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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SEMIDEUSES E MAGOS / Rick Riordan
SEMIDEUSES E MAGOS / Rick Riordan

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Magia, monstros e desordem surgem quando Percy Jackson e Annabeth Chase encontram com Carter e Sadie Kane pela primeira vez. Criaturas estranhas estão aparecendo em lugares inesperados e os semideuses e magos precisar de unir para acabar com eles. Enquanto lutam com bronze celestial e hieróglifos brilhantes, os quatro heróis descobrem que têm muito em comum e mais poder do que jamais imaginaram ser possível. Mas serão suas forças combinadas o suficiente para frustrar um inimigo antigo, que é a mistura de encantamentos gregos e egípcios para um propósito obscuro? Rick Riordan empunha sua habitual mágica narrativa nesta aventura cheia de adrenalina.

 


 


Ser devorado por um crocodilo gigante já foi bem ruim.

O garoto com a espada reluzente fez meu dia ficar ainda pior.

Talvez eu deva me apresentar.

Meu nome é Carter Kane. Sou aluno do primeiro ano na metade do tempo, mago no restante, e preocupado em período integral com todos os deuses egípcios e monstros que estão sempre tentando me matar.

Tudo bem, a última parte foi um pouco de exagero. Nem todos os deuses querem me matar, só muitos deles — mas isso já era de se esperar, uma vez que sou um mago da Casa da Vida. Somos uma espécie de polícia das forças sobrenaturais do Egito Antigo, e nossa função é garantir que não instaurem o caos completo no mundo moderno.

Enfim, nesse dia em especial eu estava seguindo o rastro de um monstro em Long Island. Nossos cristalomantes vinham detectando certa perturbação mágica na região havia semanas, então começou a aparecer nos noticiários locais que uma enorme criatura tinha sido vista nas lagoas e pântanos próximos à rodovia Montauk, alimentando-se de animais selvagens e assustando os moradores. Um repórter até a chamou de “Monstro do Pântano de Long Island”. Quando soa o alarme dos mortais, é hora de ver o que está acontecendo.

Normalmente, Sadie, minha irmã, ou algum dos outros iniciados da Casa do Brooklyn, teria me acompanhado. Mas estavam todos no Primeiro Nomo, no Egito, em um treinamento de uma semana para aprender a controlar demônios do queijo (sim, isso existe, mas acredite em mim: é melhor não conhecê-los), então fui sozinho.

Amarrei o barco-trenó voador em Freak, meu grifo de estimação, e passamos a manhã sobrevoando South Shore em busca de sinais de problema. Se você estiver se perguntando por que não fui nas costas de Freak, imagine asas tipo as de um beija-flor batendo mais rápido e mais forte do que pás de helicóptero. A não ser que queira virar picadinho, é melhor ir de barco.

Freak tinha um faro bom para magia. Depois de algumas horas de patrulha, ele gritou “FREEEEK” e deu uma guinada para a esquerda, descrevendo círculos sobre o estreito verde e pantanoso entre dois terrenos.

— Lá embaixo? — perguntei.

Freak tremeu e guinchou, batendo a cauda de penas pontiagudas nervosamente.

Não dava para ver muito bem o que havia lá embaixo — apenas um rio de águas barrentas que refletia o sol daquele dia quente de verão, serpenteando pela grama e por entre árvores retorcidas do pântano até desaguar na baía Moriches. A região parecia um pouco com o delta do Nilo, lá no Egito, só que as áreas pantanosas eram cercadas dos dois lados por bairros residenciais com fileiras e mais fileiras de casas e seus telhados cinzentos. Ao norte, uma fila de carros enfrentava o trânsito da rodovia Montauk — pessoas saindo de férias para escapar da multidão na cidade e se juntar à multidão nos Hamptons.

Eu me perguntei quanto tempo um monstro do pântano carnívoro levaria, se houvesse mesmo um abaixo de nós, até pegar gosto por humanos. Se isso acontecesse... Bem, para ele seria como estar em um daqueles restaurantes “coma à vontade”.

— O.k. — falei para Freak. — Pode me deixar perto da margem do rio.


Assim que desembarquei, Freak guinchou e disparou para o céu, com o barco-trenó.

— Ei! — gritei, tentando impedi-lo, mas era tarde demais.

Freak se assusta fácil. Monstros carnívoros tendem a apavorá-lo, assim como fogos de artifício, palhaços e o cheiro do suco Ribena esquisito de Sadie. (Não dá para culpá-lo pelo suco. Sadie foi criada em Londres e desenvolveu um gosto meio estranho.)

Eu teria que resolver o problema com o monstro, e então assobiar para Freak vir me buscar.

Abri a mochila e verifiquei o equipamento: corda encantada, minha varinha encurvada de marfim, um pedaço de cera para fazer uma estatueta mágica shabti, meu conjunto de caligrafia e uma poção de cura que minha amiga Jaz preparara para mim um tempo antes. (Ela sabe que me machuco bastante.)

Só faltava uma coisa.

Eu me concentrei para criar uma abertura no Duat e estendi a mão. Nos últimos meses, aperfeiçoei o armazenamento de provisões de emergência lá — armas extras, roupas limpas, doces e engradados de refrigerantes gelados —, mas enfiar a mão em uma dimensão mágica ainda era um pouco esquisito, como se estivesse atravessando camadas de cortinas frias e pesadas. Segurei o punho da minha espada e puxei. Era um khopesh pesado, com uma lâmina curva como um ponto de interrogação. Armado com a espada e a varinha, estava pronto para dar um passeio pelo pântano e encontrar o tal monstro faminto. Ah, que alegria!

Entrei na água e de imediato afundei até os joelhos. O fundo do rio parecia um purê congelado. A cada passo, meus sapatos faziam um barulho tão nojento — bloct-bloct, bloct-bloct — que fiquei até feliz por Sadie não estar ali comigo. Ela teria rido sem parar.

E, ainda pior: fazendo tanto barulho, sabia que não conseguiria surpreender nenhum monstro.

Uma nuvem de mosquitos me envolveu. De repente, eu me senti nervoso e sozinho.

Podia ser pior, disse a mim mesmo. Você poderia estar estudando demônios do queijo.

Mas não me convenci por completo. Próximo dali, ouvi crianças rindo e gritando, provavelmente no meio de alguma brincadeira. Perguntei-me como devia ser isso: ser um garoto normal, passar as tardes de verão com meus amigos.

Era um pensamento tão agradável que até me distraí. Não notei as ondulações na água até que a uns cinquenta metros de mim algo surgiu na superfície, uma fileira de placas de couro verde-escuro. Ele submergiu na mesma hora, mas agora eu sabia com o que estava lidando. Já tinha visto crocodilos antes, e esse era bizarramente grande.

Lembrei-me de El Paso, no penúltimo inverno, quando eu e minha irmã fomos atacados pelo deus crocodilo gigante, Sobek. Definitivamente, não era uma boa lembrança.

O suor começou a escorrer por meu pescoço.

— Sobek — murmurei —, se for você me perturbando de novo, juro por Rá que...

O deus crocodilo tinha prometido nos deixar em paz agora que estávamos bastante íntimos do chefe dele, o deus sol. Ainda assim... crocodilos têm fome. E então tendem a esquecer suas promessas.

A água não me deu mais pistas. As ondulações tinham passado.

Quando se tratava de detectar monstros, meus sentidos mágicos não eram muito aguçados, mas a água à minha frente pareceu bem mais escura. Isso significava que era mais funda ali, ou então que algo enorme se esgueirava abaixo da superfície.

Quase desejei que fosse Sobek. Ao menos assim eu teria uma chance de conversar antes que ele me matasse. Sobek adorava se gabar.

Infelizmente, não era ele.

No microssegundo seguinte, quando a água ao redor de mim se agitou, percebi que deveria ter trazido todo o Vigésimo Primeiro Nomo para me ajudar. Vi olhos amarelo-brilhantes do tamanho de minha cabeça e uma joia de ouro luminoso envolvendo um pescoço enorme. Uma mandíbula monstruosa se abriu — fileiras de dentes tortos e o interior rosado de uma boca grande o suficiente para devorar um caminhão de lixo.

E a criatura me engoliu inteiro.


Imagine ser embalado a vácuo e ficar de cabeça para baixo dentro de uma sacola de lixo gigante e pegajosa, sem ar. Estar na barriga do monstro foi assim, só que mais quente e fedorento.

Por um momento, fiquei atordoado demais para reagir. Era inacreditável que ainda estivesse vivo. Se a boca do crocodilo fosse um pouco menor, teria me partido ao meio. Como não era o caso, tinha me engolido de uma vez só, uma porção individual de Carter. Agora eu podia aguardar ansiosamente para ser digerido bem devagar.

Que sorte a minha, não?

O monstro começou a se mover violentamente, e ficou bem difícil raciocinar. Prendi a respiração, sabendo que poderia ser a última. Ainda tinha a espada e a varinha, mas não podia usá-las com os braços presos ao lado do corpo. Também não dava para alcançar as coisas na mochila.

Só restava uma opção: comandos. Se me lembrasse do símbolo hieroglífico certo e o pronunciasse, poderia invocar alguma força poderosa, uma magia tipo “ira dos deuses” que me permitisse abrir caminho para fora daquele réptil.

Em teoria: ótima ideia.

Na prática: não sou bom com comandos, mesmo nas melhores situações. Estar sufocando na barriga escura e fedorenta do crocodilo não estava ajudando minha concentração.

Você consegue, disse a mim mesmo.

Depois de todas as aventuras perigosas que vivi, não podia morrer daquele jeito. Sadie ficaria arrasada. Então, quando superasse a tristeza, ela iria atrás da minha alma na pós-vida egípcia e ficaria rindo da minha cara por eu ter sido tão burro.

Meus pulmões começaram a arder. Estava prestes a desmaiar. Escolhi um comando, reuni toda a concentração que tinha e me preparei para pronunciá-lo.

O monstro deu um solavanco repentino para cima. Ele bramiu, o que soava bem estranho para quem estava dentro dele, e seu corpo se contraiu a meu redor, fazendo-me sentir como se estivesse sendo espremido para fora de um tubo de pasta de dentes. Fui atirado da boca da criatura e saí rolando pela grama do pântano.

De algum jeito, fiquei de pé. Cambaleei um pouco, ainda meio cego, arfando e coberto de suco intestinal de crocodilo, que tinha cheiro de aquário sujo.

A superfície do rio se agitou com bolhas. O crocodilo havia desaparecido, mas parado no pântano, a uns seis metros de mim, estava um adolescente de jeans e camiseta laranja desbotada que dizia acampamento alguma coisa. Não dava para entender o resto. Ele parecia um pouco mais velho do que eu — talvez tivesse uns dezessete anos — e tinha cabelos pretos despenteados e olhos verdes. O que mais chamava a atenção era a espada dele — uma reluzente espada de bronze com lâmina de fio duplo.

Não sei qual de nós ficou mais surpreso.

Por um segundo, o Cara do Acampamento apenas olhou para mim. Ele notou o khopesh e a varinha, e tive a sensação de que ele realmente os via como eram. Os mortais comuns têm dificuldade para ver a magia. O cérebro não consegue interpretá-la, então, por exemplo, eles olhariam para a minha espada e veriam um taco de beisebol ou uma bengala.

Mas aquele garoto... ele era diferente. Imaginei que devia ser um mago. O único problema era que eu conhecia vários magos dos nomos nos Estados Unidos, e nunca tinha visto esse cara. Também nunca vira uma espada daquelas. Tudo nele parecia... não egípcio.

— O crocodilo — falei, tentando manter a voz calma e firme. — Para onde foi?

O Cara do Acampamento franziu a testa.

— De nada.

— O quê?

— Eu bati na traseira daquele crocodilo. — Ele repetiu o movimento com a espada para explicar. — Foi por isso que cuspiu você. Então, de nada. O que você estava fazendo na barriga dele?

Admito que eu não estava no melhor dos humores. Eu fedia. Meu corpo doía. E, sim, estava um pouco envergonhado: o poderoso Carter Kane, líder da Casa do Brooklyn, tinha sido vomitado por um crocodilo como uma bola de pelos imensa.

— Estava descansando — retruquei, ríspido. — O que você acha que eu estava fazendo? Agora, quem é você e por que estava lutando contra meu monstro?

— Seu monstro? — Ele veio andando na minha direção através da água, e a lama não parecia atrapalhá-lo. — Olhe só, cara, não sei quem é você, mas aquele crocodilo vem aterrorizando Long Island há semanas. Eu levo isso para o lado pessoal, porque aqui é a minha área. Ele comeu um dos nossos pégasos há alguns dias.

O choque foi tão grande que parecia que eu tinha batido com as costas em uma cerca elétrica.

— Você disse pégasos?

Ele fez um gesto para ignorarmos a pergunta.

— Esse monstro é seu ou não?

— Não sou dono dele — resmunguei. — Estava tentando impedi-lo! Agora, para onde...

— O crocodilo foi por ali. — Ele apontou a direção com a espada. — Eu já estaria atrás dele, mas você me pegou de surpresa.

O garoto pareceu avaliar meu tamanho, o que me deixou um pouco inquieto, já que ele era uns quinze centímetros mais alto. Ainda não dava para entender o que estava escrito em sua camiseta, apenas a palavra acampamento. Ele usava um colar de couro com algumas contas de argila coloridas, que lembrava o trabalho de artes de uma criança. Não carregava uma mochila de mago ou varinha. Talvez ele as guardasse no Duat. Ou talvez fosse apenas um mortal delirante que encontrara uma espada mágica por acidente e agora achava que era um super-herói. As relíquias antigas podem confundir muito a mente.

Enfim, ele balançou a cabeça.

— Eu desisto. Filho de Ares? Sei que você é um meio-sangue, mas o que aconteceu com sua espada? Está toda torta.

— É um khopesh. — Meu choque estava rapidamente se transformando em raiva. — A lâmina é curva.

Mas não estava pensando na espada.

O Cara do Acampamento tinha me chamado de meio-sangue? Talvez eu não tivesse ouvido direito. Talvez quisesse dizer outra coisa. Só que meu pai era afrodescendente. Minha mãe era branca. Meio-sangue não era uma palavra da qual eu gostava.

— Só... Dê o fora, tá? — falei entredentes. — Preciso acabar com aquele crocodilo.

— Cara, eu preciso acabar com o crocodilo — insistiu ele. — Na sua última tentativa, ele devorou você. Lembra?

Meus dedos apertaram o punho da espada com mais força.

— Estava tudo sob controle. Eu estava prestes a invocar o Punho...

Assumo completamente a responsabilidade pelo que aconteceu a seguir.

Foi sem querer. Juro. Mas eu estava com raiva. E, como já devo ter mencionado, não sou naturalmente bom em canalizar comandos. Na barriga do crocodilo, estava me preparando para invocar o Punho de Hórus, uma enorme mão azul e brilhante capaz de pulverizar portas, paredes e praticamente tudo o que estiver no caminho. Meu plano era abrir passagem socando o monstro. Um pouco nojento, é verdade, mas provavelmente eficaz.

Acho que ainda estava com o feitiço na cabeça, pronto para ser disparado como uma arma carregada. Parado à frente do Cara do Acampamento, eu estava furioso, além de surpreso e confuso. Então, quando tentei pronunciar a palavra punho, ela acabou saindo em egípcio antigo: khifa.

Um hieróglifo tão simples:

Quem poderia imaginar que causaria tantos problemas?

Assim que pronunciei a palavra, o símbolo reluziu no ar entre nós. Um punho gigante, do tamanho de um lava-louças, materializou-se e atingiu o Cara do Acampamento com força suficiente para jogá-lo para fora da cidade.

Eu o fiz perder até os sapatos. Ele foi lançado para fora do rio como um foguete, com um som de bloct. A última coisa que vi foram seus pés descalços em velocidade de escape enquanto ele voava para trás até sumir de vista.

Não, eu não me senti bem com isso. Bem... talvez um pouquinho. Mas também fiquei morto de vergonha. Mesmo que ele fosse um idiota, magos não devem sair por aí acertando as pessoas de surpresa com o Punho de Hórus e tirando-as de órbita.

— Ah, que ótimo.

Dei um tapa na minha própria testa e comecei a andar pelo pântano, preocupado com a possibilidade de tê-lo realmente matado.

— Foi mal, cara! — gritei, esperando que ele pudesse ouvir. — Você está...?

A onda veio do nada.

Uma onda de mais de seis metros me engolfou, e fui puxado de volta para o rio. Subi à superfície e comecei a tossir, com um gosto na boca horrível de peixe. Pisquei para tirar a sujeira dos olhos bem a tempo de ver o Cara do Acampamento saltar na minha direção como um ninja, empunhando a espada.

Ergui meu khopesh a fim de aparar o golpe. Por pouco evitei que minha cabeça fosse partida em duas, mas o Cara do Acampamento era rápido e forte. Enquanto eu cambaleava para trás, ele atacava de novo e de novo. A cada investida eu me defendia, mesmo sabendo que ele estava levando a melhor. A lâmina dele era mais leve e veloz, e — sim, admito — ele era mais habilidoso na esgrima.

Queria explicar que havia cometido um erro. Não era realmente inimigo dele. Mas a prioridade, naquele momento, era não ser cortado ao meio.

O Cara do Acampamento, no entanto, não tinha dificuldades para falar.

— Agora entendi — disse ele, tentando atingir minha cabeça. — Você é algum tipo de monstro.

