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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Senhores e Servos / Leon Tolstoi
Senhores e Servos / Leon Tolstoi

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Senhores e Servos

 

I

 

Corria a década de -. Na manhã seguinte ao dia de Natal, Vassílii Andréitch Brokhunov, negociante da segunda corporação, não podia se ausentar da paróquia, precisava estar na igreja — da qual era o tesoureiro eleito e ainda receber em casa os parentes e amigos— Mas, tão depressa a última das visitas se despediu, Vassílii Andréitch começou a se preparar para sair: necessitava entrar em entendimentos com um proprietário das redondezas para concluir a compra de uma floresta que, há muito tempo, tinha em vista. O assunto requeria urgência, pois Vassílii Andréitch temia ser prejudicado naquela ótima transação pelos negociantes da cidade vizinha. O jovem proprietário pedia dez mil rublos pela floresta, só porque Vassílii Andréitch lhe havia oferecido sete mil. Acontece que esses sete mil representavam, na verdade, apenas um terço do total das terras.

Vassílii Andréitch procurara, manhosamente, retardar a aquisição na esperança de um abatimento tio preço, pois contava a seu favor a combinação feita entre lis negociantes do distrito pela qual nenhum subiria o valor das florestas situadas perto da dos vizinhos, e aquela estava justamente na sua região. Mas, tendo chegado ao seu conhecimento que compradores de matas da capital da província projetavam comprar a floresta de Goriatchkino, decidiu apressar o remate do negócio.

Com tal propósito, mal a festa terminara, abriu o cofre e retirou mil e setecentos rublos. Tirou O”n-a mil e trezentos da caixa da igreja, que ficava sob a sua guarda, para perfazer três mil rublos, cuidadosamente recontou o dinheiro, enfiou-o na carteira e se preparou para partir.

Nikita, o único criado de Vassílii Andréitch que não estava bêbado naquele dia, correu a atrelar o trenó. Nikita cumpria a promessa, que a si mesmo fizera, de nunca mais beber desde a ocasião, uns dois meses antes, em que havia vendido as botas e roupas novas para gastar o apurado no vício. E bem que ele fora tentado, naqueles dias de festa, pela vodca que caía no fundo dos copos com um ruído que se assemelhava a um apelo.

Nikita era camponês, tinha cinqüenta anos e nascera numa aldeia próxima. Passara a maior parte da vida trabalhando em casas e terras alheias, o que levara a dizerem dele “que não era um proprietário”. Desfrutava geral estima, tanto pela sua natural bondade e jovial temperamento, como pelo entusiasmo e energia que dedicava ao trabalho, mas infelizmente não parava muito no mesmo lugar porque duas vezes por ano, e às vezes mais até, deixava-se dominar inteiramente pelo álcool. Nessas ocasiões, não só se despojava de tudo o que possuísse para saciar o vício, como se tornava brigão e desordeiro. Vassílii Andréitch mesmo já fora obrigado a despedi-lo por mais de uma vez, chamando-o novamente por vários motivos: sua honestidade, sua bondade para com os animais, e principalmente — por que não dizer? — por suas humildes pretensões relativas ao salário. Vassílii Andréitch pagava a Nikita não oitenta rublos, ordenado normal de um trabalhador como ele, mas somente a metade, e assim mesmo em pequenas parcelas e muito mais vezes em mercadorias que o armazém de Vassílii Andréitch lhe vendia por preços exorbitantes.

Marfa, mulher de Nikita, que no seu tempo de moça fora muito bonita, era criatura afeita ao trabalho, esperta e habilidosa, e vivia em companhia de um filho adolescente e duas filhas. Não insistia com o marido para morar com a família porque, se fazia de Nikita o que bem queria quando ele estava sóbrio, tinha-lhe um medo pânico se o via embriagado. Certo dia, ele tomou uma bebedeira em casa e, provavelmente aproveitando a oportunidade para se vingar da submissão doméstica, arrebentou o baú da mulher, tirou todas as roupas e bugigangas que lá encontrou e, a machadadas, picou-as em mil pedaços.

Sem nunca protestar, Nikita entregava à mulher todo o dinheiro que ganhava. Foi exatamente o que aconteceu dois dias antes da festa. Maria foi ao armazém de Vassílii Andréitch, comprou farinha, chá, açúcar, meia garrafa de vodca, três rublos no total, e ainda levou cinco rublos em moedas. E agradeceu a Vassílii Andréitch como se ele tivesse lhe prestado um grande favor, quando, sem exagero, passara a perna nela em, pelo menos, uns vinte rublos.

 

— Nós não temos nenhum contrato, não é mesmo? dizia Vassílii Andréitch a Nikita. — Sempre que precisar de alguma coisa, venha cá ao armazém. Depois acertaremos as contas. Em minha casa não é como nas outras. Você nunca ouvira: “Agora, não. Vamos primeiro liquidar as contas atrasadas. Temos que descontar isso e aquilo...” Não, Nikita. Quem trabalha para mim tem toda a minha proteção.

 

Falava com a veemência de quem, sinceramente, se achava o benfeitor de Nikita. muitos eram os que dependiam do seu dinheiro, a começar por Nikita, e a força de persuasão que empregava era tamanha que acabou por se convencer de que, realmente, não explorava os empregados, mas, muito pelo contrário, os cumulava de benefícios.

 

— É claro, Vassílii Andréitch. Não é por outra coisa que dou duro no trabalho. Como se trabalhasse para meu próprio pai. É claro que sei.

 

Intimamente Nikita estava certo de que era enganado, mas sabia ao mesmo tempo que não podia largar o emprego enquanto não arrumasse trabalho em outro lugar e assim se sujeitava a aceitar, sem discutir, o que lhe dava Vassílii Andréitch.

Agora, recebida a ordem de preparar o trenó, Nikita, jovial e diligente como sempre, se dirigiu para a cocheira, com aquele passo firme e rápido que lhe era peculiar, embora andasse com os pés para dentro como os gansos. Tirou de um gancho as pesadas rédeas enfeitadas de borlas e, fazendo retinir os metais do freio, foi para a baia onde se encontrava o cavalo que o amo mandara atrelar.

 

— Como é? está muito aborrecido, meu velho? — disse em resposta ao relincho com que o Baio o recebeu. Era um animal de médio porte, bem-conformado, ancas arredondadas, e, naquela hora, estava sozinho na cocheira.

 

— Vamos, companheiro! Não tenha pressa. Primeiro tem de beber a sua agüinha... como se falasse com... Falava com o cavalo exatamente uma pessoa. com a aba do capote limpou cuidadosamente o lombo luzidio do animal, um lombo roliço cortado ao meio por uma risca pelada, enfiou-lhe o cabresto na cabeça, ajeitando as orelhas e a crina, e levou-o ao bebedouro.

 

Assim que deixou a cocheira atapetada de esterco, o Baio manifestou sua satisfação saltando e fingindo querer pregar um par de coices em Nikita, que o acompanhava correndo até o poço.

 

— Está querendo brincar comigo, não é, seu patife! — disse alegremente Nikita, que sabia com que prudência o Baio atirava a pata traseira, procurando apenas roçar a aba sebenta do capote, costume engraçado do cavalo, que muito o divertia.

 

O cavalo bebeu a água gelada, relinchou fracamente sacudindo os beiços grossos e ainda molhados, dos quais; deixou cair algumas gotas transparentes dentro do tanque. Depois, ficou imóvel por um instante, como mergulhado em seus pensamentos, para de súbito, bufar estrondosamente.

 

— Se não quer beber mais, não é preciso fazer tanto barulho, rapaz! Mas não me venha depois pedir mais... disse Nikita com a maior severidade, depois do que levou o Baio para o alpendre, puxando-o pelo cabresto, enquanto o animal alegremente enchia o pátio com os seus barulhos.

 

Todos os criados estavam ausentes. Havia no Pátio apenas um estranho: O marido da cozinheira, que viera para as festas.

 

— Meu querido, a que trenó devo atrelar o Baio? Ao grande ou ao pequeno?

 

— Vai perguntar ao amo. — pediu-lhe Nikita.

 

O marido da cozinheira entrou na casa principal da herdade, de sólida construção, e logo voltou trazendo a ordem de atrelar o cavalo ao trenó menor. Nikita acabou de arrear o animal e arrastou-o para o galpão onde se guardavam os trenós.

 

— Então vamos no menor, meu amigo — murmurou Nikita, metendo entre os varais o inteligente animal, que fingia o tempo todo querer morder as rédeas.

 

Quando tudo estava pronto, só faltando este pediu um pouco de palha e a manta de pano de saco ao marido da cozinheira que fosse buscar.

 

— A coisa marcha bem! Não precisa se arrepiar tanto —disse Nikita acomodando no trenó a palha de aveia recém-batida, que acabava de lhe ser trazida. — Agora é só estender a manta... Assim, assim... Vamos ficar otimamente instalados — e ajeitou a serapilheira em cima da palha acamada no assento. — Pronto! Tudo a preceito, meu amigo. Muito obrigado! — agradeceu ao marido da cozinheira.

 

— O trabalho a dois vai mais depressa.

 

E Nikita subiu ao trenó, após ter desembaraçado as rédeas de couro que terminavam numa argola, e tocou o animal, que ansiava por trotar, para o portão principal, através do pátio coberto de esterco gelado.

 

— Tio Nikita! Tiozinho! — gritou com voz esganiçada um garotinho de sete anos, enfiado numa peliça preta, gorro de pele e botinhas novas de couro branco, que saíra da casa correndo. — Quer me levar? — e abotoava apressadamente a peliça curta.

 

— Corra, meu anjinho — respondeu-lhe Nikita.

 

Estacou o cavalo e ajudou o filho do patrão a subir no trenó. O rostinho pálido e magro do menino se iluminou de alegria. Eram mais de duas horas e fazia muito frio, pelo menos uns dez graus abaixo de zero. Metade do céu estava coberta por uma nuvem baixa e escura. No pátio, o ar estava calmo, mas lá fora o vento soprava, áspero, varrendo a neve amontoada no telhado do galpão vizinho e formando redemoinhos junto à casa de banhos.

Assim que Nikita transpôs o portão e parou o trenó diante da escada da entrada, Vassílii Andréitch saiu do vestíbulo, fazendo estalar, com as botas de couro forradas de feltro, o gelo que se acumulara nos degraus. Trazia um cigarro na boca e vinha muito agasalhado numa peliça de carneiro, ajustada por um cinto muito largo. Parou para saborear uma última tragada e jogou a ponta do cigarro, esmagando-a com o pé. Com a fumaça saindo ainda através do bigode, examinou o cavalo com o rabo do olho enquanto levantava a gola da peliça para defender as faces vermelhas e escanhoadas do frio.

 

— Vejam só este pândego! Está como quer — exclamou ao dar com o filho no trenó.

 

A vodca bebida com os amigos excitara Vassílii Andréitch e ele se sentia mais satisfeito que de costume e muito orgulhoso dos bens e do seu poderio. A presença do filho, a quem na intimidade chamava sempre de “meu herdeiro”, provocou-lhe naquele momento um imenso prazer, e contemplava-o com os olhos meio fechados e com um sorriso que mostrava os dentes grandes.

Uma mulher grávida, magra e lívida , com a cabeça e os ombros embrulhados num xale de lã que não deixava ver senão os olhos, apareceu na porta. Era a esposa de Vassílii Andréitch, Timidamente avançou e aconselhou num fio de voz:

 

— Achava melhor que você fosse com Nikita.

 

A recomendação evidentemente aborreceu Vassílii Andréitch, que deu uma cusparada para o lado, franziu o rosto e não respondeu.

 

— Vai levar dinheiro consigo?— prosseguiu a mulher no mesmo tom choroso. — É bom se precaver. Olhe que o tempo tende a ficar pior.

 

— Para que guia? Pensa, por acaso, que eu não conheço o caminho? — retrucou ele, separando bem as sílabas, que era o seu jeito característico de falar com vendedores ou compradores.

 

— Pelo amor de Deus, leve Nikita. É um favor que me faz — insistiu ela, puxando o xale mais para os ombros.

 

— Você é pior do que sarna! Como posso levá-la comigo?

 

— Que está dizendo, vassílii Andréitch? Eu estou as suas ordens — declarou Nikita, radiante. — Só é Preciso que alguém cuide dos cavalos na minha ausência... acrescentou, virando-se para a patroa.

 

— Fique descansado, meu amigo. Vou mandar Semion cuidar deles — respondeu ela.

 

— Então, vou ou não vou, Vassílii Andréitch?

 

— Faça-se o gosto da patroa! Mas vai vestir qualquer coisa mais quente se quer mesmo vir comigo — disse vassílii Andréitch, sorrindo e mostrando, com uma especial olhadela, a sebenta peliça de Nikita, de abas muito gastas, com um rasgão nas costas e toda descosida debaixo dos braços, provas evidentes da sua antiguidade e dos maus-tratos que sofrera.

 

— Olá, meu santo! Dê uma mãozinha aqui! É só segurar o cavalo! — gritou Nikita para os lados do pátio, onde estava o marido da cozinheira.

 

— Deixe que eu seguro! — exclamou o menino com sua voz esganiçada. E, tirando dos bolsos as mãozinhas vermelhas de frio, pegou as rédeas geladas.

 

— Olhe lá! Não leve muito tempo a se embonecar, ouviu? — troçou Vassílii Andréitch.

 

— Vou num pé, volto no outro, Vassílii Andréitch, meu paizinho! — garantiu Nikita correndo para a isbá reservada aos criados.

 

— Arimuchka, minha adorada, me dê depressa o meu cafetã que está secando ao lado do fogão. Vou viajar com o patrão — anunciou Nikita, embarafustando pela isbá adentro e pegando o cinto que estava pendurado num prego.

 

A cozinheira, que estava preparando o samovar, de pois de ter tirado uma soneca após o jantar, recebeu alegremente Nikita e, contaminada pela pressa dele, apanhou, rápida, o surradíssimo cafetã que pusera a secar e pôs-se a desamassá-lo e a sacudi-lo.

 

— Agora, vai ficar à vontade com seu marido! — disse Nikita para ela.

