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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SEMIDEUSES E MONSTROS / Rick Riordan
SEMIDEUSES E MONSTROS / Rick Riordan

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Há muitos anos, antes de Percy Jackson surgir em minha vida, eu era conhecido sobretudo como um escritor de romances policiais para adultos. Certa noite, participei de um evento com outros dois autores, e um deles explicou por que gostava do meu livro The Devil Went Down to Austin.
“A estrutura é impressionante”, disse ele ao público. “É um livro sobre mergulho, e conforme os personagens vão descendo pelas águas escuras e nebulosas, o enredo também fica mais sombrio e nebuloso. O simbolismo é muito inteligente.”
A plateia pareceu devidamente impressionada. E eu, confuso.
Eu criando simbolismos? Quem diria?
Após o evento, quando confessei ao outro autor que não havia concebido a tal estrutura nebulosa intencionalmente, que talvez aquilo fosse apenas o resultado de um esboço malfeito, ele ficou chocado. Ele tinha estudado minha escrita. Tinha feito descobertas brilhantes. E eu estava apenas contando uma história? Impossível!
Isso não significava que as descobertas dele não tivessem seu valor ou que o simbolismo não estivesse presente no livro. Mas sua interpretação levantava uma questão importante sobre a diferença entre escrever uma história e analisá-la.
Qualquer livro, seja para crianças, seja para adultos, pode ser lido em diversos níveis — podemos simplesmente apreciá-lo, ou podemos procurar significados e nuances escondidos. Podemos até mesmo escrever ensaios sobre a obra, explorando-a sob diferentes perspectivas.
A função do escritor é escrever o livro. A função do leitor atento é encontrar significado nele. Ambas as funções são importantes. Os significados encontrados podem esclarecer, fascinar e surpreender. Podem até mesmo surpreender o autor, que utiliza símbolos e temas inconscientemente. Pelo menos este autor. Eu não penso sobre isso, não mais do que um falante nativo de uma língua pensa conscientemente sobre a concordância entre sujeito e verbo enquanto fala.
A abertura de As aventuras de Huckleberry Finn sempre foi uma das minhas citações prediletas de Mark Twain. Twain, inflexível que era, desejava que seus leitores simplesmente lessem o livro, e não que o examinassem em busca de lições morais, mensagens e muito menos de uma estrutura narrativa. Claro que isso não impediu que gerações após gerações de estudantes escrevessem seus trabalhos de conclusão de curso sobre o romance.
Quando fui convidado para editar esta antologia, não soube bem o que pensar. Por que tantos escritores talentosos iriam querer escrever sobre meus livros infantojuvenis? E, mesmo assim, quando li os textos, fiquei impressionado. Cada um tinha uma perspectiva diferente sobre Percy Jackson — todas fascinantes e intelectualmente instigantes. Muitas me fizeram pensar: “Era isso que eu estava fazendo?” Foi como se alguém tirasse uma radiografia da minha cabeça. De repente, notei tudo o que estava acontecendo dentro dela sem que eu nunca tivesse percebido.
Talvez tenha sido por isso que Mark Twain tentou alertar os críticos que quisessem interpretar sua obra. Não significa que as interpretações estejam erradas. É que elas mexem muito conosco!
O semideus inesperado
Nunca tive a intenção de escrever a série Percy Jackson e os olimpianos.

 


 


Quando meu filho mais velho estava no segundo ano, começou a ter problemas na escola. Não conseguia se concentrar. Não queria ficar sentado lendo. Escrever era um desafio doloroso.

Sendo escritor e professor de ensino fundamental, não foi nada fácil para mim aceitar o fato de que meu filho odiava a escola. Então veio a fatídica reunião de pais, ocasião em que os professores sugeriram que meu filho passasse por uma completa avaliação psicoeducacional. Algumas semanas depois, obtivemos os resultados: transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) e dislexia.

Esses conceitos não eram novidade para mim. Tive muitos alunos com dificuldade de aprendizagem. Já havia realizado modificações nas aulas por causa disso, preenchido formulários de avaliação.

Mas quando a criança em questão é seu próprio filho, é diferente.

Como eu poderia ajudá-lo a compreender o que estava acontecendo com ele? Como eu poderia abordar o problema de maneira positiva?

No final, recorri ao que sei fazer melhor — contar histórias.

No segundo ano, a salvação de meu filho foi a mitologia grega. Essa era a única parte da matéria de que ele gostava. Toda noite, à hora de dormir, ele me pedia que lhe contasse histórias sobre mitos, e quando eu não tinha mais nenhuma para contar, ele me pediu que inventasse.

Então, de forma espontânea, veio-me à mente — como Atena surgindo da testa de Zeus — o mito que contava o surgimento do TDAH e da dislexia. Criei, então, Percy Jackson, um semideus grego, igual a Hércules, Teseu e Perseu, exceto pelo fato de Percy ser uma criança moderna. Ele tem TDAH e dislexia, e aprende que, juntos, esses dois transtornos comprovam que, sem sombra de dúvidas, ele tem sangue olimpiano.

Em O ladrão de raios, o transtorno do déficit de atenção indica que você tem sentidos muito aguçados. Você enxerga exageradamente, e não com dificuldade. Esses reflexos não são úteis em uma sala de aula entediante, mas o manterão vivo em um campo de batalha. A dislexia indica que seu cérebro é programado para o grego antigo, então, é claro, ler em inglês é um esforço e tanto.

Meu filho não teve o menor problema em aceitar essa teoria.

Na história, Percy Jackson descobre que ser diferente pode ser uma fonte de força — e um sinal de grandeza. Ser ruim em termos acadêmicos não significa que você seja um fracasso. Percy era minha maneira de homenagear todas as crianças às quais ensinei que sofrem de TDAH e dislexia. Mais do que isso: foi um mito para meu filho compreender quem ele mesmo era.

Quando terminei de contar a história, meu filho me pediu que eu a escrevesse. Fiquei indeciso. Não achei que alguém pudesse gostar daquilo, e eu não tinha muito tempo livre para a tarefa. Já estava lecionando em período integral e escrevendo um romance policial por ano. Entretanto, arranjei um tempo e escrevi O ladrão de raios.

Meu filho adorou a versão final. Com certo receio, entreguei o manuscrito para alguns alunos. Eles também adoraram. Então, enviei o livro para as editoras com um pseudônimo, pois assim eu não ficaria constrangido ao receber uma avalanche de rejeições. Passadas algumas semanas, o livro foi a leilão e acabou arrematado pelo Disney Book Group.

No final daquele ano letivo, passei a escrever histórias infantojuvenis em tempo integral. A série Percy Jackson logo foi publicada no mundo todo.

Se há cinco anos você tivesse me dito que alguém iria querer criar uma antologia de ensaios baseados em uma história de ninar que eu inventei para meu filho, eu o teria chamado de louco.

O poder do mito

Então, por que a série repercute tanto entre os jovens leitores? Por que as pessoas ainda querem ler mitos gregos? São histórias de muito tempo atrás, sobre uma sociedade bem diferente da de hoje. Que relevância elas poderiam ter no século XXI?

Sem dúvida, é possível alguém superar os obstáculos da vida sem conhecer algo sobre mitologia, mas sua existência seria bem pobre. A mitologia é o simbolismo da civilização. Contém nossos arquétipos mais profundamente entranhados. Quando você descobre a mitologia, passa a enxergá-la em todos os lugares — desde os dias da semana até a arte e a arquitetura. É muito difícil encontrar qualquer obra de literatura inglesa que não retrate, de certa forma, a mitologia clássica, seja na jornada do herói, seja nas alusões aos seres do Olimpo.

Então, conhecer mitologia faz de uma pessoa um cidadão mais bem-informado, mas sua importância vai além disso. A mitologia é um modo de compreender a condição humana. Os mitos sempre foram uma tentativa do homem de explicar fenômenos — e não apenas por que o Sol percorre todo o céu; os mitos também explicam o amor, o medo, o ódio, a vingança e toda a extensão dos sentimentos humanos.

Quando visito escolas, costumo perguntar às crianças qual deus grego elas gostariam de ter como pai. A melhor resposta foi a de uma aluna do Texas, que disse “Batman!”. Na verdade, a sugestão dela não é tão absurda, pois o que está em jogo é a mesma ideia: criar uma versão super-humana da humanidade de forma que possamos explorar nossos problemas, nossas forças e nossas fraquezas com mais amplitude. Se o romance coloca a vida sob a lente de um microscópio, a mitologia a transforma em um outdoor.

Os mitos também não se limitam ao passado. Nós não os deixamos para trás na Idade do Bronze. Criamos mitos o tempo todo. Meus livros, entre outras coisas, exploram o mito da América como o marco da civilização, o mito de Nova York e o mito do adolescente norte-americano.

Quando entendemos a mitologia clássica, compreendemos parte de nossa própria natureza e de nossa tentativa de explicar o que não compreendemos. E, enquanto formos humanos, haverá coisas que não compreendemos.

Em um nível mais básico, a mitologia grega é simplesmente divertida! As histórias contêm aventura, magia, romance, monstros, heróis corajosos, vilões medonhos e jornadas fantásticas. Tem como não gostar?

A mitologia agrada principalmente aos leitores pré-adolescentes porque eles conseguem se identificar com os semideuses. Tal qual Hércules, Jasão e Teseu, Percy Jackson é metade homem, metade deus. Está constantemente se esforçando para compreender sua individualidade, pois circula entre dois mundos sem pertencer a nenhum deles. Os estudantes dessa faixa etária compreendem o que é estar perdido no meio, entre a idade adulta e a infância. Eles se sentem presos no meio o tempo todo, aprisionados em uma condição desajeitada. Tudo está em constante mudança para eles — física, social e emocionalmente. O semideus é uma metáfora perfeita para a situação em que se encontram, e é por isso que a jornada de Percy repercute tanto entre eles.

Quando realizo eventos em escolas, geralmente faço um jogo de perguntas e respostas sobre mitologia grega com as crianças e os adolescentes. Não importa qual escola eu visite, ou quão pouco os alunos estudaram mitologia em sala de aula, eles sempre sabem as respostas, e os adultos sempre ficam impressionados. É quase certo que algum professor vai aparecer no fim, de olhos arregalados, dizendo: “Eu não sabia que nossos alunos sabiam tanto sobre mitologia!”

Isso não me surpreende. A mitologia pertence aos jovens leitores. Eles se enxergam como o herói. Eles adquirem esperança nos próprios esforços ao irem atrás de suas jornadas. E, sim, às vezes até mesmo veem seus professores como monstros!

Sobre esta antologia

Nestas páginas, você descobrirá o que realmente motiva Dioniso. Aprenderá a dar notas a seus pais. Explorará os monstros mais legais e os vilões mais horríveis da série Percy Jackson e os olimpianos. Decidirá se tornar-se uma Caçadora de Ártemis é um bom negócio ou um erro desastroso. Aprenderá até mesmo a descongelar seus globos oculares e a desvendar os mistérios de sua profecia. Qual ensaio chega mais próximo da verdade? Não cabe a mim dizer.

Cerca de um ano atrás, em uma sessão de autógrafos de O ladrão de raios, um garoto da plateia ergueu a mão e perguntou:

— Qual é o tema do livro?

Eu o fitei com um ar vago.

— Não sei.

— Droga! — exclamou ele. — Eu preciso disso para o meu relatório!

Eis a lição: se quer saber o tema de um livro, a última pessoa a quem você deve perguntar é o autor. Esta antologia, no entanto, oferece perspectivas estimulantes e observações impressionantes. Se está procurando algo que erga a Névoa de seus olhos e o faça dizer “Aha! Os monstros existem!”, então você veio ao lugar certo.


Reconhecimento de monstros
para iniciantes

Lições de Percy Jackson sobre monstros e heróis

Rosemary Clement-Moore

Todo jovem herói vai enfrentar monstros. Isso é um fato. Mas será que vocês os verão antes que eles os vejam? Rosemary Clement-Moore oferece este prático guia de sobrevivência para semideuses, repleto de dicas para ajudá-los a: a) reconhecer os sinais de alerta de que há um monstro por perto; b) evitar a criatura, se possível; e c) saber o que fazer quando você tiver que lutar. Aprendam tudo o que puderem, semideuses. Nunca se sabe quando seu professor de matemática mostrará as garras.

O que você faria se certa manhã, ao acordar, desse de cara com um sátiro e ele dissesse que vai levá-lo a um acampamento especial para pessoas como você, que é meio deus, meio humano?

É possível que achasse graça da situação, pensando se tratar de uma pegadinha. Ou talvez considerasse a ideia ótima. Mas se você já leu os livros da série Percy Jackson, ficaria também seriamente preocupado. Ser um semideus pode soar glamoroso, mas no mundo de Percy o filho de um deus pode esperar uma vida cheia de adversidades e perigo. Heróis, estejam eles em uma jornada ou apenas tentando passar de ano na escola, devem sempre estar alertas e vigilantes quanto a monstros.

Imagine que você está vivendo no mundo de Percy: aquela loja de donuts na esquina faz um arrepio percorrer sua espinha? A popularidade de certa rede de cafeterias tem algo a ver com a sereia em seu logo? E quanto ao sem-teto que vive debaixo daquela ponte próxima ao seu prédio? Ninguém acha estranho ele usar cachecol e sobretudo o ano todo?

Ou talvez você more no interior, e de repente um monte de cabeças de gado comece a desaparecer misteriosamente. Seria apenas a presença de coiotes ou um monstro perambulando por ali e se alimentando das melhores vacas leiteiras do tio Walt? O que será que realmente deu início aos últimos incêndios nas florestas da Califórnia: um campista descuidado ou uma Quimera que solta fogo pelas ventas?

Para Percy e seus colegas, fazer esse tipo de pergunta pode significar a diferença entre a vida e a morte. Isso sem mencionar o sucesso de uma missão. Ignorar seus instintos poderia levar à morte... ou pior: a uma humilhante derrota.

Se de repente você descobrir que é um semideus como aqueles que habitam o mundo de Percy Jackson, não se iluda achando que vai passar todo o seu tempo fazendo escaladas e praticando arco e flecha. Essas coisas são importantes, mas se quiser de fato sobreviver ao ataque de um monstro, você precisará aprender a reconhecê-los. Assim poderá traçar um plano de luta ou de fuga, de acordo com o que achar mais prudente para a ocasião. Percy Jackson teve que aprender essas lições da maneira mais difícil. Enquanto alguns de seus colegas poderiam considerar as constantes ameaças à vida como oportunidades de crescimento pessoal, o sábio herói agiria como os filhos de Atena e lutaria com sabedoria, não com ímpeto.

Felizmente, os triunfos — e erros — de Percy podem nos ensinar muito. Então, caso um dia você abra a porta e se depare com um sátiro, eis o que aprendi lendo os livros de Percy Jackson: três lições simples para sobreviver em um mundo cheio de monstros que querem matá-lo.

Lição 1: Os monstros e você

A primeira coisa que deve ser notada quando se lida com criaturas míticas é a natureza básica da relação entre herói e monstro: há grandes riscos de que mesmo um encontro casual entre eles resulte em morte para um ou para ambos. É simples: heróis matam monstros, e monstros se ressentem disso.

Vamos pegar alguns exemplos do mundo antigo: Belerofonte, Teseu, Hércules e Perseu.1 Todos eles heróis, e todos eles assassinos de monstros — Quimera, Minotauro, Hidra e Górgona. Os monstros são implacáveis. A juventude não chega a ser sinônimo de proteção; os monstros não têm ética, portanto não veem problemas em se livrar de seus inimigos naturais enquanto ainda são jovens e vulneráveis.

Semideuses têm certas vantagens sobre monstros. Dependendo do tipo de criatura que esteja enfrentando, ele pode ser mais rápido ou mais flexível. Sua habilidade ao usar uma arma pode se opor à vantagem natural de, digamos, usar uma pele à prova de balas, como a do Leão de Nemeia, ou sete cabeças que sempre voltam a crescer, como as da Hidra. Sua metade humana faz o herói ser mais esperto do que a média dos monstros, desde que o herói realmente use o cérebro. Sua metade deus também acrescenta vantagens, sem dúvida alguma, embora, é claro, isso dependa amplamente do deus em questão.

A maior vantagem dos monstros — além das coisas óbvias, como garras, dentes, veneno, tamanho e força superiores — é que eles nunca morrem de verdade. O centauro Quíron nos conta que os monstros são “arquétipos”. Um arquétipo é a ideia básica, original de algo. Isso significa que quando personagens semelhantes aparecem em diferentes livros e filmes, todos eles foram baseados no arquétipo original. Por exemplo, o personagem Fofo, o cão de três cabeças que vigia a pedra filosofal no primeiro livro da série Harry Potter, surgiu da ideia de Cérbero, o cão de três cabeças que protege a entrada para o Mundo Inferior.2

Então, os monstros, assim como as ideias, nunca podem ser mortos, e carregam lembranças de muito tempo atrás. Se você é um herói e enfrenta uma criatura mágica, ela pode já ter virado pó muitas vezes ao longo dos anos, pelas mãos de heróis como você. Portanto, seria sensato supor que ela guarda rancor por isso e que ficaria muito feliz em ver você destruído.

Percy Jackson sabe disso muito bem, e é uma experiência com a qual podemos aprender: nada diz mais “seus dias estão contados” do que um Minotauro a sua porta.

Deve-se salientar que os filhos de deuses menos poderosos não vão atrair tanta atenção dos monstros quanto aqueles cujos pais são mais poderosos. Você pode pensar que seria “legal” se seu pai olimpiano fosse um dos deuses principais, mas paga-se um preço muito alto por esse tipo de status.

Percy é o exemplo perfeito. Ter Poseidon como pai pode lhe proporcionar poderes incríveis, mas também faz dele um alvo altamente visado. Então, mesmo que você fosse um semideus com habilidades extraordinárias, isso não lhe garantiria tranquilidade de modo algum.3

O mundo dos deuses e monstros é cruel. Um herói não pode contar com a ajuda de seu pai imortal. Existem regras que impedem a interferência direta, e, ao que parece, quanto mais alta a posição de um deus na hierarquia, mais limitada é sua intervenção. Após Annabeth Chase fugir da casa do pai, sua mãe, Atena, garante que ela se encontre com um meio-sangue mais velho e mais poderoso. Thalia, filha de Zeus,4 quase consegue conduzir seus amigos à segurança do acampamento, mas quando ela está prestes a ser morta por uma horda de monstros, só resta a Zeus transformá-la em uma árvore no topo da Colina Meio-Sangue.

No final das contas, cabe a qualquer jovem herói cuidar de si próprio. Um pai ou protetor pode ajudar, mas é da natureza do herói ter que enfrentar sozinho os monstros.

Lição 2: Tipos de monstros

Monstros podem ser classificados de diversas maneiras: pelo habitat, pela lealdade, pela inteligência, pela letalidade, e assim por diante. Para o objetivo desta lição, vou separá-las em dois tipos principais: aqueles que vão matá-lo de propósito — seja por motivo pessoal, seja porque você entrou por engano na toca deles — e aqueles que vão matá-lo por acidente.

Em geral, os monstros são muito territoriais; tendem a demarcar um espaço e protegê-lo ferozmente. Quando o irmão de Percy, Tyson, é atacado por uma esfinge na cidade, talvez tenha sido apenas por ele ter se aventurado no território dela. Vale a pena notar que o fato de Tyson ser ele próprio um monstro não lhe dá proteção alguma.

Esse é o tipo de monstro que talvez não tenha nada pessoal contra você, mas que não hesitará em matá-lo mesmo assim. Pode ser porque: a) está protegendo algo que acha que você quer roubar; b) está faminto; ou c) ambos.

Jovens heróis parecem enfrentar esse tipo de monstro com mais frequência quando estão em alguma missão, mas nem sempre é o caso. Os monstros podem ser encontrados praticamente em qualquer lugar, e se você se meter nos territórios de caça de uma Hidra, são grandes os riscos de que uma de suas sete cabeças o devore antes mesmo que você possa explicar que estava apenas a caminho do restaurante da esquina em busca de um pastrami com centeio.

Alguns monstros permanecem muito isolados do mundo dos mortais. Percy tem que ir até o Mar de Monstros para enfrentar Polifemo, o ciclope pastor com a ovelha carnívora, e Caríbdis e Squila, que destroem (outra vez) o navio de cruzeiro e sua tripulação. Há também as criaturas que contam com a espécie humana para sobreviver. Nos tempos antigos, os monstros vivam à custa dos humanos ao roubar suas ovelhas e cabras (ou, às vezes, ao fugir com uma de suas donzelas). No mundo moderno de Percy, muitos monstros passaram a optar pelo varejo, dependendo dos humanos de uma maneira completamente diferente.

Esse tipo de criatura mágica não tem a intenção de matá-lo, mas vai simplesmente fazer o que precisa, sem perder um único segundo se preocupando com seu destino. Veja, por exemplo, a rede de lojas Donuts Monstro. Elas se espalharam por todo o país, cada uma ligada à força de vida de um monstro. As lojas multiplicam-se como cabeças de Hidra, mas se realmente fazem sucesso à custa de seus clientes humanos — o equivalente moderno das ovelhas ou donzelas roubadas, por exemplo —, infelizmente nunca saberemos.5

Outros ramos do comércio são obviamente mais perigosos, como a loja da Medusa — a Empório de Anões de Jardim da Tia Eme —, que Percy, Annabeth e Grover encontram por acaso em sua primeira jornada. Nos velhos tempos, monstros em busca de humanos podiam ser facilmente encontrados nos cruzamentos das principais ruas, onde o movimento era maior. Agora, monstros como a Medusa abrem as próprias lojas. O ponto central das sociedades dos mortais eram os cruzamentos, mas agora tudo gira em torno do comércio. Portanto, um herói esperto deve ser cauteloso nas lojas; ninguém quer pagar por um cheeseburger passando toda a eternidade como um ornamento de pedra em um gramado.

Os monstros não consideram a morte ou o desmembramento um impedimento para seus negócios. Veja o caso das Irmãs Cinzentas. Quem teria imaginado que seria uma boa ideia colocar três monstros que compartilham um só olho no controle de um táxi em Nova York?6 Como as irmãs não podiam entregar o olho umas para as outras sem dar início a uma violenta discussão, o único destino do táxi parecia ser um desastre. Ainda assim, mostrar o caminho para os heróis sempre foi a função dessas divindades desde a Grécia Antiga.

O fato de elas não se importarem com seus passageiros meio mortais mostra por que questões imortais nunca deveriam ser tratadas de forma leviana. Mesmo quando uma criatura mágica está meramente tratando de negócios — ou até mesmo quando está sendo prestativa, como as Irmãs Cinzentas —, ela pode ser muito perigosa.

Agora, abordemos o monstro que, de fato, leva a morte para o lado pessoal. Além do ódio inato entre os monstros e os heróis, existe outro motivo pelo qual alguns bichos horríveis, com presas, asas e pele ressequida, talvez queiram ver meios-sangues como Percy mortos. Muitos monstros são servos de vários deuses, que mantêm as criaturas sob seu domínio para que tomem conta de algumas funções estranhas (e às vezes repugnantes), como rastrear heróis, proteger tesouros e torturar semideuses que os deixam zangados.

Isso quer dizer que se você deixar algum dos deuses zangado, ele ou ela muito provavelmente enviará algo bem desagradável para que você tome conhecimento do que fez. Percy Jackson deixa vários deuses zangados só por respirar, então é bem provável que ele sinta que o mundo todo está à solta para caçá-lo. Mas isso não é verdade. Na maior parte do tempo, vários mundos estão à solta para caçá-lo.7

Esteja você lidando com a simplicidade obstinada do Minotauro ou a ferocidade conivente das Fúrias, se um deus enviou um monstro à sua caça, não há muito o que fazer. Então, você deve estar se perguntando por que me dei o trabalho de mencionar isso em uma lição sobre como evitar conflitos com monstros.

Se você é um herói, e um deus vingativo (ou talvez apenas entediado) enviou um monstro à sua caça, é possível que você não consiga impedir que isso aconteça, mas, se reconhecer cedo a ameaça, vai poder controlar o campo de batalha: táticas sábias podem equilibrar as coisas quando dois oponentes de níveis bem diferentes se enfrentam.

Por exemplo, se você fosse um herói e encontrasse uma Quimera soltando fogo pelas ventas em seu caminho, sua escolha óbvia seria fazer com que o confronto ocorresse próximo a uma fonte de água — ou, pelo menos, longe de materiais inflamáveis. Ao identificar o monstro com alguma antecedência, você pode conduzi-lo para longe de espectadores inocentes, testemunhas oculares inoportunas e construções que possam vir abaixo facilmente. Você deve sempre tentar evitar danos colaterais e estragos em imóveis, pois isso reduz os riscos de você passar a ser procurado pelas autoridades convencionais.

Esse é um caso em que as aventuras de Percy nos mostram como não lidar com monstros. Pense em como a vida seria mais fácil se ele não passasse tanto tempo sendo procurado pela polícia por explodir carros, ônibus, ginásios escolares e monumentos nacionais. A manutenção da ordem pública dos mortais pode não parecer tanto uma ameaça se comparada a uma falange de touros de bronze ou um bando de cérberos, mas por que acrescentar inconveniências desnecessárias a uma jornada já tão complicada?

Lição 3: Localizando um monstro

O reconhecimento de um monstro não se limita apenas a memorizar os nomes e tipos de criaturas que você pode ter que enfrentar, embora isso também não atrapalhe. Se você se pergunta se sua professora de álgebra é uma Fúria ou apenas uma velha senhora malvada com um monte de gatos, o mais importante a fazer é usar a cabeça, começando pelos olhos, orelhas e nariz.

Criaturas com o espírito da natureza em sua origem, como ninfas, sátiros e ciclopes, conseguem facilmente farejar um monstro. No entanto, não é aconselhável ter uma ninfa ou um sátiro ao lado o tempo todo. Um semideus esperto deve aprender a prestar atenção em seu olfato. Isso requer prática, uma vez que passamos boa parte de nossas vidas tentando não sentir o cheiro das coisas. As farmácias têm prateleiras inteiras dedicadas a sabonetes, desodorantes, talcos, perfumes e purificadores de ar — assim não somos obrigados a suportar cheiros desagradáveis.8

Felizmente, monstros não costumam se preocupar com tais coisas, o que torna mais fácil a tarefa de localizá-los. Gigantes canibais não passam fio dental. Embora ninguém goste de acusar um colega de turma de ter mau hálito ou cê-cê, se ele é capaz de derrubar um ônibus de dois andares com o hálito, isso pode ser um sinal de que você precisa amarrar os cadarços do tênis e se preparar para uma luta.

Ainda em dúvida se seu vice-diretor é um manticore? Talvez você possa “acidentalmente” acionar o detector de incêndio durante a aula. Se, quando a água o atingir, der para sentir cheiro de cachorro molhado por baixo do terno dele, é melhor evitar qualquer atitude que faça você ficar na escola depois da hora.

No mundo dos olimpianos, a Névoa pode obscurecer sua visão, mas o herói esperto sabe tirar proveito disso. Se você não consegue se lembrar da aparência da sua dupla no trabalho de biologia ou se já teve uma sensação estranha ao ficar cara a cara com ela, a Névoa pode ser a causa, o que acontece somente se você está lidando com um ser não humano.

Além disso, você pode observar o modo como a pessoa se veste. Nós tentamos ser discretos com relação às diferenças culturais em termos de roupas, mas um monstro inteligente9 pode confiar nisso para disfarçar seu disfarce. Um véu da cabeça aos pés pode ser perfeitamente inocente ou pode esconder um rosto capaz de parar um relógio — literalmente, ao transformá-lo em pedra.

Você deve prestar atenção também às escolhas relacionadas a moda. Como os monstros nunca morrem, eles têm dificuldade em seguir as tendências passageiras no que diz respeito a roupas e hobbies.10 Se seu novo professor usa uma camisa havaiana com estampa de tigre todos os dias, ou se o novo aluno da escola nunca ouviu falar de PlayStation, talvez seja melhor não dar as costas para eles.

Enquanto você mantiver os olhos e ouvidos abertos e atentos, os monstros — com poucas exceções — serão facilmente localizados. Alguns deles são ardilosos, mas não são tão bons assim na tentativa de fingir que são humanos. Alguns até podem conseguir por algum tempo, mas geralmente acabam se denunciando diante de um herói atento. O problema é que a maioria dos heróis — não Percy e seus companheiros, é claro — costuma estar concentrada demais em descobrir o tesouro ou em encontrar o que busca para prestar atenção nisso.

Embora você deva ficar alerta a qualquer coisa errada ou estranha, nada — nem mau hálito, maneiras rudes ou roupas cafonas — deve ser conclusivo por si só. Seria vergonhoso ser expulso da escola (ou preso) por tentar golpear o diretor com uma caneta esferográfica só porque ele não usa desodorante suficiente.11

É aí que Percy nos dá um bom exemplo de como lidar com monstros: pense na cena como um todo. O que ele faz de mais importante enquanto lida com uma criatura mítica é usar o cérebro. No mínimo, isso fará com que você pegue seu oponente desprevenido. Na verdade, ninguém espera que um herói seja inteligente; o treinamento tende a se concentrar mais nos músculos do que na mente.

Lembre-se da dica fundamental ao lidar com monstros, bruxos e deuses: se algo parece bom demais para ser verdade, provavelmente é. Uma oferta de algo a troco de nada deve sempre deixar o herói vigilante, e nada melhor para lhe dizer isso que o próprio bom senso.

Percy Jackson

Uma das coisas mais admiráveis no personagem Percy Jackson é que ele aprendeu com os erros ao longo de suas aventuras.12 Sua educação clássica é quase inexistente, mas Percy demonstra que, para se sair bem ao lidar com um monstro, é preciso mais do que memorizar fatos e datas e saber história.

Um herói tem que observar todos os detalhes que fazem um monstro se sobressair em relação ao que é considerado normal no mundo dos mortais. Uma criatura com uma quantidade incomum de cabeças é algo bastante óbvio. Geralmente, o que Percy nota são os numerosos pequenos detalhes que resultam em duas coisas: um monstro e o perigo imediato.13

Essa característica não se aplica apenas aos momentos em que Percy precisa identificar monstros e matá-los, mas também ao modo como interage com todos os seres não humanos. Em suas aventuras, Percy faz uso desses diversos detalhes para decidir como lidar com cada monstro de forma individual. Ele resgata monstros e até os protege, faz amizade com eles. Talvez essa receptividade seja o resultado de ter um ciclope como irmão.

Ou talvez seja simplesmente parte de sua personalidade, algo a mais que o diferencia de outros heróis. Em suas batalhas com deuses e monstros, Percy Jackson não utiliza apenas os músculos e a mente, mas também o coração. Torna-se difícil prevê-lo e controlá-lo, e é por isso que os deuses o consideram tão potencialmente perigoso enquanto a profecia não se cumpre.

Mas isso também o torna um herói, tanto no sentido clássico, de semideus, quanto no da espécie humana. Essa é a lição mais importante que podemos tirar dos livros da série. Talvez você nunca tenha que enfrentar manticores e górgonas, e é possível que o Minotauro não esteja esperando para lhe armar uma emboscada a caminho da escola, mas todos nós temos que enfrentar nossos próprios monstros: intimidações, pressão social, medo de estranhos, preconceito, escola nova... e uma lista infinita que torna nosso mundo desafiador mesmo que não sejamos semideuses.

Mas, assim como Percy Jackson, você também pode se sair bem em todas as suas jornadas caso leve em conta essas mesmas lições: evite conflito sempre que puder, mantenha os olhos abertos e os ouvidos atentos, e sempre preste atenção no todo. E, como Percy, nunca tenha medo de pedir ajuda a seus amigos.

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Rosemary Clement-Moore é autora de romances de mistério sobrenatural para jovens (e não tão jovens) adultos, entre eles Texas Gothic e The Splendor Falls. Suas obras foram incluídas na lista dos melhores livros para adolescentes da American Library Association e receberam resenhas elogiosas da Kirkus Reviews e do School Library Journal. Rosemary tem uma longa história com os deuses gregos, desde que desempenhou o papel de Perséfone (com ninfas que cantavam e dançavam!) no musical que escreveu com sua turma na escola de teatro. Os leitores podem conhecê-la em www.readrosemary.com.

1 O original, e não o da série Percy Jackson. O antigo Perseu era filho de Zeus, e não de Poseidon, por isso é curioso que a mãe de Percy tenha escolhido esse nome.

2 Quíron não usaria este exemplo, é claro, porque em seu mundo não existem coisas como feiticeiros. Isso seria bobagem.

3 Justo pelo contrário, uma vez que, segundo o acordo entre os Três Grandes, você não deveria sequer existir, o que faz com que muitas criaturas tentem fazer de tudo para que você de fato não exista.

4 Ver nota de rodapé anterior: prole não legítima.

5 Se vivêssemos no mundo de Percy e dos olimpianos, eu pensaria definitivamente naquela rede de cafés com a sereia em seu logo, pelo simples fato de que convencer a sociedade mortal de que é razoável pagar três dólares por uma xícara de café só pode ser um plano para acelerar o fim da civilização ocidental.

6 Embora isso explique muito sobre os taxistas de Manhattan.

7 Estou me referindo ao mundo dos mortais, ao mundo dos imortais e ao Mundo Inferior. Hades, por exemplo, pode ter um motivo especial para odiar Percy, mas todos os meios-sangues deveriam ser cautelosos com ele. Hades é como aquela criança na escola que nunca é convidada para brincar com ninguém, mas que tem superpoderes e leva vários anos até começar a ficar contrariado. É compreensível ele ser mal-humorado.

8 Nenhum dos produtos, aparentemente, muda o fato de que os monstros podem farejar os heróis com muita facilidade.

9 Nem sempre isso é um oximoro, não mais do que “herói esperto”.

10 Ou, mais provavelmente, não dão a mínima a isso.

11 O que você não faria, pois sabe distinguir ficção e realidade. Se não conseguir, então terá um problema ainda maior do que os monstros míticos.

12 Aprendeu a lidar com monstros, quer dizer. Em outros assuntos, ele ainda aparenta ficar bem perdido. Em romance, por exemplo (pelo menos até ele e Annabeth ficarem juntos).

13 Talvez isso seja um produto da atenção natural do herói para tantos detalhes de uma vez só, ou seja, seu transtorno do déficit de atenção.


Por que tantos monstros
trabalham no comércio?

E por que eles nunca vendem nada que um
semideus realmente queira?

Cameron Dokey

Anões de jardim, camas-d’água, donuts... Parece impossível ir às compras hoje em dia sem se deparar com um monstro. Cameron Dokey explica por que tantos monstros trabalham no setor de serviços e por que, para os semideuses, ir às compras é tão perigoso.

Não é fácil ser um jovem semideus.

Pergunte só a Percy Jackson. Ele vai confirmar.

Sempre se acha, é claro, que ele terá tempo para recuperar o fôlego entre cumprir uma missão ou ser perseguido pelas forças malignas bem de perto, às vezes literalmente fungando em seu pescoço.

Em Shakespeare, há uma rubrica que diz: Sai, perseguido por um urso. (Eu também não estou inventando isso. Se quiser, você mesmo pode conferir. Está em Conto de inverno. Ato III, cena 3. E você achando que Shakespeare era apenas um sujeito chato que já morreu.)

Mas o que me interessa, e realmente há uma coisa que me interessa aí, é que o personagem de Shakespeare teve sorte. Pelo menos sabia que o que estava atrás dele era um urso. Quando sai de cena, Percy Jackson nunca sabe que forma a criatura atrás dele pode assumir. Esse é um dos desafios de ser perseguido por monstros. E não acaba por aí. Igualmente desafiador pode ser o fato de que Percy também nunca sabe realmente o que vai encontrar pela frente. Amigo ou inimigo. Batalha ou tentação.

O que me leva diretamente ao tópico deste ensaio: o que há nessa relação entre monstros e compras?

Existem muitos monstros na série Percy Jackson e os olimpianos. Existe também um número surpreendente de oportunidades para compras. Ação, aventura, deuses gregos, consumismo. Não é uma combinação muito comum. Pouquíssima coisa com relação a Percy enquadra-se no campo do habitual.

Um semideus comum? Acho que não.

Mas em quase toda missão que Percy empreende — especialmente a primeira delas —, mais cedo ou mais tarde algum ser repugnante, que definitivamente não está interessado no bem-estar de Percy, surge para tentar vender algo a ele. Às vezes, é algo de que ele não necessita. Às vezes, é algo que não quer. Geralmente são ambos. Mas, mesmo assim, Percy e seus colegas param para verificar do que se trata.

Sim, é isso mesmo. Apesar do perigo que os cerca, nosso herói e seus companheiros fazem uma pausa para ir às compras.

O que diabos está acontecendo?

Vamos começar a responder a essa pergunta fazendo a mesma coisa que Percy e seus companheiros de jornada — Grover, o sátiro, e Annabeth, filha de Atena, deusa da sabedoria — fazem no capítulo onze de O ladrão de raios, que, tenho certeza de que não preciso dizer, é o primeiro livro da série.

Assim como Percy, Annabeth e Grover, daremos início ao nosso tour de compras monstro com uma visita ao MEOPRÓI ED NESÕA ED JIDARM AD IAT MEE.

Para aqueles que não são atormentados com a dislexia dos semideuses, o lugar chama-se Empório de Anões de Jardim da Tia Eme.

Momento confissão: o Empório de Anões de Jardim da Tia Eme é minha experiência de compras monstro predileta. Provavelmente porque não tive que viver essa experiência pessoalmente. Mas também porque tia Eme é nada mais, nada menos do que a tia “M”, forma abreviada de Medusa, talvez o primeiro ser a entrar em guerra com o próprio cabelo.

Na verdade, considerando que ela tem que andar por aí com cobras onde deveria haver cabelo, acho que podemos dizer que ela não saiu nem um pouco vitoriosa dessa guerra.

Boa regra a seguir, caso haja oportunidade: nunca deixe Atena, deusa da sabedoria, mãe de Annabeth, irritada. Foi assim que a Medusa acabou ficando como a velha da cabeleira de cobra, e agora ela está mais do que irritada. Tão irritada que basta alguém olhar para seu penteado para ser transformado em pedra. Se você olhar para um reflexo dela, tudo bem. Mas se olhá-la de frente...

É isso que são todos os anões de jardim do empório — criaturas que de um jeito ou de outro olharam para tia Eme diretamente em seus olhinhos redondos e vermelhos. Grover chega a achar que avista um anão muito parecido com seu tio Ferdinando. E no final ele vê que tem razão. A tal estátua não apenas é muito parecida com seu tio Ferdinando. Ela é seu tio Ferdinando.

Grover marcou pontos, a propósito, ao tentar persuadir seus companheiros a não pôr os pés no Empório de Anões de Jardim da Tia Eme. Ele está certo de que o cheiro que sente é de monstros, o que acaba se confirmando no final. Infelizmente, Percy e Annabeth não lhe dão ouvidos. Não necessariamente por terem desenvolvido um repentino interesse em adquirir objetos de arte para o Acampamento Meio-Sangue, mas porque eles sentem cheiro de hambúrguer e estão famintos.

Vamos apenas dar uma recapitulada, ok?

Percy, Grover e Annabeth estão bem no início de sua jornada. Sabem que há perigo por todos os lados. Na verdade, acabaram de escapar de um ataque das três Fúrias no fundo de um ônibus, o que foi impressionante, posso lhe garantir. Então suponho que devo dar um desconto para Percy e Annabeth, pois faz muito sentido que toda aquela luta com as Fúrias tenha deixado os dois famintos.

No entanto, em vez de se dirigir com segurança e tranquilidade ao McDonald’s, onde sempre se pode usar o banheiro mesmo sem comprar um McLanche Feliz, o que faz nosso herói? Conduz seus amigos diretamente para os fundos de um armazém repleto de estátuas estranhíssimas que aparentam ter vida. Por quê? Porque a proprietária, cujo rosto está completamente escondido por um véu (eu cheguei a mencionar isso?), diz que ali há uma lanchonete.

Hein?

É claro que, a essa altura, era para algum deles desconfiar que havia algo errado. O curioso é que ninguém, com a possível exceção de Grover, desconfiou. Esse é o ponto forte do comércio monstro: enganar o herói e seus companheiros, para depois pôr a vida deles em risco. O fato de, no final, eles terem conseguido escapar foi bom, magnífico. Mas também é motivo para alarme. Porque é bem nesse ponto, com a viagem até o Empório de Anões de Jardim da Tia Eme, que um padrão começa a tomar forma.

Sempre que a situação engrossa, o herói faz compras. Mas, por algum motivo, eles só percebem que a única coisa que os monstros têm para vender é problema quando já é tarde demais.

Eis outro bom exemplo: capítulo dezessete de O ladrão de raios. É a passagem em que nossa turma faz uma visita ao Palácio das Camas-d’Água do Crosta.

A jornada de Percy para recuperar o raio de Zeus o levou, junto com seus companheiros, da Costa Leste até Los Angeles. Assim que puseram os pés na cidade, no entanto, os três foram atacados por um bando de criminosos. E é tentando escapar deles que nosso trio decide fazer uma visita de última hora ao Palácio das Camas-d’Água.

Até aí, tudo bem. Mas espere! Tem mais. Porque uma vez que entram no Palácio das Camas-d’Água, uma coisa estranha acontece. Bem, na verdade, mais de uma. Mas a coisa estranha específica a que estou me referindo é esta: Percy e seus companheiros permanecem ali dentro.

Nosso herói e seus amigos conseguiram percorrer todo o país e nem por isso estão mais perto de encontrar o raio de Zeus do que quando partiram. O tempo está definitivamente se esgotando. Então, o que fazem Percy, Grover e Annabeth?

Isso mesmo. Vão às compras.

Diferentemente da visita ao Empório da Tia Eme, onde ele estava mais do que certo de que podia farejar encrenca, dessa vez é justamente Grover que deixa o trio na mão. Ele desenvolve uma repentina e potencialmente fatal atração pelas camas-d’água. Antes mesmo que o trio perceba o que está acontecendo, Grover está amarrado a uma das camas, com Annabeth indo pelo mesmo caminho. Ambos estão correndo o risco de serem esticados até ficarem do tamanho certo.

A menos que Percy tenha uma boa ideia bem rápido, não apenas falhará em sua missão, como ele e os outros se sentirão extremamente desconfortáveis — embora, devo admitir, seja bem provável que eles passassem a ser os primeiros a serem escolhidos para uma partida de basquete.

Por sorte, na época em que acontece o capítulo dezessete, ter uma boa ideia é algo em que Percy Jackson está se tornando exímio.

Ele vira o feitiço contra o vendedor da cama-d’água, Crosta — forma derivada de Procrusto, também conhecido como Esticador, um cara que mata os clientes de tanta gentileza. Percy faz isso ao convencer Crosta de que todas aquelas camas-d’água pareciam tão boas que ele próprio deveria experimentar uma. No momento em que Crosta experimenta a cama, Percy está a salvo. Ele despacha o monstro e resgata seus amigos.

Chega de compras. A jornada continua.

Mas eu ainda tenho uma pergunta e acredito que você também: por que Percy não saiu do Palácio das Camas-d’Água logo que entrou? Assim que os criminosos foram embora, é claro. Sendo tão rápido para ter uma boa ideia quando é necessário, por que ele leva tanto tempo para se dar conta de algo? Por que Percy não notou logo de cara que havia algo estranho acontecendo?

Como assim?

Um cara que o próprio Percy descreve como uma ave de rapina em um terno despojado tenta vender algumas camas-d’água para três indivíduos sem idade suficiente nem para ter cartão de crédito? Fala sério. Você faz alguma ideia de como essas coisas são caras? E nem estou contando os custos de frete e transporte. Nenhum vendedor é tão desesperado assim. Nem os de verdade, sob circunstância nenhuma.

E é exatamente o que vai acontecer no Empório de Anões de Jardim da Tia Eme. Nossos amigos acabam caindo em uma armadilha. E o que inicialmente os atrai é uma fachada. Mais especificamente, uma fachada de loja.

Então, qual é a relação entre monstros e comércio? Por que a primeira opção dos monstros é sempre o ramo de vendas? Por que se esforçar tanto para tentar seduzir Percy e seus amigos a entrarem na loja, quando seria muito mais fácil simplesmente sair de um esconderijo qualquer e liquidá-los? Afinal, Percy e seus colegas somam apenas três pessoas.

Pelo menos eles fazem isso em O ladrão de raios. Nosso herói convoca reforços à medida que sua aventura transcorre. Ainda assim, os monstros surgem em uma infinita variedade de formatos e tamanhos, e isso sem mencionar a quantidade. Certamente tudo o que teriam que fazer era continuar surgindo. Mais cedo ou mais tarde, provavelmente mais cedo, Percy e seus colegas acabariam exaustos.

E aqui vai mais uma pergunta para você: se os monstros vão se dar o trabalho de possuir um estabelecimento, por que diabos não vender algo que um jovem semideus possa realmente querer? Como uma nova superarma, a capacidade de comprar qualquer coisa que deseje ou de viajar pelo tempo.

Demorou um pouco, mas acho que encontrei uma explicação para isso.

O fato de monstros não venderem nada que nosso herói e seus companheiros realmente queiram é parte importante da questão. Estou falando do ponto de vista do autor agora. E Percy, incapaz de identificar o perigo que o comércio monstro representa (pelo menos não imediatamente), é a outra parte. Porque a verdade (que apresento sabendo perfeitamente que corro o risco de irritar qualquer monstro que possa me ouvir) é, sem dúvida, bem radical.

Todos aqueles monstros comerciantes que Percy enfrenta estão, na verdade, fazendo um favor a ele, estejam conscientes disso ou não.

Quer saber qual é esse favor? Estão ensinando a Percy o princípio do caveat emptor.

Você sabe do que se trata, é claro.

É a forma em latim para “tome cuidado, comprador”. E se isso não se aplica a Percy e seus colegas, não sei o que se aplicaria. Essencialmente, o que isso significa para eles, ou para qualquer semideus e seus companheiros de jornada, é que eles precisam ficar de olhos abertos. Não estou me referindo apenas às situações relativas ao comércio realizado por monstros. Estou dizendo que vale para todas as ocasiões.

Porque quando se vai a fundo nessa história, quase todo mundo que Percy conhece, sejam seres bons ou maus, tem provavelmente algo a esconder. Às vezes, escondem quem realmente são. Outras vezes, escondem o que realmente querem. E nem estou considerando a Névoa, que permite que os seres do reino dos deuses e monstros se ocultem inteiramente dos olhos mortais, ou que pelo menos mudem de forma.

Não que um personagem tenha que usar a Névoa para esconder o que realmente é, é claro. Na série, dentre os personagens que parecem uma coisa mas acabam mostrando ser outra, o mais importante é alguém que nunca faz uso da Névoa. Ele não muda sequer de forma. Não de verdade. Ele simplesmente esconde suas verdadeiras cores até chegar a hora certa de se revelar.

Sabe de quem estou falando, não sabe? De Luke, é claro.

Luke, que, no início, Percy considera um amigo, passa por uma metamorfose e se transforma em um arqui-inimigo determinado a derrotar os deuses a qualquer custo. E faz tudo isso sem modificar nem ao menos um fio de cabelo.

A essa altura, aposto que você está começando a entender aonde quero chegar.

Quase ninguém no mundo de Percy é quem aparenta, inclusive o próprio Percy, como o leitor vai ver. E se ele quiser sobreviver nesse mundo do qual de repente descobriu que é uma parte muito importante, terá que usar mais do que o raciocínio. Terá que usar os olhos. E qual a melhor forma de aprender a fazer isso?

Você já sabe. Descobrindo que não se pode confiar neles.

É disso que trata o comércio monstro: aprender a enxergar a diferença entre a verdade e a ilusão. Desenvolver a capacidade de enxergar o que está ali e o que não está. E como a experiência de Percy no Empório de Anões de Jardim da Tia Eme vai mostrar, não existe pechincha quando você se permite frequentar o comércio monstro, e muito menos almoço de graça.

Mas o que realmente me faz ver que a teoria funciona é o modo como o próprio Percy começa a captar as coisas. Ele chega a falar algo desse tipo bem antes de cometer o estupendo erro de entrar pela porta da frente do Hotel e Cassino Lótus. Por que faz isso, mesmo que na hora possa ter parecido uma boa ideia?

Percy faz isso porque até ele admite que aprendeu a ser desconfiado. Aprendeu a estar preparado para o fato de que quase tudo o que enfrenta pode ser um monstro ou um deus. Mas o porteiro do Lótus é nitidamente humano, nitidamente normal. Agora que sabe como é importante prestar atenção a esse tipo de coisa, Percy identifica os sinais imediatamente.

E não foi só isso que ele percebeu. O porteiro é um humano simpático, e sua simpatia é o que faltava para encorajar Percy a atravessar as portas do cassino. Esse acaba sendo o pior erro que ele poderia ter cometido, e quase leva toda a sua missão por água abaixo.

É um segredo bem sério. Por quê? Porque o Lótus muda a sorte de Percy. Em primeiro lugar, sua decisão de entrar no cassino se baseia no fato de ele estar aprendendo a lição, aprendendo a não confiar nos próprios olhos. Mas quem está ensinando isso a ele? Justamente os monstros. Com uma pequena ajuda das pessoas a seu lado, aquelas nas quais Percy de fato confia.

Quando se olha para a situação dessa maneira, não parece tão forçado sugerir que todos aqueles monstros comerciantes estejam, na verdade, fazendo um favor a Percy. Poderíamos até alegar que, de forma indireta, todos os monstros estão realmente do lado de Percy.

Nossa, ficaram tão surpresos assim?

Ainda não se convenceram de que o comércio monstro é uma coisa positiva? Vamos dar uma olhada em O Mar de Monstros, A maldição do titã, A batalha do Labirinto e O último olimpiano por um instante. São os livros dois, três, quatro e cinco da série Percy Jackson e os olimpianos. Você diria que não vê aí muitas situações de transação comercial? (Com exceção do Donuts Monstro, em O Mar de Monstros, o segundo comércio monstro na minha lista de preferências, caso esteja contando.)

Aha! Exatamente o que eu quero dizer. Quando a aventura de O Mar de Monstros acontece, Percy está começando a entender as coisas. Aprendeu a lição que todas aquelas oportunidades de compra estavam tentando lhe ensinar: desviar os olhos das mercadorias e concentrar-se no objetivo de sua jornada.

O fato de Percy aprender a fazer isso o torna muito mais perigoso, é claro. O que também explica por que os riscos de haver alguma luta aumentam conforme o andamento da série. Os monstros também aprenderam bem a lição. Chega de tentar desviar o herói de seu rumo. Atrair Percy e desviá-lo de sua rota não vai mais funcionar. Simplesmente vá à caça dele até conseguir eliminá-lo.

Felizmente, ninguém conseguiu isso até o final de O último olimpiano (não por falta de persistência). E quem está liderando os esforços para se livrar de nosso herói? Quem é seu equivalente que passou para o lado sombrio? Isso mesmo. É Luke, a ameaça que Percy quase não reconheceu a tempo.

Trata-se de um truque muito inteligente por parte do autor, se você parar para pensar. Porque coloca o coração de um inimigo — um monstro, por assim dizer — atrás do rosto de um amigo. Isso torna todos os enfrentamentos de Percy com Luke (e de Annabeth também, pense nisso) perigosos não apenas fisicamente, mas também emocionalmente.

Ao lutar contra um amigo que virou inimigo, você se arrisca a destruir não apenas quem é no presente, mas quem foi no passado. Por quê? Porque você tem que enfrentar tanto seu adversário quanto o próprio ressentimento por ter sido enganado. Em parte, é isso que torna a relação entre Percy e Luke tão poderosa. Ele gostava mesmo do amigo, embora seja preciso admitir que Luke nem sempre tenha sido o “monstro” que acabou se revelando. Há uma quantidade incrível de influência de Cronos. Mas por que isso acontece? Simplesmente porque Luke deixa que aconteça. Ele tem livre-arbítrio, mas o exercita abrindo mão dele. E talvez seja esta a verdadeira definição de monstro: um ser que poderia ter sido outra coisa, mas que escolhe não ser.

Isso é o bastante para fazer um herói sentir saudades dos dias de estátuas de jardim esquisitas e camas-d’água assassinas. Encontrar um monstro que pode transformá-lo em pedra é, sem dúvida, mais fácil do que olhar fixamente para o rosto de alguém em quem você confiava e, em seguida, erguer a espada. Porque quando você faz isso, existe sempre o risco de seus sentimentos se tormarem uma arma que será utilizada contra você.

Vamos ser francos. Os monstros que usam rostos de amigos jogam duríssimo.

Por sorte, no final das contas, Percy vence os grandes desafios com que se defronta. Mas seja lá o que ele vai encontrar pela frente da próxima vez, acho que de uma coisa pelo menos podemos ter certeza: aonde quer que sua próxima aventura o leve, Perseu Jackson não levará cartões-postais da Grécia Antiga.

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Cameron Dokey é autora de mais de trinta títulos juvenis, entre os quais Once, Winter’s Child, The World Above, Wild Orchid, Belle, Before Midnight, Sunlight and Shadow, Beauty Sleep, Golden e The Storyteller’s Daughter, todos da série Once Upon a Time. Ela também tem orgulho da comédia romântica How Not to Spend Your Senior Year. Você pode encontrar todos os títulos de Cameron e saber mais sobre ela em www.camerondokey.com.


Roubar o fogo dos deuses

O apelo de Percy Jackson

Paul Collins

Você gostaria de ser Percy Jackson? No começo de O ladrão de raios, Percy é bem inflexível quanto à ideia de alguém querer ser um meio-sangue. É perigoso demais. E, ainda assim, nós todos não desejamos poder tirar a tampa de uma caneta e ver Contracorrente surgir? Você não deseja às vezes ter a capacidade de enfrentar monstros com tanta bravura quanto um semideus? Paul Collins analisa por que essa ideia é tão cativante e por que deve existir um pouco de Percy em cada um de nós.

Crescer é perigoso. Ser você mesmo é perigoso.

Há um clássico filme australiano chamado Vem Dançar Comigo, de Baz Luhrmann, em que o personagem principal, Scott, quer criar os próprios passos de dança e fazer tudo do seu jeito. E aí o Hades se instala na Terra! As tentativas de Scott de se tornar um ser individualizado, de se tornar quem ele é, são vistas como um crime, um ato de rebeldia contra o “grupo” social do qual ele faz parte, porque Scott não está se adaptando; ele não está se conformando.

Bem, Percy Jackson também não.

Percy é disléxico, tem transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) e vive se metendo em encrenca. Na maioria dos sistemas escolares — ou melhor, na sociedade como um todo —, isso faria dele um zero à esquerda, a criança com menor probabilidade de ter sucesso na vida e que nunca daria certo. Logo, ele não mereceria qualquer esforço de quem quer que fosse. Já ouviu essa história antes?

Rick Riordan, autor da série Percy Jackson e os olimpianos, inverte completamente essas supostas imperfeições.

Assim como muitas crianças que passam pela mesma situação — e que são rotuladas como desajustadas, que são desprezadas, deixadas de lado —, Percy se sente excluído, deixado para trás, e está começando a se sentir frustrado e angustiado com isso. Não consegue entender por que alguns professores sempre o atormentam, por que tudo dá errado mesmo quando ele se esforça ao máximo para fazer a coisa certa.

E uma vez que se é rotulado — como disléxico, rebelde, encrenqueiro —, é muito difícil reverter a situação, porque você está lidando com as percepções das pessoas. Elas não veem mais “você”, elas veem apenas o rótulo.

A sua própria maneira, O ladrão de raios é uma clássica trama sobre ir “da água para o vinho”, um tipo de história que ouvimos várias e várias vezes desde o começo de nossa infância: O patinho feio, Cinderela, Aladim, Rei Artur, Guerra nas Estrelas, David Copperfield, Jane Eyre, Harry Potter, Rocky, o episódio bíblico de José e seus irmãos e muitas, muitas outras. Todas são basicamente histórias sobre crescer, sobre adquirir o poder e a responsabilidade de ser adulto e sobre as forças sombrias que tentam impedir que isso aconteça. Em sua maioria, essas histórias têm início com um herói ou heroína, criança ou jovem, normalmente órfão ou meio órfão (assim como Aladim, Percy “perdeu” o pai), que tem sido marginalizado, forçado a viver escondido, como Cinderela: abandonado, desprezado, subestimado, ignorado e maltratado.

Esse enredo é encontrado em todas as épocas e em todas as culturas, inclusive na dos índios que habitavam a América do Norte antes da chegada dos europeus e até na China do século IX (e não há razão para pensar que essa tenha sido a primeira ocorrência).

Então, por que essa nova trama em especial é tão importante para nós? Do que realmente trata a série Percy Jackson?

Bem, vou contar a vocês. Trata de rebeldia.

Trata de pessoas crescendo e se tornando elas próprias. Assim como Scott tenta fazer em Vem Dançar Comigo, assim como Harry Potter tenta e como toda pessoa que existe e já existiu tentou. Assim como alguns dos poucos heróis e heroínas dos mitos gregos tentaram.

E não é por acaso.

Os deuses do Olimpo — todo-poderosos, bons e, ao mesmo tempo, maus, imprevisíveis, estranhamente humanos em suas falhas — são representantes não apenas da ordem estabelecida (escola, sociedade, Igreja), mas também daqueles outros seres semelhantes a deuses: os pais.

Rick Riordan captou essa semelhança e criou uma história sobre os filhos dos deuses, que têm com seus progenitores cheios de vigor exatamente a mesma relação de poder que as crianças do nosso mundo têm com seus pais. E isso, penso eu, é um dos segredos para o sucesso da série: ela mimetiza a experiência de crescimento de todos, assim como a necessidade incômoda que cada pessoa tem de se tornar ela própria.

Ver com clareza

O ladrão de raios também é sobre “ver com clareza”: as escolas que Percy frequentou (seis até hoje) e os diversos professores que já teve, bem como seu desagradável e malcheiroso padrasto, o classificavam como encrenqueiro e sem futuro. Quando algo dá errado, a culpa só pode ser de Percy.

E isso acontece porque eles não enxergam o verdadeiro Percy.

Aliás, nem o contrário: Percy não percebe que seu professor, o sr. Brunner, é, na verdade, um centauro; que a sra. Dodds é uma Fúria provida de garras afiadas em busca de seu sangue; que seu melhor amigo, Grover, é um sátiro diabólico; e que as três senhoras à beira da estrada são as Parcas.

Mais tarde, ele não percebe os disfarces que diversos deuses ou monstros adotam — às vezes só se dá conta quando já é quase tarde demais, como na vez em que a Mãe de Monstros, Equidna, ao lado de seu cachorrinho (que não é um cachorrinho), tenta transformá-lo em kebab defumado.

A incapacidade de Percy em “ver com clareza” se estende também à vida “normal”: sua dislexia, considerada uma deficiência em nosso mundo, provoca distorções visuais. “As palavras tinham começado a flutuar para fora da página, dando voltas na minha cabeça, as letras fazendo manobras radicais como se estivessem andando de skate”, descreve ele em O ladrão de raios. Na verdade, a dislexia se deve ao fato de o cérebro de Percy estar conectado ao grego antigo, o que é parte de sua singularidade.

Mas, acima de tudo, Percy não enxerga com clareza nem a si próprio.

Assim como as escolas e a sociedade o rotularam como rebelde e fracassado, ele se vê através desses rótulos.

Nas histórias de superação e transformação, o verdadeiro foco não é tanto o crescimento, e sim um dos seus requisitos principais: tornar-se consciente.

É aprendendo a ser consciente, aprendendo a ver clara e completamente, que se distinguem esses tipos de história. Até mesmo Peter Rabbit só consegue escapar do perigoso fazendeiro e do jardim no qual come e brinca à vontade (como qualquer criança egocêntrica) quando sobe bem alto para ter uma melhor visão das coisas.

Alcançar a consciência — a percepção — é a verdadeira marca do rebelde, e o maior perigo para os que estão no poder, sejam eles deuses ou pais. Não é coincidência que os regimes autoritários, como o Iraque da era Saddam Hussein, busquem sempre controlar a mídia e ditar o que as pessoas podem ou não fazer.