CLANG! Interceptei o golpe e cambaleei para trás.

— Não sou um monstro — consegui dizer.

Para vencer aquele cara, teria que usar mais do que a espada. O problema é que não queria machucá-lo. Embora ele estivesse tentando me transformar em um sanduíche de Kane fatiado, ainda me sentia culpado por ter começado a briga.

Ele desferiu outro golpe, e não tive escolha. Dessa vez, usei a varinha, aparando a espada na curva do marfim e canalizando uma explosão de magia por seu braço. O ar entre nós piscou e crepitou. O Cara do Acampamento tropeçou. Faíscas azuis de magia voaram a seu redor, como se o feitiço não soubesse bem o que fazer com ele. Quem era aquele cara?

— Você disse que o crocodilo era seu — disse o Cara do Acampamento, de cara feia e com os olhos verdes reluzindo de raiva. — Você perdeu seu bichinho de estimação. Talvez seja um espírito do mundo inferior que atravessou as Portas da Morte.

Antes mesmo que eu conseguisse processar suas palavras, ele fez um movimento com a mão livre. O rio mudou de curso e me derrubou.

Consegui levantar. Já estava ficando bem cansado de engolir água do pântano. Enquanto isso, o Cara do Acampamento veio para cima de mim outra vez, com a espada erguida, preparada para me matar. No desespero, deixei a varinha cair. Enfiei a mão dentro da mochila e meus dedos encontraram a corda.

Joguei-a na direção dele e gritei o comando Tas — amarrar — no momento em que a lâmina de bronze afundou em meu pulso.

A dor se alastrou por todo o meu braço. Minha visão ficou turva e pontos amarelo-brilhantes surgiram diante de meus olhos. Larguei a espada e apertei o pulso, sem fôlego, pensando única e exclusivamente na dor excruciante.

No fundo, sabia que o Cara do Acampamento podia me matar com facilidade. Por algum motivo, ele não fez isso. Uma onda de náusea fez com que eu me curvasse para a frente.

Eu me forcei a examinar o ferimento. Sangrava muito, mas me lembrei de algo que Jaz tinha dito uma vez na enfermaria da Casa do Brooklyn: os cortes costumam parecer muito piores do que são. Torci para que fosse verdade. Puxei um pedaço de papiro de dentro da mochila e o apertei na ferida como uma atadura improvisada.

A dor ainda era horrível, mas pelo menos o enjoo ficou mais suportável. Minha mente começou a clarear, e me perguntei por que ainda não tinha virado picadinho.

O Cara do Acampamento estava sentado ali perto, com água pela cintura, parecendo infeliz. A corda mágica havia envolvido o braço que segurava a espada e prendido a mão dele à lateral da cabeça. Sem poder soltar a espada, ele parecia ter um chifre de rena saindo da orelha. Tentava puxar a corda com a mão livre, mas é claro que não estava funcionando.

Por fim, ele apenas suspirou e olhou para mim com raiva.

— Estou realmente começando a odiar você.

— Começando a me odiar? — protestei. — Eu estou me esvaindo em sangue aqui! Foi você que começou tudo isso me chamando de meio-sangue!

— Ah, qual é? — O Cara do Acampamento se levantou com dificuldade, pois a espada-antena deixava sua cabeça pesada. — Você não pode ser mortal. Se fosse, a espada teria atravessado seu corpo. Se não é um espírito ou um monstro, tem que ser um meio-sangue. Provavelmente um semideus traidor do exército de Cronos.

Não entendi a maioria das coisas que aquele cara dissera, mas uma delas chamou minha atenção.

— Então, quando falou meio-sangue, você...

Ele me encarou como se eu fosse idiota.

— Eu quis dizer semideus. É. O que você achou que eu queria dizer?

Tentei processar a informação. Já tinha ouvido o termo semideus antes, mas não era um conceito egípcio. Talvez o garoto sentisse a minha ligação com Hórus, que eu era capaz de canalizar o poder do deus... mas por que descreveria tudo de modo tão estranho?

— O que você é? — perguntei. — Metade mago de combate, metade elementalista da água? Está com que nomo?

O garoto deu uma risada amarga.

— Cara, não sei do que você está falando. Não ando com gnomos. Sátiros, às vezes. Até ciclopes. Mas nunca gnomos.

A perda de sangue devia ter me deixado tonto. Suas palavras começaram a quicar na minha cabeça como aquelas bolas de loteria: ciclopes, sátiros, semideuses, Cronos. Antes ele havia mencionado Ares. Aquele era um deus grego, não egípcio.

Foi como se o Duat tivesse se aberto abaixo de mim, ameaçando me puxar para suas profundezas. Grego... não egípcio.

Um pensamento começou a se formar em minha cabeça. Não gostei nada. Na verdade, fiquei apavorado.

Apesar de toda a água do pântano que engoli, senti a garganta seca.

— Olha — comecei a dizer —, sinto muito por ter atingido você com aquele feitiço do punho. Foi um acidente. Mas o que não entendo... é que você deveria ter morrido. E não morreu. Isso não faz sentido.

— Não fique tão desapontado — resmungou ele. — Mas, já que estamos falando desse assunto, você também deveria estar morto. Não existe muita gente que conseguiria lutar tão bem contra mim. E a minha espada deveria ter pulverizado seu crocodilo.

— Pela última vez, não é meu crocodilo.

— O.k., tanto faz. — Ele não parecia convencido. — A questão é que meu golpe pegou direitinho naquele crocodilo, mas apenas o atiçou. O bronze celestial deveria tê-lo transformado em pó.

— Bronze celestial?

Nossa conversa foi interrompida por um grito em algum lugar próximo — o grito de uma criança apavorada.

Meu coração quase parou. Eu era mesmo um idiota. Tinha esquecido por que estávamos ali.

Encarei o Cara do Acampamento.

— Temos que deter o crocodilo.

— Trégua? — sugeriu ele.

— Certo — concordei. — Podemos continuar nos matando depois de cuidar do animal.

— Combinado. Agora, será que você pode desamarrar minha mão da cabeça? Estou me sentindo como um maldito unicórnio.


Não digo que confiávamos um no outro, mas pelo menos passamos a ter um objetivo comum. Não tenho a menor ideia de como, mas ele invocou seus sapatos do rio e os calçou. Então me ajudou a envolver o ferimento com uma tira de linho e me esperou beber da poção de cura.

Depois disso, senti-me bem o suficiente para correr atrás dele na direção dos gritos.

Pensei que estava em boa forma de tanto treinar magia de combate, carregar artefatos pesados e jogar basquete com Khufu e seus amigos babuínos (babuínos levam basquete muito a sério). Mesmo assim, foi difícil acompanhar o Cara do Acampamento.

O que me lembrava... Estava começando a ficar cansado de chamá-lo assim.

— Qual é seu nome? — perguntei, arfando enquanto corria atrás dele.

Ele olhou para mim de modo desconfiado.

— Não sei se devo dizer. Nomes podem ser perigosos.

Ele tinha razão, é claro. Nomes têm poder. Havia um tempo, minha irmã Sadie aprendera meu ren, meu nome secreto, e isso ainda me deixava bastante nervoso. Um mago experiente é capaz de causar todo tipo de problemas sabendo apenas o nome comum de uma pessoa.

— Justo — respondi. — Eu falo primeiro. Meu nome é Carter.

Acho que ele acreditou em mim. As rugas próximas aos olhos se suavizaram um pouco.

— Percy.

Aquele nome parecia meio incomum para mim. Soava britânico, eu acho, embora Percy falasse e agisse bem como um americano.

Saltamos um tronco apodrecido e finalmente saímos do pântano. Tínhamos começado a subir por uma colina até as casas mais próximas quando percebi que havia mais de uma pessoa gritando. Não era um bom sinal.

— Só para avisar — adverti Percy. — Você não vai conseguir matar o monstro.

— Espere para ver — resmungou ele.

— Não, eu quis dizer que ele é imortal.

— Já ouvi essa antes. E já transformei vários imortais em pó e os mandei de volta para o Tártaro.

Tártaro?, pensei.

Conversar com Percy estava me dando uma séria dor de cabeça. Lembrou a vez em que meu pai me levara à Escócia para uma de suas palestras de egiptologia. Eu tentara falar com alguns locais e sabia que eles estavam conversando na minha língua, mas parecia que alternavam cada frase compreensível com outra em um idioma estranho — com palavras e pronúncias diferentes —, e eu ficava me perguntando o que, diabos, queriam dizer. Era assim com Percy. Nós quase falávamos a mesma língua — magia, monstros, etc. Mas seu vocabulário estava todo errado.

— Não — tentei de novo, já na metade da colina. — Esse monstro é um petsuchos, um filho de Sobek.

— Quem é Sobek?

— O deus crocodilo. Um deus egípcio.

Isso o fez parar na hora. Olhou para mim, e senti o ar entre nós ficar carregado de eletricidade. Uma voz bem no fundo de minha mente disse: Cale a boca. Não conte mais nada.

Percy olhou para o khopesh que eu havia recuperado do rio, então para a varinha presa em meu cinto.

— De onde você vem? Sério.

— Onde nasci? — perguntei. — Los Angeles. Agora moro no Brooklyn.

Aquilo não pareceu fazê-lo se sentir melhor.

— Então, o monstro, esse tal pet-suco...

— Petsuchos — corrigi. — É uma palavra grega, mas o monstro é egípcio. Era tipo o mascote do Templo de Sobek, venerado como um deus.

Percy grunhiu.

— Você fala como Annabeth.

— Quem?

— Nada. Só me poupe da aula de história. Como fazemos para matá-lo?

— Já disse, ele...

Outro grito veio de cima da colina, seguido por um CRUNCH alto, como o som produzido por um compactador de metal.

Subimos correndo até o topo, depois pulamos a cerca de um quintal qualquer e chegamos a uma rua residencial sem saída.

Exceto pelo crocodilo gigante no meio da via, era uma vizinhança como qualquer outra nos Estados Unidos: uma rua sem saída com casas típicas de subúrbio e seus gramados bem-aparados, carros nas garagens, caixas de correio próximas ao meio-fio e bandeiras penduradas acima das varandas.

Infelizmente, essa imagem do estilo de vida americano foi arruinada pelo monstro, que estava ocupado devorando um carro híbrido verde com um adesivo na traseira que dizia meu poodle é mais inteligente que o seu aluno nota 10. Talvez o petsuchos tivesse pensado que o carro era outro crocodilo e estivesse tentando afirmar sua dominância. Ou talvez apenas não gostasse de poodles ou de alunos que gabaritavam.

Independentemente de seu descontentamento, o crocodilo parecia ainda mais assustador em terra do que na água. Tinha doze metros de comprimento, a altura de um caminhão de entregas e uma cauda tão grande e poderosa que virava carros sempre que ele a sacudia. Sua pele brilhava em um tom verde-escuro e vertia uma água que se acumulava em volta das patas. Eu me lembrei da vez em que Sobek dissera que seu suor divino dera origem aos rios do mundo. Eca. Parecia que aquele monstro tinha a mesma transpiração divina. Eca ao quadrado.

Os olhos da criatura brilhavam com uma luz amarela assustadora. Os dentes brancos e afiados pareciam reluzir. O mais estranho nele, porém, eram as joias. Pendurado em seu pescoço havia um elaborado colar com várias correntes de ouro e pedras preciosas suficientes para comprar uma ilha.

Foi ao ver o colar lá no pântano que percebi que o monstro era um petsuchos. Eu tinha lido que o animal sagrado de Sobek usava algo parecido no Egito, mas não tinha a menor ideia do que o monstro estava fazendo em um bairro de Long Island.

Enquanto Percy e eu absorvíamos a cena, o crocodilo resolveu tomar uma atitude. Abocanhou o carro verde e o partiu ao meio, atirando pedaços de vidro, metal e air bag pelos gramados.

Assim que ele largou os destroços, meia dúzia de crianças surgiu do nada — aparentemente, elas estavam escondidas atrás de alguns dos outros carros — e atacou o monstro, gritando a plenos pulmões.

Inacreditável. Eram apenas crianças (deveriam cursar o ensino fundamental), armadas com nada além de balões e arminhas de água. Acho que estavam de férias e deviam estar se refrescando com uma guerra de água, quando o monstro as interrompeu.

Nenhum adulto a vista. Talvez todos estivessem trabalhando. Talvez todos estivessem dentro de casa, desmaiados por causa do choque.

As crianças pareciam estar mais com raiva do que com medo. Correram ao redor do crocodilo, atirando balões de água que caíam sobre sua couraça sem provocar danos.

Era estúpido e inútil? Era. Mas não pude deixar de admirar a coragem delas. Estavam dando o seu melhor para enfrentar o monstro que invadira sua vizinhança.

Talvez vissem o crocodilo como ele era, ou quem sabe seus cérebros mortais as fizessem pensar que se tratava de um elefante fugido do zoológico, ou um motorista do FedEx enlouquecido.

Fosse lá o que vissem, estavam em perigo.

Senti a garganta fechar. Pensei em meus iniciados na Casa do Brooklyn, que não eram mais velhos do que aquelas crianças, e meus instintos de “irmão mais velho” afloraram. Saí correndo para a rua.

— Saiam de perto dele! Fujam! — gritei. Então joguei minha varinha bem na cabeça do crocodilo. — Sa-mir!

A varinha atingiu o focinho e uma luz azul se espalhou pelo corpo do monstro. O hieróglifo para dor brilhou por toda a sua couraça.

Todos os pontos em que o símbolo aparecia soltavam fumaça e faíscas, fazendo o monstro se debater e bramir irritado.

As crianças se dispersaram e se esconderam atrás de carros e caixas de correio destruídos. O petsuchos voltou seus olhos amarelos e brilhantes para mim.

A meu lado, Percy assobiou baixinho.

— Bem, você conseguiu chamar a atenção dele.

— É.

— Tem certeza de que a gente não consegue matá-lo?

— Tenho.

O crocodilo parecia estar prestando atenção à conversa. Os olhos amarelos iam de um para o outro, como se ele estivesse tentando decidir qual de nós devoraria primeiro.

— Mesmo se você pudesse destruir o corpo dele — expliquei —, o crocodilo apenas reapareceria aqui perto. Está vendo aquele colar? É encantado com o poder de Sobek. Para derrotar o monstro, a gente precisa tirar o colar dele. E então o petsuchos deve encolher até ficar do tamanho de um crocodilo normal.

— Odeio a palavra deve — sussurrou Percy. — Está bem. Vou pegar o colar. Mantenha-o distraído.

— Por que eu tenho que distrair o monstro?

— Porque você é mais irritante — respondeu Percy. — Tente não ser devorado de novo.

— GRRRAU — bramiu o crocodilo, que tinha bafo de lixeira de restaurante de frutos do mar.

Eu estava prestes a dizer a Percy que ele também era bem irritante, mas não tive chance. O petsuchos fez sua investida, e o meu novo companheiro de batalha saiu da frente, deixando-me bem no caminho da destruição.


Primeiro pensamento aleatório: ser devorado duas vezes no mesmo dia seria bem embaraçoso.

Pelo canto do olho, vi Percy disparar para a direita do monstro. As crianças mortais saíram de seus esconderijos e começaram a gritar e jogar mais balões de água no crocodilo, como se estivessem tentando me proteger.

O petsuchos partiu para cima de mim com a mandíbula aberta, prestes a me abocanhar.

E eu fiquei com raiva.

Já havia enfrentado os piores deuses egípcios. Mergulhara no Duat e cruzara a Terra dos Demônios. Estivera na praia do Caos. Eu não ia vacilar diante de um crocodilo superdesenvolvido.

O ar ficou carregado de energia quando meu avatar de combate começou a surgir ao meu redor, como um exoesqueleto azul-brilhante na forma de Hórus.

Fui erguido do chão até ficar suspenso no meio de um guerreiro com cabeça de falcão de seis metros de altura. Dei um passo à frente, preparando-me, e o avatar imitou meu movimento.

— Por Hera! — gritou Percy. — Mas o quê...?

O crocodilo se lançou contra mim.

Ele quase me desequilibrou. Sua mandíbula se fechou em torno do braço livre de meu avatar, mas usei a espada azul-brilhante do falcão guerreiro para golpear seu pescoço.

Talvez o petsuchos não pudesse ser morto. Mas eu esperava ao menos poder cortar o colar, que era sua fonte de poder.

Infelizmente, abri demais o golpe e atingi o monstro no ombro, perfurando sua couraça. Em vez de sangue, começou a escorrer areia, o que é bem comum com os monstros egípcios. Adoraria tê-lo visto se desintegrar por completo, mas não tive essa sorte. Assim que puxei a lâmina, a ferida começou a se fechar e apenas alguns poucos grãos de areia continuaram a sair. O crocodilo mexeu a cabeça de um lado para o outro, jogando-me no chão, e começou a me sacudir pelo braço como um cachorro faria com seu brinquedo.

Quando me soltou, fui arremessado e atravessei o telhado da casa mais próxima, deixando uma cratera em forma de falcão guerreiro na sala de estar de alguém. Torci para que não tivesse esmagado algum mortal indefeso no meio de seu programa de tevê favorito.

Minha visão clareou e vi duas coisas que me irritaram. Primeiro, o crocodilo estava prestes a atacar de novo. Segundo, meu novo amigo Percy estava parado no meio da rua, boquiaberto, olhando para mim. Ao que parecia, ver meu avatar tinha sido um choque tão grande que ele esquecera sua parte no plano.