 

Quando se encontrava a sós com quem quer que fosse, sempre achava uma coisa agradável para dizer. Tal era o bom Nikita.

E, tendo posto o cinto muito estreito e torcido na cintura, por cima da peliça, apertou-o valentemente como se quisesse que a barriga ficasse ainda mais Murcha do que naturalmente era.

 

— Assim é que vai bem! — disse, não à cozinheira, mas ao cinto, cujas pontas enfiou para dentro. — Não desamarrará nunca!

 

Levantou e abaixou os ombros para ter a certeza de que seus braços estavam com os movimentos livres, envergou o cafetã, esticando as costas também para verificar a liberdade de ação, e pegou nas malfeitas luvas de lã que estavam na prateleira.

 

— Pronto! Estou em forma!

 

— Você devia mudar as botas, Nikita Stepánitch — sugeriu a cozinheira. — As que você calça estão muito estragadas.

 

Nikita parou como se se lembrasse de alguma coisa:

 

— Tem razão... Não seria nada mau... Mas vou com estas mesmo.

 

Afinal, não iremos muito longe. — E saiu em disparada.

 

— Não irá sentir frio, meu amigo Nikita? — perguntou a patroa, quando ele chegou perto do trenó.

 

— Acho que não. Isto aqui esquenta muito! — respondeu, levantando a palha para cobrir os pés, e metendo por baixo dela o chicote, do qual o Baio, como bom cavalo que era, não precisava.

 

Vassílii Andréitch já estava acomodado no trenó. Suas largas costas, agasalhadas com duas peliças, tomavam todo o curvo encosto do assento traseiro. Nikita saltou para o trenó em movimento e se ajeitou o melhor que pôde na parte dianteira, com uma perna para fora.

Com os patins rangendo levemente, o trenó foi levado pelo robusto cavalo e, em breve, alcançou a estrada coberta por uma camada de neve endurecida.

 

— Que diabo você está fazendo aí? Dê-me o chicote, Nikita! — exclamou Vassílii Andréitch, visivelmente admirando o seu herdeiro, que encontrara meios de se agarrar na parte de trás do trenó. — Saia já daí, menino! Volte para casa logo! Quer enlouquecer sua mãe?

 

O garoto pulou para o chão. O Baio deu um espirro e acelerou a marcha, passando da andadura ao trote.

Kresti, a aldeia onde morava Vassílii Andréitch, não tinha mais que seis casas. Quando o trenó passou pela última, que era a do ferreiro, repararam que o vento era mais impetuoso do que a princípio julgaram.

A estrada quase desaparecia sob a neve.

As marcas dos patins eram apagadas pelo vento e não se podia distinguir a estrada, se não por ficar mais alta do que a planície que cortava, Não se divisava a linha do horizonte — turbilhões de neve redemoinhavam pelos campos ocultando tudo. Até a floresta de Teliátino, que em geral se via tão bem, mal se deixava antever, por um instante, como uma mancha escura através da alva cortina de neve. Soprando da esquerda, o vento obstinadamente jogava para a direita a crina do Baio e a sua farta cauda, que terminava num grosso nó. A grande gola do cafetã de Nikita colava-se-lhe ao nariz e a uma das faces.

 

— A neve está danada e impede-o de mostrar o seu valor — observou Vassílii Andréitch, orgulhoso do cavalo que tinha. — Fui uma vez com ele a Pachutino e fique sabendo que em meia hora me pôs lá.

 

— O que está dizendo? — perguntou Nikita, que não ouvira direito por causa da gola.

 

— Estou dizendo que o cavalo me levou a Pachutino em meia hora — berrou Vassílii Andréitch.

 

— Ninguém nega que é um ótimo cavalo — opinou Nikita.

 

Durante um momento não trocaram palavras. Mas Vassílii estava com vontade de falar e perguntou em voz bem alta:

 

— Você ainda pretende comprar um cavalo na primavera?

 

— Não tenho outro remédio — respondeu Nikita abaixando a gola do cafetã e se inclinando para o amo. — Meu rapaz já está quase um homem e é preciso que comece a trabalhar no campo.

 

— Se é assim, por que não compra o meu pangaré? Eu o venderei barato! — gritou Vassílii Andréitch, animado com o provável comprador e já pronto, como sempre que entabulava negócios de animais, a lesar o mais que fosse possível, pois, sendo o seu negócio favorito, sentia que nele as suas faculdades intelectuais mais se avivavam.

 

— Talvez fosse melhor o senhor me dar quinze rublos para eu comprar um na feira de cavalos — defendeu-se Nikita, sabendo claramente que Vassílii queria lhe impingir o pangaré, que valia na melhor das hipóteses uns sete rublos, mas que o amo avaliaria em vinte e cinco, a fim de não lhe pagar, depois do ajuste, nem um mísero copeque durante uns seis meses.

 

— É um cavalo de primeira. Você fará um negócio da China! Eu digo de consciência limpa! Brekhunov nunca prejudicou ninguém. Não sou como os outros, palavra de honra! Eu até prefiro perder dinheiro a prejudicar alguém! gritou com aquele seu jeito de lidar com compradores e vendedores. — Eu reafirmo: é um cavalo de primeira!

 

— Sim, é verdade — suspirou Nikita, e, vendo que o amo se calava, soltou a gola, que o vento logo empurrou contra a face e a orelha.

 

Em silêncio viajaram mais meia hora. Nikita sentia o gélido vento entrar pelas mangas do agasalho. Encolhido, respirava com a boca colada à;ola que a tapava, mas não sentia frio no corpo.

 

— O que é que você acha? Vamos direto ou passamos em Karamichevo? — perguntou o amo.

 

A estrada que levava a Karamichevo era melhor e mais movimentada porém mais longa. A outra, embora mais curta, era muito má e os marcos ou eram raros ou se achavam cobertos pela neve.

Nikita refletiu um pouco. Depois, resolveu:

 

— Por Karamichevo é mais longe, mas a estrada é mais segura.

 

— Concordo, mas se seguirmos em frente só precisamos atravessar a ravina e não há perigo de errar, pois a floresta fica logo depois —disse Vassílii Andréitch, desejoso de tomar o caminho mais curto.

 

— Como o senhor quiser — respondeu Nikita, tornando a suspender a gola.

 

E foi o que fez Vassílii Andréitch. Percorridos uns quinhentos metros, tomou à esquerda, num ponto onde um galho de carvalho, com as suas últimas folhas secas, se agitava ao vento.

A partir dali, o vento Passou a vir de frente, e não tardou a nevar. Vassílii ia guiando o trenó; enchia as bochechas de ar e soprava os bigodes. Nikita cochilava.

Mais de dez minutos se escoaram em silêncio. De repente, Vassílii Andréitch rompeu-o com poucas palavras. Nikita abriu os olhos: — Que é que há?

O amo não respondeu. Preocupado, curvava-se, olhava para a frente e para trás. o cavalo ia a passo, o pêlo, molhado de suor, empastava-se no pescoço e nas Pernas.

 

— Que é que há? Que é que há? — repetiu Nikita.

 

— Que é que há? Que é que há? — arremedou Vassílii Andréitch, visivelmente agastado. — Há que não vejo mais os marcos e certamente estamos perdidos!

 

— Vamos com calma. Vou dar uma olhada na estrada — e Nikita saltou do trenó, tirou o chicote de sob a palha e caminhou para a esquerda do lado em que estivera sentado.

 

A neve não estava muito espessa, de maneira que pôde avançar sem dificuldade. Mesmo assim, em certos pontos, enterrou as pernas até os joelhos e não demorou a ficar com as botas cheias de neve. Nikita sondava o solo com os pés e com o cabo do chicote, porém, não conseguiu encontrar a estrada.

 

— Como é? — interrogou-o Vassílii Andréitch, quando Nikita voltou para junto do trenó. o lado.

 

— Do lado de cá não encontrei. Vamos ver do outro.

 

— Repare naquela mancha escura lã na frente. É bom ver o que é — disse o amo em tom de ordem.

 

Nikita caminhou na direção indicada e chegou perto da mancha escura. Tratava-se de um campo que fora lavrado no outono e cuja terra, espalhada pelo vento, escurecia a neve numa grande extensão. Após ter procurado a estrada pelo lado direito, Nikita sacudiu-se para fazer cair a neve que o salpicava, deu umas patadas para tirar das botas a neve que a elas se apegara, e subiu no trenó.

 

— A estrada fica à direita — decidiu ele. Nós recebíamos o vento pela esquerda e agora ele está vindo de frente. Temos, portanto, de virar para a direita.

 

Vassílii Andréitch não discutiu, e tocou para a direita. Mas nem um sinal da estrada. Continuaram avançando, o vento não diminuíra, nem a neve parara de tombar.

 

— Estou achando que nos perdemos, Vassílii Andréitch — disse, de repente, Nikita, como se estivesse muito satisfeito com o caso. E imediatamente ajuntou, apontando para umas manchas escuras que emergiam da neve: — Que troço é aquele?

 

Vassílii Andréitch estacou o Baio, que já estava completamente molhado de suor e cujos flancos palpitavam ao ritmo da ofegante respiração. E perguntou:

 

— Que é que acha?

 

— Acho que estamos nos campos de Zakharov, sem tirar, nem pôr.

 

É no que dá a gente abandonar a estrada!

 

— É mentira sua!

 

— Não, não estou mentindo, Vassílii Andréitch. E a pura verdade. O barulho do trenó estava dizendo. Acaba mos de atravessar um campo de batatas. Quer prova melhor do que aquele monte de folhas e aquelas hastes que saem da neve? Sim, estamos na fazenda de Zakharov.

 

— Não me faltava mais nada! — berrou Vassílii Andréitch. — E que iremos fazer?

 

— Ora, ora, meu senhor, vamos seguir direitinho em frente e acabaremos por chegar a algum lugar. Pode ser à sede da fazenda ou à casa do capataz.

 

Mais uma vez Vassílii obedeceu. Avançaram durante bastante tempo, ora atravessando planícies sem vegetação, e onde os patins do trenó rangiam sobre torrões de terra congelada, ora cortando os campos de cereais semeados, uns no outono, outros na primavera, e cujas hastes secas emergiam da neve e se agitavam ao sopro do vento, ora afundando na neve espessa que, na sua alvura uniforme, tudo tornava sem feitio.

A neve caía do alto, e por vezes o vento a levantava do chão em turbilhões. O Baio mostrava-se extremamente fatigado, o pêlo, ensopado de suor, encrespava-se de gelo, e já só caminhava a passo. Súbito, pisou em falso e caiu numa vala ou barranco. Vassílii Andréitch tentou retê-lo, mas Nikita gritou:

 

— Não puxe o freio! Dê mais rédea! Upa! Upa! Meu queridinho! — e, saltando do trenó, enterrou-se, por sua vez, na neve.

 

O animal reanimou-se e, num arranco, conseguiu se firmar num lugar endurecido pelo gelo. Tinham, naturalmente, caído num fosso.

 

— Onde estamos agora? — perguntou Vassílii Andréitch.

 

— Logo o saberemos — teve como resposta. — Vamos tocando para diante e teremos que chegar a algum lugar.

 

— Aquilo lá não será a floresta de Goriatchkino? — indagou. o amo, apontando para uma massa escura que a nevasca deixava entrever.

 

— Vamos para lá e veremos se é a floresta ou não respondeu Nikita.

 

Notara ele que o vento trazia daquele lado folhas secas de pereira e deduzira que não podia ser uma floresta e sim um lugar habitado, mas não quis afirmar nada.

 

II

 

Não haviam andado mais que trinta metros, quando distinguiram silhuetas negras de árvores e ouviram uma espécie de queixume. Nikita acertara. Não era uma floresta, mas um renque de pereiras, as quais tinham umas últimas folhas secas, Era claro que haviam sido plantadas ao longo de uma vala e perto de uma fazenda.

Tendo chegado até elas, que batidas pelo vento soltavam aquele gemido, o cavalo empinou de repente, subiu um barranco e tomou para a esquerda. Tinham encontrado a estrada.

 

— Cá está ela — disse Nikita. — Mas não sabemos onde.

 

Sem vacilar, o Baio foi pela estrada coberta de neve e não tinham percorrido mais que cinqüenta metros quando depararam com um celeiro, cujo telhado desaparecia sob densa capa de neve. Contornaram-no e se viram de novo fustigados de frente pelo vento e diante de um vasto monte de neve.

Era difícil ver a ruazinha estreita que se abria entre duas casas. O vento é que formara aquele monte de neve bem no meio da estrada e era preciso vencê-lo. Conseguiram transpor o obstáculo e enveredaram pela ruela, Perto de uma das últimas casas, peças de roupas congeladas pendiam de uma corda e eram agitadas furiosamente pelo vento — uma camisa branca, outra vermelha, ceroulas, meias grossas e uma saia. A camisa branca, então, parecia frenética, acenando com os braços vazios.

 

— Que grande preguiçosa! Nem para um dia de festas passou a sua roupa! — condenou Nikita, mas logo acrescentou: — Mas quem sabe? Talvez a mulherzinha esteja doente.

 

III

 

A entrada da aldeia ainda ventava e a estrada estava tomada pela neve, mas, à medida que avançavam, sentiam a temperatura mais suave e certo calor e alegria. Um cão latiu num quintal e uma mulher, que corria Com o casaco puxado sobre a cabeça, parou à porta da isbá, para ver os desconhecidos. Do centro da aldeia vinha um coro de moças.

Viram que a neve era menos abundante ali e que o frio e o vento não se mostravam tão fortes.

 

— Estamos em Grichkino! — exclamou Vassílii Andréitch.

 

— Estamos sim — concordou Nikita.

 

De fato, estavam em Grichkino. Depois de terem se desviado para a esquerda, cerca de dez quilômetros, constatavam que ainda assim haviam se aproximado do término da viagem, pois Grichkino não distava de Goriatchkino mais de cinco quilômetros.

No meio da aldeia, encontraram um homem muito alto, que ia pelo meio da rua, conduzindo um cavalo.

 

— Quem vem lá? — gritou ele, parando. Mas, reconhecendo imediatamente Vassílii Andréitch, segurou um dos varais e, tateando, chegou-se e se sentou numa borda do trenó.