Da água para o vinho

Em seu surpreendente livro The Seven Basic Plots, Christopher Booker identifica e explora as histórias fundamentais que encantaram e continuam a encantar os indivíduos. Uma delas é o enredo “da água para o vinho”. Embora muitas histórias combinem mais de um desses enredos (Guerra nas Estrelas, assim como O ladrão de raios, é tanto uma história “da água para o vinho” quanto uma história de “vencer o monstro”), quero me concentrar no primeiro. Nele, como descreve Booker, “um jovem personagem central surge gradativamente de um estado inicial de infância dependente, informe, para um estado final de completa autorrealização e plenitude”. Em outras palavras, o herói ganha maturidade através da jornada, ou rito de passagem, que experimenta.

E por que essa história é contada com tanta frequência?

A resposta imediata é que essa é a única das sete tramas básicas que traça a vida de um ser humano da consciência limitada da infância até a percepção reveladora da fase adulta.

A história “da água para o vinho” também é delineada para nos mostrar a importância de se aprender por meio da experiência. Ela nos apresenta os primeiros dias da vida do herói, quando ninguém enxerga com clareza, e como isso nos permite ser facilmente controlados por outros; como a crueldade e os maus-tratos se aproveitam da ignorância; como tentar enxergar claramente se torna uma ameaça a essa dominação e de que forma se dá: passando por vários testes árduos que quase terminam em morte. Do começo ao fim, novos poderes de maturidade são adquiridos, o autocontrole é conquistado e um “final feliz” é definido como o ponto no qual todos começaram a enxergar claramente como nunca tinham enxergado. E, como observa Booker, quando as pessoas passam a enxergar propriamente, conseguem seguir em frente e ganhar confiança e prosperidade.

Em contrapartida, essa trama também mostra como o grande e fatal erro dos personagens sombrios na história é sempre uma espécie de cegueira persistente e peculiar, uma distorção da visão, provocada pelo egocentrismo — exatamente o traço que define a primeira infância. O próprio título indica que a preocupação em O ladrão de raios é com a visão: alguém roubou a luz, o elemento essencial para que se possa enxergar claramente! E quem é o culpado? Um deus, é claro. Um deus da guerra. Um deus da dominação e das trevas.

Nesse sentido, compreendemos que as personagens sombrias da história são aquelas que nunca crescem, que nunca enxergam clara e completamente, que permanecem cegas e egocêntricas.

Os cinco estágios do crescimento

A trama “da água para o vinho” geralmente avança através de cinco estágios, planejados para descrever não apenas a jornada humana, mas também a jornada do mais rebelde dos traços humanos: a consciência.

Estágio 1: Desgraça inicial em casa e o “chamado”

Neste estágio, encontramos o jovem herói abandonado e vemos o mundo que ele habita, um mundo de desprezo e maus-tratos (pense nos Dursley de Harry Potter). A importância desse estágio não é apenas mostrar como a história começa, mas também chamar a atenção para a diferença entre o herói/heroína e as personagens sombrias a seu redor — no caso de Percy, seu padrasto, sua professora de matemática, a sra. Dodds, a menina mais desaforada da escola, que o atormenta e a Grover, além do próprio sistema escolar. Note que, em termos mitológicos, o/a humilde herói/heroína é também o “diamante bruto”, que é desconsiderado e tratado com desdém por parecer simplório e inferior.

No entanto, o que é importante aqui é que enquanto as personagens sombrias na história raramente mudam seu jeito de ser, o herói também não muda tanto quanto as personagens de outros tipos de história. Isso se deve ao fato de que o herói “da água para o vinho” já possui os traços que um dia o tornarão excepcional. Essas características estão apenas escondidas dentro dele, de certa forma invisíveis para as pessoas que o cercam, assim como para o próprio herói.

Outro aspecto crucial dessa fase é que nós enxergamos a desvantagem de não enxergar com clareza, de encontrar-se em um estado de consciência limitada: Percy aceita os rótulos da sociedade (acreditando que é fracassado e encrenqueiro); é explorado por seu desprezível padrasto (sente que não tem poder); acha que há algo de errado com ele, que é mau (tudo continua dando errado); e não sabe o que está se passando ou quem as pessoas realmente são (ele não tem o conhecimento ou a maturidade especial necessários para “enxergar” a realidade mais ampla).

Estágio 2: Mundo afora, sucesso inicial

Esse é um tipo de “estágio dos sonhos”, em que quase tudo dá certo no final, em contraste com o estágio seguinte, embora também dê ao herói tempo para começar a desenvolver algumas das habilidades das quais precisará mais para a frente. Em Guerra nas Estrelas, Luke aprende como utilizar a Força com Obi-Wan Kenobi. Em O ladrão de raios, Percy Jackson chega ao Acampamento Meio-Sangue e começa seu treinamento. Como todos os “órfãos” desse tipo de história, ele também está tentando descobrir quem é e de onde veio. Essa busca pela identidade é uma força poderosa e geralmente voltada para a paternidade do herói. Percy descobre que é filho de Poseidon, o Senhor dos Mares (o interessante é que o mar, em geral, é um símbolo do inconsciente e do feminino).

Durante esse estágio, o herói tenta crescer rápido demais: acaba se tornando convencido, arrogante e orgulhoso, e pensa que já é maduro antes de realmente o ser, tomando decisões importantes baseando-se nessa falsa presunção. O sucesso que ele encontra a essa altura é fundamentado em algum falso poder ou força externa (Aladim tinha seu gênio).

Muito em breve ele terá que se virar sozinho, mas por enquanto ainda não está enxergando clara e completamente. Seu relacionamento com os outros é sofrível: faz inimigos facilmente e não completa suas cruciais lições, tentando queimar etapas na impaciência de provar-se capaz — um traço que revela ao perspicaz leitor quanto ele ainda está cru, apesar de agora ser capaz de falar de forma convincente e cumprir o que promete.

Estágio 3: Crise central

De repente, tudo começa a dar errado. O herói é lançado ao desespero, que sua ousadia e suas altas expectativas só fazem piorar; ele experimenta um encontro com a morte, simbólico ou não (E.T. “morre”; Frodo cai em um estado de adormecimento cadavérico; Cedrico Diggory é assassinado diante de Harry enquanto este é simbolicamente crucificado). Esse estágio representa o perigo de descobrir (ou começar a descobrir) a verdadeira identidade de alguém: como foi dito, tornar-se alguém é sempre visto como um crime contra as massas, um ato de rebeldia contra a ordem estabelecida.

E a “punição” não tarda a vir.

Percy é lançado em meio a uma guerra entre deuses petulantes e precisa enfrentar uma jornada quase suicida para a qual não está nem um pouco preparado. Enfrenta várias mortes simbólicas e escapa por pouco de de fato morrer, como no confronto com a Mãe de Monstros, Equidna.

Riordan desenvolve cuidadosamente a evolução psicológica de seu jovem protagonista: para Percy, a única maneira de sobreviver é ter fé em si próprio, ou melhor, no “novo eu”, na identidade que ele recentemente descobriu ter. Essa compreensão repentina de que ele, de fato, tem algum poder inato, de que é realmente um semideus, ocorre de forma bem significativa em um local muito alto, o Portal em Arco — de onde ele consegue enxergar em todas as direções.

Estágio 4: Independência e provação final

O herói sobrevive à crise central, tendo encarado a “morte” e ressurgido modificado. Esse é o teste final pelo qual sua transformação em seu novo eu ocorrerá, embora esse novo eu ainda tenha que ser testado em um confronto culminante com a personagem mais sombria da história.

Em todos os estágios anteriores, Percy vinha descobrindo a importância de enxergar com clareza. Isso não apenas envolve adquirir uma melhor compreensão do que move seus dois companheiros, mas também desvendar os disfarces dos monstros. Com a revelação de cada nova ameaça, ele compreende a suposta identidade do monstro com mais rapidez do que antes. Ele está crescendo.

E isso, é claro, faz dele uma ameaça maior ainda.

Percy, agora, está mais independente. Assim como Aladim após sua princesa ter sido sequestrada, assim como Harry no cemitério, Percy deve andar com as próprias pernas e dominar os próprios poderes. Para isso, precisa “enxergar-se” com clareza, e não apenas enxergar os outros, mas também conhecer as próprias forças e fraquezas.

Estágio 5: União, conclusão e realização final

Em uma série, só se chega ao estágio final no último livro (a menos que a “conclusão” de um deva ser dramaticamente transformada no início do volume seguinte). Não apenas cada livro de uma série pode seguir a trama “da água para o vinho”, como também a série inteira. Nesse sentido, Harry Potter e o cálice de fogo representa a crise central da história, e é por isso que Harry é isolado de todos os outros no labirinto e tem um encontro muito real com a morte: a sua própria e a de Cedrico (isso sem mencionar os “fantasmas” dos pais e a locação em um cemitério).

Nesse estágio, em O ladrão de raios, Percy já demonstra ser mais ele próprio e está enxergando com ainda mais clareza. Ele se revoltou contra as restrições e os rótulos limitadores que lhe tinham sido impostos e agora está pronto para assumir a responsabilidade por suas atitudes.

No entanto, isso não significa que todo mundo esteja feliz com tal situação.

Afinal, ele fez o que os deuses não conseguiam fazer: resolveu um conflito perigoso ao não se deixar iludir por trapaças, truques e falsos disfarces. Em outras palavras, Percy botou pra quebrar.

Rito de passagem

Então, o que temos em O ladrão de raios é a jornada de um rebelde, a jornada rumo à consciência e à percepção, uma jornada de alguém que ousa tornar-se ele mesmo e cumprir seu destino.

Mas, como vimos, esse processo de adquirir consciência, de enxergar com clareza, é perigoso, uma vez que é um desafio para a ordem estabelecida e os poderes que existem. No entanto, todos passam por isso. E, ao passarem, cometem o “crime” mais antigo que existe: tentam ser um indivíduo.

Talvez esta seja a mais antiga das batalhas: o conflito de gerações, refletido nos primeiros mitos gregos, que contam como os olimpianos derrubaram seus deuses mais velhos, os titãs, antes de guerrearem com a humanidade, os “filhos” deles, tentando mantê-los na escuridão — uma escuridão da qual o maior rebelde de todos, Prometeu, os libertou ao roubar o fogo do Monte Olimpo e entregá-lo à raça humana (ato pelo qual foi barbaramente punido por Zeus).

Assim como os deuses, os pais — geralmente com as melhores das intenções — tentam instintivamente evitar que seus filhos cresçam, pois elevar a consciência é sempre um desafio para eles; um tapa na cara, uma rejeição.

Mas todos os filhos crescem. Porque todos os filhos são rebeldes, como Percy Jackson.

Eles nascem trazendo em si a semente da rebeldia, como Booker esclarece ao observar que os jovens heróis e heroínas de tramas “da água para o vinho” são muito diferentes no final da história, se comparados a como começaram:

O que aconteceu é que eles enfim revelaram ou desenvolveram o que estava potencialmente dentro deles o tempo todo. Amadureceram. Cresceram. Perceberam plenamente tudo o que havia neles. No melhor dos sentidos, tornaram-se eles próprios.

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O australiano Paul Collins é mais conhecido por suas séries infantojuvenis de fantasia e ficção científica, como The Jelindel Chronicles, The Earthborn Wars, The Quentaris Chronicles e The World of Grrym, escrito em colaboração com Danny Willis. A série que publicou mais recentemente chama-se The Maximus Black Files. Atualmente, é coordenador editorial da Ford Street Publishing e administra a agência de oradores Creative Net. Para mais informações, visite www.paulcollins.com.au.


Que tal ser uma das
Caçadoras de Ártemis?

Carolyn MacCullough

É uma oferta tentadora: siga-me, e viverá para sempre. Mas, como explica Carolyn MacCullough, tornar-se uma Caçadora de Ártemis é uma bênção em termos. Antes que você decida fazer o juramento, é melhor ler o que ela tem a dizer.

Se nos fosse dada a opção da juventude eterna, acredito que nove em cada dez mulheres optariam por isso. Afinal, a Olay, a Revlon e a Lancôme, entre outras empresas, gastam milhares de dólares em campanhas publicitárias tentando nos convencer de que podemos adquiri-la em um pequeno frasco. Nossa sociedade praticamente trata a juventude como um fetiche, almejando a pele lisa, a exuberância infinita e a energia efervescente que parece gotejar apenas dos poros dos muito jovens. A maioria das mulheres esforça-se para preservar a juventude mesmo nos menores detalhes, por mais que nos preparemos para a ideia de envelhecer bem.

E se alguém lhe fizesse uma oferta irrecusável? Uma oferta que parecesse boa demais para ser verdade (como é a maioria dessas ofertas)? E se a própria Ártemis, a extraordinária deusa grega (também conhecida como Diana, caso você seja romano), senhora da caça, deusa da lua, defensora de tudo o que é selvagem e livre, descesse das preciosas elevações do Monte Olimpo e lhe fizesse uma proposta?

Primeiro, apenas mulheres podem participar (rapazes, lamento!). Meninas, a oferta irrecusável que Ártemis concederá a vocês é a juventude eterna. Sim, juventude eterna — algo que as pessoas buscam há séculos. Não precisa ter medo do ataque furioso das rugas, dos primeiros fios de cabelo grisalho ou de uma diminuição geral do vigor e da energia esfuziante (duas coisas que parecem verdadeiramente essenciais para uma vida produtiva, mesmo que a maioria de nós não consiga definir de prontidão o que é “energia esfuziante”). Você nunca será vítima de artrite, perda de memória ou de qualquer outra dessas facetas do envelhecimento, que variam desde uma simples irritação até a debilitação total.

Certo, talvez seja um pouco cedo demais para você se preocupar com tudo isso. Sua pele é lisa, e, quanto ao cabelo grisalho, quem vive resmungando disso é sua mãe e não você. Mas uma pele eternamente firme e um cabelo brilhante não são os únicos benefícios dessa oferta. Considere também que você estará livre de todas as responsabilidades da rotina diária. Você vai adquirir a capacidade de correr incansavelmente e a oportunidade de andar com uma deusa e suas amigas Caçadoras pelos quatro cantos do mundo. Você se tornará parte de uma constante irmandade, o apogeu máximo do poder feminino. Nunca terá preocupações como: sua melhor amiga se mudar para outro bairro ou cidade, não ter com quem almoçar na escola ou ainda tentar descobrir se seus amigos são amigos de verdade. Você também nunca terá que passar por aquela “crise de autoconfiança” contra a qual todos vivem alertando as adolescentes. Além disso, nenhum homem jamais, jamais vai lhe dizer o que fazer, falar ou pensar, ou, mais exatamente, o que não fazer, falar ou pensar.

Basta proferir as palavras: “Eu me comprometo com a deusa Ártemis. Dou as costas à companhia de homens, aceito a virgindade eterna e me junto à Caçada.”

Sim, você ouviu bem. Virgindade eterna e nada de homens. De jeito nenhum.

E é aí que mora o perigo (não venham dizer que eu não avisei). Em vez de viver para sempre em um eterno verão, com plena liberdade para fazer tudo o que quiser, você deve renegar qualquer forma de contato com homens. E quando digo qualquer contato, é qualquer contato mesmo, e não apenas o contato da persuasão romântica. Mas vamos falar sobre o tipo de persuasão romântica primeiro.

Esqueça os primeiros encontros. Chega de prendo o cabelo ou deixo solto, que sapatos eu uso, essa roupa está boa? Chega de sentir friozinho na barriga e aquela agonia de: Será que ele vai me beijar agora? Devo beijá-lo primeiro? Ah, espero que ele me beije mesmo! Não há necessidade de ter aquelas longas conversas ao telefone com sua melhor amiga sobre como ele, de fato, olhou para você hoje ou tocou sua mão talvez por acidente, mas talvez não, e como você pensou por três segundos que ele estava sorrindo em sua direção, e você sabe que ele estava sorrindo porque você olhou para trás (disfarçadamente) e se certificou de que não havia ninguém à outra mesa para quem ele pudesse sorrir. Não há necessidade de nada disso, porque quando você é uma das virgens de Ártemis, você é realmente apenas isso: uma virgem. Para sempre. Ártemis era a deusa da virgindade, e embora Atena também fosse uma deusa virgem, era mais conhecida por ser a deusa da sabedoria. Não se esqueça, Atena saiu da cabeça do pai, Zeus, já adulta e é sempre retratada como uma mulher séria, enquanto Ártemis é retratada como uma garota eternamente jovem e despreocupada. A mitologia grega nos conta que Ártemis optou por permanecer virgem em uma idade muito precoce (algumas versões apontam que tal escolha se deu aos três anos). Ártemis também pediu um arco e flechas de prata ao pai, Zeus, e a ela foram concedidos tais desejos.

Certo, então vamos dizer que você esteja pensando “até aí, tudo bem”. Afinal, você está cansada dos garotos. Quem precisa deles? Eles nunca ligam quando dizem que vão ligar, e quando de fato ligam, só querem falar sobre coisas muito chatas; você não gosta de nenhum dos amigos idiotas deles, e às vezes não sabe nem ao certo se gosta deles. Principalmente quando ficam muito tempo sem cortar o cabelo ou vestem a mesma camiseta pelo menos três vezes na mesma semana. Além do mais, suas melhores amigas entendem perfeitamente tudo que você está vivendo, às vezes até sem você precisar explicar nada. Então, sem problemas nessa parte da proposta.

Mas considere que o contrato é bastante rígido. Quando Ártemis diz que não se deve ter contato com homens, o aviso é sério. Isso inclui seu pai, irmãos, primos e amigos. Chega de pai e filha dançarem juntos ou dessa história de os dois prepararem o café da manhã enquanto o resto da família está dormindo. Chega de ver TV com seus irmãos e brigar, de brincadeira, para ver quem fica com o controle remoto. Chega de jogar bola no parque com os garotos. (Só para constar, eu nunca joguei bola em um parque ou em qualquer outro lugar, mas caso optasse um dia por fazer isso, talvez fosse divertido jogar bola com um ou dois garotos.) Em vez disso, você tem que deixar sua família e começar uma vida novinha em folha com suas irmãs adotivas, suas colegas Caçadoras.

Não está achando tão fácil agora, não é mesmo? Lembre-se de que, em A maldição do titã, Bianca se vê diante dessa escolha. Ártemis chega a mencionar que Bianca pode ver o irmão de vez em quando, mas também afirma muito claramente que, se ela fizer o juramento, terá uma nova família a partir daquele momento. Bianca por fim faz o juramento e se torna uma das virgens de Ártemis, mas essa escolha terá algumas consequências inesperadas que voltarão para assombrá-la.

E daí?, você diria. Ainda assim você topa. Seu pai é mesmo muito rígido e seus irmãos (caso você tenha algum) são muito irritantes e provavelmente nem sequer perceberiam que você saiu de casa. Certo, mas vamos examinar Ártemis um pouco mais de perto para ver no que você estaria se metendo se aderisse à eterna juventude. Ártemis, como retratada em A maldição do titã, é uma comandante rigorosa, porém justa, disposta a percorrer grandes distâncias para proteger suas virgens. Além do mais, é uma mulher de extrema força e convicção, como se vê quando, de forma admirável, carrega o fardo de Atlas nos próprios ombros. E a versão que Riordan faz dela se alinha aos mitos e lendas gregos mais tradicionais.

Ainda assim, embora a Ártemis de Riordan aparente ser a melhor irmã mais velha que uma garota poderia querer — arrojada, corajosa, cheia de vitalidade —, a Ártemis dos mitos gregos tinha um lado mais rude. Na verdade, ela quase sempre possui uma natureza contraditória e de uma inclemência cruel. Embora fosse geralmente conhecida como a protetora dos inocentes, existem diversos mitos perturbadores que a retratam como adepta de vinganças rápidas e brutais.

Um desses mitos diz respeito a Níobe, rainha de Tebas. Níobe deu à luz sete filhos e sete filhas, e, em um instante de insolência, gabou-se de sua fertilidade em uma cerimônia que homenageava a deusa Leto. Grande erro. Acontece que Leto era mãe de ninguém menos do que Ártemis e Apolo. Além disso, era em geral considerada a deusa da fertilidade, e aparentemente Níobe não conseguiu se conter diante de tal ironia. Achou-se superior à deusa, pois tivera catorze filhos, e Leto, meros dois.

Nunca é uma boa ideia diminuir os feitos de uma deusa, muito menos em uma cerimônia em homenagem a ela. Além do mais, Leto era filha de titãs, que não são exatamente conhecidos por sua natureza complacente. Como era esperado, Leto não recebe bem o insulto e pede que seus filhos reais se vinguem de Níobe. Enquanto Apolo matou os sete filhos da rainha de Tebas, Ártemis, especialista em caça, disparou suas flechas mortais, matando as sete filhas.

Em algumas versões, afirma-se que Níobe segurou a filha mais nova nos braços, implorando que a deusa poupasse a vida da criança. Para infelicidade dela, a flecha de Ártemis já tinha sido disparada do arco. Afirma-se também que o marido de Níobe, Anfião, ou cometeu suicídio quando soube das mortes das crianças ou foi assassinado por Apolo. Níobe fugiu, desesperada, para o Monte Sípilo (localizado na atual Turquia, na Ásia Menor), onde chorou tanto que acabou se transformando em pedra (em algumas versões, foi transformada pela própria Ártemis).

Talvez você se pergunte onde Níobe estava com a cabeça para insultar Leto, uma deusa, amante de Zeus e mãe de filhos tão poderosos. É verdade que naquela época havia regras específicas com relação à honra e ao direito de se vingar caso ela fosse ferida. Então, vamos deixar Níobe de lado por enquanto e analisar Ifigênia, a filha desventurada de Agamenon. Após matar um veado em um dos bosques sagrados de Ártemis (e também, em algumas versões, gabar-se de ser o melhor dos caçadores), Agamenon, rei de Argos (ou de Micenas, dependendo de com quem você está falando), evoca a fúria de Ártemis. A situação se complica quando Agamenon quer velejar para Troia com seu exército. Ártemis recusa-se a permitir que o vento impulsione as velas do rei... a menos que ele sacrifique sua filha mais nova, Ifigênia, como preço por ter matado um dos veados da deusa (e se dizer melhor caçador). Em alguns registros, Agamenon completa o sacrifício e Ifigênia é morta, enquanto em outros, Ártemis volta atrás no último instante. Nesses últimos, a deusa encoraja a menina a ir para a ilha de Crimeia, onde ela se torna uma sacerdotisa do templo de Ártemis. Isso pode parecer um destino mais agradável, mas, em geral, o templo permitia o sacrifício de forasteiros. Não é exatamente o tipo de carreira que se deseja.

Ainda não se convenceu de que Ártemis talvez não seja a mais estável e ponderada das chefes? E quanto ao destino de uma das ninfas mais famosas de Ártemis, Calisto? À semelhança da Zoë Doce-Amarga de Riordan, Calisto era uma das ninfas prediletas de Ártemis; seguia seu voto de castidade e várias vezes foi caçar com a deusa. Infelizmente, porém, ela chamou a atenção de Zeus, o próprio pai de Ártemis, e uma vez que o interesse de Zeus é despertado, não há muito o que se possa fazer. A mitologia grega é repleta de contos sobre os galanteios de Zeus e as incríveis distâncias que ele percorre a fim de seduzir seu objeto de interesse.

Embora algumas lendas relatem Calisto recebendo Zeus de braços abertos, a maioria das versões afirma que o deus recorre a uma trapaça: consciente de que Calisto era completamente leal tanto a Ártemis quanto ao voto de castidade, Zeus surge para a ninfa como a própria deusa, quando Calisto está repousando sob uma árvore. Assim que Calisto abaixa a guarda, Zeus abandona o disfarce e usa a força. Para piorar as coisas, a ninfa acaba engravidando. Temendo a lendária fúria de Ártemis, Calisto tenta esconder sua condição, porém não consegue mais fazê-lo quando, certa manhã, todas as ninfas se banham juntas em uma clareira no meio da floresta. Furiosa por Calisto ter traído o juramento (embora, segundo a maioria dos relatos, Calisto não o tenha feito intencionalmente), Ártemis a transforma em um urso, que então ela própria caça e mata. Em outras versões, Calisto ainda tem permissão para dar à luz seu filho, Arcas, que por sua vez enfrenta a mãe transformada em urso e a mata. Ainda em outras versões, Ártemis está prestes a matar Calisto quando Zeus interfere e a coloca no céu, de onde ela pode ser vista como a constelação da Ursa Maior. (Curiosamente, na história de Riordan é a própria Ártemis quem leva o crédito por colocar Calisto no céu.)

A propósito, Calisto não é exceção à regra. Maera, filha de Proetus, era outra ninfa de Ártemis que teve o azar de atrair o olhar errante de Zeus. Estivesse ela disposta ou não (acredito que não), Zeus a seduziu. Enfurecida por sua ninfa ter “quebrado” o juramento, Ártemis acaba matando-a.

Então, talvez essa possibilidade de eterna juventude e liberdade não esteja parecendo mais tão atraente. Mas, e se você fosse uma garota vivendo na Grécia Antiga, nos lugares frequentados pelos deuses? As mulheres na Grécia Antiga, como é de se esperar, tinham perspectivas, expectativas e regras de vida muito diferentes. A sociedade (leia-se: os homens) acreditava que as mulheres eram criaturas frágeis que precisavam ser protegidas de si mesmas e também do restante do mundo. Tradicionalmente, designava-se para cada mulher um guardião, geralmente o pai ou um irmão, embora em alguns casos fosse outro parente do sexo masculino. O dever desse guardião, ou kyrios, era arrumar um esposo para sua protegida, geralmente no início da adolescência dela. O guardião fornecia o dote e tratava do casamento; as garotas tinham muito pouco ou nada a dizer a respeito. Amar ou até mesmo gostar não era um fator decisivo no casamento.

Uma vez casada, a principal função da esposa era reproduzir a espécie. E reproduzir e reproduzir. Ah, e ela também tinha que fiar, cozinhar e limpar. Em suma, tinha que dar conta dos afazeres domésticos. Mas era aí que sua área de influência começava e terminava. Uma esposa grega raramente tinha permissão de sair de casa, exceto para participar de festivais e funerais, onde a presença feminina era permitida, e mesmo assim nunca deveria ir desacompanhada (leia-se: de um homem, para sua proteção). Uma crença popular da época era a de que esposa boa era esposa invisível. Quanto menos se comentava sobre uma mulher casada, mais decente ela era considerada. E isso se estendia até para dentro da própria casa. Se o marido levasse convidados em casa, a esposa tinha que ficar longe deles.

Nessa sociedade, as possibilidades para as mulheres que não tinham como destino o casamento eram ainda mais desanimadoras. As que não eram “casáveis” quase sempre eram obrigadas a se tornar escravas. Se tivessem um pouco mais de sorte, tornavam-se cortesãs ou concubinas. Uma concubina era a ama da própria casa, mas, assim como a cortesã, sua principal função era entreter os homens. Sua vida e seu sustento dependiam de como elas conseguissem lidar satisfatoriamente com isso. Na verdade, todas essas ocupações — esposa, escrava, cortesã ou concubina — envolviam algum nível de dependência da boa vontade dos homens, o que é estranho às jovens que vivem nas sociedades democráticas de hoje. Dada a situação arriscada das mulheres na Grécia Antiga, a proposta de Ártemis parecia mais atraente. Talvez, mais do que todas as deusas, ela represente tudo o que as gregas tradicionais não tinham permissão de ser: livres e indomadas. Na verdade, Ártemis é um pouco paradoxal. Por um lado, seu comprometimento com a pureza deve ter sido amplamente admirado pelos gregos antigos; no entanto, ela também é indomável e não deve satisfação a homem algum. É efetivamente a eterna criança selvagem que nunca precisa crescer e assumir as responsabilidades que a fase adulta implica, não precisando se comprometer ou se conformar com qualquer padrão da sociedade. Não é à toa que é associada à lua — completamente intocável, eternamente inatingível. Se fosse oferecida às mulheres da Grécia Antiga a opção de se tornarem virgens imortais de Ártemis, livres eternamente das algemas do casamento ou da escravidão, acho que muitas delas teriam agarrado essa oportunidade com unhas e dentes.

As mulheres da Grécia Antiga nem sequer faziam ideia das liberdades — então consideradas indiscutíveis — desfrutadas hoje. Pense no seguinte: quando foi a última vez que você questionou seu direito, sua capacidade de caminhar pela rua em plena luz do dia sozinha ou com amigos? Consegue ao menos imaginar um mundo onde você não tivesse a liberdade de escolher os próprios amigos, quais disciplinas estudar na escola, se quer ou não jogar futebol, tentar uma vaga na equipe de natação ou no grupo de teatro? Existe uma infinidade de escolhas atualmente, e cada uma delas representa um conjunto de excelentes oportunidades e possibilidades.

Tanto a Ártemis de Riordan quanto a do mito grego representam ideais de liberdade e independência, de força e coragem gloriosas. E todas essas qualidades são admiráveis, dignas de serem cultivadas em nossa própria vida. Deveríamos viver segundo os princípios de Ártemis e de tudo o que ela pregava. (Bem, deveríamos viver segundo a maioria daqueles princípios. Talvez apenas pular a parte do sacrifício humano.)

Se a mim fosse dada essa opção de eterna liberdade, acho que eu teria que recusar. Não porque possua um desejo incontrolável de chutar uma bola de futebol pelo campo com um ou dois amigos do sexo masculino, mas porque as exigências do juramento são um pouco extremas demais para mim. E mesmo que aqueles sinais de envelhecimento estejam bem distantes, aconselho você a seguir meu exemplo — e quando a hora chegar, bote fé em seus cremes Olay, Lancôme e Revlon.

Eles custam bem menos.

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Carolyn MacCullough é autora de cinco romances infantojuvenis. Os dois últimos são Once a Witch e Almost a Witch, que compõem uma série paranormal com bruxas, feitiços e viagens no tempo nos dias de hoje. Carolyn leciona escrita criativa na Gotham Writers e mora em Nova York com o marido e dois filhos. Mais informações sobre a autora e seus livros podem ser encontradas em www.carolynmaccullough.com.


Dioniso: Quem o
deixou administrar um
acampamento?

Ellen Steiber

Há muito mais coisas relacionadas a Dioniso do que uma camisa havaiana com estampa de tigre e uma latinha de Coca diet. Como explica Ellen Steiber, o diretor do Acampamento Meio-Sangue tem uma longa e complexa história nos mitos gregos. O deus da insanidade e da libertinagem é também deus da alegria e da farra. Isso significa que ele não é tão mau quanto Percy pensa? Deixarei que vocês tirem suas próprias conclusões.

Seria possível uma escolha mais bizarra para diretor do Acampamento Meio-Sangue do que Dioniso?

Rick Riordan tem o dom de brincar com os mitos gregos. Ele se deleita usando os deuses e suas histórias, dando-lhes apenas alguns retoques para torná-los verossímeis em nosso mundo, sem que percam, contudo, a essência das antigas crenças. Seu Dioniso, só por garantia chamado de sr. D (afinal, nomes são coisas poderosas), pega emprestada a imagem do deus grego do vinho e da farra para transformar-se em um retrato contemporâneo perfeitamente aceitável: se você passa a maior parte do tempo bebendo e festejando como o sr. D, há grandes riscos de, ao chegar à meia-idade, também estar com sobrepeso, malvestido e sem dar a mínima para nada, pensando apenas no próximo drinque que vai tomar. Você certamente não ficaria entusiasmado com a ideia de ter um bando de fedelhos a sua volta. E provavelmente não seria o guardião mais responsável.

Certamente essa é a impressão que Percy Jackson tem do sr. D assim que chega ao Acampamento Meio-Sangue. Mas as primeiras e até mesmo as quintas impressões não dão conta do recado quando se lida com deuses gregos, que são divindades complexas. A maioria deles é polivalente. Dioniso é não apenas o deus do vinho e da vinha, mas também o deus da fertilidade, que controla todas as coisas que crescem. (Dá para ver essa característica do sr. D nas plantações de morango, que crescem tão rápido e com tanta facilidade que o Acampamento Meio-Sangue consegue pagar todas as suas contas vendendo as frutas para os restaurantes de Nova York.) Ele também é o deus da loucura, da farra e do teatro, bem como da alegria e do êxtase divino. Nos quatro primeiros livros, Riordan descreve algumas dessas facetas e sugere outras. Eu me peguei imaginando até que ponto o sr. D era, efetivamente, parte do que os gregos acreditavam sobre Dioniso. E o que as histórias sobre esse deus revelam não apenas sobre o sr. D, mas também sobre o Acampamento Meio-Sangue.

Percy não fica lá muito impressionado quando é apresentado ao diretor do acampamento. O sr. D é baixo, atarracado e costuma vestir camisas havaianas berrantes ou moletons cafonas com estampa de tigre ou onça. Graças a Gabe Cheiroso, o repugnante marido de sua mãe, Percy percebe imediatamente que o álcool é um velho conhecido do sr. D. Ele parece um bêbado de meia-idade em rápida decadência. O que Percy não assimila de imediato é que está diante de um deus. Ele não compreende por que Grover fica tão assustado até o diretor lhe dar um vislumbre de sua verdadeira natureza:

Ele se virou para olhar diretamente para mim, e vi uma espécie de fogo arroxeado nos seus olhos, um indício de que aquele homenzinho reclamão e gorducho só estava me mostrando uma minúscula parte da sua verdadeira natureza. Tive visões de vinhas estrangulando descrentes até a morte, guerreiros bêbados insanos com o entusiasmo da batalha, marinheiros gritando enquanto suas mãos se transformavam em nadadeiras, os rostos se alongando em focinhos de golfinho. Eu sabia que, se o pressionasse, o sr. D iria me mostrar coisas piores. Iria plantar uma doença no meu cérebro que me levaria a usar camisa de força pelo resto da vida.

Essa é uma descrição bem precisa de alguns dos métodos preferidos de Dioniso para punir quem o enfurece. Outros desses métodos seriam armar ciladas para pobres mortais com a germinação repentina de vinhas de uva e hera, transformá-los em animais e enlouquecê-los completamente. As histórias gregas de Dioniso em geral retratam um deus assustadoramente cruel e vingativo, embora as imagens dele quase sempre mostrem um belo jovem cercado por parreiras ou um belo homem com cabelo preto cacheado e uma volumosa barba. Na verdade, essa imagem é tão consistente que é facílimo identificar Dioniso nos vasos e urnas da Grécia Antiga que ainda hoje sobrevivem. O Dioniso clássico em nada se parece com o atarracado e carrancudo sr. D de Riordan. Acho que existem algumas explicações para que a versão de Riordan seja tão pouco atraente. A primeira remonta aos tempos dos mitos. Assim como o pai, Zeus, Dioniso era um mestre do disfarce e costumava aparecer para os mortais sob outras formas. Sabia-se que ele surgia como carneiro, leão ou até mesmo uma garotinha; era fácil menosprezá-lo. Também suspeito de que a encarnação dele como sr. D seja uma espécie de alerta da parte de Riordan: ninguém que conhecesse aquele desagradável homenzinho poderia algum dia achar uma boa ideia o hábito de beber.

Você pode pensar que o deus da alegria e da farra iria, pelo menos, garantir que o acampamento fosse divertido. Mas não. Além de sua aparência desleixada, o sr. D também tem um problema de postura. Ele é sensível e mal-humorado e desdenha tanto dos humanos quanto dos meios-sangues. Embora obviamente saiba os nomes dos campistas, faz questão de fingir que não se lembra deles. Uma das brincadeiras corriqueiras da série é o sr. D se referir a Percy como Peter Johnson. Quíron explica que o sr. D é infeliz porque “odeia o emprego”. Na verdade, foi Zeus quem ordenou que Dioniso administrasse o acampamento, como forma de punição por ele ter perseguido uma ninfa proibida. Dioniso não só fica preso à Terra por um século — embora sua sentença seja suspensa em O último olimpiano, como recompensa por sua coragem —, como também é proibido de beber seu tão estimado vinho. Sua missão é proteger os jovens heróis. E ele não está nem um pouco contente com isso.

Aparentemente, escolher o sr. D para administrar o acampamento é tão ridículo que chega a ser cômico — talvez seja até uma forma astuciosa de Riordan reconhecer o fato de que às vezes os adultos incumbidos de cuidar de crianças podem ser os mais inadequados para tal função. Quase todos tivemos professores incapazes, nocivos e até mesmo, de vez em quando, totalmente assustadores. O sr. D parece reunir tudo isso em uma única pessoa.

Logo de cara, Percy não gosta do diretor reclamão do acampamento, mas será que podemos culpá-lo por isso? Embora o sr. D deva manter os semideuses em segurança, parece não se importar com nenhum deles e, sem dúvida, não se dá o trabalho de ajudá-los ou treiná-los, deixando todos os detalhes entediantes a cargo do centauro Quíron. No terceiro livro, A maldição do titã, o sr. D chega a confessar que não gosta de heróis. Ele se casa com Ariadne após o herói Teseu tê-la abandonado, e por isso guarda rancor desde então. Considera os heróis ingratos e egoístas, seres que usam e traem os outros. Para Percy (e para mim), a descrição dos heróis feita pelo sr. D soa mais como uma descrição da maioria dos deuses. O que Riordan não nos conta, no entanto, é que Dioniso teve lá seus problemas com o Perseu original, o herói que derrotou as Górgonas e a Medusa. Segundo O grande livro dos mitos gregos, de Robert Graves, Perseu lutou com Dioniso quando o deus do vinho foi até Argos, matando muitos de seus seguidores. Dioniso se vingou enlouquecendo as mulheres de Argos, a tal ponto que elas começaram a devorar os próprios filhos. Perseu, enfim, teve o bom senso de acalmar o deus construindo um grande templo em sua homenagem. Assim, além de não gostar de heróis, Dioniso talvez não gostasse de Percy simplesmente por causa de seu nome.

Temperamental e rabugento, o sr. D é o primeiro deus confrontado diretamente por Percy, e não posso deixar de pensar na importância disso. O sr. D desafia as expectativas. Ele não é belo nem sequer popular. É a personificação da indiferença divina — um deus que mal percebe que os mortais existem. Percy o conhece em um momento em que não acredita em deuses, mas mesmo assim ali está o sr. D, inegavelmente real e assustador. O deus do vinho é uma evidência irrefutável das novas verdades que Percy deve aceitar: os deuses gregos não apenas são reais e interferem na vida dos mortais, como também um deles é seu pai. Pouco depois de conhecer o sr. D, um confuso Percy pergunta a Quíron:

— Quem... quem sou eu?

— Quem é você? — [Quíron] ficou pensativo. — Bem, essa é a pergunta que todos queremos ver respondida, não é?

Exatamente. Os deuses querem saber porque precisam evitar que uma profecia se realize, e Percy precisa saber por que o que ele descobre no Acampamento Meio-Sangue é a chave para sua identidade. Na verdade, foi para responder a essa pergunta que Percy foi para o acampamento. E quanto mais reflito sobre os mitos, mais acredito que, de todos os deuses, Dioniso é a escolha perfeita para administrar o local onde perguntas como a de Percy são respondidas.

O que Dioniso fez antes de se tornar diretor do
Acampamento Meio-Sangue

Para entender realmente o que Riordan faz com Dioniso, vale a pena voltar nossos olhos para os mitos que envolvem o deus do vinho. A versão mais popular de sua história começa com sua mãe, Sêmele, que não era deusa, mas princesa; era filha de Cadmo, rei de Tebas. Zeus se apaixona pela jovem princesa e jura pelo rio Estige que fará qualquer coisa que ela pedir. Mas apaixonar-se por Zeus nunca funcionou muito bem para os mortais. Quando descobriu o romance, Hera, esposa de Zeus, se disfarçou de idosa e convenceu a princesa a pedir ao deus uma prova de seu amor. Ele deveria se mostrar a ela como tinha se mostrado a Hera: na sua forma divina, sem disfarce. Sabendo que nenhum mortal poderia sobreviver a tal visão, Zeus implorou à garota que lhe pedisse outra coisa. Sêmele, grávida de seis meses e querendo saber a verdade sobre o pai de seu filho, recusa-se a mudar seu pedido. Compelido pelo próprio juramento, Zeus se mostra em sua verdadeira forma, uma imensa e gloriosa visão reluzindo com trovões e raios. Suspeito de que isso seja como ver uma explosão nuclear de perto. Sêmele, segundo alguns relatos, fica tão apavorada que morre; segundo outros, é incinerada imediatamente. O ponto em que quase todas as versões do mito concordam é que imediatamente antes de Sêmele morrer, o deus consegue resgatar a criança que ela carregava no ventre. Zeus esconde o filho em gestação costurando-o na própria coxa e só desfaz os pontos quando Dioniso está pronto para nascer.

Um detalhe interessante sobre o nascimento de Dioniso é que, dos doze grandes deuses olimpianos, apenas ele tem uma mãe mortal. Dioniso, embora totalmente divino, é o único deus que começou a vida como meio-sangue. E isso confere a ele uma qualificação única para administrar o acampamento.

Acho justo dizer que Dioniso teve uma infância complicada. Segundo uma versão da história, Hera, não contente em destruir a mãe dele, ordenou aos titãs que pegassem a criança. O que aconteceu depois não foi apenas violento, mas gravemente repulsivo. Os titãs rasgaram o bebê em pedaços e então os ferveram em um caldeirão. Uma romãzeira nasceu na terra, bem no local onde o sangue da criança tinha caído, e Reia, avó14 de Dioniso, de alguma forma trouxe a criança de volta à vida.

Percebendo que o Olimpo não era o lugar mais seguro para a criança, Zeus deixou Dioniso sob os cuidados do rei Atamante e sua esposa, Ino, que era uma das irmãs de Sêmele. Eles esconderam o garoto nos aposentos das mulheres, onde ele vivia disfarçado como uma delas (o que pode esclarecer algumas descrições de Dioniso como um deus de aparência feminina).15 Esse plano funcionou até Hera descobrir e enlouquecer o rei e sua esposa. Louco, Atamante chegou a matar o filho mais velho, pensando que se tratava de um veado.

Zeus, então, coloca Hermes na jogada. Hermes disfarça Dioniso de filhote de carneiro e consegue levá-lo com segurança para os cuidados das cinco ninfas que viviam no Monte Nisa.

Elas se saem melhor como guardiãs, criando o pequeno deus em uma caverna e alimentando-o com mel. Para demonstrar sua gratidão, Zeus as transforma em estrelas e as chama de Híades. Essas são as estrelas que, segundo as crenças, trazem chuva quando estão próximas do horizonte. Exatamente como Edith Hamilton afirma em Mythology: Timeless Tales of Gods and Heroes:

Então o Deus da Vinha nasceu do fogo e foi criado pela chuva, o forte calor ardente que amadurece as uvas e a água que mantém as plantas vivas.

Dioniso consegue sobreviver à infância e aparentemente produz seu primeiro vinho no Monte Nisa. Segundo O grande livro dos mitos gregos, de Robert Graves, logo após Dioniso alcançar a idade adulta, Hera o reconhece como filho de Sêmele. Sem esquecer o rancor, Hera prontamente o enlouquece. E é nesse ponto que ele começa a vagar, acompanhado de seu tutor, Sileno, e um bando extremamente desordeiro de seguidores, que apavoram quase todos aqueles que encontram. Entre esses seguidores, estão sátiros e as temíveis Mênades, mulheres possuídas que vangloriam Dioniso e têm o péssimo hábito de se embebedar, e então desmembrar e devorar animais selvagens ou, eventualmente, um desventurado ser humano. Os seguidores de Dioniso também eram conhecidos por desmembrar e comer cabras e sátiros, possível razão pela qual o sr. D deixa Grover tão nervoso.

Dioniso viajou pelo Egito, pela Índia e por todo o Egeu, levando a vinha consigo e ensinando a fazer vinho. Na maioria desses lugares, era bem recebido e venerado, o que era claramente a abordagem mais segura com ele.

Mas nem todo mundo ficava animado ao receber um deus desordeiro. Dioniso retornou a sua cidade natal, Tebas, porque tinha ouvido falar que a mãe do rei, Agave, negara que ele fosse filho de Zeus. Humilharam-no ao dizer que ele não era um deus. E, para piorar, Penteu, o rei,16 jurou que decapitaria Dioniso se ele entrasse em Tebas. Dioniso e seus seguidores entraram na cidade mesmo assim, e Penteu ordenou que os algemassem. Mas o deus é, entre outras coisas, um mestre das ilusões, e Penteu, que já estava começando a perder o juízo, acabou algemando um touro. As Mênades escaparam dos guardas do rei e subiram dançando uma montanha, onde destroçaram um bezerro. Então a mãe e as irmãs de Penteu se juntaram às Mênades. Quando o rei tentou contê-las, as Mênades, lideradas por Agave, que era a própria mãe de Penteu, destroçaram o rei. Ela também havia sido contaminada pela insanidade das ilusões do deus do vinho e acreditou estar matando um leão quando, na verdade, estava assassinando o próprio filho. Como Percy descobre, os deuses tendem a levar qualquer contrariedade para o lado pessoal.

As tentativas de Penteu de proteger sua cidade da influência do deus do vinho eram compreensíveis, mas também inúteis. Qualquer um que saiba alguma coisa sobre os deuses gregos conclui que Penteu deveria ter sido mais esperto. Ainda assim, outros cometeram erros similares. Quando Dioniso, disfarçado de garota, convidou as três filhas do rei Mínias para se juntarem ao seu festival, elas recusaram, preferindo permanecer em casa e tecer a lã. Novamente, Dioniso evocou as ilusões que destruíam a mente: enlouqueceu as filhas de Mínias enchendo o quarto de fiar delas com feras ilusórias e transformando seus fios de lã em vinhas. Uma irmã, em desespero, ofereceu o próprio filho como sacrifício, e todas as três, em um frenesi induzido pelo vinho, acabaram destroçando o garoto e devorando-o.

Uma das histórias mais conhecidas a respeito de Dioniso, e fonte das visões que Percy tem quando conhece o sr. D, narra como um bando de velejadores confunde Dioniso com um jovem príncipe. Achando que seria um ótimo negócio pedir um resgate, eles o sequestram. Mas assim que o levam para bordo e tentam amarrá-lo, as cordas se rompem. Apenas o timoneiro percebe que eles capturaram um deus, e suplica para que seus companheiros de tripulação soltem o jovem. Ignorando-o, o capitão ordena que zarpem. Estranhamente, mesmo com o vento soprando com força, o barco não se move. Em vez disso, videiras começam a brotar, serpeando pelo cordame e pelas velas; heras cobrem os mastros; os remos se transformam em serpentes; e vinho tinto escorre pelo convés. A essa altura, o capitão percebe que há algo errado e ordena ao timoneiro que retorne à costa. Mas é tarde demais. Dioniso se transforma em um leão, e os apavorados marinheiros jogam-se ao mar — e todos, com exceção do timoneiro, são transformados em golfinhos.

Não dá para ler as histórias de Dioniso sem perceber alguns padrões. Uma é a maneira como a hera e as videiras tendem a brotar, emboscando aqueles que provocaram sua ira. Esse é um recurso que Riordan utiliza em A maldição do titã, quando o sr. D finalmente cede e decide ajudar Percy e seus amigos. Mas existem outras estruturas míticas, tais como a predileção de Dioniso por se transformar (ou transformar os outros) em feras selvagens, o que, creio eu, remete ao fato de que os humanos são animais. Apesar de civilizados, somos primatas, e certa selvageria primitiva perdura sob a moralidade e a sofisticação que adquirimos, uma selvageria que costuma vir à tona com a embriaguez. Fazemos tudo o que podemos para reprimi-la e controlá-la — motivo pelo qual toda civilização tem suas leis —, mas ela nunca desaparece por completo. Está presente nos índices de criminalidade e na sede por entretenimento violento. Nossa espécie adora assistir a espetáculos nos quais atores ou personagens animados se machucam e matam uns aos outros. Os gregos antigos acreditavam que tais espetáculos — para eles, peças de teatro — purificavam esses instintos. Assistir à representação da história de Dioniso supostamente seria uma catarse, algo que purificaria o público de seus próprios anseios violentos.

Outro padrão nos mitos de Dioniso é a utilização de ilusões avassaladoras. Embora o deus do vinho seja capaz de provocar terremotos, trovões e raios — todos reproduzidos em As Bacantes —, sua arma predileta é transformar a realidade das maneiras mais horrendas possíveis. Uma estrutura bem secundária gira em torno da necessidade que tem o deus de ser respeitado. Nos mitos, Dioniso, o último a se juntar aos deuses do Olimpo e o único deles a ter sangue parcialmente humano, vive insistindo para que os outros reconheçam sua divindade. Esse foi mais um aspecto que Riordan assimilou. O sr. D está sempre exigindo o devido respeito de Percy, algo que o garoto reluta em lhe dar.

O padrão mais dramático e perturbador nos mitos de Dioniso talvez seja aquele no qual os pais enlouquecem, destroçam e comem os próprios filhos. Esse tipo de insanidade em particular parece fazer eco aos terríveis eventos da própria infância de Dioniso: ser destroçado pelos titãs e, em seguida, ser vítima de toda a loucura provocada por Hera. De certo modo, isso não está tão longe da psicologia contemporânea, que diz que crianças que sofrem maus-tratos podem se tornar adultos perturbados. Mas também é nítido o poder destrutivo da bebida, quando a embriaguez se torna simplesmente tóxica. Conheço algumas pessoas que cresceram com pais alcoólatras, e, embora as crianças não tenham sido literalmente destroçadas, muitas delas passaram por uma espécie de retalhamento emocional, aprisionadas na loucura incontrolável que o alcoolismo traz. Quando a influência de Dioniso alcança seu pior nível, as pessoas perdem a sanidade. Até mesmo os poderosos instintos naturais de amar e proteger os filhos se dissolvem na bebida.

Quando chega ao Acampamento Meio-Sangue, Percy já viu bem de perto como o alcoolismo pode ser desagradável e insano. Gabe Cheiroso é um ser humano deplorável e um marido violento. Compreensivelmente, Percy, assim como os desgraçados mortais dos mitos, não quer ter nenhuma relação com o sr. D, e, do mesmo modo que esses mortais, ele o subestima.

Por sorte, quando Percy conhece Dioniso, o deus se encontra em uma espécie de provação divina, sem permissão de se entregar a seu amado vinho e fazendo de tudo para não voltar a despertar a fúria de Zeus. O sr. D é um Dioniso com restrições, uma condição altamente incomum para o deus que também é conhecido como Lysio, o libertador. Por mais sarcástico e imprestável que ele possa ser, esse é um Dioniso mais simpático e gentil do que aquele que vemos nos mitos. O fato de estar tentando agradar a Zeus pode ser a única razão pela qual Percy consegue aturá-lo.

Ou talvez haja uma desconhecida afinidade entre eles. As aventuras de Dioniso e Percy têm algo em comum. As histórias do deus podem até ter servido de inspiração para parte do que Percy tem que enfrentar. Assim como Percy, Dioniso fez a longa e difícil jornada até o Mundo Inferior para resgatar a mãe. E, assim como Percy, barganhou com Hades. Dioniso concorda em abrir mão daquilo que mais ama — a hera, as videiras e a murta — em favor de Sêmele. Ele acaba dando a murta para Hades em troca da vida da mãe. Com isso, consegue resgatá-la do Mundo Inferior e a leva ao Monte Olimpo. Ali, ele muda o nome dela para Tione, o que permite que ela permaneça entre os imortais sem que Hera volte a atacá-la.

A importância desse mito se deve a sua relação com um dos muitos aspectos de Dioniso. Ele é um deus da morte e do renascimento. E a história de ele ser destroçado, fervido e depois renascer? Muitos estudiosos acreditam que se trata de uma metáfora para o processo de produção do vinho, no qual as uvas são arrancadas da vinha, esmagadas e, em seguida, processadas e transformadas na bebida. Outros dizem que é uma metáfora para a própria videira: a poda após a colheita do outono deixa seu tronco inteiramente despido; mesmo assim, ela renasce a cada primavera, cobrindo-se de folhas verdes e cachos doces. Em ambos os casos, trata-se de uma estrutura básica encontrada em muitas mitologias, a crença na imortalidade da alma: algo é destruído, e dessa destruição nasce algo novo. A fênix, por exemplo, é uma criatura mitológica que personifica esse ciclo.

Quando Dioniso aparece

Por meio de Dioniso, os antigos gregos tomaram consciência de que os humanos não são criaturas totalmente racionais. Eles compreenderam que até mesmo a loucura desenfreada, desvairada, pode ser parte de nossa natureza, e reservaram um espaço sagrado, cerimonial para tais impulsos assustadores, canalizando-os para a adoração de um deus. Os ritos das Mênades, com suas danças insanas e seus sacrifícios sangrentos, não eram a única forma de venerar Dioniso. Toda primavera, quando as videiras começavam a retornar à vida, havia uma grande comemoração, um festival de cinco dias dedicado a esse deus. Apesar de toda a loucura que o acompanhava, Dioniso era amplamente adorado. Por séculos, foi o deus mais popular, o que talvez se explique por ele ser também o deus da alegria, coisa que em si é bem positiva. Para os gregos, a alegria era sagrada, um dom que só poderia ter origem divina. O festival anual de Dioniso — acreditava-se que o deus aparecia e participava todos os anos — era essencialmente uma grande festa onde todos eram bem-vindos. Ele era o mais democrático dos deuses. Qualquer um, até os pobres, podia participar de seus ritos. (Bem diferente do caso da deusa Deméter, por exemplo, cujos ritos só eram permitidos para um grupo seleto.)

Você pode considerar festas algo frívolo, mas foi justamente por Dioniso ser o deus das festas que ele teve condições de dar a Percy informações vitais em O último olimpiano. Embora Dioniso estivesse enterrado debaixo de cascalho, em uma mina de carvão abandonada, parte de sua consciência aparece em um barzinho onde está acontecendo uma festa de aniversário. Ele consegue chamar Percy e explicar-lhe que “onde quer que haja uma festa, minha presença é evocada. Por isso, posso existir em muitos lugares diferentes ao mesmo tempo”.

Apesar de o vinho sempre fazer parte dos festivais dionisíacos na Grécia Antiga, estes não eram ocasião para loucura ou desmembramento. Em vez disso, os festivais celebravam Dioniso como o deus do teatro, uma fonte de inspiração artística. Encenavam-se peças e acreditava-se que os dramaturgos, atores e até mesmo o público serviam ao deus participando desse evento sagrado. Além disso, acreditava-se que, sem Dioniso, todas as músicas sagradas — todas as formas de louvar os deuses e falar com eles — seriam esquecidas.

O espírito dionisíaco em seu pior estado era cruel, incontrolavelmente violento e insano. No melhor, inspirava arte, alegria, celebração e reverência pela natureza e pela beleza do que é selvagem. Dioniso era a energia vital: desordeiro, caótico e irreprimível. Na verdade, uma das descrições que Riordan faz dos monstros serve perfeitamente para Dioniso também:

Monstros não morrem [...] Eles podem ser mortos. Mas eles não morrem. [...] Você pode bani-los por algum tempo [...] Mas eles são forças primitivas.

Dioniso é uma força primitiva e, embora tenha sido morto, nunca morreu de verdade. Pode ficar oprimido por épocas, mas sempre volta à tona. Quando eu frequentava a faculdade, um dos meus professores descrevia a América dos anos 1960 como um lugar e um tempo em que a força dionisíaca estava de volta: os cabelos compridos; a selvageria da música produzida na época, das bandas e de seus fãs; a explosão das cores (pop art, tie-dye e trajes hippies); o caos político; e, é claro, o amplo uso de drogas psicodélicas.

Quando a década de 1960 começou, a imagem que se tinha da forma como as coisas deveriam ser era nítida, ordeira e extremamente limpa.17 Rock, rap, hip-hop, heavy metal, reggaeton — esses sons estridentes e empolgantes não existiam na época. A maior parte das músicas que tocava no rádio era dócil e entediante para os padrões de hoje. E então as coisas começaram a mudar. Radicalmente. Meu palpite é que Dioniso surgiu e brotou diretamente através dos músicos — os cantores de blues, Elvis Presley,18 os Beatles, os Rolling Stones e inúmeras bandas que apareceram posteriormente.

Muitas pessoas ficaram assustadas com o que aconteceu nessa época, e é claro que as drogas e o álcool fizeram muitas vítimas. Esse lado de Dioniso nunca mudou. Mas também havia uma abertura fenomenal para novas formas de pensamento, novas formas de arte e novas formas de ver as coisas. É aí que voltamos para o sr. D e o Acampamento Meio-Sangue.

Certo, então ele não usa uma corda

Tradicionalmente, quando Dioniso aparece, as velhas regras — e todos os constrangimentos — são abrandadas. Há uma liberdade nova, inebriante no ar. O sr. D sem seu vinho não é lá muito embriagador, mas acho que o desinteresse dele permite aos campistas a liberdade necessária para se desenvolverem e virarem heróis. Ele não é muito protetor nem controlador. As crianças e os adolescentes não dependem dele sob aspecto algum. O sr. D permite que corram sérios riscos e cometam erros quase fatais. Na verdade, a julgar pelo que ele diz, sua expectativa, na maioria das vezes, é que eles falhem. Mas heróis não podem ser mimados. Não se pode esperar que crianças se submetam a jornadas e sobrevivam a monstros se não sabem contar com os próprios recursos. O sr. D está dirigindo um estranho tipo de campo de treinamento no qual ele é uma espécie de sargento-instrutor às avessas, dizendo basicamente: “Façam o que quiserem e o que puderem. Esse é o treinamento do qual vocês necessitam.”

Mesmo assim, quando Percy, a quem ele parece detestar, mais precisa, o sr. D não falha. Em A maldição do titã, indo contra todas as expectativas, o sr. D não apenas salva os heróis da morte, como também chama Percy pelo nome certo. Ainda não sei bem por que ele faz isso. Será que é porque Percy finalmente deixa o orgulho de lado e pede ajuda? Ou será que é uma reação ao manticore, que ridiculariza Percy ao dizer que os semideuses não têm nenhum reforço “de verdade”? Parece plausível que o sr. D não estivesse disposto a deixar um monstro humilhá-lo e que tivesse gostado da ideia de provar que tanto o manticore quanto Percy estavam errados. Ou talvez ele estivesse apenas fazendo seu trabalho e sendo um guardião melhor do que Percy o julgava capaz. Afinal, assim que o manticore e seus escudeiros são dominados, o sr. D volta sua atenção para Thalia. Ele sabe que ela quase aceitou a oferta do manticore e a repreende por isso, deixando bem claro que também tem noção de como o poder pode ser tentador.

Em O último olimpiano, o sr. D aparece de novo de um jeito hilariante, chamando o semideus de todos os nomes possíveis exceto de Percy, sem ligar a mínima para os problemas do garoto. Mas novamente ele acaba ajudando os semideuses: não apenas os alerta sobre o que realmente está em jogo no caso de os titãs dominarem o Monte Olimpo e Cronos se desfazer de sua forma humana, mas também admite que os deuses precisam dos mortais para salvar o Olimpo, e que sempre precisaram de heróis. Na verdade, ele convoca Percy para pedir ao garoto que tente manter vivo seu filho Pólux, provando que até o irascível sr. D se preocupa com o filho semideus. Essa é mais uma informação vital para Percy, porque parte do que ele está tentando resolver é a aparente indiferença dos deuses para com seus filhos mortais.

Também há o fato de que, embora pareça não ter o menor respeito por crianças ou mortais, o sr. D é curiosamente justo. Quando Grover traz Percy para o acampamento pela primeira vez e o garoto é quase assassinado pelo Minotauro, o sr. D, que lidera o Conselho dos Anciãos de Casco Fendido, abstém-se de julgar Grover, dando-lhe outra chance. Percy enfrenta o sr. D duas vezes, chamando-o até mesmo de idiota e exigindo saber, furioso, por que ele não ajuda em nada. O sr. D poderia matar Percy na mesma hora, e no entanto poupa sua vida. Embora o sr. D possa gostar de zombar de Percy — ele é sarcástico e grosseiro —, abstém-se de lhe fazer efetivamente algum mal. Isso talvez se deva a sua punição ou a alguma condição que ainda não ficou clara para nós no final de O último olimpiano. Há uma passagem interessante nas últimas páginas de A maldição do titã, em que Percy e seus amigos estão no Monte Olimpo enfrentando o julgamento dos deuses. Percy implora por sua vida e pela de Annabeth, Thalia, Grover e o Ofiotauro. Na discussão que se segue — para decidir se os heróis deverão ser destruídos ou glorificados —, o sr. D se junta a Ares e Atena como um dos três deuses que se abstêm de votar. Ele observa, de forma bem sensata, que Percy pode ser a deidade menor da profecia do Oráculo, aquela que destruirá a todos. A decisão de Ares de se abster parece originar-se do fato de que Percy se tornou seu inimigo, mas o sr. D, surpreendentemente, parece bem mais próximo de Atena. Ele não está sendo vingativo ou louco; na verdade, parece calmo, perspicaz e, acima de tudo, sensatamente cauteloso.