— Deuses, o que é isso? — indagou ele. — Você está dentro de um homem gigante e que brilha com cabeça de galinha!

— Falcão! — gritei.

Decidi que, se sobrevivesse, jamais permitiria que aquele cara conhecesse Sadie. Eles provavelmente passariam o restante da eternidade se revezando para me insultar.

— Que tal uma ajudinha aqui?

Meu companheiro de combate voltou à realidade e correu em direção ao crocodilo. Quando o monstro veio para cima de mim, chutei seu focinho, o que o fez espirrar e balançar a cabeça por tempo suficiente para eu me soltar dos escombros.

Percy saltou sobre a cauda do crocodilo e correu por suas costas. O monstro começou a se debater com força, e sua couraça jorrava água para todos os lados. De algum modo, Percy manteve o equilíbrio. Ele devia praticar ginástica olímpica ou algo assim.

Enquanto isso, as crianças mortais encontraram munição melhor — pedras, pedaços de metal dos carros destruídos, até mesmo algumas chaves de roda — e voltaram a atingir o monstro, mas eu não queria que ele desviasse a atenção para elas.

— Ei!

Ataquei a cabeça dele com o khopesh. O golpe deveria ter lhe arrancado mandíbula, mas de alguma maneira ele conseguiu abocanhar a lâmina e prendê-la. Acabamos lutando pela espada azul brilhante enquanto ela chiava, transformando os dentes do réptil em areia. Aquilo devia doer, mas o crocodilo não largava e continuava a puxar.

— Percy! — gritei. — Quando você quiser!

Ele avançou no colar. Segurou-o e tentou partir os elos dourados, mas sua espada de bronze sequer os arranhou.

Enquanto isso, o crocodilo estava enlouquecido, tentando tirar a espada de minha mão. A aura do avatar de combate começou a vacilar.

Invocar um avatar é uma ação de curto prazo, como arrancar em uma corrida em velocidade máxima. Não dá para prosseguir por muito tempo, ou você vai sofrer um colapso. E eu já estava suando e sem fôlego. Meu coração batia acelerado. Minha reserva de magia estava quase esgotada.

— Anda logo!

— Não consigo cortar!

— O fecho — sugeri. — Deve ter um.

Assim que disse isso, eu o encontrei. Estava na garganta do monstro, uma cartela dourada envolvendo os hieróglifos que formavam o nome sobek.

— Ali! Na parte de baixo!

Percy desceu pelo colar como se fosse uma rede, mas no mesmo momento o avatar entrou em colapso. Caí no chão, exausto e tonto. O que salvou minha vida foi o crocodilo estar puxando a espada do avatar. Quando ela desapareceu, o monstro caiu para trás e bateu em um carro.

As crianças mortais se dispersaram. Uma delas se escondeu debaixo do carro, que logo desapareceu quando a cauda do crocodilo o arremessou para longe.

Percy chegou à parte de baixo do colar e se segurou com todas as forças. A espada tinha sumido. Ele provavelmente a deixara cair.

O crocodilo se pôs de pé outra vez. A boa notícia: ele não pareceu reparar em Percy. A má notícia: ele com certeza reparou em mim, e parecia completamente furioso.

Eu não tinha energia sequer para correr, muito menos para invocar magia para lutar. As crianças armadas com balões de água e pedras tinham mais chance de derrotar o crocodilo do que eu naquele estado.

Sirenes soavam a distância. Alguém chamara a polícia, o que não me deixou exatamente feliz. Isso só queria dizer que outros mortais estavam vindo o mais rápido possível para se oferecer como lanche de crocodilo.

Recuei até o meio-fio e tentei — ridiculamente — dominar o monstro com o olhar.

— Bom garoto... Parado aí...

O crocodilo rosnou. Sua couraça jorrava água, como se fosse a fonte mais grotesca do mundo, e meus sapatos começaram a chapinhar quando eu andava. Os olhos amarelos ficaram iluminados, talvez de felicidade. Ele sabia que eu estava acabado.

Deslizei a mão para dentro da mochila. Só achei um pedaço de cera. Não havia tempo para fazer um shabti decente, mas não tinha uma ideia melhor. Larguei a mochila e comecei a esfregar a cera furiosamente com as mãos, tentando amolecê-la.

— Percy — chamei.

— Não consigo abrir o fecho! — gritou ele. Não tirei os olhos do crocodilo, mas pelo canto da visão percebi que Percy esmurrava a base do colar. — Será que é algum tipo de magia?

Aquela foi a coisa mais inteligente que ele disse a tarde toda (não que ele tivesse dito muitas). O fecho era uma cartela de hieróglifos, e seria preciso um mago para desvendá-la e abrir o colar. Seja lá o que Percy fosse, ele não era um mago.

Eu ainda estava modelando a cera, tentando transformá-la em uma estatueta, quando o crocodilo decidiu parar de saborear o momento e me devorar logo de uma vez. Quando ele avançou em minha direção, joguei o shabti feito pela metade e gritei o comando.

O hipopótamo mais deformado do mundo surgiu em pleno ar. Ele bateu direto na narina esquerda do crocodilo e se alojou ali, sacudindo as robustas pernas traseiras.

Não era a minha estratégia mais brilhante, mas ter um hipopótamo enfiado em sua narina deve ter sido distração suficiente. O crocodilo bramiu e cambaleou, sacudindo a cabeça. Percy caiu e rolou para longe, quase sendo pisoteado pelo monstro, e correu para se juntar a mim no meio-fio.

Olhei horrorizado enquanto a criatura de cera, agora um hipopótamo vivo (ainda que bastante deformado), tentava se libertar da narina do crocodilo ou se alojar ainda mais fundo na cavidade nasal do réptil — eu não sabia qual das duas opções.

O crocodilo deu uma guinada súbita, e Percy me puxou e impediu que eu fosse pisoteado.

Corremos em direção às crianças mortais. Incrivelmente, nenhuma delas estava ferida. O crocodilo continuou a se debater e destruir casas enquanto tentava desobstruir a narina.

— Tudo bem? — perguntou Percy.

Eu ainda estava sem fôlego, mas assenti fracamente com a cabeça.

Uma das crianças me ofereceu a arminha de água. Acenei com a mão, dispensando-a.

— Gente — disse Percy para elas. — Estão ouvindo as sirenes? Vocês precisam correr até o início da rua e impedir a passagem da polícia. Digam a eles que é muito perigoso vir aqui. Detenham os policiais!

Por algum motivo, as crianças obedeceram. Talvez ficassem felizes em ter algo para fazer. Pela maneira como Percy falou, senti que estava acostumado a levantar o moral de tropas em desvantagem numérica. Ele soava um pouco como Hórus — um líder nato.

— Boa ideia — elogiei depois que as crianças saíram correndo.

Ele assentiu com a cara fechada. O crocodilo ainda estava distraído com o intruso nasal, mas eu não achava que o shabti fosse durar muito. Sob tanta pressão, o hipopótamo logo iria derreter e voltar à forma de cera.

—Você tem algumas cartas na manga, Carter — admitiu Percy. — Tem mais algum truque?

— Não — respondi desanimado. — Estou ficando sem nada. Mas, se alcançar aquele fecho, acho que sou capaz de abri-lo.

Percy mediu o petsuchos com o olhar. A rua estava ficando alagada com a água que vazava da couraça do crocodilo. As sirenes estavam mais altas. Não tínhamos muito tempo.

— Pelo visto, é a minha vez de distrair o crocodilo — disse ele. — Prepare-se para correr até o colar.

— Você está sem a sua espada — protestei. — Você vai morrer!

Percy deu um sorriso torto.

— Corra até ele assim que começar.

— Assim que começar o quê?

O crocodilo espirrou, lançando o hipopótamo de cera pelos ares. O petsuchos se voltou para nós, bramindo de raiva, e Percy partiu para cima dele.


No fim das contas, eu nem precisava ter perguntado que distração Percy tinha em mente. Quando começou, ficou bem óbvio.

Ele parou à frente do crocodilo e ergueu os braços. Imaginei que tivesse algum tipo de magia em mente, mas ele não pronunciou nenhum comando. Não tinha cajado nem varinha. Apenas ficou parado olhando para o crocodilo, como se dissesse: Ei, olhe para mim! Sou delicioso!

O crocodilo pareceu surpreso por um momento. Se nada desse certo, ao menos morreríamos sabendo que confundimos o monstro várias e várias vezes.

Ele continuava a suar. O líquido nojento já inundava a calçada e estava na altura dos nossos tornozelos. Parte escorria pelos ralos da rua, porém havia mais saindo da pele do réptil.

Então entendi o que estava acontecendo. Quando Percy ergueu os braços, a água começou a girar em sentido anti-horário. Começou perto das patas do crocodilo e rapidamente aumentou, até que o redemoinho se espalhou por todo o final da rua, girando com força suficiente para começar a me puxar.

Quando percebi que era hora de correr, a correnteza já estava forte demais. Eu precisava encontrar outra maneira de alcançar o colar.

Um último truque, pensei.

Temi que o esforço fosse literalmente me consumir. Reuni minhas últimas energias mágicas e me transformei em um falcão, o animal sagrado de Hórus.

Instantaneamente, minha visão se tornou cem vezes mais aguçada. Disparei para o alto, acima dos telhados, e o mundo inteiro pareceu entrar em alta definição. Vi os carros de polícia a apenas algumas quadras, e as crianças paradas no meio da rua acenando para eles. Eu enxergava cada poro e placa pegajosa da couraça do crocodilo, cada hieróglifo no fecho do colar. E vi como o truque de mágica de Percy era impressionante.

O fim da rua fora completamente tomado pelo furacão. Percy estava parado no meio dele, imóvel, e a água agora girava tão rápido que até mesmo o crocodilo gigantesco perdera o equilíbrio. Carros destruídos foram arrastados da calçada; caixas de correio, arrancadas dos gramados e levadas pela água, que aumentava tanto em volume quanto em velocidade, elevando seu nível e transformando toda a vizinhança em uma centrífuga líquida.

Foi a minha vez de ficar pasmo. Alguns momentos antes, eu havia concluído que Percy não era mago. Entretanto, nunca tinha visto um mago capaz de controlar tanta água.

O crocodilo cambaleou e tentou resistir, movendo-se em círculo com a correnteza.

— Quando você quiser — murmurou Percy entredentes.

Sem minha audição de falcão, jamais o teria ouvido em meio à tempestade, mas percebi que estava falando comigo.

Lembrei que tinha um trabalho a fazer. Ninguém, mago ou não, poderia controlar tamanho poder por muito tempo.

Bati as asas e mergulhei em direção ao crocodilo. Quando cheguei ao fecho do colar, voltei à forma humana e o agarrei. Ao meu redor, o furacão rugia. Eu mal conseguia enxergar através do turbilhão e da neblina. A correnteza agora estava tão forte que puxava minhas pernas, ameaçando me arrastar para a enchente.

Eu estava tão cansado. Não me sentia assim, tão pressionado além dos limites, desde que lutara contra o Lorde do Caos, o próprio Apófis.

Deslizei a mão pelos hieróglifos do fecho. Tinha que haver um segredo para abri-lo.

O crocodilo voltou a bramir e se debater com violência, lutando para continuar de pé. Em algum lugar à minha esquerda, Percy gritou de raiva e frustração, tentando sustentar a tempestade; mas o redemoinho começava a perder força.

Eu tinha no máximo alguns segundos até o crocodilo se libertar e atacar. Então Percy e eu morreríamos.

Senti os quatro símbolos que formavam o nome do deus:

O último símbolo não representava um som, na verdade. Era o hieróglifo para deus, indicando que as três letras anteriores — SBK — formavam o nome de um deus.

Em caso de dúvida, pensei, aperte o botão “deus”.

Empurrei o quarto símbolo, mas nada aconteceu.

A tempestade estava se acalmando. O crocodilo começou a avançar contra a corrente, encarando Percy. Pelo canto do olho, em meio à toda a neblina, eu o vi se apoiar no joelho.

Passei os dedos pelo terceiro hieróglifo, a cesta de vime (Sadie sempre a chamava de “xícara de chá”), que representava o som de K. O hieróglifo pareceu levemente quente ao toque — ou era só imaginação?

Não havia tempo para pensar. Eu o empurrei. Nada aconteceu.

A tempestade cessou. O crocodilo bramiu, triunfante, pronto para sua refeição.

Fechei o punho e esmurrei o hieróglifo da cesta com toda a força. Dessa vez, o fecho produziu um clique satisfatório e se abriu. Caí no chão, e centenas de quilos de ouro e pedras preciosas se derramaram sobre mim.

O crocodilo vacilou, urrando como a artilharia de um navio de guerra. O que restava do furacão se desfez em uma explosão de vento, e eu fechei os olhos, pronto para ser esmagado pelo corpo do monstro.

De repente, a rua ficou em silêncio. Sem sirenes. Sem gritos de crocodilo. A montanha de joias de ouro desapareceu. Eu estava caído de costas na água suja, encarando o céu azul e vazio.

O rosto de Percy apareceu acima de mim. Ele parecia ter acabado de correr uma maratona no meio de um furacão, mas estava sorrindo.

— Bom trabalho — disse ele. — Pegue o colar.

— O colar?

Meu cérebro ainda estava lento. Aonde tinha ido todo aquele ouro? Sentei-me e tateei a calçada. Meus dedos se fecharam em torno de um colar agora de tamanho normal. Bem... do tamanho normal considerando algo que caberia no pescoço de um crocodilo comum.

— O-o monstro? — gaguejei. — Para onde...?

Percy apontou. A poucos metros, parecendo muito contrariado, estava um filhote de crocodilo com menos de um metro de comprimento.

— Você está brincando.

— Talvez seja o bichinho abandonado de alguém. — Percy deu de ombros. — A gente vê isso no noticiário de vez em quando.

Eu não conseguia pensar em uma explicação melhor, mas como um filhote de crocodilo tinha se apoderado de um colar que o transformara em uma máquina mortífera gigante?

Pessoas começaram a gritar no começo da rua.

— Por aqui! São aqueles dois garotos!

Eram as crianças mortais. Ao que parecia, elas haviam concluído que o perigo tinha passado. Agora estavam trazendo os policiais diretamente até nós.

— Precisamos ir. — Percy pegou o bebê crocodilo, envolveu seu pequeno focinho com uma das mãos, e olhou para mim. — Você vem?

Juntos, corremos de volta para o pântano.


Meia hora mais tarde, estávamos sentados em uma lanchonete na rodovia Montauk. Dividi o restante da poção de cura com Percy, que por algum motivo insistia em chamá-la de néctar. A maioria de nossos ferimentos tinha cicatrizado.

Amarramos o crocodilo do lado de fora, na floresta, com uma coleira improvisada, até decidirmos o que fazer com ele. Limpamos a sujeira o melhor que pudemos, e ainda parecíamos ter tomado banho em um lava a jato com defeito. O cabelo de Percy estava jogado de lado e cheio de grama presa nele. A camiseta laranja estava rasgada na frente.

Tenho certeza de que minha aparência não era muito melhor. Havia água em meus sapatos, e eu ainda estava tirando penas de falcão das mangas da camisa (transformações às pressas podem fazer a maior bagunça).

Estávamos exaustos demais para conversar enquanto assistíamos ao noticiário na tevê em cima do balcão. Policiais e bombeiros foram atender a uma emergência estranha relacionada à rede de esgoto local. Aparentemente, a pressão nos canos de drenagem havia ficado muito alta, provocando uma grande explosão que causara uma enchente e erodira o solo com tanta gravidade que várias casas no final da rua foram destruídas. Fora um milagre nenhum dos moradores ter se ferido. As crianças da área contaram histórias inacreditáveis sobre o Monstro do Pântano de Long Island, afirmando que ele havia causado os danos durante uma luta contra dois adolescentes, mas é claro que as autoridades não acreditaram. Entretanto, o repórter reconheceu que parecia que algo bem grande havia caído nas casas destruídas.

— Um acidente estranho com a rede de esgoto — disse Percy. — Essa é nova.

— Só se for para você — resmunguei. — Parece que provoco esses acidentes aonde vou.

— Anime-se. O almoço é por minha conta.

Ele revirou os bolsos do jeans e de lá tirou uma caneta esferográfica. E mais nada.

— Ih... — O sorriso desapareceu. — Na verdade... Você consegue conjurar dinheiro?

Então, é claro, o almoço foi por minha conta. Eu conseguia fazer dinheiro aparecer do nada, já que guardava um pouco no Duat junto com outros suprimentos de emergência. Por isso, logo depois, havia cheeseburguers e batatas fritas a nossa frente, e as coisas estavam começando a melhorar.

— Cheeseburguers — disse Percy. — O alimento dos deuses.

— Concordo.

Mas, quando olhei para ele, perguntei-me se estava pensando o mesmo que eu: que estávamos nos referindo a deuses diferentes.

Percy cheirou seu sanduíche. Sério, aquele cara podia comer um boi.

— Então... o colar — disse ele, entre mordidas. — Qual é a história?

Hesitei. Ainda não fazia ideia de onde Percy vinha ou o que ele era, e não tinha certeza de que queria perguntar. Agora que havíamos lutado juntos, não podia deixar de confiar nele. Ainda assim, sentia que o assunto era perigoso. Tudo o que disséssemos poderia ter sérias consequências não apenas para nós, e sim também para todos que conhecíamos.