 

Era Issai, camponês muito conhecido de Vassílii Andréitch e famoso em todo o distrito como ladrão de cavalos. — Então, Vassílii Andréitch, que é que veio fazer cá por estas paragens? — perguntou, e Nikita sentiu bem o hálito impregnado de vodca.

 

— Vamos a Goriatchkino.

 

— Ali, tem muita graça! Como é que vieram parar aqui? Deviam ter tomado a estrada de Malakhovo.

 

— Nem tudo dá certo na vida! Que se há de fazer? respondeu

 

Vassílii Andréitch, freando o Baio.

 

— Bom cavalo — tornou Issai examinando o animal e, num gesto habitual, apertando o nó da cauda, que se afrouxara na caminhada. — E vão passar a noite aqui?

 

— Não, meu velho, Temos que prosseguir viagem.

 

— Se é preciso, não digo nada. Mas quem é o companheiro? Oh, nem mais nem menos que Nikita Stepánitch!

 

— Ora, quem havia de ser? — respondeu Nikita. — E só rogo a Deus que não nos percamos outra vez!

 

— Não veio como. Dêem meia-volta e sigam em frente. No fim da aldeia continuem sempre em frente. Quando chegarem à estrada, então, dobrem para a direita.

 

— Mas onde devemos dobrar certo? — indagou Nikita.

 

— A certa altura encontrarão umas moitas. Defronte delas está o marco. É um velho galho de carvalho. Não há como errar.

 

Vassílii Andréitch instigou o Baio, fez a meia-volta e se foram em frente.

 

— É possível que tenham de pernoitar aqui! — gritou-lhes Issai.

 

Mas Vassílii Andréitch não lhe deu resposta. Apressou mais o cavalo, achando fácil vencer cinco quilômetros, dois dos quais na floresta e os restantes numa estrada plana, tanto mais que o vento amainara e a neve cessara de cair. Seguiram em sentido inverso à rua que já haviam percorrido, pintalgada de estrume fresco, e a camisa branca estava agora presa por uma manga só, passaram pelas gemedoras pereiras e se encontraram, outra vez, em campo aberto. O vento voltara a soprar fortemente e a neve já estava tão alta que a estrada desaparecera, engolindo os marcos quase até a ponta, o que tornava difícil distingui-los.

Vassílii Andréitch apertava os olhos, inclinava a cabeça, ora para a direita, ora para a esquerda, tentando divisar os marcos, mas afinal deixou que o Baio os levasse, mais confiante no instinto dele do que nos seus próprios olhos.

E, realmente, o animal não se enganava, e avançava, umas vezes mais pela direita, outras vezes mais pela esquerda, mas sempre obedecendo às sinuosidades da estrada, experimentando se o solo estava firme sob as suas patas. E tão bem se portava o Baio que, a despeito da impetuosidade do vento e da neve, que voltara a cair em abundância, uma que outra vez conseguiram distinguir um marco à direita ou à esquerda.

Decorridos uns dez minutos, perceberam em frente deles uma massa escura que se aproximava através da densa cortina de neve, que o vento impelia obliquamente. Eram viajantes que seguiam o mesmo caminho. Depressa o Baio os alcançou, chegando a bater com a pata na parte traseira do trenó.

 

— Eh! Eh! Cuidado! Mais para o lado! — gritavam os passageiros do outro trenó.

 

Vassílii Andréitch emparelhou com o veículo e viu que conduzia três homens e uma mulher. Certamente voltavam para casa depois da festa na aldeia. Um dos camponeses fustigava com um galho seco a garupa do pequeno cavalo salpicado de neve. Os outros dois berravam qualquer coisa, acenando com os braços, e a mulher ia muito encolhida dentro do agasalho coberto de neve, imóvel, no fundo do trenó.

 

— De onde são vocês? — perguntou Vassílii Andréitch.

 

— A... a... a...

 

— Estou perguntando: de onde vocês são?

 

— A... a... a... — berrava com todos os pulmões um dos camponeses, sem que fosse possível entender o que dizia.

 

— Depressa! Eles querem passar na nossa frente! Não deixemos — berrava o outro camponês com o máximo das suas forças e batendo furiosamente no pobre cavalinho.

 

— Estão voltando da festa, não é?

 

— Mais depressa, Siomka! Bata com força! Toque para frente!

 

Os trenós se chocaram, estiveram quase parando, enganchados, mas se separaram, e o de Vassílii Andréitch passou à dianteira.

O cavalinho, peludo, barrigudo, coberto de neve, empenhava suas derradeiras energias, ofegando penosamente.

Em vão se esforçava para escapar às pancadas que levava e corria o quanto podia, enterrando as pernas curtas na neve profunda e atirando- a para trás. Quando os trenós se emparelharam, durante alguns segundos, Nikita sentira, na altura do ombro, o focinho do cavalinho, que tinha o beiço inferior entrado como o dos peixes, com as narinas dilatadas e as orelhas murchas de pavor. Mas, logo, ficara para trás.

 

— Veja só o que o vinho faz! — comentou Nikita. Vão rebentar o cavalinho, coitado! São uns verdadeiros selvagens!

 

Ainda se ouviu, durante alguns momentos, o resfolegar do animal e a gritaria dos ébrios. Mas foram diminuindo, diminuindo, até que não se ouvia mais que o assobiar do vento e o ranger dos patins.

O encontro alegrara Vassílii Andréitch, aumentara a confiança em si mesmo e, já sem se importar com os marcos da estrada, deixou tudo ao instinto do Baio, forçando-o a andar mais depressa.

Nikita nada podia fazer. E, como de costume, sempre que se via relegado a um segundo plano, cochilava, procurando descansar um pouco. Repentinamente, o cavalo estacou e quase Nikita era jogado fora do trenó.

 

— Estamos perdidos outra vez! — exclamou Vassílii Andréitch.

 

— Não diga!

 

— Digo. Não vejo mais os marcos. Na certa nós nos afastamos da estrada novamente,

 

— Então é preciso procurá-la outra vez — respondeu simplesmente Nikita.

 

E se erguendo, como da vez anterior, pôs-se a caminhar na neve com seu andar lépido, os pés virados para dentro. Vasculhou as redondezas atentamente, ora desaparecendo na bruma, ora reaparecendo de chofre para de novo sumir... Afinal, voltou ao trenó.

 

— Por aqui perto posso garantir que a estrada não passa. Talvez fique um pouco mais adiante — disse, subindo no veículo.

 

Escurecia. A nevasca não crescera de intensidade, mas também não abrandara.

 

— Se ao menos pudéssemos ouvir aqueles camponeses — lamentou Vassílii Andréitch.

 

— Eles não nos alcançaram mais. O cavalinho não ajudou. Mas talvez tenhamos nos afastado bastante da estrada. Ou quem sabe se eles também se extraviaram?

 

— Que rumo tomaremos agora? — indagou o amo.

 

— Vamos deixar o Baio agir por sua conta. Tenho certeza que nos livrará desta esparrela. Passe-me as rédeas.

 

Com a maior satisfação, Vassílii Andréitch passou-as para as mãos de Nikita, pois começava a sentir as suas muito frias, não obstante as grossas luvas de lã. Nikita contentou-se em segurá-las, permitindo que seu cavalo favorito as guiasse com a sua inteligência. E não demorou que o pobre animal, empinando uma orelha e depois a outra, desse umas voltas e depois arrancasse.

 

— Esse bicho só falta falar! — exclamou Nikita. Veja como é sabido. Vamos! Vamos! Muito bem!

 

O vento, agora, vinha pelas costas e minorava a sensação de frio.

 

— Animal inteligente está aqui! — exultava Nikita. O pequeno quirguiz é forte, mas estúpido como ele só! O Baio não! É outra coisa... Preste atenção nas orelhas dele. Não precisa de telégrafo. Ouve tudo quanto se passa em volta num raio de um quilômetro.

 

Dito e feito. Não havia passado meia hora e eis que divisaram, bem diante do nariz, qualquer coisa escura — uma floresta ou uma aldeia — e à direita os marcos da estrada.

 

— Com a breca, estamos outra vez em Grichkino! bradou Vassílii Andréitch.

 

Pura verdade. À esquerda surgira o mesmo celeiro com o telhado coberto de neve e, mais além, a corda com as roupas dependuradas — as camisas e as ceroulas batidas desesperadamente pela ventania.

Enveredaram pela conhecida ruazinha e novamente a atmosfera era suave, mais quente e mais alegre. Mais uma vez passaram na ruela pintalgada de estrume fresco, tornaram a ouvir as vozes, os cantos, os latidos dos cães. A noite descia e nas isbás iam acendendo as luzes.

Vassílii Andréitch mandou parar o trenó diante da entrada. Encaminharam-se para uma janela iluminada de um casarão de tijolos, e a claridade que vinha de lá fazia cintilar os flocos de neve ao cair. Nikita bateu no vidro com o cabo do chicote.

 

— Quem é? — perguntou alguém lá dentro

 

— São os Brekhunov de Kresti, meu bom senhor. Faça o favor de abrir a porta — respondeu Nikita.

 

Afastaram o na porta da rua e ouviram o complicado barulho - Em seguida, houve o ranger do ferrolho de um cadeado, escorando a porta externa, que o vento teimava em fechar, e apareceu um velho camponês de avantajada estatura e barba grisalha, com uma camisa branca e unia curta peliça atirada rios Ofribros, acompanhado de um moço de camisa vermelha e botas de couro.

 

— Você é mesmo Vassílii Andréitch? — perguntou o velho.

 

— Sim, em carne e osso. imagine que nos perdemos!

 

Andréitch. — Pretendíamos ir a Goriatchkino e viemos parar aqui. — explicava Vassílii. Tentamos outra vez e novamente voltamos sem querer!

 

— Vejam só! riu o velho, e, virando-se para o rapaz de camisa vermelha, ordenou: — Potruchka, abra o portão dos carros.

 

— Num instante — respondeu o moço alegremente, e saiu em disparada. — meu amigo

 

— Mas nós não vamos pernoitar aqui, declarou Vassílii Andréitch.

 

— Mas onde vão se meter? Está muito escuro. É melhor que fiquem!

 

— Bem quisera eu. Mas temos que prosseguir viagem. É impossível ficar, sabe? Negócios.

 

— Ao menos entrem para se aquecer um pouco. Chegaram exatamente na hora do sarnovar.

 

— Eu aceito sim —, respondeu Vassílii Andréitch. — A noite não vai ficar mais escura do que está e quando vier a lua, enxergaremos melhor o caminho. O que acha você, Nikita, se entrarmos para esquentar os ossos?

 

— Como não? É coisa que não se recusa — replicou Nikita, que sentia todo o corpo enregelado.

 

Vassílii Andréitch entrou. Petruchka abrira o portão e Nikita conduziu o trenó para o pátio, metendo o Baio no galpão, cujo piso estava coberto de estrume. As galinhas e o galo, que ia se achavam empoleirados, não gostaram da invasão e se puseram a cacarejar e a se remexer. Assustadas, as ovelhas corriam de um lado para o outro, batendo ruidosamente com os cascos no chão gelado. o cachorro recebeu Os intrusos com latidos de medo e de raiva.

Nikita gastou palavras com todos os animais — Pediu desculpas às galinhas, jurando não as incomodar, ralhou com as ovelhas por se amedrontarem sem motivo; e, enquanto amarrava o Baio, não parou de pedir ao cachorro que se mantivesse calmo.

 

— Aqui estou como quero — disse, sacudindo a neve que se acumulara na roupa. E virando-se para o cachorro:

 

— Você sabe latir, hem! Mas chega, meu parvo! Já passou da conta. Não somos ladrões, não. Está se cansando à toa.

 

— Estes são Os três conselheiros da casa, conforme está na história — disse o moço, arrastando para dentro do galpão o trenó que ficara de fora.

 

— Que conselheiros? — quis saber Nikita.

 

— É o que vem escrito no livro de Paulsen — explicou o outro com um sorriso. — o ladrão chega, de mansinho, perto da casa e o cão ladra; isso quer dizer: não fique aí como um bobo, preste atenção. O galo canta e é como quem diz: levante-se. O gato se lava; isso significa: teremos visita, prepare tudo para recebê-la bem.

 

Petruchka sabia ler e escrever e conhecia quase de cor o livro de Paulsen, o único que possuía. E quando abusava um pouco do copo, como acontecia naquele dia, gostava de citar certas frases dele, que lhe pareciam ajustadas às circunstâncias.

 

— Sim, meu rapaz. É isso mesmo — concordou Nikita.

 

— Acho que está com muito frio, não está, tiozinho? — tornou Petruchka.

 

— Sim. Estou gelado.

 

Atravessaram o pátio e entraram em casa.

 

IV

 

Vassílii Andréitch parara numa das casas mais ricas da aldeia. Aquela família possuía cinco jeiras de terra cultiva das e ainda arrendava algumas. Tinha seis cavalos na estrebaria, três vacas, duas novilhas e umas vinte ovelhas.

Compunha-se de vinte e duas pessoas: quatro filhos casados, seis netos, dos quais Petruchka era o único casado, dois bisnetos, três órfãos e quatro noras com os seus filhos.

Era uma dessas raras famílias aldeãs que não se desagregara e que, por tal razão, não efetuara a partilha de seus bens; porém a discórdia já surgira entre as mulheres, como é do costume, e ia surdamente se agravando, de sorte que seria inevitável uma próxima partilha. Dois dos filhos trabalhavam em Moscou como carregadores de água e um terceiro era soldado. Naquela ocasião viviam em casa: o velho, a mulher, o primogênito, que viera de Moscou para a festa da aldeia, o segundo filho, que administrava a propriedade, todas as mulheres e seus filhos e ainda um vizinho e compadre, que ali estava hospedado.

Sobre a mesa pendia uni lampião que aclarava cruamente a louça do chá e uma garrafa de vodca, pratos de salgados e bolos e estendia a luz às paredes de tijolos e o canto devoto, onde estavam os ícones.