Na maior parte de A batalha do Labirinto, Dioniso fica nos bastidores. Quando Percy retorna inicialmente ao Acampamento Meio-Sangue, alegra-se ao descobrir que o sr. D está longe dali, recrutando outros deuses para a iminente batalha contra os titãs. Como era esperado, o sr. D só aparece quando é extremamente necessário, bem no fim, no momento em que Grover está tentando convencer o Conselho dos Anciãos de Casco Fendido de que encontrou Pã e de que o grande deus, de fato, não existe mais. Com exceção de Quíron, o conselho não acredita em nada disso — até que o sr. D aparece, dessa vez de terno e perfeitamente sóbrio. Está sofrendo por seu filho Castor e traz más notícias: os deuses menores estão se aliando aos titãs contra os olimpianos. Ainda assim, apesar de estar completamente mal-humorado, diz a Sileno que Grover tem razão, e quando a votação empata, ele dissolve o conselho, encerrando a questão de uma vez por todas. Isso não é tão surpreendente assim; apesar de toda a loucura, ilusão e embriaguez, Dioniso sempre foi perspicaz e estranhamente honesto. E faz sentido ele, um deus da natureza, compreender a verdade sobre Pã e saber que Grover cumpriu sua missão.

O que é surpreendente é que depois o sr. D convide Percy para dar uma volta e admita que o jovem semideus e Annabeth salvaram o acampamento. Quando chegam ao anfiteatro, o garoto descobre que o sr. D curou Chris Rodriguez, o meio-sangue que enlouquece no Labirinto. Sendo um deus causador da loucura, Dioniso é também capaz de curá-la. Percy não consegue acreditar que o deus do vinho esteja sendo verdadeiramente gentil. Um sarcástico sr. D garante-lhe que emana gentileza. Como se quisesse provar isso, transmite uma mensagem muito atípica: “um gesto generoso pode ser tão poderoso quanto uma espada.” E, pela primeira vez, conta a Percy um pouco da própria história como mortal, que caçoavam dele por ser um mero vinicultor, mas mesmo assim tornou-se um olimpiano. Então, o que está acontecendo? O sr. D está, na verdade, encorajando Percy, o campista que o irrita tão profundamente? Acho que apenas podemos acreditar no que Dioniso diz e que ele esteja oferecendo a Percy, e ao restante de nós, um genuíno fio de esperança — que atos de gentileza importam e que todos temos o potencial de ser maiores do que os outros pensam.

Uma das coisas que acho muito intrigante na mitologia grega é que os gregos viam o lado positivo e negativo de tudo. Eles abarcavam os opostos. Duvido que algum dia tenha lhes passado pela cabeça a ideia de uma figura divina que fosse puramente boa e misericordiosa, como Buda ou Jesus Cristo. Os deuses gregos pareciam sempre ter naturezas duplas. Eram capazes de fazer o bem e o mal de forma extremada. Eram deuses perigosos, cuja natureza talvez fosse muito mais próxima de nossa natureza humana do que gostaríamos de admitir. Dioniso não é bom nem mau, mas percorre todo o espectro do comportamento. Como um dos deuses gregos, representa uma forma antiga de enxergar as coisas: toda a Criação, cruel e gentil, metódica e caótica, destrutiva e criativa, faz parte do divino.

Por que o vinho é tão importante?

O vinho, por si só, também não é nem bom nem ruim. Riordan deixa claro que o alcoolismo, ou a bebida em excesso, não é bom e tampouco atraente. Mas há outro lado para o fruto da videira. O que Riordan não menciona — provavelmente porque a maioria de seus leitores ainda não tem idade para beber — são alguns dos antigos usos rituais da bebida. Foi com esses rituais que Dioniso ficou conhecido como o deus do êxtase divino, um estado geralmente bem-aventurado no qual as limitações normais desaparecem e o ser se une ao divino ou se torna receptivo a ele. Sem compreender esse aspecto do deus, não podemos entender Dioniso de verdade.

Uma coisa que devemos ter em mente quando falamos sobre mitos gregos é que eles não foram apenas um monte de histórias inventadas para explicar os fenômenos naturais, como o nascer do sol e os trovões, a pessoas que não tinham nosso atual entendimento de ciência. Os mitos contam sobre os deuses que as pessoas veneravam. Os gregos antigos construíam templos para esses deuses, rezavam para eles, seguindo ritos ou rituais específicos, pedindo-lhes ajuda e proteção. Uma das coisas que amo com relação ao panteão grego é que eles tinham especialistas. Rezavam para Ártemis se quisessem uma boa caça, para Ares antes de ir para uma batalha e para Dioniso se desejassem um pomar saudável ou uma boa colheita de uvas. O vinho era parte de muitos desses rituais, coisa que não deveria surpreender ninguém, pois ele vem sendo um sacramento (parte de um ritual sagrado) por milênios e ainda integra muitas cerimônias, tanto no judaísmo quanto no cristianismo.

Por que o vinho? Ele relaxa. Afasta o mundo comum, a desordem do dia a dia: pensamentos sobre o que você tem que fazer, aonde tem que ir, o que alguém disse. O vinho acaba com as inibições, libertando as pessoas da preocupação e do medo, faz com que se sintam bem e até mesmo fortalecidas. É usado em rituais religiosos com o propósito deliberado de preparar o fiel para se esquecer do mundo por um instante e abrir-se para as forças divinas. O vinho é uma espécie de intermediário, ou canal, que nos permite a comunicação com as deidades. Quando os adoradores iam até um festival dionisíaco, não estavam apenas se liberando, estavam se abrindo para as verdades dos deuses. Esse estado de embriaguez era chamado de êxtase divino. Era nesse estado que as mensagens dos deuses — até mesmo as profecias — se manifestavam. Era também um estado de inspiração divina, do qual músicas, histórias ou ideias iriam surgir. Inspiração é outra palavra para respiração, e dizia-se que inspiração criativa era a respiração dos deuses através de você.

O vinho era considerado parte de Dioniso, literalmente. Acreditava-se que quem bebesse seu vinho introduziria uma parte do deus em seu interior. Ele era, como aponta Edith Hamilton, o único deus que existia tanto fora quanto dentro de seus adoradores. As Mênades, suas devotas mais extremadas, acreditavam que quando bebiam seu vinho, eram possuídas por ele. Dioniso atravessava aquilo que Michael Grant descreve em seu livro Myths of the Greeks and Romans como “o acentuado abismo entre o humano e o divino”.

Existe uma adorável simetria nos mitos de Dioniso. Sua mãe, Sêmele, morreu porque queria ver um deus em sua plena glória. O filho dela permite aos humanos ver os deuses através dele, e até mesmo levar o divino para dentro de si. É como se Dioniso ainda estivesse resolvendo os problemas da mãe, dizendo: “Certo, talvez vocês não consigam enxergar os deuses por completo, mas há uma maneira de ter essa vivência, e eu lhes permitirei isso.”

Assim, a concepção que fundamenta o uso do vinho como parte do ritual religioso é a dificuldade que temos de nos aproximar dos deuses no estado dispersivo em que nossa mente costuma se encontrar. Ou, em outras palavras, uma das maiores dificuldades quando se trata da fé religiosa é que na maior parte do tempo não conseguimos enxergar o divino. Assim como Homero, Riordan utiliza o recurso da Névoa para explicar por que os mortais são, em geral, tão cegos para a presença dos deuses. Historicamente, quase todas as religiões já lidaram com esse problema: o que você precisa fazer para de fato experimentar o divino? O número de respostas é quase igual ao número de religiões existentes. Algumas crenças dizem que só a oração é o caminho. Outras transcendem — vão além — o estado mental cotidiano ao entrar em uma espécie de transe. Isso pode ser feito através da meditação, dos cânticos, dos tambores, da dança, da cantoria, da abstinência, das práticas de ioga e do uso de substâncias psicoativas. O álcool, é claro, é uma delas.

Mas existe outra ideia sobre a forma de ter acesso ao divino, e essa ideia se relaciona ao local. Como explica o escritor Alain Daniélou, em seu livro Gods of Love and Ecstasy: The Traditions of Shiva and Dionysus:

Existem lugares onde o mundo visível e o invisível estão muito próximos um do outro... Tais lugares são espécies de portais, através dos quais é um pouco mais fácil passar de um mundo para outro.

Acho que o Acampamento Meio-Sangue é um desses lugares sagrados, o que explica por que Dioniso, o deus cujos ritos permitem que as pessoas se comuniquem com as deidades, é o personagem perfeito para administrá-lo. Ele é o guardião, aquele que autoriza a entrada de mortais para que eles encontrem os deuses, aquele cuja presença garante que as fronteiras entre o divino e o mundano permaneçam como estão, que permite que os meios-sangues experimentem sua própria herança semidivina. Quando Percy deixa o Acampamento Meio-Sangue sem permissão, em A maldição do titã, é o sr. D quem vai atrás dele. Do seu jeito egocêntrico, o sr. D sabe perfeitamente quem entra e quem sai do acampamento. Com sua estranha indiferença, dá liberdade às crianças para desprezarem suas antigas identidades aprisionadoras — por exemplo, Percy como um aluno problemático com transtorno do déficit de atenção — e encontrarem suas novas e verdadeiras identidades como semideuses e heróis. É no Acampamento Meio-Sangue que a Névoa desaparece e se vê o sobrenatural. Criaturas tais como centauros e sátiros revelam-se em suas verdadeiras formas. Ali, até os monstros, como o Minotauro, aparecem. É o local onde as crianças e os adolescentes encontram o divino (para começar, o próprio sr. D) e percebem que cada um deles possui os deuses dentro de si. E é Dioniso, o deus de todas as coisas em desenvolvimento, que permite que os semideuses se desenvolvam plenamente. No Acampamento Meio-Sangue, os campistas não precisam beber ou entrar em transe para participar das bênçãos do deus do vinho. Precisam apenas estar em sua espantosa e desconcertante presença. Acho que até os deuses teriam inveja do retrato um tanto mágico que Rick Riordan faz do sr. D. Ele nos oferece um Dioniso sem seu vinho e, ainda assim, com todo o seu poder e mistério. Deus do vinho, da fertilidade, do mundo selvagem, do drama e da alegria. Senhor da loucura, da mágica e da ilusão. O guardião que proporciona aos mortais a entrada para o divino.

Grandes livros sobre mitos gregos

DANIÉLOU, Alain. Gods of Love and Ecstasy: The Traditions of Shiva and Dionysus. Do original francês Shiva et Dionysus, 1979. Reimpressão da tradução de 1982, Vermont: Inner Traditions, 1992.

GRANT, Michael. Myths of the Greeks and Romans, 1962. Reimpressão, Nova York: A Meridian/Penguin Book, 1995.

HAMILTON, Edith. Mythology: Timeless Tales of Gods and Heroes, 1940. Reimpressão, Nova York: A Meridian/Penguin Book, 1989.

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Ellen Steiber mora em Tucson, Arizona, onde escreve e publica livros. Sempre adorou mitologia e acha que há grandes chances de que os deuses gregos ainda estejam por perto. Enquanto escrevia este ensaio, Íris surgiu como um deslumbrante arco-íris duplo bem diante da janela de seu escritório. Outros ensaios de sua autoria foram publicados em The World of the Golden Compass, organizado por Scott Westerfeld, A New Dawn, organizado por Ellen Hopkins, e Nyx in the House of Night, organizado por P. C. Cast. Atualmente está concluindo a sequência de seu romance A Rumor of Gems e escrevendo no blog www.houseofgems.com sobre joias e pedras preciosas. Visite seu site: www.ellensteiber.com.

14 Reia, antiga deusa da terra, é esposa do titã Cronos e mãe de Zeus, Deméter, Hades, Hera, Héstia e Poseidon.

15 Segundo o escritor britânico Sir J.G. Frazer, havia também o antigo costume de vestir os garotos novos como garotas, a fim de protegê-los do Mau-Olhado, uma espécie de maldição.

16 A história de Dioniso e Penteu é contada em uma peça de Eurípedes (c. 480-406 a.C.) chamada As bacantes. Meu resumo dela é baseado em uma nova versão encontrada em Myths of the Greeks and Romans, de Michael Grant.

17 Para entender o que eu digo, dê uma olhada em qualquer um dos programas de TV daquela época.

18 Embora o blues e a música de Elvis sejam anteriores aos anos 1960, ambos traziam um tipo de liberdade — alma pura, desenfreada — que sem dúvida alguma tem tudo a ver com a energia dionisíaca.


Os deuses entre nós

Elizabeth M. Rees

Heróis são coisa do passado? Elizabeth M. Rees acha que não. Às vezes, basta surgir um monstro de aparência horrível para que os deuses e heróis do mundo moderno se revelem. Talvez a pessoa sentada ao seu lado no ônibus seja, na verdade, um semideus. Ou talvez o semideus seja você...

Quando surgem entre os homens, os deuses não são reconhecidos.

— Ralph Waldo Emerson

O que você não consegue enxergar pode lhe fazer mal

Morando em Nova York, a apenas três quilômetros do que se tornou o Marco Zero, testemunhei os acontecimentos do 11 de Setembro muito de perto. Foi uma cena que alegraria o coração belicoso de Ares, o deus grego da guerra. A terrível imagem das Torres Gêmeas envolvidas em fumaça certamente poderia ter saído de um dos sonhos mais loucos de Hades.

Embora eu tenha idade suficiente para saber que o Super-Homem é fantasia e que James Bond é apenas um personagem de livros e filmes, às vezes me pego pensando: “Cadê eles?” Por que o Super-Homem não surgiu naquela cena e agarrou os aviões, um em cada mão, um segundo antes de atingirem as torres? Por que a ousadia de James Bond, sua marca registrada, falhou justamente quando seus destemidos feitos eram mais cruciais?

O que a tola que existe dentro de mim esperava era uma performance sensacional de um dos semideuses (Clark Kent) ou heróis (Bond) da nossa cultura popular. Em vez disso, o que eu e o resto do mundo sentimos foi um puxão de orelha: heróis e semideuses certamente não existem na vida real em Nova York.

Mas os acontecimentos subsequentes provaram que eu estava enganada. Emerson diz que se as divindades estão entre nós, não temos como reconhecê-las, mas talvez seja melhor ele reformular sua frase: o que não reconhecemos são os deuses, semideuses e heróis do nosso dia a dia.

Cada profissional de emergência que correu para aqueles prédios naquele terrível dia, que trabalhou para ajudar as vítimas ou batalhou tentando resgatar possíveis sobreviventes foi um herói multiplicado por dez. Foi como se tivessem procurado bem no fundo de suas almas e tirado dali algo equivalente à caneta/espada de Percy Jackson na série Percy Jackson e os olimpianos, de Rick Riordan: uma arma fantástica com a qual se pode combater o mal. As armas de nossos heróis do século XXI eram uma coragem e uma força que ultrapassavam em muito a mais louca expectativa de qualquer mortal; uma coragem e uma força no nível das que os antigos deuses gregos representam.

Segundo Riordan, nos cinco livros da série publicados até agora, os deuses estão, sim, entre nós, e podem ser reconhecidos. Mas, claro, apenas se você for meio-sangue como Percy Jackson e muitos de seus amigos.

Assim como Percy no início da série, você provavelmente nunca deve ter dado muita bola para os deuses gregos — para suas vidas complicadas e suas atitudes — fora da sala de aula. E, mais uma vez como Percy (e mais tarde também como Bianca e Nico di Angelo em A maldição do titã), você certamente nunca imaginaria que os imortais pudessem morar no seu bairro, no outro quarteirão.

Quem se dá o trabalho de olhar com mais atenção o sujeito agitado dentro do ônibus? Enquanto joga em seu tablet, o sr. Matraca não para de falar ao celular, além de ficar batendo com o pé no ritmo de uma música animada que ouve por um fone no outro ouvido.

E quanto ao motoqueiro de jaqueta de couro que passa fazendo um barulhão com sua Harley? O que lhe dá o direito de xingar você quando é ele que praticamente ignora a faixa de pedestres? Você olha feio para ele, mas aposto que não se pergunta — ou sequer pensa — quem ele é.

E ainda tem a mendiga que fica pedindo esmola na esquina; é uma moradora de rua, e você até quer sentir pena dela, mas seu cheiro não é nada agradável, e há algo assustador naqueles olhos fundos e naquele chapéu esquisito de tricô que ela usa mesmo em pleno verão. Se você é como eu, apressa o passo, fingindo não vê-la, não querendo nem saber de onde ela é, quem pode ser ou sequer se tem nome.

Ou você alguma vez chegou a se perguntar por que aquela garota incrivelmente bonita parou para se admirar e retocar a maquiagem em cada espelho do shopping a caminho da saída? Talvez sim, talvez não.

Desde que entrei no mundo de Percy Jackson e os olimpianos, porém, vejo-me pensando que, assim como Percy, posso ter me deparado com Hermes, Ares, a Medusa ou até mesmo Afrodite em um dia qualquer fazendo compras, sem sequer ter percebido!

Mas se pararmos para pensar nisso, uma vez que seja, talvez eu tenha, sim, notado.

O sol de um fim de tarde de inverno batia meio enviesado na estação Grand Central enquanto eu esperava para atravessar a rua. Era o auge da hora do rush, a calçada repleta de trabalhadores correndo para entrar na estação. No meio da multidão, avistei um homem de cabelo emaranhado. Estava caminhando de cabeça baixa, com aquele andar arrastado dos desabrigados, e parecia meio louco. Mas os nova-iorquinos, como de costume, não o notaram.

De repente, ele olhou para cima, e um sorriso radiante se abriu em seu rosto sujo. Diante dele havia uma jovem caminhando. Ele só conseguia vê-la de costas, mas seu longo cabelo loiro brilhava como fios de ouro ao sol. Ele esticou a mão e o tocou. Do outro lado da rua, tomei um susto, temendo que a jovem estivesse correndo algum perigo. Mas o sorriso no rosto do homem era extremamente jovial, e seu toque deve ter sido muito delicado, porque ela nem sequer notou — assim como todos da multidão, que queriam chegar a algum lugar rapidamente. Foi uma visão momentânea, mas nunca mais a esqueci.

Como estava lendo Percy Jackson e os olimpianos, fiquei pensando: será que a mulher era uma semideusa? Será que era filha de Afrodite, iluminando o mundo com sua beleza? Será que o homem desabrigado era um meio-sangue como Tyson — indesejável, desprezado e perdido em um mundo que nunca poderia proporcionar a ele proteção ou compreensão? E se de fato eu estava recebendo um vislumbre do universo de Percy Jackson, como ninguém mais notava? Se os semideuses moram na mesma cidade que eu, como não os vejo com mais frequência?

Afastando a Névoa de nossos olhos

No mundo de Riordan, os próprios deuses e seus filhos meios-sangues, bem como um ou outro mortal, podem perceber o que o autor denomina “Névoa”, uma invenção brilhante que torna possível toda a premissa dos deuses entre nós. A Névoa é o fenômeno que esconde da visão dos mortais comuns os deuses, que também vivem no século XXI. Como não sou uma meio-sangue, ou pelo menos não acho que seja, em princípio não tenho condições de reconhecer um deus ou uma deusa, mesmo que estejam ao meu lado. A Névoa encobre a identidade dos deuses para que as pessoas (ou pelo menos a maioria delas) não consigam enxergá-los em sua verdadeira forma.19 Ocasionalmente, no entanto, a Névoa falha.

Como acontece durante a aula de educação física de Percy, quando o caos de Hades se instala e uma gangue de gigantes canibais chamados lestrigões ataca o garoto no meio de uma partida de queimado. De repente, todos os alunos no ginásio de esportes veem-se envolvidos em uma confusão explosiva e mortal enquanto o treinador continua a mexer em seu aparelho de audição e nem sequer ergue os olhos da revista que está lendo. A Névoa deixa o treinador distraído, mas dissolve-se no restante do ginásio, e a realidade se instala abruptamente. Instigados por Percy, os alunos correm para se proteger. Mas os monstros sanguinários fecham de forma mágica todas as saídas, acabando com qualquer esperança de fuga. No fim, Percy, seu meio-irmão, Tyson, e Annabeth conseguem fugir. Carros do corpo de bombeiros chegam às pressas à cena da explosão. Os mortais comuns testemunharam tudo, pois, por um instante, a Névoa desapareceu.

Ainda que a Névoa possa desaparecer assim, por um instante, ela pode e deve se instalar outra vez. Na série, não fica muito claro — pelo menos para esta leitora — como exatamente a Névoa funciona ou por que ela às vezes se dissolve. Entretanto, ficamos sabendo que quando se trata de deuses deslocando-se entre mortais comuns, a Névoa parece surgir, e sempre foi assim, como Quíron explica a Percy:

Leia A Ilíada. Está cheia de referências a isso. Sempre que elementos divinos ou monstruosos se misturam com o mundo mortal, eles geram a Névoa, que tolda a visão dos seres humanos. Você verá as coisas exatamente como são, sendo um meio-sangue, mas os seres humanos interpretarão tudo de modo muito diferente.

Embora a Névoa se fragmente de tempos em tempos, aparentemente os deuses (e semideuses) têm formas de solucionar isso. Em A maldição do titã, a Névoa parece não funcionar adequadamente quando Percy e seus amigos entram no Westover Hall. Mas com um estalar de dedos, Thalia consegue restaurá-la pelo menos o suficiente para que a sra. Tengiz acredite que Percy, Thalia e Annabeth são alunos da escola. A habilidade de Thalia surpreende Percy, que descobre que restabelecer a Névoa é algo que Quíron poderia ter lhe ensinado. Assim, aprendemos que a Névoa pode ser, de fato, manipulada.

Por exemplo, ninguém que esteve presente durante o ataque dos gigantes a Percy se lembra do que realmente aconteceu assim que a crise chegou ao fim. A intervenção da Névoa restabeleceu a ordem e transformou os acontecimentos caóticos em algo que os mortais comuns poderiam compreender — a saber: que Percy era um maníaco insano que mexia com bombas e tentava explodir a escola. Foi ruim para Percy, mas foi bom para a psique das testemunhas mortais.

A Névoa se instala, falha ou funciona parcialmente várias vezes ao longo da série (um exemplo particularmente dramático ocorre no Arco de St. Louis, em O ladrão de raios), mas na maior parte do tempo ela cumpre sua função, os deuses e suas trapaças permanecem invisíveis e o sistema funciona.

Por que alguns dias parecem que vão ser simplesmente péssimos?

Mesmo com a Névoa em boas condições, a presença de qualquer um dos deuses principais (Zeus, Poseidon, Ares ou Afrodite, por exemplo) parece afetar a atmosfera geral e o ânimo dos mortais.

E afeta Percy também. Quando Ares encontra Percy pela primeira vez em um restaurante em Denver, em O ladrão de raios, o garoto diz que “sentimentos ruins começaram a fervilhar no meu estômago. Raiva, ressentimento, amargor. [...] Tive vontade de comprar briga com alguém. Quem aquele cara pensava que era?”. O interessante é que a presença do deus despertou emoções, medos ou tendências do inconsciente. Afinal, afirma-se que violência gera violência — ou pelo menos sentimentos de vingança.

Em nosso mundo, é difícil saber de onde vêm alguns estados de espírito — em especial os melancólicos, depressivos ou negativos. Todos sabemos como funciona: alguns dias você acorda se sentindo mal-humorado, zangado ou irritado sem motivo aparente. Sua mãe diz: “Você se levantou da cama com o pé esquerdo, hein?” (Eu mesma nunca descobri exatamente o que o pé esquerdo tem de errado!) Tudo, desde aquele primeiro ruído do despertador até os últimos poucos minutos antes de você se deitar naquela noite, parece ir de mal a pior. Você chega à escola com uma meia de cada cor (ou sapatos — acredite, isso aconteceu com um amigo uma vez!); esquece seu caderno favorito no ônibus; esquece o dever de casa ou descobre que o gato realmente comeu seu trabalho; e, ainda por cima, o valentão da turma começa uma campanha por mensagem de texto para caçoar das suas meias!

Seja lá o que tenha dado errado, desconfio de que o pé que você pôs no chão quando se levantou pouco tem a ver com isso. No mundo de Riordan, pelo menos um pouco disso poderia ser atribuído à presença de Hermes — um zombador inveterado. E Ares pode estar incitando aquele valentão a ir mais além do que de costume. Se o deus o provocar bastante, aquelas mensagens de texto podem se transformar em violência física durante uma pelada amistosa após a aula, bem diante dos olhos de um professor convenientemente distraído. Mas há um ou dois lados positivos. Talvez Apolo decida ajudá-lo a se vingar do valentão. Ou, já que ele é também o deus da poesia, talvez possa entrar na aula de inglês flutuando suavemente em um raio de sol e inspirar o sr. Valentão a se levantar de repente e recitar um haicai20 muito, mas muito ruim — em sua homenagem!

Se você não souber o que está acontecendo, poderá ficar um pouco confuso. O próprio Percy passa por isso quando entra no Túnel do Amor, toca o lenço de Afrodite e por um momento se perde em devaneios.

Os deuses gregos sempre se divertem com as alegrias, tristezas e tragédias dos mortais. A atmosfera que nos envolve é carregada com as características deles, boas e ruins, seja o amor ou o ódio. Basta ler A Ilíada e A Odisseia. Às vezes, no entanto, os deuses não mudam o ambiente apenas com sua presença. Em geral, instigam todos os tipos de problemas e distúrbios humanos. Homero certamente sabia do que estava falando: seus deuses constantemente se apaixonam por humanos, lutam contra eles e, por bilhões de anos, promovem terríveis rivalidades e guerras. Por isso não se deve descartar a possibilidade de eles continuarem a fazer isso.

As histórias contadas em A Ilíada e A Odisseia ilustram alguns hábitos particularmente irritantes das deidades, hábitos que fazem dos deuses companhias bem indesejáveis. Afinal de contas, seu passatempo favorito parece ser interferir nos relacionamentos humanos. Os Estados Unidos do século XXI são o lugar perfeito para representar — através dos títeres humanos ou semi-humanos — as eternas brigas e rixas entre famílias. E talvez os exagerados sentimentos negativos provocados pelas atitudes dos deuses realocados de Riordan também produzam boa parte da violência que existe no mundo de hoje.

Seria possível que Ares estivesse se divertindo em meio à carnificina que ocorreu na cidade natal de Percy em 11 de setembro de 2001? O que leva a outra pergunta: para começo de conversa, por que Ares poderia estar em Nova York, como sugere Riordan?

Nova York, Nova York: Um ótimo local para visitar, mas por que morar lá?

A resposta simples é que todos os deuses em Percy Jackson e os olimpianos imigraram, como diversos outros, para os Estados Unidos e se estabeleceram na cidade de Nova York. Mas por que Nova York? Duvido que seja porque são fãs dos Mets ou dos Yankees.

A explicação de Riordan só confirma seu vasto conhecimento de mitologia grega e da cultura da Grécia Antiga. Como Quíron diz a Percy quando ele chega ao Acampamento Meio-Sangue, Nova York é apenas a base deles. O Monte Olimpo de hoje se encontra no seiscentésimo andar (é isso mesmo, não é erro de digitação) do Empire State Building. Há milênios que a morada divina não fica mais na Grécia. Quíron explica que a civilização ocidental é “uma consciência coletiva que ardeu brilhantemente por milhares de anos. Os deuses são parte dela”. Toda a visão de mundo ocidental floresceu primeiro na Grécia Antiga, depois se mudou para Roma e, conforme o tempo passou e o centro do poder se deslocou, acabou se transferindo para outros locais. Como os deuses são imortais, não desaparecem com a passagem das civilizações ou dos reinados. Em vez disso, conforme o poder muda de mãos, eles são forçados a se deslocar para o império ou país que está dominando a cena — que, no século XXI, são os Estados Unidos da América. E o único local para instalar sua base é o centro desse poder — no caso, a Grande Maçã.21

Nova York é considerada a melhor cidade para esses deuses se estabelecerem por várias razões. Primeiro, é um dos lugares com maior energia do planeta — alguns diriam que a energia é até exagerada, uma vez que a cidade supostamente nunca dorme. Nada em Nova York parece se mover devagar o bastante para ser analisado de perto — ao se caminhar nas ruas e avenidas da cidade, tem-se a nítida sensação de que tudo se move de forma acelerada. Os deuses parecem prosperar nessa energia frenética, mesmo quando a maioria dos mortais sucumbe, e os meios-sangues entre nós, sem dúvida, caminham por aí distraídos e infinitamente confusos. Toda essa energia em excesso está disponível para abastecer as brigas familiares, e certamente deve ser a faísca que dá origem aos desentendimentos que os deuses continuam a semear entre os humanos.

Outra razão pela qual Nova York dá a sensação de “lar, doce lar” para essas deidades da Grécia Antiga: a cidade não é apenas frenética, é exageradamente rica — o local perfeito para favorecer todos os sofisticados e impetuosos privilégios da alta sociedade.

Pessoalmente, desconfio de que, embora os deuses sejam o pilar fundamental da civilização ocidental e precisem estabelecer uma base, também não conseguem suportar nada menos do que viver com o máximo de luxo. Não consigo imaginar Afrodite em um país subdesenvolvido, você consegue? Mas a Saks da Quinta Avenida... aí é outra história.

A ideia de deuses vivendo entre nós, meros mortais, não é lá muito nova, pelo menos no que diz respeito às deidades da Grécia Antiga. Procure “Monte Olimpo” em uma enciclopédia — é, de fato, o “lar dos deuses”, mas também tem uma localização geográfica verdadeira: Tessália do Norte.

Michael Grant observa, em Myths of the Greeks and Romans, que, embora os deuses não vivam com pessoas comuns, vivem “na, ou não muito longe da, terra”. E em Mythology: Timeless Tales of Gods and Heroes, Edith Hamilton diz: “O local exato onde Afrodite nasceu da espuma poderia ser visitado por qualquer turista antigamente; ficava não muito longe da ilha de Citera.” Ela afirma também que Pégaso vivia em um estábulo de verdade em Corinto.

Do mesmo modo, Percy e seus amigos finalmente localizam Nereu em São Francisco, em A maldição do titã. O antigo deus do mar está disfarçado (é claro) de sem-teto, pescando em um cais. Então, se você quer encontrar o próprio Velho do Mar, marque umas férias em São Francisco e procure por ele enquanto estiver lá.

Assim como os imortais da era grega, as deidades de Riordan estabelecem sua base no Monte Olimpo, mas podem circular por qualquer lugar que desejarem. Então, o primeiro enfrentamento de Percy com Ares ocorre do lado de fora de um restaurante de Denver, no Colorado. Ares, até onde sabemos na série, não mora em Denver. Sua presença na cidade tem um propósito: conversar com Percy (e ludibriá-lo).

Queremos mesmo dar a eles um presente de boas-vindas?

Enquanto imaginamos por que essas divindades se dignaram a nos agraciar com sua presença, deveríamos talvez nos perguntar também se deveríamos realmente acolhê-las. Os deuses, de fato, são bodes expiatórios bem convenientes. Seria ótimo poder pôr a culpa de todos os conflitos e injustiças contemporâneos nos caprichos de deuses que não estão nem aí para nada. Talvez a violência que infla nossos telejornais não seja incitada por atos de mortais comuns: para começar, talvez as bruxas monstruosas e os ferozes deuses da guerra é que estejam criando toda a confusão. Depois de o ônibus em que ele viajava com destino à Costa Oeste explodir não muito longe da ponte George Washington, em O ladrão de raios, Percy exprime tal sentimento em sua narração: “De certo modo, é bom saber que há deuses gregos lá fora, porque aí temos alguém para culpar quando as coisas dão errado.”

Quando os deuses se mudaram para Nova York, foram com bagagem de sobra: suas brigas, suas guerras, suas problemáticas famílias de tamanho olimpiano, sua incapacidade de manter promessas e juramentos (especialmente referentes ao matrimônio). Como verdadeiras estrelas do rock, desfilaram na cena com toda a sua comitiva: monstros na forma de Fúrias, ciclopes, a Hidra, o Ofiotauro; diversos espíritos (náiades, dríades e sátiros, entre outros); seres mágicos como as Irmãs Cinzentas e seu serviço de táxi; e não podemos nos esquecer do Oráculo. Na verdade, todo o sortimento — ou pelo menos uma amostra generosa dele — de seres esquisitos que povoavam os reinos míticos da Grécia Antiga vem à tona ao longo da série.22 E esses esquisitos não se contentam em apenas “surgir” em em aparições breves. Longe de ser encenação ou parceria, esse grupo heterogêneo proporciona boa parte da ação em todas as jornadas de Percy.23

Levando em consideração a bagagem que esses deuses trazem com eles, fico pensando: sua presença é algo tão bom assim? A resposta é: essa é uma pergunta muito malformulada. Primeiro, no mundo de Percy Jackson e os olimpianos, eles já existem, e estão se divertindo demais para planejar ir embora tão cedo. Segundo, quando se trata de enviar esses vizinhos inoportunos de volta para de onde vieram, não somos capazes. Nós, e possivelmente os próprios deuses, não temos escolha.

Tudo se resume a essa coisa chamada livre-arbítrio

Liberdade de escolha é algo que geralmente tomamos como certo — até examinarmos mais de perto o que isso, e também o livre-arbítrio, efetivamente significam. À primeira vista, quer dizer que você pode decidir tomar um caminho ou outro; pode fazer seu dever de casa ou não; se for Percy, pode decidir buscar o raio de Zeus ou não.

Acabamos percebendo, porém, que toda a ideia de liberdade de escolha e livre-arbítrio é uma daquelas coisas sobre as quais os filósofos refletem provavelmente desde quando os primeiros homens das cavernas se uniram ao redor de uma fogueira e começaram a pensar em questões importantes da vida — o tipo de questão sem resposta definitiva, como quem veio primeiro, o ovo ou a galinha. Ninguém sabe de fato a resposta.

Temos a capacidade de escolher nossa direção na vida, ou a sorte ou o destino escolhem nosso caminho para nós? A resposta é: ambas as coisas. Quase sempre temos uma escolha quanto ao que fazer, mas, ao mesmo tempo, estamos geralmente fazendo a escolha em uma situação que não temos o poder de mudar.

A ideia de ser livre para escolher o que acontece com você certamente parece simples o bastante. Você escolhe se vai fazer o dever de casa ou jogar video game. Mas, como estudante, você tem mesmo a opção de escolher? Em certo sentido, tem. Pode optar por deixar o dever de casa de lado. Mas se escolher não terminar aquele trabalho que deve ser entregue às nove da manhã do dia seguinte, terá que arcar com as consequências, e essas consequências — sejam elas advertência ou nota baixa — limitam sua liberdade de escolha. E você definitivamente não tem opção quanto a frequentar a escola: a sua idade e as circunstâncias que o cercam não estão sob seu controle.

Então, a situação em que estamos inseridos — estar na escola ou nascer um meio-sangue — é algo que geralmente não podemos mudar. A maneira como lidamos com ela é outra história.

Ao longo da série, repetidas vezes, Percy se vê em dificuldades (quase sempre) não por vontade própria. É como ele escolhe lidar com isso que faz com que sua história seja um livro que você não consegue parar de ler.

Percy não escolheu ser meio-sangue. Mas escolheu, sim, partir em todas aquelas jornadas que quase o mataram, certo? Pense na jornada para recuperar o raio de Zeus: ele poderia ter dito não. Poderia? Parte do motivo de sua ida é ver a mãe novamente; ele poderia mesmo ter escolhido não ir, considerando quem ele é?

Outra questão: a “morte” de Sally nas mãos do Minotauro nas cercanias do Acampamento Meio-Sangue parece inevitável, mas fico pensando: será que era mesmo?

Existem duas formas de analisar a morte (aparente) de Sally. Havia dois desfechos possíveis para o impasse com o Minotauro: ou Sally sobrevive e Percy morre, ou Sally morre e Percy sobrevive. Você poderia dizer que ela escolheu se sacrificar por Percy por livre e espontânea vontade. Por outro lado, porém, talvez os deuses a tenham colocado naquela situação em que seria forçada a fazer uma escolha, uma situação em que ela não tinha escolha, a não ser agir como qualquer mãe agiria, sacrificando a própria vida para salvar a do filho. Quando se analisa dessa forma, os deuses podem ter usado o amor materno com o intuito de colocar Percy em uma situação em que ele seria forçado a partir em uma jornada e fazer o que eles queriam.

Mas por que os deuses iriam se dar o trabalho de atrair Percy para seu mundo e fazer dele um verdadeiro quebra-galho?

Os deuses têm um problema. Como Quíron nos conta, eles não conseguem cruzar certas fronteiras ou violar os domínios uns dos outros; já os heróis podem ir para onde desejarem. Então, quando as disputas entre os deuses levam-nos aos territórios dos outros, eles precisam de heróis para fazer o trabalho sujo. Os heróis se transformam em armas dos deuses, veículos através dos quais os deuses descarregam sua vingança. Tendo isso em mente, faz sentido os deuses deixarem Percy e sua mãe em uma situação sem saída, se acharem que isso motivaria o garoto a ajudá-los.

Assim, os deuses salvaram Sally no último minuto para motivar Percy, cujos amor e lealdade aos que lhe são mais próximos são a base de quase toda decisão crucial que ele toma — seja ela brilhante ou desastrosa. Percy tem escolha quando Atena lhe diz ser esse seu defeito fatal — a lealdade? Todos nós temos nossas falhas, embora elas não sejam exatamente fatais. Medo, orgulho, otimismo exagerado, ciúme, ganância, ingenuidade — tudo isso são falhas que sei que já vislumbrei na minha família e em amigos. (Quanto a mim, reservo-me o direito de não me posicionar.) O problema é que essas falhas limitam nossa gama de opções, e assim os deuses podem tirar proveito delas para nos manipular.

Ninguém é perfeito, muito menos os deuses gregos

Quando se trata de falhas, os próprios deuses gregos aparentam tê-las aos montes. Ao contrário dos egípcios ou babilônios, “os gregos antigos criavam os deuses a partir de sua própria imagem”, conta Edith Hamilton. E como esses deuses tinham que se parecer com os gregos mortais do dia a dia, eles passam longe da perfeição. Na verdade, costumam se comportar como vizinhos barulhentos e, às vezes, traiçoeiros.

Se o sr. grego comum e sua esposa tivessem uma briga conjugal particularmente escandalosa, iriam acusar e ameaçar um ao outro aos berros. Talvez o sujeito agredisse a mulher, assim como o repugnante padrasto de Percy, Gabe. Os deuses criados à imagem do homem comum refletiam seu conjunto de comportamentos humanos característicos, que eram seriamente nocivos, mas lamentavelmente familiares. Só que, no caso dos deuses, se Hera pegasse Zeus em um encontro com sua mais recente amante e o ameaçasse, ele poderia escolher entre arremessar nela seu raio ou lembrá-la de como, certa vez, ele a puniu pendurando-a de ponta-cabeça nas nuvens. A briga é a mesma, mas em escala colossal.

Embora os deuses gregos fossem basicamente versões incrementadas dos próprios mortais da Grécia Antiga — inclusive nas imperfeições —, essas imperfeições geralmente estavam no caráter e na alma, e NÃO no rosto. Os gregos enxergavam os deuses como mais — não apenas mais violentos ou vingativos, mas também versões mais belas, mais corajosas, mais ferozes ou mais poderosas deles próprios. Sempre atribuíam às divindades qualidades físicas, e às vezes psicológicas, que admiravam e às quais poderiam também aspirar. Os deuses não estavam ali apenas para entreter e ensinar por meio de estripulias dignas dos piores tabloides, mas para inspirar seus devotos a refletir a casual bondade divina em suas próprias vidas mortais.

Uma das “melhores” qualidades dos deuses gregos era sua extraordinária beleza física. Isso não deveria nos surpreender — afinal de contas, todos adoram olhar para um rosto bonito. No entanto, assim como (se não mais do que) nossa própria cultura moderna inspirada em Hollywood, os gregos antigos valorizavam a beleza baseada em ideais da perfeição física humana.

Enquanto as divindades de outras culturas antigas costumavam ser retratadas como figuras fantásticas e semimonstruosas inventadas da combinação de partes de diferentes animais, os deuses gregos eram retratados como figuras extremamente belas (no caso das deusas) ou tonificadas e musculosas (no caso dos deuses). Aposto que eles teriam escorraçado a deusa da sabedoria às gargalhadas se ela se parecesse com alguma deusa de outra cultura, talvez mais primitiva. Imagine a reação deles se, em vez da elegante e controlada Atena, a sabedoria se manifestasse como um cruzamento de crocodilo e coala. (Eu sei que não existem coalas na Grécia... Ainda assim, é uma combinação interessante!)

Se tentasse imaginar uma versão superbadalada de si mesmo agora, no século XXI, você provavelmente retrataria uma supermodelo, uma diva pop ou um galã musculoso das telonas. Hoje, a expectativa é de que nossos “deuses” ou “deusas” da pequena ou da grande tela reflitam nossos padrões atuais de beleza. Traços perfeitos, cabelo resplandecente, pele maravilhosa e porte que seja... Bem, digamos apenas que seja geralmente a fonte da fama e da fortuna dos personal trainers requisitados. Chamamos essas estrelas de “ídolos” e até dizemos adorá-las.

Infelizmente, nossos objetos de adoração não costumam ser modelos de bom comportamento (com exceção de alguns astros e músicos de rock que doam seu nome, esforços e finanças para apoiar e divulgar causas nacionais e internacionais de respeito). Mas, pelo menos, há momentos em que os deuses da série têm atitudes que deveriam nos inspirar. Como os gregos antigos, brincamos, rimos e zombamos de algumas das ações imorais e escandalosas das divindades em Percy Jackson e os olimpianos, mas também nos surpreendemos com suas melhores qualidades. Quem teria acreditado, após a atitude constantemente negativa de Dioniso em relação a Percy, que o deus viria em socorro de nosso herói e, de fato, o salvaria ao destruir o manticore, em A maldição do titã?

Além disso, apesar de suas reações conflitantes em ter Percy como filho meio-humano, Poseidon ajuda nosso herói com frequência: revolve as águas do oceano diversas vezes durante as aventuras de Percy, salvando-o da morte certa. Quando o garoto implora por ajuda ao pai, embora nunca tenha certeza de que Poseidon aparecerá, o deus geralmente o faz. Já no final de O ladrão de raios, temos dois vislumbres dos deuses não apenas ajudando os mortais, mas sendo genuinamente bons. Poseidon tem uma conversa particular com Percy no Monte Olimpo e, com “uma luz diferente em seus olhos, um tipo flamejante de orgulho”, diz sem rodeios que ele se saiu bem. Algumas páginas antes, o todo-poderoso Zeus abranda sua atitude em relação a Percy, agradecendo-lhe e poupando sua vida — mediante algumas condições, é claro.

Então, mesmo que aqueles gregos antigos e seus deuses pudessem ser malévolos, intimidadores ou orgulhosos como qualquer um que conhecemos hoje em dia, também podiam ser gentis, amorosos, joviais, complacentes e compassivos. Quando lemos histórias de A Ilíada e A Odisseia e relemos os mitos gregos, percebemos que reconhecemos as boas e as más qualidades que os deuses, semideuses e heróis igualmente têm. Suas falhas não são misteriosas, mas perturbadoramente familiares. Às vezes, sentimos que, ao olhar para suas façanhas, estamos olhando para um espelho, e quando o fazemos, uma versão distorcida e turva de nossos próprios seres nos encara diretamente.

Porque, como aprendemos com a leitura dos mitos, as qualidades, boas e más, dos deuses fazem parte de nossa própria natureza. Podemos até compartilhar suas falhas, mas também temos algo de seus incríveis poderes e bondade.

De fato, os deuses estão sempre entre nós, estejamos no mundo de Percy Jackson e os olimpianos ou não. E esses deuses não estão apenas pairando, escutando às escondidas ou grampeando os telefones do meio-sangue que mora ao lado. Fora do nosso campo de visão, eles habitam nosso mundo e estão presentes dentro de nós mesmos. Graças a eles, temos poderes inatos (e talvez algumas fraquezas) de que nem sequer suspeitamos.

É claro, os deuses geralmente brincam conosco ao nos colocarem diante de uma ou mais situações perversas da vida. Mas, daquele jeito peculiar dos antigos deuses gregos, eles não nos deixam necessariamente meter os pés pelas mãos... Mesmo se forem a fonte de alguns de nossos problemas, nunca nos abandonarão por completo: aqueles mesmos deuses intrometidos, interferentes e perturbadores também estão dispostos a nos inspirar, apoiar nossas resoluções e nos emprestar coragem, assim como os que ajudaram na tragédia de 11 de setembro de 2001 foram inspirados a fazer esforços sobre-humanos para resgatar milhares de pessoas que escaparam das Torres Gêmeas. Os noticiários e a história atual tendem a focar nas tristes almas que não sobreviveram. Mas, devido à profunda força interior e à coragem daqueles que correram até os prédios para oferecer ajuda, houve muito mais vidas salvas do que perdidas. Super-heróis e semideuses com a aparência de corajosos homens e mulheres comuns conduziram a cidade naquele dia, e tenho certeza absoluta de que ainda conduzem.

Grandes livros sobre mitos gregos

HENDRICKS, Rhoda A. (org. e trad.). Classical Gods and Heroes: Myths as Told by the Ancient Authors. Nova York: Morrow Quill Paperbacks, 1974.

GRANT, Michael. Myths of the Greeks and Romans. Nova York e Scarborough, Ontário: New American Library/Mentor, 1962.

HAMILTON, Edith. Mythology: Timeless Tales of Gods and Heroes. Nova York: New American Library/Mentor, 1942.

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Elizabeth M. Rees trabalha com artes visuais e também é autora de inúmeros romances para jovens adultos e adolescentes, entre os quais Heartbeats, série de seis livros publicados entre 1998 e 1999. Seu último trabalho de ficção, The Wedding: An Encounter with Jan van Eyck, foi publicado em 2005 e incluído na lista dos Melhores Livros para Adolescentes da Biblioteca Pública de Nova York, em 2006. Elizabeth mora e trabalha em Nova York. Atualmente, está escrevendo um romance sobre uma fada gorda, além de uma série de contos sobre a vida após a morte. Seu ensaio “Smoke and Mirrors” foi incluído na coletânea The Girl Who Was on Fire.

19 Uma exceção importante a essa regra é Rachel Elizabeth Dare, que enfrenta Percy na Barragem de Hoover em A maldição do titã e vê através da Névoa, para grande surpresa do garoto. E essa sua capacidade também não é uma aberração ocasional devida a alguma falha da própria Névoa. Em A batalha do Labirinto, ela enxerga através da Névoa e vê a escola nova de Percy no momento em que duas empousai (criadas de Hécate que se assemelham a vampiros) o atacam. A visão da garota é ainda mais clara do que a de nosso herói meio-sangue: enquanto Percy fica hipnotizado pelos encantos de uma empousa loira líder de torcida, Rachel vê o monstro como de fato é, e tem que beliscar o braço do amigo para despertá-lo de sua ilusão. A incrível capacidade que Rachel tem de ver através da Névoa chega até a ajudá-la a localizar a entrada para o Labirinto, bem como a negociar suas perigosas reviravoltas. Embora Rachel seja mortal, essa sua habilidade tão peculiar permite que ela acabe se apoderando da alma do oráculo délfico em O último olimpiano e proferindo a próxima grande profecia.

20 Forma poética de origem japonesa que consiste em três pequenos versos. (N. do E.)

21 Lendo os livros, passei a gostar muito do leal Grover, e pensei em como ele deve ter ficado feliz por o símbolo de Nova York ser um de seus lanches favoritos. Ok, Nova York não chega a ser a Grande Enchilada — mas Grover também gosta de maçãs. Pelo menos não é a Grande Lata de Alumínio.

22 Alguns espíritos e monstros da série permanecem fiéis às suas origens, mas nem todos. A maioria dos ciclopes deve ser temida, mas Tyson é um adorável garoto que se mostra um dos mocinhos, assim como Grover; já o Ofiotauro, embora seja usado para o mal, é um ser inocente. Salva Percy e se relaciona bem com Tyson, mas os deuses o temem, pois ele poderia dar cabo da existência deles. Poderia. Porque ninguém sabe, na verdade, o que pode acontecer. Na última vez que o Ofiotauro foi assassinado, Zeus impediu o ato final que destrói os imortais definitivamente. Enviou uma águia para apanhar as entranhas da pobre criatura morta antes que fossem lançadas ao fogo.

23 Em O Mar de Monstros, Riordan inteligentemente recria alguns dos episódios mais memoráveis da jornada de Ulisses com monstros e outras criaturas míticas. Percy assume o papel de herói fazendo o resgate, embora em alguns casos seja o próprio resgatado (e logo por Clarisse!). As sereias, que nos tempos antigos seduziram a tripulação de Ulisses cantando, iludem Annabeth com visões apropriadas para uma meio-sangue do século XXI: ela vê seu pai mortal e sua mãe deusa fazendo um piquenique com Luke no Central Park. Mais adiante, Riordan reprisa a antiga jornada de Jasão com seus argonautas.


Percy Jackson e os
Senhores da Morte

J. & P. Voelkel

Há anos Percy vem enfrentando os deuses do Olimpo, e todo mundo precisa de uma folga de vez em quando (mesmo que seja da própria família). Talvez esteja na hora de tirar umas férias. Para sorte de Percy, existe um mundo inteiro cheio de deuses e monstros que ele ainda não enfrentou. J. & P. Voelkel sugerem uma viagem à América Central e mostram algumas semelhanças surpreendentes entre a mitologia grega e a dos maias.

Quando Percy Jackson tiver vencido todos os inimigos que os mitos gregos e romanos podem lançar sobre ele, o que vai acontecer? É claro que seus antigos adversários poderão se reconstituir e atacá-lo a qualquer momento. Mas, como em um jogo de videogame que você já zerou, a segunda vez não vai trazer nada de novo. Vai dar até sono...

E por que passar as férias inteiras no Acampamento Meio-Sangue se você não precisa treinar para encarar novos desafios? Você pode praticar algumas técnicas de esgrima, participar de batalhas de mentirinha e jogar Capture a Bandeira, mas logo seu cérebro hiperativo de semideus vai estar louco por um pouco de ação.

Assim, será apenas uma questão de tempo até Percy cercar o Oráculo à espera de uma nova profecia e implorar a Quíron que lhe dê uma missão em que possa usar sua espada de bronze celestial.

Uma missão das grandes. Diferente.

Extraordinária.

Algo que até um semideus tarimbado nunca tenha enfrentado.

Sem problemas.

O mundo à nossa volta é muito grande e cada cultura possui os próprios mitos e lendas, todos repletos de novos aliados a quem se unir e de novos vilões a serem derrotados. Percy poderia, por exemplo, ir à Escandinávia, terra dos vikings e lar da mitologia nórdica, que inspirou as histórias sobre a Terra Média, de Tolkien. Ali, o sol viaja pelo céu puxado por cavalos, e os deuses não vivem no Monte Olimpo, mas do outro lado da ponte do arco-íris, em um reino cercado por muralhas chamado Asgard. Ali também fica o Valhala, o salão de banquetes para os heróis mortos, onde há um bode celestial pastando no telhado (quem sabe um novo amigo para Grover?).

Em Asgard, o adversário mais óbvio de Percy seria Thor, o deus da tempestade. Os dois estariam em pé de igualdade, já que a arma de Thor é um martelo chamado Mjölnir, que funciona de modo bem semelhante à espada de Percy, Contracorrente. Sempre que Thor lança seu martelo, a arma volta para ele como um bumerangue mágico. E quando seu dono está se deslocando, o Mjölnir se encolhe o suficiente para ser levado na túnica do deus. Além disso — cuidado, Percy! —, o martelo de Thor sempre atinge seu alvo.

Só nos resta esperar que o pai de Thor, Odin, aquele que tudo sabe, não se meta na briga. Com sua lança que nunca falha, seu cavalo de oito patas e sua cabeça de gigante decepada que prevê o futuro, Odin é um adversário temível. Ele também deu o olho direito para beber da água do Poço da Sabedoria, e por isso Odin possui inteligência e força na mesma medida (embora tenha a visão ligeiramente limitada).

É claro que um encontro com Odin pode fazer Percy recordar-se das experiências que teve com seres de um olho só. Ele pode se lembrar, com um calafrio, daquela arrepiante viagem no táxi das três Irmãs Cinzentas (que dividem um único olho) ou se recordar com ternura de Tyson, o ciclope, um dos seus melhores amigos e seu meio-irmão.

General do exército do Olimpo, Tyson é um aliado muito útil para se ter por perto. Mas ele não estaria em Asgard para ajudar Percy, tampouco estaria o pai deles, o deus grego do mar, Poseidon. Na ausência dos dois, talvez Percy pudesse contar com algum apoio familiar por parte de Njord, um dos deuses nórdicos do mar.

Freyr, filho de Njord, tem um imponente navio mágico que se dobra e é guardado em uma algibeira quando não está sendo usado. Infelizmente, ele perdeu sua espada mágica, mas continua bastante mortífero servindo-se de uma galhada de veado. Talvez fosse ainda melhor se Percy apelasse para a filha de Njord, Freya. Quando não está montando seu porco de guerra ou andando em um coche puxado por dois grandes gatos, ela usa um casaco emplumado que a transforma em um falcão. Ela e Annabeth Chase se entenderiam às mil maravilhas. E, enquanto as duas estivessem trocando histórias de batalhas, Percy poderia pegar emprestado o boné de beisebol de Annabeth para vencer uma das armas mais possantes dos deuses nórdicos: o Tarnhelm, ou elmo da invisibilidade.

Pelo visto, tudo isso daria uma luta interessantíssima. E, mesmo que Percy fosse derrotado, ele teria esperança de ser escolhido pelas Valquírias, as donzelas guerreiras de Odin, para ocupar um cobiçado lugar no Valhala. Não é a vitória em uma batalha que faz você garantir seu ingresso nesse salão para heróis. O que conta é a bravura que se demonstrou na luta.

Só há um problema: por mais impressionantes que sejam suas armas e seus apetrechos, os deuses nórdicos não saem por aí tentando enfrentar mortais. Em geral, são amistosos e prestativos, e nem mesmo são imortais, a não ser que comam as maçãs de ouro da deusa Idun. Além disso, todos vão morrer junto com a humanidade na batalha final entre o bem e o mal. Portanto, é perfeitamente compreensível que eles tenham outros assuntos em mente.

Na verdade, os mitos nórdicos oferecem um banquete sobrenatural variado de coadjuvantes malvados capazes de deixar Percy de cabelo em pé, entre os quais trolls, elfos, metamorfos, bruxas, lobos e berserkers (homens que se transformam em ursos). Mas isso seria apenas um dia comum nos bosques do Acampamento Meio-Sangue. Nosso entediado semideus merece adversários de maior peso: um panteão de perigo e uma vanguarda de vilões, tudo instalado em um habitat terrivelmente hostil, onde até o meio ambiente é um inimigo.

Podem nos chamar de tendenciosos — escrevemos livros sobre os maias —, mas achamos que Percy se divertiria bastante na América Central. Na floresta tropical, ele descobriria um povo antigo que olhava para o céu à noite e via crocodilos, araras, cobras e tartarugas nas estrelas a brilhar. Exploraria as ruínas das altas pirâmides com símbolos misteriosos entalhados e encontraria mitos, monstros e seres mágicos em quantidade suficiente para mantê-lo ocupado por uma nova série inteirinha.

Atenção: se você não está familiarizado com a mitologia do Novo Mundo, prepare-se para ficar atordoado. Embora se conheça muito menos sobre os deuses maias do que sobre seus confrades gregos, romanos ou nórdicos, pode-se dizer com toda a certeza que eles formam a turma mais hilária, temperamental, brincalhona, mal-humorada e macabra que já se viu.

Por exemplo, existe um deus do sacrifício que decepa a própria cabeça; um deus com uma perna no formato de serpente; um deus sol vesgo; um deus com focinho de tamanduá; uma deusa dos enforcados; um deus macaco; um deus do milho, cuja cabeça parece uma espiga; um deus das tatuagens e da arte corporal; um deus onça-preta com uma coruja na cabeça; uma deusa com um cocar de cobras e uma saia de ossos cruzados... e não podemos esquecer os mais malévolos de todos, os doze Senhores da Morte, cuja função é espalhar sofrimento, doença e morte pelo mundo. Existem dezenas de deuses maias, cada qual com um papel vital no cotidiano das cidades-Estados do antigo império. Além disso, vários deles têm múltiplas personalidades, sendo tanto bons quanto maus, jovens e velhos, machos e fêmeas.

Enquanto os deuses gregos estão envolvidos em brigas familiares e aventuras sentimentais e os nórdicos ficam lutando entre si, os deuses maias parecem mais focados. Para o bem ou para o mal, sua atenção está sempre voltada para a interação com os seres humanos. Na verdade, eles exigem o derramamento regular de sangue de criaturas de estirpe para manter as rodas do universo girando. E convenhamos que não é fácil encontrar alguém mais bem-nascido que um semideus como Percy...

Mas estamos nos adiantando.

Primeiro, precisamos preparar o cenário.

Como bem sabe qualquer um que já tenha lido livros de aventura, existem três regras essenciais:

1. Afastar os pais.

2. Livrar-se do celular.

3. Tirar o protagonista de sua zona de conforto.

Agora que Sally e Paul, a mãe de Percy e seu novo marido, sabem que o garoto pode cuidar de si mesmo, é pouco provável que insistam em acompanhá-lo. E celulares não podem estragar a trama no lugar para onde estamos indo, já que raramente se consegue sinal nesses locais remotos. Só falta, então, tirar Percy de Nova York e levá-lo até as exuberantes florestas tropicais da América Central.

Sobreviver lá seria seu primeiro desafio.

As florestas tropicais são lugares úmidos, quentes, onde o sol não penetra. São também o lar de metade das espécies de plantas e animais do mundo. A vida é uma luta constante por comida, luz e água. Principalmente por comida.

Ouviu um rugido assustador? Parece uma onça faminta à caça de um semideus para o almoço. Mas Percy pode ficar tranquilo. É só um macaco, o animal terrestre mais barulhento do planeta, proclamando aquele território como seu. O único perigo em relação aos bugios é que eles fazem xixi em quem para debaixo de sua árvore.

Bem mais ameaçador é o constante zumbido nos ouvidos. A floresta tropical é repleta de detestáveis insetos que picam, desde minúsculos mosquitos até pernilongos e barbeiros assassinos. Entre os bichos rastejantes mais assustadores estão as aranhas das cavernas, com pinças como as dos caranguejos, imensas aranhas saltadoras e tarântulas peludas enormes. (Quem poderia culpar a aracnofóbica Annabeth por não se meter em uma aventura dessas?) Percy também precisa estar alerta para sanguessugas, carrapatos e um bichinho encantador chamado mosca-varejeira, cuja larva se instala por baixo da pele e ali se desenvolve, alimentando-se da carne. (Não se preocupe: essa larva é inofensiva e sai sozinha poucas semanas depois.) Há também sapos tóxicos, escorpiões venenosos e algumas das cobras mais mortíferas do mundo.

Como vocês podem perceber, é um lugar perigoso.

O bom é que chove muito. Portanto, com uma restauradora carga diária de água, Percy tem mais chance de sobreviver a ferimentos e picadas de cobra em uma floresta tropical que a maioria dos nova-iorquinos. Talvez ele pudesse até fazer surgirem algumas armas aquáticas.

O aspecto negativo é que toda essa água misturada ao calor forma névoa. Não a Névoa, que faz com que os mortais vejam as coisas de um jeito diferente, mas aquela comum, que deixa tudo nublado, mesmo para semideuses. Percy precisaria estar sempre alerta — e é por isso que Grover seria o companheiro ideal nessa jornada.

Sendo uma criatura do mundo selvagem, Grover estaria no seu habitat. Não existe lugar mais selvagem na terra. Na verdade, o que resta do espírito de Pã pode perfeitamente estar vivendo no que resta da floresta tropical. Enquanto estiver lá, Grover talvez possa até instalar um santuário de sátiros para proteger todos os animais em perigo.