A sensação era parecida com a de dois anos antes, quando meu tio Amós contara a verdade sobre as origens da família Kane — a Casa da Vida, os deuses egípcios, o Duat, tudo. Em apenas um dia, meu mundo ficou dez vezes maior e me deixou tonto.

Agora eu estava diante de um momento como aquele. Se meu mundo expandisse dez vezes mais de novo, temia que meu cérebro explodisse.

— O colar é encantado — expliquei, por fim. — Qualquer réptil que o use se torna o próximo petsuchos, o Filho de Sobek. De alguma maneira foi parar no pescoço daquele filhote de crocodilo.

— Ou seja, alguém o colocou no pescoço dele.

Não queria pensar nessa possibilidade, mas assenti de modo relutante.

— Quem, então?

— É difícil saber — respondi. — Tenho muitos inimigos.

Percy deu uma risada irônica.

— Sei como é. Alguma ideia do porquê, então?

Dei outra mordida no cheeseburguer. Estava gostoso, mas agora tinha ficado difícil me concentrar nele.

— Alguém queria causar problemas — especulei. — Acho que talvez... — Estudei Percy, tentando medir o quanto deveria revelar. — Talvez quisessem causar um problema que atraísse a nossa atenção. A atenção de nós dois.

Percy franziu a testa. Ele fez um desenho usando ketchup e batata frita. Não um hieróglifo, mas uma letra que não era latina. Chutei que fosse grega.

— O monstro tinha um nome grego — disse ele. — Estava comendo pégasos em... — Ele hesitou.

— Na sua base — completei. — Algum tipo de acampamento, pela sua camiseta.

Ele se mexeu no banco, desconfortável. Ainda não dava para acreditar que ele falava em pégasos como se fossem reais. Eu me lembrei de uma vez na Casa do Brooklyn, talvez um ano antes, em que tivera certeza de que vira um cavalo alado no céu de Manhattan. Na ocasião, Sadie dissera que eu estava tendo alucinações. Agora não tinha tanta certeza disso.

Finalmente, Percy me encarou.

— Olha, Carter, você não é nem de longe tão irritante quanto pensei. E nós formamos uma boa dupla hoje, mas...

— Você não quer revelar seus segredos. Não se preocupe, não vou perguntar sobre seu acampamento. Ou seus poderes. Nem nada disso.

Ele ergueu uma sobrancelha.

— Não está curioso?

— Estou extremamente curioso. Mas, até descobrirmos o que está havendo, acho melhor mantermos certa distância. Se alguém, ou alguma coisa, soltou aquele monstro aqui, sabendo que ia chamar a nossa atenção...

— Então talvez essa pessoa quisesse que nos encontrássemos — completou ele. — Desejando que coisas ruins acontecessem.

Assenti. Lembrei-me da sensação incômoda de antes, a voz em minha cabeça me alertando para não dizer nada a Percy. Tinha passado a respeitá-lo, porém ainda sentia que não devíamos ser amigos. Não era para sequer chegarmos perto um do outro.

Muito tempo atrás, quando eu era bem mais novo, vi minha mãe fazer um experimento científico diante de seus alunos da faculdade.

Potássio e água, ela dissera. Separados, são totalmente inofensivos. Mas juntos...

Ela derrubou o potássio em uma proveta com água, e CABUM! Os estudantes recuaram assustados quando uma miniexplosão chacoalhou todos os frascos no laboratório.

Percy era a água. Eu era o potássio.

— Agora nos conhecemos — disse ele. — Você sabe que fico aqui em Long Island. E eu sei que você mora no Brooklyn. Se fôssemos procurar um ao outro...

— Eu não acho que seria uma boa ideia. Não até sabermos mais. Preciso fazer algumas pesquisas em, bem, no meu lado. Tentar descobrir quem estava por trás desse incidente com o crocodilo.

— Tudo bem. Vou fazer o mesmo do meu lado.

Ele apontou o colar do petsuchos, que cintilava em minha mochila.

— O que vamos fazer com isso?

— Posso mandá-lo para um lugar seguro — prometi. — Não vai causar mais problemas. Nós lidamos com relíquias como essa o tempo todo.

— Nós. Quer dizer que... vocês são muitos?

Não respondi.

Percy ergueu as mãos.

— Tudo bem. Não está mais aqui quem perguntou. Tenho uns amigos no Acam... quer dizer... do meu lado que adorariam explorar um colar mágico como esse, mas vou confiar em você. Pode ficar.

Não percebi que estava prendendo a respiração até que a soltei.

— Obrigado. Legal.

— E o crocodilo bebê?

Ri nervosamente.

— Você quer ficar com ele?

— Pelos deuses, não.

— Posso ficar com o crocodilo, dar um lar a ele. — Pensei em nossa piscina da Casa do Brooklyn. Imaginei o que nosso crocodilo gigante e mágico, Filipe da Macedônia, acharia de ter um novo amigo. — É, acho que ele vai se adaptar bem.

Percy pareceu não saber o que pensar disso.

— O.k., bem... — Ele estendeu a mão. — Foi bom trabalhar com você, Carter.

Apertamos as mãos. Nenhuma faísca voou. Não houve trovões. Mas ainda não podia deixar de lado a sensação de que tínhamos aberto uma porta ao nos encontrarmos daquela maneira — uma porta que talvez não conseguíssemos fechar.

— Com você também, Percy.

Ele se levantou para ir.

— Só mais uma coisa. Se esse alguém que promoveu nosso encontro... Se for um inimigo de nós dois... E se precisarmos um do outro para lutar contra ele? Como entro em contato?

Considerei a ideia e tomei uma decisão impulsiva.

— Posso escrever em sua mão?

— Tipo o quê? Seu telefone?

Ele franziu a testa.

— Não exatamente...

Peguei o cálamo e a tinta mágica. Percy estendeu a mão e eu desenhei um hieróglifo em sua palma — o Olho de Hórus. Assim que completei o símbolo, ele brilhou e desapareceu.

— Basta dizer meu nome e eu o ouvirei. Vou saber onde está e irei ao seu encontro. Só vai funcionar uma vez, então não desperdice.

Percy observou a palma vazia.

— Vou confiar que isso não seja algum tipo de rastreador mágico, certo?

— Sim. E eu estou confiando que, quando você me chamar, não vai me atrair para algum tipo de emboscada.

Ele me encarou. Aqueles olhos verdes tempestuosos eram mesmo um pouco assustadores. Então Percy sorriu, e parecia um adolescente normal e despreocupado.

— Justo. Até a próxima, C...

— Não diga meu nome!

— Brincadeira. — Ele apontou para mim e piscou. — Que os deuses o mantenham estranho, meu amigo.

E então foi embora.


Uma hora depois, eu estava de volta ao barco-trenó voador com o filhote de crocodilo e o colar mágico enquanto Freak me levava de volta para a Casa do Brooklyn.

Agora, olhando para trás, toda essa história com o Percy parece tão irreal que mal acredito que realmente aconteceu.

Eu me pergunto como Percy conjurou aquele redemoinho, e o que, diabos, é bronze celestial. Acima de tudo, uma palavra não sai da minha cabeça: semideus.

Algo me diz que eu poderia obter algumas respostas se procurasse bastante, mas tenho medo do que posso descobrir.

Por enquanto, acho que vou contar sobre isso apenas para Sadie. No começo ela vai achar que estou brincando. E, é claro, vai implicar comigo, mas ela também saberá quando estou falando a verdade. Por mais que minha irmã seja irritante, confio nela (embora nunca vá dizer isso na cara dela).

Talvez ela tenha alguma ideia sobre o que devemos fazer.

Quem quer que tenha nos reunido, orquestrado que nossos caminhos se cruzassem... Isso parece coisa do Caos. Não posso deixar de pensar que foi um experimento para ver que tipo de confusão nosso encontro provocaria. Potássio e água. Matéria e antimatéria.

Felizmente, acabou tudo bem. O colar do petsuchos está guardado em segurança, e nosso novo bebê crocodilo está nadando feliz na piscina.

Da próxima vez... Bem, tenho medo de que talvez não tenhamos tanta sorte.

Em algum lugar por aí tem um garoto chamado Percy com um hieróglifo secreto na mão. E algo me diz que, mais cedo ou mais tarde, vou acordar no meio da noite e ouvir uma palavra sussurrada urgentemente em meus pensamentos:

Carter.

 

 

Annabeth Chase

Annabeth achava que o dia não podia piorar até o momento em que viu o monstro de duas cabeças.

Ela passou a manhã toda fazendo trabalhos atrasados da escola. (Faltar aulas com frequência para salvar o mundo de monstros e deuses gregos canalhas estava acabando com suas boas notas.) Depois, teve que dispensar um filme com o namorado, Percy, e alguns amigos, para poder concorrer a um estágio de férias de verão em uma empresa de arquitetura. Infelizmente, seu cérebro tinha virado papinha de bebê. Ela estava certa de que fora mal na entrevista.

Finalmente, por volta das quatro da tarde, quando se arrastava pelo parque da Washington Square a caminho da estação de metrô, ela pisou em uma bosta de vaca fresquinha.

Olhou com irritação para o céu.

— Hera!

Os pedestres olharam para ela com expressões esquisitas, mas Annabeth não se importou. Estava cansada das brincadeirinhas da deusa. Já tinha feito tantas missões para Hera, mas a rainha do céu continuava a deixar presentes de seu animal sagrado bem onde Annabeth podia pisar. A deusa devia ter um rebanho de vacas dissimuladas patrulhando Manhattan.

Quando chegou à estação da rua Quatro Oeste, Annabeth já estava mal-humorada e exausta e só queria pegar o trem F até a casa de Percy. Estava tarde para o cinema, mas talvez eles pudessem jantar ou fazer alguma outra coisa.

E, então, ela viu o monstro.

Annabeth já tinha visto muita coisa doida antes, mas aquela fera ia direto para a lista “O que os deuses estavam pensando?”. Parecia um leão e um lobo grudados, colados de bunda em uma concha de caranguejo-ermitão.

A concha em si era uma espiral marrom, como uma casquinha de sorvete, com quase dois metros de comprimento e uma marca irregular no meio, como se tivesse rachado e depois sido colada de volta. Saindo de cima havia as pernas dianteiras e a cabeça de um lobo cinzento, à esquerda, e um leão de juba dourada, à direita.

Os dois animais não pareciam felizes por compartilhar a concha. Eles a arrastaram pela plataforma, ziguezagueando, enquanto um tentava ir para um lado e outro seguia para o lado oposto. Rosnaram um para o outro com irritação. Depois, pararam e farejaram o ar.

Passageiros seguiam direto. A maioria contornava o monstro e o ignorava. Alguns só franziam a testa ou pareciam irritados.

Annabeth já tinha visto a Névoa em ação muitas vezes, mas sempre ficava impressionada com a forma como o véu mágico era capaz de distorcer a visão mortal, tornando até o mais feroz dos monstros uma coisa explicável: um cachorro vadio ou talvez um sem-teto enrolado em um saco de dormir.

As narinas do monstro se dilataram. Antes que Annabeth pudesse decidir o que fazer, as duas cabeças se viraram e olharam diretamente para ela.

Annabeth buscou sua faca. Então se lembrou de que não tinha uma. No momento, sua arma mais mortal era a mochila, que estava lotada de pesados livros da biblioteca pública sobre arquitetura.

Ela acalmou a respiração. O monstro estava a quase dez metros de distância.

Lutar com um leão-lobo-caranguejo no meio de uma estação de metrô lotada não era sua primeira opção, mas, se fosse necessário, faria isso. Ela era filha de Atena.

Então encarou a fera, deixando claro que estava disposta a brigar.

— Pode vir, Caranguejo — disse ela. — Espero que você tenha alta tolerância à dor.

As cabeças de leão e de lobo mostraram os dentes. O chão tremeu. O ar correu pelo túnel enquanto um trem chegava.

O monstro rosnou para Annabeth. Ela poderia jurar que havia uma expressão de arrependimento nos olhos dele, como se pensando: Eu adoraria partir você em pedacinhos, mas tenho um compromisso em outro lugar.

Naquele momento, o bicho se virou e saiu andando, arrastando a enorme concha atrás. Ele desapareceu escada acima, na direção do trem A.

Por um momento, Annabeth ficou perplexa demais para se mexer. Poucas vezes ela tinha visto um monstro deixar um semideus em paz assim. Se houvesse chance, os monstros quase sempre atacavam.

Se aquele caranguejo-ermitão de duas cabeças tinha alguma coisa mais importante a fazer do que matá-la, Annabeth queria saber o que era. Não podia deixar o monstro seguir com seus planos nefastos e usar o transporte público sem pagar.

Ela olhou com tristeza para o trem F que a levaria para a casa de Percy, e saiu correndo escada acima, atrás do monstro.


Annabeth pulou no vagão quando as portas estavam se fechando. O trem se afastou da plataforma e mergulhou na escuridão. As luzes piscavam. Os passageiros se balançavam. Todos os assentos estavam tomados. Havia uns doze passageiros de pé, oscilando e segurando em barras e apoios de mão.

Annabeth só conseguiu ver o Caranguejo quando alguém mais adiante dela gritou:

— Cuidado, seu esquisito!

O lobo-leão-caranguejo estava abrindo caminho, rosnando para os mortais, mas os passageiros só agiam com a irritação comum vista no metrô de Nova York. Talvez eles vissem o monstro como um bêbado qualquer.

Annabeth foi atrás.

Quando Caranguejo abriu as portas para o vagão seguinte e a atravessou, Annabeth reparou que a concha cintilava levemente.

Estava assim antes? Símbolos vermelhos em neon giravam ao redor do monstro: letras gregas, signos astrológicos e pictogramas. Hieróglifos egípcios.

Um arrepio se espalhou entre as clavículas de Annabeth. Ela se lembrou de uma coisa que Percy lhe havia contado algumas semanas antes, sobre um encontro que tivera e que parecia tão impossível que ela supôs que ele estivesse brincando.

Mas agora...

Ela abriu caminho entre a multidão para seguir o Caranguejo até o vagão seguinte.

Não havia dúvidas de que a concha da criatura estava brilhando mais intensamente naquele momento. Quando Annabeth se aproximou, começou a se sentir enjoada. Teve uma sensação quente dentro de si, como se houvesse um anzol preso no umbigo, puxando-a para a direção do monstro.

Annabeth tentou se acalmar. Tinha dedicado a vida a estudar os espíritos da Grécia Antiga, os animais e os daímones. O conhecimento era sua maior arma. Mas essa coisa meio caranguejo de duas cabeças... Annabeth não tinha padrão de referência. Sua bússola interna estava girando sem chegar a lugar algum.

Ela desejou estar com mais gente. Estava com o celular, mas, mesmo se conseguisse sinal lá embaixo, para quem ligaria? A maioria dos semideuses não andava com celular. O sinal atraía monstros. Percy estava do outro lado da cidade. Quase todos os seus amigos estavam no Acampamento Meio-Sangue, na parte norte de Long Island.

O Caranguejo seguiu abrindo caminho para a parte da frente do trem.

Quando Annabeth o alcançou no vagão seguinte, a aura do monstro estava tão forte que até os mortais começaram a reparar. Muitos estavam com ânsia de vômito e encolhidos nas cadeiras, como se alguém tivesse aberto um armário cheio de refeições estragadas. Outros caíram desmaiados no chão.

Annabeth estava tão nauseada que sentiu vontade de recuar, mas a sensação de ser puxada por um anzol continuava em seu umbigo, levando-a na direção do monstro.

O trem entrou aos solavancos na estação da rua Fulton. Assim que as portas se abriram, todos os passageiros ainda conscientes saíram cambaleando. A cabeça de lobo do Caranguejo se esticou para uma senhora e, com os dentes, agarrou sua bolsa quando ela tentou fugir.

— Ei! — gritou Annabeth.

O monstro soltou a mulher.

Os dois pares de olhos grudaram em Annabeth, como se pensando: Quer morrer?

Em seguida, ele jogou as cabeças para trás e rugiu em harmonia. O som atingiu Annabeth como um furador de gelo entre os olhos. As janelas do vagão racharam. Mortais que haviam desmaiado voltaram à consciência num susto. Alguns conseguiram sair rastejando pelas portas. Outros pularam pelas janelas quebradas.

Com a visão embaçada, Annabeth viu o monstro agachado, apoiado nas patas da frente, diferentes entre si, pronto para pular.

O tempo ficou mais devagar. Ela percebeu vagamente as portas com vidros quebrados se fechando, o trem então vazio saindo da estação. Seria possível que o condutor não tivesse percebido o que estava acontecendo? Seria possível que o trem estivesse seguindo no piloto automático?

Agora a apenas três metros dele, Annabeth reparou em outros detalhes do monstro. A aura vermelha parecia brilhar mais na marca da concha. Letras gregas e hieróglifos egípcios cintilantes jorravam como gás vulcânico de uma fissura no fundo do mar. A pata dianteira esquerda do leão estava raspada no pulso e tinha tatuada uma série de listras pretas pequenas. Dentro da orelha esquerda do lobo havia uma etiqueta de preço que marcava u$99,99.

Annabeth segurou a alça da mochila. Estava prestes a jogá-la no monstro, mas não seria uma boa arma. Por isso, ela usou sua tática de sempre ao encarar um inimigo mais forte: começou a falar.

— Você é feito de duas partes diferentes — disse ela. — Parecem... pedaços de uma estátua que ganhou vida. Vocês foram fundidos um com o outro?