Trazendo no corpo só a peliça negra, Vassílii Andréitch ocupava na mesa o lugar de honra. Mordendo o bigode, ainda com traços de neve, repassava os olhos saltados e frios de gavião pelas paredes e pelas pessoas. Além dele, encontravam-se na mesa o velho de barbas grisalhas, e que era completamente calvo, com uma camisa de linho branco tecido em casa, o primogênito vindo de Moscou, homem de robusta compleição, vestindo uma camisa de algodão fino, o filho que dirigia a propriedade, também espadaúdo, e o vizinho, um camponês magro e ruivo.

Comidos e bebidos, os homens se dispuseram a saborear o chá. O samovar fervia ruidosamente. junto ao fogão, dormiam crianças, e, num banco encostado à parede, uma mulher embalava um berço com o pé. A dona da casa, com o rosto todo cortado pelas rugas da velhice e que lhe marcavam até mesmo os lábios, atendia polidamente o visitante. E, no momento em que Nikita entrou na sala, estava ela enchendo um grande copo de vodca, que ofereceu a Vassílii Andréitch com as seguintes palavras:

 

— Não recuse, Vassílii Andréitch, Beba à nossa saúde.

 

Ao ver o líquido claro e sentindo-lhe o cheiro, Nikita, que morria de frio e cansaço, ficou profundamente perturbado. Seu rosto contraiu-se. Sacudiu o gorro e o cafetã e, como se não houvesse ninguém na sala, virou-se para o lado dos ícones, persignando-se três vezes. Só, então, deu atenção aos que estavam na mesa. Cumprimentou primeiramente o velho, depois os convivas e, por último, as mulheres que se achavam junto ao fogão. E, após desejar um geral “Boas Festas”, pôs-se a tirar o cafetã sem olhar para a mesa.

 

— Deve estar roxo de frio, tiozinho! — comentou o primogênito, vendo que as sobrancelhas e as barbas de Nikita estavam salpicadas de neve.

 

Despido o cafetã, Nikita sacudiu-o mais uma vez, pendurou-o num prego perto do fogão e se encaminhou para a mesa. Foi um momento difícil para ele: por um triz não pega o copo para emborcar de uma talagada o líquido claro e cheiroso. Mas deitou um olhar a Vassílii Andréitch, lembrou-se da promessa que fizera, das botas novas que vendera para beber, do filho a quem prometera comprar um cavalo logo que chegasse a primavera e, com um longo suspiro, resignou-se a ficar com a goela seca.

 

— Muito obrigado. Não bebo — disse, franzindo as sobrancelhas.

 

E foi se sentar num banco perto da janela.

 

— Mas por quê? — interrogou o primogênito.

 

— Porque não bebo, nada mais — respondeu sem levantar os olhos. E começou a cofiar as barbas e os ralos bigodes, livrando-os dos pedacinhos de gelo que se haviam acumulado neles.

 

— A bebida não faz bem a ele — esclareceu Vassílii Andréitch, mordendo um bolo e pegando no copo para mais uma golada de vodca.

 

— Se é assim, tomará chá — disse a boa dona da casa.

 

— Você deve estar gelado, criatura. — E virou-se para as mulheres: — Como é? Que esperam para nos passar o samovar?

 

— O chá já está pronto — respondeu uma das noras, que, limpando com um pano o samovar fumegante, levantou-o a custo e colocou-o pesadamente em cima da mesa.

 

Vassílii Andréitch começou a relatar como haviam se perdido e dado, por duas vezes, com os costados ali. Pormenorizou tudo quanto acontecera na procura do rumo certo e enfatizou o encontro com o trenó carregado de camponeses bêbados. O velho se impressionou muito com o extravio, explicou onde e por que acontecera, esclareceu quem eram os indivíduos embriagados e para que lugar deviam ter ido.

 

— Para se ir a Moltchanovka é muito simples. Nem uma criança se engana no caminho. Basta virar quando se chega ao primeiro bosque.

 

— Mas o certo é que se enganaram — ponderou o vizinho.

 

— Não será melhor dormir aqui? Resolvam. Num instantinho arrumaremos camas — disse a velha.

 

— Sim, será muito melhor. Amanhã, bem cedinho, continuariam a viagem — apoiou o velho.

 

— Impossível, meu caro. Tenho negócios Urgentes retrucou Vassílii Andréitch. — Aquilo que a gente pode perder numa hora, às vezes nem em um ano pode recuperar acrescentou, ao se lembrar da floresta e dos negociantes que não trepidariam em lhe dar uma rasteira. E, voltando-se para Nikita: — Havemos de chegar lá, não é mesmo?

 

Nikita não respondeu logo, fingindo estar entretido com as barbas e os bigodes, mas, por fim, murmurou em tom aborrecido:

 

— Desde que não nos percamos outra vez...

 

Estava chateado porque sentia uma grande vontade de beber vodca. O chá poderia atenuá-la, mas ainda não lhe haviam oferecido.

 

— É preciso somente ficar atento à curva. Depois não haverá como errar. A floresta fica logo adiante.

 

— O senhor é quem sabe, Vassílii Andréitch. Por mim, estou pronto — disse Nikita, recebendo o copo de chá, que finalmente lhe estendiam.

 

— Pois está feito. Bebamos o chá e depois vamos em frente!

 

Nikita nada disse. Contentou-se em balançar a cabeça, derramar o chá num pires e esfregar as rudes mãos endurecidas no vapor que se desprendia, para aquecê-las. Depois, levando à boca um torrãozinho de açúcar, saudou o velho e a velha dizendo:

 

— À sua saúde! — e ingeriu duma vez o chá quase fervendo.

 

— Não seria mau que alguém nos levasse até a curva — sugeriu Vassílii Andréitch.

 

— Por que não? Petruchka atrelará um trenó e os guiará até lá — disse o primogênito.

 

— E um grande favor que me presta, amigo. Nem sei como agradecê-lo.

 

— Não tem nada que agradecer, meu amigo. Fazemos isso de coração — disse a velha.

 

O primogênito ordenou:

 

— Petruchiça, atrele a égua.

 

— E para já! — respondeu Petruchka sorrindo, e, tendo apanhado o gorro que estava pendurado num prego, correu para executar o mandado.

 

Enquanto Petruchka preparava o trenó, a conversa, interrompida pela chegada de Vassílii Andréitch, foi reencetada. O velho se queixava ao vizinho de que seu terceiro filho não lhe mandara nada de festas e presenteara a mulher apenas com um lenço francês. E concluiu:

 

— Os moços não respeitam mais nada.

 

— Tem inteira razão! Não se pode mais com eles. Têm a cabeça cheia de coisas! Veja o Diemotchikin. Quebrou o braço do pai! É uma prova da falta de respeito que têm pelos mais velhos.

 

Nikita ouvia tudo atentamente, observando a fisionomia dos que falavam. Teria prazer em participar da conversa, porém, por demais ocupado com o seu chá, restringia-se a assentir com a cabeça. Esvaziava um copo atrás de outro e ia se sentindo melhor à medida que se aquecia.

A conversação voltava ao tema principal. Era evidente que não falavam do caso em geral, mas precisamente do que acontecia na família. O segundo filho, calado e carrancudo, sentado junto do pai, andava a exigir que se promovesse logo a divisão dos bens. Era uma questão que aborrecia todos da família, mas não achavam conveniente discutir assunto tão particular na presença de estranhos, Contudo, o velho não conseguiu mais se conter e, entre lágrimas, declarou que, enquanto vivesse, não faria partilha nenhuma, pois, graças a Deus, desfrutavam grande fartura e, se fossem dividir o que tinham, acabariam pedindo esmolas pelas portas alheias.

 

— Foi exatamente o que aconteceu com os Matvéiev — lembrou o vizinho. — Quando unidos, nada lhes faltava. Depois da partilha são uns mendigos.

 

Este não respondeu e fez-se um constrangedor silêncio, quebrado por Petruchka, que, tendo atrelado a égua, voltara e ficara escutando a conversa com um sorriso nos lábios.

 

— No livro de Paulsen há uma fábula sobre um caso parecido. Um pai desafiou os filhos a quebrarem um feixe de vimes. Nenhum deles conseguiu. Então o pai, separando as hastes, foi partindo uma a uma e num instantinho o feixe estava quebrado. — Com um sorriso maior, arrematou: — E um caso parecido! — E, logo, virou-se para os visitantes: Está tudo pronto para a partida.

 

— Como, está tudo pronto? ótimo! Então é marchar!

 

— exclamou Vassílii Andréitch. — E quer um bom conselho, vovozinho? Não faça partilha nenhuma. Foi você quem juntou tudo o que tem, não foi? Pois, então, é o único dono de tudo. Procure o juiz de paz e ele dirá o que deve ser feito.

 

— Meu filho cria tantas complicações, tantas — falou o velho com voz chorosa — que a gente não sabe o que há de fazer. Parece que é movido pelo diabo!

 

Tendo terminado o quinto copo de chá, Nikita não o emborcou sobre o pires; colocou-o bem à vista na esperança de que o enchessem de novo. Mas o samovar já estava vazio e a dona da casa não lhe ofereceu mais nada, e, além disso, o amo já começava a se aprontar. Não havia outro remédio se não se conformar e Nikita levantou-se, recolocou no açucareiro o torrão de açúcar que roera de todos os lados, enxugou com a aba do cafetã o suor que escorria do rosto e vestiu a peliça. Pronto, suspirou profundamente, agradeceu aos donos da casa pela hospitalidade, cumprimentou todos e saiu da sala iluminada e aquecida para o vestíbulo sombrio, frio e coberto de neve, onde o vento uivando penetrava pelas frestas da porta e das paredes. E desceu para o pátio escuro como breu.

Petruchka, enfiado numa peliça, estava de pé ao lado da égua, no meio do pátio, e recebeu-o, sorrindo, com uns versos do livro de Paulsen:

 

“A tempestade escurece o céu

 

Levantando turbilhões de neve,

 

E ora uiva como uma fera,

 

ora chora como uma criança”.

 

Nikita aprovava, balançando a cabeça, enquanto desamarrava as rédeas. Vassílii Andréitch com uma o velho veio acompanhar no vestíbulo para que os lanterna na mão. Quis pousá-la viajantes pudessem enxergar melhor, porém, a ventania apagou-a logo, Era patente que a nevasca estava mais forte do que antes. sou vassílii Andréitch.

“Que tempo desgraçado!”, pensou.

Talvez fosse mais prudente pernoitarem ali. Mas os negócios? Não, não era possível! Demais, tudo já estava pronto para a partida, a égua atrelada... Haviam de se safar daquela. “Deus é grande”

O velho também achava perigosa a viagem com aquele tempo. Melhor fariam se ficassem. Conselhos tinha dado, sem que lhe dessem ouvidos, achou inútil insistir mais e pensou: “Talvez a velhice esteja me pondo medroso. Não vai acontecer nada de mau. E, se eles se vão, poderemos dormir mais cedo, sem amolações...”

Quanto a Petruchka, a idéia do perigo não lhe passava pela cabeça: conhecia o caminho como a palma das mãos!

E, além disso, os versos que recitara incutiam-lhe mais coragem, pois descreviam exatamente o que ele estava vendo com os seus próprios olhos.

E Nikita, conquanto não tivesse a mínima vontade de partir, desde muito estava habituado a não ter vontade e a obedecer à dos outros. Assim, nada impediu que prosseguissem viagem.

 

V

 

As apalpadelas na escuridão, pois a lua ainda não aparecera, Vassílii Andréitch acomodou-se no trenó e tomou as rédeas.

 

— Vá na frente — pediu a Petruchka.

 

O moço, ajoelhando-se no trenó, que era baixo, largo e sem assento, tocou a égua. O Baio, que se pusera a relinchar com a presença da égua, lançou-se em seu encalço. E os dois trenós se foram pela rua afora.

Vassílii Andréitch e Nikita iam pelo mesmo caminho que os trouxera. Tornaram a passar pela casa onde as roupas na corda, inteiramente congeladas, rangiam batidas pelo vento sem que mais pudessem ser vistas na escuridão; tornaram a passar diante do celeiro, que quase desaparecera sob a neve, e pelas pereiras, que, vergando sob as rajadas do vento, gemiam mais que nunca, e, finalmente, entraram, mais uma vez, num verdadeiro mar de neve, cujas enfurecidas ondas os assaltavam por todos os lados.

A ventania era tão poderosa que, quando os pegava de lado, fazia o trenó se inclinar e empurrar o cavalo para o lado contrário.

Petruchka, na dianteira, estimulava a bela égua com berros estridentes e o Baio tudo fazia para alcançá-la.

Assim já haviam andado uns dez minutos, quando Petruchka voltou-se e gritou-lhes algumas palavras, que nem Vassílii Andréitch nem Nikita conseguiram compreender por causa do vento. Mas perceberam que tinham chegado à falada curva. Realmente, Petruchka voltava pela direita e sentiram que o vento, até ali os fustigando de lado, vinha bater- lhes em cheio na cara.

Apesar da densa neve, entreviram, à direita, uma mancha negra — era o mencionado bosque.

 

— Que Deus os leve!

 

— Muito obrigado, Petruchka!

 

— “A tempestade escurece o céu!” — declamou Petruchka pela última vez.

 

— Este camarada tem mania de dizer versos! — comentou Vassílii Andréitch, e bateu de leve com as rédeas nas ancas do Baio.

 

— É um bom rapaz. Um verdadeiro camponês — disse Nikita.

 

E avançaram rapidamente.

 

Enroscado na peliça, a cabeça tão enterrada nos ombros que a barba lhe espetava o pescoço, Nikita guardava absoluto silêncio, a fim de não perder nem um pouco do bom calor que armazenara com tanto chá bebido. Divisava na sua frente as duas linhas retas dos varais e constantemente se enganava, cuidando que fossem sulcos da estrada.

Divisava ainda a garupa bamboleante do Baio, com a cauda em nó e que o vento impelia sempre para o mesmo lado, e, mais adiante, a cabeça do animal e o seu pescoço com a crina eriçada. De quando em quando, procurava os marcos, ora de um lado, ora de outro, para se certificar de que continuavam na estrada e que, portanto, bastava confiar no cavalo para nada temer.

Vassílii Andréitch guiava de modo a permitir que o cavalo se mantivesse por si mesmo na direção certa. Mas o Baio, apesar de haver descansado, parecia trotar de má vontade, e várias vezes se desviou do meio da estrada, obrigando o condutor a usar as rédeas para endireitá-lo.