Quando não estiver espantando insetos com sua flauta de Pã, Grover estará ocupado farejando perigos invisíveis. Assim como os bosques do Acampamento Meio-Sangue são habitados por dríades, as selvas maias são cheias de vida graças a criaturas míticas. Mas, diferentemente das ninfas amistosas do Acampamento Meio-Sangue, a maioria dos espíritos maias se destina a fazer o mal.

Dois deles, vistos com mais frequência, são o alux (que se pronuncia alush) e Xtabay (que se pronuncia ishtabai).

Os aluxes são manifestações de energia selvagem que gostam de pregar peças nos seres humanos. Às vezes ficam invisíveis; às vezes assumem a forma de pessoas muito pequenas. São famosos por gostar de doce, portanto, Percy talvez queira levar umas balas para deixá-los mais mansinhos.

Menos fácil de superar seria Xtabay, um espírito mortal da noite. Ela é uma deusa maia que desce à Terra e assume a forma de uma bela mulher. Como acontece com o canto das sereias na mitologia grega, os homens acham sua voz irresistível. Poucos encontraram Xtabay e sobreviveram para contar a história. A maioria das vítimas é achada envolta em galhos espinhosos com uma expressão de terror no rosto.

Também à espreita nas sombras podemos encontrar Che Uinic, um gigante selvagem que ataca viajantes. (Na verdade, ele não chega a ser tão ameaçador, porque tem os pés virados para trás e precisa ficar encostado nas árvores, já que não tem ossos — portanto, se você derrubá-lo, ele não vai conseguir se levantar.) Ou poderíamos encontrar Ek Chapat, a monstruosa centopeia de sete cabeças que devora humanos. Ou ainda Mesa-hol, o pássaro demoníaco que voa de cabeça para baixo quando a lua está cheia e faz a uma casa inteira tremer no momento em que pousa no telhado. Também pode ser Ekuneil, a volumosa cobra cinzenta que tenta enfiar as pontas venenosas de sua cauda dupla nas nossas narinas. Ou quem sabe Kakasbal, um monstro peludo com chifres, orelhas enormes e o corpo formado por órgãos de diversos animais que se odeiam mutuamente. Ou ainda Ua Ua Pach, o gigante que tem três línguas afiadas como navalhas e usa três grandes colares feitos de rins humanos. Ou Xhumpedzkin, uma criatura semelhante a um lagarto, que nos mata mordendo nossa sombra.

E por aí vai...

No entanto, por mais agressivos que sejam os monstros dos maias, seus deuses são ainda mais terríveis. Veja alguns dos mais importantes com quem Percy poderia se defrontar.

O mais famoso é Kukulcán, a serpente emplumada, uma monstruosa cobra maligna que provoca ventos e terremotos. Um ser muito antigo, talvez até mais velho que os drakons, gigantescas serpentes cuja pele é como uma armadura.

Diz-se que, quando Kukulcán aparece, Chahk vem com ele. Chahk é um deus das tempestades, chuva e lutas. Com olhos esbugalhados, nariz enorme e arrebitado e uma concha enfiada na orelha, ele não é lá um sujeito muito atraente. Mas é um guerreiro formidável. Controla o deus K’awiil, personificação de seu feroz machado de raios, sendo, portanto, uma combinação de Thor e Zeus, porém mais assustadora. Ainda por cima, Chahk às vezes aparece em quatro versões separadas mas idênticas de si mesmo, cada qual vestida de uma cor diferente, como um grupo de Power Rangers formado por um único homem.

Assustador, não é? Mas talvez Chahk e Percy possam se tornar aliados. A água era o bem mais precioso no antigo mundo maia, o que fazia de Chahk — aquele que traz a chuva — um dos deuses mais importantes. Ele ficaria sem dúvida intrigado com a habilidade de Percy de controlar a água e manipular tempestades.

Mas como K’awiil, o machado de raios de Chahk, encararia uma aliança com o filho de Poseidon? K’awiil é o deus dos raios por direito e linhagem, majestade e aristocracia. Com seu rosto reptiliano, um espelho fumegante incrustado na testa e um longo focinho que irrompe em chamas, ele é mais um personagem extremamente feio. O pedigree de Percy certamente poderia tranquilizá-lo. A tarefa de K’awiil era verificar a ancestralidade divina dos reis, portanto, ficaria animado com os laços de sangue que ligam Percy diretamente a um dos Três Grandes.

O mais desagradável dos deuses maias é, de longe, o governante do mundo subterrâneo, Ah Puch. Deus da morte violenta e não natural, ele é o equivalente maia de Hades, mas sem a boa aparência ou o charme do deus grego. Percy poderia reconhecê-lo imediatamente pelo colar mortífero de globos oculares desencarnados e pendurados pelos nervos ópticos. Ah Puch é geralmente retratado na forma de um cadáver inchado e em decomposição ou de um esqueleto dançante fumando um charuto. Como se essas imagens já não fossem nojentas o bastante, Percy decerto farejaria sua aproximação, já que o apelido desse deus é Kisin, que significa “o flatulento”.

Os asseclas de Ah Puch são os doze Senhores da Morte, liderados pelo primeiro e pelo sétimo. Os outros dez são demônios violentos que trabalham em duplas para infligir sofrimentos aos seres humanos. O Esfolador e o Sugador de Sangue extraem o sangue das pessoas; o Demônio do Pus e o Demônio da Icterícia fazem o corpo inchar até a morte; o Cetro de Osso e o Cetro de Crânio matam, reduzindo todos a esqueletos; o Falcão e o Caçador fazem as pessoas morrerem cuspindo sangue nas estradas; e o Demônio da Sujeira e o Demônio do Sofrimento se escondem nas casas malcuidadas e matam os proprietários a facadas (um poderoso estímulo para se manter o quarto limpo).

Percy teria que tomar uma decisão: contentar-se em enfrentar algumas deidades ou encarar o maior de todos os mitos maias — a história dos heróis gêmeos que dominaram os Senhores da Morte.

A tarefa não seria nada fácil.

Como os guerreiros-esqueletos em A maldição do titã, é provável que os Senhores da Morte sejam imunes à lâmina de Contracorrente, já que estão mortos. Portanto, presumindo-se que o poder de Nico di Angelo não alcance o mundo inferior dos maias, Percy teria que seguir os passos dos heróis gêmeos e superar os Senhores da Morte com astúcia e dissimulação.

Ele não teria dificuldade em encontrá-los. Seguindo os mesmos arranjos dos deuses do Olimpo e dos deuses nórdicos, é preciso subir para encontrar os bons e descer para encontrar os maus. Na verdade, o mundo inferior nórdico se assemelha ao dos maias na medida em que ambos são frios e úmidos. O nome do mundo inferior maia é Xibalbá, ou “Poço do Medo”, e chega-se a ele por cavernas profundas, escuras e cheias de água. Já que Grover tem pavor desses lugares subterrâneos (que, para ele, cheiram a morte e monstros), talvez nesse momento ele e Percy tivessem que se separar.

Quando chegar à entrada de Xibalbá, Percy vai se deparar com três rios que precisará atravessar — não cursos de águas sagradas, como o rio Estige, mas sim um de escorpiões, um de pus e um de sangue. Já que é bem provável que sua habilidade de solidificar a superfície da água não funcione nessas substâncias, talvez ele queira conjurar um barco. Ou quem sabe poderia pegar uma carona na canoa escavada dos deuses remadores, um deles com um cocar de onça e o outro com um ferrão de arraia enfiado no nariz.

Percy passaria então do nojo à desorientação: uma encruzilhada falante que tentaria mandá-lo para o lado errado. Caramba, os Senhores da Morte adoram pregar peças! Por isso, quando Percy os encontrar pela primeira vez, eles vão convidá-lo a se sentar em um banco, que é, na verdade, uma grelha em brasa. Sua imunidade ao calor deve ajudá-lo a passar nesse teste, mas o fato de ele não cair na armadilha decerto vai deixar os Senhores da Morte furiosos.

Assim como no Acampamento Meio-Sangue, o Xibalbá tem acomodações para visitantes, mas não são chalés comuns. Cada uma delas esconde uma prova com o intuito de humilhar ou até mesmo matar o hóspede desavisado. Como a limpeza dos estábulos, o combate com a Hidra e outras missões do gênero atribuídas a Hércules (e a Percy), as tarefas do Xibalbá são consideradas impossíveis para simples mortais, mas — com certa dose de sorte — podem ser realizadas por um determinado semideus.

Primeiro Percy seria levado para a Casa Escura. Como o nome sugere, ali dentro é escuro como breu, mas os Senhores da Morte têm a delicadeza de lhe fornecer uma tocha acesa. O único problema é que o visitante deve mantê-la acesa a noite inteira, mas devolvê-la intacta pela manhã. Os gêmeos heróis usaram penas de araras e vaga-lumes para simular chamas; talvez Percy pudesse criar uma ilusão qualquer com fogo grego.

Depois, o rapaz enfrentaria uma casa mais fria que a geleira Hubbard, em O filho de Netuno, seguida por outra mais quente que as forjas abrasadoras de Hefesto, em A batalha do Labirinto. Se ele sobreviveu às fortalezas de gelo de Alcioneu e à lava derretida do Monte Santa Helena, podemos supor que Percy consiga ficar frio e não tenha que suar para dar conta dessa tarefa, o que viria bem a calhar, pois ele vai precisar de toda a sua energia para o próximo desafio: a Casa do Jaguar.

Como vocês já devem ter imaginado, a Casa do Jaguar é cheia de famintas onças devoradoras de homens. O dom de Percy de se comunicar com criaturas marinhas e cavalos não o ajudaria em nada nesse lugar. (Os cavalos só chegaram à América Central no século XVI; portanto, eram desconhecidos nos mitos maias.) Supondo-se mais uma vez que o semideus vá preparado, ele poderia imitar os heróis gêmeos e levar algo mais suculento para os animais comerem (talvez alguns daqueles cheeseburgers que Thalia lhe prometeu). Ou quem sabe não poderia repetir seu desempenho com o Leão de Nemeia e distrair as onças com comida de astronauta?

Na quinta casa, Percy teria que se defrontar com Camazotz, a monstruosa rainha dos morcegos-vampiros sugadores de sangue. Com asas coriáceas e olhos brilhantes como os das Fúrias, ela tenta decapitar as pessoas com suas garras maciças. Um golpe certeiro da espada de Percy poderia dar fim às suas atividades maléficas. Mas nem mesmo Contracorrente seria útil contra as pequenas lâminas de obsidiana, afiadas como bisturis, que ficam voando em torno da chamada Casa das Lâminas. O único meio de se salvar seria tentar argumentar com elas, como fizeram os heróis gêmeos, e convencê-las de que seria muito melhor ir cortar outra coisa.

Parece evidente que Percy não conseguirá dormir muito bem à noite no mundo inferior maia, o que é uma pena, porque durante o dia ele será desafiado a participar de intermináveis jogos de bola. Não se esqueçam de que esse jogo maia, como é disputado pelos Senhores da Morte, se assemelha tanto à ideia que fazemos de jogar bola quanto a captura da bandeira do Acampamento Meio-Sangue se assemelha à brincadeira das crianças no recreio. Em outras palavras, é um jogo rápido e violento, cheio de faltas e trapaças, um verdadeiro vale-tudo. Os Senhores da Morte, pelo que se diz, usavam como bola a cabeça cortada de um jogador.

Eca!

A vantagem de Percy, porém, é que, como os caras maus do mundo inteiro, os Senhores da Morte não são tão espertos quanto imaginam. Apesar de sua aparência assustadora e de seu amor pelo derramamento de sangue, são como crianças pequenas: distraem-se com facilidade, são extremamente ingênuos e caem várias vezes nas mesmas armadilhas. Percy logo descobriria um jeito de enganá-los e voltar ao mundo mortal. (Nada de pérolas para sair daquele lugar. Até os mortos têm que enganar os Senhores da Morte para ter uma chance de chegar ao paraíso maia.)

Achamos realmente que Percy sairia vitorioso? Achamos, sim.

Porque Percy Jackson é um herói de verdade.

E heróis sempre vencem.

Mas seus poderes de semideus não salvariam sua pele sem sua inteligência, sua coragem e a presteza de sua engenhosidade de mortal. Afinal, antes de mais nada, os monstros das mitologias foram criados pela humanidade. O papel do sobrenatural era personificar os medos, explicar o inexplicável e impor o sentido de ordem a um universo caótico. (Usar monstros como ameaça também vem sendo há tempos uma forma efetiva de fazer as crianças pequenas se comportarem bem.) Os deuses maias, assim como os gregos, romanos e nórdicos, adquirem poder a partir dos humanos. Os tipos de mitos que os povos antigos inventaram para si nos dizem muito sobre sua forma de viver, pensar e sonhar.

Mas Percy é um garoto moderno. Sabe muito bem que os valentões de uma escola podem ter a língua muito mais afiada que qualquer deidade com cabeça de cobra. Sabe que é mais provável que a causa de uma seca seja uma mudança climática, e não a falta de um sacrifício humano. E sabe que, apesar de todas as paixões, de todos os egos e de todos os chiliques dos deuses, o sentimento mais forte do mundo é o amor de Sally Jackson.

E é isso que os deuses não conseguem suportar.

O problema de ser um deus mitológico, não importa em qual mitologia, é que você está inteiramente voltado para seu próprio mundinho, seus próprios desejos egoístas, sua própria lógica distorcida.

É praticamente o extremo oposto da vida na floresta tropical, onde as criaturas precisam trabalhar em equipe, compartilhando seus recursos e se adaptando aos pontos fracos umas das outras.

Se Percy ainda não entendeu isso, vai entender a partir dessa viagem à América Central.

Tudo é uma questão de trabalho em equipe.

E assim voltamos à equipe de Percy Jackson, unida contra os maiores, mais feios, mais loucos e mais cruéis vilões de todo o mundo de mitos e de monstros.

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Jon e Pamela Voelkel passaram muito tempo nas florestas dos maias, onde realizaram pesquisas para suas rápidas e divertidas narrativas da série Jaguar Stones (Livro 1: Middleworld. Livro 2: The End of the World Club. Livro 3: The River of No Return. O livro 4 será publicado em 2015). Como acontece com Annabeth Chase, a única coisa que assustou Jon foram as aranhas. Como acontece com Grover Underwood, Pamela tem medo de praticamente tudo, inclusive de cavernas, escuridão, águas profundas, morcegos, ratos, altura e cobras (mas não de aranhas, e muito menos de tarântulas, que, afinal, são macias e fofinhas como gatinhos). Quando não estão trabalhando ou escrevendo e ilustrando seus livros, J.& P. visitam escolas, escolhem brindes para os membros do Jaguar Stones Club ou atualizam seu site: www.jaguarstones.com.


Mamãe mandou eu
escolher...

Elegendo seus próprios pais divinos

Jenny Han

Regra Número Um: você não pode escolher seus pais. Mas e se pudesse? Todos fantasiamos sobre nossos “verdadeiros pais” em algum ponto da vida. Se você descobrisse que teve uma mãe ou um pai olimpiano, quem gostaria que fosse? Jenny Han dá alguns importantes conselhos para que você faça sua escolha.

A vida dos meios-sangues na mitologia grega geralmente chega ao fim com sangue, tripas e fogo — estamos falando de deuses vingativos, cães de três cabeças, monstros e antigas maldições. O perigo e o risco de morte são grandes. Se, assim como Percy, você fosse filho de um deus muito poderoso, teria que permanecer no Acampamento Meio-Sangue o ano todo, por medo de atrair monstros no mundo real. Na verdade, nunca poderia voltar para casa. Sua vida mudaria para sempre. Se não chegasse ao fim. Isso se você tivesse sorte.

E ainda assim... aquele sangue poderoso correndo dentro de você, o acesso a toda uma espécie de mundo mágico, um mundo que desafia a razão e até a gravidade... deve ao menos valer a pena. Sei que eu, por exemplo, adoraria experimentar ambrosia e néctar. Agarraria com unhas e dentes a oportunidade de aprender grego antigo, praticar arco e flecha, ter aulas de espada e brincar de Capture a Bandeira com armaduras de verdade. Mas antes que pudesse ser designada para fazer tudo isso no Acampamento Meio-Sangue, teria que ser, de fato, uma meio-sangue. Precisaria ter um pai ou uma mãe que fosse um deus.

A verdade é que você não pode escolher seus pais. Não nesta vida e nem na de Percy. Mas se pudesse, quem escolheria? Sem dúvida, há prós e contras em ter pais deuses. Ninguém é perfeito, muito menos na mitologia grega. Então, você deve escolher com cuidado. Tem que pesquisar com afinco para tomar uma decisão inteligente. Então vamos lá. Não olharemos apenas para o mundo de Percy Jackson, olharemos também para os mitos da Grécia Antiga como referência. Queremos um conhecimento de história completo. Afinal, isso não é o tipo de decisão que se toma às pressas e arbitrariamente. É preciso ter todos os dados em mãos.

“Os Três Grandes”: Possíveis pais

Vamos começar do topo, com Zeus, soberano do Olimpo, senhor dos cordiais céus. Poderoso, impulsivo e apaixonado, Zeus dita as regras com seu raio-mestre. Ser filho de Zeus é ser filho do céu, o que basicamente significa poder voar, se for vontade dele. Todos sabem que voar é o tipo de poder mais legal que uma pessoa pode ter. Desde sempre. Não são muitos que conseguem. E eu seria uma princesa, porque Zeus é o rei; ele rege o Monte Olimpo. Que garota não iria querer ser uma princesa? Existe uma espécie de prêmio associado à ideia de ser filha de Zeus — você está no topo da cadeia alimentar, por assim dizer. É tão popular que é, ao mesmo tempo, a rainha do baile de formatura, a estrela do time principal da escola e a oradora oficial da turma. Provavelmente eu não teria que me preocupar em saber com quem me sentar no refeitório, se é que você me entende...

Mas estar no topo da cadeia alimentar tem um preço — com grandes poderes vêm grandes responsabilidades, certo? Como filho de Zeus, todos os olhos do Olimpo estariam voltados para você. Eles iriam esperar nada menos do que grandeza do filho do deus do trovão. Corresponder a essas expectativas não é pouca coisa.

E depois, tem a ciumenta esposa de Zeus, Hera — algo me diz que ela não seria exatamente uma madrasta protetora. Talvez me transformasse em uma vaca ou algo do tipo, apenas para magoar o marido por tê-la traído mais uma vez. Quando Zeus gerou o herói Hércules com uma mortal, Hera colocou cobras no berço do bebê! Ela fez tudo que estava em seu poder para dificultar a vida de Hércules. E isso mesmo depois de Zeus escolher o nome da criança em sua homenagem, para tranquilizá-la (a versão grega do nome é, na verdade, Héracles)! Então ao mesmo tempo em que eu iria adorar ser uma princesa voadora, a ideia de andar por aí em um campo ruminando ou ser estrangulada até a morte por cobras não é tão atraente. Hera não é o tipo de deusa que se consegue conquistar com facilidade. Se é que eu conseguiria conquistá-la algum dia.

A seguir, temos Hades, o deus do Mundo Inferior. Como tal, Hades controla todos os metais preciosos da terra. Eu ficaria enfeitada como a princesa Grace, de Mônaco, e seria, de fato, uma princesa, a Princesa do Mundo Inferior. A Princesa dos Mortos. Mas não uma princesinha afetada. Não, eu seria totalmente agressiva, com um casaco preto comprido de couro e um cetro de diamante que viraria uma arma. Isso mesmo, uma arma!

Se Hades fosse meu pai, eu não teria medo da morte. A morte seria como meu criado britânico, meu próprio mordomo. Eu diria “Sirva-me”, e a Morte o faria. Eu poderia até mesmo trazer meus entes queridos de volta à vida — não sem pagar um alto preço, mas ainda assim... Esse é o bônus.

Eu poderia até aprender a gostar de viver no escuro, sem a luz do sol ou as flores.

Nenhum monstro se atreveria a mexer comigo — na verdade, teriam que me proteger, seguir minhas ordens, ser meus subordinados. Cérbero seria meu animal de estimação: eu poderia treiná-lo para atacar os vilões. (Embora meu pai fosse, de certa forma, um vilão.)

Mas não é tão ruim assim — afinal, há honra na morte, e Hades de fato tem algum senso de honra. Curiosamente, ele é o único dos Três Grandes que não quebra o pacto sagrado gerando um herói mortal. E quando Percy devolve o elmo das trevas de Hades, este devolve a mãe sequestrada de Percy. Ele não precisava fazer isso. O deus tem um senso de jogo limpo, mesmo que seja um pouco distorcido — afinal, sequestrou a esposa para fazê-la se casar com ele.

Além disso, ainda que ele tinha ficado sentado durante praticamente toda a batalha contra os titãs em O último olimpiano, fez sua parte no momento realmente importante. Se Hades não tivesse ajudado os meios-sangues a enfrentar Cronos, sabe-se lá se eles teriam conseguido salvar o Olimpo. Depois disso, não dá para dizer que ele não tem noção de honra.

O que ele não tem é uma casa confortável. No final da série Percy Jackson e os olimpianos, Hades consegue um chalé no Acampamento Meio-Sangue, o que significa que eu talvez possa morar ali durante o verão. Mas e o resto do ano? Provavelmente teria que ficar com meu pai no Mundo Inferior, sentada no meu trono feito de ossos de gatinhos ou de outra coisa igualmente mórbida. O inferno seria meu parque de diversões. Mas quem quer brincar no inferno? Eu é que não. Preferiria ficar longe de tudo isso; não vale a pena viver em uma mina para ter diamantes.

Além do mais, e se eu herdasse a aparência de meu pai da mesma forma que Nico di Angelo? Percy descreve os olhos de Nico como possuidores de um “fogo intenso, maníaco, que fazia desconfiar que ele era um gênio ou um louco”. Tenho a vaga impressão de que olhos de louco não cairiam bem em mim.

E, enfim, temos Poseidon, o pai de Percy. Quíron o chama de “Senhor dos Terremotos. Portador das Tempestades. Pai dos Cavalos” em O ladrão de raios. Ele é tudo isso e mais ainda — é o deus do mar. Eu amo o oceano. Estou certa de que se eu quisesse, poderia ser parte sereia e passar metade do ano na água com meu namorado tritão, libertando golfinhos das redes de atum e montando no dorso de jubartes. Ah, ter meu próprio cavalo-marinho! E quando estivesse em terra firme, eu ainda seria alguém da água. Quando me machucasse, bastaria pular para debaixo do chuveiro e estaria curada. Poderia fazer surgirem fontes e cachoeiras aonde quer que eu fosse, e aposto que seria uma ótima surfista. Nem precisaria de prancha. Talvez fosse nadadora olímpica, ou capitã do meu próprio barco, ou amazona — já que Poseidon é o senhor e criador dos cavalos, imagino que eles me dariam ouvidos também. Com o deus do oceano como pai, o mundo seria minha ostra!

Mas Poseidon também não é perfeito. Ele não tem um relacionamento muito fortalecido com sua família — uma vez, desonrou o templo de Atena levando lá uma garota para uma tarde romântica, e é orgulhoso demais para convencer Zeus de que não roubou seu raio-mestre, o que resulta na perigosa jornada de Percy. Poseidon ama Percy, coisa que demonstra calorosamente com um abraço em O último olimpiano; nem por isso, porém, deixa de usá-lo para seus propósitos.

É um deus orgulhoso, o tal Poseidon. Imagine só como seria ter um pai que nunca pede desculpas, sempre acha que está certo — o que não é muito surpreendente para a maioria das pessoas, diga-se de passagem. Ter um deus como pai é, supostamente, uma fantasia divertida, e não parte da vida real.

Em suma, fico pensando: será que seria tão bom ter um pai divino, e não uma mãe divina?

Possíveis mães

No topo da cadeia alimentar das deusas está Hera, a rainha do Olimpo, esposa de Zeus. Ela é provavelmente a deusa mais poderosa de todo o Olimpo. A cada século, Hera tem permissão de conceder um desejo. Certamente o concederia à própria filha. Desejos à parte, contudo, seria uma honra incrível herdar um pouco desse poder. O problema é que eu não iria querer herdar suas tendências ciumentas nem sua natureza vingativa.

Hera é a deusa do casamento, então é extremamente improvável que pulasse a cerca — e mesmo que pulasse, ela parece um pouco entediante em termos de pais divinos. Hera não possui muitos interesses. Fica tão ocupada correndo atrás das namoradas de Zeus para transformá-las em vacas e doninhas que não pode ser uma boa mãe.

A propósito, vamos dar uma olhada em seu histórico como mãe. Quando seu filho Hefesto nasceu, ela o achou tão feio que o arremessou do topo do Monte Olimpo. Legal. E seu outro filho, Ares, deus da guerra, é uma pessoa muito desprezível. É meio irônico o fato de a deusa do casamento e do parto não ser boa esposa nem boa mãe.

Depois, temos Ártemis, deusa da caça e da lua e, em todos os aspectos, uma mulher guerreira. Ser filha de Ártemis é obviamente impossível. Ela jurou ser virgem por toda a eternidade — em outras palavras, não teria filhos nem constituiria família, tendo ao lado apenas seu bando de leais Caçadoras. Se ela fosse minha mãe, bem, eu só poderia ser produto de uma concepção imaculada. Pode me chamar de menino Jesus versão 2.0 — para não fugirmos muito ao campo de possibilidades do mundo da mitologia grega. Eu seria muito boa no arco e flecha e na caça — embora deva dizer que não gosto nada de matar animais. Não visto peles, diferentemente de Ártemis, que corre por aí vestida assim — com cabeça, casco e tudo o mais.

Ártemis seria pelo menos uma mãe leal, pois é uma mulher de palavra. É ela quem defende Percy, Annabeth e Thalia no Conselho Olimpiano quando os outros deuses querem puni-los, em A maldição do titã. Ela diz: “Se destruirmos heróis que nos prestam favores, então não seremos melhores que os titãs.” Que mulher de classe!

Ela não discrimina mortais e imortais. Todos são bem-vindos (embora seja verdade que ela não aprecia muito garotos se juntando ao seu bando de Caçadoras), contanto que escolham o caminho dela: nunca crescer, ser jovem para sempre, exatamente como Peter Pan. Parece bom, mas é também definitivo demais. Não sei se eu iria querer ser uma garota eternamente. E não iria querer ser rejeitada por escolher um amor verdadeiro e uma vida adulta. Iria querer seguir meu próprio caminho, e não o da minha mãe.

Duvido muito que Ártemis aprovasse futilidades como formatura, unhas pintadas ou garotos. Se eu levasse um fora, até imagino a reação dela: iria me dizer que os homens não prestam e transformaria o rapaz em um javali (pois todos os homens são porcos, entendeu?). Embora algumas vezes em minha vida eu tenha ficado louca o bastante para ter vontade de transformar um rapaz em algo pior do que um javali, ter uma mãe capaz de fazer isso — e que de fato fizesse — seria demais. Não preciso desse peso em minha consciência. Às vezes, o que uma garota realmente precisa em sua mãe é de um ombro para chorar.

Então, temos Deméter. Não se trata de uma deusa muito poderosa, mas ela tem lá sua importância. Deméter é a deusa da natureza e dos campos, e, devo dizer logo, não sou de gostar dessas coisas. Mas gosto de flores. Como filha de Deméter, eu poderia cultivar trigo, flores e todos os tipos de coisas bonitas.

O único problema é que a outra filha de Deméter, Perséfone, acabou sendo sequestrada e foi viver no Mundo Inferior, e esse não é um lugar onde eu iria querer estar. Mesmo que eu não acabasse me tornando a segunda esposa de Hades, Deméter provavelmente seria sufocante e superprotetora, pois Perséfone, minha irmã mais velha, passa metade do ano no inferno. É provável que eu ficasse sentada no meu quarto cuidando das minhas plantas e desejando sair à noite como todos os meus amigos. E namoro, nem pensar — depois do que aconteceu com Perséfone, tenho certeza de que Deméter vetaria qualquer tipo de ação envolvendo garotos. Qual a graça de ser um meio-sangue se não tenho permissão sequer de sair e usar meus poderes? E, falando em poderes, cultivar flores não é a habilidade mágica mais interessante de todas. Se eu quisesse ser jardineira, seria jardineira.

Com Afrodite, a deusa do amor e da beleza, os privilégios são bem óbvios. Se eu fosse sua filha, aposto que seria tão indescritivelmente bela que os garotos iriam esquecer o próprio nome. Iriam se esquecer de onde estavam e que horas eram, tudo por causa de meu lindo — não, estonteante — rosto. É bem tentador. Mas, novamente, não gostaria de viver tão envolvida com minha aparência a ponto de não ligar para mais nada — Percy descreve os filhos de Afrodite como seres que ficam apenas sentados, admirando-se e fofocando o dia todo. A perfeição física também pode ser entediante.

E se eu não fosse tão maravilhosa quanto ela? Isso pode acontecer, você sabe. Eu poderia não herdar os genes da beleza. Poderia ser feia ou, pior, medíocre. Isso seria devastador. Se Afrodite fosse minha mãe, aposto que ela seria uma daquelas mães exibicionistas, que pressionam a filha para que ela atinja a perfeição física — pele bronzeada, dentes brancos e cabelo louro exuberante. Se eu não correspondesse às suas expectativas de beleza, ela poderia não assumir que era minha mãe. Poderia até mesmo me arremessar do Monte Olimpo, como Hera fez com Hefesto.

Mas, além do fator vaidade, não sei se eu iria querer uma mãe que alega valorizar o amor acima de tudo, mas que depois muda de atitude e trata o próprio marido de forma tão miserável. Afrodite é cruel com Hefesto e esfrega seu relacionamento com Ares na cara do pobre deus. Por falar em Ares, o que ela vê nele? Mesmo sendo a deusa do amor, não parece lá muito entendida do assunto. Estamos falando de uma mulher que deu início à Guerra de Troia por causa de um pomo de ouro. Ela se parece muito com aquelas mães que continuam a viver com o marido mesmo que o casamento tenha fracassado. Acorde e sinta o perfume da ambrosia, Afrodite — seu homem, Ares, é um ser desprezível. Observá-la andando com aquele sujeito seria muito frustrante, tenho certeza. Ela é uma deusa, com milhões de anos de idade; já deveria ter superado aquele bad boy a essa altura.

Quando o assunto é sabedoria, não há quem supere a deusa Atena. Como filha dela, eu também seria muito sábia. Além disso, herdaria seus belos olhos cinza. Sempre teria um plano, sempre saberia o que fazer. Certamente seria boa em um momento de crise, assim como Annabeth. Se optasse por viver no mundo dos mortais, poderia ser secretária de Estado, ou campeã mundial de palavras cruzadas.

Dá para ver que Atena é uma boa mãe pela maneira como cuida dos interesses de Annabeth. Logo de início ela diz que Percy não é boa companhia e que poderia representar perigo para sua filha, e, embora esse tipo de coisa seja difícil de ouvir, ela só está tentando ser uma boa mãe. Mas também poderia ser irritante ter uma mãe que sabe de tudo e vê tudo. Uma garota tem o direito de guardar um ou dois segredos.

Outros possíveis pais

Ares é o deus da guerra; ele floresce no ódio e na agressividade. É a adrenalina que pulsa em nossas veias quando estamos loucos da vida, procurando briga. Se Ares fosse meu pai, pelo menos eu saberia como me virar em uma briga. Seria tão durona que ninguém tentaria mexer comigo. A dureza pode ser algo bom. Eu gostaria de ser durona. Mas, segundo Percy, em O ladrão de raios, os filhos de Ares são alguns dos “maiores, mais feios e mais perversos garotos e garotas de Long Island, ou de qualquer outro lugar no planeta”. Grandes, feios e malvados? Não, obrigada. Aparentemente, também não são muito espertos. Ares é conhecido por sua belicosidade, não por seu cérebro. E, como diz Annabeth no mesmo livro, “mesmo a força às vezes tem de se curvar à sabedoria”.

Posso até imaginar o que seria ter o deus da guerra como pai. Esqueça os esportes organizados: Ares seria o pai correndo paralelamente às laterais da quadra ou do campo gritando com o árbitro e xingando outros pais. Nem pense em levar em casa o namorado: Ares provavelmente iria espancá-lo até a morte com um taco de polo só por ele pensar em namorar sua filha. E nossas brigas! Ares e eu iríamos guerrear o tempo todo por causa do meu horário de voltar para casa e da minha falta de instinto assassino.

Depois vem o irmão gêmeo de Ártemis, Apolo, o deus sol, deus da ordem e da razão. Apolo provou ser leal à irmã, o que lhe dá alguns pontos extras. E eu poderia circular por aí de carona em sua flamejante carruagem e fazer o sol nascer. O sol iria subir e descer nos meus ombros. Bem, nos ombros do meu pai. Além disso, é muito provável que eu fosse excelente no arco e flecha e possivelmente na lira. Apolo é também o deus da poesia, o que é legal. Tenho a sensação, no entanto, de que posso me cansar de ouvi-lo o tempo todo declamando poemas ruins, como acontece nos livros de Percy.

Apolo é também profético, ou seja, vê o futuro. Não seria nada mau herdar esse talento dele. Eu saberia de toda a minha vida mesmo antes de tê-la vivido. E saberia da vida de todo mundo. Poderia ter meu próprio canal de atendimento, para o qual as pessoas ligariam em busca de conselhos. Mas não gostaria de acabar como Cassandra — Apolo lhe concedeu o dom da profecia, mas, como a moça não correspondeu ao seu amor, ele fez com que ninguém jamais acreditasse em suas previsões. Isso seria péssimo. Qual é a graça de ser um sabe-tudo se ninguém acredita em você?

E não vamos nos esquecer de Dioniso, o deus do vinho e da fertilidade. Ele é irmão de Apolo e também seu oposto em comportamento. Em vez da razão e da moderação, Dioniso é só prazer e caos. Daí o vinho. Que comece a festa, era o que Dioniso diria.

Que incrível seria fazer aparecer bebidas sempre que eu quisesse! Um milk-shake de chocolate ou uma raspadinha de Cherry Coke do nada. Nada mau. Certamente me tornaria mais popular nas festas e nos casamentos. Mas Cherry Coke não supera voar, andar de carruagem pelo céu ou até mesmo conversar com cavalos. Se eu quiser uma raspadinha de Cherry Coke, posso comprar. Talvez seja por isso que Dioniso é tão mal-humorado; suas habilidades parecem ofuscadas quando comparadas às do restante da família. Não é à toa que ele é tão temperamental.

Depois temos Hefesto, e, bem, não há nada de muito atraente em Hefesto. Não mesmo. Não quero soar superficial, mas ele não é exatamente conhecido como o sujeito mais atraente no Olimpo, e estou certa de que seus filhos também não são grande coisa — todos troncudos por causa do trabalho nas forjas. É, ele poderia me ensinar como trabalhar com alvenaria ou confeccionar armas, mas meu interesse em me tornar ferreira é nulo. O que me interessa, no entanto, são as ferramentas mágicas. Todo item mágico legal que existe no Olimpo foi forjado por Hefesto. Ele fez o capacete e as sandálias aladas de Hermes, o arco e a flecha de Cupido e a carruagem de Apolo. Talvez fizesse para mim uma máquina de escrever mágica ou algo do tipo, ou quem sabe óculos de sol de ouro que me tornassem invisível. Isso seria o máximo.

Mas seria deplorável ter um pai cuja esposa o trai o tempo todo. A vida dele é meio deprimente, ponto. Tem a história de ter sido jogado do Monte Olimpo pelos pais, motivo pelo qual é aleijado. Ele sofreu alguns infortúnios, o que certamente o afeta como pai — talvez tenha ficado calejado, talvez não. Talvez seja um pai compassivo por causa de tudo o que teve que aturar. E, mais uma vez, talvez seja amargo por conta de sua vida sofrida. Não sei se gostaria de descobrir.

Como Hermes é o deus dos viajantes e das travessuras, se eu fosse filha dele poderia fazer todas as viagens e travessuras que sempre quis, sabendo que meu pai estaria zelando por mim, todo orgulhoso. Poderia ser a próxima Amelia Earhart, o próximo Marco Polo. Mas vejam no que Luke se transformou. Ele não é Amelia Earhart. Sei que é injusto fazer como os Oompa-Loompas e jogar a culpa automaticamente nos pais, mas abandonar o próprio filho deixando que ele fosse criado pela mãe maluca não parece uma atitude de um pai fantástico. Ainda assim, depois de tudo o que Luke fez, Hermes gosta dele e quer vê-lo a salvo. Não tenho tanta certeza se muitos outros deuses ou deusas fariam a mesma coisa por um filho genioso.

Hermes encoraja Percy e seus amigos a correr riscos, a conquistar os próprios caminhos através do esforço — a não obedecer sempre às regras, mas a fazer as suas. Não trata Percy de modo superior como alguns outros deuses; ele o trata como uma pessoa verdadeira. E, para um deus da travessura e do roubo, ele é muito sábio.

Quem é seu pai? Ou sua mãe?

Agora, quem escolher? Há algumas boas opções: tritão, voar, raspadinhas de Cherry Coke. É uma decisão difícil. De todos, Poseidon parece a melhor aposta, isso é certo. Ele demonstrou ser um bom pai para Percy e tem poderes invejáveis. Tenho certeza absoluta de que seria um bom pai para mim. Aposto que me daria uma tiara de pérolas no meu aniversário de dezesseis anos.

Mas não é o pai que eu escolheria. Não, de todos os deuses e deusas do Olimpo, eu teria que escolher Ártemis. Com Ártemis como mãe, o céu noturno, a Lua e as estrelas seriam minhas. Quem precisa de pérolas quando pode usar um cordão de estrelas?

Ela me ensinaria a ter coragem, independência e orgulho. Iria me ensinar a respeitar a natureza e os animais. Também parece ser a mais humilde dos deuses, a mais disposta a aprender com os outros. Talvez isso se deva ao fato de ser a mais infantil. Ártemis é destemida e corajosa, mas mesmo assim se dispõe a assumir os fardos dos outros. Carrega o mundo nos ombros exatamente como Atlas fazia, e por vontade própria. É a classe em pessoa. Tendo ela como mãe, talvez eu também fosse assim.

Mas há outro motivo para eu escolher Ártemis. Quando morresse, eu me tornaria uma estrela, como Zoë Doce-Amarga. Eu seria minha própria constelação. As pessoas me fariam pedidos antes de dormir, e eu brilharia por toda a eternidade. Os viajantes seriam guiados por minha luz, os barcos seguiriam meu trajeto. Eu escolheria tudo isso, comparado a ser transformada em vaca ou em árvore.

Há maneiras piores de morrer do que ser transformada em uma estrela brilhante pela própria mãe. Na verdade, não consigo pensar em morte melhor para um jovem herói. Todos eles se esforçam para provar seu valor, para fazer seu nome sem a ajuda de terceiros. Antes de tudo, é por isso que todo mundo quer ser herói — para fazer a coisa certa, mas também para se tornar imortal, para se tornar uma lenda da qual as pessoas falarão para sempre. Ou, pelo menos, para ser importante para os próprios pais. Porque, no final, isso é tudo o que as crianças do Acampamento Meio-Sangue realmente querem: ser o brilho, a estrela, aos olhos dos pais.

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Jenny Han é autora de Shug, a história de uma garota de doze anos que descobre o amor do jeito mais difícil. Mas será que existe algum outro jeito? Jenny nasceu e foi criada em Richmond, Virgínia, e atualmente mora no Brooklyn, em Nova York, onde escreve livros e também trabalha em uma biblioteca escolar. Entre os livros que publicou estão O verão que mudou minha vida, Sem você não é verão, Sempre teremos o verão e Olho por olho.


Percy, eu sou seu pai

Sarah Beth Durst

Quem nunca quis dar nota aos pais? “Lamento, mãe, mas você tirou F, por não ter me deixado ir àquela festa.” Ou: “Pai, foi muito bom você ter aparecido no meu jogo de beisebol. Vai tirar 8,5.” Sarah Beth Durst nos leva a uma jornada com os bons, os maus e os péssimos pais da série Percy Jackson e os olimpianos. Um alerta: se você der uma nota ruim para seus pais divinos, não conte nada a eles. É capaz de você acabar virando uma árvore ou uma cratera fumegante.

Lembrar futuramente: não ter filhos em um romance fantástico.

É sério, já notaram a frequência assustadora com que os pais nos romances fantásticos morrem, são sequestrados, desaparecem, não têm a mínima noção do que está acontecendo, são distantes ou desconhecidos? Isso meio que me dá vontade de reunir todos os autores, colocá-los sentados naqueles divãs de psicanálise e dizer: “Agora me fale sobre sua mãe...”

Por outro lado, funciona muito bem como um dispositivo de narrativa: tire os pais do caminho e então algo interessante poderá acontecer. Penso nisso como a técnica de Esqueceram de Mim. Você a vê nos livros de C.S. Lewis, Lemony Snicket, J.K. Rowling... e definitivamente a vê na série Percy Jackson e os olimpianos. Todas as crianças do Acampamento Meio-Sangue, incluindo o protagonista Percy, foram separadas de seus pais.

Mas os pais somem realmente da história? É verdade que na tela eles não aparecem muito tempo, mas nos livros de Rick Riordan a influência desses pais raramente vistos é tanto profunda quanto (vejam vocês) mítica.

Os pais nos livros de Percy Jackson podem ir do superlegal ao extremamente malvado. Para facilitar nossa conversa sobre eles, gostaria de apresentar-lhes a Escala Sarah Para Avaliação de Desempenho Paterno-maternal.

Certo, o nome ficou um pouco longo demais. Na verdade é só um boletim.

Prêmio de Pior Pai (nota = expulsão imediata)

Vamos começar com o pior dos piores, o ponto mais baixo da Escala Sarah Para Avaliação de Desempenho Paterno-maternal, o pai que é tão ruim que ganhou o Prêmio de Pior Pai por três milênios seguidos. (Concorrendo por vários anos, também ganhou o de Pior Traje, quando apareceu na cerimônia de premiação de calça boca de sino e suspensórios... Certo, essa eu estou inventando. Dioniso sempre vence o de Pior Traje por suas camisas havaianas com estampa de tigre.) O ganhador desse prêmio é diretamente responsável pelo conflito central da série. Se tivesse cultivado relações melhores com seus filhos, toda a série teria sido diferente. Ele é o Grande Mau, o vilão principal. Também é um péssimo pai.

Não estou falando do péssimo pai que não comparece ao recital de piano da filha, ou que até mesmo esquece de pegar o filho no treino de futebol. Não, esse protótipo de virtude paterna começou sua carreira de pai comendo os próprios filhos.

Sim, isso mesmo. Ele os comeu. Engoliu-os inteiros. Sem ketchup. Sem escabeche. Sem piedade. Ia se safar dessa, mas sua esposa o enganou fazendo-o engolir uma pedra, em vez do bebê Zeus. Então, Zeus cresceu para libertar os irmãos da barriga do pai, cortar o querido papai em pedaços e atirá-los nas profundezas do Tártaro.

Estou falando, é claro, de Cronos, o maligno senhor dos titãs, que quer fazer chover morte, destruição e caos no mundo. Em uma afirmação que talvez seja uma das mais eufemísticas da série, Percy diz: “Cronos não ligava para ninguém, nem para os próprios filhos.”

Para ser justa, Cronos teve outros filhos que não comeu. Mas também não se dá muito bem com eles. Em A maldição do titã, descobrimos que Quíron, o sábio e amável centauro que treina Percy e faz amizade com ele, também é filho de Cronos. Ele quer se unir aos heróis na jornada para salvar Ártemis e Annabeth, mas acredita que, se fizer isso, seu pai o matará (cumprindo, assim, a profecia do Oráculo). Independentemente de Quíron ter ou não razão, isso não é o que eu chamaria de relacionamento saudável. Para citar Percy novamente: “Quer dizer, eu conheci uma grande quantidade de parentes embaraçosos, mas Cronos, o maligno senhor titã que queria destruir a civilização ocidental? Não era o tipo de pai que a gente convida para a escola no ‘dia da profissão’.”

Reprovados (nota = F)

Subindo na Escala Sarah, encontramos os reprovados. Entre esses encantadores seres estão Ares, Gabe Cheiroso e Atlas.

Com Atlas é tranquilo. Matar o próprio filho = um automático F. Na batalha culminante de A maldição do titã, a filha de Atlas, Zoë Doce-Amarga, dispara flechas no pai para proteger Percy, saltando depois entre Atlas e Ártemis para proteger sua estimada deusa. Atlas a arremessa longe sem hesitar um segundo sequer. Zoë morre, em parte pelo veneno do dragão de Ládon, mas principalmente, como acredita Percy, pelo golpe fatal do pai. “[...] a fúria de Atlas”, pensa o garoto, “a havia partido por dentro.” Pouco importa de quantas competições de arco e flecha Atlas possa ter participado ou quantas vezes tenha ficado acordado até tarde preocupado enquanto a filha saía para se encontrar com Hércules. Ele a matou. Isso é o suficiente. “Foi ela quem começou” não é uma justificativa.

A seguir, vamos analisar Gabe Cheiroso, o padrasto de Percy. Diferentemente de Atlas, ele é, na verdade, responsável por salvar a vida de Percy. Seria de se imaginar que isso aumentasse sua nota, mas, segundo as rígidas regras da Escala Sarah, as intenções contam. Gabe o protege exalando um cheiro tão predominantemente humano que mascara o “odor” mágico do semideus, escondendo Percy dos monstros míticos que caçam os filhos dos deuses. (Estou achando que não se trata de um cheiro literal, mas talvez eu esteja enganada — Percy diz que “o cara fedia a pizza de alho embolorada enrolada num calção de ginástica”. Humm.) Essa proteção não é de forma alguma intencional. Assim como quase todas as pessoas que não foram apresentadas ao desodorante, Gabe não tem consciência do poder do próprio cheiro, seja mágico ou não.

Se observarmos os atos intencionais de Gabe, vemos que ele abusa emocionalmente de Percy, abusa fisicamente da mãe de Percy e desperdiça o dinheiro da família com jogos e bebida. Quando sua esposa e seu enteado desaparecem, em O ladrão de raios, ele acusa Percy de traição e explora a situação em proveito próprio. Assim, embora desempenhe um serviço valioso para a série (preservando o protagonista = bom), como figura paternal ele fracassa.

Nosso último reprovado é o deus Ares. Ares é o epítome de todos os valentões, e isso se traduz diretamente em seu estilo paternal. Veja a conversa de Ares e Clarisse em O Mar de Monstros. “Você é patética”, ele lhe diz. “Eu deveria ter deixado um dos meus filhos assumir essa missão.” Ela jura que será bem-sucedida e o deixará orgulhoso. Ele retruca: “Você vai conseguir. Se não...” — então ergue o punho, e Clarisse se encolhe. Como Gabe, ele é um agressor. Clarisse inicia sua jornada no livro dois em boa parte para agradar ao pai e impressioná-lo, mas Ares não vai lhe dar o apoio e o louvor de que ela necessita. Ele é um fracasso como pai. (Na verdade, também é um fracasso como filho e irmão. Acha que a guerra entre parentes é o melhor tipo de guerra. “Sempre a mais sangrenta”, afirma. “Nada como ficar olhando seus parentes lutarem, eu sempre digo.” Ele deve ser uma alegria só nas reuniões familiares. Dá para imaginar o Natal em sua família.)

Regular (nota = D)

Apenas levemente melhor do que os pais efetivamente malignos são os pais negligentes. A mãe de Thalia se enquadra nessa categoria. Tudo o que sabemos a respeito dela é que era alcoólatra que morreu por dirigir bêbada. Mas isso é mais do que sabemos sobre os outros pais nota D. Esses quase fracassos são uma infinidade de deidades que deixam de reconhecer sua prole. O chalé 11 no Acampamento Meio-Sangue está cheio de indeterminados (crianças cuja paternidade é claramente divina, mas desconhecida). Percy os descreve em O ladrão de raios como “adolescentes que pareciam mal-humorados e deprimidos, como se estivessem esperando por um chamado que nunca viria. Conhecera crianças assim na Academia Yancy, descartadas para internatos por pais ricos que não tinham tempo para cuidar delas. Mas os deuses deveriam se comportar melhor”.

Por causa dessa negligência paternal, os indeterminados acabam se sentindo tristes e amargurados — e ficam, portanto, vulneráveis à manipulação de Luke e Cronos. Graças a esses pais nota D, o exército de Cronos aumenta. E isso é imperdoável. Talvez os deuses não sejam muito fãs da introspecção, mas seria de se esperar que, após vários séculos de paternidade, eles tivessem aprendido algumas dicas, talvez lido alguns livros de autoajuda (Homens são de Marte, mulheres são de Vênus...). Estou com Percy — os deuses deveriam ter se saído melhor, e Percy não precisaria ter usado seu desejo em O último olimpiano para obrigá-los a reconhecer os próprios filhos.

Se não fosse pelo fato de que toda a civilização ocidental poderia ser destruída, eu diria que esses pais e mães imprestáveis mereciam a surra da qual escapam por pouco em O último olimpiano.

Satisfatório (nota = C... ou quase)

Quatro pais divinos compõem o centro de nossa curva em sino. Alguns são classificados como C +, outros como C -. Eles são, às vezes, negligentes (embora isso possa, em parte, ser justificado pela regra contra a interferência direta) e ocasionalmente manipuladores (Percy chama isso de “tratar seus filhos como peças de xadrez”), mas demonstram de fato alguns indícios de competência paternal.

Vamos começar com Poseidon, o pai de Percy. Como aspecto positivo, ele de fato declara Percy como próprio filho pouco depois da chegada do garoto ao acampamento, o que é mais do que muitos pais divinos fazem. (Eu realmente gostaria que ele tivesse dito “Percy, eu sou seu pai”, com uma voz grave como a de James Earl Jones. Não teria sido incrível? Posto isso, um professor mais velho dá a Percy uma caneta que se transforma em uma espada mágica, semelhante a um sabre de luz, dizendo-lhe que seu pai queria que a arma fosse dele assim que tivesse idade suficiente, portanto, meu gosto por Guerra nas estrelas é satisfeito.)

Outro aspecto positivo: o pai de Percy aparece toda vez que o garoto lhe pede ajuda. Por exemplo, quando a Quimera o morde, no livro um, Percy evoca o pai para salvá-lo enquanto cai na água, e Poseidon não apenas o salva, como também manda alguém que lhe dará um conselho útil para que a jornada possa se completar. (Parece que alguém está tentando acumular créditos extras...) No livro dois, Percy clama por ajuda, e seu pai envia os hipocampos. (Hipocampos são minha nova criatura mitológica predileta. Vivo pedindo uma para meu marido. E ele vive me dizendo que não, pois o grifo não iria gostar.)

O aspecto negativo é que, como a maioria dos deuses, Poseidon é um pai bastante ausente. Em O Mar de Monstros, Hermes pergunta a Percy se ele já se sentiu abandonado pelo pai, e o garoto pensa: “Só algumas centenas de vezes por dia.” Ele adoraria que o pai estivesse junto de sua mãe, que o procurasse com mais frequência, que o avisasse de que tinha um meio-irmão e que fosse mais consciente da existência de Percy. Como Clarisse, Percy almeja a aprovação paternal, mesmo que não admita isso. Como diz Grover: “Você está contente porque seu pai está vivo. Sente-se bem pelo fato de ele tê-lo assumido como filho, e parte de você quer que ele fique orgulhoso. Foi por isso que você despachou a cabeça da Medusa para o Olimpo. Você queria que ele visse o que você fez.”

Diferentemente de Ares com Clarisse, Poseidon reconhece e elogia Percy. Mais do que isso, seu pai se responsabiliza por ele e deposita nele uma enorme confiança, apostando que o filho não se tornará maligno nem destruirá o mundo. (Certo, para a maioria dos pais, isso não é realmente um esforço, mas os deuses têm que se preocupar com esse tipo de coisa.) Ele também consegue aparecer na festa de aniversário de Percy em A batalha do Labirinto, apesar de estar no meio de uma guerra oceânica, e diz ao garoto que ele é seu filho favorito. Como Percy relata: “ele sorriu, e naquele momento o simples fato de estar com meu pai na cozinha foi o melhor presente de aniversário que já tive.” Humm... talvez Poseidon devesse realmente ser elevado para uma nota B. A única coisa que o impede de ganhar uma nota mais alta é o fato de que abandona o filho Tyson (o ciclope), deixando-o morar nas ruas de Nova York em uma caixa de papelão. Está certo que mais tarde ele atende aos pedidos de Tyson, dando-lhe Percy como irmão e arranjando-lhe um emprego com boa remuneração... Certo, ele é um C +, porém, com algum esforço, Poseidon poderia saltar na Escala de Desempenho para um pai nota B.

Hermes é outro pai nota C, que também tem potencial para subir na Escala de Desempenho. Seu coração está no lugar certo: quer salvar o filho Luke, que tem agido bem mal. Possivelmente devido à falta de orientação paterna, acabou se juntando a más companhias. O maligno senhor titã que quer derrotar a civilização não pode ser boa influência para uma mente e um corpo ainda em formação. (Continuo achando que deveria haver uma espécie de campanha de utilidade pública: Não fume, não beba, não conspire para a destruição do mundo com a ajuda de antigos monstros mitológicos...) Mas, apesar das ações covardes de Luke, Hermes recusa-se a desistir do filho. “Meu caro jovem primo”, diz ele a Percy em O Mar de Monstros, “se há algo que aprendi ao longo das eras, é que você não pode desistir da sua família, não importa quanto se sinta tentado a isso.” Depois da morte de Luke, fica claro como Hermes amava o filho e como queria que esse amor fosse correspondido. A garantia que Percy lhe dá do amor de Luke parece lhe trazer algum consolo.

No entanto, até o final da série, Luke claramente tem problemas com o pai. (É sério, olhe para seu barco — foi nomeado em homenagem a Andrômeda, uma garota que foi acorrentada a uma rocha pelos pais para ser comida por serpentes marinhas. Isso, sim, é problema de família...) Dá para notar a mágoa que ele sente pelo pai desde a primeira vez que Percy o encontra em O ladrão de raios, e essa mágoa alimenta sua opção por trair Percy no livro um, suas ações em nome de Cronos no livro dois, seu papel na prisão de Annabeth no livro três e a doação de seu corpo para uso de nosso principal vilão. Então, mesmo que só o vejamos por algumas páginas esporádicas ao longo da série; mesmo que suas intenções sejam boas, que ele acredite que, no final, Luke vai tomar a decisão certa e salvar o Olimpo, Hermes é também a força motriz por trás do comportamento destrutivo do garoto.

Outra deusa que se sai mais ou menos na maternidade é Atena, a mãe de Annabeth. Não a vemos muito ao longo da série. Ela de fato ajuda a filha de vez em quando — dá à filha um capuz de invisibilidade (ei, é isso que eu deveria pedir para minha mãe no Natal!) e aconselha a Percy em sua jornada para salvar Annabeth, em A maldição do titã. Também dá a Percy e Annabeth alguns conselhos importantíssimos durante a batalha de Manhattan, em O último olimpiano. Mas não é do tipo que passa noites comendo pizza com a filha. Eu lhe daria um simples C. Ela é uma força neutra na vida de Annabeth.

Zeus é C -. É verdade que ele salva a filha Thalia da morte ao transformá-la em um pinheiro, mas a vida como árvore é realmente boa? Ele não poderia ter intervindo um pouco antes ou de forma mais efetiva? Que tal transformar os inimigos dela? (Eu sei, eu sei, sem interferência direta, mas ele já não está quebrando a regra transformando-a em árvore?) Ele também fornece anjos para ajudar nossos heróis a escapar dos guerreiros-esqueletos na barragem Hoover, mas não é tão rápido para atender aos outros pedidos dela (por exemplo, em A maldição do titã, ela implora por uma tempestade de raios, e o resultado é praticamente o mesmo que se eu fizesse a “dança da chuva”). Então, ele está disponível para ela quando as coisas estão na situação mais precária, mas não é o tipo de pai presente no dia a dia.

Não existe entre eles uma relação baseada na confiança. Quando um raio quase a atinge, em A maldição do titã, Thalia acha que o pai está tentando matá-la, mas na verdade é Cronos usando os problemas emocionais paternais dela para tentar manipulá-la. O dr. Espinheiro tenta, mais tarde, atraí-la para o lado de Cronos, contando-lhe como o pai a abandonou, e Luke a faz hesitar ao mencionar seu pai. Para ser justo, Zeus de fato a reconhece e a elogia no final da jornada — o que é mais do que apenas “Ei, menina. Que cabelo lindo!”. Mas sua falta de confiabilidade faz de Thalia um curinga em boa parte do livro três, e isso é o bastante para elevar Zeus para a próxima faixa de nota.

Uma coisa que pode ser dita sobre esses pais nota C: às vezes, eles pelo menos tentam. Nem sempre são bem-sucedidos, mas pelo menos, em alguns momentos, demonstram preocupação com os filhos. “Famílias são complicadas”, afirma Hermes em O Mar de Monstros. “Famílias imortais são eternamente complicadas. Às vezes, o melhor que podemos fazer é lembrar um ao outro que somos aparentados, aconteça o que acontecer... e tentar limitar ao mínimo as mortes e mutilações.”

Os que mais progrediram (nota = B)

O prêmio de Pais que Mais Progrediram no Ano vai para o dr. Chase e sua esposa, respectivamente pai e madrasta de Annabeth. Quando a menina fala deles em O ladrão de raios, não é exatamente para fazer elogios. Ela reclama que eles a tratam como uma aberração que põe em risco seus meios-irmãos, e a fazem se sentir tão rejeitada que ela até foge. Annabeth os retrata como ogros, a tal ponto que Percy, quando conhece a madrasta da menina em A maldição do titã, diz: “Eu já quase esperava que a sra. Chase se transformasse em uma lunática furiosa à menção da enteada, mas ela só franziu os lábios e pareceu preocupada.”

Claramente os Chase fracassaram de algum modo ao se relacionar com a filha, caso contrário ela não teria fugido aos sete anos e quase sido destruída pelos vilões — fica difícil conseguir uma nota perfeita na Escala de Desempenho Paterno-maternal com isso no registro —, mas acho que Annabeth está enganada em relação a eles. Pense nisto: sempre que ela está em casa, os monstros a atacam. Dá para culpar os pais por ficarem um pouco tensos com a presença dela? Outras crianças levam para casa problemas com valentões, notas ou cigarros, mas os heróis levam problemas com dentes, garras, espadas e muitos, mas muitos braços. Você não encontra informação sobre como lidar com isso em um livro de aconselhamento para pais (“Não aceite esses monstros!” “Não me importo se aquele cérbero o seguiu até em casa, você não pode ficar com ele a menos que me prometa que o levará para passear todos os dias...”). Apesar disso, porém, os Chase continuam tentando. No final de O ladrão de raios, Annabeth segue o conselho de Percy e escreve uma carta para o pai. Ele responde na mesma hora, convidando-a a voltar para casa. Esse homem merece uma estrelinha dourada.

Em A maldição do titã, o dr. Chase leva a “tentativa” a um nível completamente novo. Quando Annabeth é sequestrada e seus amigos precisam ser transportados para alcançá-la, Percy e Thalia recorrem ao dr. Chase em busca de ajuda. Ele e a mulher lhes emprestam um carro sem muita discussão. Na verdade, o dr. Chase quer fazer mais do que isso, mas Percy e Thalia recusam. Quando os meninos vão embora, a sra. Chase lhes pede que diga a Annabeth que aquela ainda é a casa dela. Mas isso não é tudo. Exatamente quando a coisa está mais feia, o dr. Chase voa em seu avião, metralha os monstros e salva a pátria.

Acho que todos os livros de aconselhamento para pais concordariam: metralhar um exército de monstros malignos para salvar a vida da filha é ser um bom pai.

Prêmio de melhor pai ou mãe (nota = A)

O envelope, por favor... E o prêmio de Melhor Pai/Mãe na série Percy Jackson e os olimpianos vai para... Sally Jackson! [Inserir efeito sonoro de muitos aplausos. Sally sorri, acena timidamente para o público e se encaminha para o palco. Seu filho Percy a brinda com uma Cherry Coke azul-cobalto.]