Era pura conjectura, mas o rugido do leão fez Annabeth achar que tinha acertado na mosca. O lobo mordiscou a bochecha do leão como se mandando-o calar a boca.

— Vocês não estão acostumados a trabalhar juntos — sugeriu Annabeth. — Sr. Leão, o senhor tem um número de identificação na pata. Era um artefato de museu. Talvez do Met?

O leão rugiu tão alto que os joelhos de Annabeth tremeram.

— Acho que isso é um sim. E senhor, sr. Lobo... essa etiqueta na orelha... o senhor estava à venda em alguma loja de antiguidades?

O lobo rosnou e deu um passo na direção dela.

Enquanto isso, o trem continuou seguindo para o rio East. O vento frio entrava pelas janelas quebradas e fez Annabeth bater os dentes.

Todos os instintos a mandavam correr, mas suas juntas pareciam estar se dissolvendo. A aura do monstro foi ficando mais intensa e enchendo o ar com símbolos enevoados e luz sangrenta.

— Você... você está ficando mais forte — reparou Annabeth. — Está indo a algum lugar, não é? E quanto mais perto chega...

As cabeças do monstro rosnaram de novo em harmonia. Uma onda de energia vermelha se espalhou pelo vagão. Annabeth precisou lutar para ficar consciente.

Caranguejo chegou mais perto. A concha se expandiu, com a fissura no centro ardendo como ferro derretido.

— Calma — gemeu Annabeth. — Eu... entendi agora. Você ainda não terminou. Está procurando por uma outra parte. Uma terceira cabeça?

O monstro parou. Os olhos brilharam com atenção, como se dizendo: Você andou lendo meu diário?

A coragem de Annabeth aumentou. Ela estava finalmente entendendo o inimigo. Já tinha enfrentado muitas criaturas de três cabeças antes. Quando se tratava de seres míticos, três era uma espécie de número mágico. Fazia sentido esse monstro ter outra cabeça.

Caranguejo era algum tipo de estátua dividida em pedaços. Só que alguma coisa o tinha despertado. Ele estava tentando se regenerar.

Annabeth concluiu que não podia deixar aquilo acontecer. Os hieróglifos e letras gregas vermelhas e brilhantes flutuavam ao redor dele como um pavio em chamas, irradiando uma magia que parecia fundamentalmente errada, como se dissolvesse devagar a estrutura celular de Annabeth.

— Você não é exatamente um monstro grego, é? — arriscou ela. — É do Egito?

Caranguejo não gostou desse comentário. Ele mostrou os dentes e se preparou para atacar.

— Opa, rapaz — disse ela. — Você ainda não está com força total, está? Se me atacar agora, vai perder. Afinal, vocês dois não confiam um no outro.

O leão inclinou a cabeça e rugiu.

Annabeth fingiu uma expressão de choque.

— Sr. Leão! Como pode dizer isso sobre o sr. Lobo?

O leão piscou, sem entender.

O lobo olhou para o leão e rosnou com desconfiança.

— Sr. Lobo! — Annabeth ofegou. — O senhor não devia usar esse tipo de linguajar para falar de seu amigo!

As duas cabeças se viraram uma para a outra, mordendo e uivando. O monstro oscilou quando as patas dianteiras seguiram em direções opostas.

Annabeth sabia que só conseguira ganhar alguns segundos. Ela vasculhou a mente, tentando descobrir o que aquela criatura era e como poderia derrotá-la, mas aquilo era diferente de tudo o que ela conseguia se lembrar das aulas no Acampamento Meio-Sangue.

Ela considerou ir para trás do monstro, para talvez tentar quebrar a concha, mas, antes de poder fazer isso, o trem diminuiu a velocidade. Eles pararam na estação da rua High, a primeira parada do Brooklyn.

A plataforma estava estranhamente vazia, mas um brilho de luz ao lado da escada de saída chamou a atenção de Annabeth. Uma jovem loura de roupas brancas brandia um cajado de madeira para tentar bater em um animal estranho que corria ao redor das pernas dela, latindo com raiva. Dos ombros para cima, a criatura parecia um labrador preto, mas o fim das costas era só uma ponta estreita, como a cauda calcificada de um girino.

Annabeth teve tempo de pensar: A terceira parte.

E então a garota loura bateu no focinho do cachorro. O cajado emitiu luz dourada, e o cachorro se lançou para trás, direto por uma janela quebrada na extremidade do vagão de Annabeth.

A garota loura foi atrás. Pulou, passando pelas portas que se fechavam na hora em que o trem ia sair da estação.

Por um momento, todos ficaram ali, duas garotas e dois monstros.

Annabeth examinou a garota na outra ponta do vagão e tentou avaliar o nível de ameaça.

A recém-chegada usava uma calça de linho branco e blusa combinando, como um uniforme de caratê. Os coturnos com bicos de aço pareciam capazes de provocar grande dano em uma luta. Carregava uma mochila azul de náilon pendurada no ombro esquerdo com uma vara curva de marfim — um bumerangue? — pendurada na alça. Mas a arma mais intimidante da garota era o cajado de madeira branca, com mais ou menos um metro e meio e com a cabeça de uma águia entalhada. Ele cintilava, como bronze celestial.

Annabeth olhou nos olhos da garota e foi tomada por uma sensação de déjà-vu.

A Garota Caratê não devia ter mais de treze anos. Os olhos eram azuis brilhantes, como dos filhos de Zeus. Os cabelos louros compridos tinham mechas roxas. Ela se parecia muito com uma filha de Atena — pronta para o combate, rápida, alerta e destemida. Annabeth sentiu como se estivesse vendo a si mesma de quatro anos antes, por volta da época em que conheceu Percy Jackson.

Mas a Garota Caratê falou e afastou essa fantasia.

— Certo. — Ela soprou uma mecha roxa do rosto. — Como se meu dia já não estivesse esquisito o suficiente.

Britânica, pensou Annabeth. Mas não teve tempo para refletir sobre isso.

O cachorro-girino e o Caranguejo tinham ficado no centro do vagão, a uns cinco metros de distância, olhando um para o outro com surpresa. Mas, no momento, eles já haviam superado o choque. O cachorro uivou, um grito triunfante de Encontrei você! E o leão-lobo-caranguejo correu para se encontrar com o outro monstro.

— Detenha-os! — gritou Annabeth.

Ela pulou nas costas de Caranguejo, e as patas da frente desabaram pelo peso adicional.

A outra garota gritou alguma coisa que pareceu “Mar!”

Uma série de hieróglifos dourados brilhou no ar:

A criatura canina cambaleou para trás, engasgando como se tivesse engolido uma bola de bilhar.

Annabeth lutou para segurar Caranguejo, mas a fera tinha o dobro de seu peso. O monstro se ergueu nas patas dianteiras para tentar jogá-la longe. As duas cabeças se viraram para morder o rosto dela.

Felizmente, ela já havia colocado rédeas em muitos pégasos selvagens no Acampamento Meio-Sangue. Annabeth conseguiu manter o equilíbrio enquanto tirava a mochila. Bateu com dez quilos de livros de arquitetura na cabeça do leão e passou a alça pela boca do lobo, puxando-a com força.

Enquanto isso, o trem emergiu para a luz do sol. Eles sacudiram pelos trilhos elevados do Queens, com ar fresco entrando pelas janelas quebradas e caquinhos de vidro dançando nos assentos.

Com o canto do olho, Annabeth viu o cachorro se recuperar do acesso de engasgo. Ele pulou na Garota Caratê, que lançou o bumerangue de marfim e acertou o monstro com outro raio dourado.

Annabeth desejou ser capaz de gerar raios dourados. Tudo que tinha era uma mochila idiota. Ela fez o melhor para dominar o Caranguejo, mas o monstro parecia ficar mais forte a cada segundo enquanto a aura vermelha da coisa enfraquecia Annabeth. Sua cabeça parecia cheia de algodão. O estômago deu um nó.

Ela perdeu a noção do tempo enquanto lutava com a criatura. Só sabia que não podia deixar aquilo se acoplar à coisa com cabeça de cachorro. Se o monstro virasse um sei lá o quê de três cabeças, talvez fosse impossível detê-lo.

O cachorro atacou a Garota Caratê de novo. Dessa vez, derrubou-a. Annabeth, distraída, não conseguiu se segurar no monstro caranguejo, e ele a jogou longe. Ela bateu com a cabeça na beirada de uma cadeira.

Suas orelhas estalaram quando a criatura rugiu em triunfo. Uma onda de energia quente e vermelha se espalhou pelo vagão. O trem tombou para o lado, e Annabeth voou como se não existisse força da gravidade.


— Vamos levantar — disse uma voz de garota. — Temos que sair daqui.

Annabeth abriu os olhos. O mundo girava. Sirenes de emergência berravam ao longe.

Ela estava deitada de costas sobre uma grama espinhosa, a garota loura do trem inclinada sobre ela, puxando seu braço.

Annabeth conseguiu se sentar. Sentia como se alguém tivesse martelado pregos quentes em sua caixa torácica. Quando sua visão clareou, ela se deu conta de que tinha sorte de estar viva. A aproximadamente cinquenta metros de distância, o trem do metrô tinha saído dos trilhos. Os vagões estavam caídos de lado em um zigue-zague de ruína quebrada e fumegante que fez Annabeth se lembrar da carcaça de um drakon (infelizmente, ela tinha visto várias).

Ela não viu mortais feridos. Com sorte, todos tinham saído do trem na estação da rua Fulton. Mesmo assim... que desastre.

Annabeth reconheceu onde estava: na praia Rockaway. Algumas dezenas de metros à esquerda, terrenos vazios e cercas de arame amassadas levavam a uma praia de areia amarela cheia de piche e lixo. O mar se agitava sob um céu nublado. À direita de Annabeth, depois dos trilhos do trem, havia uma sequência de prédios residenciais tão malcuidados que podiam ser prédios inventados feitos de embalagens velhas de geladeira.

— Alôôô!! — A Garota Caratê sacudiu o ombro dela. — Sei que você deve estar em estado de choque, mas temos que ir. Não quero ser interrogada pela polícia carregando essa coisa.

A garota se afastou para a esquerda. Atrás dela, no asfalto rachado, o monstro labrador preto pulava como um peixe fora d’água, com o focinho e as patas presos com uma corda dourada cintilante.

Annabeth olhou para a garota mais nova. Ao redor do pescoço dela brilhava uma corrente com um amuleto prateado, um símbolo que era uma mistura de ankh egípcio com um biscoitinho com forma de menino.

Ao lado dela estavam o cajado e o bumerangue de marfim, ambos entalhados com hieróglifos e imagens de monstros estranhos e nada gregos.

— Quem é você? — perguntou Annabeth.

Um sorriso surgiu no canto da boca da garota.

— Normalmente, não digo meu nome para estranhos. Vulnerabilidade mágica, essas coisas. Mas tenho que respeitar uma pessoa que luta contra um monstro de duas cabeças com apenas uma mochila. — Ela estendeu a mão. — Sadie Kane.

— Annabeth Chase.

Elas se cumprimentaram.

— É um prazer conhecer você, Annabeth — disse Sadie. — Agora vamos levar nosso cachorro para passear, certo?


Elas saíram bem na hora.

Em poucos minutos, veículos de socorro cercaram os restos do trem e um grupo de espectadores vindos dos prédios próximos se reuniu.

Annabeth estava mais enjoada do que nunca. Pontos vermelhos dançavam diante de seus olhos, mas ainda assim ela ajudou Sadie a arrastar a criatura canina de costas pelo rabo para as dunas de areia. Sadie pareceu ter prazer em puxar o monstro por cima de todas as pedras e garrafas quebradas que encontrava.

A fera rosnava e se contorcia. A aura vermelha brilhava mais intensamente, enquanto a corda dourada parecia se apagar.

Normalmente, Annabeth gostava de andar na praia. O oceano lembrava Percy. Mas naquele dia estava com fome e exausta. A mochila ia ficando mais pesada a cada momento, e a magia da criatura canina provocava-lhe ânsia de vômito.

Além disso, a praia Rockaway era um lugar depressivo. Um furacão gigantesco tinha passado ali mais de um ano antes, e os danos ainda eram visíveis. Alguns dos prédios residenciais ao longe foram reduzidos a blocos, com as janelas tapadas por madeira e paredes de concreto pichadas. Madeira podre, pedaços de asfalto e metal retorcido sujavam a praia. As colunas de um píer destruído se projetavam da água. O próprio mar atormentava a costa com ressentimento, como se dizendo: Não me ignore. Posso sempre voltar e terminar o serviço.

Finalmente, eles chegaram a uma van de venda de sorvete abandonada meio afundada nas dunas. Pintadas na lateral, imagens apagadas de outrora guloseimas saborosas fizeram o estômago de Annabeth roncar em protesto.

— Tenho que parar — murmurou ela.

Ela largou o monstro canino e cambaleou até a van, depois deslizou com as costas na porta do passageiro.

Sadie se sentou de pernas cruzadas de frente para ela. Remexeu em sua mochila e pegou um frasco de cerâmica fechado por uma rolha.

— Aqui. — Ela entregou para Annabeth. — É delicioso. Beba.

Annabeth observou o frasco com cautela. Estava pesado e quente, como se cheio de café.

— Hum... isso não vai soltar nenhum raio dourado, e cabrum!, na minha cara?

Sadie riu com deboche.

— É só uma poção curativa, boba. Uma amiga minha, Jaz, prepara a melhor do mundo.

Annabeth ainda estava hesitante. Já tinha experimentado poções antes, preparadas pelos filhos de Hécate. Normalmente, tinham gosto de sopa de água suja, mas pelo menos eram feitas para funcionar em semideuses. O que havia naquele frasco definitivamente não era.

— Não sei se devo experimentar — disse ela. — Eu... não sou como você.

— Ninguém é como eu — concordou Sadie. — Sou maravilhosa de uma forma única. Mas, se você quer dizer que não é mágica, bem, dá para ver isso. Normalmente, nós lutamos com cajados e varinhas. — Ela bateu na vara branca entalhada e no bumerangue de marfim a seu lado. — Mesmo assim, acho que minhas poções devem funcionar em você. Você lutou com um monstro. Sobreviveu àquele acidente de trem. Não pode ser normal.

Annabeth riu fracamente. Achou a prepotência da garota de certo modo revigorante.

— Não, definitivamente não sou normal. Sou uma semideusa.

— Ah. — Sadie bateu com os dedos na varinha curva. — Desculpe, isso é novidade para mim. Uma sem deusa?

— Semideusa — corrigiu Annabeth. — Meio deusa, meio mortal.

— Ah, certo. — Sadie respirou aliviada. — Já hospedei Ísis em minha cabeça várias vezes. Quem é seu amigo especial?

— Meu... não. Eu não hospedo ninguém. Minha mãe é uma deusa grega, Atena.

— Sua mãe.

— É.

— Uma deusa. Uma deusa grega.

— É. — Annabeth reparou que a nova amiga estava pálida. — Acho que não deve ter esse tipo de coisa, hã, no lugar de onde você é.

— No Brooklyn? — refletiu Sadie. — Não. Acho que não. Nem em Londres. Nem em Los Angeles. Não me lembro de ter conhecido semideuses gregos em nenhum desses lugares. Mesmo assim, quando alguém já enfrentou babuínos mágicos, deusas gatas e anões de sunga, não se surpreende com facilidade.

Annabeth não tinha certeza se tinha ouvido direito.

— Anões de sunga?

— Aham. — Sadie olhou para o monstro canino, ainda se contorcendo com as amarras douradas. — Mas o problema é o seguinte. Alguns meses atrás, minha mãe me avisou. Ela me disse para tomar cuidado com outros deuses e outros tipos de magia.

O frasco nas mãos de Annabeth pareceu ficar mais quente.

— Outros deuses. Você mencionou Ísis. Ela é a deusa egípcia da magia. Mas... não é a sua mãe?

— Não — disse Sadie. — Quer dizer, sim. Ísis é a deusa egípcia da magia. Mas não é minha mãe. Minha mãe é um fantasma. Bem... ela era maga na Casa da Vida, como eu, mas morreu, então...

— Só um segundo.

A cabeça de Annabeth estava latejando tanto que ela achou que nada poderia deixá-la pior. Ela abriu o frasco e bebeu a poção toda.

Estava esperando sopa de água suja, mas o gosto na verdade era de suco morno de maçã. Sua visão clareou imediatamente. O estômago acalmou.

— Uau — disse ela.

— Eu falei. — Sadie deu um sorrisinho arrogante. — Jaz é uma tremenda farmacêutica.

— Você estava dizendo... Casa da Vida. Magia egípcia. Você é como o garoto que meu namorado conheceu.

O sorriso de Sadie desmoronou.

— Seu namorado... conheceu uma pessoa como eu? Outro mago?

A poucos metros de distância, a criatura canina rosnou e se debateu. Sadie não pareceu preocupada, mas Annabeth estava de olho em como estava ficando fraco o brilho da corda mágica.

— Foi algumas semanas atrás — contou Annabeth. — Percy me contou uma história maluca sobre ter conhecido um garoto perto da baía Moriches. Aparentemente, o garoto usava hieróglifos para fazer feitiços. Ele ajudou Percy a lutar contra um grande monstro crocodilo.

— O filho de Sobek! — soltou Sadie. — Mas meu irmão lutou contra esse monstro. Ele não disse nada sobre...