“Lá está um marco à direita...” outro mais outro ia contando Vassílii Andréitch. “A floresta fica mais adiante...”, raciocinava, tentando ver o que era a massa negra que se elevava na sua frente. Mas o que pensava ser a floresta não era mais do que um bosquezinho. Passaram por ele e percorreram mais uns trinta metros sem verem mais nenhum marco nem a almejada floresta. “Ela só pode estar ali dizia de si para si Vassílii Andréitch. E, animado pela vodca e pelo chá, não cessava de instigar o animal, que, dócil e corajoso, ora a trote, ora mais devagar, ia sempre na direção que lhe imprimiam, não ignorando estar em rumo errado.

Transcorreram mais dez minutos e a floresta não aparecia.

 

— Outra vez nos perdemos — disse Vassílii Andréitch detendo o.

 

Sem falar nada, Nikita desceu do trenó, segurando o cafetã, que o vento ora colava ao corpo, ora abria todo, e começou a andar na neve para um lado e para o outro.

Por três vezes sumiu da vista do amo. Por fim, voltou e pediu as rédeas.

 

— Temos de tomar pela direita — decidiu firme e severamente, fazendo o cavalo se virar.

 

— Está bem, tomemos a direita — concordou o amo transferindo sem relutância as rédeas e logo escondendo as mãos geladas dentro das mangas.

 

Nikita não lhe deu resposta, mas gritou para o Baio:

 

— Como é, meu querido! Mais um arrancozinho!

 

O cavalo, porém, não atendia ao apelo e ia passo a passo, por mais que Nikita sacudisse as rédeas. Em certos pontos, enterrava-se até os joelhos e o trenó só avançava aos arrancos. Nikita tomou o chicote, que pusera na frente do trenó, e aplicou umas lambadas no lombo do Baio. O brioso animal, não habituado a castigos, fez um tremendo esforço e começou a trotar. Logo, porém, diminuiu o andamento e voltou a ir a passo. Assim prosseguiram por uns cinco minutos. Estava tão escuro e o vento levantava tais nuvens de neve, que em certos momentos não viam nada dentro do trenó e, em outros, parecia que ele parara e que era a planície que se deslocava para trás. Súbito, o cavalo estacou bruscamente como se pressentisse um perigo.

Nikita largou as rédeas, desceu e adiantou-se para averiguar o motivo da parada; nem ultrapassara a cabeça do cavalo, quando escorregou...

“Pare! Pare! Pare!”, dizia a si mesmo, fazendo o possível para parar. Mas não conseguia firmar os pés e só parou quando eles se prenderam na grossa camada de neve que o vento acumulara no fundo da ravina. A espessa neve que cobria os bordos da ravina, abalada pela queda de Nikita, desprendeu-se e caiu sobre ele, quase o sepultando.

Desvencilhou-se, começou a se sacudir todo e berrou:

 

— Então a coisa era esta, não é?

 

— Nikita! ó Nikita! — gritava lã de cima o amo.

 

Mas Nikita não respondia. Continuava se sacudindo e procurando o chicote, que lhe escapara da mão quando rolara a ribanceira. Custou, mas encontrou-o e tratou de subir pelo mesmo lugar por onde despencara, Foram em vão as tentativas — não conseguia encontrar um ponto de apoio.

Não perdeu a cabeça, e procurou, andando no fundo da ravina, um lugar propício à escalada. Pouco além donde caíra, encontrou-o e, com imensa dificuldade, quase engatinhando, atingiu o alto da ravina. Cautelosamente pela beira, caminhou para o lado onde supunha estar o trenó. Não o encontrou. Mas como estivesse andando contra o vento, antes de vê-lo, ouviu os gritos de Vassílii Andréitch e os relinchos do Baio.

 

— Já vou lá! já vou lá! Por que esse berreiro todo, meu Baio? — bradou ele.

 

E só quando chegou pertinho do trenó é que viu o cavalo e, ao lado dele, Vassílii Andréitch, que lhe pareceu enorme.

 

— Onde se meteu? Raios o partam! Precisamos voltar sem demora. Vamos ver se ao menos conseguiremos chegar a Grichkino — e Vassílii Andréitch estava colérico.

 

— Chegar a Grichkino? Outra coisa não queria eu! Mas de que maneira? Ali na frente há uma ravina que não tem tamanho. Se cairmos nela, de lá não sairemos. Rolei até o fundo e sei bem o quanto me custou safar-me.

 

— Mas aqui é que não iremos ficar! Temos que tocar para diante — e Vassílii Andréitch falava em tom categórico.

 

Nikita nada retrucou. Sentou-se no trenó, de costas para o vento, tirou as botas e sacudiu a neve que as enchia.

Em seguida apanhou um punhado de palha e com todo o cuidado tapou, pelo lado de fora, um buraco que havia no pé esquerdo.

O amo emudeceu como se dependesse em tudo, agora, da esperteza de Nikita, que, após se calçar de novo, subiu no trenó, enfiou as luvas, pegou nas rédeas e, manobrando o cavalo, fez que ele avançasse lentamente pela beira da ravina. O Baio, porém, não havia dado nem cem passos, quando, de súbito, empacou outra vez. Havia ali outra ravina.

Nikita desceu e foi procurar outra passagem. Demorou bastante tempo, mas, afinal, reapareceu no lado oposto àquele donde tinha partido.

 

— Como é, Vassílii Andréitch, ainda está vivo? — perguntou aos berros.

 

— Estou aqui! — respondeu o amo. — Há alguma coisa?

 

— Não consigo encontrar o caminho. Está escuro como o diabo! Há ravinas a cada passo. Precisamos andar no sentido do vento.

 

Avançaram mais um pouco. Novamente Nikita apeou, arrastou-se pela neve, farejando uma escapatória. Ia, vinha, por fim, sem fôlego, parou junto ao trenó.

 

— Que há agora? — perguntou Vassílii Andréitch.

 

— Há que não me agüento mais. E o Baio também já não vai lá das pernas.

 

— Que vamos fazer, então?

 

— Espere um pouco.

 

Nikita mais uma vez se embarafustou na névoa, mas desta feita não se demorou. Colocou-se na frente do cavalo e comandou:

 

— Siga-me!

 

O amo não dava mais ordens, obedecendo sem restrições a tudo quanto o empregado decidia.

 

— Siga-me! — gritou novamente Nikita.

 

Deu um passo para a direita, segurou o Baio firmemente pelo freio e, rápido, puxou-o para o monte de neve que cobria as bordas da ravina.

A princípio, o animal relutou, mas acabou cedendo ao pulso de Nikita e, de um salto, tentou vencer o obstáculo. Não conseguiu, e enterrou-se na neve até o pescoço.

 

— Desça daí! — gritou Nikita para o amo, que continuava muito bem instalado no trenó.

 

Vassílii Andréitch desceu sem tugir nem mugir. Nikita atracou-se a um varal e empurrou o trenó, que ficou um pouco sobre a anca do animal.

 

— Está duro, irmãozinho — e afagava o cavalo — mas que posso fazer? Vamos! Mais uma forcinha! Muito bem! Outra!

 

O Baio deu duas arrancadas, mas não conseguiu subir. Recuou, ficou imóvel como se estivesse refletindo.

 

— Como é, meu anjo, não podemos ficar assim — disse Nikita ao cavalo. — Vamos! Mais uma vezinha.

 

Novamente se atracou a um varal, enquanto Vassílii Andréitch empurrava o outro. O Baio sacudiu a cabeça, tomou impulso e arremeteu.

 

— Ótimo! ótimo! Não tenha medo! Você não vai morrer não! — berrava Nikita.

 

Um segundo arranco, um terceiro, e o valente cavalo transpôs o monte de neve. Parou, ofegante, e sacudiu-se todo.

Nikita queria continuar andando, mas Vassílii Andréitch arquejava de tal forma sob as duas peliças que, com as pernas trôpegas, caiu pesadamente dentro do trenó.

 

— Deixe-me tomar fôlego — pedia, desatando o nó do lenço, que, na aldeia, amarrara em tomo da gola da peliça.

 

— As coisas melhoram. Pode ficar aí, enquanto eu guio — respondeu o criado.

 

Vassílii Andréitch acomodou-se no trenó. Nikita segurou o cavalo pelo freio, obrigou-o a descer uns dez passos, depois levou-o para um lugar mais alto e parou.

Não estavam no fundo da ravina, onde a neve, forçada pelo vento, poderia sepultá-los. O lugar escolhido era um declive, que ficava razoavelmente abrigado da ventania pelos rebordos da ravina. Em certos momentos o vento parecia abrandar, mas tais calmarias eram curtas e, depois delas, como se quisesse recuperar o tempo perdido, o vendaval recrudescia com uma violência indescritível, erguendo turbilhões de neve com uma fúria ainda mais feroz. Uma dessas rajadas caiu sobre eles precisamente quando Vassílii Andréitch, tendo se recuperado um pouco, se aproximava de Nikita para lhe perguntar o que tencionava fazer.

Agacharam-se, involuntariamente, e esperaram que a cólera do vento se aplacasse. O Baio murchara as orelhas, contrariado, e sacudia a cabeça. Assim que o vento diminuiu, Nikita tirou as luvas, meteu-as no cinto, esquentou as mãos com o próprio bafo e começou a desatrelar o cavalo.

 

— Que vai fazer? — indagou, inquieto, o amo.

 

— Simplesmente desatrelá-lo. Que posso eu fazer mais? Estou cansadíssimo! — retrucou Nikita, como que se desculpando.

 

— Então não vamos continuar?

 

— Continuar para onde? Acabaremos matando o cavalo. Veja só o estado do pobrezinho. Mal pode mexer com as pernas — ponderou Nikita, mostrando o Baio, que estava com a cabeça abaixada, submisso e pronto para tudo, respirando penosamente, os flancos ensopados de suor.

 

— Temos que passar a noite aqui mesmo — prosseguiu, desafivelando as correias, como se dissesse que iam tomar quartos numa hospedaria.

 

Terminou a sua obra. O amo perguntou:

 

— Acha que não iremos morrer de frio?

 

— Tudo é possível. Mas que poderemos nós fazer de melhor? — respondeu Nikita.

 

VI

 

Vassílii Andréitch sentia-se bastante aquecido debaixo das duas peliças e ainda mais depois do esforço de ajudar a empurrar o cavalo e o trenó no monte de neve. Mas, quando viu que iria passar a noite ao relento, um arrepio de frio percorreu-lhe o corpo. Para se acalmar, sentou-se no trenó e sacou do bolso cigarros e fósforos.

Enquanto isso, Nikita desatrelava o Baio. Desapertara a barrigueira, o selim, as rédeas e os tirantes, e retirou a cabeçada, falando o tempo todo com o cavalo para encorajá-lo.

 

— Vamos, saia daí! — dizia ele, puxando-o para fora dos varais.

 

— Vou amarrar você bem amarradinho, vou tirar o freio e lhe dar um pouco de palha.

 

Ia fazendo o que dizia e não cessava de falar.

 

— Logo que você tiver comido, vai se sentir outro.

 

Mas era evidente que as palavras de Nikita não sossegavam o Baio, que escarvava a neve, procurava colar-se ao trenó com o traseiro para o vento e esfregava a cabeça na manga de Nikita. Com um imprevisto movimento, mordeu um bocado da palha mas dir-se-ia que o seu intuito era o de não contrariar Nikita com uma recusa; logo, porém, devia ter chegado à conclusão de que não era hora para se pensar em comida, pois largou a palha, que o vento, imediatamente, espalhou.

 

— Vamos, agora, botar um sinal aqui — disse Nikita.

 

Colocou o trenó com a traseira enterrada na neve, e, de frente para o vento, ligou os dois varais com uma correia, levantou-os e apoiou-os firmemente contra a parte dianteira do veículo.

 

— Está uma maravilha! Se a neve nos soterrar, facilmente verão pelos varais e nos desenterrarão — explicou ele, calçando as luvas. — Era assim que os antigos faziam e eu não esqueci a lição.

 

Vassílii Andréitch abrira a peliça e, protegendo-se do vento com as abas, procurava acender um cigarro. Riscou um fósforo atrás do outro, mas as mãos tremiam e não conseguia acendê-lo. Por fim, pôde riscar um, que iluminou por breve instante a gola da peliça, a mão com o valioso anel no indicador e a palha de aveia, salpicada de neve, que aparecia sob a manta. Ávido, aspirou duas vezes o cigarro, tragou a fumaça e soprou-a por entre os bigodes. Ia dar outra tragada, quando o vento arrancou-lhe o cigarro da boca. Mas as poucas baforadas foram suficientes para levantar o ânimo de Vassílii Andréitch.

 

— Ora bem! já que não há outro jeito, passemos a noite aqui mesmo — declarou decididamente. — Mas vou arranjar uma bandeira.

 

Apanhou o lenço, que minutos antes tirara e jogara no fundo do trenó, descalçou as luvas, trepou na parte dianteira do veículo, esticou-se na ponta dos pés para alcançar a correia que prendia os varais e nela atou com firmeza o lenço. Incontinenti, o vento agitou-o com violência, fazendo-o estalar, ora colocando-o contra os varais, ora enfunando-o como a vela de um barco.

 

— Ficou formidável! — exclamou ele mesmo, entusiasmado com a sua façanha e acomodando-se no trenó. Se ficássemos bem juntinhos, resistiríamos melhor ao frio ajuntou. — Mas não há espaço para dois.

 

— Eu me defenderei — respondeu Nikita. — Mas é preciso não esquecer do cavalo, coitadinho, que está alagado de suor. Com licença — continuou, aproximando-se do trenó e tirando a manta sobre a qual Vassílii Andréitch se sentava.

 

Dobrou-a e, tendo tirado o selim, cobriu o Baio com ela.

 

— Vai ficar quentinho que é um regalo, seu bobinho! — disse para o cavalo, enquanto recolocava o selim por cima da manta. Acabada a obra, dirigiu-se para o trenó: — Não vai precisar deste saco velho, vai? Também quero um pouco de palha.

