ou Jory, e para que um dia, no futuro, Bart encontrasse a mulher adequada que o fizesse feliz.

            Só então me dava conta de que Toni tinha tido razão ao afirmar que Bart estava procurando uma mulher como eu, mas sem minhas fraquezas; queria que ela tivesse só minha fortaleza. Bart nunca a encontraria.

           — E, ouça, mamãe — tinha prosseguido Jory. — Ganhei o primeiro prêmio no concurso de aquarelas... De modo que de novo vou à caminho do êxito nesta nova profissão.

           — Tal como seu pai predisse — concluí.

           Eu apreciava tudo aquilo, me sentindo vagamente feliz por Jory e Toni, feliz pelo Bart e Cindy... enquanto subia pela escada dupla curvada que me levava lá em cima; vamos...

           Tinha ouvido o vento das montanhas me chamar na noite anterior para me anunciar que tinha chegado minha hora de partir. Despertei sabendo o que devia fazer.

           Quando me achei naquele quarto frio, tenebroso, sem móveis nem tapetes, com apenas uma casa de bonecas que não era tão bonita como a que eu recordava, abri a alta e estreita porta e comecei minha ascensão pelos degraus altos e estreitos. À caminho do sótão, para o lugar onde tinha encontrado a meu Christopher, para me reunir com ele outra vez...

 

           Foi Trevor quem encontrou minha mãe lá em cima, sentada no batente do que possivelmente tinha sido a escola que ela mencionava tão freqüentemente nas histórias que nos contava de sua vida da prisão no Foxworth Hall. Seu bonito cabelo comprido estava solto e caía sobre seus ombros. Seus olhos estavam abertos, olhando frágeis para o alto.

           Trevor me telefonou para me explicar os detalhes, sem poder esconder sua aflição, enquanto eu chamava Toni para que se aproximasse e pudesse escutar também.

            Uma pena que Bart estivesse fazendo uma excursão pelo mundo, pois teria corrido para casa em um minuto se tivesse adivinhado que ela precisava dele.

           Trevor prosseguiu:

           — Fazia dias que não se encontrava bem, podia adivinhá-lo. A via meditabunda, como se estivesse tentando dar sentido à sua vida. Percebia-se uma terrível tristeza em seus olhos, um desejo patético que me rompia o coração quando a olhava. Fui procurá-la, ignorando onde se achava e finalmente descobri o segundo lance de escada, alta e estreita, para o sótão. Olhei ao redor. Surpreendeu-me ver que o sótão estava adornado com flores de papel. Sem dúvida ela deve tê-lo feito.

           Interrompeu-se e eu afoguei as lágrimas, lamentando não ter feito mais para fazê-la se sentir necessária e necessitada. Com uma nota estranha em sua voz, Trevor prosseguiu:

           — Devo te explicar algo estranho. Sua mãe sentada ali no batente da janela, parecia tão jovem, tão esbelta e frágil.... e em seu rosto se refletia uma expressão de enorme gozo, de felicidade.

           Trevor me comunicou outros detalhes. Como se soubesse que logo ia morrer, minha mãe tinha posto flores de papel nas paredes do sótão, assim como um estranho caracol de cor laranja e um verme púrpura. Tinha escrito uma nota que foi achada em sua mão, agarrada fortemente:

 

           "Há um jardim no céu, que está esperando. É um jardim que Chris e eu imaginamos faz muitos anos, enquanto jazíamos em uma laje dura e negra do telhado e contemplávamos as estrelas.

           Chris está lá em cima, sussurrando nos ventos para me dizer que é ali onde nasce a erva púrpura. Todos estão ali, me esperando.

           De modo que, me perdoem por estar cansada, muito cansada para ficar. Vivi o tempo suficiente e posso dizer que minha vida esteve cheia de felicidade e também de tristeza. Embora alguns não o vejam dessa maneira.

           Amo a todos vocês; a todos por igual. Quero ao Darren e a Deidre e desejo boa-sorte em suas vidas, e o mesmo desejo para seu próximo bebê, Jory."

           A saga dos Dollanganger terminou. Encontrarão meu último manuscrito em meu cofre particular. Façam com ele o que quiserem.

           Tinha que acontecer desta maneira. Não tenho nenhum lugar para onde ir, a não ser aqui. Ninguém me necessita mais que Chris.

            Mas, por favor, nunca digam que fracassei em alcançar meu objetivo mais importante. É possível que não tenha sido a “prima ballerina” que me propunha ser, nem a mãe, nem a esposa perfeita..., mas consegui, finalmente, convencer certa pessoa de que tinha o pai adequado.

          E não foi muito tarde, Bart. Nunca é muito tarde.

 

 

[1] - Trocadilho: Blackbird significa merlo e , urraca. Pé significa também bolo. A canção diz: “Quatrocentos e vinte merlos prepararam um bolo”. (N. da T.)

 

                                                                                            V. C. Andrews  

 

                      

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