Sally ama o filho. Está disposta a sacrificar sua felicidade pela segurança dele. Como Percy descobre em O ladrão de raios, ela se casou com o abominável Gabe Cheiroso a fim de proteger o filho dos monstros que caçam meios-sangues — ou pelo menos essa é a teoria de Grover: “Gabe esteve encobrindo seu cheiro por anos. Se você não tivesse morado com ele durante todos os verões, provavelmente teria sido encontrado por monstros muito tempo atrás. Sua mãe ficou com ele para proteger você. Era uma senhora esperta. Devia amar muito você para aturar aquele cara...” (Considerando-se o gosto que ela demonstrou anteriormente em termos de homens, fico inclinada a acreditar em Grover. Além do mais, assim que Percy prova que não precisa de proteção, Sally se livra de Gabe e encontra o bem mais agradável Paul.) Apesar disso, ela faz tudo o que pode para proporcionar uma vida normal para Percy enquanto for possível. Está certo que ela quase o mata ao não enviá-lo mais cedo ao Acampamento Meio-Sangue (mas isso é um detalhe). Ela compensa insistindo para que ele a deixe e se salve quando o Minotauro ataca. Ele não a deixa, é claro (mais uma vez, isso é só um detalhe).

Ela também marca pontos extras por sua simples frieza. Veja esta passagem no início de A maldição do titã: “Na sexta-feira anterior às férias de inverno, minha mãe arrumou para mim uma maleta de viagem e algumas armas mortais e me levou até um novo internato.” Ao contrário de pais em outras histórias fantásticas que ou são um obstáculo ou ignoram completamente as responsabilidades do próprio filho como um Escolhido (super-herói, vampiro bonzinho ou seja lá o que for), a mãe de Percy conduz o filho e seus amigos heróis para a batalha.

Em vez de impedir os feitos heroicos dele, Sally o encoraja. Ela o incita a desafiar o diretor do acampamento (que por acaso é um deus, o que torna a tarefa mais complicada) e resgata sua amiga Annabeth em A maldição do titã. “... por mais que eu queira que você venha para casa”, diz ela, “por mais que eu queira vê-lo em segurança, quero que você compreenda uma coisa. Você precisa fazer o que acredita que tem de fazer. [...] Estou dizendo que estarei do seu lado, mesmo que o que você decidir seja perigoso.” Isso não é incrível? Só por essa frase, acho que Sally Jackson merece o prêmio de Melhor Pai/Mãe em qualquer série de fantasia de todos os tempos. É sério, cite outro pai ou mãe em um desses romances que diga algo assim. (Hum, esse é um desafio retórico. Por favor, não vá pesquisar. O importante é que isso é raro.) E ela não diz isso apenas uma vez, ela repete esse sentimento em A batalha do Labirinto, depois de Percy e Annabeth lhe contarem o plano do garoto para navegar pelo labirinto. Ela o ama, confia nele e apoia sua decisão de enfrentar o perigo mortal.

Percy também a ama. A primeira vez que ele a descreve, diz: “Ela é a melhor pessoa do mundo.” Ele guarda com carinho as lembranças dos verões passados na praia em Montauk e acha que a coisa mais gostosa que existe são os cookies caseiros que ela faz com gotas de chocolate azul. (Ela tem obsessão por comida azul. Mas, aliás, quem não tem?) Ele sente falta dela enquanto está na escola e no acampamento. Lá pela página sessenta do primeiro romance, durante a luta com o Minotauro, Sally se decompõe em luz dourada e cintilante (ó, ensolarada!). Acreditando que ela foi morta, Percy aceita a jornada para recuperar o raio-mestre de Zeus das mãos de Hades com a esperança de trazê-la de volta à vida. É o que diz com todas as letras para Grover: “Eu não me importo com o raio-mestre. Concordei em ir para o Mundo Inferior para poder trazer de volta a minha mãe.” Percy está disposto a ir ao inferno e voltar (literalmente) pela mãe. Ele a ama tanto que quando o Oráculo profetiza que ele vai “fracassar em salvar aquilo que mais importa”, sabe que a profecia está se referindo a sua mãe, mas tem esperanças de que o Oráculo esteja errado e prossegue mesmo assim. Seu amor pela mãe inspira a jornada que envolve toda a trama de O ladrão de raios.

Sua devoção não é exatamente novidade para os outros personagens. Ares tenta, com sucesso, obter informação sobre a mãe de Percy para usá-la como isca e atrair o garoto para uma armadilha, e Hades faz dela refém. Mas o que é novidade para Hades, a parte que ele não conseguiu prever (talvez porque não compreenda isso), é que ela inspira Percy à ação heroica. Por causa dela, ele faz a escolha heroica de não a resgatar do Mundo Inferior. Acredita que a mãe nunca o perdoaria se, por causa dela, ele falhasse na tarefa de deter a guerra dos deuses, e a crença que Percy tem em sua bondade molda o desfecho do romance.

Em outras palavras, se não fosse pelas incríveis habilidades maternais de Sally Jackson, O ladrão de raios teria sido um livro muito diferente e muito triste.

Em vez de uma guerra entre deuses e o catastrófico fim da vida como conhecemos (o que teria sido deprimente), Percy promove um final feliz: seu heroísmo é recompensado pelo retorno de sua mãe. Na verdade, ele entra em contato com a mãe no final de cada um dos quatro primeiros livros. Em O ladrão de raios, decide voltar a morar com ela. Em O Mar de Monstros e A maldição do titã, liga para casa após terminar suas aventuras; e em A batalha do Labirinto, volta para que a mãe possa lhe fazer uma festa de aniversário. Quantos outros heróis fazem isso? São poucos. Claramente, Percy e Sally têm uma relação forte e positiva, o que a torna uma candidata com vitória certa ao prêmio de Melhor Pai/Mãe, bem como uma das personagens mais importantes e influentes na série, apesar de aparecer pouco ao longo da trama.

Pais: Um mal necessário

Então, o que esses pais que estão nos vários níveis da minha escala têm em comum? Alguns são humanos; outros, deuses. Alguns são decentes; outros são a personificação do mal. Alguns nunca aparecem. Outros surgem no último instante para desempenhar papéis essenciais nas cenas de clímax.

Todos, no entanto, exercem uma profunda influência sobre seus filhos — e, portanto, no andamento das histórias. Percy, Luke, Clarisse, Annabeth e outros maravilhosos personagens em Percy Jackson e os olimpianos estão constantemente tentando corresponder às expectativas dos pais, vingar-se deles, conseguir sua aprovação, aproximar-se ou afastar-se deles ou ainda salvar-lhes a vida. Podemos não ver esses pais em cena com frequência, mas deuses ou não, bons ou não, eles são onipresentes.

E agora, se me der licença, estou com uma vontade enorme de ligar para minha mãe...

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Sarah Beth Durst é autora de vários romances infantis, como Vessel; Drink, Slay, Love; Enchanted Ivy; e Ice. E também alguns para adolescentes, como Into the Wild e Out of the Wild. Foi duas vezes finalista do prêmio Andre Norton para escritores de ficção científica e narrativas fantásticas, com os livros Ice e Into the Wild. Sarah mora em Stony Brook, Nova York, com o marido e os filhos. Visite seu site: www.sarahbethdurst.com.


Mais maus, impossível

Hades, Nico e o Mundo Inferior

Hilary Wagner

É difícil encontrar um vilão mais malvado que o Senhor do Mundo Inferior. Mas será que Hades é realmente mau ou simplesmente incompreendido? Hilary Wagner declara seu amor por Hades e Nico, explicando que, embora as roupas de alguém possam ser pretas, seu coração talvez não seja.

Eu ? Hades

Admito que todos os deuses têm notas decentes na “escala de maneirice”, mas, na minha lista, Hades está no topo — ou, no caso dele, lá embaixo. Claro que ele faz o gênero taciturno e precisa de um bom autobronzeador, mas mesmo assim o cara não deixa de ter seu charme. Percy pode não gostar nem um pouco de Hades, mas até ele admite, em O ladrão de raios, que, de todos os deuses que conheceu até então, o Senhor do Mundo Inferior é o único que parece mesmo um deus. Pense só: ele é a essência do cara estiloso, todo de preto, esbelto e de cabelo comprido, circulando por seu palácio alternativo com ar de boate underground. Está certo que o local exala aquele cheiro horrível de enxofre, e tem aqueles gritos irritantes de gelar o sangue, mas acho que deve ser fácil para Hades encarar isso com sua esplendorosa esposa, a deusa Perséfone, ao lado. Ainda por cima, ele é mais rico que qualquer milionário, fazendo Zeus e Poseidon parecerem insignificantes na lista dos mais endinheirados do mundo dos deuses. Não é de espantar que a família não goste dele. Hades é o suprassumo do vilão.

É claro que não vou sair correndo para comprar uma mochila de Hades ou ficar escrevendo freneticamente “Hilary & Hades” no meu caderno mais de cem vezes, mas sempre tive uma queda pelos vilões. Felizmente todos superamos isso, mas, em algum momento da vida, a maioria quer namorar um desses caras (ou garotas) meio marginais, ou até ser um deles. Não me entendam mal; quando pequena, eu adorava os filmes de contos de fadas com príncipe e princesa, como Branca de Neve ou A Bela Adormecida, todos com final feliz garantido. Mas, sinceramente, não seria muito mais empolgante se as rainhas malvadas de fato saíssem vencedoras e não despencassem para a morte? (Aliás, rainhas malvadas estão sempre despencando...) O que aconteceria se Shere Khan, das histórias de O livro da selva, conseguisse de fato cravar as presas no coitadinho do Mogli? Acho que as resenhas para essa versão não seriam muito favoráveis. Quando vi pela primeira vez o épico Titanic, torci para Billy Zane (você sabe, o namorado rico e supergato de Rose) acabar com a festa do Leonardo DiCaprio. Sei que parece cruel, ou talvez vocês estejam achando que não sou boa da cabeça, mas não é o caso. Sem querer ofender o mocinho Leo, o vilão Billy era... bem, muito mais maneiro.

Tudo bem, deve estar parecendo que acho os heróis tão excitantes quanto um comercial de pomada antiacne, mas, podem acreditar, eu realmente gosto deles. Percy Jackson me fascinou de verdade. Esse garoto confuso de Nova York, que se acha incapaz de fazer qualquer coisa direito, estava mesmo rumando para salvar o mundo inteiro. É, PJ também tem seu charme, mas os vilões tendem a me intrigar um pouquinho mais. Por quê? Não é exatamente por fazerem coisas ruins. O que me intriga é por que eles fazem essas coisas. O que existe por trás de sua natureza rebelde? No que se refere a Hades, vocês devem se perguntar: o que o faz ser tão mau?

Dá para culpar o sujeito?

Afinal, o que faz Hades ser tão mau? Será que ele nasceu para ser vilão, como nosso amigo Voldemort, de Harry Potter, ou será que foram as circunstâncias que o fizeram ser assim? Admito que poderíamos chamar isso de um gancho bem conveniente, mas acho que há muita verdade nessa história de “natureza x criação” no que se refere a Hades. Se nós, humanos, temos problemas familiares (e em geral estamos aqui há menos de um século), por que um deus não poderia ser afetado por algumas questões familiares sérias quando passa séculos ruminando aquilo?

Segundo os antigos mitos, Hades não pediu exatamente para ser o Senhor do Mundo Inferior. Depois de darem um chute no traseiro de um titã qualquer, Hades, Poseidon e Zeus fizeram a partilha do espaço para os respectivos reinos. Hades ficou com a pior parte, já que lhe coube o escuro, deprimente e, por que não dizer, aterrorizante Mundo Inferior... Correm até boatos de que Zeus trapaceou, levando-o a ficar com aquela parte e garantindo assim que não sobrasse para ele e Poseidon.

Durante todo o seu reinado divino, Hades era tão valorizado quanto um dracma falso. Diziam que ele era taciturno e rabugento, e que só de ficar perto dele as pessoas se sentiam mal, sujeitas a sérias crises nervosas. Mesmo quando lhe ofereciam algum sacrifício, todos evitavam seus olhos por medo, e usavam apenas os animais negros mais assustadores para ter certeza de que alguma coisa muito, muito ruim aconteceria ao fazendeiro das vizinhanças que pudesse estar roubando suas ovelhas ou de olho na sua mulher — para vocês terem uma ideia do quanto ele apavorava as pessoas. Em suma, Hades deixava os mortos sem reação.

Portanto, ele era caladão, ranzinza e causava uma sensação péssima em todos. Eu entendo... mas você também seria ranzinza se toda a sua família achasse que você era o rei do pavor e se seu trabalho o obrigasse a ficar enfurnado no Mundo Inferior vinte e quatro horas por dia. Já ouviu falar de Distúrbio Afetivo Sazonal? Em síntese, é quando a escuridão e a falta de sol nos afetam negativamente, nós, simples mortais, deixando-nos arrasados e até mesmo mal-humorados. Ora, por que isso não afetaria também um deus, ainda mais depois de milhares de anos vivendo assim? Pensem bem: ele vive cercado por milhões de almas de mortos, muitas delas parecendo saídas de A Noite dos Mortos-Vivos, e seus únicos companheiros são demônios gosmentos, cães infernais babões e esqueletos brandindo armas e deixando cair pedaços de carne apodrecida. Ele dá à frase “Eu vejo gente morta” um sentido inteiramente novo. Impossível não ser afetado por isso!

Sejamos honestos: Hades também não teve uma grande figura paterna por perto. Tudo bem que o semideus Luke também se deu muito mal nesse sentido, mas nem se compara ao caso de Hades. Muita gente tem péssimos pais e se sai muito bem, muito bem mesmo, mas quantos de nós podemos dizer que nosso pai nos engoliu inteirinhos, por causa de suas próprias inseguranças, e depois acabou nos vomitando? Como Hades e seus irmãos eram deuses, eles viveram de verdade no estômago de Cronos (o que é supernojento), talvez fazendo nado de costas nos sucos gástricos ou jogando queimado com uvas parcialmente digeridas... Isso certamente afetou o sujeito de alguma forma. Suponho que, psicologicamente, ele poderia ter tentado virar o jogo, ser grato pelo fato de o pai tê-lo vomitado e por ainda estar vivo. Mas se algo assim acontecesse comigo — sem mencionar o fato de ser obrigado a passar o tempo todo governando o suprassumo da casa dos horrores —, eu também seria um pouco rabugenta.

Afinal, o que ele tem com isso?

Está bem, concordo que Hades é às vezes mais que um pouco rabugento. Ele fez algumas escolhas equivocadas na vida até segunda ordem divina. É exatamente isso que está por trás de sua tentativa de assassinar Percy e raptar a mãe do garoto (mas, em sua defesa, nesse caso seus crimes se basearam em informações incorretas. Ele foi levado a acreditar que Percy tinha roubado o raio-mestre e seu elmo, o próprio símbolo de seu poder). E, tudo bem, ele mandou uns monstros espumando de raiva atrás de Thalia, filha de Zeus (por sorte o pai dela ficou com pena da menina e a transformou em árvore — que belo gesto). E tenho certeza de que Perséfone não era uma deusa feliz da vida quando ele a raptou e a enganou, fazendo-a comer algumas sementes de romã (acho que Hades tem uma queda por raptos), mantendo-a presa no Mundo Inferior parte do ano. O chefão Zeus até se aborreceu com essa atitude. Mas os delitos de Hades são brincadeira de criança se comparados às transgressões de seus irmãos.

Tanto Zeus quanto Poseidon levam seu estilo de maldade muito além do clássico crápula. Pelo amor de Deus (sem trocadilho), Zeus devorou a primeira esposa, Métis (considero isso um crime), para que sua própria filha, Atena, não pudesse nascer e usurpar o poder do pai. Segundo consta, ele violentou Hera antes de se casar com ela — o que é sempre uma ótima maneira de começar um casamento por amor — e várias outras, entre elas Io, Calisto e Electra, para citar apenas umas poucas. Ah, não podemos esquecer aquela inoportuna Guerra de Troia, pela qual, muitos alegam, ele foi responsável — aparentemente foi a forma adotada pelo velho Zeus de controlar o problema da superpopulação... E logo ele vai criar caso com a história de Hades enganar Perséfone? Tudo o que tenho a dizer sobre isso é: olhe só para você!

Poseidon não fica nada atrás. Ele domina os mares, brandindo seu poderoso tridente (entre outras coisas) e tendo atitudes tão condenáveis quanto as do irmão celeste. Ora, existem algumas versões desse mito, mas acredita-se que Poseidon tenha violentado a Medusa, que naquela época era bonita, e jogado a culpa na vítima, alegando que ela o seduzira. Isso fez com que Atena, enfurecida, transformasse a Medusa em uma horrenda Górgona, porque tudo aconteceu em seus domínios. É muito sangue-frio, até mesmo para um deus. Poseidon também possuiu à força Anfitrite, Deméter e diversas outras mulheres.

Além disso, Zeus e Poseidon eram célebres por suas traições, gerando vários filhos (a maioria dos quais foi abandonada), e são perfeitos exemplos para a expressão porco chauvinista. Ao que parece, nenhum deles estava por perto no dia em que papai Cronos planejava fazer seu discurso “não significa não”. Portanto, se Zeus e Poseidon são os caras que deveriam estar cumprindo prisão perpétua em presídio de segurança máxima há tempos, por que Hades é que acaba levando a culpa, sendo ostensivamente rejeitado pela própria família e até mesmo por nós, humanos?

O bom, o mau e o totalmente desprezível

Está certo que comparar Hades a seus irmãos é como comparar um papel cortado a um braço decepado, mas o que dizer das outras maçãs podres dos livros, sejam elas deuses ou não?

Vejamos: quando pensamos no Mundo Inferior, é fácil lembrar tudo de ruim que tem por lá: o Tártaro, em primeiro lugar; o abismo escondido nas profundezas mais profundas do Mundo Inferior, habitado por Cronos e outros vilões de peso. Temos também os Campos de Punição, onde ficam as maçãs podres não tão podres quanto Cronos. Depois, há os Campos de Asfódelos, onde se encontram as almas comuns. Como explica Annabeth a Percy em O ladrão de raios, “a maioria das pessoas, bem, elas apenas viveram. Nada de especial, nem bom nem mau. Então vão para os Campos de Asfódelos”. Com certeza isso não parece lá grande coisa, certamente não o que poderíamos considerar uma recompensa ou até mesmo um tapinha nas costas por alguém ter respeitado as regras do jogo. Suponho que seja melhor que a danação eterna, mas ficar para todo o sempre em um campo repleto de gente, como se estivéssemos esperando em uma fila interminável, parece tão divertido quanto enfiar um garfo no olho milhares de vezes.

Mas esse não é o único lugar onde vão parar as almas dos mortos, o que é algo bem significativo. Hades é o Senhor do Mundo Inferior, não é? Pode, então, fazer o que quiser, mandar todo e qualquer um para os Campos de Punição ou para outra eternidade catastrófica qualquer que possa passar por sua divina cabeça distorcida. Ora, se ele é mesmo uma peste, por que então permite que as almas extraordinárias, aquelas que realizaram em vida algo digno de admiração, passem a eternidade no Elísio, a versão grega do Paraíso? É claro que é quase impossível fazer parte desse grupo (pense na lista mais restrita de convidados da festa de uma celebridade qualquer), mas talvez, a seu modo, Hades estivesse apenas tentando melhorar nosso desempenho. Sabendo que o Elísio estava à nossa espera, será que todos nós não faríamos o maior esforço para sermos extraordinários, não nos limitando simplesmente a fazer tudo certinho? Hum... passar a eternidade vagando sem rumo por um campo interminável de puro vazio ou morar em uma luxuosa mansão do Elísio, cercado por risos alegres, festas na piscina ou no quintal que não têm hora para acabar... Você decide.

E esqueça as comparações com os irmãos dele: Hades era mesmo tão mau assim, comparado a outros vilões da série Percy Jackson e os olimpianos? Não sei, não. Afinal, foram Luke e Ares que fizeram Hades perder a cabeça em O ladrão de raios, induzindo-o a acreditar que Percy tinha roubado seu elmo tão precioso e o raio-mestre de Zeus. O dissimulado Ares teve a chance de entregar Luke; a história podia ter terminado ali, mas ele escolheu, para dizer o mínimo, um caminho mais destrutivo. Ares, que se mostra um grandessíssimo safado ao longo de toda a série, fez isso porque achava que a guerra era tão legal quanto uma Ferrari Testa Rossa de colecionador. O que, então, poderia ser mais legal do que uma guerra de proporções divinas — os Três Grandes se destruindo?

Por outro lado, Luke tinha motivos mais obscuros, sendo, portanto, infinitamente mais perigoso e, a meu ver, quase tão mau quanto Cronos. Luke estava furioso, mas isso não é desculpa para se aliar ao lado negro. Seus planos se resumiam a poder e vingança: assumir o controle, coisa que não lhe cabia, e dar o troco àqueles que ele achava que o haviam enganado. Quando Hades quis dar cabo de Percy, tinha motivo para isso. Talvez não para matá-lo, mas tinha um motivo. Ele achava que o garoto era um ladrão. Pensava que Percy havia começado todo o drama divino, provocando um verdadeiro caos. Com intenções assassinas ou não, a motivação de Hades para perseguir Percy era justa (pelo menos na concepção de justiça de um deus). Já o motivo de Luke era puramente egoísta. Ele só queria a própria glória.

Ora, os métodos cruéis de Cronos são um pouco mais vis que os de Luke e até mais belicosos que os de Ares. Em O ladrão de raios, ficamos sabendo que, nos velhos tempos, Cronos e os outros titãs mantinham os homens na ignorância usando-os como saborosos canapés ou divertimento barato (ah, que divertido, marionetes humanas!). Mesmo depois que Zeus cortou o pai em pedacinhos e assumiu o poder, Cronos ainda encontrou um jeito de invadir os pesadelos dos homens e distorcer seus pensamentos em favor de seus intentos malignos. Ao longo da série, muitas vidas se perdem por causa de Cronos e sua necessidade doentia de ser o Todo-Poderoso. No fim, até mesmo Luke perde a vida para Cronos, o único sujeito com quem ele achava que podia contar. Nunca imaginei que fosse dizer isso, mas de algum modo Hades está se parecendo cada vez mais com um lúgubre ursinho desbotado do que com o supermalvado Senhor do Mundo Inferior.

O papai mais querido x o pai do ano

Ok, admito que detesto fazer previsões, mas depois que descobri que Hades era pai, fiquei meio preocupada. Talvez a teoria do desajustado incompreendido fosse apenas isso: uma teoria.

Quer dizer, Hades pode até ter rompido com a tradição familiar e não ter engolido Nico, mas, a não ser que faça um curso intensivo de postura paterna, jamais ganharia o prêmio de pai do ano, pelo menos não tão cedo. É claro que Hades tem algumas qualidades, como não condenar todos os seres humanos ao Tártaro ou não nos obrigar a limpar os Campos de Asfódelos depois de os cães infernais fazerem suas necessidades, mas ele foi extremamente cruel com seu filho semideus Nico. Em O último olimpiano, ele o humilha, compara-o constantemente com a irmã morta, e acaba perturbando a cabeça já bastante abalada do pobre garoto. Fiquei irritada de verdade quando li essa parte, só esperando Hades evocar seu lado controlador e autoritário, mas, em vez disso, ele fez algo efetivamente impressionante: escutou. Participou bem no final — na hora mais importante. Em O último olimpiano, quando Nova York estava sendo atacada, ele podia ter ignorado os pedidos de socorro de Nico, mas, em vez disso, aproveitou a oportunidade e acabou se tornando uma peça-chave para salvar o mundo das mãos ávidas de titã de Cronos. Qual teria sido o desfecho se Hades não tivesse feito nada, o que parecia ter se tornado sua especialidade quando era o caso de socorrer a própria família? Afinal, ele era praticamente um eremita, morando no Mundo Inferior e em geral querendo que o deixassem em paz (o típico cara mau e solitário). Será que seus motivos foram simplesmente egoístas? Se Cronos e seus capangas não tivessem sido despachados, Hades se veria em maus lençóis, tanto quanto seus irmãos. Mas, mesmo assim, por que ele arriscaria a própria pele divina? Ele poderia perfeitamente ter mandado as Fúrias e milhares de asseclas mortos, com um monte de carne apodrecida e as entranhas pendendo do corpo. Mas não. Ele se colocou no fogo cruzado. Ele liderou o ataque. Será que Nico o fez mudar de ideia ou algum instinto paterno se manifestou, obrigando Hades a finalmente compreender que a vida (ou a morte) não se resume a ele próprio?

Em O último olimpiano, descobrimos que Hades tem de fato um lado brando — será que eu ousaria dizer um lado amoroso? Ficamos sabendo que ele amava Nico, Bianca e a mãe das crianças, Maria. O deus literalmente implora para que Maria di Angelo vá com ele para o Mundo Inferior, onde ela e os filhos deles estariam a salvo de Zeus, mas Maria recusa, incapaz de acreditar que Zeus pudesse realmente fazer mal às crianças. Hades conhece o irmão caçula um pouco melhor:

Zeus decretou que os filhos que tenho agora devem ser levados para o Acampamento Meio-Sangue para treinamento adequado, mas eu sei o que ele quer dizer. Na melhor das hipóteses, eles serão vigiados, aprisionados, doutrinados contra o pai. E o mais provável é que ele não vá se arriscar. Não vai permitir que meus filhos semideuses cheguem aos dezesseis anos. Vai encontrar uma forma de destruí-los, e eu não vou correr esse risco!

Parece a fala de um pai que odeia seus filhos? Está certo que, quando Maria é morta, Hades perde a cabeça com o Oráculo, amaldiçoando sua hospedeira por toda a eternidade, embora ela apenas transmitisse as mensagens. E quando Bianca morre, em A maldição do titã, Hades põe a culpa em Nico, o único que sobreviveu, e fica com raiva daquele que agora era seu filho único, transformando a dor em fúria. Se você ainda não percebeu, os deuses não são muito bons em assumir a própria culpa, e esse exemplo não é uma exceção. Hades recorre ao jogo de empurra como o restante de sua família e nem em milênios conseguirá superar esse hábito. Trata-se de uma falha de caráter, sem dúvida. Mas não é algo exatamente mau.

Tal pai, tal filho?

Com relação a Nico, vemos lampejos de sua personalidade em A batalha do Labirinto, mas é só em O último olimpiano que começamos a entender quem ele realmente é. Francamente, quero saber mais — que tal uma série com mais três livros? Não estou tentando dar indiretas ou coisa do gênero —, e não, não fui eu que acampei no gramado da casa de Rick Riordan com um cartaz que dizia “Escreva uma série sobre Nico” (pelo menos não dá para ver que sou eu na gravação das câmeras de segurança). Simplesmente acho que o garoto tem muito mais a dizer.

O que adoro em Nico é que ele não começa taciturno e melancólico. Quando o conhecemos, no livro A maldição do titã, ele é uma gracinha de garoto, que gosta de coisas de criança — ele não tem nada de sombrio —, mas então seu mundo desmorona. A morte prematura da irmã mais velha, Bianca, parece ser o momento em que sua tristeza e melancolia afloram. Tudo acontece ao mesmo tempo: ele perde a irmã, descobre que o pai é o governante da terra do medo e viaja (sozinho, imagine!) até o Mundo Inferior. Um garoto comum nunca colocaria os pés no Mundo Inferior em sã consciência, mas Nico está disposto a fazer isso. À medida que sua vida é destruída e a raiva e a tristeza tomam conta dele, Nico começa a ganhar vida, como se todas as coisas horríveis e desanimadoras o fizessem ser quem ele é, além de servirem de gatilho para seus poderes mórbidos... Isso não faz lembrar nenhum deus alto, sombrio e pálido que conhecemos?

Em A batalha do Labirinto, uma nuvem negra parece se formar sobre Nico (pense na nuvem de sujeira ao redor de Chiqueirinho, personagem de Charles M. Schulz, com uma diferença: esta agora é cheia de fantasmas rancorosos e gritos de almas torturadas). Nico se torna tristonho e emburrado, o que pode parecer típico de um garoto de sua idade, mas um adolescente normal, usando Coca-Cola e batata frita, consegue produzir no máximo alguns bons arrotos, e não evocar multidões de mortos — o que é apenas um dos motivos pelos quais você não vai querer encarar o lado ruim de Nico. Além disso, ele consegue sentir que você está morrendo. (Acho que eu não gostaria de ter essa preciosa informação pendendo sobre minha cabeça.) E assim como o pai fez no livro um, Nico alimenta uma raiva mortal de Percy, culpando-o pela morte da irmã. Somente quando invoca o fantasma de Bianca é que Nico entende que Percy não teve culpa nenhuma... e mesmo assim leva um bom tempo para se convencer.

Foi sorte Percy estar lidando com Nico e não com o pai dele nessa situação. Àquela altura, Nico estava apenas começando a dominar os próprios poderes... ou talvez já os dominasse, mas ainda não estivesse disposto a usá-los. Ele não tem a força física de Percy ou Annabeth, mas descobre seus poderes ainda muito novo e é capaz de lançar mão deles muito mais depressa que os outros dois. Ele chega a abrir aquela fenda enorme no final do livro, mas não esqueça: quando fez isso, foi para ajudar a salvar Percy, justamente a pessoa que ele odiava. Então, talvez — apenas talvez — Nico já esteja lutando contra sua genética divina sabendo que isso não é o que ele quer ser, mesmo estando em sua essência.

Assim como Luke, Nico também teve a chance de fazer a coisa certa. Talvez por não ter sido criado por Hades, Nico parece estar se revelando, bem... bom. Até mesmo com um jeitão de Percy — se Percy tivesse olhos escuros, usasse um anel de caveira e fizesse pessoas, sátiros e pégasos ficarem sobressaltados e com o estômago levemente embrulhado.

Nico se põe corajosamente ao lado dos outros deuses e semideuses e defende o mundo humano do ataque de Cronos, mesmo sem ter motivo algum para fazer isso. Não devemos esquecer que foi Nico quem mandou Percy mergulhar no rio Estige, o que deu poderes quase divinos ao filho de Poseidon, permitindo-lhe ter alguma chance de lutar contra Cronos. O que teria acontecido se Nico não tivesse tido essa ideia é algo que podemos apenas imaginar. Nesse sentido, ele é tão herói quanto Percy.

Nico também é audacioso. Em O último olimpiano, ele enfrenta com ousadia o Senhor dos Mortos, praticamente chamando o deus às falas — com aquele seu jeito distorcido de pensar —, quando Hades se recusa a se aliar aos outros para lutar.

— Maria morreu! — lembrou-lhe Hades.

— O senhor não pode simplesmente se isolar dos outros deuses!

— Estou muito bem assim há milhares de anos.

— E isso o fez sentir-se melhor? — perguntou Nico. — Aquela maldição que lançou ao Oráculo o ajudou de alguma forma? Guardar rancor é um defeito fatal. Bianca me advertiu sobre isso... e tinha razão.

— Para semideuses! Eu sou imortal, todo-poderoso! Eu não ajudaria os outros deuses nem se eles me pedissem, nem se Percy Jackson implorasse...

— Você está tão eLivros quanto eu! — gritou Nico. — Pare de alimentar sua raiva e faça algo útil pelo menos uma vez. Essa é a única maneira de eles o respeitarem!

As palmas de Hades se encheram de fogo negro.

— Vá em frente — disse Nico. — Acabe comigo. É exatamente isso que os outros deuses esperariam do senhor. Prove que eles têm razão.

Hum... sinto muito, Hades, sabemos que você é o malvado governante dos mortos e tudo o mais; no entanto, levou uma chamada de alguém que ainda nem tem carteira para dirigir uma biga. Ponha o rabo entre as pernas, essa você vai ter que engolir!

Nico tem coragem de enfrentar o pai, mas também tem consciência da própria condição. Deu um puxão de orelha em Hades, mas admite que também é um eLivros. Não se enquadra no ambiente do Acampamento Meio-Sangue, assim como Hades não se enquadra no Olimpo. Mas, ao contrário do pai, Nico não usa isso como desculpa para se tornar um cara malvado. Aceita que é diferente e luta com unhas e dentes para usar seus poderes exclusivamente para o bem.

Aquele defeito fatal tão incômodo

Nico já está provando que é poderoso, esperto, leal para com seus companheiros do Acampamento Meio-Sangue e visivelmente corajoso. É bastante difícil para um garoto normal enfrentar um pai humano, mas para encarar um deus — um dos Três Grandes —, que poderia incinerá-lo só com um simples açoite de seu manto de almas condenadas, é preciso ser bem destemido.

Minha pergunta é... Será que isso pode durar? Quando Nico fala com a irmã, que morreu em A batalha do Labirinto, ela lhe diz que o defeito fatal de ambos é guardar rancor. Mesmo com toda a sua boa índole, será que Nico pode lutar contra seus traços divinos — seu defeito fatal — mais do que Clarisse poderia controlar a necessidade que tem de cortar sua garganta se você a olha com um ar debochado, ou mais do que Percy poderia dominar seu senso de lealdade avassalador? Afinal, o ressentimento de Nico foi profundo quando ele achou que Percy era o culpado pela morte de Bianca. Talvez baste apenas mais um acontecimento arrasador para levá-lo a ultrapassar os limites, fazendo a balança pender em definitivo — transformando-o para sempre em alguém como seu pai, amargo e rancoroso. Nico descobriu seus poderes quando tudo deu errado em sua vida. E se essa energia negativa o torna de fato mais forte? E se seu rancor for uma mola propulsora de poder? Ele já domina os poderes que sabe que tem. E quanto aos que ainda vão surgir?

Então, o que o futuro realmente reserva para Nico no longo prazo? Talvez Hades seja empurrado para o Olimpo ou Perséfone o convença a levá-la para um cruzeiro romântico na escuridão. Nico poderia assumir o comando do Mundo Inferior e, uma vez que estivesse no controle, começar a praticar todo tipo de desobediência de semideus. Quando crescer, poderá se tornar presidente (um cargo bem comum para semideuses), o que lhe daria o domínio dos mundos dos vivos e dos mortos! Ou talvez ele pudesse criar uma banda de rock fenomenal, que sairia em turnê pelo mundo, com Jimi Hendrix, Kurt Cobain e outros esqueletos músicos, mas é claro que nós, simples mortais, nem desconfiaríamos de que ali na nossa frente estariam verdadeiras lendas da música, mortas já há algum tempo. Com a traiçoeira Névoa em nossos olhos, simplesmente adoraríamos Nico e sua banda. No que diz respeito ao futuro de Nico, se ele conseguir controlar seu defeito fatal, o céu poderá ser simplesmente o limite — e literalmente, já que é o território de Zeus, mas você entendeu...

Não existe nada mais fascinante que os mistérios por trás dos vilões, e o melhor tipo de vilão é aquele que está tentando não ser mau. Quanto mais sério for o defeito fatal de alguém, maior o desafio de lutar contra ele, e, por ter o complicado Hades como pai, Nico precisa lutar mais que a maioria. Aparentemente, quase todo o rancor de Hades vem de sua dor, e não de um desejo inato de ser mau. O simples desejo de ser mau é uma resposta fácil demais, e tanto Hades quanto Nico são bem mais profundos que isso.

Pelo bem de Nico, esperemos que as raízes de sua árvore genealógica, pelo menos pelo lado paterno, não sejam profundas demais. No entanto, pelo bem dos leitores, esperemos que sejam sim.

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Hilary Wagner é autora da série juvenil The Nightshade Chronicles (Holiday House). O primeiro volume, Nightshade City, foi eleito o melhor livro de 2011 pela CBC e venceu o Westchester Fiction Award. O terceiro livro da série, Lords of Trillium, foi publicado em 2013. Hilary também escreve para a National Geographic School Publishing e faz palestras em escolas por todos os Estados Unidos. Hilary acha que o Palácio de Hades no Mundo Inferior poderia ser um lugarzinho bem aconchegante para escrever, ainda mais se ela pudesse ficar toda aninhada na sra. O’Leary. Saiba mais sobre Hilary e seus livros em www.nightshadecity.com e www.hilarywagner.blogspot.com.


O herói grego — Novo
e melhorado!

Hilari Bell

Em geral, pensamos nos heróis como pessoas boas. E não apenas no uso da espada, mas também por serem ótimos amigos e legais com bichos de estimação (mesmo com cães infernais). Porém, lá na Grécia Antiga, as coisas eram um pouquinho diferentes. Vários heróis eram... bem... uns cretinos. Hilari Bell compara os semideuses originais com Percy e seus amigos e mostra como nossos heróis, assim como nossa definição de heroísmo, mudaram.

As gerações mais velhas sempre alegam que o mundo está piorando. (Todas as gerações mais velhas, desde os tempos imemoriais. Os jovens, segundo elas, não têm educação. A música deles... é um horror! As coisas eram muito melhores quando eles eram jovens.) Mas, apesar dessas alegações, o mundo tem melhorado com o tempo. E a maior prova disso são as qualidades que as pessoas atribuem a seus heróis — porque os heróis encarnam as virtudes que o resto de nós deseja ter.

O que significa que as virtudes dos heróis mudam de cultura para cultura e de época para época. Pensem no Super-Homem e no Capitão América, com sua modéstia e seu heroísmo sereno — porque nos anos 1940 e 1950, modéstia e heroísmo sereno eram valorizados. Pensem agora no que o incrível egocentrismo de Tony Stark diz sobre o tempo dele. Os anos 1960 têm muitas qualidades, mas modéstia serena... não é uma delas.

Assim como nossos super-heróis modernos revelam os valores da sociedade que os criou, o mesmo ocorre com os heróis da Grécia Antiga. Ao ler os mitos gregos, você logo percebe que aquele povo antigo colocava em primeiro lugar a lealdade à família — nessas narrativas, quem fizer mal a sua família será destruído pelos deuses. O patriotismo em relação à própria cidade também era algo valorizado, embora fosse menos importante que a família. Mas, além dessas virtudes, vários heróis antigos eram grandessíssimos ladrões, bandidos e valentões. Ora, como diz Dioniso em A maldição do titã:

A questão é que vocês, heróis, nunca mudam. Vocês acusam a nós, os deuses, de sermos fúteis. Deveriam olhar para si mesmos. Vocês fazem o que querem, usam quem precisam usar, e então traem todos à sua volta. Assim, queira me desculpar se não tenho o menor amor pelos heróis. Eles são um bando de egoístas e ingratos. Pergunte a Ariadne. Ou a Medeia. E pode perguntar também a Zoë Doce-Amarga.

Nos livros de Rick Riordan, os deuses não mudaram muito desde a Grécia Antiga: continuam sendo uns valentões caprichosos, insensíveis, mentirosos e medíocres. (E, sim, ainda são convencidos.) Mas a série se passa em nossa época, com um novo grupo de heróis que cresceu com valores modernos. Quer Dioniso admita ou não, os heróis melhoraram muito, como se pode ver observando alguns dos heróis antigos!

Comecemos com aquele a quem remete o nome de Percy, o Perseu original.

Tanto Percy quanto Perseu se deparam com as Greias, as Irmãs Cinzentas, três velhas que têm apenas um olho e um dente, os quais compartilham entre si. Mas Perseu saiu procurando por elas, roubou seu olho e seu dente e ameaçou deixá-las cegas e famintas até que elas o levassem às Hespérides. Ele nem tentou pedir a informação primeiro — escondeu-se, ficou à espreita até surgir uma chance e então se apoderou do olho e do dente antes que elas pudessem dar pela presença dele. Perseu partiu direto para a ameaça.

Percy Jackson não queria nada das irmãs a não ser ir de táxi até o Acampamento Meio-Sangue. Foram as velhas que revelaram que sabiam aonde ele deveria ir. E o garoto tampouco roubou o olho das irmãs — que acabou caindo no colo de Percy quando elas começaram a disputá-lo. De fato, o semideus ameaça jogá-lo pela janela se elas não lhe disserem aonde ele precisa ir — de certa forma, não fica muito atrás de seu antecessor. Mas não lhes devolver o olho enquanto as três dirigem cada vez mais rápido pelas ruas repletas de veículos coloca em risco tanto a vida de Percy quanto a delas. Perseu não correu risco algum quando enfrentou as Greias.

Quando Perseu foi em busca da Medusa, no mito original, tinha um bom motivo para isso: ele tentava evitar que sua mãe fosse obrigada a se casar com um rei de quem ela não gostava. O tal rei pediu a cabeça da Medusa como resgate pela mãe do herói, e, bem, a aparência da criatura transformava pessoas em pedra. No entanto, no mito, a Medusa não saía à caça de vítimas — na verdade, ela e as irmãs foram viver em uma caverna isolada para evitar matar gente! Havia inúmeras estátuas de guerreiros de pedra na entrada da caverna, mas é evidente que todos eles tinham ido lá para matá-la. Nessa época antiga, se você deixasse a Medusa em paz, ela não lhe criaria problemas.

Mas Perseu foi atrás dela. Conseguiu entrar na caverna e a matou enquanto ela dormia. Preciso admitir que, se você vai matar alguém, essa é a maneira mais prática... mas não é exatamente um ato heroico.

Percy Jackson não parte em nenhuma de suas jornadas com a intenção de matar — nem mesmo a Cronos. Ele não entra no Empório de Anões de Jardim da Tia Eme porque está caçando monstros, mas porque a Medusa o enganou, a ele e a seus amigos. Há inúmeras evidências de que a criatura matou, ao longo dos anos, muita gente inocente que não representava qualquer ameaça para ela. E é só por ela estar tentando matar o grupo todo que Percy é forçado a liquidá-la.

Embora matar a Medusa não tenha sido seu melhor momento, o antigo Perseu não é exatamente um vilão. Ele salvou Andrômeda quando voltava para casa — uma boa ação segundo quaisquer padrões. Mas, quando o noivo de Andrômeda tentou pedir a mão da moça, Perseu transformou ele e todos os seus soldados inocentes em pedra. E quando enfim retornou à terra do rei malvado levando a cabeça da Medusa, não se limitou a transformar o rei em pedra — o que talvez se justificasse —, mas transformou também toda a sua família e sua corte. Está certo que o monarca havia atirado a mãe de Perseu em uma masmorra ou feito dela uma escrava, dependendo da versão do mito que estejamos lendo. Mas nenhuma dessas versões diz que a corte do rei fez coisa pior que “debochar” de Perseu.

Acho que mencionei que os deuses não mudaram... Provavelmente pretendiam que o moderno Percy usasse a cabeça da Medusa como arma... mas heróis modernos não são fantoches de ninguém. Percy leva a cabeça de volta para os deuses, deixando-a onde ela não poderá fazer mal a mortais inocentes. E, se os deuses acham que essa é uma atitude “impertinente”, ele não está nem aí.

Em termos de heróis da Grécia Antiga, Perseu não era dos piores. Hércules era provavelmente o mais violento de todos, mas isso se devia em grande parte ao fato de ele ter músculos demais para seu próprio bem — assim como sérias dificuldades para controlar a raiva. Quando criança, matou um de seus tutores; mais tarde, deu início a uma guerra, mutilando representantes de outra cidade só porque eles tinham criticado sua terra natal.

Não que Percy Jackson nunca perca a cabeça. Acho que não há nenhum momento na série em que Percy fique mais furioso do que quando Nico o trai e o entrega a Hades, em O último olimpiano. Se pudesse, o garoto talvez tivesse imitado Hércules e dado cabo de Nico naquele momento. Mas, mesmo no auge de sua fúria, Percy se recusa a colocar a sra. O’Leary em perigo, mandando que ela ataque Nico. E quando Hades é cruel com o próprio filho...

Ao meu lado, Nico se ajoelhou. Desejei ter minha espada para poder decepar sua cabeça idiota. Infelizmente, Contracorrente ainda devia estar caída em algum lugar dos campos.

— Pai — disse Nico. — Fiz o que o senhor pediu.

— Demorou bastante — resmungou Hades. — Sua irmã teria feito melhor.

Nico baixou a cabeça. Se eu não estivesse tão furioso com o traidorzinho, teria sentido pena.

Percy está tão enfurecido que sente vontade de matar... Ao mesmo tempo, porém, percebe o sofrimento de Nico. Talvez esteja com raiva demais para admitir isso, mas fica com pena do garoto. E quando surge uma oportunidade de matá-lo...

Avancei sem pensar. Antes que eu estivesse completamente desperto, já tinha Nico preso ao chão da cela, com a extremidade de minha espada em sua garganta.

— Queria... resgatar... — ele sufocava.

A raiva me despertou rapidamente.

— Ah, é? E por que eu deveria confiar em você?

— Não tem... escolha? — ele engasgou.

Eu queria que ele não tivesse dito nada tão lógico. Soltei-o.

Percy com certeza pode ficar zangado, mas, diferentemente de Hércules, controla as próprias ações. Como diz a Zoë Doce-Amarga, em A maldição do titã: “Eu não sou Héracles.”

As qualidades que fazem de alguém um herói variam efetivamente de cultura para cultura, mas não é como se aqueles heróis dos antigos gregos não tivessem escolha! Sabemos disso porque existem vários deles que não eram bandidos ou valentões.

Vejam Jasão, que era provavelmente o melhor dos heróis antigos. Ele partiu em sua jornada com um objetivo louvável: recuperar o trono das mãos do rei Pélias, que havia assassinado sua família. Não estava nos seus planos matar Pélias; ele ia recuperar o trono realizando feitos heroicos — dos quais o principal era buscar o Velocino de Ouro, que Percy rouba do ciclope Polifemo em O Mar de Monstros.

Quando Jasão principiou sua jornada, o Velocino de Ouro não pertencia a um ciclope, mas a um rei humano. Em vez de simplesmente se introduzir no palácio e roubar o Velocino, Jasão dirigiu-se ao rei e o pediu. O monarca lhe impôs tarefas para que ele merecesse o artefato — e, por incrível que pareça, nenhuma dessas tarefas envolvia cometer crimes! Ninguém jamais disse que Medeia, a filha do rei, não poderia ajudar Jasão.

Diferentemente do herói grego, Percy de fato rouba o Velocino — mas Polifemo está tentando matá-lo, bem como a todos os seus aliados. (Além do mais, o ciclope havia sequestrado Grover.)

Na verdade, a única coisa terrível que Jasão fez foi se apaixonar por uma psicopata homicida. Quando os dois partiram com o Velocino, Medeia esquartejou o próprio irmão e o atirou pela amurada do barco para impedir que seu pai os perseguisse. Acho que isso deveria ter servido pelo menos de alerta para Jasão: algo que o fizesse parar e pensar um pouco mais antes de se casar com aquela mulher. Mas não, ele manteve a promessa e se casou com ela durante a viagem de volta. E quando o rei Pélias se recusou a abrir mão do trono em troca do Velocino, Medeia enganou as filhas do rei para que elas o envenenassem — o que deveria ter feito qualquer homem sensato começar a pensar em divórcio. Mas não, Jasão ficou casado com Medeia por mais dez anos, até que finalmente “a deixou” para se casar com uma princesa jovem e linda. Nosso herói não deveria ter ficado surpreso quando Medeia assassinou a princesa, os próprios filhos que tivera com ele, e depois fugiu.

Em termos de relacionamentos, Percy Jackson também trata as namoradas melhor do que os heróis antigos. Annabeth nem é oficialmente sua namorada quando ele conhece a pobre Calipso, em A batalha do Labirinto. E quando tem que partir, Percy fica preocupado com a tristeza da moça: “Eu nunca faria nada para magoá-la [...], mas meus amigos precisam de mim. Sei como ajudá-los agora. Preciso voltar.”

Já que Percy é o único que sabe como navegar pelo labirinto, precisa mesmo voltar. Mas tem consciência dos sentimentos de Calipso, dos dele próprio e da crueldade das Parcas.

Enquanto velejava, avançando no lago, eu me dei conta de que as Parcas eram mesmo cruéis. Elas enviavam para Calipso alguém que ela não conseguiria deixar de amar. Mas era uma via de mão dupla. Pelo restante da vida eu pensaria nela. Calipso seria sempre meu maior “e se...”.

Jasão abandonou a mulher que o tinha ajudado sem sequer olhar para trás. (Embora, no caso dele, não se trate tanto de uma ingratidão grosseira. Caberia perguntar: “Por que demorou tanto para fazer isso?”) Teseu fez o mesmo: abandonou Ariadne depois que ela traiu o próprio pai para ajudá-lo a matar o Minotauro. E, quando pensamos no valor que os gregos antigos atribuíam à família, essa seria uma atitude bem condenável.

Vamos observar mais um desses heróis antigos: Ulisses. Não vejo muito problema nas atitudes de Ulisses durante a Guerra de Troia; é na terra dos ciclopes, com Polifemo, que ele começa a se comportar mal. Como simples invasores, ele e seus homens deixam Cachinhos de Ouro no chinelo ao tomarem a caverna de Polifemo e comerem tudo o que havia ali. Quando Polifemo volta e os vê limpando sua despensa, fica irritado, e com razão — embora eu tenha que admitir que comer dois dos homens de Ulisses foi uma reação um tanto excessiva. Por outro lado, cegar o dono da casa que você está saqueando é uma injustiça. E aquela história de “meu nome é ninguém” foi pura palhaçada.

Depois que Percy entrou na caverna de Polifemo, em O Mar de Monstros, lançando mão do mesmo truque (de se agarrar à barriga dos carneiros) que Ulisses e seus homens usaram para escapar, teve que enfrentar Polifemo para ganhar a liberdade... e, com a ajuda de Tyson, saiu vencedor.

Polifemo estava estatelado de costas no chão, atordoado e gemendo, e eu estava em pé em cima dele, com a ponta da espada pairando sobre o seu olho.

[...]

— Por favor, nããããão! — gemeu o ciclope, olhando com tristeza para mim. Seu nariz sangrava. Uma lágrima se formou no canto do olho meio cego. — M-m-meus carneirinhos precisam de mim. Estava só tentando proteger meus carneiros!

Ele começou a soluçar.

Eu vencera. Tudo o que tinha de fazer era fincar a espada — um golpe rápido.

— Mate-o! — berrou Clarisse. — O que está esperando?

O ciclope parecia tão desolado, tão parecido com... com Tyson.

— Ele é um ciclope! — avisou Grover. — Não confie nele!

Eu sabia que ele estava certo. Sabia que Annabeth teria dito a mesma coisa.

Mas Polifemo soluçava... e pela primeira vez entrou na minha cabeça o fato de que ele também era filho de Poseidon. Como Tyson. Como eu. Como eu poderia simplesmente matá-lo a sangue-frio?

— Nós só queremos o Velocino — disse ao monstro. — Você concorda em nos deixar levá-lo?

Enquanto Ulisses mutilou o ciclope sem piedade, Percy tentou poupar o inimigo — mesmo sabendo que não dava para confiar em Polifemo.

Em nenhum ponto das histórias da juventude dos antigos heróis fala-se deles fazendo amizade ou desprezando quem quer que seja, mas acho difícil que qualquer um deles tenha ficado amigo de um menino sem-teto grande e feio que tinha medo de tudo. Percy faz amizade com Tyson e lhe dá apoio contra os valentões de sua escola para humanos comuns. E Tyson retribui derrotando Polifemo.

De um ponto de vista moderno, o comportamento de Ulisses não é muito melhor no que diz respeito a sua relação com Circe. Uma vez que seus homens foram transformados em porcos, não vejo problema algum em ele obrigar a feiticeira a transformá-los em humanos outra vez. Mas jamais lhe passa pela cabeça tentar socorrer as outras vítimas de Circe. Ele deixou a todos na forma animal. Na verdade, Ulisses e seus homens permaneceram com Circe por um ano depois desse episódio. E todos se tornaram bons amigos. Será que comiam porco com frequência?

Quando Annabeth despejou as vitaminas na gaiola para salvar Percy em O Mar de Monstros, talvez não estivesse tentando conscientemente salvar outras vítimas de Circe. Mas foi o que aconteceu. E parece bem justo que essas vítimas fossem alguns dos piores piratas de todos os tempos, mais do que capazes de distrair Circe enquanto Percy e Annabeth conseguiam fugir.

Há muitos momentos na série em que se pode comparar diretamente a reação de Percy diante de um desafio às dos heróis antigos. Há outros momentos, porém — como aquele em que o garoto fica amigo de Tyson —, em que não se pode fazer uma comparação direta, porque Percy faz coisas que a maioria dos antigos heróis simplesmente não faria. Nos velhos tempos, monstros eram monstros e inimigos eram inimigos. A ideia de compreendê-los ou ter compaixão por eles jamais passaria pela cabeça de um herói da Antiguidade.

Percy Jackson vê monstros e inimigos como pessoas, que podem merecer compaixão mesmo estando do outro lado. E isso não acontece apenas com Tyson, Polifemo ou Nico. Embora tenha tido péssimas experiências com cães infernais, Percy está disposto a dar à sra. O’Leary o benefício da dúvida. Ele deixa Nereu pensar que está prestes a vencer a luta para poupar seus sentimentos. Sente compaixão, ou talvez até afeto, por Clarisse — e lhe dá o crédito pela jornada que acabam empreendendo juntos, coisa que nenhum herói antigo jamais fez.

Percy dá a um monstro, Euritíon, conselhos que vão melhorar sua vida, e com isso o inimigo se transforma em aliado. Na verdade, ao longo da série Percy desenvolve um verdadeiro talento para impedir que as pessoas se tornem suas inimigas — assim ele não terá que matá-las. O jovem semideus evita matar sempre que pode, mesmo que isso aumente os perigos de sua missão. Quando ele e Beckendorf estão tentando explodir o Princesa Andrômeda, Percy poupa a vida do herói de doze anos que está a serviço de Cronos. Mais tarde, quando a cavalaria de Cronos está atacando o Empire State, ele desintegra os cavalos, em vez de matar os cavaleiros. E, depois que estes seguem a pé, o rapaz tenta feri-los, em vez de acabar com eles.

Percy também demonstra compaixão por outras criaturas. Não me lembro de nenhum herói antigo preocupado em saber se seu cavalo está cansado, como ele faz com Blackjack, ou se seu cachorro pode se ferir, como faz com a sra. O’Leary. E também não me lembro de heróis da Antiguidade querendo simplesmente ajudar criaturas como os hipocampos. Ou defendendo um inocente, como Bessie.

A ideia de que outros seres possam ter direitos é algo moderno — mas veja como Percy lida com a náiade, em A batalha do Labirinto, embora pudesse lançar mão de um estábulo cheio de esterco:

— [...] você não vai arruinar meu rio.

Ela parecia pronta para uma luta. Os punhos estavam cerrados, mas pensei ter ouvido um leve tremor em sua voz. De repente percebi que, apesar da atitude furiosa, ela sentia medo de mim. Provavelmente, pensava que eu lutaria contra ela pelo controle do rio, e temia perder.

Esse pensamento me deixou triste. Senti-me um valentão, um filho de Poseidon fazendo valer sua vontade pelo uso da força.

Sentei-me em um toco de árvore.

— Ok, você venceu.

Na Grécia Antiga, a definição de herói baseava-se principalmente em força física e coragem. Poseidon expressa isso muito bem em A maldição do titã, quando se refere ao fato de Percy ter assumido o fardo de Atlas para libertar Ártemis e ela então derrotar o gigante: “Somente um herói, alguém com força, coração fiel e grande coragem, faria tal coisa. Ninguém no exército de Cronos ousaria tentar suportar aquele peso, mesmo sob pena de ser morto.”

Mas, como observa Percy, por essa definição até Luke é um herói! Assim como todos os outros heróis gregos antigos, com sua violência, sua fanfarronice, seus roubos e suas traições.

Atena, uma deusa à moda antiga, da época em que inimigos eram inimigos, diz a Percy: “Seu defeito fatal é a lealdade, Percy. Você não sabe a hora de recuar diante de uma situação sem saída. Para salvar um amigo, você sacrificaria o mundo. Para o herói da profecia, isso seria muito, muito perigoso” (A maldição do titã). Mas, no fim das contas, é a habilidade que Percy tem de ver Luke claramente, de entender, de confiar, de fazer amizade com o inimigo que os leva a derrotar Cronos. E não acredito que qualquer herói da Antiguidade tivesse sido capaz de fazer isso.

Esses antigos heróis não eram vilões. Viviam segundo as regras e os valores de sua sociedade e de sua época. E Quíron provavelmente tem razão quando diz, em O Mar de Monstros: “Os heróis personificam essa luta. Você enfrenta as batalhas que a humanidade precisa vencer, a cada geração, a fim de continuar sendo humana.”

Os heróis modernos, porém, enfrentam tais batalhas com mais benevolência, dignidade e compaixão do que os antigos heróis jamais poderiam fazer — o que depõe a favor da humanidade em nossa época.

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Hilari Bell escreve narrativas fantásticas e de ficção científica para crianças e adolescentes, entre as quais a trilogia Farsala, a série Knight & Rogue e Raven Duet. Seu hobby favorito é o acampamento “decadente”, porque são os únicos momentos em que pode ler bastante — embora, em termos de leitura, nunca seja suficiente. Seu site é www.hilaribell.com.


Nem mesmo os deuses
são perfeitos

A deficiência como marca do herói

Elizabeth E. Wein

Ninguém é intocável. O Super-Homem tem sua kryptonita. Aquiles tem seu calcanhar. Percy Jackson tem transtorno do déficit de atenção e dislexia. Por que criar um herói com dificuldades de aprendizagem? Como Elizabeth E. Wein destaca, há uma longa tradição literária de heróis imperfeitos. Às vezes nossas fraquezas são, na verdade, marcas de grandeza.

Talvez seu cérebro esteja programado para ler grego antigo. Talvez você tenha muita dificuldade de ler este livro. Adoraria que fosse escrito em um alfabeto que você identificasse. Que as palavras não parecessem enigmas.

É muito mais provável, porém, que, se você estiver lendo isto, a leitura seja bem fácil. Pode ser que você olhe para um colega de turma com dificuldade de aprendizagem e pense: “Deve ser um burro, mal consegue ler!”

Talvez você sinta pena. Talvez queira descobrir mais sobre ele, mas tenha vergonha, fique sem jeito e evite olhá-lo ou falar com ele, pois é muito diferente, e você não sabe como é ser assim e não quer falar alguma bobagem.

Talvez você caçoe dele. Talvez pelas costas, pois assim ele não saberá.

Talvez caçoe na frente mesmo. “Ei, uma difícil para você: dois mais dois?” Não tem nada a ver com leitura, mas ainda assim magoa. É um insulto gratuito.

Quem dera eu tivesse inventado essa para este texto. Infelizmente, uma pessoa disse isso semana passada para um disléxico do sexto ano de uma escola próxima.

Ora, e se esse garoto tivesse o poder de arrastar você com uma onda do mar, jogá-lo de ponta-cabeça em uma fonte e deixá-lo ensopado, sem sequer tocá-lo?

Seria menos provável que você caçoasse novamente dele.

E talvez fosse mais provável você querer esse colega a seu lado.

***

Nos livros de Percy Jackson, os filhos meios-sangues dos deuses olimpianos são quase sempre marcados por dificuldades de aprendizagem, mais especificamente dislexia e transtorno do déficit de atenção com hiperatividade. Acontece que esses problemas, que a sociedade normalmente rotula como deficiências, são realmente sinais de talentos intimamente relacionados às origens divinas dos heróis. Se você é um meio-sangue, esses aparentes defeitos também podem atuar de duas maneiras muito úteis: podem revelar sua verdadeira natureza no mundo dos deuses e disfarçá-la no mundo dos mortais.

A dislexia de Percy é causada pelo fato de que sua “mente está programada para o grego antigo” (O ladrão de raios). Seu transtorno do déficit de atenção, que o impede de prestar atenção às aulas, se deve a sua capacidade de enxergar e sentir mais do que os simples mortais. Quando o transtorno parece torná-lo impulsivo e irritável, são seus “reflexos do campo de batalha” entrando em ação. A maioria dos outros meios-sangues sofre exatamente da mesma combinação de deficiências, motivo pelo qual os sátiros, no papel de guardiões, sempre procuram pessoas com dislexia quando estão observando potenciais campistas para o Acampamento Meio-Sangue.

Por que Riordan deveria optar por usar a deficiência dessa maneira, como marca de possível heroísmo — na verdade, como marca dos filhos dos deuses?

Efetivamente, essa ideia não é nova. Existem diversas convenções agindo aqui. A primeira é uma convenção literária chamada motif. Um motif é um tema ou imagem em uma história que já foi utilizado muitas vezes na ficção ou nos mitos. O prestativo e falante cavalo, como Blackjack, o pégaso, é um tema tradicional — está até catalogado em um livro enorme chamado Motif-Index of Folk-Literature, do pesquisador de cultura popular Stith Thompson. A ideia de o herói ter uma deficiência não está listada no Motif-Index, mas ainda assim é um recurso literário reconhecido. E também histórico: grandes personalidades com deficiências sempre inspiraram respeito e admiração. Pense no almirante Horatio Nelson, o grande herói naval inglês que não tinha um braço; ou o presidente Franklin D. Roosevelt, confinado a uma cadeira de rodas por causa da poliomielite; ou Ludwig van Beethoven, que continuou compondo mesmo após ficar surdo.