 

E, tirando a serapilheira e a palha, que estavam debaixo de Vassílii Andréitch, foi para trás do trenó, cavou um buraco na neve, forrou-o com a palha, puxou o gorro até o nariz, embrulhou-se bem no cafetã, cobriu-se com a serapilheira e se sentou na palha, encostando-se no trenó, que o resguardava um pouco do vento e da neve.

Vassílii Andréitch acompanhava aquela movimentação, desaprovadoramente abanando a cabeça. Aliás, sentia um grande prazer em reprovar, sempre que possível, a ignorância e a burrice dos camponeses.

E achou que estava na hora de, por seu turno, se instalar convenientemente para varar a noite.

Juntou a palha que ainda restava no fundo do trenó, fez com ela uma espécie de almofada para se apoiar de lado, enfiou as mãos nas mangas e deitou-se com a cabeça encostada na parte traseira do trenó, evitando assim a incidência cortante do vento.

Sono não tinha. Pensava. Pensava sempre na mesma coisa, naquilo que constituía o objetivo, o significado, a alegria e o orgulho de toda a sua vida — o dinheiro que ganhara e que ainda podia ganhar, o dinheiro dos seus conhecidos, e como tinham conseguido fazer fortuna, e as maneiras com que, tal como os outros, poderia acumular ainda mais dinheiro. A compra da floresta em Goriatchkino tinha para ele importância capital. Esperava obter largos lucros com o negócio, possivelmente uma dezena de milhares de rublos. E começou a avaliar, mentalmente, a floresta que inspecionara no outono e cujas árvores contara numa ex-tensão de dois hectares como base para calcular o total.

“Os carvalhos servirão para trenós e para vigas. Cada hectare não dará menos de uns trinta metros cúbicos de madeira. A floresta tem cinqüenta e seis hectares... De cada hectare tirarei brincando vinte e cinco rublos. Bem explorada, portanto, renderá mais de doze mil rublos.” Mas não podia ter uma quantia exata, pois lhe faltava o ábaco. “De qualquer maneira, não darei mesmo dez mil rublos por ela, mas sim oito mil e nem mais um níquel. E ainda descontarei as clareiras. Vou subornar o agrimensor com cem ou cento e cinqüenta rublos e ele medirá uns cinco hectares de clareiras. Sim, o proprietário ficará satisfeito com os oito mil rublos. Dou três mil de entrada na hora e ele não discutirá mais” — e apalpou a carteira. “Mas como nos fomos perder depois da curva? Só Deus sabe! Pelo que andamos já devíamos estar na floresta, bem perto da cabana do guarda-florestal. Mas não se ouve o latido dos cães. Os bandidos não ladram exatamente quando precisamos deles!”

Abaixou um pouco a gola da peliça e apurou o ouvido. Nada, fora o assobio do vento, os estalidos do lenço amarrado nos varais e o barulhinho da neve caindo sobre o trenó. E tornou a se resguardar.

“Se adivinhássemos o que nos estava reservado, teríamos pernoitado na aldeia. Mas não há de ser nada. Chegaremos a tempo. Perderemos somente um dia. E, com uma tempestade assim, ninguém é doido de se arriscar.” E acudiu-lhe que, no dia , o açougueiro tinha de prestar contas.

“Ele gosta de vir pessoalmente fazer o pagamento, mas não me encontrará. E minha mulher não sabe tratar de negócios. Na verdade, é uma parva! Não sabe nada e nem sequer tem boas maneiras.” Recordou como se embrulhara toda na véspera, quando o chefe do distrito os fora visitar. “É uma mulher vulgar! Não tem o menor traquejo! Que é que ela já viu? Quando meus pais viviam, que era a nossa casa. Uma coisa à toa! Um barracão, um pouso... e era tudo o que um camponês rico possuía naquele tempo. E agora? Quanto consegui em quinze anos! Tenho um armazém, duas tavernas, um moinho, um celeiro cheio de trigo, duas glebas arrendadas e uma casa com um galpão coberto de chapas de zinco, em suma, uma bela propriedade!” — e Vassílii Andréitch era todo orgulho ao monologar. “Está tudo completamente diferente do tempo de meu pai! De quem é que se fala mais em toda a região? De Brekhunov! E por que razão? Porque trabalho no duro! Não sou como os outros, uns mandriões que só pensam em bobagens. Não durmo de noite. Com bom ou mau tempo, estou na labuta. E é assim que os negócios prosperam. Os outros pensam que podem ganhar dinheiro na moleza... Estão muito enganados! Quem quiser ter alguma coisa de seu tem de suar, tem de quebrar a cabeça, tem de passar a noite em claro, como agora eu aqui em pleno campo. Quando a gente pensa muito, o sono foge. E incrível como há pessoas que pensam que ganhar dinheiro é uma questão de sorte! Que sorte? Que trabalho! Os Mironov estão riquíssimos. E me digam se foi acaso? Trabalhe que Deus o ajudará! Só peço a Deus que me dê saúde!”

E somente o pensar que poderia ficar milionário como aquele Mironov perturbou de tal maneira Vassílii Andréitch que ele sentiu necessidade de se abrir com alguém... Mas não havia ninguém com quem se desabafasse... Ah! Se tivesse ficado em Goriatchkino! Quanto assunto não teria para discutir com o proprietário! Mostraria quem era Brekhunov!

“Que raio de vento! Vamos ficar tão cercados de neve que amanhã não poderemos sair daqui”, pensou, prestando atenção às rajadas de neve que açoitavam a parte da frente do trenó. Levantou a cabeça e rodou o olhar em volta. Na esbranquiçada penumbra só se distinguia o vulto escuro do Baio, a cabeça erguida, o lombo coberto pela manta que o vento sacudia, e o grosso rabo com um nó. Em torno, por todos os lados, pela frente e por trás, a neve era uma convulsiva cortina leitosa, que em certos instantes parecia se esgarçar, mas que logo se tornava mais densa.

“Fiz muito mal em atender a Nikita”, concluiu. “Devia tê-lo obrigado a marchar para a frente. Haveríamos de chegar a um lugar qualquer! Pelo menos poderíamos ter voltado a Grichkino e dormido lá. Ficaríamos em casa de Tarass. Ao passo que agora temos de gramar a noite inteira aqui. Ah, como foi aquilo que eu lembrei de agradável? Sim, já sei! É que Deus abençoa os que trabalham e não dá nada aos preguiçosos e aos idiotas... Ah, seria bom dar uma tragada!”

Sentou-se, sacou a cigarreira do bolso e se deitou de bruços, no fundo do trenó, procurando defender, com a gola levantada, a chama do fósforo. O vento, porém, tal como fizera antes, apagava um palito atrás do outro. Mas sempre conseguiu que um vingasse e se pôs a fumar, e o simples fato de ter acendido o cigarro encheu-o de contentamento. Embora o vento consumisse o cigarro mais do que ele, ainda pôde dar umas duas ou três chupadas, que muito o reanimaram. Deitou-se de novo, cobriu-se tão cuidadosamente quanto da outra vez e logo começou a rememorar o passado e a sonhar com as suas riquezas futuras. De repente, seus pensamentos se embrulharam e ele mergulhou num pesado sono.

Mas, de súbito, como se tivesse levado um choque, despertou. Fora o Baio que tentara tirar um bocado de palha sobre a qual estava deitado, ou fora um abalo interior?

Fosse lã como fosse, o certo é que ele acordou e sentiu o coração a palpitar com tal intensidade, que dava a nítida impressão de que o trenó tremia debaixo dele. Abriu os olhos, nada mudara à sua volta, mas pareceu-lhe que aclarara um pouco. “Sim, começa a clarear. O amanhecer não tarda”, conjeturou. Mas logo viu que a claridade era devida à lua que se mostrava no céu. Soergueu-se e olhou para o Baio, que continuava de pé, a traseira voltada para o vento, tremendo. Coberta de neve, a manta tombara para um lado; a retranca escorregara e se via melhor a sua cabeça, polvilhada de neve e com a crina arrepiada. Vassílii Andréitch dobrou-se sobre a parte traseira do trenó para ver o que era feito de Nikita. O criado permanecia na mesma posição. Os pés e a serapilheira com que se cobrira haviam desaparecido sob grossa camada de neve.

“Queira Deus que não morra de frio! Suas roupas não agasalham nada! Se morrer vão dizer que fui eu o culpado! Que gente burra! Como a instrução faz falta!”, pensou Vassílii Andréitch. Imaginou tirar a manta que cobria o cavalo e colocá-la sobre Nikita, mas logo desistiu, pois iria sentir frio quando se levantasse e o cavalo poderia ficar gelado. “Ora bolas, por que fui trazê-lo comigo? A culpa foi toda dela”, e se lembrou da mulher, a quem não tinha amor. E acomodou-se de novo no fundo do trenó.

“Meu tio passou uma noite inteira assim e não sofreu nada”, acudiu-lhe de repente. E a seguir um outro caso veio à mente: “É, mas Sevastiavos, coitado, não escapou. Quando removeram a neve que o soterrava, estava morto, duro como um pedaço de carne congelada. Se eu tivesse ficado em Grichkino não estaria passando este aperto”.

Embrulhou-se prudentemente na peliça de modo a não perder o calor que seu corpo ainda armazenava e, fechando os olhos, tentou readormecer. Mas, apesar de todos os esforços, não conseguiu, sentia-se, pelo contrário, insone e agitado. Recomeçou a relacionar as posses que tinha e o quanto lhe deviam, elogiou-se e rejubilou-se pela excelente situação que desfrutava, mas, a todo momento, seus pensamentos eram cortados por um estranho terror e pelo arrependimento de não ter pernoitado em Grichkino, “Oh, outros galos cantariam se eu estivesse deitado numa boa cama agora, bem coberto, bem quentinho.”

Virou-se e revirou-se vezes sem conta, nunca encontrando uma posição satisfatória. Levantava-se, deitava-se de outra maneira, tornava a cobrir os pés, ficava sossegado um minuto. Logo sentia que as botas estavam apertando ou que o vento penetrava por uma abertura qualquer de sua roupa.

Voltava a pensar, muito aborrecido consigo mesmo, como poderia estar gozando o bom calor daquela sala em Grichkino. E levantava-se, virava-se, embrulhava-se melhor na roupa e tomava a se deitar.

Em dada hora, acreditou ter ouvido o canto dos galos ao longe. Alegre, abaixou a gola da peliça e se pôs a ouvir com a maior atenção. Mas, bastante decepcionado, não percebeu nada além do barulho que o lenço fazia agitado pelo vento e o insistente bater da neve no trenó.

Nikita não fizera o mínimo movimento, desde que se ajeitara atrás do trenó. Nem tomara conhecimento das duas ou três perguntas que o amo lhe endereçara. “Aquele nem se importa com o que está acontecendo! Certamente está ferrado no sono”, pensava Vassílii Andréitch, um tanto despeitado e dobrando-se sobre a parte de trás do trenó, a fim de observar Nikita coberto de neve.

Vassílii Andréitch se levantou e se deitou pelo menos umas vinte vezes. Parecia-lhe que aquela noite não acabava mais.

“Agora, sem dúvida, o dia vai raiar”, murmurou, levantando-se e passeando os olhos em redor. “Se eu soubesse que horas são! Mas se abrir a peliça vou sentir mais frio. Assim que perceber que está amanhecendo, crio alma nova. Poderíamos atrelar logo o cavalo e zarpar.”

No íntimo, Vassílii Andréitch não ignorava que o dia devia estar ainda bem longe, mas sentia se acentuar um medo indefinível e ansiava por, ao mesmo tempo, aplacá-lo e enganar-se a si próprio. Cauteloso, desabotoou a peliça e lentamente foi enfiando a mão por debaixo da roupa, tateando, tateando até chegar ao colete. A muito custo tirou o relógio de prata com flores esmaltadas na tampa e procurou ver as horas. Mas não distinguia o mostrador.

Apoiou-se nos cotovelos e nos joelhos, como já fizera antes para acender o cigarro, e, mais cauteloso ainda, abriu a caixa de fósforos, escolheu pelo tato o palito que lhe pareceu mais grosso e riscou-o sem que ele falhasse. Chegou o relógio para a chama e consultou-o. Não podia acreditar no que marcavam os ponteiros... Meia-noite e dez! A noite apenas principiava...

 

— Oh! esta noite não tem fim! — gemeu Vassílii Andréitch, sentindo um arrepio de frio correr-lhe pela espinha. Tornou a se abotoar, cobriu-se meticulosamente, se ajeitou no canto do trenó, disposto a esperar com a máxima paciência.

 

Às voltas tantas, apesar do ulular da ventania, ouviu nitidamente um rumor característico — o rumor de um ser vivo. O ruído foi aumentando, conservou certa regularidade, depois baixou de intensidade. Era um lobo, não havia a menor dúvida. E devia estar bem perto, pois se ouvia claramente o barulho que fazia com as mandíbulas. Afastando a gola, Vassílii Andréitch pôs-se à escuta. O Baio também ouvira e empinara as orelhas. A fera uivou e o cavalo sapateou e relinchou como advertindo a proximidade do perigo. Depois do incidente, Vassílii Andréitch não somente não pôde dormir como teve de lutar incessantemente contra a inquietação que o dominava. Procurava encaminhar os pensamentos para seus negócios, para a sua situação financeira e para os seus bens, mas o medo o empolgava num crescendo.

O arrependimento de não ter pernoitado em Grichkino não o largava.

“Que a floresta fique como está e Deus faça dela o que quiser! já tenho tantos negócios bons que não preciso dela, graças a Deus! Eu devia é ter pernoitado em Grichkino!”, repisava. “Dizem que a gente sente mais frio depois de beber. E eu bebi.”

Mas, sentindo o corpo tremer, não sabia na verdade se era de frio ou de medo. Quis se cobrir e se acomodar, como já fizera várias vezes antes, mas foi impossível. Não era capaz de se manter quieto. Tinha ímpetos de se levantar, de fazer qualquer coisa para sufocar o pânico, que progressivamente aumentava e contra o que se sentia impotente.

Mais uma vez recorreu ao cigarro. Mas só restavam três fósforos, os piores da caixa, e nenhum acendeu.