— Seu irmão se chama Carter? — perguntou Annabeth.

Uma aura dourada furiosa brilhou ao redor da cabeça de Sadie, um halo de hieróglifos que pareciam carrancas, punhos e bonecos de palito mortos.

— A partir desse momento — rosnou Sadie —, o nome do meu irmão é Saco de Pancadas. Parece que ele não anda me contando tudo.

— Ah. — Annabeth teve que lutar contra a vontade de chegar para o lado e afastar-se da nova amiga. Tinha medo de que aqueles hieróglifos furiosos e cintilantes explodissem. — Que chato. Foi mal.

— Não — disse Sadie. — Eu vou gostar de dar na cara do meu irmão. Mas, primeiro, me conte tudo: sobre você, os semideuses, os gregos e qualquer outra coisa que possa ter a ver com esse nosso amigo canino do mal.

Annabeth contou o que podia.

Normalmente, não saía confiando em quem aparecia, mas tinha muita experiência interpretando pessoas. Ela gostou de Sadie imediatamente: os coturnos, as mechas roxas, a forma de agir... Pela experiência de Annabeth, pessoas não confiáveis não eram tão abertas sobre querer dar na cara de alguém. Com certeza não ajudavam uma estranha inconsciente e não davam poção curativa.

Annabeth descreveu o Acampamento Meio-Sangue. Contou algumas das aventuras em que lutou contra deuses, gigantes e Titãs. Explicou como viu o caranguejo-leão-lobo de duas cabeças na estação da rua Quatro Oeste e decidiu ir atrás dele.

— E aqui estou — encerrou Annabeth.

A boca de Sadie tremeu. Parecia que ela ia começar a gritar ou chorar. Em vez disso, teve um acesso de risadinhas.

Annabeth franziu a testa.

— Eu falei alguma coisa engraçada?

— Não, não... — Sadie riu. — Bem... é um pouco engraçado. Quero dizer, estamos sentadas em uma praia falando sobre deuses gregos. E um acampamento para semideuses e...

— É tudo verdade!

— Ah, eu acredito em você. É ridículo demais para não ser verdade. É só que cada vez que meu mundo fica mais estranho, eu penso: Certo. Chegamos ao máximo da esquisitice agora. Pelo menos sei até onde as coisas estranhas podem ir. Primeiro, descubro que eu e meu irmão somos descendentes dos faraós e temos poderes mágicos. Tudo bem. Sem problema. Depois, descubro que meu pai, que já estava morto, fundiu a alma com Osíris e se tornou senhor dos mortos. Brilhante! Por que não? E, então, meu tio assume a Casa da Vida e supervisiona centenas de magos por todo o mundo. Em seguida, meu namorado acaba se revelando um híbrido de garoto mago/deus imortal dos funerais. E o tempo todo, estou pensando: Claro! Fique calma e siga em frente! Eu me ajustei! Aí você aparece em uma quinta-feira qualquer, la-ri-rá, e diz: Ah, a propósito, os deuses egípcios são só uma pequena parte do absurdo cósmico. Também temos os gregos com quem nos preocupar. Viva!

Annabeth não conseguiu acompanhar tudo o que Sadie disse (um namorado deus funerário?), mas tinha que admitir que rir de tudo aquilo era mais saudável do que se encolher e chorar.

— Tudo bem — admitiu ela. — Tudo parece meio louco, mas acho que faz sentido. Meu professor Quíron... há anos ele vem dizendo para mim que os deuses antigos são imortais por serem parte do tecido da civilização. Se os deuses gregos podem existir por todos esses milênios, por que não poderiam os egípcios?

— Quanto mais, melhor — concordou Sadie. — Mas, hum, e esse cachorrinho? — Ela pegou uma conchinha e jogou na cabeça do monstro labrador, que rosnou de irritação. — Em um minuto, ele está sentado na mesa de nossa biblioteca, um artefato inofensivo, um fragmento de pedra de alguma estátua, é o que achamos. No minuto seguinte, ganha vida e sai correndo da Casa do Brooklyn. Destrói nossas barreiras mágicas, passa pelos pinguins de Felix e se livra dos meus feitiços como se não fossem nada.

— Pinguins? — Annabeth balançou a cabeça. — Não. Esqueça que perguntei.

Ela observou a criatura canina que lutava contra as amarras. Letras gregas e hieróglifos vermelhos giravam ao redor dele como se tentando formar novos símbolos, uma mensagem que Annabeth quase conseguia ler.

— Essas cordas vão aguentar? — perguntou ela. — Parecem frágeis.

— Não esquenta — garantiu Sadie. — Essas cordas já prenderam deuses. E não eram deuses pequenos. Eram dos bem grandões.

— Hã, tá. Então você disse que o cachorro era parte de uma estátua. Alguma ideia de qual estátua?

— Nenhuma. — Sadie deu de ombros. — Cleo, nossa bibliotecária, estava pesquisando isso quando o Fido aqui acordou.

— Mas tem que ter alguma ligação com o outro monstro, com cabeças de lobo e de leão. Tive a impressão de que elas também haviam acabado de ganhar vida. Elas se fundiram e não estavam acostumadas a trabalhar em equipe. Entraram no trem em busca de alguma coisa, provavelmente esse cachorro.

Sadie mexeu no pingente prateado.

— Um monstro com três cabeças: de leão, de lobo e de cachorro. Todas saindo de... o que era aquela coisa com forma de cone? Uma concha? Uma tocha?

A cabeça de Annabeth começou a girar de novo. Uma tocha.

Ela teve um vislumbre de uma lembrança distante, talvez uma imagem que vira em um livro. Não tinha pensado que o cone do monstro podia ser algo que dava para segurar, alguma coisa que coubesse em uma mão enorme. Mas não exatamente uma tocha...

— É um cetro — percebeu Annabeth. — Não lembro qual deus o segurava, mas o cajado de três cabeças era seu símbolo. Ele era... grego, eu acho, mas também era de algum lugar no Egito...

— Alexandria — sugeriu Sadie.

Annabeth ficou olhando para ela.

— Como você sabe?

— Bem, é verdade que não sou maluca por história como meu irmão, mas estive em Alexandria. Eu me lembro de ter sido a capital onde os gregos governaram o Egito. Alexandre, o Grande, não era?

Annabeth assentiu.

— Isso mesmo. Alexandre conquistou o Egito e, depois que morreu, seu general, Ptolomeu, assumiu. Ele queria que os egípcios o aceitassem como faraó, então misturou os deuses egípcios e gregos e inventou deuses novos.

— Parece confuso — disse Sadie. — Prefiro meus deuses não misturados.

— Mas tinha um deus em particular... Não consigo lembrar seu nome. A criatura de três cabeças ficava no topo do cetro dele...

— Bem grande esse cetro — observou Sadie. — Não quero conhecer o sujeito que o carrega por aí.

— Ah, deuses. — Annabeth se empertigou. — É isso! O cajado não está apenas tentando se remontar. Está tentando encontrar seu dono.

Sadie fez expressão de escárnio.

— Não gosto nada disso. Precisamos garantir...

O monstro canino uivou. A corda mágica explodiu como uma granada e cobriu a praia de estilhaços dourados.


A explosão fez Sadie sair rolando pelas dunas como uma bola de feno.

Annabeth foi jogada contra a van de sorvete. Seus membros viraram chumbo. Todo o ar foi arrancado dos pulmões.

Se a criatura canina quisesse matá-la, teria conseguido isso facilmente.

Mas ele correu para longe do mar e desapareceu em meio às plantas.

Annabeth, por instinto, procurou uma arma. Pegou com força a varinha curva de Sadie. A dor a fez ofegar. O marfim queimava como gelo seco. Ela tentou soltar, mas a mão não obedeceu. Ela então viu a varinha soltar fumaça e mudar de forma, até a queimadura diminuir e uma adaga de bronze celestial aparecer, igual à que carregava havia anos.

Ela ficou olhando para a lâmina. Depois ouviu gemidos vindos das dunas ali perto.

— Sadie!

Annabeth lutou para ficar de pé.

Quando chegou à maga, Sadie estava sentada cuspindo areia. Tinha algas no cabelo, e a mochila estava enrolada em um dos coturnos, mas ela parecia mais furiosa do que ferida.

— Fido idiota! — rosnou ela. — Nada de biscoitos para ele! — Ela franziu a testa para a faca de Annabeth. — Onde você conseguiu isso?

— Hã... é sua varinha — disse Annabeth. — Eu a peguei e... sei lá. Ela mudou de forma para a adaga que costumo usar.

— Ah. Bem, itens mágicos têm vontade própria. Fique com ela. Tenho mais em casa. Agora, para que lado Fido foi?

— Para lá.

Annabeth apontou com a lâmina nova.

Sadie olhou na direção e arregalou os olhos.

— Ah... certo. Na direção da tempestade. Isso é novidade.

Annabeth seguiu o olhar dela. Depois dos trilhos do metrô, não via nada além de um prédio residencial abandonado, cercado e esquecido, sob um céu do fim de tarde.

— Que tempestade?

— Você não está vendo? — perguntou Sadie. — Espere.

Ela soltou a mochila do coturno e remexeu no que carregava. Tirou outro frasco de cerâmica, esse mais largo e achatado, como um pote de creme para o rosto. Destampou e pegou um pouco de gosma rosa.

— Me deixe passar um pouco disso nas suas pálpebras.

— Uau, isso merece levar um não automático.

— Não seja fresca. É totalmente inofensivo... bem, para magos. Provavelmente para semideuses também.

Annabeth não ficou tranquilizada, mas fechou os olhos. Sadie espalhou a gosma, que formigou e esquentou como uma pomada de mentol.

— Pronto — disse Sadie. — Pode olhar agora.

Annabeth abriu os olhos e levou um susto.

O mundo estava banhado de cores. O chão tinha ficado transparente, com camadas gelatinosas que levavam à escuridão abaixo. O ar estava coberto de véus cintilantes, todos vibrantes, mas ligeiramente sem sincronia, como se múltiplos vídeos de alta definição tivessem sido sobrepostos. Hieróglifos e letras gregas giravam ao redor dela, se fundindo e explodindo ao colidir. Annabeth sentiu como se estivesse vendo o mundo em nível atômico. Tudo que era invisível foi revelado, pintado com luz mágica.

— Você... vê assim o tempo todo?

Sadie riu com escárnio.

— Pelos deuses do Egito, não! Eu ficaria maluca. Tenho que me concentrar para ver o Duat. É isso que você está fazendo, espiando o lado mágico do mundo.

— Eu... — Annabeth hesitou.

Annabeth costumava ser uma pessoa confiante. Sempre que lidava com mortais comuns, tinha a arrogante certeza de que detinha conhecimentos secretos. Ela entendia o mundo de deuses e monstros. Os mortais não faziam ideia. Mesmo com os outros semideuses, Annabeth era quase sempre a veterana mais experiente. Ela havia feito mais do que a maioria dos heróis sonhava, e havia sobrevivido a tudo.

Agora, olhando para aquelas cortinas de cores em movimento, Annabeth sentiu como se voltasse aos seis anos, aprendendo como o mundo era terrível e perigoso.

Ela se sentou com força na areia.

— Não sei o que pensar.

— Não pense — aconselhou Sadie. — Respire. Seus olhos vão se habituar. É meio como nadar. Se você deixar o corpo assumir, vai saber o que fazer instintivamente. Se entrar em pânico, vai se afogar.

Annabeth tentou relaxar.

Assim, começou a discernir padrões no ar: correntes fluindo entre camadas da realidade, trilhas de vapor de magia emanando de carros e prédios. O local do acidente de trem brilhava em um tom verde. Sadie tinha uma aura dourada com plumas enevoadas se espalhando atrás de si como asas.

No local onde o monstro canino estava deitado antes de fugir, o chão fumegava como carvões quentes. Filetes carmesim fluíam dali, seguindo na direção em que o monstro fugiu.

Annabeth se concentrou no prédio abandonado ao longe, e seus batimentos cardíacos dobraram. A torre emitia de seu interior um tom vermelho, a luz escapava pelas janelas cobertas de tábuas, irradiando pelas rachaduras nas paredes arruinadas. Nuvens pretas giravam acima, e mais filetes de energia vermelha fluíam na direção do prédio vindos de toda a paisagem, como se atraídos para um vórtice.

A cena fez Annabeth se lembrar de Caríbdis, o monstro que suga água e gera redemoinhos que ela encontrou no Mar de Monstros. Não era uma lembrança feliz.

— Aquele prédio — disse ela. — Está atraindo luz vermelha de todos os lados.

— Exatamente — confirmou Sadie. — Na magia egípcia, vermelho é ruim. Representa o mal e o caos.

— Então é para lá que o monstro canino está indo — supôs Annabeth. — Para se fundir com a outra peça do cetro...

— E para encontrar seu dono, eu arriscaria.

Annabeth sabia que devia se levantar. Elas tinham que correr. Mas, ao olhar para as camadas rodopiantes de magia, teve medo de se mexer.

A vida toda ela ouviu sobre a Névoa, o limite mágico que separava o mundo mortal do mundo dos monstros e deuses gregos. Mas nunca tinha pensado na Névoa como uma cortina de verdade.

Como Sadie tinha chamado... o Duat?

Annabeth se perguntou se a Névoa e o Duat tinham relação entre si, ou se eram talvez até a mesma coisa. O número de véus que ela conseguia ver era opressor, como uma tapeçaria que ia se dobrando cem vezes.

Ela não acreditava que pudesse ficar de pé. Se entrar em pânico, vai se afogar.

Sadie ofereceu a mão. Seus olhos estavam cheios de solidariedade.

— Olhe, eu sei que é muito, mas nada mudou. Você ainda é a mesma forte semideusa que usa mochilas como arma. E, agora, ainda tem uma linda adaga.

Annabeth sentiu o sangue subir ao rosto. Normalmente, seria ela a fazer o discurso animador.

— Sim. Sim, claro. — Ela aceitou a mão de Sadie. — Vamos encontrar esse deus.


Uma cerca de arame contornava o prédio, mas elas se espremeram por uma abertura e seguiram por um campo tomado de mato e pedaços de concreto.

O efeito da gosma encantada nos olhos de Annabeth dava a impressão de estar passando. O mundo não parecia mais tão cheio de camadas e caleidoscópico, mas não tinha problema. Ela não precisava de visão especial para saber que a torre estava repleta de magia ruim.

De perto, o brilho vermelho das janelas estava ainda mais radiante. Os pedaços de compensado estalavam. As paredes de tijolos emitiam ruídos. Hieróglifos de pássaros e bonecos palito se formavam no ar e flutuavam para dentro. Até a pichação parecia vibrar nas paredes, como se os símbolos estivessem tentando ganhar vida.

A força da coisa que havia dentro do prédio também atraía Annabeth, da mesma forma que o Caranguejo no trem.

Ela segurou a nova adaga de bronze e percebeu que era pequena e curta demais para oferecer poder ofensivo. Mas era por isso que Annabeth gostava de adagas: elas a mantinham concentrada. Uma filha de Atena nunca devia depender de uma faca se pudesse usar o cérebro. A inteligência vencia guerras, não a força bruta.

Infelizmente, o cérebro de Annabeth não estava funcionando muito bem no momento.

— Eu queria saber o que vamos enfrentar — murmurou ela enquanto as duas se aproximavam sorrateiramente do prédio. — Gosto de pesquisar primeiro, de me armar com conhecimento.

Sadie resmungou.

— Você fala como meu irmão. Diga aí, com que frequência os monstros dão a você o luxo de usar o Google antes de atacarem?

— Nunca — admitiu Annabeth.

— Pois é. Carter... adoraria passar horas na biblioteca, lendo sobre todos os demônios hostis que poderíamos enfrentar, marcando as partes importantes e fazendo fichamentos para eu estudar. Pena que, quando os demônios atacam, eles não avisam, e raramente se dão o trabalho de se identificar.

— E qual é o seu procedimento-padrão de operação?

— Partir para cima — disse Sadie. — Pensar rápido. Quando necessário, explodir o inimigo em pedacinhos.

— Que ótimo. Você adoraria meus amigos.

— Vou interpretar como um elogio. Aquela porta, o que acha?

Alguns degraus levavam a uma entrada de porão. Havia uma única tábua pregada na porta em uma tentativa pífia de impedir a entrada de invasores, mas a porta em si estava entreaberta.

Annabeth estava prestes a sugerir que avaliassem as redondezas. Não confiava em uma entrada tão fácil, mas Sadie não esperou. A jovem maga desceu os degraus e entrou.

A única opção de Annabeth era ir atrás.


No fim das contas, se elas tivessem entrado por qualquer outra porta, teriam morrido.

O interior do prédio era um casco cavernoso, com trinta andares de altura e uma enxurrada de tijolos, canos, tábuas e outros destroços, junto com símbolos gregos e hieróglifos cintilantes e tufos de energia vermelha neon. A cena era apavorante e linda, como se um furacão tivesse sido capturado, iluminado por dentro e colocado em exibição permanente.

Como elas haviam entrado pelo porão, Sadie e Annabeth estavam protegidas por uma escada curta, uma espécie de trincheira no concreto. Se tivessem entrado para a tempestade pelo térreo, teriam sido partidas em pedacinhos.

Enquanto Annabeth olhava, uma viga de aço retorcido voou em velocidade de carro de corrida. Dezenas de tijolos passaram em disparada, como um cardume de peixes. Um hieróglifo vermelho flamejante bateu em um pedaço voador de compensado, e a madeira pegou fogo como um lenço de papel.