A outra convenção a que Riordan recorre aqui é a ideia de que a deficiência pode ser o dom dos deuses. Essa crença remonta a uma época muito longínqua da história. Os gregos antigos chamavam a epilepsia de “doença sagrada”, porque se pensava que a vítima estava possuída por demônios ou deuses; algumas pessoas verdadeiramente impressionantes ao longo da história eram epilépticas, como Alexandre, o Grande; Júlio César; são Paulo; Joana D’Arc; e Napoleão Bonaparte.

Então, a ideia de deficiência tanto como marca de um herói quanto como uma vantagem para ele é uma sólida tradição que Riordan utiliza a sua própria maneira para criar o mundo de Percy Jackson.

Você lê grego antigo? A dislexia como dom dos deuses

A dislexia é uma dificuldade de aprendizagem atrelada à linguagem. O problema pode ocorrer em todos os níveis de inteligência e não se trata de um transtorno de visão, embora afete o modo como as pessoas enxergam as palavras. É um problema de decodificação. Geralmente a dislexia acarreta dificuldade na leitura; a palavra vem dos termos gregos dys, que significa “dificuldade”, e lexis, que significa “palavra”. A dislexia não afeta a capacidade da pessoa de aprender a falar, mas pode causar problemas (causa com frequência, na verdade) na soletração, na escrita e na pronúncia das palavras. Pode dificultar a habilidade de ler e processar problemas matemáticos também, embora não afete a habilidade de fazer matemática (essa outra disfunção é chamada discalculia).

Existem muitas formas de a dislexia prejudicar a aprendizagem, e muitas vezes elas se misturam. A dislexia de Percy parece ser estritamente visual, mas é claro que não o vemos escrevendo um monte de recados ou tentando soletrar quando está lutando contra os monstros. Ele não parece ter nenhum tipo de problema ao preencher o formulário de entrega quando envia a cabeça da Medusa para o Olimpo, em O ladrão de raios, pelo menos. No entanto, o fato de a dislexia dele ser sobretudo visual faz sentido, pois deve ser supostamente ligada à capacidade natural de Percy de ler em outro alfabeto. Para o garoto e os outros meios-sangues, é incrivelmente irônico que uma dificuldade de ler um termo grego seja, na verdade, sinal de uma capacidade inata para entender o grego antigo.

Por tornar a leitura uma tarefa tão difícil, a dislexia pode provocar problemas sociais também, quando as outras pessoas não compreendem totalmente ou não reconhecem a disfunção. Isso pode frustrar professores e torná-los impacientes; pode transformar uma criança em um alvo para as outras.

Se você já apresenta outras dificuldades, como transtorno do déficit de atenção, embora elas possam não ser relacionadas com a dislexia, os problemas se agravam mutuamente e você acabará rotulado como um Grande Problema — como Percy —, e talvez seja expulso de seis escolas em seis anos.

Nos livros de Percy Jackson, o leitor recebe muito mais lembretes das dificuldades que a dislexia causa do que de seus supostos benefícios. Quando Percy lê uma placa ou um anúncio, geralmente há algo tortuoso. EMPÓRIO DE ANÕES DE JARDIM DA TIA EME se torna a expressão totalmente ininteligível MEOPRÓI ED NESÕA ED JIDARN AD IAT MEE em O ladrão de raios; FECHADO PARA EVENTO PIRATA quer dizer, na verdade, FECHADO PARA EVENTO PRIVADO em A maldição do titã. Mas Percy geralmente consegue descobrir rapidamente, pelo contexto, o que as palavras escritas significam, e às vezes tem sorte, como quando o caminhão da “Simpatia Internacional”, em O ladrão de raios, tem letras brancas pintadas ao contrário em fundo preto, o que facilita a leitura para ele. Como muitas crianças disléxicas, ele aprendeu a compensar uma coisa com outra.

Percy não é o único meio-sangue disléxico: todos são. Annabeth Chase, filha de Atena, também tem dislexia; quando ela e Percy estão juntos em uma jornada, precisam mais ou menos adivinhar os sinais ao longo do caminho ou levar alguém como Grover Underwood, o sátiro, para interpretá-los. Mas isso não impede Annabeth de ler o tempo todo. É o que ela está fazendo quando Percy tem a oportunidade de conhecê-la (é claro, ela está lendo em grego, porque é mais fácil). A dislexia também não a impede de trabalhar persistentemente para realizar seu plano de, no futuro, se tornar arquiteta. E a mensagem que Riordan passa é que essa disfunção não deve impedir ninguém de fazer o que for.

Os deuses são impulsivos: Transtorno do déficit de atenção com hiperatividade

Qualquer um, até mesmo os mortais, pode ter transtorno do déficit de atenção com hiperatividade junto com dislexia, mas essas disfunções não têm relação entre si. O transtorno do déficit de atenção é uma disfunção do desenvolvimento neurológico que afeta cinco por cento da população mundial. “Neurológico” significa relacionado ao sistema nervoso, e “disfunção do desenvolvimento” indica um atraso — não necessariamente permanente — na taxa de crescimento normal. Existem três principais características do transtorno do déficit de atenção: desatenção, hiperatividade e impulsividade. Essas características se combinam para criar a disfunção específica de cada indivíduo: você pode ser principalmente desatento, principalmente hiperativo e impulsivo ou uma combinação dos três.

Percy, ao que parece, deve ter a forma combinada dos três, mas acho que ele é mais convincente como o tipo “principalmente hiperativo e impulsivo”. Ele não demonstra muitos sinais de desatenção. Sua compreensão do mito grego é impressionante, mesmo que às vezes reclame de não conseguir se lembrar de tudo. Ele recorda quase tudo que Annabeth já lhe disse, não perde o fio das complicadas guinadas da trama e lembra-se da imensa quantidade de amigos e inimigos com muito mais facilidade do que eu, como leitora. Há um momento, mais para o fim de A maldição do titã, em que Grover tem que lembrar a Percy a instrução de Apolo sobre como encontrar Nereu, o “velho homem do mar”, mas como leitora eu também tinha esquecido, então para ajustar o ritmo da leitura foi ótimo isso ter aparecido novamente.

O site do Instituto Nacional de Saúde Mental (dos Estados Unidos) indica que “nem todo mundo que é excessivamente hiperativo, desatento ou impulsivo tem transtorno do déficit de atenção”, e fico pensando no orientador da Academia Yancy que parece ter feito o diagnóstico. Um diagnóstico de transtorno do déficit de atenção rastreia os comportamentos persistentes durante um período de seis meses e classifica o nível do problema a partir de uma escala. O orientador de Yancy deve ter sido bem apressado em propor um diagnóstico preciso, dado que Percy só ficou nessa escola de setembro até junho do ano seguinte. No ritmo de seis escolas em seis anos, não parece que Percy tenha tido permanência suficiente para que alguém pudesse avaliar suas dificuldades de modo preciso.

Mas ele é bom de briga (embora seja modesto). O comportamento impulsivo e a hiperatividade em um meio-sangue estão supostamente ligados à capacidade de lutar, e uma coisa chamada “fúria de batalha” ou “ardor de batalha” é outro tema comumente reconhecido na literatura; chega até a ser um fenômeno histórico. O transtorno do déficit de atenção parece uma forma inteligente de explicar a louca impulsividade que pode se apoderar de um guerreiro enfurecido. As pessoas que estão lutando sob o efeito do “ardor de batalha” parecem enlouquecer e matar tudo que esteja a seu alcance, sem pensar na própria segurança. Entre os heróis literários que são tomados pelo “ardor de batalha”, estão Gauvain, um dos mais nobres cavaleiros do rei Artur (isso o deixa em apuros algumas vezes, pois ele é muito incontrolável quando está lutando); Cucullain, o herói da lenda irlandesa; e Aquiles, o herói da Grécia Antiga. Historicamente, os guerreiros gauleses eram conhecidos e admirados pelos romanos por sua fúria nas batalhas. No Acampamento Meio-Sangue, é mais provável que esse frenesi de lutas surja no chalé de Ares. Os filhos e filhas desse deus são mais que impulsivos (desconfio de que o transtorno do déficit de atenção de um meio-sangue possa variar de intensidade dependendo de que deus ou deusa ele é filho). Nem toda guerra depende exclusivamente de habilidades para luta, e na verdade existem dois deuses guerreiros na mitologia grega: Ares, o impulsivo, e Atena, protetora dos soldados. Mas Atena não luta impulsivamente. Ela é a deusa da sabedoria. Assim, George Washington seria um filho de Atena: general, sábio e cauteloso estrategista, bem como soldado. Ares espalha destruição; Atena inspira reflexão.

Historicamente, considera-se mais provável que a fúria de batalha seja provocada por drogas, que alteram o estado mental, do que consequência de uma disfunção neurológica. Na verdade, qualquer um que tome medicamentos — para transtorno do déficit de atenção ou por qualquer outra razão — não seria admitido no serviço militar dos Estados Unidos. Você pode imaginar como seria útil uma disfunção que o torna desatento e impulsivo se estivesse escondido em um bunker no deserto do Iraque. Mas, felizmente para Percy, suas batalhas são na maioria das vezes contra monstros, que tendem a ser bem estúpidos ou ter cabeças que transformam você em pedra ou crescem em dobro quando você as corta. Um toque de impulsividade não faz mal nenhum contra inimigos como esses.

Coxo e lento: Outras deficiências na série Percy Jackson

A dislexia, uma dificuldade de aprendizagem, e o transtorno do déficit de atenção, uma disfunção do desenvolvimento, são dois distúrbios específicos que marcam os meios-sangues, mas outras deficiências, especialmente as físicas, também podem esconder importantes características no mundo dos deuses gregos. Quíron, o centauro, disfarça seu corpo de cavalo em uma cadeira de rodas. Ele se mostra como um homem que perdeu a função das pernas, mas na verdade é um ser poderoso e belo. Grover esconde seus cascos de sátiro em sapatos de tamanho exagerado, o que atrapalha sua capacidade de andar, e suas pernas de cabra disfarçadas fazem com que ele pareça ter um desenvolvimento muscular anormal. Tanto Quíron quanto Grover suportam as dificuldades dessas estranhas combinações porque dessa forma se tornam aptos: podem habitar dois mundos, o dos deuses e o dos homens. A capacidade de circular entre os dois mundos torna a dificuldade — a deficiência — compensadora.

Assim como ocorre com todos os temas de Riordan, esse da deficiência paralelamente ao talento tem precedentes no próprio mito grego. O mutilado e deformado Hefesto, o ferreiro, marido de Afrodite, é um mestre artesão que forjou a carruagem de Apolo, o arco e as flechas de Eros e muitas armas de outros heróis. Outro personagem grego deficiente, embora talentoso, que não deu as caras na série de Riordan é Tirésias, que é cegado por Atena porque tem o azar de vê-la nua acidentalmente, durante o banho. Quando a mãe de Tirésias implora por ele, Atena fica com pena e compensa sua cegueira dando-lhe o dom da profecia.

Tyson, o meio-irmão ciclope de Percy, é um personagem que parece sofrer de uma espécie de dificuldade de aprendizagem não identificada (combinada com sua aparente falta de moradia): ele é extremamente lento. Isso é percebido em sua fala, que não é muito mais avançada do que a de um bebê. Esse seu modo de falar é ainda mais estranho se levarmos em conta seu corpo enorme e desajeitado. Assim como a dislexia dos meios-sangues, essas imperfeições são essenciais para sua verdadeira natureza. Tyson fala como um bebê porque é um bebê (embora o ciclope adulto Polifemo não pareça muito mais avançado do que Tyson no que diz respeito a inteligência, e Tyson o supere em maturidade emocional).

Tyson é lento para aprender as coisas que nós, mortais, valorizamos na escola porque elas são razoavelmente irrelevantes para sua herança ou sua existência. Ele é bom, se destaca mesmo, na comunicação com feras marinhas míticas e na fabricação de instrumentos mecânicos incrivelmente complexos, tais como o relógio que se converte em um escudo que ele faz para Percy. Tyson é naturalmente um perito em tecnologia; um talento inato. Então, seus aparentes defeitos, como os de outros meios-sangues, tanto revelam sua verdadeira natureza como a disfarçam.

“Criança agitada” com dificuldade de aprendizagem = provável semideus. Faz sentido?

Um dos sagazes leitores em minha casa, que, assim como Percy em O ladrão de raios, está agora no sexto ano, devorou os três primeiros livros da série em cerca de dez dias e os está relendo enquanto escrevo — disputamos os livros porque ela quer lê-los e eu preciso deles como referência. Mas quando lhe perguntei o que achou das deficiências de Percy, ela na verdade as negou.

— Percy não é disléxico!

Ela fala do assunto com certa experiência, pois tem uma amiga próxima que é severamente afetada por isso.

— É sim — falei. — É o que diz aqui no primeiro capítulo. E aqui está outro exemplo que mostra a dificuldade dele de ler.

— Ah — replicou ela, olhando para a prova. — Bem, ele não parece disléxico; é muito conversador.

A amiga dela conversa apenas com um pequeno grupo de conhecidos em quem pode confiar, pois sabe que não vão caçoar dela, fazer perguntas constrangedoras ou deixar livros de alfabetização sobre a carteira, de “brincadeira”.

Isabel Brittain produziu uma lista do que ela chama de “as seis armadilhas da ficção da deficiência”. Sua pesquisa é baseada em vários estudos prévios e foi apresentada em um ensaio para o periódico da Sociedade dos Estudos sobre Deficiências, com base em Columbus, Ohio. (A palavra “armadilhas” é enganosamente negativa, pois aqui se refere simplesmente a temas recorrentes na ficção que retratam personagens com deficiência; Brittain as chama de armadilhas porque não se limitam a oferecer ao leitor uma opção particularmente realística para conviver com a deficiência ou pensar a respeito.) Para ser breve, as “seis armadilhas” de Brittain são de que o personagem deficiente pode ser mostrado como: 1) sobrenatural; 2) extraordinário; e 3) pode aparecer como um coadjuvante, e não como um personagem totalmente desenvolvido (Tyson se enquadra nessa categoria); 4) a deficiência pode não ser precisamente pesquisada ou descrita em detalhes; e 5) o personagem deficiente pode ser alienado ou isolado. A última “armadilha” é que 6) o autor pode não ser capaz de entender como o personagem consegue viver normalmente com sua deficiência no futuro.

O retrato que Riordan faz das deficiências de Percy faz uso de pelo menos metade dessas, e todas as seis aparecem em seu retrato das deficiências em geral, pelo menos no sentido de que personagens como Grover nunca se sentirão fisicamente confortáveis no mundo dos mortais, onde deverão passar grande parte da vida. Há também o sentido de que poucas crianças meios-sangues conseguirão viver como humanos felizes e bem-sucedidos fora dos limites do Acampamento Meio-Sangue.

Calculo que nossa leitora do sexto ano não tenha notado as deficiências de Percy porque Riordan nem sempre as retrata de forma consistente. Na verdade, em O ladrão de raios, existem mais placas escritas, indícios e histórias de jornal que Percy lê sem fazer qualquer esforço aparente do que coisas que vêm a confundi-lo. Percy é bem ágil para perceber que o sr. D errou ao grafar seu nome na carta solicitando seu registro de permanência no Acampamento Meio-Sangue por um ano.

Ao longo desses livros, Riordan demonstra poucas vezes o transtorno do déficit de atenção de Percy; por outro lado, está constantemente lembrando o leitor de sua existência com pequenas cutucadas na narrativa. Sempre que Percy faz algo sem refletir, atribui isso ao seu transtorno do déficit de atenção: “O que eu fiz a seguir foi tão impulsivo e perigoso que mereci ser o rei do transtorno do déficit de atenção do ano”, ou: “Minha porção ‘transtorno do déficit de atenção’ se perguntou se o resto das roupas dele era feito do mesmo modo” (O ladrão de raios). Na maioria dos casos, no entanto, não vi motivo pelo qual o transtorno do déficit de atenção tivesse relação com isso. Quando Percy toma o volante do ônibus das mãos do motorista no Túnel Lincoln, é para evitar entrar em combate contra as três Fúrias que estão empunhando chicotes chamejantes na traseira do veículo. Em vista disso, fazer o ônibus perder o controle não parece algo tão maluco.

Sem esses lembretes ocasionais, essas cutucadas verbais, é possível que você não note a falta de concentração de Percy. Ele parece extremamente adaptável e capaz, mais do que a maioria das pessoas, apesar das dificuldades de aprendizagem (embora talvez isso só seja verdade porque o vemos a maior parte do tempo pensando e agindo em seu contexto predestinado, como um herói). Já no que diz respeito a ser expulso das escolas, não temos muitas informações sobre seu histórico, mas a realidade é que isso nunca se dá por culpa dele. Ele é incriminado por monstros, professores, colegas de classe e pela mídia repetidas vezes. Grandes e sangrentas batalhas divinas durante excursões escolares em museus e em jogos de basquete não são modos de levar uma vida sossegada.

Mas se as deficiências que Riordan descreve na série Percy Jackson são convincentes ou não em seu realismo, seu uso da deficiência é um excelente dispositivo. A deficiência é tanto uma marca do heroísmo quanto um modo de disfarçá-lo; contudo, mais importante que isso, é um lembrete constante de que todos são imperfeitos de alguma forma, mesmo os mais corajosos, os mais fortes e os mais inteligentes. Em A maldição do titã, a deusa Atena lembra a Percy que todo herói tem seu defeito fatal; o de Annabeth é o orgulho e o de Percy, a lealdade.

Espere aí... lealdade não é um defeito! A fidelidade é uma virtude! Mas se for usada contra nosso herói, no contexto errado, a recusa de Percy em sacrificar um ente querido para salvar o mundo pode significar a queda do Olimpo. Até mesmo uma virtude pode se tornar uma arma para a transgressão se for manipulada por uma força maligna, assim como uma deficiência pode servir como marca de heroísmo e força. E talvez, apenas talvez, essa guinada de ponto de vista fará o leitor pensar duas vezes sobre essas pessoas que não conseguem andar ou ler direito. Por que não tentar descobrir que características heroicas suas deficiências disfarçam?

Para mais informações sobre as deficiências discutidas neste ensaio, consulte os sites abaixo (em inglês):

The International Dyslexia Association – Associação Internacional de Dislexia (T) – www.interdys.org

National Institute of Mental Health – Instituto Nacional de Saúde Mental (T) – www.nimh.nih.gov

Para informações sobre o transtorno do déficit de atenção, acesse (em inglês):

http://www.nimh.nih.gov/health/publications/adhd/completepublication.shtml

Epilepsy Foundation – Fundação de Epilepsia (T) – www.epilepsyfoundation.org

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A deficiência é um assunto bem conhecido por Elizabeth E. Wein. Seu irmão, que sofreu sérios danos cerebrais em um acidente de carro quando tinha onze anos, vive confinado a uma cadeira de rodas. O herói de seus livros para jovens The Lion Hunter e The Empty Kingdom não tem um braço.

O mais novo romance de Elizabeth para jovens chama-se Code Name Verity, um thriller sobre uma amizade duradoura entre duas moças, uma delas piloto de avião e a outra espiã, durante a Segunda Guerra Mundial. Esse romance foi indicado para o Boston Globe/Horn Book Award em 2012, na categoria Honor Book.

Elizabeth é ph.D. em folclore pela Universidade da Pensilvânia. Ela e o marido são apaixonados por mapas e por pilotar aviões de pequeno porte. Moram na Escócia com os dois filhos.

O site de Elizabeth é www.elizabethwein.com.


Olhos congelados

Oráculos e profecias

Kathi Appelt

Se pudesse, você consultaria o Oráculo? Saber o futuro pode ser muito assustador, e adivinhar seu destino não é o mesmo que controlá-lo. Pergunte a Édipo. Kathi Appelt olha em sua bola de cristal para explicar as profecias da série Percy Jackson e os olimpianos e oferece conselhos para aqueles que pensam em visitar o sótão da Casa Grande.

Vamos falar sobre mim. Tenho cinco anos de idade. Minha irmã mais nova tem quatro anos e é a criatura mais irritante que já nasceu. Quer fazer tudo o que eu faço, inclusive usar o mesmo giz de cera na hora em que estou usando. Vermelho-escarlate. É minha cor favorita, e preciso dela para o desenho do arco-íris que estou fazendo para minha avó. Todas as outras cores já foram usadas. Preciso do giz de cera vermelho-escarlate. Tudo o que quero, tudo o que sempre quis, é que essa incômoda irmã mais nova vá embora e me deixe em paz, por isso olho para ela com meu “olhar mau”, ou seja, fico vesga e ponho a língua para fora. Minha mãe está junto à pia da cozinha, de costas para nós, então como conseguiria saber que estou fazendo essa maldade com minha irmãzinha? Mas de sua boca ouço a seguinte profecia: “Seus olhos vão congelar desse jeito.”

De repente só consigo pensar em olhos — nos que devem estar escondidos em algum lugar na parte de trás da cabeça da minha mãe e nos meus, que estão prestes a se transformar em gelo. Isso é o suficiente para que eu rapidamente ponha a língua para dentro e desfaça o olhar vesgo. Embora minha língua não tenha sido mencionada, vai que a congelam também, não é?

Além disso, o que é mais ameaçador? A perspectiva de meus olhos gelados vendo eternamente apenas o alto do meu nariz, ou minha mãe, que parece ver tudo e saber de tudo? Ali estava uma pessoa com autoridade, que tinha poder sobre mim e que também parecia saber o que eu pretendia aprontar sem sequer me olhar. Minha mãe, a governante da vida doméstica, deusa do reino. Naquele momento, o futuro estava certo. Olhos congelados iriam acontecer, a menos que...

Minha mãe onipotente era tão convincente para mim aos cinco anos quanto o Oráculo de Delfos deve ter sido para todos aqueles peregrinos que buscavam respostas com a Pitonisa, sentada em seu estranho poleiro em forma de tripé, inalando os vapores soprados da fissura abaixo dela e lançando suas profecias infalíveis. Como acontecia com o Oráculo, não havia real explicação de como ou de onde minha mãe obtinha suas informações. Ela as obtinha e pronto.

Na verdade, cada cultura teve e continua a ter seus diversos profetas, videntes e adivinhos, desde os cômicos até os divinos, e há aqueles também que olham fixamente para bolas de cristal e folhas de chá vermelho. Existem os que podem ser enquadrados na mesma categoria de são João Batista, que previu a vinda de Jesus, no Novo Testamento. Na verdade, a maioria dos profetas importantes tinha em comum o fato de preverem a vinda de uma figura divina.

O personagem Percy Jackson não é exatamente divino, mas há uma profecia dominante em grande parte de sua jornada, que só descobrimos por completo a certa altura do terceiro livro, A maldição do titã: “Havia alguns anos, Quíron recebera uma profecia sobre o próximo filho dos Três Grandes — Zeus, Poseidon ou Hades — que fizesse dezesseis anos. Supostamente, esse adolescente tomaria uma decisão que iria salvar ou destruir os deuses para sempre.” Em O último olimpiano vamos finalmente ter acesso à grande profecia na íntegra:

Um meio-sangue, dos deuses antigos filho...

Chegará aos dezesseis apesar de empecilhos...

Num sono sem fim o mundo estará,

E a alma do herói, a lâmina maldita ceifará.

Uma escolha seus dias vai encerrar...

O Olimpo preservar ou arrasar.

Isso, meus amigos, é uma baita de uma profecia! E, embora não possamos deduzir com certeza que Quíron é igual a são João Batista, ou que Percy, o filho meio-humano de Poseidon, é divino, a profecia maior anuncia de fato a vinda de uma pessoa importante, alguém que nasce tanto de um humano como de um dos três principais deuses — Zeus, Poseidon ou Hades.

Acabamos descobrindo que, embora Percy seja o meio-sangue de que trata a profecia, o herói, na verdade, é Luke. Percy, contudo, só vai saber disso momentos antes de a profecia se realizar, o que afeta, e muito, suas ações nas batalhas pelo Olimpo e por Nova York.

A grande profecia desempenha um papel fundamental na série, guiando tanto o comportamento dos deuses quanto o de Percy, mas não é só a profecia que faz isso. Riordan usa profecias para gerar efeitos importantes ao longo de todos os cinco livros, seja de forma ampla, seja de forma mais reduzida.

***

Quem de nós não fica fascinado com a perspectiva de saber o futuro? Pense no Gênesis: as transgressões de Eva foram motivadas tanto pela tentação e pela curiosidade como por seu espírito inquiridor. Há, e sempre houve, uma abrangente indústria secreta de adivinhos, quiromantes e sensitivos.

Mas há também um lado sombrio na descoberta do futuro. O futuro pode ser apavorante. E mesmo quando não é, conhecê-lo ainda é grave, muitas vezes assustador. Uma vez que você sabe de algo, não pode voltar atrás e apagá-lo da mente.

É bem apropriado, penso eu, que uma árvore marque a entrada do Acampamento Meio-Sangue. Assim como a árvore no Jardim do Éden, a que fica na entrada do acampamento representa o conhecimento. Logo que Percy descobre quem ele é e o que está em jogo, esse conhecimento sela o pacto: ele não pode retornar a sua inocência anterior mais do que Adão e Eva poderiam retornar à deles.

Da mesma forma, não é coincidência que a Névoa que cerca o Oráculo no sótão do Acampamento Meio-Sangue tome a forma de uma cobra, “uma enorme serpente verde e deslizando de volta para dentro da boca da múmia”. O antigo Oráculo de Delfos era conhecido como Pitonisa, em homenagem ao grande dragão que foi morto por Apolo. Quem transmite profecias — seja ele a múmia do sótão ou a serpente do Éden — assume a aparência de algo a ser temido. Mesmo em nossas brincadeiras, a noção de profetizar é vista com certo agouro. A forma triangular do popular Tabuleiro Ouija, afinal de contas, é idêntica à da cabeça de uma cobra venenosa. (Vale a pena notar que também é um “tripé”, semelhante ao banquinho de três pernas em que o Oráculo se senta.)

A mensagem é clara: o conhecimento, principalmente do tipo que vem da profecia, é algo muito, mas muito sério.

***

As profecias mais óbvias na série Percy Jackson vêm do obsoleto Oráculo do sótão. Ele é um dos Oráculos originais, sobrevivendo liofilizado. Foi uma maldição de Hades para evitar que o espírito de Delfos passasse para novas donzelas — que perdura pelo menos até O último olimpiano, quando o deus desfaz a maldição e Rachel assume o posto de novo Oráculo. Na Grécia Antiga, o Oráculo de Delfos era uma espécie de médium, geralmente uma sacerdotisa jovem, que recebia informações dos deuses e as repassava para um sacerdote, que, por sua vez, as transmitia a todos aqueles que chegavam em busca de respostas. Segundo Heráclito (cerca de 500 a.C.), conforme relatado por Ron Leadbetter na Encyclopedia Mythica, “o Oráculo não escondia nem revelava a verdade, apenas dava pistas”. Os dizeres de um oráculo costumavam ser um enigma, algo a ser desvendado e descoberto por aquele que ouvia sua resposta.

O Oráculo original, como retratado nas histórias de Riordan, não tem nada de bela sacerdotisa empoleirada em uma banqueta alta. Pelo contrário: aparece como um cadáver mumificado e é descrito como semelhante à “morte requentada”. Não faz o tipo mamãe reconfortante, mas a própria idade lhe confere autoridade. E fica bem no centro do Acampamento Meio-Sangue.

O interessante é que, segundo a lenda, o local do Oráculo era conhecido como ônfalo, que literalmente quer dizer “umbigo do mundo”. O Acampamento Meio-Sangue, com o poder de proteger seus jovens, serve como uma espécie de útero central e seguro, pelo menos por um curto espaço de tempo. É tão seguro quanto a cozinha da minha mãe, mas o Oráculo reside em um ponto central, bem na conexão com o mundo exterior, com o que espera os campistas além daqueles limites. Ali no sótão. É o umbigo.

É a essa figura que Riordan recorre a fim de propor uma profecia para cada uma das quatro jornadas nas quais Percy e seus amigos devem embarcar. E em todos os quatro casos, Percy e os outros campistas utilizam os diversos elementos das profecias para guiá-los em suas jornadas.

A primeira das profecias do Oráculo é dada ao próprio Percy. É a jornada que ele deve seguir.

Você irá para o oeste, e irá enfrentar o deus que se tornou desleal. [...]

Você irá encontrar o que foi roubado, e o verá devolvido em segurança.[...]

Você será traído por aquele que o chama de amigo. [...]

E, no fim, irá fracassar em salvar aquilo que mais importa.

E a profecia se realiza, ainda que de formas surpreendentes, principalmente a parte que se refere à traição “daquele que o chama de amigo”. E esse é um aspecto fundamental das profecias: elas nem sempre são o que aparentam à primeira vista. Nos velhos tempos, a mais famosa das profecias dos antigos Oráculos foi dada ao rei Creso, da Lídia. Quando ele perguntou se deveria entrar em guerra contra os persas, o Oráculo respondeu que se ele entrasse um grande império seria destruído. Então, Creso invadiu o território inimigo. Acontece que não foram os persas os derrotados, mas seu próprio império.

A profecia de Percy é também repleta de charadas. Os dois primeiros versos são bem fáceis de entender. Mas os dois últimos são mais complicados. À primeira vista, parecem óbvios, mas no final da narrativa fica claro que não eram exatamente o que aparentavam. O último verso, sobretudo, soa o mais agourento de todos. O que mais importa para Percy — sua mãe — é também a única coisa que ele pode, pelo menos, se dar ao luxo de perder. No final, vemos que Percy de fato fracassa na tentativa de salvá-la; em vez disso, ela mesma se salva ao, misteriosamente, se livrar de seu selvagem marido, Gabe. “Ela deu queixa do desaparecimento dele à polícia, mas tinha uma sensação engraçada de que jamais o encontrariam.”

O que se vê, porém, é que não é o quarto verso que contém o maior perigo, é o terceiro. Até o último capítulo, Percy acredita que seja Ares o traidor — o deus tempestuoso de fato se fez de amigo e, no fim das contas, lhe deu as costas. Mas no último capítulo o verdadeiro traidor mostra sua face: Luke.

O fato de Luke ser um colega de acampamento, e não um dos deuses ou mesmo alguém do povoado humano de Percy, o torna ainda mais ameaçador. E isso se confirma ao longo da série, com o poder de Luke tornando-se cada vez mais forte e mais voltado para a vingança.

As jornadas em O Mar de Monstros, A maldição do titã e A batalha do Labirinto também são ditadas pelas profecias do Oráculo. Embora Percy seja um herói nessas três aventuras, as profecias do Oráculo não são dadas diretamente a ele.

A segunda profecia, em O Mar de Monstros, é, na verdade, entregue a Clarisse, filha de Ares. Clarisse é, assim como seu pai, enigmática, meio amiga e meio inimiga. É forte, corajosa e competitiva — qualidades perfeitas para um guerreiro, mas não necessariamente para um amigo. Ao contrário do que acontece no primeiro livro, porém, dessa vez Riordan não revela ao leitor essa profecia até quase o final da história. Apenas Clarisse sabe o que o Oráculo lhe disse:

Navegarás com guerreiros de osso em navio de ferro,

O que procuras, hás de encontrar, e teu o tornarás,

Mas sem esperança dirás, minha vida em pedra enterro,

Sem amigos falharás e, voando só, retornarás.

Quando Percy descobre a profecia, os três primeiros versos já se concretizaram, portanto é fácil entender o que querem dizer. O último verso requer um pouco mais de trabalho para ser decifrado: Clarisse terá que levar o Velocino de Ouro de volta ao Acampamento Meio-Sangue sozinha em um avião. O grupo não tem dinheiro suficiente para adquirir mais do que uma passagem.

Assim como em O ladrão de raios, a profecia do Oráculo para O Mar de Monstros se realiza. Ainda que essa profecia não tenha sido dada diretamente a Percy, as experiências dele com as duas profecias anteriores lhe permitem confiar na eficácia dos versos. Dessa forma, Riordan introduz o uso da profecia com confiabilidade. Embora seu significado possa não estar claro no início, Percy pode acreditar de certa forma que, se continuar em sua jornada, a verdade das mensagens do Oráculo vai, sem dúvida, ser revelada.

Quando o garoto chega ao terceiro livro, a noção de profecia e o poder inerente a ela estão mais fortes do que nunca, o que é tanto reconfortante como assustador. Aqui em nosso mundo humano, por exemplo, é bem fácil desprezar o horóscopo diário. Mas se esse mesmo horóscopo continuasse a se confirmar dia após dia por um longo período de tempo, acabaríamos acreditando que qualquer coisa, boa ou ruim, que ali lêssemos ia acontecer. E com Percy não é diferente. Com o desenrolar de cada aventura, ele vai percebendo que pode confiar nas palavras do Oráculo, embora nem sempre saiba o que elas significam à primeira vista. Agourentas ou não, confusas e estranhas, ele pode confiar que se realizarão.

Em A maldição do titã, mais uma vez o Oráculo transmite a profecia a outro personagem. Agora, quem a recebe é Zoë Doce-Amarga, a Caçadora mais fiel de Ártemis.

A oeste, cinco buscarão a deusa acorrentada,

Um se perderá na terra ressecada,

A desgraça do Olimpo aponta a trilha,

Campistas e Caçadoras, cada um, brilha,

A maldição do titã um deve sustentar,

E, pela mão do pai, um irá expirar.

Em A batalha do Labirinto, a profecia é transmitida a Annabeth e é mais enigmática, reflexo da maturidade e da capacidade tanto de Percy quanto de Annabeth de interpretar os sentidos vagos das profecias do Oráculo.

Descerás na escuridão do labirinto infinito,

O morto, o traidor e o perdido reerguidos,

Ascenderás ou cairás pelas mãos do rei espectral,

Da criança de Atena, a defesa final,

A destruição virá quando o último suspiro do herói acontecer...

Mas assim como Clarisse se cala até o final sobre sua profecia, em O Mar de Monstros, Annabeth guarda para si o verso final da sua até o encerramento de A batalha do Labirinto. Suas motivações, no entanto, são mais pessoais do que as de Clarisse, e Percy, mais consciente do poder da profecia, percebe que as razões de Annabeth para o segredo são muito mais profundas e mais íntimas do que qualquer coisa que ele tivesse anteriormente enfrentado. Quando Annabeth revela o último verso, “E perderás um amor para algo pior que morrer”, seu impacto é poderoso porque também revela a profundeza de seus sentimentos análogos de amor e mágoa por Luke. De repente, Percy percebe que Annabeth foi para um local aonde ele não consegue acompanhá-la, um local repleto de lembranças dela — lembranças que não têm nada a ver com Percy e com o relacionamento que está começando entre os dois. E, naquele momento, o sentimento de perda de Percy é igualmente profundo.

Assim como a segunda profecia é mais temível do que a primeira e a terceira é mais ameaçadora do que a segunda, a quarta supera todas as outras, não porque os desafios físicos sejam maiores, mas porque os riscos emocionais são bem mais elevados. Quando a quarta profecia é anunciada, Percy acredita piamente nela. Tem plena segurança de que as coisas vão acontecer exatamente como o Oráculo previu.

Em todas essas quatro histórias, o Oráculo tem razão. As profecias se realizam. E com cada uma, Percy acaba compreendendo algo mais sobre as próprias profecias. Primeiro, descobre sua natureza enigmática; seu significado geralmente é enganoso, escondendo outro sentido. Por isso, Percy aprende algo sobre fazer suposições. Não é Ares quem o trai; é Luke.

Entretanto, quando a segunda e a terceira profecias acontecem, o principal aprendizado de Percy é que elas são confiáveis. O que significa que ele sabe, em O último olimpiano, que a profecia sobre um filho dos Três Grandes também vai se realizar, embora ignore como exatamente ou com quem vai ser.

***

Mas as profecias do Oráculo não são as únicas que guiam Percy Jackson. Lembre-se de que tanto em O Mar de Monstros como em A maldição do titã e A batalha do Labirinto as profecias pronunciadas pela múmia no sótão não são transmitidas a Percy; em alguns casos ele nem sabe delas até o final da jornada do livro. Ainda assim, havia profecias atuando. Só que nessas histórias elas aparecem sob a forma de sonhos. Mas sonhos são o mesmo que profecias?

Acho que o Apolo de Riordan iria concordar comigo: “Se não fosse pelos sonhos”, disse ele, “eu não saberia metade do que sei sobre o futuro. Eles são melhores do que tabloides do Olimpo.”

Na verdade, O Mar de Monstros começa com o pesadelo de Percy em que seu melhor amigo, Grover, aparece de vestido de noiva, tentando escapar desesperadamente de... algo.

Mais tarde, Riordan expande o sonho de forma que o torna uma espécie de comunicação entre Percy e Grover. Ele chama isso de “conexão empática”. Parece forçado supor que dois amigos como Percy e Grover pudessem conversar um com o outro por meio de sonhos? Talvez. Mas uma das particularidades de qualquer bom trabalho de fantasia é a capacidade do autor de fundamentar esse trabalho em realidade. Para que uma obra ficcional funcione, devemos simpatizar com o personagem principal, por menos humano que ele possa ser. Qualquer um que já tenha sido alertado em sonho vai acreditar que o mesmo poderia acontecer com Percy. Quem nunca teve aquele sonho em que está “pelado no ônibus da escola”? Ou aquele em que aparece na sala de aula para fazer uma prova e não consegue se lembrar de uma única resposta?

Podemos considerar esses sonhos um alerta: levante-se na hora certa para se vestir e estude mais um pouco para a prova. Os sonhos de Percy com Grover também são um alerta: vá até lá ou corra o risco de perder seu amigo para sempre.

A profecia do Oráculo no segundo livro é para Clarisse, e é essencial para a jornada dela, para recuperar o Velocino de Ouro. Percy está a seu lado para ajudar, mas sua própria jornada é para resgatar Grover. A profecia de Percy vem de um sonho e não do Oráculo.

Em A maldição do titã, a profecia de Percy aparece na forma de sonho outra vez. E, novamente, o sonho é com um amigo próximo: Annabeth. Mas, diferentemente da relação confortável que Percy tem com Grover, seus sentimentos em relação a Annabeth são mais complexos. Nesse caso, ele não compartilhou a “conexão empática” que permitia a comunicação entre os dois. Não; dessa vez cabe a Percy descobrir o significado sozinho, o que ele de fato faz.

E isso é bom também, porque, em A batalha do Labirinto, os sonhos de Percy não são com seus amigos, mas com aqueles que ele logo enfrentará, a saber: Dédalo e seu arqui-inimigo rei Minos. Os sonhos do garoto nesse volume servem tanto como profecia quanto como aula de história, preparando-o para o encontro que sabemos que está por vir, mas também lhe permitem usar a maturidade que vem adquirindo para ver as complexidades que formam a base das ações e decisões humanas (e divinas).

No quinto livro da série, os sonhos de Percy vão prepará-lo para as batalhas que terá que enfrentar. Ele tem visões de titãs planejando ataques ao Olimpo. Também vê Rachel e pistas para o papel que ela em breve vai desempenhar, como Oráculo. O garoto usa então as visões de seus sonhos sobre o que outras pessoas estão planejando para guiar as próprias ações na guerra e levar os meios-sangues à vitória.

Acho que é importante notar, contudo, que os sonhos de Percy não são menos enigmáticos do que as profecias proferidas pelo Oráculo. Ele ainda tem que aprender a interpretá-los. No entanto, eles proporcionam, de fato, um olhar mais pessoal para o modo como Percy age, principalmente em termos de relacionamentos com seus amigos e colegas de acampamento. Os sonhos são só dele.

Trocando em miúdos, Riordan usa o Oráculo para a profecia pública e os sonhos de Percy para a profecia particular. A primeira serve para iluminar os desafios maiores, globais, para Percy e seus amigos. A última nos permite conhecer Percy em um nível mais íntimo. Uma pessoa que sonha com seus amigos, que reconhece através desses sonhos que seus companheiros precisam dela, é alguém por quem podemos torcer.

***

Mas de onde vem a lealdade de Percy? Para responder a essa pergunta, temos que voltar para nossas primeiras reflexões sobre o personagem. E descobrimos através delas que Percy, de certa forma, sempre foi um filho de profecia.

Quando o vemos pela primeira vez, descobrimos que, aos doze anos, ele já tinha sido punido por mau comportamento em função de sua incapacidade de ficar quieto sentado (por conta do transtorno do déficit de atenção) e que está prestes a encarar o desafio de uma excursão escolar. As coisas nunca deram certo nas excursões que Percy havia feito antes. Por que seria diferente daquela vez? O diretor da escola o ameaçou “de morte com uma suspensão ‘na escola’ [...] caso alguma coisa ruim, embaraçosa ou até moderadamente divertida acontecesse durante a excursão”. Não é preciso um Oráculo para saber o que vai acontecer. Percy está fadado a ter problemas. Quanto a isso, não há dúvida. Como ele próprio acredita que é incapaz de evitar problemas, ou que os problemas são incapazes de evitá-lo, é uma vítima perpétua da chamada “profecia da autorrealização”. Ele se vê como a fonte dos problemas, por isso se torna a fonte dos problemas. Os problemas parecem ir atrás dele.

Sua incapacidade de se concentrar e controlar as próprias reações praticamente o impossibilitaram de frequentar uma escola normal, por isso ele foi matriculado na Academia Yancy, “a escola para esquisitões lesados que não davam certo em nenhum outro lugar”. E agora está prestes a ser expulso também de lá. Seu sucesso — ou a falta dele — no colégio é uma conclusão previamente determinada. Uma profecia.

Como se não bastasse, o garoto é também filho de uma mãe iletrada (embora esperta), casada com um homem burro e bruto, o padrasto de Percy. O verdadeiro pai de Percy não aparece em momento algum. Mesmo sem os problemas com o transtorno do déficit de atenção, sua situação em termos domésticos não lhe dá muita esperança. Levando-se tudo isso em consideração, seria bem fácil plantar uma grande profecia na cabeça de Percy, algo que não incluísse universidade, faculdade de direito ou um bom emprego com benefícios.

Como veremos mais adiante, as profecias com base em circunstâncias tais como as de Percy são bastante fáceis de se fazer, e todas incluem a palavra esforço. Desde a primeira página, embora não haja olimpianos presentes, podemos identificar Percy. Conhecemos esse tipo de pessoa. Nós a vemos nas salas de aula, no bairro, no time de futebol. Mesmo sem poderes especiais, podemos prever o que está reservado para alguém como ele: muita dificuldade. Então faz sentido que mesmo antes de Percy Jackson descobrir que não é completamente humano ele já tenha visto o futuro.

Portanto, o que Rick Riordan fez engenhosamente com seu personagem em seu mundo humano foi prepará-lo para os obstáculos que ele teria que enfrentar como meio-sangue. Os desafios que Riordan impõe ao garoto durante sua infância/adolescência — suas dificuldades de aprendizagem e sua situação familiar — cumprem o objetivo de “fortalecer Percy” para os obstáculos, a saber: os monstros, os quais ele será obrigado a enfrentar em toda e qualquer jornada.

A primeira profecia que o Oráculo transmite a Percy é apresentada por seus familiares humanos. Como ele mesmo relata:

Gabe voltou-se para mim e falou na voz rouca do Oráculo: Você irá para o oeste, e irá enfrentar o deus que se tornou desleal...

O cupincha da direita ergueu os olhos e disse com a mesma voz: Você irá encontrar o que foi roubado, e o verá devolvido em segurança.

O da esquerda colocou três fichas na mesa, depois disse: Você será traído por aquele que o chama de amigo.

Por fim Eddie, o zelador do nosso edifício, proferiu a pior sentença de todas: E, no fim, irá fracassar em salvar aquilo que mais importa.

O leitor atento perceberá que o Oráculo não mente. Percy enfrentará muitos monstros em suas jornadas, mas naquele momento em particular, os piores deles são os homens zombeteiros à mesa de pôquer, liderados por seu padrasto, Gabe Ugliano.

Annabeth confirma isso quando diz a Percy: “O mundo real é onde os monstros estão. É onde a gente descobre se serve para alguma coisa ou não.”

***

A genética de Percy também faz sua parte. Entranhadas nos genes de qualquer um, há um milhão de pequenas e grandes profecias. Nossa predileção por música, ciência ou arte, a mão com a qual escrevemos, o modo como rimos ou tossimos, o movimento de nossos pés quando caminhamos — tudo isso é decidido antes mesmo de nascermos. Em suma, nossa ascendência é o primeiro fator que determina quem somos, como somos e os rumos que nossa vida toma. (Diga-se de passagem, não herdei o terceiro olho de minha mãe.)

O transtorno do déficit de atenção que causava a Percy tantas dificuldades no mundo dos humanos se revela uma característica necessária para heróis. Como Annabeth explica: “E o transtorno do déficit de atenção... você é impulsivo, não consegue ficar quieto na classe. Isso são os seus reflexos de campo de batalha. Numa luta real, eles o manterão vivo. Quanto aos problemas de atenção, isso é porque enxerga demais, Percy, e não de menos. Seus sentidos são mais aprimorados que os de um mortal comum.”

Graças ao DNA do pai, Percy ganha poder ao submergir em água. Ele consegue respirar submerso e se comunicar com as criaturas marinhas. A água é sua amiga. Desde o momento em que emergiu do útero aquoso da mãe, cada célula em seu corpo tinha uma profecia: nascer para nadar! E, ao longo das histórias, Percy usa essas habilidades frequentemente para salvar a si próprio e aos amigos.

***

Falando em amizade, isso nos leva ao que pode ser a maior profecia de todas em se tratando de Percy Jackson: seu defeito fatal.

Uma das marcas registradas das histórias que nos foram contadas pelos gregos é a noção de que cada herói tem uma falha trágica. Talvez a mais famosa possa ser encontrada em A Ilíada, de Homero. Aquiles, o herói de Troia, era o guerreiro mais forte e mais corajoso de todos; seu corpo resistia a qualquer ataque. Ele acreditava que era imutável, inexpugnável, imortal. Seu único ponto fraco era o calcanhar, mas quem saberia disso? É claro que alguém acertou uma flecha bem no calcanhar dele, e esse foi o fim de Aquiles — e também de Troia. Daquele dia em diante, nosso “calcanhar de Aquiles” é sinônimo de ponto fraco, e, supostamente, nada nos enfraquece mais do que um defeito fatal.

Assim como Aquiles, Percy precisa de invulnerabilidade para lutar pelo Olimpo em O último olimpiano, e por isso mergulha no Estige. O único problema é que para sobreviver debaixo d’água ele tem que imaginar algo que o prenda aos vivos — uma âncora que o conecte a sua humanidade. Percy pensa em Annabeth e escolhe para si como fraqueza um ponto nas costas, na altura do umbigo. No entanto, estou pensando em outro tipo de defeito fatal que Percy também descobre no início da série. Quem lhe ensina isso é Annabeth, falando-lhe sobre si mesma: húbris. “Húbris quer dizer orgulho, insolência, Percy. Achar que você pode fazer as coisas melhor do que qualquer um... inclusive os deuses.”

Mas por que um defeito fatal é tão útil em uma boa história? Os gregos basicamente sabiam que a regra mais importante que um escritor nunca pode violar é “deixar o leitor preocupado”. Uma vez que temos consciência do ponto mais fraco do herói, passamos a ficar constantemente preocupados, querendo saber se seus inimigos vão descobrir ou não sua fraqueza e usá-la contra ele. Uma vez que sabemos qual é o ponto fraco do herói, podemos prever — profetizar — que ele não poderá se esquecer disso. A fraqueza é onde reside o potencial para fracassar. Pode-se dizer que um herói sem uma fraqueza é menos do que humano. E é aí que está a dificuldade. Percy é mais do que humano. Ele é um semideus.

Diferentemente dos pronunciamentos do Oráculo e dos sonhos de Percy, que em grande parte vêm de fontes externas, seu defeito fatal é interno, algo que vem de dentro. A mãe de Annabeth, Atena, identifica isso quando ela e Percy têm uma conversa no Monte Olimpo: “Seu defeito fatal é a lealdade, Percy. Você não sabe a hora de recuar diante de uma situação sem saída. Para salvar um amigo, você sacrificaria o mundo. Para o herói da profecia, isso seria muito, muito perigoso.”

Conforme Percy vai ganhando idade e experiência, também vai fazendo cada vez mais suas próprias escolhas. E, no fim das contas, a capacidade de escolher não é tipicamente humana? Apesar das circunstâncias de nosso nascimento, nossa família, nossa condição econômica, nossas peculiaridades, os humanos continuam a superar até mesmo as situações mais desesperadoras. Percy é em parte deus, mas também, em parte humano, e sua lealdade a seus amigos é, no fundo, humana.

A lealdade de Percy acaba sendo seu maior trunfo, embora Riordan nos mantenha, ao longo de toda a série, preocupados em saber se ela não vai se tornar sua maior falha.

Também é verdade que as maiores fraquezas de alguém podem também ser sua maior força. Não sei bem quem disse isso, mas, nesse meio-tempo, podemos ter esperança no fato de que embora todos sejamos, como Percy, até certo ponto filhos de profecias — quer essas profecias tenham a ver com nossos genes, nossas particularidades, quer com os deuses e deusas (também conhecidos como pais, avós, professores e — tudo bem — forças maiores) que nos protegem —, somos capazes de fazer nossas próprias escolhas. Podemos confrontar esses monstros no caminho. Podemos pegar o que quer que o destino nos reserve e usar isso para o bem maior. Não importa nossa ascendência, ainda podemos ser heróis.

Podemos descongelar nossos olhos e nos concentrar em algo além de nosso nariz.

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Kathi Appelt já figurou na lista de mais vendidos do New York Times com mais de quarenta livros para crianças e jovens adultos. Seu romance The Underneath, finalista do National Book Award, foi incluído na Newbery Honor e venceu o prêmio do PEN USA. Seu romance mais recente é The True Blue Scouts of Sugar Man Swamp. Seu mais recente livro infantil, Mogie: The Heart of the House, ilustrado por Marc Rosenthal, foi lançado em 2014. Para saber mais sobre ela, visite o site www.kathiappelt.com.


A linguagem do coração

Sophie Masson

O que torna um monstro assustador? Os piores são aqueles nos quais acreditamos — aqueles que sabemos que são reais. Ah, você pode dizer que eles são apenas histórias. Mas lá no fundo nós os reconhecemos. Eles mexem com nossos medos primitivos. Eles nos lembram nossos primeiros pesadelos. Sophie Masson nos leva a uma viagem pelo inconsciente, que contém mais monstros do que o Tártaro poderia um dia guardar.

Quando eu estava com uns nove anos, tinha um sonho terrível e recorrente. Era bem simples. Eu só conseguia enxergar um rosto, que à primeira vista era pequeno e longínquo, mas que ficava cada vez maior, até dar a impressão de estar bem acima de mim. Eu não conseguia ver o corpo, apenas um rosto. Era de um monstro: muito, muito descorado, de pele quase cinza, com grandes olhos fixos, que de tão desbotados pareciam quase brancos, e uma boca pálida e fina que, aberta, mostrava compridos dentes amarelos de pontas vermelhas. O cabelo era despenteado, parecendo se mexer e se levantar em um sopro invisível de vento ao redor do rosto, como se houvesse uma corrente elétrica passando pelos fios, ou como se cada fio estivesse vivo e se mexendo terrivelmente. Eu sempre acordava assim que a boca se abria em um horrendo grito, e eu também começava a gritar, berrando como uma louca.

Minha mãe vinha correndo, mas eu ficava tão assustada com o sonho que não conseguia me recompor para contar a ela. Achava também que, se não dissesse nada, acabaria esquecendo aquilo tudo e o sonho simplesmente desapareceria. Sonhei com isso três vezes, até que minha mãe, enfim, me convenceu a lhe contar o que era. Comecei a descrevê-lo, gaguejando, e de repente me ocorreu uma ideia assustadora: e se, ao descrever aquele rosto com palavras, eu o fizesse sair dos meus sonhos... e surgir na vida real? E se a partir dali eu nunca mais conseguisse esquecê-lo, por tê-lo transformado em palavras, tornando-o quase concreto? Pensei que minha mãe iria me dizer para não ficar assustada, que era apenas um pesadelo, que não era de verdade. Que ela não compreendia como era ficar ali paralisada em seu sonho enquanto o monstro chega cada vez mais perto e você não consegue se mexer, gritar, fazer nada. Exceto acordar. E depois ficar ali deitada, preocupada, pensando que ele poderia voltar se eu fechasse os olhos.

Mas, em vez disso, ela me perguntou:

— Esse monstro faz você se lembrar de alguma coisa?

— Alguma coisa de verdade? — sussurrei.

— De verdade ou de uma história.

Refleti. Eu adorava histórias. Adorava lê-las, ouvi-las e tentar escrever as minhas próprias. Aprendi a ler muito cedo e passava o máximo de tempo que podia com livros e histórias. Minhas favoritas eram os contos de fadas, as lendas e os mitos. O rosto do monstro poderia ser como o da bruxa má de João e Maria. Poderia pertencer a algum monstro executado pelo rei Artur. Mas enquanto eu pensava naquilo, descobri o que o monstro me lembrava. No começo daquele ano, eu tinha ganhado um livro maravilhoso chamado Tales of the Greek Heroes, de Roger Lancelyn Green. Era sobre Hércules, Teseu, Jasão e Perseu, entre outros, sobre as aventuras que enfrentaram e os monstros com quem tiveram que lutar. Eu adorava aquele livro e o li diversas vezes. Adorava principalmente a história de Perseu, com todo o seu glamour e sua rica atmosfera de conto de fadas: a profecia sobre o nascimento de Perseu; sua mãe, Dânae, trancada pelo pai em uma torre de pedra; Zeus aparecendo para Dânae em uma chuva de ouro; mãe e filho sendo abandonados para morrer no mar; o resgate de ambos por um pescador; Perseu atingindo a idade adulta; os dotes mágicos que os deuses e as ninfas lhe deram; Perseu resgatando Andrômeda do dragão etc.

Então, eu disse a minha mãe:

— Acho que era como a Medusa. — Medusa, a mais terrível das monstruosas irmãs Górgonas, com cabelo de cobra e um olhar frio, gélido, que imediatamente transformava em pedra quem fitava o rosto dela. — Mas ela era real, no meu sonho.

— É claro — disse minha mãe. — Ela era real para Perseu também. O que ele fez para derrotá-la?

— Usou o escudo que Atena lhe deu como espelho; assim não olharia nos olhos dela e não seria transformado em pedra. Depois, cortou a cabeça dela — respondi prontamente.

— Então — disse minha mãe, sorrindo —, você sabe o que fazer. Não fique com medo. Apenas pense em levantar seu escudo e brandir sua espada, assim ele não conseguirá mais machucá-la.

Eu devo sonhar com isso?, pensei, confusa. Devo tentar sonhar em derrotar a Medusa? Acho que não consigo. Tentei parar de sonhar com o rosto da Medusa e não consegui. Tentei ter bons sonhos todas as noites e não consegui. Mas se eu dissesse que não iria conseguir, talvez minha mãe tirasse de mim meu adorado Tales of the Greek Heroes, porque era muito assustador e estava me dando pesadelos. Eu não queria que isso acontecesse. Então disse: “Tudo bem” — como se eu soubesse o que fazer.

Naquela noite, fui me deitar preocupada. Tentei enfiar na cabeça aquela imagem: eu segurando o escudo como um espelho na direção daquele horrível rosto; assim sonharia com isso quando adormecesse. Mas me pareceu tolo. Eu não era Perseu. Não tinha um escudo. Nem uma capa de invisibilidade nem sapatos mágicos, por mais que eu os quisesse. O que você usaria se não fosse um herói da Grécia Antiga e um rosto horrendo o assombrasse em sonhos e o transformasse em pedra, e você fosse incapaz de se mexer ou de fugir? Então, pensei: É claro! Você usaria apenas um espelho comum. Não aquele grande de banheiro que não dá para tirar da parede, mas um pequeno, como o que minha mãe tinha na penteadeira dela. Eu me imaginei pegando aquele espelho e o segurando bem na minha frente. Não parecia muito uma arma própria para se enfrentar um monstro, mas teria que funcionar. E o que aconteceria a seguir? Perseu tinha cortado fora a cabeça da Górgona com a arma mais poderosa do mundo, a foice adamantina que o deus Hermes tinha lhe dado. Eu não possuía nada que lembrasse nem de longe aquela arma. Meu irmão mais novo tinha uma espada de brinquedo, mas era bem pequena, de plástico. Não era o tipo de coisa que você iria querer usar contra um monstro da Antiguidade. Nem de longe do tipo que você...

Preocupada com isso, acabei adormecendo. Nem sequer sabia que tinha adormecido até a manhã seguinte, quando acordei. O rosto não apareceu nos meus sonhos. Não porque eu tivesse me esquecido do que sonhara. Nunca esqueceria se o rosto aparecesse. Mas ele não veio. Não precisei lutar contra ele, com ou sem o espelho de mão e a espada de brinquedo. Ele simplesmente não veio.

Não surgiu na noite seguinte, nem na seguinte a essa, nem na outra. Na verdade, nunca mais voltou. Nem uma vez sequer. Nunca me esqueci daquele sonho, mas nunca o tive outra vez. Tive outros pesadelos uma vez ou outra e muitos sonhos bons. (Ainda tenho muitos e muitos sonhos bem vívidos, alguns dos quais entraram em meus livros e inspiraram algumas das minhas histórias.) Continuei lendo Tales of the Greek Heroes e sempre sentia um leve calafrio com a história da Medusa. Era o tipo de calafrio ambíguo: medo misturado a prazer. Prazer porque eu achava que tinha feito a mesma coisa que Perseu, tinha derrotado o monstro. Não precisara lutar literalmente contra ele, com armas de verdade. Mas sei que não é coincidência o fato de ele ter sumido quando as perguntas da minha mãe me ajudaram a reconhecer o monstro e pensar no que eu poderia fazer para combatê-lo. E, por causa disso, o sonho com o monstro perdera o poder de me assustar. Desaparecera, para nunca mais voltar.

Mas a lembrança daquele sonho continuou viva no fundo da minha mente. Muitos anos depois, quando me tornei escritora, assisti a um filme antigo bem sombrio chamado O toque da Medusa (estrelando Richard Burton), sobre um rapaz que tinha olhos de Górgona — ele era capaz de parar o coração das pessoas e fazer aviões caírem do céu como pedras. Então me lembrei do meu sonho com a Medusa. Embora ela nunca mais tivesse voltado, eu ainda podia ver aquele rosto claramente. Já era adulta na época, e a vida tinha me ensinado que existiam todos os tipos de monstros no mundo, não apenas aqueles que habitavam os sonhos ou as histórias. Eu sabia que alguns deles não eram apavorantes à primeira vista, como a Medusa, que podiam ter rostos normais e até mesmo ser simpáticos. Tinha conseguido compreender que os monstros viviam no coração humano e que, às vezes, induziam as pessoas a fazer as coisas mais horríveis e espantosas, coisas que transformariam você em pedra se pensasse nelas por muito tempo. E esses monstros também podiam ser dignos de pena, como a Medusa, que foi transformada pelos deuses em um ser voraz, cheio de ódio, vingativo, porque ousou amar quem jamais deveria. O termo que costumamos usar em nossa sociedade para uma personalidade monstruosa é “psicopata”, que vem de duas palavras gregas: psyche, cujo significado é alma, e páthos, que significa sofrimento ou enfermidade. Assim, “psicopata” significa literalmente “doente da alma”, o que descreve bem um monstro como a Medusa ou qualquer outro.

Acabei percebendo que o incrível mundo dos contos de fadas, lendas e mitos, onde deuses, heróis, monstros, fadas e bruxas compartilham um espaço encantado e assustador, não é feito apenas de aventuras e mágica. Também não é feito apenas de monstros que devem ser derrotados. Ele tem muito a nos ensinar sobre o mundo de carne e osso, de sofrimento e glória no qual vivemos, e sobre o nosso eu interior como seres humanos. Essas histórias falam a linguagem do coração humano: uma língua de coragem e terror, alegria e dor. Uma língua que ainda assim é intensamente relevante. As antigas histórias nos contam sobre nós mesmos — o que somos capazes de fazer, o que podemos fazer. Podemos não saber exatamente como é ser um antigo herói derrotando um monstro sobre-humano, mas todos sabemos o que é ter medo do mal e do perigo. E esperamos que, ao encarar um desafio, também tenhamos a coragem necessária para fazer o que deve ser feito. Podemos não ser exatamente princesas enclausuradas em torres por pais tiranos, como a mãe de Perseu, Dânae. Mas todos conhecemos jovens que estão em situação parecida no mundo real. As antigas histórias nos preparam para possibilidades ao nosso redor.