 

— Que o diabo te consuma, desgraçado! — praguejou alto sem saber contra quem. E, esmagando o cigarro, atirou-o longe. Quis também jogar fora a caixa de fósforos, mas, pensando melhor, meteu-a no bolso.

 

Tamanho pavor o possuía, que não pôde mais ficar onde estava. Saiu do trenó e, de costas para o vento, desamarrou o cinto e tornou a amarrá-lo mais apertadamente.

“Que me adianta ficar aqui à espera da morte? Vou montar no Baio e tocar para a frente!”, acudiu-lhe de repente. “O Baio é esperto e há de se safar. Quanto àquele ali (e pensava em Nikita), tanto faz morrer como viver. A vida, para um pobre-diabo como ele, não é nada divertida, não tem importância. Comigo, o caso é diferente. Graças a Deus tenho os meus guardados e...”

Desamarrou o Baio, colocou o freio e tentou montá-lo, porém, as peliças e as botas estavam tão pesadas que não conseguiu se alçar. Trepou, então, no trenó para alcançar o lombo do animal, mas o trenó balançou com o seu peso e ele caiu. Foi mais bem-sucedido na terceira tentativa: puxou o cavalo para perto do trenó, fincou o pé prudentemente no rebordo do veículo e conseguiu se deitar de barriga no lombo do cavalo. Assim ficou alguns momentos, depois, com dois ou três impulsos, passou uma das pernas por cima do animal. Afinal, montou-o. Com as manobras de Vassílii Andréitch, o trenó balançou, despertando Nikita, que se levantou um pouco. Vassílii Andréitch julgou que ele lhe dizia qualquer coisa e gritou:

 

— Seria eu uma besta quadrada se fosse atender a gente imbecil como você! Que é que está pensando? Acha que vou morrer assim a troco de coisa nenhuma? Está muito enganado!

 

Prendeu as abas da peliça com os joelhos, para que o vento não o estorvasse, e tocou o Baio na direção em que imaginava encontrar a floresta e a cabana do guarda-florestal.

 

VII

 

Nikita permanecera imóvel desde que, envolvido na serapilheira, se sentara atrás do trenó. Como todos aqueles que vivem mais perto da natureza e já experimentaram a miséria, tinha muita paciência e poderia esperar horas e dias inteiros sem irritação e sem nervoso. Bem que ouvira as interpelações do amo, mas não respondera por não sentir nenhuma vontade de se mexer ou de falar. Conquanto ainda se conservasse aquecido devido ao chá que tomara e ao exercício que praticara ao forçar o Baio a transpor o monte de neve, não se iludia que tal calor pudesse durar muito e sabia que não teria forças para se reaquecer, movimentando-se, já que se sentia tão esgotado quanto um cavalo que pára depois de um violento esforço e fica incapaz de prosseguir mesmo à custa de chibatadas e que o amo compreende ser preciso alimentá-lo para pô-lo em condições de trabalhar.

Gelado tinha o pé que calçava a bota furada e o dedão já estava insensível. Aliás, o frio lhe ia invadindo, pouco a pouco, o corpo todo. Veio-lhe ao espírito a idéia de que podia e que até seria certo morrer naquela noite, mas não a achou desagradável ou assustadora. Não a achou desagradável porque sua existência nunca fora boa, pelo contrário, sempre fora uma contínua servidão e dela já principiava a ficar cansado, Não tinha o menor medo porque, além dos senhores a quem servira na terra, e neles se incluía Vassílii Andréitch, sempre sentira que havia um outro maior, Aquele que o pusera no mundo, e sabia que, mesmo na morte, dependeria Dele, a quem não deveria temer de modo algum.

“É triste ter de abandonar tudo aquilo que nos cercou na vida e a que estávamos acostumados! Mas que remédio? É preciso que nos acostumemos também às novidades.”

E, de repente, se lembrou dos seus pecados. Acudiram-lhe à mente as suas carrasparias, os maus-tratos que infligira à mulher, as blasfêmias incontidas, as poucas vezes que aparecia na igreja, o jejum que não observava e todos os pecados que o padre lhe imputava no confessionário.

“Sim, tenho pecados de sobra! Mas serei mesmo culpado ou foi Deus quem me fez assim? Pecados! De que maneira poderei evitá-los?”

Assim ia pensando Nikita no que poderia lhe acontecer naquela noite. Mas logo deixou de fazê-lo para se entregar às recordações que brotavam espontaneamente. Repassou a chegada de Marfa, as bebedeiras que tomara e a promessa que fizera, a partida da aldeia com o amo, na véspera, a casa tão quentinha de Tarass, e as conversas a respeito da partilha. Desfiou lembranças do filho e do Baio, que devia estar mais confortado sob a manta. Pensou também no patrão, que, cada vez que se mexia, fazia o trenó se embalançar. “O pobrezinho deve estar arrependidíssimo de não ter pernoitado em Grichkino. Para ele, que é rico, a morte será cruel! Para os pobres é que ela não tem importância!” Mas, paulatinamente, as recordações foram se embaralhando e ele adormeceu.

Quando Vassílii fez o trenó balançar mais para poder saltar sobre o cavalo, Nikita acordou, sentindo que o apoio das costas lhe fugia, e, muito contra a vontade, procurou mudar de posição. Esticou com dificuldade as pernas, afastou camadas de neve que as recobriam e se pôs de pé. No mesmo instante sentiu que um frio terrível lhe espetava o corpo.

E, num relance, compreendeu o que se passava. Então, chamara o amo apenas para lhe pedir a manta de que o Baio já não iria precisar, mas que para ele, Nikita, teria grande serventia. Mas Vassílii Andréitch se arrancara sem lhe dar resposta e logo sumira na espessa poeira de neve que escondia tudo.

Vendo-se sozinho, Nikita pensou rapidamente no que devia fazer. Cansado, não se sentia em condições de procurar um abrigo. Não podia mais se sentar no buraco onde estivera até há pouco, pois a neve já o tapara. o trenó não o esquentava convenientemente, porque não tinha nada com que se cobrir, e o cafetã e a peliça quase não o abrigavam.

Sofria tanto o frio que tinha a impressão de que só vestia uma camisa. Teve medo.

 

— Meu pai do céu! — exclamou em voz baixa, e imediatamente ficou tranqüilo, certo de que não estava só, de que Alguém o ouvia e não o abandonaria.

 

Soltou um fundo suspiro e, sem tirar a serapilheira com que resguardava a cabeça, subiu para o trenó e se acomodou no lugar onde o amo estivera.

Mas não conseguia se reaquecer. Um forte tremor sacudia-lhe o corpo. Depois, o tremor foi diminuindo e, pouco a pouco, ele perdeu os sentidos. Não poderia dizer se estava morrendo ou adormecendo, mas se sentia indiferentemente preparado para uma coisa ou para outra.

 

VIII

 

Enquanto isso, Vassílii Andréitch, animando o cavalo com os joelhos e com a rédea, tocava-o no rumo em que julgava, sem mesmo saber por quê, encontrar a floresta e a cabana do guarda-florestal. A neve tirava-lhe a visão e o vento dificultava-lhe o avanço; sem embargo, dobrado sobre o pescoço do Baio e preocupado em prender as abas da peliça entre as coxas e o selim gelado, que muito o incomodava, forçava a marcha do animal, que com grande sacrifício obedecia ao desejo do condutor.

Durante uns cinco minutos assim andaram em linha reta, segundo acreditava Vassílii Andréitch, que nada via, salvo a cabeça do Baio e o vasto lençol branco que se estendia por todos os lados, nem nada escutava, fora o silvo do vento rente à gola da peliça.

Repentinamente, divisou uma coisa escura na sua frente. O seu coração palpitou de alegria e ele dirigiu a monta ria para aquele ponto, cuidando distinguir ali as paredes das casas da aldeia. A coisa escura, porém, não estava imóvel — mexia-se. Não eram casas, mas altas artemísias nascidas no fundo de uma vala e que se curvavam desesperadamente sob o impacto da ventania. E, sem saber por quê, ao deparar com aquelas plantas atormentadas pela tempestade impiedosa Vassílii Andréitch estremeceu de horror e impulsionou a alimária para a frente, sem perceber que, quando chegara perto das artemísias, mudara de rumo e, assim, avançara em outro sentido, pensando ainda que ia direito à floresta e à cabana do guarda-florestal. O Baio tendia a seguir para a direita e por isso Vassílii Andréitch obrigava-o a tornar para a esquerda.

Novamente vislumbrou uma mancha escura à sua frente. Rejubilou-se, seguro de que desta vez avistara a aldeia.

Mas eram as mesmas artemísias castigadas pelo vendaval e que, sem explicação, o haviam atemorizado. Não só via as mesmas plantas secas como também as manchas recentes das patas de um cavalo, que o vento começava a apagar.

Vassílii Andréitch conteve o Baio e se inclinou para observar com a máxima atenção. Sim, por ali passara um cavalo e só podia ser o seu. Não teve dúvidas de que andava em círculo e num espaço muito limitado.

“Se eu continuar assim, não escapo da morte”, disse consigo mesmo. E, para vencer o terror, apressou o cavalo, esforçando-se por ver através da intensa bruma branca. Parecia-lhe que no meio dela brilhavam pontos luminosos, que desapareciam logo que os fixava. Em certos momentos acreditou ouvir latidos de cães e uivos de lobos, mas eram sons tão difíceis e remotos, que não poderia garantir que eram reais ou apenas uma ilusão sua. Parou e ficou atento, procurando captar o menor ruído.

Eis que um grito medonho e ensurdecedor como que arrebentava- lhe os ouvidos e ele se viu tomado por um convulsivo tremor. Abraçou-se desesperadamente ao pescoço do cavalo, mas também o pescoço tremia e o pavoroso grito se repetiu. E, durante alguns segundos, Vassílii Andréitch não pôde concatenar as idéias e esclarecer o que sucedera. Ora, o que acontecera fora simplesmente que o Baio, para encorajar-se ou para pedir socorro, pusera-se a relinchar com quanta força lhe restava.

 

— Que a morte lhe tape a boca, desgraçado! — praguejou aos berros. — Que susto me pregou!

 

Mas, mesmo após ter compreendido a causa do medonho grito, não conseguiu dominar a ansiedade que ele lhe provocara. “Preciso refletir sensatamente. É preciso me acalmar”, dizia interiormente. Mas não se controlava, e continuava a apressar o animal, sem perceber que tinha agora o vento pelas costas, e não pela frente como antes.

Sentia muitíssimo frio e o corpo todo dolorido, mormente no lugar onde roçava a sela, as mãos e os pés tremiam, a respiração estava opressa. Via que fatalmente morreria naquele deserto de neve, pois não encontrava uma saída. E o cavalo entrou por um montão de neve adentro, debateu-se e caiu de lado. Vassílii Andréitch agilmente pulou na neve e fez escorregar a sela quando se firmou para o pulo. Vendo-se livre, o cavalo se levantou, sacudiu-se, deu dois saltos e, relinchando, disparou arrastando pela neve a manta e a rédea: Vassílii Andréitch viu-se só e semi-enterrado na neve. Quis perseguir o animal, mas a neve era tão alta e os seus agasalhos pesavam tanto que não foi além de vinte trôpegos passos e, esgotado e sem ar, parou. “A floresta, as glebas, o armazém, a construção com telhado de zinco, o galpão, o herdeiro... Que será de tudo? Que estará me acontecendo? Não pode ser!”, foi o que lhe veio à mente, como vieram logo as artemísias martirizadas pela tormenta, diante das quais passara duas vezes, e tão grande pavor o invadiu que se negou a acreditar que tudo fora verdade. “Não estarei sonhando?”, perguntou-se, e, convencido de que sonhava mesmo, quis acordar. Mas a neve que batia em sua cara, cobria a sua roupa e gelava a sua mão direita, cuja luva se perdera, era bem real. Como bem real era o branco deserto em que se encontrava agora, tão só como aquelas artemísias, à espera de uma morte inevitável, rápida e estúpida.

 

— Mãe do céu! São Nicolau, meu padroeiro! — implorou gritando.

 

E se lembrou do ofício da véspera na igreja, da imagem do santo de rosto enegrecido numa moldura dourada, das velas que vendia para os fiéis acenderem diante do ícone e que o sacristão lhe trazia depois, quase intactas, para ele esconder e tornar a vender. E começou a rezar àquele mesmo milagroso São Nicolau, prometendo-lhe missas e velas para que o salvasse. Depressa, porem, compreendeu, sem a menor parcela de dúvida, que o ícone, as velas, o padre, as missas, tudo isso era muito importante e necessário lã na igreja, mas não ali, quando não lhe poderiam ser de nenhuma valia. Revelava-se a ele claramente que as missas e velas não tinham nenhuma relação com a sua desesperadora situação.

“Não posso me deixar abater. Tenho de seguir as pegadas do cavalo, antes que a neve as apague. Só assim eu poderei encontrá-lo. Mas devo agir com calma, para não perder o rumo. Do contrário ficarei logo cansado e, então, serei um homem perdido”, pensou. Embora tivesse resolvido andar calmamente, desatou a correr como um alucinado, tropeçando a cada momento. As marcas do Baio já estavam pouco visíveis, especialmente nos lugares onde a neve era menos profunda.

“Vou morrer mesmo. Estou perdendo o rastro do cavalo e assim é

impossível encontrá-lo!”, disse de si para si. E, mal acabara de falar, levantando os olhos, viu uma mancha negra. Era o Baio e também o trenó e os varais com o lenço amarrado. O Baio, com a retranca de lado, não estava no seu antigo lugar, mas perto dos varais, e sacudia a cabeça com a rédea enrolada numa das pernas. E que Vassílii Andréitch viera cair no mesmo monte de neve em que tinha antes afundado com Nikita. O Baio o trouxera até uns cinqüenta passos do trenó e, então, o abandonara.