— Ali em cima — sussurrou Sadie.

Ela apontou para o alto do prédio, onde parte do trigésimo andar ainda estava intacta, uma plataforma em ruínas se projetando no vazio. Era difícil ver pelos detritos voadores e pela névoa vermelha, mas Annabeth conseguiu identificar uma forma humanoide robusta de pé no precipício, com os braços abertos como se para receber a tempestade.

— O que ele está fazendo? — murmurou Sadie.

Annabeth se encolheu quando uma hélice de canos de cobre passou a centímetros de sua cabeça. Ficou olhando para os destroços e começou a reparar em padrões, como aconteceu com o Duat: tábuas girando e pregos voando juntos para formar uma plataforma, amontoados de tijolos se unindo como peças de Lego para formar um arco.

— Ele está construindo alguma coisa — observou ela.

— Construindo o quê, um desastre? — perguntou Sadie. — Esse lugar lembra os domínios de Caos. E, acredite, não é bem meu local favorito para passar as férias.

Annabeth olhou ao redor, perguntando-se se Caos significava a mesma coisa para egípcios e gregos. Annabeth teve lá suas experiências ruins com o Caos, e, se Sadie também esteve lá... bem, a maga devia ser mais forte do que parecia.

— A tempestade não é completamente aleatória — disse Annabeth. — Está vendo ali? E ali? Pedaços de materiais estão se juntando e formando algum tipo de estrutura dentro do prédio.

Sadie franziu a testa.

— Para mim, parecem tijolos em um liquidificador.

Annabeth não sabia bem como explicar, mas tinha estudado arquitetura e engenharia o bastante para reconhecer os detalhes. Os canos de cobre estavam se ligando como artérias e veias em um sistema circulatório. Seções de paredes velhas estavam se reunindo para formar um novo quebra-cabeça. De vez em quando, mais tijolos ou vigas se soltavam das paredes externas e se juntavam ao furacão.

— Ele está canibalizando o prédio — disse ela. — Não sei por quanto tempo as paredes externas aguentarão.

Sadie soltou um palavrão baixinho.

— Por favor, não vá dizer que ele está construindo uma pirâmide. Qualquer coisa, menos isso.

Annabeth se perguntou por que uma maga egípcia odiaria pirâmides, mas balançou a cabeça negativamente.

— Eu diria que é algum tipo de torre cônica. Só tem um jeito de ter certeza.

— Perguntar ao construtor.

Sadie olhou para os resquícios do trigésimo andar.

O homem na beirada não havia se mexido, mas Annabeth podia jurar que estava maior. Uma luz vermelha girava ao redor dele. Pela silhueta, ele parecia usar uma cartola alta e angular no estilo de Abraham Lincoln.

Sadie botou a mochila no ombro.

— Bom, se esse é nosso deus misterioso, onde está...

Bem naquele momento um uivo de três partes soou em meio ao tumulto. Do outro lado do prédio, um par de portas de metal se abriu e o monstro caranguejo entrou.

Infelizmente, a fera tinha agora as três cabeças: de lobo, de leão e de cachorro. A espiral comprida brilhava com inscrições gregas e hieróglifos. Ignorando completamente os detritos voadores, o monstro entrou pisando com as seis patas dianteiras e deu um salto. A tempestade o carregou para cima, girando em meio ao caos.

— Está indo para o dono — disse Annabeth. — Temos que impedir.

— Que legal — resmungou Sadie. — Isso vai me esgotar.

— O quê?

Sadie ergueu o cajado.

— N’dah.

Um hieróglifo dourado surgiu no ar acima delas:

E de repente elas estavam cercadas por uma esfera de luz.

A coluna de Annabeth formigou. Ela já estivera dentro de uma bolha protetora assim antes, quando ela, Percy e Grover usaram pérolas mágicas para fugir do mundo inferior. A experiência tinha sido... claustrofóbica.

— Isso vai nos proteger da tempestade? — perguntou Annabeth.

— Espero que sim. — O rosto de Sadie estava coberto de suor. — Venha.

Ela foi na frente, subindo pela escada.

Imediatamente, o escudo foi posto à prova. Uma bancada de cozinha voadora as teria decapitado, mas se esmigalhou em contato com o campo de força de Sadie. Pedaços de mármore giraram inofensivos ao redor delas.

— Demais — disse Sadie. — Agora segure o cajado enquanto viro um pássaro.

— Espere. O quê?

Sadie revirou os olhos.

— Estamos pensando rápido, lembra? Vou voar até lá em cima e impedir o monstro do cajado. Você tenta distrair aquele deus... seja lá quem ele for. Atraia a atenção dele.

— Tudo bem, mas não sou maga. Não sei manter o feitiço.

— O campo de força vai permanecer durante alguns minutos, desde que você use o cajado.

— Mas e você? Se não estiver dentro do campo...

— Tenho uma ideia. Pode até funcionar.

Sadie tirou algo da mochila: uma pequena estátua de animal. Ela o envolveu com os dedos e começou a mudar de forma.

Annabeth já tinha visto gente virar bicho, mas nunca era fácil de assistir. Sadie encolheu para um décimo do tamanho. O nariz se alongou em um bico. Os cabelos, as roupas e a mochila viraram uma cobertura lisa de penas. Ela se tornou uma pequena ave de rapina — um milhafre, talvez —, e seus olhos azuis estavam dourados e brilhantes. Com a pequena estátua ainda nas garras, Sadie abriu as asas e se lançou na tempestade.

Annabeth fez uma careta quando um amontoado de tijolos voou na direção da amiga; mas, de alguma forma, os detritos passaram direto sem transformar Sadie em purê de penas. A forma de Sadie apenas oscilou, como se ela estivesse viajando debaixo da água.

Annabeth percebeu que Sadie estava no Duat, voando em um nível diferente de realidade.

A ideia fez a mente de Annabeth se encher de possibilidades. Se um semideus pudesse aprender a atravessar paredes, correr direto através de monstros...

Mas aquela era uma conversa para outra hora. No momento, precisava se mover. Ela disparou pelos degraus e entrou naquela confusão. Barras de metal e canos de cobre bateram contra o campo de força. A esfera dourada piscava com um pouco menos de brilho cada vez que rebatia os detritos.

Ela levantou o cajado de Sadie com uma das mãos e a nova adaga com a outra. Na torrente mágica, a lâmina de bronze celestial tremeluziu como uma tocha se apagando.

— Ei! — gritou ela para a plataforma bem acima. — Seu Deus aí!

Nenhuma resposta. A voz dela não devia conseguir sobressair à tempestade.

A estrutura do prédio começou a gemer. A argamassa escorria das paredes e entrava na mistura como tufos de algodão-doce.

A Sadie pássaro ainda estava viva, voando na direção do monstro de três cabeças, que seguia em espiral para cima. O animal já estava na metade do caminho, balançando com força as pernas e brilhando com mais intensidade, como se absorvendo o poder do furacão.

O tempo de Annabeth estava acabando.

Ela procurou na memória, vasculhando mitos antigos, as histórias mais obscuras que Quíron contara no acampamento. Quando era mais nova, ela era como uma esponja que absorvia todos os fatos e nomes.

O cajado de três cabeças. O deus de Alexandria, Egito.

O nome do deus lhe veio. Esperava estar certa pelo menos.

Uma das primeiras lições que ela aprendera como semideusa foi: Nomes têm poder. Nunca se diz o nome de um deus ou de um monstro se não está preparado para atrair a atenção dele.

Annabeth respirou fundo. Gritou com toda a sua força:

— SERÁPIS!

A tempestade diminuiu. Enormes pedaços de canos pairaram no ar. Nuvens de tijolos e madeira ficaram imóveis, suspensas.

Parado no meio do furacão, o monstro de três cabeças tentou ficar de pé. Sadie voou acima, abriu as garras e largou a estátua, que imediatamente cresceu e virou um camelo de tamanho real.

O animal desgrenhado caiu nas costas do monstro. As duas criaturas tombaram pelo ar e bateram no chão em um emaranhado de membros e cabeças. O monstro do cajado continuou a lutar, mas o camelo ficou em cima com as pernas abertas, balindo e cuspindo e basicamente recusando-se a se mexer, como um bebê de quinhentos quilos dando ataque de birra.

Do trigésimo andar, uma voz de homem trovejou:

— QUEM OUSA INTERROMPER MINHA ASCENSÃO TRIUNFAL?

— Eu! — gritou Annabeth. — Desça para me enfrentar!

Ela não gostava de levar o crédito pelos camelos alheios, mas queria manter a atenção exclusiva do deus para que Sadie pudesse fazer... o que decidisse fazer. A jovem maga com certeza tinha bons truques guardados na manga.

O deus Serápis pulou para o vazio. Caiu trinta andares e parou de pé no meio do térreo, a uma distância fácil para Annabeth lançar a adaga.

Não que ela estivesse tentada a atacar.

Serápis tinha quatro metros e meio. Vestia apenas um short curto com estampa floral havaiana. O corpo era recortado em músculos. A pele bronze era coberta de tatuagens cintilantes de hieróglifos, letras gregas e outras grafias que Annabeth não reconheceu.

Os cabelos compridos, e de um ondulado desgrenhado, emolduravam o rosto como dreadlocks rastafáris. Uma barba grega encaracolada descia até as omoplatas. Os olhos eram verde-mar, tão parecidos com os de Percy que Annabeth ficou arrepiada.

Normalmente, ela não gostava de sujeitos barbudos, mas tinha que admitir que aquele deus era atraente, com aquele estilo de surfista radical mais velho.

Mas o enfeite de cabeça estragava o visual. O que Annabeth pensou ser uma cartola era na verdade uma cesta cilíndrica de vime com imagens de amores-perfeitos.

— Com licença — disse ela. — Isso aí na sua cabeça é um vaso de flores?

Serápis levantou as sobrancelhas castanhas e peludas. Bateu na cabeça como se tivesse esquecido a cesta. Algumas sementes de trigo caíram.

— Isso é um modius, garotinha tola. É um dos meus símbolos sagrados! O cesto de grãos representa o mundo inferior, que eu controlo.

— Hã, controla?

— É claro! — Serápis fez expressão de irritação. — Ou controlava, e vou voltar a controlar em breve. Mas quem é você para criticar meu modo de vestir? Uma semideusa grega, pelo cheiro, carregando uma arma de bronze celestial e um cajado egípcio da Casa da Vida. O que você é, heroína ou maga?

As mãos de Annabeth tremeram. Independentemente do chapéu de vaso de flor, Serápis irradiava poder. Ao ficar tão perto dele, Annabeth se sentia líquida por dentro, como se o coração, o estômago e a coragem estivessem derretendo.

Controle-se, pensou ela. Você já encontrou vários deuses.

Mas Serápis era diferente. A presença dele emanava uma sensação fundamentalmente errada, como se o mero fato de estar presente estivesse virando o mundo de Annabeth do avesso.

Atrás, a seis metros do deus, Sadie pássaro pousou e voltou à forma humana. Fez um gesto para Annabeth: dedos nos lábios (psiu), depois fez círculos com a mão (faça com que ele continue falando). Ela começou a remexer silenciosamente na mochila.

Annabeth não fazia ideia do que a amiga estava planejando, mas se obrigou a olhar nos olhos de Serápis.

— Quem disse que não sou as duas coisas, maga e semideusa? Agora explique por que você está aqui!

O rosto de Serápis se fechou. E então, para surpresa de Annabeth, ele jogou a cabeça para trás e riu, derramando mais grãos do modius.

— Entendi! Está tentando me impressionar, é? Você acha que merece ser minha sacerdotisa?

Annabeth engoliu em seco. Só havia uma resposta para uma pergunta daquelas.

— É claro que sim! Já fui magna mater do culto de Atena! Mas você é merecedor do meu serviço?

— RÁ! — Serápis sorriu. — Uma grande mãe no culto de Atena, é? Vamos ver se você é mesmo durona.

Ele fez um gesto. Uma banheira voou direto para o campo de força de Annabeth. A porcelana explodiu em estilhaços no encontro com a esfera dourada, mas o cajado de Sadie ficou tão quente que Annabeth precisou soltá-lo. A madeira branca queimou até virar cinzas.

Que ótimo, pensou ela. Nem dois minutos, e eu já destruí o cajado de Sadie.

Ela não tinha mais seu escudo protetor. Estava encarando um deus de quatro metros e meio só com as armas de sempre: uma pequena adaga e muita atitude.

À esquerda de Annabeth, o monstro de três cabeças ainda lutava para sair de debaixo do camelo, mas o animal era pesado, teimoso e incrivelmente descoordenado. Cada vez que o monstro tentava empurrá-lo, o camelo soltava um pum poderoso e abria ainda mais as pernas.

Enquanto isso, Sadie tirou um giz da mochila. Escreveu furiosamente no chão de concreto atrás de Serápis, talvez um belo epitáfio para celebrar a morte iminente delas.

Annabeth se lembrou de uma citação que seu amigo Frank uma vez lhe disse, alguma coisa de A arte da guerra, de Sun Tzu.

Quando enfraquecer, aja com força.

Annabeth se empertigou e riu na cara de Serápis.

— Pode jogar coisas em mim, senhor Serápis. Não preciso de cajado para me defender. Meus poderes são grandiosos demais! Ou pare de me fazer perder tempo e me diga como posso servir você, supondo que eu concorde em me tornar sua nova sacerdotisa.

O rosto do deus se tomou de raiva.

Annabeth teve certeza de que ele jogaria todo o furacão de detritos nela, e não haveria como impedi-lo. Ela pensou em jogar a adaga no olho do deus, da mesma forma que sua amiga Rachel uma vez distraiu o Titã Cronos, mas Annabeth não confiava na própria mira.

Finalmente, Serápis abriu um sorriso torto.

— Você tem coragem, garota. Isso eu preciso admitir. E não demorou a vir me encontrar. Talvez você possa servir. Você vai ser a primeira de muitos a me dar seu poder, sua vida, sua alma!

— Acho que vai ser divertido.

Annabeth olhou rapidamente para Sadie, torcendo para ela terminar logo a arte com giz.

— Mas, primeiro — disse Serápis —, preciso do meu cajado!

Ele fez um gesto para o camelo. Um hieróglifo vermelho queimou o pelo da criatura, e, com um pum final, o pobre animal se dissolveu em um monte de areia.

O monstro de três cabeças se apoiou nas patas dianteiras e sacudiu a areia do corpo.

— Espere! — gritou Annabeth.

As três cabeças do monstro rosnaram para ela.

Serápis fez expressão de desprezo.

— O que foi agora, garota?

— Bem, eu devia... sabe, entregar o cajado para você, como sua sacerdotisa! Temos que fazer as coisas direito!

Annabeth partiu para cima do monstro. Era pesado demais para ela levantar, mas ela enfiou a faca no cinto e usou as duas mãos para segurar a ponta da concha cônica da criatura, arrastando-a para trás, para longe do deus.

Enquanto isso, Sadie desenhou um grande círculo do tamanho de um bambolê no concreto. Estava agora decorando com hieróglifos, usando giz de várias cores diferentes.

Ah, claro, pensou Annabeth com frustração. Demore o tempo que precisar e capriche!

Ela deu um jeito de sorrir para Serápis enquanto segurava o monstro do cajado, que ainda tentava se arrastar para a frente.

— Agora, meu senhor — disse Annabeth —, me conte seu plano glorioso! Tem alguma coisa a ver com almas e vidas, não?

O monstro do cajado uivou em protesto, provavelmente porque conseguia ver Sadie escondida atrás do deus, fazendo a arte secreta no concreto. Serápis não pareceu perceber.

— Observe! — Ele abriu os braços musculosos. — O novo centro do meu poder!

Fagulhas vermelhas brilharam no furacão congelado. Uma teia de luz ligou os pontos até Annabeth conseguir ver o contorno cintilante da estrutura que Serápis estava construindo: uma torre enorme de noventa metros de altura, feita em três camadas que iam se estreitando: uma base quadrada, um meio octogonal e um topo circular. No zênite, ardia uma chama tão intensa quanto uma forja de Ciclope.

— Um farol — concluiu Annabeth. — O Farol de Alexandria.

— Exato, minha jovem sacerdotisa.

Serápis andou para frente e para trás como um professor dando aula, embora o short floral fosse uma distração e tanto. O chapéu de cesta de vime ficava se inclinando para um lado e para outro, derramando grãos. Por alguma razão, continuou sem reparar em Sadie agachada atrás dele, desenhando belas imagens com giz.

— Alexandria! — disse o deus. — Outrora a maior cidade do mundo, a grande fusão do poder grego e egípcio! Eu era o deus supremo e agora me ergui de novo. Criarei minha nova capital aqui!

— Hã... na praia Rockaway?

Serápis parou e coçou a barba.

— Você tem razão. Esse nome não serve. Vamos chamar de... Rockandria? Serapaway? Bom, vamos decidir isso depois! Nosso primeiro passo é terminar meu novo farol. Vai ser um guia para o mundo, que vai atrair divindades da Grécia Antiga e do Egito para mim, como aconteceu no passado. Vou me alimentar da essência delas e me tornar o deus mais poderoso de todos!

Annabeth sentiu como se tivesse engolido uma colher de sal.

— Alimentar da essência delas. Você quer dizer destruí-las?

Serápis fez um gesto de desconsideração.