Eu mesma escrevo histórias fantásticas, herdeiras do mito e do conto de fadas, porque sinto que elas também falam a linguagem do coração. Têm o realismo da alma, uma espécie nobre de realismo em que um herói pode derrotar um monstro medonho com sua inteligência e sua coragem, não apenas com um espelho e uma espada, e pode aprender bastante sobre si próprio enquanto faz isso.

***

Nunca esqueci o livro Tales of the Greek Heroes. Cheguei a refletir sobre por que ninguém, nem mesmo eu, jamais tinha usado os mitos gregos como pano de fundo para romances fantásticos. Usamos os mitos celtas — e muito —, os mitos nórdicos, os arturianos e ocasionalmente outros, como os russos, os chineses e os japoneses. Mas não os gregos. E ainda assim o mito grego é a base de muitas histórias da civilização ocidental.

Refleti sobre isso por um tempo. Se fosse escrever algo com base no mito grego, pensava, escolheria a história de Perseu, pois tinha os elementos certos para tornar o texto bem interessante. Perseu não era um sujeito de força extraordinária, como Hércules. Não saía à procura de riquezas, como Jasão, nem traía a mulher que o havia ajudado. Além do mais, era o único que tinha derrotado a Medusa, e eu sempre me senti próxima dele por causa daquele sonho. E assim como a foice de Hermes e o escudo de Atena, ele tinha aqueles dotes mágicos das ninfas: os Sapatos da Rapidez e a Capa da Escuridão, que o tornava invisível. Era possível escrever uma versão realmente bem atualizada das suas aventuras, pensei. Eu ficava imaginando que um dia faria isso. Era uma vaga ideia. Sempre havia outro livro para escrever, outra história que pedia para ser contada antes.

Então, imagine a mistura de deleite e desânimo quando peguei para ler pela primeira vez O ladrão de raios, de Rick Riordan. Mas o doce deleite rapidamente superou o velho e desagradável desânimo. Após um breve momento de irritação de escritor, no qual pensei: Droga, esse cara passou na minha frente e inventou um Perseu atualizado, eu me vi inteiramente imersa na história e no modo como Riordan conseguiu se manter fiel a uma boa dose do poder selvagem e da magia do grego original e, ao mesmo tempo, trazer a história totalmente para o século XXI. Ele nos faz acreditar plenamente em Percy e em seus companheiros meios-sangues, prole problemática de deuses e humanos, em um mundo onde o Olimpo fica no seiscentésimo andar do Empire State; no deus da guerra, Ares, como um motoqueiro de olhos vermelhos; no Oráculo de Delfos como uma hippie de Woodstock mumificada; nas três Parcas tricotando as meias da morte; em um Hades hitleriano defendido por um exército de esqueletos (literalmente); e na Mãe de Monstros, Equidna, que tem um ataque de raiva (o que é mais divertido para nós, leitores australianos) por causa do “animal ridículo” que leva seu nome nas Antípodas. Um mundo no qual uma mulher de véu, aparentemente doce, que faz hambúrgueres mas tem um armazém cheio de estátuas de pedra com rostos medonhos, é a terrível Medusa. Terrível, mortalmente perigosa, mas também digna de pena...

Que invenção maravilhosa! Que divertido! Que combinação gloriosa de humor e aventura, de asco e tragédia, que nos entretém nas páginas em que Percy, Annabeth e todos os seus amigos lutam com bandos de monstros inimigos a fim de tentar evitar uma guerra entre deuses; guerra essa que abalaria o mundo até suas profundezas! Ao ler esse livro, eu me senti mergulhar novamente no mundo da criança que fui, em um cenário onde tudo era possível, em que deuses e monstros viviam sob todos os tipos de disfarce e poderiam aparecer não apenas em nossos sonhos, mas também em nossa vida. No entanto, também o li bastante como adulta, como escritora e como leitora, e fiquei imensamente impressionada. Pois a série é mais do que apenas a utilização bastante habilidosa, inteligente e imaginativa dos mitos gregos em uma maravilhosa aventura fantástica para crianças. Ela se aprofunda nas motivações dos personagens, em suas histórias passadas, em seus problemas e traumas — principalmente os de Percy, que tenta ser corajoso e entender um mundo que de repente se torna atordoante e perigoso. A série também transpõe de forma bem-sucedida a ambientação dos deuses, heróis e monstros. Como o tutor centauro de cadeira de rodas, Quíron, diz a Percy no capítulo cinco de O ladrão de raios:

Os deuses mudam com o coração do Ocidente. [...] O que vocês chamam de “civilização ocidental”. Você acha que é apenas um conceito abstrato? Não, é uma força viva. Uma consciência coletiva que ardeu brilhantemente por milhares de anos. Os deuses são parte dela. Você pode até dizer que eles são sua fonte ou, pelo menos, que estão ligados tão intimamente a ela que possivelmente não vão deixar de existir, a não ser que toda a civilização ocidental seja destruída.

Ele diz a Percy que essa força viva teve início na Grécia e continuou em Roma, na Alemanha, na Espanha, na França, na Inglaterra — onde quer que a chama da civilização ocidental tivesse mais força, ali se encontrariam os deuses. E agora eles estão no próprio país de Percy, os Estados Unidos: “Goste ou não — e acredite, uma porção de gente não gostava muito de Roma também —, os Estados Unidos são agora o coração da chama. São a grande potência do Ocidente. E, portanto, o Olimpo é aqui. E nós estamos aqui.”

Um ou dois anos antes de ler O ladrão de raios, li o extraordinário romance (adulto) de Neil Gaiman, Deuses americanos, no qual o autor imagina os Estados Unidos como um país em que todos os deuses trazidos pelas diversas multidões de imigrantes estão lutando para manter seus nichos e construir um lar em um local que de certa forma os esqueceu. Eles mal ganham para sobreviver nas esquinas, aplicam vários golpes e se envolvem em todo tipo de coisa, principalmente os deuses mais trapaceiros, como o nórdico Loki e o deus da África Ocidental, Anansi. É um incrível e vívido retrato detalhado de um mundo esquisito, embora totalmente verossímil, e por mil e uma razões a leitura de Percy Jackson me lembrou esse livro. A série de Riordan é voltada mais para crianças do que adultos, mas, assim como a obra de Gaiman, é forte, interessante e incomum e não subestima o público leitor. E, como ela, é centrada na ideia de que os Estados Unidos são o novo lar dos deuses, onde se travam importantes batalhas capazes de mudar o mundo.

Para um leitor não americano, isso pode ser um pouco desafiador — e mesmo assim Riordan leva a cabo sua proposta com tal ímpeto e entusiasmo que você não se sente ofendido. Você se integra plenamente a essa ideia. Sente-se como se ele tivesse reimaginado, de forma completa e bem-sucedida, os Estados Unidos modernos como o novo lar do mito, onde praticamente tudo pode acontecer. Em Sonho de uma noite de verão, de William Shakespeare, um dos personagens (incidentalmente nomeado em homenagem a um dos heróis gregos, Teseu) se refere a “essa coisa nenhuma aérea e vácua” — o mundo encantado de mitos, lendas e contos de fadas —, à qual se “empresta nome e [para a qual se] fixa lugar certo”. E isso é o que Riordan fez, com sua ousada reimaginação do mito em um ambiente americano: “deu-lhes um novo nome e fixou-lhes lugar certo”. E funciona. Na verdade, funciona muito bem.

Mas é claro que, se o país de Percy é o novo lar dos deuses, então consequentemente é também o novo retiro dos monstros. E, como os deuses, eles voltaram em formas diferentes de como se apresentavam nos mitos originais. Também eles mudaram com o passar dos tempos. Atacam Percy por todos os lados, e o garoto tem que aprender a combatê-los, bem como tentar aceitar que, na verdade, é um semideus. E através dessas lutas com os monstros e de seu confronto com Hades, ele também aprende outra coisa importante: que a morte pode não ser o principal inimigo. Não, o que se arrasta bem lá no fundo, esperando para retornar — o mal ironicamente eterno que é o titã Cronos, devorando o próprio velho pai, Tempo —, é o principal inimigo. E ele é o monstro mais assustador e mais poderoso de todos, pois devora tudo o que encontra.

Penso na criança que eu era, acordando daquele pesadelo com a Medusa, e sei que ela teria adorado esse livro. Ela o teria carregado consigo por toda parte, como fazia com Tales of the Greek Heroes. Teria desejado estar no mundo de Percy (provavelmente no lugar de Annabeth, que parece uma garota legal!), experimentando todos os maravilhosos dotes mágicos e dispositivos em sua imaginação. Teria se perguntado se era corajosa o bastante para enfrentar os monstros. Talvez tivesse até sonhado com a Medusa como uma mulher assustadora em um armazém cheio de estátuas.

Com essa série, Rick Riordan conseguiu algo extraordinário: tornou-se o guardião da chama, escrevendo na linguagem do coração. Está combatendo o pai Tempo e o fim da memória e da tradição ao manter vivas as mais profundas e remotas histórias e tradições do Ocidente, de uma forma que renovou seu encanto glorioso, grandioso, emocionante e assustador para toda uma nova geração.

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Nascida na Indonésia, filha de pais franceses e criada na Austrália e na França, Sophie Masson é autora de mais de cinquenta romances para crianças, adolescentes e adultos, publicados na Austrália e em muitos outros países. Seu romance histórico The Hunt for Ned Kelly ganhou o prêmio Patricia Wrightson de literatura infantil no New South Wales’ Premier’s Literary Awards em 2011. Seus livros mais recentes são o conto de fadas para adolescentes Moonlight and Ashes; a aventura fantástica para leitores mais jovens The Boggle Hunters; e o romance histórico para o público mais velho Ned Kelly’s Secret. Escreve também sob o pseudônimo de Isabelle Merlin. Seu romance The Madman of Venice foi publicado nos Estados Unidos em 2010, pela Random House. Sophie Masson comenta regularmente temas literários no blog www.writerunboxed.com. O site da autora é www.sophiemasson.org.


Glossário de antigos
mitos gregos

Nigel Rodgers

A

Afrodite

Deusa do amor e a mais bela das deidades do Olimpo, Afrodite era venerada de muitas formas ao longo do Mediterrâneo; pombas eram consagradas a essa divindade, geralmente representada na companhia de Eros, o perverso deus do desejo. No entanto, Afrodite tinha origens perturbadoramente impuras. O deus Cronos, induzido por sua mãe, Gaia, castrou o pai, Urano, e atirou no mar a genitália cortada. Da espuma resultante surgiu Afrodite, a “nascida da espuma”. Soprada em direção à terra por Zéfiro, o Vento Oeste, ela chegou a Chipre, onde foi vestida e adornada com joias pelas Horas, deusas que personificavam as quatro estações. Então, deslumbrante, ela provocou um caos amoroso no Olimpo, pois todos os deuses a adoravam. Zeus a fez se casar com Hefesto, o deus ferreiro, mas o casamento não se revelou um mar de rosas. Afrodite logo se entediou de seu marido coxo (e feio) e teve um caso com Ares, o deus da guerra. Quando Hefesto percebeu isso, atirou uma rede de aço sobre o casal adormecido, acorrentando-os à cama. Os outros deuses assistiram a tudo, às gargalhadas. Afrodite teve casos com outros deuses, como Hermes, e homens, tais como o príncipe troiano Anquises (pai de seu filho Enéas). A beleza da deusa enfeitiçou outro príncipe troiano, Páris, que, quando convocado para julgar quem era a mais bela — entre Atena, Hera ou Afrodite —, escolheu a deusa do amor. Em retribuição, ela lhe concedeu o poder de despertar o desejo, o que o fez conquistar o coração de Helena, a mulher mais bela que existia. Infelizmente, Helena já era casada — com Menelau, rei de Esparta. Ao fugir com ela, Páris deu início à Guerra de Troia.

(Ver Ares, Atena, Enéas, Éris, Hefesto, Hera, Jasão, Nereidas, Urano)

Amazonas

Guerreiras mulheres. Enquanto as mulheres de verdade, na Grécia, ficavam isoladas dentro de casa, sem poder sequer votar (o que dirá lutar), uma raça mítica rejeitou a dominância masculina: as amazonas. O nome delas pode ter surgido de amazona, cujo significado é “sem seios”, pois, pelo que se diz, elas cortavam fora o seio direito a fim de atirar melhor, mas na arte grega são sempre retratadas com ambos os seios. As amazonas viviam em Ponto (litoral norte da moderna Turquia) e em outras remotas regiões repletas de mitos ao redor do mar Negro. Ali, formaram sociedades onde as mulheres mandavam e os homens faziam o trabalho doméstico ou eram completamente excluídos. Sobretudo, elas lutavam, invadindo muitos territórios e até fundando cidades, como Éfeso (no litoral egeu da moderna Turquia). Teseu de Atenas, que tinha se juntado a Hércules em uma de suas aventuras, sequestrou Antíopa, uma princesa amazona, e a levou para sua cidade natal. Em represália, as amazonas invadiram a Grécia, e só foram derrotadas quando já estavam às portas de Atenas. Durante a Guerra de Troia, a rainha amazona, Pentesileia, foi em ajuda a Troia, lutando destemidamente até ser morta por Aquiles. O mais curioso foi que Aquiles chorou ao vê-la morta. Consta que, mais tarde, Alexandre, o Grande se apaixonou por uma rainha amazona que conheceu na Ásia Central.

(Ver Teseu)

Andrômeda

Princesa mítica, filha de Cefeu, rei da Etiópia, e de Cassiopeia. Andrômeda se gabava imprudentemente de ser mais bela do que as nereidas; furiosas, as ninfas do mar foram se queixar a Poseidon, o deus do mar, que enviou uma inundação e um monstro para devastar a terra. Para aplacar a cólera do deus, Andrômeda foi acorrentada a uma pedra, como sacrifício para o monstro. Mas Perseu, o herói que tinha acabado de matar a horrenda Medusa, viu Andrômeda e se apaixonou por ela. Matou o monstro e casou-se com a jovem, e o filho deles (também chamado Perseu) se tornou o ancestral dos persas. Ao lado de Cefeu e Cassiopeia, Andrômeda e Perseu foram mais tarde erguidos ao céu como constelações.

(Ver Perseu)

Anteu

Filho de Poseidon e Gaia, Anteu era um gigante de grande força, desde que mantivesse contato com o chão. Uma vez erguido ao ar, toda a sua força desaparecia. Ele desafiava passantes a enfrentá-lo e os matava. Apoderava-se então do crânio de sua vítima para usá-lo na construção de um templo que estava erguendo para o pai. Hércules descobriu o segredo de Anteu e o derrotou em uma luta romana erguendo-o no ar.

Apolo

Deus da música, poesia, medicina, luz e ciência, e para muitos a deidade grega arquetípica. Apolo nasceu com sua irmã gêmea, Ártemis, na ilha de Delos. Seu pai era Zeus, rei dos deuses, e sua mãe, Leto, uma titânide. O deus bebê foi alimentado com néctar e ambrosia em vez de leite, o que lhe deu a força usada para matar a serpente Píton, que tinha molestado sua mãe. Ele denominou o local de sua vitória Delfos, que se tornou a sede de seu oráculo, o maior da Grécia. Sempre que chegava o inverno, Apolo ia para o extremo norte até a terra dos misteriosos hiperbóreos, em uma carruagem puxada por cisnes brancos, e só voltava com a chegada da primavera. Era mestre da lira, o principal instrumento musical da Grécia, e do arco. No Monte Parnasso, próximo a Delfos, vivia com sua corte, tocando sua lira acompanhado das Nove Musas. Apolo podia ser perigoso se fosse tirado do sério. O sátiro Mársias imprudentemente o desafiou para uma competição musical; quando Apolo venceu, tirou a pele de Mársias ainda vivo. Era capaz de atribuir doença, bem como remédios, enviando pragas caso se irritasse com algo. Mas, em geral, era um deus caridoso, respeitado por humanos e por outras criaturas do Olimpo. Retratado sempre como um jovem imberbe, de uma beleza serena, Apolo teve muitos casos amorosos — quase sempre infelizes —, dos quais o mais conhecido foi com Dafne, uma ninfa. O deus a perseguiu apaixonadamente, mas em vão, pois ela orou para o pai, o deus do rio, Peneu, que a transformou em um loureiro exatamente quando Apolo estava prestes a alcançá-la. Um de seus outros casos amorosos foi com a princesa Corônis. Ao descobrir que a moça o tinha deixado, Apolo acertou-a com uma de suas flechas e, quando se arrependeu de sua fúria, já era tarde demais para salvá-la. Contudo, o filho deles, Asclépio, foi salvo pelo centauro Quíron e cresceu para se tornar um curandeiro divino. Apolo também se apaixonou por Jacinto, um príncipe espartano, a quem ensinou a lançar o disco. Quando Jacinto foi morto por um disco arremessado em alta velocidade, brotou do chão manchado com seu sangue a primeira das flores que leva seu nome. Apolo era às vezes identificado como Hélio, o deus do sol, mas na verdade os dois eram deidades distintas.

(Ver Ártemis, Delfos, Hécate, Hélio, Hércules, Hermes, Loureiro, Monte Olimpo, Ninfas, Oráculos, Orfeu, Píton, Zeus)

Aquiles

Filho de Peleu e da ninfa Tétis. Quando Aquiles nasceu, Tétis o segurou por um dos pés e o mergulhou no rio Estige, com a intenção de torná-lo imortal. E quase deu certo: só o calcanhar do menino por onde a mãe o segurava continuou sendo um ponto de vulnerabilidade — esta é a origem da expressão “calcanhar de Aquiles”, que remete a um ponto fraco. A não ser pelo calcanhar, Aquiles era invencível. Quando ele já era um rapaz, seu pai o mandou para ser criado por Quíron, o centauro, no Monte Pélion. Aquiles ficou conhecido como grande guerreiro e famoso por sua participação na Guerra de Troia. Combateu ao lado dos gregos, sob a liderança de Agamenon, depois que seu melhor amigo, Pátroclo, foi morto. Ele matou o príncipe Heitor e depois foi morto por uma flecha que Páris, o outro príncipe de Troia, disparou em seu calcanhar.

(Ver Amazonas, Centauros, Diomedes, Hefesto, Nereidas, Peleu, Guerra de Troia)

Aracne

Filha de um tintureiro lídio, que imprudentemente desafiou a deusa Atena para uma disputa de tecelagem. A tapeçaria que Aracne teceu retratava a cena da disputa entre Atena e Poseidon com tal realismo que a deusa, furiosa de inveja, destruiu o trabalho da jovem. Atena, então, transformou a própria tecelã em uma aranha, condenada a repetir para sempre sua compulsiva tecelagem. Do nome de Aracne surgiram os termos aracnídeo e aracnofobia (medo de aranhas).

Ares

Deus da guerra. Irascível e cruel, Ares era hostilizado tanto por outros deuses quanto por seres humanos. Embora fosse filho de Zeus e Hera, e por isso membro da “família real” do Olimpo, Ares não era amado pelos pais. Apenas Afrodite, entediada com seu marido ferreiro, Hefesto, o amou, e mesmo assim por pouco tempo. Em geral, Ares passava o tempo aparecendo repentinamente nos campos de batalha com seus aliados, os deuses inferiores Deimos (medo) e Fobos (pânico), e saía matando a torto e a direito. Mas Ares não era invencível, pois lhe faltava inteligência, bem como charme. Era comum Atena lhe passar a perna, e mesmo Hércules, um mero semideus, o derrotava às vezes. Ares era venerado por homens apenas em Tebas, uma cidade conhecida por seu militarismo e pela inteligência nada brilhante de seus habitantes.

(Ver Afrodite, Diomedes, Éris, Hefesto, Hera)

Ariadne

Filha do rei Minos e da rainha Pasifae, de Creta. Ariadne se apaixonou por Teseu de Atenas quando ele chegou a Creta como uma das vítimas de sacrifício para o Minotauro. A moça deu então a Teseu um fio para ajudá-lo a encontrar a saída do Labirinto, local em que o Minotauro era mantido. Após Teseu matar o monstro, os dois escaparam juntos de Creta. No entanto, Teseu — por razões ainda discutidas — abandonou Ariadne na ilha de Naxos, de onde foi resgatada pelo deus Dioniso, que se casou com ela. Ariadne, em sua origem, era provavelmente uma deusa minoica ligada à Grande Mãe.

(Ver Dioniso, Minotauro, Teseu)

Ártemis

Filha de Zeus e Leto e irmã gêmea de Apolo. Em uma encarnação, era uma caçadora casta, magra e forte que usava saias curtas (as gregas costumavam vestir longas túnicas). Protetora de jovens animais selvagens, ela percorria as matas com um arco, acompanhada das ninfas Caçadoras, que, assim como ela, tinham se comprometido com o celibato. (Essas vinte ninfas indefinidas, imortais mas sem qualquer poder real, não têm nome em nenhum relato, à exceção de Calisto. Calisto, filha de Licaão, foi seduzida por Zeus, que apareceu para ela disfarçado da própria deusa. Quando Ártemis descobriu isso, matou a pobre Calisto com uma flecha.) Quando o caçador Acteão viu Ártemis se banhando nua, ela, furiosa, o transformou em um veado, e ele foi devorado pelos próprios cães de caça. Geralmente retratada com a lua crescente, Ártemis era às vezes associada a Selene, a deusa titã da lua, e até mesmo a Hécate, a temível rainha da escuridão. Como Selene, ela se apaixonou pelo belo jovem Endimião, que fora colocado por Zeus em um sono imortal para preservar sua beleza. Ártemis também era venerada como a Grande Deusa, uma antiga deusa da fertilidade, com múltiplos seios, adorada em um enorme templo em Éfeso, na Ásia Menor. (Este é o templo de Diana, que são Paulo mais tarde veio a atacar; Diana é o nome romano de Ártemis.)

(Ver Apolo, Hécate, Ninfas, Zeus)

Atena

Deusa da sabedoria. Atena nasceu totalmente formada a partir da testa de Zeus. À diferença da maioria dos deuses, Atena quase não demonstrava interesse em sexo e era costumeiramente chamada de Parthenos (virgem). Ainda assim, ficou ofendida quando Páris, o príncipe troiano, preferiu Afrodite a ela no célebre Julgamento de Páris. Na Guerra de Troia que se seguiu, Atena ajudou os gregos, principalmente o astuto herói Ulisses, a quem auxiliou no seu longo percurso de volta para casa. Atena era a padroeira de Atenas, principalmente de seus artesãos, e seu templo, Partenon, o mais perfeito templo do mundo grego, ainda se ergue sobre a cidade. Ela tinha conquistado a devoção da cidade com a oliveira, que os atenienses preferiram ao presente oferecido por Poseidon (uma fonte de água doce).

Outro de seus títulos era Promachos, defensora ou paladina, pois era uma deusa lutadora, sempre retratada com uma lança, um elmo e um escudo. Ostentava a horrenda égide com a cabeça da Medusa e seus cabelos de serpente, monstro que foi morto por seu protegido, Perseu, e era frequentemente retratada com uma cobra se enrolando ao seu lado e uma coruja, símbolo de sabedoria, no ombro.

(Ver Afrodite, Aracne, Ares, Dédalo, Diomedes, Égide, Éris, Fúrias, Hércules, Leão de Nemeia, Medusa, Pégaso, Perdiz, Perseu, Poseidon, Zeus)

Atlas

Titã punido por Zeus por participar da “revolta dos titãs”, tendo que ficar em pé por toda a eternidade na beira ocidental do mundo e suportar o peso dos céus nos ombros. Só teve um único momento de trégua: Hércules, em sua missão para buscar os pomos de ouro das Hespérides, concordou em carregar esse grande fardo se Atlas fosse apanhar os frutos. Feito isso, Hércules prontamente devolveu o esmagador peso dos céus. Atlas era o pai de Calipso e das plêiades, que se tornaram uma constelação. Deu nome aos Montes Atlas, no Marrocos, a região mais ocidental que os gregos conheciam.

(Ver Calipso, Hespérides, Titãs)

B

Briareu

Filho de Urano e Gaia, chamado de Briareu pelos deuses e de Egéon pelos homens. Briareu, um dos três hecatônqueires, tinha cinquenta cabeças e cem braços, assim como seus irmãos. Segundo Homero, foi bem-sucedido ao ajudar Zeus, com seus irmãos, no combate aos titãs. Outra versão o coloca como um dos participantes do ataque ao Olimpo e conta que, quando derrotado, foi enterrado sob o Monte Etna. Outra versão ainda retrata Briareu como inimigo de Poseidon e um gigante marinho que inventou os barcos de guerra.

C

Cadmo e Europa

Filho e filha de Agenor, rei de Tiro, na Fenícia (atual Líbano). Cadmo, juntamente com seus irmãos, foi enviado a Creta para resgatar a irmã, Europa, quando ela foi sequestrada por Zeus (que tinha se transformado em um belo touro para seduzi-la). Lá, Europa deu à luz três filhos do deus — Minos, Radamanto e Sarpédon —, antes de se casar com Asteríon, rei de Creta. Cadmo nunca encontrou a irmã porque acabou na Grécia Central. Então, seguindo ordens do Oráculo de Delfos, fundou a cidade de Tebas após matar um dragão. Dos dentes dessa criatura teve origem uma raça de formidáveis homens lutadores, com os quais Cadmo povoou sua nova cidade.

Calipso

Ninfa, filha de Atlas e da titânide Tétis, que vivia na ilha mágica de Ogígia. Calipso resgatou Ulisses de um naufrágio e, juntos, eles viveram felizes por sete anos. Mas a ninfa não queria deixar partir seu amado, que ainda sentia falta de casa, prometendo-lhe em vão que lhe concederia imortalidade caso permanecesse com ela. No fim, depois que Zeus ordenou que ela soltasse Ulisses, a moça se despediu de forma relutante, equipando um navio para que ele seguisse viagem. O casal teve dois filhos: Nausítoo e Nausínoo.

(Ver Atlas, Ogígia, Ulisses)

Campe

Monstro com cabeça e tronco de mulher e cauda de escorpião, às vezes descrito também com asas. Campe era guardiã dos hecatônqueires e ciclopes quando Cronos os aprisionou no Tártaro, e foi morta por Zeus quando ele os resgatou em busca de ajuda na batalha contra os titãs.

Campos de Asfódelos

Espécie de pasto no Mundo Inferior para onde iam os espíritos da maioria dos mortos, mesmo os dos nobres heróis.

Campos Elísios/Elísio

O paraíso que aguardava um pequeno grupo seleto e muito afortunado. Elísio ficava localizado nos confins da terra. Ali, brisas sopravam o tempo todo e heróis afortunados levavam uma vida em geral como a dos deuses. Menelau, marido de Helena, foi para lá, mas a maioria dos mortos, mesmo sendo heróis, não — acabou no melancólico Mundo Inferior.

(Ver Hades, Rio Lete)

Caríbdis e Squila

Redemoinhos (Caríbdis) e rochas (Squila) enfrentados por Ulisses em suas viagens pelo Mediterrâneo, dos quais só conseguiu escapar agarrando-se a uma árvore quando seu barco afundou. Tanto Caríbdis quanto Squila tinham sido um dia belas ninfas, mas foram transformadas — Caríbdis por Zeus, e Squila, por Circe.

Caronte

Barqueiro-fantasma que transportava os espíritos dos mortos pelo rio Estige até o Mundo Inferior. Exigia dos mortos o pagamento de um óbolo (uma pequena moeda) por esse serviço, por isso os cadáveres eram sempre enterrados com uma moeda.

(Ver Hades, Hermes, Orfeu, Rio Estige)

Centauros

Perigosas criaturas selvagens que eram metade homem (da cintura para cima) e metade cavalo (da cintura para baixo). Convidados pelo rei Pirítoo, de Lápitas, para seu banquete de casamento, os centauros se embebedaram e atacaram a noiva. Os habitantes de Lápitas venceram a batalha que se seguiu, mas a partir de então houve guerra entre os centauros e os homens. Hércules matou o centauro Nesso por atacar sua esposa. No entanto, um ou dois centauros eram diferentes. Quíron, que era famoso por sua sabedoria, educou os jovens Aquiles e Jasão.

(Ver Apolo, Hércules, Jasão, Quíron)

Cérbero

Feroz cão de múltiplas cabeças que protegia a entrada do Mundo Inferior. Cérbero tinha um latido metálico e a crina peluda, de onde nasciam cobras. Apesar de tais horrores, adormeceu embalado pelas canções de Orfeu, permitindo que o poeta resgatasse sua esposa, Eurídice, do Mundo Inferior, e mais tarde foi dominado e acorrentado por Hércules.

(Ver Hades, Hércules, Hidra, Orfeu, Ortro)

Ciclopes

Gigantes de um olho só que, segundo Homero, viviam em uma ilha distante e primitiva onde se criavam ovelhas. À procura de comida, Ulisses e sua tripulação desembarcaram na ilha dos ciclopes e entraram em uma profunda caverna. Dentro dela, foram aprisionados por Polifemo, o ciclope que era dono da caverna e que, ao voltar, bloqueou a entrada com um pedregulho. Polifemo, ao descobrir os intrusos, comeu dois gregos crus até Ulisses conseguir cegá-lo enquanto o gigante dormia. (Dizendo chamar-se “ninguém” quando Polifemo perguntou quem ele era, Ulisses enganou o ciclope, que começou a gritar “Ninguém está me atacando!” tentando pedir socorro ao perceber que estava cego. Os outros ciclopes pensaram que se ninguém estava atacando seu companheiro, não havia por que se preocupar, e assim o deixaram sozinho em sua caverna com os gregos.) Estes, então, escaparam agarrando-se à barriga das ovelhas de Polifemo quando o gigante soltou seus animais pela manhã, pois ele verificava seu rebanho tocando os animais no dorso. De volta a bordo do barco, Ulisses insultou Polifemo, pensando estar a salvo. Mas não estava, pois Polifemo era filho de Poseidon, e Ulisses então teve que enfrentar a fúria do deus do mar em suas jornadas repletas de tempestades. Outra lenda retrata os ciclopes como gigantes artesãos, ferreiros, que trabalhavam com Hefesto.

(Ver Campe, Hecatônqueires, Elmo da Escuridão, Monte Etna, Polifemo, Poseidon, Ulisses)

Circe

Filha do deus do sol, Hélio, e tia de Medeia, além de uma poderosa feiticeira. Circe vivia na fabulosa ilha de Ea (que significa “lamentação”), na beira do mundo. Quando os homens de Ulisses desembarcaram em Ea, ela os transformou em suínos. Só Ulisses escapou, graças à erva mágica dada a ele pelo deus Hermes. Ulisses então forçou Circe a transformar seus companheiros de volta em homens. Eles permaneceram na ilha por um ano, até que Circe os deixou partir, dando-lhes conselhos para escapar das sereias, cujos cânticos sedutores atraíam os marinheiros para a morte, e lhes ensinou como entrar no Mundo Inferior. Mais tarde, quando Jasão e os argonautas chegaram àquela ilha, ela os purificou da culpa por ter assassinado o irmão de Medeia.

(Ver Caríbdis e Squila, Medeia, Sereias, Ulisses)

Cócalo

Rei da Sicília que salvou a vida de Dédalo ao escondê-lo de Minos. Quando Minos chegou à Sicília, Cócalo o convenceu a se banhar antes de ir atrás de Dédalo. Enquanto ele se banhava, as filhas de Cócalo o mataram.

(Ver Dédalo, Minos)

Cólquida

Lar do Carneiro de Ouro, localizado na aresta sudeste do mar Negro. Jasão e seus companheiros, os argonautas, velejaram para a Cólquida a fim de capturar a fabulosa pelagem do carneiro. Cólquida foi também onde nasceu Medeia, filha do rei Aetés, que se apaixonou por Jasão e fugiu com ele depois que ele se apoderou do Velocino.

(Ver Jasão, Medeia, Velocino de Ouro)

Cronos

O mais jovem dos titãs, filho de Urano e Gaia, que castrou e destronou o pai. Cronos casou-se com a irmã Reia, que deu à luz muitos dos deuses do Olimpo (Deméter, Hades, Héstia, Hera, Poseidon e Zeus). Temendo que seus filhos o depusessem como ele tinha deposto o próprio pai, Cronos engoliu a todos quando ainda eram bebês, com exceção do mais novo, Zeus, a quem Reia substituiu por uma pedra. Mais tarde, Zeus liderou uma revolta contra o pai, fazendo Cronos vomitar todos os deuses que tinha engolido. Cronos foi então aprisionado no Tártaro, nas profundezas do Mundo Inferior. Paradoxalmente, o reino de Cronos foi posteriormente lembrado também como uma Idade de Ouro, uma era utópica na qual havia paz universal e a humanidade não tinha que trabalhar, pois a terra produzia comida de graça.

(Ver Afrodite, Campe, Hades, Titãs, Urano, Zeus)

D

Dédalo

Mestre-artesão ateniense e grande artista, a quem coube construir o labirinto utilizado para aprisionar o Minotauro. Dédalo tinha dois filhos, Ícaro e Iapyx, e um sobrinho, Perdiz, filho de sua irmã. Dédalo valorizava tanto suas habilidades que não suportava ver sua grandeza ser sobrepujada. Quando seu sobrinho começou a mostrar sinais de engenhosidade, Dédalo o empurrou de uma alta torre a fim de se livrar da concorrência. No entanto, Atena testemunhou o delito e transformou o garoto em uma perdiz. Por seu crime, Dédalo foi banido de Atenas. Foi então contratado para construir um labirinto para o rei Minos, que o usou para aprisionar o Minotauro. Dédalo foi, mais tarde, preso na própria construção junto com seu filho Ícaro, pois assim, segundo uma versão, não conseguiria contar a ninguém mais os segredos do Labirinto; segundo outra versão, como punição por ter dado a Ariadne, filha de Minos, o fio que permitiu ao herói Teseu encontrar o caminho de volta após matar o Minotauro. Dédalo escapou da prisão com Ícaro, criando um par de asas para cada um deles e saindo da ilha voando. Escondeu-se de Minos na corte de Cócalo, onde o rei de Creta foi enganado e morto pelas filhas de seu anfitrião enquanto procurava pelo artesão fugitivo.

(Ver Cócalo, Ícaro, Labirinto, Minos, Minotauro, Pasifae, Perdiz)

Delfim

Um golfinho que servia a Poseidon. Convenceu a ninfa Anfitrite a se casar com o deus dos mares. Como recompensa por esse feito, Poseidon o colocou entre as estrelas como a constelação Delphinus.

Delfos

Local do mais sagrado oráculo grego, situado a mais de seiscentos metros de altitude na encosta sul do Monte Parnasso, na Grécia Central. Nele ficava o ônfalo (umbigo), uma pedra divina considerada o marco do centro do mundo. Delfos foi consagrado ao deus Apolo, por ter matado (ou domado) a serpente Píton, e instalou ali seu próprio oráculo, a Pitonisa. Esse ato simbolizou o triunfo da razão e da ordem gregas sobre as primeiras deidades da terra. Vapores que se elevavam de uma fissura no solo inebriavam o Oráculo, uma sacerdotisa sentada em um tripé sobre o abismo. Ela respondia a perguntas feitas em famosos versos enigmáticos, que podiam ser interpretados de forma ambígua. Por exemplo, Creso, rei da Lídia, perguntou se deveria atacar a Pérsia, seu poderoso vizinho oriental. “Se atravessar o rio Hális [a fronteira], destruirá um grande reino”, declarou o Oráculo. Encorajado, Creso foi à guerra e, de fato, destruiu um reino — o seu próprio. A reputação profética de Delfos, no entanto, continuou ilesa. (Outros oráculos importantes da Grécia eram os de Apolo em Delos e os de Zeus em Dodona e Olímpia.)

(Ver Apolo, Cadmo e Europa, Oráculo, Píton)

Deméter

Deusa de toda a vegetação e, portanto, da vida na terra. Deméter tinha uma filha de seu irmão chamada Perséfone, ou simplesmente Kore, “menina”. Quando Perséfone desapareceu, Deméter saiu vagando pela terra a sua procura, disfarçada de uma velha com uma tocha. Em Elêusis, próximo a Atenas, Deméter descobriu que Perséfone tinha sido sequestrada por Hades e levada para o Mundo Inferior. Como prova de gratidão, ensinou aos eleusianos os segredos da agricultura, mas de ódio secou a terra para que nada crescesse nela, o que causou uma escassez universal. Finalmente, Zeus ordenou a Hades que libertasse Perséfone. Em Elêusis, Os Mistérios das Duas Deusas (como Deméter e Perséfone eram conhecidas) eram realizados anualmente no outono, após a colheita. Esses mistérios continuam a ser mistérios, mas, até onde os historiadores descobriram, eles envolvem iniciados que jejuam e passam a noite na escuridão, obtendo, assim, uma revelação deslumbrante de uma espiga de trigo dourada.

(Ver Cronos, Hades, Perséfone, Tântalo)

Diomedes

Dois personagens míticos da Grécia são denominados Diomedes. O primeiro era filho de Ares e Cirene. Assim como seu pai, gostava de uma boa guerra. Era um indivíduo gigantesco, dono de éguas que comiam carne humana. Hércules o procurou uma vez, pretendendo usar suas éguas para devolver uma carroça ao rei Euristeu como parte de um desafio. Como Diomedes se recusou de forma violenta, Hércules o atirou para ser devorado pelas próprias éguas, antes de levá-las embora.

O segundo Diomedes era filho de Tideu e Deípila. Combateu na Guerra de Troia, junto com os guerreiros Aquiles, Ájax e Ulisses, e era considerado um dos melhores combatentes entre os aqueus. Foi também um dos soldados instalados na barriga do cavalo que conseguiu penetrar em Troia e destruir a cidade. Usava uma couraça (parte da armadura que cobre o corpo, do pescoço até a cintura) feita por Hefesto e foi a única pessoa que já atacou e feriu um imortal do Olimpo (e não era qualquer imortal: ele conseguiu ferir Ares, com uma espada). Diomedes era um dos favoritos de Atena; depois que ele morreu, ela o tornou imortal.

Dioniso

Deus do vinho, do êxtase e da embriaguez. Dioniso era a “mais terrível e doce” das deidades e sua adoração enlouquecida transgredia todos os limites normais de vida social. Filho de Zeus e Sêmele, uma princesa de Tebas, Dioniso era chamado de “nascido duas vezes”, porque foi retirado do ventre de sua mãe moribunda (que Hera matou por ciúmes) e costurado na coxa de Zeus. Tendo nascido em segurança, foi criado pelas ninfas e pelos sátiros. Depois, partiu em uma jornada triunfal para a Índia em uma carruagem puxada por panteras ou tigres, acompanhado por Mênades (adoradoras em êxtase) e sátiros, ensinando ao mundo os prazeres do vinho. Muitas vezes era mostrado com uma aparência um tanto efeminada, com cabelo comprido, mas podia ser um deus bem perigoso. Em seu retorno para a Grécia, Penteu, o irascível rei de Tebas, mandou prendê-lo. O que foi um grande erro. A hera, consagrada ao deus, rompeu os muros da prisão, e Dioniso foi libertado. Nesse meio-tempo, Agave, mãe de Penteu, tinha se juntado aos veneradores bêbados nas montanhas fora da cidade. Penteu, atraído por Dioniso para espiar as mulheres em trajes masculinos, foi capturado por Agave e outras mulheres e feito em pedaços. Tiveram destino similar outros governantes que não aceitaram o deus. Dioniso era o deus do teatro, tanto o trágico quanto o cômico, e muitos festivais eram realizados em sua homenagem. Foi casado com Ariadne, a quem resgatou quando a princesa cretense foi abandonada em Naxos por Teseu.

(Ver Ariadne, Hefesto, Mênades, Ninfas, Sátiros, Zeus)

Dracma

Moeda corrente de Atenas e outras cidades gregas, em geral peças cunhadas de grande beleza.

Dríades

Ninfas que viviam em bosques e florestas. Havia muitos tipos de dríades, cada qual associado a uma diferente espécie de árvore. Entre elas, podem ser citadas Dafne (loureiro), Hamadríades (carvalho), Melíades (freixo e árvores frutíferas) e Oréades (pinheiro). Embora dríades pudessem sair de suas árvores, a existência de cada uma delas era associada a sua árvore; se a árvore morresse, a dríade morria com ela. Quando uma árvore era cortada, podia-se ouvir sua dríade gritando, e ela podia também clamar por vingança se não fosse acalmada por meio de orações e sacrifícios adequados.

(Ver Ninfas)

E

Édipo

Filho de Laio, rei de Tebas. Para evitar o cumprimento de uma profecia, a de que seu filho o mataria, Laio ordenou a um pastor que deixasse o bebê Édipo na encosta de uma montanha. Mas o pastor salvou a criança, que foi criada pelo rei de Corinto como seu próprio filho. Édipo, alertado por um oráculo de que mataria o pai e se casaria com a mãe, fugiu de Corinto para evitar que a tragédia ocorresse. Mas em uma encruzilhada próxima a Tebas, encontrou e matou Laio, a quem não reconheceu, e venceu uma discussão com a Esfinge, uma criatura enigmática semelhante a um leão. Ao chegar a Tebas, Édipo foi aclamado rei e se casou com a rainha que se tornara viúva, Jocasta. Anos depois, quando uma praga devastou a cidade-Estado, Édipo ouviu do Oráculo de Delfos que o assassino de Laio era a real causa da praga. Finalmente compreendeu que tinha matado o próprio pai. Ao ouvir as notícias do assassinato do marido e do próprio incesto, Jocasta acabou por cometer suicídio. Édipo cegou a si mesmo e, em seguida, partiu para o exílio.

(Ver Esfinge)

Égide

Adorno sagrado de grande importância, normalmente usado como medalhão ou colar pendurado no peito de um deus (ou um homem como Alexandre, o Grande, venerado como um deus), ou transportado sozinho em uma procissão solene. Zeus, rei dos deuses, deu inicialmente a égide para sua filha Atena, deusa protetora de Atenas, o que a tornou invulnerável até mesmo aos raios do pai. Orlada com cabeças de cobras e decorada com a imagem da Górgona — a temível criatura que transformava em pedra quem olhasse para ela —, a égide trouxe vitória para qualquer um que tivesse o apoio do deus que a usasse.

(Ver Atena, Perseu)

Elmo da Escuridão

Parte do equipamento mágico levado por Perseu em sua jornada para matar a Medusa. Originalmente criado por um ciclope para Hades, o Senhor do Mundo Inferior, o elmo tornava invisível aquele que o usasse, como se fosse noite — daí o nome Elmo da Escuridão.

Elpis

O espírito da esperança. Segundo alguns relatos, era filha de Nix (noite) e geralmente retratada como uma jovem segurando flores ou uma cornucópia. Foi o único item que permaneceu dentro da Caixa de Pandora depois que ela a abriu, deixando assim a humanidade com esperança, apesar dos diversos males que foram então libertados.

(Ver Epimeteu, Pandora)

Empousai

Monstros que tomavam a forma de belas mulheres com uma perna de latão e a outra de asno. As empousai (ou empusas) eram enviadas por Hécate para assustar viajantes, mas se um desses as insultasse, elas gritavam e fugiam. Têm o mesmo nome de Empusa, uma semideusa grega que se banqueteava com o sangue de homens.

Enéas

Filho da deusa Afrodite e do príncipe de Troia, Anquises, e herói de A Eneida. Enéas escapou de Troia derrotada levando consigo o pai idoso. Suas subsequentes viagens ao redor do mar Mediterrâneo o levaram até Cartago, onde teve um caso amoroso com Dido, fundadora e rainha da cidade. Quando o dever que lhe fora atribuído por um deus levou Enéas relutantemente para longe, Dido, desesperada, cometeu suicídio. Enéas então visitou o Mundo Inferior para encontrar o fantasma do pai já morto e conhecer seu papel na futura grandeza de Roma antes de navegar para o Latium (hoje Lazio, no centro da Itália). Lá, Enéas casou-se com Lavínia e fundou Lavínio, uma cidade no litoral que foi a precursora de Roma. Os romanos veneravam Enéas. Júlio César alegava ser seu descendente, assim como Augusto, em cujo reinado Virgílio escreveu A Eneida.

(Ver Afrodite, Guerra de Troia)

Éolo

Rei dos ventos. Esse deus descabelado, de cabelo e barba brancos, vivia isolado na ilha de Eólea, onde mantinha os ventos presos em uma caverna. Conseguia libertá-los quando quisesse para provocar todo tipo de tempestades, poder que às vezes concedia a viajantes. Ulisses foi um desses viajantes; em A Odisseia, Éolo lhe deu um saco de ventos para ajudá-lo na viagem de volta ao lar.

Epimeteu

É um titã cujo nome significa “aquele que pensa depois” (imprudente), em contraste com seu irmão Prometeu, cujo nome significa “aquele que pensa antes” (previdente). Em um mito, ele e Prometeu teriam sido encarregados de distribuir características para humanos e animais. Quando Epimeteu esgotou as características positivas nos animais antes de atribuir qualquer uma delas aos homens, Prometeu roubou o fogo dos deuses e o entregou à humanidade para compensar a falta de qualquer característica positiva, resultante da ação de seu irmão. Zeus ficou furioso com o ladrão e, como parte de um plano maior para conter o orgulho humano, criou a primeira mulher — Pandora — para ser a esposa de Epimeteu. Em outra versão do mito da Caixa de Pandora, a moça a entregou ao marido para que ele a abrisse e, agindo irrefletidamente, como sempre, Epimeteu abriu a Caixa, espalhando pelo mundo todos os males da humanidade. (Podemos agradecer a ele pelas indisposições, pelas doenças e pelo dever de casa.)

(Ver Pandora, Prometeu, Titãs)

Equidna

Mítica criatura semimulher, semicobra que deu à luz Tifão, um dos diversos monstros mortos por Hércules. Segundo algumas fontes, os citas (do sul da Rússia) eram seus descendentes.

(Ver Fea, Hidra)

Éris

Deusa da contenda ou da discórdia. Éris era filha de Nix (noite) e mãe de Labuta, Dor, Contenda e Mentiras. Também era irmã de Ares, o deus da guerra. Ao provocar ciúme entre as três grandes deusas do Olimpo — Afrodite, Atena e Hera —, foi em parte responsável pela Guerra de Troia.

(Ver Quimera)

Esfinge

Monstro híbrido com seios e rosto de mulher, corpo e garras de leão e cauda e asas de serpente; originou-se no Egito, mas foi adotado pelos gregos. A Esfinge vivia nos arredores de Tebas, na Grécia Central, aterrorizando os viajantes com desnorteantes charadas enigmáticas. Enfim, Édipo, vindo de Corinto, respondeu às charadas da Esfinge corretamente. (A charada mais famosa era: O que anda com quatro pernas de manhã, duas pernas à tarde e três pernas à noite? A resposta é um ser humano, que engatinha enquanto bebê, caminha enquanto adulto e usa uma bengala na velhice.) Como resultado, a Esfinge cometeu suicídio ou morreu pelas mãos de Édipo, dependendo da versão da narrativa.

(Ver Édipo)

Euritíon

Filho de Ares e guardião do rebanho de Geríon. Hércules matou Euritíon a fim de se apoderar do tal rebanho.

(Ver Geríon)

F

Fea

Descendente de Tifão e Equidna, essa enorme porca alada era um monstro aterrorizante que foi morto por Teseu.

Fogo grego

Arma desenvolvida aproximadamente em 700 d.C. pelos gregos bizantinos para ajudar a proteger Constantinopla (atual Istambul) contra o ataque árabe. Como um antecessor do lança-chamas, disparava um jato de chamas nos barcos. Seu fogo inextinguível era feito com uma mistura de petróleo, enxofre e salitre.

Fúrias

Filhas de Nix (noite) e alguns dos seres sobrenaturais mais temidos. Havia três Fúrias, ou Erínias: Alecto, Tisífone e Megera. Eram forças tenebrosas, elementares, mais velhas do que qualquer deus do Olimpo, e vingavam crimes como patricídio, matricídio e perjúrio, caçando o culpado por toda a terra. Retratadas como repulsivamente feias, com asas e cobras em lugar de cabelo, eram, às vezes, eufemisticamente chamadas de Benevolentes, ou Eumênides, para disfarçar sua natureza horrenda. Na peça de Ésquilo Eumênides, são domadas pela deusa Atena e transformadas em benévolas guardiãs da justiça na cidade de Atenas.

G

Gaia

Deusa da terra. Casou-se com o próprio filho, Urano, e teve com ele doze filhos: os titãs.

(Ver Anteu, Afrodite, Cronos, Hespérides, Oceano, Ofiotauro, Tifão, Titãs, Urano)

Ganimedes

Filho do rei Tros, da Frígia (atual Turquia Ocidental). Zeus, rei dos deuses, ficou tão encantado com esse belo garoto que, assumindo a forma de uma águia — sua ave de eleição —, deu um voo rasante e o levou para o Monte Olimpo. Ali, Ganimedes se tornou copeiro, encarregado de servir vinho aos deuses durante seus eternos banquetes. Em retribuição, o rei Tros ganhou alguns cavalos maravilhosos.

(Ver Monte Olimpo)

Geríon

Neto de Medusa, era um gigante muito temido que vivia na ilha Eriteia. Geríon tinha três corpos, incluindo três cabeças com rostos humanos e seis braços, e assumia a forma de um guerreiro. Era dono de um magnífico rebanho de gado vermelho do qual Hércules teve que se apoderar em seu décimo Trabalho. Quando Geríon tentou enfrentar seu antagonista (depois que o herói já havia matado seu cão de duas cabeças, Ortro, e Euritíon, o guardião de seu rebanho), foi morto por uma flecha envenenada lançada por Hércules.

(Ver Euritíon, Hércules, Ortro)

Guerra de Troia

A maior guerra dos mitos gregos e tema do grande poema épico de Homero, A Ilíada (embora os próprios gregos a considerassem uma história e não um mito). Essa guerra começou quando Páris, belo filho do rei Príamo, de Troia, partiu de Esparta com Helena, a bela rainha daquela cidade. Menelau, rei de Esparta e marido de Helena, era irmão de Agamenon, o mais poderoso governante grego, que convocou toda a Grécia para ajudá-lo a vingar o insulto à honra de sua família. Os troianos responderam convocando seus aliados da Ásia. Quando os gregos desembarcaram na praia próxima a Troia, não tiveram a menor chance de conquistar a cidade cercada por altas muralhas. Então, a guerra se tornou uma série de combates individuais entre heróis, combates que por si só poderiam se tornar batalhas de maiores proporções. Às vezes, os gregos saíam vitoriosos e se aproximavam dos portões de Troia; às vezes, os troianos, liderados pelo filho mais velho de Príamo, o príncipe Heitor, praticamente obrigavam os gregos a recuar até seus barcos. (Páris pouco lutava.) A causa grega foi prejudicada por brigas entre Agamenon e o jovem príncipe Aquiles, o melhor guerreiro de suas fileiras, quando este se recusou a lutar. Só depois que Pátroclo, seu melhor amigo, foi morto é que Aquiles retornou à guerra, assassinando Heitor antes de ele próprio ser morto. Troia foi finalmente conquistada com a utilização do famoso artifício do Cavalo de Troia. Os gregos fingiram ir embora, deixando um enorme cavalo de madeira como oferenda para os deuses. Encantados, os troianos levaram o cavalo para dentro de sua cidade. Mas ele era oco e estava repleto de guerreiros. Naquela noite, os gregos surgiram do ventre de madeira para abrir os portões e deixar outros gregos entrarem na cidade. Troia foi saqueada e seus habitantes foram mortos ou escravizados — com exceção de Helena, que foi devolvida a Menelau, e Enéas, herói de A Eneida, que escapou com o pai.

(Ver Afrodite, Amazonas, Aquiles, Atena, Éris, Helena, Hera, Ilíada, Ítaca, Minos, Nereidas, Odisseia, Poseidon, Quinto, Ulisses, Zeus)

H

Hades

Hades era o nome dado tanto ao deus do Mundo Inferior quanto a seu reino, onde ele imperava sobre os espíritos dos mortos. Hades era filho de Reia e Cronos e lutou ao lado dos irmãos Zeus e Poseidon contra os titãs, mas nada tinha do esplendor majestoso deles dois. Hades evocava apenas medo, e seu nome era mencionado com relutância pelos vivos. Para encontrar uma esposa, teve que sequestrar Perséfone, a bela filha de Deméter, e a mantinha aprisionada nas profundezas da terra por metade de todo ano. Hades era raramente visto fora de seu reino, em parte porque tinha uma capa feita de pele de lobo que o tornava invisível. Nas entranhas da terra, acumulava riquezas — um de seus nomes era Plutão, que significa “riqueza” —, que obtinha de tesouros enterrados e dos minerais da terra. O reino de Hades, o Mundo Inferior, por onde os fantasmas dos mortos circulavam incessantemente como morcegos, era para onde iam quase todos os gregos que morriam. Era um local sombrio, delimitado pelo rio Estige — por onde o barqueiro Caronte transportava os mortos — e protegido por Cérbero, o horrendo cão de guarda de várias cabeças. No Hades, o rei Minos, de Creta, e seu irmão Radamanto, senhores de lendária sabedoria, julgavam os mortos. Enquanto poucos escolhidos encontravam alegria nos Campos Elísios, um destino sinistro era reservado para os muito perversos: eram aprisionados no Tártaro, a parte mais baixa do Hades.

(Ver Cronos, Deméter, Hércules, Hermes, Elmo da Escuridão, Minos, Monte Olimpo, Orfeu, Perséfone, Poseidon, Rio Estige, Rio Lete, Teseu, Titãs, Zeus)

Harpias

Três apavorantes criaturas semi-humanas que tinham asas escamosas, garras curvas e afiadas e cabelos soltos. Voando mais rápido do que qualquer ave, essas filhas do monstro Tifão desciam com gritos estridentes, como abutres que se deleitam, para arrebatar comida e acabar com a festa. Atacaram Jasão e os argonautas em sua jornada.

(Ver Jasão)

Hécate

Deusa da lua e da noite. Hécate poderia ser tanto apavorante como benevolente, e seus “aspectos triplos” — mostrados em suas estátuas por meio de três cabeças — representavam as três fases da lua: crescente, cheia e minguante. Assim como a filha de Astéria, uma deusa estrela que era irmã de Leto, Hécate era prima de primeiro grau de Apolo e Ártemis e honrada como tal, mas nunca foi considerada uma das deidades oficiais do Olimpo. Na verdade, era venerada fora da cidade em encruzilhadas e em cemitérios, com sacrifícios de cabras e peixes. (As oferendas costumeiras para um deus ou deusa eram touros, ovelhas ou galinhas. Tanto cabras quanto peixes eram considerados um pouco excêntricos.) Hécate podia ser retratada como uma bruxa sugadora de sangue e de cabelo de serpente, acompanhada de cães que ladravam, pois era associada a suicídios e outras mortes violentas. Olímpia, mãe de Alexandre, o Grande, fez sacrifícios para Hécate. Por muito tempo a deusa continuou sendo conhecida como uma divindade infernal; ela é invocada pelas três bruxas na peça Macbeth, de Shakespeare (1605).

(Ver Ártemis, Empousai)

Hecatônqueires

Gigantes com cinquenta cabeças e cem braços cada. Os hecatônqueires ajudaram Zeus contra o ataque dos titãs. Na poesia latina, os hecatônqueires eram conhecidos como Centimani, que significa “aqueles que têm cem mãos”. Como deuses da tempestade, representavam forças primordiais da natureza, como os terremotos e as ondas do mar.

(Ver Briareu, Campe, Telquines)

Hefesto

Deus do fogo e da metalurgia. Hefesto vivia suado e era feio e coxo, bem diferente das outras glamourosas divindades do Olimpo. Ficou aleijado quando, na infância, interveio em uma discussão entre seus pais, Zeus e Hera, e esta o atirou do Monte Olimpo. Tendo caído no mar, foi resgatado por Tétis, uma ninfa marítima. Como vingança, ele criou um trono dourado mágico para Hera. A deusa se sentou nele e ficou presa, incapaz de se mexer. Depois que Dioniso conseguiu, enfim, persuadir Hefesto a libertar a mãe, o deus coberto de fuligem exigiu como recompensa se casar com Afrodite, a deusa do amor. Mas Afrodite logo se apaixonou por Ares, o deus da guerra, deixando Hefesto furioso de ciúme. Ele forjou uma leve rede com fios de aço e a jogou sobre os amantes adormecidos. O casal acordou e se viu preso na cama, enquanto as demais criaturas do Olimpo, reunidas, riam deles. No entanto, em geral, Hefesto vivia ocupado em sua fornalha, que ficava situada abaixo do Monte Etna, na Sicília, um vulcão ativo (o nome latino de Hefesto era Vulcano), e era muito admirado por suas habilidades. Construiu maravilhosos palácios para os deuses no Monte Olimpo e criou a armadura de Aquiles, já que foi a mãe desse herói grego, Tétis, quem o ajudou quando ele caiu no mar, cuidando dele até que se recuperasse o bastante para retornar à terra.

(Ver Afrodite, Ares, Ciclopes, Diomedes, Hera, Monte Etna, Monte Olimpo, Talos)

Helena

A mais bela segundo a lenda grega. Filha de Zeus e de Leda. Como o deus se disfarçou de cisne para seduzir a moça, Helena nasceu de um ovo. Considerada a mulher mais bela da Grécia, foi cortejada por muitos heróis antes de escolher Menelau, o poderoso e musculoso rei de Esparta. Embora Menelau fosse um grande guerreiro, Helena se apaixonou pelo belo príncipe Páris, de Troia, e fugiu com ele quando o rapaz visitou Esparta. A fuga de Helena — ou o rapto, dependendo do historiador — desencadeou a Guerra de Troia, que durou dez anos, pois os gregos se uniram sob o comando de Agamenon, rei de Micenas e irmão de Menelau, para vingar a ofensa. Quando Troia foi finalmente capturada e Páris, morto, Helena voltou pacificamente para Esparta com Menelau para viver ali até o fim da vida.

(Ver Afrodite, Campos Elísios/Eliseu, Guerra de Troia, Zeus)

Hélio

Deus do sol, mais tarde identificado com Apolo, o deus da luz e da razão. Hélio era venerado principalmente na ilha de Rodes, onde uma enorme estátua, o “Colosso de Rodes” (uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo), foi erguida em sua homenagem na entrada do porto. Supostamente, a estátua era tão alta que os barcos conseguiam passar entre suas pernas. Todos os dias, Hélio surgia no leste e, em uma carruagem puxada por oito cavalos alados, atravessava os céus até desaparecer no ocidente do oceano. Depois, retornava ao leste todas as noites em uma espécie de embarcação a vela. Um dia, o filho de Hélio, Faetonte, insistiu em dirigir sozinho a carruagem celeste. Mas provou ser incapaz de controlar os furiosos cavalos, que voaram tão próximo do Sol que a carruagem ficou chamuscada. No fim, Zeus teve que matar Faetonte com um raio. Depois disso, Hélio retomou as rédeas de seus cavalos.

(Ver Apolo, Circe, Hiperíon, Medeia, Selene)

Hera

Deusa do parto e do casamento, mãe de Ares e Hefesto e tanto irmã quanto esposa de Zeus, rei dos deuses. Como rainha do Olimpo, era mais majestosa do que bela. Isso encorajava o notoriamente promíscuo Zeus a ir atrás de outras mulheres, fossem mortais ou divinas, que inflamavam os ciúmes mortais e as brigas com Hera. A certa altura, Zeus, irado, pendurou a esposa de ponta-cabeça do alto do Monte Olimpo, mas geralmente os poderes de sua esposa iam muito além do simples enfrentamento com qualquer das outras divindades. Ela interveio com grande eficácia contra os troianos na Guerra de Troia (porque o príncipe de Troia tinha preferido Afrodite a ela no Julgamento de Páris). A tripla coroa que Hera geralmente usa deve-se a suas ligações com a Grande Deusa da Ásia pré-grega — cada parte da coroa representa um aspecto da vida de uma mulher: donzela, mãe, anciã. Hera também costumava ser retratada acompanhada por um pavão, outro dos atributos da Grande Deusa.