 

IX

 

Atingindo o trenó, Vassílii Andréitch agarrou-se a um dos lados dele e, de pé, ficou algum tempo recuperando o fôlego e se acalmando. Nikita não estava mais no seu lugar, mas Vassílii Andréitch percebeu no trenó uma coisa coberta calculou que fosse ele. o alucinante medo havia de neve e se extinguido. Só temia que voltasse aquele medo horroroso que o empolgara quando vagara a cavalo e que ultrapassara todos os limites ao se ver sozinho, caído no monte de neve. Era preciso, a todo custo, impedir que o pavor renascesse e agir, fazer qualquer coisa útil era um meio de afastá-lo. Em primeiro lugar, foi se colocar de costas para o vento e desabotoar a peliça. Em seguida, com a respiração menos aflita, descalçou as botas e sacudiu a neve que nelas se introduzira — tirou também a luva esquerda, pois a da mão direita havia se perdido na neve. Desapertou o cinto e apertou mais embaixo, como tinha o costume de fazer, quando saía do armazém para examinar as carroças de trigo que os camponeses vinham vender-lhe.

Assim que se viu em melhores condições para agir, tratou de desembaraçar a perna do cavalo. Amarrou o Baio na parte fronteira do trenó, onde ele estivera antes, e quis passar por trás dele para recolocar a retranca, o selim e a manta, porem, naquele momento, viu uma coisa se mexendo no trenó; era a cabeça de Nikita que emergia da espessa camada de neve que a cobrira. Com extremo esforço, Nikita, completamente enregelado, ergueu-se, sentou-se e começou a sacudir a mão diante do nariz, como se estivesse espantando moscas, ao mesmo tempo que murmurava palavras ininteligíveis. Vassílii Andréitch adivinhou que ele o chamava e, deixando cair a manta que ia estender sobre o Baio, acercou- se do empregado:

 

— Que é que você está dizendo? Que é que está sentindo?

 

— Estou... mo... mo... morrendo — respondeu Nikita, com dificuldade e a voz entrecortada. — O que... me ... deve... dê ao... meu filho... ou à minha... mulher... é a mesma... coisa...

 

— Você está gelado?

 

— Sim... sim... é a morte ... Perdoe-me... em nome de ... Cristo — e Nikita soluçava e continuava a agitar as mãos como se enxotasse moscas.

 

Durante alguns segundos, Vassílii Andréitch ficou imóvel e calado. Depois, rapidamente, com aquele ar decidido com que despachava um freguês, depois de um bom negócio, recuou um passo, arregaçou as mangas da peliça e começou, com ambas as mãos, a tirar a neve que cobria Nikita e o trenó. Retirada a neve, Vassílii Andréitch desabotoou a peliça, empurrou Nikita para o fundo do trenó e se deitou em cima dele, agasalhando-o com a peliça e com seu próprio corpo. Tendo enfiado as abas da peliça entre Nikita e os lados do veículo, e prendendo a barra com os joelhos, ficou de bruços sobre o criado, com a cabeça apoiada na parte dianteira do trenó. Não prestava atenção aos movimentos do cavalo, nem ao sibilar do vento. Empenhava-se inteiramente em ouvir a respiração de Nikita, que permaneceu longo tempo imóvel e afinal suspirou e se mexeu ligeiramente.

 

— Estão bem! E você a dizer que estava morrendo... Fique bem calmo e trate de se esquentar. Nós somos ossos duros de roer...

 

Mas, com grande espanto seu, Vassílii Andréitch não pôde continuar a falar, pois os olhos se encheram de lágrimas e o lábio inferior tremia. Parou de falar e fez um enorme esforço para conter o nó que lhe apertava a garganta.

“Passei por um grande susto e estou muito enfraquecido”, pensou. Porém, a fraqueza que sentia não era desagradável, até, pelo contrário, fazia que experimentasse uma estranha alegria, antes jamais provada.

“Nós somos ossos duros de roer dizia para si mesmo, abandonando-se a uma espécie de enternecimento solene e todo especial. E ficou assim deitado em silêncio um largo tempo, enxugando os olhos na dobra da peliça e apertando com mais força o joelho direito para prender a aba que o vento ameaçava arrancar.

Mas o desejo de fazer que alguém participasse da sua alegria foi de tal sorte que não se conteve mais:

 

— Nikita!

 

— Vou indo bem. Já estou sentindo um pouco de calor — respondeu Nikita, embaixo do amo.

 

— Sim, meu irmão, sim... eu também estive com a morte nas minhas costas. Você quase morre de frio e eu também...

 

Mas o queixo recomeçou a tremer e novamente os olhos se encheram de lágrimas. “Não faz mal. Tudo o que sei, tenho que guardar comigo”, pensou. E ficou calado muito tempo.

O calor que subia do corpo de Nikita, sob ele, e o que lhe proporcionava a peliça, posta sobre as costas, aqueciam bastante Vassílii Andréitch; entretanto as mãos, que seguravam as abas da peliça, e os pés, que o vento descobria a todo instante, começavam a ficar gelados. Sentia, principalmente, muito frio na mão direita, que estava sem luva. Contudo, não pensava nem nas suas mãos, nem nos seus pés.

Só pensava em reaquecer o homem que estava deitado por baixo dele.

Algumas vezes dava uma olhada rápida no Baio e via que o lombo dele estava descoberto, pois o vento jogara ao solo a manta e a retranca. A si mesmo dizia que era urgente se levantar e cobrir o animal, mas não se decidia a deixar Nikita nem por um minuto, como ainda não queria quebrar a singular alegria que embalava a sua alma. já não sentia o menor medo.

“Já passou o perigo. Ele está salvo!”, exclamou consigo mesmo, pensando na maneira pela qual recuperava Nikita com o mesmo entusiasmo com que, outrora, gabava as suas compras e vendas.

Assim se escoaram três horas. Vassílii Andréitch não notava mais a marcha do tempo. No princípio revia mentalmente a borrasca, os varais empinados, o cavalo com os arreios. E pensava, também, em Nikita ali, embaixo dele.

Logo vieram se juntar as recordações mais antigas: a festa da aldeia, a mulher, o oficial de polícia, a gaveta da arca onde guardava as velas e sob a qual viu, de repente, Nikita deita,do. Seguiram-se os camponeses comprando e vendendo, paredes brancas, casas cobertas de zinco, e sob as quais tornava a encontrar Nikita. Por fim, tudo se embaralhou.

Uma imagem absorveu a outra e, da mesma forma que as cores do arco-íris se misturam para dar o branco, também toda!s as suas impressões, confundindo-se, desapareceram.

E ele adormeceu.

Muito tempo dormiu sem sonhar. Mas, pela madrugada, teve um sonho. Viu-se na igreja, de pé, junto à arca em que guardava as velas. A mulher de Tikhon comprava-lhe uma vela de cinco copeques para acendê-la diante do íc(pc, cuja festa se comemorava. Ele quer pegar a vela para entregá-la à compradora, mas as mãos, que enfiara nos bolsos- não lhe obedecem. Quer contornar a arca, mas os pés não saem do lugar e os sapatos parecem estar colados no chão. Subitamente a arca deixa de ser arca para ser uma cama e ele se vê deitado de borco na cama, mas em sua ca. Tenta se levantar, porém, não consegue. Todavia, é preniente que se levante, porquanto o oficial de polícia, Ivan Matvéitch, virá buscá-lo para irem juntos efetivar a compra da floresta. Ou será para ajudá-lo a recolocar a retranca o Baio? E Vassílii Andréitch pergunta à esposa:

“Como é, Nikoláievna, ele ainda não chegou?” — “Não, ainda não veio”, responde ela. Aí ouve alguém se aproximando da escada. É ele, certamente. Mas não era! Quem passou não parou. “Como é, Nikoláievna, então ele ainda não chegou mesmo?” — “Não.” E assim ficou na cama, sem poder se levantar, sempre esperando, e a espera é um misto de temor e alegria. De repente, a alegria é que domina: está chegando quem ele esperava. Mas não é Ivan Matvéitch, o oficial de polícia. Trata-se de outra pessoa e, no entanto, é exatamente quem ele desejava que chegasse. Ei-la que se aproxima e o chama. E aquela pessoa que o está chamando é justamente aquela que lhe ordenara que deitasse sobre o corpo gelado de Nikita para reaquecê-lo. “Já vou!”, grita com imensa alegria, e acorda com o próprio grito.

Acorda, sim, mas inteiramente diferente do Vassílii Andréitch que adormecera. Quer se levantar, mas se sente incapaz. Quer mexer as mãos e não pode, Quer mexer os pés, também não pode. Quer mover a cabeça e é a mesma imobilidade. A coisa o espanta, mas não o entristece. Compreende que é a morte e não se sente desolado. Lembra-se de Nikita, que está debaixo dele, aquecido e vivo! Parece-lhe que ele, Vassílii Andréitch, é Nikita e que Nikita é ele, e que a sua própria vida não está mais com ele e sim com Nikita. Atentamente escuta e ouve o respirar e o leve ressonar de Nikita. “Nikita está vivo, portanto eu também estou vivo”, exclama de si para si, triunfalmente.

E lembra-se do seu dinheiro, do seu armazém, da sua casa, das vendas e compras e dos milhões de Mironov. É incompreensível como aquele homem que se chamava Vassílii Brekhunov dava tanta importância a tais bagatelas.

“É porque ele não sabia o que é verdadeiramente de valor”, dizia, pensando em Vassílii Brekhunov. “Não sabia o que eu hoje sei. Não é possível me enganar mais. Agora eu sei!” E ouve de novo o chamado daquela pessoa que já o chamara uma vez. “já vou! já vou!”, responde, o coração transbordando de uma doce alegria.

E, depois disso, Vassílii Andréitch não viu, não ouviu, nem sentiu mais nada neste mundo.

A tempestade não cessava. A neve em constantes imensos turbilhões ia cobrindo o corpo de Vassílii Andréitch, o Baio gelado e tremente, o trenó já meio sepultado. E no fundo do veículo, sob seu amo morto de frio, Nikita dormia, tépido, sereno.

 

X

 

Ao amanhecer, Nikita despertou tomado Por uma estranha sensação de frio. Sonhara que ia levando para o moinho uma carroça carregada de trigo e, não encontrando a ponte, ao atravessar o riacho, atolara-se na lama. Mete-se debaixo da carroça e se esforça por levantá-la com o emprego das costas. Mas, coisa curiosa, a carroça não se move!

Parecia grudada às suas costas e ele não podia suspendê-la nem tampouco sair dali. Ela comprime-lhe os rins. Meu Deus! Como está fria! É preciso que saia dali de qualquer jeito! “Não agüento mais! Tire os sacos!”, diz a alguém que, supõe, está assistindo à cena. Mas a carroça parece cada vez mais fria e esmagando-o. E eis que é atingido por duas pancadas — desperta de todo e se lembra de tudo. A carroça gelada é o amo morto, deitado em cima dele, e as pancadas que sentiu eram o Baio, que por duas vezes batera com o casco no trenó.

 

— Andréitch! — chama, temeroso, com O pressentimento da verdade e arqueando as costas.

 

O amo não responde. A barriga e as pernas dele estão duras e pesadas como se fossem de chumbo.

“Com certeza morreu! Que Deus o receba em Seu reino!”, pensa Nikita. Vira a cabeça, faz um buraco na neve com a mão e abre os olhos. Está bastante claro. O vento continua a balançar os varais e a neve tomba sempre, não mais fustigando os lados do trenó, mas sepultando, silenciosamente, o veículo e o cavalo, que está imóvel, a respiração, parada. “Ele também deve ter morrido”, raciocina. E, na verdade, fora fazendo um último esforço para se manter de pé que o Baio, inteiramente gelado, batera com as patas no trenó e acordara Nikita.

“Senhor! Pai celeste! Também sou chamado à Sua presença! Que seja feita a Sua divina vontade! Tenho medo mas que posso fazer? Só se morre uma vez. Tomara que não demore muito”, e Nikita recolhe as mãos, cerra os olhos dorme, certo de que chegara a sua vez.

Foi só no dia seguinte, à hora do jantar, que uns camponeses desenterraram Vassílii Andréitch e Nikita, que estavam a cinqüenta metros da estrada e a meio quilômetro da aldeia.

A neve cobrira inteiramente o trenó, mas os varais como o drapejante lenço ainda estavam à vista. Baio, com neve até a barriga, a manta e a retranca descaídas para um lado mantinha-se de pé, todo branco, a cabeça pendida, as ventas entupidas de neve, assim como os olhos, que pareciam verter lágrimas geladas. Emagrecera tanto no decorrer daquela noite que não era mais do que pele e ossos.

O corpo de Vassílii Andréitch estava tão hirto quanto um pedaço de carne congelada. Ao erguerem o cadáver, ficou ele com as pernas abertas tal como se deitara sobre Nikita. os olhos de gavião, redondos e saltados, gelados estavam, e a neve entupira a boca, sob o bigode aparado.

Quanto a Nikita, ainda vivia, não obstante tivesse corpo parcialmente gelada. Quando o acordaram, julgou que estivesse morto e que tudo o que acontecia à sua volta já fosse no outro mundo. Ao ouvir a voz dos camponeses que livravam o trenó e suspendiam o corpo de Vassílii Andréitch, ficou muito admirado, no primeiro momento, por ver que havia gente no outro mundo e que discutia da mesma forma que neste; porém, ao perceber que ainda se encontrava na Terra, sentiu-se mais aborrecido do que contente e mais ainda ao notar que tinha os dedos dos pés enregelados.

Dois meses passou ele no hospital. Amputaram-lhe três dedos; outros ficaram bons — e pôde voltar a trabalhar.

Vinte anos viveu ainda, primeiramente como criado de um herdade e mais tarde, ao chegar a velhice, como guarda-noturno. Só veio a morrer este ano rodeado dos seus, na sua própria casa, tal como sempre ambicionara, sob a proteção dos ícones e com uma vela entre as mãos. Antes de expirar, pediu perdão à mulher, despediu-se do filho e dos netos e se foi absolutamente feliz porque livrara o filho e a nora de uma boca inútil e, principalmente, porque trocava, afinal, esta vida, da qual já se sentia saturado, por outra que, à medida que os anos passavam, lhe parecia mais atraente e longa.

Estará melhor ou pior no mundo em que foi acordar depois da sua morte? Terá se decepcionado ou encontrou lá precisamente aquilo que desejava?

Um dia todos nós o saberemos.

 

                                                                                               Leon Tolstoi

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

 

 

 

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