— Destruir é uma palavra muito feia. Prefiro incorporar. Você deve conhecer minha história, certo? Quando Alexandre, o Grande, conquistou o Egito...

— Ele tentou fundir as religiões grega e egípcia — disse Annabeth.

— Tentou e falhou — disse Serápis, rindo para si. — Alexandre escolheu um deus do sol egípcio, Amon, como divindade principal. Isso não deu muito certo. Os gregos não gostavam de Amon. Nem os egípcios do Delta do Nilo. Eles viam Amon como um deus de outra parte do rio. Mas, quando Alexandre morreu, seu general tomou o controle do Egito.

— Ptolomeu I — disse Annabeth.

Serápis deu um sorriso satisfeito.

— Sim... Ptolomeu. Aquele era um mortal com visão!

Annabeth precisou de toda a força de vontade para não olhar para Sadie, que agora tinha completado o círculo mágico e batia nos hieróglifos com o dedo, murmurando alguma coisa baixinho, como se para ativá-los.

O monstro de três cabeças do cajado rosnou em reprovação. Ele tentou pular, e Annabeth quase não conseguiu segurá-lo. Estava ficando sem força. A aura da criatura continuava nauseante.

— Ptolomeu criou um novo deus — disse ela com esforço. — Você.

Serápis deu de ombros.

— Ah, não foi do nada. Eu já fui um pequeno deus de vilarejo. Ninguém tinha ouvido falar de mim! Mas Ptolomeu encontrou minha estátua e levou para Alexandria. Ele mandou os sacerdotes gregos e egípcios fazerem presságios, encantos e outras coisas mais. Todos concordaram que eu era o grande deus Serápis e que deveria ser idolatrado acima de todos os outros deuses. Virei um sucesso instantâneo!

Sadie ficou de pé dentro do círculo mágico. Soltou o colar de prata e começou a girar como uma corda de laçar.

O monstro de três cabeças rugiu como que para avisar o dono: Cuidado!

Mas Serápis estava animado. Enquanto ele falava, as tatuagens de hieróglifos e letras gregas em sua pele brilhavam com mais intensidade.

— Eu me tornei o deus mais importante dos gregos e egípcios! — continuou ele. — À medida que mais pessoas me idolatravam, passei a sugar o poder dos deuses mais velhos. Aos poucos, mas com segurança, tomei o lugar deles. O mundo inferior? Eu me tornei o senhor de lá, substituindo Hades e Osíris. O cão de guarda, Cérbero, se transformou no meu cajado, que você agora está segurando. As três cabeças representam o passado, o presente e o futuro, os quais controlarei quando o cajado voltar ao meu poder.

O deus esticou a mão. O monstro tentou alcançá-lo. Os músculos do braço de Annabeth estavam queimando. Os dedos começaram a ceder.

Sadie continuava balançando o pingente e murmurando um feitiço.

Hécate sagrada, pensou Annabeth, é preciso quanto tempo para se fazer um feitiço idiota?

Seus olhos encontraram os de Sadie, e ela entendeu o recado: Espere. Só mais alguns segundos.

Annabeth não sabia se tinha mais alguns segundos.

— A dinastia ptolomaica... — Ela trincou os dentes. — Ela caiu séculos atrás. Seu culto foi esquecido. Por que você voltou agora?

Serápis fungou.

— Isso não é importante. Aquele que me despertou... bem, ele tem delírios de grandeza. Acha que pode me controlar só porque encontrou uns feitiços antigos no Livro de Tot.

Atrás do deus, Sadie se encolheu como se tivesse sido atingida entre os olhos. Aparentemente, esse “Livro de Tot” trazia alguma lembrança.

— Sabe — prosseguiu Serápis —, naquela época, o rei Ptolomeu decidiu que não bastava me fazer o deus principal. Também queria ser imortal. Ele se declarou deus, mas a magia deu errado. Depois que ele morreu, sua família foi amaldiçoada por muitas gerações. A linhagem ptolomaica foi ficando cada vez mais fraca, até que aquela tola da Cleópatra se suicidou e deu tudo para os romanos.

O deus fez expressão de desprezo.

— Esses mortais... são sempre tão gananciosos. O mago que dessa vez me despertou acha que pode fazer melhor do que Ptolomeu. Ele me despertar foi só um de seus experimentos com magia greco-egípcia. Ele quer se tornar deus, mas se excedeu. Eu voltei. Eu vou controlar o universo.

Serápis dirigiu os olhos verdes e brilhantes para Annabeth. Suas feições pareceram mudar fazendo Annabeth se lembrar de muitos olimpianos: Zeus, Poseidon, Hades. Alguma coisa no sorriso dele até a fez recordar-se de sua mãe, Atena.

— Pense só, pequena semideusa — disse Serápis —, esse farol vai atrair os deuses até mim como mariposas para uma vela. Quando eu tiver consumido o poder deles, vou erguer uma grande cidade. Construirei uma nova biblioteca de Alexandria com todo o conhecimento do mundo antigo, tanto grego quanto egípcio. Como filha de Atena, você deve apreciar isso. Como minha sacerdotisa, pense em todo o poder que você vai ter!

Uma nova biblioteca de Alexandria.

Annabeth não podia fingir que a ideia não mexia com ela. Tanto conhecimento do mundo antigo foi destruído quando aquela biblioteca pegou fogo.

Serápis deve ter visto a fome nos olhos dela.

— Sim. — Ele esticou a mão. — Chega de conversa, garota. Traga meu cajado!

— Você está certo — resmungou Annabeth. — Chega de conversa.

Ela puxou a adaga e enfiou na concha do monstro.


Muitas coisas podiam ter dado errado. A maioria deu mesmo.

Annabeth esperava que a faca fosse partir a concha, talvez até destruir o monstro. Mas ela só abriu uma pequena fissura que cuspiu uma magia vermelha tão quente quanto um filete de magma. Annabeth cambaleou para trás, com os olhos ardendo.

Serápis gritou:

— TRAIÇÃO!

A criatura do cajado uivou e se debateu, com as três cabeças tentando em vão alcançar a faca enfiada nas costas.

No mesmo momento, Sadie lançou o feitiço. Ela lançou o colar de prata e gritou:

— Tyet!

O pingente explodiu. Um hieróglifo prateado gigante envolveu o deus como um caixão transparente:

Serápis rugiu quando seus braços ficaram presos nas laterais do corpo.

Sadie gritou:

— Eu o nomeio Serápis, deus de Alexandria! Deus de... hum, chapéus esquisitos e cajados de três cabeças! Eu o amarro com o poder de Ísis!

Detritos começaram a cair do ar e se esparramar ao redor de Annabeth. Ela desviou de um muro de tijolos e de uma caixa de luz. Em seguida, percebeu que o monstro do cajado ferido rastejava na direção de Serápis.

Ela correu em sua direção, mas foi atingida na cabeça por um pedaço de madeira. Bateu no chão com força, a cabeça latejando, e foi enterrada na mesma hora por mais detritos.

Ela respirou com dificuldade.

— Ai, ai, ai.

Pelo menos, não estava enterrada sob tijolos. Ela abriu caminho em uma pilha de compensados e tirou uma farpa de quinze centímetros da camisa.

O monstro tinha chegado aos pés de Serápis. Annabeth sabia que deveria ter esfaqueado uma das cabeças do monstro, mas não havia conseguido fazer isso. Sempre amolecia quando se tratava de animais, mesmo que fossem parte de uma criatura mágica do mal tentando matá-la. Naquele momento, era tarde demais.

O deus forçou os muitos músculos. A prisão prateada se despedaçou a seu redor. O cajado de três cabeças voou para sua mão, e Serápis se virou para Sadie Kane.

O círculo protetor dela evaporou em uma nuvem de vapor vermelho.

— Você queria me amarrar? — gritou Serápis. — Você queria me nomear? Você nem tem a linguagem apropriada para me nomear, pequena maga!

Annabeth cambaleou para a frente, mas sua respiração continuava difícil. Com Serápis de posse do cajado, a aura dele parecia dez vezes mais poderosa. Os ouvidos de Annabeth zumbiam. Os tornozelos estavam moles como uma gelatina. Ela conseguia sentir sua força vital sendo sugada... sugada para o halo vermelho do deus.

De alguma forma, Sadie mantinha sua posição com expressão desafiadora.

— Tudo bem, senhor Tigela de Cereal. Você quer uma linguagem apropriada? HA-DI!

Um novo hieróglifo ardeu no rosto de Serápis:

Mas o deus o apagou do ar com a mão livre. Ele fechou o punho, e fumaça saiu por entre os dedos, como se ele tivesse acabado de esmagar uma locomotiva a vapor em miniatura.

Sadie engoliu em seco.

— Isso é impossível. Como...?

— Estava esperando uma explosão? — Serápis riu. — Me desculpe por decepcioná-la, criança, mas meu poder é grego e egípcio. Combina os dois, consome os dois, substitui os dois. Vejo que é beneficiada por Ísis, certo? Excelente. Ela já foi minha mulher.

— O quê? — gritou Sadie. — Não. Não, não, não.

— Ah, sim! Quando depus Osíris e Zeus, Ísis foi obrigada a me servir. Agora, vou usar você como portal para atraí-la e amarrá-la. Ísis vai ser minha rainha de novo!

Serápis apontou o cajado. De cada uma das três cabeças monstruosas, filetes vermelhos de luz dispararam, envolvendo Sadie em galhos espinhentos.

Sadie gritou, e Annabeth finalmente se recuperou do choque.

Ela pegou a folha de compensado mais próxima — um quadrado maleável do tamanho de um escudo — e tentou se lembrar das aulas de frisbee do Acampamento Meio-Sangue.

— Ei, Cabeça de Grão! — gritou Annabeth.

Ela girou a cintura e usou a força do corpo todo. O compensado voou pelo ar na hora em que Serápis se virou para ela, e a beirada bateu bem entre os olhos dele.

— AHH!

Annabeth mergulhou para o lado quando Serápis apontou cegamente o cajado na direção dela. As três cabeças de monstro lançaram chamas superaquecidas de vapor, que abriram um buraco no concreto onde Annabeth estava havia pouco.

Ela continuou a se mover e abriu caminho entre as montanhas de detritos que agora cobriam o chão. Mergulhou atrás de uma pilha de vasos sanitários quebrados quando o cajado do deus lançou outro jato triplo de vapor na direção dela, chegando tão perto que ela sentiu bolhas surgirem na nuca.

Annabeth viu Sadie a uns trinta metros, de pé e cambaleando para longe de Serápis. Pelo menos, ainda estava viva. Mas Annabeth sabia que precisaria de tempo para se recuperar.

— Ei, Serápis! — gritou Annabeth por trás da montanha de privadas. — Qual era o gosto daquele compensado?

— Filha de Atena! — gritou o deus. — Vou devorar sua força vital! Vou usar você para destruir sua maldita mãe! Você se acha inteligente? Você não é nada em comparação com aquele que me despertou, e nem ele entende o poder que libertou. Nenhum de vocês vai ganhar a coroa da imortalidade. Eu controlo o passado, o presente e o futuro. Sozinho, governarei os deuses!

E obrigada pelo longo discurso, pensou Annabeth.

Quando Serápis explodiu o local onde ela estava, transformando os vasos sanitários em uma pilha de porcelana quebrada, Annabeth já tinha se esgueirado pela metade da sala.

Estava procurando Sadie quando a maga apareceu em seu esconderijo, a apenas três metros de distância, e gritou:

— Suh-FAH!

Annabeth se virou quando um novo hieróglifo, de seis metros de altura, ardeu na parede atrás de Serápis:

A argamassa se desfez. Um ruído veio da lateral do prédio, e, quando Serápis gritou “NÃO!”, a parede inteira desabou em cima dele em uma onda de tijolos que o enterrou sob toneladas de escombros.

Annabeth engasgou com a nuvem de poeira. Seus olhos ardiam. Ela sentia como se tivesse sido cozida em uma panela de arroz, mas conseguiu cambalear para perto de Sadie.

A jovem maga estava coberta de pó de cal como se tivesse sido passada no açúcar. Olhava para o buraco que havia feito na lateral do prédio.

— Isso funcionou — murmurou ela.

— Foi genial. — Annabeth apertou os ombros dela. — Que feitiço foi aquele?

— Afrouxar — disse Sadie. — Eu achei... bem, destruir costuma ser mais fácil do que construir.

Como se concordando, o resto da estrutura do prédio estalou e gemeu.

— Venha. — Annabeth pegou a mão de Sadie. — Precisamos sair daqui. Essas paredes...

A fundação tremeu. De debaixo dos destroços veio um rugido abafado. Filetes de luz vermelha brilhavam por entre os detritos.

— Ah, por favor! — protestou Sadie. — Ele ainda está vivo?

Um desânimo recaiu sobre Annabeth, mas ela não estava surpresa.

— Ele é um deus. É imortal.

— Ah, então como...?

A mão de Serápis, ainda segurando o cajado, surgiu por entre os tijolos e tábuas. As três cabeças do monstro dispararam jatos de vapor em todas as direções. A faca de Annabeth ainda estava enfiada até o cabo na concha do monstro, e a cicatriz ao redor soltava hieróglifos, letras gregas e palavrões em vermelho — milhares de anos de palavras chulas se espalhando livremente.

Como uma linha do tempo, pensou Annabeth.

De repente, surgiu-lhe uma ideia.

— Passado, presente e futuro. Ele controla tudo.

— O quê? — perguntou Sadie.

— O cajado é a chave — disse Annabeth. — Temos que destruí-lo.

— Sim, mas...

Annabeth correu para a pilha de destroços. Seus olhos estavam grudados no cabo da adaga, mas ela chegou tarde demais.

Serápis soltou o outro braço, depois a cabeça, com o cesto de flores esmagado e vazando grãos. O frisbee de compensado que Annabeth tinha jogado quebrara o nariz dele e deixara os olhos roxos, fazendo-o parecer um guaxinim.

— Vou matar você! — gritou ele, no momento em que Sadie repetiu:

— Suh-FAH!

Annabeth fez um recuo apressado, e Serápis gritou “NÃO!” quando outra seção da parede de trinta andares caiu em cima dele.

A magia deve ter exaurido Sadie. Ela caiu como uma boneca de pano, e Annabeth a pegou bem a tempo de não deixar a cabeça bater no chão. Quando as seções que restavam da parede tremeram e se inclinaram para dentro, Annabeth pegou a garota, que era mais nova que ela, no colo e a levou para fora.

De alguma forma, ela saiu do prédio antes do restante desabar. Annabeth ouviu o rugido gigantesco, mas não sabia se era a destruição atrás de si ou o som de seu crânio se partindo com a dor e a exaustão.

Ela continuou cambaleando até chegar aos trilhos do metrô. Lá, colocou Sadie delicadamente sobre o mato.

Os olhos de Sadie se reviraram. Ela murmurava coisas incoerentes. A pele estava tão febril que Annabeth precisou lutar contra o pânico. Vapor saía das mangas da maga.

Perto do local do acidente do trem, os mortais repararam no novo desastre. Veículos de socorro começaram a se afastar e seguir na direção do prédio desmoronado. Um helicóptero da imprensa voava em círculos.

Annabeth ficou tentada a gritar pedindo ajuda médica, mas, antes que pudesse fazê-lo, Sadie inspirou com força. Suas pálpebras tremeram.

Ela cuspiu um pedaço de concreto, se sentou com fraqueza e olhou para a coluna de poeira que subia para o céu como resultado da pequena aventura delas.

— Certo — murmurou Sadie. — O que devemos destruir agora?

Annabeth chorou de alívio.

— Graças aos deuses você está bem. Você estava soltando fumaça.

— Ossos do ofício. — Sadie tirou um pouco da poeira do rosto. — Magia demais pode literalmente me queimar. Foi o mais perto que cheguei da imolação hoje.

Annabeth concordou. Tinha sentido inveja de todos aqueles feitiços legais que Sadie sabia fazer, mas naquele momento estava feliz de ser apenas uma semideusa.

— Chega de magia para você.

— Ao menos por um tempo. — Sadie fez uma careta. — Imagino que não tenhamos derrotado Serápis.

Annabeth olhou para o local do pretenso farol. Queria achar que o deus não existia mais, porém sabia que não era possível. Ainda conseguia sentir a aura dele rompendo o mundo, puxando a alma dela e sugando sua energia.

— Temos no máximo alguns minutos — supôs ela. — Ele vai se libertar. E virá atrás de nós.

Sadie gemeu.

— Precisamos de reforços. Infelizmente, não tenho energia suficiente para abrir um portal, mesmo se eu conseguisse encontrar um. Ísis também não está me respondendo. Ela sabe que não deve aparecer e ter a essência sugada pelo senhor Tigela de Cereal. — Ela suspirou. — Imagino que você não tenha o contato de outros semideuses como chamada de emergência no celular, tem?

— Se ao menos... — Annabeth parou de falar.

Ela percebeu que a mochila ainda estava nos ombros. Como não havia caído durante a luta? E por que estava tão leve?

Ela puxou a mochila e abriu. Os livros de arquitetura tinham sumido. O que havia no fundo era um quadrado de ambrosia do tamanho de um brownie enrolado em celofane, e por baixo...

O lábio inferior de Annabeth tremeu. Ela tirou uma coisa que não carregava havia muito tempo: o boné azul surrado do New York Yankees.

Ela olhou para o céu que escurecia.

— Mãe?

 

 


C    O    N    T    I    N    U    A