(Ver Afrodite, Ares, Cronos, Dioniso, Éris, Hefesto, Hércules, Hespérides, Íris, Jasão, Zeus)

Hércules

Herói grego arquetípico. Hércules tinha um pai divino, Zeus, rei dos deuses, e uma mãe mortal, a princesa Alcmena. Embora suas proezas tenham inspirado heróis posteriores como Alexandre, o Grande, elas representaram uma vida bem difícil, apesar da ajuda que ele sempre teve da deusa Atena. Hércules foi atormentado desde o nascimento por Hera, que sempre sentiu ciúmes dos filhos das amantes de Zeus. Ela enviou duas cobras para matá-lo no berço, mas a musculosa criança facilmente estrangulou ambas. Mais tarde, Hera o enlouqueceu tanto que ele matou a esposa, Mégara, e a própria família. Para reparar seu terrível crime, Apolo ordenou a Hércules que realizasse Doze Trabalhos em benefício da humanidade. Segundo a tradição, essas tarefas, que iam muito além dos poderes de qualquer humano normal, foram:

Matar o Leão de Nemeia que devorava seres humanos e cuja pele Hércules passou a usar posteriormente, o que o tornava quase invencível.
Matar a Hidra de Lerna, um dragão de várias cabeças.
Capturar a corça de Cerineia.
Capturar o javali de Erimanto.
Limpar as imundas estrebarias de Augias em um dia.
Destruir os pássaros de garras de ferro do lago Estinfália.
Capturar o touro de Creta.
Roubar os cavalos selvagens de Diomedes.
Roubar o cinturão de Hipólita, rainha das amazonas.
Buscar os bois de Geríon.
Roubar os Pomos de Ouro do Jardim das Hespérides, no extremo oeste.
Descer até o Mundo Inferior, capturar o cão Cérbero, de Hades, e trazê-lo de volta.
Em todos os Trabalhos, ele triunfou. O fim de Hércules, no entanto, foi horrendo. Ele foi persuadido a vestir uma túnica ensopada com o sangue de Nesso, um centauro que tentou seduzir à força a segunda esposa do herói, Dejanira. Hércules, então, o matou. No entanto, o veneno que o traje continha o atormentou a tal ponto que, em agonia, ele ateou fogo à camisa, matando-se. Mas sua alma subiu aos céus como uma constelação, e ele foi venerado como divino após a morte.

(Ver Amazonas, Anteu, Ares, Atlas, Centauro, Cérbero, Caríbdis e Squila, Diomedes, Equidna, Euritíon, Geríon, Hespérides, Hidra, Hilas, Jasão, Javali de Erimanto, Leão de Nemeia, Ortro, Pancrácio, Pássaros de Estinfália, Peleu, Prometeu, Teseu)

Hermes

Filho de Zeus, deus dos viajantes, mercadores e ladrões. Sua peculiaridade era confiar mais em seu raciocínio rápido, na boa sorte e na inteligência do que em qualquer força sobre-humana. Tinha apenas algumas horas de nascido quando roubou alguns animais que pertenciam a seu meio-irmão Apolo usando sandálias aladas, um de seus muitos recursos astuciosos. Escapou à ira de Apolo dando-lhe outro desses recursos: a lira. (Hermes inventou muitas coisas, entre elas o alfabeto, os números, os pesos e as medidas.) Costumava usar um chapéu alado de aba larga e carregava uma vara mágica, o caduceu, com duas cobras entrelaçadas, que fazia as pessoas dormirem. Sua conversa agradável e sua notória boa sorte fizeram dele o padroeiro tanto de mercadores quanto de ladrões. Já como deus mensageiro — pois sempre andou rapidamente —, vivia ocupado levando mensagens do Olimpo para a terra. Muitas vezes descia ainda mais, pois também acompanhava as almas dos mortos até Caronte, o barqueiro do rio Estige, no Hades. Hermes também era o deus protetor dos viajantes, e hermas (estátuas de pedra) eram erguidas em sua homenagem em portas e encruzilhadas.

(Ver Afrodite, Circe, Medusa, Pã, Pandora, Perséfone, Perseu, Tifão)

Hespérides

Filhas de Hespéris, deusa da estrela-d’alva, e do titã Atlas. As Hespérides, cuja quantidade variava de três a sete, dependendo da versão da narrativa, eram famosas por sua maravilhosa cantoria e protegiam uma árvore de pomos de ouro dada por Gaia (terra) a Hera. A mágica macieira crescia em ilhas no extremo ocidente, além do alcance de qualquer humano normal, mas o herói Hércules conseguiu obter vários pomos com a ajuda de Atlas, após matar Ládon, o dragão que agia como cão de guarda.

(Ver Atlas, Hércules)

Héstia

Deusa do lar e filha mais velha de Cronos e Reia. Uma divindade gentil e benevolente, que jamais se casou ou teve filhos. Zeus lhe confiou a tarefa de manter acesos os fogos do Monte Olimpo. A lareira era uma parte importante das residências gregas, essencial para o aquecimento e a alimentação e para fazer sacrifícios aos deuses. Como os gregos tinham grande respeito pela lareira, Héstia sempre recebia a primeira oferenda de cada sacrifício. As representações dessa deusa variam na mitologia; às vezes ela é retratada como uma mulher usando um simples manto.

(Ver Cronos)

Hidra

Monstro da mesma assustadora família que as Górgonas e Cérbero. Seu pai era o monstro Tifão e sua mãe, Equidna, e ele tinha pelo menos oito cabeças (alguns escritores consideravam que eram mil), sangue tóxico e um hálito tão peçonhento que envenenava todos os que o respirassem. O segundo Trabalho de Hércules foi matá-lo — uma tarefa de peso até mesmo para ele. O herói teve que lançar flechas ardentes na toca do monstro para fazê-lo sair de lá e então poder cortar suas inúmeras cabeças. Elas continuaram a crescer nos muitos pescoços da criatura, até que ele as queimou. E enterrou a última cabeça sob um pedregulho.

(Ver Hércules, Tifão)

Hilas

Garoto excepcionalmente belo criado por Hércules. Hilas acompanhou o herói e Jasão na viagem do Argo em busca do Velocino de Ouro. Quando pararam em Cius, no mar Negro, as náiades, ninfas da fonte onde Hilas tinha ido procurar água potável, o acharam tão encantador que o apanharam e não quiseram deixá-lo partir. Hércules e seus companheiros passaram horas procurando em vão pelo rapaz.

Hipaléctrions

Feras com as partes dianteiras de um cavalo. Já a cauda, as asas e as patas traseiras são como as de um galo. Os hipaléctrions podem ser uma versão primitiva do cavalo alado Pégaso.

Hiperíon

O mais velho dos titãs, cujo nome significa “aquele que está acima”. Casou-se com Teia, e o casal teve três filhos: Hélio, Sêmele e Éos (o Sol, a Lua e a aurora, respectivamente).

(Ver Titãs)

Hipocampos

Cavalos-marinhos míticos que puxavam a carruagem de Poseidon, deus do mar, ou pulavam pelas ondas ao lado dele, na companhia dos tritões (deidades marinhas) e sereias.

I

Ícaro

Filho de Dédalo. Ícaro escapou com o pai da prisão em Creta usando as asas que Dédalo tinha criado, mas, apesar do alerta do pai, voou muito próximo do Sol. O calor fez com que a cera que prendia as asas derretesse, e Ícaro despencou para a morte. As águas nas quais caiu são chamadas de mar Icário.

(Ver Dédalo)

Icor

Sangue dos deuses. Os deuses eram perfeitos seres sobre-humanos, além de serem também imortais. Em batalhas, podiam ser feridos, mas nunca mortos, em parte porque não tinham o sangue humano. Em suas veias não corria sangue e sim icor, que era venenoso para os mortais.

Ilíada, A

Primeiro dos dois grandes poemas épicos de Homero. A Ilíada relata cenas dos dez anos pelos quais a Guerra de Troia se estendeu (Ilium era outro nome para Troia). A maioria dos gregos considerava esse o maior poema já escrito e o sabia de cor.

(Ver Guerra de Troia, Quinto)

Íris

Deusa do arco-íris e mãe de Eros, deus do desejo. Íris atuava como mensageira dos deuses, em geral sendo usada por Zeus, e às vezes por Hera, para levar mensagens. Era chamada de “pés de vento” e “pés tempestuosos”, porque seu arco-íris tanto alertava sobre tempestades vindouras quanto mostrava que tinham passado.

(Ver Zéfiro)

Irmãs Cinzentas

Três bruxas horrendas que já nasceram de cabelos grisalhos, parentes das Górgonas. Também chamadas Greias, de Graiai (anciãs/velhas), em grego, os nomes das irmãs refletiam sua aparência horripilante: Dino, ou Temor; Ênio, ou Horror; e Péfredo, ou Terror. Elas tinham o cabelo emaranhado como um ninho de cobras, presas ferozes e olhar mortífero. Mas como tinham apenas um olho e um dente para dividir entre as três, e precisavam se revezar para usá-los, eram vulneráveis. Perseu roubou o olho das irmãs enquanto uma delas o passava para outra, forçando assim as Greias a revelar a fase seguinte de sua jornada.

(Ver Perseu)

Ítaca

Ilha do mar Jônico, reino de Ulisses (em grego, Odisseu), ao qual ele passou muito tempo tentando retornar após a Guerra de Troia. Em Ítaca, sua esposa sempre fiel, Penélope, aguardou por ele, demovendo os pretendentes que, acreditando que Ulisses estava morto, queriam se casar com ela e, assim, se apoderar do reino. Ítaca é geralmente identificada com a ilha que ainda traz esse nome no mar Jônico, na costa oeste da Grécia. A descrição feita por Homero em A Odisseia, no entanto, não casa muito com a ilha, por isso muitas pessoas acham que o antigo reino ficava em outro lugar.

(Ver Odisseia, Ulisses)

J

Jano

Deus das portas, dos portões, dos começos e dos fins. De Saturno, Jano recebeu o dom de ver tanto o passado quanto o futuro. É mais comumente retratado com duas cabeças viradas em direções opostas e, consequentemente, representa a progressão do tempo e das transições, bem como da paz e da guerra.

Jasão

Está entre os maiores heróis gregos e é filho do rei Esão, de Iolco. Como Esão tinha sido deposto por seu irmão Pélias, Jasão foi criado no exílio pelo sábio centauro Quíron. Quando retornou a Iolco, logo foi reconhecido pelo tio, que o enviou em uma perigosa jornada: apoderar-se do Velocino de Ouro da Cólquida, no mar Negro oriental. Jasão escolheu heróis tais como Hércules e Teseu, de Atenas, para fazer parte da tripulação de sua embarcação, o Argo (daí o nome deles ser argonautas). Sua jornada teve o apoio de duas deusas: Hera, que os ajudou a combater ataques aéreos das harpias, e Afrodite, que fez Medeia, filha do rei da Cólquida, se apaixonar por Jasão. O rei da Cólquida deu a Jasão a tarefa de provar que era merecedor de Medeia: tinha que arar um campo com touros selvagens e semeá-lo com dentes de dragões. Quando furiosos guerreiros brotaram dos dentes dos dragões, Jasão os persuadiu a lutar entre si, e não contra ele. Com a ajuda de Medeia, apanhou o Velocino de Ouro e ambos partiram a bordo do Argo. Jasão tornou-se rei de Corinto, uma rica cidade, mas logo trocou Medeia por outra mulher. Furiosa, ela ateou fogo ao palácio e matou a maior parte da família real, fugindo depois para Atenas. Jasão escapou ileso, mas acabou sendo morto quando uma viga do então apodrecido Argo caiu sobre sua cabeça.

(Ver Centauro, Circe, Cólquida, Harpias, Hilas, Medeia, Orfeu, Quíron, Sereias, Velocino de Ouro)

Javali de Erimanto

Gigantesco porco selvagem que vivia nas encostas do Monte Erimanto, no Peloponeso. O javali devastava as terras na região até ser capturado por Hércules, que o amarrou e o levou de volta para Tirinto, seu lar. Ali, o tamanho do animal apavorou Euristeu, o rei que tinha enviado Hércules para capturar o animal, a tal ponto que ele pulou dentro de um vaso de bronze para se esconder.

(Ver Hércules)

L

Labirinto

Local construído na ilha de Creta para esconder o Minotauro, a prole meio touro, meio humana da rainha Pasifae e de um touro. O rei Minos ordenou que o mestre-artesão ateniense Dédalo criasse um labirinto impenetrável com inúmeras curvas para esconder esse monstro de nascimento real. O Minotauro cresceu no centro do Labirinto, vivendo à custa de vítimas de sacrifícios que eram enviadas para que ele se alimentasse. Lançadas no Labirinto, essas vítimas ficavam inteiramente perdidas em seus corredores até que a fera surgia da escuridão para devorá-las. A palavra “labirinto” possivelmente deriva da mesma raiz de labrys, o antigo nome para um machado de duas cabeças, símbolo religioso comum de Creta.

(Ver Ariadne, Minos, Minotauro, Pasifae, Teseu)

Leão de Nemeia

Enorme leão que aterrorizava a região nos arredores de Nemeia. A pele do Leão de Nemeia era tão grossa que as armas normais — flechas, espadas, maças — eram inúteis quando usadas contra ele. Matá-lo foi o primeiro dos Doze Trabalhos realizados por Hércules, que conseguiu, enfim, alcançar tal êxito ao se aproximar e esticar o braço embaixo da garganta da criatura para sufocá-la até a morte. Depois, tentou tirar sua pele, mas não conseguiu, até que a deusa Atena lhe mostrou como fazê-lo: usando as próprias garras brutais do leão. Ao vestir a pele do leão, Hércules tornou-se quase invencível.

(Ver Hércules)

Lestrigões

Gigantes canibais que viviam na terra de Lamos, em alguma parte do Mediterrâneo Ocidental. Ulisses e seus marinheiros, ao desembarcar em busca de água e comida durante sua longa viagem, enfrentaram os lestrigões. Dois deles foram comidos por essas criaturas antes que o restante da tripulação conseguisse escapar.

Lótus

Planta com folhas que, quando ingeridas, fazem você esquecer todos os seus desejos. Ulisses, em suas longas viagens pelo Mediterrâneo, chegou à misteriosa Terra dos Comedores de Lótus (talvez localizada na atual Tunísia, no norte da África), cujos habitantes levam uma vida de plena satisfação graças à dieta das folhas de lótus. Alguns dos marinheiros de Ulisses que tentaram ingerir a planta perderam toda a vontade que tinham de voltar para casa e tiveram que ser arrastados de volta para os barcos por seus companheiros.

Louro

Planta com folhas consagradas a Apolo, o deus da poesia, do esporte e da música. Em geral davam-se coroas de louro aos vencedores de competições poéticas e atléticas (e eram o único prêmio dado aos vencedores nos antigos Jogos Olímpicos). Hoje, poetas nacionais são costumeiramente chamados de poetas laureados em referência a essa tradição.

(Ver Apolo, Dríades)

M

Mar Egeu

Principal mar ao redor da Grécia, seu nome tem origem em Egeu, rei de Atenas. Quando Teseu, filho de Egeu, navegou ainda jovem para Creta como parte do tributo devido pela cidade de Atenas ao Minotauro, prometeu ao pai que mudaria a cor das velas de seu barco (que eram pretas) se retornasse são e salvo. Embora tenha escapado com vida de Creta, Teseu se esqueceu de cumprir o combinado; desesperado, Egeu se atirou ao mar, que desde então passou a ser conhecido por seu nome.

Medeia

Neta de Hélio, o deus do sol, e filha do rei da Cólquida, terra do Velocino de Ouro. Como sobrinha de Circe, a feiticeira que transformou os homens de Ulisses em suínos, Medeia tinha mágica no sangue e conhecia as tradições das ervas e poções sagradas. Ajudou Jasão a conquistar o Velocino de Ouro e partiu com ele para se tornar rainha de Corinto. Quando Jasão a trocou por outra mulher, no entanto, ela revelou toda a sua fúria: assassinou a nova esposa de Jasão e também os próprios filhos que tivera com ele e fugiu para Atenas em uma carruagem alada puxada por dragões. Em Atenas, seduziu o idoso rei Egeu e tentou envenenar o jovem filho dele, Teseu, quando este apareceu disfarçado. Detida bem a tempo, pois Teseu revelou sua verdadeira identidade, Medeia novamente fugiu em sua carruagem, retornando à Cólquida.

(Ver Circe, Cólquida, Jasão, Talos, Teseu, Velocino de Ouro)

Medusa

Uma das três Górgonas. Medusa e suas irmãs, Esteno e Euríale, tinham asas, garras de bronze e olhos brilhantes, e só sua aparência horrenda era suficiente para transformar em pedra todos aqueles que olhassem para elas. Foi morta pelo herói Perseu, que, com a ajuda da deusa Atena e do deus Hermes, a surpreendeu enquanto ela dormia e cortou sua cabeça. Do pescoço cortado da Medusa surgiu o cavalo alado Pégaso, com o qual Perseu fugiu das outras Górgonas enfurecidas.

(Ver Andrômeda, Atena, Elmo da Escuridão, Geríon, Pégaso, Perseu)

Mênades

Seguidoras ensandecidas e embriagadas do deus do vinho, Dioniso. As Mênades participavam de orgias regadas a bebida nas montanhas dos arredores das cidades gregas, dançando ao lado do deus do êxtase ao som de tambores e flautas. Qualquer homem que oferecesse resistência a elas era morto, como descobriram Penteu, rei de Tebas, e o angustiado poeta Orfeu: ambos foram destroçados por essas adoradoras delirantes.

(Ver Dioniso, Orfeu)

Minos

Lendário rei de Creta que viveu três gerações antes da tradicional data da Guerra de Troia. Filho de Zeus e Europa, uma princesa que Zeus tinha raptado, Minos era reconhecido por sua sabedoria real. Esboçou leis com seu irmão Radamanto e, no Mundo Inferior, segundo consta, julgou os mortos. Mas nem sempre foi sábio. Um dia, orou para Poseidon, o deus do mar, pedindo-lhe que enviasse um bom touro para sacrifício. Minos ficou tão impressionado com o touro de Poseidon que decidiu ficar com ele — uma infeliz decisão, pois sua esposa, Pasifae, foi seduzida por ele. De sua paixão nasceu o semi-humano Minotauro, que foi mantido no Labirinto sob o palácio real em Knossos. Minos também construiu a primeira esquadra que imperou sobre as ondas, o que fez dele um talassocrata, governante dos mares. Quando os atenienses mataram seu filho Androgeo, ele os fez enviar um tributo anual de sete rapazes e sete donzelas para serem sacrificados ao Minotauro, prática que continuou até Teseu matar o monstro. O termo “minoico” é usado por arqueólogos modernos para se referir a toda a antiga civilização de Creta na Idade do Bronze.

(Ver Ariadne, Cadmo e Europa, Cócalo, Hades, Labirinto, Minotauro, Pasifae, Teseu, Zeus)

Minotauro

Filho da rainha Pasifae, de Creta, e de um touro enviado por Poseidon, o deus do mar, ao marido de Pasifae, o rei Minos. Ele tinha a cabeça e as pernas de um touro, mas o corpo de um homem. O rei Minos, de Creta, estarrecido com a monstruosa prole da rainha, ordenou que fosse construído um labirinto para conter a criatura. O Minotauro viveu em seu centro e se alimentava de jovens atenienses a ele enviados em sacrifício. Embora tivesse imensa força, o Minotauro encontrou um antagonista a sua altura: Teseu, o herói ateniense que o matou com a ajuda da princesa Ariadne, meia-irmã da criatura.

(Ver Ariadne, Labirinto, Mar Egeu, Minos, Pasifae, Pancrácio, Teseu)

Monte Etna

Vulcão na parte oriental da Sicília. O Monte Etna era o mais alto vulcão que os gregos conheciam. Com um pouco mais de três mil metros de altura, fica coberto de neve a maior parte do ano. Também entra em erupção com frequência, embora não cause muitos danos ao seu redor. Dizia-se que em suas ardentes profundezas, Hefesto, o deus ferreiro, mantinha sua principal fornalha, onde martelava incessantemente em sua forja mágica com o auxílio do gigante de um olho só, o ciclope. O filósofo e mago Empédocles encontrou a morte ao se atirar na cratera do Etna em erupção.

(Ver Briareu, Hefesto, Tifão)

Monte Olimpo

A mais alta montanha da Grécia. Elevando-se a dois mil novecentos e quarenta e nove metros, os picos do Monte Olimpo costumam ser cobertos pelas nuvens ou pela neve. Isso levou os primeiros gregos a considerar a montanha o lar de suas principais deidades, os doze deuses “do Olimpo”. (Apenas Hades, Senhor do Mundo Inferior, ficou de fora, preferindo seu reino lúgubre.) A vida nos palácios construídos por Hefesto no Olimpo era esplêndida. Em seus grandes banquetes, os deuses bebiam ambrosia, o néctar divino, servido por Ganimedes, o belo copeiro, enquanto Apolo tocava lira e as musas cantavam. Mortais e semideuses tinham permissão de visitar o local de vez em quando, mas o Olimpo não era nenhum paraíso no sentido cristão; os espíritos dos humanos mortos desciam para o Mundo Inferior de Hades.

(Ver Ganimedes, Hefesto, Hera, Monte Otris, Zeus)

Monte Otris

Montanha localizada na Grécia Norte-Central. O Monte Otris foi ocupado pelos titãs na guerra que travaram contra Zeus e seus irmãos deuses, a Titanomaquia. Mas Zeus já tinha ocupado o bem mais imponente pico do Monte Olimpo; o Monte Otris tem apenas mil setecentos e dez metros de altura.

Morfeu

Deus dos sonhos. Filho de Somnos (Hipnos), é geralmente representado como uma criança gorducha e alada segurando papoulas.

Mundo Inferior

Reino sombrio abaixo da terra para onde iam os espíritos de quase todos os mortos. Esse reino era governado pelo deus Hades, cujo nome os gregos preferiam não pronunciar. (Hades também se tornou outro nome para o Mundo Inferior.)

(Ver Campo de Asfódelos, Campos Elísios/Eliseu, Caronte, Cérbero, Circe, Cronos, Deméter, Elmo da Escuridão, Enéas, Hades, Hércules, Monte Olimpo, Orfeu, Perséfone, Poseidon, Rio Estige, Rio Lete, Tártaro, Teseu, Ulisses, Zeus)

N

Náiades

Ninfas que viviam em água doce, principalmente em córregos e riachos. Como outras ninfas, costumavam ser benevolentes e geralmente eram veneradas por seres humanos. Embora nem sempre fossem imortais, tinham vidas muito longas e continuavam sempre jovens e belas.

(Ver Hilas, Ninfas)

Nêmesis

Deusa da vingança (para aqueles que ela punia) e árbitro de justiça. Filha de Têmis, é às vezes retratada com um elmo e uma roda, mas também dirigindo uma carruagem puxada por grifos. Seu nome vem da palavra grega némein, que significa “dar o que se merece”, e que hoje em dia também é sinônimo de inimigo.

Nereidas

Cinquenta ninfas, ou sereias, filhas da ninfa marinha Dóris, e de Nereu, o Velho do Mar. As nereidas viviam nas profundezas do oceano e adoravam brincar entre as ondas. Três nereidas foram criadas por Afrodite, a deusa do amor: Acis, Aretusa e Tétis, todas de cabelos dourados e belas. Tétis era a mais bela. Chamava a atenção de mortais e deuses e era desejada tanto por Zeus quanto por seu irmão Poseidon. Para evitar as disputas em família, Zeus providenciou o casamento entre ela e o rei (humano) da Tessália, Peleu. No entanto, Tétis não gostava de Peleu e tentou escapar dele. De sua infeliz união nasceu o herói Aquiles, o maior guerreiro da Guerra de Troia.

(Ver Andrômeda, Nereu, Ninfas, Poseidon)

Nereu

Deidade marítima secundária, célebre por sua sabedoria e seus poderes proféticos e conhecido como “o Velho do Mar”. Nereu vivia nas profundezas do oceano, mas emergia às vezes para ajudar marinheiros náufragos. Suas filhas com a ninfa Dóris eram conhecidas como nereidas.

(Ver Nereidas)

Ninfas

Divindades secundárias femininas que personificavam aspectos da natureza selvagem. A esse termo genérico correspondem várias subcategorias: dríades e hamadríades eram ninfas das árvores; lemoníades eram as ninfas dos prados; as oréades eram as ninfas das montanhas; as náiades eram as ninfas de água doce; as nereidas e oceânides eram as ninfas do mar. Todas eram belas e eternamente jovens, portanto amadas tanto por homens quanto por deuses. (A palavra grega nymphe também significa jovem solteira.) As próprias ninfas às vezes se apaixonavam por mortais, e chegavam a raptar rapazes especialmente belos. As ninfas geralmente acompanhavam deuses tais como Dioniso, Pã, Ártemis e Apolo, enquanto os sátiros as perseguiam ardentemente, mesmo que nem sempre com sucesso. As ninfas, em geral, eram veneradas por mortais e podiam conceder pequenos favores, como ajudar os enfermos e guiar os caçadores perdidos.

(Ver Andrômeda, Ártemis, Caríbdis e Squila, Dioniso, Dríades, Hilas, Náiades, Nereidas, Oceano, Pã, Sátiros, Zeus)

O

Oceano

Titã, e o todo abrangente Oceano. Era mais um grande rio de água doce do que um mar e, segundo a primitiva geografia grega, envolvia toda a terra habitada além do oriente e do ocidente e abastecia todos os rios da terra através de fontes subterrâneas. Como deus, Oceano era considerado filho de Urano (céu) e Gaia (terra), as duas deidades primordiais. Era o pai das oceânides, as ninfas do mar, e considerado uma grande, e principalmente benevolente, força cósmica, essencial para manter a vida natural da Terra ao renovar os rios e os córregos.

Odisseia, A

Segundo dos grandes poemas épicos de Homero. A Odisseia relata as aventuras de Ulisses em seu longo caminho de volta para casa, Ítaca, vindo da Guerra de Troia.

(Ver Éolo, Ítaca, Polifemo, Ulisses)

Ofiotauro

Monstro híbrido que tinha a parte dianteira do corpo semelhante à de um touro e a parte traseira semelhante à de uma serpente. Essa criatura, uma das mais esquisitas geradas por Gaia, tornou-se aliada de Zeus e foi morta com um machado adamantino por Briareu, um dos aliados dos titãs, durante a guerra contra os deuses do Olimpo. As entranhas do Ofiotauro, quando pegavam fogo, produziam labaredas tão grandes que poderiam destruir qualquer um dos deuses, até mesmo Zeus. Depois de sua morte, Zeus, agradecido, pôs o Ofiotauro no céu como as constelações vizinhas Taurus (touro) e Cetus (baleia).

Ogígia

Ilha que era o lar de Calipso, cuja praia Ulisses conseguiu alcançar depois da morte de seus homens. Há muita especulação a respeito da localização de Ogígia. Alguns associam a ilha à atual Gozo, no mar Mediterrâneo. Outros a associam à perdida Atlântida.

(Ver Calipso)

Oráculos

Locais onde os gregos pediam conselhos aos deuses. Havia diversos oráculos importantes: Dodona no noroeste da Grécia, considerado o oráculo mais antigo, onde Zeus falava de um bosque de carvalhos sagrados; a ilha de Delos, onde Apolo era homenageado; Siuá, no deserto ocidental do Egito, onde Amon, o equivalente egípcio de Zeus, era venerado, e que Alexandre, o Grande, visitou em 331 a.C.; e sobretudo o Oráculo Pítio de Apolo em Delfos, local mais sagrado do mundo grego.

(Ver Delfos, Píton)

Orfeu

Filho do deus Apolo e da musa Calíope. Orfeu era o poeta arquetípico, cuja música tinha poderes mágicos. Acompanhou Jasão e os argonautas em sua jornada em busca do Velocino de Ouro e provou ser útil quando sua música conseguiu desencalhar o barco deles e neutralizar o canto das sereias neutralizar, salvando assim a tripulação do barco da morte certa. Amava sua esposa, Eurídice, tão profundamente que quando ela morreu, picada por uma cobra, ele desceu até o Mundo Inferior. Seu canto enfeitiçou o barqueiro Caronte, o infernal cão de guarda Cérbero e até mesmo o próprio Hades. O deus concordou em deixar Eurídice retornar com Orfeu contanto que ele não olhasse para trás, na direção dela, até que tivesse saído do Mundo Inferior. Mas ele não conseguiu resistir em dar uma olhada durante o longo caminho na direção da luz do dia, e assim a perdeu para sempre. Em sofrimento, retirou-se para a selva, onde sua música encantava os animais. Ainda lamentando-se por Eurídice, rejeitou todas as mulheres, até que as Mênades, enfurecidas por seu celibato, o cortaram em pedaços. No entanto, sua cabeça, ainda entoando cânticos, flutuou sobre as águas até a ilha de Lesbos. Muitos poemas míticos sobre imortalidade, escritos após sua morte, foram posteriormente atribuídos a ele.

(Ver Cérbero, Mênades, Sereias)

Ortro

Cão de duas cabeças que pertencia a Geríon. Ortro era irmão de Cérbero, o cão de três cabeças que protegia os portões do Hades. Ortro era o guardião do magnífico rebanho vermelho de Geríon e foi assassinado por Hércules.

(Ver Euritíon, Geríon)

P

Deus rústico, filho de Hermes, o deus mensageiro do Olimpo, e de uma ninfa. Era o protetor dos pastores, dos bosques e dos animais selvagens, além das cabras e das ovelhas. Nascido com cascos fendidos, chifres e patas parecidos com os de uma cabra, Pã assombrava os bosques e pastos da Arcádia (uma região selvagem do sul da Grécia), tocando sua flauta de Pã, ou siringe, feita de pedaços de junco por ele cortados. Apaixonou-se por diversas ninfas e as perseguiu, entre elas Eco. O corredor ateniense Fidípedes, em seu trajeto de volta depois de ter implorado por ajuda de Esparta contra os invasores persas, encontrou Pã, que prometeu vitória a Atenas. Quando os atenienses venceram, pois o deus incitou pânico — que os gregos consideravam um poder especial desse deus — entre os soldados persas na batalha de Maratona, a cidade construiu um templo para ele. Seu nome — pã significa “tudo” em grego — acabou induzindo alguns gregos a acreditar que ele devia ser o deus de todas as coisas, e passaram a venerá-lo como o único verdadeiro deus de todo o universo.

(Ver Ninfas, Sátiros)

Pancrácio

Um antigo estilo de luta grego que lembrava uma mistura de boxe e luta livre. Dizia-se que Hércules e Teseu criaram essa forma de arte marcial, que este último usou para derrotar o Minotauro no Labirinto. Pancrácio também era uma prova nos Jogos Olímpicos e parte do treinamento de combate dos soldados gregos.

Pandora

A primeira mulher a circular pela terra, criada por ordens de Zeus como castigo para os seres humanos depois que Prometeu lhes deu o fogo roubado dos deuses. Segundo alguns relatos, o deus Hermes lhe ofereceu uma caixa de ouro (que também às vezes é retratada como uma ânfora, ou pithos) assim que ela foi criada e lhe disse para não abri-la, incutindo na moça a característica da curiosidade e garantindo, assim, que Pandora viesse a abri-la mais tarde. Quando ela se casou com Epimeteu, ele mesmo, ou sua esposa (dependendo da fonte), acabou sucumbindo à tentação e abriu a caixa, espalhando pelo mundo todos os males ali contidos. Só Elpis, o espírito da esperança, permaneceu no fundo da caixa, dando à humanidade um motivo para continuar vivendo.

(Ver Elpis, Epimeteu)

Parcas

Filhas de Nix (noite) que personificavam o inevitável destino de cada ser humano. Também conhecidas como moiras, elas eram três: Cloto, que girava o fio da vida; Láquesis, que representava o elemento do acaso na vida de qualquer um; e Átropos, o destino inevitável. Até mesmo os deuses — inclusive o próprio Zeus — não eram totalmente imunes a seus poderes, tendo que aceitar o destino que os aguardava.

Pássaros de Estinfália

Pássaros que comiam seres humanos. Essas aves, com garras e bicos de ferro, infestavam Estinfália, uma cidade localizada no Peloponeso. Hércules as matou em seu quinto Trabalho.

(Ver Hércules)

Pasifae

Esposa de Minos, rei de Creta. Minos suplicou ao deus do mar, Poseidon, por um touro especialmente refinado para sacrificar, mas depois decidiu ficar com ele. Furioso, Poseidon fez Pasifae se apaixonar pelo animal. Para consumar sua paixão, pediu a Dédalo, o mestre-artesão ateniense, que construísse uma vaca, na qual ela se escondeu para seduzir o touro. Dessa terrível incompatibilidade nasceu um monstro, o semitouro, semi-humano Minotauro, que foi escondido no Labirinto.

(Ver Ariadne, Labirinto, Minos, Minotauro)

Pégaso

Imortal cavalo alado que nasceu a partir da cabeça cortada da Medusa. Domado pelo herói Belerofonte, que contou com a ajuda de uma rédea dourada dada a ele pela deusa Atena, Pégaso carregou Belerofonte em sua missão para matar a Quimera. Pégaso era capaz de criar nascentes ao bater com os cascos no chão — fazendo a água brotar da terra.

(Ver Hipaléctrions, Medusa, Perseu)

Peleu

Filho de Éaco e Endeis. Era amigo de Hércules, com quem participou da jornada em busca do Velocino de Ouro. Depois da morte de sua primeira esposa, Antígona, que ele próprio matou acidentalmente, Peleu se casou com a ninfa Tétis. Aquiles era filho do casal.

(Ver Nereidas)

Perdiz

Sobrinho e aprendiz de Dédalo, considerado o criador da primeira serra. Atena transformou-o em uma perdiz para salvá-lo quando Dédalo o empurrou de uma alta torre, por ciúme da criatividade do garoto.

(Ver Dédalo)

Perséfone

Filha de Deméter, deusa do trigo, e Zeus. O nome original de Perséfone era Kore, que significava simplesmente “menina”. Perséfone vivia feliz na terra até que um dia, enquanto estava colhendo flores, Hades, o deus do Mundo Inferior, surgiu de repente do chão e a levou em sua carruagem até seu lamentável reino, onde ela se tornou a relutante rainha. Deméter buscou freneticamente pela terra sua filha desaparecida, arruinando as safras em seu desespero, até que Zeus enviou Hermes para convencer Hades a libertar Perséfone. Hades obedeceu, mas não sem antes ludibriar Perséfone, fazendo-a comer algumas sementes especiais de romã, para que ela ainda tivesse que passar os meses do inverno de cada ano com ele. Como rainha do Mundo Inferior, Perséfone exercia grande poder, mas também era venerada quando estava acima da terra ao lado de Deméter na cidade de Elêusis, perto de Atenas, cujos cidadãos, que haviam contado a Deméter sobre o rapto de Perséfone por Hades, foram recompensados com os segredos divinos da fertilidade.

(Ver Deméter, Hades, Tântalo, Teseu)

Perseu

Filho de Dânae (que era filha do rei Acrísio, de Argos) e Zeus, rei dos deuses, que seduziu Dânae aparecendo para ela em um esplendor de ouro. Perseu cresceu com a mãe na ilha de Sérifo, cujo rei, Polidecto, se apaixonou por Dânae. No entanto, Dânae não correspondeu a esse amor. Perseu concordou então em partir em uma jornada para matar a Medusa, uma horrenda criatura cujo cabelo era composto por cobras no lugar de fios e cujo olhar transformava os homens em pedra, caso Polidecto deixasse sua mãe em paz. Com a ajuda da deusa Atena, que lhe deu um escudo muito polido, e do deus Hermes, que lhe forneceu sandálias aladas e uma capa mágica que o tornava invisível, Perseu surpreendeu a Medusa enquanto ela dormia. Cortou sua cabeça usando o escudo como espelho para evitar seu olhar petrificante e escapou no cavalo alado Pégaso, que tinha nascido do pescoço cortado da criatura. Voando de volta com a cabeça da Medusa, após capturar o olho das Irmãs Cinzentas e forçá-las a revelar o próximo passo de sua jornada, ele viu a adorável princesa Andrômeda acorrentada a uma pedra e protegida por um monstro marinho. Perseu transformou o monstro em pedra ao exibir a cabeça da Medusa, libertou Andrômeda e, mais tarde, casou-se com ela. De volta a Sérifo, usou a cabeça da Medusa para transformar Polidecto em pedra e depois a entregou a Atena. A deusa fez dela parte de sua égide, vestiu-a em volta do pescoço e Perseu terminou a vida como rei de Tirinto, no Peloponeso, um importante reino nos mitos gregos.

(Ver Andrômeda, Atena, Elmo da Escuridão, Irmãs Cinzentas, Medusa)

Píton

Antiga serpente (ou dragão) fêmea da terra morta pelo jovem Apolo quando este fez de Delfos seu principal santuário. O nome e a aura de Píton sobreviveram na figura da Pitonisa, a sacerdotisa que dava respostas enigmáticas às perguntas que as pessoas levavam até Delfos, o maior dos oráculos gregos. Tradicionalmente, a Pitonisa sentava-se na parte mais interna do santuário sobre um tripé acima de um imensurável e profundo abismo. Os vapores que subiam desse abismo a deixavam em transe, e nesse momento o deus falava por meio dela, em versos tão ambíguos que jamais se poderia dizer que estavam errados, fosse qual fosse o rumo que os eventos tomassem.

(Ver Delfos)

Polifemo

Ciclope retratado em A Odisseia. Polifemo amava Galateia, uma ninfa do mar, que preferiu Ácis, filho de Pã com uma ninfa do rio. Polifemo esmagou Ácis com uma pedra, mas isso não o ajudou a conquistar o afeto de Galateia. E ele também não se saiu melhor em seu confronto com Ulisses e seus homens. O astuto herói grego conseguiu cegá-lo enquanto ele dormia em sua caverna e, então, escapou pendurando-se à parte de baixo das ovelhas do ciclope. De volta ao barco, Ulisses insultou o gigante cego temerariamente, pois Polifemo atirou pedregulhos nele e chamou o pai, o deus do mar, clamando por vingança. Poseidon se prontificou a tornar o resto da viagem de Ulisses mais árdua ainda.

(Ver Ciclopes)

Poseidon

Deus dos terremotos, dos cavalos e do mar. Irmão mais velho de Zeus e segundo em majestade entre as divindades gregas, perdendo apenas para o irmão mais moço. Era uma formidável deidade meio selvagem. Tornou-se Senhor dos Mares, enquanto Zeus controlava os céus e seu outro irmão, Hades, o Mundo Inferior. Empunhando um tridente divino, Poseidon circulava pelas ondas em uma carruagem puxada por cavalos-marinhos. Casou-se com Anfitrite, uma das nereidas, mas teve casos amorosos com muitos outros seres: humanos, divinos ou bestiais. Entre seus estranhos filhos estavam os ciclopes, gigantes de um olho só que comiam seres humanos. Embora fosse aliado dos gregos na Guerra de Troia, Poseidon era inimigo de Ulisses e dificultou ainda mais suas viagens enviando tormentas. Marinheiros e pescadores pediam a Poseidon boas condições meteorológicas, e um famoso templo no promontório de Súnion foi dedicado a ele. No entanto, Poseidon fracassou ao tentar conquistar o afeto dos atenienses. Em uma competição com Atena, ofereceu à cidade uma fonte de água doce, enquanto ela ofereceu uma oliveira. Os atenienses escolheram a árvore; as oliveiras eram uma parte essencial da agricultura ateniense.

(Ver Andrômeda, Anteu, Aracne, Atena, Briareu, Ciclopes, Cronos, Hades, Hipocampo, Minos, Minotauro, Nereidas, Pasifae, Polifemo, Teseu, Titãs, Zeus)

Procrusto

Bandido gigantesco que vivia nos istmos de Corinto e atacava viajantes. Procrusto obrigava suas vítimas a se deitar em camas especiais feitas por ele. Se as vítimas fossem muito pequenas para esses “leitos de Procrusto”, o bandido as esticava até que chegassem ao tamanho certo para caber neles; se fossem muito grandes para tais leitos, ele cortava suas pernas. Suas maldades chegaram ao fim com o jovem príncipe Teseu, que o derrotou e forçou Procrusto a se deitar em um de seus próprios leitos.

(Ver Teseu)

Prometeu

Titã que se distinguia de seus irmãos geralmente negligentes por sua astuta capacidade de “previsão” (como sugere seu nome). Mantendo-se neutro na guerra entre os titãs e Zeus, Prometeu foi admitido no Olimpo — mas secretamente odiava Zeus. Vingou-se dos deuses com um truque astuto. Os gregos sacrificavam animais para os deuses, abatendo-os e cozinhando-os em fogueiras do lado de fora dos templos, mas algumas partes eram deixadas para os adoradores comerem. Prometeu, escondendo sob as entranhas de um boi sacrificado a melhor carne que ele havia retirado do animal — coisa que tanto deuses quanto homens consideraram repugnante — e pondo os ossos sob uma camada de gordura e pele atraentes, convenceu Zeus a concordar em escolher esta última opção. A partir daí, em sacrifícios, os deuses recebiam apenas a gordura e os ossos — que eram queimados —, e a humanidade ficava com a melhor carne. Enfurecido, Zeus retirou o dom do fogo da espécie humana. Mas Prometeu, acendendo uma tocha com a carruagem ardente do Sol, devolveu o fogo aos homens. Como punição por esse “roubo”, Zeus acorrentou Prometeu a um rochedo nas montanhas do Cáucaso, onde um abutre vinha devorar seu fígado. Todas as noites, o fígado de Prometeu voltava a crescer como mágica, só para voltar a ser comido no dia seguinte. Ele foi finalmente libertado de um tormento de trinta mil anos por Hércules.

(Ver Epimeteu, Titãs)

Q

Quimera

Monstro bizarro que foi morto pelo herói Belerofonte. Segundo Homero, a Quimera tinha cabeça e patas de leão, corpo de bode e cauda de serpente. De acordo com outros relatos, ela soltava fogo pelas ventas, tinha seis cabeças e era associada a monstros análogos como Éris e Tifão. Seu nome passou a significar algo obviamente impossível e fantástico.

Quinto

Quinto era um nome comum na Grécia. Um personagem célebre que tinha esse nome foi Quinto de Esmirna, poeta épico que deu continuidade às histórias de Homero embora sua poesia fosse considerada inferior à de seu antecessor. É mais conhecido por sua obra Pós-Homérica, que cobre o período entre o fim de A Ilíada e o fim da Guerra de Troia.

Quíron

O sábio e idoso centauro que educou heróis como Jasão quando crianças. Quíron era considerado um grande educador e também tinha reputação de dominar a medicina, a astrologia e a astronomia.

(Ver Apolo, Aquiles, Centauros, Jasão)

R

Raio-mestre

A última e mais impressionante arma de Zeus, que ele só lançava depois de consultar outros deuses.

Rio Estige

Um dos rios do Hades, o Mundo Inferior. As águas negras do Estige circundavam o Mundo Inferior juntamente com outras nove espirais, uma das quais era o rio Aqueronte. Para atravessá-lo, as sombras daqueles que tinham acabado de morrer deveriam pagar ao infernal barqueiro Caronte um óbolo, pequena moeda tradicionalmente enterrada com os mortos.

(Ver Aquiles, Caronte, Hades, Hermes)

Rio Lete

Outro dos rios do Hades, o Mundo Inferior. O Lete percorria os Campos Elísios, as regiões mais brilhantes desse mundo, e depois o Tártaro, sua região mais repulsiva. Qualquer espírito que bebesse das águas “letais” esquecia tudo a respeito de sua vida na terra.

S

Sátiros

Criaturas exuberantes, perversas e exclusivamente masculinas que tinham chifres de bode, orelhas pontudas, cauda e cascos fendidos, mas, a não ser por essas características, eram humanas. Estavam entre os seguidores de Dioniso, o deus do vinho, e costumavam se embebedar e sempre perseguir as mulheres — tanto as mortais quanto as ninfas. Pã tinha muitas características de sátiro. Quem geralmente era visto farreando com os sátiros era Sileno, um velho gordo porém jovial que ficava tão bêbado que não conseguia parar sentado em cima de seu asno.

(Ver Dioniso, Ninfas)

Selene

Deusa da lua e filha de Hélio, o deus do sol. Selene dirigia a carruagem lunar, que era puxada pelo céu por cavalos prateados. Ela se apaixonou pelo incrivelmente belo e jovem Endimião, um dos filhos mortais de Zeus. Quando Selene implorou ao rei dos deuses que mantivesse Endimião eternamente jovem, Zeus lhe concedeu esse desejo, mas fez com que Endimião dormisse eternamente. Apesar dessa letargia, Endimião continuou sendo o único amor de Selene.

(Ver Ártemis)

Sereias

O primeiro registro que se tem de femmes fatales, e literalmente fatais para marinheiros que ouvissem suas sedutoras canções. Com corpos parecidos com os de pássaros e caudas de peixe, mas com rosto e busto de belas mulheres, as três sereias habitavam uma ilha próxima de Caríbdis e Squila, onde as praias eram extremamente perigosas. Alertado pela feiticeira Circe, Ulisses encheu as orelhas dos marinheiros com cera e mandou que o amarrassem ao mastro quando se aproximaram daquela região. Com isso podia ter certeza de que, embora pudesse ouvir as doces vozes das sereias, não se deixaria arrastar para as profundezas. Apesar de implorar a seus homens que o libertassem, a tripulação obedeceu a sua ordem anterior, e Ulisses escapou. Mais tarde, quando Jasão e os argonautas passaram pelas sereias, o poeta Orfeu se encarregou de contrapor àqueles cantos uma canção tão poderosa que as próprias sereias foram transformadas em pedras.

(Ver Circe, Orfeu, Ulisses)

T

Talos

Figura de bronze gigantesca e dotada de vida, feita pelo deus ferreiro Hefesto para proteger a princesa Europa e as praias de Creta. Talos era capaz de lançar pedras a uma imensa distância. Seu fluido vital era mantido em uma membrana mágica dentro de seu pé. Com seus encantamentos, Medeia lançou Talos em um sono profundo e depois o matou cortando a tal membrana.

Tântalo

Rei de Sipilo (atual Turquia), dono de fabulosa riqueza. Um dos primeiros mortais que teve a honra de jantar com os deuses, Tântalo ofendeu Zeus ao roubar a ambrosia servida nos banquetes divinos e dá-la aos mortais, além de relatar as fofocas dos deuses do Olimpo. Ele também picou o próprio filho, Pélope, e serviu sua carne em um guisado, embora apenas Deméter, que só pensava no desaparecimento de sua filha Perséfone, tenha comido um pouco desse prato. Para punir esses crimes, Zeus acorrentou Tântalo em um tanque com uma árvore frutífera logo acima de sua cabeça. Sempre que Tântalo tentava comer alguma daquelas frutas, a árvore se erguia, ficando fora de seu alcance. Sempre que ele se inclinava para beber um pouco d’água, esta se retraía e lhe escapava. Daí vem a famosa expressão “suplício de Tântalo”.

Tártaro

Região ou abismo mais profundo do Mundo Inferior. Cercado por portões de bronze e muralhas triplas, o Tártaro era uma colônia penal para os mortos, onde principalmente os malvados — como os titãs, que tinham se revoltado contra Zeus — eram encarcerados para sempre.

(Ver Campe, Cronos, Hades, Rio Lete, Tifão, Titãs)

Telquines

Espíritos do mar geralmente descritos como figuras portando cabeça de cachorro e barbatanas no lugar das mãos. Os telquines eram habilidosos metalúrgicos e criaram o tridente que Poseidon usava. Às vezes são relacionados com os hecatônqueires, por sua capacidade de controlar as condições meteorológicas. Quando começaram a utilizar seus poderes para o mal, Zeus os mandou para as profundezas do mar, onde foram destruídos.

Teseu

Herói ateniense arquetípico e grande rei lendário dessa cidade. Teseu supostamente tinha dois pais: o deus do mar, Poseidon, e Egeu, rei de Atenas. Egeu tinha dormido uma noite com Etra, a filha solteira do rei Pítaco, de Trezena, e deixou sua espada e suas sandálias debaixo de uma enorme pedra ao partir na manhã seguinte. Quando tinha dezesseis anos, Teseu ergueu o tal pedregulho e descobriu a identidade de seu pai (mortal). Armado com a espada real, partiu para Atenas. No caminho, matou Procrusto, o ladrão que assolava os istmos. Quando chegou a Atenas, Medeia, a nova esposa de seu pai, tentou envenená-lo, mas falhou na tarefa e fugiu. Egeu reconheceu Teseu como seu herdeiro, mas teve problemas: o rei Minos, de Creta, em vingança pelo assassinato do filho, tinha imposto um tributo anual a Atenas de sete rapazes e sete donzelas, que eram sacrificados ao Minotauro no Labirinto. Oferecendo-se como voluntário, Teseu conduziu os atenienses até Creta. Lá, a princesa Ariadne se apaixonou por ele e lhe deu um novelo para guiá-lo de volta pelo Labirinto assim que ele tivesse matado o Minotauro. Depois, ele se casou com Ariadne e fugiu de Creta com ela, abandonando-a na ilha de Naxos. Quando seu barco se aproximava de Atenas, ele se esqueceu de mudar a vela preta para a cor branca, como tinha prometido ao pai, que, desesperado, pensando que o filho estava morto, se matou. Assim, Teseu se tornou rei. Uniu a Ática (território de Atenas), mas ele próprio continuou perambulando, indo para o oriente em direção ao mar Negro. Ali, raptou a rainha amazona Antíopa (ou Hipólita), o que fez com que as amazonas invadissem, mais tarde, o território da Ática. Teseu também partiu em aventuras com o amigo Pirítoo, um príncipe da Tessália. Tentando raptar Perséfone do Mundo Inferior, foi apanhado por Hades e só veio a ser libertado por Hércules (Pirítoo foi deixado apodrecendo no Hades). O segundo casamento de Teseu, com a princesa Fedra, de Creta, irmã de Ariadne, foi desastroso, pois ela se apaixonou por Hipólito, filho de Teseu com Antíopa. Quando Hipólito, que tinha feito voto de castidade, a rejeitou, Fedra contou a Teseu que o rapaz tinha tentado estuprá-la. Enfurecido, Teseu convocou Poseidon para matar Hipólito, só vindo a descobrir a inocência do filho quando já era tarde demais. Teseu acabou morrendo na ilha de Esquiro, morto pelo ciumento rei. Mas na batalha de Maratona, em 490 a.C., o fantasma de Teseu reapareceu para lutar ao lado dos soldados atenienses contra os invasores persas.

(Ver Amazonas, Ariadne, Dioniso, Fea, Jasão, Mar Egeu, Medeia, Minos, Minotauro, Pancrácio, Procrusto)

Tifão

Monstruoso filho de Gaia (terra) e do deus Tártaro. Tifão era tão grande quanto uma montanha, com uma centena de cabeças de dragão, um corpo de cobra e olhos em chamas. Deu origem a outros monstros, tais como a Hidra e a Quimera, e durante certo tempo assustou muitos deuses gregos a ponto de eles fugirem para o Egito, disfarçando-se de animais (é assim que os gregos explicavam os deuses com cabeças de animais do Egito, como Anúbis). Zeus e Hermes conseguiram finalmente aprisioná-lo sob o Monte Etna, na Sicília. Mas daquelas profundezas vulcânicas ele ainda lançava fogo e provocava tempestades repentinas: os tufões, que receberam esse nome em sua homenagem.

(Ver Equidna, Fea, Harpias, Hidra, Quimera)

Titãs

Estão entre os primeiros deuses primordiais; são os filhos de Gaia (terra) e Urano (céu). Tradicionalmente, eram muito grandes e fortes, mas não muito inteligentes, com exceção de Prometeu. Entre os célebres titãs estavam Atlas, Epimeteu, Hiperíon (luz) e Cronos. Este era o pai de vários deuses do Olimpo. Como temia que eles tomassem seu lugar como ele havia feito com o próprio pai, Cronos engoliu cada um dos filhos à medida que sua esposa, Reia, os paria. No entanto, Reia substituiu Zeus por uma pedra, e com a ajuda dela, Zeus, mais tarde, obrigou Cronos a vomitar os outros filhos. Quando os titãs se revoltaram contra a nova ordem do Olimpo, Zeus, ajudado por seus irmãos, Poseidon e Hades, os esmagou, aprisionando a maioria dos titãs no Tártaro.

(Ver Atlas, Briareu, Cronos, Gaia, Hades, Hecatônqueires, Monte Otris, Ofiotauro, Prometeu, Tártaro, Urano, Zeus)

U

Ulisses

Rei de Ítaca, uma minúscula ilha. Ulisses é o protagonista do segundo grande poema de Homero, A Odisseia, que relata suas aventuras na longa jornada de volta para casa depois da Guerra de Troia (a distância real de Troia para Ítaca é pequena, mas a distância lendária é vasta). O poema tem início com Ulisses ainda mantido refém por Calipso, uma ninfa encantadora, após dez anos. Libertado por ordem de Zeus, Ulisses partiu com seus companheiros em uma jornada épica. Durante o caminho, enfrentou ciclopes, monstros de um olho só que comem homens; passou por sereias, cujas canções atraíam os marinheiros para a morte; enganou a feiticeira Circe, que transformava os homens em porcos; e visitou o Mundo Inferior. Um animado e astuto herói, ele sobreviveu mais por sua esperteza do que por sua força física. Com o naufrágio no final e toda a sua tripulação afogada, Ulisses alcançou a terra dos feácios. Ali, a bela princesa Nausícaa o encontrou e fez amizade com ele, apresentando-o ao rei. Os feácios ouviram suas histórias, deram-lhe presentes e o enviaram de volta para Ítaca. Mas suas aventuras não terminaram quando seu barco tocou sua terra natal, pois em sua ausência de vinte anos sua fiel esposa, Penélope, tinha sido importunada por pretendentes. Acreditando que Ulisses havia morrido, eles queriam se casar com ela e se apoderar do reino. Disfarçado, Ulisses retornou a seu palácio para se vingar — matando todos os pretendentes com um grande arco que só ele tinha força para puxar. Então, enfim, ele e Penélope se reuniram no grande leito nupcial que ele fizera havia muito tempo.

(Ver Atena, Calipso, Circe, Ciclopes, Éolo, Ítaca, Lestrigões, Lótus, Medeia, Polifemo, Poseidon, Sereias, Ulisses)

Urano

Personificação divina do céu estrelado. Filho de Gaia, deusa da terra, e também seu marido. Eles tiveram doze filhos, os titãs, um dos quais, Cronos, castrou o pai e atirou sua genitália no mar. Da espuma que se formou a partir desses órgãos nasceu Afrodite, a deusa do amor.

(Ver Afrodite, Gaia, Oceano, Titãs)

V

Velocino de Ouro

A pele recoberta de lã de um carneiro mágico voador usado por Frixo e Hele, filhos do rei Atamante, da Beócia, para fugir voando e escapar de sua perversa madrasta. Hele caiu do dorso do carneiro, mas Frixo alcançou a longínqua terra da Cólquida, no mar Negro, onde sacrificou o carneiro a Zeus. A lã do animal foi mergulhada em um rio, onde logo se cobriu de um pó dourado. Ela se tornou mundialmente famosa, mas era guardada por um terrível dragão. Quando Jasão e os argonautas chegaram em sua jornada para encontrar essa pele, foram ajudados por Medeia, a filha do rei, a vencer o dragão. Voltaram então para a Grécia com a fabulosa lã.

(Ver Hilas, Jasão, Medeia, Orfeu)

Z

Zéfiro

Deus do Vento Oeste, o mais brando dos quatro ventos, associado às suaves e doces chuvas da primavera. (Os outros eram Bóreas, o Vento Norte; Nótus, o Vento Sul; e Eurus, o Vento Leste.) A esposa de Zéfiro era a deusa da flor Clóris, e o filho do casal era Carpo, que significa colheita ou frutos. Mas Zéfiro também se casou com Íris, irmã de Clóris e deusa do arco-íris.

(Ver Afrodite)

Zeus

Rei dos deuses e Senhor do Céu. Zeus era o supremo deus patriarcal, reinava tanto no Monte Olimpo, lar dos doze deuses olímpicos, quanto no mundo dos homens. Zeus era filho dos titãs Reia e Cronos. Cronos tinha engolido seus outros filhos por medo de que eles o destronassem, mas Reia salvou Zeus oferecendo ao marido uma pedra em vez da criança e escondendo o próprio filho no Monte Ida, em Creta, onde ele foi criado por ninfas. Zeus, mais tarde, depôs Cronos, fazendo-o vomitar os outros deuses. Entre eles estavam Poseidon e Hades, com os quais Zeus dividiu o mundo: ele ficou com os céus; Poseidon, com os oceanos; e Hades, com o Mundo Inferior. Os outros titãs se revoltaram contra a nova ordem, mas foram esmagados em batalha. A partir daí, Zeus governou o cosmos. O raio era sua arma mais impressionante, com a qual ele destruía qualquer um que o contrariasse, mas todos os homens, incluindo os reis, e todos os outros deuses tinham que obedecer a ele. No entanto, Zeus era um rei e não um tirano. Ele próprio obedecia às leis cósmicas do Destino. Era o guardião supremo da justiça, humana e divina, punindo os malfeitores, além de ser também o protetor de estrangeiros e mendigos. Casou-se com Hera, sua irmã, cujo coração conquistou ao assumir a forma de um cuco, e ela se tornou rainha do Olimpo. No entanto, o casal divino não se dava bem. Hera contestou violentamente a animada vida amorosa de Zeus, pois ele era um notório sedutor de mulheres, tanto mortais quanto divinas, e geralmente tomava a forma de animais para seduzi-las. Entre suas conquistas estavam Leto, uma titânide e mãe de Apolo e Ártemis, que se tornaram deuses do Olimpo; Têmis, outra titânide, que deu à luz as Horas, deusas das horas; Europa, filha do rei fenício (libanês) Agenor, que Zeus, tendo assumido a forma de um touro, levou para Creta, onde ela deu à luz Minos e Radamanto; e Leda, a quem ele seduziu disfarçado de cisne e que deu à luz a incomparavelmente bela Helena, mais tarde causa da Guerra de Troia. Ter Zeus como amante poderia ser perigoso para as mortais. Sêmele, a princesa de Tebas, que era sempre visitada por Zeus no escuro, insistiu em vê-lo em seu pleno resplendor. Quando ele finalmente revelou sua divindade, ela foi incinerada. No entanto, Zeus salvou o filho que estava em seu ventre, que viria a ser Dioniso, o deus do vinho. Atena, a deusa protetora de Atenas, era a filha mais original de Zeus, pois nasceu, totalmente formada e já armada, de sua testa. Zeus era identificado como o romano Júpiter e tem nítidas afinidades com Dyaus Pater, o deus do céu no hinduísmo primitivo. Era venerado por toda a Grécia, e os maiores templos e as mais opulentas estátuas — tais como a enorme estátua de ouro e marfim feita pelo escultor Fídias em Olímpia, local dos Jogos Olímpicos — foram criados em sua homenagem. O mais velho oráculo da Grécia era o de Zeus em Dodona, onde os pronunciamentos do deus eram escritos em folhas de carvalho.

(Ver Afrodite, Apolo, Ares, Ártemis, Atena, Atlas, Briareu, Cadmo e Europa, Calipso, Campe, Caríbdis e Squila, Cronos, Delfos, Deméter, Dioniso, Égide, Epimeteu, Ganimedes, Hades, Helena, Hélio, Hecatônqueires, Hefesto, Hera, Hércules, Hermes, Héstia, Íris, Minos, Monte Otris, Nereidas, Ofiotauro, Oráculos, Pandora, Parcas, Perséfone, Perseu, Poseidon, Prometeu, Raio-mestre, Selene, Tântalo, Tártaro, Titãs, Tifão, Ulisses, Velocino de Ouro)

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Nigel Rodgers, formado em história e história da arte pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra, escreveu muitas obras sobre história, arte, mitologia e filosofia. Entre seus livros mais recentes estão The Ancient Greek World, Roman Empire e Philosophers Behaving Badly. Seu site é www.nigelrodgers.co.uk.

 

 

                                                                  Rick Riordan

 

 

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